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Ricarpo ANTUNES O CARACOL E SUA CONCHA ensaios sobre a nova morfologia do trabalho ‘Copyright © Ricardo Antunes Copyright desta edicio @ Boitempo Eiitarial, 2005 Cooratenage eaisorial Avisrente edisarial Ana Paula Castell Preparacfo Beserit Rocha Garcia Cape Antonio Keb Sabre Waar Fc Ftt wit Spining Wheel de Vincent van Gagh 1884 Fedora; elirinice Racquel Sallabecry Bile Prodagio-griics Matcel tha CIP-BRASIL, CATALOGACAQ-NA-FONTE, SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. Rl. AGAdc Antunes, Ricardo L. C. (Ricardo Luft Coltsa), 1953+ © cancol ¢ sua concha : ensaias sobre a nova morfologia do trabalho! Ricardo Antunes, - Sio Paulo = Boitempo, 2005 136p. : (Mundo do trabalho} Inalui bibliografia ISBN 85-7559.065-0 | Trabalho. 2. Trabalho « Aspectos sociais. 3, Sociologia industrial. 1 Tioulo. I. Tioulo Eneaios sobre # nova morfologia clo trabalho. II, Série. 95-2275. DD 305.56 cpu 331 Todor on direitos revervador. Neahuma parte desta edigSo. porerd ser utlizada ou reprodusida sem a ausaritagio da editor, Vodigdo: julho de 2005 BOITEMPO EDITORIAL Rankings Edizores Asociados Leds, Rua Euclides de Andrade, 27 Perdizes 05030030 Sio Paulo SP Tel.fPax; (11) 3875-7250 1 3972-6869 e-nuall editora®boitempo.com sice: wwwwiboitempa.cam APRESENTACAO Desde o mundo antigo e sta filosofia, ¢ trabalho ven sendo com- preendido como expressio de vida e degradagao, criagio ¢ infelicidade, atividade vital ¢ escravidin, felicidade social e servicio, Engen © pinas, trabalho ¢ fadiga. Momento de catarse ¢ vivéncia de martirio, Ora cultuava-se seu lado positive, ora acentuava-se o trago de negatividade. Hesicde, em Or mnbathos e os alias, uma ode a0 trabalho, niu hesitou emt afirmar que “a trabalho, desonea nenhuma, @ dcio desonra &". Esquilo, em Pramesen acorrencado, asseverou que “quem vive de seu trabalho nao deve ambicionar a alianga nem do rico cfeminado, nem de nobre orgulhoso". Com © evalver humana, a trabalho se converteu en tripaliare — origindrie de sripativi, instrumento de tortura — moments de puni- lo € sofrimenta, No contraponto, a écio torourse parte de caminhe para a realizagio humana, De um lade, o mite prometeicn da teaba- Ihe: de outta, © deo como liberagio, © pensimento cristio, em seu longo © complex percurse, deu seqiiéncia 4 controvérsia, concebendo o trabalho come martirie ¢ sal- vagin, atalho certo para o munda celestial, caminho para o pagalsa. Ac final da Idade Média, com sio Tomds de Aquino, © trabalho fai consi- derado ato moral digno de honta ¢ eespeico’. Weber, com sua ética positiva de trabalho, reconferiu ao officio o © Hesinda, Gr mtbsthes ¢ or dias (530 Paulo, Iueinuras, 1990), pp. 45. * Biquilo, Poneteu trvrrentede (Rin de Janeien, Ediours, 6. d.), p. 132. > CE Julie César Neffa, EP enebajo buumane: comériburioner af entra de un eatlor que petmnasiece (Busco Aires, CONICET, 2003), p. 52 12 Ocaraeo! e sua concha caminho para a salvagio, celestial ¢ terreno, fim mesmo da vida. Sela- vi-se, entio, sob o comando do mundo da mercadaria e do dinhelro, a prevaléncia do negécio (negat o écic} que velo sepultar 0 império do repauso, da folga © da preguica. Quer cama Arbeit, lavoro, travail, labour ou work, a sociedade do trabalho chegou & modernidade, 20 mundo da mereadoria. Hegel es- creveu paginas belas sobre a dialética do senhar ¢ do excrava, mostran- do que © senhor 35 se torna pane x por meia de outea, de seu servo! Foi ainda pela cscrita de outro alemio chamado Marx, também conhecide camo Mouro, que o traballio conheceu sua sintese sublime: trabalhar era, an mesma tempa, necessidade eterna para manter o metabolismo social entre humanidade e matureta, Mas, sob 0 impétio (c 0 fetiche) da mercadoria, a atividade vital metamarfoscava-se ee atividade imposta, extrinseca ¢ exterior, forgada ¢ compulséria, Econ nhecida sua referencia ao trabalho fabril: se pudessem, os trabalhada- res fugirlam do trabalho como se foge de uma peste"! Essa dimensio chiplice ¢ mesmo contraditéria presente no mundo do trabalho que cria, mas também subordina, humaniza ¢ degrada, libera eescraviza, emancipa c aliena, mantcve 0 trabalho humano como questio nodal em nasa vida. E, neste conturbado limiar do século XXI, um desafio ctucial é dar sentido ao trabalho, tornando também a vida fora dele dotada de sentido. Tr Mas 0 nosso mundo contemporineo oferece outra contribuigie ao debate: fez explodir, com uma intensidade jamais vista, o wniversa do ndo-trabalho, o mundo do deiemprego. Hoje, segundo dados da Or- ganiragio Intemacianal do Trabalho (O1T), quase um vergo da forga humana mundial disponivel para 0 aro laborativo estd exercendo tra- balhos parciais, precdrios, tempordrios ou jd vivencia as agruras do nao-trabalho, do desemprego cstrutural. Perambulam pelo mundo, coma prometeus modernos, i cata de algo para sobreviver. Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Fomemenoingie del Epsinine (México, Fonds de Cultura Feondmice, 1966), p. 11348 fed. bear: Frnosienalagie do epirite, Sao Pala, Vooes, 2003 (22 ed]. 5 Katt Mary, Mawuscritos econdmico,filiafcw (80 Paulo, Boitempo, 2004), p. 83. Apresentagéo 15 Mais de um bilhgo de homens ¢ mulheres padecem as vicissitudes da precarizagio do trabalho, das quais contenas de milhées t8m seu cotidiano moldado pelo desemprege estrutural, Nos paises do Norte, que umn dia chamamos de Primeiro Mundo, ainda se preservam alguns resquicios da seguridade social, hetanga da fase [quase terminal) do Welfare State. Nos paises do Sul, que nunca conheceram o Estado de bem-estar social, as homens € mulheres disponiveis pata o trabalho oscilam entre a busca quase ingldria do emprego ou o aceite de qual- quer labor, Glosando uma frase memordvel, podemos lembrar que, se nia se- mos contemposiineos filoséficos do presente, estamos entre seus cam- podecs histéricos. Se o nosso pals pouco contribuiu para a filosofia do trabalho e do labor, estamos dando, tistemence, uma monumental contribuigio para o flagelo do desemprego. Contra a limitadissima tese da finitude do trabalho, temos o desa: fio de compreender 0 que venho denominando nova morfologia ou nova polisscmnia do trabalho. E, ao fazédo, mostrar as complexas rela- ges que emergem no universe laborativa, em particular seus elemen- tos de centralidade, seus lagos de sociabilidade que emergem no munda do trabalho, mesmo quando ele é marcado por formas daminantes de estranhamento ¢ alienagio. Come lembra Robert Caste] em As metamorfoses da questiio social ®, © trabalho permancce como referéncia central, nfio s6.em sua dimen- sio econémica, mas também quando se concebe @ trabalho em sew universo psicoldgico, cultural ¢ simbdlico, fato perceptivel quando se analisam as reagSes daqueles que vivenciam cotidianamente o flagela do desemprego, de nio-ttabalho, do nido-labor. Contrariamente 4 unilateralizagio presente tanto mas teses que desconstroem o trabalho, quanto naquelas que fazem sew culto acritico, sabemos que na longa histéria da arividade husvana, em stra incessanite luta pela sobrevivéncia, pela conquista da dignidade, humanidade © felicidade social, o mundo do trabalho tem sido vital, Foi por meie do ata lahorativo, que Marc denominou atividade viral, que os indivi- dues, homens © mulheres, distinguisam-se dos animais. ‘Mas, cm contraposigio, quando a vida humana se resume exclusi- vamente 20 trabalho, cla freqiientemente se converte num esforse pe= © Roberr Castel, ds metsmrorfiner ds questi soci! (Ris de Jancico, Vozes, 1998) 14 Ocaracol@ sua concha noso, alienante, aprisionando os individuos de moda unilateral. Se, por um lado, necessirames do trabalho humano e reconhecemos seu potencial emancipader, devemos também recusar © trabalho que cx- plora, aliena ¢ infeliciea o ser social. Essa dimensdo diiplice ¢ dialética presente no trabalho é central quando se pretende compreender o la- bor human, © que nos diferencia enormemente dos eriticos do fim, ou mesmo da perda, de significade do trabalho na contemporancidade. Se essa tendéncia eurocéntrica foi dominante nas duas tiltimas dé- cadas, mais recentemente cla tem sido fortemente questionada ¢ se encontra bastante enfiaquecida. Renascendo das “cinzas", a questio do trabalho tornau-se novamente um dos mais relevantes temas da atualidade. Muitas sio as interconexdes ¢ teansversalidades que mas- rram_o trabalho como questio central das nassos dias. Coma a des: truigio ambiental ¢ a questio feminina, o labor humana mastra-se como questo vital para a humanidade UL Come indicamos anteriormente’, ainda que passando por uma ‘monumental reestruturagie produtiva, o capital, mesmo sob enorme impacto das profundas mutagiies tecnaldgicas, nae pode eliminar ca- balmence o trabalho viva do processo de mercadorias. Ele pode incrementar ao méximoe trabalho morte corporificade ne maquinério rcenocicntifico, aumentando desse modo a produtividade do trabalho de modo a intensificar as formas de extragio da sobretrabalho em tempo sada vex mais reduzido, uma vez que tempo ¢ espago se cransformam nessa fase dos capitais globais ¢ destrutivos, Uma nova madalidade da forma do valor aparece para mostrar os limires ¢ equivacos daqueles que haviam decretado o fim da teoria do valoretrabalho® E se mostra como sesponsiivel pela ampliagao da enorme destruti- vidade que preside a suciedade do capital, Isio porque no plano micto- edsmice, no plane das empresas, ha uma necessidade intsinseca de racionalizar seu modus operandi, de implementar o receitudria ¢ a 7 Ch Ricatda Antunes, Or srsidor do enable (Sic Paulo, Buitempo, 1999}, « Ades ae rabaiba? (Sao Pyulo, Comen/Ed, Unicamp, 1995). "CE Adrisn Sotelo Valencia, La restrucrunscn ae mundo oe seabaa- speresplotscin J mweves pasdigmnay ole be orpemizaién del rabnje (Méxicw, Lraca, 2005). Apresentacio 15 pragmdtica de lean production, da empresa enxuta, visando qualificd- la para 4 concorréncia interempretas em dispura no sistema global do capital. A cxpansio ilimitada dessa égiea microcsamica para a totalidade das empresas cm amplitude mundial acaba por gerar uma monumten- cal sociedadle dos descartiveis, uma vex que a Igica da reestruturagio © da produtividade, quando comandada pelo idedrio ¢ pela pragmiitica do capital, acarreta a crescente redugio do trabalho vivo ¢ sua substi- igio pelo trabalho morca, para usar os tetmos de Marx. A conseqiéncia mais negativa para o mundo do crabalha ¢ dada pela destruigéo, precarizagio ¢ eliminagio de postas de trabalho, resul- tando em um desemprego estrutural explosive, Segundo Mésatras, bd, hoje mais de 40 milhes de desempregados nos paises industrislmente mais desenvolvidos. Deste minera, a Eytopa conta com mais de 20 milhies ¢a Alemanha ~ outrora elogiada por produtir © "milagse alemio"= ulteapas- soua marca dos § miles, Em um pats como a India —reverenciado pelos organismos econdmices tradicionais por suas cealizagdes na ditegio do desenvolvimenta — hi no menes do que 336 milhies de pessoas desem- progadas ¢ onriras milhGes sob condig6es inadequadas de trabalho, cxjos dadas no foram registrados. Aim disso, intervengio da FMI, organiza- so dos EUA que dita ordens, pretendende melhorar as cendig6es econd- micas dos paises “em desenvolvimento” mais afetados pela crise, tem, na verdade, piorado as condigéies des desempregades |.) Ao mesma tempo, os antigos paises pés-capitalistas pectencentes ao sistema de tipo saviético, da Rassia | Hungria— que no passade no softiam com altes tndices de siesemprego, embors administrassem suas economias com altos niveis de subemprego diane da pressda direta da FMI vem sofrenda com as con- digbes desumanizadoras do desemprego macigc, E acreseenta: © Japio ¢ um exemple particularmente importante, pois no estamos falando de wm pais do chamada "Tereeiso Munda” em relagio aos quais, mesmo as mais intensss peiticas de exploragie da trabalho, sempre foram consideradas normais. An conttdcin, © Japio representa a segunda mais poderasa economia do mundo: um paradigma das avangos capitalistas. E agora, mesmo em tal pals, o desemprege esti ciessende perigusamente. Sem contas com as condigdes de trabalho, que devem se tornat ainda pio- res do que na época do longo periode de desenvolvimenta da pés-guerra ede expansia do capital, incluindo no 98 a grande intensificagio da ex- ploragio pelos cronogramas de trabalho em nome da “exibilidade”, como 16 Qenracol e sua conch também = para muitos bastante incompreenstvel — a prolongamento da semana de trabalho forgada.” Alm do desemprego estrutural em feanea expansio, ampliam-se © espalham-se por toda parte do chamado “Primeirs Mundo” os trabalha- doces imigrantes (gastarbriters na Alemanha, os ohicamor nos EUA, os dekasseguis no Japio etc.), que configuram um quadro de enorme ex- ploragio em expansio em cscala global. Esss modalidades de trabalho precarizado - “trabalho atipico”, segundo a definigia de Vasapollo e Marcufi - encontram-se em expan- séo também na Itiliae na Espanha. Trabalho atipico porque expres- sam formas de prestagio de servigos.cuja caracteristica fundamental ¢ a falta ott a insufi- ciéncia de curela contmatual. No trabalho atipica sito inchuidas tadas as formas de prestagio de servigos diferentes do modelo-padsio, ou seja, do trabalho efetivo, com garantias formais e comtratuais, por tempo indecer- minado ¢ fiel-tinse, Quase 2596 dos ermpregos na Iniliz sin independentes contra uma media de 13% no restance da Europa. Iss confiema um mo- delo mediterrineo representade pela Espanha e pela Ttilis, no qual o per- centual de trabalho atipicn & “independente™ é superior 2 20% de total de expeegos. Formas de trabalho autimomas escdio presentes em todo 0 setar tercidrio [..] e nas atividades precdrias, come acontece nas temporadas des setores de agricultura © de turisma, nos transportes © nas telecomtanica- goes. Ald do mais, existe, na Itilia, uma forma de exteriorizagin dos servigas: @ subcontrata das conperativas, A diminuigao das postos de tra balho efetivos e estiveis nio sti estan vinculados. um processo maisampla de precariedade, mas também 4 afirmagio de atividades flexibilizadas ¢ intermitentes, een urn contexte que supers o mercado de eabalho © se impie como madalidade da vida cotidiana, © que permite aos autores acrescentar que ‘O conceiro de flexibilizagio do trabalho ¢ o abandono do modelo de cra- balho por tempo indeterminado jf pertencem A nossa atual forma de pen- sar (.-]. Hoje é dificil prever a superagio ou a substituigs desse tipo de trabalho jmstivel_"* in Méstdros, “Unemployment and Caualisation: A Great Challenge a the efi", 2004, p. 48 (mimeo). "Luciano Varapalio ¢ Rita Marwuli, “Lavero Atipicn, Lore che Cambia, Come Lavorace?”, Roma, Retired PROTEO, nm. 2-3, especial, maioldexembeo 2003. Ch também L. Vasapoll, "Le Ragiond di wew Sf in Ato" em Laowre zontre eapitale _prevariet afrusrasment, delscalicencione (Milio, Jeea Book, 2048), Apresentago 17 Esse quadro configura uma nova motfologia do trabalho: além dos assalariados urbanos ¢ rurais que compreendem 0 operatiada indus trial, rural e de servigos, a sociedade capitalista moderna vem amplian- do enormemente o eontingente de homens ¢ mulheres cerceirizados, subcontratados, part-time, que exercem tcabalhos temporirios, entre tantas otras formas assemelhadas de informalizagio do trabalho, que proliferam em todas as partes da mundo. Das trsbalhadoras de relemarkering aos motboys, dos jovens tra bathadores do MeDonald s sas digitalizadares do setar bancério, esses contingentes sio partes constitutivas das forgas sociais do trabalho, que Ursula Huws sugestivamente denominou adersaniae, © novo pro- letariado da era da ciberndtica, que vivencia as condig6es de um traba~ Iho virtual em um mundo real, para recordar o sugestive titulo de sew excelente livro que discorre sobre as novas configuragies do trabalho na era da informética € da telemdtica, buscando apreender suas potencialidades de organizagio e busca de identidade de classe". Esta dualidade ~ em verdade, trata-se de uma contradigSo — presente no mundo do trahalho conforma uma tese que ¢ exsencial em nossa estur do: seo trabalho ainda é central para a criagio do valor, 0 capital, por sua parte, o tite oscilar, ora reiterando seu sentido de perenidade, ofa estam- pando a sua enorme superfluidade, da qual sio exemplos os precariza- dos, flexibilizados, temponirias, além, naturalmente, do enorme exercito de desempregados e desempregadas que se esparramam pelo mundo, Em seu trago perene, pode-se ver que cada ver menos homens € mulheres trabalham muito, em ritmo e intensidade que se assemelham 4 fase pretérita do capitalismo, quase similasmente 4 época da Revolu- fo Ladustrial. E, na riarea da supecfluidade, cada ver mais homens ¢ mulheres encoatram menos trabalho, espralhando-se & cata de traba- Ihos parciais, temporarios, sem dircitos, “Hexiveis", quando nao vivenciando o flagelo dos desempregados, Em pleno mito nealiberal do individualismo ¢xacerbado, tal como a ideologia do “empreendedo- rismo”, presenciamos de fato um individwclisme possessive cada Vee mais despravide de pose, onde cada vez amplas parcelas de crabalhadores & trabalhadoras perdem até mesmo a possibilidade de viver da venda de sua tinica propriedade, a sua forga de teabalho. "Unsula Huws, The Making af'a Coberariat: viral work in a veal world (Now YorkiLondees, Monthly ReviewThe Merlin Press, 2003) 18 Qcaraeol ¢ sua concha Iv Mas hi ainda owtra contradigio que se evidencia quando o olhar se volta para a (des)sociabilidade contemparinea no mundo produtive quanto maiar € a incidéncia do idedtio ¢ da pragmutica na chamada “empresa moderna”, quanto mais racionalizade € seu modus aperandi, quanto mais as emprests labotam na implantagio das “compeséncias”, da chamada “qualificagio", da gestio do “conhecimente”, mais inten- sas parecem tornar-se 0s niveis de degradacao do trabalho, E isso se dd porque a gestio do “conhecimento ¢ da competéncia" estd inteiramente conformada pelo receitudrio ¢ pela pragmitica pre- sente na “empresa enxuts”, na empresa liofilizada, que, para ser com- petitiva, deve reduiir ainda mais o trabalho vivo e ampliar sua dimensio tecnocientifica, © trabalhe morta, cujo resultade nao ¢ owtre seniio 0 aumento da informalidade, da terceitizagie, da precatizagzo do traba- Iho ¢ do desemprego estratural em sscala global. E, ao apropriar-se da dimensio cognitiva do trabalho, ao apoderar- se de sua dimensio intelectual, os cipitais ampliam as formas ¢ os mecanismos da geracio do valor, aumensando também o: modas de controle ¢ de subordinagio dos sujcitos do trabalho, uma vez que 3 utilizam de mecanismos ainda mais coativos, renovande as formas primitivas de violEncia na acumula~ gdo, uma ver que - paradoxalmente —, ao mesmo tempo, a3 empresas ne~ cessiram cada vex mais da cooperagan ou “envolviementa” sulbjetive.c social de trabalhador.? Joi Bernasda, aa teatar dessa dimensio crucial de tsabalho, afir- mau: A *desindustrializagio" sobre a qual tanto se fala © se escreve hoje & ma verdade, uma reindustrializasie, En “desaparecimenro da classe opersria” corresponde 4 uma expansSo sem precedentes da dasse trabalhadora, que entretante se reestruturon internamente. Kim Moody colocou 3 questo nos termos devides ao recordar que “ss madangas ocorridas nas economias capitalistas desenwolvidas mio altersram a condigao fundamencal da fina de trabalho, que continaa a ter de vender a um patedo 4 sua eapacidade de trabalho ¢ continua a ter de exercet asua acividade come participance num Alberta Bislakowsky et al., "Diluicion y mucacién del erahajo en In domninacien social local”, Buenas Aires, revise Hlernemienss, m. 23, 2003, p. 135, Apresentagda 19 esfiarge colctivo organizada pela capital, © em rermos ditados em grande medida pelo capital®. Para resumir a situagio em poucas palavras, a explo- ragto da. componente intelectual do trabatho determinow o crescimento do ramo da informdtica, ¢ portanto dos servigos, mas este ceescimento & indissocifvel da ceorgsnitagio da operatiado fibril, “A revolugae que se seguiu & revolugso industrial”, escrevia Tihe Ezonomirt em 22 de Agosto de 1997, “no € uma revolusio dos serviges, mas dos eérebros, na qual valor € acrescentado no por mios-qualificadas mas por inteligéncias qua- lificadas" (J. E acreseenta: ‘Ora, o fara de se cer esgotado a passibilidade de levar avante a extragao de mais-valia relativa sé gragas ao esforge muscular da mfin.deuobra alverou radicalmente este quadco de concepgées. Hoje, quanto maior for a cam- ponente intelectual fa atividade dos trabalhadores © quanto mais se desen. volver intelecualmente a fiega de trabalho, canta mais considerdveis sia as possibilidades de acumular mais-valia."? ‘Veja-se 0 exemplo da Manpower, transnacional da locagSo (enten- da-se terceirizagin) da forga de trabalho de amplitude global, cuja atividade constrdi parcerias com clientes em mais de GO paises [...] mais de 400 mil clientes dosmais diversos segmentos, como comercio, industria, servigns promacie |...]. A Manpower estd preparada para arender a seus clientes com sree oe allo vader agregade [prifas meus], come contratagio ¢ admi- nistragio de funciondrios temparirios, recrutamento ¢ selexia de profis- Sonais eferivas para toclas ax dreax; programas de érainees € de estigios, projecas de terceirinagio ¢ sexvigns de comeace center: administragio de RH (RH Total) « contratagin de peolissionais eam alka grau de especializagae (Divisio Manpower Professional).'* Ao contririo, portanto, do fim ou da redugie de relevincia da tea- tia do valor-trabalho, ha uma qualitativa alteragio ¢ ampliagio das formas e mecanismos de extragio do trabalho. intomidtico também o sfagan adotade pela Toyota, na unidade de‘Takacka: Yor kangae, yod shina ("hans pensamentos significam bons produtos"}, finado na bandeira que tremulava na entrada da unidade Jain Bernardo, Democracia satelindria pronia ¢ pedtiea ala empresa saberans (Sle Paula, Cortex, 2004), p. 105-7. " Manpower, “Solugiesem Recursos Humanos para sua empeess”, Follveto de publi- cidade da empress. 20 GO caracol e sua concer produtiva’®, Mas é bom lembrar que esses projetos de “envalvimento’, flexibilizagio etc. acabam também por encontrar resisténcia dos traba- thadores, conforme se viu no protesto de 1300 trabalhadores arganiza- do pelos sindicatos que cram contrarios & implantagio do sistema de autocontratagio™, Tem-se, entio, como resultante, que a prevaléncia da rauio instru- mental assume a forma de uma enorme irracionalidade societal. O que colaca um desafio fundamental ¢ candente: a desconstrugia desse idedrio e dessa pragmatica ¢ condigia para que a humanidade — e, portanto, também o trabalho — possam ser verdadeiramente dotados de sentido, obstando o destrutivo proceso de desantropomarfizagia do trabalho em curse desde a inicio da Revalugao Industeial ¢ sua 1é- gica maquinica. Ao contritio da produgio dirigida prioritariamente para a acumu- lagio privada do excedente. © objetivo dese novo empreendimenta societal éxoray a arividaele humana laberariva direcionada para a pro- dusao de bens socialmente necessdrins, em que o valor de uso inteinse- co dos produtos nao mais se subordine (mas de fate climine) os imperatives do valor de troca presentes no universo das mercadorias. Desse mado, o ebjetive da economia pederd efetivamente recupe- rar seu sentido original de economizar (do latim oecomomia), cuja fina- lidade é utilizar racionalmente os recursos oriundas da matureza ¢ da sociedade, © que nos obriga a (relconceber o trabalhe come senda dotado de autonomia, autocontrole ¢ autocomanda, cuja fruigo seja pautada pelo vempe disponivel para a sociedade, ae contrarian da heteronomia, da sujeigan ¢ da alienagia regidas pelo tempo excedente valtado para a acumulugio privada do excedente, tipica da sociedade fetichizada em que vivernas, Sabemes, como lembrou Marx, que ‘em geral, © trabulhador © seus meios de produsio permaneciam indissoluvelmenre unides, como.o carscol ¢ a concha, ¢asrim faltava a bac principal da manufatura, a scparayaa do trabalhador de scus meios de produgio © a.conversdo destes meios em capital,!” * CE Brian Bremner ¢ Chester Dawson, Absinen Week (Nova Jersey), edigio cm pormupués, 18/11/2003, CE Japare Prevs Weekly (Tisquio), n. 2371, 20/02/2004, p. 13 Karl Mare, O capital (2 e., Rio de Janeiro, Civilieagao Brasileira, 1971}, «Lp. 411 Apresentagao 21 Recuperar, em bases totalmente novas, a wnidade insepardvel entre @ canacof ¢ sua concha, cis odesaho mais candente da sociedade moderna tee Complerando dex anos da publicagio de Adnns ao trabalho? ¢ quase seis anos de Os sentidos do srabalba, Q eanacol e sua concha, que agora apresentames ao leitor, trag a marca da continuidade cemitica em rela- gio aos trabalhos anteriores. Com uma diferenga clara: os dois livros acima referidos foram. resultado de uma déeada de pesquisa tedrica ¢ investigagio cientifica que se iniciou em 1992, por meie da pesquisa Para ance vaio munde de mabalbo, que vimos desenvolvendo desde entio com a apoio de CNP O caracol ¢ sua conche: encains sobre a nova marfologia do teabalha & uma coletinea absolutamente despretensiosa, desdobramento livre de algumas das teses apresentadas anteriormente (especialmente em Or senridas da rrabalbo}, cujos ensaios procuram téo-somente atualizar as teses centrais acerca da cenralidade do trabalho presenves nos livros que Ihe antecederam.

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