Você está na página 1de 38

ENTREVISTA COM DERMEVAL SAVIANI, um educador marxista*

(abril, 2021)

1) Como um seminarista formado em filosofia escolástica, passando pela PUC-


SP quando a fenomenologia era dominante, chegou ao marxismo?

R.: Sou de uma família operária de origem camponesa. Meus avós vieram da Itália,
os paternos do Norte, região do Veneto e os maternos do Sul, o avô da Calábria e a
avó da Sardenha. Meu avô paterno chegou ao Brasil com seis anos de idade, em
1888, ano da abolição da escravidão. Veio, é claro, com seu pai que, fugindo da
crise europeia, emigrou com a família, vindo para trabalhar nas lavouras de café do
Noroeste paulista substituindo a mão de obra escrava. Meu pai nasceu em 1909 e
minha mãe em 1911. Casaram-se em 1929. Eu nasci em 25 de dezembro de 1943,
mas fui registrado em 3 de fevereiro de 1944, na Fazenda Santo Antônio em Posse
da Ressaca, hoje município de Santo Antônio de Posse, a 45 quilômetros de

*
Entrevista coordenada por José Claudinei Lombardi (Zezo), contando com a participação do Coletivo
de professores da disciplina/curso de extensão Pedagogia Histórico Crítica: ciência, currículo e
didática, realizada no 2o. semestre de 2021, como segue: Adriana Franco, Ana Carolina Galvão
Marsiglia, Anselmo Colares, Bruna Carvalho, Celi Taffarel, Célia Regina da Silva, Claudio Felix,
Gaudêncio Frigotto, Gilcilene Barão, Helio da Silva Messeder Neto , Helio da Silva Messeder Neto,
Joelma Albuquerque, Jorge F Hermida, José Claudinei Lombardi (Zezo), Júlia Malanchen, Júlia
Mazinini Rosa, Juliana Pasqualini, Lenilda R.A. de Faria, Lígia Marcia Martins, Lilia Colares, Luciana
Massi, Marcelo Ubiali Ferracioli, Márcia Morschbachr, Marco Antonio de Oliveira Gomes, Marcos
Antonio Campos Couto, Marcos Lima, Maria Amélia Dalvi, Maria Claudia Sacomanni, Maria Cristina
dos Santos, Marise Nogueira Ramos, Mateus Turini, Newton Duarte, Olivia Medeiros Neta, Paulino
J Orso, Régis H Silva, Renata Cristina Cabrera, Ribamar Nogueira da Silva, Rodrigo S. Molina,
Rosimeri Pereira, Soraya Conde, Thiago Xavier de Abreu, Tiago Nicola Lavoura.

1
Campinas. Sou o quinto entre oito irmãos. Deveria ser o sétimo, mas a que seria a
primeira e o que seria o quinto faleceram antes de completar um ano, vítimas do
fenômeno conhecido como mortalidade infantil. Quando defendi minha tese de
doutorado, em 18 de novembro de 1971, fiz uma dedicatória "a meus pais, que não
conheceram os bancos escolares". De fato, em sua época as escolas rareavam no
Brasil e, no interior, eram praticamente inexistentes. Dessa forma, nem meu pai, nem
minha mãe, chegaram a frequentar, por um dia sequer, os bancos escolares. E meus
três irmãos mais velhos só estudaram até o terceiro ano primário porque nas escolas
rurais da época não havia o primário completo. Sabe-se que o regime de trabalho
então generalizado nas fazendas adotava a forma do pagamento anual, obrigando-
se o colono a abastecer-se no armazém da própria fazenda. Ao final do ano, feitas
as contas, era comum o agricultor, após ter trabalhado o ano todo diariamente de
sol a sol, estar ainda com saldo devedor, tal era o grau de exploração da sua força
de trabalho. Era, na verdade, um regime de semiescravidão. Assim, as dificuldades
da vida da roça que impossibilitavam a sobrevivência da família forçaram meu pai a
se transferir com a família para a capital, São Paulo, onde se empregou como
foguista de caldeira na indústria. O mesmo caminho foi seguido pelos irmãos mais
velhos que também se tornaram operários nas fábricas da Capital. Nessa nova
situação pude cursar o primário completo no Grupo Escolar de Vila Invernada, à
época (1951-1954) um galpão de madeira na periferia de São Paulo. Em 1955 fiz o
Curso de Admissão ao Ginásio na paróquia do bairro numa espécie de pré-seminário
e, em setembro desse ano, considerando que o vigário fora transferido para a
Arquidiocese de Cuiabá, fui com ele para a capital do Mato Grosso estudar no
seminário católico. Em 1962 ingressei no Seminário Maior cujos estudos filosóficos
iniciei no Seminário Central de Aparecida do Norte, estado de São Paulo. Aí cursei
dois anos de filosofia, sendo que o segundo ano coincidiu com o primeiro ano de
Faculdade em decorrência do vestibular que prestei na Faculdade Salesiana de
Filosofia, Ciências e Letras de Lorena em fevereiro de 1963. Isto foi possível em
decorrência de um acordo entre a Faculdade Salesiana de Lorena e o Seminário
Central Filosófico de Aparecida do Norte, mediante o qual o curso de Filosofia de
Aparecida passava a funcionar como uma secção da Faculdade de Lorena desde
que, obviamente, os alunos interessados em cursar a Faculdade fossem aprovados
nos exames vestibulares realizados em Lorena.

2
Como se sabe, a orientação filosófica seguida no Seminário era a Escolástica,
mais precisamente, o Tomismo. Adotavam-se os manuais da Universidade
Gregoriana de Roma e de Jacques Maritain, todos eles pautados em Tomás de
Aquino. Os manuais da Gregoriana eram impressos em Latim, a maioria das aulas
era ministrada em Latim e as respectivas provas também deviam ser redigidas nessa
língua. Mas, já no Seminário discutiam-se muito as questões sociais sob os ventos
do “aggiornamento” de João XXIII e do Concílio Vaticano II. Acompanhávamos a
agitação política do governo João Goulart, torcendo pelas reformas de base e pelo
avanço das forças progressistas; e líamos com sofreguidão jornais alternativos como
o semanário “Brasil, Urgente”. Em dezembro de 1963 deixei o Seminário e solicitei
transferência para o segundo ano do Curso de Filosofia da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo que passei a frequentar a partir de março de 1964.
Após deixar o seminário voltei a morar em São Paulo onde residia minha
família. Como o curso de Filosofia funcionava no período da tarde e não podia
estudar sem trabalhar, arrumei um emprego no Banco Bandeirantes do Comércio no
horário das 7:00 às 13:00 horas, trabalhando na sessão de Câmbio. A remuneração,
entretanto, era o salário mínimo. Dado que havia necessidade – e eu fazia questão
– de ajudar na manutenção da casa e precisava também pagar os estudos, não
sobrava para o almoço. Ao sair do banco e antes de pegar o bonde para o bairro das
Perdizes onde estava situada a PUC-SP, passava num bar substituindo o almoço
por um pãozinho e por um copo de leite, pois estava em regime de úlcera duodenal.
Saía de casa às 5h30 e retornava para jantar por volta das 22h30, uma vez que as
aulas na Faculdade iam até às 20h e era preciso tomar duas conduções para ir da
Universidade até minha casa. Em tais circunstâncias, quando foram abertas as
inscrições para concurso no Banco do Estado de São Paulo, efetuei minha inscrição,
prestei os exames e ingressei em 2 de dezembro de 1965. Com uma remuneração
melhor foi possível minorar as dificuldades até então enfrentadas. Mantive essa
condição de bancário até março de 1968 quando, ministrando um número maior de
aulas, me demiti do Banespa para me dedicar exclusivamente ao magistério.
Na PUC participei da militância estudantil, onde já se punha de forma explícita
a questão do Socialismo e já se manifestava alguma influência do marxismo. O curso
de filosofia ainda era dominantemente tomista, mas se fazia sentir aí uma visão mais
atualizada, marcada principalmente pela influência da fenomenologia existencial.

3
Em decorrência do golpe militar foi aprovada, em 9 de novembro de 1964, a
lei nº 4.464 conhecida como Lei Suplicy porque articulada pelo então ministro da
educação Flávio Suplicy de Lacerda. A Lei Suplicy extinguiu a UNE, substituindo-a
pelo DNE (Diretório Nacional de Estudantes); em lugar da UEE, criou o Diretório
Estadual de Estudantes (DEE); no âmbito das universidades, manteve a mesma
nomenclatura: Diretório Central de Estudantes, com a mesma sigla DCE; e no âmbito
das faculdades, substituiu o CA pelo DA (Diretório Acadêmico). Nós, estudantes,
entretanto, tendo nos colocado como a principal força de resistência à ditadura, não
aceitamos a imposição legal, mantendo os órgãos de representação anteriores, ou
seja, a UNE, as UEEs, os DCEs e os CAs. Está aí a origem da expressão DCE-Livre
para o distinguir do DCE imposto pela legislação da ditadura, uma vez que, nesse
caso, a denominação coincidiu.
Essa situação de ilegalidade da representação estudantil implicou que
iniciamos o ano letivo de 1965 sem os recursos que eram normalmente transferidos
às entidades estudantis e sem autorização para organizarmos os eventos regulares,
que se iniciaram com as atividades de recepção aos calouros. Então, criamos uma
estrutura paralela que denominamos "Ano de Integração de Cursos" (AIC) baseada
nos Centros de Estudos de cada curso. Isso porque, além da estrutura reconhecida
oficialmente correspondente ao Centro Acadêmico, que legalmente havia sido
substituído pelo Diretório Acadêmico, nós tínhamos, em cada curso (Filosofia,
História, Geografia, Ciências Sociais, Psicologia, Biologia, Física, Química,
Matemática, Letras, etc.), um Centro de Estudos que chamávamos de "Centrinho".
Constituímos, então, uma Comissão Coordenadora do Ano de Integração de Cursos
(AIC) composta por um representante de cada centrinho. E eu integrei essa
Comissão como representante do Centro de Estudos de Filosofia. E o Centro
Acadêmico continuou atuando, porém na ilegalidade.
Mas, além do movimento estudantil, participei também da luta política contra
a ditadura por meio da militância na Ação Popular (AP), organização política
derivada da JUC. Como se sabe, a participação política da JUC estava limitada à
estrutura hierárquica da Igreja Católica, pois estava subordinada à Pastoral
Universitária. Essa condição impunha limites à atuação política. Eu não participei da
JUC, embora tenha sido convidado. Por deferência ao convite participei apenas de
uma reunião, quando se esclareceu que a posição assumida naquele momento pela
JUC (ao menos no caso da PUC-SP) era o que foi denominado de “reflexão cristã

4
sobre o engajamento”. Ou seja, cada participante da JUC deveria ter algum tipo de
engajamento no âmbito social em que estava inserido. Não importava o tipo de
engajamento e a posição assumida. Nas reuniões da entidade o objeto de análise
era o grau em que as ações constitutivas do engajamento assumido, se encontrava
em consonância com o espírito cristão que deveria enformar todas as atividades do
jucista. Discutimos esse assunto na reunião tendo eu ponderado que não era viável
procedermos dessa maneira. Isso porque, na medida em que os engajamentos são
não apenas distintos, mas podem ser opostos no quadro das lutas sociais e políticas,
como será possível, nas reuniões, cada um apresentar suas posições evidenciando
o modo como sintonizou sua ação política com os princípios cristãos sendo, por
exemplo, de esquerda, em luta contra a ditadura, quando podemos ter colegas cujo
engajamento é politicamente de direita, atuando, portanto, em apoio ao regime
militar? E essa argumentação não era fruto de pura especulação ou uma mera
hipótese. Era uma realidade, pois tínhamos um colega, na filosofia, que era de direita
e andava com o sigma na lapela, ou seja, com o distintivo do movimento integralista,
inspirado no fascismo italiano. E, como cristão e católico, ele participava também da
JUC. Ora, nas reuniões da JUC, para se fazer a reflexão cristã conjunta sobre o
engajamento político de cada um, era preciso abrir o jogo revelando as estratégias
de luta que orientavam os embates tanto nas assembleias das entidades estudantis
como nas manifestações públicas frente aos atos da ditadura. Essa situação, que
não deixava de ser problemática mesmo num contexto político de livre manifestação,
resultava inviável num ambiente político em que boa parte das ações deveria ocorrer
na clandestinidade.
Enfim, o fato é que à vista das limitações da JUC para o pleno exercício da
atividade política, criou-se, em junho de 1962, a Ação Popular como um movimento
da esquerda católica que, a partir de 1964, se engajou na luta contra a ditadura tendo
de entrar para a clandestinidade. E foi exatamente a partir daí que eu, como aluno
da PUC, passei a participar da AP. Dada a situação de clandestinidade as reuniões
eram feitas uma vez no apartamento de um militante, outra vez em outro nas quais
eram discutidos os documentos de análise de conjuntura e de indicações para as
ações a serem efetivadas. Considerando a necessidade de fortalecer a militância da
organização realizamos, no segundo semestre de 1966, quando eu já estava no
quarto ano de filosofia, uma ampliação em larga escala para incorporar novos

5
membros, atividade que ocorreu na igreja do Convento dos Dominicanos que ficava
na Rua Caiuby, nas proximidades da PUC.
No final desse ano de 1966 concluí o Curso de Filosofia sendo que na
passagem do terceiro para o quarto ano eu havia sido convidado pelo Prof. Joel
Martins para me especializar em Filosofia da Educação a fim de assumir essa
disciplina na própria PUC, que era oferecida aos alunos do terceiro ano de
Pedagogia, cujo professor, Stanley Krauss, teve seu contrato encerrado em julho de
1966 e regressou ao Estados Unidos. Como as disciplinas eram anuais, o Prof. Joel
assumiu interinamente a disciplina para completar o ano letivo e me indicou como
monitor tendo me destinado duas das quatro aulas semanais para eu desenvolver
um programa de filosofia da educação que eu havia proposto e que ele havia
aprovado plenamente.
Uma vez formado, a partir de março de 1967 fui contratado como professor
assistente na PUC tendo assumido a disciplina Fundamentos Filosóficos da
Educação para o 2º ano de Pedagogia. E, também a partir de março, assumi as
aulas de Filosofia e História da Arte no Colégio Estadual de São João Clímaco na
periferia de São Paulo. Tendo me tornado professor, eu não poderia continuar na
célula estudantil da AP. Além disso, quando das reuniões clandestinas que
realizávamos como universitários militantes e também nas reuniões no interior da
universidade eu havia observado que se conseguia avançar um pouco com os
documentos que analisavam o imperialismo, as pressões e intervenções dos
Estados Unidos na América Latina. Mas deixava a desejar a análise da situação
brasileira seja diacronicamente em suas determinações históricas, seja
sincronicamente na articulação conjuntural de seus elementos políticos,
econômicos, sociais e culturais. Assim, passando a atuar como professor na própria
PUC e considerando os limites do conhecimento da realidade brasileira que eu havia
constatado na militância estudantil, concluí que minha tarefa principal passava a ser
desenvolver estudos que preenchessem essa lacuna a fim de subsidiar teoricamente
nossas lutas pela transformação da sociedade brasileira. Descontinuei, então, minha
militância na AP.
A ideologia que então predominava no movimento estudantil era o
nacionalismo desenvolvimentista e uma de suas principais bandeiras era a união de
operários, camponeses e estudantes na luta contra o imperialismo ianque, de modo
geral e, particularmente naquela conjuntura, contra a ditadura militar. Sendo de uma

6
família operária de origem camponesa, eu vivia num bairro periférico de São Paulo.
Assim, nesses conturbados anos da década de 1960, enquanto meu pai e meus
irmãos participavam das greves nas fábricas e nas ruas, eu participava das
assembleias e passeatas estudantis. Em 1966 meus irmãos participaram de um
concurso de música popular promovido pela rádio Marconi, gravando em fita duas
músicas compostas por um deles. Uma delas, que não foi apresentada porque
censurada como subversiva, está transcrita abaixo:

MARCHA DA LIBERDADE (BRASIL COM “S”)


Letra e Música de Hermógenes Saviani

Brasileiros, avante marchemos


Para um mundo melhor que há de vir.
Se tristonhos nós hoje somos
Certamente amanhã vamos rir.

O que nós precisamos agora


É com muito denodo lutar.
Nossos braços jovens e fortes
O Brasil hão de reconquistar.

Irmãos brasileiros marchemos


Com coragem e habilidade.
Só lutando nós conseguiremos
Conquistar novamente a liberdade.

Camponeses, operários e estudantes


Nós lutamos por um mesmo ideal.
Nós queremos ver um Brasil com “s”
E muito mais nacional.

Quando isso nosso povo conseguir


Muito alegres iremos sorrir.
Muito alegres iremos sorrir.

7
Meu irmão compôs essa música de ouvido, como tantas outras de sua autoria.
No entanto, movido pela curiosidade, tomei a inciativa de registrar suas notações
musicais na partitura que transcrevo a seguir. Assim, se alguém quiser cantá-la ou
executá-la instrumentalmente, poderá fazê-lo.

8
9
Vê-se que a letra dessa música espelha bem o momento político, assim como
a situação concreta vivida pela minha família. Com efeito, éramos uma família
operária, mas de origem camponesa. A aliança operário-estudantil-camponesa, tão
bem retratada na música de meu irmão, refletia, então, uma bandeira das esquerdas,
mas, ao mesmo tempo, correspondia à situação que vivíamos.
Ao longo do curso de filosofia, procurei aliar a militância estudantil com o
estudo sério das disciplinas que integravam o currículo. Apresentei, então, nas
diferentes matérias como Ética, Estética, Filosofia da História, Filosofia do
Desenvolvimento, Filosofia da Religião, História da Filosofia, Sociologia, Economia
Política, trabalhos com alguma densidade de reflexão própria.
Foi assim que em minha tese de doutoramento sobre O conceito de sistema
na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional incorporei filosoficamente a
contribuição da fenomenologia superando-a, porém, pelo materialismo histórico-
dialético. A partir daí toda a minha produção intelectual se orientou pela perspectiva
do marxismo.

2) Analisando o conjunto de sua obra, pode-se perceber que enveredou por


uma grande variedade de questões filosóficas, históricas e políticas. Como o
senhor sintetiza os grandes eixos de sua vasta obra?

R.: Na verdade, a partir de minha formação em filosofia e de minha especialização


em filosofia da educação, ao me iniciar na carreira universitária como professor de
filosofia da educação no Curso de Pedagogia fui sendo provocado a tratar de uma
ampla gama de temas do campo educativo. No entanto, mantendo a filosofia da
educação como pano de fundo e considerando dominantemente os livros publicados
pode-se considerar três eixos da produção: política educacional; história da
educação; pedagogia e teorias da educação.
A pesquisa no âmbito da política educacional se inicia com a tese de
doutorado que versou sobre o conceito de sistema na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional que resultou no livro Educação brasileira: estrutura e sistema
lançado em 1973 chegando, em 2021, à 12ª edição. Teve sequência com a tese de
livre-docência defendida em 1986 dando origem ao livro Política e educação no
Brasil: o papel do Congresso Nacional na Legislação do Ensino publicado em 1987
tendo atingido a 7ª edição em 2015. Em fevereiro de 1988 escrevi o artigo

10
"Contribuição à elaboração da nova LDB: um início de conversa" para a ANDE –
Revista da Associação Nacional de Educação, Ano 7 – Nº 13 – 1988, cujo objetivo
era abrir a discussão sobre a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
já que o texto final da Constituição mantinha o inciso que atribuía à União
competência exclusiva para baixar as diretrizes e bases da educação. E, ao final do
artigo apresentei uma proposta de texto para a LDB, esboço de um anteprojeto com
dez títulos e sessenta e oito artigos. Após a promulgação da Constituição em 5 de
outubro de 1988, em dezembro o referido texto, com uma certa ampliação no Título
IX referente aos recursos para a educação, foi assumido pelo deputado Octávio
Elísio que deu entrada na Câmara dos Deputados como projeto da LDB.
Acompanhei toda a tramitação do projeto e, uma vez promulgada a lei em 20 de
dezembro de 1996, publiquei, em 1997, o livro A nova lei da educação (LDB):
trajetória, limites e perspectivas, cuja 13ª edição foi lançada em 2016, quando a lei
completava vinte anos. Essa nova edição foi revista, atualizada e ampliada com um
novo capítulo tratando das 39 leis que modificaram a LDB entre 1997 e 2015. Em
março de 1998 lancei novo livro, Da nova LDB ao Novo Plano Nacional de educação:
por uma outra política educacional tratando das medidas legais de regulamentação
da nova LDB e dos dois projetos de PNE, o do governo e o da oposição. Após
esgotar-se a 5ª educação esse livro foi substituído por outro denominado Da nova
LDB ao FUNDEB: por uma outra política educacional lançado em 2007 que, na 5ª
edição revista, atualizada e ampliada, lançada em 2016, teve seu título alterado para
Da LDB (1996) ao novo PNE (2014-2024): por uma outra política educacional.
Continuando a análise da política educacional brasileira lancei, em 2009, o livro PDE
– Plano de Desenvolvimento da Educação: análise crítica da política do MEC. E, em
2014, publiquei o livro Sistema Nacional de Educação e Plano Nacional de
Educação: significado, controvérsias e perspectivas cuja 2ª edição, lançada em
formato maior em 2017, foi revista e ampliada. Uma característica específica de
todos esses livros do eixo da política educacional é que se trata de livros-documento
porque são acompanhados de anexos com a transcrição integral dos documentos
legais (leis, decretos, pareceres, resoluções) objetos da análise efetuada que
podem, assim, ser diretamente consultados pelos professores, gestores da
educação e demais agentes das redes de ensino.
As pesquisas referentes ao segundo eixo, correspondente à história da
educação, foram divulgadas em História das ideias pedagógicas no Brasil, livro

11
lançado em 2007, que chega à 6ª edição neste ano de 2021, tendo sido
contemplado, em 2008, com o prêmio Jabuti, classificado em primeiro lugar nas
áreas de educação, psicologia e psicanálise. Em 2013 lancei o livro Aberturas para
a história da educação: do debate teórico-metodológico no campo da história ao
debate sobre a construção do sistema nacional de educação no Brasil, que recebeu,
em 2014, o prêmio Jabuti, classificado em segundo lugar na área de Educação e
Pedagogia. E em 2015 publiquei o livro História do tempo e tempo da história:
estudos de historiografia e história da educação, também contemplado, em 2016,
com o prêmio Jabuti classificado em segundo lugar na área de Educação e
Pedagogia.
O terceiro eixo, pedagogia e teorias da educação, após alguns capítulos do
livro Educação: do senso comum à consciência filosófica, lançado em 1980 tendo
atingido a 19ª edição em 2013, esse eixo se objetivou nos livros Escola e
democracia, cuja 1ª edição é de 1983 chegando, neste ano de 2021, à 44ª edição;
pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações, lançado em 1991 (12ª ed. em
2021); pedagogia histórico-crítica, quadragésimo ano: novas aproximações, lançado
em 2019; A pedagogia no Brasil: história e teoria, lançado em 2008 (3ª ed., 2021);
e, em parceria com o Prof. Newton Duarte, Pedagogia histórico-crítica e luta de
classes na educação escolar, publicado em 2012 que, ao se esgotar, decidimos não
reeditar optando por lançar, neste ano de 2021, novo livro denominado
Conhecimento escolar e luta de classes: a pedagogia histórico-crítica contra a
barbárie.

3) Quais são as contribuições da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) para a


formação de professores (licenciaturas e pedagogia) comprometidos com uma
educação de qualidade e com a transformação social?

R.: Fui chamado várias vezes a tratar da questão da formação de professores tendo
feito diversas conferências cujos textos foram publicados como artigos em revistas
ou como capítulos de livros. Cheguei, ainda, a formular o projeto de investigação “A
emergência da escola como forma principal e dominante de educação e o
problema da formação de professores: um estudo de história da educação em
universidades italianas''. Esse projeto foi desenvolvido na Itália junto às
universidades de Bolonha, Ferrara, Florença e Pádua com Bolsa “Estágio Sênior” do

12
CNPq, estágio esse que ocorreu de julho de 1994 a março de 1995, tendo como
resultado os seguintes produtos: 1. “A luta pela difusão da instrução popular no
século XIX europeu e latino-americano: os casos de Itália e Brasil”, publicado em
Educación Popular (Documentos Congresuales). Tomo II, pp. 435-441, Universidad
de La Laguna, 1998 (Anais do VIII Colóquio Nacional de História da Educação
realizado em Santa Cruz de Tenerife em dezembro de 1994). 2. “O problema da
formação de professores na Itália”, publicado em 1998 no livro Formação de
Professores: a experiência internacional sob o olhar brasileiro. Esse livro é uma obra
coletiva organizada por mim e pelo Prof. Pedro Lindanor Goergen, publicado em
1998 pela Editora Autores Associados com apoio do NUPES – Núcleo de Pesquisa
sobre Ensino Superior da USP, tendo tido, em 2000, uma segunda edição ampliada.
A obra contém seis capítulos tratando da formação de professores na Alemanha, no
Japão, na Itália, no Canadá, em Cuba e na Colômbia.
Tomando como referência a perspectiva da pedagogia histórico-crítica, a
partir do diagnóstico de que, no contexto atual tanto as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica como aquelas
referentes ao Curso de Pedagogia resultam dispersas, não imprimem uma
orientação segura e não garantem os elementos para uma formação consistente, a
situação atual nos coloca desafios que precisamos enfrentar abrindo novas
perspectivas, cujas características se contrapõem simetricamente aos desafios, da
seguinte forma:
a) contra o desafio da fragmentação e dispersão das iniciativas, cabe propor
uma concepção orgânica da formação de professores centrada no padrão
universitário e nas faculdades de educação como lócus privilegiado da formação;
b) contra o desafio da descontinuidade das políticas educacionais, a PHC
defende uma política educacional de longo prazo que priorize a formação de
professores cultos em cursos de longa duração;
c) contra o desafio do burocratismo da organização e funcionamento dos
cursos, a PHC propugna pela transformação das faculdades de educação em
espaços de ensino e pesquisa que possam receber os jovens candidatos ao
magistério colocando-os num ambiente de intenso e exigente estímulo intelectual;
d) contra o desafio da separação entre as instituições formativas e o
funcionamento das escolas, propõe-se uma forte articulação entre os cursos
formativos e o funcionamento das escolas, considerando dois aspectos: tomar o

13
modo de funcionamento das escolas como ponto de partida da organização do
processo formativo e redimensionar os estágios como instrumento que situe a
administração dos sistemas de ensino, as escolas de educação básica e as
faculdades de educação atuando conjuntamente em regime de colaboração na
formação dos novos professores;
e) contra o desafio da precária formação dos professores agravada pelo fato
de que a grande maioria dos docentes que atuam nas escolas públicas de educação
básica são formados em escolas superiores privadas de duvidosa qualidade,
advoga-se a criação de uma rede pública de formação de professores ancorada nas
universidades públicas ofertando cursos de longa duração visando formar
professores com uma clara consciência da realidade em que vão atuar, com uma
sólida fundamentação teórica que lhes permita uma atuação coerente e com uma
satisfatória instrumentação técnica que lhes possibilite uma ação eficaz;
f) contra o desafio das várias formas de manifestação do dilema pedagógico
entende-se que sua solução demanda uma formulação teórica que supere as
oposições excludentes e consiga articular teoria e prática, conteúdo e forma, assim
como professor e aluno, numa unidade compreensiva desses dois polos que,
contrapondo-se entre si, dinamizam e põem em movimento o trabalho pedagógico.
Essa é a nova formulação teórica proposta pela pedagogia histórico-crítica que
recupera a unidade da atividade educativa no interior da prática social articulando
seus aspectos teóricos e práticos que se sistematizam na pedagogia concebida ao
mesmo tempo como teoria e prática da educação. Supera-se, assim, o dilema
próprio das duas grandes tendências pedagógicas contemporâneas (Cf. SAVIANI,
2021a. A pedagogia no Brasil: história e teoria: Capítulo X, "Para superar o dilema",
p. 107-113 e "Conclusão: uma nova perspectiva para o Curso de Pedagogia, p. 127-
137);
g) enfim, em contraste com jornada de trabalho precária e baixos salários é
preciso levar em conta que a formação não terá êxito sem medidas correlatas
relativas à carreira e às condições de trabalho que valorizem o professor, envolvendo
dois aspectos: jornada de trabalho de tempo integral em uma única escola com
tempo de no máximo 50% para aulas, destinando-se o restante para preparação de
aulas, orientação de estudos dos alunos, participação na gestão da escola e
reuniões de colegiados e atendimento à comunidade; e salários dignos que,

14
valorizando socialmente a profissão docente, atrairão candidatos dispostos a investir
tempo e recursos numa formação de longa duração.
A propósito dessa questão lembro que, quando esteve no Brasil em maio de
1997, a professora Fabrizia Antinori, da Universidade de Pádua, comentando a
reforma italiana, observou: a exigência da escola de especialização coloca a
formação do professor no mesmo patamar da formação dos médicos, situando-a,
pois, entre as carreiras de formação mais prolongada. Com efeito, aos quatro anos
do curso de graduação acrescentam-se mais dois da escola de especialização. E
ela concluía que é assim que deve ser porque, efetivamente, o professor é um
profissional complexo e estratégico e da maior importância. Logo, sua formação
deve merecer cuidados que a coloquem no limite máximo das possibilidades dos
processos formativos da universidade.

4) A PHC é uma teoria pedagógica pouco ou nada trabalhada nos cursos de


formação de professores. Como o senhor explica isso? O que fazer para que a
PHC se torne uma concepção estudada?

R.: Penso que essa situação se explica por vários fatores: a) a PHC é uma teoria
contra-hegemônica. Assim, ela não é assumida nas instâncias decisórias da política
educacional ao nível do MEC e Conselho Nacional de Educação; Secretarias de
Educação e Conselhos Estaduais de Educação, cujas normas as redes escolares
devem seguir; b) no âmbito das instituições formadoras a maioria delas integra a
rede privada. Isso faz com que a grande maioria dos docentes que lecionam na
educação básica pública sejam formados em escolas superiores privadas de
discutível qualidade. Com efeito, três quartos das vagas da educação superior no
Brasil são ofertadas pela rede privada. Assim, os egressos da educação pública
formados pelos cursos de pedagogia e demais licenciaturas são minoria e, além
disso, a maior parte deles não se destina às escolas públicas de educação básica,
indo para escolas básicas privadas destinadas às elites ou para o próprio ensino
superior. E, via de regra, os cursos superiores privados de formação de professores
não se interessam em adotar a PHC como a teoria orientadora da organização e do
modus operandi dos currículos formativos; c) e também é verdade que mesmo nas
universidades públicas a PHC não tem sido referência na organização e
funcionamento dos cursos de formação de professores. Eu próprio não cheguei a

15
me empenhar em propor a adoção da PHC nas instituições em que atuei, de algum
modo por um certo constrangimento, pois pareceria que estaria fazendo
proselitismo. Mas entendo que a razão principal que dificulta a adoção da PHC peIos
professores, mesmo progressistas, das instituições públicas de ensino superior é a
atração exercida pela nova onda do pensamento pós-moderno que, a par de
alimentar uma desconfiança em relação ao marxismo, guiam-se pelos chamados
novos paradigmas valorizando ideias como o multiculturalismo, diversidade,
pluralismo de concepções, o que favorece um certo ecletismo. Instaurou-se, assim,
uma situação até certo ponto paradoxal, pois, além da rede estadual do Paraná,
diversos municípios foram decidindo adotar a PHC em suas redes públicas de ensino
básico e não se cuidava de introduzir a PHC nos currículos dos cursos superiores
de formação de professores o que, obviamente, tornava ainda mais difícil a adoção
consistente, coerente e eficaz da PHC na reorganização do funcionamento das
escolas. Cabe observar, por fim, que esse processo ultimamente vem sendo
revertido com ofertas crescentes de disciplinas sobre a PHC, primeiro na pós-
graduação, mas agora se ampliando e atingindo um público bem mais amplo com a
abertura das referidas disciplinas na forma de cursos de extensão. O passo seguinte
deveria ser a introdução da PHC nos cursos regulares da formação inicial dos
professores, preferencialmente na forma de uma rede pública ancorada nas
universidades públicas conforme indicado no item e) da resposta à questão anterior.

5) Há uma discussão muito complexa sobre os fundamentos da concepção


marxista. Em linhas gerais, quais são as bases ontológicas, epistemológicas e
axiológicas da PHC?

R.: A resposta a essa questão exigiria uma explanação ampla e aprofundada o que,
no entanto, não é exequível numa simples entrevista. Vou, então, dar uma resposta
esquemática.
Ontologicamente, a base da PHC é uma concepção realista que se assenta
na seguinte premissa: as coisas existem independentemente do pensamento, com
o corolário: é a realidade que determina as ideias e não o contrário. Claro que não
se trata, aqui, do realismo ingênuo que vigorou na Antiguidade e na Idade Média
quando se acreditava que a realidade era tal qual se manifestava aos nossos
sentidos. Agora estamos diante do realismo crítico-dialético que se beneficiou da

16
crítica do pensamento moderno ao realismo anterior superando, porém, seu caráter
idealista tanto pela via racionalista com as ideias inatas, como pela via empirista com
a mente entendida como uma folha de papel em branco na qual são impressas ideias
advindas das sensações.
Epistemologicamente a PHC entende que a realidade é cognoscível, com o
corolário: o ato de conhecer é criativo não enquanto produção do próprio objeto de
conhecimento, mas enquanto produção das categorias que permitam a reprodução,
em pensamento, do objeto que se busca conhecer. A própria metodologia da
pedagogia histórico-crítica é construída diretamente a partir do "método da economia
política" tal como proposto por Marx. Nesse texto Marx explicita o movimento de
construção do conhecimento que parte do empírico, do todo caótico e, pela
mediação do abstrato retorna ao todo agora, porém, não mais captado como caótico,
mas como concreto, isto é, uma rica totalidade de determinações e relações
numerosas, unidade da diversidade. Com esse movimento o método histórico-
dialético supera tanto o empirismo que se detém no primeiro movimento que vai do
empírico ao abstrato como o idealismo que se detém no segundo movimento
passando dos conceitos abstratos que se concentram em si produzindo como
resultado o mundo. Seguindo a orientação desse método de extrema concreção, a
PHC entende o processo de ensino como uma atividade em que o professor
promove nos alunos, pela mediação da análise, a passagem da síncrese, a visão
confusa da prática social à síntese enquanto visão articulada da prática social. Em
suma, assim como no processo de conhecimento, o concreto é um processo de
síntese e não um ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida porque
é a base de sustentação de todo o processo, na educação a prática social concreta
é a finalidade, o resultado, portanto, o ponto de chegada sendo, ao mesmo tempo,
o ponto de partida porque é o âmbito em que se move a prática educativa.
Axiologicamente, cumpre observar que a "teoria do valor", elaborada por
Marx, não diz respeito apenas à economia como se tende correntemente a
interpretar. Tal teoria do valor se fundamenta no trabalho que não é outra coisa
senão uma atividade dirigida com o fim de criar valores definindo, nessa condição, a
própria essência humana. O ser humano é, com efeito, o lugar único da valorização,
pois o valor não é outra coisa senão uma relação de não indiferença em face dos
fenômenos com os quais as pessoas se defrontam. Portanto, os valores não são
objetos existentes independentemente do sujeito, conforme preconiza a corrente do

17
objetivismo axiológico; não são, também, fenômenos subjetivos ligados, portanto,
aos desejos individuais, como propõe o psicologismo axiológico; nem são ideias que
existem na mente do homem, mente esta que transcende os indivíduos empíricos
como postula o logicismo axiológico; por fim, igualmente não são entidades à parte,
pertencendo a um mundo próprio, o mundo do que deve ser, semelhante ao mundo
platônico que seria distinto do mundo dos objetos, o mundo do ser, como se
expressa na corrente do ontologismo axiológico. Se o problema dos valores é
considerado uma das questões mais complexas da filosofia atual, no entanto, todos
sabem quão trivial é a experiência da valoração: a todo momento nós somos sujeitos
ou testemunhas dessa experiência. Uma vez que a experiência axiológica é uma
experiência tipicamente humana, é a partir do conhecimento da realidade humana
que podemos entender o problema dos valores. Os valores indicam as expectativas,
as aspirações que caracterizam o homem em seu esforço de transcender-se a si
mesmo e à sua situação histórica; como tal, marcam aquilo que deve ser em
contraposição àquilo que é. A valoração é o próprio esforço do homem em
transformar o que é naquilo que deve ser. Essa distância entre o que é e o que deve
ser constitui o próprio espaço vital da existência humana; com efeito, a coincidência
total entre o ser e o dever ser bem como a impossibilidade total dessa coincidência
seriam igualmente fatais para o homem. Valores e valoração estão intimamente
relacionados; sem os valores, a valoração seria destituída de sentido; mas, em
contrapartida, sem a valoração os valores não existiriam. Desvincular os valores da
valoração equivalerá a transformá-los em arquétipos de caráter estático e abstrato,
dispostos numa hierarquia estabelecida a priori. O caráter concreto da experiência
axiológica permite-nos substituir o conceito de hierarquia, tradicionalmente ligado a
uma concepção rígida e estática voltada aos interesses dos grupos sociais
privilegiados, pelo conceito de prioridade, mais dinâmico e flexível. Com efeito, a
prioridade é ditada pelas condições da situação existencial concreta em que vive o
homem. Exemplificando: de acordo com a noção de hierarquia os valores
intelectuais seriam, por si mesmos, superiores aos valores econômicos (veja-se a
hierarquia proposta por M. Scheler, adepto do ontologismo axiológico, a mais
generalizada e aceita correntemente: Scheler classificou os valores de acordo com
a seguinte hierarquia, em ordem ascendente: a) valores úteis ou econômicos; b)
valores vitais ou afetivos; c) valores lógicos ou intelectuais; d) valores estéticos; e)
valores éticos ou morais; e f) valores religiosos (MORENTE, 1966, p. 300). Assim, se

18
vou educar, seja num bairro de elite, seja numa favela, sempre irei dar mais ênfase
aos valores intelectuais do que aos econômicos. No entanto, a nossa experiência da
valoração mostra-nos que na favela os valores econômicos se tornam prioritários,
dadas as necessidades de sobrevivência, ao passo que num bairro de elite
assumem prioridade os valores morais, dada a necessidade de se enfatizar a
responsabilidade perante a sociedade como um todo, a importância da pessoa
humana e o direito de todos de participar igualmente dos progressos da humanidade.
Por fim, informo que tratei dessa questão dos valores em dois capítulos do livro
Educação: do senso comum à consciência filosófica: cap. 3, "Valores e objetivos na
educação" e cap. 4, "Valores em supervisão pedagógica: abordagem filosófica"
(SAVIANI, 2013, p. 43-57).

6) Considerando que o acesso ao conhecimento sistematizado em si não


garante a formação da consciência de classe dos alunos nas escolas, podendo
apenas reduzi-los a "enciclopédias ambulantes", e que a PHC é uma teoria
pedagógica de inspiração marxista e por isso comprometida com a
emancipação socialista da sociedade, qual seria a necessidade, o papel e o
lugar dos conhecimentos clássicos no que se refere a função da escola na luta
de classes?

R.: De fato, o acesso ao conhecimento sistematizado, em si, não garante a formação


da consciência de classe dos alunos nas escolas, especificamente em se tratando
dos alunos da classe trabalhadora. No entanto, penso também que o referido acesso
não significa apenas sua redução a "enciclopédias ambulantes". Entendo, inclusive,
que não era essa a visão dos clássicos do marxismo. Com efeito, Marx via na
legislação fabril a primeira concessão arrancada ao capital em relação à combinação
do ensino elementar com o trabalho de fábrica. E considerava um elemento de
subversão as escolas politécnicas e de agronomia, além das escolas de ensino
profissional para os filhos dos operários. Gramsci, por sua vez, destacava a
importância da escola na difusão de uma concepção mais avançada, de caráter
científico, “em luta com as tendências à barbárie individualista e localista”
(GRAMSCI, 1975b [Q. 12], vol. III, p. 1540). Gramsci também sustenta que o ensino
elementar se estrutura com base no princípio educativo do trabalho visando, pelas
ciências naturais, introduzir as crianças na "societas rerum" e, pelas ciências sociais,

19
elas são introduzidas na "societas hominum". Além disso, Gramsci também adverte
que "o conceito do equilíbrio entre ordem social e ordem natural sobre o fundamento
do trabalho" cria o clima propício a "uma intuição do mundo liberta de toda magia ou
bruxaria, e fornece o ponto de partida para o posterior desenvolvimento de uma
concepção histórico-dialética do mundo" (Idem, p. 1541). E já num texto de 1916
Gramsci indicava de forma clara a necessidade de o proletariado dominar o saber
histórico, colocando-se, assim, como um elo na cadeia da história universal. Com
efeito, "se é verdade que a história universal é uma cadeia dos esforços que o
homem fez para libertar-se tanto dos privilégios como dos preconceitos e da
idolatria" segue-se que "o proletariado, que um outro elo quer juntar a essa cadeia",
deverá "saber como e por que e de quem tenha sido precedido, e qual a vantagem
que pode tirar desse saber" (GRAMSCI, 1975a, p. 25-26). Por fim Lênin, falando à
União da Juventude Comunista em 1920, afirmou que “seria equivocado pensar que
basta aprender as consignas comunistas, as conclusões da ciência comunista, sem
assimilar a soma de conhecimentos dos quais é consequência o próprio comunismo”
(LENIN, 1977, p. 206). E no mesmo discurso reafirmou: “a cultura proletária não
surge do nada, não é uma invenção dos que se chamam especialistas em cultura
proletária. Isso é pura tolice. A cultura proletária tem que ser o desenvolvimento
lógico do acervo de conhecimentos conquistados pela humanidade sob o jugo da
sociedade capitalista, da sociedade latifundiária, da sociedade burocrática” (Idem, p.
207).
Quanto ao conceito de clássico é preciso fazer um esclarecimento. Quando
eu destaco a importância do conceito de clássico na educação, não é apenas no
sentido dos grandes textos, dos grandes autores. É naquele sentido que aparece em
Gramsci, quando ele diz que “ainda se está na fase romântica da escola ativa, na
qual os elementos da luta contra a escola mecânica e jesuítica se dilataram
morbidamente por causa do contraste e da polêmica: é necessário entrar na fase
'clássica', racional, encontrando nos fins a atingir a fonte natural para elaborar os
métodos e as formas.” (GRAMSCI, 1975b [Q. 12], vol. III, p. 1537). Então, quando
eu destaco o conceito de clássico, é também nesse sentido. Por isso, no livro
“Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações”, eu digo que "clássico na
escola é a transmissão e assimilação do saber sistematizado. Este é o fim a atingir.
É aí que cabe encontrar a fonte natural para elaborar os métodos e as formas de
organização do conjunto das atividades da escola, isto é, do currículo" (SAVIANI,

20
2021b, p. 17). Então, o conceito de "clássico" é destacado não apenas no sentido
difundido de dar importância para os grandes autores, os grandes textos. Trata-se
do conceito de "clássico" no sentido daquilo que é próprio da escola e que, portanto,
tem aquele significado de perenidade, de algo que ultrapassa o tempo, ou seja,
embora surja em determinada época, a ultrapassa mantendo-se válido para os
novos tempos e desempenhando papel central na formação das novas gerações.
Minha posição é que devemos afastar as preocupações que se centram em aspectos
adjetivos, secundários do processo educativo e nos concentrarmos nas questões
substantivas, voltando nossa atenção para os pontos essenciais que caracterizam a
educação no espírito da "fase clássica" conforme a recomendação gramsciana.
Entendo, pois, que uma teoria pedagógica de inspiração marxista e por isso
comprometida com a emancipação socialista da sociedade, como é o caso da
pedagogia histórico-crítica, conferirá papel central aos conhecimentos clássicos ao
procurar articular a escola com a luta de classes, conforme o aforismo que enunciei
no livro Escola e democracia afirmando que "o dominado não se liberta se ele não
vier a dominar aquilo que os dominantes dominam. Então, dominar o que os
dominantes dominam é condição de libertação" (SAVIANI, 2021c, p. 45). No entanto,
cabe frisar que se trata de algo necessário, mas não suficiente. A luta da classe
trabalhadora pela emancipação socialista da sociedade exige que o trabalho
desenvolvido nas escolas seja articulado com a mobilização das massas
trabalhadoras por meio de suas organizações representadas pelos sindicatos das
várias categorias profissionais, incluídos os servidores públicos, pelos movimentos
sociais populares da cidade e do campo confluindo para a ação dos partidos
ideológico e político sintetizados no partido revolucionário, conforme a visão
gramsciana do partido (GRAMSCI, 1975b [Q. 10], vol. II, p.1352-1353).

7) É frequente que se façam ataques ao marxismo e à luta de classes como


ultrapassados e inatuais, e à PHC, como uma pedagogia marxista, como
conteudista, eurocêntrica, enfim, descompassada com a atualidade... O senhor
já respondeu a essas críticas em diferentes momentos de sua obra e em
diferentes entrevistas: mas, como a história não para, e é preciso pensar em
movimento, à luz do presente no Brasil - e, particularmente, na educação

21
brasileira (com ensino remoto, híbrido, professores contratados como pessoa
jurídica, avanço conservador etc.) - como o senhor avalia a questão?

R.: De fato, já respondi em diversas oportunidades tanto aos ataques daqueles que,
no campo dos chamados novos paradigmas de fundo pós-moderno, consideram que
o marxismo está superado, pertencente à visão moderna das grandes narrativas,
como aos ataques de grupos que, considerando-se no campo do próprio marxismo,
me acusam e à pedagogia histórico-crítica de certas insuficiências ou
inconsequências na assunção da posição marxista. Agora, porém, o marxismo vem
sendo atacado por uma posição bem mais tosca e rude negadora do conhecimento
objetivo e da própria ciência que nos acusa de doutrinar e fazer proselitismo junto
aos alunos nas escolas. A essa posição tenho respondido que nós, da esquerda e,
especificamente, os marxistas, não precisamos doutrinar. A nós, como professores,
nos basta cumprirmos com competência a função de instruir as novas gerações
mostrando a realidade, esclarecendo como funciona a sociedade. A verdade está,
pois, do nosso lado como se enuncia no aforismo "a verdade é sempre
revolucionária". Assim, a acusação se volta contra os acusadores. Ou seja, são eles,
os conservadores que, visando perpetuar essa forma de sociedade com todos os
seus conflitos e injustiças, não têm como justificar racionalmente sua posição
precisando, em consequência, doutrinar, fazer proselitismo recorrendo, inclusive, a
mentiras para manter a população subordinada a seus interesses. Isso salta aos
olhos com a emergência da proposta da "escola sem partido" contra a qual tenho
afirmado que, para a pedagogia histórico-crítica, na sociedade de classes, portanto,
na nossa sociedade, a educação é sempre um ato político, dada a subordinação real
da educação à política. Dessa forma, agir como se a educação fosse isenta de
influência política é uma forma eficiente de colocá-la a serviço dos interesses
dominantes. E é esse o sentido do programa “escola sem partido” que visa,
explicitamente, subtrair a escola do que seus adeptos entendem como “ideologias
de esquerda”, da influência dos partidos de esquerda colocando-a sob a influência
da ideologia e dos partidos da direita, portanto, a serviço dos interesses dominantes.
Ao proclamar a neutralidade da educação, o objetivo a atingir é o de estimular o
idealismo dos professores fazendo-os acreditar na autonomia da educação em
relação à política, o que os fará atingir o resultado inverso ao que estão buscando:
em lugar de, como acreditam, estar preparando seus alunos para atuar de forma

22
autônoma e crítica na sociedade, estarão formando para ajustá-los melhor à ordem
existente e aceitar as condições de dominação às quais estão submetidos. Eis por
que a proposta da escola sem partido se origina de partidos situados à direita do
espectro político com destaque para o PSC (Partido Social Cristão), PSL (Partido
Social Liberal) e PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), secundados pelo
DEM (Democratas), PP (Partido Progressista), PR (Partido da República), PRB
(Partido Republicano Brasileiro) e os setores mais conservadores do PMDB (Partido
do Movimento Democrático Brasileiro). Como se vê, a denominação “escola sem
partido” camufla que se trata, de fato, da "escola de partido": é a escola dos partidos
da direita, os partidos conservadores e reacionários que visam manter o estado de
coisas atual com todas as injustiças e desigualdades que caracterizam a forma de
sociedade dominante no mundo de hoje.
Acontece que exatamente quando, como consequência do golpe empresarial-
midiático-jurídico-parlamentar de 2016, ascendeu ao poder federal um governo de
direita antipopular e antinacional, sobreveio a pandemia do coronavírus. Nessas
condições o governo que, conforme declaração do próprio presidente, não veio para
construir nada; veio para destruir, se alia ao vírus e, numa atitude negacionista, por
ação e omissão potencializou sua capacidade destrutiva nos vários níveis da vida
da população do país. De qualquer modo, mesmo à revelia das declarações do
presidente, a pandemia impôs às administrações estaduais e municipais, medidas
de isolamento social que, na educação, se traduziram na suspensão das atividades
presenciais substituindo-as pelo chamado ensino remoto. Nessas circunstâncias,
em várias lives de que participei procurei reiterar que essa expressão "ensino
remoto" vem sendo usada como alternativa à Educação a Distância, pois a EaD já
tem existência regulamentada coexistindo com a educação presencial como uma
modalidade distinta oferecida regularmente. Então, o "ensino remoto" é posto como
um substituto do ensino presencial excepcionalmente nesse período da pandemia
em que a educação presencial se encontra interditada.
Como se vê, por definição, o ensino remoto não pode se equivaler ao ensino
presencial, sendo admitido apenas como exceção; e se diferencia da Educação a
Distância porque também não preenche os requisitos definidos para essa
modalidade. No entanto, mesmo para funcionar como substituto do ensino
presencial certas condições precisam ser preenchidas tais como o acesso de todos
os alunos ao ambiente virtual propiciado pela aparelhagem representada por

23
computadores, celulares e similares; considerando que alunos e professores devam
estar confinados nas suas residências, estas deverão estar todas equipadas com
acesso à internet; e, por fim, é preciso que todos os estudantes preencham os
requisitos mínimos para acompanharem, com proveito, o ensino remoto. Ou seja, é
preciso que todos estejam não apenas alfabetizados em sentido estrito, mas também
em sentido funcional e, mais do que isso, não sejam analfabetos digitais.
Ora, está evidenciado que essas condições não são preenchidas para a
grande maioria dos alunos e, mesmo, para boa parte dos professores. E, mesmo
assim, diversas redes públicas de ensino e instituições de ensino superior vêm
lançando mão do ensino remoto para cumprir o calendário escolar. E grande parte
das instituições privadas estão aproveitando a pandemia para ampliar o recurso a
procedimentos próprios da EaD e promovendo demissões em larga escala como
aconteceu com a Uninove que, em 22 de junho de 2020, demitiu 300 professores
por meio de um simples comunicado na internet de forma totalmente "impessoal e
grosseira".
De fato, prevê-se que o período pós-pandemia trará consigo pressões para a
generalização da Educação a Distância como se fosse equivalente ao ensino
presencial. Aprofunda-se, assim, a tendência à conversão da educação em
mercadoria na esteira da privatização que implica, sempre, a busca da redução dos
custos visando o aumento dos lucros.
Deve-se ter presente que, pela sua própria natureza, a educação só pode ser
presencial. Como uma atividade da ordem da produção não-material em que o
produto não é separável do ato de produção (MARX, 1978, p. 79), a educação se
constitui, necessariamente, como uma relação interpessoal implicando, portanto, a
presença simultânea dos dois agentes educativos: o professor com seus alunos. E
sabe-se que uma das principais funções da educação é a socialização das crianças
e jovens, o que não pode ser feito com o ensino remoto ou a distância e muito menos
com o ensino dito doméstico.
Na verdade, a tecnologia, desde a origem do ser humano, não é outra coisa
senão extensão dos braços humanos visando a facilitar seu trabalho. E hoje, com o
advento da automação, toda a humanidade poderia viver confortavelmente com
poucas horas de trabalho diário liberando tempo disponível para o cultivo do espírito,
abrindo-se para as formas estéticas, ou seja, para a apreciação das coisas e das
pessoas pelo que elas são em si mesmas, sem outro objetivo senão o de relacionar-

24
se com elas. O que impede a generalização desse estágio é a apropriação privada
dos meios de produção fazendo com que, de meio de libertação dos indivíduos do
trabalho pesado e de redução do tempo de trabalho socialmente necessário, a
tecnologia se converta em instrumento de submissão da força de trabalho a um
tempo sem limite conduzindo-a à exaustão. Foi isso o que aconteceu na Revolução
Industrial com a introdução da maquinaria, o que levou os trabalhadores a destruir
as máquinas. Mas as máquinas viriam a facilitar seu trabalho e, portanto, não eram
suas inimigas. Seus inimigos eram os donos das máquinas que se serviam delas
para impor um ritmo alucinante à atividade dos trabalhadores. É essa situação que
se manifesta agora com as novas tecnologias expressando-se no fenômeno da
uberização do trabalho.
Enfim, cabe registrar que o Brasil perdeu uma grande oportunidade de se
constituir em exemplo para todo o mundo no enfrentamento da pandemia. Tinha
condições bastante favoráveis para esse protagonismo. Dispondo do SUS, o maior
Sistema Universal de Saúde do planeta e sendo um dos últimos países a ser afetado,
se beneficiava, também, do conhecimento das ações levadas a efeito pelos países
que tiveram êxito como Nova Zelândia, Coréia do Sul, Alemanha, Vietnã e a própria
China podendo, então, planejar o enfrentamento levando em conta essas
experiências bem sucedidas. Mesmo com o sucateamento do SUS e a destruição
do Programa "Mais Médicos", o governo federal deveria, assim que foi anunciada na
China a manifestação do Coronavírus, reforçar o orçamento do SUS repondo os
bilhões que haviam sido subtraídos no processo de sucateamento e acrescentando
recursos novos com a aprovação, pelo Congresso Nacional, do "estado de
emergência" e coordenar o enfrentamento nacional à Covid 19 reequipando os
hospitais e celebrando contratos de aquisição dos insumos necessários que, feitos
em âmbito nacional, pela maior magnitude teriam melhores condições de vencer a
concorrência a preços bem mais acessíveis. Com a omissão do governo federal, os
governos estaduais e municipais tiveram de procurar adquirir de forma isolada,
submetendo-se a preços abusivos, além de transtornos quanto à entrega dos
equipamentos necessários. O governo federal sequer aplicou os recursos
destinados ao combate da epidemia tendo se limitado a apenas 29% do montante
aprovado pelo Congresso numa atitude que, mais do que irresponsável pode ser
mesmo classificada como genocida, pois desperdiçou recursos aplicando-os de
forma equivocada como foi o caso do Laboratório Químico e Farmacêutico do

25
Exército que, até julho de 2020, já gastara mais de R$ 1,5 milhão para ampliar, em
100 vezes, sua produção de cloroquina, medicamento sabidamente ineficaz para o
combate à Covid 19. Com o presidente da República agindo como aliado do vírus,
o Brasil não só perdeu a oportunidade de ouro de confirmar sua competência
reconhecida no enfrentamento anterior de epidemias; acabou se transformando no
país com a pior posição no combate à pandemia.

8) Gramsci alerta-nos: "Instrui-vos, porque precisamos da vossa inteligência.


Agitai-vos, porque precisamos do vosso entusiasmo. Organizai-vos, porque
carecemos de toda a vossa força" – neste caso, será a escola pública no Brasil
o centro de referência para a formação da classe trabalhadora e de sua prole?
Se sim - que desafios devem ser observados pela PHC para as próximas
décadas, considerando a diversidade de caminhos marcados por várias
armadilhas produzidas pelo Estado burguês?

R.: A educação escolar é o meio mais adequado para a apropriação, pelos


trabalhadores, das conquistas históricas da humanidade que lhes aguçarão a
consciência da necessidade de intervir praticamente para dar continuidade ao
processo histórico conduzindo-o a um novo patamar. Mas essa formação histórica
deve ser articulada com as ações coletivas sistematicamente organizadas como,
aliás, preconiza a pedagogia histórico-crítica ao considerar a educação como
mediação no interior da prática social tendo, pois, a própria prática social, ao mesmo
tempo, como ponto de partida e ponto de chegada.
Considerada uma concepção como a pedagogia histórico-crítica para a qual
a finalidade da educação é promover o pleno desenvolvimento dos indivíduos
visando assegurar sua inserção ativa e crítica na prática social da sociedade em
que vivem; que, para atingir essa finalidade, se empenha em propiciar às crianças
e jovens o domínio das objetivações humanas produzidas historicamente
consubstanciadas nos conteúdos filosóficos, científicos e artísticos selecionados e
organizados de maneira a viabilizar sua efetiva assimilação; cuja proposta
metodológica toma a prática social como ponto de partida e ponto de chegada em
cujo interior se insere a mediação do trabalho pedagógico que opera por meio da
problematização, instrumentalização e catarse; e que se insere, em sentido contra-
hegemônico, no âmbito das redes públicas de ensino para fazer avançar o processo

26
de educação das massas trabalhadoras, tal concepção pedagógica
necessariamente irá enfrentar consideráveis desafios nas condições postas pelo
atual estágio de desenvolvimento da sociedade capitalista.
E nessa conjuntura os desafios enfrentados pela PHC são maximizados
hipertrofiando a tendência que já estava em curso desde os anos de 1990 de
interferência dos interesses de mercado, via organizações empresariais na
educação pública com o beneplácito dos governos de plantão. Dir-se-ia que como
desdobramento da “Internacional capitalista” posta em prática pelas “estratégias e
táticas do empresariado transnacional” (DREIFUSS, 1987), emerge agora uma
“Internacional capitalista educativa” posta em prática por um conglomerado de
organizações empresariais que, no Brasil, tem como carro-chefe o movimento
“Todos pela Educação” mantido pelas seguintes entidades: Fundação Itaú Social,
Fundação Bradesco, Fundação Telefônica, Gerdau, Instituto Camargo Correa,
Instituto Unibanco, Itaú BBA1, Santander, Suzano, Fundação Lemann, Instituto
Península, DPaschoal contando, ainda, com os seguintes parceiros: Fundação
Santillana, Instituto Ayrton Senna, Fundação Victor Civita, McKinsey & Company,
Instituto Natura, Saraiva, Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Com esse amplo respaldo empresarial o Movimento “Todos pela Educação”
realizou em Brasília, em setembro de 2011, o Congresso Internacional
"Educação: uma Agenda Urgente", em cujo âmbito foi criada a Rede latino-
americana de organizações da sociedade civil pela educação, composta por
catorze organizações como entidades fundadoras representando os seguintes
países: 1. Argentina; 2. Brasil; 3. Chile; 4. Colômbia; 5. Equador; 6. El Salvador; 7.
Guatemala; 8. Honduras; 9. México; 10. Panamá; 11. Paraguai; 12. Peru; 13.
República Dominicana. 14. Nicarágua.
Se durante a ditadura militar o protagonismo do planejamento educacional no
Brasil passou dos educadores para os técnicos da área econômica, a partir da
década de 1990 com o advento dos reformadores empresariais da educação, a
orientação dominante provém dos organismos econômicos internacionais. De fato,
na situação atual os rumos dos sistemas educativos vêm sendo traçados em termos

1
O Itaú BBA resultou da compra, pelo Itaú, do Banco BBA-Creditanstalt por R$ 3, 3 bilhões.
O BBA era presidido por Fernão Carlos Botelho Bracher e Antonio Beltran Martinez, que
detêm 47,79% do capital do banco –mesma participação do grupo alemão HVB (Hypo-
Vereinsbank), segundo maior banco da Alemanha, por sua vez adquirido pelo Banco
UniCredito, da Itália.

27
globais por instituições como o Banco Mundial, o FMI, a OCDE e o BID que vêm
impondo a todos os países avaliações padronizadas tendo como subproduto o
estímulo à meritocracia e à competição entre as instituições escolares para se
posicionar nos rankings decorrentes das referidas avaliações que, por sua vez,
reduzem os currículos aos conteúdos mínimos definidos segundo os interesses do
mercado. Ancorado nesses organismos internacionais e nos reformadores
empresariais da educação, o Estado burguês nos apresenta várias armadilhas entre
as quais destaco, do ponto de vista das ideias pedagógicas, a tendência
representada pelo neoprodutivismo com as variantes do neo-escolanovismo,
neoconstrutivismo e neotecnicismo que circulam na forma de supostas teorias
travestidas de últimas novidades, na forma das “pedagogias do aprender a aprender”
que aparecem em versões como “pedagogia da qualidade total”, “pedagogia das
competências”, “pedagogia da inclusão”, “pedagogia multicultural”, “teoria do
professor reflexivo”, “pedagogia corporativa”, “pedagogia social”, “pedagogia da
terra” e assemelhadas. Tais "pedagogias", apresentadas como últimas novidades,
não deixam de exercer certa atração aos professores. Nesse quadro promove-se a
fetichização das novas tecnologias com uma açodada adesão à educação a
distância expandindo o processo de alienação das crianças e jovens. Penetrando
nas redes de ensino público, as referidas “pedagogias” as descaracterizam
convertendo-as em espaços anódinos, esvaziados da função própria da escola
ligada ao objetivo de assegurar às novas gerações a apropriação dos conhecimentos
sistematizados. É essa a tendência que se desenha como hegemônica.

28
Penso, então, que é daí, dessa “Internacional Capitalista da Educação'' com
suas armadilhas representadas pelas "pedagogias" apresentadas como últimas
novidades que vem o principal desafio à pedagogia histórico-crítica no atual
contexto. Para responder a esse desafio precisamos acionar uma estratégia que
implica darmos efetividade, ou seja, darmos forma concreta para o caráter coletivo
da prática pedagógica histórico-crítica. Necessitamos coordenar melhor nossas
ações em direção a uma práxis efetivamente coletiva intencionalmente conduzida.
Ou seja, cada um de nós deve participar de um trabalho coletivo constituindo-se
numa unidade que se articula com outras unidades para resultar na síntese das
múltiplas determinações que caracteriza a totalidade (realidade concreta) da
educação na perspectiva histórico-crítica. Uma totalidade intencionalmente
construída constituindo, portanto, um sistema (resultado comum intencional de
práticas individuais intencionais) e não simplesmente uma estrutura (resultado
comum inintencional de práticas individuais intencionais).

Mas em que consiste a ação coletiva na perspectiva histórico-crítica? É claro


que não se trata de uma ação em que cada um dos membros do coletivo realiza
tarefas específicas com pleno domínio das mesmas, ignorando o que é realizado
pelos demais membros do coletivo como ocorreu na organização fabril na
emergência da Grande Indústria numa sistemática aperfeiçoada pela administração
científica proposta por Taylor e continuada por seus seguidores transferindo-se, daí,
para a administração escolar. Mas é óbvio, também, que não se trata de uma ação
em que todos fazem tudo sem distribuição de tarefas diferenciadas, embora esta
seja uma visão de certo modo disseminada, ainda que tacitamente, entre os
educadores progressistas, inclusive entre aqueles que se posicionam no campo
crítico do marxismo. Impõe-se, portanto, certa divisão de tarefas, do contrário
perderia sentido a própria exigência do trabalho coletivo. O que se exige é que cada
um tenha plena clareza dos fins a atingir e também de que para isso, não apenas
sua tarefa é necessária, mas as de todos os demais integrantes do coletivo. Além
disso, cada um deverá ter clareza, também, do significado e importância dos
conteúdos desenvolvidos pelos demais integrantes para se atingir a finalidade que
move o conjunto das ações, não sendo necessário, obviamente, que cada um tenha
pleno domínio das particularidades envolvidas nas tarefas realizadas pelos demais
membros do coletivo.

29
9) Estamos vivendo uma conjuntura complexa - nas dimensões econômicas,
sociais, políticas, ideológicas e também educacional - com grande impacto
sobre a organização do ensino, com destaque para a BNCC, a militarização de
escolas, o corte dos recursos para a educação e C&T, intervenções nas
universidades etc. Como o senhor avalia a política educacional no Brasil no
período recente, especialmente desde o governo Temer?

R.: De modo especial a partir do segundo mandato de Lula, o protagonismo dos


educadores tornou-se mais efetivo, logrando vários avanços convergindo para a I e
II CONAEs (Conferências Nacionais de Educação) tendo como tema central a
construção do Sistema Nacional de Educação e do novo Plano Nacional de
Educação. E quando se alimentou a expectativa de algum avanço mais significativo
com a aprovação do novo PNE e com a destinação de parcela considerável dos
recursos do pré-sal para a educação, sobreveio o golpe e estamos diante de um
retrocesso não de anos, mas de décadas.
Tal retrocesso incide sobre vários aspectos, a começar pelo próprio Plano
Nacional de Educação (PNE), aprovado pela Lei n. 13.005, sancionada em 25 de
junho de 2014, uma vez que as medidas pós-golpe já o tornaram letra morta, pois
várias de suas metas já venceram sem serem atingidas e as que ainda não
venceram não têm mais a mínima chance de se viabilizar. Vejamos: a) metas já
vencidas: Meta 1 (Educação Infantil) – universalizar, até 2016, a educação infantil
na pré-escola para as crianças de 4 a 5 anos de idade; Meta 3 (Ensino Médio) –
universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população de 15 a 17
anos de idade; Meta 18 – assegurar, no prazo de 2 anos (portanto, até 2016), a
existência de planos de carreira para os profissionais de todos os sistemas de
ensino; Meta 19 – assegurar condições, no prazo de 2 anos (portanto, também até
2016) para a efetivação da gestão democrática; b) metas a vencer: Meta 2 –
universalizar o ensino fundamental de 9 anos para toda a população de 6 a 14 anos
até o último ano de vigência deste PNE (2024); Meta 4 – universalizar, para a
população de 4 a 17 anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento
e altas habilidades ou superdotação. Essa meta trata, portanto, da educação
especial e, como não menciona a data, considera-se o final da vigência do Plano, ou
seja, 2024, como prazo para ser atingida; Meta 20 – ampliar o investimento público

30
em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% do PIB, no
quinto ano de vigência desta Lei (2019) e, no mínimo, o equivalente a 10% do PIB
ao final do decênio (2024). Vê-se que a parte da Meta 20 que estabeleceu o prazo
de cinco anos para se chegar ao índice de 7% do PIB destinado à educação pública,
já venceu em 25 de junho de 2019. E, com a Emenda Constitucional apelidada de
PEC do fim do mundo, que impede o aumento dos gastos públicos por 20 anos,
todas as metas do PNE já estão inviabilizadas pelo menos até 2037.
Mas essa inviabilização das metas do PNE é apenas um dos aspectos pelos
quais as reformas regressivas do governo Temer, que vêm tendo sequência no atual
governo, procuram neutralizar os limitados avanços dos governos Lula e Dilma,
retomando o espírito autoritário que foi a marca do período da ditadura militar. Esse
autoritarismo fica evidente na reforma do ensino médio, baixada por Medida
Provisória sem sequer dar conhecimento prévio às Secretarias de Educação e aos
Conselhos Estaduais de Educação que, pela LDB, são os responsáveis pela oferta
pública desse nível de ensino. Como responsáveis pelo Ensino Médio, os estados e
o Distrito Federal deveriam ser consultados sobre a proposta de reforma desse nível
de ensino. No entanto, nem mesmo foram informados, sendo surpreendidos com a
entrada em vigor da referida reforma uma vez que, sendo baixada por medida
provisória, passou a valer imediatamente após sua promulgação. O caráter
autoritário fica claro, também, nas medidas relativas à realização da III Conferência
Nacional de Educação, intervindo no Fórum Nacional de Educação à revelia do que
dispõe a lei 13.005, de 25 de junho de 2014, que aprovou o Plano Nacional de
Educação 2014-2024. Com essa intervenção arbitrária, o governo mudou a
composição do Fórum sem consulta às entidades que, conforme as normas legais,
nele tinham assento. Tal autoritarismo se faz presente, ainda, no movimento “escola
sem partido”, merecidamente chamado por seus críticos de “lei da mordaça”, pois
explicita uma série de restrições ao exercício docente negando o princípio da
autonomia didática consagrado nas normas de funcionamento do ensino.
A referida medida provisória registra como ementa: “Institui a Política de
Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, altera a
Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, e a Lei nº 11.494 de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo
de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
Profissionais da Educação, e dá outras providências”.

31
De fato, a reforma altera diversos artigos da LDB e institui novas regras que
não cabe aqui detalhar, importando destacar apenas dois aspectos: a pretensão de
instituir escolas de ensino médio em tempo integral e a organização do ensino médio
em cinco itinerários formativos previstos no Art. 36: I - Linguagens; II - Matemática;
III - Ciências da natureza; IV - Ciências humanas; e V - Formação técnica e
profissional.
Assim que foi promulgada, a medida provisória foi alvo de uma avalanche de
críticas, entre as quais destaco a 45ª Nota Pública do Fórum Nacional de Educação,
emitida no mesmo dia 22 de setembro de 2016 na qual, entre outras considerações,
afirma: “O governo Temer erra no método e no processo, restritivos e impeditivos do
debate e do encaminhamento adequado sobre a matéria nas redes e sistemas de
educação e, também, erra no conteúdo e suas repercussões no país, o que gerará
mais atrasos e retrocessos em face da necessária formulação e implementação de
medidas consistentes e bem fundamentadas para o Ensino Médio”. E, detalhando
sua análise, registra 23 pontos negativos. Além do Fórum também os Conselhos
Estaduais de Educação, as Secretarias de Educação dos estados e diversas
entidades representativas dos profissionais da educação se manifestaram com
críticas contundentes à medida provisória considerada como a contrarreforma do
ensino médio. A essas manifestações aduzo algumas considerações levando em
conta o núcleo da reforma que se condensa no caput do Art. 36 que, para maior
clareza, reproduzo a seguir:
Art. 36. O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional
Comum Curricular e por itinerários formativos específicos, a serem definidos pelos
sistemas de ensino, com ênfase nas seguintes áreas de conhecimento ou de
atuação profissional:
I - Linguagens;
II - Matemática;
III - Ciências da natureza;
IV - Ciências humanas; e
V - Formação técnica e profissional.
E condenso meus comentários nas seguintes indagações:
a) Flexibilidade ou predeterminação camuflada dos itinerários?
De fato, em lugar da apregoada flexibilidade promove-se uma
predeterminação camuflada dos itinerários, o que significa que, na prática, a grande

32
maioria dos alunos será encaminhada para o quinto itinerário, “formação técnica e
profissional”.
b) Liberdade de escolha dos adolescentes ou descarte da responsabilidade
dos adultos?
Argumentando com o princípio da flexibilidade que permitiria aos alunos a livre
opção pelo itinerário que correspondesse aos respectivos projetos de vida, comete-
se uma falácia, pois como esperar que adolescentes na faixa de quinze anos já
estejam em condições de definir seu projeto de vida e exercer sua liberdade de
escolha elegendo um itinerário consentâneo com seu projeto de vida? Ora, nós
sabemos que mesmo os jovens já na faixa dos dezoito a vinte anos têm dificuldade
de escolher a carreira a seguir e, por isso, é frequente que iniciem um curso superior
e, ao final do primeiro ano, abandonam o curso para prestar novo vestibular para
outro curso. Em lugar da liberdade de escolha dos alunos, o que a reforma promove
é a demissão da responsabilidade dos adultos, de modo geral e, especificamente,
dos professores quanto à orientação que lhes cabe propiciar a estudantes ainda na
idade da adolescência
c) Ensino em período integral para todos ou exclusão integral de todos os que
trabalham?
Em lugar de ensino em tempo integral para todos ocorreria, se fosse
generalizado o tempo integral, a exclusão de todos os que trabalham, pois não
poderiam compatibilizar o horário de trabalho com a frequência às aulas. Na fase de
redemocratização após a ditadura militar o que se procurou fazer foi o contrário, ou
seja, determinou-se que as universidades públicas oferecessem vagas no período
noturno exatamente para permitir que os jovens que necessitam trabalhar pudessem
frequentar as aulas nessas universidades. Assim é que a Constituição do estado de
São Paulo determinou, no § único do Art. 253, que “as universidades públicas
estaduais deverão manter cursos noturnos que, no conjunto de suas unidades,
correspondam a um terço pelo menos do total das vagas por elas oferecidas”.
d) Educação integral para todos ou uma vitrine para efeito demonstração
reduzido a pequenos grupos elitizados?
Efetivamente, em lugar de educação integral para todos, apenas se promove
uma vitrine para efeito demonstração reduzido a pequenos grupos, uma vez que, ao
regulamentar o Programa de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio
em Tempo Integral, o MEC limitou a no máximo 30 escolas por estado. Ora, trata-se

33
de um número extremamente reduzido quando se considera, por exemplo, que o Rio
Grande do Sul tinha 1.200 escolas estaduais de nível médio, em 2016 e o estado de
São Paulo, em 2003, já tinha 3.242 escolas.
No entanto, o governo, em lugar de levar em conta a avalanche de críticas que
obrigaria a uma revisão, senão a uma reversão da orientação impressa à reforma,
vem adotando a postura contrária. Ignora as críticas e lança uma agressiva
campanha publicitária com muitas inserções diárias nos meios de comunicação
tentando iludir a população ao passar a ideia de que se trata de uma reforma
baseada em amplo diálogo e que conta com o apoio de 72% dos estudantes do
ensino médio. E chega, inclusive, ao desplante de colocar no ar uma propaganda
com um indivíduo que afirma que sua vida mudou quando passou a cursar uma
escola de tempo integral, o que lhe permitiu entrar na faculdade, obter uma bolsa
para se formar engenheiro na Espanha e agora é um profissional reconhecido na
Espanha. Ora, então essa é uma propaganda do governo do PT, pois essa pessoa
cursou a escola de tempo integral bem antes dessa reforma do ensino médio e, além
disso, teria se beneficiado do Programa “Ciência sem Fronteira” para obter a bolsa
e estudar na Espanha. Mas a população, de modo geral, não faz essa ilação e acaba
sendo induzida a acreditar que esse governo a está favorecendo.
O retrocesso iniciado no governo Temer se aprofunda atingindo níveis
extremos no governo Bolsonaro que foi eleito como resultado de uma dupla fraude:
A primeira foi a prisão de Lula numa condenação sem provas, impedindo sua
candidatura quando as pesquisas eleitorais o colocavam em primeiro lugar na
preferência dos eleitores. A segunda fraude foi a estratégia da campanha que,
contratando empresas de disparos de mensagens em massa, espalharam notícias
falsas contra a candidatura do PT violando o artigo 222 do Código Eleitoral Brasileiro
que define como “anulável a votação, quando viciada de falsidade, fraude,
coação...”. Mas o Superior Tribunal Eleitoral nada fez diante dessa flagrante
violação. Consumou-se, assim, a democracia suicida que significa precisamente
isto: o povo, iludido por falsas promessas e enganado por notícias mentirosas, no
exercício de sua soberania vota contra si mesmo elegendo seus próprios algozes.
Eis como a situação de penúria, perda de direitos, ausência de políticas sociais e
repressão policial contra a população vem caracterizando a gestão do atual governo,
assumindo características mais agudas no contexto da pandemia.

34
Quando candidato, Bolsonaro afirmava que iria compor os ministérios e
demais cargos do governo federal priorizando a competência técnica e não as
indicações políticas. Assumindo o governo, está agindo de forma exatamente
oposta. As indicações seguem critérios político-ideológicos e se restringem ao
círculo dos cúmplices, primando pela inexperiência e incompetência dos indicados.
De fato, logo após assumir, o próprio Bolsonaro declarou: "não vim para
construir nada; vim para destruir". No caso da educação, o projeto é destruir a
educação pública submetendo todos os níveis e modalidades de ensino aos
interesses privados convertendo a educação em mercadoria.
A inexperiência e incompetência dos indicados como ministros é a regra em
todos os ministérios, tendo ficado apenas mais gritante no caso da Educação. O
primeiro que ocupou a pasta foi Vélez Rodríguez que cometeu várias trapalhadas
como chamar os brasileiros de canibais e conclamar os diretores a receber os alunos
no início do ano letivo com a leitura de uma mensagem sua que terminava com o
slogan de campanha do Bolsonaro: "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos!". E
determinava que "professores, alunos e demais funcionários da escola, com todos
perfilados diante da bandeira nacional, fosse executado o hino nacional" e "que um
representante da escola filmasse trechos curtos" da leitura e da reprodução do hino.
Vélez ficou pouco mais de três meses no governo e pelo menos voltou atrás e pediu
desculpas. Já Weintraub, que o sucedeu, ficou aproximadamente quinze meses,
revelou-se um boquirroto, um obscurantista belicoso dizendo barbaridades sem
jamais se desculpar. E acabou deixando o MEC e viajando intempestivamente para
os Estados Unidos para escapar ao risco de ser preso, pois está sendo processado
por ofensas ao STF. Aquele que seria o terceiro ministro da educação em menos de
18 meses do mandato de Bolsonaro, Carlos Alberto Decotelli, foi nomeado em 25 de
junho de 2020, mas renunciou cinco dias depois, em 30 de junho, antes de tomar
posse oficialmente. Em 16 de julho tomou posse Milton Ribeiro como o novo ministro
da educação. Pastor presbiteriano e membro do Conselho Deliberativo da entidade
mantenedora da Universidade Mackenzie, obteve Doutorado em Educação na USP
com a tese "Calvinismo no Brasil e organização: o poder estruturador da educação".
Parecia, pois, ter algum espírito acadêmico, o que alimentaria a esperança de um
diálogo mais respeitoso com a comunidade universitária e com os profissionais da
educação, o que ele prometeu no discurso de posse. No entanto, ele, além de aceitar
o convite de Bolsonaro prometeu também, no mesmo discurso, que iria se empenhar

35
em seguir a orientação do presidente. Assim, o que parecia mais provável era que,
detendo alguma competência técnica diferentemente de seus dois antecessores,
poderia ter mais êxito na política de desmonte da educação já que, tanto Vélez
Rodríguez como Weintraub, em razão das sucessivas trapalhadas, diante da
resistência enfrentada, não conseguiram avançar muito no processo de desmonte,
que é a meta do governo Bolsonaro. No entanto, até agora, nove meses depois, vem
se revelando inoperante não mostrando ainda a que veio; segue, pois, na trilha
destrutiva mais por omissão do que por ação. Enquanto isso o projeto de destruição
da educação pública segue em frente com a adesão de vários municípios à
"militarização de escolas", os cortes no orçamento da educação, ciência e
tecnologia, a intervenção nas universidades e institutos federais mediante a
nomeação de dirigentes à revelia das decisões das comunidades acadêmicas e a
tentativa de implementar a BNCC. Ora, a Base Nacional Comum Curricular já havia
sido contemplada pela LDB traduzida nas Diretrizes Curriculares Nacionais que
foram sendo definidas pelo Conselho Nacional de Educação para os diferentes
cursos, níveis e modalidades de ensino. Portanto, a que veio essa nova BNCC?
Considerando a centralidade que assumiu a questão da avaliação aferida por
meio de testes globais padronizados na organização da educação nacional e tendo
em vista a menção a outros países, com destaque para os Estados Unidos, tomados
como referência para essa iniciativa de elaborar a “base nacional comum curricular”
no Brasil, tudo indica que a função dessa nova norma é ajustar o funcionamento da
educação brasileira aos parâmetros das avaliações gerais padronizadas. Essa
circunstância coloca em evidência as limitações dessa tentativa, pois essa
subordinação de toda a organização e funcionamento da educação nacional à
referida concepção de avaliação implica numa grande distorção do ponto de vista
pedagógico, entendimento que veio a ser reforçado pela ampla e contundente crítica
efetuada por Diane Ravitch sobre o sistema americano, que está sendo tomado
como modelo pelo Brasil.
De fato, o modelo de avaliação assumido pelo MEC desde o governo FHC no
final da década de 1990 não está centrado em pesquisa sobre a situação
educacional brasileira, mas se inspira em instrumentos internacionais focados na
mensuração de resultados. É esse modelo que se implantou nos Estados Unidos de
cujo processo participou Diane Ravitch que foi secretária adjunta de educação entre
1991 e 1993 no governo George H. W. Bush, sendo em seguida indicada pelo então

36
presidente Bill Clinton para assumir o National Assessment Governing Board,
instituto responsável pelos testes federais. Firmou-se, assim, como uma das
principais defensoras da reforma do ensino nos Estados Unidos, reforma essa que,
baseada em metas, introduziu testes padronizados, responsabilização do professor
e práticas corporativas de medição e mérito. No entanto, após 20 anos defendendo
esse modelo que inspirou as medidas adotadas no Brasil, Ravitch concluiu que, “em
vez de melhorar a educação, o sistema em vigor nos Estados Unidos está formando
apenas alunos treinados para fazer uma avaliação”. E explicitou sua crítica de forma
definitiva no livro The death and life of the great American School System: how
testing and choice are undermining education, publicado nos Estados Unidos em
2010 e traduzido no Brasil, em 2011, pela Editora Sulina, de Porto Alegre, com o
título Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes
padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação.
No Brasil, esse modelo de avaliação orientado pela formação de rankings e
baseado em provas padronizadas, aplicadas uniformemente aos alunos de todo o
País por meio da Provinha Brasil, Prova Brasil, Enem, Enade, está, na prática,
convertendo todo o “sistema de ensino” numa espécie de grande “cursinho pré-
vestibular”, pois todos os níveis e modalidades de ensino estão se organizando em
função da busca de êxito nas provas buscando aumentar um pontinho no Ideb. Ou
seja, todo o ensino no país vem se reduzindo a um treinamento para fazer as provas
nacionais de avaliação, invertendo a máxima latina “non scholae, sed vitae discimus”
(aprendemos não para a escola, mas para a vida) e convertendo-se na máxima
contrária: “non vitae, sed examinibus discimus” (aprendemos não para a vida, mas
para passar nos exames). Caminham, portanto, na contramão de todas as
teorizações pedagógicas formuladas nos últimos 100 anos para as quais a avaliação
pedagogicamente significativa não deve se basear em exames finais e muito menos
em testes padronizados. Devem, sim, procurar avaliar o processo, considerando as
peculiaridades das escolas, dos alunos e dos professores. Mas foi com base no
referido modelo, que fracassou nos Estados Unidos, que o grupo que assumiu o
governo brasileiro em consequência do golpe de 2016 veio propor a BNCC no âmbito
de uma tendência a subordinar inteiramente a educação aos mecanismos de
mercado.

Referências:

37
DREUFYSS, René. A internacional capitalista: estratégias e táticas do empresariado
transnacional (1918-1986), 2ª ed. Rio de Janeiro, Ed. Espaço e Tempo, 1987.
GRAMSCI, Antonio. Scritti giovanili (1914-1918). Torino: Einaudi, 1975a
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere (Edizione critica dell’Istituto Gramsci a
cura di Valentino Gerratana), 4 vols. Torino, Einaudi. 1975b.
LENIN, Vladimir Ilyich (Ulianov). "Tareas de las organizaciones juveniles". In: LENIN,
V.I. Obras escogidas em doce tomos, Tomo XI. Moscu, Editorial Progreso, 1977, p.
203-220.
MARX, Karl. O Capital, Livro I, Capítulo VI (inédito). São Paulo, Livraria Editora
Ciências Humanas, 1978.
MORENTE, Manuel Garcia. Fundamentos (Lições Preliminares) de Filosofia. São
Paulo, Mestre Jou, 1966.
SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica, 19ª ed.
Campinas, Autores Associados, 2013.
SAVIANI, Dermeval. A pedagogia no Brasil: história e teoria, 3ª ed. Campinas,
Autores Associados, 2021a.
SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações, 12ª ed.
Campinas: Autores Associados, 2021b.
SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia, 44ª ed. Campinas: Autores Associados,
2021c.

38

Você também pode gostar