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s u M Á R o
autorizaç:to escrita do Editor

DH12t Duarte, Rodrigo

Teoria crítica da indústria cuhur:li/Rodrigo Duarte. - 13elo Horizonte


Editot:t UFMG, 2003. (Humanit:IS)

218 p.

Inclui referências
ISI3N: 85-7041-396-3

1. Adorno, Theodor W., 1903-1969. 2. Crítica e interpretaÇto


INTRODUÇÃO 7
3. Filosofia alenü- Séc. XX 4. Indústria cultur.tl

CDD: 193.9
CDU: 1(430) CAP ÍTULO I EVENTOS PRELIMINARES DA CRÍTICA À
INDÚSTRIA CULTURAL 13
Ficha catalogrMica elaborada pela CCQC- Central de controle de Qualidade da
Catalogação da Biblioteca Universitária - UFMG Contexto dl! surgimento da teoria crítica 13

Pressupostos teóricos d:t crítica ct indústria cultural I 9

EDITORAÇÃO DE TEXTO: Ana Maria de Moraes


PROJETO GRÁFICO: Glória Campos - Mangá CAPÍTULO 11 A FORMULAÇÃO DA TEORIA CRÍT'JCA DA INDÚSTHIA
REVISÃO DE PROVAS: Alexandre Vasconcelos de Melo e
CULTURAL NA DIAI.Il'J!CA DO ESCLAI?ECIMEN/0 39
Lourdes da Silva do Nascimento
PRODUÇÃO GRÁFICA: Warren M. Santos O conceito ck escl:trl!cimento 42
FORMATAÇÃO: Cássio Ribeiro
CAPA: Colagem digital de Cássio Ribeiro "Indústria cultural - o l!scl:trecimento como
mistificação das mass:�s" 50

"Ekmentos elo :mti-sl!mitismo.


UNIVERSIDADE FEDERAL DE M INAS GERAIS Limites elo l!scbrecimento" 69
Rt·:tTOHA: Ana Lúcia Almeida Gazzola
VICE-REITOH: Marcos Borato Viana

CAPÍTULO 111 A INDÚSTRIA CULTURAL E AS ABORDAGENS


EDITORA UFMG
SOCIOLÓGICAS DE ADORNO 77
Av. Antônio Carlos, 6627
Ala direita da Biblioteca Central - Térreo A indústria cultural e a "personalidade autoritária" 80
Campus Pampulha
31270-901 - Belo Horizontc/MG A indústria cultural e a crenç-a na astrologia 86
Te!.: (31) 3499-4650 Fax: (31) 3499-4768
www .eclitora.ufmg.br editora@ufmg.br
A indústria cultural e a teoria ela semicultura 93

CONSELHO EDITOHIAL
TITULAJ<Es: Antônio Luiz Pinho Ribeiro, Beatriz Rezende Dantas, CAPÍTULO IV A INDÚSTRIA CULTURAL E AS ABORDAGENS
Carlos Antônio Leite Brancl:to, Heloisa Maria Murgcl Starling, ESTÉTICAS DE ADORNO 101
Luiz Otávio Fagundes Amaral, Maria elas Graças Santa Bárbara,
A inclC•stria cultural e os Mínima mora/ia 102
Maria Helena Damasceno e Silva Megale, Romeu Cardoso Guimar:1es,
Wander Melo Miranda (Presidenll!)
A indústria cultural e a Filosoj)a da 1toua llllísica 105
SUPLENTES: Cristiano Machado Gontijo, Denise Ribeiro Soares, Leonardo Barci
A inclüstria cultural l! a 'f'eoria. estélica 109
Castriota, Lucas José Eretas dos Santos, Maria Aparecida elos Santos Paiva,
Maurílio Nunes V ieira, Newton Bignotto de Souza, Reinaldo Martiniano
A inclüstria cultural l! os escritos sobre
M:trqul!s, Ricardo Castanheira Pimenta Figueiredo
televisão e cinema 115
enq uanto u ma forma de general ização indébita q u e prati­
"INDÚSTRIA CULTURAL- O ESCLARECIMENTO
camente não concede aos indivíduos a possibil idade ele
COMO MISTIFICAÇÃO DAS MASSAS" expressões a u t ô nomas q u e retroajam sobre a total idade
social. E a cultur a é especialmente atingida por esse processo,
No capítulo sobre indústria cultural, trata-se de mostrar já que o modelo de autonomia ela arte é nele declarado como
que, já a partir do título dado ao fenômeno por Adorno e obsoleto, tendo em vista a organização fabril pela qual são
Horkheimer, não se trata de cultura feita pela massa para seu confeccionados os produ tos ela i ndú s tria cu l t ur a l : "Eles
próprio consumo, mas de um ramo de atividade econômica, se definem a s i mesmos como i n d ú strias, e as cifras p u bl i­
industrialmente organizado nos padrões dos grandes conglo­ cadas dos rendimentos de seus diretores gerais su primem
merados típicos da fase monopolista elo capitalismo, embora, qualquer dúvida quanto à necessidade social de seus pro­
como se verá adiante, ele "flerte" com procedimentos ainda dutos . " (DA, 14 2)
característicos elo capitalismo liberal. Entretant o , q uando falam e m " neces sidade social dos
Os autores dividiram o texto em sete seções, sem títulos, produ tos", os au tores não q u erem dizer que exi sta u ma
que, apesar ela i nerente imbricação dos diversos motivos em demanda espontâ nea pelas mercadorias culturais específicas
função ela complexidade do fenômeno estudado, tratam ele oferecidas pela indústria cultural , e sim por u ma conexão dos
seus aspectos específicos. Adoto aqui a divisão das matérias indivíduos a u ma esfera espiritual que seja condizente com
entre essas sete partes proposta por Steinert, 15 segundo a qual s u a au tocompreensão (mu itas vezes i nt u itiva) , enquanto
os aspectos específicos seriam os segu intes: 1- a indú stria, a seres diferenciados do restante da natureza: seres que projetam
produção de mercadorias culturais; 2- o " hobby sta" nas garras algo para além de suas fu nções metabólicas e reprodutivas .
do " estilo" da indústria cultural; 3- as origens históricas no A partir dessa demanda genérica, os produtos são oferecidos
liberalismo, cultura como adestramento, diversão como disci­ levando em consideração não as necessi dades específicas elo
plina; 4- a atualidade da confiscação C Vereinnah m u ng) - pú blico, mas aquelas ela própria indú stria e do sistema ele
(sobre)viver como jogo de azar, a promessa de obediência; exploração que a abriga. É por isso que Horkheimer e Adorno
5- prov imento autoritário e a liqu idação do trágico; 6- o i ndi­ denu nciam como falacioso o argumento apologético, segu ndo
víduo confiscado, propaganda; 7- cultura como reclame . o qual a padronização e o baixo nível dos produtos culturais
A seção "A indústria, a produção de mercadorias culturais" é reflexo daqu ilo que o próprio pú blico deseja:
se inicia com a constatação de que o declínio da religião e ele
o utros resquícios pré-capitalistas, enquanto elementos estru­ Os padrões resultariam originariamente elas necessidades dos
turantes da sociedade, não levou a um caos cultural como consumidores: eis por que são aceitos sem resistência. Na
temiam certos teóricos, exatamente porque em seu l u gar verdade, isso é o círculo de mani pulação e necessidade retro­
ativa, n o qual a un idade elo sistema concentra-se cada vez
surgiu u m verdade iro sistema de cooptação ideológica,
mais densamente. Cala-se, aqui , sobre o fato ele que o s o l o ,
composto pelo cinema, pelo rádio e pelas revistas ilustradas.
sobre o qual a técnica adquire poder sobre a sociedade é o
Tal sistema é a manifestação tipicamente tardo-capitalista de poder daqueles economicamente mais fortes sobre a socie­
u ma tendência mundial existente desde meados do século dade (DA, 142).
XX, segundo a qual, "até mesmo as manifestações estéticas
de tendências políticas opostas entoam o r�1esmo louvor elo Preocu pados em i nterpre tar o significado social dos
ritmo de aço. As decorativas sedes ele administração e repre­ aparatos tecnológicos em fu nção do modelo econômico que
sentação ela indústria são m u ito pouco diferentes nos países lhes dá origem, os autores vêem como sintomática da passagem
au toritários e nos outros" (DA, 141). do capitalismo li beral para o monopol ista a evol ução do
Tal tendê ncia é considerada por H orkheimer e Adorno telefone em direção ao rádio: o primeiro é " liberal" , pois
um tipo de "falsa ident idade do u niversal e elo part icu lar" , permitia que os participantes ainda desempenhassem o

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rapei de sujeito . o rádio é " democrático " , pois transforma os Digna ele nota é a consideração que Adorno e Horkheimer
antigos interlocutores em meros ouvintes, " para entregá-los fazem com relação à então nascente tecnologia ela televisão
au toritariamente aos programas elas estações". O termo "demo­ como síntese de rádio e cinema, i . e . , com o poder sinestésico
crático" denota aqu i, naturalmente, não o direito ele voz e elo filme sonoro, mas com a característica ele, a exemplo elo
voto elo povo, mas o fato ele que os dispositivos tecnológicos rádio, flagrar os consumidores em sua privacidade doméstica,
empregados pela indústria cultural possibilitam u ma comu ­ em seus raros momentos ele descontração e lazer. Outra obser­
n icação ele massa. Ao contrário, o caráter au toritário desses vação interessante sobre a televisão diz respeito ao fato ele
meios é atestado pelo fato de que "nu nca se desenvolveu seu grande poder de penetração aliado à inevitável padroni­
qualquer dispositivo ele réplica e as emissões privadas são zação material e formal ele seu s programas engendrar uma
s ubmetidas a rígido controle" (DA, 143). espécie ele Gesamtkunstwerk (obra de arte total) às avessas:
H orkheimer e Adorno observam ainda que, apesar elo
claro pertencimento da indústria cultural ao àmbito do capita­ A televisão v isa a uma síntese do rádio e do cinema, que é
lismo monopolista, ela não chega a se constituir em um ramo retardada enquanto os interessados não se põem de acordo,
totalmente autõnomo, se mostrando bastante dependente com mas cujas possibilidades ilimitadas prometem a umentar o empo­
relação aos setores impulsionaclores da grande indú stria, brecimento dos materiais estéticos a ta l ponto que a identidade
mal disfarçada dos produtos da indústria cultural pode vir a
como o eletro-eletrõnico, o siderú rgico e o petroqu ímico:
triu n fa r abertamente já amanhã - n u m a real ização escarninha
do sonho wagneriano da obra de arte total (DA, 145).
Se, e m nossa época , a tendência social objetiva se encarna nas
obscuras i ntenções subjetivas dos diretores gerais, estas são
A segunda seção elo capítulo, intitu lada por Steinert "O
basicamente as dos setores mais poderosos da indústria: aço,
petróleo, eletricidade, química . Comparados a esses, os mono­
'hobb y sta' (Freizeitler) nas garras elo 'estilo' ela indú stria
pól ios cultu rais são fracos e dependentes C. ..). A dependência c u l t u ral " , se inicia com u ma sagaz observação sobre o proce­
das mais poderosas emissoras com relação à indústria elétrica dimento ela indú stria cultural, a qual remete a u ma página
ou d a s e mpresas ci nema tográficas com relação aos ba ncos clássica ela filosofia moderna, a saber, o capítu lo da Crítica
caracteriza toda a esfera, cujos ramos i n d ividuais são mais uma
da razão p u ra relativo ao " e s q u emat ismo elos conceitos
vez imbricados entre s i (DA, 143-144).
p u ros elo entendimento " . Para sua compreensão se faz neces­
sária u ma rápida abordagem elo conceito kantiano de "facu l­
Nesse quadro, os autores observam que as diferenças entre
dade de julgar", i.e., de nossa capacidade subsumir casos espe­
os produtos não levam em consideração suas características
cíficos sob regras gerais: para Kant, ela é u m talento peculiar
materiais, mas sua possível subsunçào a categorias A ou B
que disti ngue aquele que apenas conhece as regras do que
para os q u ai s eles estão mercaclologicamente orientados.
sabe aplicá-las corretamente, sendo que sua insuficiência
No mesmo espírito elo " esclarecimento" que se viu anterior­
coincide com u ma forma de estu pidez. 16 A parte ela doutrina
mente, segundo o qual tudo deveria ser reduzido a n ú meros ,
transcendental da faculdade de j ulgar, que trata das condições
a hierarq u ia ele qualidades elos objetos serve apenas para
sensíveis sob as quais as categorias - ou conceitos puros do
u ma q uantificação mais completa:
entendimento - podem se referir a objetos externos , é cha­
mada por Kant ele "esqu ematismo dos conceitos p u ros elo
As distinções enfáticas que se fazem e n tre os filmes das cate­
entendimento" e é de i ndispensável utilidade para a crítica
gorias A e B, ou entre as h istórias p u blicadas em revistas de
diferentes preços, têm menos a ver com seu conte údo do que
da i ndú stria cultural proposta por Adorno e Horkheimer.
com sua u tilidade para a class ificação, organização e compu­ Para Kant, a subsu nçào de intuições empíricas sob as cate­
tação estatística dos consumidores (DA, 144). gorias é problemática, porque nessas últimas nada há de

52 53
A fun ção q u e o esquematismo kant iano a i n d a atr ibuía a o
propriamente empuxo, havendo portanto u ma total hetero­
sujeito, a saber, referi r e l e antemão a multiplicidade sensível
geneidade entre ambas as parcelas, cuja confluência levaria aos conceitos fundamentais, é tomada ao sujeito pela indCistria.
a uma forma de conhecimento objetivo do mu ndo externo ao E l a executa o esquematismo como primeiro serviço a seus
sujeito. Não havendo possibilidade de um relacionamento c l ientes. Na alma dever ia func i onar um mecanismo secreto,
direto, resta o recurso a um tipo ele mediação: o qual já prepara os dados imediatos de modo que eles se
adaptem ao sistema ela razão pura. O segredo foi hoje deci­
frado. Se também o planejamento elo mecanismo por parte
E n tão é claro que deveria haver um terceiro el emento que deve daqueles que agrupam os dados é a inc!Cistria cultural e ela
estar em igualdade, por um lado, com a categoria e, por outro, própria é coagida pela força gravitacional ela sociedade irra­
com o fenômeno e torna possível a aplicação daquela e esse. c i o nal - apesar ele toda racionalização -, então a maléfica
Essa representação mediadora deve ser pura (sem qualquer tend ência é transformada por sua disseminação pelas agências
elemento empírico): por um lado, entretanto, intelectual; por do negócio em sua própria intencionalidade tênue. Para os
outro, deve ser sensível. Uma representação desse tipo é um consumidores nada há mais para c l assificar, que não tenha
esquema transcendental.17 sido antecipado no esquematismo da produção. A arte para o
povo desprov ido de sonhos p reenche aquele onírico idea­
Kant explícita em seguida a natureza do que ele chama ele l i smo, que para o critic ismo ia longe demais. Tudo vem da
"esquema", chamando a atenção especialmente para a carac­ consciência, em Malebranche e Berkeley ela consciência d e
Deus; n a arte para a s massas, da consciência terrena das equipes
terística que a temporaliclade (no sentido transcendental )
de produção (DA, 145-J 46).
possui d e , ao mesmo tempo, s e r a condição formal para a
a p reensão da m u l ticiplicid acle pelo sentido interno e el a
Com isso , os au tores apontam para u ma espécie ele previ­
mesma natureza que a categoria , já que é universal e repousa
sibilicla de qu ase absol u ta nos produtos ela indústria cultural,
sobre u ma regra a prio ri: "Por isso será possível u ma ap li­
a qual é fo rjada pela típica expropriação elo "esqu ematismo" .
cação ela categoria aos fenômenos mediante a determinação
Um exemplo disso é a relação à música ele massa : " O ouvido
transcendental elo tempo , a qual, enquanto o esquema elos
treinado é perfeitamente capaz, desde os primeiros compassos,
conceitos elo entendimento, media a s ubsu nção elos últimos
de adivin har o desenvolvimento elo tema e sente-se feliz
sob a primeira . " 18 A partir daí, segu e-se uma distinção entre
quando ele tem lugar como previsto . " (DA, 146) Tal processo
imagem e esquema , segundo a qual esse último é explicitado
contrasta , segu ndo Horkheimer e Adorno, imensamente com
como um método ele tornar comensurável uma imaoem o a um
o da arte a u tônoma, não dominada pelos imperativos ela
conceito (puro elo entendimento, i.e., uma categoria) . Segue-se
lu crativi dade e ela geração de conformidade ao status quo.
ta mbém u ma explicitação elos esquemas segundo suas cate­
Isso se torna especialmente claro no que tange ao elemento
gorias correspondentes , sendo ele especial interesse para
particu lar numa composição ela arte convencional: ele signi­
nosso tema a colocação mais genérica, de acordo com a qual
fica o momento imprevisto que, assim mesmo, é assimilado
"os esqu emas elos conceitos puros elo entendimento são, por­
em fu nção ele sua reciprocidade com relação ao todo:
tanto, as únicas e verdadeiras condições ele proporcionar a
esses u ma relação a objetos e , com isso, significado ( . . . ) . " 19
Emancipando-se, o detalhe tornara-se rebelde c, do roman­
É a partir dessa "rela ção a objetos" que Horkheimer e tismo ao expressionismo, afirmara-se como expressão in dô­
Adorno se apropriam do conceito de esqu ematismo no sen­ mita, como veículo do protesto contra a organ ização. (...) A
tido ele mostrar em que medida u ma instâ ncia exterior ao tudo isso deu fim a indCistria cultural mediante a totalidade. Ela
su jeito , industrialmente organizada no sentido de propor­ ataca o todo e as partes em igual medida. O todo se apresenta

cion<tr rentabilidade ao capital inve stido , u s u rpa dele a aos detalhes inexoravelmente e sem relação (DA, 147).

c:tpaciclaclc ele interpretar os dados fornecidos pelos sentidos


segundo padrões que originariamente lhe eram internos:

55
O pressuposto técnico da usurpação do esquematismo, no A indústria cu ltural, o mais inflexível de todos os estilos, rev<.:­
la-se como a meta do l iberalismo, ao qual se cens u ra a falta de
caso do cinema, foi a invenção do filme sonoro na década de
estilo. Não apenas são suas categorias e conteúdos oriundos
20, a qual permitiu que a mercadoria cu ltural se tornasse mais da esfera liberal, do naturalismo domesticado, como das ope­
e mais u m prolongamento da vida cotidiana e dela não se retas e teatros de revistas: as modernas companhias c u lturais
distinguisse mais . Isso contribuiu para o aparecimento do que são o l u gar econômico onde ainda sobrevive, juntamente com
os a u tores chamam de uma " reprodução simples do espírito" os correspondentes tipos de empresários, uma parte da esfera

(DA, 148 ) , que - numa paráfrase ao conceito econômico de ele circu lação já em desag regação em ou tros setores ( DA, 153).

M a rx para u ma reprodução apenas rotineira do capital -


significa o preenchimento daquela necessidade de "transcen­ Com isso, os a u tores se referem ao fato de que, por suas
dência" mencionada anteriormente, sem que ocorra qualquer próprias necessidades econômicas, a indústria cultu ral pre­
amadurecimento, qu alquer crescimento espiritual elos indi­ serva ainda uma parte elo dinamismo advindo elo instável
víduos. E isso acontece não porque a mercadoria cultural equilíbrio entre a oferta e a demanda em uma sociedade de
não seja suficientemente elaborada : ao contrário, os a utores mercado, embora , como se saiba, no capitalismo não-concor­
chamam a atenção para o fato de que a sutileza ele meios na rencia l elos grandes trustes, a existência elo mercado é mais
confecção do produto indu stria l rivaliza com a da compo­ uma ideologia elo que uma realidade: "Atua lmente em fase
sição ela s obras ele arte mais sofisticadas: ele desagregação na esfera ela produção material , o mecanismo
ela oferta e ela procu ra continua atuante na su perestru tura
como mecanismo ele controle a favor elos dominantes." (DA, 155)
A compu lsão d o id ioma tecnicamente condicionado, q u e o s
astros e os di retores têm q u e produzir como algo d e natural Curiosa mente, enquanto a indústria cultural se mostra como
para que o povo possa transformá-lo em seu idioma, tem a um setor em que ainda existe concorrência em meio ao seu
ver com nu anças tão finas q u e das q uase alcançam a sutileza franco declínio nos ramos econômicos dominantes, Horkheimer
dos meios de u m a obra de vanguarda, graças à q ual esta, ao
e Adorno chamam ainda a atenção p a ra o fato de q u e o
contrá rio daquelas, serve i't verdade (DA, 150).
modelo da arte autônoma é tributário de resquícios pré-capita­
listas em plena sociedade liberal do século XIX. Nesse quadro,
O "servir à verdade" elas obras de arte se ma nifesta em sua
é importa nte levar em conta a diferença entre os contextos
p romessa ele felicidade, que, mesmo não co nstituindo em
europeu e norte-americano na primeira metade do sécu lo XX.
si mesma a reconciliação propriamente dit a , permite u ma
Enquanto os Estados Unidos praticamente não conheceram
" reprodução ampliada do espírito", i . e . , u m aprimora mento
de perto o modelo de arte autônoma típico do século anterior,
intelect u a l q u e se choca frontalmente com a menoridade
na E u ropa, u m certo " atraso" no desenvolvimento capitalista
eterna proposta - quando não imposta - pela indústria
ocasionou a possibilidade de um tipo ele expressão estética
cu ltura l . Através da arte apreende-se a possibilidade de u m
livre elas pressôes mais imediatas elo mercado, o que permitiu
u niversal não-coercitivo: " N a medida em q u e o expressado
a sedimen tação de um modelo de au tonomia da arte, o qual
através elo estilo entra nas formas dominantes ela u niversali­
se choca frontalmente com o da cu ltura industrializada:
dade - a musical, a pictórica, a verbal - ele eleve se recon­
ciliar com a idéia da correta u niversalidade . " (DA, 152)
A Eu ropa p ré-fascista era atrasada com relaç�1o à tendência
Na terceira seção, "As origens históricas no libera lismo, para o monopólio cultural. Mas era exatamente a esse atraso
c u l t u ra como adestramento, diversão como disciplina", que o espírito podia creditar um resto de independência e os
Ho rkheimer e Adorno reite ra m , ainda mencio n a n do o seus últimos representantes sua existência, ainda que cheia de
c o n ceito de estilo , a idéia da indústria cultural como u m privações. Na Alemanha, a i mperfeita difusão de controle demo­

enclave oriu ndo d o capitalismo liberal e m plena vigência elo crático na viela teve um efeito paradoxal. M u ita coisa ficou
excluída daq u e le mecanismo de mercado que se desencadeou
ca pitalismo monopolista:

56 57
nos países ocidentais. (. .. ) Isso fortificou a retaguarda da arte Arte "leve" como tal, divertimento, não é forma decadente. Quem
tard ia contra o veredicto da oferta e da procura e aume ntou a lastima como traição do ideal da expressão pura está alimen­
sua resistência para muito além da proteção propriamente d ita tando ilusões sobre a sociedade. A pureza da arte burguesa,
(DA, 154). que se hipostasiou como re i n o da l i berdade em oposição ;1
práxis material, foi obtida desde o i n ício ao preço da exclusão
Um dos elementos críticos mais marcantes apresentados das classes inferiores, mas é à causa destas classes - a verda­
deira u n i versalidade - que a arte se mantém fiel exatame nte
nesse capítulo é a indicação de que, a partir elas necessidades
pela l iberdade dos fins da falsa universalidade (DA, 157).
simultâneas e contraditórias de conferir, por um lado, uma
certa possibilidade de escolha à clientela e garantir, por outro,
Em relação àquilo que Horkheimer e Adorno chamam de
a lucratividade e a adesão ideológica incondicional ao sistema
"arte leve" , eles reconhecem que ela possui seus próprios
que perfazem a razão ele ser da indústria cultur a l , seus agentes
cânones, bastante diferentes dos da arte culta - talvez a nti­
estimulam no público o conformismo, o qua l , não ra ro se
téticos -, porém não necessariamente inferiores a ela . Aliás ,
manifesta numa espécie ele masoquismo. No tocante à censura
eles c hegam a comparar, no que concerne à recepção pelo
dos produtos, por exemplo: "O amor funesto do povo pelo
grande público, "a excentricidade do circo, elo panótico e do
mal que a ele se fa z , chega a se a ntecipar à astúcia das
bordel" com aquela de Schónberg e de Karl Kraus . Aquilo em
instâ ncias de controle . " (DA, 155) Isso significa dizer que as
re lação a que eles se posicionam diametralmente contra é a
tendê ncias conservadoras freqüe ntemente observadas em
fusão de entretenimento e cultura que para eles é típica da
amplas pa rcelas da população - na maior partes dos casos
indústria cultural: "A pior maneira ele reconciliar essa antítese
oriundas de sua insegura posição na estrutura social - são
é absorver a arte leve na arte séria ou vice-versa. Mas é isto
exploradas ao máximo no sentido de afastar o contato com
que tenta a indústria cultura l . " (DA, 157)
novidades perigosas, ainda que apenas no âmbito da cultura:
E essa tentativa não é sem razão: ao contrário elos outros
"O que é novo na fase da cultura de massas em comparação
dois modelos mencionados - o da arte culta "autônoma" e
com a fase elo liberalismo avançado é a exclusão do novo. A
ela arte " leve " , popular, que possuem, em diferente medida e
máquina gira sem sair do lugar. O menor acréscimo ao inven­
com diferentes graus de elaboração, a espontaneidade elas
tá rio cultural comprovado é um risco excessivo . " (DA, 156)
expressões ele anseios e sentimentos elas sociedades em que
Tal posição não representa , no entanto, como se pensa surgem -, a indústria cultural é, antes de tudo, um negócio
freqüentemente , uma pura e simples condenação do entrete­ que tem seu sucesso condicionado a empréstimos e fusões
nimento: os autores estão cientes de que não só ele, como ela cultura, ela arte e ela distração, subordinando-se totalmente
outros elementos ela indústria cultural já existiam muito tempo às já mencion adas finalidades ele lucro e el e obtenção ele
antes ele seu surgimento. A diferença é que a indústria cultural , conformidade ao status quo.
em função elos novos meios técnicos c d e uma nova situação
A partir daí, pode-se compreender a mencionada sobrevi­
histórica, erigiu em princípio a transferência da arte para a
vência elo mercado em meio ao predomínio dos monopólios
esfera do consumo, "despindo o entretenimento de sua inge­
não como uma tênue afinidade eletiva com o liberalismo, mas
nuidade enfática" e aprimorando a confecção das mercadorias
possuindo um fundamento econômico determinado pela neces­
cultur ais . Na mesma passagem em que se reconhece a re le­
sidade ele ajustar a oferta às demandas, num mecanismo, já
vâ ncia do entretenimento, assevera-se , mais uma vez , que a
referido a nteriorme nte, que visa oferecer ao público a quilo
arte autônoma , apesar do seu inegável comprometimento com
de que , pelo menos apa rentemente, ele "n ecessita " :
a ideologia burguesa, tem no seu vislumbre de uma univer­
salidade verdadeira um ponto de vista necessariamente crítico
Com a absorção d e todas as tendências d a indústria cultural na
ao capitalismo tardio e à sua cultura industrializa da :
carne e n o sangue do públ ico se realiza, at ravés do processo
soc ial i n t e i ro; a sobrevivência do mercado neste ramo atua

'iH
'i9
favoravel mente sobre essas tendências. A demanda não é su bs­ não raro difu ndidas através dos próprios mass media. Par::�
tituída por p u ra e simp les obed iência. (. ..) A verdade em t u do os autores, tais críticas deixam intocados os fundamentos d::�
isso é q u e o poder da indústria c u ltural reside em sua identifi­ exploração na medida em que não toquem na ameaça de
cação com a necessidade produ zida, não em oposição a ela, castração tacitamente percebida por todos:
como se fosse aquela de onipotência c impotência (DA, 158).

Contrariamente ao q u e se passa na era l i beral, a c u ltura indus­


Especialmente sob o ponto de vista da tarefa de gerar adap­ trializada pode se permitir, tanto q uanto a c u l t u ra nacional­
tação ao processo produtivo, Horkheimer e Adorno chamam popu lar ( volkisch) no fascismo, a indignação com o capita­
a atenção para as características infin itamente repetitivas das lismo; o q u e ela não pode se permitir é a abdicação da ameaça
mercadorias culturais, as quais são consideradas u ma espécie de castração. Pois essa é sua própria essência (DA, 163).

de prolongamento, durante o ócio, dos mesmos procedimentos


repetidos ad nauseam no tra b a l ho da fábrica ou do escri­ Mais uma vez, a comparação com as obras de arte serve
tório. É por isso que, no consumo da mercadoria cultura l , ex-negativo para a melhor caracterização das mercadorias
" toda l igação lógica que pressuponha um esforço intelectu al culturais. Enquanto essas ú ltimas, como se viu, se pautam
é escrupu losamente evitada . Os desenvolvi mentos devem pela ameaça de castração, as obras de arte são regidas pelo
resu ltar tanto q u anto possível da situ a ção imediatamente princípio da sublimação,21 compreendido - um pouco dife­
an terior, e não da idéia do todo. " (DA, 159) Mediante a expli­ rentemente de Freud - , como manifestação, simu ltànea à
citação dessa tarefa disciplinadora para o trabalho, o mencio­ ocultação, de seu caráter simbólico com relação ao objeto do
nado estímulo a tendências masoqu istas do público ganha desejo:
uma nova dimensão, que se manifesta até mesmo no que os
a u tores chamam de " crueldade organizada" dos dese n hos De seu lado, as o b ras de arte tampouco consis tiam e m exi­
a n imados: b ições sexuais. Todavia, apresentando a renúncia como algo
de negativo, elas revogavam por assim dizer a humilhação da
pu lsão e salvavam aquilo a que se renunciara como algo media­
O s filmes de animação eram o u trora expoentes da fantasia tizaclo. Eis aí o segredo da s u b l imação estética: apresentar a
contra o racional ismo. Eles faziam j ustiça aos animais c coisas satisfação como uma promessa rompida ( DA, 161- 162).
eletrizados por sua técnica, dando aos m u t ilados u ma segunda
vida. Hoje, apenas confirmam a vi tória da razão tecnológica
Na seção sobre "A atualidade da confiscação ( Vereinnahmung)
sobre a verdade. (... ) Assim como o Pato Donald nos cartoolls,
também os desgraçados na vida real recebem a sua sova para - (sobre)viver como jogo de azar, a promessa de obediência " ,
q u e os espectadores possam se acos t u mar com a q u e e l es aos procedimentos já identificados como típicos d a indú stria
próprios recebem (DA, 160).20 cultural soma-se uma outra característica que é a introdução
do cálculo de probabilidades como um método para eliminar
Outras imagens como a do comensal que deve se contentar o acaso, fazer com que esse coi ncida, no limite, com uma
apenas com a leitura do cardápio (cf. DA, 161) e a comparação espécie de destino fatídico. Esse pode ser tanto o do mise­
do show businness com o ritual de Tântalo (cf. DA, 162) não rável , que se tornou milionário da noite para o dia ao ser
deixam d ú vidas qua nto à a ssociação q u e Horkheimer e sorteado no concu rso promovido pelo sabão em pó, ou da
Adorno fazem da indú stria cultural com a conceituação psica­ recepcion ista , que teve seu "talento" revelado no programa
nalítica sobre a ameaça de castração. Essa se torna fu nda­ de calouros e se tornou uma grande estrela. Isso porque a
mental no sentido de explicar por que o capitalismo tardio, simples possibil idade matemática de ser contemplado com o
q u e se v a l e da i n d ú s tria c u l t u ra l para s u a manute nção, prêmio é vendida ao público como se j á representasse a
concede mais " l iberdade de expressão" aos cidadãos , na própria contemplação, porq u e , a final de contas, a lguém
medida em que tolera mu ito bem críticas às suas instituições, ganhou e não importa se não foi A ou B - a generalização

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indébita repete, através dos meios tecnológicos , o caso clás­ tal, i . e . , os meios ele reprodutibilidade técnica permitem u ma
sico da ideologia : espécie de reconstrução elo mundo, que, à maneira elo que se
viu em relação ao esquematismo kantiano, dispensa inter­
Agora os fel izardos na tela são exem plares do mesmo gênero pretações - o que se vê e ouve é o que de fato existe: "Para
que todos os do püblico, mas nessa identidade está posta a demonstrar a divindade do real , a indú stria cu ltural limita-se
in transponível separação dos elementos hu manos. A completa a repeti-lo cin icamente. Uma prova fotológica como essa, na
semelhança é a d iferença abso l u t a. A identidade elo gênero verdade, não é rigorosa, mas é avassal adora . " (DA, 170)
proíbe a elos casos. J nclü stria cultural realizou maldosamente o
homem como ser genérico (DA, 168). A q u i nta seção, i ntitu lada por Steinert " P rovimento a u tori­
tá rio e a liqu idação do trágico" , trata da ambientação socia l ,
A referência ao "ser genérico" , termo com o qual o jovem tendencialmente totalitária , propícia à indústria cultura l , a
Marx caracterizara a capacidade criativa da espécie humana e qual não admite espaço para manifestações individuais que
fu ndamentara a crítica ao trabalho alienado, tem como obje­ a pareçam como excessivamente desviantes daq u i lo que é
tivo explicitar a degradação das pessoas à mera pertença ao regu lamen tado . Não se trata , entretanto, ele um regime tota­
gênero do qual algum representa nte anôn imo pode ser o litário ipsis literis, pois "a liberdade fo rmal de cada u m está
sorteado (daí a realização " ma ldosa" do ser genérico). É por garantida" (DA, 172) : mas ele u ma sociedade na qual só têm
isso que os a u tores consideram esse expediente como u m a as melhores chances aqueles que se identificam inteiramente
espécie d e " planej amento elo acaso " , pois o processo é de tal com seu fu nda mento ú ltimo, i . e . , com a exploração do tra­
forma , que qualquer resultado - que não é ele modo algum balho alheio: "A escala do padrão ele viela é mu ito exatamente
ind iferente para o paciente - o é para os agentes, i . e . , para adequada à interna conexão dos estamentos e dos indivíduos
os detentores do poder. Tal processo não se aplica, natural­ com o sistema . " É exatamente por isso que a miséria , antes
m ente, apenas aos sorteios ou seleção de atores, mas per­ de ser considerada u ma conseq ü ência necessária do caráter
meia todo o processo ele produção - inclusi ve o mercado exclusivista do capitalismo, é tida como u ma excentricidade
de trabalho - como u ma tendência geral elo capitalismo imperdoáve l: " Q uem tem frio e fome , sobretudo qua ndo já
monopolista: teve boas pers pectivas, está marcado. Ele é u m outsider e,
abstração feita ele certos crimes capitais, a culpa mais grave é
a de ser um outsider. " (DA, 173)
É j u stamente p o rque a s forças d a sociedade j :í se desenvol­
veram no caminho da racional idade, a tal ponto que qualquer Daí os procedime ntos do sistema produtivo, lembrados
u m poderia tornar-se um engenheiro o u u m mcmager, que se por Horkheimer e Adorno, no sentido de gera r um compro­
tornou inteiramente irracional a escolha da pessoa e m que a m isso afetivo dos indivíduos com o sistema, manifesto princi­
sociedade deve investir uma formação prévia ou a confiança
palmente naquele companheirismo no trabalho, estimu lado
para o exercício dessas funções (DA, 1 68- 169).
pela própria empresa numa espécie de " reprivatização" da
imediatez das relações hu manas com o objetivo de au mentar
O concu rso dessa irracional idade sobre a base de u ma
a produtividade. A conexão aos expedientes da cultura ele
produção q u e se tornou a ltamente raciona l i zada reduziu '
massa é u ma conseqüência óbvia desses procedimentos: " Essa
segu ndo H orkheimer e Adorno, a h u manidade inte ira ��
' assistência el e inverno' espiritual lança u ma sombra concilia­
condição de clie ntes ou empregados da i nd ústria . E a u tili­
tória sobre os produtos au diovisu ais da indú stria cu ltural
zação dos meios tecnológicos para a confecção de prod u tos
m u ito antes que esse au xílio saia da fábrica e se estenda
c u l t urais significou u ma grande transformação na própria
sobre toda a sociedade . " (DA, 173)
concepção ele ideolog i a : enquanto as formas ideológicas
tradicionais eram veiculadas mediante interpretações da reali­ É nesse qu adro que su rge a referência ao trágico, como
dade, a nova ideologia tem por objeto o mundo enqu anto um exemplo ela possibilidade de o indivíduo se defrontar com

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as forças muito mais poderosas elo que ele com u ma chance Na sexta seção, "O indivídu o confiscado, propaganda " , a
de - mesmo que venha a ser derrotado - deixar sua própria despotencialização do trágico é retomada a partir da noção
marca e servir de exemplo e inspiração para os pósteros. Mas de " pseudo-individualidade " , i . e . , a ideologia da privacidade
no âmbito elo capitalismo tardio, muito especialmente no ela como um pretexto para encobrir o fato de que os indivíduos
i ndústria cu ltu ral por sua própria vincu lação à inarredável j á não têm, em si mesmos , qualquer poder de decisão, mesmo
sedimentação estética do trágico , esse se encontra ameaçado sobre o mais íntimo de suas vidas particu lares. Com isso, o
de pura e simples extinção pelo fato ele que tendem a desapa­ principal requ isito tragédia - u m elemento individual que
recer os indivíduos com a coragem ele se posicionar diferente­ se mede com as potências u n iversa is - fica totalmente elimi­
mente ela massa, que, por sua vez, é - com raras exceções ­ nado : "É só porque os indivíduos não são mais indivíduos,
u ma reprodutora , natu ralmente sem consciência porém com mas meras e ncru zilhadas das tendências do u niversal , que
fidel idade , da ideologia dominante: é possível reintegrá-los totalmente n a u n iversalidade . " (DA,
178) O p ú blico, já previamente a nestesiado em virtude de
A mentira não recua d iante do trágico. Assim como a sociedade tantos solava ncos no mundo do trabalho e do bombardeio de
total não elimina o sofrimento de seus membros, mas o registra imagens e sons da indú stria cultural , "agradece" a ela a possi­
e planeja, do mesmo modo a cultura de massa procede com o bil idade de evitar o esforço ele individuação, i . e . , de cada
trágico. Daí seus insistentes empréstimos �� arte. Ela fornece a
pessoa se lançar ao exercício mu itas vezes doloroso - mas
substância trágica que a pura d iversão não pode por si só
sem pre compensador - de se compreender como u m a ins­
trazer, mas da qual ela precisa, se quiser se manter fiel de uma
ou de outra maneira ao princípio da reprodução exata d o tância ele decisão sobre s u a p rópria vida , infl u enciando,
fenômeno. (... ) O trágico é reduzido à ameaça d a destruição dessa fo rma, a configu ração da totalidade soci a l :
de quem não coopera, ao passo que seu sentido paradoxal
consistia outrora numa resistência desesperada à ameaça mítica
N o s rostos d o s heróis do cinema o u das pessoas privadas ,
(DA, 1 74-1 75).
confeccionados segundo o m o d e l o das capas de rev istas,
d i s sipa-se uma aparência na qual, de resto, ninguém mais acre­
Uma aplicação polêmica desse princípio surge no comen­ dita, e o amor por esses modelos ele heróis nutre-se ela secreta
tário sobre o jazz, que, como se viu no capítulo anterior, já satisfação ele estar afinal dispensado de esforço ela individuação
fazia parte elo inventário crítico ele Adorno desde a redação pelo esforço (mais penoso, é verdade) da i mitação (DA, 1 79 ) .

dos ensaios sobre a situação social da música, escritos no


final elos a nos 30. No espírito desses textos anteriores, na Mais u ma vez, a q u i , a existência elas obras de arte a utô­
Dialética do esclarecimento, o principal elemento rítmico elo nomas serve como um balizamento para a abordagem crítica
j a z z , a síncop e , é i nterpretada como u m símbolo de resig­ ela s mercadorias c u l t u ra i s . N u m prime iro momento, para
nação, como a ação de alguém "que ao mesmo tempo zomba lembrar que, a pesar de as " puras obras de arte" há mu ito
do tropeção e erige-o em norma" (DA , 176) . Abstrai ndo-se da serem tam bém mercadorias, elas " negam o caráter mercantil
possibilidade ele essa colocação ser, como qualificou J ay, 22 da sociedade pelo simples fato de seguirem sua própria lei",
u ma expressão de etnocentrismo europeu , já que o ritmo sinco­ contrastando com os produ tos da i n d ú stria c u l t u r a l , os
pado é um traço tipicamente africano na formação do jazz, é quais se incluem "orgulhosamente entre os bens de consu mo"
importante reter o significado crítico do posicionamento con­ (DA , 180) .
trário a u ma postu ra resignada e conformista diante de um Além disso, as obras a utônomas se mostram determinantes
sistema a parentemente onipotente : "Todos podem ser como também na compreensão da forma específica de fetichismo
a sociedade todo-poderosa , todos podem se tornar fel izes, que adere às mercadorias cu lturais . Numa evidente retomada
desde que se entreguem de corpo e alma, desde que renunciem da arg u mentação inaugurada por Adorno no texto "O feti­
à pretensão ele felicidade ( . . . ) A liqu idação do trágico confirma chi smo na m ú s i c a e a regressão da a u dição" (ver s u p r a ,
a eliminação do indivídu o . " (DA, 176- 177) p . 26-27) , o s autores a q u i enfatizam a extensão d o caráter de

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fetiche ela mercadoria a todo o âmbito ela arte , em vez ele se u ma sobrevalorização de suas mercadorias, não em fu nção
limitar à música, tematizanclo também, além ela insp iração de sua utilidade, mas ele sua virtual " inutilidade", i.e., exclusão
marxiana, algo que ficara apenas implícito no texto ele 1938 , do rol elos gêneros de p rimeira necessidade, fazendo com
a saber, a concepção kantiana el a " finalidade sem fim" para que elas possuam, portanto, certa " nobreza" , u ma espécie ele
compreender o fetichismo ela mercadoria cultura l . charme próprio ele tudo que é "supérfl u o" . Em termos econô­
E s s a concepção, ele acordo c o m a qual a obra ele arte micos, isso significa que a carência ele valor ele uso, que nas
su btrai-se ele qualquer utilidade prática imediata, reporta-se mercadorias comu ns significa a impossibilidade ela existência
à Crítica da faculdade de julgar, segu ndo a qual o j u ízo que ele valor ele troca - a pura e simples exclusão elo mercado -,
fazemos sobre o objeto belo é desprovido ele qualquer inte­ na mercadoria cu ltu ral é o passaporte para o estabelecimento
resse, embora seja u niversal e necessário. Esse aju izamento ele um valor ele troca s u perior, o qual ataca s u a essênc ia,
não atribui u m p redicado a u m sujeito, mas ocorre a partir de acabando por destru ir a sutil dialética entre utilidade e inuti­
um sen timento ele p razer desinteressado, q u e pode ser lidade , típica elos objetos estéticos. O que resta é apenas o
co m u ngado por todos quantos se puserem na presença do valor ele troca ela ostentação :
objeto. Essas características fazem com que o j u ízo estético
seja, paradoxalmente, sem conceito, ori u ndo, como diz Kant, O que s e poderia chamar de valor d e uso n a recepção dos
apenas elo "livre jogo da imaginação e elo entenclimento " , 23 o bens culturais é s u bstituído pelo valor de troca; ao invés do
prazer, o que se b usca é assistir e estar informado, o que se
que, por s u a vez, remete a u ma finalidade apenas formal,
quer é conquistar prestígio e não se tornar um conhecedor. ( . . . )
delineada a partir de características da coisa avaliada, que
O valor de uso da arte, seu ser, é considerado como u m fetiche,
pode ser u ma obra ela bela arte ou u m objeto da bela natu­ e o fetiche, a avaliação social que é erroneamente entend ida
reza. No que tange a essa clefinitória a u sência ele fi nalidade como hierarquia das obras de arte - torna-se seu único valor
" material " no j u ízo de gosto - portanto, também no objeto de uso, a única qualidade da qual elas desfrutam ( DA, 1 8 1- 182).
que o ocasiona -, Kant se expressa da segu inte maneira :
A realização elo fetichismo na mercadoria cultural depende
Portanto nada pode haver a não ser a finalidade s u bjetiva na ele instâncias praticamente onipresentes na sociedade, o que,
representação do objeto, sem qualquer fim (seja subjetivo ou para Horkheimer e Adorno, é desempenhado a contento pelo
objetivo); conseqüentemente a mera forma da finalidade na sistema ele rádio comercial, com sua estru tura extremamente
representação, através da qual um objeto nos é dado, na medida rígida até mesmo se comparada com a elas grandes indú strias
em que d e l a estamos conscientes e o agrado, o qual nós,
cinematográficas (cf. DA, 182) . Eles chegam mesmo a associar
sem conceito, aju izamos como universalmente comunicável,
d i reta mente a consolidação do sistema de rádio com o
perfazem, com isso, o fundamento d a determinação do juízo
de gosto. 24
adve nto elo nazismo, na E u ropa, nas primeiras décadas elo
sécu lo XX, advertindo para a possibilidade ele a p ropaganda
Horkheimer e Adorno se apropriam dessa desvincu lação comercial se transformar num puro e simples Diktat autoritário:
elos objetos considerados belos a desígnios imediatos ela vida
prática no sentido ele compreender a inversão, operada pela Os próprios nacional-social istas sabiam que o rádio dera forma
indústria cu ltural, daquilo que, para Kant, e todo o Ideal ismo à sua causa, do mesmo modo que a imprensa fizera para a
Reforma. ( ... ) Colocar a palavra hu mana como algo de abso­
Alemão, conferia à obra ele arte seu valor específico. Segundo
l u to, como um falso imperativo, é a tendência imanente do
eles, "o p rincípio ela estética idealista, a finalidade sem fim, é
rádio. A recomendação transforma-se em comando. ( ... ) U m
a inversão elo esquema a que obedece socialmente a arte dia, a propaganda de marcas específicas, i. e., o decreto d a
b u rguesa: a falta ele finalidade para os fins determinados pelo produção escondido na aparência da possibi lidade de escolha,
mercado" (DA, 181) . Isso significa que a autonomia ela arte, pode acabar se transformando no comando aberto do führer
por assim dizer, " inspira" a indústria cu ltura l na efetu ação ele ( DA, 1 82- 183).

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Entretanto, essa tendência autoritária do sistema de radio­ P o i s q u a n to m a i s c o m p l e t a m e n t e a l i n g u agem se a b s o rve
na c o m u n i ca ç ã o , q u a n t o m a is a s p a l a vras se convertem de
difu são coincidiria , de modo curiosamente paradoxal , com
v e íc u l o s s u bstanciais do significado e m signos desti t u ídos de
uma suposta democratização da i nformação e da cultura que, q u a lidade, q u anto maior a p u reza e a transparência com que
antes, era claramente u m privilégio de poucos. Mas os autores transmite m o q u e se q u e r dizer, m a i s i m penetráveis elas se
p revinem contra qualquer i l u são que possa existir a esse torna m . ( . . . ) Mas deste modo a palavra , q u e não eleve sign i ficar
respeito, pois, sob a tutela do capitalismo monopolista, o mais nada e agora só pode designar, fica tão fixada n a coisa
que ela se torna u ma fórmu la petrificada. ( ... ) Então as próprias
- tecnolog icamente viável - acesso à cultura é desvirtuado
designaçõ es se t o rn a m i mpene trávei s : e l as conservam u ma
em fu nção dos objetivos da classe dominante : "A eliminação
força ele a taque, u m poder ele adesão e choque, que as tornam
elo privilégio ela cultura pela venda em l iqu idação elos bens seme l h a n te a o seu extremo oposto, à s fórmulas mágicas (DA,
culturais não introduz as massas nas áreas ele que eram a ntes 1 87- 188).
exclu ídas , mas serve , ao contrário , nas condições sociais
existentes, j u stamente para a decadência ela cu ltura e p a ra o
progresso da i ncoerência bárbara . " (DA, 183)
Na sétima e ú lt ima seção do capítu l o , denominada por "ELEMENTOS DO ANTI-SEMITISMO.
S t e i nert " C u l t u ra como re c l a me " , trata-se exatamente de I LIMITES DO ESCLARECIMENTO"
e x p l i c i t a r o caráter p ublicitário assumido pela cultura sob a
égide do capitalismo tardio. Isso se traduz numa confl u ência Como já se afirmou, o capítulo dedicado ao anti-semitismo ,
quase total entre o produto propriamente dito e a mensagem assim como o ela i ndústria cultural, não fazia parte do plane­
do patroci nador, sendo que Horkheimer e Adorno observam jamento inicial do " livro sobre dialética" que Horkheimer
nas principais revistas ilustradas norte-americanas ela é poca ansiava tanto por escrever (cf. su pra, p. 39). As razões mais
u ma grande indistinção entre a parte redacional e os reclames objetivas que levaram os a u tores a decidir pela inclusão da
(cf. DA, 186) (o q u e , hoje, certamente valeria p ara q u ase parte sobre indú stria cultural não são muito claras; mas no
todas as p u b licações congêneres do m u ndo) . Para eles, a que ta nge à p arte sobre o a nti-semitismo são mais do que
publicidade é o elixir de vida da indústria cultu ral, encetando evidentes: em primeiro l ugar, como se assinalou , no i nício
o infindável circuito de promessas e frustrações que mantém dos a nos 40 intensifica-se a persegu ição dos j u deus, a qual
a economia em funcionamento. Além disso, os exorb itantes cul minará com a política nazista de seu p u ro e simples exter­
c ustos ela p u b l icidade acabam por retornar aos cofres elas mínio. Em segu ndo l u gar, a obtenção de um financiamento
corporações, na medida em que ajudam a e liminar, no nasce­ elo American Jewish Committee no período ele p ior situação
douro, qualquer possível concorrênci a . fin anceira do "Instituto", fez com que Horkheimer e Adorno
Para Adorno e Horkheimer, a publicidade aparece como um retirassem a lgumas horas por dia do trabalho de redação ela
dos principais responsáveis pela plena i nserção da indústria " dialética" para dedicar à pesquisa sobre o anti-semitismo .25
cultural no âmbito da dialética do esclarecimento, i . e . , da Possivelmente as duas razões conjuntamente, não cada u ma
regressão à mitologia mediante u m - u nilateral - desenvol­ delas em separado, determinaram a i nclusão desse terceiro
vimento s u perlativo da racionalidade. Isso se torna parti­ capítulo principal da Dialética do esclarecimento. De fato, o
c u l a rmente visível na associação, feita pelos autores, entre a "Projeto sobre o anti-semitismo" , 26 o qual será sucintamente
supostamente superobjetiva linguagem publicitária e a extrema considerado no capítulo seguinte, apresenta uma série ele
fu ncionalização ela linguagem almejada pela ciência positi­ pontos de contato com os " Elementos elo anti-semitismo",
vista (cf. su pra p. 38) , as quais desembocam numa forma de capítulo elo q u a l clestacar-se-ão aqueles aspectos que tan­
petrificação que se assemelha aos sorti légios da magia que genciam a crítica à i ndústria cultural.
se acreditara ter sido definitivamente su perada:

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