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PENTAGRAMA

O poeta e cantor O rfeu percorreu o mundo, SUMÁRIO

ensinou a sabedoria e as ciências a muitos povos


3 AMANHÃ EU DESPERTAREI
e fundou os mistérios órficos consagrados
5 D IO NÍSIO, UM IMPULSO DA
a D ionísio. ETERNIDADE NO TEMPO

A sua feliz e triste história da perda de E urídice 10 ... NÃO HAVIA SILÊNCIO
NEM SO M
ilustra o chamado eterno do E spírito
16 A TEMPESTADE DE
desejoso de libertar a alma imortal dos lugares D IO NÍSIO E A HARMO NIA
DE APO LO
tenebrosos e, unido com ela, viver no divino
20 O RFEU, A RELIGIÃO
país da luz. DO S MISTÉRIO S

22 O RFEU – O MITO

25 O CÂNTICO DE O RFEU

30 O OVO Ó RFICO

31 F RIEDRICH N IETZSCHE ,
MÉDICO DA CULTURA

34 “AS TRÊS CHAVES”

ANO 29 NÚMERO 3
J UNHO 2007

Capa: Rudolph Bauer.


O reino do Espírito, 1930.

Dionísio sobre o leopardo, mosaico


romano do 1º século de nossa era,
Museu Arqueológico de Tessalônica,
Grécia (Bridgeman Art Library).
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Poemas I

“Amanhã eu despertarei”

Foi o que eu disse há tempos,


Isto acontecerá, agora eu sei.
Ah! Que despertar será este!
Amanhã eu despertarei,
E diferente tudo será. No mundo obscuro e confuso,
Com outros olhos o mundo verei. Sono, nunca mais,
Nem novas ilusões e devaneios.
Todos os sons ouvirei,
Discernirei o mundo de amanhã, De minha jornada de amanhã ativa,
Todas as cores verei. A claridade transparente
Será como a água de uma fonte viva.
Falarei outra linguagem:
A linguagem da alma, Fonte eterna, inexaurível,
A linguagem do coração. Quem se saciará do sagrado?
Eu sinto! Amanhã eu despertarei.
Tristezas desaparecerão,
Tudo será diferente, Vejo uma estrela e um raio de luz,
Preocupações desaparecerão. Um astro com brilho de ouro e prata,
Cujo cintilar toca meu coração, me
Na manhã do meu despertar seduz.
Não conhecerei tristeza nem dor,
É a linguagem da alma a falar. Longe, lá em baixo, encontra-se a
porta,
A melodia do dia vindouro Ela me levará para o amanhã,
Está inteiramente composta, Como uma entrada brilhante se
E eu a conheço do nascedouro. mostra.

Já começo a ouvir o som puro, Um novo mundo me aguarda...


Com ele logo me harmonizarei,
Nele está todo meu futuro. Eu dou um passo à frente...

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Dionísio,
um impulso da eternidade no tempo

Quem era Dionísio? Numerosos historiadores ten-


taram penetrar os segredos desse deus, e diversos filó-
sofos e autoridades religiosas tentaram explicar esse
mito. A veneração a Dionísio espalhava-se pelas
regiões mediterrâneas, no Oriente Médio e até na
Índia. Segundo algumas fontes, o culto proviria da
Trácia, a atual Bulgária. Para os gregos a Trácia
era a “terra sagrada”, o “país da luz”. Lá se er-
guiam os antigos santuários de Zeus, Cronos e
Urano bem como os antiqüíssimos santuários de
Dionísio. Uma das mais antigas tradições da Trá-
cia afirma: “No começo, o tempo criou o ovo argên-
teo do mundo, de onde surgiu Dionísio, o andrógi-
no que traz em si as sementes de todos os deuses e de
todos os homens”.

É bastante provável que o culto a Dioní-


sio tenha se espalhado pelo mundo a partir
da Trácia pela rota da seda (cf. Pentagrama
nº 3, 2006). No mundo antigo Dionísio era
muito venerado. Contudo, aproximar-se
apenas do ponto de vista histórico desse
culto tão diferenciado significaria perder a
profundeza real do conceito espiritual que
está na sua base. É necessário um certo
saber interior para reconhecer em Dionísio
o impulso secular eterno sem nome, mas
que a cada manifestação recebe um nome,
um impulso que atua desde o princípio do
mundo e da humanidade. Ele aparece sob
a forma de uma mensagem que em todas as
épocas a humanidade traduziu e adaptou
em palavras e imagens. Podemos perceber
sua luminosa radiação nas escrituras sagra-

Dionísio, escultura do lado leste do Parthenon, Atenas,


por Fídias, ca. 450-430 a.C.

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das bem como nos mitos e lendas populares. deram-se da criança divina. Apenas seu co-
Os gregos adotaram essa tradição em sua ração, sua íntima essência espiritual, é pou-
mitologia de modo muito particular. Em pado e retomado pela energia divina.
uma dessas narrativas, Dionísio é trigonos, Plutarco, historiador grego (46-127), qua-
o filho três vezes nascido, engendrado por lifica o coração de Dionísio de anima mundi
Zeus com Deméter, deusa da terra. Após ou alma do mundo, o elemento vivificador
seu nascimento, o menino Dionísio ascende do macrocosmo. As formas vitais das cria-
ao trono divino. Logo em seguida, enquan- turas se esclerosam quando estas se entre-
to ele se mira no espelho, é morto pelos gam à vontade egocêntrica e ao instinto de
titãs, que o desmembram e o devoram, com autoconservação, pois já não recebem a
exceção de seu coração, que é salvo por energia divina de maneira harmoniosa,
Atena, a sabedoria divina. Esta última leva- porém sob a forma de raios e trovões. Disso
o a Zeus, que o acolhe em si. Então Zeus, o resulta grande tensão: uma força se descar-
pai dos deuses, fulmina os titãs com uma rega para aniquilar o que já não correspon-
trovoada intensa, emitindo seus raios de de à idéia divina. Tratar-se-ia aqui de uma
cólera. E das cinzas resfriadas surge a catástrofe cósmica apresentando-se como
humanidade. Em seguida, Zeus engendra trovoada de onde teria “nascido” o Univer-
um outro filho com Sêmele, uma mulher so? Esse fenômeno, contudo, repete-se infi-
mortal que, não podendo suportar a visão nitamente nos “microcosmos”, os “peque-
do deus, desaparece. Zeus retira seu filho do nos seres” mortais atuais. Em nós há uma
corpo moribundo de Sêmele. Este é o mistura de forças ativas: as forças dialéticas
segundo nascimento de Dionísio. Zeus o dos titãs, mas também uma sobra de energia
implanta em sua coxa, gestando-o até seu divina original. É um grande milagre que
nascimento: é o terceiro nascimento de esse elemento de luz tenha sido implantado
Dionísio, que então recebe o nome de na forma tenebrosa do corpo material.
“Íaco” que significa “a estrela portadora de Nesse sentido, Goethe faz Mefisto dizer em
luz”. Hermes confia o recém-nascido às Fausto:
ninfas, que o conduzem ao silêncio e à soli-
dão. Daí, o infante divino penetra no Eu sou uma parte
mundo e o impregna com sua energia. De daquilo que outrora formava um todo;
fato, ele o conquista e o “salva” de todos os a parte da escuridão
males com o nome de “Liaios”, aquele que que criou a luz. E desde então
elimina todos os tormentos. Por fim, Dio-
nísio casa-se com a solitária Ariadne, que
abandonara seu infiel bem-amado Teseu. O nome Dionísio,“filho de Zeus”, provém de
Esse Hieros Gammos, as núpcias sagradas, tabuinhas de argila gravadas em escrita linear B,
confere a imortalidade à jovem esposa, que encontradas na “arenosa Pilos”. Dionísio era venerado
se eleva ao céu com Dionísio.
Nesse mito, reconhecemos a queda inces- desde a época micênica (1400-1200 a.C.).
sante da criação divina de outrora. Deus, a Presume-se que esse culto provenha de Creta e
quem os gregos chamavam Zeus, deseja ma-
tenha chegado indiretamente à Grécia.Também é
nifestar-se e então envia sua energia a Demé-
ter, a substância primordial. Daí surge a cria- possível que ele tenha se formado sob a influência
ção microcósmica original, perfeitamente da Ásia Menor, pois foi encontrado algo dessas idéias
unida à divindade, desenvolvendo-se graças
na Lídia e na Frígia.
às trocas incessantes de suas respectivas ener-
gias. Mas as forças da matéria, os titãs, apo-

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essa luz altiva Volta-te para o coração de Dionísio
combate o reino da noite, a mãe;
duplo combate jamais vencido, Cada um sente de maneira mais ou menos
pois é o combate de todos os corpos. 1 forte essa inquietude interior, esse dilacera-
mento que provém da mistura dessas duas
Essa mistura de energias explica por que forças. Quantas vezes nossos pensamentos,
Dionísio está sempre associado à demência, sentimentos e desejos não nos retêm no pla-
ao êxtase, às atrocidades: a ligação da maté- no horizontal embora queiramos seguir um
ria e do espírito, o aprisionamento da luz na ideal elevado? Estamos continuamente vio-
matéria, provoca a inquietude e a eferves- lentando a luz, não porque estejamos agindo
cência nos homens. Embora, Dionísio, a de má vontade, mas sim porque somos cons-
essência divina, impulsione sem descanso a tituídos da substância energética dos titãs.
natureza interior dos seres humanos para Trata-se aí de um dilema que sempre se repe-
que dêem outro rumo à sua vida atual, eles te. A vontade divina original quer desligar-
não param de conceber ideais, imaginações e se da matéria, porém é freada pela matéria,
representações. A oposição entre os ideais e pelo corpo físico. As forças materiais deste
a vida comum causa muitos conflitos inter- mundo querem conservar aquilo de que um
nos, pois é impossível alinhar a vida do espí- dia se apropriaram, e a humanidade encon-
rito e a vida da natureza decaída. Entretan- tra-se cada vez mais submetida ao domínio
to, parece que os homens nada podem fazer da matéria. Sua história mostra-o claramente.
senão tentar realizar seus ideais espirituais Contudo, a inquietude, as desilusões e a ex-
no plano material. Sua esperança de uma periência sistemática da morte podem per-
vida melhor leva-os, portanto, a fazer inú- mitir-nos compreender finalmente nosso ver-
meras experiências: eles tentam alcançar o dadeiro dever. Ao refletir sobre isso e nos vol-
impossível, embaraçando-se cada vez mais tarmos para o coração de Dionísio, é-nos
na matéria e causando grandes sofrimentos a aberto um caminho que nos faz sair dos do-
si próprios e a seus semelhantes. mínios materiais para regressar ao campo de
vida divino. Deus faz sua energia descer so-
bre o gênero humano, em Sêmele, a alma mor-
tal cuja consciência é terrestre. Nela pode,
sim, se desenvolver a criança divina, mas a
ela já nada resta senão apenas assegurar o

Por volta de 500 a.C., quatro festas anuais eram


celebradas em Atenas em honra a esse deus, durante
os meses de inverno até a primavera. No decorrer de
uma delas, as mulheres gregas partiam de Atenas e de
Delfos e escalavam o Parnaso coberto de neve (250m).
Com música e danças elas despertavam o infante
Dionísio adormecido. Imagens relativas a isso são
encontradas em vasos provenientes de Micenas e
Minos.

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nascimento interior dessa criança, sem que
essa criança seja considerada um ser da mes-
ma natureza da mãe.
Quando o ser “eu” mortal quer se apro-
priar do divino, nasce uma tensão insupor-
tável para ele. O nascimento em Deus se de-
senrola mediante um corpo-alma que nasce
do núcleo espiritual, e ao homem terrestre é
oferecida a missão de possibilitar esse nasci-
mento. O processo acontece em Dionísio-
Íaco. Amadurecimento e discernimento pos-
sibilitam que a libertação do homem-luz
ocorra no candidato aos Mistérios. O filho
dos deuses, etapa por etapa, acaba vencendo
as forças dos titãs. Desse modo, Dionísio e
Ariadne, almas agora renascidas e unidas, in-
gressam no campo de vida divino: a alma e o
Espírito celebram suas núpcias sagradas.
Na Grécia, o povo venerava Dionísio, o
deus do crescimento. Aqui, trata-se do as-
pecto externo do processo descrito. Os gre-
gos, em sua maioria, inconscientes do pro- senta uma aparência adaptada à sua época,
fundo saber dos Mistérios, celebravam a aparência que corresponde também à cons-
chegada de Dionísio na forma da chegada da ciência e às idéias de seus fiéis. Daí resultam,
luz, da alegria de viver e do feliz crescimen- por exemplo, as numerosas correntes do
to de todas as coisas. cristianismo, como também suas diferenças
e divergências de opinião. Em geral, uma
Os Mistérios religião popular jamais visa o caminho inte-
rior. Por esse motivo, os seguidores de Dio-
Em seu conjunto, todas as religiões parti- nísio sabiam que a par das festas sensual-
lham essencialmente esses conceitos da reli- mente prazenteiras existiam os Mistérios
gação com o divino, porém cada uma apre- exteriores e também os Mistérios interiores,

Os gregos também chamavam Dionísio de “Baco”, que mente e que também pode causar violência. Ele confe-
significa “chamar, criar”. Por que eles queriam despertá- re a renovação, a alegria e a vida. Ele abre as portas da
lo? É algo fascinante verificar que o antigo pensamento renovação, e do “totalmente outro”! Ele pode destruir
grego interpretava os deuses de modo tanto metafóri- completamente o que pertence ao passado, o que é
co quanto abstrato. Esse deus da umidade fecunda, do pretensioso, limitado. Essa é a razão pela qual Jan van
vinho e do teatro, era considerado o deus do limite Rijckenborgh associa-o ao Espírito.
assim como de sua transgressão: a desobediência. Era Nas decorações de muitos vasos é possível vê-lo com
também o deus do desapego e do passado ancestral (a um espelho na mão. Esse é um sinal de reconhecimen-
Trácia). Dionísio aplica uma força que intercede direta- to. Freqüentemente ele o segura às costas da pessoa

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las de Mistérios protegeram assim seus se-
gredos para impedir seu enfraquecimento,
portanto a perda de sua força. Hermes Tris-
megisto, em seus ensinamentos herméticos,
por exemplo, advertia os iniciados: Os par-
ticipantes das verdades ocultas devem ser em
número limitado. É possível mesmo que não
existam. Pois está claramente estabelecido que
eles são suscetíveis de impulsionar os homens
de má vontade a agir mal. Por conseguinte,
deve-se desconfiar da multidão que ainda não
compreende a força interior dessas noções.
As interpretações populares em nada es-
clarecem a maior parte das informações, por
sinal bastante contestadas, tanto sobre Dio-
nísio quanto sobre os Mistérios exteriores e
interiores. Todos os mitos, tradições e escri-
tos sagrados referentes à verdade permanecem
vazios, sem força e não passam de um co-
nhecimento sem sabedoria se não forem vi-
venciados de fato interiormente. Somente para
secretos. Os Mistérios exteriores mostra- os que penetram a roupagem exterior toda
vam de modo geral as diferentes relações contestação é dissolvida e os numerosos no-
cósmicas, e os sacerdotes revelavam aos par- mes divinos tornam-se um único nome, uma
ticipantes sua origem divina. Nos Mistérios só vibração, na qual pulsa a criação inteira...
interiores os candidatos eram ligados a uma Pode-se dar todos os nomes ao Deus
energia que os colocava em condição de supremo, porém, não se pode atribuir-lhe
seguir o caminho de sua verdadeira destina- um nome.2
ção. Sabemos muito pouco sobre os Misté- FONTES:
rios interiores de Dionísio, pois o principal 1. Gotehe, J. W., FaustoI. São Paulo: Nova Cultural, 2003.
era transmitido de forma oral aos futuros 2. Ângelo Silésio: Der Himmel ist in dir, p.197,
iniciados. No decorrer dos tempos as Esco- verso 127.

ou o mostra a ela. Quando os titãs o abateram, ele segurança a seus discípulos: o espelho reflete a parte
olhava justamente num espelho, onde via seu ser des- imaterial e divina do ser humano, a substância vital que
pojado do corpo, a imagem de sua alma divina desen- é de todos e que os liga a Deus. O espelho é, portanto,
carnada, que todo homem possui. Píndaro, 518-446 a.C., um símbolo, o sinal do reconhecimento do aluno dos
diz a esse respeito, referindo-se a um mistério iniciático: Mistérios.
“Pois tudo isso vem dos deuses”. O jovem Dionísio, no O espelho é apresentado ao candidato quando ele
momento de sua morte, estava cônscio de sua imorta- chega ao Além, a fim de dar-lhe coragem. E o iniciado
lidade, da imagem original da vida incorruptível. Dioní- que segura um espelho deixa-se reconhecer nele, pois
sio, na qualidade de deus dos Mistérios, concedia essa esse é o sinal de que “ele faz parte dos iniciados”.

9
...não havia silêncio nem som

Distante, do seio de Érebo,


nasceu a noite de asas negras;
do vento, o ovo surgiu,
e do tempo que fugia,
Eros, o muito esperado, emergiu
em todo o esplendor de suas asas de ouro.

Aristófanes

O que é a criação? Qual é a causa semelhante a uma nuvem, inteira-


primeira de tudo o que existe? Os mente vazia”, diz um mito chinês a
seres humanos sempre se preocupam respeito da Criação. Todas as civili-
com estas questões. O começo do ser zações e religiões evocam a Criação
seria o não-ser? E o que é o não-ser? com o auxílio de imagens e noções
“No princípio era o caos, um caos de seu tempo. Nos mitos germâni-

10
Nascimento de uma estrela, NASA, 2001.

Hino de Orfeu à Luz

“Primogênito”

Ó tu que irrompeste para fora do ovo da noite,


Alçando-te às alturas etéricas
Com tuas asas douradas.
E, exultante, te rejubilaste.
Tu, luz que desperta os deuses e os homens.
Ó tu, poderoso e imperceptível.
Tu por muitos enaltecido,
Infalível arcano que radia para todos os lados.
Arrebataste a noite de nossos olhos fechados
E arremessaste sobre o mundo
Teus sagrados raios,
Entoando com poder o silêncio da luz.
Senhor do mundo.
Tu que iluminas todos os recantos da terra,
Rebento que resplandece e, com desvelo infinito,
Tudo semeia no mundo!
Esparge a bem-aventurança aos povos,
Estende teus raios e dimana luz.
A todos os que estão
Com as pálpebras fechadas.
Envia-nos vida, tu, que és moldado
Em luz e amor.

cos encontramos, por exemplo, o “Onde estava o silêncio? Onde esta-


conceito “Gap Ginnunga” que sig- vam os ouvidos para percebê-lo?
nifica silêncio e vazio cheios de for- Não, nem o silêncio nem o som exis-
ças mágicas. E no Livro de Dzyan, tiam, nada além do alento ininter-
fundamento da Doutrina Secreta rupto, eterno, que não conhece a si
de Helena Blavatsky, está escrito: mesmo”.

11
...não havia silêncio nem som

O impulso para penetrar todas as coisas e Protogonos, que significa “Primogênito”.


compreender em profundidade o sentido e Por outras palavras, o homem original, o
a origem da existência é inato no ser huma- primeiro homem, é nascido de Deus. As
no. A ciência moderna dá-nos disso um asas de ouro simbolizam sua ligação com a
exemplo. Ela se esforça mediante todos os força do amor divino graças à qual e
tipos de pesquisas e teorias para descobrir mediante a qual ele pode atuar. Mas a tradi-
cientificamente como o mundo apareceu, ção órfica vai ainda mais longe. O ovo do
inclusive as inúmeras leis que o regem. mundo, envolto por uma serpente, é parti-
Basta que pensemos na Teoria do Big-Bang, do em dois. Da forma perfeita, da matriz do
nas pesquisas sobre matéria e antimatéria amor divino, sai um mundo dividido em
ou na teoria da relatividade. duas partes que, por um processo criador
Os adeptos da doutrina órfica formula- incessante, produz cada vez mais formas
ram já há milhares de anos sua resposta à aparentes começando por Gaia, a terra. A
questão da origem do mundo: o fundamen- serpente é o símbolo da consciência. Pode-
to primordial da vida é a deusa da noite, mos aí já reconhecer a vontade egocêntrica
Nyx. Eles a imaginaram como um pássaro que opera na primeira criação e continua a
de asas negras. As características da noite operar? Daí surge a destruição do equilí-
são a escuridão e o silêncio. Insondável, ela brio perfeito entre os princípios feminino e
é comparável ao nada, e por isso contém masculino. O princípio feminino, que en-
tudo: nela todo o possível encontra-se ocul- gendra e dá à luz, representa, assim, por sua
to. A noite da substância original é movida própria natureza, um princípio de plenitu-
por Aithir, o alento divino, a força paterna de que experimentou a satisfação de suas
dinâmica do Espírito. Um impulso divino próprias obras e desejou continuar com sua
põe em movimento o princípio criador ten- atividade de criação, tendo em vista realizar
do em vista uma fecundação e uma manifes- uma perfeição cada vez maior, mas sem
tação. Então surge o ovo do mundo. O ovo entregar-se ao amor divino.
é considerado uma forma perfeita. É a
forma primordial de todas as coisas, do Tudo é energia
átomo ao globo terrestre. Em todos os tem-
pos e em todos os povos, o símbolo da eter- Que imagem nos oferece o mito órfico
nidade tem sido o círculo ou a esfera. Esse da criação se o considerarmos do ponto de
ovo contém o germe da vida. Cada ser hu- vista da ciência atual, que diz que tudo é
mano se encontra no campo de radiação do energia?
sistema microcósmico em forma de ovo, em Na origem havia uma substância primor-
cujo centro repousa o germe do nascimen- dial, uma energia impassível e sem forma.
to do verdadeiro homem. Na tradição órfi- Podemos denominá-la “trevas” por não pos-
ca, Eros nasce do ovo do mundo fecundado suir forma alguma, “caos” por aparente-
pelo Espírito. É o deus andrógino do eter- mente não estar ainda organizada. Podería-
no amor divino. Ele é igualmente chamado mos também qualificá-la como “nada”.

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Porém, nela, mesmo no estado desordena- te a corrente energética horizontal da ser-
do e sem forma, palpita um dinamismo que pente. Vemos, aqui, desenhar-se o protóti-
ativa tudo o que existe, pois ela é penetrada po da cruz. A força divina não abandonou
pela radiação da energia divina. A força sua criação, porém a corrente energética
divina, uma energia poderosa e concentra- horizontal já não se harmoniza com ela.
da, toca a substância primordial com um Assim, o mundo foi conservado em vida,
raio de luz, que lhe dá dinamismo, ordem e porém, em lugar da ordem original, estabe-
forma. Ao falarmos de formar ou plasmar, leceu-se uma “ordem de socorro” temporá-
não nos referimos a formas do mundo ria onde tudo é o reflexo da ordem original.
material que conhecemos, pois elas ainda
não eram tão densas como acontece com a Tudo é relativo
matéria deste mundo. Referimo-nos tão-
somente à pura energia que se orientava e se O homem que hoje conhecemos é parte
ordenava sob a atividade da radiação divina. integrante de tudo o que pulula e prolifera
A energia contraiu-se, concentrou-se. En- sobre a terra. Ele vive na ilusão, como num
tão apareceram os campos energéticos, os mundo virtual de um jogo eletrônico. Divi-
sistemas dinâmicos onde rodopiavam as for- no em sua origem, ele é a todo instante des-
ças da substância primordial ao redor do truído pelo movimento do surgir e declinar.
centro dos impulsos divinos criadores de Nos fenômenos do mundo exterior, ele
formas. Podemos ver essa imagem na estru- perdeu toda orientação. Prisioneiro da con-
tura do átomo, com os prótons e os nêu- fusão de seus sentidos, ele já não tem a
trons no centro e os elétrons girando ao mínima noção de sua meta. É o Eros priva-
redor. E na trajetória elíptica dos planetas do de asas, um deus caído, um deus que em
ao redor do sol. Tal como é a forma origi- cada encarnação bebe a água do Letes, a
nal, assim é a forma do ovo do mundo. água do esquecimento. Ele já não é cons-
Vemos aí também o homem original sob o ciente de sua origem divina; sua alma, con-
aspecto de uma concentração de pura ener- tudo, guarda um profundo desejo de felici-
gia que gira de modo elíptico ao redor de dade e glória, de reencontrar as asas de ouro
um centro de força divina. A força divina do Espírito. O conhecimento desse estado
nutria com amor divino o sistema humano do homem era um elemento central do
ligado a esse amor, num intercâmbio inces- orfismo e ressoa neste fragmento de um de
sante (as duas asas do primogênito). seus escritos:
A ordem divina foi perturbada devido ao
desvio das energias que partiam de um Como elas se agitam no infinito do Uni-
impulso proveniente do mundo primordial. verso, como elas turbilhonam e se procu-
Então surgiu uma outra ordem, uma for- ram, essas almas inumeráveis que jorram
mação egocêntrica. Esse processo é repre- da grande alma do mundo. Elas caem de
sentado de forma alegórica pela serpente. A planeta em planeta e choram no abismo a
corrente vertical divina cruza continuamen- pátria esquecida...

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...não havia silêncio nem som

Muitos, em nossa época, sob a influência Por conseguinte, seria possível pensar
de Aquário, começam a desconfiar e se con- que nos encontramos sempre no mesmo
vencem cada vez mais de que o mundo e a lugar a que chegamos há milhares de anos, e
humanidade não são o que deveriam ser. E que nos abismos da existência choramos
compreendem que sua opinião sobre essa sempre a perda de nossa verdadeira pátria.
realidade muito relativa depende de seu pró-
prio estado de consciência e chegam mesmo As águas de Mnemosine
a se perguntar se não é a consciência que cria
a realidade. A matéria mesma parece dife- Outra coisa a alma não pode fazer senão
rente do que outrora se acreditava. Desco- recusar as águas do Letes, que jamais sacia-
briu-se que a energia da matéria possui rão sua sede, e voltar para sua pátria perdi-
graus de densidade diferentes. A matéria da. Para tanto ela precisa beber das águas de
inteira é composta de campos magnéticos Mnemosine, a deusa da lembrança. O cam-
energéticos. A atividade desses campos de po de radiação do microcosmo, carregado
força provoca resistências que dão a impres- com forças deste mundo, poderá então assi-
são de dureza. A resistência que experimen- milar a energia divina e brilhar com o ouro
tamos quando nos chocamos contra uma puro do homem divino.
parede rochosa não é mais material do que a A experiência da contemplação mística
força com a qual dois ímãs se atraem ou se faz o iniciado dos Mistérios de Orfeu reco-
repelem. Algo que não possua uma carga nhecer e vivenciar os sofrimentos do ho-
positiva ou negativa é neutro, seja qual for a mem divino de outrora: sua dor de encon-
forma material que consiga penetrar. trar-se dilacerado neste mundo de inumerá-
Os homens redescobriram a relatividade veis fenômenos. Os discípulos de Orfeu
da matéria, da realidade, do tempo e do achavam que deviam encetar a via da purifi-
espaço: esse saber não é novo. Em todos os cação e da sublimação que lhes daria outra
tempos as leis de nosso mundo foram ensi- vez sua forma perfeita e os uniria à origem
nadas nas escolas e comunidades fechadas. divina.
Apenas as imagens e os vocábulos são no- O caminho descrito pelo mito de Orfeu
vos; a grande inovação é o interesse de tan- já fornece uma primeira idéia dos Mistérios
tas pessoas por semelhante assunto. cristãos posteriores. Orfeu, palavra que sig-
A humanidade alcançou um ponto de nifica “aquele que cura pela luz”, torna cla-
sua evolução em que o crescimento da inte- ra ao gênero humano a idéia de sua própria
ligência lhe permite acessar esse saber. Mas degeneração, e ao fazê-lo, essa idéia prepara
se conhecêssemos todas as respostas, se ti- a humanidade para receber o impulso que
véssemos descoberto tudo neste mundo, se manifestaria completamente apenas mui-
estaríamos assim mais próximos de nossa to mais tarde com a consumação da oferen-
libertação? Segundo Paulo, se conhecêssemos da crística.
todas as coisas e não tivéssemos amor, nada Jesus (Joshua significa “o Senhor cura ou
seríamos. salva”) Cristo (Christos, palavra grega para

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“messias”, dade. Rainer Ma-
significa “o ria Rilke fala so-
ungido”) é bre essa mudan-
o interme- ça em “Sonetos a
diador entre Orfeu”:
Deus e o ho-
mem. Ao co- Sabe e aprende a
nhecimento do condição de não-ser,
estado da humani- a profundeza infinita
dade decaída ele acres- de tua própria vibração
centa o conhecimento da que se tornou realmente a
divindade que está no homem. Se do Todo.
esse reconhecimento surge de fato na cons- E na forma perfeita ressurge:
ciência do homem, ele se sente como se as Eros renascido se levanta
trevas o cercassem por todos os lados. na radiação de suas asas de ouro.
Porém, se de repente, num instante, como
um raio, a luz da verdade ilumina essa noite
profunda, tudo parece ser banhado de gran-
de claridade. O alvo, o sentido da vida e o
que está encerrado no mundo são, então,
experimentados numa fração de segundo:
“Porque em parte conhecemos, e em parte
profetizamos, mas quando vier o que é per-
feito, então o que é em parte será aniquila-
do” (Paulo, I Cor 13:9-10).
Após ter vivenciado tal experiência, é
impossível continuar como antes. A pri-
meira pedra para uma grande mudança foi
assentada, e também a possibilidade de dar
à vida uma orientação totalmente diferente.
Contudo, experimenta-se também o temor FONTES:
dessa situação incomum e inesperada. À luz Schuré, E., Os grandes iniciados. São Paulo:
da Verdade as trevas parecem ainda mais Madras, 2005.
Hamilton, E., Das grosse Buch der klassischen
profundas. Porém, ao mesmo tempo vemos
Mythen, Leipzig: Goldmann, 2005.
que é possível um novo desenvolvimento, Rilke, R. M., Sonetos a Orfeu. Rio de Janeiro:
que acabará por rejeitar todas as trevas. O Record, 2002.
catalisador é a fidelidade ao princípio divi-
no fundamental; se nos consagrarmos a ele, Acima: Mosaico romano com uma representação de Dionísio,
ele nos conduzirá da multiplicidade à Uni- provavelmente proveniente de um templo iniciático.

15
A tempestade de Dionísio e
a harmonia de Apolo

Quando o rei Midas perguntou ao sábio mens, metade animais, que já por seu
Sileno, tutor de Dionísio quando ele era aspecto retratam a natureza com a qual
criança, o que eram o bem e a dignidade e na qual o homem terrestre precisa
supremos, o sábio ficou em silêncio por longo viver. Essa simples compreensão apa-
tempo. Por fim, com um pequeno riso de ga qualquer representação embeleza-
desprezo e a voz rouca, ele respondeu: da de nossa situação de vida. O olhar
distante e a voz rouca de Sileno dissi-
“Raça miserável, filhos do acaso e da pam repentinamente qualquer possi-
dor. Por que tu me forças a dizer-te o bilidade de acordo com nossa realida-
que seria melhor para ti? O bem de aparente. O desejo de Midas de se
supremo está totalmente fora de teu identificar com a ilusão foi a razão de
alcance, pois isso significa não ter sua pergunta, mas a resposta provoca
nascido, não-ser, ser um nada. A seu descontentamento. Porém, é uma
segunda melhor opção para ti seria perturbação fecunda que faz nascer o
morrer o mais depressa possível!”1 desejo por verdade em nós.
O primeiro aspecto de Dionísio in-
flui sobre a natureza continuamente
C om essas palavras o sábio lança por cambiante dos fenômenos. O homem
terra qualquer esperança de alcançar o é parte desta natureza e também está
bem mais precioso e destrói o desejo ligado à força dionisíaca. Sua inteli-
por belas aparências, obrigando-o a gência tenta alcançar essa força para
voltar-se para um objetivo verdadeiro, chegar à perfeição. Enquanto forma
que nada tem a ver com o rei “eu”. A material, ele deve se dar conta de sua
resposta franca de Sileno teria origem insignificância no Universo e de sua
nas primeiras tragédias gregas com- incapacidade de penetrar o que há de
postas tão-somente por um coro de mais profundo em si mesmo com to-
cantores com aspecto de sátiros. Esse dos os meios e métodos de que dis-
coro revelava o outro lado dos belos põe. Ora, Dionísio é quem, por sua
mitos homéricos e prendia a atenção oferenda, rompe esse estado do ser
dos ouvintes ao exprimir friamente a humano. Como furacão do espírito
verdade. O semblante do deus teria renovador, ele, no segundo aspecto,
À direita: Apolo e feito empalidecer e tremer os encanta- começa demolindo a falsa compreen-
as Rosas, óleo dores personagens criados por Ho- são a fim de construir sobre as ruínas
sobre tela, Giorgio mero. É mais ou menos dessa manei- de seu antigo ser. Depois que Apolo o
de Chirico, 1974
ra que Nietzsche escreve em seu livro1 toca com o ramo de loureiro, ele se
(coleção
particular Peter
a respeito da tragédia grega. torna o vencedor, o libertador, o novo
Willi/Bridgeman Sileno é considerado o pai dos sáti- homem que já não é metade homem e
Art Library). ros. Os sátiros são seres metade ho- metade animal, mas que alcançou fi-

16
17
nalmente as mais profundas bases da exis- fim, tornar-nos conscientes do “não-ser”
tência. Com o auxílio de Apolo, seu pólo no qual nossa alma tem a possibilidade de
oposto interno, Dionísio, enquanto filho crescer, com a condição de que Apolo nos
do Sol que repousa na paz da Unidade, toque com seu ramo de louro.
transcende a forma determinada pela maté- Esse ramo de louro é o símbolo da vitó-
ria (Aristóteles diz, a esse respeito, que a ria sobre todas as aspirações de nosso inte-
antiga palavra árabe “Iach” [Íaco] represen- lecto. É a representação da força que nos
tava um cavalo, o “cavalo solar” [Dionísio] toca e conduz ao fecundo silêncio onde está
que puxa o carro no qual o deus do céu o que nos é impossível alcançar: a realização
passa todo o dia). Em seu terceiro aspecto, perfeita representada por Íaco-Dionísio.
Dionísio, como o radiante Íaco, representa Nossa consciência, então, já não será deter-
o novo homem que resolveu as tensões ter- minada por considerações intelectuais, já
renas. Ele alcança a perfeição de Apolo. não perguntará o que seria melhor para nós,
Cada ser humano alcançará esse estado, porém se orientará para a força superior de
desde que consiga rasgar os véus das belas Dionísio para, finalmente, tornar-se o ins-
aparências e deseje ardentemente dar um trumento mesmo do Espírito.
fim a todas as ilusões. Mas qual é a relação de tudo isso com o
Não se trata aqui de uma perfeição relati- coro que, na origem, era o único ator nas
va à harmonia do nosso mundo. Trata-se de tragédias gregas? Podemos, aqui, tal como
um dos aspectos de Apolo: o poder que Nietzsche, perguntar-nos por que esse coro
garante a coerência constante do cosmo. tão importante era composto por pessoas
Sua força solar é equilibrada, harmônica e que se apresentavam sob a forma de sátiros.
dominante. Por isso é dito que Apolo põe Os coristas, na resignação e na compreen-
um véu de misericórdia sobre todos os que
ainda não podem suportar a verdade. Os
fortes, porém, podem beber o vinho puro
do verdadeiro conhecimento. Se dele
bebermos, receberemos a força dionisíaca
que nos transporta (espiritualmente) e nos
conduz até as insondáveis profundezas de
nossa existência. Nossa personalidade ter-
restre torna-se mais adequada para receber
a nova força dionisíaca. A perfeição (Íaco)
ocorre pela ruptura de nosso dionisíaco,
portanto apolíneo, estado de ser. A conse-
qüência é a obtenção do não-ser que Sileno
diz ser impossível. Nisso, entretanto, o
velho sátiro está parcialmente certo. Seu
longo silêncio e sua resposta dura signifi-
cam indubitavelmente que ele deseja que
encaremos de frente a cegueira na qual
somos mantidos neste mundo, no qual, em
realidade, nada somos e no qual, em todo
caso, logo devemos morrer. É impossível
nos libertarmos de semelhante situação.
Porém, a força destruidora de Dionísio
pode despertar-nos interiormente e, por

18
são de seu próprio estado de ser, metade coro e os ouvintes dá nascimento aos êxta-
animal metade humano, viam seu senhor e ses que caracterizavam a tragédia grega em
mestre Dionísio, o Espírito, atuar, sofrer e sua origem. Dionísio, a nova e imemorial
por fim ser glorificado. O coro é apenas o força da consciência, cria para cada um a
reflexo do que acontece. Ele não age, pois é possibilidade de se elevar ao novo homem,
na “não-ação” que a verdade pode ser per- Íaco, que é tudo nele.
cebida. Desse modo, o homem torna-se Isso ainda pode acontecer hoje – exata-
sábio, e essa sabedoria anuncia e precede o mente hoje – se, compreendendo nossas nu-
novo Dionísio. merosas e freqüentemente dolorosas expe-
O canto nasce do equilíbrio da alma, da riências, nos abandonarmos ao “não-agir”,
não-ação interior, do silêncio e da paz que em vigilante silêncio. Trata-se da perda do
são, ao mesmo tempo, estrita vigilância. “eu”. Somente então nos tornamos cons-
Unicamente desse modo pode Dionísio cientes de uma dimensão mais profunda e
comunicar seus êxtases e energias. O despe- nos tornamos um com tudo o que existe.
daçamento e o renascimento do homem Se nos colocamos de lado e refletimos so-
expressam-se pelos cantos do coro, projeta- bre a nossa pretensa desventura, Apolo-
dos sobre o auditório tocado pela força Dionísio, nascido justamente nessa desven-
mágica de Dionísio. Os cantores, que expe- tura, revela-se sob a forma de uma felicida-
rimentam a pura e espiritual exaltação dio- de imensa. Então, o sábio Sileno, com sua
nisíaca, fazem-na repercutir e partilham-na resposta, alcança seu objetivo. Ele perde sua
com os assistentes que, desse modo, partici- voz rouca e, na tragédia, o coro da Unidade
pam dos episódios vividos pela alma dos canta uma clara melodia na harmonia pri-
principais personagens. Essa fusão entre o mordial de Apolo.

FONTE:
1 Nietzsche, F., A origem da tragédia.
São Paulo: Centauro, 2004.

Página 18: Entrada de um santuário de Dionísio


(região de Tangarda).
À esquerda: A Deusa Ino dá ao jovem Dionísio a
cornucópia da fartura para que ele se dessedente
nela (Roma, Museu de Latrão).

19
Orfeu, a religião dos Mistérios

Orfismo é uma religião dos Mistérios que A polo e Dionísio são dois aspectos,
remonta aos mitos do poeta e cantor trácio os dois filhos da Mãe original e do Sol
divino. Todos os mitos e lendas falam
Orfeu. A doutrina principal é a fé na
sobre o assassinato simbólico do Lo-
alma imortal no homem, que pode escapar gos solar que aparece na matéria sob
da roda das reencarnações após tornar-se forma de um enviado, após sua res-
surreição dos mortos. De acordo com
consciente e ter alcançado a pureza ao
a lenda, Orfeu dá um novo poder ao
rejeitar as cadeias da matéria. Essa alma Verbo solar de Apolo, fazendo-a revi-
é Eurídice, a bem-amada de Orfeu. ver no tempo mediante seus cânticos

20
arrebatadores, ligando-a aos mistérios de amada. Imediatamente Eurídice desaparece
Dionísio e ativando-a. outra vez no mundo inferior, onde as
Apolo é o poder e a força do Espírito, e nuvens do tempo e do passado a engolem.
Dionísio representa a inspiração, a exalta- Em vão o pobre cantor suplica a Caronte
ção, o êxtase. Após ter dado sua mensagem, para atravessá-lo ainda uma vez para a outra
Orfeu faz a última oferenda mediante sua margem do Estige, porém Caronte é inexo-
morte: ele é dilacerado pelas mulheres da rável: “Vivente algum pode atravessar o
Trácia, ou, de acordo com outra versão, Estige para ir ao Hades, exceto os que a eles
pelos titãs. Seus membros são espalhados estão destinados”.
sobre a terra, seu ser penetra-a e cada áto- O mundo inferior é o nosso mundo, o
mo é tocado por seu cântico divino. Segun- mundo das almas adormecidas onde as leis
do a tradição órfica, após o desmembra- do “subir, brilhar e decair” determinam o
mento de Orfeu, Zeus pune os titãs com curso das coisas e onde é impossível encon-
seu raio e os destrói. O homem nasce, trar o verdadeiro amor que desafia os sécu-
então, das cinzas, dos restos materiais dos los. Ora, ele, o verdadeiro amor, é o único
titãs, mas também é portador de um prin- capaz de quebrar o encanto e despertar as
cípio divino, dionisíaco. Mediante essa almas de seu sono. No mito de Orfeu, Eurí-
centelha divina o homem possui uma alma dice é aquela que cede à tentação deste
imortal. Eurídice representa essa alma que mundo. Ao proceder assim, ela já não é
deve ser libertada. acessível a Orfeu, o cantor do Espírito. É
Eurídice é mordida por uma serpente por um amor incondicional que Orfeu
(símbolo da matéria); ela morre no seu pró- pode fazê-la sair do mundo das almas ador-
prio mundo e deve, portanto, unir-se ao mecidas, porém ele não deve hesitar e nem
mundo inferior, o nosso mundo. Orfeu, o se voltar para trás.
mensageiro do Espírito, vencido pela dor, Sem descanso, Orfeu volta à Trácia para
aproxima-se de Hades, esposo de Prosérpi- ali cantar o amor ao Espírito e procurar por
na e deus do mundo inferior. Ele faz vibrar Eurídice. As mulheres da Trácia, enraiveci-
as cordas de sua lira e canta um hino pun- das pelos cânticos (ou então os titãs) dilace-
gente sobre seu amor perdido. Os habitan- ram-no e espalham seus membros sobre a
tes do mundo inferior comovem-se até as terra.
lágrimas. Até então, ninguém fora feliz A terra derrama lágrimas eternas sobre
nessa empreitada, mas Orfeu está convenci- Orfeu; os rios e riachos transbordam com
do de que seu cântico pode persuadir suas lágrimas; os pássaros, os animais e as
Hades: o deus do amor não tem poder rochas lamentam-se; a cabeça e a lira de
igualmente no reino dos mortos, no mundo Orfeu são arrastadas pelas correntezas até o
inferior? Com efeito, comovido por tanto mar, que as atira para a orla, conforme a
amor, Hades faz Eurídice surgir das lenda, para a costa de Lesbos. Ali um altar é
nuvens. E Orfeu recebe permissão de edificado para depositar sua cabeça; quanto
reconduzir Eurídice ao mundo superior, à sua lira, ela se transforma em uma das
porém com uma condição: ao seguir esse constelações do céu.
caminho ele não deverá olhar para trás. Se o
fizer, Eurídice lhe escapará, ele a perderá
À esquerda: Coroa de louro, feita em ouro, de um sepulcro
para sempre. Eurídice segue-o e, em seu
trácio (Bulgária, século 4 a.C.). Na Antigüidade, a coroa de
desespero, chama-o, mas ele não quer vol- louro era dada como símbolo de vitória. Dizia-se que os raios
tar-se para olhá-la: será que ele já não a jamais atingem os loureiros. Essa coroa era particularmente
ama? Cheio de piedade, Orfeu passa por simbólica devido às qualidades medicinais e proféticas do
cima da instrução e tenta abraçar sua loureiro, planta consagrada a Apolo.

21
Orfeu – o mito

Quando Orfeu encontra Eurídice no silêncio opressivo Eurídice consegue escalar o caminho inici-
das nuvens e na intensa escuridão do Hades, ela o ático até o ponto em que pode perceber a
segue por caminhos espiralados que costeiam abismos brilhante luz do mundo superior através de
uma abertura feita no reino de Hades. Esse
vertiginosos bem como por trilhas pouco transitáveis.
é o ponto onde irrompe a nova consciência,
A alma busca a união com o Espírito, e experimenta que ilumina seu caminho.
uma profunda solidão pelo fato de estar separada de É aí que o mito dá uma guinada incom-
Deus. Em seu isolamento, ela supera a angústia do eu preensível para muitos: Orfeu, que durante
natural e o susto de sua queda nas profundezas todo esse tempo não havia escutado ne-
nhum passo atrás de si, volta-se para ver se
insondáveis. Ela confia incondicionalmente em seu
Eurídice o segue. No mesmo instante, ele
guia espiritual, de quem sente a presença e ouve os vê o fantasma de Eurídice, sua bem-amada
cânticos, embora ainda não o possa ver. que, estendendo suas mãos para ele, desliza

22
Cheia de amor e
de devoção, Eurídice
espera apaixonada-
mente por Orfeu, o
Espírito, seu esposo,
que sempre a busca.
Óleo sobre tela,
Robinson Tuon,
Brasil, 1993.

para trás e volta a mergulhar nas trevas. a luz, graças à confiança incondicional que
Na sabedoria dos Mistérios gregos, esse deposita em Orfeu, enquanto o corpo de
episódio é a indicação da libertação final, a desejos perde progressivamente poder
exemplo de Dionísio, que morre três vezes sobre ela. No instante em que a luz da natu-
segundo esses Mistérios. A primeira morte, reza superior se une a ela, ela pode se liber-
a morte pela picada da serpente, liberta tar definitivamente de sua avidez natural
Eurídice de sua forma terrestre material. inferior e finalmente submeter-se à morte,
Como sua alma ainda não se encontra bas- que possibilita o verdadeiro casamento
tante avançada, ela se deixa prender por entre Eurídice, a alma liberta, e Orfeu, o
intensas paixões e ira, que a fazem recair, na Espírito eterno.
figura de Aristeu, nas trevas do mundo in- Esta versão nos ensina que Orfeu e Eurí-
ferior. Porém o amor a salva: ela é conduzi- dice se unem, e juntos formam, no mundo
da, passo a passo, para fora dessas trevas até dos deuses, uma dupla unidade eterna, da

23
Orfeu – o mito

qual a constelação de Lira dá testemunho ciado diz: “Eu vos revelarei os segredos dos
para a humanidade. mundos, a alma da natureza e a essência de
Orfeu procura por Eurídice, sua alma Deus. Um único ser reina tanto no mais ele-
perdida, no reino de Plutão. Krishna entre- vado dos céus como no abismo terrestre:
ga-se às esferas inferiores para salvar seus Zeus, o deus do trovão, Zeus, o etérico. Ele
seis irmãos, dos quais ele é o sétimo. Jesus, é a mais profunda sabedoria, o pensamen-
conforme é dito, desceu ao reino de Satanás to mais poderoso, o amor mais precioso.
para salvar a alma de Adão, símbolo do ho- Ele reina tanto nas profundezas da terra
mem material. Mas o reino de Satanás seria como no mais alto dos céus. Quando as lí-
outra coisa que o mundo material? Descer vidas sombras tiverem se ajuntado ao coro
ao reino da obscuridade e da matéria, ascen- flamejante de Deus, elas se inflamarão
der e ser restabelecido como “sol bem-aven- como tochas e Dionísio ressuscitará inteiro
turado” representa o conteúdo mais impor- no cosmo, ainda mais perfeito, ainda mais
tante de todos os ritos iniciáticos que pode- vivo que antes”.
mos encontrar tanto na história de Orfeu, Este é o mistério da morte de Orfeu-Dio-
de Hércules como na história de Krishna e nísio.
de Cristo.
Segundo a lenda, foi Orfeu quem deu ao
verbo solar de Apolo um novo poder, revi- FONTES:
vificando e devolvendo as energias aos Mis- Kruisheer, J., Les rites, mythes et légendes initiatiques
térios de Dionísio. Em todos os mitos e len- des mystères anciens, L. J. C. Boucher, 1969.
Schuré, E., Os grandes iniciados.
das o Logos solar é conduzido à morte e
São Paulo: Madras, 2005.
ressuscita após haver novamente transmiti-
do e ensinado o Verbo. Acima: A dupla unidade dionisíaca (serigrafia,
Orfeu, o hierofante e sumo-sacerdote ini- G.P. Olsthoorn, 1972, Países Baixos).

24
O cântico
de Orfeu

Quem foi Orfeu? Esse nome soa aos nossos ouvi- de filho de Apolo, sumo-sacerdote
dos como uma lembrança de tempos remotos. É dos trácios, guardião do sol divino,
notável que esse semideus mítico continue a in- aquele que veio para nos trazer a ver-
fluenciar a humanidade até nossos dias. O eco dade universal. Orfeu não consignou a
de seus feitos repercute ainda hoje na arte. Tal- verdade na forma de um sistema de
pensamentos filosóficos, mas na
vez pressintamos que Orfeu ainda queira
forma de cânticos e poemas que toca-
dizer-nos alguma coisa além do que já se disse
vam diretamente a alma dos homens.
a seu respeito: música, poemas, pinturas. Du- Desse modo, ele fazia soar esponta-
rante muito tempo sabia-se apenas que Orfeu neamente o som do éter puro. O ins-
fora um grande iniciado vindo da Trácia, e trumento que ele tocava era a lira de
que ele podia, por meio de seu canto, tornar o sete cordas, a mágica phorminx ou lira.
Hades clemente. O que tocava Orfeu com seu ins-
trumento celeste? As sete cordas da
lira harmonizam-se com os sete tons
A s tradições históricas a seu respeito das harmonias celestes divinas. Era
são tão raras que se chegou mesmo a assim que o iniciado invocava os sons
duvidar de sua existência real. Assim, da luz da criação original e fazia descer
Homero alude a Orfeu como um dos em nosso campo de vida a vibração do
reis-sacerdotes lendários que teriam éter puro. Isso acontecia nos lugares
reinado sobre os trácios. Ele o chama particularmente puros, onde o cora-

25
ção se harmonizava com uma vibra- culto de Orfeu entre os trácios, o que
ção superior. Em tais lugares as células leva à conclusão de que esse culto ha-
podiam se tornar receptivas aos sons via sido transmitido em forma de có-
do novo éter, ao cântico órfico. Era digo nas imagens e ornamentos. Isso e
então gerado um novo sentido, um o que alguns monumentos de pedra
novo poder que permitia captar os evocam permitem-nos romper em
murmúrios das regiões da Luz. Esses parte o silêncio que envolve Orfeu.
eram os cânticos de Orfeu. Com efeito, em inúmeros rochedos
Orfeu é um nome espiritual que podemos ver a deusa mãe representa-
vem da palavra fenícia “ar-pha”: “aque- da como a guardiã da força divina
le que cura mediante a luz”. Os sons liberada pelos sacrifícios. Uma ima-
Orfeu, mediador
luminosos de seu cântico levam ao gem pintada num vaso de culto de
entre a força
solar Dionísio e a
repouso nossas vibrações inferiores, Dionísio representa o sacrifício divi-
humanidade, é o as vibrações do animal selvagem que no. A cena, em estilo vigoroso e movi-
impulso cósmico eles domam. Eles abrem o sistema aos mentado, constitui um verdadeiro
que organiza tudo éteres puros da nova vida. Essa é a relato da morte e do renascimento.
segundo os prin- nossa cura. Nela, o touro lendário dos trácios,
cípios do Espírito.
A doutrina dos Mistérios de Orfeu símbolo do filho divino, sacrifica-se
Portanto, ele é
também o impul-
jamais foi escrita. Graças às descober- derramando o sangue que concede a
so para a civiliza- tas, na Bulgária, de lugares de culto vida – a radiação divina – no regaço da
ção. As harmonias pré-históricos e de túmulos, podemos terra. Acima dele está a deusa mãe en-
de sua lira e de ainda reconstituir alguma coisa do tronizada. Durante esse ato, o deus

26
touro morre, e ao mesmo tempo “rochedo”, “cume”, “pedra”. Assim
renasce como filho da deusa mãe na também era chamada a deusa-mãe que
força onipresente dela. A deusa tem personificava a substância pura na
nas mãos dois cães domesticados, que qual o fogo do Espírito podia reviver,
representam as duas forças motrizes e que era honrada tanto no cume de
naturais. uma montanha como nas profundezas
Orfeu era o mediador, o instrutor de uma caverna.
que, ao pronunciar a palavra, invocava Em nossos dias, a Trácia e a Frígia
o campo de força puro, a mãe univer- ainda estão cheias de sinais gravados
sal divina. O que nos antigos mitos na rocha, de tronos de pedras, de alta-
chamavam de “Orfeu” é na realidade res e de nichos nos rochedos. Eles tes-
seus cânticos eram
uma força que capacita o ser humano tificavam da união da luz e da rocha e
tão encantadores
a receber os éteres santos da mãe da serviam, por sua vez, de locais de nas- que levavam seus
vida, da guardiã, para que a oferenda cimento e de tumbas. Esses símbolos rudes contempo-
divina se cumpra nele e ele, por sua gravados na pedra são manifestamen- râneos a viver de
vez, proceda à oferenda de si mesmo. te partes de um grupo de numerosos maneira mais
“Trácia” teria sido o nome de uma monumentos megalíticos; eles são a sensível e civiliza-
da. Orfeu ensi-
ninfa que conhecia as melodias capa- expressão da veneração pela pedra
nou-lhes a agri-
zes de curar ou de causar doenças, de sagrada que guarda impressa em si a cultura e a vida
acordo com a necessidade. O país que melodia divina. Das Índias até a Ingla- em sociedade e
adotou seu nome chamava-se antiga- terra essas pedras sagradas são encon- inspirou-os a
mente “Perke”. Esta palavra significa tradas em forma de círculos de pedras, construir cidades.

27
dolmens, menires, tronos, escadas, ni- De “buscador” ele se torna “comba-
chos e altares. tente”. Ele é aquele que deve comba-
Todas as pedras esculpidas (traba- ter a si mesmo, até o instante em que
lhar uma pedra já era em si um ato se conscientize de que deve aceitar ser
ritual) transmitem a mesma mensa- vencido pela luz a fim de abrir em si
gem: uma força divina encontra-se um espaço para a radiação divina. Ele
ativa nas estruturas misteriosas da compreende então que deve ofertar
matéria. Esta última espera o herói di- sua antiga existência para que as for-
vino que, mediante seus cânticos, libe- ças eternas reencontradas possam
rará nela a melodia cristalizada. Pode- atuar em seu ser. Essa oferenda oca-
mos encontrar algo dessa noção nas siona uma reviravolta: o combatente
palavras do Evangelho de Tomé: torna-se um homem vencido pela
“Fendei a madeira e ali estou, erguei a vontade divina, cônscio de que a rup-
pedra e ali me encontrareis”. Em tura do antigo “eu” libera nele a vida
todos os mistérios há um tipo de he- eterna.
rói: o que deve atravessar as profun- Na Trácia, as formações rochosas
dezas obscuras da vida terrestre para estavam unidas à mãe da vida, que
encontrar e revivificar as forças da luz transformava a força da luz em fogo
que parecem perdidas e esquecidas. divino. Esse fogo era chamado o filho,

28
“Apolo-Dionísio”, os dois aspectos FONTES
do mesmo ser divino. Orfeu é o filho Kruischeer, J., De inwidingsriten, mythe en
do deus solar Apolo, o grande arquei- legenden der oude mysteriën, (O s ritos iniciá-
ro e matador de dragões, cujas flechas ticos, mitos e lendas dos antigos mistérios)
L. C. J. Boucher, 1969.
fatais jamais erram o alvo.
Schuré, E., Os grandes iniciados. São Paulo:
Os sons da luz são a ferramenta
Madras, 2005.
mágica de Orfeu. As harmonias per-
feitas do filho de Deus preparam o ser
humano para receber a oferenda do
Espírito, que representa Dionísio des- A representação teatral “Orfeu” do grupo
membrado. O impacto da flecha de PAN.OPTIKUM de Friburgo tem como tema central:
Apolo faz a essência do ser humano Por que Orfeu se voltou? Teria sido por temer a
ser conduzida da multiplicidade à vida nova ou (o que é impossível) por querer
Unidade. agarrar-se ao passado? A estréia aconteceu durante
a “Ruhr-triennale 2004” em Bochum, Alemanha,
e faz uma turnê pela Europa. A foto reflete o
momento em que Orfeu está às margens do Estige
e deve atravessar, e Eurídice mergulha nas águas
do reino das sombras, o reino de Hades. C. Matthias
Kolodziej, 2004, Alemanha.

29
O ovo órfico

Nos mitos órfivos da Criação de Orfeu vemos uma as estrelas. A serpente, guardiã do
serpente enrolada quatro vezes ao redor do ovo ovo, simboliza a duração eterna, o
do qual o mundo se origina. Esse ovo, que traz tempo dos deuses e a sabedoria con-
servada nas águas vitais primordiais.
em si todas as sementes da vida futura, encon-
Um símbolo parecido com esse é o
tra-se no centro do espaço cósmico infinito, mer- navio ou a arca que voga nas águas
gulhado no oceano universal das águas cósmi- primordiais que contém todas as se-
cas, a substância original ou raiz da matéria. mentes da vida futura. Em 1951, Jung
pintou a mandala intitulada Systema
Mundi mostrando que tudo, no ovo,
O germe da vida, fecundado, porém provém de Fanes. Esse tema também
latente, está encerrado no líquido do foi a inspiração de Hermann Hesse pa-
ovo e é chocado pela vida eterna, “o ra escrever o romance Demian (1919).
Espírito que paira sobre as águas”, até
o dia da manifestação da vida.
FONTE:
À direita: Portrait Do ovo do mundo nasce o novo
d’écrivain. Retrato Timmer, M., Van Anima tot Zeus, encyclopedie
deus, Fanes, a matéria com a qual van begrippen uit de mythologie, religie, alchemie,
de Nietzsche feito
“Aquele que engendra a si mesmo” cultuurgeschiedenis en analytische psychologie
com letras e
palavras por J.C.
está em condição de criar. Da metade (Da anima a Zeus, enciclopédia de noções mito-
Cuenca, 2003, inferior do ovo ele fez a terra e da lógicas, religiosas, alquímicas, históricas e psico-
França. metade superior, a abóbada celeste e logia analítica). Roterdam: Lemniscaat, 2001.

30
Friedrich Nietzsche, médico da cultura

Friedrich Nietzsche (1844-1900), dizendo-se • as crenças – religiões e seus derivados;


“médico da cultura”, fez um diagnóstico dela e • a criação – arte.
prescreveu um medicamento e uma terapia com
o fito de curá-la. Suas obras consistem, sobretudo, nas
abundantes anotações onde, às vezes, é
possível encontrar esses quatro domí-
S egundo ele, graças a seu estudo filo- nios em diferentes capítulos com os
sófico da Antigüidade, ele podia reco- textos correspondentes: ...De acordo
nhecer a doença de sua época. Ele di- com o diagnóstico, o sintoma da cultu-
vidia a cultura em quatro domínios: ra atual é o de uma vida doente presa
• o saber – filosofia, ciência e consci- à idéia fictícia de uma outra vida, de
ência humana; uma vida melhor, uma outra realida-
• a ação – moralidade, política e rela- de, uma realidade autêntica. Quando
ções sociais; se descobre a ficção, seu sentido desa-

31
parece. Em conseqüência, o homem sofre de nar, mantendo para tanto seus limites. A civi-
uma desesperante angústia do vazio, ou lização elabora o que é dionisíaco: por um
então ele disfarça sua angústia debaixo de lado, a força vital; por outro lado, uma ener-
uma aparente insensibilidade, distraindo-se gia negativa fulminante que tende a desinte-
ou entregando-se com indiferença ao prazer. grar e aniquilar o homem e a convivência. O
que procede de Apolo é da mesma energia
A terapia preconizada por Nietzsche é em fundamental, mas ela opera segundo um pro-
parte uma destruição da existência e em parte cesso de tranqüilidade e equilíbrio. É assim
o esboço de uma nova vida. Diante da crítica que uma cultura se mantém durante certo
dogmática da ciência e da filosofia, ele pro- tempo. No ser humano atuam essas duas for-
põe o saber criador. Um saber consciente de ças. A força dionisíaca leva à criação, porém
que suas próprias concepções são criações cruel e funesta. A força apolínea estimula a
que estabelecem uma realidade, em vez de ser consciência a se libertar dos aspectos negati-
tão-somente um reflexo dela. Em face de vos da energia dionisíaca. O intercâmbio
uma moral de obediência ele propõe uma harmonioso dessas duas forças engendra a
moral que, sem forçar o homem a uma adap- compreensão das leis que devem reger a exis-
tação às normas do rebanho, atribui-lhe o tência humana. No aspecto mais elevado elas
dever de conceber seus próprios critérios. oferecem uma forma, Apolo, mediante a qual
Em face da idéia de um Deus único que teria o espírito, Dionísio, pode se exprimir.
encerrado sua criação, ele propõe a diviniza- A tentação dionisíaca consiste em ultra-
ção de um mundo que se desenvolve e trans- passar todas as limitações de três maneiras.
forma continuamente. A tragédia grega era, Ao ultrapassarmos os limites da natureza
em sua origem, a expressão da força vital que sentimos que somos tão-somente unos com
tudo impele com grande impetuosidade. Nas ela. Ao ultrapassarmos o que nos separa de
antigas tragédias vemos o herói, ou heroína, nossos irmãos humanos nós ultrapassamos o
sofrer a implacável situação contraditória em que, enquanto massa, nos impulsiona ao
que os deuses o colocaram. O que vem de ódio, à idolatria ou à histeria. O terceiro limi-
Apolo, a razão, jamais pode ter total predo- te encontra-se no interior do individuo. A
minância sobre o que vem de Dionísio, a rea- consciência abre-se então ao inconsciente. O
lidade vivente sempre plena de euforia e de ego que se agarra medrosamente à sua iden-
exaltação. Segundo Nietzsche, o que é apolí- tidade deve experimentar que essa tríplice
neo e o que é dionisíaco fundem-se um no ultrapassagem dos limites comuns é arrisca-
outro na tragédia. Ele considera como dioni- da, ameaçadora. Mas ele pode igualmente
síaco a vontade instintiva, e como apolíneo a abandonar-se a seu aspecto dionisíaco e par-
imaginação, a forma, portanto a consciência. ticipar da alegria do declínio do ego.
O que é dionisíaco representa, em primeiro De modo equilibrado, é possível que essa
lugar, a força vital elementar; em segundo energia aniquile o aprisionamento do núcleo
lugar, essa vitalidade é, sem dúvida, criadora, espiritual, permitindo assim às forças divinas
porém feroz e funesta ao mesmo tempo. de Apolo e de Dionísio expressarem-se de
No verão de 1870, ele explicou que o que modo positivo.
é apolíneo e dionisíaco são as forças vitais FONTE:
metafísicas (supra-sensoriais). O que proce- Safranski, R., Nietzsche, Biographie seines Denkens.
de de Dionísio ele considera como um imen- Munique: Hanser, 2000.
so processo pelo qual as civilizações tentam
No século 6 antes de nossa era, Pesístratos transferiu
criar um espaço vital estável. As civilizações os Mistérios de Elêusis para a Acrópole (Atenas), onde
vivem de sua própria substância, porém es- consagrou a Dionísio um teatro que podia comportar
forçam-se para dominá-la a fim de não decli- 15.000 espectadores.

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Poemas 2
Aprende com teu coração.
Pois este é o sentido do presente.
As três chaves Se o conseguires, seremos amigos,
E um amigo ajuda a outro.”
Eu parto.
Longo é meu caminho. Eu parto.
O início está oculto no passado, Mas para onde?
E o fim, eu desconheço. O futuro é cinzento
Não vejo sua forma.
Como sei tão pouco! Contudo estou sem nenhum medo e inquietude,
Apenas isto: Agora o passado já não é um peso. Pois meus amigos vêm em meu auxílio:
O passado, o presente,
Ele já não me chama para voltar, E também meu coração.
Ele já não tenta me agarrar
E já não pode me deter. Meu coração me ensina a reconhecer
Tornamo-nos amigos, A atividade rítmica de minha vida.
Eu e meu passado, O coração pulsa – e eu avanço.
E por que não? Seu batimento diz-me claramente:
“Não deposites tua esperança no futuro.
Em um dia luminoso, Pois ele é ilusório e inexistente.
Numa região desconhecida, O que esperas do futuro
Um clarão argênteo me atraiu. Torna-se passado depois de algum tempo.
E minhas mãos descobriram a chave Tudo quanto existe já existiu antes.
Para chegar até meu amigo.
Em um dia luminoso, meus ouvidos E, não obstante, tu avanças.
Ouviram a voz do passado: O caminho é o essencial, o sentido de tudo.
“Escuta – segue avante! Vai e não te voltes. Ele é o único ponto em que passado,
Dou-te a sabedoria, abandona-me, Presente e futuro se unem,
Não busques mais as coisas que passaram, Para juntos formar uma única realidade.
Não as invoques. Uma amizade forte e pura como um diamante:
Não sou teu pai nem tua mãe, Esta é tua chave”.
E não és meu filho.
Por isso te digo: segue avante. Eu parto.
Somos amigos, As marcas de meus pés mudaram.
E um amigo ajuda a outro.” Elas agora são menos profundas,
E quase não as vejo.
Eu parto.
Mas, o que significam esta manhã, O caminho se volta em outra direção,
Estas nuvens, estas árvores, esta gente? E ascende como degraus
Por que estou aqui? Transparentes, invisíveis.
Este é o meu mundo? Nada mais me resta além do meu coração.
Será que o amo? Eu o escuto atentamente,
Será que ele me ama? Pois seu ritmo foi mudado.
Quero compreender o presente,
Quero viver! Ouve-o, sua batida é mais forte,
Mais profunda,
Caminho pela casa, Seu calor se intensifica.
Adentro um aposento esquecido. É uma vibração intensa,
Banhado hoje numa luz suave e dourada, Um arco-íris,
Tenho a chave do meu mundo. Uma luz ofuscante!
Ouvi a voz do presente: O espaço inteiro é por ela preenchido.
Poderosa, ela aniquila todo o pensar,
“Que esperas de mim? Dissolve toda forma,
Não sou teu pai nem tua mãe, Porém, em minhas mãos está o poder
E não és meu filho. Da chave de diamante.
Não fiques aí parado.
Se queres descobrir, mexe-te, Então... eu experimento o que é o silêncio.
Senão jamais compreenderás o que eu sou. Mais potente que outro som,
Eu sou o movimento e o ritmo, Ele tudo preenche.
O alento que entra e sai, Ele está em tudo.
O coração que pulsa. Ele é tudo.

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