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t.

vasta a matena que esta


obra apresenta em termos
do debate teórico e da pers­
pectiva crítica em direção à
proposição de uma teoria
do espetáculo contemporâ­
neo ou, mais ainda, de uma
teoria contemporânea do
espetáculo. Luiz Fernando
Ramos se dedica a grandes
operações renovadoras ao
formular o conceito-chave
de mimesis performativa,
discutindo a perspectiva
antimimética e antiteatral
presente nas vanguardas e
na criação contemporânea,
com desdobramentos tam­
bém para o debate sobre o
modernismo teatral no Bra­
sil e consequentes releituras
dos movimentos estéticos e
seus marcos históricos no
país. É preciso também sau­
dar o vigor com que este
pensamento chega até nós.
A escrita e o olhar artístico­
crítico que se dirige para
a cena concreta guardam
uma dinâmica própria das
artes vivas pelos movimen­
tos que geram, deslocamen­
tos. Um trabalho sobre a
performatividade que, por
seu gesto transformador,
contém traços de seu obje­
to, operando também em
uma margem de invenção
possível.

FERNANDO ME CARELLI
Professor Titular da
F��Ab rlP RPh�-ArtPs cl::t
s ensaios articulados neste livro mo­
bilizam a noção de mimesis, um antigo
operador conceitual da arte até o modernismo, e o
conceito contemporâneo de performativo para lidar
com uma cena expandida, que inclui artistas de cam­
pos distintos como o teatro, a performance, as artes
plásticas e visuais. A estética modernista instaurou
uma crise no projeto da representação dramática e
abriu caminho para um teatro antidramático.

A ideia de uma mimesis performativa permite ao au­


tor analisar obras que exploram novos modos inven­
tivas do espetacular, para além dos parâmetros da
ficção dramática. Seis artistas da segunda metade do
século XX, Bill Viola, Juan Muíioz, Samuel Beckett,
Jack Smith, Mathew Barney e Romeu Castelucci têm
suas obras descritas e comentadas dessa perspectiva.
O mesmo viés de análise, que pensa a antiteatrali­
dade como recusa ao dramático, é aplicado numa
revisão histórica do teatro brasileiro desde o século
XIX. Resgata-se as dramaturgias de Qorpo Santo e
Oswald de Andrade, os projetos cênicos de Luiz Ro­
berto Galizia e Gerald Thomas, e as obras de artistas
mais recentes como Nuno Ramos e Roberto Alvim.

Em comum a todas essas "cenas" aqui reunidas, há


uma tensão entre seus campos de origem e as no­
vas configurações que estabelecem para fora deles.
Em todas elas, percebe-se haver uma margem de in­
venção possível operante, que amplia sobretudo os
modos de ser das artes performativas e cênicas.
lfJAPESI'
COLEÇÃO ARTES PERFORMATIVAS E FILOSOFIA

Direção: Cassiano Sydow Quilici e Luiz Fernando Ramos

Conselho Editorial: Christine Greiner, Eleonora Fabião, Fernando Mattos,

Gilberto Icle,José da Costa, Sílvia Fernandes

A cena contemporânea tem desafiado a teoria e a crítica, exigindo um pensamen­


to mais sintonizado com as práticas criativas e com a inventividade conceitual que
estas convocam. A hibridização e/ou o choque entre linguagens (teatro, perfor­
mance, dança, artes visuais etc), as diferentes proposições de articulação entre
arte e vida, envolvendo dimensões políticas, existenciais e culturais mais amplas,
ocorrem paralelamente à multiplicação de abordagens do fenômeno cênico, cons­
tituindo-se assim um campo emergente de reflexão. O crescimento da área da
pós-graduação e da pesquisa em artes cênicas no Brasil demanda novos projetos
editoriais. Esta coleção pretende trazer ao leitor uma produção brasileira significa­
tiva e ousada nesse setor, mesclando pesquisadores e pensadores mais experientes
com trabalhos promissores de autores mais jovens. O projeto inclui também a
tradução de obras internacionais de autores importantes e pouco traduzidos entre
nós.
Dados Internacionais de Catalog?çáo na Publicação (CIP)
Bibliotecáriajuliana Farias Motta CRB7- 5880

R 175m Ramos, Luiz Fernando.


Mimesis performativa: a ma rgem de invenção possível/ Luiz Fernando Ramos.
São Paulo: Annablume, 20 I).

290 p.; 16 x 23 em .
Apoto FAFESP

ISBN: 978-85-391-0715-5

Originalmmu apmmtado como tm (livr�-dodncia), ECAIUSP, 2012.


I. Teatro. 2. Teatro (representações). 3. Linguagem teatral. I. Título. 11. Título: a margem de
invenção possível.

CDD 792.01

Índice para catálogo sistemático:


I. Teatro
2. Teatro (representações)
3. Linguagem teatral

MIMESIS PERFORMAT IVA: A MARGEM DE INVENÇÃO POSSívEL

Projeco, Produção e Capa


Coletivo Gráfico Annablume

Annablume Editora
Conselho Editorial
Eugênio Trivinho
Gabriele Cornelli
Gustavo Bernardo Krause
lram Jácome Rodrigues
Pedro Paulo Funari
Pedro Roberto Jacobi

Ja edição: abril de 2015

© Luiz Fernando Ramos

ANNABLUME editora . comunicação


Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 554 . Pinheiros
05415-020 . São Paulo . SP . Brasil
Televendas (11) 3539-0225- Tel. e Fax. (11) 3539-0226
www.annablume.com.br
SUMÁRIO

PREFÁCIO 7

INTRODU ÇÃO 11

I - MIMESIS COMO POIESIS ESPETACULAR 19

11 - ANfiMIMESIS E ANTITEATRALIDADE 33
1 - A antiteatralidade como antidramático 33
2 - O modernismo e a antimimesis 38
3 - Esculturas humanas e atores objetos 44
4 - A imi taçáo de ações e os macacos 47
5 - Os mimos e a hegemonia do gesto 51
6 - Uma cena sem atores e sem drama 57
7 O bode expiatório da cena modernista
- 60

111 - A ARTE CONTEMPORÂNEA E AS ARTES PERFORMATNAS 67


1 - Teatralidade e antiteatralidade nas artes visuais 67
2 - Fusões e fricções de uma cena expandida 87
3 - A performance e o conceito de performativo 96
4 - A dialética do autêntico e do verossímil 1 02
JV- INVENTORFS DE NOVAS FORMAS DO ESPETACULAR 1 13
1 - Bill Viola: captação eletrônica como mimesis 1 13
2 - Juan Mufi.oz: a encenação em suspenso 1 27
3 - Samuel Beckett: ondas luminosas no ápice do
apagamento 141
4 - Jack Smith: a performance sempre inacabada 1 56
5 - Barney e Castellucci: invenção de cenas sem teatro 1 68

V- Ü TEATRO BRASILEIRO E A ANTITEATRALIDADE 1 87


1 - Qorpo- Santo, Gertrude Stein e a mimesis como
inventário performativo 1 87
2 - Oswald de Andrade e a antiteatralidade em
"A Mortà' 1 95
3 - Galizia e a antiteatralidade no teatro brasileiro 212
4 - Cenas "antiteatrais" na contemporaneidade 229

VI - CARTOGRAFIA DO CONCEITO DE MIMESIS:


DA SIMILARIDADE À DIFERENÇA E À REPETIÇÁO 249

Referências bibliográficas 27 1
PREFÁCIO

A cena contemporânea tem colocado diversos desafios ao


fl.p ensamento teórico e crítico. Por criar um campo expan­
dido de manifestações, em que as proposições não se definem
tanto pela adesão exclusiva a um gênero ou linguagem especí­
fica, ela parece requerer também uma "teoria expandida" que
articule diferentes perspectivas para dar conta das novas for­
mas do acontecimento artístico. Muitas vezes, a arte contem­
porânea também se concretiza como uma espécie de gesto fi­
losófico, convocando o pensamento a novas formas de diálogo
e intervenção. Neste sentido, a produção teórica brasileira tem
apresentado importantes contribuições. O trânsito entre teo­
ria e prática nos cursos de artes cênicas e as diversas formas de
colaboração entre artistas e pesquisadores mostram-se como
características positivas do nosso ambiente, criando condições
para o desenvolvimento de investigações vigorosas.
Este livro de Luiz Fernando Ramos é um exemplo de como
tais desafios podem ser enfrentados com originalidade e con­
sistência. Professor na área de teoria do teatro, Ramos exerceu
durante um bom tempo a função de crítico no jornal "Folha
de S. Paulo", acompanhando a produção teatral brasileira re­
cente. São também importantes para o desenvolvimento de
seu pensamento incursões no campo da criação, como no caso
de sua montagem de ''A Morta�', de Oswald de Andrade, anali­
sada no capítulo V. A experiência do fenômeno teatral a partir
de diferentes pontos de vista confere ao trabalho do autor o
comprometimento e a vitalidade de alguém diretamente en­
volvido com os problemas da criação e do ensino.
O caminho proposto para se pensar uma ampla gama de
manifestações teatrais e performáticas nos surpreende e nos
inspira. Em primeiro lugar, Ramos não se limita a dialogar
com os importantes pesquisadores contemporâneos das artes
da cena que têm pautado boa parte das discussões na univer­
sidade brasileira. Num gesto ousado, ele também nos desafia
a repensar uma das ideias fundantes do pensamento clássico
sobre a arte no Ocidente 6 conceito de mimesis visando
- -

torná- la um operador valioso na leitura de proposições perfor­


mativas . Para tanto, seu trabalho oferece ao leitor brasileiro
uma ampla gama de referências, introduzindo- o em discussões
mais recentes sobre o tema, desenvolvidas por especialistas de
diversas áreas. A partir daí, o fenômeno mimético pôde ser
reconsiderado a partir de uma multiplicidade de aspectos, que
vão do sentido mais limitado da "imitação" do existente, até as
concepções que enfatizam o trabalho criativo da imaginação,
as possibilidades de emergência da diferença e a produção de
novos mundos. A mimesis carregaria assim uma ambiguidade
essencial que se constrói em torno da similaridade e da dife­
rença, recebendo diferentes inflexões conforme o caso consi­
derado.
Este trabalho preliminar de elaboril ção constrói as bases
para uma leitura instigante das tendências antiteatrais e an­
timiméticas que marcam boa parte dos discursos modernis­
tas e contemporâneos sobre a arte. Aqui a reflexão do autor
abrange o campo do teatro e das artes visuais. Retomando a
crítica negativa de Michael Fried ao processo de teatralização
das artes plásticas, em especial a p3.[ tir do minimalismo, Ra­
mos dedica- se à investigação das noções de teatro e mimesis
subjacentes aos argumentos do autor. Chega à conclusão de

8
que a antiteatralidade, que atravessa não só o discurso de Fried
mas de outros pensadores importantes, refere-se muito mais a
uma contestação do "dramà' que se apoia nas construções fic­
cionais, nos efeitos de verossimilhança e em referentes estáveis.
Já a noção de mimesis, quando compreendida em sua com­
plexidade, poderia abranger uma gama muito mais ampla de
manifestações, incluindo aí as que operam com formas de op­
sis (espetáculo) totalmente desvinculadas do mythos (fábula) .
Mais do que isso, o que o autor chama de mimesis performativa
pode trabalhar intensivamente com a crise da noção de um
fundamento que sustentaria a representação. Mesmo manten­
do algum grau de repetição inerente aos processos miméticos,
a mimesis performativa, nas suas versões mais radicais, amplia
a "margem de invenção possível" na arte, fazendo emergir a
diferença no seio da repetição.
Nos capítulos IV e V, Ramos nos oferece uma variedade
de exemplos artísticos concretos em que testa suas hipóteses.
Destaca-se, em primeiro lugar, a originalidade de suas esco­
lhas, que acabam construindo uma espécie de dramaturgia,
em que artistas importantes de áreas distintas contracenam em
torno das questões levantadas pela sua pesquisa. A justaposi­
ção de artistas como Bill Viola, Samuel Beckett, Juan Mufioz,
Romeo Castellucci, Jack Smith e Matthew Barney, permite a
construção de um olhar que não se prende a questões espe­
cíficas dos gêneros, sendo capaz de apreender ressonâncias e
pontos de tensão que aparecem nas zonas de vizinhança entre
proposições radicais. As escolhas relativas ao teatro brasileiro
procuram destacar alguns momentos em que a antiteatralida­
de aparece de modo fulgurante na nossa cena, para que o autor
possa desenvolver uma reflexão que se impõe a partir das teses
que defende.
O livro de Luiz Fernando Ramos é certamente uma das
contribuições mais significativas e originais da academia bra­
sileira sobre a cena contemporânea, nos últimos anos. Sua in­
ventividade conceitual conduz a novos tipos de recorte dos

9
fenômenos performativos, possibilitando-nos um olhar trans­
versal sobre artistas e áreas que passam a dialogar de forma
intensa e produtiva, a partir das questões apresentadas. Cons­
titui-se assim como uma teoria em "sintonia finà' com os pro­
blemas da criação artística do nosso tempo, prestando inesti­
mável contribuição para a nossa reflexão artística e cultural.

Cassiano Sydow Quilici

10
INTRODUÇÃO

"mimesis produz dor ou prazer não porque seja


tomada por realidade, mas porque traz realidades
à mente"
Samuel Johnson

"A vida só é possível reinventada"


Cecilia Meireles

conjunto de textos aqui apresentado é um a pequena


O contribuição ao quase incom ensurável cam po de estudos
da mimesis. Não existe um a teoria acabada sobre este fenôm e­
no, associado à natureza tanto hum ana com o anim al e cuja
com plexidade desafia pensadores desde as prim eiras reflexões
sobre a arte e a linguagem na cultura ocidental. A longevida­
de das tentativas de form ular um a conceituação, bem com o
a variedade de interpretações que se acum ularam em quase
três m ilênios, desautorizam qualquer intenção totalizante. No
últim o século, proliferaram reflexões m ais e m enos filosóficas,
e, da perspectiva de variadas disciplinas, produziram -se defi­
nições favoráveis e desfavoráveis à mimesis. O ecletism o das
interpretações oscila de posturas que não concedem à mimesis
nem a condição de conceito, até aquelas que percebem nela,
enquanto fenômeno, a potência de reverberar nas relações hu­
manas em geral.
Michael Taussig, um dos intelectuais que nos anos 1 990
adotou a mimesis como eixo de análises antropológicas, dá a
medida do nível de tensão que paira em torno deste conceito
no ambiente acadêmico: "Mimesis se tornou aquele apavoran­
te, absurdo ou meramente tedioso outro, o necessário espanta­
lho contra cuja fraqueza pós- estruturalistas pretensiosos mar­
cham e empinam o nariz" ( 1 992, p. 44) . Mesmo esta suposta
ojeriza do pós- estruturalismo à mimesis é relativa, visto que
Jacques Derrida considera a sua recorrência na literatura e no
teatro contemporâneos como uma das mais instigantes. De
qualquer modo, cabe aqui justificar minha própria opção por
esse recorte, antes de apresentar ao leitor o material com que
se defrontará.
A minha fixação pela mimesis se deve, provavelmente, a ter
me dedicado, nos últimos vinte anos, a investigar a "Poética"
de Aristóteles, onde, consensualmente, este híbrido de concei­
to e termo operativo na interpretação dos fenômenos artísticos
se consagrou. Tal foi a influência das sugestões de Aristóteles
na tradição do pensamento sobre as representações artísticas
no Ocidente, que a rejeição do modernismo à mimesis levou
ao descarte sumário da contribuição aristotélica aos estudos
estéticos. As ideias expressas na "Poética" sobre as diversas ar­
tes, e principalmente sobre o fenômeno histórico da tragédia
ateniense do século V a.C., apesar de seminais para qualquer
teoria do teatro posterior, passaram a ser associadas a um rea­
lismo rasteiro, da pura cópia, identificadas como limitantes à
criatividade e cativas do conservadorismo. Nesse longo tem­
po de estudo, boa parte dele atuando como professor univer­
sitário, eu próprio vivi um lento processo de transformação
das minhas convicções frente à mimesis, passando da recusa à
curiosidade e desta ao fascínio. No momento em que me dis­
pus a um enfrentamento mais profundo, já com a intuição de
que cabia recortar, na imensa fortuna crítica da mimesis, um

12
olhar específico para o teatro ou para as artes cênicas e perfor­
mativas, já estava conquistado pelo tema.
A somatória do que foi realizado nesses anos de pesquisa,
e que ganha aqui a forma de uma série de ensaios interconec­
tados em torno do conceito proposto de "mimesis performa­
tivà', aponta para o resgate de uma ideia muito antiga, mas
ainda fértil, a fim de operar o que de uma maneira ampla está­
se reconhecendo como a cena contemporânea. Entende- se por
isso todas as manifestações espetaculares no campo do teatro,
da performance e das artes visuais e plásticas, principalmente
aquelas que se lançaram em obras performativas e que
passaram a partilhar com a cena teatral o compromisso com
um espectador atento, mas, ao contrário da convenção teatral
mais arraigada, recusam o dramático. É justamente na hipóte­
se de que as artes incluídas nessa definição ampliada de "cenà'
têm mais em comum do que os seus campos específicos de
estudo e crítica deixam entrever, que no núcleo principal deste
livro tratou-se de propor alguns exercícios de análise. Operan­
do com essa noção de mimesis performativa, eles tentam abor­
dar as obras de artistas recentes de variadas tendências e supor­
tes, e, assim, afirmar o potencial metodológico da mesma para
lidar com tais manifestações fronteiriças. A expressão proposta
concorreria com outras como teatro pós-dramático, ou teatro
performativo, que têm sido apresentadas por pesquisadores
europeus para caracterizar a produção cênica contemporânea
mais inventiva. De fato, ela se pretende mais apta para dar
conta de uma produção espetacular de invenção que sustenta,
contemporaneamente, a perspectiva de uma cena expandida,
agregando artes visuais, plásticas e a performance. Isto exata­
mente por implicar a ideia de mimesis, que mais ampla do que
a conceituação de qualquer das artes especializadas engloba
todas elas, articulando-as com a noção de performativo, que
permite abranger uma produção antidramática.
No que diz respeito aos estudos do campo específico do
teatro, de onde essa investigação emerge e para os quais seus

13
desdobramentos apontam, torna-se imprescindível destacar
um dos eixos conceituais que contribuiu ao longo de todos os
ensaios para criar um veio comum de interpretação. Trata- se
da noção de "antiteatralidade", q ue é pensada tanto historica­
mente - como uma tendência dominante no teatro do século
XX, quando é lida como uma recusa ao drama e ao dramático
e identificada com a própria rejeição da mimesis pelas artes mo­
dernas - quanto teoricamente - quando se trata de contraditar
a sua interpretação por um crítico influente das artes plásticas
e visuais contemporâneas, o historiador Michael Fried.
No aspecto histórico, é preciso deixar claro desde logo que
o que se está aqui considerando "anti teatral" é, essencialmente,
uma postura antidramática, isto é, aquela que nega ao fenôme­
no espetacular a supremacia da trama, e da tessitura de ações
clara e consequentemente encadeadas, valorizando o predo­
mínio de suas materialidade e superfície. A antiteatralidade
nos programas estéticos de artistas como Mallarmé pretende
emancipar o teatro de seu viés dramático, permitindo-lhe, por
exemplo, a liberdade formal e de linguagem conquistada pelas
artes plásticas quando abandonam o figurativismo e se lançam
à abstração, bem como à autonomia de qualquer referente an­
terior na formulação da obra. Mallarmé quer um teatro livre
do drama como quer uma literatura livre da ficção. É antitea­
tral na medida em que é antidramático e quer eliminar do te­
atro a função narrativa, potencializando-o como matéria que
se apresenta aos olhos inaugural, livre de antecedentes e não
como representação de uma história fechada.
No que diz respeito à discussão teórica com Michael Fried,
procurou-se apontar tanto a inconsistência de sua noção de
antiteatralidade, fundada numa leitura parcial de Diderot,
como as contradições a que sua utilização para pensar a arte
hoje podem levar.
Nesta perspectiva antiteatral aqui trabalhada, de negação
do dramático, foi decisiva a distinção de Aristóteles, na sua
análise do fenômeno da tragédia, entre as noções de mythos

14
(trama, enredo) e opsis (espetáculo) . Pretendendo ter evitado
qualquer anacronismo nessa utilização, e transformando esses
dois polos - opostos na hierarquia de Aristóteles dos elemen­
tos componentes da tragédia encenada - em metáforas ope­
rativas para os fenômenos espetaculares em qualquer tempo,
acredito estar propondo um modelo alternativo para pensar as
questões do teatro e das artes performativas hoje.
É importante salientar que a dinâmica entre mythos e opsis,
aspectos irredutíveis de qualquer matéria espetacular com pre­
tensões poéticas (ou seja, poiesis com vocação estética em bus­
ca do olhar de um espectador), só interessou e interessa como
for ma de detectar a margem de invenção que essas produções
possam conter. Isso valeria até, eventualmente, para algumas
criações ainda presas à convenção do drama, mas principal­
mente para aquelas que expandem as escrituras espetaculares
para além dele.
A estrutura de seis capítulos com diversos itens cada um
demarca, de fato, quatro sessões distintas. A primeira, que
engloba os três primeiros capítulos, combina alguns tópicos
pontuais com o fio dominant e da antiteatralidade e do embate
com as ideias de Fried, constituindo-se na parte mais autoral
do trabalho, por assim dizer. Nela procuro dar uma resposta
bem pessoal às questões candentes nos atuais estudos teatrais
e estéticos. De alguma forma, estão processadas e reunidas ali
reflexões por mim desenvolvidas em cursos de graduação e
pós-graduação, e em ensaios esparsos sobre arte, teatro e te­
atralidade.
A segunda parte, que é formada pelos cinco itens do quarto
capítulo, reúne análises realizadas originalmente para finalida­
des e em ocasiões distintas, aqui amalgamadas pelo modelo
teórico esboçado nos capítulos anteriores. Artistas visuais e
plásticos capazes de pôr em tensão, com suas obras, os ter­
ritórios tradicionais dos campos de onde partem, e que, nos
formatos e procedimentos utilizados, assim como no tipo de
recepção que ensejam, podem ser lidos sob a noção de mimesis

15
performativa, têm sua produção observada deste outro ponto
de vista. As exceções são Samuel Beckett e Romeo Castelucci,
dois artistas da cena teatral que, cada um ao seu modo, rom­
peram com o teatro, ou fizeram-no romper com suas bases e
convenções dramáticas.
A terceira parte desdobra as anteriores, mas com foco no
panorama do teatro brasileiro. Trata-se de rever, em particular,
a história recente do teatro no país à luz dessa perspectiva de
pensar a antiteatralidade pelo viés do antidramático. Assim,
são examinados: a dramaturgia de Qorpo- Santo, analisada
em co ntraste com a proposta teatral de Gertrude Stein; o te­
atro de Oswald de Andrade, prin cipalmente as peças escritas
na década de 1 930; a contribuição de Luiz Roberto Galizia e
seu papel pioneiro e decisivo na produção de espetáculos, nos
anos 1 980, já em um paradigma francamente antidramático; e
as obras mais recentes de Nuno Ramos e Roberto Alvim, dois
artistas, que, nos campos das artes visuais e das artes cênicas,
têm produzido formas espetaculares inovadoras, para além dos
campos de onde partem originalmente.
A quarta parte, com o sexto e último capítulo, é uma re­
tomada do início da pesquisa. Trata-se de uma cartografia das
mais potentes visões teóricas sobre a mimesis, entre aquelas de
que se partiu. Consiste em uma re capitulação e possível sínte­
se, ainda que transitória, do que se identificou de mais perti­
nente nessa aproximação a este amplíssimo conceito, e em sua
articulação com o espetáculo, o espetacular e o performativo.
No fim projeta-se a possibilidade de uma teoria das artes cêni­
cas e performativas, que esteja voltada especial e verticalmente
para o fenômeno espetacular em um campo estético expandi­
do, para além do teatro dramático e de suas convenções - este
afinal já contemplado na "Poética" de Aristóteles - e que, esse
novo escopo, o de uma mimesis performativa, alcance outros
modos de apresentação artística, hoje só associados às artes
visuais e plásticas.

16
Impossível não mencionar aqui o meu sincero agradeci­
mento a todos os alunos que nos últimos dezessete anos com­
partilharam comigo dúvidas, questionamentos e intuições.
Sem eles nunca teria me sentido capaz de chegar às propostas
e formulações aqui apresentadas.
Agradeço também a Arthur Belloni, principal interlocutor
do trabalho, e a Maria Cecília Leonel Gomes do Reis e Sílvia
Fernandes, leitoras atentas de sua primeira versão, cujas su­
gestões, aceitas, muito contribuíram no seu aprimoramento.
Finalmente, destaco a não menos relevante contribuição dos
professores Fernando Mencarelli, Ismail Xavier, José da Costa
e Luiz Camillo Osório, componentes da banca que examinou
uma versão do texto na forma de tese de Livre Docência, de­
fendida em 20 1 2 na Escola de Comunicações e Artes da USP.
Todos os problemas que tenham subsistido na publicação
que aqui se apresenta deverão ser tributados exclusivamente
a mt m.

17
I
MIMESIS COMO POIESIS ESPETACULAR

}\ ffimesis se diz de muitos modos e não é algo que possa ser


1 V1 definido de uma única perspectiva. Enquanto sinônimo
de representação na arte, sua acepção mais convencional, ela se
define em ato, a cada vez, quando se opera a relação entre uma
obra e seu receptor. O que interessa aqui é explorar os aspectos
da mímesis relativos a uma sua faceta específica, a espetacular,
ou seja, quando está associada ao teatro e outras formas de nar­
ração/atuação performativa. Estas pressupõem a afecção do ob­
servador durante certo tempo por uma materialidade tridimen­
sional, por imagens bidimensionais, cinemáticas ou pictóricas,
ou mesmo, apenas, como no caso da música, quando afetam
seus receptores por meios sonoros ou audiotácteis, mas opondo
sempre, e simultaneamente, o apresentado ao ato da recepção.
A favor desse ponto de vista, e de sua especificidade entre
a vasta gama de enfoques possíveis já realizados no plano dos
estudos literários e filosóficos, e alternativamente a modelos
mais utilizados contemporaneamente para lidar com o espeta­
cular como o da teatralidade, existe a história do conceito. É
consenso que a primeira vez que a palavra mímesís apareceu na
reflexão filosófica foi no diálogo platônico, ''A Repúblicà'. Até
então o termo já era utilizado pela cultura grega, mas foi nos
livros 3 e 1 O daquele texto que ele fixou-se de fato, denotando
representação artística e, particularmente no livro 3 (392d-394c) ,
caracterizando um tipo de representação que pressupõe a exis­
tência de atores e de um público que os assiste em tempo real,
referindo-se, portanto, especificamente à situação teatral. Ain­
da assim, mesmo em ocorrências anteriores e em suas raízes
etimológicas, mimesis já aparecia associada a essa dimensão
espetacular1 •
Esta associação demanda aproximar um conceito milenar
de uma noção mais recente, que é a do espetáculo como um
elemento central da cultura contemporânea. De algum modo
a categoria do espetáculo vem catalisando o interesse das ciên­
cias sociais - sociologia, antropologia e ciência política - e dos
estudos estéticos, transcendendo o âmbito do próprio teatro
e abrangendo as artes em geral, principalmente as artes visu­
ais e plásticas . Na presente abordagem interessa aproximá-la

I. Em Ésquilo, na tragédia perdida "Edonians", numa elaborada descrição da música que


acompanha a chegada de Dionísio a Trácia, a raiz de mimesis, mimoi, é usada para referir
os sons percussivos dos instrumenros musicais primitivos que reproduziam um estrondo
de touros. A frase literal é: "vozes de touros... aterrorizantes mimoi". Há controvérsia sobre
se é uma referência aos atores em um drama no culto de Dionísio. Gerald Else, um dos
grandes helenistas modernos, descarta a hipótese e lê a frase como "imitação ou repre­
senração das vozes dos touros". Stephen Halliwell já vê aqui uma metáfora em que, estas
cabeças de touros falantes seriam caracterizadas, ou personificadas, quase que como atores
dramáticos. Assim, ele traduziria o trecho como "aterrorizantes - performers com voz de
touro debaixo de algum lugar fora da vista- sons ouvidos fora do placo", caracterizando­
-se uma espécie de sonoplastia primitiva. Se ele concorda com Else ao tratar "estrondo de
touro" literalmenre, como um som em si, deixa aberta a possibilidade de conexão enrre
mimoi e a assunção de uma personagem em um espetáculo dramático. Em Homero, numa
palavra da mesma família, mim�sthai, mim�sis também aparece associada a um conrexto de
represenração espetacular. Trata-se do hino homérico a Apolo que data aproximadamente
do século VI a.C. Nele coma-se que um coro de noivas délficas enfeitiça sua plareia através
da apresentação de hinos a Apolo e a outros deuses; O poeta diz que as noivas sabem como
representar (mim�sthat) as vozes de todos os homens e, literalmente o som de castanholas
(krr=balitJStun). "Cada pessoa diria que é o som de suas próprias vozes, tão bem conjuga­
das em sua adorável canção". Para Halliwell a passagem sugere um tipo de imitação vocal.
Mas, ao mesmo tempo, não se trata apenas de truque engenhoso e sim de uma realização
artÍstica- a maestria sobre diferentes estilos de linguagem, talvez incluindo diferentes dia­
letos, num espetáculo que é tanto musical como coreográfico (Halliwell, 2002, p. 1 5-22).
Todos os trechos traduzidos apresentados neste rrabalho são de responsabilidade do autor.

20
do conceito de mimesis, na perspectiva em que ambos, afinal,
operam dependentes da confirmação de um espectador que os
reconheça e por eles se deixe afetar.
Diante da vastidão do universo do que é espetacular con­
temporaneamente, ou do que se dá a ver ou apreender por um
receptor e pode afetá-lo esteticamente de algum modo, há de
se limitar o escopo para tornar possível essa aproximação do
espetacular com a mimesis, e produtiva as análises que se pre­
tende realizar mais à frente, testando a vitalidade de recombi­
ná-los numa nova instância, no caso como mimesis performa­
tiva. Por isso, se à primeira vista o espetacular se manifesta em
acontecimentos tão variados como o teatro, a dança, a música,
a performance na qualidade de gênero (performance art), os es­
portes, a religião e todos os tipos de ritos coletivos, sejam cívi­
cos ou no âmbito da vida privada, faz-se necessário estabelecer
um recorte que torne possível os exames pretendidos. A prin­
cípio, todas aquelas manifestações espetaculares que operam a
partir de convenções rígidas - a maioria dos esportes, as religi­
ões e outras instâncias da vida cívica como a política e a justiça
- estariam fora do campo que interessa circunscrever. Ainda
que a abordagem antropológica venha trabalhando esses pla­
nos da vida social como processos espetacular es, no caso dessa
investigação, até pela aproximação proposta com a mimesis,
não interessa incluí-los2• Estariam, então, sujeitas ao escrutí­
nio formas espetaculares essencialmente artísticas, tais como
o teatro, a dança, a música a performance, o cinema e todas
as manifestações das artes visuais de caráter performativo que,
como as demais citadas, pressupusessem uma situação presen­
cial e exposição a um espectador durante um tempo limitado
(ainda que seja um tempo dilatado como é o caso de algumas
performances de longa duração) com a intenção de afetá-lo de
algum modo. Essa discriminação tem como critério principal

2. Esse campo foi pioneiramente explorado por Victor Turner e desdobrado e aprofundado
nos chamados Paformanc� Studi�s. principalmente por Richard Schechner.

21
o fato de todas essas manifestações estarem sujeitas à invenção
e a rupturas constantes em suas formas, ao contrário daquelas
em que, apesar de se buscar a afetação dos destinatários, as
convenções são absolutas e não sujeitas à transformação, ou
quando o são de forma muito mais lenta, como é o caso do
esporte e da religião3•
Pensar a mimesis hoje como instrumento relevante para
operar a cena contemporânea é desafiar a tradição modernista
que exilou esse conceito como ultrapassado, relacionando-o
com uma arte menor, de pura cópia, quase como antítese da
noção de arte romântica, associada esta à revelação de uma
dimensão insuspeita do mundo. Seria incompatível também
com o projeto das vanguardas históricas do início do século
XX, que negou a essa própria aura romântica qualquer valor e
deflagrou um amplo espectro de novas possibilidades às artes,
quase sempre de caráter antimimético, como se em um acir­
ramento do projeto romântico a arte passasse a se definir pelo
que não é mais mimesis. É exatamente nesse momento que a
simetria entre o espetáculo teatral e a mimesis, localizável na
"Poética" de Aristóteles, se repete em novos termos, só que ne­
gativos. O sentimento antimimético, germinado no romantis­
mo e configurado plenamente pelas vanguardas, se confundirá
com uma perspectiva antiteatral que se tornará baliza funda­
mental de muito do mais relevante e influente que sucedeu no
teatro do século XX4• É j ustamente nessa ruptura com a ideia

3. O futebol seria uma exceção por ser um esporte que pressupõe a invenção como um de
seus elementos constitutivos. Tornou-se antológico o episódio da cobrança de penalidade
com cavadinha, pelo então ralemo emergente do futebol brasileiro Neymar, hoje interna­
cionalmente consagrado. Ele ilustra o aspecto de risco que a invenção no esporte, como na
arte, acarreta. Ao mesmo tempo, o. que torna esse jogador a mais concreta promessa de um
novo Pelé já aparecida é, jusrameme, sua capacidade inventiva, que torna cada jogada sua
um ato performativo no estabelecimento de novas possibilidades para o esporte, dentro da
margem de invenção possível que suas convenções autorizam.
4. Uma exposição apresentada em Lisboa no CCB em 2007- "Um Teatro sem Teatro" -
fazia esse recorte reunindo uma série de manifestações incluídas ou não na história do
teatro moderno e estabelecendo uma espécie de contra-história, talvez homogênea em
seu caráter amidramárico e capaz de resgatar o "ser" do teatro para além do teatro como

22
de representação, particularmente encarniçada no caso da arte
teatral, que surge espaço para se pensar a invenção e aquilo no
espetacular que ainda pode não ser convencional ou estratifi­
cado. A chamada crise da representação poderia ser tomada
como a necessidade de uma linha de fuga que viabilizasse esta
invenção. Assim como a mimesis enquanto antimimesis se re­
cicla, mas não deixa de operar representações, o espetáculo
antiteatral, ou antidramático, mesmo negando as convenções
do teatro, continua sendo espetacular e performativo.
Por tudo isso, caberá aqui não só (i) evocar brevemente
a história do conceito de mimesis durante o período em que
este conceito presidiu as reflexões sobre a criação artística (da
antiguidade clássica até o romantismo), como (ii) mapear as
origens da antiteatralidade moderna nos primórdios do teatro
e compreender seus desdobramentos no modernismo. Só as­
sim será possível chegar à ideia de espetáculo e de ato perfor­
mativo que impera nas artes contemporâneas, bem como (iii)
perceber como esta teatralidade generalizada, em uma cena
expandida, resgata muito das qualidades abrangentes da mi­
mesis e lhe autoriza, hoje, como potencial operadora crítica da
produção artística performativa.
Pensar a teatral idade contemporaneamente requer dife­
renciar o que nela está afeito ao dramático, funcionando nas
correias de transmissão narrativa do tempo e espaço cênicos e
confundido com a dita carpintaria teatral, do que é expressão
da condição intrínseca. do espetáculo, de sua materialidade
e tridimensionalidade, como superfície que se dá a ver,
e, tempo-espacialmente indissociável do aqui e agora,
aproximando-se da pintura e da escultura no aspecto contem­
plativo, mas partilhando com a música a duração e o movi­
mento. Nesse sentido, não é a mesma coisa pensar a cena e
sua dramaturgia implícita como uma operação dramática, seja

drama. "Um Teatro sem Teatro" , Barcelona e Lisboa, Museu D'Art Contemporani de
Barcelona, Fundação de Arte Moderna e Contemporânea-Coleção Berardo, 2007.

23
verbal, seja visual, de concatenação e fortalecimento de uma
narrativa anterior - escrita ou oral, subjetiva ou coletiva - e
pensá-la como poiesis de algo concreto, produção de visualida­
de e materialidade autônomas de qualquer referente anterior,
ou, mesmo quando armada de referentes, estruturada como
planta arquitetônica, mapa de um sítio concreto e objetivo.
Em geral, essa diferença se oculta subsumida na ideia da fun­
cionalidade narrativa, que coloca a construção da visualidade
cênica subordinada à construção de um sentido ou de um per­
curso previamente definido. Importante, pois, realçar que a
própria ideia de uma "dramaturgia da cena" já pressupõe, no
mínimo, uma inversão dessa perspectiva habitual, enfatizan­
do-se o segundo termo, a cena, como a matéria substantiva a
constituir o ato concreto da encenação, que a materializaria ou
produziria de fato, e entendendo o primeiro, a dramaturgia,
como matéria secundária que se submete para concretizá-la.
Essa tensão entre dois modos de pensar a relação da dra­
maturgia e da cena antecede em muito a aparição do concei­
to de 'dramaturgia da cenà no panorama dos estudos teatrais.
Quando em 1 978, em dois artigos sucessivos denominados "O
espetáculo como texto", Marco de Marinis propôs no âmbito
dos, à época, aquecidos estudos semióticos sobre o teatro, a
ideia de que a cena tem textualidade própria que suplanta seus
antecedentes literários e que, como tal, deve ser o objeto cen­
tral da investigação sobre o teatro, ele teve o dom de ampliar
em muito o campo dos estudos teatrais e permitir a superação
de um modelo anacrônico, que não conseguia pensar o tea­
tro dissociado da literatura5• Mas esse pioneirismo no campo
acadêmico não significa que a questão em si já não estivesse
presente em latência nas ·primeiras teorizações sobre o teatro.
Quando Platão, no livro 3 de ''A Repúblicà', figura Sócrates e
seus interlocutores discutindo sobre os prós e contras da prá-

"
5. De Marinis, Marco, Lo spertacolo come texto I", �nus, 2 1 , set.-dez., 1 978, p. 67 & "
Lo spettacolo come texto 2", Versus, 22, jan.-abr. 1 979. p. 23-28.

24
tica do teatro associada ao ensino dos guardiões da presumida
República ideal, ele formula a diferença entre o que chama de
modos diegético e mimético de apresentação ficcional. O pri­
meiro estaria associado à pura narrativa de ações, e o segundo,
às ficções que se apresentariam também por meio do diálogo
de personagens, e eventualmente atores, pressupondo a sua in­
termediação assumindo vozes estranhas a si, como elos entre o
discurso do narrador e os destinatários da narração. De certa
forma, essa diferenciação está na raiz do que modernamente
se definiu como gêneros épico e dramático e insinua, já, uma
tensão potencial entre o que seria um puro dramático, cativo
numa narrativa, escrita ou encenada, e um puro espetacular, já
autônomo de qualquer drama anterior. O que interessa pon­
tuar, contudo, é que o que se entendia como mimético nessa
comparação, e que podia ser também chamado de dramático,
traz fundidas as dimensões literária e espetacular do fenômeno
teatral. Platão, pela voz de seu personagem Sócrates, a princí­
pio percebe este mimético como sem nenhum valor intrínseco
e, principalmente, como prática recriminável que justificaria
manter os jovens guardiões distantes do teatro. Se a "Repúbli­
cà' pode portanto ser lida como um diálogo tenso entre uma
nova ideia de educação, que se contrapunha à Paideia grega
arcaica, totalmente fundada na tradição homérica, ou seja, nos
textos da "Ilíadà' e da "Odisseià' e numa cultura eminente­
mente oral6, este ataque ao teatro pode ser visto como uma de­
rivação natural daquela estratégia, corroborando a rejeição dos
aspectos performativos da cultura grega. Platão utilizar a forma
do diálogo dramático para veicular suas ideias pode parecer
contraditório, pois ele supostamente prega contra o teatro, mas
sugere, ao mesmo tempo, que talvez sua ojeriza fosse menos
contra a narração dramática e mais contra o espetáculo em si,
ou contra a materialização cênica dessas narrativas, seja por
meio dos aedos - verdadeiros contadores de histórias -, seja na

6. Ver Havelock, 1 996.

25
forma de diálogos dramáticos representados através de atores.
Assim, quando Platão criticava Homero por este ter se utiliza­
do em seus poemas de diálogos, mais do que uma contradição,
indicaria que ele estava se opondo ao teatral, ou espetacular,
aquilo que se daria a ver concretamente, e não ao dramático na
sua forma literária. No fundo, não o incomodaria a forma dia­
lógica como tal, mas só quando ela implicasse em interpreta­
ção de atores, presença física de corpos fingindo serem outros,
quando resultasse, enfim, na sua materialização cênica. Platão
aceitaria a dramaturgia somente quando esta recusasse a cena.
O passo decisivo na superação desse olhar negativo, não só
em relação à mimesis dramática, mas também ao caráter espe­
tacular que assume na tragédia clássica, do século V a.C. em
Atenas, foi dado por Aristóteles em sua "Poética". Ao definir a
tragédia como mimesis de práxis, ou de ação, e considerar po­
sitivamente o resultado desta poiesis, a produção do espetáculo
da tragédia, Aristóteles consagra o que Platão tinha condenado
como nocivo à sua pedagogia e qualificado sem nenhum valor
intrínseco. Na "Poéticà' não só há uma dissecação da forma
e da estrutura do fenômeno trágico, como há uma valoriza­
ção da poiesis espetacular como produtiva, ou como produção
humana que tem um valor e uma função social relevante. O
interessante é verificar a tensão interna ao tratado, que persiste
até hoje nos estudos da "Poéticà', entre o elemento principal­
mente literário da tragédia, sua estrutura narrativa, ou trama
- o mythos, e o elemento da materialidade e visualidade do es­
petáculo trágico - o opsis. Tornou-se quase um chavão apontar
a "Poética" como um tratado sobre o dramático, enquanto fe­
nômeno literário, a partir de suposta predileção de Aristóteles
pelo mythos em detrimento do opsis, com base na hierarquia
analítica por ele estabelecida entre os seis elementos da tragé­
dia7. Estudos mais recentes têm deixado claro que essa inter-

7. Arisróreles disringue enrre os rrês elemenros "inrernos", em ordem decrescenre mythos


(rrama}, tthos (carárer) e dianoia (pensamenro}, e os rrês exrernos, rambém em ordem de
imporrância mtlos (canro}, ltxis (linguagem) e opsis (esperáculo).

26
pretação é uma redução insustentável, e que, a despeito dessa
hierarquização analítica, o tratado abrange, de fato, o fenô­
meno do espetáculo trágico (Scott, 1 999 e Halliwell, 1 998).
Do ponto de vista que se vem aqui desenvolvendo, interessa
situar a tensão entre ver o espetáculo como um desdobramen­
to cênico, mas dispensável, do mythos e pensá-lo como articu­
lação objetiva e direta do opsis, como contemporaneamente se
tornou factível crer e fazer. Quando Aristóteles recomendava
que os efeitos mais significativos da tragédia, a afetação da pie­
dade e do terror no público, bem como sua finalidade última
- alcançar-se a catarse -, seriam obtidos mais intensamente
pela forma com que o poeta dramático engendrasse sua trama,
e trouxesse o espectador preso aos seus sucessos e insucessos,
do que à forma como o cenógrafo construísse, objetivasse e
materializasse a cena concreta, ele estava não só revelando uma
compreensão possível do fenômeno cênico à sua época, como
identificando um aspecto crucial na relação, em geral mistu­
rada e indistinta, das narrativas dramática e espetacular. Nesse
raciocínio estava explícito que, mesmo quando as narrativas
se apresentassem na forma de espetáculo, guardariam ainda,
simultaneamente, uma estrutura dramática que antecederia
essa apresentação. Contudo, distinguir esses dois planos da
tragédia ateniense, o estritamente dramático e o puramente
espetacular, e percebê-los em suas especificidades, isolados e
hierarquizados numa perspectiva analítica, já era um avanço
estupendo na compreensão do fenômeno teatral. O fato de
que, como se está sugerindo, no teatro contemporâneo a re­
lação entre eles tenha se alterado, não diminui a importância
do passo dado na "Poéticà' e sugere que um longo caminho
teve de ser percorrido antes que um conceito como o de uma
cena sem drama, ou "pós-dramática" pudesse se afirmar. De
fato, tanto na leitura de Aristóteles como nas que se oferecem
na contemporaneidade, mythos e opsis nunca estarão comple­
tamente dissociados e, mesmo que hegemônicos um frente ao
outro, guardarão sempre um vínculo insuprimível.

27
Outro passo importante nessa trajetória foi dado, no século
XVIII, por Diderot quando, em seu "Discurso sobre a Poesia
Dramática", resgatou a "Poética" de Aristóteles das malhas de­
formadoras do neoclassicismo e valorizou a dimensão visual
da composição dramática encenada. O neoclassicismo pode
ser compreendido como uma leitura radical da "Poética'' na
chave da hegemonia do mythos, na medida em que o elemen­
to da trama una é hipervalorizado a ponto de se gerar, em
decorrência, a ideia das unidades de tempo � de lugar -como
imprescindíveis. Como se sabe, Aristóteles recomenda apenas
a unidade de ação, e essa suprema deformação de unidades
obrigatórias é exemplar de um ponto de vista em que a carpin­
taria dramática se impunha soberana na consecução narrativa,
reduzindo o espetáculo a mero suporte físico do drama literá­
rio. Curiosamente, as tragédias de Racine e Corneille, quando
imaginadas nos contextos de suas encenações do século XVII
- recitais em versos alexandrinos com os atores praticamente
estáticos - nos soam, na perspectiva do naturalismo do século
XX, como exageradamente 'teatrais'. Mas a percepção revo­
lucionária de Diderot, incomodado com o artificialismo que
exalavam, apontava precisamente para o caráter espetacular do
teatro, que aquela valorização excessiva do mythos sobre o opsis
ocultava. A dramaturgia, em sua estrutura literária e ficcional,
sufocava uma dimensão cênica, ou as potencialidades semân­
ticas do espetáculo. É assim que Diderot vai, por exemplo,
resgatando uma observação do próprio Aristóteles, apontar a
importância de o dramaturgo visualizar a cena futura no mo­
mento da composição dramática, e enfatizar, sobremaneira,
o peso cognitivo que os corpos dos atores, e seus respectivos
movimentos, sua "pantomima'' (Diderot, 2006, p. 1 1 3- 1 1 5),
terão na realização do drama. Mas ainda não há aqui uma
dissociação acabada entre os dois planos, o dramático literário
e a mimesis cênica. Diderot pontuava a dualidade, mas ainda a
subordinava a um projeto cuja realização pressupunha as prer­
rogativas do dramaturgo.

28
Talvez a consciência de uma separação radical entre mythos
e opsis, que alimenta contemporaneamente a ambiguidade de
conceitos como de "dramaturgia da cenà', e permite inclusive
proposições como a do "pós-dramático" e a de um teatro per­
formativo tenha se expressado pela primeira vez, plenamente,
na conceituação de Mallarmé sobre o teatro. Inicialmente, nas
críticas que faz à ópera de Wagner, por esta fundir as dimen­
sões física e material da música e dos atores aos aspectos ficcio­
nais e dramáticos, e, depois, em seu projeto mais ambicioso,
de um teatro em que as dimensões do silêncio e do gesto,
libertados de sentido estrito e de qualquer ficção, se bastariam
autônomos e absolutos, como será detalhado adiante.
Essa dissociação conceitual que se depreende dos poucos tex­
tos de Mallarmé sobre a teatralidade, ocorre, historicamente, no
momento em que, no fim do século XIX, emerge o drama na­
turalista, ou o que retrospectivamente seria chamado de "drama
moderno". É uma fase não só de grandes dramaturgos (Ibsen
e Strindberg), como de valorização do aspecto literário de sua
produção, já veiculada às massas na forma de livros. Isto talvez
explique por que, tanto as encenações naturalistas como as sim­
bolistas, por mais distintas que fossem efetivamente no peso que
atribuíam ao aspecto ficcional em suas encenações - muito mais
abrandado na perspectiva simbolista - não incorporassem essa
dissociação completa que Mallarmé tinha imaginado possível.
Esta só ocorrerá, por exemplo, já no início do século XX, como
fruto da teorização de Gordon Craig. Profundamente inspira­
do em Mallarmé, ele se proporá o trabalho de pensar sobre o
puro espetacular, ou sobre o teatro como uma arte totalmen­
te autônoma da literatura dramática e com suas próprias leis
e princípios. Com seu projeto Scene, já em 1 9 1 0, o teórico e
encenador inglês estabelecia uma gramática cênica que pratica­
mente dispensava o drama em sua constituição8• Craig chegou,

8. Ver Ramos, 20 1 4a. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/index.php/presencalarticle/


view/49083/3 1 1 38h>.

29
depois, a escrever uma dramaturgia para teatro de bonecos, "O
Drama for Fools" - dezenas de peças, nunca encenadas, de um
conjunto planejado de 365, uma para cada dia do ano. Desti­
nada às crianças, essa produção não se confundiria com seus
projetos cênicos mais ambiciosos, que continuaram sendo aca­
lentados, como ele próprio se encarregou de esclarecer quan­
do afirmou que essa dramaturgia para os "pequenos bonecos"
não tinha nada a ver com a nova cena previamente projetada e
que tinha no "ubbermarioneten", ou supermarionete, o seu ator
principal (Craig, 20 1 2)9• O episódio interessa aqui por ressaltar
a consciência de Craig sobre a diferença crucial que percebia en­
tre encenar algo por meio da composição de ações dramáticas e
criar uma cena diretamente, sem qualquer mediação literária. O
projeto maior de Craig teve, na construção de maquetes das "mil
cenas em uma'' (dispositivo com volumes e telas movimentados
horizontalmente na arquitetura da cena como uma música que
ganhasse corpo e tridimensionalidade no espaço) a sua concre­
tização virtual. A partir daí, definitivamente, já se pode falar de
uma "poética da cena", em que, numa mudança de paradigma,
o opsis torna-se o elemento central, em detrimento, ou para além
de uma "poética do dramático", ou da "dramática'' legada por
Aristóteles e fortemente ancorada na literatura, ou no mythos.
O teatro da segunda metade do século XX, a partir de Ar­
taud e Brecht, mas principalmente com Beckett e Kantor, não
fez outra coisa senão atualizar esta potencial autonomia do
espetáculo frente ao drama. Alguns criadores como Robert
Wilson foram radicais na perspectiva do opsis e concretizaram
espetacularmente os sonhos de Mallarmé e Craig. Mais re­
centemente, Romeo Castelucci e muitos outros encenadores
europeus e norte-americanos vêm atualizando esta tradição
de uma cena absolutamente autônoma. Outros, como Robert
Lepage, propõem reatamentos em novos termos, com compo­
sições dramáticas não necessariamente mediadas pela literatu-

9. Ver Ramos, 1 999, p. 1 49- 1 52.

30
ra, mas articuladas já como cenas, poiesis simultânea de mythos
e opsis. É nesta direção que parecem caminhar, no Brasil, a
maioria dos grupos experimentais em seus processos hegemo­
nicamente colaborativos. A cena passa a narrar histórias por si
e a dramaturgia da cena torna-se também um modo de operar
a construção dramática em novos parâmetros: mais distancia­
dos da literatura, mas, ainda, presos, essencialmente, à ideia de
uma trama consequente de ações. A alternativa radical e desa­
fiante continua sendo pensar o . espetáculo de um modo lite­
ral, como puro opsis, matéria concreta tornada visível, textura.
Nesta hipótese, criar uma cena, menos do que tecer um novelo
de ações - como sugere a metáfora tradicional da criação fic­
cional e dramática -, seria constituir uma sintaxe de superfí­
cies, tessitura de cores e imagens, apresentação de objetos não
previamente identificados. Nessa cena já não há significação
certa e, na ausência de quaisquer mensagens estáveis, as 'leitu­
ras' (se é que se trate disso) e percepções passam a ocorrer pelo
contato indiscriminado com as diversas materialidades que se
alternam na composição física dos elementos, ou pelas massas
sonora e visual que se apresentam muito mais como constru­
ções abstratas do que como narrativas configurando histórias.
Suas partes se diferenciam, ou contrastam, pela transparên­
cia, opacidade, rugosidade, relevo ou outras quaisquer cate­
gorias de relação entre suas superfícies e as formas concretas
dos objetos que possam apresentar. Nesses casos, os aspectos
performativos, ou o que efetivamente se concretizaria como
fenômeno físico e material, tornam-se preponderantes, fontes
primordiais de relacionamento com o receptor e de estímulos
visual, áudio-táctil ou odorífico para que este reconstrua por
si alguma integridade naquela obra indiscernível pela via ra­
cional.
A hipótese aqui trabalhada é, pois, que as correntes con­
temporâneas associáveis à ideia de uma margem de invenção
possível no campo da representação mimética ou espetacular,
tendo em comum, ainda, a recusa ao drama e à mimesis e a

31
vocação performativa, compartilham essa herança modernis­
ta e pós-modernista de afastamento do dramático, do mythos,
e lançam mão, cada vez mais, do puro opsis como elemento
central de suas poéticas. Ainda que um mythos residual sempre
permaneça operando, inexoravelmente (aquele que o especta­
dor formula na ausência de referências), essa preponderância
do opsis, ou da matéria viva e opaca, é uma evidência incontor­
nável, pelo menos naqueles fenômenos espetaculares em que
já não se trabalha no paradigma dramático e em que o elemen­
to performativo é a fonte primordial de informação.
O que se segue, imediatamente, é um rastreamento com
foco na rejeição ao teatro e à mimesis que caracterizou a arte
do século passado. Mais à frente se fará o exame pontual de
alguns artistas contemporâneos da cena, cujas obras reiteram
o antimimetismo e a antiteatralidade modernistas, ao mesmo
tempo que reforçam a possibilidade de uma invenção espeta­
cular que tanto atualize as dimensões teatral e representacional,
como as supere na perspectiva performativa. A ideia de uma
margem de invenção possível, que norteia os critérios eletivos
dos artistas a serem examinados, não se confunde com alguma
retomada metafísica de pressupostos como a inspiração ou a
genialidade. Opera em termos bem concretos, reconhecendo
que essa margem pode ocorrer tanto em suportes mais con­
vencionais e sujeitos a grandes doses de redundância, como
por exemplo, no mercado fonográfico, nas gravações de João
Gilberto, sempre sofisticadas e inventivas, ou em plataformas
mais ambiciosas, como o da arte contemporânea e seus proje­
tos artísticos interativos, dentre os quais se elegem aqui alguns
exemplos em que as respectivas territorialidades tradicionais
são subvertidas e superadas em favor de uma cena expandida,
abarcável, ou enunciável na noção de mimesis performativa.

32
li
ANTIMIMESIS E
ANTITEATRALIDADE

1 - ANTITEATRALIDADE COMO ANTI DRAMÁTICO

e o conceito de teatralidade já se provou incapaz de dar


S conta das complexas relações implícitas na representação
espetacular - não só por ter assumido historicamente diversos
sentidos, como por ter acarretado uma generalidade descon­
certante e carecer de nitidez - no caso da antiteatralidade não
é diferente (Féral, 2002) . O mesmo critério que desqualifica
a ideia de teatralidade como operador analítico relevante po­
deria ser aplicado ao antitético conceito da antiteatralidade.
Esta ambiguidade semântica intrínseca, que permite senti­
dos contraditórios na acepção da palavra, pode, contudo, no
caso da pesquisa em curso, ser produtiva para diferenciar, por
exemplo, a antiteatralidade implícita no raciocínio de Michael
Fried, que será examinada criticamente em capítulo posterior,
e aquela manifesta em boa parte da produção pós-moderna,
da segunda metade do século XX, também nomeada como
pós-dramática. Como já foi enfatizado na introdução, o que se
toma aqui como antiteatral, em detrimento da visão de Fried,
é a repulsa a qualquer narrativa encadeada, ou, em síntese, ao
dramático como estratégia instrumental para engajar o obser­
vador. Nesta ótica, o teatral é recusado absolutamente, sem-
pre que acolha e se subordine a qualquer forma de drama, ou
mythos. Afeita ao opsis, a interdição antidramática não rejeita a
explicitação da mimesis performativa aos e pelos agentes, mas
só repele uma mimesis que articule sentidos fechados, explici­
tando-se em ações enoveladas. Ela é, portanto, essencialmen­
te, uma antiteatralidade contrária ao drama, e assim deverá ser
lida sempre que aparecer mencionada nessa seção.
De algum modo, nos preconceitos históricos contra o
teatro essas duas hipotéticas dimensões de antiteatralis­
mo, uma ainda afinada ao drama e outra antagônica a
ele, confundiram-se. Assim, em Platão, como já se sugeriu,
quando se recrimina a situação de ator e espectador expos­
tos um ao outro em um processo de afetação mútua, na sua
crítica à mimesis teatral no livro 3 da "República'', a narrativa
dramática não encenada, sem atores, é indiretamente aceita.
Já no livro 1 0, em que a mimesis é condenada em absoluto,
e qualquer representação, inclusive a pintura, a música e a
enunciação dos aedos, poetas narradores, é descartada como
nociva, já há um antimimetismo cristalizado que, em termos
contemporâneos, equivaleria a encampar a recusa ao drama,
ou à ficção produtora de realidades. Tanto é verdade isto que,
contrabalançando a tendência platônica, Aristóteles, como já
foi apontado, apesar de incidir sua leitura da tragédia, e da
mimesis através dela, favorecendo o mythos contra o opsis e ao
mesmo tempo resgatando, além da validade das várias formas
de mimesis, a superioridade do drama sobre o espetáculo, não
deixou de apontar este último como imprescindível. Mas, para
ele, em tese, um improvável espetáculo sem drama, de puro
opsis, seria potencialmente inferior em suas capacidades de afe­
tação. Assim se há antiteatralismo em Aristóteles, se é que se
pode projetar essa acepção nesse autor, ele estaria vinculado à
apresentação espetacular despida de sentidos claros.
Essas especulações em torno de um sentido remoto da anti­
teatralidade, em escritos onde a própria ideia de uma instância
conceitual clara para definir a teatralidade só estava latente,

34
justificam-se, apenas, para emoldurar a distinção que interes­
sa aqui esmiuçar no campo antiteatralista, e que se configura
propriamente a partir do século XVIII, configurada em au­
tores iluministas como Diderot e Rousseau. É certo que, na
primeira metade do século XX encenadores russos como
Evreinov e Meyerhold e, na Alemanha, Bertolt Brecht, pro­
puseram a re-teatralização do teatro, exatamente contra a ten­
dência naturalista de algum modo inaugurada por Diderot.
Mas se esta voga de exacerbar o teatral para combater o ilusio­
nismo converge com a tradição antiteatralista a ser examinada
aqui, que tem na recusa ao dramático a sua razão de ser, di­
ferencia-se de correntes contemporâneas ditas pós-dramáticas
por não romper completamente com as narrativas ficcionais
fechadas, ou mesmo, como no caso específico do teatro épico
brechtiano, por ainda servir-se da grade dramática para cons­
truir narrativas. Na perspectiva de Mallarmé, ou de Beckett,
teatro não deveria ser mais ilusão ficcional nem jogo dramáti­
co, mas fricção da matéria visual bruta que se apresenta contra
a realidade que a acolhe, ainda que no caso do poeta francês
esse contraste ainda estivesse contaminado por uma dimensão
idealista e metafísica. O teatro contemporâneo, nas formas
que foram chamadas de pós-dramáticas, não é absortivo, re­
pele totalmente o ilusionismo e busca uma autonomia como
objeto diante do espectador, ao mesmo tempo libertando-o a
constituir sua própria independência como criador diante de
matéria não reconhecível a priori. Nesse sentido, fica evidente
o quanto a assimilação da leitura de Diderot como anti teatral, e
a aposição de uma prática absortiva, essencialmente dramática,
à antiteatralidade é desencaminhadora, pois, ao defender-se a
absorção dramática contra a retórica espetacular, aponta-se exa­
tamente na contramão da corrente antiteatralista que percor­
re todo o século XX. Essa hipótese será melhor desenvolvida
quando as ideias de Fried forem examinadas adiante, inseridas
no debate contemporâneo das artes visuais e plástica. Porém,
nos últimos anos, os estudos literários e teatrais se voltaram

35
para a questão da antiteatralidade de forma mais direta e mui­
to se escreveu a respeito, só exacerbando o contrate entre uma
postura como a de Fried e outras diametralmente opostas, que
partem de questões do próprio campo teatral, e comprovando
a relevância do tópico na contemporaneidade 1 •
Martin Puchner é um dos responsáveis por impulsionar esse
debate com seu livro Stage Fright: modernism, anti-theatricality
& drama, em que sugeriu uma noção muito mais ampla e
consistente de antiteatralidade, focada, como se verá em item
próximo, nas resistências filosóficas e artísticas às ideias e pro­
jeto estético implícitos à ópera de Richard Wagnerl Em outro
volume mais recente - Against Theatre: creative destructions on
the modernist stage, editado pelo próprio Martin Puchner e por
Alan Ackerman, amplia-se o foco da antiteatralidade para di­
versos campos e períodos históricos. Um capítulo em especial,
''Anti-Theatricality and the limits of Naturalism", merece ser
aqui destacado, não só pela sua qualidade intrínseca, mas pelo
fato de elucidar com grande eficácia o próprio tema da antite­
atralidade. O autor, K.irk Williams parte do trabalho pioneiro
de Jonas Barish, The Anti-Theatrical Prejudice ( 1 98 1 , p. 85).
em que este percebe a antiteatralidade como um tropo especí­
fico do próprio teatro que é "dependente de forma parasitária
da representação teatral" (Barish apud Puchner e Ackerman, p.
85), ou, como complementa Williams (2006, p. 96), torna-se
"a razão e ser do próprio teatro". É para desenvolver essa tese
que o autor elege o movimento naturalista, particularmente
na sua expressão alemã nas últimas décadas do século XIX . Ali
se objetivava remover completamente as barreiras separando o

I. Ver Ramos, 20 1 3. Disponível em: . < http://www.revistas.usp.br/salaprera/issue/


view/4706/showToc>.
2. O próprio Puchner em obra mais recente avança na discussão e retoma o debate sobre o
antiteatralismo de Platáo, discutindo como sua filosofia foi engendrada por meio de es­
tratégias dramáticas e percorrendo, na história da filosofia e do drama, como dramaturgos
produziram dramas de extração filosófica e filósofos, filosofias com recursos dramáticos
(Puchner, 20 1 0) .

36
teatro da vida, "para criar uma ilusão tão poderosa que torna­
ria o meio teatral absolutamente transparente". Abordando as
peças de dramaturgos como Gerhart Hauptmann, e do grupo
de criadores reunidos sob a liderança de Otto Brahm e seu
teatro o Freie Buhne (palco livre), Williams detecta uma "his­
terização do espaço cênico", provocada, por exemplo, em "Os
Tecelões" de Hauptmann, pelo contraste entre o apagamento
nos corpos dos operários retratados de qualquer metáfora, e
a profusão de detalhes cenográficos naturalistas, que consti­
tuiriam "um retorno histérico do reprimido, um suplemento
compensatório para criar, paradoxalmente, uma atmosfera de
verdade e transparêncià'. Sem prosseguir no detalhamento
dessa análise, restrita ao naturalismo alemão, vale pinçar uma
observação genérica de Williams que interessa à discussão que
vem aqui sendo traçada em torno da antiteatralidade. Co­
mentando os aspectos morais e ideológicos que perpassaram
o projeto naturalista na sua generalidade, Williams descreve o
que chama de "fantasia pós-teatral" e localiza historicamente o
realismo socialista na União Soviética como aquele que levou
o naturalismo ao seu "(ilógico) extremo".

A ironia deste teatro pós-teatral é que não pode nunca ser


mais que um retorno à alegoria. Naturalismo, no seu li­
mite, pode apenas tornar alegórica sua própria impossibi­
lidade, assim provando que o teatro revela-se mais teatral
que nunca, mais metafórico, quando tenta transcender
suas próprias condições de representação (Ackerman e
Puchner, 2006, p. 1 0 1 .).

O comentário é precioso exatamente porque coloca com


clareza o paradoxo do projeto realista e dos artifícios que tem
de lançar mão para se realizar. Cabe, pois, remetê-lo tainbém à
questão da antiteatralidade em exame, tanto no que fragiliza a
posição de Fried e seu encantamento pelo idealizado naturalis­
mo diderotiano quanto no que encaminha a discussão que se

37
segue imediatamente, aproximando as noções de antimimesis
e antiteatralidade.

2 - O M O D E RN I S M O E A ANTI M I M E S I S

A t�oria estética moderna, como está proposta a partir de


Baumgarten e estruturada por Kant, não implica necessaria­
mente na negação da mimesis, ou de um conceito de represen­
tação que esteja associado a evocar referentes anteriores. De
fato, em nenhum momento Kant se detém a examinar em es­
pecial a noção de mimesis, permitindo-se, apenas, referir-se in­
diretamente a ela duas vezes, sempre associada à troca econô­
mica3. Sua reflexão na Crítica da Capacidade de julgar, oriunda
do esforço empreendido na Crítica da Razão Pura e na Crítica
da Razão Prática, preocupa-se em caracterizar o que é episte­
mologicamente específico da fruição estética, ou seja, em que
medida a avaliação de uma obra de arte contorna as condicio­
nantes racionais e morais e se impõe, para além de qualquer
interesse direto do fruidor naquele j uízo, como uma decorrên­
cia inevitável das potências da obra e de sua assimilação desin­
teressada pelo receptor. Claramente, no raciocínio kantiano a
mimesis não está suprimida, mas, sim, subsumida como um
aspecto oculto. Não seria possível pensar a operação do belo,
no modelo de estética proposto por Kant, sem uma implícita
representação que o sustentasse. O que a estética kantiana faz é
tirar a ênfase do aspecto funcional e pragmático da mimesis,
enquanto efeito pretendido sobre o observador, e fortalecer
nessa relação o seu aspecto indeterminado e necessariamente

3. Foi Jacques Derrida que, em "Economimesis", destacou essa curiosa aproximação: " É me­
ramente um acidente de construção, um acaso de composição que toda a teoria kantiana
de mimesis se estabeleça entre dois comentários sobre o salário. Uma dessas observações
está na seção 43 (sobre a arte em geral); é a definição das artes livres (ou liberais) por oposi­
ção à arte mercenária. A outra �tá no parágrafo 5 1 , em um parênteses em que é declarado
que nas Belas Artes a mente deve se ocupar, excitar e satisfazer sem ter em mente um fim
em vista e independentemente de qualquer salário" ( 1 98 1 , p. 3-25).

38
inconcluso. O processo de recepção requer a liberdade do
agente receptor em tomar ou não a obra que se lhe endereça
como bela, ou relevante, o que, de algum modo, retira da obra
a prerrogativa da afetação e, ao contrário, a outorga alternati­
vamente a quem a recebe. O estético deixa de estar contido na
produção da obra, como algo que traz já suas potências de afe­
tação determinadas, e passa a ser um compartilhamento em
que as latências poderão ou não se explicitar conforme seus
destinatários possam, livremente, assimilá-las ou não. Assim, a
grande obra não é a que afeta mais, mas a que afeta com menos
intencionalidade. A fórmula kantiana para sustentar a articula­
ção das categorias racionais com os aspectos imprevistos da es­
tética - "o livre e harmonioso jogo entre a imaginação e o en­
tendimento" - desdobra-se na relação aberta entre produtor e
receptor, e nas liberdades de que cada um dispõe para reconhe­
cer-se ou não nela. Detalhar a imensa influência que a Crítica da
Capacidade dejulgar de Kant· teve sobre os poetas e filósofos ro­
mânticos transcende o escopo desta reflexão, mas mencioná-la é
imprescindível para indicar que toda a estética do século XIX a
refletiu e, de modos distintos, por ela se deixou impactar. Scho­
penhauer e Hegel, as duas principais vertentes do idealismo
alemão, assimilaram essa inversão do sentido pragmático asso­
ciado à ideia de mimesis e projetaram a sua consolidação. Já em
Nietzsche, chega-se a uma ideia de estética, pode-se dizer, an­
tirrepresentacional, ou antimimética, no sentido de ambicio­
nar não mais a reapresentação do mundo, mas, já, a apresenta­
ção da vida e do mundo sem mediações, ou sem a produção de
um outro mundo, substituto ou equivalente. Essa utopia, que
transformaria a ideia romântica do novo, ou de algo inaugural,
em desvelamento do que é, já, propriamente o vivo e não dife­
re do vivido imediato, mas tampouco repete um existente an­
terior, alimentou as vanguardas do século XX e foi objeto da
crítica acerba que a dita filosofia pós-estruturalista, principal­
mente a partir de Jacques Derrida, realizou, apontando ali, ain­
da, a reminiscência de uma metafísica, desta vez a de uma pre-

39
sença. Pode-se dizer, pois, paradoxalmente, que foi no próprio
Derrida que o conceito de mimesis foi retomado de forma mais
relevante, seja, por exemplo, no desvendamento da sobrevivên­
cia dessa "metafísica da presençà' no antimimetismo de Ar­
taud\ ou na denúncia da inconsistência intrínseca de qualquer
representação que remetesse a referentes estáveis, como será
retomado no último capítulo. Sem avançar na complexa pro­
blemática filosófica que o pós-estruturalismo lega aos estudos
estéticos, influenciada tanto por Bergson como por Heidegger,
interessa aqui remeter ao objeto em foco, ou seja, às relações
entre esse antimimetismo e o teatro, ou melhor, em como esse
antimimetismo se reflete numa evidente antiteatralidade que
predomina sobre, e se confunde com, o teatro do século XX.
Até pela inexorável materialidade do teatral, sempre requisi­
tando uma presença em tempo real, ainda que desmaterializa­
da em imagens virtuais, seu aspecto mimético, ou de sobrepo­
sição ou duplicação da vida é evidente. É interessante, ainda,
pontuar que, considerando o afã antimimético do modernis­
mo, de todas as artes foi o teatro que teve mais dificuldade de
lidar com a dilatação da expressão artística para além da reapre­
sentação do mundo. Isso pode ser verificado em várias instân­
cias, já no fim do século XIX, com os dois movimentos que
renovaram a arte teatral para além dos parâmetros românticos,
o naturalismo e o simbolismo. Ambos tiveram dificuldade em
lidar com a materialidade inerente ao teatro. Se a pintura e a
escultura, para não falar da música, podiam romper com a fi­
guração e caminhar para a abstração radical frente ao mundo,
com obras que já não erarri mais "sobre" nada e se impunham
autônomas de qualquer referente, como ideias originais, no
caso do teatro isso se revelou muito mais problemático. Talvez
seja essa dificuldade que explique por que as experiências mais
radicais do início do século XX, como as dos futuristas italia-

"
4. Ver Derrida, Jacques, La parole souffiée" e "Le rhéârre de la cruauré er la clorure de la
réprésemacion", in I.:écrirure er la différence, 1 967.

40
nos, dadaístas franco-suíços e cubo-futuristas russos, tenham
tido pouco impacto sobre o teatro corrente e permanecido
mais como fantasmas bem guardados em arquivos nas décadas
seguintes. Foi só nos anos 1 960, quando uma nova onda de
teatralidade expandida, a partir dos happenings e das perfor­
mances emergiu na cultura dominante dos Estados Unidos,
que essa tradição foi retomada e que características do antimi­
metismo nas outras artes, como a abstração e o viés conceitual,
foram assimiladas e passaram a ser habituais nas experiências
cênicas mais radicais. É possível conjecturar que, além da ma­
terialidade inexorável da cena e de seus agentes, o fator prepon­
derante nessa assimilação mais lenta da pulsão antimimética
foi a circunstância eminentemente representacional dessa arte.
Ou seja, como suporte de representações que dependem vital­
mente de observadores e cuja tradição, que remete à Grécia
arcaica, pressupõe essa presença, o teatro era de todas as artes o
que mais tinha a perder com a negação da mimesis. Daí sua
maior dificuldade para se emancipar das funções representati­
vas do que as outras artes, pois dependente de forma muito
mais ativa do espectador e prisioneiro de tradições milenares,
que identificam o ato representacional principalmente com a
apresentação de narrativas mediada por atores. Ao mesmo
tempo, essa dificuldade maior do teatro em negar a representa­
ção teve como contrapartida que o antimimetismo se projetas­
se nele como antiteatralidade. É a partir desse pressuposto que
se opera aqui a ideia de antiteatralidade, percebida como um
vetor possível para se pensar a questão da mimesis hoje. Ela
permite não só relacionar essa negação do teatro pelo teatro
com a tradição antimimetista em outras artes, como perceber a
paradoxal inversão que se dá, mormente no plano das artes
visuais, no que diz respeito à repulsa ao representacional. Não
mais situadas como autônomas e distanciadas do observador,
performativas e espetaculares, passam a buscá-lo como olhar e
como elemento de interação, não para absorvê-lo ou dissimu­
lá-lo, mas para confrontá-lo e demandar-lhe parceria. "O livre

41
jogo da imaginação e do entendimento" de algum modo ganha
condicionantes necessários, muito próximos daqueles a que se
habituou o teatro, mesmo em suas formas mais radicais e anti­
dramáticas. Presença e duração são as condicionantes tempo­
rais e espaciais indissociáveis do fenômeno espetacular. Alguém
se detém ou não sobre algo durante certo tempo em um deter­
minado espaço. Desde que haja essa disposição de estar ali a
observar, o que era antes, ainda à época dos salões franceses do
século XVIII, possibilidade de eventualmente negacear com a
tela - e, até, como sugerem algumas das críticas de Diderot,
esquecê-la enquanto suporte e viajar pelo seu interior, por seus
motivos e circunstâncias -, torna-se agora, necessariamente,
apresentação espetacular. Em outras palavras, desde o momen­
to em que se entra na sala onde há uma instalação, ou qualquer
das formas de objeto dado à relação na tradição, por exemplo,
do minimalismo, o espectador está situado na condição de ator
ou agente produtor do sentido daquela obra. Mais do que nun­
ca, a noção de coautoria prevalece, e a ideia kantiana da fruição
desinteressada se reapresenta com um novo horizonte. O que
se dá a ver e ouvir não ambiciona condicionar uma leitura e
emocionar ou levar a um reconhecimento. Antes, essas obras, e
os atos performativos que envolvem seus criadores e receptores,
pretendem menos afetar que colocar-se em risco de contato,
abrindo-se a essa recepção não condicionada e a um espectador
liberado de suas funções históricas tradicionais, quais fossem, a
de reconhecer uma trama, ou um mythos e por ele se deixar
enredar. Nesse plano da recepção das obras contemporâneas,
quer as performativas e de ''site-specific", do universo das artes
plásticas e visuais, quer as encenações ou performances clara­
mente espetaculares, há um elemento comum que já não é pro­
priamente teatral, mas sim antidramático ou, pelo menos, não
estruturado na lógica da mimesis dramática. Assim, como a es­
tética kantiana não suprime a mimesis, mas a torna menos rele­
vante na medida em que a despe de suas finalidades, propondo
uma obra aberta ao jogo e sem um efeito claro pretendido, da

42
mesma forma nesse teatro sem drama que emerge no fim do
século XX, ainda há mimesis, ou representação de algum modo,
mas no mínimo denominador exigido para que haja fruição ou
relação entre obra e observador. Ao mesmo tempo, essa perda
de contornos nítidos entre as formas espetaculares contempo­
râneas, pelo menos as que transitam no campo da invenção e
ainda dialogam com a história da arte - mesmo sendo uma arte
póstuma, ou uma "novà' história da arte (Damo, 1 997; Bel­
ting, 2006), reapresentada em novos termos - cria um campo
de indiferença que não opõe mais, como antes, as antigas for­
mas tradicionais das belas artes - pintura e escultura - e as
formas convencionais do teatro, calcadas no drama - textos
dramáticos encenados ou filmados. Nessa nova configuração
dos procedimentos de invenção espetacular, sobre os quais in­
teressa aqui se deter, não há uma fronteira nítida que separe o
que poderia ser chamado de teatro do que se convencionaria
chamar de arte visual ou plástica. Nas práticas contemporâneas
de criação espetacular, ainda que eventualmente constituídas
por uma recusa à mimesis, ou ao dramático, prevalece uma si­
tuação comum de oferecer-se aos sentidos algo cuja leitura de­
penderá crucialmente do espectador. Até por essa característica
comum, é inegável admitir que em ambos os campos, distin­
guidos protocolarmente como objetos distintos - as artes e o
teatro - operam procedimentos consonantes ao que se pode
identificar como mimesis performativa. O traço contemporâ­
neo, que insere essas criações no espírito do tempo e as man­
tém fiéis à tradição modernista -antimimética e antidramática
- sugere que se busque nelas a margem de invenção possível
com que se mantém naquela trincheira. Em se tratando de um
teatro que já não é dramático, ou de um espetáculo que não se
quer deixar ver, ou de um objeto em espaço expositivo que se
furta à apreensão, será sempre nessa franja inventiva, onde se
repete a recusa à mimesis e ao drama, que se confirmará a ine­
xorabilidade, afinal, de alguma mimesis.

43
3 - ESCULTURAS H UMANAS E ATO RES O BJ ETOS

Dentre os diversos artistas contemporâneos cujas obras es­


tão nessa linha fronteiriça e indistinta entre as chamadas artes
plásticas, ou visuais, e o teatro, talvez o que coloque de manei­
ra mais cabal a situação que se pretende apresentar aqui é Tino
Sehgal; Este artista cosmopolita - filho de um hindu e de uma
alemã que nasceu na Inglaterra e cresceu e vive na Alemanha
- conquistou na última década um espaço significativo nas
principais mostras e galerias do mundo, propondo obras ima­
teriais, ou, num gesto que leva ao paroxismo a condição ideal
de "objeto não identificável", proposta pelos minimalistas nos
anos 1 960, obras que se sustentam apenas através da presença
humana nos espaços expositivos, que os animam e lhes dão
virtualmente sentido e significado. Desde suas primeiras in­
tervenções, em que performers contratados executavam certas
partituras prescritas a partir da citação de movimentos consa­
grados por bailarinos ou artistas famosos, até as mais recentes
proposições, de jogos de relação com os espectadores em obras
vazias de matérialidade com agentes habilitados a permeá-las
diante do público, o trabalho de Sehgal tem como pressupos­
to central a eliminação de qualquer objeto e o foco nas rela­
ções humanas, reapresentadas sempre em um corpo a corpo
entre as obras/seres humanos e o observador. A pertinência
do exemplo à questão que vem sendo proposta, em torno da
dissolução de limites entre o que pode ser considerado como
característico do teatro e da arte contemporâneos é evidente.
Sintomática também é a preocupação do artista em afirmar
que seu trabalho não se confunde com o teatro. Isso apesar
dele chamar seus performers, cujos movimentos são ensaiados
rigorosamente, de "intérpretes", e de não autorizar que ne­
nhuma de suas obras seja fotografada ou documentada. Nessa
interdição, parece que o que está sendo preservado é o caráter
efêmero que só o teatro e a performance partilham e que as
obras de arte, como se convencionou considerá-las - objetos

44
expostos em museus, ou mesmo instalações -, não podem
alcançar. Este ponto é relevante, também, porque a forma
como Sehgal comercializa suas obras vivas é muito peculiar e
demandou um grande esforço por parte dos museus e institui­
ções culturais que se prestaram a adquiri-las. O procedimento
utilizado não se confunde com a prática já corrente de aqui­
sição de performances, quase sempre consistindo na compra
de uma partitura que registra o procedimento a ser desem­
penhado por um performer quando o museu que adquire a
obra decidir expô-la novamente. No caso da comercialização
das obras de Sehgal, não só estão interditadas as fotos e do­
cumentações eventuais, como ele proíbe mesmo que haja um
contrato especificando as normas do acordo que está sendo
operado. Um complexo procedimento, em que advogados das
duas partes tornam-se testemunhas vivas do que foi acordado,
estabelece que aquela obra só possa ser exibida pela instituição
com a supervisão de Sehgal ou de pessoa por ele indicada.
Nessas exigências estritas e em todo o conceito que transpare­
ce por trás dessa atitude do artista emergem, paradoxalmente,
os dois elementos que estão aqui sendo destacados. De um
lado, o sentimento antiteatral, que o artista cultua e com o
qual quer se diferenciar de outras tradições performativas que,
desde o início do século XX, vem borrando as diferenças entre
as artes expostas em museu e as cenas teatrais. De outro, uma
resposta original e irresistivelmente sedutora aos impasses da
arte contemporânea, deslocando a noção de obra da condi­
ção de objeto para assumir-se como inseparável da condição
humana - gesto já realizado por muitos artistas do século XX
- mas tornando essa operação mais complexa ao impedir que

seja registrada e cristalizada de forma objetiva5• De fato, o que

5. Comentando seu desinteresse em exibir obras, ou esculturas, em museus ele afirma: "Es­
tou cheio disso. Não penso que seja rão interessante, e não é sustentável. Dentro desse
templo de objetos eu dirijo a atenção para as relações humanas". Entrevista a, Arrhur
Lubow, publicada em Janeiro de 20 I O. Disponível em: <www.nytimes.com/20 I 0/0 1 / 17/
magazine/! ?seghalt.html?pagewanted=aliPublished>.

45
é interessante no trabalho de Sehgal não é apenas esse ator, ou
intérprete, tornado objeto, ou tomado como escultura. O que
é provocante e inusitado é a dependência que essa obra tem
do observador, de uma interlocução com ele, para se realizar
efetivamente. O que interessa a Sehgal não é a potencial "con­
dição de objeto" do ser humano, mas as relações humanas e os
valores morais e estéticos que elas suportam. De algum mod<_?
essas relações tornam-se cruciais na sua ação como artista. E
nelas que sua obra se configura e, por isso, a impossibilidade
de documentá-las ou fixá-las em contrato. Por isso mesmo,
a despeito de sua recusa ao teatro, já habitual nas artes e no
teatro do século passado, o que Sehgal propõe seria, ainda,
tecnicamente, espetacular, numa forma contemporânea não
muito distante da que alguns artistas da cena vêm propon­
do em seus próprios campos de atuação, ou seria, talvez, uma
mimesis performativa. Mais do que qualquer um dos artistas
contemporâneos que utilizam o espetáculo como suporte, ele
é emblemático dessa simultânea adesão ao espetáculo e recusa
do dramático, ou dessa retomada da mimesis enquanto ato de
sublinhar o existente, repetição que o reapresenta, mas, desde
o modernismo; já dissociado do real efetivo, ou independente
dele, projetando novas possibilidades de realidade. A angústia
de Sehgal, de não querer ver suas obras confundidas com o
teatro, talvez denote a consciência de que, ao colocar seres hu­
manos agindo diante de outros seres humanos, ele retoma ao
princípio, ou à situação original de onde nasce e se desenvolve
o teatro: alguém repete ações humanas confrontando-se com
outrem. Mas, diferentemente da tradição teatral dramática,
que media essa confrontação com um mythos canalizador, e
em consonância com as tendências antidramáticas do teatro
contemporâneo, essa exposição permanece necessariamente
indefinida na leitura produzida pelo receptor.

46
4 - A I M ITAÇÁO DE AÇÓES E OS MACACOS

Buscar na história humana o momento em que pela pri­


meira vez um homem apresentou-se a outro como espetáculo,
propondo uma ação com começo, meio e fim a ser observada,
é tarefa inglória, mas pode ser substituída por uma abstração
plausível como a que propôs Tadeusz Kantor. Ele sugeriu a hi­
pótese de que a primeira ação teatral do homem, de exibir-se aos
semelhantes não importa se com finalidade religiosa ou ritual,
lúdica ou econômica, ocorreu quando uma noite, reunidos em
volta da fogueira, um desses homens se levantou. Nessa ação
súbita, de se destacar e de colocar-se ao exame visual do grupo
a que pertencia, esse protoator teria inaugurado a teatralidade.
Se ainda não havia ali, necessariamente, uma mimesis dramá­
tica, supondo-se que nessa atitude ele não encarnasse nenhum
outro que não a si mesmo - um animal totêmico ou qualquer
outra entidade espiritual -, essa diferença que se criava, saliên­
cia que distinguia aquele momento como contendo uma nova
configuração da realidade posta ao exame simultâneo de ob­
servadores atentos, era já produção de uma ênfase sobre a vida
corrente, repetição do mesmo com novo acento, mimesis afinal.
Se esse mítico momento inaugural da teatralidade é in­
certo e dá margem às mais diversas fabulações, o preconceito
contra o teatro como arte menor, ou menos nobre, tem raí­
zes mais identificáveis. De algum modo, como já se reiterou
aqui, é já nas primeiras reflexões de caráter filosófico sobre a
mimesis que transparecerão os primeiros sinais de uma censu­
ra velada às práticas teatrais. Se Platão vai tratar o conceito de
mimesis de modos distintos e nem sempre negativos no con­
junto de sua obra, como se especulará no último capítulo, em
"A Repúblicà' fará o ataque mais radical à mesma, particular­
mente no livro 1 O quando, ampliando a recusa à mimesis dos
livros anteriores, engloba nela toda representação artística e
não apenas a dramática espetacular, ou aquela que abrange
a reprodução de ações humanas por atores diante de espec-

47
tadores. No caso, interessa focar agora no comentário mais
restrito dos livros 2 e 3, que é lido pelos hermeneutas da fi­
losofia platônica como de caráter moral e psicológico. Moral
porque, nos exemplos citados, a imitação de deuses e heróis
em circunstâncias não exatamente edificantes pode assumir,
na condição teatral, um aspecto repugnante e desencaminha­
dor dos jovens assistentes, no caso os guardiães da República
ideal, sobre cuja educação desejável os debatedores naquele
trecho do diálogo discutem. Recrimináveis mesmo na for­
ma narrada, ou seja, quando expressas por um cantor que
simplesmente enuncia o texto das epopeias homéricas, essas
situações em que deuses e heróis aparecem indesejavelmente
agindo de forma imprópria se agravam quando ressaltadas
pela interpretação de atores que materializam suas presenças
diante de um público espectador. As críticas de teor psico­
lógico envolvem a própria prática do teatro, que pressupõe
a supressão pelos atores de sua identidade una e a entrega à
condição maleável e porosa de se deixar invadir por múlti­
plas personagens. Se não fosse pelos aspectos epistemológi­
cos, que serão tratados nos livros seguintes da " República",
relativos à questão do uno e do m últiplo na teoria das formas
platônica, a crítica ao teatro aqui se funda, principalmente,
no preconceito mais rasteiro contra os imitadores, que asso­
cia sua atitude à dos macacos, de repetirem mecanicamente
gestos e ações dos homens.
Ao aproximar o intérprete dramático da condição animal,
rebaixando-o mesmo frente a outros praticantes da mimesis
artística, como o músico e o escultor, Platão se distanciava
das origens do espetacular, com ritos extáticos e sacrifícios
de animais, e inaugurava uma longa tradição antiteatralista.
Nela transparece, com diferentes nuances, uma mesma má­
cula dos atores, percebidos como gêmeos dos símios nessa
prática imitativa. A repulsa à imitação de seres humanos pe­
los mesmos alcançará a modernidade e se refletirá em nossos
dias, ainda, em diversas manifestações dentro e fora do cam-

48
po reconhecível como o do teatro. É curioso que um olhar
transversal, pensando esse preconceito contra o teatro para
além de uma época ou filosofia específicas, mas abrangendo
muitas circunstâncias históricas e diversos programas estéti­
cos, mais do que confirmar a analogia animalesca como um
pecado original do ator, o que de fato ocorre, indica que por
trás dela transparece uma dificuldade intrínseca ao teatro, já
mencionada, que é a de lidar com a materialidade do mundo
e dos homens nele. Ao contrário da literatura, da pintura e da
música, e de forma muito mais orgânica do que a escultura,
o teatro sempre necessitou do suporte humano para encenar
seja o que fosse que se passasse por imitação da vida. É essa
condição inexorável, de ocupar espaço e tempo com matéria
- o seu próprio corpo - para narrar ou reapresentar seja o
que for, que torna o ator mais susceptível aos ataques contra
a mimesis. Encenar um drama é duplicar o mundo diante do
mundo, assumindo sem disfarces essa contrafação. Configura
um ato espúrio, que pretende substituir o existente por algo
semelhante, mas evidentemente diferente, pois que o sucede
e repete. Isto talvez explique a dificuldade que os artistas mo­
dernos do teatro tiveram de suplantar as limitações de uma
representação figurativa e realista e de se lançar nos campos
da abstração e da arte concreta, que já não buscava referentes
no mundo a reproduzir, mas sim instaurar novas realidades,
ou desvendá-las na matéria existente. Pois se o teatro sempre
foi tolerado como uma forma de narrativa que apresenta his­
tórias humanas mesmo para iletrados, como ocorreu em sua
redenção na Idade Média - quando a mesma igreja que o
havia suprimido recorreu a ele para catequizar fiéis -, parecia
que lhe era interdito dar-se ao deleite de inventar formas não
reconhecíveis.
Por tudo isso, há uma profunda ironia quando as artes
contemporâneas, nas suas ecléticas formas, que já não cabem
nas categorias criadas no século XVIII, quando se enfeixou

49
a noção de Belas Artes6, se defrontam com o teatro e todas
as suas manifestações contemporâneas, que incluem desde as
performances assumidamente não teatrais até as formas narra­
tivas convencionais que alimentam a indústria cultural. Todo
esse complexo de manifestações artísticas que se tornam, mes­
mo não se pretendendo, espetaculares, e de cenas que querem
esquecer que são teatro, converge em sua amplitude, que já
não cabe nos museus nem nos teatros, e se confunde com os
desdobramentos midiáticos da cultura. Em todos estes planos,
a velha questão de corpos humanos apresentados como supor­
tes de narrativas de ações humanas prevalece como uma som­
bra constante. No caso das formas convencionais de teatro,
já pacificadas com o trauma de poderem estar macaqueando
seres humanos, e fortalecidas por todas as técnicas naturalistas,
que garantem a verossimilhança de suas imitações e apagam
aqueles vestígios de animalidade, não se coloca o problema.
Já no campo da invenção teatral e de todas as manifestações
artísticas que vem utilizando, como o citado caso de Seghal,
corpos humanos para expressar suas proposições estéticas, o
antigo fantasma reaparece transmutado em explicitação vo­
luntária dos corpos, agora libertados das funções dramáticas
e orgulhosos de sua concretude, impossível de ser eliminada.
Talvez ainda seja o recalque de um trauma indelével, mas, de
algum modo, os artistas e processos artísticos performativos
que serão focados aqui expressam formas distintas e originais
de enfrentar esse velho preconceito e de tentar superá-lo.

6. Stephen Halliwell comenta que a categoria de Belas Artes foi estabelecida no século XVII I
por Barteux, e m Lls b�aux arts rtduits à un mbn� prlncip� ( 1 746), tendo como base explí­
cita a tradição da mim�si.r. Ele discorda de Paul Kristeller que em "The Modem System of
the Fine Arts" ( 1 980, p. 1 63-227) defende que ali teria havido uma ruptura com o mime­
ticismo. Halliwell argumenta que o que confundiu Kristeller e outros comenradores que
partilham a mesma opinião foi o paradoxo de que, mesmo tendo explorado o legado da
mim�sis para construir um conceito integrado de arte, o século XVII I afasrou-se radical,
mas não inteiramente, do entendimento geral da arre representacional como "imitação"
(Halliwell, 2002, p. 8).

50
5 - OS MIMOS E A HEGEMONIA DO GESTO

Na contemporaneidade, a superação do preconceito arrai­


gado contra o ator, principalmente em suas formas espetacula­
res mais inventivas, pode estar ligada ao fato de que, em mui­
tos casos, as presenças corporais deixaram de estar a serviço do
drama e da função ficcional. Nos diversos modos de espetácu­
los antidramáticos e antirrepresentacionais que compartilham
hoje o campo da arte contemporânea, assumem-se os corpos,
de bailarinos, performers ou até "atores" tornados objetos vi­
vos (como no caso de Tino Sehgal) , na qualidade de matéria
bruta que fala por si e já não ocupa um lugar de outrem, re­
ferência remota a um personagem ou função narrativa. De
fato, essa presença soberana e incontestada de corpos, livres de
qualquer culpa por ocuparem, substantivos, os espaços cênicos
da atualidade, está relacionada a um longo e penoso processo
de emancipação das artes performativas da sombra do maca­
quear, principalmente agenciado pelo seu afastamento das for­
mas dramáticas. No plano do drama moderno, por exemplo,
considerado suas vertentes simbolistas ou naturalistas, ocorre
uma sublimação dos aspectos físicos em bruto, o que denota
indiretamente esse recalque, ou essa tentativa de supressão de
um corpo indesejado. No caso específico do simbolismo de
Maeterlinck, por exemplo, se dá na busca de uma presença
estática ou mecânica, suporte de uma dramática que evoque
uma dimensão metafísica. No caso do naturalismo, explicita-se
no arsenal de dissimulação da representação, que envolve mi­
nimizar ao máximo os traços do ator e maximizar a instância
do personagem, domesticando os procedimentos teatrais mais
rústicos e buscando a indistinção entre gestos teatrais e ações
cotidianas para apagar os aspectos presenciais nas ações inter­
pretadas. Ao mesmo tempo, é nas formas mais avançadas de
embate contra a servidão do teatro ao drama, ou do opsis ao
mythos, que surgem sinais que apontam para a contemporânea
supressão do trauma. Um caso exemplar é o de Gordon Craig

51
e de seu famigerado objeto cênico que substituiria o ator de
carne e osso, o ubber-marionetten, ou supermarionete. Mais do
que eliminar um corpo de ator, Craig propugnava ali por uma
presença que estivesse liberta da função dramática e pudesse
significar algo por si mesmo, no imediato da fruição espeta­
cular.? Assim, para ele, como antes dele para Mallarmé, cujas
ideias a propósito serão examinadas em seguida, o verdadeiro
artista do teatro é o bailarino. Isso para não falar de todos os
avanços técnicos ao longo do século XX na elaboração de um
corpo significante para além do drama8• O que essa hipótese
sugere é que, superar o pr�conceito identificado desde Platão
contra o ato interpretativo do ator, só foi possível na medida
em que se configurou no século XX uma clara vertente anti­
dramática, ou uma negação do teatro como forma narrativa a
serviço da literatura ou do drama.
O caso em que esta associação entre ojeriza ao drama e
libertação do corpo na cena aparece de forma mais clara é o
da crítica que se arregimenta contra a ópera wagneriana e que
hegemoniza as perspectivas antidramáticas e uma certa ideia
de antiteatralidade a partir dali. Na realidade, nenhuma refe­
rência moderna foi mais determinante na construção de um
sentimento antiteatral, e consequentemente tenha alimentado
o preconceito contra o ator e sua canga animalesca do que a
ópera de Wagner.
Martin Puchner (2002, p. 3 1 ) destacou como o composi­
tor alemão teve um papel seminal no modernismo, ao trans­
formar o conceito de teatralidade de uma simples descrição do
teatro como forma artística em um valor em si, que se presta a

7. Ver Ramos, Luis Fernando. Relation entre écran et acteurs dans le théâtre de Gordon
Craig. L'Actn�r Fau Aux Ecrans, mtr� traditi_on �t mutation (Prise I ),20 1 4 . Disponível em:
<www.acteurecrans.com>.
8. Desde Dalcroze e Laban, passando por Stanislavski,e Meyerhold, Artaud, Grorowski,
Barba e o Butoh, as técnicas de formação e preparação dos atores no século XX têm em
comum esse edificar de um corpo substantivo, que ocupe uma cena distanciada do teatro
como drama.

52
ser recusado ou assumido. No termos de Nietzsche, a reflexão
e a obra de Wagner podem ser vistas, numa genealogia do tea­
tral, como fundadoras dessa avaliação ambígua de amor e ódio
ao teatro. É desse ponto de vista que se justifica a afirmação
daquele filósofo de que compreender o modernismo é acertar
as contas com Richard Wagner.
Puchner percebe uma afinidade entre as críticas que Nie­
zstche e Adorno formularão a Wagner, principalmente na
associação dos termos "mimesis" e "teatralidade". Esta apro­
ximação se dá na relação de dependência essencial que o tea­
tro tem do ator, ou do mimo. Na tradição grega, e posterior­
mente romana, o mimo, ou os mimos, são práticas teatrais
primitivas, em geral associadas a enredos cômicos, em que
os aspectos escatológicos e eróticos sobressaem. Na menção
à mimesis feita por Platão nos livros 2 e 3 da "Repúblicà' já
era reconhecida a projeção desse sentido menor, associado
aos imitadores mais baratos na compreensão do teatro. Trata­
se, pois, de uma recorrência significativa o fato de Adorno e
Nietzsche convergirem nessa apreciação. As explicações para
isso, porém, devem ser buscadas no próprio Wagner e em seus
escritos, onde ele formula, pode-se dizer, a sua própria "poéti­
ca" para a cena. Segundo Puchner, quando Wagner propõe a
ideia de que na ópera a música deveria servir ao drama e não
o contrário - como ele acusava acontecer na ópera italiana,
em que os enredos eram moldados de modo a atender às de­
monstrações virtuosísticas dos cantores -, o compositor está,
de fato, propondo que a música sirva ao teatro, ou melhor,
ao dramático, e ao mythos. Essa submissão, no entanto, antes
de estar relacionada com os aspectos visuais e cenográficos,
ou com a totalidade cênica, como é comum compreender a
posição wagneriana - vulgarizada na fórmula da gesamtkuns­
twerk (obra de arte total) -, remete sim ao ator e a sua unidade
criativa mínima que é o gesto. A palavra que Wagner usa para
caracterizar a teatralidade, ou aquilo que faltaria na ópera que
o antecede e que ele quer introduzir nas suas próprias encena-

53
ções é gebárde (gesto expressivo) . É no ator, e nas ações que ele
enceta na cena, em sua gestualidade significante, que se define
e se decide toda a teatralidade wagneriana. Em sua grandio­
sidade manifesta, e nos vários procedimentos cênicos por ele
adotados para confirmá-la - o afundamento da orquestra, o
escurecer da sala de assistência, a aproximação da plateia das
pernas laterais para intensificar a ilusão de perspectiva quan­
to ao fundo da cena, etc. -, a ópera de Wagner sobressaiu-se
como um momento de intensa teatralidade, sempre conside­
rada, esta, como atinente aos seus aspectos espaciais, do que
seria uma prova a arquitetura cênica desenhada por Adolphe
Appia com inspiração nela, e que tanta influência teve na ce­
nografia do século passado. Pois bem, ao se deter no peso cru­
cial que a noção de gebárde teve na concepção operística de
Wagner, Puchner desloca a nossa atenção para o ator e seu
protagonismo nessa equação, jogando novas luzes sobre as crí­
ticas de Nietzsche e Adorno ao músico, bem como sobre a ori­
gem do sentimento de antiteatralidade que ambos os filósofos
nutriram.
Em um de seus textos programáticos mais conhecidos, A
obra de arte do foturo, Wagner deixa claro que a parte decisiva
da "obra de arte total" que propugna não é nem a música, nem
o libreto, mas o desempenho dos cantores cujos gestos articu­
lam o todo espetacular. Assim, tanto a orquestra, que nessa
ópera se destaca como uma massa sonora homogênea ao de­
senvolvimento dramático quanto as próprias ações narradas,
têm no gesto do ator o seu elemento crucial de articulação.
Segundo Wagner, "as três artes irmãs (a música, a pintura e a
literatura) se reúnem no ator para encontrar uma nova expres­
sividade" (apud Puchner, 2002, p. 42) . A complementação
entre o libreto e a ária prescinde de algo que nem as palavras
pronunciadas, nem a melodia entoada podem expressar. Esse
algo são os gestos, que ele vai definir como "linguagem do
indizível" expressa só para os olhos. Claro que os gestos apre­
sentados no palco não cobrem toda a gama de inexprimíveis

54
latentes em uma ópera. Wagner percebe também um quanto
de indizível que diz respeito aos ouvidos e que as melodias
por si não conseguem exprimir. Neste caso é a orquestração,
que ele vai definir como "um gesto auditivo complementar",
que vai suprir essa limitação (Wagner, 1 988, p. 21 8-2 1 9) . O
que se percebe nessa ampliação do sentido de gesto, transcen­
dendo a ação dos cantores e alcançando a regência da orques­
tra e os próprios elementos cenográficos, é que, exatamente,
ele se revela o elemento predominante na obra de arte total
wagneriana, enquanto aspecto mimético associado ao ator que
gesticula e que estabelece visualmente significados suplemen­
tares às palavras e, principalmente, subordinados ao mythos.
Ao gesto nítido do cantor que coordena a encenação corres­
ponde uma gestualidade orquestral, carreando a atenção dos
espectadores para o drama que se apresenta à compreensão.
Muito mais do que um espetáculo para os sentidos, a despeito
do que possa haver de grandioso e absorvente na encenação de
uma ópera de Wagner, seus dramas musicais narram histórias
precisas, para cuja transmissão fiel ele valoriza especialmente o
gesto organizador dos cantores, em um primeiro plano, e o da
orquestra subordinada a ele, ao fundo. Como lembra Puchner,
"em seu ensaio sobre atores e cantores Wagner reitera a impor­
tância central dos atores, argumentando que a obra · teatral se
baseia em primeiro lugar e sobretudo em seus ombros" (2002,
p. 42) . Que Wagner projete na movimentação constrangedora
de divas e cantores o futuro da ópera e as fundações de sua
teatralidade dá, para Puchner, a medida da precariedade de
sua estética, pelo menos desde uma perspectiva antidramática.
É essa compreensão do projeto cênico wagneriano que per­
mite assimilar uma crítica como a que Nietzsche e Adorno lhe
fazem. Nietzsche afirma com um misto de ironia e indignação:

Wagner começa com alucinações: não de notas mas de


gestos. Então ele busca por uma semiótica da música para
continuar com eles. Se você quer admirá-lo, veja como ele

55
trabalha aqui: como ele separa, como ele cria pequenas
entidades, como ele as expõe, torna-as vívidas e visíveis ...
como é piedosa sua tentativa de desenvolvê-las e de inserir
uma na outra de modo a que não se tornem, em primeiro
lugar, nada (apud Puchner, 2002, p. 36).

Para Puchner (2002), Nietzsche aqui está catalogando os


efeitos numa obra de arte nascida do espírito do gesto, que não
pode desenvolver-se em formas e formatos contínuos, nem ser
suporte para se criarem "obras de arte orgânicas". Ao contrá­
rio, ele leva a entidades pequenas e isoladas que só podem ser
amplificadas e exageradas. Em vez de desenvolver temas, mo­
tivos e linhas (musicais ou dramáticas) , tudo que Wagner con­
segue fazer com suas entidades gestuais descoordenadas, que
nunca "cresceram" para se tornarem alguma coisa, é colocá-las
juntas, amassá-las em um agregado dentro do qual não estão
organicamente conectadas, mas só mecanicamente "inseridas
umas nas outras" (lbid.) O comentário esclarece a definição de
Nietzsche das óperas wagnerianas como um "miniaturismo"
na música, pois elas, esteticamente, se baseiam em gestos sim­
ples e isolados e reduzem todas as potências envolvidas, mu­
sicais e visuais, a essa dimensão diminuta. De algum modo, o
gesto dramático em Wagner é, nos termos deste trabalho, um
absoluto que engolfa todos os planos do espetáculo, em de­
trimento não só do que seria a cena material, ou o puro opsis,
mas, principalmente, da própria música. É um gesto que re­
vela sua ambição totalizante sobretudo nos leitmotiv, quando
imiscuído na orquestração submete a parcela musical da ópera
ao drama e seus personagens, atando e escravizando as dimen­
sões melódica e harmônica da ópera aos ditames da narrativa
dramática.
É nesta perspectiva que se pode compreender também a
acerba crítica de Adorno à ideia de "melodia infinità', em
Wagner. É exatamente essa submissão da partitura e da or­
questração ao gesto essencialmente semântico do cantor, que

56
estabelece os contornos do significado expresso na cena, o
que se revela intolerável para Adorno, remetendo aos aspectos
mais nocivos da mimesis, novamente associados ao mimo e
aos rústicos recursos representacionais de que o corpo huma­
no dispõe e negando à música - desde Aristóteles a mimesis
mais potente, por alcançar diretamente, sem mediação racio­
nal os sentimentos do receptor - a autonomia expressiva que
lhe é própria. Como se vê, a questão aqui é perceber que o
problema de Nietzsche e de Adorno com a teatralidade como
um valor em si, como propõe Puchner, tem mais a ver com
as estratégias miméticas adotadas por Wagner do que a uma
ojeriza intrínseca à mimesis ou ao teatro. E essa associação da
teatralidade à função dramática e ao seu aspecto mais vulnerá­
vel, o do ator/personagem, imitador em carne e osso, sujeito
a restrições sérias desde Platão, que contamina a apreciação
do teatro e da música wagneriana pelos dois pensadores. A
própria iniciativa de Adolphe Appia de pensar uma cenografia
não figurativa e um conjunto de atores despersonalizados para
aquela ópera não deixa de indicar uma pulsão de salvá-la desse
encolhimento no estreito mundo do drama. Será, também,
essa preocupação de, por meio do ator, submeter todos os ele­
mentos cênicos, inclusive a música, à narrativa dramática que
afastará Wagner de Mallarmé, um artista fascinado pelas suas
óperas e que construiu sua própria ideia de teatro contra aque­
la que percebeu como sendo caracteristicamente wagneriana.

6 - UMA CENA SEM ATORES E SEM DRAMA

Mallarmé é o grande arauto do antimimetismo é da anti­


teatralidade, no sentido aqui trabalhado de repulsa ao dramá­
tico. À exemplo da crítica de Nietzsche a Wagner, ele parte de
restrições às óperas do compositor para construir um original
e radical projeto de renovação do teatro, consonante com sua
própria e revolucionária proposta de literatura. Mesmo reco­
nhecendo a potencialidade do espetáculo wagneriano, critica

57
o fato deste fundir a dimensão física e material dos atores e da
música aos aspectos ficcionais e dramáticos. Se Wagner acre­
ditava que a dança, termo que para ele designava todo o po­
tencial de movimento do corpo humano, "é a condição para
as outras artes", mas submetia seu desempenho à mimesis dra­
mática e a narrativas por ela condicionadas, Mallarmé percebe
nas artes performativas, que envolvem a presença de corpos
em movimento, a possibilidade de superar qualquer dimensão
semântica que restasse ao teatro, e de projetarem-se os cor­
pos como signos vivos para além das palavras, sintonizando o
que ele antevia como a "ideià'. Sem entrar na hermenêutica
da metafísica de Mallarmé, conectada à tradição idealista que
remonta a Platão, e tem no século XIX expressão diferencia­
da nas filosofias de Schopenhauer e Hegel, vale detalhar que
para ele a bailarina seria uma física "incorporação da ideia"
e atuaria, pois, como um signo escrito negativo. Ela é uma
"mulher que dança pelos motivos j ustapostos de que ela não é
uma mu:lher, mas uma metáfora que resume um dos aspectos
elementares de nossa forma" (Mallarmé, 20 1 0, p. 4 1 ) , e que
por meio de uma escrita corporal permite a escritura de um
ideal poema não escrito. Nessa sublimação dos aspectos cor­
porais associados à mimesis dramática, ou seja, nesse negar-se
a transformar a corporeidade do ator em elemento semântico
a serviço de uma narrativa consequente, Mallarmé deixa ante­
ver a possibilidade de uma superação interna do velho dilema
do teatro, entre assumir o mimo e sua presença ou negar-lhe
legitimidade como expressão artística. Nos textos de Crayon­
né au Théâtre (Rabiscado no Teatro), misto de teoria do espe­
táculo e partitura de cenas sonhadas, entranhadas nas raras
críticas teatrais. que produziu, ele vislumbra um novo lugar
para o mimo, mais nobre e conforme aos ideais de autono­
mia plena da cena frente à ficção dramática, a exemplo de seu
projeto de uma literatura autônoma de qualquer função fic­
cional. O mimo aqui tornar-se-á a encarnação física de uma
presença ideal, como um tipo de escrita em negativo, ou in-

58
vertida, "um fantasma branco" que escreve com sua face pálida
e gestos livres um "solilóquio mudo como uma página ainda
não escrità'. Neste teatro silencioso e abstrato de Mallarmé as
dimensões corporais e seus eventuais movimentos ou gestos
estão completamente liberados de qualquer sentido ficcional
e se bastam autônomos e absolutos. O que é fascinante em
Mallarmé é que a contrapartida literária desta visão do teatro
pressupõe também uma escrita autônoma da ficção dramática.
De um lado, a literatura deixa de se prestar a confundir-se com
o dramático na dimensão teatral, já que, para ele, o livro é a
grande arte e está em perfeita oposição ao espetacular. Ainda
cabe ao literário um aspecto performativo, como o que so­
nhou e se manifestará em algumas sessões públicas em que
ensaiou apresentar seu projeto do "Livro"9, mas mesmo este
rito literário já não implicará mais em concessões ao dramá­
tico. O espetáculo, por sua vez, também se liberta do jugo
do drama, passando a ser tecido, em hipótese, só com os cor­
pos e a música, dissociados de sentidos prévios e de qualquer
vínculo anterior. É nessa medida que o espetáculo imaginado
por Mallarmé configura-se, literalmente, como um oximoro,
ou seja, uma unidade dual, ou a identidade de diferentes, em
que a literatura e o espetáculo, expurgando a ficção dramática,
se radicalizam alternativamente no puramente literário e no
puramente espetacular. Nos termos da "Poética'' aristotélica,
além do literário e do cênico serem depurados do dramático,
dramaturgia - ficção, mythos - e cena - espetáculo, opsis -
dissociam-se completamente10•
Essas características do teatro irrealizado de Mallarmé
transparecem nos poucos textos que destinou à cena, e que so­
mados aos esparsos textos críticos de espetáculos, substanciam
especulações em torno de sua teatralidade negativa. Além de
Crayoné au Théatre e Hérodíade, o mais enigmático desses le-

9. Ver Deak, 1993, p. 89-93.


1 0. Ver a respeito Mary Lewis Shaw, 1 993.

59
gados talvez seja Igitur, ou A Loucura de Elbehnon, manuscrito
inédito produzido entre 1 867 e 1 870. De gênero indefinido,
quase um híbrido de conto abstrato e de ensaio do futuro e
consagrador poema "Um Lance de Dados", o texto pode tam­
bém ser lido como exemplo dessa síntese dialética de literatura
e teatro autônomos entre si e fundidos em sua indeterminação
semântica. Na primeira das quatro partes, chamada ''A Meia
Noite", um sujeito oculto, uma sombra, um ser que é nada,
aparece "aos olhos nulos, semelhantes ao espelho, do visitan­
te, despojado de toda a significação que não seja a presença"
(Mallarmé, 1 984). A ideia de uma presença sem significado,
de uma matéria irredutível à resolução semântica, prenuncia
plenamente a utopia de um teatro não dramático, ainda espe­
tacular na sua visibilidade, mas já não mimético, ou portador
apenas de uma mimesis negativa, que antes de corresponder
a referências anteriores projeta enigmas futuros. Claro que a
concretização de uma cena com essa potência e emancipada
do mythos só ocorreu ao longo çlo século XX sendo tão mais
,

efetiva quanto mais se tenha manifestado enquanto puro opsis.

7 - O B O D E EXPIATÓ RIO DA C ENA M O DERNISTA

O sonho de Mallarmé des�a cena invisível, ou dessa visi­


bilidade despida de signos que se apresenta inaugural, como
revelação de alguma essência intangível, vai assombrar os cria­
dores da literatura e do teatro do século XX É plausível vê-lo
.

realizado, ou recolocado em bases menos idealistas, por exem­


plo, na obra de Samuel Beckett, como haverá oportunidade
de ser retomado mais adiante. No tocante à discussão que vem
sendo proposta, no que ela se concentra por ora na questão
do ator, o caso de Mallarmé dá uma pista interessante. Talvez,
desde Platão, quando a principal objeção ao teatro se concen­
trava na incômoda presença do ator, o que esteja acontecendo
seja um conhecido processo de transferência do foco de uma
oposição generalizada e indistinta para um vetor singular, de

60
forma a que este, em sua singular unicidade, possa catalisá-la e
superá-la. Trata-se, de fato, do fenômeno do bode expiatório,
descrito minuciosamente por Renê Girard para caracterizar os
processos de violência coletiva desde tempos imemoriais. O
arguto e polêmico estudioso propõe que este mecanismo de­
fensivo das sociedades primitivas reverberaria tanto nas mito­
logias como nos documentos históricos e na literatura, poden­
do ser deslindado em estereótipos recorrentes. No caso . aqui
serve apenas como uma metáfora operativa (Girard, 2004) .
Quando a modernidade interdita o teatro, na já mencio­
nada articulação de uma recusa da mimesis realista com um
crescente sentimento de antiteatralidade, o principal ônus, já
se disse, recai sobre o ator, protagonista-mor dessa forma par­
ticular de representação artística. A sugestão que emerge aqui,
pois, como um desdobramento do que ficou desenvolvido é
a de que o ator, de fato, acaba sendo um bode expiatório da
violência modernista contra o referente, já que o corpo huma­
no, destacado sobremaneira na sua inexorável presença no ato
teatral, é o mais imediato e incontornável dos enunciados refe­
renciais em um espetáculo, mesmo quando essa presença é vir­
tual, como ocorre em muitos espetáculos contemporâneos1 1 •
Desde as narrativas homéricas, base da cultura grega clássi­
ca e fonte primordial da literatura e teatro ocidentais, mimesis
está associada a uma função semântica. É a repetição do mythos
na forma do fogos, ou da palavra animada de racionalidade,
que reinstaura o sentido do mundo a cada recitação na cultura
oral da Grécia arcaica. É essa compreensão de mimesis, como
reflexo de um mundo existente e reconhecível que em graus

I L Ver Ramos, 20 I L Disponível em <http/lwww.seer.ufrgs.br/presença>. "O virtual quer


ser real, almeja e finge essa presença diferenciada. Por mais que o espaço cibernético
tenda, cada vez mais, a dissolver presenças vivas, ou mediá-las, essa evanescente presença
continua reproduzindo, independente da mídia, a busca de uma atualidade mais autên­
tica. Resta à mimesis espetacular, em quaisquer que sejam seus meios operativos nessa
utopia de presença, conformar-se em estar aquém, �u a ter menos, como sugere Blau"
(2007).

61
diferentes se desdobrará na reflexão filosófica, por exemplo, de
Aristóteles na "Poética'', quando este destaca a função positiva
da mímesis na cognição, exemplificada seja em suas atribuições
mais simples, como a representação de animais que serve à
educação das crianças, seja nas mais complexas, como na en­
cenação trágica, quando os mitos fundadores daquela cultura
reapareciam ao reconhecimento da Pólis.
Se a mimesis, pois, caracteriza-se pela correspondência se­
mântica, ou pela similaridade entre a obra e um referente a ser
reconhecido, ela se tornará, quando, no fim do século XVIII,
ocorrer a sua já citada retração como modelo operativo da
fruição estética, um jogo aberto sem destino certo que George
Steiner definirá como "troca entre liberdades" ( 1 989, p. 1 66) .
Nessa condição pós-kantiana, que marcou o romantismo e
toda arte moderna, a mimesis pode-se dizer, antes de desapa­
recer por completo, vê enfraquecida sua dimensão semântica
e potencializada o que poderíamos chamar de sua dimensão
sintática. Esse movimento de fuga dos significados estáveis e
em direção ao vago e indeterminado aparece de modo crista­
lino no teatro simbolista, na sua hesitação entre ainda ser dra­
mático e já assumir uma radical negação das correspondências
semânticas. Isso se verificará de forma mais radical, como se
viu, em Mallarmé, ou, de forma mais branda, em dramaturgos
como Maeterlinck. Ali o mythos referencial ainda está presen­
te, mas não mais como um ofuscante sol a pino, como no
drama clássico, e sim como uma lua pálida, infligindo sobre
os observadores só sinais rarefeitos.
Avançando para movimentos estéticos de meados do sé­
culo XX, mais radicais na sua negação da mimesis, como o
construtivismo, o concretismo ou o abstracionismo, fica mais
evidente essa transição da predominância do semântico para
a do sintático nas formas residuais de mimesis que ainda se
mantêm operando. A ênfase nessa produção artística explicita­
mente antimimética, no pressuposto de que mesmo negando
referentes anteriores continuar-se-ia gerando representações,

62
deixa de recair sobre os significados últimos. Agora focada
nos significantes imediatos, demanda sempre uma disposição
espaço-temporal para se impor. É neste lugar e nesse tempo
partilhados entre obra e observador, que se trama, cada vez
mais intensamente, uma sintaxe lúdica entre eles, um jogo de
aproximações e distanciamentos, de deslocamentos enfim, no
espaço e no tempo, que não constroem sentidos finais, mas
constituem materialidades provisórias.
Essa tendência se manifesta tanto nas artes plásticas como
no teatro. Nas primeiras, surge evidente no caso, por exemplo,
do neoconcretismo de Hélio Oiticica, quando este avança dos
"metaesquemas", ainda de algum modo semânticos mesmo
em sua condição abstrata, pois remetendo a códigos de leitura
preexistentes, aos "penetráveis" e à pura cor materializada em
volumes distribuídos pelo espaço expositivo, já claramente or­
ganizados em termos espaciais, ou sintáticos. A ocupação do
espaço e a ordenação em separado de elementos substantivos
criam uma expressão que já não demanda do observador re­
conhecimento, mas jogo corporal e deslocamento. No caso
do teatro o exemplo mais categórico talvez seja a transição
no teatro de Samuel Beckett, das primeiras peças, em que os
aspectos semânticos, ainda que dispersos e incertos, perma­
necem como sombras de configurações vagamente reconhecí­
veis, até as últimas peças televisivas, quando dão lugar a uma
organização sintática de corpos e sombras, já não evocativas de
anterioridades, mas pura e autonomamente (in) significantes.
Essa transição nos pesos intrínsecos das representações,
alternando da hegemonia do semântico para a do sintático,
tornado eixo dominante da representação artística moderna
e pós-moderna, pode também ser descrita em outros termos,
como a lenta e irreversível mudança da "linha para a superfí­
cie", como sugeriu a percuciente análise de Vilém Flusser da
cultura contemporânea (2002, p. 2 1 -34) . Segundo ele, como
será retomado no próximo capítulo, o condicionamento da
leitura desde a invenção da prensa pela linha, e por extensão

63
pelo olho, inclina-se contemporaneamente a uma recepção
áudio-táctil das superfícies. De qualquer maneira, o que inte­
ressa aqui é propor um modelo interpretativo que, mesmo re­
conhecendo que nas formas artísticas modernas e contempo­
râneas não cessa a incidência de instâncias representacionais,
forneça novos elementos para a análise de artistas e obras fun­
dados no antimimetismo e na antiteatralidade. Admite-se que
nesses processos negativos, em meio a essa crise da representa­
ção, sobrevive a pulsão à mimesis e se intensifica sua vocação
performativa. Vai interessar, pois, descrever em alguns desses
processos espetaculares como neles se manifesta ainda, ativa,
a mimesis de possíveis não reconhecíveis, nem a priori nem a
posteriori. É como se, no suposto deslocamento do semântico
para o sintático a mimesis, ainda que perdida a sua base de
operação, seu terreno sólido, farol que repete sentidos e signi­
ficados ao mar para que os navegantes os reconheçam, persis­
tisse atuando em formas mais abertas, sem origem ou porto de
chegada, apenas como sinais negativos e sentidos ocos.
Talvez o que explique essa condição de bode expiatório do
ator, como catalisando toda a rejeição ao teatro, seja o fato de
que nessas novas circunstâncias, em que os aspectos semânti­
cos cedem a precedência aos sintáticos, esse signo máximo de
articulação dramática, potencializado como foi, por exemplo,
na ópera wagneriana, acabe naturalmente condicionado como
vítima principal do ataque modernista. Mais difícil do que
anular a significação do espaço e do tempo cênicos é neutrali­
zar a potência semântica desse corpo. Isso pode começar, sim­
plesmente, silenciando-o e apagando as marcas que pudesse
·
trazer a priori, como sugere Mallarmé quando o compara a
uma página em branco. Mas o problema persistirá em projetos
mais ambiciosos, como o já citado de Craig, em que antes de
suprimir trata-se de potencializar aquela presença como sig­
no autônomo de referências externas, e se tornará uma ques­
tão crônica para todos os criadores que tentaram reinventar
o teatro no século XX. Essa reaparição do corpo humano na

64
cena, expurgado de todos os preconceitos, poderá ocorrer seja
esvaziando-o de significações excedentes à sua materialidade,
como no Happening ou na "arte como veículo" de Grotowski,
seja, como o fazem alguns encenadores e performers contem­
porâneos, hipertrofiando-o com um acúmulo de informações,
que o transformam em objeto indecifrável e impedem sua uti­
lização funcional pelo drama.

65
III
A ARTE CO NTEMPORÂ N E A E AS
ARTE S PERFORMATIVAS

1 - TEATRALIDADE E ANTITEATRALI DADE NAS ARTES


VISUAIS

A s artes visuais, ou plásticas, duas definições que se impu­


.l'\.seram no século XX para substituir a categoria das "Be­
las Artes" estabelecida ainda no século XVIIP, compartilham
com o teatro e as demais manifestações artísticas, nas primeiras
décadas do século XXI a indefinição quanto aos seus estatutos
ontológico e epistemológico, oscilando entre ainda serem vis­
tas como territórios específicos e com regras claras de avaliação
e serem tomadas em categorias híbridas que fazem fronteiras
com áreas a princípio estranhas, como o teatro, a música e a
dança, ou vizinhas, como a performance art e a arquitetura. A
variedade de alternativas de enfoque da história das artes visu­
ais oscila, contemporaneamente, desde grandes narrativas de
fôlego filosófico, como as realizadas por Arthur Danto e por
estudiosos que se detiveram sobre a possibilidade de encontrar
uma definição epistemológica consistente sobre as práticas de
pintores, escultores, videoartistas e performers contemporâne-

1 . Ver nota l i , p. 32.


os2, até as "leituras" de críticos e curadores envolvidos com a
produção que vem se escoando em galerias ou museus, mais
ou menos vinculados ao mercado, mas de caráter pragmático
e com potencial para definir rumos e estabelecer novos câno­
nes3. Deste espectro, um ponto de vista, além de interessante,
incontornável para a investigação em curso, como já foi reite­
radamente sugerido, é o do historiador e crítico Michael Fried,
até pela radicalidade da oposição que estabeleceu entre arte e
teatro, e que supostamente desqualificaria qualquer pretensão
de se pensar o conceito de mimesis com uma abrangência sufi­
ciente para dar conta do ecletismo das artes contemporâneas.
Mais do que isso, Fried opõe-se mesmo à ideia de um terre­
no comum às artes de maneira geral, incluindo-se aí aquelas
com vocação eminentemente espetacular como, por exemplo,
o teatro e a ópera. A ideia aqui é confrontar essas posições de
Fried, contrapondo a elas o raciocínio que se veio delineando
e que projeta a eliminação de fronteiras decisivas na forma da
apresentação das artes hoje, implicando-se aí que as condições
espetacular e performativa as atravessariam, e que mesmo suas
essências ou atributos técnicos específicos acabariam fundidos
(o que abriria espaço para a retomada de um conceito abran­
gente como o da mimesis). Nessa abordagem mira-se tanto a
reflexão de Fried nos anos 1 960 como a produção teórica mais
recente do crítico, que atualiza sua ideia central, desenvolvida
há quase cinquenta anos.
O historiador e crítico de arte Michael Fried chamou a
atenção dos estudos teatrais quando, em 1 967, numa críti­
ca aos minimalistas norte-americanos Donald Judd, Robert
Moreis e Tony Smith, invocou o conceito de teatralidade e
associou-o à disposição daqueles artistas de negar a tradição
da pintura e da escultura modernistas, ao proporem obras des-

2. Ver Damo, 1 997; 2005a; 2005b e Davies, 2004.


3. O livro de Hans Belting "O Fim da História da Arte", é um exemplo de intersecção entre
essa produção mais pragmática e a mais filosófica, inclusive porque chega às mesmas con­
clusões de Danto por outra órica. Ver também Sylvester 2007.

68
pidas de contornos formais reconhecíveis. Estas se colocavam
como objetos indistintos e não assimiláveis, pretendendo ape­
nas, mais do que afetar em um sentido preciso e gerar leituras
consequentes, colocar-se em relação com os espectadores. Se­
gundo Fried, ao assumirem radicalmente a condição de objeto
portada por suas obras, e enfatizando-a, eles tornavam literal
a tensão implícita entre o suporte tela e seu conteúdo pictó­
rico, que assombrava principalmente a pintura modernista da
época.
Fried expressou sua ojeriza a essa tendência, que nomeou
de teatral, definindo três proposições que sintetizavam os im­
passes da pintura e da escultura modernistas naquele momen­
to. A primeira era que o sucesso, ou mesmo a sobrevivência
das artes, dependeria de suas habilidades de derrotarem o te­
atro. A segunda corroborava a primeira, afirmando que a arte
se degenerava quando se aproximava da condição teatral. E a
terceira, convergente com as duas anteriores, postulava que
os conceitos de qualidade e valor, e a própria conceituação da
arte, só faziam sentido pensados dentro de cada uma das artes,
tomadas individualmente. Segundo Fried o que está 'entre' as
artes é exatamente o teatro, território da linguagem que care­
ceria de especificidade. Mais tarde, o próprio Fried, quando
publicou um longo estudo sobre a pintura francesa do século
XVIII, em que identificava pioneiramente o que vai chamar
de tendência antiteatralista nos pintores e críticos da época,
deixará clara a fonte e o sentido do uso que fez da ideia de
antiteatralidade4• Ele examina a pintura e a crítica de arte no

4. A par das polêmicas geradas no âmbito da crítica de arte, e da repercussão periférica entre
os estudos teatrais voltados ao conceito de teatralidade, pouco se investiu nesse meio na
compreensão do que, afinal, Fried entendia por teatralidade, e em que medida a utilização
do conceito por ele era mais do que acessória, partindo do senso comum e superficial.
Uma exceção é o artigo de Anne-Britt Gran ( 1 998/1 999) na coletânea "Teatralidade",
organizada por Josette Fera!. Gran sustenta - aceitando que o drama realista propo�ro por
Diderot era anti teatral e coincidente com seu programa ilusionista para as artes plásticas
- que Fried faz um uso legítimo do conceito ao sobrepor sua CJÍtica aos minimalistas nos
anos 1 960 aos seus estudos da pintura francesa no século XVIII. Ali Fried identificou uma

69
século XVIII francês, relacionando superficialmente as críticas
de Diderot aos pintores seus contemporâneos, em que se ma­
nifestaria a tendência absortiva, às propostas do filósofo para
a reforma da cena francesa do mesmo período, expressas, por
exemplo, no já citado "Discurso sobre a Poesia Dramática"5•
Mesmo considerando o desinteresse do historiador e crítico
pelo teatro, manifesto no uso superficial que faz do legado
de Brecht e Artaud em seu favor no famoso artigo de 1 967,
não deixa de ser curioso que um elemento aparentemente de­
cisivo para a consecução de seu raciocínio - um mesmo pro­
grama ilusionista para a pintura e o teatro setecentistas - seja
por ele tão minimizado. Se essa aproximação está implícita
nos argumentos de Fried, ainda que ameace suas bases, não
pontuá-la é o primeiro indício de que há algo forçado nas suas
conclusões.
Como já se disse, quando Diderot escreveu o seu "Discurso
sobre a Poesia Dramática'' ele criticava uma leitura de Aristó­
teles e de sua "Poética" que tinha sido consumada e difundida
no século anterior. A perspectiva neoclássica consagrou um
aristotelismo dogmático, que pregava unidades imprescindí­
veis - tempo, lugar e ação - e torcia a ideia de verossimilhança
em conveniência e decoro, transformando o que era em tese
uma necessidade pragmática de eficácia da ilusão em regras
inexpugnáveis de caráter moralizante. Além disso, contra a
ideia de um teatro essencialmente fundado na enunciação li­
terária, alijado da realidade cotidiana e projetado nas alturas
idealizadas da cultura clássica, Diderot proporá uma cena que
reflita o dia a dia urbano e seus elementos básicos, como o nú­
cleo familiar burguês, e o fará a partir da assunção dos aspectos

suposta tendência anti teatral, por projetar um espectador absorto, neutralizado e esqueci­
do pela tela.
5. O discurso é citado de passagem, mas Fried não se preocupa. por exemplo, em aprofundar
a sincronia entre a ideia de absorção na pintura à proposta diderotiana para o teatro, em
que está implícita a ideia de uma quarta parede imaginária entre o espetáculo e os espec­
tadores.

70
materiais do teatro, como os corpos dos atores, seus movimen­
tos e ritmos, assumidos como constituintes da linguagem cê­
nica. Ciente dos aspectos dinâmicos do desempenho dos ato­
res na Commedia Dell'arte, por exemplo, ele os empresta a fim
de dotar essa nova cena de verossimilhança e aumentar-lhe a
capacidade de espelhar a realidade. Só assim a finalidade desse
drama, qual seja, a afetação máxima dos espectadores a ponto
deles esquecerem que assistiam a um espetáculo, seria alcança­
da. Com muita antecedência, Diderot teorizava e propunha a
ideia de uma quarta parede, que o teatro naturalista adotaria
como padrão cem anos depois. Só com esse grau de ilusão
obtido o efeito das fábulas apresentadas sobre o público per­
mitiria seu deleite e propiciaria seu aperfeiçoamento moral.
Da mesma forma, o próprio Fried informa o quanto Diderot
valoriza pintores como Vernet e Loutherbourg pelas suas habi­
lidades de, em suas telas com paisagens naturais, criarem a ilu­
são dramática de uma "necessidade causal da natureza'' (Fried,
1 988, p. 1 32;228) . Como já se explicitou aqui, antes de ser
antiteatral, como Fried sugere, a tese absortiva de Diderot,
tomada tanto na pintura como no teatro, é profundamente
dramática, cúmplice da ideia aristotélica de mimesis e, conse­
quentemente, do teatral enquanto instância representacional
subordinada ao mythos. O ataque de Diderot à teatralidade
refere-se à tradição teatral neoclássica, profundamente hierá­
tica e formalizada. Sua disposição não é contra o teatro como
drama, mas contra o caráter inócuo e artificial que uma teatra­
lidade distante da realidade histórica do século XVIII, como a
da tragédia neoclássica, oferecia. A melhor prova disso é a opo­
sição que seu contemporâneo Rousseau lhe fará na apreciação
ao teatro6• Se as restrições deste são totais, associadas tanto ao
caráter espetacular como aos artifícios dramáticos implícitos,
Diderot prefere restringir sua crítica, ou sua antiteatralidade,
às deficiências representacionais de certo modo de encenação,

6. Ver Rousseau, 1 823-1 826, p. 2 1 -45.

71
em favor do resgate da eficácia dramática na capacidade de
iludir e, assim, de afetar de forma sub-reptícia o público, in­
clusive obrando pela sua elevação moral. Seu projeto antecipa
o naturalismo, naquilo em que este procura disfarçar ou mini­
mizar os aspectos explícitos da teatralidade, mas não configura
uma oposição ao teatro e muito menos à dimensão dramáti­
ca e seu poder persuasivo de iludir, ou absorver o espectador
numa narrativa ficcional, como ocorre na rejeição contempo­
rânea ao dramático. O sentido positivo da mímesís na mirada
aristotélica, seu poder cognitivo e o prazer a ele associado, é
resgatado tornando impossível perceber nesse programa dide­
rotiano uma antiteatralidade de fato, pelo menos não a que se
configura depois de Wagner na crítica que Mallarmé e Nietzs­
che lhe fazem, como já se pretendeu demonstrar.
Se concordarmos com Anne-Bri tt Gran que cada época his­
tórica inventou sua percepção sobre a teatralidade, "sua mito­
logià' como sugere ( 1 998/ 1 999, p. 2 5 1 ) , o teatro da segunda
metade do século XX, claramente, leria uma proposta como
a de Diderot como cúmplice do teatral, na medida em que
pressupõe uma cena com toda sorte de artifícios construtivos
para ocultar a condição material, ou objetual - como preferi­
ria Fried - do teatro, e, constituindo ilusões verossímeis, afetar
os espectadores. Na ótica aqui aplicada, de identificar o anti­
teatral com o antidramático, não resta dúvida que Diderot es­
tava essencialmente identificado com o dramático e, por isso,
com o teatral. ·

Se no célebre artigo ''Art and Objecthood" (Arte e sua con­


dição de objeto) Fried estabeleceu uma incompatibilidade en­
tre o projeto histórico da pintura e escultura modernistas, e a
tendência minimalista, que ele preferiu nomear como "litera­
tistà', nos trabalhos como historiador da arte aprofundou essa
tese propondo uma revisão da narrativa canônica sobre a arte
moderna. O minimalismo exacerbaria a condição de objeto
das obras eliminando a tradição de suportes estáveis para telas
e esculturas, e abrindo a fruição artística ao jogo indetermina-

72
do entre observador e obra, agora assumida como objeto não
identificável a priori. Mas essa tendência era por ele detectada
como parte de um desenvolvimento histórico que focava cru­
cialmente na relação do observador com a obra. Dito de ou­
tra maneira, ao conectar sua crítica ao minimalismo à pintura
francesa do século XVIII Fried ampliou o habitual foco de
análise da tradição modernista, deslocando a atenção de s.eus
aspectos estritamente formais, restritos às linguagens pictórica
e escultórica, para aqueles relativos aos modos de fruição e
apreciação das obras. Na narrativa original de Fried, o moder­
nismo na pintura do fim do século XIX seria o resultado ne­
cessário de uma tendência que se insinuou já três séculos an­
tes, com Caravaggio, de apagamento nas telas da consciência
das mesmas sobre seus observadores. Figuras absortas em suas
ações, ignorando quem as mirasse, gerariam uma absorção do
próprio observador, esquecido de si por força da indiferença
da tela. Revelado por Fried como uma aspiração generalizada,
principalmente nos pintores franceses dos séculos XVIII, esse
projeto absortivo chegou a uma crise de superação cem anos
depois nas telas de Manet, em que o observador volta a ser
olhado de frente e pressuposto na tela, ainda que para mais
uma vez reforçar-se a capacidade absortiva das pinturas e ga­
rantir sua autonomia como obra frente a qualquer concessão
à pose e à dissimulação ensaiada, abrindo-se assim o caminho
para o chamado alto modernismo.
Já se reiterou como essa ideia está fortemente construída a
partir da crítica de artes plásticas de meados do século XVIII,
principalmente aquela escrita por Diderot, bem como já se
discutiu a fragilidade conceitual desse empréstimo, de atribuir
ao filósofo francês uma perspectiva antiteatral. Se de fato Di­
derot recusa ao teatro, assim como à pintura que critica, os
recursos grosseiros e a facilitação na captura do espectador, e
busca o ilusionismo absoluto da cena frente aos seus recepto­
res, o faz para intensificar os efeitos dramáticos, exatamente na
contramão das correntes antiteatralistas que, como se viu no

73
capítulo anterior, definiram sua oposição ao teatro exatamente
pela negação dessa potencial dramaticidade. Por outro lado,
há que se reconhecer, a crítica de Fried ao minimalismo aca­
bou antecipando, em um viés pessimista, boa parte do desen­
volvimento posterior das artes visuais em correntes como a arte
conceitual, a performance art e as instalações de site-specific,
no fato delas adquirirem características espetaculares e apro­
ximaram-se muito das correntes teatrais de experimentação
que prosseguiam firmes na negação de qualquer procedimen­
to absortivo de características dramáticas. Assim, se a tese de
Fried permaneceu polêmica e nunca foi devidamente assimi­
lada pela crítica acadêmica de artes visuais7, seus prognósticos
se mostraram ironicamente certeiros, o que permitiu que ele
nunca abandonasse a tese original e, mais recentemente, vol­
tasse à carga para propor em novos termos sua teoria.
Em 2008 publicou um amplo estudo sobre dezesseis ar­
tistas contemporâneos que fizeram da fotografia seu suporte
principal (Fried, 2008) , e mais recentemente, com o livro Four
Honest Outlaws: Sala, Ray, Marioni, Gordon (20 1 1 ), defendeu
que as obras de quatro artistas contemporâneos de diferentes
suportes eram herdeiras da tradição absortiva, que ele desco­
·
briu e dedicou a vida a afirmar como relevante para a crítica e
prática artísticas.
Sem entrar no detalhamento dessas análises, justifica-se
examiná-las porque pelo menos em dois casos, o do albanês
Anri Sala e o do escocês Douglas Gordon, se tratam de obras
que têm no vídeo ou no cinema, reapresentados em instalações
interativas, os seus suportes. Tratando-se de circunstâncias de
apresentação claramente espetaculares, envolvendo artes tem­
porais, o próprio Fried tem dificuldade em aproximá-las da
tradição absortiva das telas e esculturas estáticas em que perce­
be o principal veio da arte moderna. Ainda que retoricamente

7. Patrícia Falguieres (2007) faz um histórico da recepção às teses de Fried em "Playground",


no catálogo da exposição "Teatro sem Teatro".

74
o consiga, ele inclui no livro como apoio à sua tese, em um
último pós-escrito, rica análise da arte contemporânea feita
pelo artista canadense Jeff Waal (apud Fried, 20 1 1 , p. 205-
22 1). Se Wall reconhece a pertinência do insight de Fried no
artigo de 1 967, ao perceber como o crítico detectava que algo
estava mudando nas relações entre obra e observador, permi­
te-se no texto citado; formular uma leitura bem percuciente
do atual panorama. Nela, em termos distintos aos de Fried,
mas em que aparece implícito o diagnóstico geral do crítico,
ele formula de maneira clara um argumento que será decisivo
para a perspectiva abrangente de leitura das artes que se almeja
aqui. Sem separar arte e teatro como Fried, e reconhecendo
um campo comum que se instaurou entre todas as artes, Wall
parte da original divisão entre as artes que eram reconhecidas
como descritivas - desenho, pintura, escultura, fotografia e
artes gráficas - e que ele nomeia de "formas canônicas", e as
ditas artes do movimento - teatro, dança e música. Enquanto
as primeiras têm como princípio excluírem qualquer movi­
mento, e como critério de avaliação a capacidade de apenas o
sugerirem, as outras têm na mobilidade temporal o seu terri­
tório por excelência. Wall reconhece que cada uma dessas artes
do movimento teve suas próprias vanguardas e seu próprio
modernismo, assim como reagiram a seu modo às demandas
de fundir arte e vida, experimentando também formas baixas
e elevadas. A partir dos anos 1 950 teria havido uma adesão
generalizada às artes do movimento, que marcou, mais do que
qualquer inovação formal, a ruptura com as ditas "formas ca­
nônicas", e propiciou uma adesão ao que Wall qualifica como
um "brutal escancarar-se", característico do teatro, da música
e da dança, fenômeno capturado por Fried em seu polêmico
artigo. Hoje, no que Wall nomeia como situação pós-concei­
tual, com a proliferação de um novo tipo de arte, que não é
mais regulada por nenhum senso de técnica ou métiers, qual­
quer coisa ou tudo pode ser arte, e essa potencialidade conti­
nua sendo o que se mostra atrativo nela. Ao mesmo tempo,

75
a partir dos anos 1 970, essas novas formas se tornaram tão
canônicas como as anteriores, ainda que continuassem apare­
cendo como inovações. Mas, curiosamente, já não se revela­
vam como música, cinema ou dança e sim como o que Wall
chama de sua "segunda aparição", não mais como o que foram
previamente, mas como exemplos de "arte (contemporânea)" .
Wall sugere que nessa segunda aparição elas perdem suas iden­
tidades prévias e assumem uma identidade mais complexa e
universal. Tornam-se consequências exemplares do que ele
percebe como uma redução conceitual - "se qualquer objeto
(ou por extensão óbvia, qualquer processo ou situação) pode
ser definido, nomeado, considerado, julgado e valorizado
como arte por meio de ser capaz de designar a si mesmo como
um exemplo absoluto de arte, então qualquer outra forma de
arte pode também ser assim definidà' (Wall, 2006, p. 220) .
Ao realizarem essa segunda aparição, ou adquirirem essa nova
identidade, as artes do movimento transcendem a si próprias e
se tornam mais significativas do que se tivessem permanecido
teatro, cinema ou dança. Com isso os próprios critérios das
artes do movimento são suspensos, já que elas agora se fazem
presentes como essa segunda aparição, assim como ocorre no
caso das artes descritivas, pois não se aplicariam a essa nova
configuração. Como lembra Wall, a arte da performance não
tem que ser bom teatro, ou as videoinstalações não têm que ser
bom cinema. Essa neutralização de critérios tem como efeito
causar uma proliferação dessas novas formas, que são chama­
das por Wall de "formas-eventos", já que um evento é sempre
uma síntese, um híbrido. Mesmo a ideia de confusão entre
as artes, como instrumento de definição dessa circunstância,
parece inadequada para ele. Sem critérios estabelecidos - es­
tes já não são mais desafiados como à época das vanguardas e
,
permanecem em suspenso - essas " r rormas-eventos ocorrem a
despeito das lamentações ou oposições de críticos como Fried
e se revelam a verdadeira "forma do novo". Julgando que esta­
mos já numa fase maneirista desse processo, Wall conclui que,

76
talvez, essa característica seja, exatamente, a peculiar contri­
buição da nossa época à história da arte8•
Retornando a Fried, para entender melhor o seu ponto
contra o teatro ou o diferencial das artes da pintura e escultura
modernistas frente a ele, vale prospectar a noção de "presen­
ça", que é central em seu raciocínio. Fried pensa a presença, ou
a condição de presença, da obra, tela ou escultura, como algo
não temporal. Quer dizer, o encantamento, se ocorrer, não se
dará como narrativa na duração, mas como algo imediato e
único, e que guarda a potência de sempre se repetir em havendo
fruição, ainda que essa qualidade não dependa do observador
para existir e paire autônoma como uma condição intrínseca
da obra9• A isso ele opõe o teatro e sua "presentidade" óbvia,
explícita, temporal e finita, também carecendo de uma nova
encenação para ser encetada, ou atualizada, mas cujas quali­
dades intrínsecas são contingentes e não perenes, dependendo
de aspectos aleatórios para se repetirem. Pode-se apontar nessa
diferenciação a nostalgia de uma "aurà', mas principalmente
da autonomia, ou existência per si da obra, alcançada em cor­
rentes da pintura como o suprematismo, o neoplasticismo ou

8. "A arte contemporânea, portanto, bifurcou-se em duas distintaS versões. Uma é baseada
em princípio na suspensão dos critérios estéticos, a outra é absolutamente submetida a
eles. Esta é, em consequência, totalmente submetida ao princípio da autonomia da arte, a
outra é possível só numa situação pseudo-heterônoma. Nós não sabemos ainda se chegará
a haver um fim para essa condição interina, ou se uma nova arte, autêntica, heterônoma,
ou pós-autônoma irá de fato emergir. Julgando pelos registros históricos do último século,
não é provável. É mais provável que os artistas continuarão a responder às demandas para
transcender a arte autônoma com mais das suas famosas ações preventivas, inventando
soluções interinas mais sofisticadas. Nós estamos provavelmente já numa fase maneirista
disso. Isto sugere que a 'heteronímia mimética interina' - frase tão estranha como essa que
eu calhei produzir - tem algum espaço para permanecer ainda como a forma do novo.
Pode ser a forma em que nós descobrimos o que o sacrifício do critério estético é realmen­
te, não como especulação, mas como experiência, e como uma nossa específica - alguém
poderia dizer peculiar - contribuição para a arte" (apud Fried, 20 l i , p. 220-22 1).
9. Neste aspecto ele revela sua filiação ao pensamento de Clemenr Greenberg, que tanto
influenciou a crítica de pintura modernista nos anos 1950, e está cristalizado no célebre
artigo "A pintura Moderna", publicado originalmente pela 1-óía ofAmérica. Ver Battcock,
1 986, p. 95-1 06.

77
o concretismo. Para fortalecer essa diferenciação ele trabalha
com as expressões "presentness" (a condição de estar presente)
e "to-be-seenness" (a condição de estar sendo visto) que ope­
ram decisivamente para configurar o que chama de "graçà',
momento quase epifânico, emergência fora do acaso, não in­
tenção realizada ou revelação intuída. Na perspectiva de não
ser efeito buscado, mas uma conquista da obra em deixar-se,
absorta em si, ser absorvida e, com isso, encantar e absorver
seu observador, se diferenciaria, supõe-se, do efeito da ilusão
dramática, característica da mimesis teatral. Se esta manipula o
observador conscientemente, apresentando-lhe narrativas que
o apanham e o levam a consumar efeitos previsíveis, aque­
la operaria sem truques, mas pela potência intrínseca e não
aleatória da obra. O travo metafísico dessa perspectiva, por
pressupor uma essência oculta a se revelar a cada vez que a
obra é observada, como uma aparição, poderia sugerir uma
aproximação do olhar de Fried de correntes antiteatralistas
do teatro, como a propugnada por Artaud, por exemplo, e
sua "metafísica do concreto", que antevê uma dimensão mais
legítima, ou menos falsa, do vivo, em práticas que façam aflo­
rar o que poderíamos chamar de "carne do mundo". Também
dialoga com o olhar de Grotowski, sucedâneo de Artaud na
segunda metade do século XX, quando este encenador des­
loca a criação teatral para antes ou depois da apresentação,
num movimento interno ao criador de ignorar o destinatário
eventual da obra, para acessar uma dimensão mais verdadeira,
ou menos falsificada, do que a da ilusão dramática. Mas, de
fato, e essa é a suprema ironia do uso espúrio que Fried faz do
termo antiteatralidade, aponta na direção oposta.
Se não fosse pela confusão já amplamente discutida entre
a perspectiva de Diderot de uma ilusão dramática absoluta,
que antecipa na prática o naturalismo no teatro e no cine­
ma, com o seu suposto antiteatralismo, o modelo analítico de
Fried reaplicado em seus ensaios mais recentes revela-se, mais
do que nunca, contraditório. Na verdade, ele tem que se retor-

78
cer para dar conta desses artistas contemporâneos a partir dos
quais retoma sua cruzada contra a teatralidade. Por exemplo,
comentando a obra "Long Sorrow" (longo lamento) de Anri
Sala - um vídeo em que um saxofonista improvisa pendurado
do lado de fora de um prédio em Tirana, Albânia -, alega que,
apesar de ser uma narrativa temporal, por envolver um impro­
viso cujo agente se revela absorto em si mesmo, escaparia da
pecha de teatral e se inseriria na melhor tradição da pintura
modernista. No caso desta obra destacada, seria possível reco­
nhecer que a condição de presença, ou presentidade alegada é
pura ilusão construída, ou dispositivo que autogera presença,
tanto quanto qualquer melodrama cinematográfico. A diferen­
ça entre ela e este hipotético filme vulgar, e que se aproxima do
diferencial entre um drama tradicional e uma experiência dita
pós-dramática no teatro, é que a ilusão de presença não se dá
por artifícios narrativos conhecidos e se constrói como sintaxe
de imagens autônomas de contextos referenciais, o que nos
traz de volta à diferenciação já explorada entre mythos e opsis
na mimesis performativa contemporânea. Sem aproximar em
demasia a problemática proposta por Fried da que o presente
estudo contempla, vale prosseguir ainda analisando, mais em
detalhe, essa idei� de uma presença diferenciada da obra, que
ele reconhece como pura arte, em detrimento de outra que ele
percebe como contaminada pela teatralidade.
Essa positividade de um momento específico na fruição da
arte, com o viés metafísico de pressupor uma qualidade in­
trínseca e indissolúvel em certas obras, contra o relativismo e
a impermanência dos atributos da arte, por exemplo, minima­
lista, que se teria rendido ao teatro ou ao teatral, faz evocar a
histórica perspectiva do surrealismo. A ideia do "acaso objeti­
vo", como confluência mágica, fixada na intersecção na malha
da realidade e do curso das coisas com os destinos individuais,
demarca a singularidade de um momento epifânico, ainda que
naquela tradição este seja irrepetível. No caso de Fried, ressalta
essa potencialidade inalterável, já que alheia às circunstâncias e

79
condições históricas da fruição. De fato, o que define para ele
se uma obra é pura arte ou se degenera em teatro nunca exclui
o espectador, ou observador. Sua presença continua sendo im­
prescindível. O que varia seria a atualização de uma essência
constante graças à assimilação absortiva, que prevê uma parti­
cipação quase neutra, ou passiva desse observador. De algum
modo, esse contraste de recepções distintas percebido no mo­
delo de Fried, assemelha-se à diferença entre um espetáculo ou
filme que prende a atenção dos seus espectadores por meio de
procedimentos dramáticos consagrados, daqueles que o fazem
sem o uso desse recurso e trabalham somente com a superfí­
cie das imagens e seus impactos difusos, não cognitivos. Por
isso mesmo, o coroamento de sua obra de historiador da arte,
que configuraria sua interpretação do modernismo na pintura
pelo viés das formas de recepção das telas, aponta a pintura
de Manet e sua característica "facingness" (a condição de nos
estar encarando) como a "resposta dialéticà' à crise do projeto
absortivo, qual fosse, o de apresentar idealmente figuras capa­
zes de sensibilizar seus observadores sem revelar a intenção de
fazê-lo. O teatral, em contrapartida, se apresentaria como toda
presença previsível, ou cuja intenção de mobilizar o observa­
dor se explicitasse, ainda que, como na arte minimalista do
início dos anos 1 960, se tratassem de objetos não figurativos
cujo acionamento dependesse da imaginação ativa do obser­
vador para ocorrer. Na ótica de Fried, idealmente, a presença
da obra deve fazer-se cristalina e ter o potencial de absorver
plenamente o seu espectador-alvo. Retomando um termo já
bem percorrido nessa reflexão, o que Fried está almejando na
relação entre obra e observador é o apagamento dos aspectos
performativos intrínsecos à tela, tanto enquanto vestígios de
sua produção quanto no que ela mobilize um distanciamento
de quem observa para além dos conteúdos temáticos e dramá­
ticos que o pudessem entreter. Na perspectiva da teoria con­
temporânea do teatro, como já se viu e ainda será reiterado, o
aspecto performativo é uma constante reconhecível, tanto nas

80
manifestações ditas pós-dramáticas quanto naquelas que vie­
mos reconhecendo como antiteatrais na chave antidramática.
Busca-se uma autenticidade de presença para além das narra­
tivas tramadas, das intenções de efeitos e das poses, que ex­
plicite naquele desempenho espetacular, por meio de técnicas
ou espontaneamente, uma margem de invenção possível na
reapresentação da vida. Na contramão do que acontece com
essas tendências espetaculares contemporâneas, que negam a
absorção dramática e evitam conduzir o espectador a um alhe­
amento controlado, o modelo analítico de Fried não escapa
de incorrer numa intencionalidade inexorável, ainda que sub­
sumida ou disfarçada em indiferença. A bem da verdade, até
por perceber o projeto dramático e absortivo de Diderot como
antiteatral, ele concede mais à ilusão do que os minimalistas
a quem acusa de se renderem ao teatro. Esses, até porque se
recusavam a definir na forma um percurso de leitura, estavam
muito mais próximos das correntes verdadeiramente antidra­
máticas no campo do espetáculo, já que pressupõem um es­
pectador mais ativo e menos sujeito a ser apanhado no falso
jogo de autonomia da absorção.
Interessa ainda prosseguir nessa depuração da tese de Fried,
retomando seus ensaios mais recentes, agora focando em sua
análise de algumas obras de Douglas Gordon, que ele toma
como exemplares do que ambiciona para a arte e que são ar­
roladas dentro do que considera a melhor tradição modernis­
ta. Um dos suportes privilegiados por Gordon é o cinema,
já que parte de sua obra consiste na edição desfiguradora de
filmes preexistentes da tradição cinematográfica. Essa fonte
original, filmes antigos de Hollywood, depois de reprocessa­
dos com, por exemplo, expressivas alterações e recombinações
na velocidade das versões originais, são exibidos em espaços
expositivos, museus ou galerias, com telas/instalações que se
oferecem à fruição dos visitantes. Essa disposição tipicamente
espetacular não incomoda Fried e para compreender essa sua
adesão ao formato é importante levar em conta como situa o

81
cinema em seu argumento. Para ele a arte cinematográfica não
se diferencia do teatro, mas, também, apesar de sua notável ca­
pacidade absortiva não se confunde com a grande arte. Como
ele define,

porque o cinema escapa do teatro automaticamente, como


só i acontecer, provê um bem vindo e absorvente refúgio às
sensibilidades em guerra com o teatro e a teatralidade. Ao
mesmo tempo, esse caráter automático e garantido desse
refúgio - mais precisamente o fato de que o que ele ofere­
ce é um refúgio do teatro a não um triunfo sobre ele, uma
absorção, (no sentido do espectador ser absorvido no e
pelo filme) e não uma convicção - significa que o cinema,
mesmo em suas versões mais experimentais, não é uma
arte modernista (Fried, 20 1 1 , p. 1 82).

Interessa aqui explorar essa diferença proposta por Fried


entre o cinema ser um escape das armadilhas da teatralidade,
mas não uma forma artística que lhes imponha uma derrota
ou as supere. O ponto a indagar é que, se podemos compreen­
der a simpatia de Fried pela capacidade absortiva do cinema,
fruto da mesma incompreensão do sentido da antiteatralidade
propugnada por Diderot, mais difícil é entender por que este
seria incapaz de superar decisivamente os aspectos deletérios
do teatro. E, mais ainda, porque Gordon, trabalhando basica­
mente com o cinema como suporte consegue esse feito?
A resposta poderia ser a de que, se Fried reconhece que a
enorme capacidade absortiva do cinema dialoga com o pro­
grama absortivo, por exemplo, de Diderot, ele não deixa de
reconhecer que essa absorção quase absoluta pelo "mundo do
filme" não representa uma derrota completa do teatral por­
que há o reconhecimento de que todo o complexo sistema
operativo resultante num filme configura-se, afinal, em um
grande dispositivo de produzir artificialidade, incapaz de al­
cançar a produção de uma presença genuinamente autônoma
e geradora da "graça" como a grande arte moderna o faria.

82
Gordon, no caso, ao utilizar o cinema popular como ponto
de partida, mas subverter seus tempos e códigos absortivos,
tornando opaca sua transparência intrínseca e abalando o que
se poderia chamar de absorção vulgar típica da forma cinemá­
tica, credencia-se perante Fried a ser arrolado como um artista
pertencente à tradição modernista. Nesse esforço retórico de
justificar a inclusão de Gordon, e sua arte fortemente vinca­
da pela dimensão cinematográfica e espetacular, no campo da
arte modernista Fried retoma sem saber ideias do fotógrafo e
multiartista Jack Smith em textos escritos no início dos anos
1 960, e que foram seminais para a revolução no cinema, teatro
e performance norte-americanos naquela década, como será
apontado em capítulo posterior. Smith chamou a atenção pio­
neiramente para uma dimensão não dramática, mais sensual
e antiteatral, que poderia ser alcançada com o cinema e fez,
sim, de seus poucos e radicalmente experimentais filmes, ver­
dadeiras obras de arte a dialogarem com o melhor da tradição
modernista.
Mas onde essa retomada das premissas de Fried da década
de 1 960 a partir de referências da arte contemporânea fica
mais clara, para o bem ou para o mal, é no seu, também re­
cente e já citado livro anterior, Why Photography Matters as
Art as Never Before (2008) . Um dos artistas em foco ali é o
já mencionado Jeff Wall, em cuja obra - fotografias realistas,
com alto investimento técnico em sua preparação, expostas
como transparências de grande dimensão iluminadas por trás
e chamadas de "light boxes" (caixas de luz) - Fried projeta a
recorrência da aspiração absortiva que ele identificou na pin­
tura francesa do século XVIII e nos textos críticos de Diderot.
No capítulo "JeffWall, Wittgenstein, and the everyday", Fried
recorre a Heidegger - Ser e Tempo e o ensaio "A Questão Con­
cernente à tecnologià' - e a Wittgenstein - manuscritos dos
anos 1 930 contidos em Culture and Value - para reforçar a
ideia de que a representação de uma cena cotidiana apanhada
sem que a pessoa ou pessoas colhidas se deem conta de esta-

83
rem sendo observadas tem uma qualidade artística superior.
Ele leva em conta também declarações do próprio Wall acer­
ca de seu projeto artístico, identificando nele uma fase mais
recente, que o artista denomina como "near documentary"
(próxima do documentário), e exemplificando-a com a obra
"Morning Cleaning, Mies van der Rohe Foundation, Barce­
lonà'. Trata-se de uma foto no modelo caixa de luz, de 1 87
em x 33 1 em, registrando uma sala do prédio construído por
Mies van der Rohe e Lilly Reich para ser o pavilhão alemão na
Exposição Internacional de Barcelona, em 1 929, hoje tornada
a fundação referida no título da obra. O registro foi feito pela
manhã, quando o sol banhava a sala, e apanha um faxineiro no
ato de molhar seu instrumento de limpeza em um balde, antes
de voltar a usá-lo contra os vidros, em que se notam estrias
de espuma. A foto tem muito mais detalhes interessantes que
colaboram para dar-lhe a aura de um flagrante colhido num
átimo, sem que o ser humano presente na cena sequer se desse
conta de estar sendo fotografado. Depois de detalhar minucio­
samente a foto, Fried nos informa que Wall necessitou de 1 2
sessões de cerca de sete minutos (o tempo em que o sol per­
corria o chão da sala quando a atingia a cada manhã), ao longo
de 1 2 manhãs, além de exaustivos estudos no período da tarde
nessas quase duas semanas, para reunir o material necessário a
um processamento digital posterior e edição da imagem final
em seu computador. Essa informação ilustra bem o grau de
artificialismo e de técnica necessários para que Wall atingisse
o efeito, ou a ilusão de que se tratava de uma prosaica cena
cotidiana de um trabalhador absorto em suas funções. Pois
bem, nenhuma dúvida de que se trata de uma obra na linha­
gem legítima dos idealizados tableaux diderotianos com sua
conformação naturalista. O que salta aos olhos, no entusias­
mo com que Fried detalha o efeito pretendido e obtido pela
obra, é a impropriedade de caracterizar essa pretensão como
antiteatral, pelo menos na perspectiva de antiteatralidade que
aqui se vem considerando, ou seja, do ponto de vista do teatro

84
moderno e contemporâneo. Fried evoca Wittgenstein, quan­
do este valoriza artistas que representam a "coisa individual
de modo que nos apareça como obra de arte" e fazem "a vida
mesmà', na forma da absorção, viável à contemplação estética.
Seu ponto é perceber na obra de Wall uma vontade e consci­
ência claras sobre a necessidade de construir artificialmente
esse efeito, com base no "franco reconhecimento", implícito a
ela, "dos artifícios fotográfico e dramatúrgico" necessários para
se obtê-lo. O primeiro através do aparato da "caixa de luz" e
o segundo, propriamente dramático, na "cuidadosa encena­
ção colaborativa da ação apresentadà'. Esse singelo comentá­
rio de Fried oferece o elemento que faltava para caracterizar,
definitivamente, que a ideia de arte que está em jogo na sua
reflexão é mesmo muito próxima do que nos estudos de tea­
tro se reconhece como a tradição dramática naturalista, e que
caracterizá-la como antiteatral, mais do que uma confusão, é
uma incorreção.
Para reforçar essa impropriedade do uso por Fried das cate­
gorias do campo teatral, retoma-se ainda ao seu último livro e
à análise ali da obra de Douglas Gordon. Merece atenção par­
ticular o comentário sobre a videoinstalação "Play Dead; Real
Time" {brincando de morto; tempo real) exibida pelo artista
em 2003. Ali uma elefanta é filmada em um espaço de gale­
ria, deitada, depois se sentando e se levantando e finalmente
andando em círculos. A filmagem tem várias sequências que
se revezam em dois telões dispostos no espaço expositivo,
acrescidos de um monitor pequeno que apresenta detalhes em
close-up da áspera pele e dos olhos do animal . . Fried elogia o
trabalho e o inclui, como às demais obras do artista, na me­
lhor tradição do alto modernismo, principalmente pelo seu
caráter absortivo, ou seja, pelo fato do animal, a despeito do
evidente dispositivo de filmagem que o cerca, realizar impá­
vido sua rotina e com isso conseguir uma projeção empática
sobre os observadores do vídeo, que se deixariam impregnar
por esse alheamento e experimentariam aquela autenticidade

85
sem poses e efeitos forçados. Essas são as mesmas razões que
levaram Fried a valorizar o já citado vídeo de Anri Sala, "Long
Sorrow", em que um saxofonista, suspenso do lado de fora
da janela de um prédio alto - situação eivada de artificialis­
mo -, não deixa de executar seu improviso musical totalmente
absorto. Em ambos os casos o que está sendo valorizado é a
involuntária dissimulação dos agentes da representação, que
derrotaria o teatral, ou a afetação de um espetáculo franca­
mente dissimulado. Com o risco de redundar em algo que já
foi dito, mas para efeito de conclusão deste item, preliminar
à análise de uma série de artistas que realizariam o que está se
nomeando de mimesis performativa em campos distintos, para
além do teatro e das artes plásticas - talvez como as segundas
aparições de que nos fala JeffWaal -, cabe reparar que há uma
ingenuidade gritante no elogio de Fried a esses três artistas
contemporâneos citados. A rejeição da pose, do intérprete que
não consegue apagar sua consciência de estar sendo visto e
dissolver-se em seu personagem, e do teatral, no pior sentido
do termo, é uma bandeira de todas as correntes antiteatrais e
antimiméticas que operaram no teatro e na performance do
século XX. Os artistas citados por Fried só podem realizar as
obras mencionadas porque, no acúmulo das experiências que
emanam de um teatro não dramático, ou antiteatral, e com
todas as experiências das artes minimalista e conceitual, que
reabriram as artes plásticas e visuais ao corpo a corpo com o
observador, chega-se hoje a novas sínteses, como bem pontuou
Waal, a híbridos em que se combinam técnicas e dispositivos
de vários campos. Definitivamente, a capacidade de posar sem
fingimento, tão valorizada por Fried, é uma conquista do na­
turalismo dramático e também das correntes ditas teatralis­
tas, que lutaram para romper o ilusionismo; do happening e
das artes da performance tanto quanto de dramaturgias como
as de Gertrude Stein e Samuel Beckett, que denunciaram a
representação dramática como limitadora e expandiram as
possibilidade do teatro para além do faz de conta e da ficção

86
absoluta. O que Fried chama de teatro e de teatralidade é uma
fantasmagoria que já não se sustenta na realidade, a despei­
to do inestimável valor que sua provocação, lançada nos anos
1 960, adquiriu nessas últimas décadas.
Finalmente, cabe registrar o paradoxo a que todas essas
considerações nos trazem. Ao aferrar-se a ideia de que a busca
da absorção plena do observador é a marca indelével da ver­
dadeira arte moderna, e reconhecê-la em artistas contemporâ­
neos como os citados, Fried indiretamente favorece a leitura
que se está propondo aqui, pois fortalece a compreensão da
mimesis performativa operando francamente nas artes visuais.
Verdade que, na perspectiva da margem de invenção possível,
tanto nesse campo da arte contemporânea como no do teatro
contemporâneo - este, em sua "segunda aparição", incluído
naquela -, o tipo de mimesis que se está destacando é o de
uma mimesis não cognoscível. Mas, se imaginarmos que um
criador como Jeff Wall, ou como Gerhard Richter, para citar
um dos artistas contemporâneos que atualizaram a tradição
da pintura em chave realista, em que o reconhecimento claro
na obra de referências da realidade é um pressuposto neces­
sário, teremos de admitir que, no espectro das artes visuais, a
mimesis realista ainda resiste. A diferença, talvez, como sugere
Wall, é que agora essa plataforma realista opere menos afeita
ao projeto absortivo de Diderot e mais numa perspectiva ma­
neirista, quase irônica, de representação intensificada do real,
como provavelmente o resgate crescente da fotografia como
suporte de artistas contemporâneos o confirme.

2 - F USÓES E FRICÇÓES DE UMA CENA EXPAND I DA

No quadro da arte contemporânea, ainda se guardam as


fronteiras das ditas, outrora, artes irmãs, e prevalecem demar­
cados os seus respectivos territórios. Essa persistência de uma
configuração que historicamente remonta aos gregos só se
consolidou plenamente no século XVIII, quando a especiali-

87
zação das práticas artísticas em diversos campos levou a siste­
matização do ensino de cada uma delas para além dos ateliers
e oficinas do modelo renascentista de mestre e aprendiz. Esse
movimento de diversificação desdobrou-se em corresponden­
te produção de reflexões teóricas específicas, gerando as bases
sobre as quais, já no século XX, criaram-se, nas universidades
europeias e norte-americanas, faculdades e disciplinas remon­
tando a cada uma daquelas artes. Esse panorama manteve-se
estável até o fim do século passado, a despeito das pressões e
tensões que em cada uma das "artes" forçavam seus limites e
buscavam a fusão ou fricção de áreas antes bem delimitadas e
estabeleciam novas configurações.
De algum modo, a considerar os padrões praticados ao
longo das últimas décadas nos planos institucionais, do finan­
ciamento da produção . artística e de sua distribuição na socie­
dade, pelo menos no Brasil, confirmam-se os campos restritos
da pintura e da escultura (essas amalgamadas como artes plás­
ticas ou visuais) , do teatro, da música, da dança e da literatu­
ra, para não falar do cinema, que a partir da segunda metade
do século XX passa também a ser tomado como uma arte, a
dita sétima. Nos últimos 30 anos uma oitava pretendente, a
"performance art", força seu espaço tanto nas universidades
como nos planos institucionais de financiamento e fruição
artística para ser reconhecida como um território autônomo.
Essa tendência é curiosa, pois ocorre na contramão do próprio
espírito dessa arte mais recente, de desfazer fronteiras e apro­
ximar as práticas teatrais, pictóricas, escultóricas e cinemáticas
num mesmo campo, ou, pelo menos, em regiões menos ex­
clusivas. Quando a pretensão da performance em se tornar um
território fechado se sobrepõe a sua vocação multidisciplinar, de
algum modo trai-se o espírito que a viu nascer e desenvolver-se,
embrionariamente, no início do século XX e já consolidada
como prática a partir dos anos 1 950. É a partir desse olhar
mais aberto para o campo das artes que, à exceção da litera­
tura, e como visto no caso de Mallarmé, inclusive nela, têm

88
todas elas um caráter performativo, que a performance será
um dos principais motores do desfazimento de fronteiras e
da constituição de um campo expandido para categorizar as
práticas artísticas, capaz de dar conta de certas manifestações
que ocorrem principalmente no teatro, na música e nas ar­
tes visuais ou plásticas. Esse novo e amplo espaço vital, mais
que delimitar um novo mapa das artes, estabelece um "não
território" em que os fluxos criativos se cruzam e se irrigam
sem preocupar-se em afirmar identidades fixas e, ao contrá­
rio, fazem dessa indeterminação de seus limites e da incógnita
quanto a seu código genético uma bandeira. Muitas classifi­
cações têm sido ensaiadas para nomear essa prática artística
despida de limites categóricos, e que vai além das disciplinas
e práticas tradicionais. Uma alternativa concreta que surgiu
na Inglaterra foi "live art", formulação que, até por já ter ca­
racterísticas institucionais importantes, tende a se consolidar
ocupando espaços nas universidades e na mídia daquele país.
Esses avanços verificados em países europeus não implicam,
de nenhum modo, que os campos particulares de cada uma
das artes não continuem mesmo ali sólidos e recalcitrantes,
nem que não mantenham suas idiossincrasias características.
Lá mesmo continuam havendo conservatórios em que se cul­
tuam as bases técnicas e programáticas do teatro, da música e
das belas artes, para retomar este termo com que, como já se
apontou, pretendeu-se ainda no século XVIII amalgamar as
artes e seus procedimentos intrinsicamente distintos.
No percurso que se vem traçando aqui, em torno de como
o antimimetismo e a antiteatralidade de viés antidramático
incidiram sobre a produção teatral no século XX, gerando no
plano da invenção cênica uma renovação sem precedentes em
relação às práticas teatrais anteriores, interessa agora caminhar
à frente, menos retomando a história do teatro moderno e
suas reverberações contemporâneas, já sobejamente estuda­
das, e mais procurando perceber em artistas contemporâneos,
ou próximos da contemporaneidade, de diversas áreas, uma

89
tendência comum à prática dessa amplitude artística que se
descreveu brevemente até aqui. Este denominador abrangente
poderia ser uma vocação performativa e espetacular específica,
que dialogaria com as tradições antidramáticas e antimimé­
ticas examinadas. De fato, a maior parte dos artistas a serem
focados aqui pertence ao campo das artes plásticas e visuais,
atuando particularmente naqueles nichos em que, como foi
proposto por Michael Fried, elas se tornariam teatro, ou como
eu próprio proponho, elas se tornam espetáculo sem drama,
atos performativos. Antes porém de realizar as análises dos ar­
tistas selecionados nessa perspectiva, será necessário construir
alguma base teórica para pensar as relações entre as artes vi­
suais e o teatro. Assim, imediatamente a seguir, estende-se a
oposição mythos e opsis já trabalhada no primeiro capítulo à
leitura de Vilém Flusser da cultura contemporânea, e depois
discute-se o conceito de performatividade e como nessas prá­
ticas contemporâneas antidramáticas ainda se necessita de al­
guma cumplicidade do observador para que se efetivem como
obras. Com esses desenvolvimentos conceituais pretende-se
reunir ferramentas para, idealmente, revelar nos artistas adian­
te examinados a recusa ao dramático, e práticas inventivas da
forma espetacular tomada em termos contemporâneos e para
muito além das categorias que isolam e incompatibilizam as
artes e o teatro. Este passo tornará possível, também, resgatar
no último capítulo um entendimento potencial da mimesis,
contemporaneamente, como repetição da diferença, ou como
mimesis performativa, um conceito amalgamador de todas
essas formas espetaculares sempre que abertas às margens de
invenção possível.
A contemporaneidade, já apontou Vilém Flusser há déca­
das10, vem se afirmando muito mais fundada numa percepção
áudio-táctil do que o vinha sendo desde a invenção da im-

1 0. Impossível não apontar a convergência no argumento de Flusser (2002) com o propug­


nado por Macluhan (2002).

90
prensa, quando, com a especialização do olhar para a leitu­
ra, tornou nossa atenção crescentemente focada na linha e no
sentido. A opinião converge com a perspectiva de movimentos
como o minimalismo nos Estados Unidos e o neoconcretismo
no Brasil, no início dos anos 1 960, de enfatizar o caráter de
objeto da obra de arte e ignorar os limites entre imagem e tela,
ou entre esta e a moldura. Passou a ser buscado distinguir na
obra a sua condição material, ou o fato de que, antes de ser
uma figura, uma mancha ou uma cor, a obra é uma materiali­
dade. Essa opção encontrou, por exemplo, no projeto da arte
conceitual um aliado fundamental e transferiu a questão da
arte de dentro da obra e de sua lógica interna, como ocorria
no caso da pintura concreta, para o processo de fruição, ou
para a significação que adquirirá no seu encontro com o pú­
blico. Quanto mais essa recepção ativar a obra propondo-lhe
novas modulações, mais ela terá atingido sua razão de ser. No
limite, já não haverá propriamente uma obra, ou ela se torna­
rá o próprio espectador em sua capacidade de produzir uma
resposta a partir de um esvaziamento absoluto que o artista
venha a promover, livrando a obra, inclusive, da sua condição
de objeto, ou, constituindo-a como tal, apenas, enquanto eco
na fruição do seu observador, como foi apontado no caso de
Tino Sehgal. Na desambição de narrar uma história definida e
pressupondo uma interlocução com o público, o artista busca,
mais do que um efeito, alguém, ou um observador que possa
estabelecer-lhe um sentido próprio e singular, fazendo valer
aquele acontecimento. É um projeto de espetáculo que abdica
do centro narrador e se entrega às potências dos espectado­
res para que formulem soluções e sínteses. O espetacular, ou
aquilo que se dá a ver e afeta, torna-se assim moeda comum
a todas as artes contemporâneas, e, mais do que a teatralida­
de, que aponta para um campo específico, a performatividade
passa a ser um conceito operador mais fértil para elucidar essa
realidade abrangente, em que literatura e música, artes visuais
e plásticas, teatro e performance convivem, privados de fron-

91
teiras, em fluxos de influências e contrainfluências e operadas
mormente a partir do observador.
Manifestações no campo das ditas artes visuais - instala­
ções, performances, site specifics - buscam cada vez mais o
corpo a corpo com o público, enquanto espetáculos antidra­
máticos operam na perspectiva contemplativa, de abandono
das narrativas estruturadas em ficção e personagens e de ex­
posição de cenas com imagens abertas, cujo desenho, a ser
tentativamente decodificado .pelo espectador, não se oferece
de pronto nem interage pela via do encaixe cognitivo. Os
campos, portanto, se mesclaram e se estranharam. A pintura
e a escultura são substituídas enquanto suportes por práticas
espetaculares de apresentação ao vivo diante de espectadores,
e o teatro, muito afastado do drama, se torna plástico, visual,
eventualmente transposto para telas e monitores, ou instalado
em espaços expositivos e bem menos presencial. É uma arte
que, de maneira geral, a partir dos anos 1 960, dá as mãos ao
espectador para estabelecer uma parceria em sua concretiza­
ção. Explodem-se os suportes e formatos tradicionais para que
as obras se coloquem aos olhos e corpos dos observadores e em
seus próprios espaços de trânsito e convivência.
Contemporaneamente, pois, as artes visuais e cênicas com­
partilham a assunção do espectador!observador à condição de
figura central do processo artístico, atuando como um ver­
dadeiro formulador de obras. Seja no viés das exposições e
das instalações, seja no âmbito dos espetáculos e das narrati­
vas literárias, há claramente esta demanda. Nesse sentido, dois
campos convergem na busca por um espectador mais ativo:
um que esteja mais próximo do teatro na sua estrutura de ar­
ticulação contemplativa, o que exige o seu distanciamento do
espectador para observar e tentar produzir uma possível narra­
tiva, e outro mais per-formativo, em situações em que os atu­
antes se aproximam do público e interagem com ele, também
permitindo que interfira diretamente na narrativa em curso.
Nos dois casos, o centro irradiador da formação de sentido,

92
polo dominante, é o espectador, seja permeado por imagens
distanciadas seja tocado por corpos aproximados.
No primeiro grupo apresentam-se formas variadas de con­
templação. Pode ser pelo enquadramento na caixa cênica,
mas com um tempo dilatado de observação, fora dos padrões
dramáticos. Assim, o espectador constrói seu caminho pelas
imagens cênicas. Ou pode ser no parâmetro da instalação, que
se oferece em um discurso lírico, ou como uma narrativa de
romance, com um discurso mais aberto e polifônico, e deman­
.dando uma constante movimentação da assistência.
Quando a linguagem espetacular deixa de ser percebida
linearmente, como um significante que remete a um signifi­
cado latente preciso, e quando quase tudo se torna latência,
significados errantes, de superfície, a serem configurados de
forma distinta por cada observador, a crítica de arte perde
um de seus vetores operativos, a exploração da forma e do
conteúdo das obras. Imateriais e dependentes dessa interação
com o observador para se constituírem, as obras tornam-se
jogos muito mais abertos, cujas regras, a cada vez, ou a cada
apresentação, são propostas novamente. Curiosamente, essa
perspectiva evoca uma das chaves da estética kantiana e mos­
tra sua vitalidade conceitual. Se uma noção como a do "belo"
perdeu-se no modernismo, e a autonomia absoluta da obra,
consagrada na arte concreta, foi superada em correntes como
o minimalismo e o neoconcretismo, a formulação de Kant
quanto ao "livre e harmonioso jogo da imaginação e do en­
tendimento" adquire na cena contemporânea (aí entendidas
todas as manifestações espetaculares na amplitude das artes
visuais e performativas) uma pertinência notável. A ideia do
espectador como o lócus formulador da obra, articulada a
partir da combinação de sua percepção racional e de sua po­
tencialidade imaginativa, e consubstanciada em um processo
lúdico, descreve à perfeição muito do que a contemporanei­
dade vem propondo como arte.

93
Retomando a proposição de Flusser, quando este percebe uma
crescente presença da oralidade, e das percepções áudio-tácteis
nas formas contemporâneas de fruição das linguagens,
poder-se-ia também reconhecer no plano espetacular e per­
formativo um claro abandono da linha, como veio por onde
escorrem as possibilidades de leitura, e uma adesão às superfí­
cies, o já reiterado enfraquecimento do mythos e o predomínio
da dimensão do opsis. A metáfora mais adequada para descre­
ver os novos modos de fruição propostos é, talvez, a de campos
de força tensionados, em que pulsões sensórias de vários níveis
competem entre si, opondo leituras instáveis e gerando narra­
tivas ilimitáveis, uma vez que se torna impossível alcançar o
estado de repouso de uma definição clara.
Outro modo de vê-las e compreendê-las é pensar numa
cena expandida para além do teatro, em que a relação pre­
sencial que caracterizava o espetáculo se torna pressuposto de
todas as artes. Porém, ao contrário do que propôs Fried, não
é simplesmente que as artes se tornem teatro, mas, sim, que
passem a só se definir e justificar imiscuídas na vida do obser­
vador, tomadas em tempo real e efemerizadas, ou operadas por
ele em um jogo aberto sem destinação certa. O próprio teatro
lançado na aventura de se pensar como objeto não identificá­
vel deixa de se oferecer graciosamente às leituras e se propõe
como enigma, despertando o espectador do sono dogmático
da ficção fechada. A cena se torna uma narrativa possível à es­
pera de narradores que possam, a cada vez, e numa perspectiva
particular, contá-la a si próprios. A verossimilhança, essencial
no drama, não é mais previamente construída e testada na sua
potência de convencer, mas será deslocada à condição supér­
flua de uma aceitação perplexa, ou substituída pela matura­
ção íntima e inconclusiva do leitor/espectador às voltas com
suas próprias chaves de leitura, como será explorado no último
item desse capítulo. De fato, em, por exemplo, Tino Sehgal,
a obra torna-se um vazio preenchido fundamentalmente pelo
agente que a recepciona. Ali já não é o deslocamento do 'ob-

94
jeto achado' que a cria por disjunção crítica e irônica, como
em Duchamp, nem é a desfiguração de suportes tradicionais,
tornados objetos brutos e irreconhecíveis como no caso dos
minimalistas, ou atravessados pela pulsão de um gesto cor­
tante, como em Lúcio Fontana. Ali não há mais nenhum ob­
jeto e só restou o observador diante de uma ausência e da
impotência de imantá-la com alguma aura, como ainda ocor­
ria com a "sensibilidade pictórica imaterial" de Yves Klein1 1 •
Assim como em Wall, o u em Richter, o realismo fotográfico
já soa maneirista, pela intensificação a um ponto hiperbólico
do efeito referencial, em Seghal, esse esvaziamento do espaço
expositivo de qualquer obra e seu abandono a um espectador
jlaneur, sem rumo certo, pode mesmo ser visto como manei­
rismo, enquanto exacerbação contumaz das práticas perfor­
mativas de Yves Klein. Como também poderia ser percebida a
narrativa microbiológica de Matthew Barney frente ao frescor
da cena performativa dadaísta e à virulência política das aktio­
nen de Joseph Beuys.
Um fenômeno semelhante, ainda que incomparável, ocor­
re com os chamados teatros performativos ou pós-dramáticos.
Enquanto "segundas aparições", ou como arte contemporâ­
nea, eles exacerbam suas potencialidades teatrais para deixa­
rem de ser teatro, ou, pelo menos, definitivamente, não sen­
do mais drama. Mas o que se tornam, ou como se mostram,
permanece sendo algo a mais, ou a menos, do que a tradição
teatral oferece, sem deixar de reiterá-la, nesse limbo a que se
entregam de um modo muitas vezes propositalmente histéri­
co. Espetáculos como os de Romeo Castellucci, Richard Ma­
xwell ou Rodrigo Garcia, para citar três dos mais inventivas
encenadores contemporâneos, operam, por assim dizer, com o
cadáver do teatro, como a ostentar o que restou de um século
de antiteatralidade. Nessa operação convergem com a abdução

1 1 . Ver Ramos 20 1 4b. Disponível em: <http://www.periodicos.ufrn.br/artresearchjournal/


arricle/view/5260>.

95
do objeto na arte contemporânea, ou com a substituição dele
pela presença perplexa, sem alvo a mirar, do seu observador.
Trata-se, em ambos os casos de uma cena expandida em que
se confundem os campos performativos do que se entendia
como teatro e como artes visuais e plásticas.

3 - A PERFO RMANCE E O CONCEITO D E


PERFO RMATIVO

Além do caráter espetacular, tônica dominante das


produções artísticas contemporâneas que se impõe tanto no
campo de teatro como no das artes visuais e afins, outro traço
relevante dessa produção é seu caráter performativo, ou seja,
sua condição de ato que perfaz um acontecimento concreto e
implica numa apresentação em tempo real a eventuais especta­
dores. Esta ideia do performativo tem se tornado um conceito
recorrente na análise de alguns teóricos da performance e do
teatro e, só por isto, mereceria um exame detido12• Ao mesmo
tempo, parece-me que há certa confusão na compreensão do
mesmo, a partir da mescla de aspectos adjetivos, ou seja, de se
pensar o performativo como meramente afeito à performance,
com seu caráter substantivo, o de ser alguma coisa que perfaz
uma ação concreta e com isso constitui um objeto a ser deco­
dificado, algo próximo do que poderíamos entender, histori­
camente, como a mimesis.
O conceito de performatividade, antes de estar associado
ao teatro ou à performance, emerge nos estudos literários e
de análise do discurso a partir de trabalhos seminais como o
How to do things with words de Austin e da "Teoria dos atos
da fala'' de Searle. Ali, na análise da capacidade das palavras,
em determinados discursos, de estabelecerem ações concretas
e assim propiciarem consequências sérias, ou seja, de seu po-

1 2. Ver Fischer-Lichce, 2008. A aurora faz a símese mais produtiva do campo da performan­
ce e da performacividade.
tencial performativo é que emerge o sentido mais consagrado
do termo (Austin, 1 97 1 ) 13•
Na discussão que vem sendo proposta, e como que numa
outra perspectiva que não a do espetáculo dramático, pode
ser produtivo explorar esse aspecto linguístico para constituir
um modo alternativo de pensar o fenômeno espetacular. Se
o performativo é aquilo relativo ao que se perfaz, ou mesmo
ao que se está perfazendo diante de outrem e, assim, pode ser
percebido como um fato autônomo, está claro que envolve
certo desempenho, que alcança ou não o a fazer originalmen­
te intencionado. O que é perfeito é o que se completou, se
fez completamente de acordo com um a fazer original, reali­
zando uma intenção. Um dos termos técnicos mais utilizados
contemporaneamente na produção de vídeos é "render". O
anglicismo vem do verbo da língua inglesa "to render" que
poderia ser traduzido aproximadamente como concretizar. É
usado quando certa edição programada digitalmente em um
computador se consuma, ou seja, torna-se algo definitivo em
termos de imagem, não podendo mais se perder, como um
arquivo de texto de computador que é salvo e poderá ser aces­
sado de novo no futuro. Assim, quando o computador ter­
mina as operações de fixar aquela determinada edição ele, no
jargão, a "rende", ou a concretiZa.. Pois bem, no sentido que
emana dos estudos linguísticos, mas pode bem ser aproveitado
na dimensão espetacular, uma ação - performance, cena
dramática ou coreografia - se perfaz quando se completa
diante do observador a quem alguém se propôs a apresentá-la.
É nesse sentido que aqui se sugere como um termo opera­
dor na leitura da cena contemporânea, tomada nessa ampli­
tude que se vem destacando, a expressão composta "desem­
penho espetacular" . Aplicado a uma cena concreta ele supõe
analisar as circunstâncias e a qualidade do que foi perfeito em
condições espetaculares. Por um lado, poder-se-ia aproximar

13. Ver Bernstein, 2005.

97
a noção de desempenho espetacular à de mimesis, já que neste
conceito milenar também está em jogo, pelo menos em sua
compreensão clássica, associada à representação realista da na­
tureza, a questão da eficácia e de como um efeito pretendido,
no caso o da verossimilhança na exposição de uma determina­
da realidade, se efetivou ou não no seu destinatário. Por outro,
que é mais pertinente à cena contemporânea, já que esta em
geral não opera na lógica do sentido e do reconhecimento de
referentes anteriores, deixando de carecer de verossímeis per­
suasões, a análise do desempenho espetacular poderá ser to­
mada como um comentário distanciado sobre o que se perfez
espetacularmente, levando em conta menos os aspectos persu­
asivos de uma realidade a ser concretizada diante dos olhos do
espectador, e mais o que efetivamente se apresentou a despeito
de intenções previamente existentes ou finalidades buscadas.
Alguém dirá que muito da produção espetacular da perfor­
mance ou do teatro contemporâneo, que trabalham em chaves
antimiméticas ou antidramáticas, não pretende persuadir nin­
guém de nada, nem tem propriamente intencionalidade ob­
jetiva. De fato, mas essa desambição cognitiva e de finalidade
não isenta um evento espetacular de, impactando um obser­
vador (ainda que na ausência de qualquer impacto), efetivar-se
ou não, concretizar-se diante dos olhos de seus espectadores
com maior ou menor intensidade, maior ou menor confiabi­
lidade. Nós não precisamos estar em busca de uma mensagem
ou de um sentido para aceitar ou recusar algo que se nos apre­
senta espetacularmente. Ou nos submetemos à sua capacidade
de se impor como um fato, ou não nos impactamos, a ponto
de nem sequer considerarmos nos deter sobre ele. Sobre esse
ponto é interessante recordar a distinção que Aristóteles esta­
belece na "Retórica'' entre os aspectos silogísticos de um dis­
curso e seus aspectos externos, que poderíamos chamar de es­
petaculares. Se nos livros I e II do tratado tudo que Aristóteles
nos diz é referente à importância de um discurso logicamente
consistente para se obter a persuasão de nossos interlocutores,

98
seja nas deliberações da justiça seja nas políticas, no livro 111,
em que se detém sobre os ditos aspectos externos, admite uma
série de situações em que a força de persuasão de um discurso
se afirma também, e principalmente, pela forma dessa apre­
sentação, por meio daqueles elementos que hoje chamaríamos
de espetaculares e passam ao largo de qualquer raciocínio lógi­
co ou de qualquer correspondência semântica14• Vale também
recordar o comentário da "Política" que qualifica a mimesis
musical como mais pertinente do que a mimesis pictórica para
caracterizar os estados de espírito humanos (raiva, amor tem­
perança), pois suplanta o plano cognitivo ao atingir direta­
mente o âmago do receptor, alcançando o seu reconhecimento
daqueles sentimentos mais pela epiderme, ou pela sensibilida­
de auditiva, do que pela figuração visual1 5•
Feitas todas essas considerações preliminares, e antes de
analisar as obras de alguns artistas contemporâneos, vale dar
um exemplo de como a ideia do performativo pode ser tra­
balhada nessa perspectiva menos literal, de ser associada ao
gênero da performance, e sim ser percebida quase que como
uma marca de toda produção experimental contemporânea,

14.'"[ ... ] São, por conseguinte, três os aspectos a observar: são eles volume, harmonia e ritmo.
Aqueles que, entre os competidores, empregam estes três aspectos arrebatam quase todos
os prêmios; e tal como os atores têm agora mais influência nas competições poéticas
do que os autores, o mesmo se passa nos debates deliberativos devido à degradação das
instituições políticas. [ . . . ) Além disso a representação tearral é algo inato e o mais despro­
vido de técnica arrística, enquanto na expressão enunciativa é um elemento artístico. Por
isso, os atores, que são melhores neste aspecto ganham e tornam a ganhar prêmios, tal
como os oradores, no caso da pronunciação. Na verdade, há discursos escritos que obtêm
muito mais efeito pelo enunciado do que pelas ideias". (Aristóteles, 1 998, p. 176-177.
1 5. "Ritmo e melodia oferecem imitações de raiva e gentileza, e também de coragem e tem­
perança, e de todas as qualidades contrárias a estas, e de outras qualidades de caráter, que
dificilmente não apanham as reais afecções como sabemos de nossa própria experiência,
pois ouvindo esses efeitos nossas alm� se modificam. O hábito de sentir prazer ou dor
com uma mera representação não é muito distante do mesmo sentimento sobre reali­
dades; por exemplo, se qualquer um se deleita com a visão de uma estátua só por sua
beleza, necessariamente se segue que a visão do original seria prazerosa a ele" (Aristóteles,
1 340a19, 1984, p. 2 1 26).

99
principalmente aquela que opera no que viemos constituindo
como campo antidramático.
Em muitos espetáculos contemporâneos de teatro, princi­
palmente aqueles concretizados em processos que se preten­
dem colaborativos, mas não só nestes, é comum perceber uma
tensão entre o fio da narrativa dramática, tecido a partir de
uma peça anterior ou de um tema ou referência literária, e a
própria textura do espetáculo, considerada esta como a série
de camadas significantes que se podem j ustapor e sobrepor
umas sobre as outras. Estas camadas podem ser estritamen­
te ligadas aos atores ou atuadores que estiverem envolvidos
naquela apresentação, ou dizerem respeito aos criadores não
presentes, o encenador e sua equipe de apoio, quando ela hou­
ver. São ações paralelas à trama, e estranhas ao que se pode­
ria considerar como o padrão dramático de uma ação. Não
derivam de um eixo de que fossem reverberações, e se ante­
põem a ele, autônomas e contraditórias. Não se confundem
tampouco com o histórico e datado teatro épico de Brecht
- em que a ideia de uma interpretação distanciada, quando
os atores combinam e contrapõem momentos em que estão
imersos no personagem integrado à ação dramática com ou­
tros em que se distanciam dele e atuam como comentadores
críticos de suas ações e mesmo da ação geral do espetáculo - já
que não s� expressam no plano estritamente cognitivo. Nessa
característica contemporânea o que ressalta é exatamente o
caráter performativo das ações dos criadores - atores ou en­
cenador - no sentido de evidenciarem, para além da trama
e de qualquer consideração crítica sobre ela, o próprio fato
de seu desempenho diante do público, como se fosse impos­
sível apagar essa evidência. Se o teatro realista buscou com
todas as forças a ilusão do público quanto às circunstâncias em
que se encontra, diante de um espetáculo, essas manifestações
contemporâneas têm como característica ímpar esse jogar luz
sobre o ato performativo em curso, o que muitas vezes de­
sestabiliza qualquer leitura dramática e, na maioria dos casos,

1 00
destrói mesmo a possibilidade de que ela venha a ocorrer. É
como se o tema central na teatralidade desses artistas fosse esta
ênfase no que se está fazendo imediatamente, no aqui agora
diante do público, e nos remetesse a intenções semelhantes
verificadas em tentativas antidramáticas que se deram ao lon­
go do século XX no plano da própria literatura dramática,
como é o caso do teatro de Gertrude Stein, que será comen­
tado adiante. O traço performativo do teatro contemporâneo
diz respeito a essa pulsão que como uma gravidade excedente
puxa todos os sentidos de um espetáculo para a situação pre­
sencial, contrapondo-se, rivalizando ou até eliminando com­
pletamente qualquer sombra de narrativa dramática. O que
se narra é, pois, essa presença, contaminada eventualmente de
traços fragmentários de referências externas, dramáticas, lite­
rárias ou puramente visuais e iconográficas. É evidente que
essa característica, comum tanto a espetáculos teatrais como a
performances realizadas em museus ou, ainda, a todos os tipos
de performatividade espetacular que se abrigam nos campos
irrestritos da, por exemplo, "live art", podem ser associados
ao fenômeno da performance. Provavelmente a perspectiva
fortemente presencial, e de atualização em tempo real que foi
uma das bandeiras da performance nos anos 1 960, quando
este gênero se conformou institucionalmente, tenha colabo­
rado decisivamente na afirmação dessa tendência. Por outro
lado, é importante extrapolar esses limites categóricos e perce­
ber como o espetáculo contemporâneo, principalmente aque­
le que se quer antidramático, trabalha fortemente esse aspecto
performativo e faz dele um dos elementos decisivos para apre­
endê-lo e analisá-lo produtivamente. Por isso mesmo, pensar o
desempenho espetacular de certo espetáculo ou performance
não é conferir a eficácia de seu sistema semântico, como se
estivéssemos recompondo os poderes confirmadores da mime­
sis realista, mas, simplesmente, atentos aos seus aspectos sin­
táticos (seu topos, seus deslocamentos, suas proximidades e
distâncias), performáticos (seus lances performativos, o que de

101
fato se apresentou e se fez presente) e históricos (a margem de
invenção que viabilizam) poder avaliar as condições em que se
perfazem, ou como repetem a forma espetáculo enquanto di­
ferença. É nessa perspectiva que se propõe a noção de mimesis
performativa, como aquele fenômeno que, independentemen­
te de reconhecimento e de encaixe em um esquema referencial
do observador, o arrebata pelo seu perfazimento e o obriga a
operá-lo como um jogo em aberto, ou como uma ficha que
orbita incansável sem fixar-se em um destino final estável.

4 - A D IALÉTICA DO AUTÊNTICO E DO VEROSSÍM I L

A realidade, como percebida pelos indivíduos, tem uma


estabilidade de formas e cores e planos. Se, por acaso, por
alucinação através de substância química ou dissociação psí­
quica, eu começasse a desconfiar da realidade percebida, em
que habito e onde me sinto vivo, e perdesse a crença na mes­
ma deixando de confiar nela, pode-se dizer que teria deixado
de percebê-la como verossímil, ou críveL Da mesma forma,
quando assisto a um fil me, a uma peça de teatro, ou a uma
performance artística preciso confiar no que estou vendo para
não me desinteressar, j ulgá-las falsas, mentirosas ou impossí­
veis. Se eu não acreditar nelas como existentes, reais, ainda que
se me apresentem na forma de uma presença física concreta,
de objeto ou pessoa, não haverá relação possível e a interação
com as mesmas estará seriamente comprometida. Então, não
é o fato por si de ser uma cópia, ou uma imitação da realidade,
que compromete a comunicação e a aceitação daqueles fatos
apresentados diante de mim, mas a sua incapacidade enquan­
to realidade artificial, produção simbólica, ou realidade dada
de se mostrar verossímil. Nesse sentido, pelo menos do ponto
de vista do espectador leigo, não se diferenciam substancial­
mente as performances "autênticas" de um artista que se corta
diante de uma plateia, e as de um mágico que, explicitamente,
pretende me iludir com os seus truques. Em ambos os ca-

1 02
sos, o termômetro da minha aceitação do que se me apresenta
dependerá da minha crença, ou daquelas ações se mostrarem
verossímeis, ainda que no primeiro caso trate-se de uma ação
irreversível e, no segundo, de um faz de conta. Quanto mais
convencional for esta realidade fingida - vaudeville, circo,
ópera - mais simultaneamente à crença haverá a consciência
de que algo está sendo simulado, ou seja, de que a realidade
que está se apresentando é, digamos, de segunda mão. Quanto
menos convencional for a representação - performance im­
provisada, intervenção urbana, cinedocumentário -, menos
algum traço eventual de simulação da realidade estará explici­
tado e mais permanecerá pendente a dúvida sobre a realidade
do assistido, mesmo quando se tratar. de algo absolutamente
autêntico. Mas, nos dois casos, o que garantiria que a recepção
se efetivasse seria a crença de que o que se apresentou tem
existência potencial. Quando possui um caráter abertamen­
te artificial (desenho animado, melodrama de Hollywood),
conseguiria suspender minha descrença, ou minha consciên­
cia quanto a essa artificialidade de forma superficial e branda.
Quando estivesse fora desse quadro de confirmação realista,
tratar-se-ia de mostrar-se viavelmente autêntico de maneira
mais efetiva e duradoura. Mas, em ambas as circunstâncias, é
possível sugerir que para uma criação se efetivar em seu recep­
tor seria sempre essencial que se mostrasse capaz de se afirmar
como um existente, mesmo que nem sempre isso quisesse di­
zer ser verossimilhante.
Ao mesmo tempo, pode-se observar o paradoxo de que,
em um mundo potencializado pela virtualidade digital e pela
multiplicação sem precedentes das formas de construção e exi­
bição de ficções e realidades artificiais, mais do que nunca está
colocado o pressuposto de que o verossímil é mais relevante
do que o verdadeiro em termos da eficácia da comunicação.
Talvez o exemplo mais eloquente disso sejam as inúmeras
mensagens golpistas que, a cada minuto, tentam se passar
por verossímeis aos usuários da internet com a intenção de

1 03
lográ-los, mas, também, valeria recorrer ao exemplo çlas cam­
panhas políticas nas quais, para além de uma ética da verdade,
vale mais fazer crer numa mentira do que fracassar, e perder o
poder, na tentativa de expressar algo verdadeiro. De fato, antes
de qualquer discussão de caráter lógico ou filosófico sobre o
"real", pelo menos no que diz respeito à produção ficcional na
televisão, no cinema e nos vários meios de difusão de realida­
des artificiais que a revolução tecnológica em curso está pro­
vocando, o que é inegável é a relevância do mecanismo veros­
similhante na operação de todo este sistema de comunicação.
Poder-se-ia arriscar dizer, inclusive, que só a verossimilhança
viabilizaria a crença dos homens nas coisas, sejam as artificiais,
como as projetadas nos meios de comunicação, teatros e mu­
seus, seja as da própria realidade cotidiana. De certa forma ela
seria anterior à verdade - esta se perquirida numa perspectiva
filosófica como a princípio sendo objeto da lógica, ou só com­
provada, a cada caso, em bases científicas. A fruição do veros­
símil é direta, sem intermediários, como a própria linguagem.
No que diz respeito à crença no que se apresenta, não há meio
termo: ou ela se dá, ou o apresentado não se afirma como real,
ou existente. Ou o que está diante de nós tem a eficácia de nos
convencer, mesmo que não seja real e só pareça verossímil, ou
será ignorado pela ineficácia de sua presença, ainda que tenha
uma existência concreta. É exatamente por conta da dualidade
na fruição da ficção dramática, em que os termos definidores
sempre são um objeto observado e um sujeito observador, que,
se não fosse por tudo que se desenvolveu até aqui neste livro,
interessaria observar o conceito de mimesis, considerado como
portando em si esta ambiguidade e implicando numa dialética
entre o verossímil e o autêntico. Se na vida real a autenticidade
poderá se impor ao inverossímil - a impressão digital que livra
o suspeito de assassinato apanhado no local do crime - no reino
da mimesislpoiesis dramática, a autenticidade nunca foi um pres­
suposto necessário para efetivar a crença, ou suspendê-la. Ao
contrário, no campo do espetáculo os dados periciais não são

1 04
decisivos. Ali, como no faz de conta praticado por qualquer
criança, é a imaginação e as potencialidades que ela atualiza
que municiam a verossimilhança.
A valorização da não representação e de uma autentici­
dade pura, como objetivos da arte contemporânea, ou a já
mencionada hierarquia de reais que hipervaloriza a realidade
dada como matéria-prima preferencial, em contrapartida aos
cada vez mais sofisticados estratagemas de criação de verossi­
milhança nas ficções, sugere a pertinência de se pensar numa
sobrevida da dialética do autêntico e do verossímil para além
da poética dramática, e imaginá-la ainda potencialmente ope­
rante numa poética cênica sem drama e sem ficção.
Desde o romantismo, como já se pontuou, a arte se distan­
ciou da perspectiva da mimesis, que de diversas formas tinha
fundamentado a criação artística até então. Nas formas estéti­
cas contemporâneas, essa tensão entre autenticidade e falsida­
de, ou original e imitação, aparentemente se enfraqueceu. O
verossímil ter-se-ia tornado um aspecto secundário, opcional,
associado às propostas artísticas conservadoras, já que não se
trataria mais de imitar realidades, mas sim de apresentá-las
como coisas originais, ou colhidas diretamente da realidade,
de qualquer modo irreconhecíveis ou não encaixáveis cogni­
tivamente. Pode-se dizer, porém, que, levando em conta os
artistas que serão analisados no próximo capítulo, não só o fe­
nômeno da mimesis não deixou de guardar alguma relevância
para apreendê-los, como a dialética do verossimilhante e do
autêntico, em novos termos e negativamente, ou com a ve­
rossimilhança como um termo ausente no processo de auten­
ticação, ainda manteria alguma participação no fenômeno
receptivo de fruição dos objetos de arte, sejam os pictóricos
e esculturais, sejam os espetaculares e cinematográficos. Se no
plano da cultura de massas, o projeto de representação da vida
descrito na "Poética'' continua sendo hegemônico, realizando-se
de forma cada vez mais plena graças aos crescentes recursos
tecnológicos de simulação, um certo teatro (dito pós-dramáti-

105
co, pós-moderno ou contemporâneo) que nega radicalmente
a perspectiva mimética, ou dramática, ao dar-se a prospectar
um "real" mais legítimo, ou mais poético, debruça-se cada vez
mais sobre a própria realidade dada em busca de uma auten­
ticidade direta. Assim, se a maioria da produção espetacular,
que é ainda dramática, continua a buscar a parecença com a
vida, sua narração e apresentação com o maior grau de ve­
rossimilhança possível, despreocupada dos artificialismos de
que precise lançar mão para fazer-se crível, no estrito campo
que aqui interessa e será prospectado a seguir, da margem de
invenção possível em uma produção que recusa radicalmente
o dramático, a referida dialética pressupõe uma autenticidade
que, se se projeta para além do verossímil, não deixa de carecer
dele, indiretamente, como um termo alternativo de articula­
ção. Ainda que ausente, ou intangível, o verossimilhante atua
como uma sombra na recepção das obras, só reali�ada, como
se pretende apontar, na comprovação de uma efetiva indeter­
minação do enunciado artístico diante do observador.
Nesta seção interessará pois, também, testar a hipótese de
haver nas formas espetaculares contemporâneas de cunho per­
formativo - seja naquelas estritamente teatrais, seja nas de um
campo mais amplo das artes visuais e performativas - uma
sobrevida da dialética entre o autêntico e o verossímil ainda
operando em novas bases ou termos.
Como já se disse, na comparação com as outras arte$, o
teatro, principalmente aquele que almeja representar o real,
padece da dificuldade de ter a realidade bruta da vida humana
como o paradigma a ser igualado. Ao contrário da literatura,
da pintura e da música, que se constroem como linguagens
sem esse termo de comparação tão desfavorável e mais como
derivações linguísticas imagéticas e sonoras dos referenciais
mundanos operantes no imaginário dos receptores, a cena
realista compete em permanente desvantagem com a realidade
original simultânea e presente. Daí terem-se criado, desde a
Antiguidade, uma série de artifícios para constituir ações crí-

1 06
veis a serem tomadas como se fossem a própria vida e se mos­
trarem autênticas aos seus observadores. Essa condição torna
única a mímesís dramática, ou teatral, de fato tão singular que
ela encarna por vezes, como já se enfatizou, a própria condição
mimética. Pois bem, toda a tradição constituída no século XX
de negação do teatral pela via da negação do dramático, ou da
ficção, representou um enfrentamento desse dilema e a tenta­
tiva de superá-lo, agregando à cena, e à sua construção como
linguagem, a liberdade frente a essa ingrata âncora em que se
acarretava a missão de repetir a vida como ela, supostamen­
te, o fosse. Não ser dramático, não constituir ficção ou arco
de ação definida, libertaria a cena de se justapor ao mundo
e aos que o habitam como semelhança invejosa da sua vita­
lidade. Nesse contexto de reação ao dramático, os elementos
constitutivos da linguagem cênica de algum modo se afasta­
riam da função semântica e passariam a operar como sintaxes
tempo-espaciais despidas de correspondência, gerando objetos
ou ícones autônomos de qualquer referência. Ao contrário da
lógica do realismo dramático - mundo existente como base
do mundo representado -, no caso de alternativas antiméticas
ou antidramáticas a cena adquiriria uma característica nova
e ímpar, principalmente quando implicasse numa linguagem
que não se quisesse mais representativa e almejasse a própria
condição de realidade - metafísica do concreto artaudiana,
arte da performance, arte como veículo, de Grotowski, arte do
movimento de Craig - ou, ainda, que concorresse com a rea­
lidade dada querendo-se simultânea e alternativa a ela, como
as mais contemporâneas contaminações do "real" o propõem
(Féral apud Ramos, 20 1 2) . A sugestão aqui é que o jogo de
confirmação, dependente da crença no que se vê, continue
operando. A diferença é que, tudo o que no puro realismo era
recalque diante da matéria bruta do real torna-se trunfo orgu­
lhoso, que se apresenta de igual para igual com a realidade, se­
jam situações confundidas com a mesma, sejam formalizações
abstratas. A mímesís, com seu inevitável caráter secundário, de

1 07
ser necessariamente repetição, coisa humana diante de huma­
nos ou duplicação espetacular da vida e do vivo, passa a almejar
um apresentar-se inaugural, como primariedade, livrando-se
da pecha de imitativa e propondo-se performativa. Mas se já
prescindiria de se fazer crível, diante de um modelo anterior
(Platão), continua precisando ser autenticada como realida­
de objetiva. A negação formal do artifício dramático positiva,
portanto, o resgate do real incorporando o tempo cênico ao
tempo do que é vivo e pulsa indiferenciado dele.
No caso das outras artes, em suas formas contemporâne­
as - instalações, performances, sites-specifics -, despojadas do
preconceito que nutriam pelo teatro e cientes da possibilidade
de, simultaneamente, encenarem e negarem o dramático, ou o
fio narrativo, vislumbram nessa apresentação do mundo sem
mediação (ou quase, já que sempre ocorreria uma mediação
mesmo sem maior ênfase na duplicação) um caminho. Bus­
cam a outrora ingrata dimensão do espetáculo, que concorre
com o fluxo do mundo e antes era cativa do teatro. Nessa nova
circunstância a dialética da verossimilhança e da autenticidade
se adapta e se renova, passando a aplicar-se não só ao território
do realismo teatral, mas a todas as manifestações artísticas que
ambicionam serem reais e como tal se confundirem no plano
da vida. Mesmo assim, ainda aqui o mecanismo de legitima­
ção do que se apresenta, ou pelo menos do que se legitima
como obra artística a merecer consideração, dependerá da car­
ga de autenticidade de que se disponha no ato da entrega e da
recepção.
Uma escultura tipicamente minimalista, que não pretenda
constituir uma figura ou remeter a qualquer forma conhecida
e que se coloque como objeto em relação num espaço público,
poderá ser tomada pelo serviço de limpeza como uma excres­
cência a ser varrida e não como uma obra de arte. Nesse caso,
vale perguntar qual seria o impacto eficiente: os lixeiros reco­
nhecerem aquele objeto como portando uma aura de obra de
arte ou tomarem-no como lixo e levarem-no embora?

1 08
Considerando o programa minimalista e sua ambíção de
suplantar a ideia de uma representação pictórica e escultu­
ral, colocando suas obras em relação a seus receptores sem
um único caminho de leitura a ser cumprido, pode-se dizer
que qualquer uma das alternativas seria legítima. No caso de
acreditarem que se tratava de uma obra de arte, o objeto ali
disposto teria se imposto pelo que era de fato, a despeito da
ignorância dos receptores quanto à história da arte e ao proje­
to minimalista, e sido respeitado como monumento. Na op­
ção oposta, de tomarem o objeto como um autêntico corpo
estranho ao ambiente (lixo) e levarem-no embora, de algum
modo, também teria havido eficácia nos efeitos pretendidos.
Teria parecido verossímil aos lixeiros que aquilo não era uma
escultura, e sim um objeto posto em relação com eles a ser re­
cepcionado de acordo com suas próprias disposições. O exem­
plo é talvez um exagero retórico {a despeito de fato semelhante
ter sido noticiado em São Paulo), mas ilustra bem que tipo de
ambiguidade no que diz respeito à dialética do autêntico e do
verossímil pode subsistir na arte e nos "teatros do real" con­
temporâneos. Nestes, as obras querem ser confundidas com a
realidade dada, "camufladas" na matéria do real como se a ela
pertencessem sem solução de continuidade. Se as vanguardas
ambicionavam fundir arte e vida, agora essa fusão surge como
um golpe da linguagem, dispondo de diversos meios e quase
rebaixando o "ready made" - pleno de frescor no achado bri­
lhante de Duchamp - em maneirismo e afetação. Isto se aplica
tanto às formas contemporâneas antimiméticas de interação
artística - Tino Sehgal, por exemplo - quanto àquelas experi­
ências teatrais ou performativas antidramáticas, próximas do
documentário ou que pretendem abolir toda representação.
A dialética do autêntico e do verossímil, já não mais pensada
no contexto do projeto realista, da construção artificial de
realidades verossímeis, e de uma eficácia direcionada a fins
conhecidos, permanece, portanto, talvez, operante em todas
essas manifestações já não mais representacionais à revelia de

1 09
seus criadores. A diferença é que nessa nova configuração, sur­
ge como elemento característico dessa operação, e talvez como
índice do espírito do tempo, ou da "estrutura de sentimento" 16
de nossa época, um movimento de oscilação permanente, ou
um indefinível veredicto em relação à autenticidade das obras.
Quando a convenção autorizava e pressupunha o artifício, e
a mimesis era um processo natural, a efetivação da autenti­
cidade só dependia da verossimilhança, e consequentemente
do apresentado ser reconhecido como um possível, de ocor­
rer o encaixe da mensagem na consciência do receptor. No
momento em que se assume haver uma crise no projeto da
representação, e que tanto o teatro como as artes plásticas bus­
cam uma autenticidade para além dos artifícios, a antimimesis
ou a pulsão antidramática passariam a pressupor a efetivação
dessa autenticidade fora da esfera da verossimilhança, quase
como um possível incognoscível, ou que não se deixa rçco­
nhecer. Realmente, essa disposição não consegue se realizar de
modo pleno, já que_ permanece operando na recepção dessas
obras um mecanismo instável de aferição que põe em dúvi­
da a legitimidade dessa imagem, disso que se dá a ver sem
reconhecimento. Pode-se dizer que é essa oscilação intrans­
ponível, como uma biruta fadada a ser sempre movimentada
pelo vento das circunstâncias receptivas, ou essa condição de
indecibilidade na efetivação da mimesis que demarca muitas
das tentativas artísticas contemporâneas.
É curioso pensar que o fardo da mimesis de concorrer com
o real, e que, como se sugeriu, alimentou o difuso sentimento
antiteatral desde a Antiguidade, tenha desembocado contem­
poraneamente na radicalização antimimética e antidramática
proposta por muitos artistas do século XX, e na própria exten­
são desse peso, agora compartilhado também pelas artes visu­
ais e plásticas em geral. Tomar consciência disso é um passo

1 6. Cevasco (200 1 , p. 1 5 1 ) define o reemo "esrrurura de sentimento cunhado pot R.aymond


Williams para descrever a "relação dinâmica entre experiência, consciência e linguagem,
como formalizada e formanres na acres, nas instiruiçóes e rradiçóes".

1 10
importante para se pensar a mimesis hoje não mais de forma
seletiva e compartimentada, diferenciada nas respectivas espe­
cializações - o que Aristóteles chamou de meios de imitação
-, mas amplamente, enquanto mimesis performativa, e abar­
cando manifestações artísticas que busquem, nas margens de
invenção possíveis, alguns elementos comuns, e, entre eles, o
convívio, ainda, com uma dialética do autêntico e do verossí­
mil operante nos seus processos de recepção.

lll
IV
INVENTORES DE
NOVAS FORMAS DO E S PETACULAR

1 B I LL VIOLA E A
-

CAPTAÇÃO ELETRÓNICA COMO MIMESIS

m artista paradigmático da arte contemporânea, no que


Uela se confunde com a cena contemporânea numa pers­
pectiva expandida, e também, sobretudo, pertinente ao cam­
po das chamadas "live arts" é o norte-americano Bill Viola.
Observada a partir de uma recente e expressiva exposição re­
alizada no Grand Palais, em Paris, em 20 14, ou, retrospec­
tivamente, desde seus primeiros trabalhos há quarenta anos,
sua produção se oferece como um exemplo acabado do que se
vem conotando como mimesis performativa e diferencial, com
evidente margem de invenção possível1 •
D e fato, a obra de Bill Viola afirmou-se desde o início como
uma produção do campo das artes visuais, transcendendo os
limites das artes plásticas e da performance, do cinema e das
artes cênicas. Mesmo com essa amplitude, avessa a enquadra­
mentos convencionais, tornou-se principalmente emblemáti­
ca do campo da arte do vídeo, constituindo-se historicamente

I . A obra de Bill Viola pode ser examinada no sítio oficial do artista: <www.billviola.com>.
A exposição retrospective no Grand Palais, em Paris, está disponível em <http:tinyurl.
com/viola20 14>.
nesse segmento por sua singularidade e, ao mesmo tempo, por
sua potencial intersecção com todas as outras modalidades ar­
tísticas. O que interessa aqui é pensar esta produção na pers­
pectiva da mimesis performativa. A sugestão para fazê-lo parte
do próprio Bill Viola quando, em um de seus primeiros textos
teóricos, em 1 975, propõe que

Gravar algo, eu sinto, não é apenas capturar uma coisa


existente como é criar uma nova. Eu quero ter mais que
um insumo nesse processo que simplesmente determinar
onde colocar a câmera. Uma postura ativa me permite
exceder minhas próprias limitações físicas e manifestar
minhas imaginações, que então me servem mais a real­
mente transformá-las do que apenas mudar as imagens
existentes dentro dos confins da tela do monitor (Viola,
2005, p. 33).

Esta disposição particular demarca o que há de notável e


único na perspectiva que Bill Viola construirá ao longo de sua
produção. Ele chama a atenção para a diferença, nem sempre
considerada, entre o cinema e o vídeo do ponto de vista de
seus desenvolvimentos técnicos. Enquanto o filme cinema­
tográfico desenvolveu-se basicamente a partir da fotografia,
como a sucessão de fotografias discretas postas em movimen­
to, o vídeo emergiu da tecnologia de captação de áudio. A
lógica que opera em uma câmara de vídeo é a mesma de um
microfone que apreende ondas sonoras, no caso captando as
imagens como ondas eletronicamente codificadas. Estas ondas
eram, a princípio, captadas como matéria do mundo natural
e gravadas como sinais de vídeo numa fita magnética, que os
retinha e os reapresentava como imagens televisivas. Enquan­
to a imagem do cinema é luz impressa em papel ou película,
a imagem do vídeo é onda captada. O fato de que hoje os
procedimentos criativos no campo do cinema e do vídeo mes­
clem os dois procedimentos de captação, conforme seus inte­
resses estéticos e suas condições orçamentárias, não invalida os

1 14
aspectos conceituais que a diferenciação de Viola sugere. Há
nessa ideia de uma materialidade do mundo reconstituída por
essas ondas que formam a sua "carne" imagética, uma implica­
ção temporal que distingue o vídeo do cinema e de seu aparato
de fotossensibilização. Como diz Viola (Ibid., p. 62) ,

[ ...] a imagem de vídeo já existia há muitos anos, ames


que fosse desenvolvido um meio de gravá-la. Em outras
palavras, é ao vivo e simultânea à experiência. Gravar não
é uma parte que integra um sistema. O filme não é filme
a não ser que seja rodado. O vídeo, contudo, é sempre
"um estar sendo vídeo", continuamente em movimento,
captando 30 frames, ou imagens por segundo." [... ) A te­
levisão existia, como o rádio o fez, como transmissão ao
vivo, dez anos ames que o vídeo fosse desenvolvido para
gravá-la. O vídeo está enraizado no ao vivo, no não grava­
do. Esta é a característica marcante dessa mídia.

Viola comenta, a propósito, um texto de Robert Arns sobre


o cinema e o vídeo como meios de produzir ilusão: ambos
dão a ilusão de uma experiência pela luz e pelo som, mas a
natureza de suas ilusões é diferente. No filme, a ilusão básica
é o movimento produzido pela sucessão de imagens paradas
piscando na tela. No vídeo, a ilusão básica é de paralisia: na
verdade, uma imagem parada não existe porque o sinal de
vídeo está em constante movimento, rastreando o mundo e
o reapresentando na tela. Como lembra Viola, a evolução
do vídeo deu-se no aprimoramento do controle sobre o
sistema de captação deste movimento contínuo, ou seja,
melhorando-se o seu próprio domínio sobre o tempo.
O vídeo, aceitando-se esta definição de Bill Viola, poderia,
pois, ser pensado como produção automática de mimesis.
Aquela captação de ondas produz uma conversão da mate­
rialidade do mundo em imagens que se reportam a ele, mas
já não são, propriamente, o mundo. Mais do que uma cópia,
como, aliás, nenhuma produção poética efetivamente o seria,

115
de fato, apreende-se, processa-se e transforma-se aquele mun­
do numa coisa nova. O que Bill Viola destaca, de qualquer
maneira, é que, a despeito desse automatismo que o botão de
"on" da câmera ligado estabelece nesta absorção da matéria
captada, coube-lhe construir uma poética fundada nessa po­
tencialidade. Em termos aristotélicos, às tekhnai mais habitu­
ais de construções poéticas que reapresentam a vida humana
aos olhos humanos - seja a dramática constituída pelo poeta
que compõe ações ou tramas através de diálogos e pressupon­
do atores para encarná-las, seja a épica que narra histórias ou
tramas diretamente prescindindo de atores e necessitando só
uma voz narrativa para apresentá-las - a arte do vídeo oferece
esta forma automática, eletrônica, que pode ou não ser polida
com uma edição e uma ênfase narrativa específica, mas que
se dará, no mínimo, diretamente, neste confronto da câmera
com o real. Um exemplo interessante, nesse sentido, é a obra/
vídeo de Bruce Nauman "Mapping the studio I (Fat chance
John Cage)", de 200 1 , quando o artista liga uma câmera infra­
vermelha em seu ateliê escuro, a deixa gravando por horas para
captar, além de ruídos e movimentos naturais - sons do vento
e da chuva, de cavalos relinchando, coiotes uivando, cachorros
latindo e trens apitando -, eventos dramáticos casuais como a
perseguição de um rato por um gato. Aqueles supostos silên­
cios preenchidos e o vazio de ações da maior parte da gravação
geram um ruidoso e animado vídeo, que registra imagens e
sons ambiente insuspeitos2• Necessariamente, uma captação
como esta registrará algo além da realidade estática do ateliê,

2. Nauman gravou uma hora por dia, durante vários meses e acumulou 42 horas de material
filmado. Ele colocou a câmera em vários lugares do estúdio e gravou perto de seis horas
em cada um deles. Na instalação que apresenta a obra essas imagens são projetadas simul­
taneamente em sere telas por seis horas, que integram a filmagem de um único dia. Para
"Mapping rhe srudio li (Far chance John Cage) ", Nauman manipulou as imagens das sere
telas ringindo-as com as cores vermelho, verde e azul, que vão mudando de uma para a
outra quase imperceptivelmente ao longo de quinze minutos. Disponível em: <WWW.rare.
org.uk/servler/rarecollecrion/Mappingrhesrudiol(farchoicejohncage).rnhr>.

1 16
um algo que sucede o que havia antes de ligar-se o "on" e an­
tecede o que restará quando se apertar o "off''.
Outro aspecto que essa aproximação da captação sonora à
captação em vídeo sugere, e que traz implicações interessan­
tes para a reflexão contemporânea sobre a mimesis, é o da fi­
delidade ao captado. O conceito de alta fidelidade surge para
qualificar aparelhos de reprodução sonora e, com a tecnologia
de vídeo migra para os produtos de reprodução de imagens.
Este desenvolvimento tecnológico culmina com a TV de alta
definição, que se torna um novo paradigma cuja implantação
paulatina se estenderá das grandes telas dos cinemas e dos tele­
visores caseiros para as pequenas telas dos computadores e tele­
fones digitais. O que cabe colocar no que diz respeito à mimesis
é que o padrão de autenticidade que esta tecnologia pretende
oferecer coloca em questão, potencialmente, o pressuposto da
construção de verossimilhança a partir da tessitura da ação pelo
poeta e transfere essa produção para a superfície da imagem e
para o instrumental eletrônico que a gera, cuja potencialida­
de de captação garantirá o seu efetivo reconhecimento como
fiel representante do objeto captado. Esta operação direta,
puramente eletrônica, não se confunde com a realizada pelo
cinema, quando, a partir de uma montagem, constrói-se uma
narrativa,_ seja realista, a partir dos procedimentos dramáticos
tradicionais e utilizando-se de personagens, seja aleatória, a
partir da justaposição de imagens desconexas, sem a pretensão
narrativa e para uma recepção mais sensorial. Nos d<?is casos,
a captação eletrônica, a partir do rastreamento de ondas da
materialidade do mundo e de sua conversão em sinais de vídeo
e imagem, contorna e elimina de imediato qualquer constru­
ção ou montagem. É evidente que estes dispositivos eletrônicos
podem ser utilizados convencionalmente, ou como no cinema,
quando são quase sempre ponto de partida para futuras mon­
tagens. Mas, no limite, e parece ser esta especificidade que Bill
Viola está interessado em explorar, eles oferecem a possibilida­
de de uma captação não mediada, ou mediada apenas por esse

1 17
filtro sensível às ondas. Ainda que repetindo um existente, esta
captação converte a matéria do mundo em linguagem visual,
ou nos termos aristotélicos, produz uma mimesis dessa mate­
rialidade, sem a mediação humana. Um bom exemplo para
confirmar essa hipótese é o trabalho de Viola "Chott el-Djerid
(Um retrato de luz e calor)" de 1 979, em que ele trata de cap­
tar o tipo de ilusão visual a que os olhos e sentidos humanos
são submetidos quando expostos ao sol e ao calor do deserto.
Como descreveu Viola:

Por meio de lentes teleobjetivas especiais, adaptadas para


vídeo, a câmera confronta a barreira final dos limites da
imagem. Em que ponto a ruptura das condições normais,
ou a ausência de informação visual adequada nos obriga
a reavaliar nossas percepções da realidade e realizar que
nós estamos olhando alguma coisa extraordinária - uma
rransformação do físico em psicológico? Acredita-se que
as alucinações são a manifestação de algum desequilíbrio
químico, ou biológico, no cérebro. Então as miragens e
as distorções do calor do deserto podem ser consideradas
alucinações da paisagem. É como se alguém estivesse, fisi­
camente, dentro do sonho de outrem (lbid., p. 5 5) .

Interessante que, captadas as imagens com as mesmas dis­


torções que um ser humano observaria se estivesse ali no lugar
daquele olho eletrônico, o resultado/obra é uma poiesis legíti­
ma, ou produção de mimesis, de um fenômeno de ilusão ótica.
Um tromp l'oeil produzido pela natureza é captado e torna-se
obra, linguagem, num caso notável de produção de mimesis,
como apontaria Costa Lima, em que a própria linguagem con­
forma o produzido para além de sua representação-efeito, ou
do que seria o seu reconhecimento como anterioridade reapre­
sentada (Costa Lima, 2000) . Para Viola a questão da percep­
ção é, portanto crucial, e não é por acaso que ele cita Blake:
"Se as portas da percepção fossem purificadas, então tudo apa­
receria ao homem como é - infinito" (2005, p. 60) .

1 18
O que está em jogo, no caso, é uma noção do olhar, ou da
visão, necessariamente condicionada pelas potências da sensi­
bilidade, ou seja, o que se vê e o que se mostra ou revela tem
mais a ver com os meios de se fazer ver e se ver do que com
alguma realidade intrínseca e estável anterior. O sentido atá­
vico da mimesis como fator inescapável ao convívio humano,
negado pela ideia da impossibilidade da representação como
correspondência necessária entre significante e significado, é
de algum modo reabilitado por Viola já que, além de não pres­
supor uma origem estável, e, ao contrário, assumindo o em­
bate com a materialidade do mundo como ponto de partida,
reapresenta o mundo a um novo exame. Nunca como cópia,
mas como realidade processada e revista em termos poéticos,
enquanto interação do criador com a natureza, que revela en­
tranhas insuspeitas e invisíveis de si mesma, só tornadas vi­
síveis pela interferência do olho eletrônico, que rastreia para
além dos sentidos humanos.
Esta ideia da câmera de vídeo captando automaticamen­
te (enquanto estiver ligada) o mundo, de que se utiliza Bill
Viola, configura uma transformação não mediada pelo olho
humano que produz mimesis, pois refaz, recondiciona, reno­
va, reapresenta mais limpo ou mais sujo, mais claro ou mais
escuro, um mundo dado anteriormente. A arte sempre foi,
no fundo, a expressão da alegria ou do horror humanos em
perceber e reapresentar o mundo em sua pureza ou voraci­
dade. Com os recursos eletrônicos de captação, ondas cap­
tadas e recondicionadas em sinais de vídeo, transformadas
em imagens, duplica-se o mundo sem exatamente copiá-lo,
reapresenta-se o transfigurado a partir de uma inexistência
anterior, ou de uma existência antes invisível - as ondas im­
perceptíveis ao nosso olhar que serão convertidas em imagem
- ou seja, produz-se mimesis no sentido mais cristalino: não
como pura imitação, mas como, literalmente, produção do
que antes não existia senão em potência, e é, feito produto,
atualizado.

1 19
É interessante, nesse sentido, pensar nas expenencias de
Antonin Artaud com o cinema, na década de vinte do século
passado3• Ali Artaud vislumbrou que a montagem cinema­
tográfica oferecia a possibilidade de uma sintaxe de imagens
mais próxima do sonho, ou de uma realidade transfigurada,
revelada para além da superfície ordenada das coisas e que po­
deria alcançar uma dimensão da realidade mais verdadeira, o
que aqui já se chamou de "metafísica do concreto". De al­
gum modo esta expectativa que ele depositou na linguagem
cinematográfica antecipou as visões que teria depois sobre um
novo teatro, explicitadas em textos da década de 1 930, como o
Teatro e seu Duplo, e a própria ideia de um "teatro da cruelda­
de" que fizesse aflorar a "carne do mundo". O que interessa, do
ponto de vista que vem sendo aqui desenvolvido, é perceber
que essa possibilidade de uma captação de imagens por esse
olho eletrônico que alcança uma materialidade física pulsante,
como partículas de onda invisíveis ao olho nu, certamente o
fascinaria. Como afirma Viola (20 14, p. 24) ,

A questão me parece ser, como fazer para que a câmera


olhe no interior do nosso espírito aquilo que nós não po­
demos ver com os olhos? Que são as miragens? Nós não
podemos ver com nossos olhos a mais de três quilômetros
de distância, mas com uma teleobjetiva sim, e aumentan­
do a imagem percebemos uma realidade diferente.

Outra comparação inevitável é com experiências cinema­


tográficas mais recentes, como as de Andy Warhol e Jonas
Mekas, nos anos 1 960. No caso de Warhol, além dos portraits
em movimento - recentemente retomados em vídeo de alta
definição por Marina Abramovic e Robert Wilson - destaca-se
o exemplo da filmagem de uma pessoa dormindo em tempo
real, que ao mesmo tempo banaliza o ato de filmar e explora a

3. Ver Anaud, 2005, capítulo "O cinema e a abstração".

1 20
potencialidade poética do ato involuntário do sono4• No caso
de Mekas, há o princípio da imagem como registro íntimo da
vida cotidiana, diário fílmico que se aproxima da ideia de um
documentário em tempo real da vida cotidiana, ainda que por
meio de uma decisiva incisão própria, exercida na montagem.
E é exatamente esta montagem que distancia os experimentos
de Mekas dos de Viola, já que o segundo não está valorizando
a .atualidade como acontecimento histórico, no sentido que
Walter Benjamin enfatizaria, de. narrativa da vida social, mas
de atualização das potencialidades materiais e físicas, que im­
plícitas nos processos naturais dão-se a ver graças ao aparato
eletrônico que se lhes antepõe.
As obras em vídeo de Viola também se distanciam do ci­
nema poético mais influente sobre a cena nova-iorquina no
início dos anos 1 960, o de Jack Smith, que será comenta­
do adiante. Um filme como "Flaming Creatures", apesar de
sua precariedade técnica e de realização, potencializou uma
perspectiva de elaboração poética de imagens que revisitava
as primeiras experimentações com o cinema. Smith compõe
tableaux próximos da alegoria e do que se poderia nomear
como neobarroco (e nisso antecipa boa parte da dita pro­
dução pós-moderna das décadas de setenta e oitenta do sé­
culo passado) . O filme é parceiro de um projeto de mimesis
como lente de aumento e de exploração de regiões desconhe­
cidas, mas não pela captação da materialidade do mundo e
sim como construção e montagem de imagens em movimen­
to, cinema puro. Seu caráter radicalmente experimental, sua
aproximação distanciada dos filmes pornôs, provocativa e in­
classificável ao mesmo tempo, não pode ser comparada aos
projetos de Viola, sempre despidos de características decorati­
vas. Smith trabalha a partir do kitsch; Viola é clássico e sóbrio

4. "Sieep" foi o primeiro filme de Andy WarhoL Realizado no dia 30 de maio de 1 963.
Consistiu na filmagem, com uma câmera Bolex 16 mm, do poeta John Giorno, amante
do artista à época, dormindo por seis horas. A filmagem foi realizada com rolos de I 00
pés. Ver em <http://www.warholstars.org/filmch/sleep.htmb.

121
em sua visão radical do vídeo e da arte. Mal comparando,
os dois artistas norte-americanos são tão distantes em suas
estéticas como Leonardo de Caravaggio, com o detalhe que
o segundo sucede historicamente o primeiro enquanto Smith
produz o principal de sua filmografia antes que Viola comece
a trabalhar com vídeo.
É certo também que o simples acionamento da câmera de
vídeo para captação de imagens não configura por si nada de
especial, a exemplo do que as câmeras de segurança podem
nos sugerir. Mas na perspectiva de uma mimesis performativa,
como a que Bill Viola desenvolveu em seus trabalhos em vá­
rios aspectos, até estas câmeras estáticas de vigilância podem
se mostrar produtivas. Numa obra de 1 996 - "Nove tentativas
de adquirir a imortalidade" -, que esteve na retrospectiva do
Grand Palais, ele faz um experimento com uma câmera de vi­
gilância de primeira geração, dos anos 1 980, que era utilizada
pelos bancos para filmagens noturnas em infravermelho e com
resolução em branco e preto. O trabalho, que tem duração
de 1 8 minutos e 1 3 segundos, projeta em uma tela suspensa
o rosto de Viola em um enquadramento fechado em branco
e preto, sucedendo-se nove "tentativas falhadas do desejo de
vencer a morte", como o artista sintetiza no catálogo. Efetiva­
mente o que ocorre ali é o ato performativo do artista, repeti­
do nove vezes, de prender a respiração até o limite suportável,
soltar o ar e voltar a prendê-lo em uma nova inspiração. Se­
gundo Viola, graças ao infravermelho da câmera de vigilância,
seu rosto adquiriu "uma qualidade particular, fantasmática" e
"as pupilas um negro muito vivo". Diz ainda que a "imagem
tem qualquer coisa de extraterrestre e sua granulação inten­
sificada dá a ela uma profundidade". Como comentou Kira
Perov, sua colaboradora de décadas, a respeito:

Trata-se de um autorretrato, e Bill o queria o mais íntimo


possível. O enquadramento é bem fechado e ele olha dire­
tamente para o espectador. Ainda que realizada em 1 996,

1 22
esta obra parece feita no início dos anos 1 970. Utilizar
esta câmera foi uma forma de voltarmos às nossas funda­
ções (apud Viola 2014, p. 34).

O que Bill Viola faz como artista desde o seu primeiro tra­
balho é servir-se de sua câmera, e das tecnologias disponíveis
nos campos da captação e da edição para além dos ganhos ob­
jetivos de definição ou realismo, como uma máquina poética
que produzisse mimesis eletrônicas inaugurais, expandidas no
espaço e tornadas instalações performativas, nunca antes pre­
senciadas por quem as acolhe. O que importa nestes trabalhos
não é tanto a técnica (ars) quanto a exploração do engenho
(ingeniu) implícito à natureza, que ele desentranha com ações
concretas, como a revelar um lado oculto do mundo, ou de
suas potencialidades físicas, algo antes inédito que emerge à
percepção extraído dessa operação incisiva. Assim, em sinto­
nia com os grandes artistas da Renascença, ele inventa modos
de revelar aspectos insuspeitos do mundo natural desenvol­
vendo dispositivos que exploram as potencialidades que essa
captação de ondas e os recursos narrativos da montagem ele­
trônica oferecem.

[ ... ] O aspecto de reprodução massiva das imagens de


vídeo é um fator importante para artistas, porque a ca­
pacidade manual/artesanal do registro preciso/correto,
tornada essencial no Ocidente, desde a Renascença, como
essencial às habilidades de um artista, não é mais, agora,
um tema, uma questão. Nós viemos observando seu de­
clínio desde a chegada da fotografia no século XIX. Há,
contudo, muitas pessoas hoje que ainda pensam que um
artista é alguém que desenha de maneira realista; de fato
o treino dado em muitas escolas parece coincidir com essa
percepção. Gradualmente, contudo, mais pessoas estão
realizando que o artista do século XX não é necessaria­
mente alguém que desenha bem, mas alguém que pensa
bem (Viola, 2005, p. 64).

1 23
De faro, a arte de Bill Viola, ou a cena que oferece aos
que visitam suas exposições, não é o fruto de uma simples
captação. Exatamente quando se vive uma época em que qual­
quer ser humano pode filmar o mundo infinitamente com seu
telefone portátil, Bill Viola produz, pode-se dizer, "grande
arte" a partir da decisão do que e como filmar, e das opções
de processamento, edição e apresentação do que foi filmado.
Nesse sentido, como nessa sua mais recente exposição em Pa­
ris, considerada a maior e mais expressiva retrospectiva dele já
realizada na Europa, reunindo vinte de seus trabalhos criados
entre 1 977 e 20 1 3, é possível constatar que, além de ser re­
corrente nas obras o uso de elementos naturais como a água e
o fogo, busca-se de forma intensiva interagir com o público.
Se opera-se com narrativas indefinidas, não exatamente dra­
máticas, busca-se com elas impactar os espectadores de for­
ma vívida e desconcertante. De algum modo, desenvolve-se
em cada uma das salas, ou ambientes, da exposição, a histó­
ria de um acontecimento a ser percebido, mas que transcorre
de forma sub-reptícia, com algo submerso ou subconsciente
pulsando em latência e sem nunca se revelar por inteiro. Este
aspecto pressupõe uma fruição continuada do observador na
experiência de contato com cada obra, em que se poderá, até,
descobrir um momento culminante e de poderosa sugestão,
claro o bastante para recompensar aquele que se quedar e tiver
a paciência de assisti-la em seu tempo integral, mas, também,
sutil o suficiente para não resultar em uma cognição fecha­
da, oferecendo-se apenas a uma apreensão anímica, próxima
da recepção musical. Os ambientes preparados de Bill Vio­
la têm assim características singulares frente a um padrão de
instalações de artes plásticas e visuais, em que os espaços e as
matérias estão dispostos com pouco mais que um título, ou
mesmo sem ele, para interagir com uma fruição sensível, sem
mediação de uma temporalidade regulada. Viola propõe, de
fato, mimesis performativas com durações exatas que implica­
riam o observador na apreensão de um todo, ainda que sem

1 24
uma leitura fechada e poroso a uma fruição ativa e subjetiva.
Nesse sentido, diferiria também dos ambientes predominantes
para difusão da arte do vídeo, em que há duração temporal e
narrativas mais definidas, como no cinema, e em que a ação
do observador interagente é mais passiva. Nas instalações de
Viola, não há um ponto de vista, assento, ideal a ser ocupado.
Alguém transita, medita, se deixa colher pela obra, mas sem
privilegiar necessariamente os olhos, ou o raciocínio. O visi­
tante atua na decifração de um mistério, menos como quem
percorre um conto policial, e mais como quem intui uma pre­
sença difusa e mergulha nessa imaterialidade intangível. A me­
táfora que Viola utilizou nessa retrospectiva em particular para
definir sua expectativa frente ao público foi a de uma viagem
sem destino certo:

Minha concepção de obra consiste em desenvolver tudo


até um cerro pomo, depois recolher-se e não terminar as
coisas de um modo absoluto" [ ... ] É preciso que o público
receba a obra de acre no ventre. No lugar de onde vêm os
bebês. É lá que se situa a origem primordial de uma obra
(20 1 4, p. 22).

Assim o percurso do observador será balizado, mas aberto


a muitos caminhos. Alguns passarão batido, outros restarão
longamente. Como diz Kira Perov:

as obras não propõe respostas. Elas apresentam questões ...


Se você se coloca um mesmo tipo de questão desejará fi­
car. Se você não se interessa continuará seu caminho. Mas
cada obra deve ser suficientemente aberta para que o es­
pectador possa completá-la por si mesmo em função de
suas necessidades (apud Viola 2014, p. 22).

Viola registra a natureza a partir de uma câmera parada,


mas quer captar o movimento irrefreável e imperceptível desta
physis, que à primeira vista aparenta imobilidade: um mor-

125
ro tomado a distância, um tanque de água, um horizonte no
deserto. Dialoga assim com a ideia de Gordon Craig da cena
como a "arte do movimento", que toma, por exemplo, os mo­
vimentos da luz do sol no mundo natural como um pressupos­
to construtivo. Craig ambicionará que essa "novà' arte porte
a potencialidade de ser "mil cenas em umà' e de encarnar um
movimento permanente, alcançando o dinamismo da luz e da
sombra em constante diálogo. De algum modo, este projeto
de Craig, do início do século XX, foi realizado objetivamente
nos espaços cênicos do artista encenador Robert Wilson, mas
está também materializado nos vídeos de Viola.
Nesse sentido, da aproximação da obra de Viola com a en­
cenação contemporânea, vale ainda citar um projeto recente,
que reverbera em dois dos principais trabalhos da exposição
de 20 1 4 no Grand Palais "F ire Woman" e "Tristan Ascen­
-

sion". Trata-se da cenografia que Viola fez para a montagem de


"Tristão e !solda" de Richard Wagner, feita pelo norte-ameri­
cano Peter Sellars em 2008. Sem assumir a condição de ence­
nador, Viola fez uma cenografia que ambientou a ópera de tal
maneira que o sempre autoral Sellars, por assim dizer, tirou a
mão e entregou o espetáculo às proposições programáticas do
artista. As opções de Viola desempenharam em favor da ence­
nação, principalmente por não ilustrarem o drama em curso,
mas criarem uma narrativa visual em paralelo, quase autôno­
ma e fundida com a música da orquestra. Além dos cantores
no palco, havia os seres humanos não nomeados e embebidos
na espiritualidade orientalista típica de Viola, agindo com os
elementos primordiais da água e do fogo, a contracenar com
eles. Algumas críticas apontaram o problema dessas ações hu­
manas em paralelo distraindo os espectadores da trama narra­
da. Outras perceberam nelas um suporte produtivo para que
houvesse um foco excedido sobre a música, em contraponto
à densidade voluptuosa do drama wagneriano, que tende a
forçar uma imersão absortiva do espectador como já foi des-

1 26
tacado5• De qualquer maneira, este é um exemplo definitivo
do caráter espetacular e performativo da obra de Viola, seja
por essa rara incursão na caixa cênica, seja pelas mais habituais
instalações imersivas, cada vez mais assumidas como espaços
ou ambientes de performatividade compartilhada, entre as
imagens registradas e alteradas temporalmente {os ralentares,
as paradas, as inversões de sentido) e as ações dos espectadores
também capazes de ver, e rever e imergir em cada uma dessas
obras. Enfim, Bill Viola não é um encenador, mas produz uma
arte viva, que tem no movimento a sua gramática.

2 - J UAN MUN OZ: A ENCENAÇÃO EM SUSPENSO

Juan Mu.fioz ( 1 953-200 1 ) não foi um artista do teatro. Sua


inserção no campo estético se deu nos meios da pintura e da
escultura pós-modernas, mesmo ele nunca tendo aceitado esse
rótulo e sempre preferido pensar-se como um artista múlti­
plo (desenhista, pintor, escritor e escultor), interessado nas
potências de afetação que sua obra pudesse ter sobre os seus
observadores6• Talvez por isso, foi possível inseri-lo na tradição
pós-minimalista que, na década de 1 990, propôs uma inflexão
na perspectiva relaciona! do minimalismo, resgatando na in­
teração com o púbico a possibilidade concreta de estabelecer
narrativas, figuras e jogos de linguagem.
Essa atitude bem definida rumo a certa teatralidade acom­
panha, parcialmente, as características relacionais do minima­
lismo, mas distancia-se da aspiração daquela escola de criar
objetos esvaziados de narrativa, preferencialmente de grande
porte e exibidos em áreas públicas. Reaproxima-se, de fato, da
fruição contemplativa em espaços preparados com potenciais

5. < h ttp: //www. theguardi a n . com/ music/200 5/apr/ 1 9/classicalmusicandopera>;


<http://bachtrack.com/ review-canadian-opera-company-tristan-sellars> ; <h ttp://
mosti yopera. blogspot. com. b r/2008/1 0/sellars-viola-tristan-and-isolde-in. h tml >.
6. A obra de Juan Mufioz pode ser acessada no sítio oficial do artista: <juanmunozestate.
com>.

1 27
efeitos ilusórios e significados latentes, ainda que nunca defi­
nitivos e caracteristicamente enigmáticos. Nas instalações de
Muiíoz o espectador é a peça-chave, porém sua contribuição à
obra não é aleatória e aberta como na lida com os objetos mi­
nimalistas, mas focada na efetivação de uma leitura, ainda que
inconclusiva, em que as "cartas marcadas", ou o truque ilu­
sionista implícito, se furtam a qualquer revelação fi n al. O es­
pectador para Muiíoz é "aquele que está em exposição" (apud
Potts, 2008, p. 1 1 2) . Vê o que está acontecendo, mas não pode
responder sobre o que seja, afinal, e não pode colaborar. Como
aponta Potts, "ao contrário do espectador que assiste a uma
representação teatral, o observador que na galeria se aproxima
de uma obra de Muiíoz é projetado para o espaço das figuras
escultóricas e é levado a tomar consciência da sua posição em
relação a elas, incluindo a sensação de ser excluído ou ignora­
do - um efeito que não existe no teatro, onde o público está
sentado no escuro, afastado da representação que se desenrola
no palco" (op. cit., loc. cit.). Aqui, ao contrário da absorção
completa sugerida por Fried, o que se tem é a opacidade das
manifestações mais radicais, ou antidramáticas da cena con­
temporânea. Muiíoz, de fato, queria que seus "cenários" fun­
cionassem não como representações teatrais que se dessem a
ver, mas, e nisso conciliava com os minimalistas, como situa­
ções que colocassem o observador "na posição de objeto" (op.
cit., loc. cit.). Como pontuou Potts, "para ele a ideia de teatro
implicava o pressuposto inegável de que o espectador se sen­
te excluído do cenário que está a ser montado" (op. cit., loc.
cit.) . Porém, diferentemente do projeto minimalista puro, que
apresenta um objeto em bruto, a exclusão do observador é fru­
to de uma narrativa que atrai a atenção, se revelando depois,
no curso da fruição, impenetrável e inalcançável.
São essas condicionantes da obra de Muiíoz que a tornam
particularmente interessante à investigação em curso. Na ótica
de uma "margem de invenção possível" que, para além de todo
antimimetismo e antidramaticidade subjacentes à arte do sé-

1 28
culo XX, restasse como alternativa aos artistas do século XXI,
as instalações de Mufioz são exemplares não só de uma sutil
persistência operante da mimesis, como da pulsão performati­
va nas franjas do que há de mais inventiva e iluminador nas
artes visuais contemporâneas. Mais do que isso atesta, a des­
peito da recusa do próprio Mufioz a se ver como se produzisse
teatro, uma afinidade explícita entre sua obra e a de encenado­
res que, como ele, têm problematizado os limites do espetacu­
lar e operado de forma incisiva sobre as potencialidades do ver
e do ser visto. Como disse, "os meus personagens postam-se
às vezes como um espelho que não consegue refletir. Estão ali
para dizer alguma coisa sobre nosso olhar, mas não conseguem
porque não nos permitem vermo-nos a nós próprios" (Mena,
2008, p. 1 25) .
Os autores que estabeleceram a fortuna crítica de Juan
Mufioz foram unânimes em pontuar o caráter narrativo de
suas obras. Um lugar comum nos textos escritos depois da sua
morte, principalmente aqueles que tinham caráter de divulga­
ção, foi o de caracterizá-lo como um contador de histórias. Essa
perspectiva o situava em um território intermediário entre a li­
teratura e o teatro, isso a despeito da inquestionável dimensão
escultórica e pictórica que se afirma em seus desenhos, estátuas
e instalações. O próprio Mufioz nunca alimentou a percepção
de seu trabalho como algo literário e rejeitou explicitamente
as analogias com a teatralidade, talvez porque sempre, quando
elas eram utilizadas, referiam-se a uma compreensão tradicio­
nal do teatro, como veículo de narrativas gêmeas da literatura
e estruturadas em tramas concatenadas e coerentes. Ao mesmo
tempo, Mufioz explorou sistematicamente as potencialidades
da relação entre a obra e seu espectador, enfatizando os efeitos
ópticos e de ilusão provocada que as situações espaciais por ele
criadas propiciavam, assumindo essa intencionalidade como
um desdobramento regressivo do projeto minimalista. Crer
no que se vê é um pressuposto necessário na recepção de suas
obras, o que se atesta, por exemplo, quando afirmou o dese-

1 29
jo de suspender a descrença do destinatário - "mesmo sendo
um clichê, continua a ser relevante: renunciar àquilo que já
sabemos, ainda que seja só por um momento" -, ou quan­
do pensou o olhar como clarividência - "temos de fazer esse
indivíduo acreditar por um segundo que aquilo que ele quer
acreditar é verdade. E talvez possamos transformar isso numa
outra realidade e surpreendê-lo" (Mufioz e Lingwood, 2008,
p. 145). É justamente essa confluência com a problemática
teatral, ou com a dialética de autenticidade e verossimilhança,
que torna interessante rever a obra de Mufioz na investigação
que aqui se desenvolve em torno do espetacular e do perfor­
mativo. Há pouquíssimas referências nos ensaios produzidos
em torno de sua obra, e nos poucos textos escritos que ele
deixou, sobre uma possível relação entre as formas mais aber­
tas da teatralidade contemporânea e os seus discursos plásticos
e visuais, pictóricos ou escultóricos,l. Ainda assim, revendo
essa obra e o contexto histórico em que ela se conformou, é,
de fato, possível tangenciá-la com os projetos de artistas do
campo teatral que fizeram do exame das questões implícitas
à condição espetacular o eixo de seus projetos8• Mais do que
engavetar Munõz como artista cênico, esse esforço pretende
comprovar a inexorável contiguidade das artes contemporâne­
as, não mais restritas aos limites estreitos que condicionavam
suas expressões disciplinares e propensas ao encontro em um
terreno comum e à indistinção de contornos.
Uma forma de abordar a produção de Mufioz do ponto
de vista da teatralidade - a par dos próprios posicionamen­
tos do artista frente a essa questão - é, ainda uma vez, re­
meter a Michael Fried, para quem o que está 'entre' as artes

7. Uma das exceções é o seguinte comentário de Manuela Mena: "Aqui vemos cenas seme­
lhantes às produções mais extremas do teatro moderno e aparentemente desprovidas de
qualquer relação entre as pessoas imaginárias no 'palco' e o espectador" (2008, p. 124- 125).
8. Em item posterior serão discutidos alguns dos artistas contemporâneos que, atuando no
campo do teatro trabalham uma mimesis performativa semelhante nas suas eficazes, mas
impenetráveis narrativas.

1 30
é exatamente o teatro, território da linguagem que careceria
de especificidade. Tendo já examinado a postura de Fried
em profundidade em item precedente, interessa aqui per­
ceber como a obra de Muííoz (como, aliás, a de artistas já
citados naquela circunstância, Jeff Wall, Anri Sala e Dou­
glas Gordon) ao mesmo tempo confirma e supera Fried,
atestando em sua historicidade as contradições e limi­
tações daquela crítica, voltada, à época em que foi fei­
ta, para a produção dos artistas minimalistas norte-ame­
ricanos, como Donald Judd, Robert Morris e Tony Smith.
Se Muííoz concorda com os minimalistas sobre os aspectos
interessantes que certa disposição espacial pode propor a um
observador que se coloque em risco de contato diante dela por
algum tempo, tem pouca afeição pela depuração formal implí­
cita a este ideal objeto relaciona! por eles proposto, enquanto
algo necessariamente não identificado e embebido em neutra­
lidade, o que implica necessariamente na recusa de qualquer
figuração. O mais interessante naquelas obras para Muííoz era
a ambiência que elas criavam. Ele compreende, por exemplo,
a perspectiva de Donald Judd quando este parte de Malevi­
ch e do esgotamento de qualquer referencial que vá além das
formas geométricas elementares, mas, para ele, segundo Potts,
a criação mais importante de Judd não eram seus objetos re­
tangulares expostos em museus ou em espaços abertos, e sim
a sua gigantesca e derradeira obra, misto de mostra artística e
intervenção cultural e ambiental, em Marfa, nos Estados Uni­
dos9. Isso, talvez, porque para Muííoz, mais do que uma rela-

9. O autor refere-se ao projeto de DonaldJudd realizado na cidade de Marfa, no estado nor­


te-americano do Texas, onde o artista, depois de comprar propriedades na área urbana, foi
adquirindo enormes áreas de terra, passou a realizar uma ocupação externa deste espaço
com séries de objetos regulares que se integram à paisagem natural, e a expor sua obra e de
outros artistas nas antigas construções rurais reformadas. "Se compartilhava com a geração
anterior de escultores minimalistas a preocupação com as interações de suas obras com o
observador, Mufioz opunha-se profundamente à ideia de interação participativa e, apesar
de fascinado pela encenação das dinâmicas sociais e dos seus fracassos com recurso a gru­
pos de figuras, afastou-se propositadamente das estéticas relacionais" (Potts, 2008, p. 1 1 2).

131
ção em aberto com o observador, o mais importante era con­
frontá-lo e propor-lhe uma narrativa, ainda que enigmática.
Fascinava a ele aquilo que Fried chamou de ficção suprema,
"o espectador que não está ali", e seu foco, portanto, era na
potencialidade latente que suas proposições esculturais, quase
sempre evocando estranhamente a figura humana, teriam ao
confrontar aquele que as viessem observar. A Muiioz apetecia
menos a relação aberta e inconclusiva do que a percepção di­
recionada pelo seu engenho enquanto ilusionista. Não que ele
se entregasse à ficção e à proposição de arcos dramáticos como
o teatro convencional. Apenas, o que lhe interessava nesses
confrontos era propor jogos perceptivos que, sem se fecharem
em temas ou sentidos conclusivos, propiciassem uma afetação
ao mesmo tempo difusa e precisa, em que não por meio de
ações bem demarcadas e personagens bem caracterizados, mas
sem dispensar ações imaginárias e identidades sociais presumí­
veis, evocassem enigmas indecifráveis. O que não se fecha na
encenação das instalações de Muiioz, ao contrário dos obje­
tos minimalistas, não é a figura, impossibilitada na opacidade
das formas puras, mas, em um contexto de observação visual,
qualquer trama que se depreenda da ilusão proposta. Há sim
uma narrativa, mas sem o suporte da literatura, ela permanece
incógnita. Há sim um espetáculo, mas irresoluto em sua latên­
cia estridente, não se desenvolve. Sem participar da ambição
das estéticas relacionais, que entregam ao observador a condu­
ção integral de uma inglória formação de sentido, as obras de
Muiioz são objetivas no que sonegam ao espectador e no que
buscam controlar o seu espanto diante do enigma que se lhe
coloca. Nos termos de Fried, são teatrais na medida em que
duram no tempo e dependem de um foco observador, mas,
de fato, embaralham os territórios do teatro, da literatura e
do pictórico. São teatrais, portanto, de maneira muito mais
provocante, já que resgatam elementos tradicionais da pintu­
ra, como os jogos perceptivos - em que Muiioz dialoga, por
exemplo, com Velásquez -, e atendem a questões críticas do

1 32
drama, corno ao dialogisrno indeterminado de Beckett, ou às
ações de personagens desamparados de autor, de Pirandello,
ou, ainda, mantém posturas eminentemente literárias, como
a ideia de um inventário de esquecimentos fundamentais, à
Borges. Em qualquer uma dessas facetas, reabilita, a meias, os
aspectos semânticos da linguagem no campo da escultura. Se­
gundo Potts, Mufioz levou essa tendência tão longe que, mais
do que escultural, sua obra "é uma fusão entre o palco teatral,
o espaço arquitetônico - quer seja quarto, umbral de porta, ou
rua - e a figura escultóricà' (2008, p. 1 1 1 ).
Mufioz sempre insistiu que sua obra não deveria ser iden­
tificada literalmente com o teatro, tampouco ser considerada
propriamente escultórica. Para Mufioz o termo teatralidade,
quando aplicado a sua obra, não deveria remeter necessa­
riamente ao que se conhece como teatro, ou pelo menos ao
que se veio aqui reconhecendo como a tradição dramática.
Segundo sua própria visão da teatralidade, "o que temos é um
mundo material para explicar outro mundo material e o es­
paço intermédio é o território do sentido" (op. cit., loc. cit.).
Ainda assim Potts, o comentador que mais se deteve sobre essa
questão, não minimiza o aspecto da teatralidade em sua obra.
Como disse, "essa relação complexa com o teatral está no cer­
ne de sua arte e estabelece-se com uma intensidade e uma au­
toconsciência verdadeiramente excepcionais, mesmo no con­
texto das experiências similares dos seus contemporâneos com
novos tipos de encenação escultórica. Ela é parte integrante do
poder emocional e do grande significado cultural da obra de
Mufioz" (op. cit., loc. cit.)10•
Para detalhar melhor o que arriscaríamos chamar de teatra­
lidade antiteatral, ou antidramática, das instalações de Mufioz,

I O. Porrs menciona os artistas - Katharina Fritsch, Thomas Sdütte, Stephan Balkenhol,


Charles Ray - que, nos anos 1 990, como Muiíoz, teriam promovido "um regresso curio­
so e teatralmente orientado à escultura figurativa. Para esses artistas a intensidade do
cenário humano com o qual o observador se confronta era mais importante do que
quaisquer questões formais uadicionalmente associadas à escultura" .

1 33
vale descrever algumas delas, a começar da mais eloquente, na
intrigante relação que estabelece com as artes cênicas. Trata-se
de "The Prompter" (O Ponto) , evocação da tradicional figu­
ra do teatro até fins do século XIX, que soprava as falas dos
atores em um tempo em que decorá-las não era uma prática
consolidada. A obra reúne alguns dos elementos recorrentes
na produção do artista, tais como: assoalhos de linóleo com
desenhos geométricos impressos que estabelecem variações
óticas entre fundo e superfície conforme se os olhe; tambores
pendurados nas paredes; e anões monocromáticos de resina.
No caso, o referido Ponto é um desses anões, que está oculto
sobre uma caixa como acontecia no antigo teatro, olhando o
linóleo geometrizado vazio e um tambor escuro ao fundo, en­
costado na parede. Sheena Wagstaff (2008, p. 1 00) lê esta obra
servindo-se de um personagem de Jorge Luís Borges: "Sendo a
pessoa invisível responsável por recordar cada linha do texto,
o ponto assume, no seu recinto da memória, o papel de Fu­
nes, com a anomalia de que, na obra de Muftoz não há texto
para lembrar ou esquecer". O próprio Muftoz, que foi sempre
lacônico ao comentar seus trabalhos disse o seguinte sobre a
instalação: "Quando fiz "The Pompter" queria construir uma
casa da memória, a mente que nunca se vê, mas está sempre
lá. É como um palco sem representação, sem peça de teatro, só
com um homem a tentar lembrar, tentar não esquecer" {apud
Wagstaff, 2008, p. 1 00). O comentário nos remete diretamen­
te ao teatro de Beckett, cuja aproximação com Muftoz não é
casual. Apesar dele nunca ter admitido uma influência direta
do escritor, esta fica insinuada de forma flagrante em "Stut­
tering Piece" (Peça de Gagueira), em que duas figuras huma­
nas diminutas e monocromáticas travam um diálogo curto e
circular. A peça é uma exceção, pois a maioria das instalações
do artista com figuras maiores conversando entre si, ou só ou­
vindo, têm diálogos inaudíveis para o observador, ou apenas
imagináveis, já que elas aparecem entretidas na ação de sussur­
rarem nos ouvidos uma das outras. No caso da peça citada, as

1 34
duas figuras pequeninas estão reclinadas na parede em cima
de um praticável, num diálogo perpétuo. O texto gravado é
audível e configura, pelo padrão circular, uma típica situação
beckettiana: "What did you say?/1 didn't say/You never say
anything/No/ But you Keep coming/Back towards?/ What
did you say?"1 1 • O caráter mínimo da peça, tanto em termos
visuais como referenciais, impede que se vá além de um vago
vislumbre nessa aproximação, ou assegura uma inconclusiva
recepção da obra.
Suas criaturas mais comuns, humanoides de baixa estatura,
cor acinzentada e com leve traço oriental, sempre aparecem
agindo, seja em situações cotidianas, na maioria dos casos, seja
em situações limites, como em "Hanging Figures", em que
aparecem penduradas pela boca como que contraídas na resis­
tência a um anwl que as fisgasse. Essa busca de movimento,
ou de situá-las numa ação clara, mas indecifrável, é outra razão
para avocar-se para elas uma estranha dramaticidade, já que
guardam algo da mimesis naturalista e apresentam, no entanto,
uma espécie de mundo paralelo, ignoto, que Mufioz nos reve­
la/sonega com desassombro. Sobre esse dinamismo das figuras
em sua condição estática Mufioz diz: "Por um lado existe a
imobilidade da escultura figurativa, que para mim continua
a ser um enigma inexplicável. Por outro lado, a representação
do movimento e do gesto dentro da imobilidade é um desejo
fascinante [ ... ] Penso que, entre a imobilidade e o movimento,
tento encontrar um lugar para as minhas esculturas" (lbid., p.
98).
De algum modo, o projeto absortivo defendido por Mi­
chael Fried encontra aqui um beco sem saída. A absorção dos
agentes dramáticos é absoluta, o que, pelo critério da "empa­
tia projetada", absorve completamente seus observadores, mas
também os isola numa posição em que se torna impossível o

1 1 . "O que você disse?/ Eu não disse/ Você nunca diz nada/ Não/ Mas você continua vindo/
de novo adiante?/ O que você disse? ..."

135
seu acesso àquele drama. O que se mostra é cristalino e opaco,
narrativa fluída e enredo estilhaçado.
Como confirma Sheena Wagstaff (2008, p. 1 02) , "as figu­
ras de Mufioz estão sempre absorvidas em si mesmas, indi­
ferentes à presença do espectador. Tal como somos atraídos
pelo seu enigma, somos também repelidos". Ela entende que
o artista "conta com a nossa consciente suspensão da descren­
ça - que entremos voluntária e momentaneamente na ilusão
de sua obra sem perdermos a autorreflexividade - e com a
possibilidade de o nosso envolvimento com as diferenças irre­
conciliáveis dessa suspensão nos conduzir a um reino diferente
da consciência sobre nós próprios e o nosso lugar no mun­
do". O próprio Mufioz dá uma pista de como trabalha essas
"diferenças irreconciliáveis" quando admite que "há algo na
aparência (das figuras) que as torna diferentes e esta diferença,
na realidade, exclui o espectador da sala que estão a ocupar"
(apud Wagstaff, 2008, p. 1 03). A mesma questão é traduzi­
da por Potts da seguinte forma: [ .. ] ''As figuras de Mufioz,
.

em particular, recusam respostas de empatia. Tal não se deve


unicamente à 'alteridade' da sua aparência e ao seu posicio­
namento algo teatral. [ . . . ] Sob o ponto de vista do caráter, as
imagens que as figuras evocam estão mais próximas das figuras
imediatamente reconhecíveis e sinteticamente desenhadas das
caricaturas e das ilustrações do que das formas ou dos seres
enraizados, relativamente autônomos, da escultura ocidental.
Existem, contudo, afinidades com as figuras gesticulantes ins­
taladas nas fachadas de muitos edifícios do barroco tardio, ou
que floresceram em túmulos desse período, antes da estética
neoclássica se impor" (Potts, 2008, p. 1 03).
Potts dá a pista de pensar-se a arte de Mufioz a partir do
universo da arte barroca e da poderosa participação que havia
ali da imagem na persuasão dos observadores, para ficar nos
termos propostos pelo grande especialista do período, Giulio
Carlo Argan (2004) . O que apatecia como verossímil se im­
punha ao observador como imaginação realizada, ou efetiva-

1 36
da enquanto imagem. Tanto a poesia como a pintura barroca
partilham essa potencialidade de traduzir o imaginável em re­
alidade, seja em imagens figuradas ou verbalizadas. Essa indis­
tinção se traduz na formulação dos teóricos do barroco " utpic­
tura poésis", como explica Argan, acrescentando uma perspicaz
sugestão de característica central daquele período histórico:

Se a ideação é a mesma para o poeta e para o artista figura­


tivo, mas as técnicas são obviamente diferentes, o conceito
de forma como representação da realidade entra em crise:
a técnica pode até continuar sendo um processo de imi­
tação, mas a imitação é imitação da ideia, e não mais da
natureza (2004, p. 22).

Parece produtivo pensar essa característica como importan­


te também não só na obra de Mufioz como na de muitos ou­
tros artistas da arte pós-minimalista e pós-conceitual. Mufioz
assume essa proximidade com a perspectiva barroca quando
em comentário sobre Borromini, que ele chama de "mestre do
engano", sugere:

Penso que uma grande pintura é também um grande


embuste. Aquilo para que se está a olhar é uma ilusão.
[. . ] Esta é a nossa tradição: a criação do espaço através da
.

pintura" (apud Wagstaff, p. 1 0 1 . [ ... ] Muitos bons artistas


modernos são tão hábeis como os grandes mestres do bar­
..
roco. [ . ] Temos de fazer esse indivíduo confiar durante
um segundo que aquilo em que ele quer acreditar é verda­
de. E talvez possamos transformar isso noutra realidade e
surpreendê-lo (Muóoz e Lingwood, 2008, p. 145).

Nesta conversa com James Lingwood Mufioz acrescenta:

Penso que o que era pedido aos grandes artistas do bar­


roco é o mesmo que é pedido aos artistas modernos: que
realizem, que construam. [...] Em última instância, não se
tenta transcender o caráter físico da experiência. Quando

1 37
se está numa determinada sala, recebe-se uma determi­
nada experiência. [ ... ] Aprende-se isso muito bem com
Joseph Beuys - como instalar alguma coisa numa sala, o
aparente desdém ou indiferença, a simulação de que é aci­
dental. Numa sala de Beuys pensamos que as coisas foram
abandonadas ali pelos homens da mudança, mas não: elas
foram ali colocadas com muito cuidado. Acreditamos na­
quilo em que ele quer que acreditemos (op. cit., loc. cit.).

Esse reconhecimento de Mufi.oz, da eficácia do jogo pro­


posto por Beuys em suas instalações, permite que se retome a
chave mestra desta reflexão em torno da mimesis performativa
nas artes contemporâneas. O que aproxima a obra de Beuys
da de Mufi.oz é exatamente a disposição de afetar e a busca
de estratégias retóricas que evitem as narrativas por conca­
tenação semântica e optem por impactar com as imagens,
mas também com a tridimensionalidade e os aspectos físi­
cos da presença de objetos, seres animados e inanimados,
ou animais, organizados em séries, ou isoladamente, numa
sintaxe espaço-temporal bem delimitada. É uma intervenção
plástica, que dialoga com a escultura modernista, ou com o
objeto minimalista, mas que avança como discurso e carrega
uma ação latente, não necessariamente dramática, mas sempre
potencialmente espetacular, a se desenrolar quando acionada
por um observador disponível. Como sugere Mufi.oz,

é crítica a relação entre o plano do relevo e a consciência


do truque. No cerne de alguma da melhor arte de nosso
tempo está a consciência de como as coisas são feitas
em colisão com a aparência das coisas. O processo de
execução é fundamental para a ilusão que cria. É muito
surpreendente a forma como queremos ver alguma coisa
que não existe (lbid., p. 1 43).

Esta coisa que não existe e que se configura visível, este ima­
ginável que se materializa como realidade provisória, enquan-

1 38
to dure diante dos olhos, é a mimesis em sua expressão mais
singular, como espetáculo, algo que se dá a ver com a intenção
de se fazer crível e com isso afetar. O que caracteriza a mimesis
performativa, que ocorre em Muííoz, ou em Beuys, é a inde­
terminação do percurso que oferece, ou a proposição de algo
indecidível, ao seu virtual observador. É um jogo de ilusão que
não remete a nenhum referente, e conta só com a materialida­
de imediata e todos os movimentos que encerre para iludir, ou
conquistar a credibilidade do seu receptor. Potts destaca nesse
sentido a preferência do artista de que suas figuras fossem vis­
tas "como estátuas, não como esculturas", encenadas de forma
a tornar impossível - "uma ligação íntima com elas" (2008,
p. 1 1 3). Segundo outro crítico, Michael Wood, "mesmo en­
quanto esculturas, não têm individualidade, são meras alusões
à humanidade, não são imitações plausíveis dessa condição. A.
própria humanidade é apanhada neste jogo de presença e au­
sêncià' (2008, p. 1 07) . Como Muííoz revela a este propósito,
"a representação do movimento e do gesto dentro da imobi­
lidade é um desafio infinitamente fascinante. A ideia de uma
escultura que se move, desde a noção hebraica de Golem pode
criar um momento de espanto" (Muííoz e Lingwood, 2008, p.
1 43). Estátuas, esculturas, figuras ou personagens, um pouco
de cada uma dessas coisas e nenhuma delas, essas criaturas
concretas e inacessíveis carecem de completude que as apri­
sione numa única definição. É Michael Woods (2008, p. 1 09)
quem melhor as descreve:

Estão a encarnar, a exibir diante de nossos olhos, não só


a ausência que se esconde em cada presença mas também
a imobilidade e o silêncio que são os gêmeos secretos do
movimento e do ruído. São criaturas do mundo da fala ­
o seu único habitat, a sua única razão - mas nunca falarão.
Não estão à espera de falar. O boneco sabe que o dono não
irá regressar, talvez saiba que nunca houve um dono. É
por isso que está tão calmo, é por isso que sorri. O Ponto
nunca se lembrará da peça não existente, nunca irá refres-

1 39
car a memória dos acores sempre ausenres. [ . ] Essas figu­
. .

ras teatrais, esses conradores de histórias perdidos denrro

de histórias impossíveis de conrar são sobretudo o que não


podem fazer: silenciosamenre, fazem-nos sinal sobre isso
mesmo. O espetáculo que não pode conrinuar é também
em espetáculo que nunca para.

Um último aspecto da obra de Mufwz que nesta lei­


tura proposta, de tomá-lo como mimesis performativa caracte­
risticamente contemporânea, no sentido de ser mais opsis do
que mythos, superfície que linha, sintaxe do que semântica, é
o dos seus desenhos em tecidos impermeáveis negros. Os tra­
ços brancos que definem ambientes domésticos esvaziados da
figura humana, mas também cativos de uma tensão que aguar­
da a sua aparição a qualquer momento, são verdadeiras plan­
tas cenográficas que projetam espetáculos futuros ao mesmo
tempo que anunciam a sua impossibilidade. Mufi.oz os define
como "extremamente normais e desconcertantes". Ele espera
que eles deem "a sensação de que alguma coisa aconteceu ou
vai acontecer". O efeito que buscam desencadear, tanto quan­
to as esculturas, é "esperar, esperar que aconteça alguma coisa
que pode nunca acontecer e, por outro lado, ter receio que
aconteça, ou mesmo desejar que nunca ocorra" [ ] . Seria para. . .

o artista "como observar uma porta q,ue um dia alguém poderá


abrir" (apud Potts, 2008, p. l 1 6) . E esta ação interrompida
e eternizada em sua potencialidade irresoluta que aproxima,
pois, os desenhos das instalações esculturais. Ainda sobre eles,
Potts alerta que "deveriam ser vistos como entidades separadas
das esculturas", para não passarem por "ilustrações". O críti­
co reconhece, porém, que fazem "parte de um discurso mais
lato", a que as esculturas também pertencem. Ele lembra que
o comentário de Mufi.oz, de não considerar a escultura "um
objeto autônomo", permite deduzir que elas "não deveriam
ser vistas isoladamente" (Ibid., p. 1 1 5). No fundo, Potts arris­
ca, baseado em ensaio de Mufi.oz sobre Pirandello, que com

1 40
as instalações escultóricas e os cenários ficcionais insinuados
nos desenhos, o artista "aspirava criar urna sala sem esperança,
cheia de chuva irrefutável a cair numa conversa indiferente ­
uma sala muito normal em que só teriam lugar os mais incon­
sequentes diálogos" (lbid., p. 1 1 7) .
Por tudo que se disse, é possível afirmar como plausível
que o campo em que Muftoz atuava não era o teatral ou o
literário, tampouco o da escultura clássica, ou de sua vertente
pós-modernista. Havia uma miscelânea de esforços, concen­
trados em um controle muito grande da linguagem para obter
efeitos difusos, de ilusão sim, mas não remetendo a referentes
claros e embaralhando-os em um discurso sempre latente e
poroso à curiosidade do observador, ainda que nunca disposto
a satisfazê-lo. Nas instalações de Muftoz a arte não virou tea­
tro como temia ingenuamente Fried, mas conciliou elemen­
tos temporais e espaciais emprestados da literatura e da cena
modernista, para retomar tropos da pintura e da escultura de
todos os tempos. Nesta operação se aproximou, e muito, de
artistas que no plano da cena e da performance fazem o mes­
mo caminho pelas vias inversas.

3 SAMUEL BECKETT:
-

ONDAS LUM I NOSAS NO ÁPICE DO APAGAMENTO

As peças de Samuel Beckett ( 1 906- 1 989) escritas espe­


cialmente para emissão televisiva são material precioso para
o estudo de seu teatro e de sua produção literária. Principal­
mente aquelas encenadas e gravadas sob a direção do próprio
dramaturgo, que registram e eternizam a sua obra teatral en­
quanto amostras intactas de suas mise-en-scenes. Por isso elas
se revelam úteis para servirem, aqui, como base desta reflexão
em torno da mimesis performativa, exemplares acabados que
refletem à perfeição a dúvida fundamental de Beckett quanto
às possibilidades da representação artística do mundo. Depois
de aplicar-se em esgotar a literatura como forma expressiva,

141
esvaziando-a de qualquer impostação, e de ocupar a tridimen­
sionalidade da cena com corpos cada vez mais fragmentados e
isolados, para inviabilizar qualquer presença significante, a te­
levisão lhe ofereceu um caminho para que se consumasse essa
trilha de apagamentos, fixando em ondas luminosas um piná­
culo de imagem quase invisível, ou a menor sombra alcançável
antes da escuridão absoluta. Com as peças para TV - veículo
que Beckett comparava aos "peepholes" (olhos mágicos das
portas), permitindo ver "o que nunca se pretendeu que fosse
visto"12 - ele buscou alcançar um máximo de mínima repre­
sentação 13•
As cinco peças escritas especialmente para TV e que ele
próprio dirigiu na SDR de Stuttgart, assistidas ou lidas, re­
velam um movimento do já então escritor e artista pleno do
teatro - dramaturgo e encenador - para um novo suporte,
que lhe permitiu relevantes desdobramentos no seu processo
criativo, com o recuo do plano tridimensional da cena para o
da superfície vítrea da pequena tela. É uma transposição que
evoca um momento anterior em sua trajetória, quando, no
fim dos anos quarenta do século passado, Beckett deixou a no­
vela e o romance para experimentar a dramaturgia e o teatro.
Este passo desdobrou-se, na década de 1 960, com a assun­
ção por ele das responsabilidades de encenador, o que o fez,
doravante, escrever peças pressupondo um controle maior na
encenação, e passando, com isso, a verdadeiramente esculpir
material e tridimensionalmente a sua teatralidade. Nessa nova

12. "AIIows the viewer ro see whar was never meanr ro be seen". A informação consra do
projero "Peephole Arr: Becketr for Television", realizado pelo direror narre-americano
John Reilly. Disponível em: <www. beckerr/beckerr_film_peephole1 989.hrmb.
1 3 . "Beckerr apanhou um meio famoso por desrruir a capacidade humana de pensar rigoro­
samenre e perceber com clareza, e usou-o para fazer peças sobre a infinidade da alma e a
grandeza da menor memória morra!. Como um pinror de miniaruras que emprega uma
leme de aumenro para adquirir uma impressão de perfeição, Becketr usou os insrrumen­
ros récnicos (o olho da câmera) para aumenrar a percepção humana e, consequenremen­
re, dignificá-la, enviando seus emissários fanrasmáricos dos escombros humanisras, pelas
ondas aéreas, aré a sala de esrar das pessoas [ . . ]" (Kalb, 1 994b, p. 1 4 1 ) .
.

1 42
dimensão, luz e sombra vão se tornar elementos fundamentais
na sintaxe de sua escritura cênica, que passará a condicionar-se
em ilhas de claridade cada vez mais exíguas, delimitadas por
uma profusão crescente de obscuridades. Daí ao passo seguin­
te, para a diminuta caixa de luz, foi um movimento natural.
Nos anos 1 950, o teatro surgia como uma alternativa de con­
tinuidade, além do beco sem saída a que chegara com a escri­
tura da prosa novelesca, depois de radicalizar sua narrativa na
trilogia ("Molloy", "Malone Morre", e "O lnominável"). Nos
anos 1 970, a televisão, em sua complexa simplicidade, vai lhe
aparecer como o meio ideal para prosseguir além do muro da
materialidade cênica, que nos "dramatículos"1 \ apresentada
em sombras cada vez mais densas, já quase não se deixava ver.
Mesmo alguns dos seus últimos trabalhos literários no fim da
vida, como "Worstward ho" e "Stirring Still", dialogam dire­
tamente com as peças para TV e retomam aquela evolução
enquanto tema - "Luz obscura origem desconhecida. Sabe-se
o mínimo. Não se saber nada. Seria esperar de mais. Quando
muito o mínimo dos mínimos. Maximamente menos que o
mínimo dos mínimos" (Beckett, 1 996, p. 9) . É possível, pois,
ler as peças televisivas de Beckett não só como exercícios, em
um suporte novo, de procedimentos há muito praticados, mas,
mesmo, como um divisor de águas e um momento de clímax
em sua trajetória15• A partir dali, o apagamento e a falência do
mundo alcançavam a condição, e a tensa estabilidade, de on-

1 4. O termo, utilizado para reunir algumas peças curtas, escritas a partir dos anos 1 960,
foi cunhado pelo próprio Beckett como subtítulo da peça escrita em 1 965, em inglês,
"Come and Go - a dramaticule" (London, Calder and Boyars, 1 967).
.
1 5. "[ . . ] elas são o trabalho de um artista visual talentoso, apresentando com imagens a
mesma habilidade meticulosa e traços idiossincráticos que Becektt sempre usou com as
palavras. Tendo já revolucionado o drama, em sua sétima década, Beckett encontrou na
televisão um meio que talvez serviu seu temperamento e talento melhor do que qualquer
outro. O pináculo da economia linguística é contar uma história em imagens, e o mais
absoluto controle diretoria! é congelar a encenação perfeita para sempre, como um íco­
ne" (Kalb, 1989, p. 1 1 6).

143
das eletrônicas traduzidas em imagens e luz. A impossibilidade
de representar o mundo em sua máxima mínima potência.
Já em um dos seus raros ensaios estéticos de j uventude,
Peintres de Lempêchement" 16 (Pintores do Impedimento) ,
Beckett propõe que "a essência do objeto da representação
na arte é a sua condição de ser algo irrepresentável" (Wood,
1 994, p. 1 1 ) . Sua referência, no caso, é a pintura dos irmãos
van Velde que, segundo ele, se resignam nessa condição ine­
xorável, ao mesmo tempo que, ao final, casualmente, acabem
representando alguma coisa. Assim, por exemplo, no caso de
Geer van Velde, sua pintura focava na habilidade do seu objeto
de impedir o pintor de percebê-lo - "o impedimento-objeto".
No caso de Bram van Velde, o foco era a condição subjetiva da
representação, que impossibilitava o objeto tornar-se perceptí­
vel - "o impedimento-olho". Diante das três alternativas que,
Beckett acreditava, restavam à arte - "retornar à velha e desa­
creditada ingenuidade e ignorar a problemática sujeito-obje­
to"; "continuar lutando com a velha relação sujeito-objeto";
"ou o caminho dos van Velde, que admitiam a derrota, mas
encontravam um novo objçto nas condições da irrepresenta­
bilidade" - ele preferiu esta última. A menção é pertinente
aqui por antecipar na dimensão pictórica uma consciência que
amadureceria, em Beckett, nos planos da literatura e do teatro,
antes de ser experimentada no campo das imagens filmadas,
em película ou em vídeo.
Tudo começou em 1 964 com "Film" (Filme) 17, experiência
frustrada de Beckett com o cinema, quando se deparou com
as limitações do processo fílmico, no sentido de constatar a
complexidade e a dificuldade de controlar diretamente todo o
aparato que se antepõe entre o criador e a película final. Além

1 6. Ensaio escrito em 1 949 que, ao lado de outro, "La peinrure des van Velde ou le monde
et le pantalon", de 1 948, aborda a pintura de seus dois amigos, os irmãos Geer e Bram
van Velde. Ambos trabalharam em Paris no pós-guerra. Ver Wood, 1 994, p. 1 - 1 6.
1 7. Beckett só teve esta experiência com cinema. Realizada em 1 964, em Nova Iorque, tra­
tou-se de um curta-metragem que ele próprio roteirizou.

1 44
destes inevitáveis filtros, acrescia-se o fato dele, e de seu par­
ceiro na empreitada, o diretor Allan Schneider, jamais terem
realizado um filme. A participação de um ator como Buster
Keaton - já à época um gênio esquecido do cinema -, e de um
fotógrafo experiente como Boris Kauffmann18, não salvou o
projeto. A começar do próprio Keaton, cujo talento inegável
e estilo inconfundível não atenderam à expectativa de Beckett
de uma atuação mais sóbria, mas, sobretudo, pela sua própria
inexperiência no manejo daquela nova linguagem, o filme,
pronto, foi recebido por ele como um fracasso19• Apesar de ser,
hoje, uma raridade cultuada pelos estudiosos de Beckett, de
fato, "Film" ficou muito aquém do pretendido originalmente
pelo seu autor.
A segunda experiência com a sintaxe das imagens filma­
das já se daria no âmbito da televisão e, portanto, tornaria
possível gravar imagens com mais controle do processo. Be­
ckett escreveu "Eh Joe, a piece for television" (Eh Joe, uma
peça para televisão) em 1 965, especialmente para a TV En­
comendada e produzida pela rede inglesa BBC, foi também
realizada em 1 966, com direção do próprio Beckett, pela
Süddeutscher Rundfunk, rede pública de TV de Stuttgart. A
peça foi transmitida pela primeira vez na Alemanha, para um
público estimado de trezentas mil pessoas, no aniversário de
sessenta anos do escritor, a 1 3 de abril de 1 966, três meses
antes da transmissão na Inglaterra, pela BBC (Caravela, 2009,
p. 57). Esta primeira parceria com a SDR alemã inaugura­
ria uma relação duradoura, e prolífica, que incluiria a grava­
ção ao longo dos vinte anos seguintes de mais seis peças. Em
1 977, Beckett, que tinha escrito "Gosth Trio" (Trio Fantasma)
e " ... but the clouds ..." ( . . . senão as nuvens ... ) por encomenda
da BBC inglesa, decidiu oferecê-las aos alemães. Intituladas

1 8. Irmão mais novo de Dziga Verrov, diretor de fotografia de "Atalame" de Jean Vigo, em
1934, e vencedor do Oscar de melhor fotografia por "Sindicato de Ladrões" de Elia
Kazan, em 1954
1 9. Sobre a experiência de filme ver Kalb, 1 994a, p .. Ver também Schneider, 1969, p. 63-94.

145
agora "Geister Trio" e " ... nur noch Gewolk...", foram ao ar
em novembro daquele ano, dirigidas pelo próprio Beckett e
apresentadas juntas a uma versão de "Not I" (Eu não) já pro­
duzida pela BBC. Beckett ainda dirigiria na SDR, em 1 979,
uma nova produção de "Eh Joe", que não o satisfez20, e, em
1 982, " Quadrat 1 + 1 1 " , {a primeira também gravada pela
B B C como " Quad") e " Nacht und Traume", produzida
especialmente para a S D R naquele ano e exibida em maio
de 1 98 3 . Em 1 98 4 , o diretor do departamento de drama
da S D R, Reinhart Müller-Freienfels solicitou a Beckett mais
uma peça. Como o criador já não estivesse disposto a escrever
nada novo para a TV; aceitou adaptar sua última peça escrita
para o teatro, "What Where" {O que onde)21 • A tradução para
o alemão, "Was Wo" foi ao ar em 1 986, em um programa que,
nas comemorações dos oitenta anos de Beckett, apresentou,
além dela, outras cinco das peças que ele tinha dirigido e gra­
vado em Stuttgart. É parte desta produção alemã - "Geister
HlO
--r. . " , " ... nur noch G ewo
" lk ..." . "Nach t und --r.
Haume
.. " e " Qua-
drat 1 + 11" - que interessa aqui examinar. Ela se diferencia dos
outros conjuntos de produções das peças televisivas, realizados
na lnglaterra22, no mesmo período, e nos Estados Unidos23
posteriormente, pelo fato de Beckett ter controlado direta­
mente todos os detalhes da gravação e edição do material.
Isso foi possível a partir das condições ideais de criação que

20. Becken pediu que não fosse mais exibida depois da estreia. O problema foi a interpreta­
ção de Heinz Bennent, que, mesmo sendo reconhecido por Becken como um bom ator,
não atendeu sua expectativa.
2 1 . O diretor norte-americano Stanley Gontarsky tinha feito uma versão para TV da peça
naquele mesmo ano, com a supervisão à distância de Becken.
22. Ver Caravela, 2009, p.45-55.
23. Trata-se do já referido Projeto Peephole Art, que começou em 1 985 quando John Reilly
e Barney Rosset (editores norte-americanos de Beckett) decidiram produzir um docu­
mentário para TV sobre o escritor e incluir no pacote a gravação de três peças: uma nova
produção de "Quad i+ 11", em 1 988, uma nova adaptação para TV de "What Where",
também em 1 988, e uma adaptação para TV de "Not I", em 1 989. Mesmo declinando
de ser filmado para o projeto, Becken encontrou Reilly em Paris cinco vezes entre 1 987
e 1 989.

1 46
Müller-Freienfels lhe ofereceu. O grau de liberdade de Beckett
em todas as produções e o prazer de as estar realizando ficam
explicitados na evidência dele nunca ter recebido nenhuma
remuneração pelos trabalhos e só exigido, em contrapartida,
o direito de não ter de conversar com jornalistas durante os
processos de criação. Podia gravar as cenas quantas vezes qui­
sesse, acompanhar o desempenho dos atores minuciosamente,
e desenhar e construir junto com os técnicos da SDR os an­
teparos cênicos das gravações, bem como discutir os níveis de
luz, claridade e escuridão de cada cena. Não é exagero pensar
esse processo como um ato escultórico, estabelecendo-se, pri­
meiro arquitetonicamente e, depois, na paleta de intensidades
da melhor tecnologia de vídeo da época, controlando, com
precisão de milímetros, os tons e as formas da emissão final
gravada24 • Além de suas já habituais, à época, rubricas precisas
do espaço cênico, Beckett se preocupou em detalhar todos os
movimentos de câmera, e muito do que fora especificado pre­
viamente nos textos originais foi revisto e remanejado. Enfim,
ele pode ali na SDR dominar a sintaxe de luzes e sombras, de
corpos e formas, como nunca antes tinha podido em qual­
quer outro meio25• Não é casual que concluído esse projeto,
aos oitenta anos, ele fechasse sua obra, passando a partir daí,
pode-se dizer, a tomá-la como consumada. É claro que ele
continuou escrevendo, mas em um processo, cada vez mais,
de reexame do que já fora escrito, e de narrativa da própria
dificuldade de interromper a escrita, ou da pulsão irresistível

24. Comentaristas costumam associar principalmente o Beckett das peças televisivas à ideia
do pintor meticuloso: " [ ] quando Beckett as dirige essas regras básicas se modificam,
...

porque entáo as obras sáo executadas pelo mestre e guardam a marca de sua máo de
pintor, que tem qualidades específicas de pintura que poderiam, mesmo, serem caracte­
rizadas em comparação com um pintor particular" (Kalb, 1989, p. 98).
25. Seu assistente nas montagens teatrais que fez na Alemanha e nas próprias produções
da SDR, Walter Asmus, diz, a respeito, em entrevista a Jonathan Kalb: "Ele tinha uma
...
relação muito pessoal com Stuttgart [ ] A5 condições de trabalho lá sáo absolutamente
singulares no mundo. Eu duvido que ele jamais tenha tido condições iguais na BBC"
(lbid., p. l 83-1 84).

1 47
de, ainda, continuá-la. Nos últimos textos, se ele insiste com
as palavras, e em apontar sua insuperável impotência frente ao
real, é muito mais um retorno ao início e uma visita a antigos
fantasmas, do que uma nova fase26• Interessa aqui, portanto,
focar nestas quatro produções como sínteses luminosas da es­
tética beckettiana, de sua recusa inegociável à mimesis, e simul­
tânea ambição performativa de reinventá-la. Transmitidas em
ondas para milhões de pessoas, elas são o ápice de sua obra e o
ícone mais retumbante de seu fracasso na luta contra a repre­
sentação. Na medida em que, digitalizados, os sinais eletrô­
nicos fixados no estúdio da SDR se eternizam, esse pequeno
núcleo da vasta e polimorfa obra de Beckett torna-se não só
um testamento estético de seu teatro, como o emblema visual
mais contundente de sua produção performativa.
"Geister Trio" (Trio Fantasma) tem este nome a partir do
quinto trio para piano de Beethoven (opus 70) conhecido
como "The Ghost" e que teria sido composto como parte do
projeto de uma ópera baseada em "Macbeth"27• Na peça de
Beckett estão precisamente indicados, nas rubricas, não só os
pontos de entrada da música, e suas diferentes intensidades,
como delimitados os trechos exatos do segundo movimento
(Largo) do trio de Beethoven que devem ser parcialmente ou­
vidos. O único personagem falante está invisível e é identifi­
cado apenas como V. Trata-se de uma voz feminina que, ora
descreve objetivamente a cena apresentada como se dirigida
aos telespectadores, ora se refere ao personagem em cena, F,
e indica-lhe os movimentos e as ações que deve realizar. Ao
contrário de "Eh Joe", e, mais remotamente, de " Krapp Last
Tape", esta voz sem corpo não revela uma eventual intimida­
de ps ícológica com o personagem que aparece em cena, nem

26. Como propõe Andrew Renton, retoma-se a ideia de desabilitar a escrita para alcançar
um estado de incompletude que nem a realiza nem a encerra, e a deixa pairando em
ausência, como um vazio no vazio. Ver Renton, 1 994, p. 1 67- 1 83.
27. Andrew Huch, na apresentação do CO "Beechoven Piano Trios vol. 2", da EMI Classics,
afirma que essa hipótese nunca foi comprovada.

1 48
como um seu interlocutor direto nem como uma voz interior
que lhe perturbasse. É mais uma voz autoral que constrói a
cena e a interpreta, como uma rubrica falante que se permi­
tisse descrever a ação que se está desenvolvendo, a exemplo
da voz narrativa dos últimos textos, ou que sugere, duas úni­
cas vezes, uma possível motivação naquelas ações - "Ele vai
agora pensar que a está ouvindo". Contudo, diferentemente
do observado em experiência posterior de Beckett no teatro
- "Catastrophe"28, que também opera ironicamente com uma
voz autoral e autoritária a impor certa disposição cênica -, na
peça de 1 977 o jogo de associação e dissociação entre imagem
e áudio é mais livre e ambíguo, evitando encerrar-se em qual­
quer referencial seguro. Enquanto a primeira das quatro peças
examinadas, "Geister Trio" é, também, a mais iluminada de­
las, aparentando uma luminosidade estranha, na medida em
que aos espectadores não transparece uma iluminação direta,
mas, sim, uma que emana da própria matéria apresentada, um
branco esmaecido, entremeado de cinzas de vários matizes29•
Como aponta a voz do personagem invisível V, logo no início:
''A luz: débil, onipresente. Nenhuma fonte visível. Como se
toda resplandecente. Debilmente resplandecente. Não som­
bra. (Pausa.) Não sombra. Cor: nenhuma. Tudo cinza. Som­
bras de cinza. (Pausa.) A cor cinza se preferes, sombras da cor
cinza. (Pausa.)" (Beckett, 1 986, p. 408, tradução do autor) .
Já abandonando qualquer referência mais explícita ao
mundo externo à própria peça, como ainda não se permitira
fazer em "Eh Joe", Beckett concentra toda sua atenção, e a
de seu telespectador, nas próprias imagens, enquanto redutos
indevassáveis de algum sentido ficcional. Como já acontecera

28. Escrita em francês em 1 982 e encenada a primeira vez no Festival de Avignon, naquele
mesmo ano.
29. "A iluminação indireta acentua o jogo entre luz e escuridão, criando um espesso chiaras­
curo que cresce mais e mais em intensidade e que chega, na realidade, a fazer a ilumina­
ção parecer-se com uma força volitiva articulada com a câmera e a voz" (Kalb, I 989, p.
1 09).

1 49
na literatura, e no teatro, há uma redução máxima dos refe­
rentes externos à obra, no limite do mínimo necessário a que
se afirme alguma significação. A diferença é que, desta vez, ele
conta basicamente com as imagens chapadas e a luminosidade
opaca da TV em preto e branco, além da voz débil de uma
narradora inconsistente e de fragmentos quase inaudíveis do
trio de Beethoven.

Em " . . . nur noch G ewo·· lk. . ." ( . .. senao as nuvens ... ) , no


princípio, há uma mancha de luz, nebulosa branca cercada
de escuro por todos os lados. Ouve-se uma voz masculina que
narra superposta à imagem quase imperceptível de um ho­
mem, assim descrito na rubrica inicial: "sentado em um banco
invisível curvado sobre uma mesa invisível" e "envolvido na
escuridão". Esta narrativa que se insinua oferece, de imediato,
referentes residuais mais consistentes do que "Geister Trio",
já que menciona logo no início uma mulher - "Quando eu
pensava nela era sempre noite". Logo a menção a esta mulher,
que será recorrente ao longo da peça e, mais adiante, se fará
acompanhar da aparição do dose de um rosto feminino
sombrio, dará lugar a uma narrativa que pode ser tomada
como evocativa de memórias de M, o homem debruçado so­
bre uma mesa invisível, na quase obscuridade completa. Esta
mesma voz também surgirá narrando as aparições de M1, fi­
gura masculina que, ora de chapéu e casacão negros, ora com
um roupão e touca cinza claros, entra e sai do círculo lumi­
noso que abre a peça, alternando-se na direção de três pontos
cardeais - "Oeste, estradas; Norte, santuário; Leste, armário"
- e sumindo sistematicamente na escuridão. Mas o que há de
comum com a peça anterior, além do caráter fantasmático dos
personagens evocados pela narração que se ouve e da figura
reclinada, é a concomitância da narrativa de M e das ações de
Ml, que ora pontuadas pela fala, ora transcorrendo silenciosa­
mente, remetem diretamente ao que é narrado. Ou seja, se em
alguns momentos a narrativa sonora se sobrepõe à imagem obs­
cura de M debruçado sobre o braço, em outros descreve com

1 50
exatidão o trânsito de MJ, quase que duplicando de forma rei­
terativa o que suas ações, indicadas nas rubricas e efetivadas na
gravação já realizavam. Aqui se percebe Beckett operando um
recurso próprio da televisão, a associação e dissociação de áudio
e vídeo, a favor da eliminação dos referentes, ou, pelo menos,
confundindo-os para minimizá-los. Isso fica ainda mais claro
na quarta aparição do rosto feminino em dose, sempre inter­
calada com as aparições de M, sentado, e de MI, cruzando o
círculo iluminado. Quando o rosto de mulher, identificado
na rubrica como W, aparece pronunciando versos da estrofe
final do poema "The Tower"30 de William Butler Yeats - " ...

nuven�... senao as nuvens... do ceu.. . - a voz que se ouve e a


f " ,

do narrador, M, como que dublando sincronicamente com os


lábios de W. Nesse sentido, foi significativa a modificação que
Beckett fez na montagem da SDR em relação às suas rubricas
originais. Enquanto no texto publicado, o verso final do poe­
ma de Yeats é dito uma última vez sobreposto à imagem de W,
na montagem da SDR, o rosto feminino aparece em silêncio,
antes do som de toda estrofe final do poema ser ouvido sobre
a imagem de M, com a cabeça reclinada em semiobscuridade.
O homem de cabelos embranquecidos, quase cinzas, sen­
tado de perfil para a Câmera, e com a cabeça reclinada sobre a
mesa, reaparece mais uma vez em "Nacht und Traume" (Noite
e Sonho), só que, agora, mais iluminado que em " ... nur noch
Gewõlk. .. " e mais obscurecido que em "Geister Trio".
Durante a gravação de "Nacht und Traume", Beckett co­
mentou com o operador de câmera Jim Lewis, que o acom­
panhou em todo o ciclo de peças televisivas realizado na Ale­
manha, talvez justificando o laconismo de seus personagens

30. "Agora, deveria eu domar minha alma/ Forçá-la ao estudo/ Em uma escola aplicada/ Até
o naufrágio do corpo,/ Lenta decadência do sangue,/ Delírio irascível/ Ou decrepitude
desanimada,/ Ou que mal pior venha -/ A morte dos amigos, ou morre/ de rodos os
olhos brilhantes/ que apanham o sol ao respirarem-/ Parecem senão as nuvens do céu/
Quando o horironre se apagai Ou um grito de pássaro adormecido/ Por entre os rons
sombrios se aprofundando". Tradução do auror.

151
na televisão, como era difícil para ele "continuar escrevendo
palavras sem ter o sentimento de que era uma mentirà' (apud
Kalb, 1 989, p. 98)31• Lewis conta também que a principal
dificuldade naqueles trabalhos era compatibilizar o nível de
escuridão que Beckett almejava com o mínimo necessário à
captação das câmeras: "A luz era sempre suave, enfraquecida,
e eu nunca conseguia fazê-la fraca o suficiente para Beckett.
Nós sentávamos lá e olhávamos para o controle da tela e ele
dizia para mim "'Jim, você não poderia reduzir a luz ainda
um pouco mais?"' ( 1 989, p. 1 08). Comentando esse ápice de
apagamento, Jonathan Kalb sugere não só a associação, que
se tornaria canônica, entre os contornos escuros das telas de
Caravaggio e os fundos obscurecidos dos "dramatículos" e das
peças televisivas32, como contrasta a poética televisual de Be­
ckett com a de outro grande encenador do teatro contempo­
râneo: "Os trabalhos surpreendem pela mesma razão que o
fazem as produções cênicas de Robert Wilson: porque o autor/
diretor faz cada momento enquadrado responder a impecá­
veis padrões de precisão como aqueles esperados da pintura."
[ . ] "Beckett difere de Wilson, contudo, no mesmo sentido
..

que Caravaggio o faz da maioria dos seus contemporâneos


do século XVI: a janela, ou lente da câmera prefere voltar-se
para dentro, a psicologias particulares, do que para panora­
mas externos épicos. A interioridade de Beckett provê todo o
espetáculo necessário para prender o interesse da audiência,
especialmente quando ele acentua isso em sua encenação atra­
vés do detalhamento, repetição e ampliação". Para Kalb, "ele
tem tanto uma notável perspicácia no olhar para a psicologia
de seus personagens como a habilidade de artista visual em
comunicar esse entendimento em termos gráficos" ( 1 989, p.
1 1 6) . Ainda sobre a importância do chiaroscuro no teatro de
Beckett, e do crescente obscurecimento que marca a fase final

3 1 . Ver Solov, 1 990, p. 376-377.


32. Ver .Cavalcanti, 2006, p. 25-42.

1 52
de sua obra, vale citar a leitura de Xerxes Metha quando de­
nomina as peças posteriores a "Play" (Comédia), de 1 963, de
"peças-fantasmas", porque tem na qualidade espectral a raiz
de sua força. Segundo Metha, para adquirirem esta qualida­
de esses últimos trabalhos curtos, em que se inserem as peças
televisivas, requerem controle rigoroso da sua luminosidade.
Neles a escuridão não só faz parte da costura sintática, como
se torna o elemento mais importante na efetivação da imagem.
Como sugere: "a primeira grande. arma do fantasma é seu do­
mínio pela tintura do negro, uma que, se durar o suficiente,
destruirá tempo, lugar e similaridade, e atrairá cada espectador
para dentro dela. O incitamento da introspecção, e o posterior
afrouxamento na apreensão da realidade estão relacionados à
.
sua impotência em fixá-la. Mesmo objetos aparentemente só­
lidos como cadeiras de balanço ou mesas somem na escuri­
dão, com suas partes inferiores invisíveis, elas e seus ocupantes
suspendidos no breu e na luz intermitente". A consequên­
cia disso será que "os fantasmas de Beckett incandescem no
escuro, pálidos ou ofuscantes, e, quando cessam de refulgir,
se é deixado com a quase certeza de que eles ainda estão lá,
próximos de nós, sempre com nós, capazes de reaparecer a
cada momento [ ... ] ." (Metha· 2000, p. 1 7 1 - 1 72). Algo seme­
lhante é apontado por Jonathan Kalb quando percebe nas
peças televisivas "uma enervante autossuficiência própria ao
sonho". [ . . ] "São como objetos que aparecem de repente na
.

água depois de uma longa viagem marítima, fragmentos que


contam uma história mais reveladora, a seu modo, do que a
que poderia ter sido contada por qualquer todo presumivel­
mente perdido". As peças para TV podem ser vistas, segundo
Kalb, "como um esforço comum e progressivo para se afastar
da linguagem" ( 1 989, p. 97-98).
A quarta peça televisiva aqui destacada, "Quadrat 1+11", foi
a que mais inspirou comentários no sentido de reconhecer-se
ali uma fase distinta na obra de Beckett e de todas a que mais

1 53
claramente poderia ser pensada como mimesis performativa33•
Praticamente uma peça rubrica, sem nenhuma fala, ela esta­
belece quatro séries de movimentos para quatro atores. Estes
devem estar cobertos da cabeça aos pés por figurinos com cada
uma das cores básicas - verde, vermelho, azul e amarelo -,
movendo-se em um quadrado cinza claro e filmados, frontal e
obliquamente, de cima. Os quatro personagens - A, B, C e D
- alternam-se individualmente, em duos, trios e em quartetos,
percorrendo as arestas do quadrado e sua diagonal, mas nunca
se encontrando graças a um leve desvio que realizam de um
centro vazio, contornando-o sempre que por ali passam e sem
nunca se chocarem. Martin Esslin ( 1 982, p. 70-7 1 ) cunhou
a expressão "poética visual" a partir da peça e Gilles Deleuze
retirou dali a ideia central de seu único e denso ensaio sobre
Beckett, "I..: Épuisé" ( O Esgotado). Segundo Deleuze três lín­
guas operam na obra de Beckett. A língua I é a da "imaginação
combinatória maculada pela razão". A língua li é a da "ima­
ginação maculada pela memória" e a língua III, "não mais dos
nomes ou das vozes, mas das imagens sonantes, colorantes"34•
Para Deleuze, o texto de "Quad" "é perfeitamente claro: trata­
se de esgotar o espaço. Não há dúvida de que os personagens
se cansam, e seus passos se tornarão cada vez mais arrastados.

33. As peças Quadrar I e 11 podem ser assistidas no sítio: <https://www.youtube.com/


watch?v=4ZDRfniCq9M>
34. "O que há de enfadonho na linguagem das palavras é a maneira pela qual ela está sobre­
carregada de cálculos, de lembranças, e de histórias: nã,o se pode evitá-lo" [ ... ] . "A língua
Ill pode, pois reunir as palavras e as vozes às imagens, mas segundo uma combinação
especial: a língua I era a dos romances, culminando com Watt; a língua 11 traça seus
caminhos múltiplos através dos romances. [O Inominável] banha o teatro e explode no
rádio. Mas a língua 111, nascida no romance (Como é), atravessa o teatro (Oh os Belos
Dias, Atos sem Palavras, Catástrofe) encontra na televisão o segredo de sua montagem,
uma voz pré-gravada para uma imagem em vias de, a cada vez tomar forma. Há uma
especificidade da obra-televisão. Esse fora da linguagem não é apenas imagem, mas a
vastidão, o espaço. Esta língua III não procede apenas por imagens, mas por espaços.
E, da mesma maneira que a imagem deve aceder ao indefinido, estando, ao mesmo
tempo, completamente determinadâ, o espaço deve ser sempre um espaço qualquer,
sem designação específica (desaffecté), sem forma específica (inalfecté), ainda que seja
geometricamente todo ele determinado" (Deleuze, 1 992, p. 72-74).

1 54
Entretanto, o cansaço diz respeito, sobretudo, a um aspecto
menor do empreendimento: o número de vezes em que uma
combinação possível é realizada [ ... ] . Os personagens cansam-se
de acordo com o número de realizações. Mas o possível con­
clui-se, independente desse número, pelos personagens esgo­
tados e que o esgotam". De fato, Deleuze refere-se à "Quadrat
11", criada quase por acidente a partir de "Quadrat I " . Beckett
definira a peça para o diretor da SDR como uma "invenção
maluca para a televisão". Foi, sem dúvida, o processo na SDR
de mais difícil realização, tendo o escritor, inclusive, pensado
em desistir. Muitas mudanças tiveram de ser feitas em relação
ao roteiro original para adequar a movimentação dos atores
bailarinos, e a luz, aos propósitos originais35• A mais impor­
tante ocorreu quando Müller-Freienfels disse a Beckett ter,
por acaso, assistido à peça num monitor em preto e branco
e se surpreendido com o efeito da ausência de cores. Beckett
concordou com aquela sugestão e escreveu uma nova rubri­
ca, que se tornaria "Quadrat 11". Agora sem cores, os perso­
nagens evoluem diminuindo a velocidade progressivamente,
enquanto o som de percussão desaparece e ouve-se, apenas, o
arrastar-se dos pés no piso do quadrado. Quando Beckett viu
o resultado pronto comentou que "Quadrat 11" acontecia "dez
mil anos depois" de "Quadrat I" (Knowlson, 1 996, p. 674) . À
"Quadratt I+ll" também se aplica, especialmente, o comentá­
rio de Kalb em relação à notação das peças televisivas em geral:

Os roteiros de 1V economizam mesmo com a linguagem


não pretendida como fala. Não provêm nem o tipo de
rubricas detalhadas oferecidas por autores em suas peças
sem palavras, e por ele próprio em seus mimos como, por
exemplo, "Film" e �tos sem Palavras I e 1". Os scripts de
televisão são grandemente conjuntos de indicações numé-

35. No texto original apareceriam os músicos de percussão no quadro da cena e as cores dos
personagens deveriam ser estabelecidas pela luz. Na versão final desaparecem os músicos
e as cores são dadas pelas roupas sob uma luz chapada e comum aos quatro.

1 55
ricas referentes às câmeras e seus movimentos, que dão
pouca imponância às atmosferas completas dos trabalhos,
e, em certa medida, nos recordam das tentativas de alguns
artistas contemporâneos de delegar a construção final das
obras às mãos de desconhecidos, por exemplo, as pare­
des pintadas de Sol LeWitt, que consistem de indicações
detalhadas para quem quer que queira executá-las ( 1 989,
p. 98).

De algum modo, estes quatro personagens "sem designação


e em um espaço indesignável" como os definiu Deleuze, rea­
lizando séries precisas de movimentos repetidos em um piso
neutro, consumam a minimização da linguagem que Beckett
perseguiu em toda sua obra36• Dessa vez, fixada eletronicamen­
te em pontos luminosos, a representação parece encerrar-se em
uma forma definitiva e, por isso mesmo, se projeta infinita,
como imagem viva de uma máxima redução, ou de sua impo­
tência finalmente maximizada.

4 - JACK S M I T H : A P E RF O RMANCE S E M P RE I NACABADA

O fotógrafo, cineasta e performer norte-americano Jack


Smith ( 1 932- 1 989) tornou-se uma sombra, fantasmática e
difusa, a rondar o cinema, o teatro e as artes visuais contem­
porâneas, como que reivindicando a paternidade sobre as ex­
periências mais radicais em curso, principalmente aquelas em
que há o predomínio das imagens sobre os sentidos racionais,
da visualidade sobre as tramas, do opsis sobre o mythos. Como

36. "O que se chamou um 'poema visual', um teatro do espírito, que se propõe a não de­
senvolver uma história, mas a erguer uma imagem; as palavras que servem de cenário
para uma rede de percursos num espaço qualquer; a extrema minúcia desses percursos,
medidos e recapitulados no espaço e no tempo, em relação ao que deve permanecer inde­
finido na imagem espiritual; os personagens como "supermarioneres", e a câmera como
personagem que rem um movimento autônomo, furdvo ou fulgurante, em antagonismo
com o movimento de outros personagens; a rejeição dos meios artificiais (câmara lenta,
sobre impressão, etc.), por não combinarem com os movimentos do espírito... Apenas a
televisão, segundo Beckerr, cumpre essas exigências" (Deleuze, 1 992, p. 99).

1 56
já se antecipou, quando do comentário sobre Bill Viola, Smith
foi um artista decisivo da segunda metade do século XX. Ele
influenciou fundamentalmente tanto correntes de investiga­
ção nas artes plásticas e visuais como os procedimentos fílmi­
cos e cênicos, nos Estados Unidos dos anos 1 960 e 70. Como
um profeta desarmado, manteve sempre em seus processos
criativos uma combinação rara de intensidade visionária e in­
transigência contra o mercado de arte, o que o foi isolando até
sentir-se completamente só em sua luta.
Assim como Viola, Smith se destaca entre os artistas do
século XX que, pode-se dizer, atualizaram a noção de mimesis,
reposicionando-a frente às pulsões antimiméticas das chama­
das vanguardas históricas e à propositada confusão entre arte e
vida, anunciando sua persistência em novos termos, como ins­
tância performativa. Suas ideias e obras reverberam a partir de
Nova York, no fim dos anos 1 950, com a mesma abrangência
e intensidade verificada, por exemplo, nos casos de Stéphane
Mallarmé e Alfred Jarry, a partir de Paris, no fim do século
XIX. Como no caso daqueles dois artistas referenciais para a
poesia e o teatro modernos, a poética de invenção radical de
Smith irradiou-se por diversas frentes e meios, tornando-se
paradigmática e alcançando a cena contemporânea.
Esta secção foca na obra artística e na vida tornada arte
de Jack Smith. Parte-se da já consensual e histórica influência
de seus filmes, performances e atitudes sobre todos os artistas
norte-americanos que foram seus contemporâneos de geração,
para propor conexões com artistas que construíram trabalhos
de natureza espetacular nos últimos vinte anos, nomes como
Matthew Barney e Romeo Castellucci. Como eixo comum
para essa leitura há a percepção, a despeito da especificidade
e singularidade do trabalho desses artistas mais recentes, de
uma opção comum pela criação de espetáculos estruturados
menos pela conectividade de ações consequenciais e mais pela
composição de imagens e pelos elementos performativos. De
algum modo, Smith revela-se a matriz de uma mimesis aberta,

1 57
ou imune ao encaixe inexorável a um referente que, anima­
da pela perspectiva do colapso, da não efetivação e da falha,
torna-se recorrente nos dias atuais e que tem, mais contempo­
raneamente, nos dois artistas citados expressões marcantes e
singulares.
Uma dificuldade na abordagem do legado de Smith é o
fato dos seus textos e depoimentos, que poderiam servir como
base de seu programa estético estarem eivados de metáforas e
alegorias atinentes a um mundo simbólico particular, que ele
criou e pelo qual trafegou incólume a vida toda, além do fato
de a maioria de seus filmes terem permanecido inacabados e
haver pouquíssimos registros documentais de suas performan­
ces. Ainda assim, alguns núcleos de seu trabalho são muito
referenciados. Ressalta-se entre estes sua obsessão pela figura
exótica de Maria Montez, jovem atriz da República Domi­
nicana que nos Estados Unidos, durante os anos 1 940, es­
trelou alguns filmes em tecnicolor nos estúdios da Universal.
O fato de Smith tê-la · transformado em ícone maior de sua
estética, e em objeto de verdadeira adoração, camufla mais do
que revela seus rigorosos pressupostos como artista. De fato,
nos poucos textos seus publicados sobre a atriz e sobre a visão
do cinema que ela lhe inspirava, transparecem, para além de
uma fixação obsessiva, os fundamentos de um ponto de vista
muito claro do seu projeto artístico. Essa per�pectiva se revela,
por exemplo, nos artigos "The Perfect Filmic Appositeness of
Maria Montez" e "Belated áppreciation ofV.S", ambos publi­
cados na revista Film Culture no início dos anos 1 96037• Nos
dois casos, sendo que no segundo o foco é o cineasta alemão
Von Sternberg, a questão central é perceber o quanto a estraté­
gia de explorar uma baixíssima qualidade de interpretação de
determinada atriz em um filme resulta num distanciamento
da trama e em um direcionamento do olhar dos espectadores

37. "lhe Perfecr Filmic Apposireness of Maria Monrez", Film Cultur�. 27, Winrer, 1 962-
1 963; "Belared appreciarion ofV.S", Film Cultur�. 3 1 , Winrer, 1 963-1 964.

1 58
para as imagens ou, poder-se-ia sugerir, para a superfície da
tela. A simplicidade dessa assertiva não diminui o peso ter­
rível que ela terá em toda a arte fílmica e cênica que se fará
a partir das criações de Smith. Se Maria Montez era dita ser
a "pior atriz do mundo" e Marlene Dietrich aparecia nos fil­
mes de Sternberg como a projeção visual do diretor, que a via
como "um travesti brilhante em um mundo de aventuras de­
lirantemente irreais", as consequências dessas limitações eram
permitir que aflorasse em toda sua potência a dimensão visual
do filme. Como diz Smith, exemplos de "como a informação
visual informà'. Esta colocação singela, situada em oposição
ao pressuposto tradicional de que um bom filme é uma boa
história, ou roteiro (mythos), demarca a importante inflexão
proposta por ele e que reverberaria intensamente nas artes
norte-americanas e mundiais a partir dos anos 1 96038, em que
se destaca a superfície contra a linha - como pontuaria Flusser
- ou o espetáculo (opsis) sobre o enredo dramático.
A hipótese que aqui se insinua é a de que a revolução es­
tética decorrente das ideias e obras de Jack Smith tem nessa
inversão radical de foco para o cinema, e para as artes visuais
de uma maneira geral, o seu vetor dominante. Em um país
cuja tradição de narrativas fílmicas era tão arraigada - para­
doxalmente "um país em que os cegos vão ao cinemà'; como
sintetizou Smith39 - e onde se localizava a principal indústria
cinematográfica do planeta, a quixotesca proposta de Smi­
th tenderia a permanecer isolada como uma excentricidade,
como de fato, à primeira vista, aconteceu. Ao mesmo tempo,

38. No capítulo 3, item I foi pontuado como Smith antecipa argumemo usado por Michael
Fried na análise que faz dos filmes de Douglas Gordon.
39. "Neste pais o cinema é reconhecido pela sua história. Um filme é uma história, é tão
bom quamo sua história. Boa história - bom filme. História inusual - filme inusual, etc.
Ninguém questiona isso. É aceito em todos os níveis, mesmo nos níveis de "o filme é
um meio visual", por ser sustentado que os aspectos visuais sáo escritos primeiro e emáo
tornados vivos por um grande cinegrafista, diretor. Neste pais os cegos vão aos cinemas.
Não há quase filmes que cego experieme e perspicaz não possa apreciar" (Smith, 1 997,
p. 41).

1 59
a insidiosa influência dessa ideia subversiva nas obras de tan­
tos artistas seus contemporâneos, como na de muitos outros
que nem chegaram a conhecê-lo, atesta que seus efeitos foram
muito além do que seu autor poderia supor, principalmente
se for levado em conta o isolamento a que se submeteu, resis­
tindo de todos os modos a ser absorvido pelo mercado de arte
e mantendo até o fim uma autonomia persistente e radical
frente às tentativas de assimilá-lo.
Jack Smith percebeu, ainda na década de 1 950, que entrá­
vamos numa era em que os elementos visuais hegemonizariam
as narrativas. Na intuição de que os sentidos áudio-tácteis e os
elementos performativos seriam incrementados na apreensão
dos espetáculos, e modificariam os próprios padrões de recep­
ção artística, antecipou, muito mais do que a obra de artistas
consagrados como Andy Warhol e Robert Wilson, que nele
beberam fartamente, algo como o modus operandi da arte con­
temporânea.
A radicalidade e fabulosa influência das ideias e realizações
de Smith transborda de todos os meios em que ele experi­
mentou criar, e uma revisão de seus passos na cena de Nova
York nas décadas de 1 950, 60 e 70 é a melhor forma de expli­
citar isso. Tendo chegado à cidade em 1 953, vindo do Texas,
onde cresceu e realizou seu primeiro filme - "Buzzards over
Baghdad" - um anos antes, Smith destacou-se inicialmente
como fotógrafo. Conseguiu trabalho em um laboratório de
fotografia e iniciou sua formação como artista frequentando,
em museus da cidade, cursos de composição da imagem na
tradição pictórica. Já nesses seus primeiros trabalhos revelava-se
uma apropriação notável de formas canônicas de organização
da imagem, de mestres da pintura como Poussin ou Delacroix,
carregada com uma intensidade barroca no acúmulo de obje­
tos e detalhes visuais, muitas vezes colhidos diretamente das
ruas. Logo ele começou a fazer fotos de moda e chegou a ter
uma inserção profissional de relevo nesse meio, mas a pro­
ximidade com alguns jovens cineastas interessados em expe-

1 60
rimentar novos caminhos para o audiovisual, e a militância
intelectual em revistas como a Film Culture, onde escreveu
alguns de seus textos programáticos, o afastariam do mercado.
Deste período, no fim dos anos 1 950, em que Smith realizou
suas primeiras exposições de fotos já como um artista singular,
o melhor legado é o livro de 1 962, lhe Beautiful Book, que
reúne uma mostra representativa de sua fotografia e comprova
a opinião de muitos comentadores de sua obra. Estes vêm ali,
naquelas fotos, já a base da gramática visual revolucionária que
ele estenderia para os seus filmes e suas performances40• No
mesmo ano em que publicou essa seleta de suas fotografias,
com imagens exóticas e surpreendentes, e enfático caráter per­
formativo, realizou seu segundo filme, "Flaming Creatures",
que se tornaria seu trabalho mais famoso, tanto pela polêmica
que gerou quanto pela cristalização de uma nova visualidade.
O filme muito influenciaria artistas norte-americanos de sua
geração, como, também, cineastas do porte de Federico Fellini
e Jean-Luc Godard. Todo rodado no apartamento de Smith no
Lower East Side de Nova York, sua exibição foi proibida com a
alegação de que se tratava de pornografia. A resistência à proi­
bição, com a realização de sessões clandestinas em Universida­
des, virou um caso de polícia, atraindo atenção de intelectuais
famosos, como Susan Sontag, que saiu em defesa de Smith em
artigo publicado em 1 964, ano da proibição4 1 • Uma análise
detida do filme foge ao escopo deste trabalho, mas todos os
detalhes, com diversas e contraditórias interpretações, podem
ser obtidos nos livros On ]ack's Smith Flaming Creatures, and
other secret-flix on cinemaroc, de J. Hoberman, e Flaming Cre­
atures: jack Smith, His Amazing Life and Time, editado por
Edward Leffingwell, Carole Kismarc e Marvin Heiferman,
este o catálogo de uma grande exposição retrospectiva reali­
zada em 1 997. O que importa salientar, a fim de encaminhar
40. O livro foi republicado em 2001 pela Granary Books.
41. Sonrag, 1984, p. 27. O filme pode ser assistido no sítio <www.yourube.com/
watch?v=YrAIBrWpDSW>.

161
a discussão para os pontos que estão aqui em foco, é que com
"Flaming Creatures" Smith tornou visível, com uma liberdade
que seus contemporâneos desconheciam, um estranho mundo
imaginário estabelecido mais por imagens do que por palavras
ou conceitos, e apresentando uma sintaxe basicamente visual,
despida de estrutura dramática reconhecível e sustentada ape­
nas no desempenho dos intérpretes, filmados em ações fora de
qualquer contexto ficcional apreensível. Os corpos estão nus,
as genitálias e seios à mostra flácidos e despidos do erotismo
persuasivo da pornografia tradicional, e nada no filme reco­
menda uma recepção previsível, tudo sugerindo uma urgência
e uma loucura que, hoje, ainda vitalmente expressos, explicam
o impacto que teve sobre seus espectadores.
Em documentário de Mary Jordan sobre Smith - "Jack
Smith and the Destruction of Atlantis" -, há um depoimento
do artista sobre a frustração que foi ter seu filme proibido. Ele
culpa o documentarista Jonas Mekas de ter se aproveitado da
situação ao fazer um cavalo de batalha com a proibição para se
promover, o que acabou gerando um processo j udicial em que
ele, o autor, nem chegou a ser ouvido e fez com que o filme
permanecesse interditado para sempre, já que o j ulgamento
dos recursos pela sua liberação nunca chegou a ocorrer. O im­
portante dessa experiência frustrante, contudo, foi que nunca
mais Smith encarou os procedimentos habituais de veiculação
cinematográfica como viáveis. Já no filme seguinte "Normal
Love", de 1 963, em que acrescentava ao seu universo de cor­
pos nus e membros flácidos cores e cenas externas, nunca che­
gou a finalizar uma versão definitiva. A partir daí todas as pro­
jeções do filme foram feitas pelo próprio Smith, sempre com
variações na ordem dos rolos, criando uma tradição, que seria
seguida por muito cineastas posteriores em todo o mundo, de
transformar a própria exibição fílmica em uma performance,
ou espetáculo em tempo real. Essa prática estendeu-se a uma
outra modalidade de projeção, no caso de slides, que também
· se tornou corrente na prática artística dele nas décadas seguin-

1 62
tes. É justamente esse caráter fortemente performativo na obra
de Smith que a torna referencial para toda produção posterior
e à reflexão contemporânea. De algum modo, essa incomple­
tude que caracterizou sua filmografia está presente também
em sua própria produção como performer, já que em suas
apresentações, sempre realizadas em seu apartamento e a que
acorriam artistas e intelectuais de Nova York, a marca mais no­
tável era o caráter sempre inacabado das obras. No filme cita­
do há depoimentos de gente que compareceu a performances
em que Smith passou várias horas preparando apresentações
que acabavam só acontecendo no fim da madrugada e sendo
vistas pelos poucos que tinham resistido à espera. Pensando es­
sas apresentações pelas poucas imagens que restaram gravadas
das mesmas, o estilo ou a linguagem performativa caracterís­
tica de Smith era uma protelação constante, ou um cauteloso
prosseguir adiante sempre de caráter tentativo, que se manifes­
tava tanto em seu desempenho espetacular, quando se exibia
a plateias, quanto em seu cotidiano, na conversa com amigos.
Stephen Brecht aponta nessa direção quando comenta,

Todos os gestos de Smith são hesitantes. O simples levan­


tar de um objeto ou segurar de uma corda torna-se uma
tarefa séria que ele realizará, mas que ele não parece saber
bem como cumpri-la. Ele tenta de diversas maneiras - em
frente a você - e talvez desiste de algumas delas muito
rápido Ele está analisando como fazê-lo ao mesmo tempo
em que o faz. Trocando um slide por outro, ele para de
puxar o primeiro enquanto um canto da imagem ainda
está na tela, e então puxa-o de uma vez. Talvez não esteja
seguro de estar fazendo a coisa certa. Qualquer urna de
suas performances contém muitos episódios como este"
(Brecht, 1 978a, p. 1 6).

Seria possível dizer, a partir de comentários como este e de


registros de apresentações de Jack Smith, que nas suas perfor­
mances, sejam aquelas a partir de projeções, sejam as que im-

1 63
plicassem apenas em sua atuação direta, não importava o que
fosse acontecer, pois poderia ser que nada acontecesse mesmo.
Nem importava se havia um começo, pois poderia ser, tam­
bém, que não se divisasse um fim , mas, apenas, se constatasse
o ato de se estar fazendo. É como se o traço performativo,
que foi apontado como uma característica da mimesis contem­
porânea, ali saltasse proeminente sobre o mythos ensejando a
dominação do opsis. Smith anuncia, pioneiramente, o foco no
performativo, ainda que, como uma cortina de fumaça, sua
imaginação desenfreada recheie a cena, ou a tela, com ima­
gens intrigantes na sua insólita autonomia frente ao mundo
real. Seu interesse está sempre mais voltado para a dinâmica
do ato criativo em curso do que para o que está sendo criado,
o que não quer dizer que ele não fosse extremamente meticu­
loso no controle que pretendia exercer sobre o que estivesse
criando, e obsessivo, no sentido estético, de procurar sempre
um jeito melhor de fazê-lo. É por tudo isso que se pode falar
aqui de uma performance inacabada em Jack Smith, já que
é j ustamente essa constante e precária situação inconclusiva
que marca o seu desempenho ativo e simultâneo à criação das
obras e, por tabela, contamina a sua sintaxe plástica e visual
com uma precariedade que redunda, inclusive, na impossibili­
dade de se efetivar uma leitura definitiva.
Ao mesmo tempo, para além desses cuidados extremos na
realização, outra marca original de Smith era oferecer uma al­
ternativa poética, ou produtiva, ao projeto de fusão de arte e
vida, que está presente nos horizontes da arte do século XX
desde as vanguardas históricas. Em Smith esses planos, a par­
tir do momento em que ele se aprofunda em seu processo
criativo depois de "Flaming Creatures", nunca deixaram de se
confundir. O que definia, contudo, um estilo único e reverbe­
ra até hoje, como se pretende evidenciar, era o abandono de
qualquer viés realista, no sentido de se pretender uma auten­
ticidade frente ao mundo real. Ao contrário, Smith mistura
arte e vida e as condiciona a um regime imaginário em que

1 64
as pessoas reais, e os lugares reais, ganham nomes e estatutos
de fantasia. No limite, ele propõe uma mimesis performativa
hiperbólica, em que o criador instaura por acúmulo de refe­
rências um mundo outro, completamente autônomo. Seria no
termos de Halliwell uma mimesis heterocósmica, que esteve
nos planos dos sim�olistas e mesmo dos surrealistas, mas que
Smith realiza em seus filmes e performances, paradoxalmen­
te, com uma acachapante precariedade de meios e uma ética
radical de operação pelo colapso e pelo inacabado. Segundo
o amigo Ken Jacob, que o conheceu quando chegou a Nova
York em 1 953, Smith criou uma persona que o acabou engo­
lindo por completo. Como disse Jacobs no documentário su­
pracitado de Mary Jordan, "ele se tornou sua própria criatura
flamejante". Nesse mundo de fantasia que passa a lhe parecer
mais real que a vida de todos os dias, proliferam personagens
híbridos de pessoas reais e imaginárias - o tio anzol (uncle
hook) que é como ele chamava Jonas Mekas, e vingam con­
ceitos poéticos como o "lagostarealismo" (Lobsterrealism), ou
o locatarismo (Landlordism) , que era a praga que ele iden­
tificava como promovida pelos locatários, alvo constante de
uma entre as muitas campanhas inglórias que lançou no vazio
(houve uma por manter o Museu de Arte Moderna de Nova
York aberto durante as madrugadas). Com essa radicalidade
nas atitudes e obras foi natural que ele fosse se isolando ao
longo do tempo e deixando pelo caminho parceiros geracio­
nais. Se nos seus primeiros filmes contou com a participação
de atores, atrizes e diretores importantes, que orbitavam em
torno dele imantados por suas ideias inusitadas - e ele próprio
colaborou decisivamente com Andy Warhol, Robert Wilson
e Joe Vacaro, do Ridiculous Theatre -, já na década de 1 980,
passou a atuar completamente só. O melhor exemplo desse
encolhimento de sua área de influência e de sua autossufici­
ência é a performance desenvolvida numa viagem à Itália e
depois apresentada diversas vezes nos Estados Unidos, que
chamou de "Pinguim paníca (sic) no deserto alugado" . Ali seu

165
único colaborador era um pinguim de pelúcia que passou a ser
o parceiro mais constante nas apresentações que fez em seus
últimos anos de vida. Essa evolução no seu trabalho, que vai
ficando cada vez mais econômico nos recursos e sintético na
retórica performativa, é acompanhada de uma radicalização
na recusa ao sistema capitalista e ao lugar no mercado que a
arte tinha passado a ocupar. Um artista como Andy Warhol,
que fez seus primeiros filmes emulando os filmes pioneiros de
Smith e que também contou com ele como ator e assistente,
em outros filmes, tornou-se, numa espécie de perfeita assime­
tria, o oposto exato do que Smith imaginava que o artista de­
veria prover. Com suas obras muito valorizadas e milionário,
Warhol mereceu, nos últimos anos de Smith, o seu profundo
desprezo. O músico John Zorn sintetiza esse sentimento na
frase: "Jack Smith era o verdadeiro Warhol". No já citado fil­
me de Mary Jordan o mesmo Zorn define a inestimável con­
tribuição de Smith à arte de seu tempo. "Em Jack Smith o que
importa não é o filme, mas como ele filma". A definição, na
sua simplicidade, não podia ser mais oportuna para enfatizar o
aspecto deste artista ímpar que se está aqui a destacar. Além da
dimensão performativa, já indicada, salta aos olhos a grande
contribuição por ele oferecida na renovação da mimesis espe­
tacular contemporânea, estendendo significativamente a mar­
gem de invenção possível em várias direções, mas principal­
mente no que diz respeito a uma inversão radical entre mythos
e opsis, no cinema, nas artes cênicas e performativas e, até na
pintura e na fotografia. A sintaxe visual de Smith abre espaços
inauditos, explora novas possibilidades de pensar o humano e,
na toca do dragão, no país de Hollywood, reinventa o cinema
contra a sua banalização como narrativa do mundo.
A cinematografia de Smith também se insere numa tradi­
ção que encampa teatralidades ç performatividades abertas, ou
não dramáticas, em que os aspectos visuais, desentranhados
de dramas e enredos bem definidos, se sobrepõem e imperam.
Participa de uma linhagem que passa pelos primeiros filmes

1 66
dadaístas como "Entr'Act", de René Clair - filmado para o
performance/espetáculo de Picabia "Rêlache" � ou pelos fil­
-

mes de que Artaud participou indiretamente como "A Concha


e o Clérigo", e que se estende pelo cinema surrealista e pela
tradição da nouvelle vague, chegando ao cinema experimental
contemporâneo. De fato, mais do que um fenômeno restri­
to ao campo cinematográfico, a obra de Smith é um diálogo
direto com a história da arte moderna, principalmente com
aquela linhagem em que o projeto de absorver o espectador
na ficção da obra, tão caro a Fried, colapsa em favor de um
jogo menos turvo, ou menos dissimuladc;>, em que a represen­
tação recusa-se a ser absorvente frente à percepção do receptor
e almeja uma aspereza que opere em sua imaginação como
um ignoto sem endereço certo ou ponto de chegada. A seu
modo, trabalhando pelo excesso e pela abundância, como na
arte barroca, Smith, constrói seja em película, nas fotografias,
slides e filmes, seja no espaço e no tempo de suas performan­
ces, com espetáculos, imagens e dimensões materiais refratá­
rias às leituras de tramas claras e ações consequentes, uma obra
não absorvível a priori, ainda que capaz de cativar e entreter
pelas suas características enigmáticas. Se, por um lado, os as­
pectos figurativos e as múltiplas referências a que remete e que
irrigaram algumas das correntes dominantes da teatralidade
pós-moderna - androgenia, cultura glitter (da purpurina), cul­
tura camp e cultura do trash ou do kitsh - poderiam sugerir
um compromisso com o Pop, e com meios da cultura popular
como a televisão, de fato, a obra de Smith é maior do que esse
nicho em que foi historicamente abrigada. Seu resgate aqui
aponta para a influência menos óbvia que teve, e até sugere
uma paradoxal proximidade com artistas seus contemporâne­
os de quem nunca se aproximou, como os minimalistas, e que
lhe seriam estranhos numa apreciação que fosse estrita na de­
limitação de territórios estanques como artes plásticas, teatro
e cinema. A própria natureza expandida da criação de Smith,
transitando em fluxos não condicionáveis, faz com que seu

1 67
processo construtivo, sempre inacabado e sujeito a novos exa­
mes, reverbere tanto em artistas e fenômenos eminentemente
cênicos e performativos - os teatros de Robert Wilson, Ri­
chard Foreman, ou as performances de Cindy Sherman e Gui­
lhermo Gomes-Pena - como plásticos e visuais - o cinema e as
fotografias de Andy Warhol ou as mais recentes instalações, fil­
mes e narrativas antidramáticas de Matthew Barney. Como as
aproximações com Wilson ou Warhol já se tornaram canônicas
no meio especializado em sua obra, interessa-me aqui, focando
no veio da mimesis performativa, fazer essa mediação menos
consagrada com a obra de Barney. Percebo ali não só uma
qualidade heterocósmica, muito semelhante à observada no
verdadeiro universo paralelo criado por Smith, como a potên­
cia semelhante de construir uma narrativa não articulada na
perspectiva dramática, e, ao contrário, organizada de maneira
mais afeita ao que já se observou em outros artistas analisados,
como mimesis performativa não cognoscível.

5 BARNEY E CASTELLUCCI:
-

INVENÇÃO D E CENAS SEM TEATRO

Dois exemplos flagrantes de invenção, contemporanea­


mente, de formas espetaculares radicalmente inovadoras, são,
seria justo dizer, o norte-americano Matthew Barney e o italia­
no Romeo · Castellucci, cada um partindo de campos distintos,
das artes visuais, o primeiro, das artes cênicas, o segundo, para
realizarem exemplos acabados do que se está nomeando de mi­
mesis performativa. Antes .de focar em suas produções, porém,
vale fazer algumas considerações sobre uma linhagem de ence­
nadores que os antecipam ou de cuja linhagem inventiva eles
participam. Desde Gordon Craig, aliás, é possível aproximar
esses campos das artes visuais e cênicas, e mesmo nas últimas
décadas localizam-se artistas plásticos e visuais que migraram
para o teatro e nesse deslocamento o renovaram. O próprio
Craig, mesmo sendo um filho da tradição teatral da Inglaterra

1 68
do período vitoriano, e tendo percorrido uma bem-sucedida
carreira de ator da infância até a maioridade42, teve um ponto
de virada depois que passou a dedicar-se à gravura, num perí­
odo de dois anos de afastamento dos teatros e de prática diária
como artista visual, o que influenciaria decisivamente as no­
vas visões que desenvolveria para a cena e a revolucionariam.
Pode-se dizer que foi essa habilidade para desenhar e gravar
que lhe permitiu tornar visíveis as cenas de um novo padrão
teatral, já que elas se apresentaram e o notabilizaram muito
antes que tivesse os meios de encená-las, e, até certo ponto,
só serem mesmo realizadas por artistas posteriores a ele. Ou­
tros dois nomes mais recentes, que são consensualmente reco­
nhecidos como gigantes fundadores da cena contemporânea
e legítimos herdeiros de Craig, o polonês Tadeusz Kantor e
o norte-americano Robert Wilson, têm em comum a origem
nas artes plásticas, o primeiro como pintor e o segundo como
arquiteto. Ambos estes artistas, consagrados por terem cria­
do tradições, consolidadas nos últimos quarenta anos, a partir
da invenção de novos modos de se pensar e fazer teatro, são
completamente alheios à tradição dramática e erigiram suas
obras com instrumentos e procedimentos emprestados das ar­
tes visuais. Haveria outros exemplos, mas estes bastam para
evidenciar a produtividade de se aproximar estas artes, antes
separadas como essências depuradas que não se misturassem,
em uma dimensão espetacular e performativa comum, para
além de um entendimento do teatro apenas no plano dramá­
tico e da pintura e escultura pensadas como formas restritivas.
No caso de Kantor, já falecido, cuja obra teatral, marca­
da por uma originalidade ímpar pode também ser inserida
na história das artes plásticas do século XX, destaque-se que
constituiu uma cena irreproduzível, já que seus espetáculos
são embates constantes com a representação e suas partituras
42. Filho da famosa atriz Ellen Terry e afilhado do grande ator Henry lrving, duas importan­
tes figuras do teatro inglês no período, trabalhou até o fim da adolescência na companhia
deles.

169
não autorizam nem viabilizam que se os refaçam, o que Ja
os diferencia sobremaneira da tradição dramática, caracteriza­
da pela possibilidade de sempre se encenar de novo um certo
texto. Desse modo, Kantor, na fricção que propõe à mimesis
realista, tem uma obra teatral à prova da convenção dramática,
ou cuja radical recusa ao drama convencional permanece ope­
rando mesmo sem Kantor para defendê-la. A herança visual
de sua obra, tanto configurada em esboços e croquis como fi­
xada em fotos e vídeos, continua operando significativamente
como registro de uma forma rara e singular de espetáculo, que
funde campos e avança os limites na invenção de uma mimesis
performativa.
No caso de Robert Wilson, desde sempre seu método de
trabalho esteve muito próximo daquele habitual aos arquite­
tos, que traçam visualmente seus projetos antes de realizá-los.
O fato de nos últimos vinte anos Wilson ter se voltado para a
tradição dramática, e encenado diversos clássicos da dramatur­
gia de todos os tempos, não muda em nada sua marca incon­
fundível de recusa da teatralidade convencional, esta que visa
à absorção psicológica do espectador, e, por outra, de constru­
ção da cena a partir de seus aspectos externos, visuais, plásti­
cos e sensoriais, que friccionam e trituram qualquer matéria
dramática que venham a confrontar. Sempre fiel a seu método
construtivo em que, mais do que montar textos, constrói cenas
·concretas como se fossem casas para a habitação dos sentidos,
Wilson tornou-se clássico, ou constituiu uma tradição, não
menos do que qualquer grande artista de sua geração, como
Richard Serra ou Bruce.Nauman. Seu legado, contudo, não é
dramático, já que, como no caso de Kantor, seus espetáculos
são materialidades provisórias aptas até a serem reconstituídas
como uma exposição de um artista morto, mas nunca a serem
tomadas como dramaturgias sujeitas a novas encenações.
Um último ponto a ressaltar, no que tange a Tadeusz
Kantor e Robert Wilson, é como cada um deles, enquanto
artistas plásticos, se posicionou frente à tradição projetada por

1 70
Gordon Craig da arte do teatro como arte do movimento,
ou de uma "poética da cena''. Nenhum dos dois artistas ja­
mais explicitou especificamente esse ponto, com a diferença
de que Kantor, um profuso produtor de teoria teatral a partir
de sua própria obra, referiu-se algumas vezes a Craig, enquan­
to Wilson não escreveu nada a respeito. Baseando-me apenas
em suas obras espetaculares e no caráter inventiva que ambas
partilharam, arrisco sugerir que, enquanto o primeiro produz
o desencantamento do sonho de Craig, quase que anuncian­
do a decadência e o esgotamento daquele projeto, o segundo,
em contrapartida, simultânea e paradoxalmente, representa o
apogeu deste mesmo projeto ou sua plena realização.
Feitas estas considerações, parte-se agora para tratar dos
dois artistas contemporâneos já apontados no início dessa
seção, que tem em comum trabalharem uma noção de tea­
tralidade expandida, não só não mais restrita ao dramático,
mas inventiva no plano das formas espetaculares e ampliando
as possibilidades das mesmas em novos termos. Selecionados
entre vários outros artistas potencialmente arroláveis nessa ca­
racterística híbrida, eles têm em comum a origem nas artes
plásticas e conseguem, seja partindo do campo das artes visu­
ais e expandindo-as ao cinema e à performance como no caso
de Barney, seja elegendo como suporte a caixa cênica, como
no caso de Castellucci, borrar os limites entre esses territórios
com premissas e procedimentos distintos.
No caso de Matthew Barney, artista norte-americano que
se tornou mundialmente famoso na primeira década do atual
século, quando completou sua obra em progresso, realizada
entre 1 994 e 2002, o "Ciclo Cremas ter", interessa explorar
como realizou essa fusão de linguagens. O "Ciclo Cremaster"
é uma obra que, mesmo envolvendo suas habilidades como
escultor, pintor e fotógrafo, e tangenciando seus dotes de ci­
neasta, aflorou legitimamente seus talentos como ator e per­
former, e, mais do que tudo, aqueles de que dispunha como
encenador. O caráter monumental do "Ciclo Cremaster" é ex-

171
plícito. Exibido em sua totalidade - cinco filmes apresentados
em sequência, simultâneos à exposição de objetos, esculturas
e imagens que constituíram cada um deles - comporta, na
sua versão mais acabada, a apresentada no Guggenheim Mu­
seum de Nova York, o próprio espaço daquele museu. Isso
porque, no terceiro filme do ciclo (o último a ser rodado) ,
Barney aparece escalando os cinco andares do Guggenheim e
contracenando com personagens e vestígios de adereços dos
filmes em cada um dos andares. Essa coincidência tornou a
exposição/encenação nos Estados Unidos a definitiva, já que
nas montagens realizadas em Paris, na França, e em Colônia,
na Alemanha, o contato do público visitante com os materiais
expostos de cada um dos filmes não ocorria através do percur­
so das rampas circulares do museu norte-americano43•
Em sua crítica desta exposição realizada em Nova York,
Arthur Danto comparou o "Ciclo Cremaster" ao chamado
ciclo dos Anéis de Richard Wagner, tetralogia de quatro ópe­
ras interligadas temática e dramaticamente. Segundo Danto,
Barney teria criado uma " Gesamtkunstwerk (obra de arte to­
tal) contemporânea, juntando arte da performance, música,
cinema, dança, instalação, escultura e fotografià' (2005b, p.
235). Se é possível aproximar os projetos de Wagner e Bar­
ney pelas suas grandiosidades, tudo que se defendeu até aqui,
sobre uma das raízes da antiteatralidade do teatro no século
XX ser exatamente a recusa a Wagner e ao papel central que
o myhtos guarda em sua obra, desautoriza essa leitura. Na ver­
dade, ela desencaminha a posição defendida que não compre­
ende o "Ciclo Cremaster" nem como teatro, nem como artes
plásticas ou visuais, tampouco como cinema, mas sim como
um tipo peculiar de mimesis performativa contemporânea, tal­
vez nomeada de transgênica, em que cada um desses campos
dá lugar a uma forma ampliada de encenação. Ali convivem,
destacados ou fundidos, em um organismo híbrido que, ao

43. O ciclo pod� ser revisto na internet no sírio <http://www.cremasrer.ner/#>.

1 72
mesmo tempo, os amalgama e os contrasta. Até porque, além
de Wagner ser um marco referencial negativo para quem no
teatro moderno e na cena contemporânea recusa o dramático
e a ilusão de verossimilhança na representação realista, a gesa­
mtkunstwerk de Barney se caracteriza mais por justaposição do
que por fusão. Ou seja, como bem demonstrou Luiz Roberto
Galizia ( 1 986) em seu estudo sobre a obra de Robert Wilson,
que será comentado mais a frente, qualquer aproximação en­
tre este artista e Wagner na perspectiva de uma "obra de arte
total" tem que considerar que no caso do compositor alemão
as artes se fundem num único amálgama, como vimos no se­
gundo capítulo, fundidas no gesto dramático, enquanto em
Wilson elas se sobreporiam e manteriam suas identidades e
estranhezas umas frente às outras.
No caso de Barney, a diferença em relação a Wilson é que
seu projeto não se resolve numa encenação localizada, mas se
espalha por uma exibição difusa no tempo e no espaço. Essa
fragmentação ocorre tanto no sentido serial, de ser uma obra
desdobrada em cinco partes, como estruturalmente, já que
cada uma dessas partes não se resolve ou se esgota com a sim­
ples projeção dos filmes, ou com a disposição em museu de
seus elementos pictóricos e esculturais, ou ainda com qualquer
performance que possa ocorrer à margem das projeções e do
plano expositivo. Assim, se o mote da justaposição serve para
descrever a lógica construtiva operando na mimeis espetacular
proposta por Wilson, no caso do "Ciclo Cremaster", a totali­
dade, se é que cabe essa atribuição à obra, é mais rarefeita, ou
por outra, opera em um sistema mais complexo, que transcen­
de os campos estritos da teatralidade e da performatividade
e encampa questões da história da arte e do cinema. De um
certo modo, mesmo se sabendo que a reflexão e a obra de Jack
Smith muito influenciaram Robert Wilson, elas reverberam
de uma maneira mais explícita no trabalho de Barney, exata­
mente pelo hibridismo e pela dificuldade de se qualificá-lo em
termos de gênero e de campo estético. Os elementos aglutina-

1 73
dores ou as ligaduras da sintaxe de imagens de Barney parecem
operar, como no caso dos filmes e performances de Smith, de
forma mais orgânica, por combinação de elementos que se
agregam e se transformam em terceiras coisas, sem guardar as
arestas originais, dificultando a identificação de planos autô­
nomos no fluxo de apresentação e favorecendo uma fruição
também misturada, em que o espectador nunca acessa um
veio de leitura bem definido e permanece na deriva de uma
aproximação tentativa e titubeante. Retornando ao binômio
mythos e opsis, já que o caráter espetacular do "Ciclo Cremas­
ter" autoriza essa aproximação, há uma franca hegemonia do
opsis, ainda que o mythos, mesmo não afeito à cognição e ao
ilusionismo realista, tenha uma densidade semântica significa­
tiva, que resguarda alguma narrativa de caráter mais literário,
mesmo que enigmática e irresoluta. Mas, antes de prosseguir
na análise do espetáculo em Barney, vale desenvolver essa ideia
de uma mimesis performativa transgênica.
A biotecnologia denomina de expressão o processo bioquí­
mica em que um determinado DNA é reeditado, em função
de uma necessidade celular do organismo onde habita. Isso
ocorre por meio de uma síntese de determinada proteína que,
sendo necessária àquele organismo, usa o molde do DNA ori­
ginário para se efetivar. Na verdade, o DNA não exatamente se
duplica para permitir que esse processo de síntese da proteína
necessária se cumpra. Uma substância aparentada a ele, um
RNA (ácido ribonucleico), cumprirá o papel de mensageiro e
guiará aqueles aminoácidos pertinentes ao encadeamento da
proteína necessária. Esse movimento que cristaliza a expressão
do DNA é chamado de tradução, no sentido de que o idioma
DNA, transformado em RNA, se traduz em uma determinada
proteína. Aqui se teria, analogicamente, cumprida a operação
de mimesis como descrita por Aristóteles. Uma coisa se faz pas­
sar por outra e provoca o efeito que aquela provocaria sobre
uma terceira e com uma finalidade concreta. Mas, se seria le­
viano estender imediatamente a aproximação entre a biologia

1 74
molecular e as formas de representação da vida desde os anti­
gos até nossos dias, é produtivo aprofundar a questão da trans­
gênica em alguns casos específicos, como pertinente a algu­
mas expressões espetaculares contemporâneas. Para isso se faz
necessário entender como se dá o processo, hoje corriqueiro,
de interferência em sequências genéticas originais e de criação
de organismos vegetais, animais ou humanos geneticamente
modificados. De forma resumida, pode-se dizer que foi a partir
da observação dessa função mimética que o RNA exercia na
produção de enzimas proteicas produzidas pelo organismo
que os cientistas perceberam as possibilidades de se servir des­
ses procedimentos, em um primeiro momento com finalida­
des médicas. O passo seguinte dessa observação foi encontrar
uma forma de detectar os pontos de corte (termo utilizado
nas edições de vídeo) nas sequências genéticas. Assim, certas
enzimas conseguiam exercer a tarefa de cortá-las e selecioná­
las para, religando-as a outro gen, atingir-se as finalidades mé­
dicas esperadas. Isso aconteceu a primeira vez em 1 973, quan­
do se conseguiu interferir numa sequência de DNA de uma
bactéria a partir da descoberta dos pontos de corte onde essa
sequência se iniciava e terminava, e introduzindo-se nela o. gen
estranho de um sapo. O sucesso da experiência provou que o
DNA tinha uma estrutura universal, pois os gens do sapo e
da bactéria se conectaram sem problema e isso sugeriu, pela
primeira vez, que seria viável criarem-se verdadeiros híbridos.
Naquele caso a introdução do gen de um sapo numa bactéria
visava obrigar a bactéria a produzir a proteína do sapo. A téc­
nica foi batizada de DNA recombinante, mas passou também
a ser conhecida como engenharia genética. Em pouco tempo,
iniciou-se a produção de substâncias proteicas geneticamente
modificadas em quantidades industriais, através de bactérias
hospedeiras em tanques biorreatores44 • Estava criado o campo

44. Em 1 980 um cientista indiano ronquisrou o direito de propriedade na justiça none-americana


sobre a patente de um organismo vivo criado em laboratório, no caso bactérias gene-

175
para o sensacional desenvolvimento que gerou tanto a polê­
mica dos alimentos transgênicos como a dos animais danados
e a das células tronco obtidas de fetos humanos. As questões
éticas e filosóficas implícitas nessas operações podem ser re­
sumidas da seguinte forma: transferir genes inteiros de uma
espécie para outra, algo que na natureza só ocorre em situações
excepcionais e sob controle da seleção natural, é algo muito
diverso do trabalho de cruzamento de linhagens de plantas
e animais realizado há milênios por agricultores, que contam
apenas com a variedade implícita no próprio genoma do orga­
nismo para sobre ela exercer uma seleção.
A tentação aqui é compararmos a tradição mimética oci­
dental, que assistiu sempre as formas artísticas e os gêneros
literários e poéticos se influenciarem mutuamente num de­
senvolvimento "natural", e os procedimentos contemporâne­
os de justaposição e empastelamento de meios e suportes em
qualquer um dos territórios específicos das artes, em que se
transfiguram esses territórios e se apagam suas fronteiras. Se­
ria por certo precipitado, a partir desse entendimento escolar
do que seja o transgênico, estender imediatamente a aproxi­
mação entre a prática transgênica na ciência e os processos
miméticos contemporâneos. Mas, guardadas as proporções
e utilizando a referência da engenharia genética como uma
metáfora operativa, a grande revolução genética da arte e da
cultura, em que foram plantadas e semeadas todas essas varia­
ções contemporâneas, foi gerada pelas vanguardas históricas e
pelo modernismo. Esta herança aparece hoje difusa e impreci­
sa diante da promessa falhada de uma consumação final entre
arte e vida ambiciÓnada por aqueles movimentos, ainda que
seus fantasmas assombrem os cruzamentos atuais de técnicas
e procedimentos canônicos e borrem fronteiras entre eles, tor­
nando-os menos legítimos, no sentido da sua bastardia frente

ricamenre modificadas para rerem a capacidade de digerir petróleo e resolver desastres


ambienrais. Ver Brookes, 200 I .

1 76
às instâncias originais. Estas reagem e propõem recuos às pró­
prias delimitações anteriores, e buscam a reconciliação com a
figura, com a paisagem, com a narrativa linear, mas não sem
aprofundar as gramáticas visuais, a percuciência dos detalhes,
o alcance do olhar e reformar seus suportes e suas formas no
impulso dessas recombinações.
Nesse sentido, o transgênico é de fato emblemático não
só do homem contemporâneo como da arte em nosso tem­
po, quase que significando uma superação do mito moder­
nista do novo absoluto e da ruptura que apaga os sinais do
passado. O artista Eduardo Kac, por exemplo, que faz uma
arte explicitamente a partir das experiências transgênicas, me­
taforiza essa realidade e poetiza as potencialidades dessas ope­
rações científicas, mas com isso só exacerba e amplifica essa
evidência, não se diferenciando essencialmente daqueles que
realizam essas operações, até inconscientemente, em supor­
tes mais tradicionais. Se a questão do novo ainda pulsa nas
grandes exposições de artes plásticas, nos festivais de cinema
e nos laboratórios de teatro, ela está, de fato, totalmente des­
locada do lugar que ocupou há cem anos quando a grande
revolução modernista estava em curso. A antimimesis, ou pelo
menos a problematização da mimesis, que esteve no programa
dos princip ais artistas do século XX, vem sendo substituída e
recombinada numa assunção desses procedimentos transgê­
nicos e, até, reencontrando os ditames de Aristóteles, quando
este fala que a natureza às vezes só alcança sua plenitude às
custas de uma mão do poietés, que realiza e supre o que não se
pode fazer naturalmente. Assim, as possibilidades transgêni­
cas, como a concretização de algo que só existia em potência e,
não sucedendo naturalmente demandou artifício para ocorrer,
assemelha-se à mimesis como poiesis espetacular, seja na utopia
de uma não mimesis, ou na de um absoluto realizado, para
ficar em duas miragens que habitaram as esperanças humanas
no século passado. A operação transgênica, na medida em que
atua sobre o processo natural, interferindo nele e ao mesmo se

1 77
inserindo no seu fluxo inexorável, não despreza referências an­
teriores - adubo necessário à sua fertilização - mas existe prin­
cipalmente como um descortinar de novos horizontes vivíveis.
Se no plano da ciência tudo que for provável, capaz de ser
provado na experiência, já se terá tornado possível, no plano
da arte tudo que for imaginável, capaz de ganhar visibilidade,
será potencialmente realizável. Daí a importância da invenção
como motor da arte e da ciência.
Talvez essa potência que o homem do terceiro milênio se
arvora, ao lado da possibilidade de esticar seu tempo e escon­
der sua degeneração, o obrigue a pensar a arte, ou as espécies
de artes e seus respectivos gêneros como abertos a reexames
e novas interpretações, e não mais nos termos de um "novo"
absoluto. Estar-se-ia, pois, diante de uma ideia de "novo"
pós-hegeliana, não mais teleológica, e mais afeita à metáfora
nietzscheana do "hipódromo", que não pressupõe uma escala
evolutiva e cumulativa, mas que se reconhece como processa­
mento errático e recombinação contínua, repetição, e que não
cultiva a ilusão de um sentido unívoco, nem se perde numa
suposta falta de sentido, mas se reinventa sempre no avançar
retrocedendo. À semelhança de Deus (DNA), o homem que
manipula os gens e cria novos organismos, quando vai rea­
presentar o mundo em uma mimesis espetacular desconhece
os limites que demarquem um existente e um não existente
a ser buscado. Tudo será possível sempre, desde que caiba na
imaginação humana sobre as formas potenciais de existência,
ou na sequência de um DNA. Só que, enquanto a ciência,
em seu pragmatismo aplicado percorre as hélices inscritas em
cada gen em busca do ouro que cure doenças ou aumente a
produtividade agrícola, a arte contemporânea expande-se
fundindo seus territórios e refazendo paisagens configuráveis
ao olhos de poietés (produtores) visionários, parteiros de mime­
sis impensadas, encenadores de espetáculos inaugurais.
Isto nos traz de volta a Matthew Barney e a sua dita
mimesis performativa transgênica, que assim o é do ponto de

1 78
vista temático e estrutural. Temático porque o próprio nome
da obra remete a um processo orgânico celular cuja dinâmi­
ca influencia e determina seus aspectos formais45• Estrutural
porque, recombinando procedimentos cinematográficos, per­
formativos, cênicos, esculturais e pictóricos, Barney estabelece
um espetáculo que transcende os limites de cada uma des­
sas disciplinas artísticas conhecidas e as contrasta e readapta
em um novo conjunto. Este todo que resulta não surge por
concatenação, como em Wagner, nem por justaposição como
em Wilson, mas como um organismo com vida e leis internas
próprias e singulares, como, em última instância, um trans­
gênico, cujas leis internas não explicitadas pulsam e ditam os
rumos da obra. O uso de vaselina e resinas líquidas como se­
creções que pululam de diversas das instalações, bem como a
aparição de seres híbridos com partes humanas e partes que
remetem a animais indefinidos são exemplos eloquentes dessa
retórica da transgênica no "Ciclo Cremaster", que deixa suas
formas se contaminarem pelos seus procedimentos intrínse­
cos, bioquímicas e moleculares. Ao mesmo tempo, os múlti­
plos percursos de leitura que oferece, seja em termos da ficção
que estivesse a transcorrer, seja no diálogo inevitável com a
sintaxe cinematográfica, seja ainda na perspectiva da arte pic­
tórica e escultural que realiza, e que inevitavelmente remete
a tradições formais e linguagens artísticas anteriores, tudo ali
conspira na hibridação e na confusão de gêneros. Enquanto
mimesis performativa amplia as possibilidades de todas as artes
e linguagens que cruza e ao mesmo tempo inventa uma forma
espetacular nova e única, tão irreproduzível por um terceiro
quanto as encenações de Kantor e Wilson.
O outro artista que cabe ressaltar neste item reunindo in­
ventores contumazes de formas espetaculares genuínas fora do
teatro dramático, é o encenador italiano Romeo Castellucci,
45. Cremaster é um músculo do escroro masculino que sustenta os testículos. Sua aparição
no processo de desenvolvimento uterino do feto, demarca a definição do gênero sexual a
que pertencerá aquele ser humano.

1 79
um dos criadores, com Chiara Guidi e Claudia Castelucci,
sua irmã, da Sodetas Raffaello Sanzio. Ao lado de Matthew
Barney no que se define como campo de invenção espetacular
na cena contemporânea, esse coletivo partilha com ele alguns
aspectos, a despeito das diferenças radicais que existem entre
seus trabalhos e entre suas participações no panorama artístico
contemporâneo. Como Barney, Castellucci e suas colaborado­
ras vêm de uma formação enquanto artistas plásticos e buscam
desde seus primeiros trabalhos um diálogo crítico com a his­
tória da arte. Daí seja natural que elejam um dos grandes pin­
tores italianos da Renascença, Raffaello Sanzio { 1 423- 1 520),
para nomear sua companhia, cujas primeiras encenações re­
montam ao início da década de 1 980. No que diz respeito ao
percurso que se vem aqui traçando, interessa menos abordar
o conjunto da obra constituída pela Sodetas Raffaello Sanzio,
do que perceber a singularidade dos procedimentos construti­
vos de seus espetáculos e de sua inserção no panorama teatral
europeu. Para isso se torna exemplar observar alguns aspectos do
ciclo de onze espetáculos realizados entre 2002 e 2004 e nomeado
"Tragédia Endogonidià'. Iniciando-se e encerrando-se na cida­
de de Cesena, na Itália, sede da companhia, o ciclo implicou
numa coprodução de várias instituições e resultou em outras
nove encenações originais, ao longo de três anos, em diferen­
tes cidades europeias (Castellucci et al. , 2007)46•
Assim como no ciclo "Cremaster" de Matthew Barney, nes­
sa ambiciosa produção a referência principal, que já aparece
no seu título, é o universo da microbiologia. Endogonidia,
remetendo à realidade endócrina, ou das glândulas regulado­
ras do nosso organismo, quer designar o processo unicelular
de reprodução - partenogênese - em que organismos se re­
produzem de forma autônoma, sem fecundação. Esse sentido
biológico contamina a própria forma do espetáculo, ou dessa

46. O ciclo complero pode ser adquirido pela internet no sírio <hrrp://rarovideousa.com/
Tragedia-Endogonidia-by-Socieras-Raffaello-Sanzio>.

1 80
série de espetáculos, que se desenvolvem a partir de uma lógica
interna de suas partes materiais e não de uma ação heroica,
roteiro ou desígnio externos. Quanto ao primeiro termo do tí­
tulo, tragédia, define já o campo em que o coletivo de Cesena
está atuando desde seus primeiros trabalhos, ou seja, o da arte
teatral, em que os fatos artísticos, ou as obras, se apresentam
condicionados pela caixa cênica. Mas aponta também o ob­
jetivo de retornar aqui, ainda que em diálogo com a tradição
de uma cena autônoma e não dramática comum aos outros
encenadores do século XX mencionados, às origens do teatro.
Em uma entrevista de 1 999, antes portanto de ter início o
processo criativo que resultaria na Tragédia Endogonidia, Ro­
meo Castellucci já dava indícios de para onde caminhava sua
obra como encenador.

Todo trabalho que assume uma qualidade orgânica vai ao


encontro de sua própria e específica animalidade. Cada
trabalho pode ser resumido de uma forma animal. É esta
a maneira aristotélica de considerar o teatro. Uma boa
parte do teatro deve poder ser condensada em uma ima­
gem, que é a imagem do organismo, de um animal. [... )
O teatro é atravessado por esse problema, o da presença
de Deus, porque o teatro nasce para nós ocidentais quan­
do Deus morre. É evidente que o animal desempenha um
papel fundamental nessa relação entre o teatro e a morte
de Deus. No momento em que o animal desaparece da
cena nasce a tragédia. O gesto polêmico que temos em
relação à tragédia Ática é o de recolocar em cena o animal
dando um passo atrás. Revolver o arado sobre os próprios
passos, ver um animal em cena, significa ir ao encontro
da raiz teológica e crítica do teatro" (Castelucci, 2007,
p. 1 8 1 ) .

Se o comentário se aplica a espetáculos anteriores, em que a


presenç;1 de animas em cena era recorrente, antecipa de forma
clara a perspectiva que presidiria o processo criativo da Tra-

181
gédia Endogonidia, em que Castellucci vai radicalizar a par­
ticipação animal em seu trabalho. Dessa vez, evocando a raiz
etimológica dá palavra tragédia (o canto dd bode) , Castellucci
define que o autor de todas as palavras a serem enunciadas
nos espetáculos do ciclo será "um bode real e vivo" criador da
"poesia de nossa tragédia", que, como "um velho e ainda vivo
poeta" , escreve "descontra1'do e a seu b e l-prazer" . A col ocaçao,

antes de implicar em uma boutade, é a expressão cristalina


do que de fato ocorreu na produção Claro que foi necessá­
rio um esforço razoável para concretizar essa postulação, de
início uma proposição conceitual. Partindo de sequências
de proteínas correspondentes a três aspectos da composição
genética de um bode real, um macho de quatro anos, quais
fossem, o da respiração celular, do crescimento dos chifres e
o da putrefação, se definiram os termos alfabéticos de que
este "poeta" se serviria. A sequência de letras símbolo para
cada aminoácido das proteínas eleitas foi reproduzido em três
tapetes brancos estabelecendo-se um diagrama sobre o qual
o bode esteve livre para vagar. Como esclareceu Castelluc­
ci, "esse percurso traça uma constelação de letras que, conse­
quentemente, produzem uma escrita básica. O poeta faz uma
escolha e sua escolha é infalível" (Castellucci et al. , 2007, p.
48). Se não fosse pela explícita adoção da materialidade cêni­
ca como plano privilegiado de comunicação, preponderância
programática do opsis, que se configura nos seus espetáculos e
o aproxima de outros encenadores que escrevem com as ima­
gens e com a sintaxe de volumes, luzes e cores, como Robert
Wilson, Castellucci aqui subverte a própria tradição ocidental
do mythos, entregando a condução do mesmo a um animal,
no sentido de buscar um momento pré-trágico, anterior por­
tanto à própria teorização aristotélica sobre a tragédia. Nesse
plano, que poderia também ser reconhecido como da pré-lin­
guagem, a questão dos limites da ação representável segundo
Aristóteles, definidos pelos possíveis do mundo, imagináveis
e concebíveis ao ponto de serem cognoscíveis, é completa-

1 82
mente subvertida, pois o que se terá pelas mãos desse poeta
será necessariamente impronunciável, ou irreconhecível aos
seus interlocutores. Tratar-se-á de uma mimesis performati­
va de ações inimagináveis e, portanto, impossíveis de serem
identificadas definitivamente. De fato, tudo nesse espetáculo
de Castelucci, mesmo as imagens, parecem estranha e radi­
calmente não familiares. Ao mesmo tempo, e é isso que torna
esta cena irresistivelmente instigante, o encenador e seus co­
laboradores trabalham a partir do esqueleto da tragédia Ática,
como se o tivessem desenterrado, já despido das carnes e te­
cidos que o recheavam, o que torna toda a operação um eco
tardio daquela estrutura que se tornaria canônica no teatro
ocidental, ou uma exumação que a reencontra transfigurada,
potencialmente apta a uma reciclagem contemporânea. É o
próprio artista quem esclarece:

A estrutura dramática do ciclo Tragédia Endogonidia se­


gue aproximadamente o exoesqueleto da tragédia Ática; a
dissimilaridade mais gritante é a ausência do coro. Mas o
coro não é apenas retirado; ele é, por assim dizer, deixa­
do do lado de fora. Como um aluno de ginásio malcom­
portado que precisa meditar um pouco fora da classe. O
trabalho do coro era explicar os fatos, comentar sobre eles
e julgá-los; seguiu-se uma proposição educativa, moral.
Na Tragédia Endogonidia só há fatos, sem nenhum coro
(Castellucci et al., 2007, p. 3 1 )

Essa supressão do coro, que parece decisiva para esvaziar


os espetáculos do ciclo de uma narrativa ordenada, deixan­
do as imagens esculturais e a fala incompreensível do bode
"poetà' - tecida à base de letras isoladas correspondentes a
aminoácidos - como únicas referências de leitura, remete
a procedimentos experimentados na década de 1 960 pelo
ator e encenador italiano Carmelo Bene, uma das possíveis
influências da Sodetas Raffaello Sanzio, na medida em que
opera por subtração e encontra o novo nessa retirada de maré-

1 83
ria antes estrutural47• Mas dialoga diretamente com o ciclo de
Matthew Barney, na sua forma de concretização progressiva à
medida que cada um dos onze episódios foi se constituindo.
Castellucci pensou o processo como uma "evolução" em que
uma série de "bases" servem para a concepção de cada episódio
- a parte da tragédia grega em que, ausente o coro ocorria a
ação mimética e não diegética. Os episódios são assim gerados
em um mecanismo de crescimento osmótico, que Castellucci
chama de "endócrino", e é governado por uma lógica interna,
estabelecendo o caráter único de cada um deles. Como infor­
ma o encenador:

O episódio, por sua própria vontade, renuncia à coerência


e à totalidade da obra, de modo a colocar-se fora da nar­
rativa. O episódio não carrega o peso de uma mensagem a
ser despachada e comunica o mínimo possível, ainda que
isso não signifique que devesse ser tomado como um frag­
mento ou uma metonímia. Todos os episódios põem no
palco sua própria ontogênese e isso é tudo que eles podem
fazer. Um episódio está mais próximo de uma série de atos
puros e completos. É um meteoro que, à medida que pas­
sa, gentilmente toca a superfície do mundo. Permanece
desenraizado (op. cit., loc. cit).

Deslocado da função narrativa, ou com esta enfraquecida


em seu bojo, o episódio só pode ser "a pseudobiografia de um
herói", e a forma com que se engendra opera pela ausência, ou
pelo silêncio e pelo não dito. O que se tem é um "organismo
em movimento" cuja "forma" deverá ter a habilidade estratégi­
ca de reagir e mudar rapidamente para atender à pretensão de
"responder ao escopo destes tempos". Castellucci sintetiza ao
máximo sua proposição de tragédia definindo-a como "a arte
do anonimato", o que sugere um último comentário sobre esta
rara e singular mimesis performativa que ele propõe. Em um

47. Ver Deleuze, 1 997, p. 239-58.

1 84
texto denominado "No palco da Terra - geração endogoni­
dia", ele especula sobre o sentido do termo "concepção".

Concepção foi sempre oposta ao reino da realidade. Rece­


be, sem passar por julgamento, todos os fenômenos mate­
riais de acordo com um novo design criado por uma cega
e endócrina partenogênese (endogonidia). Concepção é
uma viagem no mundo, mas acolhe bem dentro de si um
plano para a suspensão e recapitulação de toda realidade.
Diferentes mundos e conhecimentos convergem de acor­
do com lógicas internas e estabelecem regras para vidas
endócrinas. Conceber significa receber (conceptus, con­
-captio, acolher dentro). Concepção torna-se um lugar
de incubação e pura invenção onde todo contato com o
mundo real é suspenso e adiado (Ibid., p. 32).

De algum modo, o que Castelucci problematiza aqui é a


questão da autoria que vale ser examinada também a partir de
como ele e suas duas parceiras constantes de criação assumem
as funções diretivas; Ele próprio assina em todos os episódios
a "direção", a "cenà', a "luz" e os "figurinos". Sua irmã Claudia
assina "a trajetórià' e a "escriturà' e Chiara Guidi a "direção"
e a "partitura vocal, sonora e dramática" (o texto do bode) .
Independentemente das nuances, inacessíveis ao observador
externo, que possam haver nessas atribuições assumidas pela
trinca de criadores, elas são suficientes não só para atestar o
caráter colaborativo com que trabalham, como para definir
uma nítida autoria. Esta, por sua vez, como se explicita na
citação acima, aparece deslocada tanto das funções habituais à
tradição milenar do poeta dramático (o poietés de mimesis de
uma ação ou trama) quanto da tendência já moderna do en­
cenador, ou poeta da cena, como se configura principalmente
a partir de Craig. Sim, estas funções específicas e tradicionais
estão de algum modo lá, operando na tessitura de uma sintaxe
cênica ou no estabelecimento de um roteiro de ações, mas o
fazem de forma tão diluída, e operadas de um ponto de vista

1 85
tão externo ao métier teatral e tão próximo de procedimentos
construtivos das artes plásticas e visuais, que sugerem que já se
está em um outro território, ou em uma região desterritoria­
lizada de especialidades. É essa característica que aproxima a
Socletas Raffaello Sanzio de artistas como Kantor, Wilson e de
tantos outros que, na segunda metade do século XX, literal­
mente inventaram novos modos de propor e fazer espetáculos.
Mas é ela também, como se quis aqui demonstrar, que situa
a companhia em sintonia direta com artistas plásticos con­
temporâneos como Matthew Barney, que remete a situações
anteriores à poética dramática, ou posteriores à poética cênica,
no que se poderia nomear tentativamente como mimesis per­
formativa do ignoto e do incognoscível.

1 86
v
O TEATRO B RASILEIRO E
ANTITEATRALIDADE

1 - QORPO-SANTO, GERTRUDE STEIN E A MIMESIS


COMO I NVENTÁRIO PERFO RMATIVO

a sequência desta investigação em torno da mimesis per­


N formativa e da antiteatralidade como pulsão antidramá­
tica, foca-se agora no Brasil, tentando traçar na história do
teatro nativo vestígios dessa revolução no próprio conceito
do teatro. Para iniciar, investe-se em um dramaturgo brasi­
leiro do século XIX, Qorpo-Santo, cuja obra evidentemente
desafia os padrões dramáticos ocidentais. Parte-se da noção
de inventário associada à ideia de memória. Para contrastar
com a obra dramática de Qorpo-Santo, será tomada, em pa­
ralelo, a dramaturgia da escritora norte-americana Gertrude
Stein. No que diz respeito ao ponto em destaque aqui, ambos,
de formas muito particulares, não só fizeram de seus projetos
teatrais desafios à possibilidade da representação dramática
como se distinguiram da produção de seus contemporâneos.
Ambos abrangem em suas dramaturgias, muito mais do que
mundos possíveis, aqueles aspectos e liames da subjetividade
autoral normalmente suprimidos no drama. Suas obras, mais
do que marcos reconhecíveis por suas configurações miméti­
cas, afirmam enfaticamente a impossibilidade de uma mimesis
que escape ao descompasso entre o mundo e sua reaparição, e
impõem aos seus leitores/espectadores, além dos aspectos do
mundo retratados nelas, o simultâneo inventário do processo
que efetivou aquelas representações. Na verdade, uma eventual
caracterização da dramaturgia de ambos indicaria uma cons­
tante interferência da voz autoral que como um inventariante
minucioso detalhasse todos os passos percorridos e esmiuçasse
todos os tostões contabilizados. A eventual ficção que haja,
nos dois casos, é relativizada por essa perspectiva que aponta
para o momento da criação e, quase sempre, opõe o próprio
à ação dramática em curso, criando uma disjunção temporal
e uma explícita polaridade de registros. À mimesis dramática,
por excelência o território da voz de outros, acresce-se uma voz
que inventaria o processo criativo, e o descreve tanto em seus
aspectos mais banais como nos mais relevantes. Um exemplo
deste último caso é a preocupação constante de Stein de atua­
lizar a ação ficcional em curso com a ação representada diante
dos espectadores. Esta narrativa paralela à ação dramática não
se confunde com a consciência crítica que os personagens/ato­
res de Brecht, distanciados momentaneamente de suas ações,
são capazes de manifestar, ou da "mot d'auteur" que contami­
na as falas de personagens com opiniões e ideologias de seus
autores. Este discurso diegético paralelo, além de estabelecer
uma tensão entre a ficção dramática e seus aspectos externos,
a encenação ou a leitura reconstituinte, desestabiliza o próprio
processo mimético. O poeta, além da mimesis de ações, apre­
senta o inventário dessa produção mimética. Opostas as ações
a seus andaimes, a mimesis elucida uma fratura exposta, ou
desdobra-se no ato performativo de descrever simultaneamen­
te seu processo de constituição.
A representação de ações humanas de forma concatenada,
de modo a definir um arco com começo meio e fim e permitir
nesse percurso que se dê a trajetória de um personagem da
infelicidade à felicidade, ou vice-versa, é o princípio do drama,
como foi descrito por Aristóteles e como a massiva produção

1 88
contemporânea de dramaturgia no teatro comercial, no cine­
ma e na televisão, confirmam cotidianamente. A ação dramá­
tica caracteriza-se, pois, por este misto de artificialismo - a
contenção em um período restrito e o desenvolvimento nesse
espaço de tempo de uma ação completa - e de referência a
uma realidade bruta, onde estas ações humanas possíveis são
colhidas ou imaginadas como existentes. É diante desta pers­
pectiva elementar, restrita ao universo da representação realis­
ta, de espelhamento do mundo, que a escritora Gertrude Stein
se posiciona quando opta por enfrentar o desafio do teatro.
Desde logo não se tratará de construir uma dramaturgia nos
termos acima descritos, tampouco de encaminhar-se direta­
mente para a cena, a fim de operar sem mediações sobre a ma­
terialidade do aparato cênico, e com ele construir um discurso
poético, como no caso da tradição simbolista e pós-craiguiana.
Para Stein a questão é anterior. Em sua memória de infância
da experiência teatral ela recorda um hiato constante entre o
que era dito pelos atores no palco e o que ela, enquanto espec­
tadora, pensava simultaneamente1• Essa diferença no tempo
da ação dramática, relativa à distância entre dimensão ficcio­
nal e o tempo real da recepção daquela cena, que envolvia a
jovem espectadora consciente de que se tratava de uma repre­
sentação, a intrigava e a impedia de fruir o espetáculo com
naturalidade. Usando os termos convencionais do fenômeno
da recepção no teatro realista, não ocorria a suspensão da des­
crença, e manifestava-se um incômodo com o descompasso da
relação concreta e presente entre a espectadora, a cena, e o pre­
sente artificial da ficção em curso. O fato descrito é relevante
uma vez que foi em nome da superação dessa dificuldade, in­
tuída quando ainda criança, que a escritora Gertrude Stein, já
madura, decidiu escrever suas peças de teatro2•

I . Ver Stein, 1 97 1 , p. 58-83.


2. Sobre o Teatro de Gertrude Stein ver Ryan, 1 980. Suas peças estão publicadas em Stein,
1 987. Dirce Waltrick do Amarante e Luci Collin, traduziram e organizaram o primeiro
volume das peças de Stein em português: O que você está olhando -Teatro ( 1 9 1 3- 1 920),

1 89
Quando se observa a dramaturgia de Gertrude Stein, a pri­
meira dificuldade é, literalmente, como lê-las, tal a diferença
daquelas peças em relação à tradição dramática e a inexistência
de referentes tradicionalmente associados ao drama, do tipo
personagens, cenários e ações não faladas especificadas pelas
rubricas. A tentação inicial é ler as peças como poemas, ou
prosa-poética que foi arbitrariamente nomeada de dramatur­
gia, no que poderia ser apenas uma provocação da escritora à
tradição dramática. Um olhar mais cuidadoso, porém, reve­
lará que é muito mais do que isso. Na verdade, a pista que a
própria Stein dá em um de seus poucos textos de comentário
sobre seu teatro, contando de seu incômodo de jovem especta­
dora com a dificuldade de apreender a presença e o presente da
cena que se lhe apresentava, é um caminho mais seguro para
a leitura das peças. De fato, o que Gertrude Stein se propõe
é, mais do que espelhar a realidade · ou construir ações que
artificialmente o fizessem, utilizar a linguagem como um bis­
turi e sobrepor às realidades humanas, ou às ações humanas,
uma lente microscópica que apreenda a sua presença imediata
e torne possível empreender como que uma microcirurgia de
seus elementos mínimos, religando-os e reapresentando-os ao
leitor em múltiplas operações de aproximação. O teatro de
Stein é um teatro da presença em que a ação nunca é narra­
da, mas experimentada como um "em sendo", quase como se
o fluxo de consciência pudesse ser materializado, não apenas
enquanto literatura, mas, também, enquanto presença cênica
concreta. O que Gertrude Stein está propondo é transferir as
atenções do poeta dramático da ação entendida como inte­
gralidade da trama, a curva dramática, para as microações a
que os agentes estão inexoravelmente atados, bem como para
a linguagem como instrumento que lhe permita se posicionar
a cada átimo deste movimento. Na ideia tradicional de ação

20 1 4, o qual reúne dezoito peças, escritas no período apontado no título e publicadas em


inglês no volume intitulado Geography and Plays, em, 1 922.

1 90
dramática a noção de tempo é uma questão arbitrária que deve
ser administrada pelo dramatur_go de forma a melhor atender
aos seus propósitos narrativos. E nesse sentido que Aristóteles
recomenda aos poetas dramáticos que não tomem como tema
de sua narrativa um assunto cuja exposição durasse mais que
um dia. Na medida em que a apresentação das tragédias ocu­
pava exatamente este tempo, seria recomendável que para con­
tar a história em questão fosse possível contê-la nesse período,
cabendo aos poemas épicos, que não careciam da apresentação
espetacular, tratar de temas mais amplos e extensivos. Mesmo
assim, é lembrado que Homero não pretendeu contar toda
a guerra de Troia, mas estabeleceu, no caso da Odisseia, um
recorte incisivo sobre ela, limitando-se a relatar o retorno para
casa de um de seus protagonistas. Nos dois casos a recomenda­
ção vem no sentido estratégico de permitir que a ação narrada,
ou representada, ao se mostrar de forma una possa ser com­
preendida em sua inteireza pelo leitor/espectador. Que se faça
cabível no tempo de sua apresentação e, assim, torne-se apre­
ensível pelo receptor. Pois bem, a questão do tempo na drama­
turgia de Stein já não mais se refere a esta ação quase abstrata
e construída pelo artesão de tramas que é o dramaturgo, mas a
ações fragmentadas, cujos limites só podem ser acessados, ou
estabelecidos, pela linguagem, e que, idealmente, são narradas
a cada milionésimo de segundo do seu transcurso a fim de
eliminar o referido hiato entre o que está acontecendo na cena
e o que o espectador que a presencia é capaz de apreender. É
como se Stein deslocasse a atenção do espectador daquela ação
integral, que só se revela plenamente ao final, quando a curva
se fecha, e focasse no instante imediato de cada átimo de se­
gundo, sempre para desfazer a diferença temporal que pudesse
haver entre a percepção do espectador e a experiência em cur­
so na cena. Num certo sentido, esta proposta desloca, assim
como tinha ocorrido com a dramaturgia simbolista, a atenção
do público da trama para o espaço cênico e, exatamente por
isso, Gertrude Stein só foi realmente encenada pelos artistas

191
que, a partir dos anos 1 960, passaram a escrever direto na cena
e encontraram nela um ótimo ponto de partida. E, entre es­
tes, aquele que, até pela sua própria estratégia de construção
cênica, vai se aproximar mais da proposta de Stein é Richard
Foreman. De um certo modo, em suas próprias montagens,
ele vai transpor o princípio construtivo definido por Stein da
linguagem escrita para a linguagem cênica, e passar a operá-lo
na tridimensionalidade e concreção da cena.
No caso da dramaturgia de Qorpo-Santo, comparativa­
mente à de Gertrude Stein, não há uma explícita e progra­
mática determinação de eliminar o hiato temporal entre ação
representada e a presença do leitor/espectador diante daquela
ação. Mesmo assim, na medida em que há uma oscilação cons­
tante entre o registro dramático e um plano anterior, o do
ato de sua constituição, que é recorrentemente evocado por
uma voz autoral insegura, acaba ocorrendo uma instabilidade
semelhante. Pode-se dizer que, se a pena de Stein funciona
como um bisturi, que trabalha em microcirurgia sobre a ação
dramática para devolvê-la à simultaneidade de sua percepção,
a de Qorpo-Santo atua como um pincel carregado de solvente
que vai apagando os liames da ação, e a desfazendo, no pró­
prio ato de desenhá-la. Ao mesmo tempo, esse efeito corro­
sivo da pena de Qorpo-Santo, conta com as ferramentas do
inventariante que metodicamente cria intervalos para apon­
tar as partes e a quem de direito cabem. Como em Stein, em
Qorpo-Santo a linguagem e seus recursos materiais são utili­
zados para interromper constantemente o fluxo da ação e en­
fatizar sua fragilidade diante de um criador capaz de alterá-la e
evidenciar suas artificialidade a cada passo. Essa característica
do texto de Qorpo-Santo já foi apontada com pioneirismo e
perspicácia por Flora Sussekind:

Travessão, reticências e vírgulas, de um lado; transforma­


ções do outro, apontando, nesse sentido, para um pro­
cesso de formalização que se faz acompanhar, inclusive

1 92
graficamente, de sua própria disjunção, para a presença,
na escrita de Qorpo-Santo, de um movimento de autoco­
nhecimento construtivo, desdobrado, porém, na consci­
ência intensificada dos próprios limites, numa espécie de
princípio constitutivo de interrupção. Daí a importância
do travessão nos seus poemas satíricos e dos cortes entre
as cenas ou os atos no seu teatro (Sussekind, 2000, p. 20-
21).

Estas marcas gráficas de uma voz autoral em transe per­


manente, estilhaçada em nomes vários que se engendram e se
dissolvem em referências concêntricas e convergentes para ela
própria, são os traços materiais de uma tensão mais abrangen­
te que vinca a autonomia dramática da trama inscrevendo nela
fragmentos biográficos do autor, seus guardados e suas memó­
rias. Esses itens de urna coleção amealhada na vida imiscuem-se
no drama escancaradamente, garantidos pela licença da comé­
dia, mas, também, inevitavelmente corroendo e desagregando
seus elementos. O melhor exemplo dessa característica, que
aparece disseminada em toda a dramaturgia de Qorpo-Santo,
é a fala do personagem "ministro" no "ato primeiro", como
ele o nomeia, de "Hoje sou um e amanhá sou Outro". Depois
de explicar ao Rei que no dia anterior havia sentido em seu
corpo o espírito do soberano, e tinha-se convencido de ter
ele próprio se tornado Rei e o outro seu ministro, e que "os
corpos são verdadeiramente habitações daquelas almas que a
Deus apraz fazer habitá-los", revela quem foi o autor desta
descoberta: "um homem predestinado sem dúvida pelo oni­
potente para derramar esta luz divina por todos os habitantes
do Globo que habitamos", ao que se segue um longo trecho
em que se revela uma das inúmeras versões da biografia de
Qorpo-Santo feitas por ele próprio ou por um de seus perso­
nagens (Santo, 1 980, p. 1 09- 1 1 1 ) . O trecho é significativo
porque tem o requinte de apresentar, ao seu final, em iniciais
seguidas de reticências, o título da obra que o referido predes­
tinado escreveu - "de 400 páginas em quarto", a Enciclopédia,

1 93
e seu próprio nome, tanto na versão José Joaquim de Campos
Leão como no nome adotado, Qorpo Santo, "por não poder
usar o nome que usava". Nesta dramaturgia a voz do ator é um
corpo estranho que disputa em igualdade de condições com
a voz ficcional criando não só uma tensão permanente como
impossibilitando a mimesis de se desprender de sua origem e
assumir, como repetição, a parte que lhe cabe no inventário
do mundo. No drama antidramático de Qorpo-Santo a mi­
mesis nunca se completa nem ganha autonomia da fonte de
onde emana. Apegada à memória de seu processo constitutivo
torna-se cativa da confusão deste com o seu objeto da repre­
sentação.
O que vale acrescentar, nessa perspectiva que aproxima
mimesis e inventário, ou representação e memória seletiva, é
como esses procedimentos construtivos dos dramas de Stein
e Qorpo-Santo antecipam a já apontada tendência da dra­
maturgia e do teatro contemporâneos, de se estruturarem a
partir de uma consciência aguda do processo de criação, que
tende a se sobrepor à ficção e a seus eventuais conteúdos in­
tencionais. Assim, esta escrita que carrega em seu percurso,
como um caramujo, sua própria casa e todos os traços idios­
sincráticos que lhe pertencem, esta mimesis performativa
que, além de representar o mundo, inventaria os marcos de
seu pertencimento nele e de sua própria constituição, torna­
se, pode-se dizer, um procedimento comum aos artistas que
mais radicalmente operaram com a cena contemporânea.
Para não falar de Beckett, em quem há uma espécie de
inventário negativo, ou uma (des) coleção, na medida em
que ao invés de acumular vestígios do processo de criação
dramática e espetacular ocorre não só um apagamento dos
mesmos, como a eliminação gradual dos próprios elementos
de constituição mimética, alguns dos principais encenadores
dos últimos quarenta anos exemplificam esse procedimento.
É o caso dos espetáculos de Tadeusz Kantor, Carmelo Bene,
Spalding Gray, ou do já citado Richard Foreman, que têm

1 94
em comum exatamente uma convivência constante entre as
supostas narrativas que apresentam e suas próprias presenças
idiossincráticas, combinando traços dos respectivos processos
criativos e biográficos; entre representações possíveis e atuações
que anulam essas possibilidades; entre a produção de mimesis
e a recorrência da memória, dissolvendo os liames da ficção e
destacando os fragmentos isolados de sua partes desajustadas,
como em um inventário dos escombros posteriores a uma ex­
plosão.

2 - OSWALD DE ANDRADE E A
ANTITEATRALIDADE EM "A MO RTA"

A terceira peça de Oswald de Andrade, "A Morta, ato lí­


rico em três quadros", pode ser inserida na tradição antidra­
mática e antimimética do teatro do século XX. Ela traz in­
fluências dos teatros do simbolismo e do futurismo italiano,
mas dialoga também com a dramaturgia da segunda metade
daquele século, antecipando tanto procedimentos do teatro
épico como as estratégias antidramáticas de Beckett, Kantor e
Heiner Müller. Encená-la contemporaneamente é revelar esses
liames que sempre estiveram obscurecidos por uma leitura que
a analisava como deficiente, sob a perspectiva da "peça bem
feità', ou da dramaturgia naturalista consagrada. E qualquer
processo de encenação implicará em um constante negociar
entre a facilitação de sua fruição, minimizando o caráter hí­
brido e heterogêneo de suas formas, e o acirramento do radi­
calismo de suas soluções formais antidramáticas, quando se
busca evidenciá-las. Assim, por exemplo, o primeiro quadro,
"O País do Indivíduo", caracteriza-se por uma forma eminen­
temente lírica, não sem flertar vez ou outra com algum dialo­
gismo e com a perspectiva de uma curva dramática. Diante do
hermetismo das falas há uma tendência a pressupô-las como
intransponíveis, numa ótica racionalista e que busque senti­
dos psicológicos ou sociológicos claros. A solução pode ser

1 95
transformá-las em ruídos ou em música, como poesia de sig­
nificados inalcançáveis, ou tentar estabelecer possíveis leituras
a partir dos fiapos de diálogo que se insinuam. De todo modo,
qualquer que seja o procedimento utilizado para domar o tex­
to, como na maior parte da dramaturgia contemporânea mais
radical, as referências permanecem abertas e as interpretações
tendem a ser múltiplas. Valeria, pois, diante da discussão que
vem sendo proposta de uma antiteatralidade pensada como
recusa ao jogo dramático concatenado, esmiuçar, principal­
mente no que diz respeito a este primeiro quadro, suas carac­
terísticas antidramáticas, e perceber como a classificação que o
próprio autor estabelece para o conjunto dos três quadros da
peça, a de ato lírico, lhe cabe sobremaneira.
O que é típico do gênero lírico é a voz individual que se
expressa, para além de qualquer interlocução, como apresen­
tação de si, ou do mundo a partir de uma perspectiva idiossin­
crática. Por outro lado, o gênero dramático na sua forma pura,
se opõe simetricamente à perspectiva lírica, na medida em que
se define a partir do diálogo de duas consciências, as quais,
no processo dialético da troca de afirmações, se apresentam
e revelam suas respectivas visões de mundo. Nesse sentido, o
cânone dramático não recomenda, por exemplo, que se deixe
a voz do autor, ou de qualquer eu lírico, transbordar os limites
da forma dramática e interferir nas falas dos dois personagens
que, plenamente distanciados e diferenciados do autor, dia­
logam. A dramaturgia naturalista representou um distancia­
mento desse modelo de perfeição dramática, pois, para tratar
temas intratáveis na forma do diálogo, obrigava seus autores
a torcerem o padrão dramático com procedimentos narrati­
vos estranhos àquela pureza dialógica. No caso de ''A Morta",
e mais especificamente em seu primeiro quadro, "O País do
Indivíduo", não só há uma desestabilização dessa lógica do
dramático, já que, mesmo mantendo uma estrutura dialógica,
em nenhum momento os diálogos chegam a constituir um
sentido claro para além da exacerbação lírica, como, também,

1 96
o autor está sistematicamente fazendo valer suas teses - filosó­
ficas, sociológicas, psicológicas - em detrimento de qualquer
revelação de personagem ou personagens, acrescentando-se o
traço, já apontado no caso de Qorpo-Santo, de uma voz au­
toral interferente. Na verdade, para além do título do quadro,
que caracteriza a possibilidade dos cinco caracteres serem fra­
ções de uma consciência individual, nenhuma de suas falas
consegue apresentar com nitidez as ações em que, porventura,
estivessem inseridos, tampouco definir de forma segura qual­
quer trajetória que tenham a cumprir. Como nas peças de Be­
ckett alguma coisa está acontecendo, mas nunca se saberá ao
certo o que é exatamente esse algo que está a suceder.
Ao mesmo tempo, frente ao conjunto de toda a peça, tam­
bém nomeada por Oswald sugestivamente de ''Ato Lírico",
este primeiro quadro, "O País do Indivíduo", não deixa de
preparar o terreno para o desenvolvimento de uma certa curva
dramática. Ali se inicia o périplo do Poeta no seu embate entre
os chamados da rua e suas próprias obsessões interiores, entre
as quais a mais inclemente é Beatriz. Estes dois protagonistas
nos remetem imediatamente a Dante Alhigueri e à sua Co­
média, ou à Divina Comédia, como ela passou a ser chamada
pela posteridade. Como o famoso poema pré-renascentista, ''A
Mortà' terá como eixo dramático o amor do Poeta por Beatriz
e a busca desesperada dele por ela depois de sua morte. Só
que em Dante há um movimento ascensional, como, aliás, era
típico em todo o teatro medieval, com o poeta visitando pri­
meiro o Inferno, depois o Purgatório, e tendo no Paraíso, no
encontro com a beleza da celestial Beatriz, a revelação do bem
supremo. Na "Morta" este trajeto, pode-se dizer, é descenden­
te, e leva o poeta a identificar no fim, uma Beatriz descarnada
e apodrecida, a prova da necessidade de uma redenção pelo
fogo.
De qualquer modo, no "País do Indivíduo", os personagens
parecem ser partes fracionadas de um único ser, orquestradas
na polifonia esquizofrênica que reverbera no poeta. Num coro

1 97
de solilóquios, os personagens em duplas - Poeta e Hierofon­
te, Beatriz e Outra - falam ao microfone em "dois camarotes
opostos no meio da plateià', enquanto, no palco "quatro ma­
rionetes fantasmais e mudas gesticulam exorbitantemente as
suas aflições" acompanhando as falas3• Em alguns momentos
as falas autistas tornam-se diálogos com o público e com os
outros personagens, em outros projetam gritos mudos e lan­
cinantes, como se vindos de estrelas esquecidas há bilhões de
anos-luz. A única personagem em "ação vivà' é a enfermeira
sonâmbula, que intervém pouquíssimas vezes. É uma disse­
cação solipsista em que o indivíduo, incapaz de conciliar as
urgências da adoração amorosa com a inevitável autonomia
da figura amada, se expressa despudoradamente como numa
sessão psicanalítica. Como informa a rubrica: "É um panora­
ma de análise".
O segundo quadro, "O País da Gramáticà', tem como
pano de fundo o confronto decisivo entre mortos e vivos,
conservadores e cremadores, entre as regras e normas da boa
convivência e linguagem burguesas e todas as pulsões libertá­
rias de uma ordem emergente, onde imperarão os desregra­
mentos. Ali, Beatriz será vista no social, ainda indefinível na
adesão amorosa e cumprindo o destino volúvel de se entregar
ao primeiro corpo descarnado que passar ("uma roupa de ho­
mem"). Ela, carregada pelo cortejo de mortos,. atrairá o poeta
aos confins da existência humana. Se na Divina Comédia o
acompanhante do poeta é o grande poeta romano Virgílio,
autor da "Eneidà', e que aconselha o poeta a ascender até o
belo e o bem expressos na reluzente amada que se confunde
com o divino, na "Morta" quem aconselha o poeta é o tam­
bém poeta romano Horácio, conhecido pela mediania e pela
sensatez, e sua opinião é de que o poeta não deve ir atrás de
Beatriz: "Insensato! Guardar-te-ão para sempre os dentes fe-

3. Todas as citações referem-se ao cexro publicado em Teatro, de Oswald de Andrade: Rei da


Vela, O Homem e o Cavalo, a Morta, 1 973.

1 98
chados da morte". (Seria plausível também ler nesse Horácio
de ''A Mortá' uma referência ao personagem que aparece em
"Hamlet", portador de sensatez não menos aguda). Ainda a
merecer destaque a oposição entre cremadores e conservadores.
A situação destes últimos, acusados pelos primeiros de conser­
var cadáveres, não é ainda a de fantasmas, ou seja, não estão
desencarnados, mas são vistos como mortos pelos cremadores
e contrastam com os personagens do terceiro quadro, "O País
da Anestesiá', que estão literalmente desencarnados. No se­
gundo quadro eles são vivos mortos, enquanto, no terceiro,
trata-se mesmo de mortos vivos.
O terceiro quadro confirma a carga semântica intensa dos
caracteres que habitam "um recinto sobre uma paisagem de
alumínio e carvão" ao lado de "um aeródromo que serve de
necrotério" e onde se destaca, "ao centro um jazigo de famíliá'.
O nome dos personagens fala por si: " O Atleta Completo", "A
Senhora Ministra", " O Radiopatrulha", "A Dama das Camé­
lias", "A Criança de Esmalte", "Seus Pais", "Caronte" e "O Uru­
bu de Edgar". "Beatriz" será trazida no "autogiro de Caron­
te" e seguida pelo "Poeta". Aqui, depois do último confronto
amoroso, o Poeta, diante de urna Beatriz cujo corpo apodrece,
convence-se de que seu único compromisso é com "os arrebóis
do futuro". Tomando do "facho de fogo" que arde na "árvore
da vidá', incendeia a amada e, como aponta a rubrica, no final
"Bamba tudo nas mãos heroicas do poetá'. De certa maneira,
é possível ver nessa decisão de queimar tudo, além do cadáver
da amada, a superação nem tanto social, numa perspectiva re­
volucionária, mas muito mais pessoal, frente ao mito român­
tico do amor. Como nos indica sua biografia, desde a morte
da própria mãe, que ele não pôde enterrar, até os casos impos­
síveis com Landa e com Deyse, com quem ele casa no leito de
morte, Oswald viveu radicalmente as suas relações amorosas e
na "Mortá' ele parece fazer um acerto de contas não só com
esse passado, mas com toda a tradição cultural que o funda­
mentou. Ao mesmo tempo, o incêndio do "País da Anestesiá',

1 99
se pode ser lido, como o incêndio de Valha/la no "Crepúsculo
dos Deuses" de Wagner, como um olhar pessimista quanto às
possibilidades de uma transformação da vida e da sociedade,
não deixa de significar, também, a libertação de um progra­
ma político restritivo e disciplinado como o dos comunistas e
a sinalização de uma postura mais anarquista e nietzscheana.
Assim entre a torre de marfim e a revolução, os dois extremos
que põe em tensão a peça e o seu personagem central, Oswald
encontra uma terceira alternativa que é ao mesmo tempo cé­
tica e restauradora.
''A Mortà' pode, por todas estas características apontadas,
ser situada como a peça mais importante de Oswald, na pers­
pectiva de ruptura com a tradição dramática e da margem de
invenção que enseja. Muito mais do que qualquer outra de
suas peças\ e mesmo das duas que a antecedem na década de
1 930, permanece indecifrável e enigmática, como só aconte­
ce aos grandes textos da dramaturgia. Assim como o "Ham­
let", de Shakespeare, ou o "Esperando Godot", de Beckett,
as afirmações e as leituras são sempre provisórias, pois como
um sistema aberto esta peça, mais até do que as outras, pare­
ce oferecer infinitas possibilidades de encenação. Este caráter
mais enigmático se afirma principalmente no primeiro qua­
dro, o "País do Indivíduo", onde estão sintetizadas as várias
dimensões do autor: a lírica e a telúrica, a social e a psicana-

4. Oswald de Andrade ( 1 890- 1 9 54) escreveu suas duas primeiras peças em francês, em par­
ceria com o poeta Guilherme de Almeida, que foi seu colega de ginásio no colégio São
Bento. "Mon Coeur Balance", de 1 9 1 5, e "Leur Âme", de 1 9 1 6, são estruturalmente pa­
recidas, com diferenças de enredo, mas um assunto em comum: o amor na sua expressão
feminina. No primeiro caso a jovem Marcela de dezessere anos oscila entre um jovem de
sua idade e um homem de trinta. No fim, deixa os dois de mãos abanando e corre para o
mar. Na segunda peça é Natália que, entre o marido e o amante, vai preferir um terceiro
ausente. Essas mulheres do jovem Oswald encarnam o mistério feminino e têm o hábito
de abandonar seus amores, sempre num vórtice de arrebatamento. Do ponto de vista dra­
mático as peças têm duas influências cristalinas: o chamado teatro de boulevard francês,
de autores como Henry Bataille; e comédias de João do Rio como "Eva", de 1 9 1 5. Há
uma influência difusa, mas também evidente, do teatro simbolista que, no Brasil, tinha
seu representante mais talentoso em Roberro Gomes, atuando no Rio de Janeiro

200
lítica. Uma aura de indefinição, que remete talvez ao passado
simbolista, faz com que este quadro da peça resista a leituras
literais, ou racionalizadas, e sugira intervenções radicais dos
que a encenarem. A polifonia de vozes transcende os cinco
personagens, os ultrapassa e os multiplica. O indivíduo é um
país dissociado e a impossibilidade de "juntar os tais caqui­
nhos" é uma premissa inexorável colocada a quem enfrente o
desafio da montagem. No sentido que Bernard Dort ( 1 988)
fala de uma "encenação emancipadà', ''A Mortà', como algu­
mas peças contemporâneas, emancipa a cena, no sentido de
que obriga o seu encenador a uma leitura muito pessoal e não
se molda aos esquemas dramáticos autossuficientes.
Interessa-me agora apontar ainda algumas conexões pensá­
veis entre a ''A Mortà' e as peças de Oswald de Andrade escri­
tas poucos anos antes, que se destacam em sua obra dramática
acabada e formam com ela uma trilogia involuntária.
Das três peças, "O Rei da Velà', escrita em 1 933, é a que
mais guarda, enquanto estrutura formal, parentesco com a
tradição do chamado drama naturalista moderno, em que a
pulsão analítica de um teatro de tese, com seus conteúdos e
temas, forçam a forma dramática diminuindo seu caráter dia­
lógico, ou seja, a pura inter-relação entre os personagens, e
introduzem novos recursos narrativos emprestados do roman­
ce e da poesia lírica. No caso de "O Rei da Velà', essa tensão
da forma dramática diante de conteúdos que já apontam para
uma forma épica, acontece de maneira mais branda que nas
duas peças seguintes, e não por acaso foi a primeira a ser ence­
nada. "O Rei da Velà' ainda é uma peça de tese, mesmo que se
autoironize como tal, quase não se levando a sério. Se em Ib­
sen a tese é dramaticamente diluída na estrutura da "peça bem
feità', na tradição de Eugene Scribe, em Oswald o modelo já
não é a estrutura dramática bem acabada, mas os recursos de
uma teatralidade mais popular, alimentada pelo Teatro de Re­
vista e pelo Circo Teatro. Em 1 929 a revista de Antropofagia
de Oswald e Alcântara Machado prestara uma homenagem ao

20 1
palhaço Piolim, oferecendo um almoço a ele chamado de "o
banquete da devoração". Ao mesmo tempo, a peça de tese do
tipo da de Bernard Shaw, em que os personagens se esgrimem
em argumentos sociológicos e filosóficos, está presente no tipo
de análise social que se presta a fazer na linhagem marxista.
Oswald à época era um recém-convertido às teses de Marx
e alistara-se no Partido Comunista. Mesmo que aspectos de
deboche e derrisão impeçam o texto de se levar totalmente a
sério, projeta sobre a realidade da decadente burguesia bra­
sileira, que conhecia tão bem, o modelo de análise do mar­
xismo. Mal comparando, assim como Martins Pena utilizou
os enquadramentos das gravuras de seu mestre no Liceu de
Artes, Jean-Baptiste Debret, para emoldurar as cenas de suas
comédias, o que fez que os críticos apontassem a sua capacida­
de de captar o pitoresco quando na verdade assimilava a visão
estrangeira de Debret, Oswald projetou a grade marxista sobre
aquela realidade burguesa que lhe era tão familiar, não deixan­
do de tingi-la com seu agudo senso de humor e aproveitando
para descarregar seu ressentimento contra uma das persona­
gens icônicas do sistema capitalista, o credor, categoria que,
como consta em sua biografia, aterrorizou, por toda a vida, ele
e seu pai. A peça narra a sensacional ascensão e queda de um
agiota no seio da família burguesa brasileira. Nesse sentido,
"O Rei da Velà' é a peça mais convencional das três porque
ainda está estruturada, mesmo que de forma imperfeita e desa­
jeitada, no modelo da peça de tese. O que é mais interessante
nela, contudo, e que nos traz diretamente ao fenômeno de sua
montagem em 1 967 pelo teatro Oficina, são os seus aspectos
estruturais apontando para a teatralidade da comédia popular.
Desde Martins Pena a Arthur Azevedo, a comédia debochada
tinha formatado o teatro brasileiro e o que o Teatro Oficina
fará nos anos 1 960 será, exatamente, retomá-la no plano do
teatro de arte e culto. Quer dizer, ao radicalizar urna leitura
que resgatavà as formas teatrais populares, deixadas de lado e
desprezadas por aqueles que modernizaram o teatro brasileiro

202
a partir dos anos 1 950, o Oficina fazia escoar uma seiva latente
na peça, que permanecera adormecida sob a aparência de uma
peça de tese. Quando "O Rei da Vela" foi apresentada pela pri­
meira vez a José Celso, por Luiz Carlos Maciel, o entusiasmo
com a peça não foi muito grande. Só depois de uma primeira
leitura pública, e das perspectivas abertas com o potencial res­
gate cênico de elementos do teatro de revista e da chanchada
que ela sugeria, que esse aspecto latente da forma dramática
da peça pôde ser desvelado e a sintonia do texto de 1 933 com
o Brasil de 1 966 pôde ser efetivada. A encenação de "O Rei da
Velà' em 1 967 extrapolou em muito o texto, alcançando sig­
nificados próprios na história do teatro e da cultura brasileiros,
principalmente tornando-se um marco do Tropicalismo. Mas
se não houvesse na peça, implícita, essa possibilidade de alian­
ça com a teatralidade popular soterrada este pulo do gato teria
sido impossível. Houve ainda duas montagens importantes da
peça, a de Hugo Rodas, em Brasília, em 1 987, e a de Enrique
Díaz no fim dos anos 1 990.
"O Homem e o Cavalo" foi escrita em 1 934, e lida, pu­
blicamente, a primeira vez, pelo próprio Oswald no Teatro
de Experiência de Flávio de Carvalho, naquele mesmo ano.
Mora uma montagem na Escola de Arte Dramática no início
dos anos em 1 970, dirigida por Emílio de Biasi, e uma leitura/
encenação dirigida pelo próprio José Celso no fim dos anos
1 980, em que não faltou, inclusive, a participação de um ca­
valo no palco do Teatro Sérgio Cardoso, é a menos conhecida
das peças de Oswald, além de ser a menos encenada. Talvez,
por isso, seja a que guarde maiores surpresas a um leitor con­
temporâneo. O encenador que a lesse hoje identificaria sem
problemas uma característica estrutural da peça que a apro­
ximaria da chamada "peça de estações" de Strindberg, como
"O Sonho", que já se prenunciara na "peça aos pedaços" de
Büchner, em "Woyzeck" e se desdobraria no século XX em
peças como "Mistério Bufo", de Maiakovski (encenada em
1 9 1 8 por Meyerhold) e na tradição episódica do teatro po-

203
lítico de Piscator e do teatro épico de Brecht. Ou seja, a es­
trutura dramática não mais se define em uma ação, localizada
num mesmo tempo e espaço, mas desliza errante, sem critérios
muito ortodoxos, por uma série de cenas, não necessariamente
consequentes, emulando a estrutura das revistas e das peças
de cabaré. A única amarração são os personagens centrais, São
Pedro e O Professor Ícaro, que percorrem nove quadros vindos
do céu, passeando por aspectos da vida terrena e terminando
em Marte, O Planeta Vermelho. O fato de nessa viagem se lhes
revelar um utópico mundo socialista vitorioso, e das cenas re­
veladas desse mundo soarem como triunfantes e edulcoradas,
leva o leitor a associar o texto a uma visão anacrônica e a ter
a tentação de desqualificar o dramaturgo como um militante
deslumbrado, já que à época Oswald ainda não tinha rompido
com o Partido Comunista. Apesar de corrente, esta parece ser
uma visão superficial. É verdade que o ano de 1 934 oferecia
a Oswald o conforto de devanear em torno de um socialis­
mo utópico, mas uma leitura atenta revela que este cenário
funciona como verdadeiro pano de fundo, pretexto para um
embate mais intenso com a religião e no exercício de um tea­
tro para as massas. Se, diante do xadrez político da época, se
desenham ali, com nitidez, as . forças do fascismo de direita e
de um stalinismo ainda não maculado, revelando-se uma visão
favorável ao segundo, isto não empalidece os aspectos corro­
sivos e atualíssimos de seu embate com a igreja católica. De
toda forma, o contexto de envolvimento político do autor é
menos relevante para o ponto de vista aqui desenvolvido, foca­
do nas invenções formais que o texto oferece, principalmente
aquelas que implicam numa nova teatralidade, antidramática.
Assim, o que parece animar Oswald é menos um engajamento
partidário, ou um viés de militância orientada e mais suas pró­
prias pulsóes intuitivas enquanto artista, que são menos guia­
das pela ideologia, ou pela linha do partido, e mais por uma
imaginação poética e um instinto teatral impressionantes. A
peça de tese ainda não desapareceu totalmente. No quarto

204
quadro, por exemplo, em que Mister Byron e Lorde Capone se
encontram para expor o ponto de vista do capital, o texto se
aproxima das peças de Bernard Shaw, recheadas de digressões
teóricas. Mas, ao contrário de "O Rei da Velá', em que preva­
lece a forma dramática dita naturalista, mesmo que tenciona­
da por conteúdos épicos, no caso de "O Homem e o Cavalo"
a casca se quebra e uma nova cena, para a qual ainda não havia
encenadores preparados, se insinua claramente nas fissuras de
uma forma dramática fraturada. A ágil estrutura de transição
de cenas, e a grandiosid:ide dos espaços que projetava, talvez
só fossem encenáveis na época pelo grande teatro de revista
do Rio de Janeiro, de Walter Pinto, mas, ao mesmo tempo,
não poderia ser assimilada por ele, cujos temas de espetáculos
eram essencialmente populares e bem mais ligeiros. Não é à
toa que todo o projeto de um novo Teatro Oficina, com a
ambicionada construção de um "teatro de estádio" - termo
que Oswald vai utilizar em um texto de crônica publicado no
volume das obras completas Telefonemas torna-se um mote
-

constante no discurso de José Celso a partir da leitura que ele


faz de "O Homem e o Cavalo". A destacar, particularmente,
há a primeira cena do terceiro quadro, de onde, provavelmen­
te, Oswald empresta o nome da peça, em que se confrontam
O Cavalo de Troia e O Cavalo Branco de Napoleão. O primeiro
diz que seu verdadeiro nome é "tratado de paz", e que aparece
sempre no fim das guerras, sugerindo o caráter decisivo do tra­
tado de Versalhes, que encerrou a Primeira Guerra Mundial,
na deflagração da segunda. A profecia sobre a Segunda Guerra
torna-se mais afiada quando se associa Cristo a Adolf Hitler,
que aparece crucificado na suástica, em uma foto exibida por
Verônica, e que ela define como "a última encarnação do an­
tissemitismo" ou "o último Deus Ariano". Verônica, que traz
o rosto de Cristo fotografado e não inscrito em sangue numa
mortalha, como nos evangelhos, encontra-se com Madalena,
esta caracterizada como modelo de pintor. A primeira nega
que esteja lá, como Madalena suspeita, para fazer concorrência

205
com ela frente a Cristo: ''Absolutamente! Estou em funções
administrativas. Estou preparando a carteira de identidade
dos acusados que devem comparecer hoje perante o Tribunal
Vermelho". Madalena retruca: "Você matou a arte na Judeià'.
Ao que Verônica replica: "Fui apenas precursora da indústria
do retrato". E Madalena retoma: "Continuas estragando a
verdadeira arte. Nem a Renascença pôde com você. Aliou-se
aos padres para inundar o mundo de santinhos sofredores!".
Ao que Verônica, benjaminiana, encerra: "Hoje dedico-me ao
. ,

cmema . . .
Talvez o s aspectos mais homogêneos entre as três peças da
década de 1 930 sejam os negativos, ou os defeitos que apre­
sentam frente a uma forma dramática ideal5• Assim, os diá­
logos autoexplicativos, utilizados para fornecer informações
sobre, ou apresentar, personagens, e les mots d'auteur (intro­
missões do autor) apresentando opiniões, são uma constante.
As diferenças vão surgindo, e se intensificando na medida de
uma crescente radicalização e ruptura com as formas dramá­
ticas disponíveis na tradição teatral burguesa. Assim les mots
d'auteur vão se tornar, na "Mortà', falas dissociadas, de vozes
não identificáveis. São personagens que antecipam o diálogo
beckettiano, que ocorre no vazio da cena. Mais do que uma
inconstante trajetória dos personagens, muito caricatos no
"Rei da Velá' e já icônicos em "O Homem e o Cavalo", quan­
do atravessam a cena como "achados prontos" no caminho
dos dois protagonistas, prevalece em ''A Mortà', já, um roteiro
aberto em que os personagens cavam seu espaço na imagina­
ção do público. A fragmentação também só faz alargar-se ao
longo das peças e na "Mortà' até os quadros são autônomos
entre si. De alguma maneira, ali, quando no final o poeta quei­
ma todo o cenário, é a própria forma dramática que está sendo

5. Oswald deixaria inacabada uma última peça escrira em seus últimos anos de vida. Trata-se
do poema dramático "Sameiro do Mangue". Segundo o poeta Mário Chamie, a quem
o Oswald entregou uma cópia pouco antes de morrer, ali esraria o restamenm teatral do
autor. José Celso Martinez Corrêa encenou a peça no Tearro Oficina em 1 995.

206
incendiada. O lirismo é uma constante que liga as primeiras
peças à última, e nesse sentido a cunha de uma poesia cortante
foi decisiva no processo de desgaste da forma dramática na­
turalista e na insinuação de uma teatralidade épica e poética.
Vale sobretudo destacar a coincidência observável em "O Ho­
mem e O Cavalo" e "A Mortà' entre o poeta da última peça
e o poeta soldado da penúltima. O segundo é quase que uma
emanação fascista do primeiro. O poeta na "Morta" diz: "Toda
minha produção há de ser de protesto e embelezamento, en­
quanto eu não puder derramar sobre as brutalidades coletivas
a potência dos meus sonhos". O poeta soldado diz: "que cada
um tome posição nas estradas ferozes do destino. Façamos a
felicidade das facas". As estratégias são distintas mas a voz lí­
rica é a mesma e é possível inclusive projetar esse poeta que
Oswald fabula em 1 937 com o que Glauber Rocha apresenta
em "Terra em Transe" em 1 964, na pele de Jardel Filho. Como
diz aquele personagem, citando Mário Faustino, "Não conse­
guimos firmar o nobre pacto entre o caos sangrento e a alma
pura; gladiador defunto, mas intacto, tanta violência, mas
tanta ternurà' (Faustino, 2009, p. 1 35) . Um último exemplo
de falas cruzadas, de deslizamentos de personagens e vozes de
uma peça para a outra, é o do terceiro quadro de "O Homem
e o Cavalo", que se passa nos fundo do hipódromo de Epson
e se chama "Debout les rats" (avante os ratos). Em "A Mortà',
no terceiro e último quadro o personagem O Radiopatrulha,
um dos cadáveres que assiste às chegadas de Beatriz e do Poeta,
lidera o cortejo de mortos em direção da primeira fila na pia­
teia com o grito de "Debout les morts" (avante os mortos). De
fato, a transição de "O Homem e o Cavalo" para "A Morta"
talvez seja menos estrutural do que a que ocorre da primeira
peça para as duas últimas. Ainda que muito diferentes em vá­
rios sentidos, ambas possuem traços comuns e partilham ca­
racterísticas formais igualmente estranhas. É um teatro que
resulta da tensão entre uma intuição teatral profundamente
lírica, cada vez menos adaptada às formas dramáticas natura-

207
listas ou simbolistas, sempre sustentadas no diálogo e na tese,
e a necessidade de discutir questões sociais como a da revolu­
ção política e econômica. Entre o social e o individual, entre
Marx e Nietzsche, Oswald encontra no teatro a possibilidade
de uma mimesis performativa do mundo, ou de uma verda­
deira poiesis - produção, criação - de outro mundo ou cosmo.
As peças não são realistas nem simbolistas, são fabulares e
estendem a perspectiva aristotélica do poeta dramático fabu­
lador ao paroxismo, porque já não dependem da verossimi­
lhança frente a uma realidade existente, mas da adesão a uma
dimensão poética radical. As duas peças ainda terão diálogos
e teses, mas já não se estruturarão a partir deles. As teses se
esgarçam, não se desenhando lógicas discursivas, solicitam
um afastamento maior do pano de fundo para dar lugar ao
conflito interno, lírico e passional. A irracionalidade é que as
media e impede que se fixem em um registro estável. A grade
de leitura "marxistà' do "Rei da Velà', se sofisticou, mas está
distanciada, quase como um objeto em exame. O que preva­
lece são pulsões inconscientes, poéticas, numa sintonia com
o surrealismo e com o teatro de Artaud. O caminho do poeta
elíptico e vertical pede uma nova cena, mais aberta, em que os
aspectos ficcionais estão enfraquecidos e a materialidade cêni­
ca tornou-se mais decisiva. É natural que o teatro contempo­
râneo a Oswald, e a geração de críticos com quem ele conviveu
tenham mais dificuldades com essas duas peças, pois elas pa­
recem inconsistentes do ponto de vista da carpintaria teatral e
examinadas à luz de uma hipotética literatura dramática ideal.
De qualquer modo, a sua última peça, ''A Morta", a que
agora se retorna, traz como eixo narrativo exatamente o confli­
to interno do poeta dividido entre os sussurros do inconscien­
te e os clamores da multidão. Percebe-se aqui a peça como a
mais revolucionária e potente de Oswald, porque mostra com
mais limpidez como as tensões internas no autor, entre o líri­
co e o dramático, entre indivíduo e sociedade, plasmaram-se
além dos clichês e da tradição dramática, numa forma nova

208
de teatralidade, claramente antidramática, que anteciparia os
impasses do teatro no fim do século XX e início do XXI. ''A
Mortà' foi escrita em 1 937, às vésperas do Estado Novo e é es­
pantosamente profética da mortandade que se espalharia pelo
país com a ditadura de Vargas, e pelo mundo com a Segunda
Guerra. Curiosamente, porém, no que diz respeito ao social
ou à representação do coletivo, ela é a menos referenciada à
realidade histórica. Se pode ser lida, literalmente, como uma
fábula, seus personagens são construções poéticas com pouca
psicologia e muita carga simbólica, ou melhor, semântica. Por
outro lado, é possível perceber a peça menos reunindo alego­
rias e símbolos que remetem à realidade e estabelecem corres­
pondências diretas com ela, e mais como signos substantivos
e arbitrários, personas sintéticas, feitas do empilhamento de
várias camadas de significação, e livres de qualquer psicologia.
Assim, como já tinham aparecido, no "Homem e o Cavalo"
(O Tigre do Mar Negro, O Soldado Vermelho de ]ohn Reed, o
Barão Ba"abás de Rotschild e a Baronesa do Monte de Wnus),
tem-se em ''A Mortà', ao lado dos protagonistas - O Poeta e
Beatriz - achados como A Enfermeira Sonâmbula, O Turista
Precoce e O Polícia Poliglota.
''A Mortà' foi montada profissionalmente a primeira vez
em 1 97 4, com encenação de Emílio di Biasi e o resultado fi­
cou aquém das expectativas frente à circunstância de ser a pri­
meira encenação profissional da peça. Na verdade, ela já fora
condenada a nunca ser montada pelo seu hermetismo e aquela
montagem parecia confirmar o vaticínio. Em 1 977 houve uma
montagem de Geraldo Torres, assistente de Amir Haddad, em
Brasília. No início dos anos 1 990, uma encenação de Enrique
Díaz, da Cia dos Atores do Rio de Janeiro, cumpriu honro­
samente a missão de revelar a grandeza da peça. Ao mesmo
tempo, o prólogo - O Compromisso do Hierofonte - talvez seja
o prólogo mais famoso do teatro brasileiro atual, de tanto que
espetáculos experimentais no Brasil já o utilizaram, e o epílogo
foi usado por José Celso para encerrar a montagem de "O Rei

209
da Velà', quando o texto aparecia escrito no telão e evitavam-se
as palmas. O Hierofonte diz: "Não vos pedimos palmas, pedi­
mos bombeiros".
Cabe ainda, à guisa de conclusão deste item, comentar
a minha própria encenação de "A Mortà'. O espetáculo ''A
Morta (viva)" utilizou a íntegra do texto, ainda que se servin­
do de um procedimento cênico constritivo: um único ator e
duas telas em que eram projetadas imagens pré-gravadas (uma
no fundo e outra levemente inclinada no centro da cena)6•
O ponto de partida, que definiu a forma da realização, era
o desafio de fazer a peça com um único atuante sem abdicar
da narrativa completa. Sem entrar no detalhamento da mi­
ríade de acasos e limitações objetivas que constrangeram as
ambições originais, e indo direto ao ponto, passo a analisar
criticamente o resultado. A solução encontrada, de gravar pra­
ticamente noventa por cento das falas da peça previamente,
para tê-las, em som e imagem, prontas e funcionais, intera­
gindo com o ator ao vivo, cumpriu-se graças a um longo pro­
cesso produtivo, com envolvimento crucial de atores, atrizes
e artistas do vídeo, além de alguma tecnologia, que também,
paradoxalmente, determinou um limite feroz à pretensão de se
estabelecer um foco macro sobre o texto, ou sobre as palavras
ali reunidas, destacando sua riqueza poética. Em primeiro lu­
gar, a necessidade de congelar esse elemento predominante, as
falas dos personagens, em uma gravação precoce, para que se
tornasse viável concretizar a edição final pretendida, implicou
que, com o espetáculo pronto, fosse impossível estabelecer va­
riações interpretativas dos textos pré-gravados. Primeira con­
tradição ou armadilha: querendo colocar o texto em primeiro
plano engessei-o em uma forma fixa. Havia, é certo, a preten­
são de que o ator, que assumia ao vivo até cinco personagens
da peça, se desdobrasse em performer e tanto interrompesse a

6. "A Morta (viva)" foi apresentada em dez sessões, dentro da Mostra de Artes do Sesc de São
Paulo, em dezembro de 2007.

210
narrativa com comentários sobre o processo ou sobre a própria
peça, contextualizada na obra de Oswald de Andrade, como
interferisse e anarquizasse a edição prévia por meio do controle
remoto do computador que gerava a projeção das cenas, o que
poderia estabelecer variações aleatórias. Mas não houve tem­
po hábil para testar essa possibilidade devidamente. Segunda
contradição ou armadilha: na valorização absoluta do texto
falado, exacerbada nos intervalos entre os quadros, quando se
ouvia em blackout trechos do original em italiano da Comé­
dia de Dante lidos pelo poeta Roberto Piva, escudei-me nas
imagens projetadas e desviei o público, desinteressando-o, das
palavras, que ali, em sua opacidade tinham potencial de afe­
tar não como suporte de uma trama, mas como materialidade
sonora ignota. Isso ocorreu, principalmente, no primeiro qua­
dro, quando as falas dos personagens não estão arregimenta­
das pelo dialogo dramático, como acontece no segundo e ter­
ceiro quadros. Por isso mesmo, o "País do Indivíduo" guardou
tanto as principais virtudes do espetáculo como seus maiores
problemas. Inapreensíveis, sem qualquer facilitação dramáti­
ca e só com algumas poucas referências cognitivas, as frases
pronunciadas acabavam estanques, subordinadas às imagens
acessórias, e não fecundavam a imaginação do público. O pro­
blema poderia ser atribuído à qualidade da enunciação das
falas, congelada na gravação, mas, claramente, esse aspecto foi
menos relevante na incapacidade da cena de mobilizar os es­
pectadores do que as imagens projetadas em si, que atraíam os
olhares e distraíam o público de fruir a palavra poética enun­
ciada, funcionando como um território de segurança, diante
da abertura e do hermetismo do texto ouvido. Nos termos da
dialética entre mythos e opsis que foi aqui desenvolvida, deu-se
uma inversão curiosa. A trama diluída de Oswald colocou as
imagens gravadas a seu serviço, e teve as potências imagéticas
de seus versos abafadas. Mesmo reconhecendo no primeiro
quadro uma enorme carga lírica e a vocação de ruptura dos
padrões cognitivos do drama, ao figurar nas telas imagens dos

21 1
personagens falantes minimizei essa potencialidade, e reforcei,
aos invés de neutralizar, a narrativa dramática. Ironicamente,
o potencial antidramático sucumbiu diante do aparato fílmico
que pretendia liberá-lo.
O texto do programa apresentava o espetáculo, em tese,
menos como um produto dramático acabado, e mais como
um mecanismo maquinal e operativo para encenar e pensar
a peça. Eis porque a única forma de enfrentar essas contradi­
ções e armadilhas teria sido o operador, além do desempenho
interativo com as telas, assumindo personagens de modos e
em circunstâncias distintas, arejar, e mexer e mudar e parar
as projeções, ou pondo, por exemplo, as imagens para correr
em fost. Talvez o "operador", assumido pelo próprio ence­
nador, estivesse sobrecarregado pelo processo criativo, talvez
nunca fosse capaz de fazê-lo. O fato é que a máquina " Morta
(viva)" funcionou a meias, o material gravado ficou no limi­
te de suas possibilidades, e a margem de invenção possível,
que existia em potência, ficou oclusa, como promessa não
cumprida. Restou a hipótese, a ser testada, de que retiran­
do essa "máquinà' da situação/teatro, e compartilhando-a
como uma instalação interativa, em ambientes expositivos
e com a constituição de um sistema operativo aberto ao ob­
servador eventual, se consume o potencial antidramático da
peça, que foi, afinal, na montagem cênica, realçado, mas não
efetivado.

3 - GALIZIA E A ANTITEATRALI DADE NO TEATRO


B RA S I LE I RO M O DERNO

O tema do modernismo no teatro brasileiro sempre foi


polêmico, pois, dependendo do viés de análise os estudiosos
têm situado a ocorrência de uma ruptura com o que seriam
os padrões pré-modernos de dramaturgia e encenação em
momentos históricos distintos. Trabalhos mais recentes têm
procurado, inclusive, rever a questão do ponto vista da teoria

212
da recepção, ou seja, resgatando aquelas tentativas pioneiras
que, vetadas à sua época e não logrando alterar efetivamente
os modos dominantes de produção teatral, lançaram incon­
testavelmente as bases de uma renovação7• Já na perspectiva
da antiteatralidade entendida como antimimesis, ou ojeriza
ao ficcional e ao dramático, que vem sendo aqui desenvolvida
em diversas direções, será necessário estabelecer um novo
panorama. Já exploramos nos dois itens anteriores a pulsão
antiteatral na obra de dois dramaturgos nacionais - implíci­
ta aos textos de Qorpo-Santo tomados em contraste com a
dramaturgia de Gertrude Stein, e insinuada mormente em
uma das peças de Oswald de Andrade escrita nos anos 1 930.
Agora cabe observar, principalmente no plano da encenação
brasileira modernista, se existem traços nítidos de uma vera
antiteatralidade.
Há um cânone estabelecido que fixa a estreia de "Vestido
de Noivà', de Nelson Rodrigues, como o marco do teatro
moderno no Brasil. A favor dessa tese conspira o fato daquela
encenação de 1 943, mais até do que o texto encenado frente
à tradição de onde emergia, representar uma revolução no
padrão espetacular que era praticado no país em todos os sen­
tidos: ausência de ponto, utilização massiva de refletores e de
um desenho de luz, cenografia inventiva e, principalmente,
um encenador que definia o tom e a forma do espetáculo de
maneira decisiva. Mas esse encenador, Zbigniew Ziembinski,
era um polonês recém-chegado que operava a partir dos pres­
supostos de modernização do teatro europeu, já consagrados
há pelo menos duas décadas. Essa circunstância favoreceu a
tese de que a cena moderna brasileira, realizada por poetas
cênicos brasileiros, só teria se iniciado a partir dos anos 1 960,
quando alguns jovens encenadores como Flavio Rangel e
Antunes Filho, no Teatro Brasileiro de Comédia, e Augusto
Boal, no Teatro de Arena, fizeram algumas experiências cê-

7. Ver Simões, 20 10.

213
nicas de cunho nacionalista. O ciclo teria se completado em
1 967 com a encenação de José Celso Martinez Corrêa de o
" Rei da Vela", no Teatro Oficina, que incorporava elementos
típicos da teatralidade brasileira como o teatro de revista, o
circo teatro, o carnaval e elementos das práticas rituais de ori­
gem africana realizadas nos terreiros de candomblé e umban­
da. De algum modo, essas tradições tinham sido estigmatiza­
das no processo de renovação iniciado na década de 1 940 por
encenadores estrangeiros, ainda que Alcântara Machado, um
dos escritores do modernismo brasileiro, já tivesse, na década
de 1 920, apontado a necessidade de uma aliança, no país, do
teatro com as formas espetaculares da cultura popular (Lara,
1 987) . Com "O Rei da Velà' o Ofi c ina realizou aquele pro­
jeto e demarcou a conclusão de um lento e longo processo de
modernização.
Posto isso, interessa aqui verificar até que ponto essa mo­
dernização da cena brasileira implicou em alternativas mais
radicais que pudessem caracterizar uma antiteatralidade, no
sentido de se propor antidramática, como se veio até aqui des­
crevendo essa tendência no panorama teatral do hemisfério
Norte. Os primeiros ecos dessa perspectiva podem ser identi­
ficados na esteira da onda de renovação que experiências nor­
te-americanas como o happening e a performance, cristalizadas
em grupos como o Living Theatre, e europeias como o Teatro
Laboratório de Jerzy Grotowski geraram. Essas correntes, que
se consolidaram na década de 1 960, muito influenciadas pe­
las ideias de Antonin Artaud, vão rebater no Brasil em vários
artistas. Talvez o grupo em que repercutiram de forma mais
drástica essas novas perspectivas, nas quais a ideia mesma de
representação dramática era questionada e a aproximação ab­
soluta entre teatro e vida propugnada, tenha sido o próprio
Teatro Oficina. Ali, a partir da encenação de "Roda Vivà', em
1 969, e da formação de um coro com atores e atrizes muito
jovens, se processou uma transformação radical dos pressu­
postos e propósitos do grupo original. Com exceção do di-

214
retor José Celso Martinez Corrêa, os integrantes mais velhos
passam a se incompatibilizar com o projeto e os modos de
vida do grupo mais jovem, nomeado genericamente como
"coro" . ''O coro come" era a sen ha para descrever o proces-
so de desconstituição daquele Oficina que se empenhara em
montar espetáculos a partir de textos e auferir rendimentos
com eles, e a entronização de uma nova proposta em que se
refletiam os ideais da contracultura e sobressaía a recusa em
prosseguir-se encenando dramas. No novo quadro, que se foi
intensificando no início da década de 1 970, o imperativo era
fundir teatro e vida, transformando o próprio convívio inter­
no do grupo, enquanto uma comunidade aberta às experiên­
cias lisérgicas, às transgressões e à recusa da vida burguesa, na
razão de ser de sua existência. O clímax desse processo de ra­
dicalização foi o "espetáculo" "Gracias Sefzor", que resultou de
uma viagem do grupo pelo país e foi encenado a primeira vez,
em 1 97 1 , na Universidade de Brasília, numa apresentação ao
ar livre no campus, acompanhada por milhares de pessoas.
O mesmo roteiro, que durante todo o período de preparação
era chamado de "trabalho novo", voltou a ser encenado em
1 972, agora em um teatro, o Ruth Escobar, em São Paulo,
onde se fez uma temporada curta de duas semanas, encerrada
prematuramente pela intervenção da polícia. Mas o que era
esse "espetáculo" que pretendia negar a representação dramá­
tica convencional, que instigou a ditadura militar a prender
o diretor do grupo e a crítica especializada a cunhar o termo
"teatro de agressão" para referir-se a ele? Objetivamente ainda
era uma encenação já que, a partir de uma colagem de textos
existentes de vários autores e do eixo conceitual emprestado
de um neurologista português, Antonio Egas Moniz { 1 874-
1 955), que criara a lobotomia, ou leucotomia, apresentava-se
uma sessão diante do público em que lhe era proposto um

215
exame de consciência sobre sua identidade dividida8• A me­
táfora da lavagem cerebral assumida como veneno e cura da
alienação reinante era o mythos cujo desenvolvimento impli­
cava na adesão dos espectadores e em sua transformação ao
longo do espetáculo. Ao final, na medida em que, ao menos
retoricamente, os atores houvessem se recusado a representar
papéis e os espectadores consentissem em se tornar cúmpli­
ces atuantes, teria havido uma comunhão quase religiosa de
renovação dos espíritos, ou das almas, para uma situação re­
conciliada. Este forte caráter ritual, calcado no mito do renas­
cimento dos indivíduos depurados de corrupções mundanas
traduzia-se, entre os próprios integrantes do grupo, na expres­
são "te-ato", que almejava substituir a característica contem­
plativa dos espectadores, implícita à palavra teatro, por uma
participativa, em que estes eram convidados a atuar e a com­
partilhar a renovação a que o grupo se propunha. Acredita-se
aqui que apesar da inconteste radicalidade dessa postura, em
que teatro e vida se fundem utopicamente, ela se distancie
das experiências que vêm sendo pontuadas como expressões
de invenção espetacular em que, contra a ficção e as narrati­
vas dramáticas convencionais, se buscam expressões despidas
de referentes reconhecíveis, mais próximas do que no plano
da pintura se convencionou chamar de abstração, ou de arte
concreta, significando-se aí, de algum modo, a arte como o
que se dá a ver, material e substantivamente, puro opsis. Se
consideradas nesses termos, as experiências de radicalização
do Oficina foram, por certo, experiências existenciais muito
intensas, que mudaram a vida de todos aqueles que participa­
ram delas e refletiram uma tendência mundial de revolução
dos costumes, mas não configuraram, no plano do que se está

8. Loboromia, mais apropriadamenre chamada leucoromia {já que loboromia referir-se-ia


a cortar as ligações de qualquer lobo cerebral) é uma intervenção cirúrgica no cérebro,
onde são seccionadas as vias que ligam os lobos frontais ao tálamo e outras vias frontais
associadas. Foi utilizada no passado em casos graves de esquiwfrenia. A loborornia foi
uma técnica cirúrgica da psiquiatria que foi abandonada no final do sécul� XX.

216
tomando como tradição antimimética e antiteatral, uma con­
tribuição decisiva9• De fato, se considerarmos o desmanche
do Oficina, depois de "Gradas Senor", e o refluxo que ocor­
reu no teatro brasileiro com a forte repressão que adveio aos
seus praticantes por parte da ditadura militar, uma verdadeira
reação aos padrões dramáticos convencionais teria que esperar
até a década seguinte para se fazer sentir.
É certo que já em 1 977 a criação do grupo Ornitorrinco,
por iniciativa de uma ex-atriz do Oficina, Maria Alice Verguei­
ro, e de dois de seus ex-alunos na Escola de Çomunicações e
Artes da USP, Cacá Rosset e Luiz Roberto Galizia, representou
uma retomada do experimentalismo. Com o espetáculo "Os
Mais Fortes", apresentado nos porões do antigo teatro Oficina
(hoje demolido para dar lugar ao atual espaço, feito a partir
do projeto de Lina Bo Bardi), os três artistas, sob a direção de
Galizia, resgatavam três peças curtas de August Strindberg -
"Simum", "O Párià' e ''A Mais Forte" - em sessões, horários
e públicos alternativos. A disposição de experimentar novas
possibilidades para o teatro, com um autor importante na re­
novação do drama europeu moderno, se recusava a tradição
realista e o enfoque psicológico dos personagens, habituais a
outras montagens dessa fase já moderna do teatro brasileiro,
ainda não configurava uma verdadeira ruptura com o dramá­
tico.
Um ano depois Antunes Filho teve uma iniciativa nova.
Sendo um dos primeiros encenadores brasileiros, da geração
criada no ambiente do antigo Teatro Brasileiro de Comédia
e que, durante os primeiros anos daquela década tinha feito
alguns trabalhos ambiciosos, mas conformados às convenções
dramáticas e presos a um enfoque comercial, mudou de es­
tratégia. Passou a trabalhar com atores muito jovens, sem for­
mação canônica, e, buscando o risco, lançou-se ao projeto de
adaptar e encenar "Macunaímà', o célebre romance de Mário

9. Ver Ramos, 2005, p. 269-279.

217
de Andrade que marcou a literatura brasileira moderna. Na
sua adaptação, Antunes teve em mente por certo, entre ou­
tras referências, o espetáculo "Life and Time o f Joseph Stalin",
de Robert Wilson, apresentado em 1 97 4, durante doze ho­
ras, no Teatro Municipal de São Paulo, dentro de um Festival
Internacional produzido pela atriz Ruth Escobar10• Antunes
reverberou em "Macunaímà' algo do que viu na exuberan­
te encenação de Wilson, mas não alcançou emancipar-se das
referências literárias de que partiu, ou realmente fazer delas
meros pretextos para a construção de uma sintaxe cênica au­
tônoma. Sem apanhar, de fato, o forte espírito de abstração
implicado nos espetáculos de Wilson, Antunes emprestou as­
pectos externos daquela obra, mais claramente sua riqueza vi­
sual, para desenvolver seu próprio projeto de adaptar grandes
romances da literatura brasileira ao plano dramático e, dessa
via, para a cena. O que ele efetivamente iniciou ali, em Ma­
cunaíma, o prosseguiu fazendo, principalmente ao longo da
penúltima década1 1 •
A partir dos anos 1 980, e nos últimos trinta anos, o teatro
brasileiro veio resgatando a pujança criativa e a importância
social que já tivera em décadas passadas, principalmente entre
os anos 1 950 e 1 960, quando se deu o seu processo de mo­
dernização e consolidaram-se práticas bem distintas das que
lhes eram anteriores e que remetiam à teatralidade do século
XIX - çompanhias centradas em grande atrizes e atores, que
atraíam multidões às salas, e estruturadas em repertórios de
peças ensaiadas com ligeireza graças à utilização do ponto, o
que desobrigava os elencos de decorar seus papéis. Nesse pe-

I O. A produção de "A vida e a época de Joseph Stalin" (lhe life and Time of Joseph Stalin)
em São Paulo aconteceu em 1 974, no the Teatro Municipal. Por conta da censura da
Ditadura Militar, à época, o nome da encenação foi modificado para "A vida e a época
de Dave Clark" (lhe life and time of Dave Clarck).
1 1 . Este projeto desenvolveu-se posteriormente com a adaptação de "A Pedra do Reino", de
Ariano Suassuna, em 2004, e "Triste Fim de Policarpo Quaresma", de Lima Barreto, em
2009.

218
ríodo mais recente surgiram vários jovens encenadores e dra­
maturgos e muitos grupos se consolidaram trabalhando com
os procedimentos do chamado processo colaborativo, aliás
como aconteceu em vários países numa renovação global das
práticas teatrais. Porém, do ponto de vista que se está per­
correndo aqui, o de uma perspectiva antiteatral de recusa do
drama e da ficção e de investimento em uma linguagem cênica
totalmente autônoma da literatura e da estruturação dramáti­
ca, que configurasse tipos de mimesis performativa ou de um
teatro pós-dramático, como os casos examinados no quarto
capítulo, pouquíssimos artistas poderiam ser arrolados. Como
já se pontuou aqui, a maioria dos grupos brasileiros atuais em
atividade, mesmo utilizando procedimentos contemporâne­
os como o processo colaborativo e uma ideia de dramaturgia
mais alargada - construída por dramaturgos, mas em um pro­
cesso de encenação em que dividem com interpretes, cenó­
grafos e o próprio encenador a construção dramática - não
chegam a caracterizar o que Hans-Thies Lehmann nomeou de
pós-dramático 1 2 •
Entre os poucos artistas que desbravaram na direção de
uma recusa radical do dramático, um pioneiro, ou dos pri­
meiros a se aventurar nessas sendas no panorama local, foi o já
citado Luiz Roberto Galizia. Ele tornou-se, talvez, o primeiro
encenador brasileiro a operar de forma franca com a ideia de
uma cena plenamente abstrata, depois que se separou de seu
grupo original, o Ornitorrinco, e teve oportunidade de expe­
rimentar-se como autor de cenas radicalmente abertas, intro­
duzindo procedimentos da performance art norte-americana e
refletindo por certo as influências de Robert Wilson, mas não
superficialmente, como no caso de Antunes Filho. Os dados e
argumentos que sustentam essa hipótese passam a ser enuncia-

1 2. Utilizamos essa referência para caracterizar de maneira genérica formas teatrais antidra­
máticas e antiteatrais contemporâneas, pela popularidade e amplitude que este conceito
adquiriu no Brasil. Sobre nossa crítica a esse conceito como operador analítico da cena
contemporâneas, ver Ramos, 2009b.

219
dos, com a ressalva de que foram organizados em um trabalho
anterior e são agora retomados, no quadro conceitual que se
configurou neste atual estudo. Na verdade, o tempo só veio a
confirmar o pioneirismo de Galizia já antes apontado13•
Talvez, um fator importante na formação artística de Ga­
lizia, decisivo na sua opção por radicalizar na exploração de
novas formas espetaculares, que ampliavam o escopo da tea­
tralidade para muito além do teatro e rompiam com qualquer
vestígio da tradição dramática, tenha sido sua familiaridade
com os espetáculos de Robert Wilson e com a tradição mi­
nimalista que imperou nas artes norte-americanas nos anos
1 970. Galizia cursou o mestrado na Universidade de Berkeley
entre 1 974 e 1 976 e retornou à mesma universidade em 1 978
para realizar seu doutorado, concluído no ano seguinte com a
tese " Robert Wilson Creative Process: Whole Work of Art for
the Contemporary Arnerican Theatre"1 4 • Estes quatro anos de
convívio no ambiente acadêmico dos Estado Unidos serviram
não só para abrir os seus olhos para um novo horizonte que
contaminava as artes plásticas e cênicas daquele país, como
para consolidar sua formação teatral em um sentido mais tra­
dicional, envolvendo o conhecimento aprofundado de autores
clássicos como Shakespeare e dos principais dramaturgos mo­
dernos, nomes como Ibsen, Tchecov e Strindberg. Quer dizer,
a ruptura que vai estabelecer segue um padrão comum ao ob­
servado em outros artistas inovadores, ou seja, o esgotamento
das possibilidades de trabalho com as formas tradicionais para
abrir novos caminhos a partir da recusa destas. Ao mesmo
tempo, a consolidação à época do trabalho de encenadores
norte-americanos como Robert Wilson e Richard Foreman,
que passavam a ser reconhecidos na Europa e tornavam-se,

1 3. Ver Ramos, 1 989.


14. A tese foi publicada em porcuguês em com o titulo Os Procmos Criativos d� Rob�rt
Wilson. São Paulo, Perspectiva, 1 986. Ressalte-se que o contato de Galizia com Roberc
Wilson se iniciou em 1 974, quando ele foi traduror da já referida montagem que teria
influenciado Anrunes Filho.

220
pela singularidade de suas obras frente à tradição dramática
realista, objeto de estudos acadêmicos, oferecia ao jovem ar­
tista parâmetros para a proposição de um novo paradigma de
mimesis performativa no ambiente brasileiro.
Como um artista eclético, Galizia foi, além de encenador,
poeta e performer (entre outros exemplos, fazia intervenções
em bares quando lia ou recitava poemas) , um ator de forma­
ção sólida, o que lhe permitiu aceitar papéis bem convencio­
nais em grandes produções, fossem musicais ou comédias de
costume. Com uma curiosidade voraz, nunca teve preconcei­
to contra formas populares ou tradicionalistas, e esse amplo
trânsito pelos gêneros dramáticos lhe permitiu balizar com
consciência de causa as margens de invenção possível quando
se tratou de radicalizar sua relação com o teatro. Isso ocorreu
em 1 984, quando, já em um segundo trabalho com o grupo
Ponkã, realizou sua encenação mais autoral e lançou o mani­
festo "Reflexões Preliminares à discussão de um teatro moder­
no, do moderno no teatro e do moderno em si, Agora, Aqui,
Ou: Teremos de ser radicais".
O Ponkã era um grupo de jovens atores nisseis liderado por
Paulo Yutaka, ex-integrante da última formação do antigo Ofi­
cina, aquela que se dissolveu no exílio em Portugal. Yutaka vive­
ra em Amsterdã e como Galizia estava em sintonia com a voga
da arte da peiformance e com as experiências antidramáticas de
encenadores como Wilson e Foreman, nos Estados Unidos, ou
Tadeusz Kantor, na Europa. Depois de um primeiro espetáculo
despretensioso - "Tempestade em Copo D'Águà' -, iniciado
a partir de uma oficina, os integrantes do Ponkã convidaram
Galizia para dirigi-los em um novo processo criativo, desta vez
a partir de algumas referências: "O Apocalipse" de São João, o
"Tao Te Ching" de Lao Tse, o tema genérico da violência e um
texto de Paulo Yutaka sobre o gesto humano. Depois de nove
meses, o espetáculo com quatorze cenas autônomas entre si es­
treou para provocar estranhamento real no público e na crítica.
Das treze cenas que restaram durante a temporada de cerca de

221
50 apresentações em três teatros de São Paulo - Galizia cortou
a última depois da estreia - só duas tinham falas, sendo que em
uma delas a fala era gravada. Se esta maioria de cenas mudas, só
sonorizadas, ainda remetia a referentes claros - temas cotidia­
nos, a bomba nuclear, etc. - no conjunto, e mesmo individu­
almente no corpo das mesmas, o tom era abstrato, ou de uma
mimesis performativa em que já não se identificava qualquer
precedência do mythos. Contava-se essencialmente com o opsis,
a matéria cênica em bruto, como a forma expressiva dominan­
te que subordinava um mythos residual.
Independentemente da hipótese de que com aquele espetá­
culo ter-se-ia inaugurado um padrão de cena abstrata nos cir­
cuitos paulistano e brasileiro, vale localizar alguma evidência
dentro de um rol de intenções bem claras do artista propositor
de ''Aponkãlipse". Elas aparecem tanto nas cenas do espetáculo,
como no manifesto que o acompanhou, e no depoimento de
algumas testemunhas de seu processo de constituição. A refe­
rência ao modernismo no título do manifesto é reiterada já na
frase inicial - "O (teatro) moderno é o que abdica radicalmen­
te da ambição de ser, tornar-se eterno; aceita, integralmente,
sua condição de fenômeno efêmero". A associação entre mo­
dernidade e efemeridade como que resgata o caráter intrínse­
co de uma mimesis performativa fundada necessariamente no
aqui e agora, e em um momento impossível de ser repetido,
ou seja, como as intervenções assumidamente inconsequentes
dos dadaístas nos anos 1 9 1 O, ou as performances inacabáveis
de Jack Smith nos anos 1 970, para ficar em dois exemplos
significativos e bem distantes temporalmente. O modernismo
deixa de ser pensado como uma instância histórica e é pro­
posto como um estado de espírito atemporal e radical, "o que
tem coragem de investir, despudoradamente, na sua qualidade
de descartável, de relativamente inútil para a posteridade (. . .
passível apenas de fixação no mundo da memória), portanto
inexistente como si próprio no futuro, circunstancialmente
em guerra com o passado e fundamental para a transformação

222
do presente"15• Há pois no manifesto e, de certa forma no
espetáculo, uma "vontade radical, subversiva, contracultura!"
que busca a ressurgência desse desejo de subversão, sem o qual
"não adiantará discutirmos o moderno", pois a investida será
"tímida, limitada apenas ao vislumbre do novo, não à sua re­
alização". Diferenciando-se da geração anterior ao negar-se a
associar suas propostas às lutas políticas e a confundi-las com
mudanças existenciais, mas sem economizar na radicalidade
da ambição - "Eu não quero ser revolucionário. Eu quero ser a
revolução, mas sem violência." 16 - Galizia resgata, nesse início
da década de 1 980, a intensidade negativa das vanguardas, de
fato perpassada por manifestações de nossa cena modernista
no fim dos anos 1 960, mas naquele momento já arrefecidas
e domesticadas. Quando ele se volta, então, para o teatro em
específico, do que se trata é menos de acolher esta ou aquela
proposta estética, mas de trombetear sua indignação com o
conformismo e a passividade que reinavam.

[ ... ] a função artística da atividade teatral, não é, certa­


mente, a criação de divisas, de poder, de segurança. É seu
caráter subversivo o que conta, o que a define. O moderno
sempre fracassará na medida em que insistir em concorrer
com o progresso (com o moderno) tecnológico: a divisão
de trabalho, a multiplicação de funções, a importação de
textos, de ideias, a preocupação com a profissionalização,
a utilização de novos recursos, o apuro técnico, o pad_rão
de qualidade, a premiação social, o próprio ensino da arte
teatral, e assim por diante; tudo isso se volta continua­
mente contra o teatro em si, aniquilando-o, jogando-o
invariavelmente, num círculo vicioso e suicida (Galizia,
1 986).

1 5 . O manifesto "Teremos de ser radicais" foi publicado no programa de Aponkãlipse e de­


pois em um número especial de uma revista acadêmica, a Ar'te, da ECA-USP, no número
9, de 1 984.
16. Citado por Alberto Guzik em Ramos, 1989, p. 1 08.

223
A extensão do ataque ao "teatro", ou a tentativa de defen­
dê-lo da incúria de um modernismo a meias, deixa claro que
a única via é a que refaz o teatro no presente; cada vez mais
assente na disposição de subverter sempre e ampliar suas pos­
sibilidades de existência, para além de vaidades e programas,
numa ética artística em que não só vale o achado imprevisto
como se o prefere, ao lado do desempenho notável, que se
impõe por si, vitorioso sob o olhar implacável do espectador.
Essa disposição que se aponta no discurso de Galizia ganha
relevo e clareza quando se leva em conta o processo criativo
de ''Aponkãlipse", tomado como descrito pelos seus partici­
pantes ou pela cena que, efetivamente, acabou constituindo.
Importa aqui, contudo, antes de descrever algo do espetáculo
e exemplificar aspectos já percorridos, salientar que esse ata­
que, mais do que contra a instituição teatro, ou determinada
escola ou tendência, corta por baixo, pela raiz, procurando um
não ser mais teatro, ou um ser teatro sem o teatro, ou, ainda e
finalmente, um ser radicalmente teatro. A virulência do corte
talvez se assemelhe com a encetada pelo teatro Oficina, na
transição de " Gracias Sefzor', até porque ali, mais do que em
discurso, ou em obra, viveu-se essa recusa na carne, ou na vida
real. Mas, talvez por isso mesmo, em Galizia a negação do
teatro, o grito antiteatralista contra sua submissão ao drama,
à ficção e às contingências histórico-institucionais consegue
formular um horizonte, dialoga com as tradições antiteatrais
que o cercam e anuncia uma nova poética mais libertária, li­
vre do cumprimento de expectativas prévias e apta a explorar
novos caminhos. Em diálogo com a arte minimalista e a cena
de Robert Wilson, reverberando a fusão de arte e teatro já
realizada por Tadeusz Kantor e experimentando na própria
pele a linguagem da performance, Galizia pôde enunciar com
desassombro o seu vaticínio antiteatral, inaugurando verda­
deiramente uma série de manifestações do mesmo teor que
pontuaram, como exceções, nas décadas que o sucederam, e
até hoje se fazem presentes ocasionalmente. De algum modo

224
consolidou-se, nesses experimentos de Galizia com o Ponkã,
um modo de produção espetacular que operava fora do teatro
e dos padrões dramáticos, ainda que este já estivesse sugerido
por Renato Viana nos anos 1 920, fosse experimentado por
Flávio de Carvalho na década seguinte, e explorado fortemen­
te pelo grupo Sonda de Zé Agripino e Maria Esther Stockler
nos 1 960. Afirmava-se, como realização possível, a construção
de espetáculos autônomos do próprio teatro e de suas conven­
ções. Este programa não se estabelecia em termos existenciais
ou políticos, como vinte anos antes, mas numa plataforma
estética e ética que acabaria na década seguinte se impondo.
Propunha-se uma arte viva, ou uma mimesis performativa li­
berta das amarras dramáticas e fundada só na materialidade e
temporalidade cênicas, sem compromissos prévios, mas, in­
clusive, capaz de estar à vontade com a teatralidade, desde que
não restrita ao dramático e estendida à poética espetacular, ou
ao puro opsis.
A arquitetura teórica de que se serve para construir seu
doutorado sobre Robert Wilson é a prova de que o univer­
so de preocupações de Galizia abarcava tanto questões das
artes visuais quanto aspectos da teatralidade moderna. Um
ponto-chave dessa argumentação é a diferenciação que esta­
belece entre a ideia wagneriana de gesamtkunstwerk e os tipos
de "obra de arte total" realizada por Robert Wilson. Partindo
do conceitos de "transição" e "justaposição" desenvolvidos por
Roger Shattuck ( 1 968) 17 ele propõe:

Wagner pertence a um mundo em que "unidade" ainda


se refere ao conceito clássico de unidade que se originou
no teatro grego; um único valor de proximidade dentro
das dimensões de lugar, tempo e caracterização, segundo
Shatruck. Nesse contexto, "ação" significava 'um arran­
jo racional de acontecimentos em sequência. Contudo

1 7. The Banquet Years, livro sobre as origens das vanguardas artísticas na França, do fim do
século XIX até a Primeira Guerra Mundial.

225
a sensibilidade moderna do século XX desenvolveu um
novo sentido de "unidade". Ainda de acordo com Shar­
tuck, assim como um fenômeno da natureza não poderia
mais ser entendido como existindo lá, na simples locali­
zação da física clássica, também a obra de arte - peça ou
pintura - não mais poderia ter um simples aqui e agora,
mas uma unidade muito complexa. É esse novo conceito
de unidade, não mais caracterizado por sucessão, por tran­
sição, mas por justaposição, ou mesmo por superposição
que caracteriza a G�samtkunstw�rk de Robert Wilson (Ga­
lizia, 1 986, p.X:XXV) .

Galizia aponta outros artistas, como Erwin Pisca to r e Alwin


Nikolais, que teriam compartilhado essa ideia de um teatro to­
tal e o princípio da j ustaposição, ambos remetendo-se à noção
de montagem do cineasta e teórico Serguei Eisenstein. Mas, se
no caso destes, foram utilizados recursos originários das mais
variadas fontes e sistemas, a Wilson teria cabido o pioneiris­
mo de "operar consistentemente no âmbito da complexidade
das linguagens específicas de cada arte empregada em sua arte
total, isto é, sem utilizar um filme para esclarecer um texto,
ou uma canção para comentar uma ação, (como ocorre em
Brecht)" (op. cit., loc. cit.) . Considerando a leitura que se fez
aqui, no segundo capítulo, da noção de Gesamtkunstwerk em
Wagner a partir de Puchner, em que se leva em conta, prin­
cipalmente, a crítica de Nietzsche ao compositor por unificar
e submeter as instâncias componentes do espetáculo de ópe­
ra ao gesto redutor do intérprete, atrelando-as ao dramático,
pode-se sustentar que Galizia fazia ali uma interpretação bem
consequente. Mesmo tomando a noção wagneriana pelo seu
valor de face, no plano espetacular, ele percebe a radical opo­
sição que se configura na obra de Wilson frente àquela ideia
de uma totalidade harmonizada e conciliada e percebe como
naquela encenação já não opera a conectividade do drama.
Ele chega a falar em um "teatro imóvel" que independe de
acontecimentos e se sustentaria só nos ambientes e objetos cê-

226
nicos pelo arquiteto e artista plástico que Wilson também era.
Esta percepção dialogava com a leitura de Stephan Brecht, o
principal teórico à época sobre o teatro de Wilson, autor de
um livro seminal em que cunhou o epíteto que marcaria do­
ravante aqueles espetáculos, o de um "teatro de visões"18• Em
sua percuciente análise aquele teórico sustentou que a obra de
Wilson realiza um deslocamento frente ao drama e ao "teatro
normal" no que diz respeito às suas funções históricas. Como
diz, "teatro é comunicação, mas o teatro de Wilson é marcado
pela recusa em se comunicar. [ ... ] Não há comunicação com a
plateia; a informação normalmente dada é negada: os elemen­
tos estruturais normalmente concernentes ao teatro (trama
continuidade e coerência da ação, personagens, motivações)
estão ausentes: nada faz sentido". Assim, se Brecht formula em
linhas gerais a flagrante antiteatralidade deste primeiro Robert
Wilson - " [ ... ] não desdobra uma ação no espaço: constrói seu
espaço com ações. O espaço, não a ação, é o material primário;
[ ... ] o que ele quer encenar, são imagens, não ideias" - não se
preocupa em deslindar aqueles procedimentos em particular.
É exatamente a esta tarefa, de detalhar em processos espeCíficos
os modos e meios de construção da cena de Wilson, a que
Galizia se lançará em sua tese de doutorado, refletindo-se esse
aprofundamento, inevitavelmente, em seus últimos trabalhos,
sobretudo em ''Aponkãlipse".
Sem descrever em detalhes o longo processo de criação da
última e, talvez, mais importante obra de Galizia19, destacam-se
alguns aspectos da encenação que confirmam tratar-se, ine­
quivocamente, de um teatro radicalmente antidramático. De­
pois de três meses de trabalho em torno das referências preli­
minares já mencionadas, em que Galizia estimulou os atores a
trazerem cenas prontas a partir daqueles textos e temas, houve
uma decisão radical do diretor de deixar tudo aquilo de lado

1 8. Brecht, 1 978b.
1 9. Ver uma descrição detalhada em Ramos, 1 998.

227
e começar de novo do zero. Desta vez, a única demanda aos
atores era que se preparassem para estar em cena como se es­
perassem alguma coisa, e, num segundo momento, já intensi­
ficando uma dificuldade que se mostrava insrransponível, que
ali permanecessem sem fazer nada. As demandas, que foram
sintetizadas pelo grupo com a expressão "cena da esperà', gera­
ram uma crise interna que ameaçou abortar o projeto. Foram
necessários mais seis meses para os atores, convivendo com o
vazio em que se viram lançados, e que era agravado pela me­
todologia do encenador de recusar-se a dar explicações sobre o
que queria, permitindo-se apenas assistir às tentativas que lhe
eram apresentadas e acolhê-las ou não em silêncio, gerarem
o conjunto de cenas autônomas que acabou constituindo o
espetáculo. Deste rol vale mencionar duas cenas, pelo que elas
sugerem tratar-se já de uma arte cênica para além do teatro
dramático e antecipando, até, manifestações contemporâneas
de grande relevância. A primeira consistia basicamente de uma
TV em branco e preto, ligada em nenhum canal, mas apenas
com seu próprio chiado e luminosidade, sendo lentamente
içada de um dos cantos do proscênio até sumir no urdimento,
enquanto alguns atores praticamente no escuro grunhiam aga­
chados como macacos e, no final, acenavam para ela. A outra,
conhecida como "cena do inseto", em que Paulo Yutaka, ves­
tido apenas com o fundoshi - calção utilizado nas roupas de
sumô - entrava manipulando dois bastões de luz branca com
os quais ameaçava penetrar e/ou perfurar uma mulher deitada,
vestida de vermelho, que tinha enchido uma bexiga à frente
do público para criar uma barriga de grávida. Em ambos os
casos há uma combinação de dois elementos que vão apare­
cer com grande destaque na obra de uma companhia como
a contemporânea Socletas Raffaello Sanzio, já citada aqui: o
forte impacto visual de uma cena inexplicável, ou que deman­
da uma participação ativa do espectador na sua consecução
como signo, e a sombra da animalidade, como um elemento
primário e indissolúvel da mimesis performativa proposta por

228
aquela mesma companhia. Sem forçar a mão aproximando es­
petáculos de tempos e conjunturas artísticas muito distintas,
vale essa remissão, inclusive, para aplicar sobre essa cena anti­
dramática só esboçada por Galizia, um comentário feito ainda
na década de 1 980 por Bernard Sobel a propósito do teatro
de Robert Wilson, mas que valeria hoje para as encenações de
Romeo Castelucci:

Eu diria que Wilson tem a coragem de mostrar ao público


os grande mitos, mas, ao contrário de Brecht, que talvez
não tenha querido ou podido ir tão longe, ele o faz despin­
do7os de qualquer fábula ou história, que conferem a esta
matéria mítica apresentada um sentido pré-digerível ou
preestabelecido [ ... ]. Nós estávamos, portanto, totalmente
enganados a propósito do teatro de Wilson. Era dito que
Wilson era imagem. Ora, ao contrário, seu teatro coloca
uma questão diretamente ao espectador: como você,
espectador, manifesta sua atividade. O objetivo principal
de Wilson não é o universo criado sobre o palco, é o
espectador (Sobel e Dort, 1 987, p. 1 34).

4 - CENAS "ANTITEATRAIS" NA CONTEMPORANEI DADE

A cena brasileira nos últimos 25 anos passou por uma re­


novação expressiva. Uma nova geração de dramaturgos e en­
cenadores emergiu e, principalmente nos últimos anos, graças
a algumas políticas públicas vitoriosas, geradas menos pelo
tirocínio dos governantes do que pela pressão dos próprios
criadores, adensa-se uma massa crítica que envolve não só
os circuitos de grupos e profissionais do teatro, como a pró­
pria universidade e os diversos programas de pós-graduação
em artes cênicas vigentes. Dentro desse quadro mais recente,
importa aqui, primeiro, nomear aqueles artistas que, mesmo
remotamente, poderiam ser incluídos numa perspectiva anti­
teatral, no sentido de terem se recusado a operar nos pressu­
postos dramáticos, como se veio enfatizando desde o início

229
do livro. Em seguida, foram eleitos dois artistas mais recentes,
que, atuando nos campos específicos do teatro e das ditas artes
visuais ou plásticas, convergem no interesse comum pela in­
venção de novas formas de prática artística em seus territórios
de origem, que os ampliam para além de suas fronteiras e,
principalmente, que produzem uma mimesis performativa já
não mais condicionável àqueles campos.
Depois do relâmpago que Galizia provocou na cena paulis­
tana do início dos anos 1 980 com ''Aponkálipse, que apareceu
para poucos e de forma muito rápida antes de desvanecer-se,
o primeiro artista a espicaçar a consolidada tradição dramática
no Brasil foi Gerald Thomas. Tendo vivido muitos anos na
Inglaterra, desde a adolescência, onde fez suas primeiras incur­
sões na cena, conseguiu realizar algumas experiências impor­
tantes em Nova York, no La Mama Theatre, antes de estrear
seus primeiros trabalhos no país. A mais significativa delas foi
a "Beckett Trilogy", montagem de três textos de Beckett (Te­
atro I, Teatro 1 1 e Aquela Vez) , sendo que no caso de ''Aquela
Vez", com a participação de Julian Beck, um dos fundadores
do Living Theatre. Nesta experiência rara, o processo de cria­
ção foi verdadeiramente mais importante do que a encenação.
Tendo sobrevivido a um câncer, Beck procurou Thomas para
participar do projeto, mas ele tinha perdido as cordas vocais
e, muito debilitado, não conseguia dizer uma frase sem solu­
çar e ofegar. A solução foi aproveitar-se do fato de que Beck
ainda era capaz de enunciar uma palavra por vez e, depois
de um exaustivo processo de gravação e não menos cansativas
vinte e uma horas de edição, reconstituir inteiramente o texto
de Becketr2°. Como em ''Aquela vez" o texto é pré-gravado e
o personagem só ouve sua própria voz em silêncio, vinda de
três pontos distintos, foi possível concretizar-se a encenação.
A história é exemplar do tipo de disposição de Thomas aos

20. Palco e Plateia, n. 4, São Paulo, 1 986, p. 20-25.

230
riscos, e de como ele já partia de uma fonte claramente anti­
dramática.
A trajetória vitoriosa de Thomas no Brasil começou em
1 985, no Teatro dos Quatro, no Rio de Janeiro, quando
reuniu três grandes atores da tradição modernista (Rubens
Corrêa, Ítalo Rossi e Sérgio Britto) para encenar de novo a
"Beckett Trilogy" que fizera em Nova York, acrescida de mais
um texto - "Nadà'. O ciclo de quase dez anos que aí se ini­
cia implicou na criação da Companhia de Ópera Seca e foi
ampla e minuciosamente estudado por Sílvia Fernandes, no
definitivo trabalho Memória e Invenção - Gerald Thomas em
cena ( 1 996) . Ali se traça o atribulado percurso do artista, em
meio a provocações cometidas e ataques sofridos, em busca
de reconhecimento para seu projeto contrário a uma teatra­
lidade convencionalmente dramática, em que se utilizou de
procedimentos construtivos experimentais em vários níveis
e consumou uma inventiva transformação na abordagem da
preparação dos atores e da própria metodologia de encenação
no país. Fernandes chega a sugerir - ignorando a contribuição,
já aqui pontuada, de Luiz Roberto Galizia na superação das
convenções dramáticas e na afirmação de uma antiteatralidade
radical no Brasil - que Thomas teria sido o grande pioneiro
dessa transformação, trazendo para cá as novidades da cena de
Nova York21 • Sem prolongar essa questão menor, do âmbito da
historiografia do teatro brasileiro, interessa agora, aceitando a
contribuição decisiva de Thomas na afirmação de uma antite­
atralidade visceral, no sentido de seu teatro ser intensivamente
antidramático, olhar retrospectivamente, e de uma distância
temporal mais dilatada, aquela contribuição.

2 1 . Referindo-se a uma crítica que aponta em Thomas a emulação do teatro de Robert


Wilson ela diz: "A ironia do 'copyright de Bob Wilson' não rouba de lhomas o papel de
pioneiro da criação, no Brasil, de espetáculos alinhados com as pesquisas de ponta do
teatro internacional, especialmente com os chamados 'encenadores formalistas' do final
dos anos 70 que especialmente em Nova York, trabalham numa pesquisa cênica muito
próxima das artesvisuais abstratas" ( 1 996, p. 14, grifo meu).

23 1
Thomas parte de Beckett, e de todas as sugestões implíci­
tas em sua dramaturgia, a princípio, e depois em suas ence­
nações, de uma profunda crise nas possibilidades efetivas da
representação dramática. Como já foi discutido aqui, a obra
de Beckett, principalmente no fim de sua vida, consistiu no
paciente e obsessivo enfrentamento da falência da mimesis dra­
mática, e da própria literatura, em seu projeto de representar a
vida humana, realizando-se esse embate tanto no campo lite­
rário como no teatral, caso das peças televisivas. Deste ponto
de partida, de algum modo ainda dramático, em que se serve
de textos de Beckett para, mesmo privilegiando aqueles não
escritos para a cena, explorá-los cenicamente, Thomas evoluirá
para uma escrita cênica de próprio punho, seja na adaptação
de fontes literárias, como em "Trilogia Kafka'', em 1 988, seja
em criações abertas em que os textos eram escritos no processo
de ensaio, em justaposição ao trabalho dos atores, ao espaço
cenográfico e às luzes, como em "M.O.R.T.E. (Movimentos
Obsessivos e Redundantes Para Tanta Estética)", em 1 990. No
caso de "M.O.R.T.E.", acredita-se que o artista tenha chegado
a um ápice de radicalidade e intensidade criativa em termos de
mimesis performativa, combinando a colagem de referências
muitas vezes paralelas a qualquer discurso semântico e explici­
tadas na arquitetura e nos volumes cênicos, com um incisivo
uso das palavras, na maior parte do tempo gravadas, que es­
tabelecem um discurso autorreferencial ao espetáculo e à sua
autoria. Talvez, em nenhum espetáculo posterior Thomas te­
nha se afastado tanto da funcionalidade narrativa atinente ao
dramático e à teatralidade dele decorrente. Sem ficção para
explorar e fazendo do próprio espetáculo a matéria referen­
cial, como sugere Fernandes na detalhada análise que realiza
da encenação, Thomas cria ali, mais do que em qualquer outra
de suas montagens, uma legítima "obra do acaso total" demar­
cando seu diálogo com a tradição wagneriana e, simultanea­
mente, o que sua obra compartilhou do projeto de superação
daquele paradigma.

232
Ao mesmo tempo, é a própria Sílvia Fernandes que iden­
tifica um refluxo nos trabalhos seguintes de Thomas, rumo
a uma proposição mais linear e mais próxima da crônica de
costumes, em que o humor e a ironia característicos do artis­
ta aparecem menos voltados para o processo criativo em si,
como sutis ferramentas de autoanálise, e mais preocupados em
comunicar-se com o público e provocar o efeito cômico. Para
além do período coberto pelo estudo de Fernandes, que chega
até 1 994, se for levada em conta a produção de Thomas desde
então, incluindo-se um período de recesso, em que o encena­
dor ensaiou encerrar seu ciclo produtivo, essa tendência dele
flexibilizar os termos radicais de seu projeto estético só se acen­
tuou. Na verdade, o talento literário de Thomas, ou sua verve
de polemista e cronista de seu tempo afloram de maneira mais
clara, assim como sobressai sua vocação de dramaturgo, que
na primeira fase, talvez por aparecer em contraste tenso com o
discurso plástico e visual de Daniela Thomas, era só sugerida.
Nos últimos trabalhos, em que retoma a Cia de Ópera Seca,
esse traço, de uma cena erigida sobretudo em palavras, como
uma narrativa aberta de uma voz crítica e ferina, se explícita.
Nos termos em que a presente reflexão se veio construindo, o
mythos volta a operar hegemonicamente no teatro de Thomas
e o opsis, se ainda traz as marcas características das primeiras
encenações, quase como uma cicatriz herdada e inextinguível,
reflui a um leito de subordinação. O poeta dramático em Tho­
mas se adianta e se assume como agente dominante em sua
proposição artística, arrefecendo o caráter antidramático que
marcara sua primeira obra.
Nos últimos vinte anos, muitos dramaturgos e encenadores
brasileiros, trabalhando no âmbito de seus grupos a partir da
contribuição de pioneiros como José Celso Martinez Corrêa
(este em constante reciclagem) , Antunes Filho, Luiz Roberto
Galizia e Gerald Thomas, e informados por um reprocessa­
mento dos avanços dos anos 1 960, em procedimentos como
o "devising theatre" (processo colaborativo) e o "view points",

233
levaram adiante a experimentação com a dramaturgia e a cena.
Como aconteceu em outros contextos culturais, o radicalismo
de uma cena antidramática pura, quase abstrata, ou de uma
mimesis performativa pós-teatral, deu lugar a um retorno das
narrativas, ainda que não mais restritas ao puro dramático,
ou à tradição épica brechtiana. A participação dos elementos
cênicos como instrumentos decisivos para operar essa narrativa
tornou-se habitual, ampliando o espectro do tecido semântico
para além da dimensão linguística ou do fogos, e incorporando
elementos arquitetônicos, plásticos e visuais (incluindo-se aí
todos os aparatos tecnológicos de processamento de imagens) .
O exemplo mais cristalino dessa tendência é o do consagra­
do artista canadense Robert Lepage, que fundindo a tradição
experimentalista dos anos 1 960 aos avanços tecnológicos e a
uma disposição de voltar a estabelecer narrativas concatena­
das, constrói espetáculos em que os elementos espetaculares
predominam, mas em que, evidentemente, há uma reconci­
liação com o dramático e uma manifesta profissão de fé no
teatral. Como já se disse aqui, no primeiro capítulo, a maioria
dos grupos brasileiros vem operando nessa faixa em que, me­
nos do que serem pós-dramáticos, ambicionam explorar no­
vos modos de serem novamente dramáticos.
Considerando o eixo que se veio seguindo, que baliza a
margem de invenção possível na mimesis performativa con­
temporânea e busca reconhecer um campo mais amplo do que
o teatro, ou do que as artes plásticas, em que essas dimensões
convencionais convirjam, cabe-se destacar, no atual panorama
da cena artística brasileira, dois "encenadores" enquadráveis na
divisa do antiteatralismo. Cada um deles à sua maneira e em
seu território específico lateja ou forceja os limites ali impos­
tos e almeja, a partir de procedimentos inventivos de grande
radicalidade, alcançar novas formas de mimesis performativa.
O primeiro deles, o dramaturgo e encenador Roberto AI­
vim. A poética cênica que vem se desvelando nas encenações
realizada por ele no espaço Club Noir, em São Paulo, desde

234
2007, caracterizam um ciclo antiteatral, ou antidramático,
que começa com ''Anátema" (2007), mas se adensa a partir
da encenação da primeira peça de Harold Pinter, "O Quarto"
(2008) e de "Comunicação a Uma Academià' (2009), adap­
tação de Alvim do texto de Kafka. A explicitação de um estilo
fundado na radical minimização dos recursos de luz e restri­
ção da visualidade cênica se explicita no "Tríptico" (20 1 0),
com três peças de Richard Max:well ("Burguer King", "Casà'
e "O Fim da Realidade") e no espetáculo seguinte, "Pinókio"
(20 1 1 ) , que é encenado a partir de texto do encenador, acres­
centando-se ao apagamento crescente da cena e à vocalização
despida de dramaticidade uma voz que passa a buscar, nos
termos de Alvim, "outras experiências de habitação da lingua­
gem". Isto porque o teatro, segundo ele, "tem muito mais re­
lação com diferentes modelações de tempo e espaço do que
com a produção de imagens" que deveriam ser encobertas para
tornar as "novas arquiteturas do humano" evocações manifes­
tas (Alvim, 20 1 2). Ressalte-se, nessa priorização da voz do ator
e da exploração de um modo singular de enunciar suas falas,
tornadas elementos centrais dessa mimesis performativa, a evi­
dente e assumida influência sobre Alvim do dramaturgo e en­
cenador francês Valere Novarina, que reinvestiu a enunciação
oral de relevância no teatro contemporâneo.
É nessa gramática de escuridões superpostas na cena do
Club Noir - superfície opaca e fantasmagórica de volumes só
intuídos e de sombras eloquentes, como nuvens de negror or­
gânico que habitassem uma palavra viva, áspera e intransponí­
vel, descontextualizada de qualquer mythos e tornada eco ma­
terial, profundidade perceptível, quase palpável - que aquela
cena se apresenta hegemonicamente como opsis. O risco em
jogo, a incomunicabilidade, é o pressuposto inicial que des­
figura a ambição dramática e que nega mesmo o teatro em
sua raiz etimológica, tornado um lugar para quase não se ver,
ou para só se ouvir e imaginar. Quem se arrisque ao conta­
to com essa massa amorfa, mas densa e honesta na sua ética

235
de pedra, de mudez carregada de potências, experimentará o
espetáculo como alumbramento, visão de algo que era antes
invisível, impossível de descortinar, como se o teatro rasgasse
sua pele para ampliar suas possibilidades. Note-se o paradoxo
de tudo isso ser construído a princípio com as palavras, verbo
que se "voco-visualizà', como no projeto da poesia concreta,
transformado aqui, muito mais do que em Thomas ou na evo­
cação de Galizia, em cena concreta e substantiva, sem nada
além de si e diante de quem o espectador respira. Em diálogo
com Gertrude Stein e em sintonia com o último Beckett e seu
sonhado máximo de mínima escuridão, o teatro de Alvim, pa­
radoxalmente, aposta todas as suas fichas não na trama, nem
nas rubricas, que ignora como a toda carpintaria teatral, mas
na palavra como último reduto operatório para explorar novos
modos de ser, ou de viver a experiência humana. Palavra quase
encantada, evocativa, xamânica. Ao mesmo tempo concreta,
mínima, silenciosa. Há sim uma inexorável impregnação dos
sentidos pela opacidade desse opsis que se furta à cognição e
que implicará em formulações internas do espectador a tentar,
na indefinição desse mecanismo sem encaixe no horizonte,
supor um mythos que o sustente. O espectador processa uma
resposta, produz alguma possível narrativa, mas é suposição
que não se confirma, trama que não se elucida e se mantém
aberta reverberando sua aversão a solucionar-se de forma uní­
voca. Talvez a expressão "espetáculo em suspenso", já utilizada
para caracterizar as instalações de Juan Mufioz, coubesse aqui
para descrever esse objeto que incita os olhos e ouvidos mas
não lhes dá nenhuma certeza, que abre portas a novos códigos
mas não as fecha pois não nos habilita na sua decifração, em
que a superfície dada é a única realidade tangível e a linha, ou
a curva, vislumbráveis, se estabelecem por dissolução, adição
ou superposição, e nunca por conexão.
A encenação de seis textos de Ésquilo pelo Club Noir, em
20 1 2, demarcou um momento limite na trajetória de Alvim e
de sua companhia. O ciclo "Peep Classic Ésquilo" foi uma ini-

236
dativa radical, que se destacou entre os experimentos teatrais
brasileiros daquele ano, produzindo um vero fenômeno de
"arte contemporânea". O impulso de constringir as tragédias a
um mínimo de elementos vocais e encená-las minimizando a
visualização que as palavras enunciadas ensejam, implicou em
uma meticulosa cirurgia de subtração de elementos dos dra­
mas e das cenas que se oferecem às imaginações. A constrição
e subtração articuladas operam o material Ésquilo de modo
a transfigurá-lo. Paradoxalmente, distanciando-se do enredo
(mythos) e apagando sua projeção visível (opsis), esta transfi­
guração reapresenta Ésquilo com um frescor notável. Nenhu­
ma mitologia, nenhum elogio da polis ou da política. Vozes e
palavras. Só as essenciais para sugerirem uma ação. Nem para
tê-la narrada, nem para vivê-la. Só dizê-la, como som puro,
que cria sentidos como os desfaz. Nenhum fio, nenhuma mão
para socorrer e trazer o espectador cativo. Assim, as seis tra­
gédias que fundam a dramaturgia ocidental foram relidas, re­
ditas e trespassadas. O critério dominante não foi filológico,
ou dramático. Reescreveu-se as tragédias, e buscou-se resgatar
a potência oracular daquelas enunciações. A sugestão de que
os espetáculos se aproximaram da categoria "arte contempo­
râneà', percebe-as como instalações vivas e performativas, dis­
tantes da forma dramática convencional e do tipo de relação
que esta estabelece com o público - oferecendo uma narrativa
e propondo uma curva de apreciação que culmina com uma
emoção emergente, a catarse. Nesta disposição de obra irreso­
luta, ou não encaminhada às soluções definitivas, os elemen­
tos "dramáticos" que restaram - os nomes dos personagens e
as falas a eles atribuídas pelo autor ancestral - são expurga­
dos dos contextos mitológicos e históricos, que os envolvem
e os limitam, e passam a operar como entidades esvaziadas
cujos únicos indícios remanescentes são as próprias palavras,
estas mesmas filtradas pela verve do novo autor, aquele que as
reprocessa e revigora ao sabor de sua leitura, ou (des)leitura.
Evidente que nessa configuração ainda oral, mas despida de

237
conduções e indicações narrativas, as palavras se potencializam
e tornam-se matéria viva, a pulsar como significantes vazios
de. significado, força dominante a interessar a percepção dos
observadores, mas acorrendo a eles como opacidade, poesia
material que não se explica, explicitada como objeto em bruto
e sem ornamento. Nestas circunstâncias, a condição de objeto
da obra, sua "objetualidade" como diria Michael Fried, deixa
de ser um fundo ou enquadramento sobre o qual se formaliza
uma ação e avança fazendo-se massa constituinte e suficiente
da própria obra. O espaço e a matéria escura que ele contém
fundem-se ao campo sonoro das enunciações vocais, consti­
tuindo uma forma objeto em que estão indistintas as figuras
e os seus envoltórios, a materialidade e suas superfícies. A de­
finição do "Quadrado Negro" de Malevich como referência
organizadora da solução cênica, ou como síntese metafórica
do projeto, confirma que os "espetáculos" em jogo, compri­
midos em menos de 40 minutos na média, são totalidades de
luz e som articuladas em corpos humanos cujas vozes fundidas
na atmosfera gelada da fluorescência sombria, e dispersas na
"arquitetura do ar"22 sobressaem como os relevos de negros no
quadrado negro de Malevich. Ou como as linhas claras nas
"black paintings" de Frank Stella, para incluir nessa aproxi­
mação o exemplo de Fried de solução da condição de objeto
das obras pela linguagem pictórica. Sutis emanações que fer­
tilizam um colosso de indizíveis potenciais a latejar nos textos
esquilianos. Estes, metamorfoseados de letra morta esquecida
na convenção em sopros viventes, descobrem-se como augú­
rios de humanidades futuras.
A referência mais recorrente de Alvim no mundo das artes
plásticas e visuais é a pintura do expressionismo abstrato nor-

22. Quem define a "arquitetura do ar" é Yves Klein, a partir de sua parceria com o arquiteto
e engenheiro Werner Ruhnau e da ideia de uma "sensibilidade pictórica imaterial". "The
archirectures of air are here presented only as examples. Whar is ultimacely important is
rhe spirirual principie irself ro utilize new marerials for a dynamic and truly immarerial
archirecrure" (Klein, 2007, p. 65).

238
te-americano, particularmente as de Pollock e Rothko. Não
seria impossível, contudo, associá-lo ao gesto minimalista de
artistas como Morris e Judd, acusados por Fried de "literatis­
tas" e de "fazerem teatro", na medida em que não enfrentavam
a objetualidade na tela plana e transformavam as obras em
objetos vagos. A operação de Alvim no ambiente dramático -
privando-o de trama realizada - e no espaço da cena - tornan­
do-a obscura, um lugar em que já não se vê, ou em que se vê
muito pouco, apenas vultos quase imóveis, e rostos colhidos
repentinamente por fugazes pequenos focos - repele o suporte
teatro e caminha para fora dali, talvez para uma pura objetu­
alidade. A literalidade aqui, como no caso dos minimalistas,
não é um demérito, mas uma libertação dos modos de ser
teatro. Este desvestir a capa do dramático, que pode ser toma­
do distraidamente como ultradramático, ou teatral (lentidão
dos passos, vozes impostadas, contraluzes) ocupa de fato um
lugar preciso de diferenciação, em que suas marcas são vestí­
gios dessa tradição de que se distancia, suporte mínimo dela,
como a própria cena frontal diante de uma arquibancada, e as
luzes, ainda que minimizadas. Talvez, se se rompesse estes có­
digos elementares da teatralidade, o espetáculo do Club Noir
passasse totalmente para a banda de lá, dos museus, galerias e
espaços expositivos das artes visuais. O que é interessante nesta
atitude artística é o levar-se às margens mas sem ultrapassá-la,
mantendo-se insubordinado no campo da representação te­
atral. Para isso a encenação de Alvim lança mão de muitos
dispositivos, alguns recorrentes outros específicos a uma úni­
ca cena. Os mais relevantes ocorrem no plano da enunciação
verbal, já que é esta a matéria privilegiada, neste paradoxo de
uma perspectiva antidramática servir-se mais radicalmente das
palavras do que uma que não o é. Estas incisões ocorrem no
plano dos atores individuais, estimulados a construir seus ges­
tos vocais autônomos da narrativa, e com variações de timbre,
ritmo, velocidade e intensidade, a cada frase, não numa lógica
musical, mas de periscópio ou bisturi perfurante, na busca de

239
novos sentidos insuspeitos. Ocorrem também nas vozes e sons
gravados, emitidos em gramofone, em caixas grandes ou pe­
quenos gravadores de bolso. Na soma destes procedimentos,
os mais nítidos em uma cena largada, que a despeito da pre­
cisão com que se desenha, se prefere esquecida pelas histórias,
desamparada de músicas ou de presenças indiscutíveis, não se
chega à teatralidade básica do mais elementar dos espetácu­
los. Ao mesmo tempo, essa impenetrável opacidade é comple­
tamente construída, quase lapidada como ourivesaria. Novo
paradoxo que fortalece o anterior: quanto menos dramática
e teatral, mais obra bruta de teatro, fronteiriça do objeto não
identificado da arte minimalista, e como ela criada com for-
mas puras em volumes dados. .
Alvim não abdicou da dramaturgia nem do teatro. Apenas
intuiu com Novarina que fosse possível isolar a textualidade
verbal em contraste com os outros elementos. Para além da
tensão entre mythos e opsis, que são mutuamente enfraqueci­
dos, há um resgate insidioso da lexis, a palavra em bruto, no
estágio larvar, a ser disciplinada pela gramática, ou apreendida
no voo e isolada, sem que a carga semântica a chegue a enter­
rar no solo da explicitação e a funcionar a favor da narrativa
dramática. Quase poesia, ou música, como aquilo que Hélio
Oiticica dizia fazer. Mas ainda teatro, reinventado do zero, do
silêncio à primeira voz, o verbo e a presença que ele instaura.
Tampouco totalmente teatro, mas, talvez, ou apenas, quase
teatro tornado em arte.
Essas circunstâncias descritas, de um ar rarefeito em ter­
mos da oxigenação dos espectadores com fatos e objetos reco­
nhecíveis, se trazem a marca indelével da antiteatralidade que
recusa o drama, aproximam também os espetáculos do Club
Noir das instalações e ações performativas de vários artistas
contemporâneos. Para ficar entre alguns dos mencionados ao
longo desse trabalho, vale lembrar as exposições esvaziadas de
obras de Tino Sehgal, as cenas inconclusivas de Juan Muiíoz
ou os sistemas orgânicos não identificáveis de Matthew Bar-

240
ney. O que estes três artistas têm em comum é produzirem
uma mimesis performativa que se furta à apreensão cognitiva
ao mesmo tempo que mobiliza o observador a desempenhar
ele próprio na constituição de um incerto sentido. Quer di­
zer, além de se endereçarem a um espectador em potencial na
perspectiva espetacular implicada em presença física e duração
temporal, afetam seus espectadores menos cognitivamente e.
mais os mobilizando a empreender na recepção das obras efe­
tivos atos performativos. Ao se furtarem à facilitação do jogo
de encaixes dramático e problematizarem o reconhecimento
do objeto que se dá a ver aproximam-se de projetos artísticos
como o de Alvim e de outros encenadores e/ou dramaturgos
que transcenderam a tradição dramática moderna e buscam
novas poéticas espetaculares, ou formas inventivas de efetivar
uma mimesis performativa.
Estas últimas considerações em torno de alguns nomes
das artes contemporâneas são fundamentais para introduzir
o segundo artista brasileiro a ser destacado nessa linhagem de
antiteatralidade no país, pensada para além das categorias es­
táveis teatro e artes plásticas. Trata-se de Nuno Ramos, um dos
criadores que vem obtendo mais impacto na cena das artes vi­
suais brasileiras, principalmente com suas instalações. Nuno é
um artista raro, na característica de se dividir entre a literatura
e a produção artística, tendo obtido êxito e reconhecimento
atuando nessas duas áreas. Em ambas, se insere na tradição
modernista de exploração constante de novos modos de fa­
zer, ainda que, mais claramente, seja na sua produção, diga-se,
como escultor, que tenha realizado os trabalhos de maior re­
percussão, exatamente por serem aqueles que dispostos como
macroinstalações em grandes espaços expositivos entram em
um corpo a corpo com os observadores e enquanto atos per­
formativos desempenham uma afetação muito particular. Na
perspectiva que se veio aqui delineando, operam na dimensão
do espetáculo sem se servir do dramático e sem incorrerem
nos cacoetes da teatralidade. São opsis depurados de mythos,

24 1
ou, se se preferir, mythos inalcançáveis a reverberar silencio­
samente sob um manto de puro opsis. Esta é a hipótese que
aqui se desenvolve, a partir das obras, dos discursos críticos
pelo artista chancelados, e de sua própria visão sobre elas, que
confirma em outros termos o que foi observado na cena que se
quer, e se faz, quase invisível de Roberto Alvim.
A extensa e eclética produção artística de Nuno Ramos,
catalogada desde 1 987, bem como sua literatura (um livro de
poesia e dois de contos), tem como singularidade recorrente
uma tensão interna não resolvida entre matéria e sentido. O
artista não só autoriza que se denote essa oposição no discurso
silencioso e autônomo das obras, como em sua fala pública
ressalta sempre sua ambição de ser, de fato, um escritor, e não
"um artista plástico que faz literaturà', ainda que a oposição
entre matéria e sentido opere nos dois campos de sua criação.
Aqui interessa pensar menos o conflito pessoal do artista do
que projetar esta tensão interna à sua obra no contexto mais
amplo que se veio estudando, da tensão entre mythos e opsis,
ou entre linha e superfície na mimesis performativa.
Para pensar a cisão entre literatura e artes plásticas dessa
perspectiva, pode-se retomar a atitude de Mallarmé, pontuada
no segundo capítulo, de opor literatura e teatro, ou lingua­
gem escrita e linguagem espetacular. Como se viu, Mallarmé
propugna por uma separação radical entre estas duas artes,
no sentido de que ambas encontrem as raízes últimas de suas
respectivas naturezas, o que implicaria, nos dois casos, numa
recusa radical do dramático, ou das narrativas concatenadas,
e numa vertical operação sobre seus elementos constituintes,
as palavras na literatura, a matéria viva do espetáculo no tea­
tro. Assim, opsis, nesse contexto da crítica de Mallarmé, apli­
ca-se tanto ao discurso literário puro, expurgado dentro do
possível de sua função narrativa, quanto ao espetacular, de­
sobrigado de enredar espectadores em uma história cristalina.
No que diz respeito às criações de Nuno Ramos, propõe-se
uma leitura semelhante, já que sua literatura partilha com

242
sua obra plástica a recusa ao mythos, ou às narrativas conse­
quentes, ainda que nas duas vertentes haja sempre, como se­
ria impossível não haver, um residual de narratividade. Para
efeito desta investigação, se restringirá o foco às obras plásti­
cas, adiantando-se que se percebe nelas nítidas características
espetaculares e performativas. Por isso mesmo, seria impor­
tante salientar que o que se reconhecerá ali como opsis não
deve ser tomado no sentido de percepção óptica, como no
caso do programa da arte construtiva, mas como matéria e
tridimensionalidade espetacular, ou seja, presença que se
estende concreta e temporalmente diante de espectadores e os
circunda. Esta natureza "teatral", no sentido de Michael Fried
(já aqui exaustivamente debatida) , que a obra de Nuno Ramos
herda do minimalismo e compartilha com outros artistas
plásticos contemporâneos, permite alinhá-lo com alguns de
seus expoentes, no âmbito das artes plásticas, e aproximá-lo
da tradição antidramática aqui percorrida23• Mais do que isso,
exemplifica, tanto quanto o teatro de Roberto Alvim, a hege­
monia do opsis na cena mais radical da contemporaneidade,
ainda que o faça de modo particular e genuíno.
A começar dos quadros, constantes desde as primeiras ex­
posições e nunca nomeados, a luta entre matéria e sentido já
se explícita em Nuno Ramos no transbordamento das tintas
aplicadas como massa orgânica, em que qualquer jogo de cores
ou de formas é sobrevivente soterrado sobre a matéria bruta
que sobressai saliente. Esse procedimento só faz se agravar nos
anos seguintes, quando as tintas dão lugar a materiais vivos
e indiscriminados, que passam a ser aplicados e superpostos
sobre madeira e a intensificar o aspecto escultural das telas.
Ainda que estas se guardem como formato, em diálogo com a
memória deste suporte histórico da pintura, a própria "coisa

23. Lorenro Mammi aproxima Ramos de Robert Smithson, Donald Judd e Frank Stella.
O próprio Nuno se reconhece como influenciado por Joseph Beuys Jackson Pollock,
Richard Serra, Bruce Nauman e Anish Kapoor. Ver em <http://www.nunoramos.com.
br/portu/depo2.asp?flg_Lingua= I &cod_Depoimento=36>.

243
pintadà', se impõem de maneira quase absoluta. Verdade que
nesse plano das "pinturas" os aspectos performativos e espe­
taculares não vão além do observado na "action painting" de
Pollock, ou seja, enquanto vestígios não camuflados e exacer­
bados do ato criativo que se oferece às retinas. Reconheça-se
também que do ponto de vista do dilema da condição de ob­
jeto da tela, o fato dela ser antes que uma pintura, um suporte
da mesma - para Michael Fried o grande problema da pintura
modernista e que segundo o crítico teria sido melhor resol­
vido por Frank Stella - Nuno Ramos o soluciona de modo
ao mesmo tempo rústico e monumental, ampliando ao longo
dos anos, cada vez mais, a massa de matéria aplicada sobre as
superfícies planas.
No caso das esculturas, ou instalações em espaços fechados
e abertos, que lançam mão de toda sorte de materiais orgâni­
cos e com os quais o artista passa a constituir objetos vivos em
que se processam transformações visíveis aos olhos do obser­
vador - por fusão, acoplamento ou oposição de suas estruturas
moleculares, provocados por aquecimento ou resfriamento -,
já se está claramente no terreno do espetáculo e da perfor­
matividade. Há um movimento sub-reptício da matéria que
põe a imaginação para trabalhar. Ainda que as possibilidades
de leitura sejam ralas de um ponto de vista narrativo, nelas
abundam as informações diretas e os elementos fáticos advin­
dos da pura presença de uma materialidade em metamorfose
pulsante, seja uma ativa e transparente aos olhos, como no
forno que assa outro forno ou no breu que se espalha no már­
more, seja interrompida, num permanente estado provisório,
cuja precariedade sugere perigo e ameaça, como nos diversos
processos de contenção de óleo queimado, petróleo, coca-co­
la ou vaselina em vidros soprados ou em recipientes de areia
queimada e prensada, como tem preferido nos últimos anos.
E sobre essa dimensão instável da obra plástica de Nuno Ra­
mos que se passa a especular, tratando-se de perceber como a
tensão entre matéria e sentido, opsis e mythos, se desdobra e se

244
adensa aos longo das diversas e criativamente distintas fases
que perco.rreu.
Em obras iniciais como "Breu e Teià'( 1 990) , "Vidrotexto"
- 1 e 2 ( 1 99 1 ) e "O pó da cal queima o pó do corpo", poe­
mas de um futuro livro (Cujo, 1 993) transpareciam escritos
no chão em breu, cal e sobre vidro, de modo quase desaperce­
bido, diante dos materiais expostos e da força ostensiva com
que se expandiam no espaço. Muito menos que mythos, apenas
palavras dispostas retas em um sentido incerto anunciavam a
hegemonia dos volumes e das substâncias, e a intensificação
dos contrastes entre eles, que se imporia nas esculturas e insta­
lações do artista nos anos seguintes. Obras como "Pancadão",
"Mac ' ula" , "Manora"' - Branco e Preto, "ruoga
Ar dos" , "G otas" ,
"Milk Way" e "Black and Blue" em espaços fechados, e "Ma-
- " , "Craca" - 1 e 2 em espaços abertos, coIocavam os ma-
tacao
teriais e a sua intrínseca instabilidade em primeiro plano para
trabalharem em silêncio alheado, no mais próximo que Nuno
chegou, talvez, do laconismo minimalista. Em outras, como
"Minuano" "Marécaixão" e "Marémobílià', a performativida­
de de elementos naturais, como o vento e o sol dos pampas,
ou a força das marés, eram os agentes transformadores das
circunstâncias iniciais em que a materialidade arregimentada
pelo artista se dava à luz. Da perspectiva da antiteatralidade,
é o momento mais radical e que de algum modo o consagra
como artista contemporâneo. Mas a arte é o diálogo inces­
sante com o presente e, a partir de "Luz Negrà', em 2002,
Nuno inicia uma conversa com Nelson Cavaquinho, o com­
positor popular, que se segue incluindo Pixinguinha e Carto­
la, quando a escrita poética desses "parceiros" volta a aparecer
contraposta às esculturas, escavadas na parede em "Pagão"
(2003), ou esculpidas e ampliadas em areia queimada, como
em "Que" (2003). A volta da palavra reprimida se consuma
com a série que se inicia em 2006 do que Nuno Ramos cha­
mará de "falações", quando passa a servir-se de caixas de som,
ou alto-falantes, de diversos modos e maneiras, ora fazendo

245
deles o volume e a matéria visível da obra como em "Caro­
lina", ou as incrustando em esculturas à base de sabão como
em "Soap Opera", ou em móveis antigos como "Bang Bang" e
"Gags". Em qualquer uma dessas obras citadas, os textos ouvi­
dos são do próprio artista e, gravados como peças radiofônicas
por atores ou cantores profissionais, têm um rigor de direção
digno de uma peça de Beckett dirigida pelo próprio Beckett,
ou para citar outro artista contemporâneo tratado aqui, que
também operou nessa combinação do escultural com o auditi­
vo, de forma assemelhada a Juan Mufioz. Em alguns desses ca­
sos, como em "Tenho Sede" (2008) , o texto e sua "encenação"
sonora são quase drama, uma vez que tem a pulsão de narrar
apresentando referências quase cognoscíveis e aproximam o
artista da condição de poeta dramático, ou dramaturgo. É,
ao mesmo tempo, o momento menos antiteatral de Nuno e
aquele em que mais se distancia de Alvim, como aqui exami­
nado.
Para fechar essa retrospectiva da obra de Nuno Ramos na
ótica do espetacular e do performativo, rastreando a tensão
entre matéria e sentido, vale citar duas obras em que ao jogo
entre vozes gravadas e esculturas de materialidade hiperbó­
lica soma-se à presença "natural" de animais. Em "Vai, Vai"
(2006) , dois burricos carregando alto-falantes comem tone­
ladas de feno e sal, expostos sobre compensado de madeira, e
bebem água disposta em tonéis de aço, assim desvelando ou­
tros alto-falantes. O que se ouve é uma combinação de vozes
correspondentes a cada um dos materiais espalhados, emitidos
das diferentes caixas expostas, em que se combinam uma estro­
fe de canção, e dois textos de prosa literária do próprio autor,
enunciados um por um ator e outro por um coro de mulheres.
Em "Bandeira Brancà' (20 1 O) retornam os volumes geomé­
tricos de areia queimada de grande proporção, sobre os quais
três caixas de som de vidro emitem três canções populares, al­
ternando e sobrepondo três vozes distintas. Três postes de areia
queimada servem de poleiro para três urubus, confinados por

246
uma rede. Os atos performativos desses animais, entretidos
em seu alheamento cotidiano das coisas humanas, apenas se
alimentando e defecando, ainda que sob a condição restritiva
do confinamento, pelo simples deslocamento propiciado pelo
artista e pela consequente interação com os volumes escultu­
rais e os sons pré-gravados, encenam alegorias desidratadas,
sem possibilidade de se tornarem narrativas, alusivas menos
ao que se diz e que se canta - verdadeiras cortinas de fuma­
ça - e mais ao que se cala e não se deixa revelar. São de fato
antitableaux, no sentido que não evocam nada além daquelas
presenças, inclusive a do público que os contempla, e são por
isso antidramáticas e antimiméticas. Ao contrário da retórica
do tableaux, em que, mais do que uma cena em uma história,
cristaliza-se uma ideia moral (por isso mesmo ela é resgatada
por Diderot no seu projeto de um teatro realista), nesse ta­
bleaux (des)moralizado não se passa nada em dois sentidos:
não há trama em curso nem mensagem que alcance algum
endereço. Animais pastam alheios e alto-falantes zurram falas
líricas. Ao mesmo tempo, essas instalações problematizam a
ideia do ready made, já que são poéticas, no sentido de serem
produzidas ou esculpidas como uma mimesis performativa e
buscarem afetar os sentidos, talvez até mais a audição e o tato,
mas também o visual. Falta-lhes, porém, uma espinha dorsal,
uma ficção que os torne cognoscíveis, o que lhes dá, em con­
trapartida, a evanescência da fantasmagoria, ainda que muito
concreta e animalesca, como o teatro primitivo, pré-trágico,
de que fala Romeo Castellucci. Ainda aqui, apesar do retorno
desmedido das palavras que afluem nessas instalações, insinu­
ando um mythos potencial, matéria e sentido permanecem em
tensão tesa, e o que resta disponível ao espectador é um opsis
denso, motor de sua imaginação, espetáculo sem destino cer­
to.
A esses dois artistas brasileiros destacados pela inventivi­
dade radical em seus territórios de atuação, que os propulsa
a atravessá-los e aboli-los, outros criadores brasileiros de uma

247
mimesis performativa inventiva mereceriam ser acrescidos.
Talvez operando fraturas e faturas não tão radicais, desenvol­
vem projetos e pesquisas nas franjas do gênero dramático, ou
operam nas margens de invenção possível do espetáculo en­
quanto suporte, e assim encaminham criações, dramáticas ou
plásticas, que fazem avançar na direção de um campo comum
de criações espetaculares e performativas, destino inexorável,
acredita-se, das artes vivas (live arts) no século XXI. Laura
Vinci e os irmãos Guimarães, vindos das artes plásticas para a
cena, Lia Rodrigues e Alejandro Ahmed no campo da dança,
Cristiane Zuan Esteves e a Cia Opovoempé, Leonardo Morei­
ra e a Cia Hiato, Cibele Forjaz e a Cia Livre, Antônio Araújo e
o Teatro da Vertigem, Georgette Fadel e a Cia São Jorge, Grace
Passô e a Cia. Espanca, Alvise Camozzi, Mauricio Paroni de
Castro, Luiz Paetow e Francisco Carlos são nomes que, como
dramaturgos ou encenadores, atuando em companhias está­
veis ou isoladamente, de forma bissexta, vem ampliando no
Brasil as possibilidades do espetacular em embate tenso com
o dramático. Suas produções nas primeiras décadas dos anos
2000 comprovam que está em curso uma transformação radi­
cal das ideias sobre o que são as artes cênicas e visuais, plásticas
e performativas, e de como, de fato, seus procedimentos vêm
se confundindo. A ideia de uma mimesis performativa propõe-se
como operadora eficaz deste novo panorama que crescente­
mente vem se afirmando.

248
VI
CARTO GRAFIA DO CONCEIT O DE
MIMESIS : DA SIMILARIDADE À
DIFERENÇA E À REPETIÇÃO

conceito de mimesis, que serviu no Ocidente como ânco­


O ra de quase todas as reflexões estéticas desde a antiguida­
de clássica até o século XIX europeu, e foi supostamente des­
cartado pela arte moderna e seus sucedâneos contemporâneos,
tem sido objeto de vários estudos no campo da filosofia, da an­
tropologia e da crítica literária, mas pouco tem interessado aos
estudiosos do teatro. Diante de tudo que se desenvolveu neste
trabalho, não deixa de ser curioso este desinteresse, já que a
mimesis dramática, ou a "representação de ações humanas",
de todas as formas artísticas é, como já foi sugerido, a que
parece mais viva no panorama da cultura atual, senão através
de espetáculos exclusivamente teatrais, mas pelas inúmeras e
crescentes vias de veiculação ficcional, transbordando das telas
de 1V e cinemas para os computadores e telefones celulares, e
pelos próprios ainda tradicionais suportes das artes plásticas,
as galerias e os museus, que se tornam, cada vez mais, espaços
adaptados a performances e representações interativas. Seria
possível dizer que pensar a mimesis hoje é, sobretudo, pensar
o espetacular?
Na produção dos muitos teóricos que se têm debruçado
sobre o conceito de mimesis contemporaneamente, coexistem
interpretações emanando de diversas perspectivas. Ponderan-
do que, em quase todos os casos observados, essas considera­
ções não evitam partir do resgate do termo em seu contexto
histórico original, ou seja, a Grécia antiga, torna-se imperativo
a qualquer esforço de organização desse pensamento respeitar
essa evidência e se iniciar pelas formulações primeiras, recolhi­
das principalmente em Platão e Aristóteles. Afinal, foi justa­
mente o foco nessas fontes primárias que sugeriu o recorte, ou
a inflexão particular, que este trabalho assumiu no seu trata­
mento do conceito de mimesis. Como já foi reiterado, a ideia,
localizada em Platão (livro 3 da "Repúblicà', 392d-394b), de
que o mimético se define por oposição ao diegético, demarca
de algum modo uma das primeiras compreensões da mimesis
como associada ao ato interpretativo de atores na apresentação
dramática, em oposição à diegesis, que ocorreria em narrati­
vas isentas de qualquer representação teatral. Esta evidência
de algum modo norteou, em meio à miríade de referências
e enfoques de mimesis recolhidos, os passos da investigação,
focada principalmente na dimensão performativa do conceito.
Neste último capítulo, cabe realizar uma breve recapitula­
ção das leituras compiladas, com as quais se dialogou. É evi­
dente que a vasta fortuna crítica em torno da mimesis impôs
critérios seletivos na busca das fontes secundárias, e definiu
uma estratégia de configuração restrita ao foco nos aspectos
espetacular e performativo. Pressuposta, também, é a intrín­
seca dualidade do fenômeno que a expressão trata de definir,
estando, ao mesmo tempo, associado à narrativa dramática,
ou ao estritamente mimético (no sentido do livro 3 da "Repú­
blicà') que pode, inclusive, não implicar necessariamente em
encenação, e a uma inexorável condição material, imagética,
arquitetônica e rítmica que o aproxima da pintura, da escul­
tura e da música.
De toda esta produção mais recente, que tenta retomar a
reflexão sobre a mimesis, destaca-se como inspiração maior e
fundamentação inicial, o trabalho de Stephen Halliwell 1he
Aesthetics ofMimesis: ancient texts, modem problems. O que é

250
particularmente notável na obra, desse que é um dos helenis­
tas contemporâneos mais interessados no tema, não é apenas
a ambição do escopo - fazer a história do mimetismo desde
a filosofia pré-socrática até a contemporaneidade -, mas o re­
sultado obtido em si. Halliwell demonstra ali, de forma con­
sistente, uma tensão constante na apreciação do conceito, ma­
nifesta desde a sua gênese na Grécia do século V a. C até seus
desdobramentos últimos no século XX. Assim, segundo ele, já
em Platão, se manifestava um não solucionado impasse entre
uma compreensão da mimesis como representação reflexa do
mundo, ou espelhamento, e a ideia do mesmo conceito como
criação de um mundo distinto do existente, o que ele chamará
de visá� "heterocósmica''. É a partir dessa premissa, de que
há uma ambiguidade incontornável no conceito, expressa na
oscilação entre entendê-lo ora como espelho do mundo, simi­
laridade, ora como lente para outros mundos, diferen�a, que
Halliwell percorre os diversos momentos em que se registram
inflexões relevantes na sua utilização. Evidente que, pelo seu
foco nos estudos da filosofia antiga, se detém na maior par­
te do livro sobre a problemática em Platão e Aristóteles, mas
chega a projetar a sobrevivência do conceito no romantismo,
ainda em bases próximas às de Aristóteles, e a manutenção de
seu caráter ambíguo na leitura dele feita por correntes mais
contemporâneas de pensamento, que retomam a contribuição
platônica. É nesse veio, de uma intrínseca e não eliminável
dualidade no conceito, que Halliwell polemiza com Jacques
Derrida (como se verá quando for abordada a visão deste filó­
sofo sobre a mimesis), e que nos restringiremos nesta reflexão
conclusiva.
Ainda no campo de estudos verticais sobre a filosofia gre­
ga antiga, é impossível não mencionar a contribuição de Paul
Woodruff, particularmente no seu intento de diferenciar o
sentido de mimesis no contexto da filosofia aristotélica de ter­
mos atuais como imitação, ficção, faz de conta, reprodução,
representação, expressão, parecença ou imagem. De fato, ain-

251
da que cada um desses termos guarde alguma relação com o
sentido que Woodruff percebe no entendimento aristotélico
do termo, nenhum deles o contempla exatamente. No que
diz respeito às questões aqui levantadas em torno da mimesis
performativa, a solução do estudioso é profícua. Segundo sua
hipótese, a diferença entre a mimesis e todos esses outros ter­
mos que costumam a esta serem associados é que ela pressupõe
uma afetação eficaz, capaz de engajar nossa atenção e mobi­
lizar nossas emoções. Ele enfatiza a diferença entre criar uma
ficção, ou mythos, trabalho do poeta dramático quando tece
um novelo de ações, ou um arco de ação, e produzir a mimesis
dessas ações construídas, estando nessa diferenciação explícito
que somente a enunciação, ou encenação daquela ficção con­
figura a mimesis, na medida em que se trata de um fenômeno
necessariamente compartilhado e que só se realiza com a prova
do efeito, concretizado ou frustrado, sobre seu destinatário. É
com base nesse raciocínio que ele delimita o que propõe como
"nova teoria da mimesis" em Aristóteles. Mesmo ressaltando
que não há um único sentido ali, ele destaca que o conceito
para o filósofo grego não é cativo nem do modo narrativo,
nem do dramático, e que seria extensivo a uma variedade de
meios, da música à dança, da pintura à poesia, e evidentemen­
te, também ao teatro (Woodruff, 1 992) . Se é verdade, como
defende Cláudio Veloso em ''Aristóteles Mimético" 1, que em
nenhum lugar da "Poética" há uma definição clara de mimesis,
do ponto de vista da teoria do teatro e das artes performativas
é possível reconhecer naquele tratado não só uma retomada
da investigação pioneira de Platão na " Repúblicà' em torno
dos gêneros, como uma primeira sistematização analítica do

I. Veloso (2004) faz um trabalho eminentemente hermenêutica, ou de análise filosófica da


possível integridade do conceito de mimese no contexto do corpus de tratados aristotéli­
cos, em que pouca atenção é dada às implicações do conceito para uma eventual teoria
estética de Aristóteles ou, menos ainda, para a teoria estética moderna (como é nosso
objetivo aqui). Vale pinçar a observação, sem dúvid.a fundamentada, de que, "[ .. . ] antes
de tudo, em lugar nenhum Aristóteles define o termo mim�si?.

252
fenômeno teatral em si mesmo, ou seja, implicando necessa­
riamente no espetáculo, e numa resposta às críticas acerbas
que a apresentação espetacular merecera de Platão, como, ali­
ás, já foi exposto no primeiro capítulo. Halliwell ( 1 988, p.
1 1 2) concorda, em estudo específico sobre a "Poética", que,
"se as atitudes de Platão frente à mimesis são problemáticas por
conta de suas flutuações (ele identifica dez diferentes sentidos
extraíveis dos diversos diálogos platônicos), Aristóteles causa
dificuldades interpretativas por razões exatamente opostas.
Afinal, muito pouco relativamente é dito sobre o significado
da mimesis, e muito é deixado aparentemente como tácito".
Para além do universo dos estudos da filosofia antiga, é
possível reconhecer a vitalidade da mimesis enquanto tema
nos estudos antropológicos e culturais. Uma das perspectivas
mais instigantes nesse sentido é a de René Girard, que em
um viés crítico e filosófico oferece a proposição original do
"desejo mimético". Nessa iqeia, a mimesis adquire uma con­
dição ontológica, enquanto força insuspeita que atua indiscri­
minadamente e que leva os seres humanos a terem como eixo
psíquico e força natural, em todo o seu desenvolvimento, a
busca por repetir o que se.us semelhantes já conquistaram ou
por alcançar o que eles possuam. Essa pulsão irrefreável atuaria
decisivamente na dinâmica conflituosa da espécie humana e
resultaria em fenômenos históricos ancestrais como o "bode
expiatório", que mascararia uma violência atroz a operar em
todos os consórcios humanos2• Girard desenvolveu a teoria do
"desejo mimético" a partir de "Theatre of Envy", sua análise
da obra dramática de Shakespeare, tentando demonstrar que

2. "A miml!sis desejante precede a aparição de seus objetos e sobrevive como veremos à desa­
parição de todo objeto. No fim, essa miml!sis desejante engendra seu objeto, mas nem por
isso aparece sempre para o observador externo como uma configuração triangular cujos
ângulos são ocupados respectivamente pelos dois rivais e seus objetos comuns. O objeto
sempre vem para o primeiro plano e a miml!sis é escondida atrás . dele, mesmo aos olhos
dos sujeitos desejantes. A convergência dos desejos define o objeto". Girard, 1 988, p. 9 1 .
Ver também Girard, 2004.

253
o autor estava consciente dessa latência funesta nas relações
humanas3• Ainda assim sua reflexão, espraiada em dezenas de
ensaios interessantíssimos, tem pouco a dizer sobre a ótica de
mimesis aqui trabalhada.
Já o extensivo estudo de Gunter Gebauer e Christoph
Wulf, Mimesis: Culture - Art - Society, abarca o conceito des­
de suas origens gregas até a filosofia da arte contemporânea, e
também detecta continuidades e rupturas no uso do termo4 •
Abrange, além da tradição filosófica em torno da mimesis, as­
pectos antropológicos e sociológicos do fenômeno, e tem um
caráter panorâmico, compensado pela reunião e processamen­
to massivo de referências. Entre estas, ofereceu uma contribui­
ção crucial à estruturação deste capítulo conclusivo, ao pinçar
um comentário do historiador Jean-Pierre Vernant sobre a
noção de imagem na cultura grega antiga, e de como esta se
transforma, do uso reconhecido no período arcaico para o que
assumirá no âmbito da filosofia platônica. Esta mudança teria
sido decisiva para cristalizar a associação de mimesis à ideia de
similaridade, aspecto que interessa, especialmente, desenvol­
ver aqui.
Segundo Vernant, em um estudo específico que fez sobre as
noções de imagem e aparência na teoria platônica da mimesis5,
imagem (eidolon) no período arcaico está associada às apari­
ções fantasmáticas: a imagem que se "vê" nos sonhos, a mani­
festação de um Deus que se mostra a um mortal, ou mesmo o
fantasma de um morto. Por exemplo, na " Odisseià', quando

3. Ver Girard, 1 99 1 .
4. Os autores acreditam que o lado produtivo da mimesis está nas conexões que estabelece
entre arte, filosofia e ciência. Como dizem, "A artificialidade, precisão e imobilidade
característica das definições convencionais no pensamento científico são hostis à mim�sis,
que tende à ação e está ligada à passagem do tempo e à atividade humana produtiva"
( 1 995). Seria mais acurado dizer que este elo, que aparece na forma de um rigor técnico
insuficiente, esteve atrapalhando uma explicação clara do conceito.
5. " Image et Apparence dans la theorie platonicienne de la Mimesis" foi publicado inicial­
mente em ]ourna/ tÚ Psycho/ogi�, n. 2, avril-juin 1 975, e depois com o título Naissanc�
d'imag�s (1979)

254
Ulisses encontra o fantasma da mãe, Antideia, não se trata
apenas da visão de uma semelhança, mas da percepção de uma
presença efetiva, ainda que impalpável (Vernant, 1 979, p.
1 1 0-1 1 1 )6. No período arcaico, pois, o eidolon é uma presen­
ça real, sensível aos olhos, que se manifesta simultaneamente
como ausência. Como aponta Vernant, a imagem, assim en­
tendida, "está inserida aqui, nesse mundo em que vivemos e
vemos". Trata-se de "um ser que sob a forma momentânea do
mesmo, se revela fundamentalmente outro, porque pertence a
outro mundo". A dialética arcaica de presença e ausência, ou
do mesmo e do outro, implica assim na dimensão de um "mais
além", mas que comporta esse prodígio de um duplo invisível
que, por um instante, se faz imagem visível. A inacessibili­
dade e alteridade da morte se faz observável, não por meio
de uma cópia, falsa em relação a um original, mas por essa
duplicação efêmera de um mesmo. A imagem, nesse sentido
arcaico, é fiel reaparição de uma identidade existente, e não
reconstituição apenas semelhante de um original inalcançável.
Ainda seguindo Vernant, será somente no século V a.C. que
essa noção primitiva de imagem, e a família de palavras a ela
associadas, vinculou-se à mimesis, como algo que pode ser pro­
duzido por ela, e foi só na filosofia de Platão que essa produção
passou a significar similaridade, ou seja, a ser percebida como
parecença a algo anterior, e não mais como aparição de um
mesmo. É principalmente com o uso que Platão faz de mi­
mesis em "República" e "Sofistà', que a terminologia aplicada
à imagem (eidolon, eikon, eikasia, phantasmata), como uma
resultante da mimesis, passou a ser associada à aparência e ao
parecer (phainen), o que não se é de fato, e não mais às apari­
ções (phainomena) de coisas e pessoas reais, ainda que como
imagens incorpóreas como os fantasmas de Homero, ou as
visões do sonho. Como lembra Vernant, essa interpretação da
imagem e a teoria da mimesis a que está associada "marca um

6. O trecho citado encontra-se em "Odisseia" 1 1 , 1 53-222.

255
novo . patamar nisso que se poderia chamar a elaboração da
categoria da imagem dentro do pensamento ocidental" (Ibid.,
p. 1 20). Diante da pretensão aqui, de descrever a trajetória
da mimesis como similaridade à da mimesis como diferença,
não cabe elucidar as implicações filosóficas da afirmação de
Vernant, só pertinentes à hermenêutica do pensamento pla­
tônico. Mais importante e suficiente foi demonstrar como a
noção de imagem variou, antes de assumir, em Platão, esse
caráter de algo que se produz como "apenas" semelhante (seja
enquanto a aparência de uma essência, ou como a cópia de
um original). Quer dizer, em um período anterior a Platão, as
imagens foram vistas como algo real, ainda que etéreo, expres­
são de um único e mesmo ser, e não como uma versão falsa, e
só parecida, dele.
Outro aspecto a destacar é que, na circunstância dessa
mimesis arcaica, importava mais a relação entre o observador
da imagem e a própria, ou seja o efeito provocado, do que a
relação da imagem com aquilo que representava, ou expres­
sava. Em Platão esta situação se inverterá. Como produtora
de imagens, a mimesis interessa ali menos pela relação entre
o que é observado e o observador, e mais pela relação entre a
imagem gerada e aquilo que ela representaria, ou de que seria a
aparência. Paradoxalmente, é deste foco platônico na imagem
e naquilo a que ela remete, configurador do sentido de simi­
laridade da mimesis, que, talvez, advenha o valor relativo que
ele lhe atribui, como algo sem existência real e, portanto, en­
ganoso, desaconselhável aos filósofos e aos educadores. Como
será também paradoxal que, posteriormente, em Aristóteles,
com o retorno do foco à relação e aos efeitos potenciais entre a
mimesis e seu observador, e a sua capacidade de promover en­
ganos verossímeis, principalmente no plano dramático, a pró­
pria associação entre mimesis e similaridade tenha começado
a se enfraquecer. Quando se torna possível, como na tragédia,
produzir-se a mimesis de ações humanas com a verossimilhan­
ça do real, a produção mimética já não implicará na imitação

256
inglória e pálida de algo, como um espelho que capturasse
apenas uma imagem enfraquecida de um original. De algum
modo, nessa visão aristotélica já se estará apontando para a
diferença, ou para uma outra coisa que não alguma realida­
de originária, e sim uma realidade alternativa, que produzida
artificialmente é só provável e imaginável, ainda que guarde
a aparência de algo real e concreto. O fato de implicar em
um engano, antes de ser um demérito torna-se um valor cuja
virtude é gerar algo novo, diferente de tudo que já houvera,
mesmo que probabilisticamente semelhante e concorde com
essa anterioridade.
É evidente que esta mimesis como diferença, que aqui se
vislumbra em Aristóteles e no valor positivo que ele lhe em­
presta, ainda é estritamente realista e opera por semelhança
e replicação dos dados e modos da realidade, na variação de
circunstâncias históricas particulares. A dependência para se
efetivar, seja como literatura, arte visual ou teatro, de referen­
tes localizáveis no mundo do real a manterá até o século XX
cativa da similaridade. Este sentido de diferença da mimesis
em Aristóteles, é pois uma latência implícita, só reconhecível
no contraste com a ideia de similaridade de Platão que lhe é
anterior. Ele permanecerá oculto ao longo dos séculos seguin­
tes e quase desaparecerá na Idade Média, quando se afirmará
a noção de "imitatio", que exacerba o aspecto da similaridade
e faz o próprio mundo real passar a ser pensado, num retorno
ao platonismo, como imitação, mas diante do modelo divino
cristão, cuja excelência cabe ser imitada pela vida e pela arte
(Gebauer e Wulff, 1 995, p. 64-75).
A estratégia para se observar o processo de consecução e
cristalização dessa transformação do sentido da mimesis, de ser
essencialmente similaridade a ser diferença, definiu-se mesmo
no contato com o estudo, de cunho filosófico, de Arne Mel­
berg sobre as teorias da mimesis. Realmente, de perspectiva
menos histórica que epistemológica, Melberg propõe que,
desde Homero, é possível pensar a mimesis como repetição.

257
Ele concorda com toda tradição helenista que, àquela época,
essa repetição se dava como similaridade, seja de forma pe­
culiar, no período homérico, seja acentuadamente a partir de
Platão, como sugeriu Vernant. Mas desde Aristóteles, e mais
decisivamente a partir de Kant e da modernidade, a mimesis
teria passado a se dar como diferença. Melberg acredita que
essa mudança paradigmática, de uma mimesis pensada como
repetição da diferença, só se torna plena no século XIX, nas
especulações de filósofos como Kierkegaard e Nietzsche e, ao
longo do século XX, nas reflexões sobre a arte e a linguagem
de Heidegger, de Gadamer e de Deleuze. À guisa de descrever
e analisar o fenômeno, ele oferece dois caminhos:

(i) A transformação da mimfsis em repetição é o resultado


de um processo histórico que lentamente investe a mimfsis
de uma dimensão temporal. [ .] O desenvolvimento da
..

mimfsis resulta paradoxalmente em sua realização e de­


saparecimento, significando que a similaridade dá lugar
à diferença.
(ii) Mimfsis é atavicamente, e sempre, já uma repetição -
significando que a mimfsis é o lugar de encontro de dois
modos de pensar opostos, mas conectados, atuação e pro­
dução: similaridade e diferença (Melberg, 1 995, p. 1 ) .

Melberg reconhece que mimesis não é nunca um termo


homogêneo, e que, se seu movimento básico é concernente à
similaridade, ela está sempre aberta ao oposto. Ela seria mesmo
um ponto de encontro para fenômenos ou movimentos entre
opostos, que incluiriam o que chama de "outros membros da
família mimética", tais como proximidade e distância, presen­
ça e ausência. A dimensão temporal a que se refere na primeira
citação é a que confirma essa ideia da mimesis como diferença,
o que se explicita em alguns exemplos. O primeiro vem de
Heidegger, quando, referindo-se à mimesis em Platão, insiste
que o conceito se dirige à verdade, mas baseado na distância
da verdade. Não se trata de imitação, ou de "representação"

258
(Nachahmung). Ao contrário, para o filósofo alemão, mimesis
baseia-se ali no fato de que o artista não pode, não alcança,
reproduzir a verdade como similaridade. Não é tampouco cor­
reto para Heidegger associar a mimesis platônica com imitação
"primitiva'' (Nachbilden), rústica, malfeita. É muito mais uma
questão da distância que separa a verdade, ou a ideia de cama,
da cama construída pelo marceneiro, e, num distanciamento
ainda maior, da cama produzida pelo pintor, como esclarece
o próprio Heidegger em seu texto: ''A República de Platão:
A distância da Arte (mimesis) da Verdade (idea)"7• Para Hei­
degger ( 1 99 1 , p. 1 85), a mimesis é uma questão de "fazer de­
pois: produção que vem na sequência", e é, em sua essência,
"situada e definida através da distância''.
Segundo Melberg, o seguidor de Heidegger, H.G. Gada­
mer, também enfatiza mimesis como uma relação produtiva de
conhecimento e verdade, mas propõe "reconhecimento" C Wie­
dererkennung) como a melhor palavra para caracterizar o tipo
de saber propiciado por ela. Em ambos os casos, seja corno
"fazer depois", ou .como "reconhecimento", afirma-se a ideia
de repetição como o termo que herda modernamente a carga
desse conceito milenar, e que Melberg explorará mais incisiva­
mente em Kierkegaard, de todos os .filósofos modernos o que
levou mais longe essa alternativa8• Como diz o personagem

7. Heidegger, 1 99 1 , p. 1 8 5: "lt is rherefore, wrongheaded to apply to mimesis notions


of 'naturalistic' or 'primitivistic' copying and reproducing. lmitation is subordinare
production. The mimetes is defined in essence by rhis position of distance; such distance
results from hierarchy established with regard to ways of production and in rhe light of
pure ourward appearance, Being".
8. Melberg dedica uma capítulo à Soren Kierkegaard, particularmente a sua obra, de I 843,
Gjmtag�lu, que em rlinamarquês significa literalmente "retomada", e tem seu título tra­
duzido por ele como "Repetição". Espécie de romance escrito sob o pseudônimo de Cons­
tantin Constantius, tem uma advertência inicial de que não se trata de uma "comédia,
tragédia, novela, épico, epigrama, história", e que os "caminhos" do texto são "inversos".
Melberg distingue a dialética temporal de repetição de Kierkegaard, e sua fascinação pela
presença e pela essência - que se aproxima da metaflsica, no sentido de que o instante pri­
vilegiado do agora é assumido como transcendental e de que ele insiste que a "repetição"
é uma categoria de transcendência - da "metafísica da presença", que Derrida nomeou,

259
central de seu romance Repetição, de 1 843, "o que é repetido
já foi, pois de outra forma não poderia ser repetido; mas o faro
de o ter sido, faz da repetição um novo".
Na nossa perspectiva, mais voltada para o espetáculo (opsis)
do que para a literatura e sua vertente teatral, o drama, inte­
ressa mais o diálogo de Melberg com o pós-estruturalismo de
Jacques Derrida, qu� pensou a mimesis, também na chave da
repetição, frente a propostas cênicas como as de Mallarmé e
Artaud, do que com o próprio Kierkegaard, ou outros teóricos
relevantes do século XX que ele aborda, como Walter Ben­
j amin, Auerbach, Paul de Man e Paul Ricoeur, que a vieram
pensando, principalmente, enquanto narrativa literária.
O exame da posição de Jacques Derrida, pela leitura de
Melberg, localiza, em um primeiro momento, urrra visão de
mimesis que opera sob a ontologia metafísica clássica, basea­
da em analogia, semelhança e similaridade. A partir de "Eco­
nomimesis", onde Derrida informa que ler Kant abriu-lhe o
caminho para a diferença, ele teria passado a considerar a "ver­
dadeira mimesis" como aquela que ocorre "entre dois sujeitos
produtivos e não entre duas coisas produzidas", significando
isso que a mimesis torna-se, realmente, uma condenação da
imitação e um tributo à imaginação criativa do artista (Derri­
da, apud Melberg, 1 995, p. 5). Como Heidegger, Derrida te­
ria pensado a mimesis clássica como baseada na physis, enquan­
to a moderna, a partir de Kant, teria sido transportada para a
imaginação. Ao mesmo tempo, para Melberg, a própria ideia
de repetição em Derrida não remeteria nem à physis, nem à
imaginação, não seria nem imitativa, nem produtiva, mas "um
mecanismo linguisticamente motivado trabalhando dentro de
todas as versões de mimesis" (idem, ibidem). Identifica nesse

criticou e desconstruiu como "o estigma do pensamento ocidental desde Platão". Ao con­
trário, Melberg percebe Kierkegaard, na verdade, como um crítico feroz da "metafísica",
que identifica como o "sistema" de Hegel, especialmente. Nesse sentido Kierkegaard é,
para Melberg, um precursor tanto da destruição heideggeriana quanto da desconstrução
de Derrida.

260
movimento de Derrida uma "virada ontológicà', já antecipada
em Nietzsche e Heidegger, abandonando a abordagem histó­
rica de Auerbach, {enfatizada por Gebauer & Wulff ao apon­
tarem a "cesurà' da modernidade) em favor de um quadro
de "diferentes ordens miméticas" e por uma "ordem mimética
da diferençà'. Isso que Melberg chama "mudança ontológi­
ca" poderia ser sintetizado na fórmula de J. Hillis Miller para
a mimesis: "duas formas de repetição" (Hillis, apud Melberg,
1 995, p. 5). Uma delas operaria pela similaridade, outra pela
diferença.
Na mesma direção, Gebauer e Wullf encerram seu livro
detidos sobre a contribuição de Derrida na consolidação desse
novo paradigma na compreensão da mimesis, e nomeiam o
capítulo que o explícita de "O caráter-intermediário da mime­
sis". Ali se dedicam a analisar em "Economimesis", o encontro
de Derrida com Kant e as noções de belo e de gênio, além de
exporem como exemplo da prática analítica do filósofo suas
incursões no "Pedro" de Platão e no célebre texto de Mallar­
mé "Mimique"9• Nos dois casos é a partir de conceitos-chave,
como "pharmakon", no Pedro, e "hymen", em "Mimique",
ambos portadores de uma ambiguidade insanável, o primeiro
podendo ser o remédio e o veneno, o segundo significando,
principalmente em francês, a virgindade e o casamento, que
esse "entre" se configura e se adensa10•

9. "Mimique" foi objeto de não menos célebre texto de Derrida, "A Dupla Sessão" (La
Doublé Séance), a partir de duas sessões de trabalho em que o filósofo distribuiu aos
participantes o texto de Mallarmé e um trecho do "Philebus" de Platão. Em francês o
titulo ecoa expressão usada por Mallarmé, na intenção dos editores de aludirem a um
segundo sentido, à dupla ciência, ou ao duplo conhecimento, que seria a desconstrução,
o método analítico desenvolvido por Derrida.
I O. Gebauer e Wulff (I 995, p. 294-320) sintetizam essa nova leitura de Derrida: "Em vez da
verdade como ponto de referência da mimesis, o movimento mimético busca dissemi­
nação de elementos e significados individuais, no curso dos quais novas interconexões,
figurações e simulacros emergem. [ . ] Perdidas estão a certeza, a verdade, e um anseio
..

de revelação: o que existe ao invés é o jogo de signos sobre o abismo, um jogo com o
vazio, a contingência, e estruturas necessárias. Analogia, metáfora, metonímia. Cadeias
de imagens, os princípios composicionais dos quais se ocultam no invisível. Drama,

261
Do ponto de vista da investigação da mimesis performa­
tiva em curso, como um modo particular de articulação da
complexidade do conceito, e que se projeta aqui como opor­
tuna para se pensar manifestações espetaculares antidramá­
ticas dentro ou fora do teatro, interessa na reflexão de Der­
rida particularmente o seu comentário sobre "Mimique". Se
não fosse pelo fato de que ali, como vem sendo corrobora­
do por diversos estudiosos, desenha-se uma virada no seu
pensamento sobre a mimesis, interessa revê-lo muito mais
porque se trata de comentário sobre um texto de Mallarmé,
em que o poeta escreveu sobre um libreto de que participou
da primeira encenação1 1 . Na verdade, aquela primeira apre­
sentação do mímico Paul Marguerite, bem como suas ou­
tras encenações nos anos seguintes, são excelentes exemplos
para caracterizar um modo de mimesis performativa que se
tornaria corrente na cena contemporânea e que ali se anteci­
pava. No seu texto, Derrida comenta como em Mallarmé se
cumpre um ciclo da história da literatura, iniciado em Pla­
tão12. De nosso ponto de vista, focado no teatro e em todas
as pulsões que operando nele o projetaram para fora de si,

balé, mímica. Vários sítios de movimentos miméricos que se concentram e se aceleram a


si próprios, colocam-se cada um deles e em seu jogo dissolvem a verdade - em aspectos
individuais que, em sua referencialidade mútua, se compõem em complexos temáticos,
só para dissolverem-se de novo. Disseminação de imagens palavras, e energias abissais,
folhas de vidro, membranas, filtros, páginas em branco, e daí pra frente".
1 1 . Ver Mallarmé, 20 1 O, p. 1 95. O tradutor, Tomaz Tadeu, comenta como Mallarmé ajudou
Marguerire, primo em segundo grau de sua mãe, na primeira montagem do libreto, no
pequeno povoado de Valvin: Ele cita Jean-Luc Sreinmen, autor de biografia de Mallar­
mé, 1 998, p. 2 1 4. "Mallarmé é chamado a colaborar, ocupando alternada ou simulta­
neamente o papel de conselheiro, de encenador, e lasr bur nor leasr, de ponto [ ...) Às
vezes, ele comenta uma passagem, insiste numa palavra, sugere um gesto".
1 2. "Entre Piarão e Malarmé toda uma história aconteceu. Essa história era também uma
história da lirerarura, se se aceita a ideia de que a literatura nasceu aí e morreu aí, o cer­
tificado de seu nascimento propriamente, a declaração de seu nome, rendo coincidido
com sua desaparição, de acordo com uma lógica que o hymen nos ajudará a definir. E
esta história, se ela rem algum significado, é governada em sua inteireza pelo valor da ver­
dade, e por uma cena relação, inserira no hymen em questão, entre literatura e verdade"
(Derrida, 1 992, p. 1 3 1 ).

262
ao encontro de outras artes visuais e performativas, também
ali se completa outro ciclo, ou se inicia um novo momen­
to na história do espetáculo. Isto porque, pela primeira vez
a mimesis performativa, restrita até então a práticas cênicas
(dança, teatro, ópera e circo), foi pensada completamente
fora do dramático, como matéria abstrata, presença concre­
ta que não remetia a nenhum referente externo, em suma,
como pura diferença. Como sugere Derrida, remetendo ao
aspecto performativo de "Mimique", aquele mimo é "atua­
ção (acting), desde que ele não é regido por nenhuma ação
real e não busca a direção de nenhuma forma de verossimi­
lhançà'. Este ato, para Derrida, joga com uma "diferença
)) ))
sem rererencta
L A • , ou opera ((sem um rererente
L , sendo carente
de "qualquer exterioridade absolutà', e, por isso mesmo, está
"sem nenhum dentro". Como ninguém poderá saber ao que
a "alusão alude", a menos que seja "à si mesma, no proces­
so de aludir", a "ilusão se torna um jogo conforme apenas
às suas próprias regras". Derrida observa que Mallarmé ao
utilizar o termo "alusão", ou "sugestão", como aparece em
outra parte, trata sim de uma operação que deveria ser no­
meada de "indecidível". A palavra aponta para a teorização
de Gõdel, que define proposição indecidível como aquela
em que, dado um sistema de axiomas governando uma mul­
tiplicidade, sua resultante não se revele como consequência
analítica, nem dedutiva, daqueles axiomas, mas, tampouco,
se mostre em contradição com eles. Como prefere Derrida,
"nem verdadeira, nem falsa", mas um terceiro termo, "sem
síntese" ( 1 992, p. 1 72- 1 73). Derrida insiste que a indecibi­
lidade (sic) , no caso, não é provocada por uma inexaurível
ambivalência das palavras, ou pela infinidade semântica de
um conceito, o que conta nessa cena concreta dando-se a
ver é a "práxis sintática que a compõem e decompõem". Ele
abandona mesmo o termo hymen, que vinha norteando toda
a sua leitura sobre o texto de Mallarmé, pois a perda do hy­
men não seria irreparável para "Mimique", já que "ele pro-

263
duz seus efeitos primeiro e principalmente através da sintaxe,
que dispõe o entre de tal modo que o suspense se dá somente
na colocação das palavras e não em seus conteúdos" {Derri­
da, 1 992, p. 1 73- 1 74) . Mesmo reconhecendo que este co­
mentário está diretamente relacionado à sintaxe textual, e ao
modo ímpar corno Mallarrné constrói o que Tornaz Tadeu,
o tradutor brasileiro de seus textos sobre teatro, chamou de
"torneios sintáticos", é impossível não estender essa perspec­
tiva ao próprio mimo em questão, e resgatar a subtração do
mythos em benefício do opsis no projeto teatral de Mallar­
mé, como foi sugerido nos primeiros capítulos. No plano
da cena em bruto também ocorre um silêncio da semântica
e um eloquente movimento de um corpo insignificante no
espaço, que à falta de melhor termo estamos nomeando de
sintático, por envolver deslocamento e posicionamento. É
com essa matéria densa, tridimensional, e ao mesmo tempo
opaca, que se desenha urna mimesis perforrnativa incognos­
cível, mais aproximada à rnusica que ao drama, e à pintura
e escultura do que ao teatro convencional. Está-se de volta
ao livro 3 da " República", só que em vez de se recusar o imi­
tador de ruídos de animais e de gestos grotescos, valoriza-se
aqui sua dimensão neutra, vazia de sentidos prévios e plena
de potencialidades imagéticas
Antes de concluir esta sessão, em que se procurou traçar
uma possível trajetória do conceito de mimesis até sua acepção
atual - ainda atada à repetição mas já liberada do binômio
falso/verdadeiro - vale ainda mencionar mais algumas propo­
sições de teóricos e filósofos contemporâneos que confirmam,
problematizarn ou diferem das que foram apresentadas.
Pode-se iniciar retornando a pesquisa j á citada de Ste­
phen Halliwell, agora em seu esfo rço de polemizar com
Jacques D errida e com as posições do pós-estruturalismo.
Corno se viu, sua colocação sobre urna instabilidade do con­
ceito de mimesis, oscilante em toda a antiguidade entre fo­
cos mais realistas e mais metafísicos, confirma-se nas o utras

264
visões até aqui examinadas, na fórmula de uma alternância
sistemática entre similaridade e diferença. O problema é
que Halliwell, enquanto helenista, preocupa-se não só em
afirmar essa dualidade - que ele traduz na oposição entre
mimesis como o espelhamento ou como criação genuína -
mas também em realçar que a tensão entre esses polos nun­
ca esteve conciliada em toda a história do mimeticismo,
principalmente em suas raízes na Antiguidade, em Platão e
Aristóteles. Assim, percebe a principal fraqueza na aborda­
gem da mimesis por Derrida no fato de "não fazer j ustiça a
essa dialéticà', que ele, Halliwell, procurou mostrar como
operante na reflexão daqueles filósofos gregos e em toda a
história da mimesis ( 1 988, p. 375) . Essa falha se consubs­
tanciaria, sobretudo, no pressuposto de que toda a história
da mimesis teria sido erigida sob compromisso com o valor
da verdade, engano que ele atribui ao filósofo ter se " fixado
em demasia sobre Platão e o platonismo", e deixado de lado
a contribuição aristotélica. Mesmo que Derrida estivesse
certo em ver a mimesis em Platão "fortemente dependente
de uma metafísica da verdade e realidade", o que Halliwell
problematiza, já que haveria no platonismo mais sentidos
contraditórios do que essa afirmação deixa supor, seria in­
correto dizer que essa dependência subsiste em todas as ver­
sões subsequentes do mimeticismo, na Antiguidade ou em
qualquer outro período. No caso de Aristóteles, por exem­
plo, a mimesis já apareceria "incorporada num conjunto de
atividades cujo status cognitivo é hipotético e exploratório,
apesar de ainda ancorado em crenças e em atitudes foéadas
no mundo real" (Ibid., p. 375) . Segundo Halliwell a crítica
de Derrida fundada em visão "estreita e estritamente mol­
dada em Platão", perde a riqueza da diversidade corrente
no âmbito do mimeticismo. Para ele, "se o pensamento e
a imaginação humanas são possíveis e inteligíveis, então a
mimesis tem a única base que requer. A representação, seja
dentro ou fora da arte, resta na possibilidade de algum en-

265
tendimento compartilhado, m as não guarda nenhuma de­
manda intrínseca por uma verdade transcendente" (Ibid . ,
p. 376) 13•
Por tudo o que se disse antes sobre as reflexões de Jacques
Derrida quanto à mimesis, é possível afirmar que a posição que
Halliwell lhe imputa não esgota sua visão, e a redução indevida
que lhe é apontada no tratamento da mimesis também acome­
te a crítica aplicada, pois, mesmo em Derrida, o conceito não
aparece como algo homogêneo e flutua entre diversas inter­
pretações. Há sim uma dialética entre similaridade e diferença,
só que convergindo para um terceiro termo, a repetição, que
aparece ora como "diffirdnce", ora como "suplemento", mas
caracterizando uma inexorável variação a cada ato mimético
perpetrado. De fato, a suposta recusa da mimesis pelos autores
alinhados ao chamado pós-estruturalismo é discutível, mesmo
porque não deixa de haver ali uma nova configuração, com
novos termos, e em novas posições, nessa intrincada maré de
duplicações que o conceito enseja, e que ora vaza ora se expan­
de. Talvez o que esteja sendo abandonado naquela tendência é
o sentido dramático da mimesis, que Platão chamou no livro 3
da "Repúblicà' de mimético, e que seria propriamente a narra­
tiva teatral, dependente de atores e de tramas articuladas. Tal­
vez o caráter antimimético da arte moderna e antidramático
do teatro contemporâneo, que foi tão explorado nos capítulos
anteriores, coincida com essa aparente "recusà', por parte dos

1 3. Esta passagem é oportuna para situar outro trabalho fundamental nos estudos contem­
porâneos da mim�sis, ainda que não tenha servido ao foco em questão aqui. Trata-se de
Mim�sis as Mak�-&/iro� - on th� foundatiom of th� r�pmmtationa/ arts, Walcon, 1 990.
Em obra de viés estritamente lógico, Walton prerende instituir uma teoria geral e inte­
grada da representação, que abarque "tanco problemas estéticos como metaflsicos" e em
que "as respostas às questóes de cada parte ou tipo apontem para e reforcem as respostas
às perguntas das outras". Walton vê a represenracionalidade nas artes como um "conri­
nuum com outras instiruiçóes e atividades humanas familiares, e não como algo único
e requerendo explicaçóes próprias especiais". Segundo ele, o que todas as representaçóes
tem em comum "é um papel no faz de conta". Por isso o "faz de conta explicado nos
termos da imaginação" constitui o eixo de sua teoria (p. l -8).

266
pós-estruturalistas, a qualquer similaridade. Uma pista a favor
dessa hipótese é o volume organizado por Timothy Murray
( 1 997), que reuniu, pela primeira vez em inglês, ensaios de
autores franceses associados ao pós-estruturalismo, todos foca­
dos nas questões da teatralidade e da mimesis. Na epígrafe de
seu próprio artigo, que apresenta o livro, Murray cita trecho
de Difference & Repetition ( 1 994), uma obra decisiva na con­
solidação do pensamento de Gilles Deleuze, provavelmente o
mais influente filósofo contemporâneo.

Um novo teatro, ou uma nova (não Aristotélica) inter­


pretação do teatro; um teatro de multiplicidades oposto
em todos os sentidos ao teatro da representação, que não
deixa intactos nem a identidade da coisa representada,
nem autor, espectadores, personagem ou representação,
que através de vicissitudes da peça pode se tornar o objeto
de uma produção de conhecimento ou reconhecimento
final. Em vez disso, um teatro de problemas e sempre
questões abenas, que força espectadores, cenários e perso­
nagens dentro do movimento real de um aprendizado de
todo o inconsciente (Deleuze apud Murray, 1 997, p. 1 ) .

É consenso entre estudiosos de teatro hoje que a produção


teórica mais relevante das última décadas foi produzida por
filósofos e pensadores de fora do campo teatral, pelo menos
ausentes daquele território específico do metier, francamente
associado ao dramático, seja em viés literário, seja na perspec­
tiva pragmática da encenação. Como sugere Murray na sua in­
trodução, para evitar a reflexão sobre a mimesis esses filósofos
adotaram a figura da teatralidade, "de modo insistente e am­
bivalente", como um "suplemento autorreflexivo aos modelos
da linguagem e imagem que conformam os tão problemáticos
binarismos da linguística, poética e psicanálise estruturais".
A teatralidade apareceria como um terceiro termo por meio
do qual a "interpretação, explicitamente ou não, designa e
enquadra sua própria prática como performance" (Murray,

267
1 997, p. 3). Deleuze, por exemplo, fez, dos poucos textos que
escreveu especialmente sobre espetáculos e autores teatrais, in­
cursões muito pessoais e criativas em que inventou os concei­
tos cabíveis à definição dos objetos sobre os quais se debruça­
va. Assim foi com seu comentário sobre o encenador italiano
Carmelo Bene, cujo teatro descreve como crítico e constituti­
vo, pois "crítica é uma constituição". Bene inspira Deleuze a
sugerir que o fazedor de teatro não é mais um autor, um ator,
ou um diretor. Ele agora é um operador e "operação", naquele
caso, "deve ser entendida como o movimento de subtração,
amputação" (Deleuze apud Murray, 1 997, p. 239-258) . Na
simbiose de criador (Bene) e pensador (Deleuze) há uma ação
performativa que abre novos caminhos tanto à cena como à
reflexão que se faz sobre ela. O mesmo acontece em outro raro
texto deleuziano dedicado à mimesis performativa, O Esgota­
do (20 1 0) - sua apresentação das peças televisivas de Beckett,
aqui examinadas no quarto capítulo - em que ele projeta dis­
tintas línguas operando. Não diferenciadas por referirem-se
a distintos países mas pelas distintas camadas operativas que
percorrem as peças. Deleuze descreve "repetição", em Diffiren­
ce & Repetition, na perspectiva já citada de Kierkegaard, que é
anti-hegeliana, ou anti-idealista, pois oferece como substitutos
conceituais ao binômio identidade e negação as forças da di­
ferença e da repetição. E repetição, definida paradoxalmente
como "diferença sem conceito", surge como a pulsão humana
que propicia deslizes, desvios, tangências que subvertem a di­
ferença, ou retiram-lhe tudo que é morto e previsível nela. É
assim que a arte, e por certo os espetáculos que ele examinou
se incluiriam nessa definição, "deveria ser injetadà' na vida co­
tidiana - padronizada e acelerada pela reprodução dos objetos
de consumo - para servir como aquela "pequena diferença que
atua simultaneamente em outros níveis de repetição". É irre­
sistível aproximar essa ideia da repetição não como ruptura,
mas como suplemento que revigora e inaugura novos modos
impensados de vida, do que aqui, desde o início, foi chama-

268
do de margem de invenção possível na cena contemporânea.
Operou-se com exemplos de mimesis performativa despidos
de convenções dramáticas, com isso tentando abranger atos
criativos que, operando em condições espetaculares - tempo
e espacialmente simultâneas a espectadores - perfurassem o
padrão mimético para permeá-lo de novos ares, ao mesmo
tempo que o reinventassem.
Todas estas considerações sobre o milenar conceito de mi­
mesis aqui apresentadas, antes de esgotar o debate ou se basta­
rem na sustentação à hipótese que veio sendo defendida, são
preliminares que esperain atrair os leitores para a densa e in­
findável discussão que envolve sua abordagem. O que se fez, de
fato, quem sabe esteja mais próximo de uma encenação sobre o
mimeticismo do que de uma resposta acabada, o que não esta­
ria ao alcance nem de seu autor, nem de nenhum daqueles que
por si sobre o tema se debruçaram, como aqui, acredita-se, pos­
sa ter ficado claro. O pressuposto de que, mesmo nas formas
mais antimiméticas ou antidramáticas que se desenvolveram
no último século, quando, supostamente, a ideia de mime­
sis já não seria aplicável, ela tenha continuado operante nas
artes, sobretudo em suas manifestações espetaculares, parece
ter sido fundamentado. Na encruzilhada entre similaridade e
diferença, e no desvio dessa polaridade, tornou-se possível, ar­
ticulando o conceito de mimesis performativa, identificar um
traço comum da contemporaneidade: a prevalência do opsis
sobre o mythos e uma margem de invenção possível quanto aos
modos e os meios dessa mimesis espetacular derivante ocorrer,
constituída em um campo mais abrangente que o do teatro,
incluindo a performance, as artes visuais e plásticas, e todos os
seus congêneres. Ao fim e ao cabo, respondendo à pergunta
inicialmente formulada nesta seção, seria sim cabível reduzir o
fenômeno da mimesis à sua condição espetacular, ou em uma
fórmula mais simples, nomeá-la apenas como "espetáculo".
Mas para fazer isso é preciso, ainda, depurar esta palavra dos
véus qu.e hoje a revestem e quase a inviabilizam como conceito

269
operador importante para as artes cênicas, de onde surge a fór­
mula composta da mimesis performativa como a opção mais
consistente 14 • Importa salientar, por fim, que esse projeto de
definição do fenômeno não é novo, e se explicitou cristalino
em um texto de Mallarmé, retirado da já citada coletânea de
comentários críticos que produziu sobre o teatro, em que ele
antecipava as dificuldades aqui enfrentadas de teorizar a res­
peito do espetáculo.

Há (aticemos o fogo) uma arte, a única ou pura, em que


enunciar significa produzir: ela vocifera suas demonstra­
ções pela prática. O instante em que explodir o milagre,
acrescentar que foi isso e não outra coisa, irá fragilizá-la:
a tal ponto ela não admite outra evidência luminosa que
não a de existir (Mallarmé, 20 1 0, p. 1 9) .

14. Ver Ramos, 2009a.

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FERNANDO MATOS

Exaurir a d ança : per­


fo rmance e política do
movimento
A DRÉ LEPEC K I

L u i z FERNANDO R!\MOS é pro­


fessor associado da ECNUSP
e pesquisador do C N Pq. É
autor de O parto de Godot e
outras encenações imaginárias:
a rubrica como poética da cena
(H ucitec, 1 998). É drama­
turgo, encenador e foi críti­
co de teatro da Folha de S.
Paulo (2008-20 1 3 ).

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