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PARTE UM

capítulo um
ESTOU CUMPRINDO O QUINTO ano de prisão perpétua por ter matado meu
próprio filho.
Aviso de spoiler: não fui eu.
Meu filho Matthew tinha 3 anos quando foi brutalmente assassinado.
Era a melhor coisa da minha vida, e de repente ele se foi, e estou em prisão
perpétua desde então. Não é uma metáfora. Ou, melhor dizendo, não é só
uma metáfora. Seria uma prisão perpétua de qualquer jeito, mesmo se eu
não tivesse sido preso, julgado e condenado.
Mas, no meu caso, neste caso, a prisão perpétua é tanto uma metáfora
quanto um fato literal.
Você talvez esteja se perguntando: como eu poderia ser inocente?
Mas sou.
Então quer dizer que não resisti nem declarei minha inocência com todas
as forças do meu ser?
Não, não muito. Acho que a questão remonta à prisão metafórica. Eu não
ligava tanto assim se fosse considerado culpado. Eu sei que parece chocante,
mas não é. Meu filho morreu. O lead é esse. É o lead, a manchete e a chamada.
Meu filho está morto e enterrado, e esse fato não teria mudado se a chefe dos
jurados tivesse me declarado culpado ou inocente. Culpado ou inocente, eu
havia deixado meu filho na mão. Enfim. Matthew não estaria menos morto
se o júri tivesse conseguido enxergar a verdade e me libertado. A função de
um pai é proteger o filho. Essa é a prioridade máxima. Então, mesmo que
eu não tenha usado a arma que transformou a linda existência do meu filho
na massa disforme que encontrei naquela noite horrível cinco anos atrás,
também não a impedi. Não cumpri meu papel de pai. Não o protegi.
Não importa o culpado do assassinato propriamente dito, a culpa é minha,
e portanto é uma pena que devo cumprir.
Sendo assim, praticamente nem reagi quando a chefe dos jurados leu o
veredito. Observadores concluíram, claro, que devo ser sociopata, psicopata,
louco ou perturbado. Eu não era capaz de sentir, alegou a mídia. Não tinha o
gene da empatia, era desprovido de remorso, tinha olhos mortos, qualquer
que fosse a terminologia que me deixasse no campo dos assassinos. Nada
disso era verdade. Eu só não sabia de que adiantava. Tinha sido um golpe

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devastador encontrar Matthew naquela noite, com seu pijama de herói da
Marvel. Aquele golpe me deixou prostrado no chão, e não consegui me
levantar. Nem na época. Nem agora. Nem nunca mais.
A prisão perpétua metafórica tinha começado.
Se você acha que esta vai ser a história de um homem injustiçado que
prova sua inocência, não é. Porque essa não seria uma história muito boa.
No fim, não faria diferença. Sair desta cela infernal não levaria à redenção.
Meu filho continuaria morto.
A redenção não é possível, neste caso.
Ou pelo menos era isso que eu pensava até o momento em que o guarda,
um sujeito excêntrico que chamamos de Curly, vem até minha cela e fala:
– Visita.
Não me mexo, porque acho que ele não está falando comigo. Faz quase
cinco anos que estou aqui, e nunca recebi visita nesse tempo todo. No
primeiro ano, meu pai tentou vir me ver. Tia Sophie e uns poucos amigos
próximos e parentes que acreditavam que eu fosse inocente, ou pelo menos
que não fosse culpado de verdade, também tentaram. Não deixei ninguém
entrar. Cheryl, a mãe de Matthew, minha esposa na época (agora ela é,
como seria de esperar, minha ex), também tentou, ainda que sem muito
ânimo, mas eu não quis recebê-la. Deixei claro: nenhuma visita. Não era
porque eu estava remoendo minhas angústias ou qualquer outra coisa.
Visitas não ajudam nem o visitante nem o visitado. Eu não via e ainda não
vejo propósito nisso.
Passou um ano. Passaram dois. Aí todo mundo parou de tentar visitar. Não
que tivesse alguém, exceto talvez Adam, muito ansioso para fazer a jornada
até o Maine, mas já deu para entender. Agora, pela primeira vez em muito
tempo, alguém veio aqui à Briggs Penitentiary me visitar.
– Burroughs! – esbraveja Curly. – Anda, vem. Visita.
Faço uma careta.
– Quem é?
– Eu tenho cara de agenda de secretária?
– Boa.
– O quê?
– Essa da agenda de secretária. Foi muito engraçada.
– Tá de gracinha comigo?
– Não tenho interesse em visitas – digo a ele. – Por favor, mande a pessoa
embora.

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Curly suspira.
– Burroughs.
– Quê?
– Levanta logo. Você não preencheu o formulário.
– Que formulário?
– Quem não quer receber visita tem que preencher um formulário.
– Achei que as pessoas tinham que estar na minha lista de convidados.
– Lista de convidados – repetiu Curly, balançando a cabeça. – Você acha
que isso aqui é uma boate?
– Boates têm lista de convidados? – retruco. – Bem, eu preenchi, sim,
alguma coisa sobre não querer receber visitas.
– Quando você chegou aqui.
– Isso.
Curly dá outro suspiro.
– Tem que renovar todo ano.
– O quê?
– Você preencheu alguma coisa este ano dizendo que não queria visitas?
– Não.
Curly abre os braços.
– Então pronto. Agora levanta.
– Você não pode mandar a visita embora?
– Não, Burroughs, não posso, e vou te explicar por quê. Isso me daria mais
trabalho do que arrastar a sua bunda até a área de visitação. É o seguinte, se
eu fizer isso, vou ter que explicar por que você não está lá, e talvez a pessoa
que veio te visitar me faça perguntas, e aí provavelmente eu também vou ter
que preencher um formulário e vou ter que ir pra lá e pra cá e, olha, eu não
preciso dessa dor de cabeça, você não precisa dessa dor de cabeça. Então o
que vai acontecer é o seguinte: você vai vir comigo agora, e aí pode ficar lá
sentado e não falar nada, pra mim tanto faz, e depois você pode preencher
a papelada certa e a gente não precisa passar por isso de novo. Sacou?
Já estou aqui há tempo suficiente para saber que resistência demais não
é apenas inútil, mas também prejudicial. Além disso, verdade seja dita,
estou curioso.
– Saquei – respondo.
– Beleza. Vamos.
Já sei como é, claro. Deixo Curly colocar as algemas, seguidas pela corrente
na barriga para que minhas mãos fiquem presas à cintura. Ele dispensa as

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correntes das pernas, principalmente porque elas são um saco para colocar
e tirar. A caminhada é relativamente longa do Seguro (nome do pavilhão
para presos ameaçados, para quem não conhece) da Briggs Penitentiary até
a área de visitas. Somos dezoito no Seguro: sete molestadores de crianças,
quatro estupradores, dois assassinos em série canibais, dois assassinos em
série “normais”, dois assassinos de policiais e, claro, um maníaco filicida (este
que vos fala). Um grupo e tanto.
Curly faz cara feia para mim, o que é incomum. A maioria dos guardas é
gente entediada que posa de policial e/ou marombeiros que olham para nós,
detentos, com apatia estarrecedora. Quero perguntar para ele o que foi, mas
sei quando é hora de ficar quieto. A gente aprende isso aqui. Sinto as pernas
tremerem um pouco enquanto ando. Estou estranhamente nervoso. A verdade
é que me acostumei a estar aqui. É horrível (pior do que você imagina), mas
mesmo assim me habituei a este tipo específico de horrível. Essa visita, quem
quer que seja depois de tanto tempo, veio me dar alguma notícia avassaladora.
Não gosto disso.
Minha mente pula para o sangue daquela noite. Eu penso muito no
sangue. Sonho, também. Não sei com que frequência. No começo, era toda
noite. Agora eu diria que está mais para uma vez por semana, mas não fico
contando. O tempo não passa de um jeito normal na cadeia. Ele para e reco-
meça e engasga e ziguezagueia. Eu me lembro de acordar piscando na cama
que dividia com Cheryl, minha esposa, naquela noite. Não olhei o relógio,
mas, segundo os autos do processo, eram quatro da madrugada. A casa
estava em silêncio, quieta, e, mesmo assim, de alguma forma, eu sentia que
havia algo errado. Ou talvez seja nisso que acredito – erroneamente – hoje.
A memória costuma ser nossa contadora de histórias mais criativa. Então
talvez, provavelmente, eu não tenha “sentido” nada. Já não sei mais. Demorei
para me levantar. Fiquei na cama por alguns minutos, com o cérebro preso
naquele limiar estranho entre o sono e a vigília, flutuando o tempo todo até
a superfície da consciência.
A certa altura, enfim me sentei. Comecei a andar pelo corredor até o
quarto de Matthew.
E foi aí que vi o sangue.
Era mais vermelho do que eu imaginava – fresco, um vermelho vivo de
giz de cera, chocante e debochado como batom de palhaço no lençol branco.
Fiquei em pânico. Chamei o nome de Matthew. Corri aos tropeços até
o quarto dele, esbarrei com força no batente da porta. Chamei o nome

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dele de novo. Nenhuma resposta. Entrei correndo no quarto e encontrei…
algo irreconhecível.
Disseram que comecei a gritar.
Foi assim que a polícia me achou. Ainda gritando. Os gritos se tornaram
cacos de vidro percorrendo meu corpo todo. Acho que parei de gritar em
algum momento. Também não me lembro disso. Talvez minhas cordas vocais
tenham se rompido, sei lá. Mas o eco daqueles gritos nunca me abandonou.
Aqueles cacos ainda rasgam e dilaceram e destroem.
– Anda logo, Burroughs – diz Curly. – Ela está esperando.
Ela.
Por um instante imagino que seja Cheryl, e meu coração acelera um pouco.
Mas não, ela não vai vir, e eu nem quero isso. Fomos casados por oito anos.
Felizes, eu achava, na maior parte do tempo. Não estava tão bom no final.
Novos estresses haviam formado rachaduras, e as rachaduras estavam se
transformando em fissuras. Cheryl e eu teríamos conseguido ficar juntos?
Não sei. Às vezes acho que Matthew teria feito a gente se esforçar mais, teria
feito a gente ficar junto, mas isso é uma fantasia.
Pouco depois da minha condenação, assinei os documentos do divórcio.
Nunca mais nos falamos. Foi mais por escolha minha. Então é só isso que
eu sei da vida dela. Não faço a menor ideia de onde Cheryl está agora, se
ainda está mal e de luto ou se conseguiu recomeçar a vida. Acho que é me-
lhor não saber.
Por que não prestei mais atenção em Matthew naquela noite?
Não estou dizendo que fui um pai ruim. Não acho que tenha sido. Mas,
naquela noite, eu não estava a fim, só isso. Crianças de 3 anos às vezes são
difíceis. E chatas. Todo mundo sabe. Os pais tentam fingir que cada instante
com os filhos é alegria pura. Não é. Ou pelo menos era o que eu achava na-
quela noite. Não li uma historinha para Matthew dormir porque eu estava
sem saco. Horrível, né? Só mandei meu filho ir dormir porque eu estava
distraído com minhas próprias questões e inseguranças insignificantes.
Idiota. Muito idiota. Todos somos espetacularmente idiotas quando as coisas
estão indo bem na vida.
Cheryl, que tinha acabado de terminar a residência em cirurgia geral,
estava de plantão noturno na área de transplantes do Boston General.
Eu estava sozinho com Matthew. Comecei a beber. Não sou de beber muito
e não tenho boa tolerância para álcool, mas, nos últimos meses, com a
tensão em relação a Cheryl e nosso casamento, eu tinha encontrado nisso

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um pouco de, se não consolação, anestesia. Então me servi, e acho que os
copos me subiram à cabeça rápido e com força. Bebi demais e apaguei,
então, em vez de ficar de olho no meu filho, em vez de proteger meu filho,
em vez de conferir se as portas estavam trancadas (não estavam) ou ficar
atento a qualquer intruso ou, ora, em vez de ouvir uma criança gritar de
medo e/ou agonia, eu estava, como o advogado da acusação debochou no
julgamento, “só no goró”.
Não me lembro de mais nada até, claro, aquele cheiro.
Eu sei o que você está pensando: talvez ele (ou seja, “eu”) tenha matado
mesmo. Afinal, as provas contra mim eram bem fortes. Eu entendo. Às
vezes também fico pensando nisso. Só alguém muito cego ou delirante não
consideraria essa possibilidade, então vou contar uma história rápida que
acho que tem a ver com isso: uma vez, chutei Cheryl durante o sono. Eu
estava tendo um pesadelo em que um guaxinim gigantesco atacava nosso
cachorrinho Laszlo, então, no pânico, chutei o guaxinim com toda a força e
acabei atingindo a canela de Cheryl. Foi estranhamente engraçado, em re-
trospecto, ver Cheryl tentando manter a seriedade enquanto eu me defendia
(Você queria que eu deixasse o Laszlo ser comido por um guaxinim?), mas
minha esposa cirurgiã maravilhosa, uma mulher que amava Laszlo e todos
os cachorros, bufou mesmo assim.
– Talvez – disse Cheryl para mim –, no seu inconsciente, você quisesse
me machucar.
Ela falou isso sorrindo, então não levei a sério. Mas talvez fosse verdade.
Esquecemos o assunto na mesma hora e tivemos um ótimo dia juntos. Mas
agora eu penso muito nisso. Eu também estava dormindo e sonhando na-
quela noite. Um chute não é assassinato, mas quem sabe? A arma do crime
foi um taco de beisebol. A Sra. Winslow, que morava havia quarenta anos
na casa atrás do nosso terreno, me viu enterrá-lo. Essa foi a cereja do bolo,
mas ponderei sobre isso, sobre eu ter sido idiota a ponto de enterrar aquilo
tão perto da cena do crime, cheio de impressões digitais minhas. Eu pondero
sobre muitas coisas assim. Por exemplo, eu já tinha pegado no sono depois
de beber duas vezes antes – quem nunca? –, mas jamais daquele jeito. Talvez
eu tenha sido dopado, mas, quando me tornei um suspeito viável, já era
tarde demais para fazer um teste. Os policiais, muitos dos quais idolatravam
meu pai, foram solidários no começo. Investigaram algumas pessoas que ele
havia prendido, mas isso nunca fez muito sentido nem para mim. Meu pai
tinha inimigos, claro, mas foi há muito tempo. Por que algum deles ia matar

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um menino de 3 anos para se vingar desse jeito? Tampouco havia sinais de
agressão sexual ou qualquer outra motivação, então, no fim das contas, só
havia um único suspeito realmente viável.
Eu.
Então talvez tenha acontecido algo parecido com meu sonho com o gua-
xinim. Não é impossível. Tom Florio, meu advogado, queria que eu usasse
um argumento desses. Minha família, ou pelo menos parte dela, também
achava que eu deveria seguir esse caminho. Defesa de semi-imputabilidade
ou coisa que o valha. Eu tinha histórico de sonambulismo e algumas ques-
tões que poderiam ser descritas, forçando um pouco a barra, como de saúde
mental. Falaram que eu podia usar isso.
Mas, não, eu não ia confessar porque, apesar desses argumentos, eu não
era culpado. Não matei meu filho. Eu sei que não o matei. Eu sei. E, sim, eu
sei que todo criminoso fala isso.
Curly e eu dobramos a última curva. A Briggs Penitentiary foi construída
no estilo antigo. Tudo é de um cinza lavado, cor de rua desbotada depois de
uma tempestade. Eu saí de uma casa de estilo colonial com três quartos, dois
banheiros e um lavabo, pintada de amarelo-sol com janelas verdes, decorada
com tons terrosos e antiguidades de pinho, bem situada em um terreno de
três mil metros quadrados em uma rua sem saída, para isso. Não importa. O
entorno é irrelevante. A gente aprende que o exterior é temporário, ilusório
e, portanto, insignificante.
Depois de um barulho de campainha, Curly abre a porta. Muitas cadeias
têm áreas de visita mais modernas. Detentos de menor periculosidade po-
dem se sentar a uma mesa com sua ou suas visitas sem nenhuma divisória
ou barreira. Eu não posso. Aqui na Briggs ainda temos o acrílico à prova de
balas. Eu me sento em uma banqueta de metal presa no chão. A corrente
na minha barriga é afrouxada para que eu possa pegar o telefone. É assim
que visitantes da prisão de segurança supermáxima se comunicam – por
telefone e através do acrílico.
A visitante não é Cheryl, minha ex, mas parece Cheryl.
É Rachel, irmã dela.
Rachel está sentada do outro lado do acrílico e vejo seus olhos se arrega-
larem quando me vê. Quase sorrio. Eu, seu ex-querido cunhado, o homem
com aquele senso de humor peculiar e sorriso despretensioso, mudei bastante
nos últimos cinco anos. Fico me perguntando qual é a primeira coisa em
que ela repara. A perda de peso, talvez. Ou, mais provavelmente, os ossos da

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face fraturados que ainda não cicatrizaram direito. Pode ser a pele pálida,
os ombros antes atléticos e agora encurvados, o cabelo grisalho rareando.
Eu me sento e olho para ela através do acrílico. Pego o fone e gesticulo para
que ela faça o mesmo. Quando Rachel leva o fone até o ouvido, eu pergunto:
– O que está fazendo aqui?
Rachel quase sorri. Sempre fomos próximos, eu e Rachel. Eu gostava de
estar com ela. Ela gostava de estar comigo.
– Direto ao ponto.
– Você veio jogar conversa fora, Rachel?
Qualquer sombra de sorriso desaparece.
– Não – responde ela.
Espero. Rachel parece envelhecida, mas ainda é bonita. Seu cabelo é do
mesmo tom louro-claro de Cheryl, seus olhos são do mesmo verde-escuro.
Eu me ajeito no banco e olho para ela de viés, porque é doloroso encará-la.
Rachel reprime as lágrimas e balança a cabeça.
– Isso é loucura.
Ela baixa os olhos e, por um instante, vejo a menina de 18 anos que eu
conheci quando Cheryl me levou pela primeira vez à casa dela em Nova
Jersey durante nosso penúltimo ano na Amherst College. Os pais de Cheryl
e Rachel não foram muito com a minha cara. Eu era um pouco baixa renda
demais para eles, sendo filho de pai policial criado em bairro pobre. Rachel,
por sua vez, gostou de mim logo de cara, e com o tempo passei a amá-la
como o mais próximo que eu teria de uma irmã caçula. Eu gostava dela.
Queria protegê-la. Um ano depois, dirigi até a casa dela e a ajudei a levar
suas coisas para a Lemhall University, onde ela fez a graduação, e depois
para Columbia, onde se especializou em Jornalismo.
– Quanto tempo – diz Rachel.
Faço que sim. Quero que ela vá embora. Olhar para ela dói. Ela não fala
nada. Finalmente eu digo algo, porque parece que Rachel precisa de um
empurrão, então não consigo evitar.
– Como está Sam? – pergunto.
– Bem. Ele trabalha na Merton Pharmaceuticals agora. Vendas. Virou
gerente, viaja muito. – Ela dá de ombros e acrescenta: – A gente se divorciou.
– Ah. Lamento.
Ela faz um gesto de indiferença. Eu não lamento tanto assim. Nunca achei
que Sam fosse digno dela, mas eu pensava isso da maioria de seus namorados.
– Você ainda escreve para o Globe? – pergunto.

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– Não – responde ela com um tom que dá o assunto por encerrado.
Ficamos sentados em silêncio por mais alguns segundos. Depois eu tento
de novo:
– Você veio por causa da Cheryl?
– Não. Não exatamente.
Engulo em seco.
– Como ela está?
Rachel começa a torcer as mãos. Olha para todo canto, menos para mim.
– Ela se casou de novo.
As palavras me acertam como um soco no estômago, mas eu nem estre-
meço. É por isso, penso. É por isso que eu não quero visitas.
– Ela nunca culpou você, sabe? Ninguém culpou.
– Rachel…
– O quê?
– O que você veio fazer aqui?
Ficamos em silêncio de novo. Atrás dela, vejo outro guarda, um que eu
não conheço, encarando a gente. Tem outros três detentos aqui, agora. Não
conheço nenhum. A Briggs é um lugar grande e eu tento ficar na minha.
Sinto a tentação de me levantar e ir embora, mas Rachel finalmente fala:
– Sam tem um amigo – diz ela.
Espero.
– Não é bem um amigo. Um colega de trabalho. É da área de marketing.
Gerente também. Na Merton Pharmaceuticals. O nome dele é Tom Longley.
Tem esposa e dois filhos. Boa família. A gente se encontrava de vez em
quando. Churrasco da firma, esse tipo de coisa. A esposa dele se chama
Irene. Eu gosto dela. Muito engraçada. – Rachel para e balança a cabeça.
– Não estou contando direito.
– Imagina – digo. – A história até aqui está ótima.
Rachel sorri de verdade do meu sarcasmo.
– Um vestígio do antigo David – diz ela.
Nos calamos de novo.
Quando Rachel volta a falar, as palavras saem mais lentas, mais cuida-
dosas:
– A Merton promoveu uma viagem para os funcionários uns meses atrás,
para um parque de diversões em Springfield. Six Flags, acho que o nome era
esse. Os Longleys foram, levaram os dois meninos. Irene e eu continuamos
amigas, então ela me chamou para almoçar outro dia. Ela falou do passeio…

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meio em tom de fofoca, porque acho que Sam levou a namorada nova. Como
se eu desse a mínima. Mas isso não importa.
Engulo o comentário sarcástico e olho para ela.
– E aí Irene me mostrou um monte de fotos.
Rachel para nesse ponto. Não faço a menor ideia do que ela pretende,
mas quase dá para ouvir uma trilha sonora de suspense tocando na minha
cabeça. Rachel pega um envelope pardo. Tamanho 10 por 25, eu acho. Ela
o coloca na bancada diante de si. Olha para ele por uma fração de segundo
a mais do que deveria, como se estivesse decidindo o próximo passo. Por
fim, de repente ela enfia os dedos no envelope, puxa algo e apoia no acrílico.
É, conforme anunciado, uma foto.
Não sei o que dizer a respeito do que vejo. A fotografia parece mesmo ter
sido tirada em um parque de diversões. Uma mulher (será que é a Irene Muito
Engraçada?) olha para a câmera com um sorriso tímido. Está segurando dois
meninos, provavelmente os Longleys, um em cada lado do quadril, e nenhum
olha para a câmera. Tem alguém fantasiado de Pernalonga à direita e alguém
de Batman à esquerda. Irene parece irritada – mas de um jeito divertido.
Quase dá para imaginar a cena. O bom e velho Tom do Marketing da Indús-
tria Farmacêutica insiste, animado, que Irene Muito Engraçada faça pose,
Irene Muito Engraçada não está muito a fim mas colabora, os dois meninos
não estão nem aí, a gente sabe como é. Tem uma montanha-russa vermelha
gigantesca ao fundo. O sol ilumina o rosto da família Longley, o que explica
por que eles estão semicerrando os olhos e desviando um pouco o olhar.
Rachel me observa.
Olho para ela. Ela continua apoiando a foto no acrílico.
– Olhe com atenção, David.
Eu a encaro por mais um ou dois segundos e depois deixo meus olhos
voltarem à fotografia. Dessa vez eu vejo na mesma hora. Uma garra de aço
se afunda no meu peito e aperta meu coração. Não consigo respirar.
Tem um menino.
Está no fundo, na borda direita do quadro, quase fora da foto. O rosto é
um perfil perfeito, como se estivesse gravado em uma moeda. O menino
parece ter uns 8 anos. Alguém, talvez um homem, está segurando a mão dele.
O menino está de cabeça erguida, olhando provavelmente para as costas do
homem, que está fora de quadro.
Sinto as lágrimas abrirem caminho pelos meus olhos e tentarem estender
dedos hesitantes para fora. Acaricio a imagem do menino pelo acrílico. É

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impossível, claro. Um homem desesperado enxerga o que quer ver, e con-
venhamos: nem quem já andou pelo deserto vendo miragens, afligido pela
sede e pela insolação, sentiu um desespero tão grande. Matthew ainda não
tinha completado 3 anos quando foi assassinado. Ninguém, nem sequer um
pai amoroso, seria capaz de adivinhar qual seria sua aparência cerca de cinco
anos depois. Não com certeza. Existe uma semelhança, só isso. O menino
parece Matthew. Parece. Tem uma semelhança. Mais nada. Semelhança.
Um soluço rasga minha garganta. Enfio o punho na boca e mordo. Levo
alguns segundos para conseguir falar. Quando eu falo, minhas palavras
são simples:
– É o Matthew.

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Até o fim
A grande ilusão
Não fale com estranhos
Que falta você me faz
O inocente
Fique comigo
Desaparecido para sempre
Cilada
Confie em mim
Seis anos depois
Não conte a ninguém
Apenas um olhar
Não há segunda chance
Custe o que custar
O menino do bosque
Win
Silêncio na floresta
Identidades cruzadas
Eu vou te encontrar

coleção myron bolitar


Quebra de confiança
Jogada mortal
Sem deixar rastros
O preço da vitória
Um passo em falso
Detalhe final
O medo mais profundo
A promessa
Quando ela se foi
Alta tensão
Volta para casa

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