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SOMBRAS E LUZES NA RIBALTA.

MILTON GONÇALVES E O TEATRO DE ARENA

ELAINE PEREIRA ROCHA1

Introdução

Ator e diretor Milton Gonçalves (nascido em 1933), faz parte da história da televisão
brasileira, sendo o primeiro ator contratado da TV Globo, em 1965, é também figura importante
no teatro e cinema, com vários prêmios para provar. A trajetória do ator na vida artística teve início
no teatro em São Paulo, onde iniciou na década de 50, e tomou um grande impulso quando este se
tornou parte da Companhia de Teatro de Arena, em 1956, apenas alguns meses depois que
Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Viana Filho viessem fazer parte da mesma Companhia. Sua
presença no Teatro de Arena, porém tem sido pouco explorada na mídia e na academia.

Homem negro de origem humilde, sua experiência no Arena destoa das narrativas de outros
membros da Companhia. O Arena, grupo altamente politizado, reuniu jovens da classe média alta,
vários deles com educação superior e alguns com experiência no exterior. A influência comunista
marcada na militância de Guarnieri e Vianinha, e a formação acadêmica de José Renato Pécora,
são responsáveis por um elitismo político e acadêmico, enquanto que a proposta de teatro-
educação levou aos estudos de filosofia, ciências políticas, sociologia e, principalmente a
dissecação de autores da linha marxista. Tudo isso era basicamente incompreensível, para um
jovem que tinha apenas cinco anos de escolaridade, tendo cumprido a escola primária no sistema
público. Quando entrou no Arena, Milton vivia com sua mãe, empregada doméstica, numa casinha
de fundos na periferia de São Paulo, tendo passado por cortiços e porões e experimentado inúmeras
manifestações de racismo. Mas a sua carreira como ator, ainda que fortemente influenciada pelo
Arena, teve início antes, no teatro amador de São Paulo, que florescia nos anos 1950.

1
Professora associada no Departamento de História e Filosofia da University of the West Indies, campus Cave Hill,
Barbados.

1
Este ensaio propõe uma análise crítica da proposta do Arena a partir da perspectiva de
Milton Gonçalves, discutindo a quase-invisibilidade desse ator nas memórias sobre o Arena, que
mantiveram o enfoque pequeno-burguês, que seus principais membros criticavam.

A descoberta do teatro

O desenvolvimento do teatro em São Paulo teve início ainda no século XIX, com grande
impulso nas primeiras décadas do século XX. Em geral, como no caso do Rio de Janeiro, os
espetáculos se dividiam em dois tipos claramente distinguíveis: o teatro clássico e o teatro popular.
O primeiro, voltado para as elites, era espelhado na cultura europeia, chegando a imitar o sotaque
português e fazer adaptações de peças francesas e inglesas. O segundo, dedicado às camadas mais
pobres, seguia o formato das “revistas” com esquetes de linguagem simples e conteúdo jocoso,
formado por quadros rápidos que misturavam música, dança e comédia.

Os cinemas, outra forma de arte dramática, proliferaram na capital paulista a partir da dos anos
1920. Alguns eram ambientes luxuosos, como o Paramount, o Metro, o Cine Art, e o Marrocos, todos
cinemas projetados por engenheiros especializados, decorados com mármore e muito luxo. Entre 1930 e
1950 mais e mais cinemas de luxo surgiam pelo chamado “centro novo” da cidade. Mas havia também
pequenas salas de projeção, onde filmes eram exibidos a um custo muito baixo, ao alcance da população
mais pobre.2 O cinema marcou a infância e adolescência de Milton Gonçalves. Desde muito jovem, a mãe
lhe dava uns tostões para que fosse ao cinema, onde ele assistia aos filmes de Carlitos entre outros.

A minha mãe, na sua ingênua sabedoria, me estimulava a ir ao cinema, porque


quando eu estava no cinema não estava na rua. E aí a gente ia pro cinema onde
passavam seriados, documentários, o jornal do DIP e depois o filme principal.
Então a gente ficava muito tempo.
E no bairro tinha um cineminha que você pagava uma moeda, em que eu vi todos
os filmes de Charles Chaplin e outros do cinema mudo. (ROCHA, 2019, p. 71).

Para o menino pobre, o cinema era um lugar mágico. Ao apagar das luzes, desaparecia a realidade
da discriminação e das privações. Heróis, soldados, romances, comédias, tudo vinha como um remédio

2
SESC TV, Sala de Cinema: Milton Gonçalves. Entrevista. Publicada em 08 de Agosto de 2016. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=egCKBUMa100. Acesso em 18 de setembro de 2018.

2
contra a dureza da realidade que o cercava. O cinema passou a fazer parte das brincadeiras de Milton. Com
o passar dos anos, ele passou a frequentar cinemas mais sofisticados, quer dizer, aqueles que permitiam a
entrada de negros. Conforme ele conta:

Eu ia muito aqui, em São Paulo, à Liberdade no cinema japonês, eu vi muitos


filmes ali. Nos anos 40. Um que tinha ali na Conselheiro Furtado, eu ia muito ali.
Cine Recreio, que era ali na João Mendes, eu ia muito ali. Aqueles cinemas
furrecas da cidade, eu ia muito, porque eu gostava. E lá no bairro onde eu passei
a morar, em Santana, o Cine Hollywood, o Cine Orion, Cine Santa Terezinha,
Cinema Colonial, que era na Voluntários da Pátria… Eu fui a muitos. Era o meu
divertimento. (ROCHA, 2019, p. 71)
A proliferação dos cinemas faz parte do desenvolvimento da vida cultural da cidade de São
Paulo, que sofreu grandes mudanças a partir da década de 1940: período de desenvolvimento do
rádio, influência crescente do cinema dos Estados Unidos, e desenvolvimento da classe média,
com grande presença de imigrantes e da primeira e segunda geração dos filhos dos imigrantes,
nascidos no Brasil. O crescimento populacional de São Paulo, que demandou a reestruturação da
cidade e o desenvolvimento do setor cultural estão fortemente ligados.

Dentro da administração pública, a proposta de uma política governamental de incentivo


às artes, que incluía o teatro, encaixava-se na proposta modernizadora da cidade de São Paulo, que
tomou corpo a partir dos anos 1930, com o Plano de Avenidas de Prestes Maia, que remodelou o
centro da cidade e abre caminho para o desenvolvimento das zonas periféricas pelo traçado de vias
principais que por sua vez possibilita a expansão do sistema de transporte público. Este tipo de
planejamento progrediu nas décadas seguintes, quando o sistema de ônibus torna o trânsito mais
rápido e eficaz, e mesmo quando o planejamento em si perdeu o controle do processo, com o
crescimento dos loteamentos clandestinos e das construções improvisadas que criaram novos
bairros. O processo de construção atraiu mais imigrantes (nacionais e estrangeiros), e a cidade foi
se transformando. Em 1947, bondes e ônibus carregavam cerca de 1 milhão e meio de pessoas.
Em 1952 passaram a transportar mais de 2 milhões de passageiros por dia. (ROCHA, 2016).

Alinhando-se ao plano de extensão urbana em direção à periferia, Lineu Prestes, prefeito


de São Paulo entre 1950 e 1951, encomendou a um grupo americano coordenado por Robert
Moses, um estudo sobre o assunto que incluísse um relatório minucioso referente ao planejamento

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geral de obras públicas para o município de São Paulo, incluindo estudos, recomendações ou
planos referentes a uma planta geral e um plano de zoneamento; sistema de arteriais de tráfego;
transporte coletivo; parque e praças de recreio. (MOSES, 1950; SILVA, 2018).

Parte deste processo de urbanização foi a construção de teatros populares em regiões


periféricas da cidade. Em 1952 foi inaugurado o teatro Arthur Azevedo, na Moóca, reformados os
teatros Colombo, no Brás e São Paulo, na rua da Glória. Nesses teatros as companhias não
pagavam aluguel para uso, e os ingressos para o público eram mais baratos. A medida levantou
críticas sobre os gastos públicos, criando teatros localizados fora das zonas nobres, onde – segundo
os críticos – o público não estava habituado a ir ao teatro. (NEIVA, 2016)

Milton Gonçalves trabalhava em uma gráfica desde a adolescência, e parte de suas funções
era imprimir ingressos para teatros. Foi assim que ele se envolveu com o mundo artístico pela
primeira vez:

...um belo dia, o Leonel Cogan levou uns ingressos na gráfica para imprimir, de
uma peça de teatro, A Mão do Macaco. Ele me deu um ingresso e eu fui assistir
e me impressionei com o teatro, que eu nunca tinha visto. Fiquei inebriado!
Algum tempo depois, o Leonel Cogan voltou à gráfica e me perguntou: “E aí,
gostou?” Eu eu disse: “Gostei.” E disse mais, disse: “Eu sou capaz de fazer
aquilo!”.
Algum tempo depois ele me chamou para participar de uma peça infantil. E lá fui
eu. (ROCHA, 2019, p.91).

Era um grupo de teatro amador, algumas de suas peças eram apresentadas no teatro dentro
do Colégio João Caetano, outras era apresentadas em pequenos teatros. Milton ensaiava nos finais
de semana e à noite, passou a gostar da arte, e com sua voz forte e facilidade para decorar textos,
foi sendo chamado para outras peças, para público infantil e adulto. Foi ficando conhecido e logo
foi convidado para trabalhos mais sérios. Em meados dos anos 50, Milton estreou em “O Príncipe
e o Lenhador” com Egydio Eccio, no Teatro dos Comediantes, que depois se tornou o Teatro
Oficina, localizado no bairro da Bela Vista, no centro de São Paulo. O ator que fazia o papel
principal (o lenhador) era Sérgio Rosa, uma pessoa já conhecida no meio. Na estreia, alguns

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amigos de Sérgio Rosa vieram prestigiar, entre eles: Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna
Filho e Vera Gertel, atores do Teatro Paulista dos Estudantes.

A proposta de um teatro de arena, partiu de José Renato Pécora que, ao invés do tradicional
teatro linear propunha um espaço circular, que além de ser mais barato gerava uma maior
intimidade entre o público e o ator. Essa proposta de um teatro diferente teve apoio de homens de
negócios, como Alfredo Mesquita, proveniente de uma tradicional família paulista, com grande
influência no meio intelectual e artístico de São Paulo, também do então prefeito da capital paulista
Gastão Bueno Vidigal (que era um banqueiro) e do empresário Cicillo Matarazzo. Para entender
este apoio é preciso considerar que a Escola de Arte Dramática reunia importantes nomes da
cultura local (pertencentes a famílias tradicionais) e vários estrangeiros ligados à dramaturgia. Era,
por assim dizer, uma instituição de elite. (BASBAUM, 2009).

O que o Arena propunha, era um teatro mais próximo do público, com um repertório
nacional, na trilha do movimento já estabelecido pela literatura de Jorge Amado e Graciliano
Ramos, por exemplo. Um teatro popular que se distanciasse tanto da jocosidade das revistas quanto
da estética clássica do drama de diálogos rebuscados e pronúncia europeizada. Milton conta que
muitos críticos chamavam o Teatro de Arena de “Cirquinho da Rua Theodoro Bayma”. Em suma,
era a proposta de um teatro novo, formado por integrantes jovens (entre vinte e trinta anos) e por
um repertório engajado na proposta nacionalista que tomou força desde os anos 30 e se renovou
após a Guerra.

Em 1956, José Renato Pécora convidou dois jovens talentosos do Teatro Paulista do
Estudante para se incorporarem ao Arena. Eram dois jovens que vinham da experiência do teatro
amador, mas traziam uma grande bagagem cultural, artística e política: Gianfrancesco Guarnieri e
Oduvaldo Vianna Filho. Gianfrancesco era um imigrante italiano, filho de dois músicos de grande
talento: o pai era o maestro Edoardo Guarnieri e a mãe, Elsa Martinenghi era harpista. A família
veio para o Brasil para fugir do fascismo italiano em 1936 e se estabeleceu em São Paulo no início
dos anos 1950. O jovem Guarnieri tornou-se um líder do movimento estudantil e nutria, como seu
pai, ideais considerados “de esquerda”. Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha) era filho do famoso

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dramaturgo Oduvaldo Vianna, que fez carreira em teatros no Brasil e na Argentina, membro do
Partido Comunista do Brasil, pelo qual foi candidato a deputado em 1946. Vianinha cresceu em
meio a muitos livros e debates políticos entre intelectuais de renome que frequentavam sua casa.

O convite que José Renato fez aos dois jovens não era pessoal, era uma proposta cultural e
econômica para juntarem o Teatro Paulista do Estudante ao Teatro de Arena. Um ato de caráter
oficial, com acordo documentado que inclui entre os objetivos daquela fusão a formação de um
“movimento teatral”, reunindo um grande elenco que permitisse a manutenção de um programa
regular de espetáculos no teatro da rua Theodoro Baima e, ao mesmo, tempo levar espetáculos
para fábricas, clubes, da capital e do interior. Uma proposta revolucionária, que deveria educar o
povo das camadas mais baixas sobre o teatro, ampliando seu público e o diálogo entre o mundo
do teatro e o mundo do trabalhador. Nas palavras do próprio Pécora:

O grupo veio reforçar a nossa equipe. Eu sabia que eram quase todos comunistas.
Mas isso não tinha importância. Aliás, naquele tempo todo mundo era mais ou
menos simpatizante. Militantes mesmo eram o Guarnieri e o Vianinha. Estavam
querendo um espaço, se entrosaram logo e começaram a trabalhar em todas as
peças. Eram ótimos atores. O Sérgio Rosa, a Mariuza, que eram parentes do
Vianinha. Havia mais moças do que homens. A Vera Gertel, filha do Noé Gertel,
veterano e prestigiado jornalista de São Paulo. (BASBAUM, 2009, p. 70).

Com a proposta de formar uma grande equipe, e entendendo o teatro como espaço também
de formação, o novo Teatro de Arena, iniciou imediatamente a busca por novos integrantes entre
os vários grupos de teatro amador existentes na cidade de São Paulo. Não importava que não
fossem da mesma classe social, já que parte essencial da proposta era aproximar o teatro das classes
populares. E foi Sérgio Rosa, provavelmente avisado por Vianinha, quem recrutou Milton para o
Teatro de Arena, em 1956.

Aí o Sérgio Rosa me procurou na gráfica, onde eu continuava, e disse: “Olha, tem


um diretor novo que vai fazer um espetáculo chamado Ratos e Homens, ele é
recém-chegado dos Estados Unidos, vai ser o Teatro de Arena, e tentou abrir
testes para fazer vários personagens.” – O diretor era Augusto Boal. “Eu fui lá, já
tenho um personagem, você não quer ir lá? Eu falei que tinha um ator negro que
podia fazer o personagem de Crooks…” “Claro que quero!” respondi. E fui lá.
(VALENTINETTI, 2005, p.23-24).

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Parte da proposta do Teatro de Arena, a partir da fusão com o Teatro Paulista do Estudante,
era tornar-se um centro de educação, promovendo estudos e debates sobre técnicas de dramaturgia,
literatura, sociedade e política, tendo o espaço do teatro como local da educação. Além disso,
dentro do grupo, membros desempenhavam funções diversas, combinando apoio técnico, como
iluminação, cenário, manutenção, com outras mais específicas do teatro como a escrita de textos,
por exemplo.

Foi lá onde eu encontrei o meu Norte. Foi onde eu refinei os meus caminhos. Foi
lá que eu me encontrei com a maneira de pensar a vida, foi o Teatro de Arena que
me estimulou a melhorar como cidadão e como artista. Porque quando eu cheguei
lá, eu descobri que eu não sabia de nada, eu tinha apenas à vontade.
Lá ninguém nunca me perguntou se eu era branco, negro, azul, amarelo. Eu era
Milton Gonçalves.
Eu ainda estou no Teatro de Arena. Ninguém me tira do Teatro de Arena!
(ROCHA 2016, p.105).

Segundo as lembranças de quem participou, o Teatro de Arena era, de fato, um


“movimento”, uma proposta cultural e política novas, projeto de dimensões holísticas que
transformavam a vida de todos que participavam. Flávio Migliaccio, por exemplo, vindo do teatro
amador da igreja católica do bairro, tendo feito o curso de teatro de Ruggero Jacobbi em 1954, no
Arena foi estimulado e passou a escrever peças de teatro que foram incorporadas ao repertório do
grupo. Milton fala num grupo onde sempre estava chegando mais um: “pessoas vinham do interior,
alguns chegaram a dormir ali mesmo, no teatro, por não terem onde ficar.” (ROCHA, 2019, p. 93).

A proposta de interação entre povo e teatro, que incluía trazer a classe trabalhadora para o teatro e
levar o teatro para a classe trabalhadora, tinha a influência de Ruggero Jacobbi, que acreditava que o Estado
deveria subvencionar o teatro, como parte de um projeto cultural e de educação. Com essa subvenção
governamental, as companhias de teatro poderiam cobrar ingressos mais baratos e atrair as camadas
populares, incutindo-lhes o gosto pelo teatro. Jacobbi era parte dos dramaturgos italianos que fortemente
influenciou a geração de atores que estrearam nos anos 50.

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O Teatro de Arena utilizou também os teatros públicos da periferia, na sua proposta de
popularização, que incluía o teatro nas praças, nas ruas, nas escolas, nas fábricas e nos pequenos cine-teatros
do interior do estado e do país. Sob a liderança de Guarnieri e Vianinha, o compromisso com a periferia se
aliava ao repertório comprometido com temáticas nacionalistas, veiculando uma crítica social e política,
tinha como objetivo conscientizar o público sobre problemas cotidianos que afetavam a população mais
pobre.

A educação política era um forte elemento na formação da companhia. Debates políticos seguiam
a orientação comunista: discussões sobre a opressão do operariado, alienação, e coisas desse tipo.
Interessantemente, os debates eram liderados pelos que tinham um nível de educação formal e informal,
muito mais sofisticado, pertencentes uma classe superior econômica, social e culturalmente. E eram eles
que falavam sobre a opressão que os pobres sofriam.

Para Milton, o discurso dos companheiros do Arena se somava às informações que ele vinha
recebendo desde o tempo em que trabalhava na Livraria Elo 3, na sua convivência com intelectuais de
esquerda, que mais de uma vez incluíram Milton em suas conversas para educá-lo em temas político-sociais.
Mas como ele disse, era difícil acompanhar aquelas ideias, ou entender aquelas leituras, pela limitação de
sua educação escolar e literária.

Milton é um, entre vários outros, que afirmam que o Teatro de Arena foi uma escola. O sentido de
tal afirmação não é meramente metafórico, como se poderia imaginar. O elenco ligado àquela companhia
atendia a cursos que eram oferecidos ali mesmo, dentro do teatro no centro de São Paulo. Além dos
laboratórios de interpretação, Alfredo Boal – logo no início – ofereceu aos atores um curso teórico, aberto
a outros grupos, que incluía dramaturgia e análise de peças teatrais. Em 1957, foi oferecido o Curso Prático
de Teatro, com a participação de Sábato Magaldi, Gianni Ratto, Augusto Boal, Décio de Almeida Prado,
entre outros. Sobre este curso, Milton afirma:

Aquele curso foi uma verdadeira escola para nós. Eu, por exemplo, que tinha sido
operário, conhecia o lado roto da vida e morava num quarto mínimo, não tinha o
mesmo nível de compreensão do Vianinha, que era filho de intelectuais e tinha
uma gama maior de conhecimentos, no sentido literário e cultural. (MORAES,
1991, p. 53-54)

3
A Livraria Elo, que era também uma gráfica, era considerada um ponto de encontro de comunistas e políticos de
esquerda. Localizava-se no centro de São Paulo. Milton trabalhou ali por alguns anos.

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Os debates dentro dos cursos, segundo Guarnieri informou Denis de Moraes, eram fomentados por
leituras de Hegel, Karl Marx, e muitos outros. Essa discussão teórica, ainda de acordo com Guarnieri, era
complicada para Milton, como no curso de filosofia aplicada ao teatro. Mas o grupo também relaxava e
discutia futebol e as aventuras e/ou pretensões amorosas de uns e outros, num clima de descontração.

Lá no Teatro de Arena, isto evidentemente lá da gráfica, de ler e não entender.


Na maioria das vezes não entender. E de entender às vezes muito tardiamente. Eu
voltei a usar… às vezes usava frases… que eu sabia que estava lá [o gesto aponta
para a própria cabeça] mas não sabia botar na discussão com a gente. Alguns dos
comunistas que frequentavam o Teatro de Arena me gozavam. Não
desrespeitavam, mas me gozavam…4

A diferença intelectual era também a diferença de classe. Porque entre os membros que formaram
o Arena, Milton era o mais pobre. As frequentes crises financeiras que a Companhia enfrentou o atingiam
de forma diferente, mas ele não se atrevia a falar de suas limitações. Mesmo quando Guarnieri e Vianinha
discursavam sobre a classe operária, ou o povo brasileiro. Guarnieri, por exemplo, foi passar um tempo
numa favela do Rio para escrever “Eles não Usam Black Tie”, Milton não precisava de tal “estágio”, ele
sabia bem o que era depender do salário minguado para viver, morar em condições precárias e ter que
engolir humilhações para manter o emprego.

Eles não usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri foi um marco no teatro brasileiro e,
obviamente no Teatro de Arena. A estreia foi em São Paulo, no dia 22 de fevereiro de 1958, a peça ficou
em cartaz por onze meses, “com 512 apresentações, incluindo quarenta cidades do interior, espetáculos no
Sindicato dos Metalúrgicos em São Paulo e um espetáculo em praça pública para 5.000
pessoas”.(VIANNA, 1983, p. 28). Na peça, Milton Gonçalves interpretou Bráulio, metalúrgico
companheiro de sindicato e greve de Otávio.

Na primeira semana da estreia de Eles não usam Black Tie não tinha ninguém.
No meio da semana começou um burburinho. Na semana seguinte faltou
ingressos. E a cada espetáculo tivemos a casa lotada. E ao final do espetáculo era
aquele alvoroço. Houve muito debate depois da peça. (ROCHA, 2019, p. 111)

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Milton Gonçalves. Entrevista a Gaby de Saboya. Rio TV Câmera, 21/04/2014. Digitalizada. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=VgbL7ughAh4 Acesso em 13/09/2018.

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Entre os jovens atores, dois veteranos marcaram presença no elenco da peça: Lélia Abramo – filha
de imigrantes italianos anarquistas e participantes da Greve Geral de 1917 em São Paulo, ela era
simpatizante do trotskismo – e Eugênio Kusnet – ator russo, veterano do teatro de Moscou. A temática de
Eles não usam Black Tie, é a opressão dos trabalhadores e a organização da greve. O espetáculo saldou as
dívidas do Arena, evitando a falência. No entanto, neste período de acirramento da Guerra Fria, o Teatro
de Arena é claramente visto como uma companhia teatral ligada ao Partido Comunista.

Questões de Raça e Classe

Entre os membros do Teatro de Arena, Milton Gonçalves era o único ator negro, durante seu
primeiro período em São Paulo. Quando o Teatro de Arena apresentou o espetáculo “Arena Conta Zumbi”,
personagens e atores se revezavam, e, tendo um corpo artístico composto majoritariamente por brancos, fez
com que a maior parte dos personagens da peça fosse interpretados por atores e atrizes brancos. Mas havia
também um outro lado, no qual muitas vezes Milton Gonçalves foi escalado para interpretar personagens
tradicionalmente brancos.

Só no Arena isso podia acontecer: eu, negro, substitui o Gianfrancesco Guarnieri,


em A Mandrágora. Eu era um armador. Num elenco todo branco. Todos os dias
eu tinha que me concentrar, antes de entrar em cena, eu tinha que me convencer
de que eu podia fazer aquele personagem. (ROCHA, 2019, p.112)

A proposta comunista determinava que a questão da discriminação racial e da desigualdade entre


negros e brancos se resolveria quando a sociedade de classes desaparecesse. Portanto não haveria razão
para uma discussão para o racismo, quando a prioridade deveria ser discutir a exploração do trabalhador
pelo capital. Um problema que Jorge Amado, também membro do Partido Comunista, identificou ainda
nos anos 1940, quando argumentou que a pobreza, no Brasil, tinha cor, e essa cor não era branca (ROCHA,
2010). Milton conhecia bem o racismo, sabia que ele cria raízes mesmo nas classes mais baixas; mas nunca
desafiou a teoria dos companheiros. Sua pobreza de Milton, em grande parte determinada por sua cor e
ancestralidade, limitava sua socialização com os amigos do Arena. Em depoimento, ele fala sobre a
vergonha de mostrar aos amigos o lugar decadente em que vivia com sua família, evitando caronas que o
deixassem muito perto de casa. Ele escondia dos companheiros do Arena os problemas de ordem pessoal,

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que também eram problemas de ordem econômica e de exclusão racial que enfrentava com sua família,
consigo mesmo.

A solidão de ser o único negro ali. A cada dia, quando as luzes se apagavam, eu
pensava: “Como é que eu faço para manter isso? O que eu faço para não ter sido
mentira?”
Quando estávamos em Porto Alegre eu recebi a notícia de que meu padrasto havia
morrido. Entre os companheiros que minha mãe teve – que não foram muitos,
alguns namorados, mas aquele foi companheiro dela – aquele era um cara legal,
que eu gostava. Alguém que tinha ficado um tempo na minha vida. Ele era um
estivador. Descarregava caminhões no mercado. Também teve uma vida muito
dura. Eu carregava muita tristeza e solidão dentro de mim. (ROCHA, 2019, p.
118)

Quando percebeu que poderia dispensar o salário da gráfica, já que Pécora procurava
garantir parte dos ganhos da bilheteria para os membros, Milton saiu de sua casa e foi morar no
teatro. No Arena, além de todas as funções técnicas que aprendeu, e o exercício da profissão de
ator e diretor, Milton ampliou suas leituras, seu vocabulário, ganhou autoconfiança e até aprendeu
a dirigir. Para ele, a possibilidade de estar no Arena, aprendendo e participando da construção de
uma nova proposta era a possibilidade de um salto qualitativo em sua vida, e ele havia decidido
não deixar nenhuma oportunidade escapar.

O Zé Renato meio que me adotou e eu passei a ajudar na administração do teatro.


Era um grupo que trabalhava em todas as áreas: palco, luz, contra regra, som,
caixa.
Foram os melhores anos da minha vida. Aprendi, me diverti, me formei e ainda
tinha um pequeno salário que me ajudava a viver.
Foram dias de glória, dedicação e paixão. (ROCHA, 2019, p. 117).

Em 1959, depois de se apresentar em várias cidades do país o grupo decidiu que podia abrir
um outro Teatro de Arena, no Rio de Janeiro. Era uma decisão ousada, porque no Rio de Janeiro
eles não tinham o mesmo contato político e apoio financeiro que tiveram em São Paulo, para iniciar
o projeto. Também o panorama econômico do país eram outro. Contudo, havia a expectativa de
um público maior no Rio de Janeiro, mais aberto às experiências do Arena. A mudança foi
resultado de uma turnê mais longa. Na época, estavam colhendo os frutos de dois sucessos

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consecutivos: Eles não Usam Black Tie e Chaputuba Futebol Clube, quando surgiu a oportunidade
do Teatro de Arena passar uma temporada mais longa no Rio de Janeiro. O elenco se dividiu, para
o Rio seguiram: Vianinha, Milton Gonçalves, Nelson Xavier, Chico de Assis, Riva Nimitiz, Flávio
Migliaccio, Henrique César, Lélia Abramo e Vera Gertel.

Para Vianinha, Vera e Vinícius [filho], não haveria maiores gastos, já que se
hospedariam no apartamento de Oduvana e Deocélia. Na verdade, a abertura de
Mercado em outra capital era fundamental ao grupo, como recorda Milton
Gonçalves: “As perspectivas de espetáculos em São Paulo já estavam meio
minguadas. Fomos para o Rio para diversificar o trabalho, ganhar dinheiro, tentar
manter o Arena. (MORAES, 1991, p. 72).

O grupo conseguiu um espaço no Rio de Janeiro, que pertencia ao senador Arnon de Melo,
o grupo mesmo tratou de adaptar o velho galpão, com algumas cadeiras emprestadas outras
cedidas. Ali inauguraram com Eles não usam Black Tie, seguindo-se outras peças. Reeditaram
também o Seminário de Dramaturgia. Mas a situação financeira continuava precária. Milton vivia
num hotel barato, e ainda assim não conseguia pagar, segundo ele, vivia se escondendo do dono,
para evitar a cobrança. Nesse tempo, Milton Gonçalves já fazia alguns trabalhos para a televisão
em São Paulo e algumas participações no cinema.

Ainda em 1959, José Renato viajou para a Europa, para um estágio em companhias de
teatro da França. Em sua ausência, o grupo continuou trabalhando, com a equipe mais antiga e
estável dividindo as tarefas administrativas. As decisões eram tomadas em assembleia e todos
tinham oportunidade de expressar suas opiniões. A experiência é rememorada por Pécora: “Indo
para a França, deixei o Teatro de Arena na mão de um colegiado, formado por Boal, Vianinha, Guarnieri,
Milton Gonçalves, Flávio Migliaccio e Nelson Xavier.” (BASBAUM, 2009, p. 103)

Depois de Eles não usam Black Tie e da experiência viajando pelo Brasil, Vianinha e
Guarnieri aprofundaram a retórica socialista, e tinham uma necessidade muito maior em fazer um
teatro político, com maior inserção entre o povo (pobre) e um possível impacto na transformação
político social do Brasil. Entretanto, a Companhia precisava de dinheiro para sobreviver. As
dificuldades econômicas e as diferenças políticas levaram à cisão. Em meio às discussões e críticas

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mútuas entre os líderes, Milton Gonçalves tentou não tomar partido, amava o Arena e tinha pelos
companheiros muito carinho e uma imensa lealdade. Por isso, ele se sentiu muito dividido quando
o grupo rompeu entre duas facções, uma que ficou no Rio, com Vianinha e outra em São Paulo,
com Guarnineri e José Renato Pécora como presidente de honra. Milton era devotado ao amigo e
mentor Pécora, mas após viver algum tempo no Rio de Janeiro, ele reconheceu que aquela cidade
lhe propiciava uma liberdade e um senso de pertencimento muito maior do que a sua experiência
em São Paulo. Em meio ao racha, Milton decidiu ficar no Rio de Janeiro, com o grupo de
Vianinnha. Uma decisão que não estava vinculada a uma posição política, como a de outros
colegas do grupo.

Uma das coisas que mudou a minha cabeça, foi que eu cheguei aqui n Rio e um
dia eu fui andar na praia, para ver o mar. A gente estava num hotel em
Copacabana. Aí eu sai de bermuda para andar na praia, meio a medo, porque eu
tinha no meu coração o que o policial falou pra mim na Avenida Paulista, quando
eu era criança, e estava ali andando. E ele me disse que ali não era lugar de preto
passear. Aquilo ficou em mim. Estava sempre na minha cabeça.
Então eu estava aqui no Rio, e eu fui a um bar na beira da praia. Eu me sentei ali
na mesa, meio desconfiado, e o garçon me cumprimentou: “Boa tarde! O senhor
bebe o que?” Eu digo: “Um chopp”. Ele disse: “Sim, senhor!” Daí ele voltou com
o chopp e me disse que se eu quisesse mais alguma coisa era só chamar. Imagine,
ele me chamou de senhor, me cumprimentou, me convidou pra sentar, me tratou
como uma pessoa!
Então sentar numa cadeira de um bar, tomando um chopp, olhando aquele mar e
as moças bonitas passando… Eu me apaixonei pelo Rio de Janeiro! (ROCHA,
2019, p. 125).

Adeus Arena

A radicalização do Teatro de Arena, no Rio de Janeiro atraiu críticas de setores mais


conservadores, preocupados com o avanço do comunismo. Por outro lado, para vencer a crise
financeira, Vianinha fechou um acordo com a UNE para utilizar o auditório da instituição e, de
certa forma, restabelecer o Teatro dos Estudantes. Pequenos sketches políticos eram representados
nas ruas, peças representadas em sindicatos e portas de fábricas. Novos atores se juntaram à
Companhia.

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Milton Gonçalves fez amigos como Jorge Coutinho e Haroldo de Oliveira, ambos atores
negros cariocas, que o levaram a desfrutar a vida no Rio de Janeiro: praias, futebol, escolas de
samba. Era uma oportunidade de se socializar a partir de uma nova perspectiva, a de um ator
profissional respeitado. Ele ainda vivia em constante economia, juntando dinheiro para mandar
para sua mãe, buscando lugares mais baratos para viver. Mas nada comparado à vida dos cortiços
e porões de São Paulo.

Quando a crise política se agravou, entre 1963 e 1964, Centro Popular dos Estudantes e a
União Nacional dos Estudantes, aos quais o grupo de Arena do Rio de Janeiro estava ligado, se
aproximou dos sindicatos e do Partido Comunista. Vianinha liderava as apresentações nas ruas, e
fazia discursos em comícios de apoio a João Goulart. No momento do Golpe Militar, o Teatro de
Arena e pessoas ligadas ao CPC/UNE foram alvo da repressão.

Já na manhã do dia 31 de março, Vianinha, José Serra5 e outros membros da UNE já sabiam
que as tropas se movimentavam para um Golpe Militar que tinha como objetivo depor o presidente.
Luís Carlos Prestes aparecera na sede da UNE um dia antes, para tranquilizá-los, o líder do PCB
estava confiante na capacidade dos comunistas e do povo, em defender o governo. Em meio à
tensão, estudantes e militantes do CPC começaram a erguer barricadas improvisadas com os
próprios móveis, para evitar uma possível invasão. As notícias eram as mais preocupantes. Carlos
Vereza chegou à sede contando que militares estavam atirando contra manifestantes pró-governo
na Cinelândia. Vianinha resolveu ligar para o maior número possível de artistas e intelectuais,
convocando-os para uma vigília na UNE, para defender o espaço. (MORAES, 1991). Entre os
convocados, estava Milton Gonçalves.

A vigília ocorreu num clima de grande nervosismo. Vianinha andava de um lado


para o outro no palco, à procura de uma saída inexistente. Quase 200 pessoas
ocupavam o prédio, inclusive uns 30 fuzileiros navais que haviam sido enviados
pelo Comandante da corporação, o Almirante Cândido Aragão, para proteger os
estudantes. Um grupo de militantes subiu ao segundo andar carregando tijolos e
material para a fabricação de explosivos, os coquetéis Molotov. Não se falava em
outra coisa senão enfrentar os golpistas. (MORAES, 1991, p. 128-9).

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José Serra, ex-prefeito da cidade de São Paulo, foi também governador do estado de São Paulo, senador e ministro.
Sua carreira política teve início no movimento estudantil. Em 1964 ele era o presidente da UNE

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Naqueles dias, Milton Gonçalves estava trabalhando no Teatro Nacional de Comédia, que
apresentava uma peça no Rio de Janeiro. Ele ainda tinha que arcar com as próprias despesas de
moradia, alimentação, etc., e tinha que mandar dinheiro para sua mãe, em São Paulo. Com o Arena
atuando mais politicamente, e – naquele momento – sem uma sede própria, a situação financeira
da Companhia estava precária, e Milton aproveitava cada oportunidade de fazer algum trabalho
artístico fora do Arena, que pudesse oferecer algum ganho financeiro. Isso o levou a expandir sua
atuação no Rio de Janeiro. Porém, ele mantinha os laços de amizade e sempre que podia visitava
os amigos, que se reuniam na sede da UNE. Quando convocado para proteger o prédio e o grupo
de um possível ataque dos golpistas, ele não hesitou.

Então naquele dia, do Golpe, o pessoal tava todo ali, conversando. Eu resolvi
ficar do lado de fora, para dar o alarme. A gente achava que alguma coisa podia
acontecer. O mar era até aqui na calçada, não tinha aterro ainda, estavam fazendo.
Estava tarde da noite.
Eu fiquei ali na calçada e o Haroldo de Oliveira também estava ali. Ali, próximo
ao Restaurante Alcaparra, tinha um caminhão espinha de peixe, com fuzileiros
navais tomando conta. Eu fiquei andando ali fora com o Haroldo, atravessamos a
rua e ficamos ali naquela ilha, no canteiro do meio da Avenida, conversando. Eu
estava muito desconfiado. Eu sou espiritualista. Você pode chamar de intuição.
Tinha dois militares guardando a UNE, um na frente e um em cima.
De repente, eu olhei na direção da cidade, e vinham quatro carros com luzes
apagadas. Eu gritei: “Corre Haroldo!” Eles passaram atirando, com revólveres e
metralhadora. Eu corri e me atirei no chão, fingi de morto, rezando para que
ninguém viesse conferir se eu estava ferido. O Haroldo continuou correndo e
depois se virou. Tomou dois tiros: um no braço e um no peito. O soldado que
estava na frente do prédio também caiu, levou um tiro na perna. O de cima
revidou os tiros: “Bum! Bum! Um acertou num dos carros, que era uma Rural, e
a Rural bateu num negócio de madeira. O cara que estava no banco do carona
caiu. Os carros que vinham atrás pararam, pegaram o cara e foram embora. Daí
que eu vi que o Haroldo estava ferido. Eu me levantei para acudir. Não tinha carro
passando, os táxis tinham sumido, os ônibus tinham sumido. ROCHA, 2019, p.
143).

As recordações de Milton, sobre os eventos daquela noite complementam o que foi narrado
por Vianinha e registrado por Moraes. São duas perspectivas diferentes: uma, de quem estava pelo

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lado de dentro, tentando liderar e organizar a resistência; outra, por alguém que estava do lado de
fora do prédio quando a confusão começou.

No tumulto que se formou, Vianinha correu à porta que dava acesso à escada para
o primeiro andar e impediu que os mais afoitos saíssem.
– Por aqui não! Deitem no chão, se protejam – gritou – sem atinar que poderia
ser ele próprio seria alvejado por uma bala perdida.
Os tiros cessaram algum tempo depois. Apavoradas, as pessoas, uma a uma,
foram deixando a sede do CPC, já com o dia 1º de abril amanhecendo.
(MORAES, 1991, p. 129).

Quando as pessoas começaram a sair do CPC, não viram Milton e Haroldo, que a essa
altura já estavam a caminho do hospital. O caminhão cheio de soldados tinha desaparecido,
segundo os registros de Moraes, minutos antes do ataque ter início. A única narrativa conhecida
dos acontecimentos do lado de fora da UNE, é a Milton Gonçalves:

Atravessamos a rua, o Haroldo dizendo que tinha levado um tiro no peito, eu não
vi, só tinha visto que ele estava ferido no braço. Aí passou um ônibus da linha
132 General Osório – Central do Brasil, ele estava vazio, o carro ia recolher. Mas
eles pararam. Quando eu falei o que tinha acontecido, que meu amigo estava
ferido. O cobrador fez um discurso revolucionário, o cobrador, imagine! Ele me
deu uma flanela para estancar o sangue do braço do Haroldo. Foi daí que eu vi o
peito dele ensanguentado, levei um susto! Eles desviaram da rota e nos deixaram
na porta do Hospital Souza Aguiar.
Chegamos na emergência e tinha um policial ali de plantão. Eu discuti com ele,
porque ele nos olhou – dois homens negros – e falou: “isso aí tá parecendo que
vocês foram assaltar e levaram tiro”. Expliquei pra ele o que foi, enquanto pedia
para o pessoal da recepção chamar o irmão do Haroldo, o Jorge, que era médico.
Olha, nós ali fomos tratados como lixo, ficou um tumulto ali, com o policial
querendo registrar ocorrência antes de atenderem o Haroldo, consegui deitá-lo
numa maca imunda que tinha por ali. Até que chegou no hospital o militar que
havia levado um tiro na perna e confirmou a nossa história. Ouvi dois médicos
comentarem; “Já sei o que é: são os comunistas”. Daí chamaram o Jorge, irmão
do Haroldo, e as coisas mudaram. (ROCHA, 2019, p.144).

Naquele momento, ninguém sabia a extensão dos ataques. Acreditava-se que havia o risco
de repressão policial e de que pessoas ligadas ao movimento de apoio a Goulart fossem presas. Os
militares, que dias antes pareciam estar ao lado dos trabalhadores, principalmente no episódio dos

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Marinheiros, agora estavam atirando em civis. No ataque à UNE/CPC nunca ficou esclarecido
quem foram os atacantes, se eram civis ou militares, ou se eram militares em trajes civis.

Milton ficou um tempo no hospital, esperando notícias do amigo. Não sabia o que fazer.
Morava num hotel no Leblon, mas não estava certo de que seria seguro ir para lá naquele momento.

Fiquei por ali, sem saber o que fazer. Eu não sabia como agir, não era ativista.
Mas eu morava num hotel que ficava em frente ao prédio dos jornalistas, pensei
que poderia haver sabotagem por ali. Liguei para a casa da Oda, que era minha
namorada, e ela me disse: “Venha aqui pra casa”. Ela morava na rua Senador
Vergueiro. Decidi passar no hotel primeiro. Entrei meio desconfiado, achava que
a polícia poderia estar atrás de mim. Tomei banho, troquei de roupa e fui para a
casa dela. (ROCHA, 2019, p. 144-5)

A maior parte da população sabia que havia problemas políticos e sentia em seu dia-a-dia
os problemas econômicos, mas não tinha a menor ideia da gravidade dos acontecimentos daqueles
últimos dias. O noticiário daquela manhã de quarta-feira, não refletia os últimos fatos, conforme
ressalta Elio Gaspari:

Às oito da manhã a Rádio Nacional transmitiu o Repórter Esso, “testemunha


ocular da história”. Era o principal noticiário radiofônico do país e oferecia
súmula do oficialismo: Jair Dantas Ribeiro assumiria o comando das operações
contra a rebelião [dos marinheiros], Goulart recebera uma delegação de
industriais e comerciantes no Laranjeiras e divulgara uma nota oficial contando
com a “fidelidade das Forças Armadas”. Tudo fantasia. Até a previsão do tempo:
“instável, com chuvas, melhorando no decorrer do período”. O chuvisco da tarde
acabou em temporal à noite. (GASPARI, 2011, p. 96)

Na noite do dia 1º. de abril, Milton resolveu voltar à UNE, para ver o que havia acontecido.
Estava sem notícias e preocupado, e queria saber se outros haviam se ferido, se algo mais grave
tinha acontecido. “Aí, quando voltei, de ônibus, e desci na porta da UNE (...) já estava começando
a pegar fogo, já tinham invadido. Olhei e começou a me dar uma angústia! (VALENTINETTI,
2005, p. 51).

Os jornais do dia seguinte falavam no incêndio da UNE, na depredação do prédio, entre


outras notícias de turbulências. O tiroteio não foi noticiado. O incidente fez parte da narrativa de

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Vianinha sobre aquela noite e o ataque. Em suas memórias, ele fala sobre jovens assustados, dentro
do prédio, e o medo de sair e ser alvejado a tiros, e depois o medo de ficar e sofrer o ataque das
pessoas que se acumulavam na rua e em nos prédios em volta, gritando insultos aos ocupantes da
sede da UNE. Depois veio o incêndio, quando todos os ocupantes já haviam saído. Vianinha não
se referiu à presença de Milton Gonçalves, ou ao fato de que Haroldo de Oliveira, outro ator negro,
foi atingido por um tiro durante o ataque. A história também não registrou.

Depois do Golpe, a crise econômica afetou a classe artística. Era o fim das subvenções e a
limitação das verbas para o teatro. O novo governo clamava contra os gastos extraordinários e
defendia a sobriedade no uso das verbas públicas. Augusto Boal fala sobre o período, e como
autores e diretores de teatro recorreram a um conteúdo baseado na história e em contos, para
poderem continuar a produzir: “O golpe veio a galope e também veio a pé. Cavalos e cavaleiros
tomaram o poder e reforçaram a censura. Tivemos de nos refugiar na história, nas fábulas.”
(BOAL, 1986, p. 12).

A crise deixou profissionais ligados ao teatro e cinema desempregados de um dia para


outro. Milton Gonçalves lembra de ter que fazer as refeições na casa da namorada, e de não ter
como pagar o hotel. Mas o seu reconhecimento como ator de comprovada versatilidade fez com
que convites para trabalhos começassem a surgir depois de alguns meses. No cinema, participou
em filmes como História de um Crápula e Procura-se uma Rosa, de Jesse Valadão. Depois veio
um trabalho maior, que o tirou do Rio de Janeiro por alguns meses, para filmar Grande Sertão,
Veredas, no interior de Minas Gerais. Em Minas, ele encontrou Otávio Graça Melo, que também
participou do filme. Foi ele quem contou a Milton sobre essa nova emissora de televisão que
estavam montando.

Ele me perguntou: “- O que você vai fazer quando terminar aqui?” Eu disse: “-
Eu não sei, volto pro Rio, porque pra São Paulo eu não volto de jeito nenhum.”
Então ele me disse para eu procurá-lo no Rio, porque ele estava montando o
elenco para uma nova emissora de televisão que iria ser inaugurada.
Era a Globo. (ROCHA, 2019, p. 152).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASBAUM, Hersch. José Renato: Energia eterna. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009.

BOAL, Augusto. Revolução na América do Sul, As Aventuras do Tio Patinhas, Murro em


Ponta de Faca. São Paulo: Hucitec, 1986.

GASPARI, Elio. As ilusões armadas. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.

MORAES, Denis de. Vianinha: Cúmplice da Paixão. Rio de Janeiro: Nórdica, 1991.

MOSES, Robert. Programa de Melhoramentos Públicos para a cidade de São Paulo (Plano
urbanístico, 1950). Editora IBEC, 1950.

NEIVA, Sara Melo. O Teatro Paulista do Estudantes nas origens do nacional popular.
Dissertação (Mestrado em Comunicação e Arte), Universidade de São Paulo, 2016.

ROCHA, Camilo. “São Paulo: a cidade que não coube nos planos”, Jornal Nexo (digital), Janeiro
2016. https://www.nexojornal.com.br/especial/2016/01/24/S%C3%A3o-Paulo-A-cidade-que-
n%C3%A3o-coube-nos-planos acesso em 12/09/2018.

ROCHA, Elaine. Milton Gonçalves. Memórias históricas de um ator afro-brasileiro. São


Paulo: e-Manuscrito, 2019.

ROCHA, Elaine. Racism in novels. A comparative study of Brazilian and South African
Cultural history. New Castle: Cambridge Scholars Publishing, 2010.

SILVA, Marcos Virgílio da. A cidade de São Paulo de acordo com Robert Moses e Geraldo
Filme. Paper apresentado no Congresso da Associação de Estudos Latino-Americanos, Barcelona,
Espanha, 23 a 26 de maio de 2018. Disponível em:
https://www.academia.edu/37129567/A_cidade_de_S%C3%A3o_Paulo_de_acordo_com_Robert_Moses
_e_Geraldo_Filme Acesso em: 27/08/2020.

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VALENTINETTI, Claudio. Milton Gonçalves. Um negro em movimento. Brasília: Farani,
2005.

VIANNA (Filho), Oduvaldo. “Vianninha no Teatro de Arena”. In PEIXOTO, Fernando


(organizador). Vianinha: teatro, televisão, política. São Paulo: Brasiliense, 1983, pp. 23-80.

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