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O QUE TODO CIDADÃO PRECISA SABER

SOBRE O COMUNISMO

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O QUE TODO CIDADÃO PRECISA SABER
SOBRE O COMUNISMO

Coleção Cadernos de Educação Política

1ª edição: abril/1986
2ª edição: abril/1987

José Paulo Netto


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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

1. Comunismo, desigualdades sociais e diferenças individuais;

2. Protestos e utopias;

3. A revolução burguesa e a crítica socialista;

4. Marx e a fundação teórica do comunismo;

5. A experiência histórica do comunismo;

6. O movimento revolucionário;

7. A alternativa à barbárie;

Luta de classes e luta política;


Karl Marx

Os comunistas e a revolução
Karl Marx e Friedrich Engels

O fim do Estado
Friedrich Engels

O reino da liberdade e a missão do proletariado


Friedrich Elgels

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Socialismo e comunismo
Henri Lefebvre

Um balanço da experiência do socialismo


Partido Comunista Brasileiro

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APRESENTAÇÃO

Comunismo, entre nós, é uma palavra que assusta. A ela,


absurdamente, se associam noções como “subversão”, “violência”
e também “ideologias exóticas”, “ideias de Moscou”, “cortina de
ferro”. Não é convidativo ser comunista no Brasil: as pessoas
frequentemente imaginam os comunistas como seres “diferentes”,
que levam uma vida que não convém aos homens e mulheres
“normais” – vida que, em países como o nosso, quase sempre tem
algo a ver com perseguições e discriminações. Mas, ao mesmo
tempo, as pessoas que se amedrontam com a palavra comunismo
são assaltadas por muitas dúvidas, motivadas por fatos que elas
próprias observam. Por exemplo: os maiores inimigos do
comunismo são, coincidentemente, os representantes de regimes
políticos os mais cruéis – os chefes da racista África do Sul, os
ditadores Pinochet e Stroessner, os generais argentinos e uruguaios
eu assassinaram tantos patriotas, todos eles herdeiros do nazi-
fascismo de Hitler e Mussolini, que incendiaram o mundo
exatamente em nome do anticomunismo.
Os fatos da vida são fortes, levam as pessoas honestas a
pensar. Inclusive aquelas que leem O Estado de S. Paulo e assistem
aos programas da Rede Globo, que em geral reforçam o temor ao
comunismo, têm perguntas a fazer sobre os “países totalitários da
cortina de ferro” – onde não há fome, onde a educação e a
assistência médico-hospitalar são gratuitas, onde não há inflação e
os aluguéis não excedem a 5% dos salários, onde a ciência e a
técnica avançam a passos largos (quem não se recorda dos sputniks
e de Yuri Gagárin?).
As pessoas constatam, ainda, outra coisa curiosa: sempre
que ocorrem movimentos e ações em defesa da independência e da
soberania nacionais, da justiça social, da paz e dos direitos
humanos, aqueles que os combatem dizem que estão “lutando
contra o comunismo internacional” – foi assim em Cuba e no
Vietnã, está sendo assim na Nicarágua e em El Salvador.

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Tudo isso coloca as pessoas numa situação difícil: por um
lado, elas, que não sabem exatamente o que é comunismo, ouvem
diariamente que se trata de algo “ruim” ou “mau”; por outro lado,
não entendem bem como essa coisa “ruim” e “má” tem tido tantos
êxitos e encontra tantos defensores abnegados, apesar dos ataques
de que são objeto.
Agora mesmo, no Brasil, vive-se uma conjuntura que põe
essas dúvidas no dia-a-dia das pessoas. Por quase vinte anos, os
comunistas foram alvo predileto da perseguição e da repressão
policial-militar. Contra eles falaram e agiram os generais-
presidentes, ministros, empresários, padres, delegados de polícia,
militares, professores e jornalistas bem pagos; os comunistas foram
obrigados à clandestinidade, presos, torturados, “desaparecidos” e
exilados – em suma, a “revolução de 1964” foi feita contra a
“corrupção” e a “infiltração comunista”.
Pois bem: ao fim de vinte anos, todos descobrem que
tivemos duas décadas de corrupção generalizada, de
arbitrariedades contra os direitos humanos e que o país foi
mergulhado numa crise econômica e social sem precedentes na sua
história – há uma dúvida externa monstruosa, existem cerca de 35
milhões de menores carentes, o desemprego é brutal, a miséria
cresceu e, em todo esse processo, os pobres se empobreceram mais,
e os ricos ficaram mais ricos (a distribuição de renda nacional, hoje,
é de tal ordem que 51% dela estão concentrados nas mãos de
apenas 10% de brasileiros). Diante disto, as pessoas honestas se
indagam se o anticomunismo desses vinte anos não foi somente o
pretexto para impor aos brasileiros um regime ditatorial, que
organizou a economia e a sociedade em benefício dos poderosos e
dos exploradores do povo.
A resposta é mesmo esta: o anticomunismo é sempre um
verniz, uma cobertura para disfarçar interesses antidemocráticos e
antipopulares. A democracia não pode conviver com o
anticomunismo, que é a arma dos reacionários e dos fascistas.
Naturalmente, isto não quer dizer que todos os democratas sejam
adeptos do comunismo ou simpáticos a ele; conservadores,
democrata-cristãos, liberais, trabalhistas, social-democratas e
socialistas não são comunistas, mas compreendem que a defesa das
suas ideias deve ser feita através de argumentos políticos e não do
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uso da força e da repressão. É preciso diferenciar os não
comunistas dos anticomunistas. Há muitos democratas não
comunistas; os anticomunistas, porém, jamais são democratas.
Voltemos, todavia, às pessoas “normais”, iguais a todos nós,
a quem os comunistas foram apresentados como “agitadores” ou
“traidores da pátria”. Como explicar a elas que notáveis brasileiros
tenham sido comunistas – um intelectual como Astrojildo Pereira,
um romancista como Graciliano Ramos, um médico como Samuel
Pessoa, um pintor como Cândido Portinari, teatrólogos como
Oduvaldo Vianna (o pai e o filho)? Ou que sejam comunistas
historiadores como Caio Prado Jr., cientistas como Mário
Schemberg, arquitetos como Oscar Niemeyer e comentaristas
esportivos como João Saldanha?
Este livrinho quer ajudar a solucionar algumas destas
dúvidas. Escrito para o leitor iniciante, não pretende “fazer a
cabeça” de ninguém: seu objetivo, numa linguagem simples e
direta, é fornecer uma noção clara do pensamento e do ideal
comunistas e da razão da sua influência no mundo de hoje.
Obviamente, ele não é mais que um ponto de partida: a questão
comunista é muito complexa para ser tratada com profundidade em
tão poucas páginas. A pretensão do autor, fiel ao espírito desta
coleção, é oferecer ao leitor tão-somente um marco de referência
para que ele possa localizar-se minimamente na discussão que é a
mais decisiva do nosso tempo.
Finalmente, é preciso dizer que este livrinho não é
“imparcial”: nos embates da sociedade, não há “imparcialidade”;
quem defende posições “neutras” está enganado ou enganando.
Como facilmente se pode verificar, quem assina estas linhas
escolheu o seu lado há muito tempo. Mas esse posicionamento
definido não vai prejudicar a análise do leitor: entre tantos que
falam do comunismo a partir de uma opção anticomunista, é útil
ouvir uma voz dissonante.

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I. COMUNISMO, DESIGUALDADES SOCIAIS E
DIFERENÇAS INDIVIDUAIS

Diz-se que o comunismo quer tornar “iguais” todas as


pessoas – na realidade, é generalizada a ideia segundo a qual o
projeto comunista é a proposta de uma sociedade em que reine uma
igualdade total. É compreensível, frente a esta noção, que as
pessoas alimentem sérias reservas em face do projeto comunista.
Afinal, uma sociedade em que todos sejam absolutamente iguais,
idênticos, deve ser (seguramente é) o império do tédio; e, depois,
as desigualdades entre os homens são tão constantes na história que
o senso comum as considera como eternas e inelimináveis.
Teremos ocasião, mais adiante, de precisar com mais
cuidado o conteúdo do projeto comunista. Mas, desde já, é
necessário afirmar que o componente igualitário do comunismo
refere-se exclusivamente às oportunidades sociais reais que a
sociedade deve oferecer a todos e a cada um dos indivíduos para o
desenvolvimento da sua personalidade. A igualdade que está na
base do comunismo não tem nada a ver com um eventual projeto
de sociedade centrado na identidade entre as pessoas: o que os
comunistas defendem é a igualdade social, justamente para que
todos e cada um dos indivíduos possam desenvolver as suas
características pessoais sem obstáculos e constrangimentos. No que
se relaciona a este problema, os textos de Marx – o fundador do
comunismo – são nítidos e cristalinos, não deixando qualquer
margem para dúvidas.: a igualdade social é apenas o pressuposto
para o livre desenvolvimento dos indivíduos.
No entanto, o senso comum não só confunde igualdade com
identidade como está convencido de que a própria proposta da
igualdade social é inviável, uma vez que precisamente a
desigualdade parece algo presente ao longo de toda a história da
humanidade. Isto é um equívoco.
Há toda uma série de indicações (antropológicas e
históricas) que permite afirmar, com muita segurança, que as
desigualdades sociais entre os homens nem sempre existiram.
Pesquisas dignas de crédito sugerem que as desigualdades sociais
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começaram a aparecer no interior da sociedade humana a partir de
um certo nível do seu desenvolvimento – e, desde então,
converteram-se num traço constante da organização social dos
homens.
As hipóteses mais plausíveis são aquelas que sustentam que
tais desigualdades surgiram quando os grupos humanos transitaram
do estágio do nomadismo (no qual se organizaram em tribos e clãs,
sem se fixarem em áreas determinadas) para a vida sedentária (ou
seja, localizada num território preciso). O sedentarismo,
concomitantemente à agricultura e ao pastoreio, representou uma
verdadeira mudança de qualidade na organização social dos
homens. Nos seus desdobramentos, ele veio criar as condições para
a dissolução da forma inicial dos grupos humanos, que
desconheciam a propriedade privada dos meios essenciais para a
sobrevivência (terras, mananciais, rebanhos etc.). Aos poucos,
desapareceu a chamada comunidade primitiva, no seio da qual
reinava a igualdade.
Essa igualdade, marca singular dos estágios iniciais da
organização social dos homens, não deve ser idealizada. Ela era
decorrência do baixo nível de desenvolvimento dos grupos
humanos, da sua impotência ante os fenômenos da natureza, da sua
falta de controle sobre o meio ambiente. Fundamentalmente, ela
resultava da miséria objetiva em que viviam os homens: somente a
apropriação coletiva dos recursos e bens permitia a sua
sobrevivência e reprodução.
A dissolução da comunidade original, baseada nesse
comunismo grosseiro (ou “comunismo primitivo”), foi um
importante progresso na história humana. Tornando-se possível,
pela agricultura e pelo pastoreio, reduzir a miséria objetiva e
produzir bens em maior quantidade, a sociedades se fraturou: no
seu interior, alguns grupos de homens – evidentemente pelo uso da
força – começaram a concentrar riqueza e poder em detrimento da
maioria. Gradualmente, esse poder e essa riqueza (expressos na
posse de propriedades privadas e instrumentos de guerra) foram-se
consolidando e introduziram hierarquias na sociedade, instaurando
várias ordens de desigualdades sociais. Essa diferenciação no
interior da sociedade humana, cobrindo uma larga etapa histórica,
está na origem das organizações sociais que conhecemos como
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sociedades divididas por interesses antagônicos de grupos de
homens – e, no fundo, o que passou a decidir da posição dos
homens na hierarquia social é o serem ou não proprietários de
recursos e bens essenciais para a produção e a reprodução da
sociedade. Desde então, boa parte da sorte das pessoas passou a
depender de possuírem ou não uma propriedade desse tipo.
Naturalmente, tal diferenciação foi um processo nada
idílico, cujo motor residiu sempre na violência. A partir dele, as
sociedades humanas perderam aquele primitivo caráter
comunitário, passando a desenvolver-se segundo a lógica das lutas
entre uns poucos possuidores e a massa dos despossuídos (lutas
entre homens livres e escravos, patrícios e plebeus, nobres e
servos). Sob formas e com conteúdos diversos, este corte
antagônico entre proprietários (que, detendo o poder, exploram a
oprimem) e não-proprietários (frequentemente explorados e
oprimidos) veio reproduzir-se, da Antiguidade aos nossos dias, nos
vários tipos de organização social que se sucederam, pelo menos
no Ocidente – a escravista, a feudal e a burguesa moderna
(capitalista).
As desigualdades sociais – derivadas, essencial mas não
exclusivamente, da relação de propriedade – que acompanham a
evolução dos homens desde a dissolução da comunidade primitiva
não devem ser julgadas moralmente (ainda que o julgamento moral
seja importante). Elas devem ser observadas enquanto fatos
históricos; e, como fatos históricos, têm funções diferentes no
tempo e aspectos simultaneamente progressistas e negativos.
Quando do seu aparecimento, por mais brutal que esse tenha
sido, a diferenciação entre os poucos poderosos e ricos e as massas
subordinadas e pobres foi um evento que beneficiou o
desenvolvimento da humanidade. A concentração da riqueza social
– ela mesma ainda em níveis muito baixos – em poucas mãos
liberou alguns grupos de homens da luta imediata pela
sobrevivência, os quais puderam dedicar-se a atividades
crescentemente espirituais – notadamente a magia (que,
posteriormente, daria origem à religião, à filosofia, à ciência à arte).
De uma forma ou de outra, os conhecimentos produzidos nessas
atividades acabaram por penetrar na vida cotidiana, interferindo
positivamente nas condições de geração de riquezas sociais.
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Ao mesmo tempo, esse processo de diferenciação social foi
criando as bases para a diversificação e o desenvolvimento de
qualidades humanas específicas. Em face da comunidade
primitiva, praticamente não se pode falar de pessoas ou indivíduos:
as miseráveis condições de vida impunham um gregarismo, um
coletivismo que não permitia que alguns homens se destacassem
duradouramente entre outros; nela, é quase certo que a igualdade
social equivalia à identidade entre os homens. O indivíduo humano
– particularizado pela sua personalidade – ainda não se
diferenciava no interior do gênero humano. Precisamente o
aparecimento das desigualdades sociais possibilitou que alguns
representantes do gênero humano desenvolvessem atividades que
redundaram em atributos (políticos, estéticos, científicos,
filosóficos) que os individualizaram e que, ulteriormente,
tornaram-se qualidades próprias do que se chama de essência
humana. Esta, é claro, não é algo dado para todo o sempre,
imutável; é um conjunto de personalidades (o trabalho criador, a
socialidade, a consciência, a liberdade) que humaniza os homens e
se constrói na história.
A evolução que estamos esquematizando em tão curtas
linhas é paradoxal: o surgimento das desigualdades sociais,
propiciando a opressão e a exploração de grandes massas por um
punhado de ricos e poderosos, também criou condições para o
crescimento da riqueza social e das personalidades humanas. Este
paradoxo, contudo, era necessário, dados os baixos patamares em
que se encontrava o desenvolvimento da sociedade; e essa
característica contraditória dos processos sociais (o progresso se
realizando a custos humanos muito grandes) será permanente em
todas as sociedades divididas por antagonismos de grupos.
Na verdade, só muito mais tarde é que esse caráter
antagônico pôde ser eliminado. Até finais do século XVIII e
meados do século XIX, quando a revolução industrial criou as
condições para a produção massiva de bens e potenciou a riqueza
social, aquele paradoxo era insanável. Como teremos oportunidade
de verificar, com a revolução industrial, e o coroamento da
revolução burguesa que lhe é estreitamente vinculado, todo o
quadro do desenvolvimento social se alterou. Antes, porém, as
desigualdades sociais foram a condição necessária para todo o
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pregresso material e espiritual – a grandeza da civilização grega e
da sua filosofia, por exemplo, são impensáveis sem a existência da
escravatura.
Nesse processo, o aspecto que nos interessa realçar é o da
relação entre desigualdades sociais e diferenças individuais.
Sabemos que os homens são diferentes: é praticamente
impossível encontrar um que seja idêntico ao outro. Os homens, na
sua evolução histórica, tornaram-se indivíduos irrepetíveis, que se
distinguem entre si por características intelectuais (talento,
criatividade), morais (generosidade, combatividade) e inclusive
pela combinação original de traços físicos. E sabemos, também,
que os pressupostos para o desenvolvimento dos homens são os
mesmos para todos ele; ou seja, sabemos que os homens são iguais
– pretos, brancos, europeus, asiáticos, nórdicos, tropicais. Este são
os dados da ciência moderna: os homens têm em comum um
denominador que os torna fundamentalmente iguais entre si
(constituem o gênero humano); mas combinam as qualidades que
esse gênero desenvolveu na história (a essência humana) de modo
diferencial e peculiar e, por isso, são indivíduos diferentes (têm
personalidade própria e singular). A igualdade básica de todos os
homens não quer dizer que sejam idênticos: significa que,
submetidos às mesmas circunstâncias, têm igual possibilidade de
desenvolver sua personalidade.
Ora, o fato histórico de esse desenvolvimento ter sido
originalmente propiciado pelas desigualdades sociais criou a base
para a mistificadora tese de que elas são causadas pela
diferenciação entre os indivíduos. A partir daí, pôde ter curso não
só a ideia de que há uma relação necessária e eterna entre
desigualdade social e diferenciação individual como, ainda, de que
os “superiores” na hierarquia social estariam nessa situação porque
seriam também “superiores” em termos de capacidade, talento etc.
Nas ideologias racistas, essa ideia é levada ao seu limite mais
extremo: como os brancos (os colonialistas europeus) dominaram
por séculos a Ásia e a África, “deduz-se” que isto se deve à sua
“capacidade inata” – logo, amarelos e negros seriam “menos
capazes”, “inferiores” (na mesma ótica se inserem os delírios
nazistas acerca da “superioridade da raça ariana”). Essas ideias não
resistem à menor análise racional – e, se se mantêm, é porque
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servem a interesses muito particulares de opressão e exploração.
Os atributos humanos do homem nada têm a ver com suas
características físicas e biológicas; são atributos sociais (que,
obviamente, supõem a existência de um ser natural, orgânico,
vivo).
Se, quando se dissolve a comunidade primitiva, a luta contra
as desigualdades sociais estava condenada ao fracasso porque elas
eram necessárias e funcionais para a diferenciação dos indivíduos
e o progresso do gênero, para o próprio florescimento das
diferenças individuais, hoje a situação é totalmente diversa. Pelo
menos desde meados do século XIX, a luta contra as desigualdades
sociais é a luta para que todos os homens possam desenvolver,
plena e diferencialmente, as suas personalidades.
Atualmente, pugnar pela supressão das desigualdades
sociais – pugna que é um dos traços característicos do projeto
comunista – equivale a lutar por uma sociedade em que todos os
homens tenham acesso a oportunidades reais iguais de
desenvolvimento. E isto não para fazer que eles se tornem
idênticos, mas para que possam explicitar e objetivar as diferenças
que os particularizam. Trata-se, hoje, entre outras grandes
transformações, de fazer com que o desenvolvimento dos
indivíduos não seja contraditório em relação ao desenvolvimento
do gênero humano – numa palavra, trata-se de lutar por uma nova
comunidade humana. Esta proposta humanista é a moldura na qual
se insere o ideal ético do movimento comunista.

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II. PROTESTOS E UTOPIA

A dissolução da primitiva comunidade igualitária entre os


homens foi um processo doloroso e traumático. Desenrolando-se
na mais alta Antiguidade, suas profundas consequências
percorreram o Mundo Antigo, a Idade Média e vieram projetar-se
nas Idades Moderna e Contemporânea (as atuais sociedades
divididas em classes não podem ser compreendidas em sua gênese
e formação sem a referência ao colapso da igualdade primitiva).
Por um longo período histórico, os homens conservaram a
memória daquela organização antiga. E, defrontados com as novas
organizações sociais, marcadas pela exploração e pela opressão,
frequentemente idealizaram o passado igualitário como uma “idade
de ouro”: as pesquisas históricas registram muitos mitos, através
dos quais os povos reconstroem imaginariamente a sua origem,
num quadro de harmonia e felicidade. Essa mitificação do passado
constituía, naturalmente, uma reação ao presente. Era uma das
maneiras mediante a qual os homens assinalavam o seu repúdio às
suas condições de vida reais e vigentes.
Com efeito, a recusa à organização social estruturada à base
de interesses antagônicos entre grupos, com as desigualdades
decorrentes da acumulação e concentração de poder e riqueza, tem
sido uma característica constante da evolução social. O sonho da
restauração da igualdade anterior mantém-se sempre como uma
forma de resistência – e nem mesmo a sua incapacidade para deter
ou travar a dinâmica social toma-o menos caro aos homens.
No entanto, os grupos oprimidos e explorados (que, de fato,
eram a massa das populações) não limitaram o repúdio à
organização social vigente ao plano do imaginário. Em todas as
latitudes e por mais diversas que tenham sido as sucessivas ordens
sociais, a resistência das massas às expressões da desigualdade
social tem-se manifestado de forma prática: à violência dos
poderosos e ricos, elas respondem com a violência da sublevação.
Uma ilustração privilegiada dessa resistência é fornecida
pela história social de Roma, no período imediatamente anterior ao
nascimento de Cristo. Em Roma, além da divisão entre patrícios
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(latifundiários abastados) e plebeus (aldeões pobres), o corte
decisivo era entre homens livres e escravos. Justamente estes
protagonizaram as lutas mais importantes contra a opressão e a
exploração – a primeira revolta de que se tem notícia precisa, em
Alúpia, no ano 187 a.C., foi sufocada brutalmente: mais de 7000
escravos foram crucificados. As malogradas tentativas reformistas
dos Graco (por volta de 130 a.C.) não contemplavam os escravos,
que se sublevaram novamente na Sicília, em duas oportunidades
(134-132 e 104-101 a.C.). A movimentação mais significativa,
porém, ocorreu entre 73 e 71 a.C.: foi a insurreição comandada por
Espártaco, que sacudiu a dominação escravista e se saldou com a
chacina dos rebelados.
A crônica das insurreições populares no Mundo Antigo é
longa. Mas há que assinalar que a resistência à ordem social
assentada nas desigualdades teve outro tipo de modalidade: a
daqueles grupos que, afastando-se da sociedade existente,
procuravam formas alternativas de organização comunitária.
Quase sempre, esses grupos se articulavam depois que a ordem
vigente já havia sido denunciada em suas mazelas e crueldades.
Assim foi, por exemplo, na Palestina pré-cristã: na sequência do
clamor dos profetas hebreus (com especial destaque para Isaías)
contra a opressão e as desigualdades, surge, no século II a.C., a
seita dos essênios, que se organiza abolindo a escravidão e a
propriedade privada.
A verdade é que mesmo os representantes mais
conservadores do Mundo Antigo reconheciam que a ordem social
subsequente à dissolução da comunidade primitiva continha
elementos que a tornavam repugnante aos homens. Um desses
conservadores, o filósofo grego Platão (427-348 a.C.), propôs uma
organização social dirigida por sábios, na qual a massa da
população deveria viver em condições igualitárias.
A pouco e pouco, o que surgiu, no ocaso do Mundo Antigo,
foi a condenação moral das desigualdades sociais. Gradualmente,
emergia a noção de justiça social: à nostalgia o passado igualitário
misturava-se e sobrepunha-se a ideia de que a ordem social
controlada pelos poderosos e ricos era injusta. Essa consciência
moral, constituída historicamente e que tem desempenhado um
papel importante na cultura do Ocidente, encontrou um momento
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alto no cristianismo. Reformador social que rechaçava as formas
insurrecionais de luta, Jesus fez uma pregação dirigida
especialmente às massas espoliadas; e foram estas que deram ao
cristianismo, nos seus três primeiros séculos de existência, um
conteúdo de fraternidade e comunhão humanas que apavorava os
grupos poderosos. Fundado exatamente no clamor por justiça para
os oprimidos e deserdados, o cristianismo teve um destino curioso:
absorvido pelas camadas dominantes no crepúsculo do Mundo
Antigo, viu esvaziada a sua mensagem humanista na prática da
Igreja oficial, que acabou por se arranjar com os poderosos.
Entretanto, paralelamente à Igreja que pretende reconciliar
opressores e oprimidos, existirão sempre as tendências cristãs
inspiradas na origem do movimento, voltadas para a defesa dos
pobres e explorados.
Foram tais tendências que, durante boa parte da Idade
Média, animaram as heresias. Entre essas, sempre reprimidas pela
Igreja oficial (que, para combate-las, terminou por criar a Santa
Inquisição), muitas merecem realce pelos seus projetos de construir
ordens sociais igualitárias. Sua tradição é rica, assentada na ideia
de um “reino milenar” de fraternidade e caridade – partindo,
sobretudo, da antiga pregação dos quiliastas, ela desembocou nos
cátaros e bogomilos da Bulgária.
Na Idade Média feudal, no entanto, a resistência à ordem
social das desigualdades teve nos camponeses o seu agente mais
significativo. Notadamente a partir do século XIV, sublevações
agrárias agitaram a Europa Central e Ocidental. Também aqui a
crônica é vasta, iniciando-se nos Países Baixos em 1323 (as lutas
em Brugues, contra os franceses) e rebatendo finalmente na guerra
civil inglesa (1642), às quais, ao lado de Cromwell (1599-1658),
alçaram-se os radicais niveladores. Entre esses marcos extremos,
três movimentos puseram em questão a ordem feudal: a jacquerie
francesa (1358) – os nobres chamavam os camponeses,
pejorativamente, de Jacques –, a insurreição inglesa de 1381 e a
guerra camponesa alemã de 1525, na qual teve papel importante
Thomas Munzer (1489-1525).
Nenhum desses movimentos alcançou êxito: todos se
concluíram com a derrota e o martírio dos sublevados. Contudo, no
entrecruzamento de exigências materiais (melhores condições de
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vida) com exigências morais (a requisição da justiça social), eles
mantiveram acesa a chama do inconformismo com a organização
social que confere a uns poucos poder e riqueza e condena a
maioria à miséria. Esse inconformismo ganhou uma nova
expressão entre os séculos XVI e XVIII – precisamente quando os
grandes descobrimentos e o renascimento das atividades
comerciais vieram favorecer o colapso do feudalismo, fortalecendo
o grupo social que deu origem à burguesia. Trata-se de uma
expressão literária, em que a recusa da sociedade existente (através
de uma crítica minuciosa das instituições e dos costumes) não se
refugiava na nostalgia do passado ou no mito da “idade de ouro”;
a nova expressão do inconformismo e do protesto se dirigia para o
futuro, imaginando sociedades que não apresentassem mazelas ou
injustiças.
A primeira e mais famosa dessas expressões (que inspirou
dezenas de outras nos dois séculos seguintes) foi obra do católico
inglês Thomas Morus (1476-1535), que ocupou altos cargos
políticos e morreu executado por Henrique VIII. Em 1518, Morus
publicou um livro intitulado Utopia, no qual, para realçar os
defeitos e imperfeições da organização vigente na Inglaterra,
contrapõe-na à sociedade existente numa ilha imaginária, a de
Utopia. Este é o ponto de vista de Morus: “Sempre que a
propriedade é privada ou que o dinheiro é a mediada de todas as
coisas, é difícil ou quase impossível dar à comunidade um governo
justo e garantir o bem-estar social geral“. Sobre essa base, ele
elaborou uma arguta crítica da sociedade inglesa e apresentou a
alternativa para ela: a modelar Utopia, confederação democrática
de 57 distritos autônomos, onde não haveria propriedade privada e
reinaria completa liberdade, onde a guerra seria desconhecida, o
trabalho, garantido, e a instrução, universal.
O procedimento de Morus foi inovador: remeteu para o
futuro a resolução das desigualdades sociais, imaginando a
construção de uma sociedade perfeita, em que os homens
resgatariam a comunidade perdida. Essa construção ideal, porém,
carecia de um componente: os meios para realizá-la praticamente
– o que Morus não indicou foi como transformar esse ideal em
realidade. E ele não deu esse passo por uma razão simples: no seu
tempo, faltavam as condições histórico-sociais para resolver a
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questão essencial de identificar qual seria o agente da
transformação social – só mais tarde é que o próprio
desenvolvimento histórico respondeu a esse problema. A sua obra,
por este motivo, permanece como exemplo da indicação de uma
tarefa insolúvel e, por isso mesmo, vulgarizou-se indevidamente a
palavra utopia para designar projetos irrealizáveis.
De qualquer maneira, a obra de Morus alcançou grande
repercussão. Depois dela vieram numerosas construções utópicas
de sociedades liberadas de misérias, entre elas A Nova Atlântida,
do também inglês Francis Bacon (1560-1626) e A Cidade do Sol,
do italiano Tammaso Campanella (1568-1639), sem mencionar os
textos similares de Mably (1709-1785) e de Morelly (1715?-
1755?). Até mesmo em Rousseau (1712-1778), o genial genebrino
que antecipou as bases da crítica democrática à sociedade moderna,
encontrou eco a ideia elementar que se cristalizara na Utopia: a
ideia de que a origem da desigualdade social reside na propriedade
privada.
A tradição histórica da recusa da sociedade dividida por
interesses antagônicos de grupos sociais diferentes – tradição que
envolve os protestos mediante as insurreições, a exigência da
justiça social e as construções utópicas, atravessando a
Antiguidade, percorrendo a Idade Média e penetrando os tempos
modernos – veio a sofrer uma radical alteração na passagem do
século XVIII para o XIX. Trata-se da alteração que, propiciada
com a consolidação da sociedade burguesa, desaguou na
constituição do pensamento e do movimento comunistas. Estes são
os herdeiros daquela tradição humanista e vão recoloca-la sobre
novas bases.

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III. A REVOLUÇÃO BURGUESA E A CRÍTICA
SOCIALISTA

Na passagem do século XVIII ao XIX, configurou-se, na


Europa Ocidental, a sociedade moderna, cujo perfil decisivo se
consolidou na segunda metade do século XIX. Essa sociedade, cujo
fundamento consistia na predominância do modo de produção
capitalista e seu ulterior desenvolvimento, foi produto de uma
evolução multissecular, que culminou, na transição dos séculos
mencionados, numa profunda inflexão histórica. Trata-se da
inflexão operada pela revolução que instaurou a sociedade
chamada burguesa ou capitalista.
Dois movimentos intimamente vinculados, expressando o
mesmo e único processo histórico, deram forma e conteúdo ao
nascimento da nova sociedade: de uma parte, as modificações que,
desde meados do século XVIII, se verificaram nos modos de
exploração dos recursos naturais e da produção de bens; de outra,
as transformações sociais e políticas que, paralelas àquelas
modificações, alteraram substancialmente a estrutura social e os
padrões de poder. O primeiro movimento é o que deu origem,
liquidando com o velho artesanato e os mercados locais e regionais,
à indústria moderna e ao mercado mundial – a revolução industrial,
cujo aparecimento mais exemplar se registrou na Inglaterra. O
segundo é o que está na base da organização político-social
assentada na igualdade dos cidadãos perante a lei – a revolução
burguesa, cujo exemplo mais clássico é fornecido pela Revolução
Francesa.
Como dissemos, esses dois movimentos constituem
aspectos de um mesmo processo histórico: o processo de
dissolução da sociedade feudal, fundada essencialmente na
propriedade da terra como fonte de poder, prestígio e riqueza, em
grupos sociais estáveis (nobreza e servos) e determinados por
relações de natureza pessoal (os compromissos de lealdade entre
suserano e vassalo) – relações idílicas –, em que a exploração era
garantida por formas de violência extra-econômica (o servo estava
preso à terra e, portanto, não tinha como escapar à corveia – o
19

trabalho compulsório para o senhor). Esse, na verdade, foi um
processo extremamente cruel e doloroso: a emergência da indústria
moderna, com todas as suas implicações, acarretou a ruína dos
antigos artesãos e, sobretudo, a expulsão de milhões de
camponeses de suas aldeias – foram eles que vieram para as
fábricas nascentes, onde o regime de trabalho mais brutal não
poupava a saúde de mulheres e crianças. A violência que marcou o
nascimento da sociedade burguesa está longe de ser avaliada, mas
a análise histórica a revela como algo comparável aos momentos
mais bárbaros da Antiguidade.
Essa crueldade, entretanto, também foi progressista: a
afirmação da sociedade burguesa significou um enorme avanço na
história do gênero humano, um grandioso salto adiante na vida
social. Imensas forças produtivas, conectando a ciência à produção,
foram liberadas, propiciando um maior controle sobre a natureza e
a fabricação massiva de bens. A industrialização engendrou um
novo tipo de urbanização – o tradicionalismo da vida rural, com a
sua estreiteza de horizontes, foi deslocado pela dinâmica da cidade.
Os vínculos rígidos que detinham as relações sociais no interior da
dependência personalizada foram liquidados pela mercantilização
de todas as atividades, agora enlaçadas pela remuneração em
dinheiro. A nova forma da organização econômica delineou uma
divisão mais nítida e clara entre os homens, estabelecendo
hierarquias a partir de verdadeiras classes sociais, menos
estratificadas que as camadas das sociedades precedentes, e a
violência extra-econômica, que sempre garantiu a exploração da
massa dos homens por minorias, teve seu papel reduzido,
substituída por mecanismos estritamente econômicos (o “contrato
livre de trabalho”). Sob todos os aspectos, a instauração do mundo
burguês – em que a lógica do capital sobrepõe-se a todas as
considerações, sejam elas de qualquer natureza – foi um formidável
progresso.
Para os fins da nossa argumentação, dois elementos
importantes devem ser destacados no processo de instauração da
sociedade burguesa: o seu caráter explicitamente contraditório e
conflituoso e as condições que ela põe para uma nova forma de
reflexão sobre o fenômeno social.

20

A dinâmica da sociedade burguesa aparece claramente como
uma sucessão de contradições. Propiciando a produção massiva de
bens, ela a realiza concentrando num polo a riqueza e noutro a
penúria – a abundância caminha ao lado da miséria; o progresso se
acompanha, inexoravelmente, de barbaridades. Ao mesmo tempo
em que afirma que todos os homens são legalmente iguais,
estabelece na prática da vida um rosário de desigualdades – a
igualdade formal corre paralela à desigualdade real. A períodos de
prosperidade industrial seguem-se períodos de crise e depressão –
a instabilidade e a insegurança fazem parte da sua existência.
Criando requisitos para que todos os homens participem das
decisões políticas, cria igualmente os dispositivos que restringem
as liberdades e tornam o exercício do poder só acessível a poucas
elites. Essas contradições – e infinitas outras – não são episódios
ou acidentes: elas constituem o próprio ser da sociedade burguesa.
E justamente elas fornecem a base para que os homens possam
entender a vida social não mais como processos equilibrados e
harmônicos, e sim como o cenário inevitável de conflitos, lutas e
dramas.
Por outra parte, e em estreita conexão com essa dinâmica
contraditória, a sociedade burguesa possibilita aos homens pensá-
la como fenômeno social com parâmetros antes desconhecidos: a
sociedade pode aparecer aos homens não como fato dado,
acabando como a natureza, mas como algo em desenvolvimento e
que tem muito a ver com a própria atividade deles. Torna-se
possível compreender que os deuses, o destino ou forças extra-
humanas não regem a vida social, e sim que ela é, essencialmente,
produto da intervenção, da interação e do choque das vontades
humanas. Vale dizer: os homens podem chegar à compreensão de
que a vida social (e, pois, as suas vidas mesmas) não está pré-
determinada; podem compreender que a vida social é passível de
ser mudada por eles. A sociedade burguesa coloca na vida dos
homens uma realidade nova: através das contradições que
constituem a vida social, a dimensão da história converte-se em
componente perceptível – deixa de ser algo remoto para tornar-se
a resultante das suas lutas.
Em síntese: com a revolução burguesa, a crítica da sociedade
pôde romper com as suas formas anteriores (os discursos
21

religiosos, filosóficos ou literários, de natureza utópica) e ganhar
um novo estatuto – o estatuto de teoria social, à qual se prendem o
pensamento e o movimento comunistas.
Esta transformação, é óbvio, não ocorreu repentinamente.
Produto da dinâmica contraditória da sociedade burguesa, ela surge
na intercorrência de vetores políticos e culturais.
No plano político, a sua base é a formação do movimento
operário, que se ergueu na Europa Ocidental na metade inicial do
século XIX. Se, desde os primeiros momentos da revolução
burguesa, os operários apoiaram a burguesia em seu combate à
nobreza feudal e aos absolutismos, também desde os primeiros
momentos da industrialização levantaram o seu protesto contra a
exploração burguesa e a miséria a que esta os condenava.
O protesto operário resgatava lutas sociais anteriores e teve
muito a ver com os movimentos radicalizados dos finais do século
XVIII – como a “conspiração dos iguais”, que Babeuf (1760-1797)
animou na França de 1797. No início do século XIX, tomava a
forma de revolta contra as máquinas (o luddismo inglês, por volta
de 1810). Pouco a pouco, transitando por sociedades secretas e
conspirativas – como as estruturadas pelo francês Blanqui (1798-
1854), logo depois da revolução de 1830, ou as “ligas” dos
operários alemães no exílio –, ele avançava pelas formas
associativas que vieram derivar no sindicalismo, de que é exemplo
relevante o cartismo (que se desenvolveu na Inglaterra entre 1836
e 1850). Quanto mais forte foi esse movimento operário – exigindo
a limitação e a redução da jornada de trabalho, melhores condições
salariais, reclamando o direito ao sufrágio universal e à liberdade
de associação –, maiores foram as conquistas democráticas
alcançadas pelas massas populares. Aliás, a democracia burguesa
só foi construída graças a essas lutas; a burguesia, derrotada a
nobreza feudal, sempre fez o possível para restringir as instituições
democráticas por que ela mesma pugnara.
Progressivamente, as vanguardas mais combativas do
movimento operário perceberam que não bastava lutar no interior
dos marcos da sociedade burguesa. Passaram a compreender que,
nessa sociedade, embora fosse possível, através da mobilização e
da organização dos trabalhadores, melhorar as condições de vida
das massas, era inviável a supressão, a superação, das
22

desigualdades sociais. Assim, o protesto operário deixou de ser
simplesmente negativo e passou a ser a exigência positiva de uma
nova ordem social, que suprimiria as bases das desigualdades – o
movimento operário passou a propor soluções socialistas, isto é,
fundadas na liquidação da propriedade privada dos meios de
produção (terras, fábricas, usinas).
Essa passagem das vanguardas operárias, do puro protesto
às propostas socialistas, ficou nítida depois de 1848: nesse ano,
eclodiram insurreições operárias na Europa continental, que foram
brutalmente reprimidas pela burguesia. Então, ficou claro que os
interesses burgueses chocavam-se frontalmente com os dos
operários e que as belas palavras que empolgaram e catalisaram as
massas populares na revolução burguesa (liberdade, igualdade e
fraternidade) eram retórica para a nova classe dominante. Já na
metade do século XIX, as fronteiras de classe apareceram
meridianamente, e a antiga bandeira da justiça social se transferia
para as mãos daqueles que se confrontavam com a força do capital.
A passagem das vanguardas operárias do protesto negativo
(o anticapitalismo) às propostas positivas (o projeto de uma nova
ordem social, socialista) constituiu um dos elementos que
propiciou o aparecimento do comunismo, fundado na teoria social
de Marx. Trata-se mesmo, como indicamos, do seu pressuposto
político.
Mas esse componente político, por si só, não teria conduzido
a crítica da sociedade à teoria social, para o que concorreu
vigorosamente o elemento cultural que se desenvolveu
paralelamente a ele. Esse elemento, muito complexo e
diferenciado, remonta à preparação da revolução burguesa no
plano das ideias – ao Iluminismo e a seus filósofos, que
combateram as superstições, o obscurantismo e o absolutismo,
defendendo a liberdade de pensamento e expressão.
No imediato desdobramento da revolução burguesa, ele
evoluiu para investigações sobre o caráter da sociedade emergente.
De uma parte, procurava-se o entendimento das suas estruturas
econômico-sociais – surgiu a economia política na Inglaterra, com
os extraordinários estudos de Adam Smith (1723-1790) e David
Ricardo (1772-1823); de outra, pesquisava-se como se poderia
pensar as novas realidades na perspectiva de constantes e contínuas
23

modificações, cujo eixo eram as contradições – surgiu a filosofia
clássica alemã, cujo maior representante é Hegel (1770-1831).
Em estreita conexão com a economia política e a filosofia
clássica, o período pós-revolucionário viu surgir a crítica socialista
da sociedade burguesa: eram elementos de denúncia da miséria da
sociedade emergente, expressões de protesto contra as promessas
defraudadas da revolução – como, por exemplo, a importante obra
do médico inglês Charles Hall (1740-1820), Os Efeitos da
Civilização, publicada em 1805.
Mas essa crítica da sociedade burguesa não se limitou à
recusa: propôs uma nova ordem social, a socialista – a denúncia
dos males atuais se conectava à exigência de uma sociedade
alternativa. Nessa exigência é que se observa o que ela trazia de
novo em face das propostas utópicas anteriores, inspiradas por
Morus: agora, levavam-se em conta as realidades postas pela
revolução industrial – desde os conflitos entre nobres, burgueses e
proletários até a organização da produção com o auxílio das
máquinas. No entanto, essa crítica socialista continuou, em escala
considerável, defrontando-se com o problema da viabilização dos
seus projetos e não conseguiu estabelecer indicações seguras para
a ultrapassagem da sociedade burguesa – por isso a sua
contribuição ficou conhecida como socialismo utópico.
São três os mais importantes “socialistas utópicos”: Saint-
Simon (1760-1825) e Charles Fourier (1772-1837), franceses, e o
inglês Robert Owen (1771-1858). Para Saint0Somin, a sociedade
moderna vive o conflito entre os ociosos (todos os que devem a sua
existência ao parasitismo e às rendas, sem participar da produção
ou do comércio) e os trabalhadores (categoria que inclui operários,
empresários, comerciantes). Na sua ótica, a regeneração social só
seria possível se os trabalhadores assumissem a direção da
sociedade, vinculando a ciência e a indústria num “novo
cristianismo”.
As ideias de Sain-Simon assinalavam o surgimento do
socialismo utópico, mas ainda estavam longe de defini-lo com
clareza. Esse é o conteúdo da obra de Fourier: espírito irônico e
mordaz, ele elabora uma crítica impiedosa da sociedade burguesa
e é um dos primeiros a reconhecer que, nela, “a pobreza brota da
própria abundância”. Para superar a sociedade burguesa, Fourier
24

propunha uma organização social baseada nos falanstérios,
comunidades de natureza cooperativa nas quais, ainda que se
mantivessem as diferenças de classes (capitalistas, administradores
e operários), reinaria a felicidade: os homens tornar-se-iam sábios,
o casamento seria substituído por uniões livres, a educação das
crianças seria da responsabilidade da comunidade, e a cultura, um
bem público.
Quanto a Robert Owen, seu itinerário foi distinto:
empresário que se sensibilizou com o movimento operário, não se
limitou à crítica teórica – avançou para experiências práticas,
vinculou-se aos dirigentes sindicais da época, exerceu grande
influência entre os trabalhadores ingleses e muitos dos seus
discípulos tiveram papel de relevo no movimento socialista (aliás,
ao que tudo indica, o termo socialismo foi empregado pela primeira
vez por seguidores de Owen). Até 1823, Owen procurou soluções
de reformas nos marcos da sociedade burguesa, inclusive criando
bases do cooperativismo moderno (ele fundou várias cooperativas
de produção e consumo). Depois, já atuando junto de dirigentes
operários, Owen patrocinou a instauração de comunidades
socialistas (colônias) na Inglaterra e nos Estados Unidos – ideia
que, levada à prática, revelou-se um fracasso.
Com a ascendência quase tão forte como a de Owen sobre
os operários, deve-se mencionar o francês Pierre-Joseph Proudhon
(1809-1865). Célebre por afirmar que “a propriedade é um roubo”,
Proudhon advogava a cooperação entre os produtores e a
substituição do poder estatal centralizado burguês por uma
federação de comunas, nas quais inexistiriam desigualdades de
riquezas e de posses. Suas concepções, mais tarde, foram
retomadas por algumas correntes do movimento anarquista.
O desenvolvimento do movimento operário, de um lado, e,
de outro, o desses componentes culturais ocorreram durante toda a
primeira metade do século XIX; e os anos que vão de 1840 a 1850
foram extremamente ricos em experiências nos dois planos, o
político e o cultural – as lutas populares entraram num crescendo,
até chegarem ao ápice em 1848, e a elaboração da crítica socialista
também avançou a ponto de, no mesmo ano, desembocar na
primeira formulação do projeto comunista. Com efeito, meses

25

antes da eclosão das revoluções de 1848, publicava-se o Manifesto
do Partido Comunista.

26

IV. MARX E A FUNDAÇÃO TEÓRICA DO
COMUNISMO

Em fevereiro de 1848 foi publicado o Manifesto do Partido


Comunista, de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-
1895 – pelas mãos desses dois alemães nascia o comunismo,
assinalando a confluência do protesto anticapitalista do movimento
operário com os componentes culturais desenvolvidos no processo
da revolução burguesa e a sua elevação ao nível de uma teoria
social.
A partir das indicações que fornecemos no capítulo
precedente, o leitor pode observar com facilidade que o comunismo
não surgiu na Europa Ocidental de repente, como um raio
inesperado em céu tranquilo. As lutas operárias e a crítica socialista
haviam preparado, durante meio século, o terreno para o seu
aparecimento. Nessa perspectiva, portanto, a proposta comunista
de Marx e Engels revela-se como a culminação de um processo que
avançava desde os finais do século XVIII.
Mas, por outro lado, junto a essa continuidade concorre um
dado novo, inédito, que mostra a radical originalidade de Marx (e
de Engels) e de sua contribuição às lutas sociais: a sua proposta de
uma nova sociedade não se apoia somente na denúncia das misérias
e no desejo de uma vida melhor para os homens – a sua base é uma
análise teórica da sociedade capitalista. Esse fundamento teórico
confere ao pensamento comunista de Marx (e de Engels) uma
solidez tal que, à diferença das sugestões utopistas, ele passou a ser
conhecido como socialismo científico.
A proposta comunista de Marx (e de Engels) surgiu no
contexto das polêmicas que permeavam o movimento operário e
socialista da época. Marx debateu com Proudhon, polemizou com
os socialistas do seu tempo e incorporou muitas ideias que, por
assim dizer, estavam no ar. Foi no curso dessas polêmicas – que se
prolongariam até o fim de sua vida, como o provam as suas
discussões com as vertentes do socialismo de Estado do alemão
Ferdinand Lassalle (1825-1864) e do anarquismo do russo Mikhail
Bakunin (1814-1876) – que seu pensamento se definiu e se
concretizou. E, se é verdade que o socialismo científico resulta,
27

enquanto formulação intelectual, da extraordinária colaboração
entre Marx e Engels, é igualmente verdadeiro que a Marx coube o
papel central e determinante na elaboração da nova teoria (Engels,
aliás, sempre o reconheceu: depois da morte do companheiro,
costumava dizer que nunca passou de um “segundo violino”, de um
homem de talento que colaborara com um gênio).
Deve-se notar ainda que, formuladas explicitamente em
1848, as teses comunistas de Marx se articularam num longo
período de pesquisa e investigação, no decurso do qual se registram
giros e inflexões. Entre o início de sua carreira intelectual (1841) e
a publicação do primeiro livro d’O Capital (1867), decorreu a sua
experiência como líder revolucionário (1848-1849), o exílio em
Londres (a partir de 1850), o trabalho como jornalista e a direção
da Associação Internacional dos Trabalhadores (que fundou em
1864). Teórico e dirigente do movimento operário, Marx vinculou
a sua existência ao destino da classe operária e dos trabalhadores –
e nessa vinculação, que conectava a pesquisa teórica e a
intervenção política, localiza-se boa parte da peculiaridade de
Marx em face dos inúmeros pensadores socialistas.
A base cultural mais próxima da bagagem teórica de Marx
foi-lhe fornecida pelo pensamento que acompanhou a revolução
burguesa. Da economia política inglesa, ele tomou várias ideias, a
mais importante das quais é a do valor-trabalho (ou seja, a teoria
de que o trabalho é a fonte primária de todo o valor que se cria na
sociedade). Dos historiadores da Revolução Francesa, ele
assimilou a noção de que as lutas de classes funcionam como forças
motrizes do processo histórico. Dos filósofos alemães, ele recolheu
de Hegel o método dialético – a concepção de que toda realidade é
um processo dinâmico, em movimento e em devir, mobilizado por
contradições em que a positividade e a negatividade se fundem
numa totalidade que é sempre histórica – e de Feuerbach (1804-
1872) a inspiração materialista – a noção de que a explicação e a
compreensão dos fatos humanos encontram-se no interior das
relações entre os homens e não fora delas, uma vez que essas
relações resultam da interação humana e não do desejo ou vontade
de deuses ou entes sobre-humanos. Dos utópicos, ele recuperou
muitos temas da crítica socialista (a exploração das massas, a
subordinação da mulher etc.).
28

Das lutas sociais do seu tempo, Marx extraiu várias lições.
E três foram decisivas para ele:
1. Todas as tentativas de implementar reformas sociais
com os olhos postos no passado, visando a restaurar
modos de vida pré-capitalistas, estavam condenadas ao
fracasso; a roda da história não gira para trás; a
alternativa não estaria numa idílica comunidade pré-
industrial, ascética, mas no futuro, beneficiando-se das
riquezas tornadas possíveis pela produção em larga
escala, que incorpora a ciência e a tecnologia.
2. Na sociedade burguesa, só uma classe de homens teria
condições – pela sua própria situação no processo
produtivo – de conferir viabilidade a um consequente
projeto de transformação social radical: a classe
operária industrial, o proletariado.
3. O êxito desse projeto dependeria de um conhecimento
verdadeiro da sociedade burguesa, capaz de oferecer
ao proletariado uma visão correta e clara da sua
posição e suas possibilidades de luta.
A esse conhecimento verdadeiro – à teoria da sociedade
burguesa, estudo da sua gênese, seus desenvolvimentos, suas
contradições –, Marx dedicou todas as suas energias. E a sua
pesquisa se realizou, conjugado duas perspectivas: a histórica e a
sistemática.
Marx tratou a sociedade burguesa como produto de um
processo histórico multissecular, no qual certas possibilidades do
gênero humano (a essência humana a que fizemos referência no
capítulo I) não só se explicitam como, ainda, servem para iluminar
etapas históricas precedentes. Na ótica de Marx, é o presente que
esclarece o passado – o mais complexo ajuda a explicar o mais
simples. Por isso, ao estudar a sociedade burguesa, Marx fez
descobertas que não se restringem aos limites do capitalismo, mas
são válidas para outros períodos históricos. A mais importante
delas refere-se à condição do homem: Marx situa-o como um ser
prático e social, que se produz a si mesmo através das suas
objetivações (a práxis, de que o processo do trabalho é o momento
privilegiado) e organiza as suas relações com os outros homens e
com a natureza conforme o nível de desenvolvimento dos meios
29

pelos quais se mantém e se reproduz enquanto homem. E Marx
tomou a sociedade burguesa não como um todo (ou seja: um
conjunto de partes que se integram funcionalmente), mas como um
sistema dinâmico e contraditório de relações articuladas que se
implicam e se explicam estruturalmente (vale dizer, como uma
totalidade). A sua teoria apreende o movimento constitutivo do ser
social – movimento que se expressa sob formas econômicas,
políticas, sociais e culturais, mas que ultrapassa todas elas. Por isso,
a teoria da sociedade burguesa que ele construiu parte da análise da
organização da economia (a crítica da economia política), envolve
a análise da estrutura de classes e das funções do poder político (a
crítica do Estado) e das formas e conteúdos jurídico políticos (a
crítica da ideologia). Na teoria de Marx, a investigação dessas
dimensões do ser social remete de uma a outra – a análise do
movimento do capital remete à análise do movimento das classes
sociais etc.
A análise histórica e sistemática de Marx tem várias
características, duas das quais precisam ser destacadas.
Primariamente, embora opere com materiais que também são
objeto das chamadas ciências sociais especializadas (economia,
sociologia etc.), a teoria social de Marx se distingue delas porque
constrói uma visão totalizante do processo social.
Secundariamente, e em decorrência dessa mesma visão totalizante,
não existe na teoria de Marx qualquer concepção fatorialista da
sociedade ou da história (algo como a predominância abstrata do
“fator econômico” ou semelhantes).
Para Marx, a sociedade burguesa – que ele estudou tendo
como referência a Inglaterra, o país capitalista mais avançado do
seu tempo – é uma forma de organização social extremamente
dinâmica, a mais progressista de todas as embasadas na
propriedade privada dos meios de produção e na divisão social do
trabalho: nessa sociedade, todas as contradições do movimento
social alcançam o seu ápice e, no mesmo processo, se gestam as
condições para superá-las.
Generalizando e universalizando a troca mercantil, a
sociedade burguesa é atravessada por uma contradição insanável
nos seus marcos: a contradição entre o caráter social da produção
e a sua apropriação privada (pelos capitalistas). Antagonizando os
30

que detêm os meios de produção (capitalistas) com os que só têm
a sua força de trabalho (proletários), essa sociedade apenas se
desenvolve através de crises econômicas inelimináveis e vai
reproduzindo, em todos os seus níveis e planos, conflitos e tensões
que, acumulados e multiplicados, incompatibilizam a maioria dos
homens com o modo de vida imperante. A totalidade social é
penetrada, em todas as suas importâncias, pelas implicações das
contradições, que possuem seus próprios rebatimentos políticos e
culturais. As crises, em si mesmas, são uma condição da existência
dessa sociedade – e só são equacionadas, no limite, pela vontade
política das classes sociais fundamentais, constituídas pelos
capitalistas (burguesia) e pelos operários (proletariado). O
equacionamento dos capitalistas conduz à crescente barbarização
social; o dos proletários, à supressão do sistema, à revolução que
expressa os seus interesses gerais.
Interrompamos por um instante a nossa argumentação para
advertir o leitor sobre duas questões importantes. A primeira
refere-se ao esquematismo a que somos obrigados por razões de
espaço e do próprio caráter introdutório deste livrinho. Na
realidade, a análise de Marx é complexa, riquíssima – o resumo que
estamos fazendo aqui empobrece extremamente o conteúdo da
teoria marxiana, que trata desde os problemas relativos à
subjetividade dos homens até os mecanismos específicos dos
circuitos econômicos, no âmbito da lógica particular da sociedade
burguesa. Em segundo lugar, cabe destacar o traço rigoroso das
formulações de Marx: todas elas resultam de estudos do processo
social real; não há, em Marx, qualquer ideia preconcebida – suas
conclusões derivam da análise a que submete o material histórico
e empírico que examina.
O que é mais relevante, porém, é que, a partir de seus
estudos, a proposta de uma sociedade que erradique as
desigualdades sociais deixa de ser uma exigência moral, apoiada
na denúncia das injustiças, para se fundar em elementos históricos
e sociais concretos. Resgatando os antigos ideais de igualdade,
fraternidade e justiça, a teoria social de Marx lhes confere um novo
fundamento, que não é mais o puro desejo de homens altruístas e
generosos: Marx identifica na própria realidade o movimento
efetivo que abre a via para a construção de uma nova ordem social.
31

São as condições históricas postas pelo desenvolvimento do
capitalismo que viabilizam o projeto da nova sociedade: seu sujeito
é o proletariado, seu caminho é a revolução. O projeto da nova
sociedade não é mais um simples ideal: é o movimento real da
sociedade.
Como se opera esse movimento? Num texto conciso – As
Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo –, redigido
na passagem do trigésimo aniversário do falecimento de Marx,
Lênin resume as linhas-de-força da dinâmica econômico-social
desvendada por Marx:

“Marx (...) fundamentou com toda a precisão e


desenvolveu de forma consequente aquela teoria (a teoria do
valor-trabalho-JPN). Mostrou que o valor de qualquer
mercadoria é determinado pela quantidade de tempo de
trabalho socialmente necessário investido na sua produção.
Onde os economistas burgueses viam relações entre
objetos (trocas de umas mercadorias por outras), Marx
descobriu relações entre pessoas. A troca de mercadorias
exprime a ligação que se estabelece, por meio do mercado,
entre os diferentes produtores. O dinheiro indica que essa
ligação se torna cada vez mais estreita, unindo
indissoluvelmente num todo a vida econômica dos
diferentes produtores. O capital significa um maior
desenvolvimento dessa ligação: a força de trabalho do
homem torna-se uma mercadoria. O operário assalariado
vende a sua força de trabalho ao proprietário da terra, das
fábricas, dos instrumentos de trabalho. O operário emprega
uma parte do dia de trabalho para cobrir o custo do seu
sustento e de sua família (salário); durante a outra parte do
dia, trabalha gratuitamente, criando para o capitalista o
mais-valor, fonte dos lucros, fonte da riqueza da classe
capitalista.
A teoria do mais-valor constitui a pedra angular da
teoria econômica de Marx.
O capital, criado pelo próprio trabalho do operário,
oprime o operário, arruína o pequeno patrão e cria um
exército de desempregados. Na indústria, é imediatamente
32

visível o triunfo da grande produção; mas também na
agricultura deparamos com o mesmo fenômeno: aumenta a
superioridade da grande exploração agrícola capitalista,
cresce o emprego de maquinaria, a propriedade camponesa
cai nas garras do capital financeiro, declina e arruína-se sob
o peso da técnica atrasada (...)
Esmagando a pequena produção, o capital faz
aumentar a produtividade do trabalho e cria uma situação de
monopólio para os consórcios dos grandes capitalistas. A
própria produção vai adquirindo cada vez mais um caráter
social – centenas de milhares e milhões de operários são
reunidos num organismo econômico coordenado –,
enquanto um punhado de capitalistas se apropria do produto
do trabalho comum. Crescem a anarquia da produção, as
crises, a corrida louca aos mercados, a escassez de meios de
subsistência para as massas da população (...)
Ao aumentar a dependência dos trabalhadores em
relação ao capital, o regime capitalista cria a grande força de
trabalho unido”.

Nesta breve passagem, Lênin apanha alguns dos elementos


mais decisivos da dinâmica da sociedade burguesa descoberta por
Marx. De uma parte, surge com clareza o tipo especial de
exploração a que nela está submetido o trabalhador – uma
exploração que não recorre a outra violência senão à que está
embutida na própria relação expressa pelo salário (ou seja: uma
violência estritamente econômica). O salário recebido pelo
operário não paga o produto do seu trabalho: paga apenas uma parte
dele; a outra parte, o excedente de valor, o mais-valor, é apropriada
pelo capitalista. Essa diferença entre o valor produzido pelo
operário na sua jornada de trabalho e o valor que o capitalista lhe
reembolsa através do salário é o mais-valor. O salário, portanto,
oculta uma relação de espoliação.
De outra parte, aparece com nitidez a natureza do capital:
este não é simplesmente recursos materiais (dinheiro, máquinas,
terras) – é uma relação social, na qual tais recursos podem comprar
uma mercadoria especial, a força de trabalho do operário, que,

33

aplicada a outros objetos, gera exatamente aquele valor cuja
magnitude ultrapassa largamente o salário.
É no segredo da produção de mercadorias (produção
mercantil) da sociedade capitalista que se esconde o mecanismo da
exploração do trabalho – que não pode ser suprimido por qualquer
“salário justo”. E é no desenvolvimento dessa mesma produção que
a exploração essencialmente econômica transita para a opressão
social e política: para sustentar e gerir o sistema de exploração da
força de trabalho, a sociedade burguesa engendra formas de
controle do poder político que criam as condições para a
reprodução daquela exploração.
Assim, é à classe explorada pela extração do mais-valor e
impedida de fazer valer a sua vontade política que se reserva a
tarefa de suprimir, tanto as condições da exploração (a propriedade
privada dos meios de produção, que possibilita a apropriação do
excedente pelos proprietários) quanto as condições que asseguram
a continuidade da exploração (o poder político controlado pelos
capitalistas).
O proletariado tem a missão histórica de derrocar a
sociedade burguesa, não só porque é explorado e oprimido, mas,
sobretudo, porque a sua posição nessa sociedade faz dele o sujeito
revolucionário por excelência: a disciplina do trabalho, a
concentração que permite a organização num partido político
autônomo etc. Mais ainda: para libertar-se de toda opressão e
exploração, o proletariado tem de promover o fim de todas as
opressões e explorações. Quer dizer: na luta proletária contra a
opressão e a exploração convergem as lutas de todos os explorados
e oprimidos.
Contudo, para tornar-se sujeito revolucionário, o
proletariado tem de descobrir e reconhecer os seus interesses
históricos gerais – o que não é fácil, pois o sistema social burguês
produz representações ideológicas que ocultam e mistificam a
realidade. É numa luta árdua contra essas mistificações que o
proletariado atinge a sua consciência de classe, o que se efetiva
quando compreende que as reformas sociais possíveis no interior
da sociedade burguesa podem melhorar as suas condições de vida
(e, por isso, são valiosas), mas que são insuficientes para superar
as bases da opressão e da exploração.
34

A revolução entra na ordem do dia quando o proletariado,
através da ação dos seus segmentos de vanguarda, atinge aquela
consciência e, pela sua organização, polariza outros segmentos
sociais explorados e/ou oprimidos. Para tanto, é necessário que a
própria sociedade burguesa se tenha desenvolvido a ponto de criar
um proletariado numeroso e concentrado (o que supõe um alto grau
de industrialização) e articular formas políticas que possibilitem à
classe operária alguma margem de ação política organizada (o que
implica a vigência de direitos cívicos).
Para Marx, a revolução exigia a ascensão do proletariado, à
frente de um bloco de forças anticapitalistas, ao poder político: a
desestruturação do Estado burguês abriria a via à nova sociedade,
num período de transição denominado socialismo. Essa transição
(que Marx também chamou de primeira fase da sociedade
comunista) seria o lapso de tempo para a reorganização da
sociedade, com a supressão das classes sociais e seus fundamentos
(especialmente a propriedade privada dos meios de produção) e do
Estado como instância coatora; a transição seria caracterizada por
uma democracia de massas dirigida, hegemonizada, pelo
proletariado (o que, umas poucas vezes, Marx chamou de ditadura
do proletariado) e criaria as condições para a ordem social isenta
de exploração e opressão, o comunismo. Essa sociedade não
configuraria a meta final da evolução da humanidade, não
assinalaria um harmonioso fim da história, mas seria a forma da
organização social verdadeiramente humana. Para Marx, o
comunismo não seria uma espécie de reino dos céus na terra, mas
o rico espaço em que a promessa da felicidade social seria possível
com o florescimento da personalidade de todos e cada um dos
homens, à base da livre associação de livres produtores.
A revolução proletária aparecia a Marx como um processo
necessariamente violento. Não uma violência pessoal ou
individual, mas resultante da resistência que os opressores e
exploradores compulsoriamente haveriam de opor às
transformações – tratar-se-ia, pois, da violência da maioria sobre a
minoria. E a revolução (que, segundo Marx, se iniciando
primeiramente nos países capitalistas avançados, logo se estenderia
a todos os outros, num dimensionamento mundial) não se
produziria através de golpes de mão promovidos por grupos de
35

conspiradores; seria, antes, um processo que implicaria a
participação política consciente de massas de milhões de
trabalhadores.
Quanto à sociedade comunista, Marx absteve-se de qualquer
“previsão” que definisse suas formas e suas características. Seu
rigor teórico mostra-se também aqui: ao contrário dos utopistas,
que chegaram a descrever minuciosamente a sociedade futura,
Marx não se dispôs a fazer profecias ou a propor receitas e
fórmulas. Sua hipótese central era a de que, libertos da exploração
(para o que era necessária a supressão da propriedade privada dos
meios de produção) e da opressão (para o que era necessária a
supressão do Estado e de todos os instrumentos de coação), os
homens instaurariam novas formas de convivência e ingressariam
num estágio de desenvolvimento social e individual impensável
segundo os padrões culturais anteriores. Qualquer antecipação
dessa nova socialidade seria futurologia e especulação –
exatamente o que Marx sempre evitou.

36

V. A EXPERIÊNCIA HISTÓRICA DO
COMUNISMO

As ideias de Marx não empolgaram imediatamente as


vanguardas do movimento operário. Efetivamente, só nos últimos
anos de sua vida (quando já desaparecera a Associação
Internacional dos Trabalhadores, posteriormente conhecida como
Primeira Internacional) suas propostas encontraram eco entre
líderes trabalhadores. E, de fato, a primeiras grande ressonância do
projeto de Marx desenvolveu-se na Alemanha, a partir de finais dos
anos 70, com o Partido Social-Democrata Alemão que, em 1889,
foi o eixo da Segunda Internacional.
Essa organização, vinculando vários partidos operários
europeus, respondeu pela divulgação das ideias de Marx no
movimento dos trabalhadores. Tendo na sua liderança teóricos e
políticos como Karl Kautsky (1854-1938) e George Plekhanov
(1856-1918), a Segunda Internacional divulgou o chamado
marxismo em amplos círculos de trabalhadores e intelectuais,
lançando as bases do movimento comunista.
A divulgação das ideias de Marx, porém, não foi algo linear,
sereno e pacífico. Vários fatores respondem pelas dificuldades com
que ela se defronta. Em primeiro lugar, a repressão política e a
pressão ideológica patrocinadas pela burguesia – os seus
segmentos mais ativos logo perceberam o risco que representava,
para a ordem estabelecida, a teoria de Marx; consequentemente, ao
mesmo tempo em que jogaram na perseguição dos seus adeptos,
implementaram formas variadas destinadas a desacreditar as teses
de Marx (daquela época aos dias atuais, a cada ano surge uma nova
“refutação” de Marx, que “prova” o caráter “errôneo” ou
“superado” da sua teoria).
Em segundo lugar, as próprias condições de vida da massa
dos trabalhadores: submetidos aos padrões de pensamento
imperantes na sociedade burguesa, não lhes é fácil assumir a sua
consciência de classe e reconhecer na luta revolucionária e no
projeto comunista a expressão dos seus interesses gerais – tal como
o assegura a teoria de Marx. As lutas econômicas setoriais e
isoladas por reformas têm a sua importância mais rapidamente
37

compreendida pelos trabalhadores. E essa propensão ao
reformismo é também acentuada pela pressão burguesa, que busca
enquadrar as reivindicações e os movimentos operários em
instituições despolitizadas (a manipulação burguesa dos aparatos
sindicais, querendo retirar-lhes o seu conteúdo classista, é um
exemplo evidente desse enquadramento).
E, finalmente, pelas polêmicas que atravessam os primeiros
anos da afirmação do próprio projeto de Marx entre as vanguardas
operárias: já em finais do século XIX, surgiram, entre os marxistas,
debates acerca da direção política a ser tomada pelos social-
democratas (era assim que então se denominavam os adeptos de
Marx). A discussão mais significativa se desenvolveu no interior
do Partido Social-Democrata Alemão, mas acabou atingindo a
todos os outros partidos operários; no centro do debate esteve
Eduard Bernstein (1850-1932), que considerava ser necessário
revisar a teoria de Marx, uma vez que – na sua opinião – a transição
do capitalismo ao comunismo é gradual e inevitável. Para
Bernstein, logicamente, a perspectiva da revolução devia ser
abandonada e substituída pela alternativa da evolução. As teses
revisionistas de Bernstein, que apontam no sentido de os social-
democratas lutarem apenas por reformas, terminaram por dividi-
los; essa divisão, coroada no final da Primeira Guerra Mundial,
veio separar os revolucionários dos reformistas (que, geralmente,
têm se autodenominado simplesmente socialistas ou conservado o
designativo de social-democratas).
Contudo, e ao contrário do que Marx supunha, o destino
histórico da sua teoria não experimentou a primeira prova na
Europa avançada – experimentou-a na atrasada, subdesenvolvida e
reacionária Rússia dos tzares. Ali, desde 1903, criara-se um partido
social-democrata que, recusando o reformismo, se apoiava numa
concepção organizativa nova. Seu fundador, Vladimir Ilitch
Oulianov (1870-1924), que entraria para a histórica sob o
pseudônimo de Lênin, defendia a tese segundo a qual o
proletariado só alcançaria a sua consciência de classe à medida que
dispusesse de um partido político de novo tipo – uma organização
centralizada, rigidamente disciplinada, contando com
revolucionários profissionais e que, portadora da teoria
revolucionária, dirigisse a ação proletária para a derrocada do
38

capitalismo. De acordo com Lênin, deixada ao espontaneísmo das
lutas econômicas setoriais, a classe operária jamais ultrapassaria os
limites das reivindicações reformistas; somente contando com um
partido político autônomo, próprio, orientado pela teoria de Marx,
que incorporasse a sua vanguarda, a classe operária ascenderia à
consciência os seus interesses históricos, consciência de classe
capaz de mobilizá-la para a revolução.
A prova de fogo ocorreu em 1917: no desdobramento de um
processo revolucionário aberto em fevereiro, os bolcheviques
(assim se chamavam os companheiros de Lênin) em outubro
tomavam o poder político pela via da insurreição. Não era a
primeira vez que representantes revolucionários do proletariado
assumiam um poder de Estado – em 1871, a Comuna de Paris, logo
derrotada, fora a experiência pioneira –, mas era a primeira vez que
o faziam revolucionários explicitamente inspirados em Marx.
Inaugurava-se uma página nova na história.
Este não é o lugar para analisar a insurreição que viabilizou
a Revolução de Outubro, aqueles dez dias que – na consagrada
expressão de John Reed – abalaram o mundo. Cabe apenas
assinalar que a Rússia tzarista constituía um espaço quase
impensável para a revolução proletária, já que estava longe de
apresentar as características objetivas para um processo
revolucionário como o imaginado por Marx. É bem verdade, como
Lênin já havia demonstrado teoricamente, que, atingindo o sistema
capitalista o seu estágio imperialista (isto é, com o surgimento dos
grandes monopólios, trustes e cartéis, e com o controle da vida
econômica pelos grandes conglomerados financeiros), a revolução
mundial iria iniciar-se num país onde a dominação capitalista fosse
mais débil. No entanto, a Rússia não foi somente o ponto inicial da
revolução mundial: haveria de permanecer como o seu ponto único
por quase trinta anos.
Com efeito, ao fim da Primeira Guerra Mundial, explodiram
tentativas revolucionárias na Europa Central e Ocidental (Hungria,
Itália), a mais importante delas tendo por palco a Alemanha.
Saldaram-se todas por derrotas, com a repressão liquidando
especialmente os espartaquistas alemães, num drama sangrento. O
fato é que a revolução fracassou no Ocidente e a experiência russa
isolou-se. Restrita a um só país arrasado pela guerra, encontrando
39

uma feroz resistência armada das suas classes dominantes e
sabotada pela intervenção bélica das potências capitalistas, a
revolução proletária trilhou caminhos inesperados.
No plano da economia, em vez de uma ampla base industrial
– um dos pressupostos de Marx para a transição socialista –, os
bolcheviques tiveram pela frente um incipiente e semidestruído
parque fabril e a dominância de uma agricultura rudimentar. No
plano social, em vez de um proletariado numeroso e organizado –
outros dos pressupostos de Marx –, encontraram os restos de uma
classe operária jovem que foi dizimada pela guerra e um forte
componente camponês. No plano político, acharam-se mais sós do
que nunca: todos os outros partidos políticos se comprometeram
com a reação e os inimigos externos. Quanto à orientação teórica,
também tiveram de inventar quase tudo – já vimos que Marx não
deu receitas de socialismo.
Foi nestas condições terrivelmente adversas que se iniciou a
primeira experiência dirigida para a construção do comunismo. E
são elas que explicam tanto o fascínio exercido pela Revolução de
Outubro, quanto as características peculiares que a transição
socialista adquiriu na Rússia. O fascínio tem sua origem na
coragem, heroísmo e espírito de sacrifício de que os bolcheviques
deram provas cabais: quando tudo conspirava contra os seus
objetivos, mostraram-se capazes de seguir adiante – a Rússia
vermelha tornou-se um referencial para todos os oprimidos e
explorados do mundo.
Quanto às características que a transição assumiu ali, o
problema é mais complexo. A democracia de massas pensada por
Marx não sobreviveu por muito tempo: o poder dos conselhos de
operários, soldados e camponeses (os soviets) foi substituído por
uma centralização política exercida pelo partido bolchevique, que
se identificou com o aparelho de Estado. No interior do próprio
partido, após a morte de Lênin, cristalizaram-se métodos
burocráticos, que acabaram por restringir ao limite a circulação de
ideias e suprimir a tolerância com as divergências – assim é que
muitos revolucionários são eliminados: Trótski (1879-1940).
Bukharin (1883-1938), Zinoviev (1883-1936), entre tantos. A
culminância desse processo está no estabelecimento da autocracia
política comandada por Stalin (1879-1953) que, entre os anos 30 e
40

50, asfixiou a vida política e social da federação das repúblicas que
constituem, desde 1922, a União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS).
Simultaneamente, porém, a revolução operou o que
nenhuma outra forma de organização societária jamais conseguira:
em um período histórico extremamente breve, exatos 25 anos
(entre 1917 e 1953, descontados os anos de guerras com o Japão, a
Finlândia e a Alemanha nazista), efetivou a massiva transformação
socioeconômica de um país gigantesco, dotando-o de uma
infraestrutura industrial que o levou à condição de segunda
potência do globo. Nenhum país do mundo, em qualquer época
histórica, realizou proeza semelhante. E essa conquista se efetuou
com o sacrifício adicional da Segunda Guerra: o nazi-fascismo, o
pior inimigo dos povos, não seria batido sem a contribuição
soviética – que custou a destruição de boa parte da URSS e o
trágico balanço de 20 milhões de mortos.
A experiência soviética, única forma de transição socialista
até 1945, foi tomada por muitos como o modelo de socialismo. É
evidente que isso é um equívoco: as formas que a transição
socialista tomou na URSS foram determinadas pelas condições em
que a revolução proletária encontrou o país em 1917. O
desenvolvimento posterior das experiências revolucionárias
mostraria que não há “modelos” de socialismo, mas que cada
transição apresenta as suas próprias particularidades, expressando
os traços históricos, econômicos, políticos, sociais e culturais dos
povos que as realizam. As vias que conduzem à sociedade
comunista são inúmeras; a transição entre o capitalismo e o
comunismo tem-se revelado variada e diferenciada; em cada país,
a revolução segue caminhos próprios.
Foi somente no final da Segunda Guerra Mundial que a
experiência socialista transcendeu as fronteiras soviéticas. O
avanço dos exércitos da URSS para o Oeste promoveu a libertação
de inúmeros países ocupados pelas tropas nazifascistas e
favoreceu, neles, os partidos comunistas, que então ascenderam ao
poder e deram os primeiros passos no sentido da liquidação da
ordem capitalista. Na Europa, salvo a Iugoslávia (onde o
socialismo se instaura à base de um processo revolucionário) e a
Albânia (onde foi pequena a contribuição do exército soviético), os
41

comunistas – que haviam sido a principal força de resistência
democrática ao nazifascismo – chegaram ao poder com o respaldo
soviético. É assim que se constitui o bloco dos países socialistas (o
campo ou comunidade socialista): além da URSS, nele se
inseriram, nos finais dos anos 40, a Polônia, a Tchecoslováquia, a
Hungria, a Iugoslávia, a Romênia, a República Democrática Alemã
(RDA), a Albânia e a Bulgária. Na Ásia, à parte a Mongólia (desde
os anos 20 vinculada à URSS), o projeto socialista ganhou corpo
com a fundação do Vietnã e da República Democrática Popular da
Coréia (1945) e, principalmente, com a revolução de base
camponesa liderada por Mao Tsetung (1893-1976), que conduziu
a China, em 1949, a um regime direcionado ao socialismo. Em
princípios dos anos 60, a consolidação da revolução de Fidel Castro
inscreveu Cuba no campo socialista. E, como resultante das lutas
anticolonialistas, a partir da década de 60, várias nações
emergentes proclamaram objetivos de construção socialista na
África e na Ásia (Angola, Moçambique, Camboja, Laos etc.).
O fato indiscutível é que o projeto comunista que se pretende
inspirado em Marx é assumido hoje por um numeroso grupo de
países, que engloba mais de um terço da população do planeta.
Mesmo um sociólogo tão distanciado do comunismo como o norte-
americano Alvin Gouldner, observando a opção socialista de tantas
nações, é levado a escrever:

“Nunca, na história do mundo, houve uma mudança


tão profunda nas vidas humanas e nos sistemas sociais de
tantas nações num lapso de tempo tão breve. Nunca, por
exemplo, um conquistador militar, um profeta religioso ou
um novo modo de vida alcançaram uma difusão tão ampla
no que, sob qualquer ponto de vista historicamente
informado, deve ser considerado como o menor tempo
possível em que possam ocorrer eventos dessa magnitude.
Esse foi um acontecimento único e ainda estamos imersos
nele”.

A razão fundamental desse “acontecimento único” está na


capacidade que os regimes revolucionários têm demonstrado para
resolver os problemas imediatos que afligem a massa das
42

populações: as questões da alimentação, saúde, trabalho e
educação. Em todos eles, mesmo considerando as profundas
diferenças que derivam das situações históricas em que se
operaram as revoluções nacionais, realizaram-se formidáveis
modificações na estrutura econômica e social, apontando na
direção da socialização das indústrias e bancos (que passam ao
controle do Estado, suprimindo as condições econômicas do poder
da burguesia) e da reforma agrária (liquidando om as formas
latifundiárias). A supressão ou controle dos mecanismos
concorrenciais do mercado possibilita a planificação racional dos
investimentos e da produção, elimina as crises econômicas
periódicas típicas do capitalismo e, na mesma linha, permite
equacionar e resolver o problema do desemprego. Em todos esses
países, a massa da população conta com alimentação garantida,
assistência médico-hospitalar assegurada e educação básica
gratuita.
É evidente que, dado o baixo grau de desenvolvimento
industrial da maioria desses países quando da eclosão da revolução,
ainda se está longe da abundância material: os recursos são
escassos e a sociedade dispõe de riquezas limitadas. E é exatamente
isso o que dá relevo à organização socioeconômica da transição
socialista: mesmo países sem muitos recursos podem suprimir a
miséria. Aqui, o exemplo mais flagrante é o da pequena Cuba – até
1959, uma colônia de férias para os norte-americanos, paraíso da
jogatina e dos investimentos escusos da Máfia; em vinte anos
(apesar da sabotagem e do bloqueio dos Estados Unidos), a terra
de Martí, sem se tornar uma nação rica, ofereceu a todos os seus
filhos habitação, alimentação, cultura e lazer. São pouquíssimos os
países do mundo capitalista que podem apresentar indicadores
sociais como os conquistados pelo povo cubano – e isto é
reconhecido, inclusive, por organismos internacionais insuspeitos,
como a OMS, a FAO e a UNESCO.
A diversidade de vias que caracteriza a transição socialista é
visível quando se examina a situação real do conjunto dos países
em que a revolução triunfou. Embora em todos a organização
política se dê à base do sufrágio universal e secreto, e a articulação
dos poderes tenha superado a tradicional distinção entre o
executivo e o legislativo, os suportes partidários são diferentes: em
43

alguns, o regime é unipartidário (com a existência única do partido
comunista – é o caso de Cuba); em outros, é pluripartidário (é o
caso das democracias populares do centro europeu). Em alguns,
toda a atividade econômica é controlada diretamente pelo Estado
(URSS, Cuba); em outros, o setor estatal convive com elementos
de economia privada (Hungria).
Conservando sua autonomia, a maioria dos países em
transição socialista desenvolveu mecanismos de colaboração
supranacional. No plano econômico, o mais importante deles é o
Conselho para Assistência Econômica Mútua (CAME ou
COMECON); fundado em 1949, é construído pela RDA, Cuba,
Hungria, Mongólia, Polônia, Romênia, Tchecoslováquia e URSS
(membros plenos), Iugoslávia (membro associado) e República
Popular da China, República Democrática Popular da Coreia e
República Socialista do Vietnã (observadores). No plano militar, o
organismo mais significativo, criado em 1955, é o Tratado de
Assistência Mútua da Europa Oriental (Pacto de Varsóvia), que
reúne RDA, a Bulgária, a Hungria, a Polônia, a Romênia, a
Tchecoslováquia e a URSS.
Nenhum dos países em transição socialista, entretanto, já
realizou o conjunto de transformações estruturais capaz de
assinalar o seu ingresso na sociedade comunista – nem mesmo
aqueles que podem ser caracterizados como países de socialismo
desenvolvido, como a URSS e a RDA. Rigorosamente, são todos
países que experimentam, em diferentes níveis e planos, a transição
– muitas das características fundamentais da organização burguesa
foram suprimidas, mas ainda não se afirmaram os traços sem os
quais o comunismo vislumbrado por Marx é impensável: a
liquidação completa das classes sociais, a ultrapassagem das
carências materiais, o desaparecimento de instituições de coação
política (como o Estado), o fim da divisão social do trabalho etc.
Por outro lado, os avanços evidentes que já realizaram no
rumo de uma sociedade sem desigualdades sociais não significam
que estejam libertados de problemas. Ao contrário, além dos
problemas colossais herdados da situação pré-revolucionária, os
países em transição socialista defrontam-se com questões novas –
econômicas, sociais e políticas –, derivadas inclusive do seu novo
padrão de desenvolvimento. Boa parte dessas questões está
44

diretamente relacionada ao grau de participação sócio-política das
populações: os regimes revolucionários mostraram-se capazes de
avançar no sentido de promover a socialização da economia (isto
é, a supressão da propriedade privada dos meios de produção); no
entanto, não revelaram o mesmo êxito na promoção da
socialização da política e do poder (isto é, o estabelecimento de
uma democracia de massas, de participação ampliada, direcionada
para a autogestão). Em boa parte desses países, diga-se de
passagem, métodos de condução das questões afetas aos direitos
cívicos da oposição, da divergência e da dissidência política que
colidem com as exigências democráticas que são o próprio coração
do pensamento comunista.
Em poucas palavras: aos progressos econômicos e sociais
não corresponderam, na mesma escala, progressos no sentido de
uma democracia de massas real e efetiva. A ausência ou a limitação
desta conduz a verdadeiras crises no desenvolvimento da transição
socialista (foi o que recentemente se verificou na Polônia), e tudo
indica que, hoje, a construção de uma democracia de massas é o
desafio central a ser enfrentado pelos regimes revolucionários.

Ø Atentar-se a que este livro foi escrito nos anos


80, isto é, muito antes da liberação e
divulgação de documentos historiográficos,
antes mantidos sob sigilo, que dão luz ao que se
passou durante o período stalinista. Para saber
mais sobre tais documentos e acontecimentos,
ler Stalin – História Crítica De Uma Lenda
Negra, de Domenico Losurdo.

45

VI. O MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO

O desenvolvimento do comunismo, entendido como um


projeto de ideias (a análise teórica da sociedade burguesa fundando
a perspectiva da revolução proletária) e um conjunto de práticas (a
criação de partidos, as revoluções, os Estados e as políticas de
transição socialista) foi rapidíssimo. Menos de um século depois
da morte de Marx, o movimento comunista, além de orientar a vida
de mais de um terço dos homens nos países em transição socialista,
já estava presente, através dos partidos comunistas, nos quatro
cantos do mundo – e, em muitos lugares, inclusive em países
capitalistas desenvolvidos, constituindo-se numa força política e
social de significativa dimensão. Atualmente, em praticamente
todos os países do mundo existem e atuam, legal ou
clandestinamente, partidos que se reclamam marxistas.
Esse desenvolvimento, no entanto, esteve longe de ser um
processo tranquilo e sem problemas. Bem ao contrário, a expansão
das ideias e das práticas comunistas – do movimento comunista,
enfim –sempre se deu no bojo de tensões, conflitos e divergências,
que se registraram e registraram tanto no plano das ideias quanto
no das práticas.
Já mencionamos que a teoria de Marx não conquistou
imediatamente a vanguarda da classe operária da Europa
Ocidental, só conseguindo no final do século XIX. Com efeito, a
afirmação das teses marxistas nos setores mais avançados do
proletariado ocorreu num confronto áspero com outras propostas
de natureza socialista (sobretudo as defendidas por Proudhon,
Lassalle e Bakunin). E no mesmo período em que se verifica aquela
afirmação surge a polêmica do revisionismo (Bernstein), que teria
grandes consequências da evolução dos partidos operários.
Com a vitória e a consolidação da Revolução de Outubro, os
debates se acentuaram e percorreram todos os anos 20. Os
problemas práticos, políticos e econômicos da transição socialista
dividiam os marxistas, e eram várias as polêmicas. Uns, como
Trótski, sustentavam que, se a revolução não se estendesse para
além das fronteiras soviéticas (se não se tornasse rapidamente
mundial), fracassaria; outros, como Stalin, garantiam que seria
46

possível construir o socialismo num só país. Quanto à orientação
econômica do novo regime, para alguns ela deveria ser dirigida
para uma acelerada industrialização (Preobazenski), ou passo que,
segundo outros, seria preciso avançar cautelosamente na
industrialização, buscando compromissos com os interesses dos
camponeses (Bukharin). No que toca à organização da política,
discutia-se a possibilidade da democracia proletária com a
existência de um partido único e com a hipertrofia do aparelho de
Estado, em prejuízo do papel dos conselhos de trabalhadores,
soldados e camponeses.
No final dos anos 20, os debates se reduziram e, já em
meados do decênio seguinte, praticamente não tinham ressonância
pública. Dois foram os motivos para o quase desaparecimento da
polêmica: de um lado, a ascensão do nazi-fascismo, que compeliu
uma unidade reforçada dos setores que a ele se opunham, entre os
quais sobressaem os comunistas; de outro, e com uma
preponderância muito maior, o estabelecimento da autocracia
stalinista, que sufocou brutalmente os debates e estendeu um manto
de silêncio compulsório sobre todo o movimento comunista.
Durante a vigência da autocracia stalinista, no interior do
movimento comunista, somente os seguidores de Trótski
continuaram questionando os rumos da transição socialista. Mas a
audiência que encontravam (bem como o espaço de outros grupos
dissidentes, como os conselhistas alemães) era mínima.
O stalinismo só não conseguiu impedir uma alternativa ao
“modelo soviético”: aquela aberta, em 1947-1948, pela liderança
iugoslava. Os comunistas iugoslavos, capitaneados por Tito (1892-
1980), recusaram o “modelo” e enveredaram para a transição
socialista por um caminho original: procuraram reorganizar a vida
econômico-social do seu país através de um ordenamento
autogestionário – em vez da subordinação das atividades
produtivas a um plano centralmente elaborado (pelos organismos
do Estado), estimularam a gestão de empresas, fábricas e fazendas,
autonomamente, pelos seus trabalhadores. Mesmo que os
resultados econômicos dessa orientação não tenham sido
inteiramente exitosos, as suas consequências político-sociais foram
positivas.
A dissidência iugoslava – que os soviéticos quiseram
47

reprimir –, porém, não expressava um problema eventual ou
episódico: traduzia a necessidade de a transição socialista,
recusando quaisquer “modelos”, encontrar em cada país formas e
meios de se realizar levando em conta as particularidades
históricas, econômicas e sociais. Expressava a necessidade de se
encontrarem vias nacionais para o comunismo. Mas o debate sobre
essa questão só viria a generalizar-se depois da ultrapassagem da
autocracia stalinista.
Esta, como se sabe, veio a público em fevereiro de 1956, no
XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética. Foi então
que uma espécie de bomba explodiu no seio do movimento
comunista: os soviéticos, pela voz autorizada de Nikita Kruschev,
secretário-geral do partido, reconheceram que, apesar dos seus
méritos históricos, o período stalinista (ou, nas palavras dos
dirigentes soviéticos, o período do culto à personalidade de Stalin)
demarcou uma época em que se cometeram inúmeras e terríveis
violações dos princípios comunistas.
A partir da denúncia da autocracia stalinista, quebrou-se o
silêncio forçado que dava ao movimento comunista a aparência de
um bloco monolítico. Nos países em transição socialista, ocorreram
sensíveis modificações, tendentes a uma maior democratização da
vida social (a desestalinização ou, na famosa expressão do
romancista Ilia Ehrenburg, o degelo). Nos partidos comunistas dos
países capitalistas, por seu turno, verificaram-se movimentos de
crítica e autocrítica por vezes dilacerantes.
Na década de 60, o debate se instaura em larga escala. Entre
os países do bloco socialista, a unidade imposta pelo hegemonismo
da URSS (acentuado anteriormente pela Terceira Internacional,
existente entre 1919 e 1943) sofre grandes abalos. As diferenças
reprimidas ganham o contorno de divergências profundas,
exemplificadas na verdadeira ruptura entre a URSS e a China
Popular, que se refletiu nos partidos comunistas do Ocidente.
Estes, por sua vez, encontravam-se diante de uma situação
nova – com problemas e perspectivas inéditas. O desenvolvimento
do capitalismo nos desdobramentos da Segunda Guerra Mundial
introduzira ponderáveis modificações na existência das massas
trabalhadoras. Estas haviam conquistado liberdades democráticas
e melhores níveis relativos de vida. Por outro lado, a estrutura
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social tornara-se mais complexa: cresceram as camadas médias
assalariadas, bem diferentes dos antigos setores pequeno-
burgueses, e se registrou a diminuição do peso socioeconômico dos
camponeses. O próprio Estado burguês, respondendo às alterações
derivadas do desenvolvimento capitalista e da concorrência com o
mundo socialista, passou a implementar em larga medida políticas
sociais que, embora todas obedientes à lógica da opressão e da
exploração do capital, atendiam a certas reivindicações dos
trabalhadores. Em alguns países, inclusive, tais políticas foram
conduzidas por partidos socialdemocratas ou socialistas, na
perspectiva de um pretenso “socialismo democrático” (aqui, o
grande exemplo é a Suécia) – que, apesar desta designação,
conservavam todas as estruturas da dominação burguesa.
Neste quadro, as antigas táticas revolucionárias perdiam a
sua eficácia e os comunistas se viram obrigados a repensá-las.
Emerge, a partir dos anos sessenta, um amplo processo de
renovação no movimento comunista. Para ele contribuem vários
elementos, entre os quais dois merecem relevo.
O primeiro são as próprias experiências de transição
socialista. Com seus êxitos e seus problemas, elas permitiram
acumular conhecimentos teóricos sobre o período de transição, a
organização da economia e da sociedade, a estruturação política
etc. A análise dos sucessos e dos erros possibilitou uma
acumulação de saber que fornece contributos para a formulação de
uma teoria da transição socialista, com a qual não contavam os
revolucionários do passado recente (como assinalamos, Marx
pouco avançou sobre esta questão, atendo-se a meras indicações
prospectivas). Hoje, passados quase setenta anos desde a
empreitada pioneira dos bolcheviques, os comunistas têm um
acerco de lições que lhes faculta chegar ao poder munidos de
instrumentos de intervenção minimamente provados.
Em segundo lugar, está a crítica das experiências de
transição socialista, realizada quer pelos seus próprios
protagonistas, quer pelos seus adversários. No primeiro caso, trata-
se tanto da crítica teórica (por exemplo, as pesquisas sobre as
barbaridades do stalinismo, suas causas e consequências) quanto
da prática (os movimentos de trabalhadores nos países socialistas,
pondo em questão as formas sociais existentes) – ambas
49

extremamente importantes para a referida teoria da transição
socialista. Quanto à crítica dos adversários do socialismo (e aqui
nos referimos às críticas sérias, não às calúnias que só visam a
enganar e mistificar), nela se encontram elementos valiosos para
retificar erros de deformações – sobretudo no que tange ao
questionamento de evolução política das sociedades em transição
(papel do partido comunista e do Estado, função dos sindicatos
etc.), ela oferece significativo material para reflexão.
Na intercorrência desses dois elementos, o movimento
comunista ganhou um novo perfil. Adquiriu consciência da
complexidade do processo revolucionário que abre a via à
sociedade do futuro e perdeu muito da arrogância dogmática que
exibia nos tempos do stalinismo. Passou a conviver com a
inevitável diversidade que existe no seu interior, tanto nos países
em transição socialista (já não se sustentam “modelos”, mas se
validam experiências alternativas) quanto naqueles em que ainda
impera a dominação burguesa (atesta-o a coexistência de propostas
tradicionais com sugestões como as do “eurocomunismo”). E, à
base de pesquisas e investigações inspiradas em Marx,
experimentou uma grande renovação teórica, especialmente no
Ocidente, enfrentando temáticas postas pelo próprio
desenvolvimento do capitalismo e até então inexploradas.
No entanto, o revigoramento dos ideais comunistas deu-se
fundamentalmente, na entrada do último terço deste século (XX),
pela exaustão dos padrões da civilização capitalista. Vinte anos
depois do fim da Segunda Guerra Mundial, período em que viveu
um desenvolvimento sem precedentes, marcado pela revolução
científica e técnica, o sistema capitalista continua exibindo uma
face que desestimula a adesão das massas a seus propósitos e
valores.
Realmente, o quadro oferecido pelo mundo capitalista não é
nada atraente. Nos centros do sistema (ou seja, nos países
desenvolvidos avançados), o poder concentrou-se nas mãos da
oligarquia financeira, que controla os grandes monopólios. À
deterioração relativa dos níveis de vida das grandes massas, visível
a partir da década de sessenta, somam-se crônicos problemas de
desemprego e insegurança social. Toda a retórica dos direitos
democráticos reduz-se a pó na discriminação de grandes grupos
50

sociais (negros e centro-americanos, nos Estados Unidos;
emigrantes vindos das ex-colônias ou dos países meridionais do
continente, na Europa). Nas suas periferias (ou seja: nos países
dependentes e explorados), o capitalismo só reproduz o
subdesenvolvimento, respalda regimes antidemocráticos, promove
guerras (recorde-se o Vietnã), sustenta forças terroristas (como os
contrarrevolucionários na Nicarágua) e viola os direitos de
autodeterminação dos povos (o exemplo mais recente foi a invasão
de Granada). Torna-se cada vez mais difícil defender, no plano
ideológico, um sistema como este, cuja dinâmica continua a
engendrar crises de proporções progressivamente maiores e que
põe os avanços científicos e técnicos a serviço da indústria da
morte.
Estes dois componentes – a crise econômica e a corrida
armamentista –, realmente, dificultam ao extremo qualquer defesa
do capitalismo. Nesta segunda metade dos anos oitenta, o painel
que oferecem os 24 países capitalistas mais industrializados é
ilustrativo: neles, cerca de 31 milhões de pessoas não têm trabalho
(o desemprego atinge principalmente os jovens, com idade inferior
a 25 anos). Mesmo nos Estados Unidos, que estão na vanguarda do
mundo capitalista, o panorama é chocante: segundo agências
governamentais estadunidenses, 32 milhões de pessoas (14% da
população do país) vivem abaixo do nível oficial de pobreza. Na
periferia capitalista, a situação é simplesmente calamitosa: 27% da
população asiática, 22% da africana e 13% da latino-americana
vivem em estado de fome crônica e 40% da população destes
continentes levam a sua existência em condições de pobreza
absoluta. Nesta periferia, aliás, há 800 milhões de analfabetos. No
que diz respeito à “luta contra o subdesenvolvimento” que se trava
no mundo capitalista, um só dado basta para indicar a sua
“eficiência”: se, nos anos sessenta, a relação entre o produto per
capita dos países subdesenvolvidos e o dos desenvolvidos era de 1
para 16, na atualidade é de 1 para 44 (ou seja: a distância entre uns
e outros aumentou em quase dois terços).
Enquanto se dá esta evidente deterioração da qualidade de
vida de grandes massas, nos países cêntricos, e a conservação de
padrões miseráveis, nos países da periferia, tanto os Estados
capitalistas desenvolvidos quanto os subdesenvolvidos jogam boa
51

parte dos recursos que poderiam ser canalizados para melhorar a
situação social na corrida armamentista. A militarização da
sociedade capitalista é um fato: investe-se maciçamente na
indústria do belicismo, reduzindo-se a parte dos orçamentos
públicos voltada para a construção de equipamentos sociais
(escolas, hospitais etc.). Para que se tenha uma ideia do que está
envolvido nesta empreitada que pode levar a humanidade à
hecatombe termonuclear, é suficiente recordar que somente os
Estados Unidos dispõem de 2500 bases militares em 114 países,
armazenando 7000 ogivas nucleares na Europa e outras 1800 na
Ásia.
O capitalismo, na sua exaustão, revela o seu caráter de
barbárie civilizada: a riqueza social se potencia com a miséria e a
degradação da vida; as conquistas científicas acabam por
concretizar a perspectiva da desaparição do gênero humano pela
guerra termonuclear.
É em face desta exaustão do capitalismo que os anseios por
uma vida melhor e diferente, na qual os antigos ideais de igualdade
social retomam toda a sua atualidade, deságuam em uma nova
exigência de uma sociedade alternativa. Através de lutas setoriais
e distintas – contra o racismo, a discriminação de mulheres e de
jovens, a miséria e o subdesenvolvimento; a favor da paz e da
independência nacional; pelo progresso e pela justiça social; em
defesa da democracia, da cultura e da ecologia –, através de todos
esses combates, as populações dos países capitalistas,
desenvolvidos ou não, se defrontam com uma realidade: para
mudar a vida, há que substituir o capitalismo por um sistema mais
avançado.
Já não lutam contra as estruturas capitalistas apenas a classe
operária e seus partidos comunistas: surgem vários e diferenciados
movimentos e forças sociais que assumem a proposta socialista
revolucionária.¹ O projeto de uma nova sociedade – embora o
proletariado continue a ser o sujeito revolucionário mais
consequente – transcende as fronteiras da classe operária.
Cientistas, técnicos, intelectuais, profissionais outrora “liberais” e
hoje assalariados, parte das camadas médias aliam-se ao
proletariado na defesa de uma ordem social distinta da vigente. A
recusa do capitalismo vence, inclusive, antigas oposições
52

ideológicas: no combate às injustiças, unem-se marxistas e cristãos
de credos diversos (aliás, as correntes progressistas que permeiam
os círculos católicos desempenham neste processo um papel
importante). Ainda que com muitas diferenças, e com projetos
sociais nem sempre nítidos, este conjunto heterogêneo de partidos,
forças e movimentos sociais, em todo o mundo, põe em questão a
ordem burguesa.
O que se verifica, analisando-se o mundo contemporâneo, é
que todos esses vetores compõem um denso movimento
revolucionário, que se dinamiza a partir de duas das suas fontes
básicas: o movimento comunista (o bloco dos países em transição
socialista, as lutas da classe operária e seus partidos comunistas) e
os movimentos de libertação nacional. Contra a força deste
movimento revolucionário, o sistema capitalista tem jogado todo o
seu potencial. Apela simultaneamente à repressão e à cooptação,
esforça-se por desacreditar as experiências de transição socialista e
para estimular uma “terceira via” de desenvolvimento – “nem
comunista nem capitalista”.
Até agora, as tentativas no sentido de travar este movimento
revolucionário têm sido vãs: o que se constata, neste quase final de
século, é que está em curso um processo de transformações sociais
e econômicas estruturais, no qual, enquanto aumenta – sob todos
os pontos de vista – o campo socialista, diminui a área de
dominação burguesa. Esta constatação fortalece a tese de que a
característica central da nossa época é precisamente a transição
socialista, a passagem do capitalismo ao comunismo.

––––––––––––

¹ Isto é claramente visível em nosso país: durante muito tempo, o Partido


Comunista Brasileiro – o PCB ou “Partidão”, fundado em 1922 – foi a única força
a reclamar-se vinculada à classe operária, inspirada em Marx e a se propor a
construção do socialismo no Brasil. Já nos anos sessenta surgiram outros grupos
(alguns, inclusive, constituídos por dissidências do PCB, como é o caso do Partido
Comunista do Brasil – PC do B, que conserva todas as características do
dogmatismo stalinista) voltados para o socialismo. Hoje, ao lado do PCB, há todo
um leque de forças e movimentos que se afirmam como anticapitalistas e
revolucionários.

53

Ø Atentar-se a que este livro foi escrito nos anos
80, isto é, muito antes da liberação e
divulgação de documentos historiográficos,
antes mantidos sob sigilo, que dão luz ao que se
passou durante o período stalinista. Para saber
mais sobre tais documentos e acontecimentos,
ler Stalin – História Crítica De Uma Lenda
Negra, de Domenico Losurdo.

54

VII. A ALTERNATIVA À BARBÁRIE

O antigo ideal de uma sociedade sem desigualdades sociais


encontrou na teoria de Marx uma nova configuração, que o situa
não mais como uma exigência ética (para atender, por exemplo, à
justiça social), mas o fundamenta no próprio movimento real da
sociedade existente. Aí reside uma das maiores – ainda que não a
única – contribuições de Marx: o antigo projeto de uma
comunidade humana ganha, com ele, embasamento teórico
rigoroso.
O comunismo fundado teoricamente por Marx, resgatando a
experiência histórica das lutas sociais e as antecipações socialistas,
aparece como o vetor mais avançado nas lutas sociais
revolucionárias contemporâneas, inserido no eixo histórico do
movimento operário. Devemos, pois, precisar com mais cuidado
algumas determinações acerca do comunismo.
Inicialmente, o comunismo é um projeto de organização
social que se vincula à classe operária – é a proposta
revolucionária do proletariado. No proletariado, o comunismo
encontra o sujeito histórico ao qual a revolução interessa
necessariamente e o único capaz de conduzir consequentemente a
liquidação das formas burguesas da vida social.
Depois, o comunismo é um projeto de organização social
assentado na análise teórica da sociedade burguesa e dela
inferido. Isto tem uma dupla significação. De uma parte, supõe o
nível de desenvolvimento já alcançado pelo capitalismo, com todo
o potencial das forças produtivas nele engendradas. O projeto
comunista não é um anticapitalismo voltado para aquém do
capitalismo, mas para além dele: implica as riquezas sociais que
ele pôde produzir, implica a supressão das carências materiais.
Numa palavra, exige bases concretas para o humanismo que
pretende realizar: uma comunidade humana na qual o
desenvolvimento dos indivíduos seja compatível e harmônico com
o desenvolvimento do gênero humano. A sociedade comunista,
assim, não é a sociedade da igualdade generalizada ou da
indiferenciação: é aquela sociedade (como sugerimos no capítulo

55

I) em que as desigualdades sociais são suprimidas para abrir a via
ao florescimento das diferenças individuais. A sua característica é
que a igualdade social se revela como o suporte da liberdade
pessoal.
De outra parte, significa que qualquer esforço válido para
transformar a sociedade burguesa deve estar subordinado ao
conhecimento sistemático das suas estruturas profundas e do seu
funcionamento peculiar. Vale dizer: a ultrapassagem desta
sociedade não é o simples resultado de uma vontade
revolucionária, mas depende do empenho para tornar conscientes a
sua dinâmica e a sua lógica. A vontade revolucionária que não se
alicerçar na investigação e na pesquisa – na busca teórica da
verdade social – está condenada ao fracasso. Não haverá revolução
sem teoria revolucionária.
Finalmente, o comunismo é, antes de tudo, um projeto
social. Esta afirmação significa que, por mais favoráveis que sejam
as condições factuais objetivas para a sua realização, ele é uma
possibilidade – não é algo fatal. Ainda e mesmo que seja uma
necessidade para a classe operária, do ponto de vista da sua
definitiva libertação, não há nenhuma garantia de que a
organização social burguesa será ultrapassada por uma lógica
“natural” ou “inevitável” da evolução histórica. A viabilidade do
comunismo é também uma função da consciência de classe do
proletariado, da sua capacidade de mobilização, organização e luta.
Estas determinações dizem respeito ao comunismo como
proposta teórica, como pensamento revolucionário que tem seu
ponto de arranque na elaboração de Marx. Mas o comunismo,
como vimos, não é só uma proposta teórica: hoje, é mais, é um
movimento e um conjunto de experiências.
Enquanto movimento, ele envolve os partidos comunistas,
operários e revolucionários que, inspirados em Marx, combatem o
capitalismo e propõem a sua substituição por uma ordem social que
requer, no plano econômico, a socialização dos meios de produção
e, no político, o controle das instâncias de poder, com vistas a
suprimi-las, pelo proletariado. O movimento comunista é parte do
movimento operário – parte mais revolucionária, convive e
interage nele com correntes reformistas (especialmente

56

socialdemocratas). E é parte também, a mais combativa, do amplo
movimento revolucionário anticapitalista.
Enquanto conjunto de experiências, o comunismo encontra-
se em estágios diferenciados de transição socialista. Se há países
que já avançaram bastante na criação de alguns dos requisitos para
a construção da sociedade comunista (nomeadamente a URSS e a
RDA), ao passo que outros desenvolvem formas sociais que, não
capitalistas, estão ainda bem distanciadas daqueles requisitos (por
exemplo, a Albânia e a República Democrática Popular da Coreia),
o fato é que nenhum dos componentes do bloco de países
socialistas realizou o complexo de transformações requeridas para
a passagem ao comunismo.
A constatação desse fato inquestionável não tem nada a ver
com uma pretensa dimensão “utópica” (no sentido de irrealizável)
do projeto comunista, como querem alguns de seus adversários.
Realmente, o que tal fato revela são dois dados que não podem ser
perdidos de vista. O primeiro refere-se às dificuldades da
construção da nova sociedade: seu erguimento se defronta com
novos e inesperados problemas, situando o contexto da transição
socialista como um processo complexo e nada idílico. Hoje, está
claro que a transição socialista cobre todo um período histórico
longo e acidentado e que só se realizará plenamente em escala
mundial.
O segundo dado se relaciona a um fenômeno mais inclusivo
– relaciona-se à emergência da transição socialista em países
periféricos do sistema capitalista (os “elos” mais fracos da
corrente”, na expressão de Lênin). As hipóteses de Marx
projetavam a revolução como mais provável nos países capitalistas
avançados; se isto tivesse ocorrido, a transição socialista se
operaria num lapso de tempo mais curto e já contando com a base
material do capitalismo desenvolvido. Mas não foi este o curso real
seguido pela história – irrompendo primeiro em países periféricos,
a revolução teve de realizar uma dupla tarefa: aquela que teria sido
própria do desenvolvimento capitalista e aquela da sua
ultrapassagem. Emergindo em países subdesenvolvidos, a
transição socialista herdou todo o legado do subdesenvolvimento.
Este fenômeno essencial esclarece muitos dos problemas
das atuais experiências da transição socialista. E permite observar
57

que, tendo sido mais fácil quebrar a dominação burguesa nos “elos
mais fracos”, a construção de novas formas sociais mostrou-se aí
mais difícil. E a inversa parece ser igualmente verdadeira: se é
difícil romper os quadros do capitalismo nos “elos fortes”, os
países avançados, será mais fácil promover neles o erguimento de
novas instituições.
Cabe também assinalar que este fenômeno evidenciou que
os caminhos da evolução social são mais intrincados,
diversificados e ricos que qualquer antecipação teórica dos seus
rumos. Em Marx, o projeto comunista implica a ideia da superação
do capitalismo, da evolução no sentido de um estágio social
diferente – e, aqui, não se entende evolução como processo linear,
obrigatório, como passagem necessária e automática de algo
inferior e algo superior; compreende-se a evolução social como
trânsito a um estágio estruturalmente novo, determinado pelas
contradições objetivas e também pela vontade política das classes
sociais. A superação projetada por Marx, todavia, adquiriu formas
inesperadas: não apenas se instaurou com os regimes de transição
socialista em países atrasados como, também, inspirou regimes não
capitalistas de Estados recém-libertados – e deve-se distinguir
claramente, por exemplo, o socialismo reclamado pelos alemães
orientais do projeto defendido pelos angolanos. No primeiro caso,
o projeto comunista se põe a partir de elementos históricos
constituídos como a civilização urbano-industrial e as classes
sociais; no segundo, dada a ausência desses elementos, aquele
projeto denota muito mais a opção por uma via não capitalista do
que propriamente a transição socialista.
De qualquer forma, o nosso tempo se caracteriza pelo
enfrentamento que contrapõe, à realidade do capitalismo maduro e
avançado, tanto as experiências de transição socialista quanto o
projeto comunista. Se estas ainda não permitem vislumbrar como
tal projeto se concretizará na prática histórica, uma coisa já está
clara, tornando-se evidente a cada dia, para um número cada vez
maior de homens: a organização burguesa da vida social está
exaurida e esgotada.
A experiência que a humanidade tem hoje assegura que, se
as formas da transição socialista ainda não garantem com inteira
segurança a viabilidade do comunismo, está garantido que o
58

capitalismo nada mais tem a oferecer além da reprodução ampliada
das desigualdades e das opressões.
A realidade do capitalismo atual tem todas as características
de um novo tipo de barbárie, a barbárie civilizada. O projeto
comunista, com todos os seus riscos, é a única alternativa a ela.

59

LUTA DE CLASSES E LUTA POLÍTICA

Karl Marx

A grande indústria aglomera num mesmo local uma


multidão de pessoas que não se conhecem. A concorrência divide
os seus interesses. Mas a manutenção do salário, este interesse
comum que têm contra o seu patrão, as reúne num mesmo
pensamento de resistência – coalisão. A coalizão, pois, tem sempre
um duplo objetivo: fazer cessar entre elas a concorrência, para
poder fazer uma concorrência geral ao capitalista. Se o primeiro
objetivo da resistência é apenas a manutenção do salário, à medida
que os capitalistas, por seu turno, se reúnem em um mesmo
pensamento de repressão, as coalizões, inicialmente isoladas,
agrupam-se e, em face do capital sempre reunido, a manutenção da
associação torna-se para elas mais importante que a manutenção do
salário. [...]. Nesta luta – verdadeira guerra civil –, reúnem-se e se
desenvolvem todos os elementos necessários a uma batalha futura.
Uma vez chegada a este ponto, a associação adquire um caráter
político.
As condições econômicas, inicialmente, transformaram a
massa do país em trabalhadores. A dominação do capital criou para
esta massa uma situação comum, interesses comuns. Esta massa,
pois, é já, em face do capital, uma classe, mas ainda não o é para si
mesma. Na luta [...], esta massa se reúne, se constitui em classe
para si mesma. Os interesses que defende se tornam interesses de
classe. Mas a luta entre classes é uma luta política.
[...] Uma classe oprimida é a condição vital de toda
sociedade fundada no antagonismo entre classes. A libertação da
classe oprimida implica, pois, necessariamente, a criação de uma
sociedade nova. Para que a classe oprimida possa libertar-se, é
preciso que os poderes produtivos já adquiridos e as relações
sociais existentes não possam mais existir uns ao lado de outras.
De todos os instrumentos de produção, o maior poder produtivo é
a classe revolucionária mesma. A organização dos elementos
revolucionários como classe supõe a existência de todas as forças
produtivas que poderiam se engendrar no seio da sociedade antiga.

60

Isto significa que, após a ruína da velha sociedade, haverá
uma nova dominação de classe, resumindo-se em um novo poder
político? Não.
A condição da libertação da classe laboriosa é a abolição de
toda classe, assim como a condição da libertação do terceiro estado,
da ordem burguesa, foi a abolição de todos os estados [aqui, estado
significa ordens da sociedade feudal] e de todas as ordens.
A classe laboriosa substituirá, no curso do seu
desenvolvimento, a antiga sociedade civil por uma associação que
excluirá as classes e seu antagonismo, e não haverá mais poder
político propriamente dito, já que o poder político é o resumo
oficial do antagonismo na sociedade civil.
Entretanto, o antagonismo entre o proletariado e a burguesia
é uma luta de uma classe contra outra, luta que, levada à sua
expressão mais alta, é uma revolução total. [...] Não se diga que o
movimento social exclui o movimento político. Não há, jamais,
movimento político que não seja, ao mesmo tempo, social.
Somente numa ordem de coisas em que não existam mais
classes e antagonismos entre classes as evoluções sociais deixarão
de ser revoluções políticas. Até lá, às vésperas de cada
reorganização geral da sociedade, a última palavra da ciência social
será sempre: “o combate ou a morte: a luta sanguinária ou o nada.
É assim que a questão está irresistivelmente posta” (Georg Sand).

(Karl Marx, Miséria da Filosofia, 1847)

61

OS COMUNISTAS E A REVOLUÇÃO

Karl Marx e Friedrich Engels

Qual a posição dos comunistas diante dos proletários em


geral?
Os comunistas são formam um partido à parte, oposto aos
outros partidos operários. Não têm interesses que os separem do
proletariado em geral. Não proclamam princípios particulares,
segundo os quais pretenderiam modelar o movimento operário.
Os comunistas só se distinguem dos outros partidos
operários em dois pontos: 1) nas diversas lutas nacionais dos
proletários, destacam e fazem prevalecer os interesses comuns do
proletariado, independentemente da nacionalidade; 2) nas
diferentes fases por que passa a luta entre proletários e burgueses,
representam, sempre em toda a parte, os interesses do movimento
em seu conjunto.
Praticamente, os comunistas constituem, pois, a fração mais
resoluta dos partidos operários de cada país, a fração que
impulsiona as demais; teoricamente, têm sobre o resto do
proletariado a vantagem de uma compreensão nítida das condições,
da marcha e dos fins gerais do movimento proletário.
O objetivo imediato dos comunistas é o mesmo que o de
todos os demais partidos proletários: constituição dos proletários
em classe, derrubada da supremacia burguesa, conquista do poder
político pelo proletariado.
As concepções teóricas dos comunistas não se baseiam, de
modo algum, em ideias ou princípios inventados ou descobertos
por tal ou qual reformador do mundo. São apenas a expressão geral
das condições reais de luta de classes existentes, de um movimento
histórico que se desenvolve sob os nossos olhos.
[...] A revolução comunista é a ruptura mais radical com as
relações tradicionais de propriedade; nada de estranho, portanto,
que, no curso de seu desenvolvimento, rompa, do mais radical, com
as ideias tradicionais.
[...] A primeira fase da revolução operária é o advento do
proletariado como classe dominante, a conquista da democracia.

62

O proletariado utilizará a sua supremacia política para
arrancar pouco a pouco todo capital à burguesia, para centralizar
todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do
proletariado organizado em classe dominante, e para aumentar, o
mais rapidamente possível, o total das forças produtivas.
Isto, naturalmente, só poderá realizar-se, a princípio, por
uma violação despótica do direito de propriedade e das relações de
produção burguesas, isto é, pela aplicação de medidas que, do
ponto de vista econômico, parecerão insuficientes e insustentáveis,
mas que, no desenrolar do movimento, ultrapassarão a si mesmas
e serão indispensáveis para transformar radicalmente todo o modo
de produção.
Estas medidas, é claro, serão diferentes nos vários países.
Todavia, nos países mais adiantados, as seguintes medidas poderão
geralmente ser postas em prática:
1. Expropriação da propriedade latifundiária e emprego
da renda da terra em proveito do Estado;
2. Imposto fortemente progressivo;
3. Abolição do direito de herança;
4. Confiscação da propriedade de todos os emigrados e
sediciosos;
5. Centralização do crédito nas mãos do Estado por meio
de um banco nacional com capital do Estado e com o
monopólio exclusivo;
6. Centralização, nas mãos do Estado, de todos os meios
de transporte;
7. Multiplicação das fábricas e dos instrumentos de
produção pertencentes ao Estado, arroteamento das
terras incultas e melhoramento das terras cultivadas,
segundo um plano geral;
8. Trabalho obrigatório para todos, organização de
exércitos industriais, particularmente para a
agricultura;
9. Combinação do trabalho agrícola e industrial,
medidas tendentes a fazer desaparecer gradualmente
a distinção entre cidade e campo;
10. Educação pública e gratuita de todas as crianças,
abolição do trabalho das crianças nas fábricas, tal
63

como é praticado hoje. Combinação da educação com
a produção material, etc.
Uma vez desaparecidos os antagonismos de classe, no curso
do desenvolvimento e sendo concentrada toda a produção
propriamente dita nas mãos dos indivíduos associados, o poder
público perderá seu caráter político. O poder público é o poder
organizado de uma classe para a opressão da outra. Se o
proletariado, em sua luta contra a burguesia, se constitui
forçosamente em classe, se se converte por uma revolução em
classe dominante e, como classe dominante, destrói violentamente
as antigas relações de produção, destrói, juntamente com estas, as
condições dos antagonismos entre classes, destrói as classes em
geral e, com isto, a sua própria dominação como classe.
Em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes e
antagonismos de classe, surge uma associação na qual o livre
desenvolvimento de cada um é a condição do livre
desenvolvimento de todos.

(Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto


do Partido Comunista, 1948)

64

O FIM DO ESTADO

Friedrich Engels

O modo capitalista de produção, ao converter mais e mais em


proletários a imensa maioria dos indivíduos de cada país, cria a
força que, se não quiser perecer, está obrigada [...] a fazer a
revolução. E, ao forçar cada vez mais a conversão dos grandes
meios socializados de produção em propriedade do Estado, já
indica por si mesmo o caminho pelo qual deve produzir-se essa
revolução. O proletariado toma em suas mãos o poder do Estado
e principia por converter os meios de produção em propriedade do
Estado. Mas, neste mesmo ato, destrói-se a si próprio como
proletariado, destruindo toda diferença e todo antagonismo de
classes e, com isso, o Estado como tal. A sociedade, que se movera
até então entre antagonismos de classes, precisou do Estado, ou
seja, de uma organização de classe exploradora correspondente
para manter as condições externas de produção e, portanto,
particularmente, para manter pela força a classe explorada nas
condições de opressão (a escravidão, a servidão ou a vassalagem e
o trabalho assalariado, determinados pelo modo de produção
existente). [...] Quando o Estado se converter, finalmente, em
representante efetivo da sociedade, tornar-se-á por si mesmo
supérfluo. Quando já não existir nenhuma classe social que precise
ser dominada; quando desaparecerem, juntamente com a
dominação de classe, juntamente com a luta pela existência
individual, engendrada pela atual anarquia da produção, os choques
e os excessos resultantes desta luta, nada mais haverá para reprimir,
nem haverá necessidade, portanto, desta força especial de repressão
que é o Estado. O primeiro ato em que o Estado se manifesta
efetivamente como representante de toda a sociedade – a posse dos
meios de produção em nome da sociedade – é, ao mesmo tempo, o
seu último ato independente como Estado. A intervenção da
autoridade do Estado nas relações sociais tornar-se-á supérflua
num campo após o outro da vida social e cessará por si mesma. O
governo sobre as pessoas é substituído pela administração das
65

coisas pela direção dos processos de produção. O Estado não será
“abolido”, extingue-se.

(Friedrich Engels, Do Socialismo Utópico


ao Socialismo Científico, publicado em
1880, reunindo capítulos de O Sr. E.
Duhring Subverte a Ciência)

66

REINO DA LIBERDADE E A MISSÃO DO
PROLETARIADO

Friedrich Engels

Ao apossar-se a sociedade dos meios de produção, cessa a


produção de mercadorias e, com ela, o domínio do produto sobre
os produtores. A anarquia reinante no seio da produção social cede
o lugar a uma organização planejada e consciente. Cessa a luta pela
existência individual e, assim, em certo sentido, o homem sai
definitivamente do reino animal e se sobrepõe às condições
animais de existência, para submeter-se a condições de vida
verdadeiramente humanas. As condições que cercam o homem e
até agora o dominam colocam-se, a partir deste instante, sob seu
domínio e seu controle, e o homem, ao tornar-se dono e senhor de
suas próprias relações sociais, converte-se, pela primeira vez, em
senhor efetivo e consciente da natureza. As leis da sua própria
atividade social, que até agora se erguiam frente ao homem como
leis naturais, como poderes estranhos que o submetiam ao seu
império, são agora aplicadas por ele com pleno conhecimento de
causa e, portanto, submetidas a seu poderio. A própria existência
social do homem, que até aqui era enfrentada como algo imposto
pela natureza, e a história são, de agora em diante, livre obra sua.
Os poderes objetivos e estranhos que até aqui vinham imperando
na história colocam-se sob o controle do próprio homem. Só a
partir de então, ele começa a traçar a sua história com plena
consciência do que faz. E só daí em diante as causas sociais postas
em ação por ele começam a produzir predominantemente, e cada
vez em maior medida, os efeitos desejados. É o salto da
humanidade do reino da necessidade para o reino da liberdade. [...]
Os homens, donos por fim da sua própria existência social, tornam-
se senhores da natureza, senhores de si próprios, homens livres.
A realização deste ato, que redimirá o mundo, é a missão
histórica do proletariado moderno. E o socialismo científico,
expressão teórica do movimento proletário, destina-se a pesquisar
as condições históricas e, com isto, a natureza mesma deste ato,
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infundindo assim à classe chamada a fazer esta revolução, à classe
hoje oprimida, a consciência das condições e da natureza da sua
própria ação.

(F. Engels, idem)

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SOCIALISMO E COMUNISMO

Henri Lefebvre

O socialismo comporta um Estado, um aparelho estatal, por


conseguinte, uma burocracia, um aparelho repressivo, um aparelho
judiciário. Conquanto o estado mude de significado, ainda arrasta
atrás de si – assim como a sociedade inteira – as sobrevivências e
os prolongamentos das épocas vencidas. Persiste a influência da
antiga classe dominante e, portanto, a luta contra ela. Subsistem
certas diferenças (trabalho intelectual e manual, campesinato e
proletariado, etc.).
Do ponto de vista político, o comunismo se define pela
liquidação definitiva destas sobrevivências, destes
prolongamentos. Aos que ignoram, e não são poucos, este axioma
do pensamento marxista, devemos dizer e repetir que a expressão
“Estado comunista” não tem o menor sentido. Com efeito, o
comunismo caracteriza-se pela supressão do Estado, por sua
superação.
No curso do período socialista, da transição ao comunismo,
o Estado transforma-se progressivamente. A função política
desaparece, assim como apareceu. As funções de gerência,
espontâneas e necessárias em toda sociedade, passam, de novo, ao
primeiro plano. Um sistema seletivo de modalidades determinadas
segundo cada quadro nacional permite que os mais capazes (para
estas funções) se destaquem e se formem. As próprias massas são
chamadas a fornecer estes indivíduos, a compreender o
maquinismo da sociedade, e as técnicas administrativas. Então, o
Estado desaparece como tal; não degenera, mas funde-se com a
sociedade pelo desaparecimento da função política, após elevar a
sociedade inteira – na pessoa dos mais aptos – ao nível de
consciência e de conhecimento que implicam as funções
organizativas.
Esta desaparição do Estado anuncia a sociedade comunista.
Implica, pois:
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1. A extinção completa das classes e de suas
sobrevivências;
2. Um prodigioso desenvolvimento das forças produtivas
(a “era da abundância”, tecnicamente possível já no
século XX);
3. A superação da divisão do trabalho em tarefas
subordinadas (manuais) e tarefas superiores
(intelectuais);
4. O florescimento do indivíduo livre numa sociedade
livre, na qual o individual não se oponha mais ao
social, mas encontre nele as condições de seu pleno
desenvolvimento, de modo que os dons naturais e
espontâneos de cada indivíduo se encontrem racional
e conscientemente cultivados (na acepção profunda da
palavra cultura).
[...] Marx jamais afirmou que o comunismo seria um
“paraíso terrestre”. Ele se preservou de toda antecipação. O
comunismo comportará um tipo ou um estilo de vida, conforme as
condições, isto é, segundo um grau absolutamente imprevisível de
liberdade humana em relação à natureza humana e às condições
materiais. O comunismo, tendo como condição o poderio
desenvolvido do homem sobre a natureza, comporta precisamente
uma enorme liberdade humana.
[...] Desta dialética, não podemos extrair qualquer
antecipação que não seja prematura. É impossível prever como a
sociedade comunista resolverá os problemas da vida, do amor, da
arte, etc. Cada problema, cada solução, surge em um dado
momento – no seu devido momento – no devir histórico. O
marxismo exclui o utopismo.

(Henri Lefebvre, O marxismo, 1947)

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PCB: UM BALANÇO DA EXPERIÊNCIA DO
SOCIALISMO

Partido Comunista Brasileiro

Os países socialistas também foram afetados, em grau maior


ou menos, pela crise econômica mundial do capitalismo e a sua
afirmação socialista implica sempre novos desafios, porque o
socialismo também se desenvolve sob contradições. Surgem
dificuldades e problemas estruturais relacionados com o
crescimento do sistema socialista mundial, com a sua integração
econômica e com a natureza diversa das vias percorridas por cada
país socialista, bem como a formação histórica dos países que
compõem o sistema. Ocorrem contradições no próprio
desenvolvimento, equívocos, deficiências e atrasos na economia,
na gestão da produção e do Estado, nas relações entre os partidos
comunistas e a sociedade e entre os países e partidos irmãos, dando
origem ao burocratismo, a limitações ao pleno funcionamento da
democracia e ao nacionalismo. De fato, nem sempre os avanços no
terreno da democracia social encontram a correspondência que se
desejaria no campo da democracia política. Todos esses fenômenos
são deformados pelos meios de comunicação social e pela indústria
cultural controlados pelo imperialismo, no processo de uma luta
ideológica sem precedentes, que busca reduzir o apelo do
socialismo na consciência dos trabalhadores e dos intelectuais do
mundo capitalista.
O imperialismo procura, por outro lado, sistematicamente,
sabotar o desenvolvimento dos países socialistas. A construção da
nova sociedade faz-se em meio à luta de classes que,
implacavelmente, lhe move o imperialismo internacional e nas
condições de uma secular herança negativa.
O imperialismo tolhe os países socialistas no
aproveitamento integral dos seus recursos e os afeta com os seus
esforços para desestabilizá-los. Impõe-lhes um pesado ônus ao
obriga-los a investir imensos recursos em armamentos, para que

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possam assegurar uma correlação de forças mundial favorável à
paz e à distensão e para honrar os seus deveres internacionalistas.
Tudo isso reduz em muito os recursos destinados ao
desenvolvimento econômico e social e força os países socialistas a
uma vigilância e a uma luta permanentes contra toda forma de
ataque externo e interno, que vise enfraquecer a coesão do sistema
em seu conjunto e cada país socialista em particular.
Nessas condições, ocorrem processos negativos e erros nos
países socialistas que problematizam tanto a construção, neles, da
nova sociedade como o conjunto do movimento revolucionário
mundial.
Com efeito, a experiência real e histórica da construção da
nova sociedade tem revelado que o socialismo abriga dificuldades
e contradições e que o sistema socialista mundial padece inclusive
de fraturas. [...]
Esta verificação não pode surpreender aos marxistas. Afinal,
o socialismo não é uma “idade de ouro”: é um regime de transição
para o comunismo. A sua estrutura social possui defeitos e não está
inteiramente liberada das sequelas herdadas do passado próximo,
ele se constrói sob o fogo da reação e do imperialismo e ainda não
pôde (inclusive por razões de tempo, já que existe há apenas três
gerações) solucionar todos os problemas materiais e espirituais –
embora um desenvolvimento avançado seja uma realidade na
União Soviética e em outros países socialistas. Pensar o socialismo,
nestas condições, como isento de problemas estruturais e da
possibilidade de conflitos e crises, evidentemente, é uma operação
idealista e ingênua. [...]
Reconhecendo os problemas existentes, não podemos
aceitar que a experiência do socialismo esteja “exaurida” nem,
muito menos, que se possa falar de “caducidade”, quer do
marxismo-leninismo, quer do forte apelo ideológico das
experiências socialistas em curso. Na verdade, a problemática do
socialismo não pode ser reduzida às suas dificuldades. O que é mais
essencial não reside aí; numa apreciação histórica correta, essencial
é o conjunto de tendências permanentes que operam no
desenvolvimento das experiências socialistas.

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Precisamente estas tendências permanentes do
desenvolvimento socialista é que respondem por êxitos incontestes
do sistema socialista mundial.
A União Soviética e os países socialistas, com exceção da
China e da Albânia, contribuem decisivamente à luta pela
distensão, tudo fazem para deter a corrida armamentista, conjurar
a ameaça de guerra e preservar a paz – o problema crucial da
humanidade. Os sucessos alcançados nesta direção deveram-se, em
primeiro lugar, a estes países, à União Soviética especialmente.
Eles constituem a maior força oposta ao imperialismo e têm
impedido a realização dos seus planos belicistas.
Não menores foram os sucessos alcançados pelos países
socialistas nas modificações sociais que envolvem um terço da
humanidade, com repercussões decisivas para as conquistas dos
trabalhadores do mundo do capital.
O sistema econômico soviético e o dos demais países
socialistas encontra-se numa nova etapa de profundas
transformações, relacionadas com o desenvolvimento intensivo
(apoiado numa aplicação sem precedentes da ciência e da
tecnologia à produção) e com a gestão. Na maioria dos países
socialistas, nos últimos vinte anos, cresceu de tal modo a
capacidade produtiva que os métodos de gestão tiveram de ser
modificados no sentido de uma exigência produtiva maior, em
detrimento das administrativas, e de um papel sempre mais amplo
dos coletivos de trabalhadores. Estas modificações ocorrem por
iniciativas dos próprios partidos e dos trabalhadores, operam em
meio a extraordinários programas de desenvolvimento das forças
produtivas e para solucionar problemas sociais radicalmente
complexos. Um dos primeiros objetivos é o de realizar um grande
avanço técnico-científico, uma verdadeira transformação, que
permita, inclusive na agricultura, fazer frente às adversidades
naturais, paralelamente a uma elevação da participação dos
cidadãos na gestão econômica, social e política.
No terreno da democracia política e da cultura, não são
menores os progressos, à base da propriedade social dos meios de
produção – o primeiro critério para definir como real a democracia
– e do poder de todo o povo, expresso na mais ampla participação
dos trabalhadores na gestão da sociedade e do Estado. Em nenhum
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país capitalista, mesmo nos mais democráticos, existe algo
semelhante: dezenas de milhões de cidadãos organizados como
Estado. [...]
A União Soviética e os países de socialismo avançado
constroem as bases materiais e culturais do comunismo. Cuba
alcança êxitos em seus esforços para construir o socialismo em
nosso continente. Os países recentemente liberados do
imperialismo, orientados ao socialismo, transformaram as
condições de vida do povo e seu papel na sociedade. A todos os
países socialistas são alheias as mazelas de que são vítimas
inevitáveis os países capitalistas, ainda quando erros e
insuficiências produzem crises.
Nos países socialistas, aumenta o bem-estar das massas,
alcançam-se novas conquistas sociais. Aprofunda-se e amplia-se a
democracia: milhões de cidadãos incorporam-se à direção e ao
controle da economia e do Estado e participam ativamente da vida
social. Reduzem-se as distâncias entre as economias nacionais dos
diversos países socialistas e, no interior de cada um deles, progride-
se no sentido do desenvolvimento harmônico e de uma distribuição
sempre mais equitativa da riqueza produzida, material e espiritual.
A divisão socialista do trabalho avança. As diversas nacionalidades
convivem cada vez mais em pleno respeito pela cultura de cada
uma – desapareceram para sempre as subordinações sociais e
políticas derivadas de diferenças de nacionalidade.
O crescimento do poderio dos países socialistas, a sua
consequente política pacifista e o seu internacionalismo – aos
quais, especialmente, a humanidade deve a conjuração da guerra
mundial, desde 1945 – afirmam-se mais e mais como a base
principal de apoio a todos os que se batem contra a guerra, pela
democracia e o processo social.

(Partido Comunista Brasileiro/PCB,


Uma Alternativa Democrática Para a
Crise Brasileira, 1984)

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