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SE EU FOSSE EU

Por Clarice Lispector

Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-
me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes
dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do
papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir.
E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo
de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser
levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que
de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu
fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia
teria mudado. Como? Não sei.
Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que
por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e
confiaria o futuro ao futuro.
“Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada
nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas
loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei,
experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a
não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima
que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando por que me
senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande
demais.
A OPINIÃO DE UM ANALISTA SOBRE MIM
Por Clarice Lispector

Por coincidência, tive e tenho amigas que são ou foram analisadas pelo Dr. Lourival
Coimbra, psicanalista do grupo de Melanie Klein. As conhecidas e amigas me contaram que
falaram de mim a ele. E imagino como Dr. Lourival deve estar farto de ouvir meu nome. Há
dias uma das analisadas por ele esteve aqui em casa e resolvi, como compensação ao desgaste
dos ouvidos do analista sobre mim, enviar-lhe um livro meu de contos, Laços de família. Na
dedicatória pedi desculpas pela minha letra que não está boa desde que minha mão direita
sofreu o incêndio.
Dias depois a moça apareceu em casa para tomar um café comigo e perguntei-lhe se
havia entregue o livro a Dr. Lourival. Ela disse que sim e que, ao ler a dedicatória, ele fizera
um comentário. Fiquei curiosa, quis saber o que ele dissera. E fiquei sabendo que, ao ler a
dedicatória, Dr. Lourival tinha dito: “Clarice dá tanto aos outros, e no entanto pede licença
para existir.”
Sim, Dr. Lourival. Peço humildemente para existir, imploro humildemente uma alegria,
uma ação de graça, peço que me permitam viver com menos sofrimento, peço para não ser
experimentada pelas experiências ásperas, peço a homens e mulheres que me considerem um
ser humano digno de algum amor e de algum respeito. Peço a bênção da vida.

Ambos os contos estão presentes no livro: Aprendendo a Viver.

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