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52 Anais do III Congresso de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (Memória ABRACE VII) Florianópolis 2003

exatamente por isso, tornou-se um de meus referenciais para os produzidos pelos jesuítas, os mais combativos do lado católico.
situar esta análise. 13Poetica.
Talvez, a raiz dessa ambigüidade do teatro jesuítico 14Summa teologica CLXVIII, 1 e 2
15La Repubblica, L. X, 4, 5, 6, 7 e, sobretudo, 8. p.382.
ser ou não ser teatro possa situar-se melhor se for lido a partir
16Cf. A cidade de Deus, L.I, XXXII; a oposição ao teatro também nas
daquilo que Maingueneau definiu como “rede interdiscursiva” Confissões
que, de uma maneira geral, é ignorada pelos que se ocuparam 17op. cit.
do tema. Esta corresponde às diferentes formulações possíveis 18“No caso em que se puder escrever, entre um certo número de
dos enunciados no interdiscurso. enunciados, [um] sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos,
Ora, o teatro jesuítico afirma-se num confronto com os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir
outras formas de fazer teatro, que emergiam uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,
contemporaneamente, condenadas pela Igreja. A sua formulação, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação
discursiva – evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições
como, aliás, qualquer formulação, segundo Maingueneau, estaria
e conseqüências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão,
colocada na intersecção de dois eixos. Por um lado, no “vertical” tais como “ciência”, ou “ideologia”, ou “teoria”, ou “domínio de
do pré-construído, do “domínio da memória” (enquanto inscrito objetividade”. M.Foucault, Arqueologia do saber. 2. ed, Rio de Janeiro:
na História), representado pelo interdiscurso como instância Forense-Universitária, 1986. p. 43. cursivo meu.
de construção de um discurso transverso (formulações que 19Foucault, Arqueologia do saber. op. cit., p.43
repetem, recusam e transformam outras formulações) – no caso, 20cf. Maingueneau, op. cit., p. 95.
aqui analisado, tomam a idéia de “teatro”, recusam-na e 21Id. p. 24, grifos meus.
transformam-na. Mais do que de um processo de “ancoragem”23 , 22Id., p. 113.
23Cf. D. Jodelet, Jodelet, Denise (org.). Le rappresentazioni sociali.
reconhece-se um mecanismo, capaz de fagocitá-lo. Por outro
Napoli: Liguori, 1992.
lado, no “horizontal”, da linearidade do discurso que oculta o 24D.Maingueneau, op. cit., p.114-116
primeiro eixo, pois, o sujeito enunciador é produzido como se 25
Confronte-se por exemplo os trabalhos de B.Filippi, La scène jésuite:
interiorizasse o pré-construído que a sua formação discursiva théâtre scolaire au Colège Romain au XVII siècle. Thèse de Doctorat,
impõe – no caso, fala-se e pratica-se o “teatro”, segundo as Paris, Ècole des Hautes Études en Sciences Sociales, 1984 (datilogr.) com
regras da sua existência instituídas no âmbito da Companhia, os de R. Olaizola. “Les jésuites et l’utopie du ‘Comedien honnête’ aux
deslegitimando, ou mesmo ignorando, qualquer outra sua forma XVI e XVII siècles”.Revue de Synthèse, 4.a s., 2-3, avr-sept, 1999. p.
possível de existir24 . 381-407 e F.Taviani. “Il teatro per i gesuiti: una questione di metodo”. In:
Alle origini dell’Università dell’Aquila: cultura, università, collegi
Assim, para que aquela prática teatral se pudesse
gesuitici all’inizio dell’età moderna in Italia meridionale. Roma,
afirmar, utilizando um sintagma nominal como “teatro”, que
Institutum Historicum SI, 2000. p. 225-250
pertence ao domínio de memória, com as predicações que
autoriza, a Companhia de Jesus, apesar das dissensões internas, ***
pôde e fê-lo de forma polêmica, em oposição a, oposição
exatamente ao tipo de teatro considerado, a partir de
pressupostos diversos dos que adoto, por muitos analistas como O LABORATÓRIO EXPERIMENTAL COMO
aquele que se situaria na origem do teatro moderno. Assim, INSTÂNCIA FUNDAMENTAL DE
muito embora possa ser considerado de pleno direito como um PESQUISA: A INVESTIGAÇÃO DO MODO
teatro, assim designado pela própria Companhia, sem deixar MELODRAMÁTICO DE INTERPRETAR
de sê-lo, o teatro jesuítico se construiu como o não-teatro dos
cômicos. Talvez, estivesse aí a chave para dirimir discussões
NOS CIRCOS-TEATROS BRASILEIROS
que ainda persistem.25 Paulo Merisio
Universidade Federal de Uberlândia
Notas
Universidade do Rio de Janeiro/Capes/FAPEMIG
1 M.Foucault. L’ordre du discours (1971). Utilizei a 2a ed. italiana, Torino,
Einaudi, 1973. p. 24-25.
2 Veja-se, entre outros, uma síntese desta discussão em B. BACZKO, Les Amparado no conceito de modo de produção
imaginaires sociaux: mémoires et espoirs colletifs. Paris Pyot, 1984. artística (questão que vem ocupando amplo espaço de discussão
3 M.Foucault,. A arqueologia do saber. 2ª ed., Rio de Janeiro, Forense- no âmbito das pesquisas do Projeto Integrado Um estudo sobre
Universitária, 1986.p. 56 o cômico: o teatro popular no Brasil entre ritos e festas,
4 Paris: Dumond, 1996. O autor é professor, na área de teatro, da coordenado pela Profª Beti Rabetti, que se liga evidentemente
Universidade de Paris, VIII. Utilizamos a tradução para o português, feita a uma visão de que o fazer teatral está sempre ligado às
sob a direção de reconhecidos especialistas no tema: J. Guinsburg e M. L.
condições econômicas, políticas e sociais de produção, foram
Pereira, São Paulo: Perspectiva, 1999.
5Especificidade teatral. in Patrice Pavis, op. cit. p.138-140. Aí se pode
elaborados laboratórios experimentais com o objetivo de
encontrar uma boa síntese da problemática investigar o modo melodramático de interpretar dos circos
6Dominique Maingueneau. Novas tendências em análise do discurso, teatros brasileiros. Esta proposta de laboratórios insere-se no
tradução de Freda Indursky, Campinas: Pontes/UNICAMP, 1989. p. 41 meu projeto de tese em andamento no Curso de Doutorado em
7Id. ibid. (sublinhados meus) Teatro da UNIRIO “O circo-teatro no Brasil nas décadas de
8P. Chaunu, O tempo das reformas: 1250 – 1550 Lisboa: Edições 70, 1970 e 1980: um estudo do modo melodramático de interpretar”.
1993, 2 v. Como se pode observar, o autor entende-o de maneira ampla, Trata-se, de procurar subsídios, não em estilos ou gêneros, mas
desde a segunda metade do séc. XIII até a segunda metade do séc. XVI,
em determinantes concretas do trabalho atorial, por meio da
não aceitando os limites do binômio Reforma/Contra-reforma, ao seu ver,
um falso problema.
realização de tais laboratórios, elaborados com base em fontes
9M.Foucault. L’ordre du discours, op. cit., p. 32. (sublinhados meus) documentais – tais como textos dramatúrgicos, gravações em
10 Id. ibid. áudio, fotografias e bibliografia de apoio.
11permito-me um contraponto a Foucault. O circo, ao longo do século XX, manteve-se como
12F. Taviani, Ferdinando, La commedia dell’arte e la società barocca: la espaço privilegiado para a manutenção de uma tradição
fascinazione del teatro, Ristampa anastatica, Roma, Bulzoni, 1991. Reúne associada a um rigoroso processo de transferência de técnicas e
os documentos referentes às disputas em torno da licitude do teatro, inclusive uma singular capacidade de atualização de sua estrutura
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espetacular. O domínio de técnicas específicas não impede que artistas crescem. Nesta medida, o ator que exerce a função de
seus artistas mantenham-se abertos a novas influências em cômico no espetáculo melodramático pode acionar todo um
função da demanda de seu público, operando com freqüência arsenal de cenas improvisadas no interior da estrutura
mudanças em seus números e na própria composição do dramatúrgica
espetáculo para garantir a fidelidade de seu público. É em um Os laboratórios foram elaborados tendo como eixo de
desses processos de revisão que o teatro é incorporado à estrutura referência os diversos aspectos já citados e com base em uma
dos espetáculos de circo. questão que permeia este trabalho: permite o melodrama
O repertório de tais palcos é constituído basicamente circense-teatral, com sua estrutura maniqueísta e seu modo de
por melodramas, comédias e dramas sacros. Levando-se em interpretar exagerado, onde o lírico atinge o patético, a
conta que na estrutura do melodrama há a presença de implementação de traços atualizadores que estabeleçam uma
personagens de nítidos contornos cômicos e que a forma de comunicação com o público de hoje, ou esta relação de interesse
atuação dos dramas sacros é a melodramática, apresenta-se o só se estabelece por meio da paródia, por meio de uma
melodrama como o gênero mais emblemático do teatro automática superposição de contornos cômicos?O objetivo
apresentado nos palcos circenses-teatrais. principal de nosso trabalho é, portanto, por meio de tais
A dramaturgia do circo-teatro, assemelhando-se em laboratórios, confrontar estas duas formas de abordagem do
grande parte ao chamado teatro ligeiro, pauta-se em uma escrita melodrama, partindo-se da hipótese de que, baseado num modo
destinada a ser complementada na cena, por meio da de interpretar que traz em si elementos de uma tradição, é
performance de seus atores. A inserção do teatro no circo toma possível instaurar momentos tanto de dramaticidade quanto de
vulto em meio a um momento teatral carioca – início do século comicidade.
XX – em que o teatro cômico popular, de diversão, ocupa lugar Os laboratórios foram então elaborados para serem
de destaque. Fato é que o circo não somente empreende diálogos executados em duas etapas. Na primeira o objetivo é investigar
com o chamado teatro ligeiro, como apresenta em seus a parte séria dos melodramas, tendo-se como fonte uma cena
espetáculos melodramáticos elementos componentes da selecionada do melodrama Três almas para Deus (1979). Na
estrutura espetacular ligeira. A divisão das peças em numerosos segunda etapa, pretende-se que a investigação permita a
quadros, o recurso dos telões como solução cenográfica, os abordagem de duas características das peças circenses-teatrais:
efeitos reservados para a apoteose, são alguns dos elementos uma relacionada a divisão por funções definidas, onde os atores
comuns a tais experiências. irão experimentar os mesmos papéis nos diferentes textos em
Há mecanismos concretos que são empreendidos no estudo, e outra, referente ao exercício de navegação entre
teatro ligeiro para que os empresários garantam a permanência gêneros comum ao melodrama, quando pretende-se explorar a
de seu público e, conseqüentemente, sua sobrevivência. figura do niais2 – ou, tolo, bobo, personagem cômico, geralmente
Empreendimentos artísticos que não se envergonham de investir aliado ao protagonista 3 . Na estrutura dramatúrgica do
no gosto popular, garantia de retorno financeiro. Neste quadro melodrama a função que cada personagem exerce é exposta
insere-se também o circo-teatro que mantém em seu repertório, claramente, sem margens a dúvidas. Os dramaturgos dos circos-
além da vertente cômica, outro modelo dramatúrgico popular: o teatros tendem a seguir esta norma. Nas peças de circo
melodrama. Rechaçado pelos críticos como uma forma selecionadas para esta pesquisa podemos identificar essas
simplificada de teatro, o melodrama encontra abrigo no circo- categorias de papéis que cada personagem ocupa4 . As cenas
teatro, espaço também visto com desconfiança pelos críticos. escolhidas para serem trabalhadas pelos alunos/atores
Os melodramas que ocupam nossos palcos e que apresentam esses papéis atuando de forma significativa. Desta
passam a freqüentar os circos ao longo do século XX, são de forma, teve-se como um dos critérios principais para a seleção
inspiração francesa, em especial do período denominado de tais cenas, o lugar que os seguintes papéis ocupam: o vilão,
melodrama romântico. É possível, no entanto identificar os apaixonados (galã e ingênua), o pai nobre, a dama-galã e os
características de diversos períodos nos textos produzidos para personagens cômicos.
os palcos sob a lona. Um dos temas preferidos do público de Nesta primeira etapa foi selecionada uma cena do
circo-teatro é o amor impossível. Dois personagens apaixonados melodrama Três almas para Deus (1979) 5 , onde os personagens
são impedidos pelo vilão de viverem juntos. É comum no expõem claramente a função de seu papel na trama: o vilão
desfecho de tais melodramas que o casal só consiga se unir (Camargo) descobre o enamoramento do galã (seu filho Carlos)
após a morte. Dois dos textos selecionados para serem e da ingênua (Mirna) e obriga, em função da diferença de classes
trabalhados nos laboratórios utilizam-se deste recurso: Três entre os dois, que seu filho vá estudar, por seis anos, nos Estados
almas para Deus (1979)1 , de Aldeny Faia e O céu uniu dois Unidos. Nesta cena, que foi trabalhada em três etapas,
corações (1982), de Antenor Pimenta. encontram-se: o vilão Camargo, a mãe Julieta, os apaixonados
A estrutura do melodrama francês é dominantemente Carlos e Mirna e o servo fiel Rufino. Esta etapa dos laboratórios
composta por cinco atos, divididos em diversos quadros. Tal foi divida em três fases:
estrutura é mantida com freqüencia nos palcos de nossos circos Na primeira, buscou-se uma espécie de abordagem branca do
e a divisão em atos é reforçada pela troca de cenários nas texto para podermos identificar características melodramáticas
transições, que acontece longe das vistas do público, com as presentes na própria dramaturgia. Os atores tiveram muita
cortinas fechadas. dificuldade de concentração e o enfrentamento do texto causou
As peças teatrais nos circos estão calcadas em um freqüentemente o riso.
modo peculiar de produção que define alguns elementos que Na segunda, pediu-se que os atores trouxessem para
compõem tal cena teatral. O repertório varia diariamente e os a cena a visão que tinham de uma construção melodramática de
atores têm pouco tempo para ensaiar. Há, em função desta seus papéis. Apesar de uma surpreende timidez em relação à
estrutura, a figura do ponto, que auxilia no exercício de linguagem melodramática, tal exercício conquistou uma nova
lembrança das falas no momento mesmo da representação. O qualidade de concentração, que, segundo os atores, está
modo de representar está apoiado em um domínio de uma série relacionada, principalmente, ao início da construção de seus
de conhecimentos prévios adquiridos em âmbito familiar e, de personagens.
forma empírica, pelo próprio cotidiano artístico em que tais Na terceira fase, ouviu-se a versão em áudio6 da cena
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que estava sendo trabalhada, procurando-se incorporar tintas popular e lazer na cidade. SP: Brasiliense, 1984.
da interpretação melodramática identificáveis na gravação. Na MERISIO, Paulo Ricardo. O espaço cênico no circo-teatro:
medida em que a gravação ao vivo capta uma série de ruídos do caminhos para a cena contemporânea. Rio de Janeiro, 1999.
próprio circo, que ao longo do processo foram realizadas leituras Dissertação (Mestrado em Teatro). Centro de Letras e Artes.
relacionadas a esse universo, e que tínhamos acessado uma série Programa de Pós-graduação, Unirio, 1999.
de imagens dos circos, foi possível empreender um exercício RABETTI, Beti (Maria de Lourdes Rabetti). Subsídios para a
de visualização, além da cena, de todo o ambiente circense. história do ator no Brasil: pontuações em torno do lugar
Nesta etapa os atores deram um grande salto, passando a ocupado pelo modo de interpretar de Dulcina de Morais
acreditar na potencialidade de seus papéis e da cena que estava entre tradição popular e projeto moderno. In: Revista do
sendo investigada. Veja-se em trecho de relatório deste encontro: Lume. Campinas : COCEN – UNICAMP, agosto de 1999, p.
Todos os atores andando pelo palco e tentando 31-55. (n. 2)
resgatar todo o percurso que foi feito pelo seu SILVA, Daniel Marques da. “Precisa arte e engenho até...”:
personagem: pensar no papel que cada um exerce; um estudo sobre a composição do personagem-tipo através
escolher um adjetivo que o defina; pensar em todas das burletas de Luiz Peixoto. Rio de Janeiro, 1998. Dissertação
as discussões sobre o modo melodramático de (Mestrado em Teatro). Centro de Letras e Artes. Programa de
interpretar e sobre aspectos deste modo que estamos Pós-graduação, Unirio, 1998.
incorporando em nossa investigação. Depois de um SILVA, Erminia. O circo: sua arte e seus saberes – o circo no
certo tempo foi pedido que os atores deitassem e se Brasil do final do Século XIX a meados do XX. Campinas,
concentrassem no que iriam ouvir. Foi acionado o 1996. Dissertação (Mestrado em História)Instituto de Filosofia
áudio da cena que estamos trabalhando, gravada na e Ciências Humanas, Unicamp, 1996.
década de 1970, no Circo Carlito. Depois de se
escutar a cena gravada, pediu-se que os atores Notas
andassem pelo palco e iniciassem a cena que está 1 Até o presente momento não foram localizadas as datas em que estes
sendo trabalhada, buscando incorporar à sua textos foram escritos. Havia nos circos-teatros a prática de se repassar os
composição aspectos do modo de interpretar relativos textos oralmente, prática que era reforçada pela grande mobilidade dos
artistas entre os circos-teatros. Estamos adotando para as peças que serão
ao seu papel identificáveis no áudio. Nesta passada,
utilizadas como fonte, o ano de transcrição do manuscrito pertencente à
manteve-se uma música de fundo o tempo todo, nos coleção de Humberto Tangará.
moldes dos espetáculo no circo, pontuando a tensão 2 Regina Horta (1995:210) destaca quatro personagens/tipos no
da cena. Percebeu-se que o áudio foi um grande melodrama: o vilão, a mocinha, o herói e o niais ou tolo: invasor do palco
estímulo para as composições: todos os personagens nos momentos de maior dramaticidade e lacrimejar da platéia, atuando
cresceram e foram conquistados aspectos que o texto de forma a lavá-la a explodir em risos em meio às lágrimas.
e a visão de cada ator sobre melodrama não foram 3 Ainda sobre esta figura vale destacar aspecto abordado por Ivete Huppes
suficientes para fornecer: (2000:88): O bobo desempenha dois papéis que em geral se confundem.
Ambos estão ligados à engenhosa reunião de estratégias para manter o
- Marcelo Britto7 – Rufino, o servo/confidente:
envolvimento do público. Um deles consiste em produzir situações
voz mais grave; o áudio acarretou também em outra cômicas com o fito de atenuar a tensão exagerada, de aliviar o tom
postura corporal. grave da história. O outro, mais sutil, soma-se aos artifícios capazes de
- Ana Carla Machado – Mirna – a ingênua – voz aprofundar, por um lado, e de suspender, por outro, a ilusão dramática.
mais aguda e desespearada O bobo dá um toque de realismo que aumenta a verossimilhança da
- FernandoPrado – Carlos – o mocinho – pouca história, ao mostrar que o mundo não é feito apenas de suspiros, de
diferença – o galã no áudio não tem uma voz tão vênias e de gestos sublimes ou criminosos. (grifo nosso.)
marcante e impostada como os outros papéis. 4 Novamente aqui identificamos um ponto de contato com o teatro ligeiro.
Esta divisão dos personagens por papéis é uma das características dos palcos
- Rodrigo Rosado– Camargo – o vilão – voz mais
do início do século XIX. Para uma discussão mais aprofundada sobre tais
grave: tom monocórdio do áudio. papéis ver: RABETTI, Beti (Maria de Lourdes Rabetti). Subsídios para
- Maria De Maria – Julieta – a mãe – assim como a história do ator no Brasil: pontuações em torno do lugar ocupado pelo
a ingênua, emprestou um tom mais agudo e modo de interpretar de Dulcina de Morais entre tradição popular e projeto
desesperado. moderno. In: Revista do Lume. Campinas : COCEN – UNICAMP, agosto
(Relatório do encontro realizado em 08/06/03) de 1999, p. 31-55. (n. 2); REIS, Ângela. Cinira polônio: a divette carioca.
Tal possibilidade de contato com uma fonte que registra Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999 e SUSSEKIND, Flora. Crítica a
o momento mesmo da cena teatral empreendeu um novo vigor vapor: a crônica teatral brasileira da virada do século”. In: Papéis colados.
Rio de Janeiro : Editora UFRJ, 1993. p. 53 – 90.
aos papéis e à cena. Pôde-se constatar que, depois de vencidos
5 Até o presente momento não foi localizada a data em que este textos foi
alguns preconceitos pelos atores, foi possível vislumbrar uma escrito. Havia nos circos-teatros a prática de se repassar os textos oralmente,
surpreendente qualidade na cena melodramática. Qualidade prática que era reforçada pela grande mobilidade dos artistas entre os circos-
alcançada a partir de uma série de estímulos realizados com teatros. Estamos adotando para as peças que serão utilizadas como fonte, o
base no exercício da cena. O processo foi documentado e essa ano de transcrição do manuscrito pertencente à coleção de Humberto
experiência gerou uma nova série de fontes que serão preciosas Tangará.
para a pesquisa em andamento. Tais resultados, ainda que 6 Gravação ao vivo do espetáculo no Circo Carlito, em 1976. Pesquisa
parciais, denunciam a importância de tais laboratórios como Criação do espetáculo teatral em São Paulo: centro e periferia, coordenada
por Maria Thereza Vargas (1976). Produzido pelo Departamento de
instância fundamental de investigação no campo da pesquisa
Informação e Documentação Artísticas (Idart) – Secretaria Municipal de
teatral. Cultura de São Paulo/SP. (Acervo: Arquivo Multimeios – CCSP/SP).
7 Os atores são alunos do Curso de Educação Artística, Habilitação Artes
Bibliografia Cênicas, matriculados na disciplina Interpretação 3. Além dos citados, nessa
primeira etapa tivemos a participação de Lílian de Paiva, como ponto e
HUPPES, Ivete. Melodrama: o gênero e sua permanência. Brunno Ribeiro, que registrou todos os encontros
São Paulo: Ateliê editorial, 2000. ***
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço: cultura
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adotados, mas de uma investigação delimitada dos campos. No


TEATRO, CULTURA E CIDADE: O ESPAÇO campo do teatro, interessa-nos o aprofundamento de alguns
PÚBLICO URBANO COMO PALCO DA conceitos como: theatrum-mundi, teatralidade, lugar teatral,
espaço cênico, teatro de rua, teatro na rua e teatro político. Já
CENA CONTEMPORÂNEA - RIO DE no espectro mais abrangente e conceitual de cultura, devemos
JANEIRO - DE 1981 A 1992 nos ater principalmente sobre a sua definição de produto ou
fruto da convivência humana no ambiente urbano,
Ricardo Brügger estabelecendo, sempre que possível, suas inter-relações com o
Universidade do Rio de Janeiro teatro e a cidade. Em estudos mais recentes sobre a cidade e a
questão urbana, destacamos os conceitos de espaço urbano,
Este texto introdutório faz parte do trabalho que venho espaço livre público e genius loci, na tentativa de identificar e
desenvolvendo para o Doutoramento em Teatro no PPGT/CLA/ analisar alguns sítios ou áreas livres como palcos, em escala
UNIRIO, junto ao Grupo de Pesquisa Institucional: Estudos do urbana.
Espaço Teatral, coordenado pela Prof. Drª Evelyn Furquim Analisando, grosso modo, essa metáfora surgida na
Werneck Lima. O tema central desta investigação está inserido Antigüidade e generalizada durante a Idade Média, a idéia de
na linha de pesquisa história e a historiografia do teatro, e trata theatrum mundi (teatro do mundo) concebia o mundo como um
das inter-relações entre o espaço cênico e o espaço urbano, espetáculo dirigido por Deus e representado pelos seres
interligando assim três campos distintos do conhecimento: teatro, humanos. Segundo Sennett (1993), uma das mais antigas
cultura e cidade. Nosso objeto de estudo está circunscrito no concepções da sociedade ocidental foi o de vê-la como se fosse
contexto urbano, artístico e cultural carioca, e delimitado entre um teatro. Embora essa imagem da sociedade como um teatro
os anos de 1981 e 1992. tenha passado por várias modificações ao longo da história,
Na dissertação para o mestrado em urbanismo, esse autor acredita que ela vem servindo a três propósitos morais
defendida no PROURB/FAU/UFRJ (2001), uma das metas constantes: o primeiro foi o de introduzir a ilusão e a desilusão
principais foi levar algumas idéias e teorias relacionadas ao como questões fundamentais da vida social; o segundo foi o de
estudo do espaço cênico para serem discutidas no campo do separar a natureza humana da ação social; o terceiro, e mais
urbanismo e da cidade. No trabalho de tese, procura-se fazer importante para o autor, foi o de entender theatrum mundi como
exatamente o inverso, isto é, o objetivo agora é trazer algumas retratos da arte que as pessoas praticam na vida cotidiana.
visões e proposições concernentes ao estudo do espaço urbano Em trabalho crítico sobre a antiga relação entre o
para serem questionadas, discutidas e avaliadas no campo das teatro e a cidade, Boyer (1994) também afirma que desde a
artes cênicas e, em particular, do teatro. antiguidade o termo theatrum mundi tem sido usado para
Compreendemos a cidade aqui não só como lugar dos recordar a vaidade das realizações humanas, em um mundo
conflitos humanos e dramas cotidianos, mas também como palco onde Deus era o último gerente da cena. Ao final do período
das inúmeras manifestações artísticas e culturais, vividas pela medieval, quando o teatro começou a refletir a mentalidade de
sociedade. Sob este prisma, estabelecemos como objeto de uma sociedade que passava por uma grande ascensão comercial,
análise três experiências cênicas realizadas por três renomados a natureza da teatralidade adquiriu uma nova importância.
diretores teatrais, e representadas em três espaços livres públicos O ideal clássico do theatrum mundi estabeleceu um
diferenciados da cidade: Amir Haddad com seu grupo teatral forte vínculo entre arte e sociedade, entre estética e realidade,
“Tá na Rua” em uma representação no Morro do Vidigal (1981); concebendo a sociedade como um teatro em que todos os homens
Augusto Boal com atores e curingas do “Centro de Teatro do poderiam se transformar em atores. O cenário lógico para se
Oprimido” numa performance no Parque do Flamengo (1987); estudar essa relação palco-rua é, como bem observa Sennett
e Aderbal Freire Filho com atores do “Centro de Demolição e (1993), a grande cidade: é nesse meio que a vida humana fica
Construção do Espetáculo” numa encenação itinerante que em evidência, onde as relações de troca entre as pessoas
percorreu vários pontos do Centro Histórico (1992). Trata-se, adquirem uma importância especial.
portanto, de um estudo interdisciplinar que entrelaça três Retornando então ao caso específico da cidade do Rio
questões básicas distintas: o pioneirismo dessas experiências de Janeiro, Lima (2000) atenta para um fenômeno ocorrido entre
em relação às recentes configurações da performance e da cena a última metade do século XIX e a primeira do século XX, com
teatral contemporânea; a noção de cultura urbana dentro da a ampliação do uso do espaço público da cidade, quando um
abrangência do termo cultura; e o surgimento de novas formas conjunto de edificações teatrais e de seu entorno constituía-se
de fruição e de sociabilidade, experimentadas no espaço livre como elemento formador de alguns espaços urbanos e também
público urbano. como espelho da vida social da própria cidade. Papel
Detectamos uma gama muito variada de sítios urbanos desempenhado hoje, segundo Huyssen (2000), pelos grandes
utilizados para a realização de espetáculos cênicos ao ar livre, museus ou por sofisticados centros culturais. Edificações
a princípio, como uma tendência observada ainda ao final dos inseridas, atualmente, em uma espécie de disputa extremamente
anos de 1970. Alguns teóricos e especialistas, como Arantes acirrada entre as grandes cidades do mundo ocidental. Interessa-
(1998), apontam inclusive para o papel dessas práticas e nos investigar, sob esse aspecto, a trajetória das experiências
atividades artístico-culturais como instrumentos propulsores nos cênica e teatral empreendidas entre os anos de 1981 e 1992, no
famosos – e muitas vezes criticados – processos urbanos de contexto urbano carioca, bem como suas novas funções,
revitalização, reanimação e requalificação de algumas áreas configurações e especificidades.
públicas da cidade. Sob essa visão metafórica da cidade como Quais foram, nesse período, os principais vínculos
um grande teatro – palco da representação pública, do drama entre o teatro e a cidade? Como se configurava o lugar da cena
cotidiano e da expressão artística – optamos por um estudo mais teatral em relação aos processos de mutação, preservação e
específico sobre o lugar da cena teatral contemporânea, quando fragmentação do espaço urbano carioca? Cientes de que os novos
representado no ambiente livre e aberto da cidade. arranjos cênicos também não conseguem mais escapar, segundo
É preciso deixar claro, antes de tudo, que não se trata Jameson (1997), ao domínio cada vez mais amplo e globalizado
de um estudo sobre a acepção mais ampla dos três termos de massificação e banalização da cultura, o que nos interessa
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averiguar – nesse período histórico do teatro, da cultura e da extensa variedade de espetáculos cênicos realizados a céu aberto.
cidade – é justamente o conjunto de ações e iniciativas que Afinal, a determinação do que possa vir a ser uma teatralidade
determinaram novas políticas públicas urbanas e culturais. do próprio espaço urbano, como bem menciona Kosovski (2001),
A condição da cidade do Rio de Janeiro, bem como na adequação de um lugar como alocação de uma cena teatral-
de muitas cidades brasileiras, vem se manifestando por meio urbana, se apresenta como um processo de descoberta da
de várias formas de poluição, de insegurança, de violência, do vocação de certos lugares, de modo que, ao se relacionar com
descontrole das ocupações informais e, sobretudo, da baixa seus cidadãos-usuários, potencialize e amplie a sua condição
qualidade de uso de seus espaços públicos. Se o crescimento existencial. Compreendendo a experiência humana, nesse caso,
incessante e descontrolado de nossas metrópoles, provenientes como descoberta das invisibilidades, como potencialização
de antigos problemas econômicos e políticos, não têm sido radical da atividade simbólica. Ao examinarmos o espaço urbano
devidamente acompanhado de políticas públicas capazes de sob o prisma da surpresa e do encanto que ainda consiga suscitar,
atender às necessidades básicas da população em geral, o que talvez isso possa representar um fator positivo de teatralidade.
se pensar então sobre as necessidades do cidadão poder usufruir
e se manifestar artística e culturalmente no ambiente urbano? Bibliografia
Mas nos últimos anos, a cidade vem desempenhando
de certa forma um papel privilegiado em relação ao ARANTES, Otília. Urbanismo em Fim de Linha. SP: EDUSP,
desenvolvimento social, econômico e cultural no ocidente, na 1998.
medida em que se transformou no principal locus das relações BOYER, M. Christine. The city of collective memory: Its
humanas. Um palco de muitos conflitos humanos, certamente, historical imagery and architectural entertainment.
mas também com características eminentemente democráticas. Cambridge: MITPress, 1998.
Essa posição de protagonista da cidade, como espaço de BUCK-MORSS, Susan. Dialética do Olhar. Walter Benjamin
convivência democrática, está intimamente relacionada com a e o projeto das Passagens. BH: Editora UFMG, 2002.
possibilidade da extensão de acesso às oportunidades, em todos CARDOSO, Ricardo José Brügger. Espaço cênico-espaço
os níveis e para todos os seus cidadãos. Inclusive de arte e urbano - a relação entre os espaços das artes cênicas e os
cultura. Portanto, esse período não representa apenas o início espaços públicos da cidade. Dissertação de Mestrado em
de profundas mudanças políticas, econômicas e sociais – de Urbanismo PROURB/FAU/UFRJ. RJ, 2000.
intensas manifestações públicas e civis que desembocaram no CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. S P: Paz e Terra,
processo de redemocratização do país – mas também de muitas 2000.
manifestações artísticas, culturais e urbanas, ocorridas CERTEAU, Michel de (1980). A invenção do cotidiano.
principalmente nos grandes centros urbanos. Torna-se necessário Petrópolis: Vozes, 1994.
enfatizar, nesse sentido, a importância das atividades artísticas HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória. RJ: Aeroplano,
e o papel da cultura no cotidiano da própria cidade. 2000.
A questão central que impulsionou o estudo e que vem KOSOVSKI, Lidia. Comunicação e Espaço Cênico: do cubo
conduzindo o trabalho investigativo, dentro do eixo teatral à cidade escavada. Tese de Doutorado em Comunicação
metodológico adotado, manifestou-se como uma inquietação e Cultura ECO/UFRJ. RJ, 2001.
sobre um tipo específico de configuração cênica, a qual KONIGSON, Elie. (Org.) Le Théâtre dans la Ville. Paris:
denominamos, a priori, de “cena teatral-urbana”. Configuração Éditions du CNRS, 1987.
esta que se coaduna exatamente com o momento em que a cena JAMESON, Frederic. Pós-Modernismo. A Lógica Cultural
teatral passa a ser realizada, de forma mais efetiva, nas áreas do Capitalismo Tardio. SP: Ática, 1997.
livres públicas da cidade do Rio de Janeiro. LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Arquitetura do Espetáculo.
Trata-se de uma investigação histórico-conceitual, que Teatros e Cinemas na formação da Praça Tiradentes e da
envolve três modos específicos de utilização do espaço urbano Cinelândia. RJ: Editora UFRJ, 2000.
como lugar da performance, como palco da cena teatral. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. SP: Ed. Perspectiva,
Analisando, portanto, não só a configuração dos lugares 1999.
utilizados, mas também os aspectos de cada montagem, com SENNETT, Richard. O declínio do Homem Público, as
seus estilos próprios e suas características dramáticas de tiranias da intimidade. SP: Cia das Letras, 1
representação ao ar livre.
Um dos objetivos desse trabalho é procurar identificar ***
as principais contribuições dessas atividades artísticas e
culturais, através do uso adequado e apropriado do espaço
público urbano para a exibição cênica ao ar livre. Para tanto,
formulamos a hipótese de que uma dessas contribuições pode
estar direta ou indiretamente relacionada a dois tipos de
fenômenos urbanos aparentemente interligados e, por sinal, cada
vez mais presentes nas discussões sobre a qualidade de vida,
de energia e de estesia nas grandes metrópoles: as novas formas
de expressão artística e cultural do homem contemporâneo em
correspondência as recentes mutações da paisagem urbana.
Investigar três experiências cênicas que tem como
palco a própria cidade, é, no mínimo, o registro de um importante
momento da história teatral, cultural e urbana da cidade do Rio
de Janeiro. Refletindo um pouco sobre esse tipo de fenômeno
que chamamos de teatral-urbano, destacamos ainda que hoje o
homem da grande e média cidade não tem apenas as condições
necessárias, mas também o direito de poder desfrutar de uma

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