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o SABER HISTORICO ISTORICO


NA SALA DE AULA DE AULA

Adriana Mortara Almeida


j (ClI'J;.) -
Cumllo de Mello Vasconcellos
Uma tarefa complexa envolve o cotidiano dos
professores ao enfrentarem um público ••tini - Elias Thomé Saliba - Kátia Abud
estudantil com dificuldades para estabelecer Muriu Auxiliadora Schmidt
relações com os tempos históricos. Vivenciando onuco .Janotti - Ricardo Oriá
intensamente o presente (marcado pelo ritmo
acelerado da tecnologial e confusos diante de
questões que Ihes são apresentadas, os alunos
necessitam de professores preparados para lidar
com as novas linguagens no ensino de História
e as novas propostas curriculares que vêm
sendo discutidas ultimamente.
Esta coletânea, organizada por Circe
Bittencourt, da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo, estimula a discussão
e a reflexão dos professores preocupados
com a formulação do ensino de História,
que envolve a redefinição dos conteúdos
e dos métodos de ensino.
Uma obra fundamental para professores e
estudantes de História e para todos quantos se
interessem pelos rumos da Educação no Brasil.

I58N 85-7244-071-2

111111111111111111111111
9"788572 440714

PROMOVENDO A CIRCULAÇÃO DO SABER


Copyright © dos autores
SUMÁRIO
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORACONTEXTO(Editora Pinsky Ltda.)

Preparação: Rase Zuanetti


Diagramação: Niulze Aparecida Rosa
Revisão: Sandra Brasil
Projeto gráfico de capa: Jaime Pinsky

Apresentação 7

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CtP) I - Propostas curriculares


(Câmara Brasileira do Livro. sr, Brasil)

o saber histórico na sala de aula I Circe Bittencourt (org.). 8. ed. -


Capitalismo e cidadania nas atuais propostas curriculares de
São Paulo: Contexto, 2003. - (Repensando o Ensino). História - Circe Bittencourt .. .._ _ . 11
Vários autores Currículos de História e políticas públicas: os programas de'
Bibliografia
ISBN 85-7244-071-2 História do Brasil na escola secundária - Kâtia Abud _.._ 28
1. História: Estudo e ensino I. Biuencourt, Circe. 11.Série História, política e ensino - Maria de Lourdes Monaco Janotti 42
A formação do professor de História e o cotidiano da sala de
97-2603 CDD- 907
aula - Maria Auxiliadora Schmidt . 54
fndice para catálogo sistemático:
J. História: Estudo e ensino 907
11 - Linguagem e ensino
Livros didáticos entre textos e imagens - Circe Bittencourt 69
História e dialogismo - Antonia Terra . 91
EDtTORACONTEXTO
Diretor editorial: Jaime Pinsky Por que visitar museus - Adriana Mortara Almeida e Camilo
Rua Acopiara, 199 - Alto da Lapa de Mello Vasconcellos . 104
05083-110 - São Paulo - Sp
PABX: (J I) 3832 5838 Experiências e representações sociais: reflexões sobre o uso e
contexto@editoracontexto.com.br o consumo das imagens - Elias Thomé Saliba . 117
www.editoracontexto.com.br
Memória e ensino de História - Ricardo Oriâ . 128
A televisão como documento - Marcos Napolitano . 149
2003
História e ensino: o tema do sistema de fábrica visto através
de filmes - Carlos Alberto Vesentini . 163
Proibida a reprodução total ou parcial.
Os infratores serão processados na forma da lei.
Mudanças foram sentidas e devemos nos congratular com todos os
que, individual ou coletivamente, contribuíram e têm contribuído para a
A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE HISTÓRIA melhoria do ensino de História em todos os níveis. No entanto, no que
E O COTIDIANO DA SALA DE AULA se refere à prática cotidiana do professor de Io e 2l! graus, isto é, àquela
instância denominada sala de aula, de um modo geral as mudanças ain-
da não são satisfatórias.
Um grande conjunto de variáveis pode ser responsabilizado pelo
Maria Auxiliadora Schmidt' relativo insucesso da renovação do ensino de História, destacando-se,
principalmente, o descaso a que vem sendo submetida a educação brasi-
leira por parte das autoridades governamentais. Na verdade, podemos
afirmar que o quadro-negro ainda persiste na educação brasileira, mui-
tas vezes como único recurso na formação do professor e no cotidiano
Seja como fOI; a aula [de História] pode tornar-se um pensamento da sala de aula. E é nesse contexto que podemos falar do significado da
em formação que continua a se criar diante dos alunos, ou antes, formação do professor e do cotidiano da sala de aula, do seu dilacera-
com. os alunos. mento, embate e fazer histórico.
Atividade, adequação - é então o frescor, e não o mofo, o amarelecido
- o cheiro bom do fresco.

Georges Snyders DILACERAMENTOS E EMBATES

Há muito se fala da rudeza do ofício de professor e isto se aplica


com pertinência ao professor de História. A sua formação não se res-
tringe a um curso de História, engloba ainda áreas das Ciências Hu-
Há uma década a relação entre a formação do professor de História manas, como Filosofia, Ciências Sociais etc. Em geral, essa formação
e o cotidiano da sala de aula já era pauta de encontros, congressos e começa e termina no curso de graduação. Formado, o professor de
seminários. Nessas discussões estava presente a necessidade de serem História, como tantos outros, envolve-se com encargos familiares, com
realizadas mudanças, com o objetivo de se superar o ensino tradicional a luta pela sobrevivência e quase sempre não dispõe de tempo e nem
de História. de dinheiro para investir em sua qualificação profissional. Seu coti-
Os debates levaram ao enfrentamento das questões principalmente diano é preenchido com múltiplas tarefas; seu tempo de viver é frag-
em duas vertentes: modernização dos currículos de Iº, 2!1 e 3!1 graus e a mentado, dilacerado pelas preocupações muitas vezes contraditórias
qualificação e atualização de professores de História. Muitos esforços, entre sua profissão, família e progresso cultural.
recursos humanos e financeiros foram e estão sendo dispendidos nesse A imagem do professor de História é geralmente marcada pela
sentido em vários estados do Brasil, por parte de Secretarias de Educa- ambigüidade. Ora é visto como sacerdote, ora como um profissional da
ção, Instituições de Ensino Superior e de 1!1 e 2!1 graus. ciência, parteiro da nação, da revolução, militante, porta-voz do verda-
deiro passado ou apanhador de diferenças, de indeterminados (PINSKY,
NADAI, MICELI). Sua identidade oscila entre a do professor difusor e
* Professoraassistente" da Universidade Federal do Paraná, Departamento
transmissor de conhecimentos e a do produtor de saberes e fazeres,
de Métodos e Técnicas da Educação da disciplina Metodologia e Prática de
Ensino de História. Doutoranda em História. sabedor de que "ensinar é, antes de mais nada, fabricar artesanalmente

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os saberes, tornando-os ensináveis, exercitáveis e possíveis de avaliação é basicamente diferente das relações puramente afetivas, das outras
no quadro de uma turma, de um ano, de um horário, de um sistema de relações afetivas: ela comporta uma dose igual de apego ou mesmo de
admiração, certo modo de enraizar na pessoa do mestre, de acender
comunicação e trabalho (SOARES).
ao seu contato - e desprendimento, com algo de estrito que pode ir até
Espera-se que ele seja o promotor da união entre a competência a frieza, já que se trata, em todos os sentidos do termo, de progredir
acadêmica (domínio dos saberes) e a competência pedagógica (domí- numa 'disciplina' e, portanto, de endossar exigências rudes; por outro
nio da transmissão do saber), aliando competência, convicções e ex- lado, a relação não é, não deve resvalar para o dueto: ela é, por essên-
periências de vida (SOARES). A sua autoridade residiria também na cia, plural. Nesta relação, o professor fornece a matéria para raciocí-
nios, ensina a raciocinar, mas acima de tudo, ensina que é possível
capacidade de estabelecer uma espécie de corriunicação individual com
raciocinar. (SNYDERS)
o seu aluno, levando-o a ter intimidade com um certo passado ou, quem
sabe, com um determinado presente. O professor de História pode ensinar o aluno a adquirir as ferra-
Os dilaceramentos atingem também os alunos em sua condição mentas de trabalho necessárias; o saber-fazer, o saber-fazer-bem, lançar
de receptáculos de informações, conteúdos, currículos, livros e mate- os germes do histórico. Ele é o responsável por ensinar o aluno a captar
riais didáticos, na maioria das vezes desinteressantes, que eles lutam e a valorizar a diversidade dos pontos de vista. Ao professor cabe ensinar
por decifrar, entender ... Por isso, ainda se escuta o ressoar de suas o aluno a levantar problemas e a reintegrá-los num conjunto mais vasto
queixas, revoltas, apatias ... e embates. Agente de recusa e de contesta- de outros problemas, procurando transformar, em cada aula de História,
ção, os alunos também manifestam insegurança e temor ante os ins- temas em problemáticas.
trumentos de poder aos quais são submetidos: exames, julgamento dos Ensinar História passa a ser, então, dar condições para que o aluno
colegas e professores. Na relação pedagógica, buscam, na verdade, a possa participar do processo do fazer, do construir a História. O aluno
autonomia, procuram convencer-se por si mesmos da validade do que deve entender que o conhecimento histórico não é adquirido como um
lhes é proposto, desejam pensar por si mesmos, ser reconhecidos, ser dom - comumente ouvimos os alunos afirmarem: "eu não dou para apren-
libertados em sua originalidade na compreensão e no resgate de sua der História" -, nem mesmo como uma mercadoria que se compra bem
história. ou mal.
O professor de História, por sua vez, preocupa-se em exteriorizar A aula de História é o momento em que, ciente do conhecimento
o que sabe, tornar explícito o seu pensamento e a sua emoção. Ao que possui, o professor pode oferecer a seu aluno a apropriação do co-
mesmo tempo, ele vive a insegurança em relação àjuventude dos seus nhecimento histórico existente, através de um esforço e de uma ativida-
próprios alunos e à defasagem entre sua própria formação e o de com a qual ele retome a atividade que edificou esse conhecimento. É
aceleramento contínuo dos novos estudos e pesquisas do conhecimen- também o espaço em que um embate é travado diante do próprio saber:
to histórico. de um lado, a necessidade do professor ser o produtor do saber, de ser
É no espaço da sala de aula que professores e alunos de Histó- partícipe da produção do conhecimento histórico, de contribuir pessoal-
ria travam um embate, em que o professor, novidadeiro do passado mente. De outro lado, a opção de tornar-se apenas um eco do que os
e da memória, sente-se com a possibilidade de guiar e dominar em outros já disseram.
nome do conhecimento. Mas, ao mesmo tempo, ele se sente como A sala de aula não é apenas um espaço onde se transmite informa-
um igual e completamente aberto aos problemas e projetos dos seus ções, mas onde uma relação de interlocutores constroem sentidos. Tra-
alunos. ta-se de um espetáculo impregnado de tensões em que se torna inseparável
Na sala de aula se realiza um espetáculo cheio de vida e de so- o significado da relação teoria e prática, ensino e pesquisa. Na sala de
bressaltos. Cada aula é uma aula. Neste espetáculo, a relação pedagó- aula se evidencia, de forma mais explícita, os dilaceramentos da profis-
gica são de professor e os embates da relação pedagógica.

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o FAZER HISTÓRICO E O FAZER PEDAGÓGICO gem por repetição, por descobrimento, métodos etnográficos ou descri-
tivos, de resolução de problemas, como estudos de caso e métodos de
No que se refere ao fazer histórico e ao fazer pedagógico, um desa- investigação, entre outros.
fio se destaca dos enfrentados pelos educadores na sala de aula, e pode O conceito de método é mais amplo que o de técnica. Esta última é
ser lembrado como necessário à formação do professor de História: rea- instrumento ou ferramenta útil para o processo de ensino-aprendiza-
lizar a transposição didática dos conteúdos e do procedimento histórico gem. Trata-se de um recurso didático, por exemplo, a utilização de um
e também da relação entre as inovações tecnológicas e o ensino de His- filme através do videocassete.
tória. Recursos são os materiais de que se dispõe para a ação didática.
A noção ou o conceito de transposição didática, forjado em sua Entre eles estão os recursos humanos em que se destaca a figura do
origem por um sociólogo e iniciado pelas didáticas das matemáticas professor.
Podem ser denominadas estratégias de ensino todas as formas de
designa o processo de transformação científica, didática social, que se organizar o saber didático através de meios como o trabalho em gru-
afeta os objetos de conhecimento até a sua tradução no campo esco-
lar. Ele permite pensar a transformação de um saber dito científico em
po, aulas expositivas etc.
um saber a ensinar, tal qual aparece nos programas, manuais, na pala- Em relação à transposição didática do procedimento histórico, o
vra do professor, considerados não somente científicos (00') Isto signi- que se procura é algo diferente, ou seja, a realização na sala de aula da
fica, então, um verdadeiro processo de criação e não somente de sim- própria atividade do historiador, a articulação entre elementos consti-
plificação, de redução (00') Nós preferimos empregar um termo que
tutivos do fazer histórico e do fazer pedagógico. Assim, o objetivo é
marca mais fortemente este processo, o de recomposição didática.
(INRP,p.14) fazer com que o conhecimento histórico seja ensinado de tal forma que
dê ao aluno condições de participar do processo do fazer, do construir a
A reflexão acerca da transposição didática ou recomposição didá- História. Que o aluno possa entender que a apropriação do conhecimen-
tica do procedimento histórico implica, ainda, apontar uma certa ordem to é uma atividade em que se retoma ao próprio processo de elaboração
de questões (MARSON). Em primeiro lugar, é preciso diferenciar esta do conhecimento.
prática de outras constitutivas da formação do professor e do cotidiano Esse é um caminho da educação histórica da qual a sala de aula é
da sala de aula. um espaço privilegiado que pode possibilitar a desnaturalização de uma
É normal, por exemplo, que no dia-a-dia do magistério sejam con- visão crítica do passado que está presente em nossas vidas, levando até
sideradas sinônimas palavras como: procedimento histórico, método a conclusão de que "ser historicamente ignorante é simplesmente ser
didático, técnicas, recursos, materiais e estratégias de ensino. Todas elas, ignorante" (DOMINGUES).
é claro, referem-se a um conjunto de ações necessárias às atividades A transposição didática do fazer histórico pressupõe, entre outros
didáticas (SUAREZ). procedimentos, que se trabalhe a compreensão e a explicação histórica.
Etimologicamente a palavra método vem do grego meta (= até) e Podem ser priorizados alguns pontos da explicação histórica para serem
odos (= caminho). Na Didática Geral tem significado os meios coloca- transpostos para a sala de aula e comporem o que se denominaria a
dos em prática racionalmente para a obtenção de um resultado determi- Educação Histórica.
nado. Existem, por exemplo, métodos didáticos como o de Decroly - os Destacam-se a problematização, o ensino e a construção de
centros de interesse - que influenciaram as propostas de observação e conceitos, a análise causal, o contexto temporal e o privilégio da ex-
estudos de meio; os métodos de projetos, de Kilpatrick ou os denomina- ploração do documento histórico. É preciso, no entanto, estar atento
dos de "técnicas de Frenet". Além desses exemplos, podemos fazer re- à especificidade e à originalidade da própria explicação histórica
ferência à aplicação, no ensino de História, de métodos de aprendiza- (VEYNE).

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A problematização histórica, ao ser transposta para o ensino, traz histórica e exigem, por parte do professor, uma grande atenção aos dife-
múltiplas possibilidades e também questionamentos. Pode significar rentes ritmos dos diferentes elementos que compõem um processo his-
desde a capacidade mais simples de construir uma problemática em re- tórico, bem como às complexas inter-relações que interferem na com-
lação a um objeto de estudo, a partir das questões postas por historiado- preensão dos processos de mudança social.
res e alunos; pode também significar simples indagações ao objeto de Ademais, o procedimento histórico comporta a preocupação com
estudo: Por quê?, Como?, Onde?, Quando? a construção, a historicidade dos conceitos e a contextualização temporal.
Na prática da sala de aula, a problemática acerca de um objeto de Entende-se que da mesma forma que o passado está incorporado
estudo pode ser construída a partir das questões colocadas pelos histo- em grande parte aos nossos conceitos, ele também lhes dá um conteúdo
riadores ou das que fazem parte das representações dos alunos, de for- concreto. Assim, todo conceito é criado, datado, tem a sua história. Por-
ma tal que eles encontrem significado no conteúdo que aprendem. Dessa tanto, a construção dos conceitos, como Renascimento, humanismo,
maneira pode-se conseguir dos educandos.uma atitude ativa na cons- totalitarismo, faz parte dos procedimentos no ensino da História. Trata-
trução do saber e na resolução dos problemas de aprendizagem. É pre- se de um trabalho de elaboração de grades conceituais que poderão, de
ciso que se leve em consideração o fato de que a História suscita ques- alguma forma, permitir que o aluno analise, interprete e compare os
tões que ela própria não consegue responder e de que há inúmeras fatos históricos, construindo a sua própria síntese.
interpretações possíveis dos fatos históricos. Nesse caso, a Existe um consenso entre a maioria dos historiadores de que o pas-
problematização é um procedimento fundamental para a educação his- sado não pode ser resgatado tal qual aconteceu, ele só pode ser
tórica. reconstruído em função das questões colocadas pelo presente. Assim,
A análise causal é outro elemento a ser destacado. O ensino tradi- também é consensual que, para reconstruir o passado, o historiador ma-
cional explicava a História a partir da identificação das causas longín- nipula as características essenciais do tempo: a sucessão, a duração, a
quas e imediatas dos fatos históricos. A partir desta visão de ensino e do
1'1 próprio conhecimento histórico, as noções de casualidade levaram, muitas
vezes, a uma perspectiva teleológica e intencional da História. Sem per-
simultaneidade. Além disso, os próprios historiadores têm reconstruído
o passado a partir de periodizações e recortes temporais, bem como ten-
tado apreender a temporal idade própria das várias sociedades.
der de vista a complexidade desta questão, é importante possibilitar aos Assim, dominar, compreender e explicitar os critérios de periodiza-
alunos a compreensão de que os acontecimentos históricos não podem ção histórica, das múltiplas temporalidades das sociedades, tornar efetiva
ser explicados de maneira simplista. É necessário fazê-Ios entender que a aprendizagem da cronologia, são também desafios do procedimento
numerosas relações, de pesos e características diferentes, interferem em histórico em sala de aula.
sua realização. Finalmente, um dos elementos considerados hoje imprescindíveis
Ainda mais, é preciso buscar a explicação na multiplicidade, na ao procedimento histórico em sala de aula é, sem dúvida, o trabalho
plural idade e no encadeamento de causalidades, sem a preocupação com com as fontes ou documentos. A ampliação da noção de documento e as
a determinação finalista de causa-acontecimento-conseqüência. transformações na sua própria concepção atingiram diretamente o tra-
Na história, como em outras Ciências Sociais, a questão da causa- balho pedagógico.
lidade é bastante complexa, por isso "as causas em História, naquilo que Segundo os princípios da História, denominada positivista, e numa
poderíamos chamar em sua acepção tradicional, vêm a ser somente as perspectiva tradicional do ensino, o uso escolar do documento tem ser-
condições necessárias para o aparecimento do efeito (DOMINGUES). vido para destacar, exemplificar, descrever e tornar inteligível o que o
Muito mais que as determinações causais, é importante levar o edu- professor fala.
cando à compreensão das mudanças e permanências, das continuidades A partir das renovações teórico-metodológicas da História, bem
e descontinuidades. Essas noções são fundamentais na sua educação como das novas concepções pedagógicas, o uso escolar do documento

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passou a estimular a observação do aluno, a ajudá-Io a refletir. O aluno A transposição didática das inovações tecnológicas é, atualmente,
tem sido levado a construir o sentido da história e a descobrir os seus uma outra questão fundamental e imprescindível no ensino de História,
conteúdos através dos documentos, porque o conhecimento não deve trazendo conseqüências imediatas e complexas tanto para a formação
ser fornecido exclusivamente pelo professor (LEDUC, ALVAREZ-MARCOS, dos professores como para a prática de sala de aula.
LEPELLEO). Sabemos que a sociedade contemporânea, particularmente a partir
As mudanças têm sido importantes para fazer com que os alunos da segunda metade deste século, produziu um aumento substancial de
passem da análise, observação e descrição do documento para uma fase informações e de tecnologias usadas em sua gestão, podendo-se até afir-
em que este sirva para introduzi-Io no método histórico. Outro aspecto a mar que "estamos a nos afogar em informações, mas sedentos de conhe-
destacar é que tais mudanças podem levar à superação da compreensão cimentos".
do documento como prova do real, para entendê-I o como documento Isso significa que, apesar do crescente aumento da informação e
figurado, como ponto de partida do fazer histórico na sala de aula. Isso dos meios de difundi-Ia e gestioná-Ia, ocorre paralelamente um aumen-
pode ajudar o aluno a desenvolver o espírito crítico, reduzir a interven- to da distância entre os que sabem e os que não sabem articulá-Ias, pensá-
ção do professor, e diminuir a distância entre a história que se ensina e a Ias, refleti-Ias.
história que se escreve. Da mesma forma, constata-se a presença, direta ou indiretamente,
Importa ainda diferenciar aquelas fontes ou documentos elabora- na escola e na sala de aula das novas tecnologias de informação - desde
dos com a finalidade de transmitir os conteúdos do saber disciplinar, a imprensa, televisão, vídeo etc. até o computador, que pode sintetizar
como os textos e os filmes didáticos, dos documentos propriamente di- todos eles. Assim,
tos que podem ser utilizados com finalidades didáticas. Estes podem ser
considerados como elementos que possibilitam a construção de saberes até o momento atual os professores têm tido acesso a um conjunto de
meios de caráter diversificado, de uma forma geral utilizados isolada-
e significados que não existem em si mesmos, mas a partir de problemá-
mente - os livros, o gravador de vídeo, o gravador de áudio, o retro-
ticas, olhares e questões que lhe são colocadas. Assim, projetor, o projetor de diapositivos, o computador. O termo multimedia
aparece normalmente associado à utilização, num mesmo projeto de
pode-se denominar suportes informativos todo conjunto de signos, trabalho, de diferentes tipos de media. Se pensarmos na etimologia da
principalmente de textos, que se apresentam como um saber consti- palavra, ela é, à partida, repetitiva. Se o termo media é, em latim, o
tuído e se dão a ver e a ler como uma fonte de informações sobre um plural de medium, acrescentar-lhe multi é dizer duas vezes a mesma
objeto determinado. O texto de um manual, um fragmento de um coisa ( ... ) Nos anos 80 o termomultimedia era normalmente utilizado
livro, de jornal, um dossiê documentário tratando de um objeto dado, para definir uma coleção de diferentes media (... ) para descrever um
mas também uma curva estatística, um quadro, um mapa ou plano package de informação transmitida sob diferentes formas: texto, cas-
produzido com o objetivo de uma comunicação de informações dis- sete, áudio, vídeo etc. (... ) Nos anos 90, com o aparecimento de com-
ciplinar serão considerados como suportes informativos. Da enci- putadores pessoais que permitem acender e gerir informação áudio e
clopédia ao atlas, passando pelo manual escolar, todo discurso pro- vídeo, o termo multimedia passa a ter um novo significado. Os avan-
duzido com a intenção de comunicar os elementos do saber discipli- ços tecnológicos possibi litam agora armazenar di ferentes elementos,
nar pertencem à esfera dos suportes informativos. Estes suportes se provenientes de fontes di versi ficadas, num único medium, por exem-
apresentam como informativos, descritivos, analíticos ou sintéticos. plo, compactdisc. (SOUZA, PATO, CANAVILHAS, p. 46-47)
Por oposição aos suportes informativos, nós definiremos "documen-
to" todo conjunto de signos, visual, textual, produzido numa pers- A relação da escola com estas novas tecnologias, em geral, tem
pectiva diferente da comunicação de um saber disciplinar, mas utili-
zado com fins didáticos ... os signos que não são reconhecidos como
sido contraditória. De um lado, um certo sentimento de repulsa, no sen-
tais senão quando inseridos no quadro de uma problemática científi- 1 ido de que "a instituição é capaz de neutralizar ou de desviar todas as
ca. (INRP) medidas destinadas a transformá-Ia" (SORDIEU, p. 101). Por outro lado,

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quando acolhidas pelos educadores, tais inovações tecnológicas têm zação e estrutura curricular, na organização dos tempos letivos, nas
normalmente sido usadas como técnicas de ensino, estratégias para pre- metodologias, estratégias e atividades a implementar, quer na sala de
encher ausências de professores ou como recursos para tornar as aulas aula, quer fora dela, nos processos de avaliação e nos equipamentos
escolares. Conseqüentemente poderá levar a transformações nos pro-
menos enfadonhas. Tratam-se de adequações superficiais, na medida
gramas de formação de professores e produzir efeitos no processo de
em que "a inovação não é um produto. É um processo. Uma atitude. É aprendizagem dos alunos. (POIRIER, SULTAN, p. 7)
uma maneira de ser e estar na educação" (NOVOA, p. 5).
Estudos e pesquisas atuais apontam para a necessidade do Para que a prática de sala de aula adquira "o cheiro bom do fres-
redimensionamento de tais práticas, em direção à priorização de refle- cor", é preciso que se assumam definitivamente os desafios que a edu-
xões acerca das especificidades e das linguagens próprias das novas cação histórica enfrenta hoje em dia. Seria uma das maneiras de se con-
tecnologias de informação. Elas deverão ser retomadas à luz das novas tribuir para que os educandos se tomassem conhecedores da pluralidade
teorias das Ciências Humanas e Pedagógicas. de realidades presentes e passadas, das questões do seu mundo indivi-
Mais do que nunca, tem-se o entendimento de que dual e coletivo, dos diferentes percursos e trajetórias históricas. Os
educandos poderiam adquirir a capacidade de realizar análises,
os modos de produção das imagens remetem a um problema de natu- inferências e interpretações acerca da sociedade atual, além de olhar
reza epistemológica que teve sua origem com a invenção do aparelho
para si e ao redor com olhos históricos, resgatando, sobretudo, o con-
fotográfico, primeira máquina a registrar as imagens do mundo sensí-
vel por um procedimento mecânico. A natureza mesma destas ima-
junto de lutas, anseios, frustrações, sonhos e a vida cotidiana de cada
gens, as relações que elas estabelecem com a realidade, as diferen- um, no presente e no passado.
ciam radicalmente de outros tipos de imagens. O cinema e o vídeo
dependem do mesmo modo de existência que a fotografia (... ) Por
outro lado, as tecnologias de informação e sua interação com aquelas
BIBLIOGRAFIA
audiovisuais provocam novas e profundas modificações na produção,
tratamento, acesso e estocagem de imagens ( ...) Estas modificações BORDIEU, Pierre. Propostas para o ensino nofuturo. Cadernos de Ciên-
fizeram surgir numerosas questões no domínio do visual e interferi- cias Sociais. College de France. Lisboa: Afrohtamento, 1987. p. 101
ram também no mundo da arte, das ciências, da comunicação e do DOMINGUES, Jésus. Ellugar de Ia História en el curriculum. Um marco
ensino. Elas suscitam novas representações, novas práticas sociais. general de referencia. In: CARRETERO, Mario et ai. La ensenanra
Das imagens científicas às realizações artísticas, passando pela ima- de las Ciências Sociales, Madrid: Visor, 1989.
gem publicitária, ou a retransrnissão direta dos eventos ligados à atua- INRP. Institut National de Recherche Pédagogique. L'analyse didactique
lidade, se estabeleceu uma nova relação do grande público com o du rôle des supports informatifs dans I'enseigment de l'histoire et de
conhecimento e o imaginário coletivo. Como o ensino pode apreen- la geog raphie. Paris France, 1992, p. 14.
der, em seus conteúdos e métodos, uma tal evolução? (POIRIER, DUC, J.,ALVAREZ-MARCOS, V., LEPELLEO, J. Construire l'histoire.
SULTAN, p. 7) France: Midi-Pyrinées, Bertrand-Lacoste, 1994.
MARSON,Adalberto. Reflexões sobre o procedimento histórico.ln: Repen-
sando a História. 3.ed. Rio de Janeiro: Marco Zero, s.d., pp. 37-64.
Além disso, constata-se que, neste processo, não basta ater-se às
MICELI, Paulo. Por outras histórias do Brasil.ln: PINSKY, Jaime (org.).
características e potencialidades próprias das novas tecnologias, mas O ensino de História e a criação do fato. São Paulo: Contexto, 1988.
também refletir e retomar a sua interação com os currículos e com a NADAI, Elza. O ensino de História e a pedagogia do cidadão.ln: PINSKY,
prática pedagógica em sua totalidade. Na verdade Jaime (org.). O ensino de História e a criação do fato. São Paulo:
Contexto, 1988.
a interação destes novos meios didáticos no curriculum poderá con- NOVOA, Antonio. Inovação para o sucesso educativo escolar. Lisboa:
duzir a mudanças mais ou menos profundas no processo educativo, Aprender, n. 11, 1988. p. 5.
nomeadamente na definição das finalidades educacionais, na organi- 1'1 NSKY, Jaime. Nação e ensino de História.ln: PINSKY, Jaime (org.). O
ensino de História e a criação dofato. São Paulo: Contexto, 1988.

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POIRIER, B., SULTAN, J. lntroduction. In: POIRIER, B., SULTAN, J.
Faire, Voir et Savoir: Connaissance de I' image et image et connaissance
(images technologiques en Arts Plastiques eten Histoire). Paris: INRP,
1992.p.7.
SNYDERS, Georges. Feliz na universidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1995.
SOARES, Maria Teresa Carneiro. Matemática escolar: a tensão entre o
discurso científico e o pedagógico na ação do professor. São Paulo:
USP, Faculdade de Educação, 1995. [tese de doutoramento, mimeo,
p.4]
SOUZA, Ana, PATO, Aureliana, CANAVrLHAS, Conceição. Novas es-
tratégias, novos recursos no ensino de História. Rio Tinto, Portugal:
EdiçõesAsa, 1993. pp. 46-47.
SUAREZ, Florencio Friera. Didáctica de ias ciencias sociales . Madrid:
Ediciones de Ia Torre, 1995.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história. São Paulo: Mart ins Fontes,
1971.

11 - LINGUAGEM E ENSINO

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