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Tradução de

JVIIILÔR
FERNANDES
CIVILIZAÇÃO
BRASILEIRA

Brecht c o Mundo
em Transformação

O Senhor Puntila e Seu Criado Matti


é uma das peças da maturidade de
Brecht, e geralmente reconhecida co­
mo uma de suas cinco maiores peças,
ao lado de Galileo Galilei, A Alma Boa
de Set-Suan, O Círculo de Giz Cauca­
siano e Mãe Coragem. E, ao mesmo
tempo, a única peça que o autor batiza
de “popular”; sendo também uma das
menos conhecidas, é de tôda utilidade a
sua montagem e a sua publicação em
livro.
Puntila é um rico fazendeiro finlan­
dês, que passa a maior parte de seu
tempo em completo estado de embria­
guez; sai dêsse estado somente quando
tem um dos “ataques de sobriedade” que
o acometem uma vez por mês, confor­
me confessa logo na primeira cena. Nes­
tes instantes, em que acorda “fresco co­
mo um pé de alface”, Puntila mostra
uma de suas faces: é rispido, violento,
mau caráter. Quando embriagado êle
deseja a amizade de seu chofer, a quem
chega a oferecer a própria filha em ca­
samento, vai a um mercado de traba­
lhadores e confraterniza com todos, con­
vida quatro mulheres de uma aldeia vi­
zinha para que se casem com êle, é ge­
neroso e bom. Quando sóbrio, desfaz tu ­
do que prometeu quando bêbado.
A peça, que tem algo que ver com o
filme de Charles Chaplin Luzes da Ci-
Puntila
e seu criado
Matti

___
Coleção
TEATRO HOJE
D ir e ç ã o de D ia s G om es

Série Autores Estrangeiros


Volume 4

Volumes Publicados:
Série Autores Nacionais
Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar — se correr o b ic h o

PEGA, S E FICAR O B IC H O COME


Flávio Rangel e Millôr Fernandes — l ib e r d a d e , l ib e r d a d e

(2a. edição)
Dias Gomes: o s a n t o i n q u é r i t o

Série Autores Estrangeiros


Bertolt Brecht: o s r . p u n t i l a e seu c r ia d o m a t t i, tradução
de Millôr Fernandes

Próximos Lançamentos
Série Autores Estrangeiros'.
Sófocles: é d i p o r e i , tradução de Mário da Gama Kury

Série Teoria e História


Paolo Chiarini: b e r t o l t brecht

Er win Pise ator: t e a t r o p o l ít ic o


BERTOLT BRECHT

O SR. PUNTILA
e seu criado Matti
TRADUÇÃO DE
MILLÔR FERNANDES

INTRODUÇÃO DE
ANATOL ROSENFELD

Civilização Brasileira
TÍT U L O DO OR IG INA L A L E M Ã O '.

Herr Puntila Und Sein Knecht Matti

Montagem de cava de
M a r iu s L a u r it z e n B ern

söbre um desenho de
M il l ô r F ernandes

é 'proibida qualquer representação da tradu­


ção desta peça em Teatro, Rádio, Televisão,
ou sua reprodução por quaisquer meios m e­
cânicos, sem o consentim ento do tradutor.

Exemplar

Direitos desta edição reservados à


EDITÔRA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S. A.
Rua 7 de Setembro, 97
R IO DE JA N E IR O

1966

Impresso nos Estados Unidos do Brasil


Printed in the United States of Brazil
O SENHOR PUNTILA E SEU CRIA­
DO MATTI estreou no Brasil em
agôsto de 1966, na direção de
Flávio Rangel. O espetáculo, pro­
duzido pela Companhia Carioca de
Comédia, teve ítalo Rossi e Jardel
Filho nos papéis de Puntila e M atti,
íta la Nandi como Eva, Napoleão Mo-
niz Freire como o Attaché, e Isabel
Ribeiro como Ema Contrabandista.
PERSONAGENS:

O rdenhadora
P u n t il a
G arçom
M atti
J u iz
Cozinheira
A ttaché
E va
Ema
V eterinário
M anda
L is u
O G ordo
T rabalhador
T rabalhador ruivo
T rabalhador m ise r á v e l
L aina
SURKALA
F in a
A dvogado
S andra
T elefo n ista
P adre
M u l h e r do P adre
A fil h a m a is velha de S urkala
índice

A Cordialidade Puntiliana 13

Prólogo 25

Puntila Encontra um Homem 27

Puntila é Maltratado 43

As Noivas Matinais do Sr. Puntila 57

O Mercado dos Trabalhadores 69

Escândalo em Puntila 83

Conversa Sôbre Caranguejos 113

A Associação das Noivas do Sr. Puntila 129

Histórias Finlandesas 145

Puntila dá a Filha a um Homem 153

Noturno 187

0 Sr. Puntila e Seu Criado Matti Escalam o Monte


Hatelma 189

Matti Volta as Costas ao Sr. Puntila 211


A Cordialidade Puntiliana

Foi em 1940, na emigração, enquanto se encontrava


na Finlândia, que Bertolt Brecht escreveu O senhor
Puntila e seu criado M atti, baseando-se num esbôço dra­
mático e em narrações da escritora Hella Wuolijoki, em
cuja casa se hospedara. Entre as grandes obras da ma­
turidade, Puntila é a de cunho mais popular e humorís­
tico. O Ensemble de Berlim, o famoso teatro de Brecht,
iniciou em 1949 a sua atividade oficial com a apresen­
tação desta peça.
Seu motivo central, ao mesmo tempo jocoso e pro­
fundo, já fôra explorado anteriormente por Chaplin
(Luzes da cidade) a quem Brecht muito admirava. Não
é, portanto, nôvo o caso dos dois caracteres de Puntila,
homem afetuoso quando embriagado, homem egoísta
quando sóbrio. Nova é a maneira de como Brecht apro­
veita a curiosa duplicidade que desintegra a personali­
dade do fazendeiro. A partir dela analisa a dialética ine-
jente às relações entre senhor e criado tão bem expos-
a por Hegel — e, concomitantemente, procura elucidar
certos aspectos da sociedade de classes.

13
A exposição didática — e divertida — de semelhan­
te tema requer, segundo Brecht, os recursos do teatro
épico. Com efeito, Puntila não se atém à dramaturgia
tradicional, aristotélica. Apesar da fabulação saborosa,
a peça não tem unidade de ação, continuidade de uma
intriga a desenvolver-se até o desenlace final. Seria di­
fícil chamar de “enrêdo” o noivado precário de Eva, fi­
lha de Puntila, com o adido diplomático — realmente o
único esbôço de um argumento contínuo. Muito menos
se encontrará o encadeamento tradicional de uma ação
tensa, com conflito central, clímax, desfecho. A peça,
ao contrário, é constituída de uma seqüência sôlta de
episódios de certo modo independentes, cada qual com
seu próprio clímax. Os quadros repetem, em essência,
a mesma situação, variando-a, focalizando-a de diversas
perspectivas. Todos êles ilustram, de um ou outro mo­
do, a relação senhor-criado, principalmente através do
comportamento do patrão e do seu empregado. A cena
do mercado dos trabalhadores generaliza e acentua a
situação fundamental que se reflete, transposta em ou­
tro nível, nas relações do pai Puntila para com a filha,
nas relações desta com o noivo oficial, o diplomata, e
para com o criado. Na balada da condessa e do guarda-
florestal o tema ressurge, como se manifesta ainda na
canção das ameixas que acompanha e grifa ironicamen­
te os vários noivados do fazendeiro.
A Canção de Puntila, que a cozinheira dirige entre
os quadros ao público, acentua o caráter sôlto, poético-
baladesco, da peça, transformando esta em ilustração
do canto e êste em comentário da peça. A ligação entre
os doze quadros baseia-se, pois m uito mais que numa
ação contínua (que de fato mal existe), no tem a central,
exemplificado por tantos episódios e canções e princi­
palmente pelo comportamento do patrão e do emprega­
do. Os versos do prólogo e epílogo, emoldurando a peça,

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carregam-se de acentuar bem a lição, como ocorre na
maturgia dos fins da Idade Média e do Renascimen-
* Ao término, a relação entre Puntila e Matti se dis­
solve, p°is Que “água não se mistura com óleo”, e com
.gSo ‘‘dissolve-se” também a peça. Seria difícil falar de
fim ou desfecho. Não há mortes, nem casamentos. Não
jiá nenhuma cena dramática de ruptura violenta das
relações — Matti simplesmente vai embora. A peça não
conclui, portanto. Conquanto Matti se demita, a situa­
ção entre senhor e criado continua. Ambos irão ao mer­
cado dos trabalhadores, Puntila para procurar outro
criado e Matti para procurar outro patrão. A peça não
tem desfecho, mantém-se aberta, como A boa alma de
Set-Suan ou Mãe Coragem, porque ilustra apenas uma
situação fundamental que continua. O problema levan­
tado pela obra não é o “bom patrão” ou o “mau patrão”,
mas o patrão simplesmente. Por isso Matti diz no epílogo
que os criados encontrarão o senhor bom de verdade so­
mente quando se tornarem os seus próprios senhores. So­
mente então terminará a peça.
Os momentos estruturais apontados, totalmente
contrários à unidade e continuidade do drama aristoté-
lico — com início, meio e fim — tornam esta peça em
uma das mais conseqüentes do teatro épico, cuja teoria
Brecht então já levara ao amadurecimento. Duas ra­
zões fundamentais fizeram com que a elaborasse. A pri­
meira decorre da convicção antropológica de que a pes­
soa humana é o conjunto de tôdas as relações sociais.
Cabe integrá-la, pois, num mundo amplo, mostrando
não só os “navios inclinados” — como se fazia no tea­
tro clássico — mas também a “tempestade que os incli­
na”, isto é, as fôrças anônimas que atuam sôbre o indi­
víduo^ Esta razão do teatro épico encontra ampla ex­
pressão em Puntila. O prólogo e epílogo apresentam
uma situação geral, aquela em que, segundo Brecht, rei-

15
1

na “certo animal pré-histórico” Estatium possessor, em


português chamado “fazendeiro”, com quem seria difí­
cil manter relações duradouras, apesar de, no caso de
Puntila, se tratar de um patrão que é “quase” um ser
humano e até bastante simpático, ao menos no estado
ébrio. Ao mesmo objetivo da ampliação social visam
muitas falas de Matti: ao narrar os “casos” de sua vida
esboça todo um sistema econômico-social. Semelhante
função cabe às cenas poéticas das noivas de Puntila,
narrando a rotina de suas vidas, ou à longa estória da
contrabandista (quadro 8). O mesmo sentido tem ainda
o esplêndido episódio do “teatro no teatro” em que a
filha de Puntila procura desempenhar o papel de mu­
lher do criado Matti. Os incidentes mencionados — e
muitos outros — seriam impossíveis numa peça cons­
truída segundo os preceitos tradicionais. Seu cunho
episódico desvia-se da “ação principal” do noivado de
Eva e do adido. Tais cenas, não sendo exigidas pela
ação, contrariam a concepção aristotélica, segundo a
qual deve ser eliminado todo elemento que não tenha
função causal, servindo como elo na trama do enrêdo.
A sua função, em Puntila, é outra: caracterizam as re­
lações inter-humanas e pintam o pano de fundo social.
Visto essas cenas não se explicarem pelo nexo causal,
como efeito da anterior e causa da próxima, algumas
delas podem ser deslocadas para outra parte ou mesmo
eliminadas, à semelhança do que ocorre num romance
picaresco como Don Quixote ou nas epopéias homéricas.
A segunda razão do teatro épico decorre dos objeti­
vos didáticos de Brecht, do seu desejo de apresentar um
palco capaz de esclarecer o público sôbre a nossa socie­
dade e o dever de transformá-la. Êste fim didático im­
põe eliminar o efeito hipnótico do teatro tradicional.
Impõe anular a sua função de sedativo e evasão. Por
isso mesmo convém montar uma estrutura em curvas,
episódica, dialética — a afetuosidade de Puntila se cho-

16

4
alido com a sua aspereza — para romper a continui­
dade linear da dramaturgia tradicional. Esta, mercê do
seU encadeamento rigoroso, prende o espectador no
avanço ininterrupto da ação tensa, enreda-o no enrêdo,
não lhe concedendo liberdade crítica. Coloca-lhe o jugo
da identificação com as situações e os personagens, de
modo que vive com êstes o seu destino inexorável,* em
vez de, vivendo embora emocionalmente o seu destino,
ter ao mesmo tempo a possibilidade de distanciar-se o
suficiente para, pela objetivação, chegar ao raciocínio.
Assim compreenderá que êste destino de maneira algu­
ma é eterno e inexorável, mas conseqüência de uma si­
tuação histórica, de um sistema social (p. ex. o da re­
lação senhor-criado). O homem, sem dúvida, é determi­
nado pela situação histórica; mas pode, por sua vez, de­
terminá-la. O fito principal do teatro épico e do distan­
ciamento é, portanto, estudar o comportamento do ho­
mem em certas condições e mostrar que estas podem e
devem ser modificadas. É, pois, a “desmistificação”, a
revelação de que as desgraças humanas não são eter­
nas e sim históricas, podendo por isso ser superadas. O
distanciamento, mais exatamente, procura tornar estra­
nha a nossa situação habitual, anular-lhe a familiari­
dade que a torna corriqueira e “natural” e por isso
incompreensível na sua historicidade. Pois tudo que é
habitual apresenta-se como fenômeno natural e por isso
imutável. Temos que ver o nosso mundo e comporta­
mento objetivados, por uma momentânea alienação
dêles, para vê-los na sua relatividade e para, dêste
modo, conhecê-los melhor. Todo conhecimento inicia-se
com a perplexidade diante de um fenômeno. Distanciar,
tornar estranho é, portanto, tornar ao mesmo tempo
mais conhecido.
Não é preciso enumerar os múltiplos elementos de
distanciamento introduzidos nesta peça por Brecht
através de comentários cantados, falas cômicas e irô-

17
nicas que, por vêzes, revelam de chôfre tôda uma situa­
ção, ou através do “teatro no teatro”, cena em que uma
forma de vida mísera, bem corriqueira e “natural”, é
distanciada e “exposta” pelas tentativas frustradas da
grã-fina de imitá-la. Não é preciso, tampouco, frisar
que o caráter épico do texto só se completa graças aos
recursos do palco. Basta, no contexto de uma ligeira
apresentação, insistir em que o choque do estranhamen­
to é introduzido no próprio personagem de Puntila, o
finlandês cordial que se torna ríspido nos seus estados
“loucamente sóbrios”. É sumamente estranho ver de­
terminada a cordialidade do chefe, assaz corriqueira,
pela sua embriaguês. Distanciando, ademais, a cordia­
lidade ébria mediante o egoísmo sóbrio, Brecht pre­
tende desmistificá-la, tornando mais conhecida a sua
função social. Isso, porém, sem que negasse o encanto
e a qualidade cálida dessa generosidade, cujo caráter
envolvente deve sobressair para que possa ser desmas­
carada.
Com horror na voz, Puntila confessa que no estado
vil da sobriedade é um homem responsável, forçado a
prestar conta de seus atos. Por isso mesmo é então uma
pessoa de quem se podem esperar as piores coisas. Pa­
radoxalmente, ser responsável implica ser imoral. Daí o
seu empenho heróico em beber e em tornar-se dêste mo­
do irresponsável, isto é, virtuoso. Ao introjetar a con­
tradição alienadora no protagonista, Brecht pretende
demonstrar a dialética da nossa realidade. Puntila está
em constante contradição consigo mesmo, produzindo
na própria pessoa o distanciamento, já que os dois ca­
racteres se refutam e estranham, se criticam e ironizam
mutuamente. É no estado irresponsável — quando é
um animal irracional — que se tom a humano e é no
estado racional, isto é, humano, que passa a ser desu­
mano. Com efeito, explica Puntila, “é que durante êsses
ataques de lucidez total e desvairada, eu desço ao nível
um animal”. Puntila é, portanto, associai em tôdas
circunstâncias. A sua maldade é “normal”, isto é,
f S ica institucional, e sua bondade é “anormal”, isto é,
articular e caprichosa e por isso sem valor, sem con-
P üência. De fato, nos estados maldosos anula tudo
a n t o de kom nos estados generosos. Tudo fica na
mesma e às vêzes até piora. Vemos que o ébrio bondoso
nada é senão um recurso cênico para representar, de um
modo hilariante e irônico, a ordem puntiiiana que con­
sagra a desordem, já que o comportamento humano, em
vez de fazer parte da normalidade das instituições, sur­
ge apenas como capricho pessoal, como adôrno que en­
feita a dura realidade.
É um êrro acreditar com Martin Esslin (B recht, a
choice of evils) que no personagem de Puntila se opõem,
como fôrças eternamente antagônicas, as emoções e os
impulsos bondosos ao intelecto frio e maligno. Brecht
não pretendeu escrever um drama psicológico ou moral,
embora êste nível de considerações deu-me a problemá­
tica básica e se m antenha suspenso, para além dos li­
mites da peça, deixado à meditação do público. Brecht
não visa a apresentar com Puntila um homem mau ou
um homem bom, mas simplesmente um fazendeiro que,
para êle, representa uma organização social. É um “mo-
dêlo” proposto para demonstrar exemplarmente a ati­
tude do superior que, não importa se com sinceridade
ou para disfarçar a realidade, “concede” ao inferior pa­
ternalmente ocasionais benefícios, enquanto de fato,
como vimos, tudo fica na mesma. Para Brecht, a rea­
lidade implacável não decorre sobretudo da moralidade
ou da psicologia dos indivíduos, que podem ser bons ou
maus, corruptos ou íntegros, mas do mundo puntiliano.
O fazendeiro seria provàvelmente um “sujeito ótimo”
bem ao contrário da opinião de Esslin (que o con-
sidera essencialmente m a u ); mas as condições não per­
mitem que o seja (e se o fôsse, perderia a fazenda, sem

19
grande benefício para ninguém ). O problema, para
Brecht, não é, portanto, moral e sim social. Puntila
quer ser bom, é por isso que se embriaga, pois “terrí­
vel é a sedução da bondade” e é duro ser mau: “Na
minha parede, a máscara de m adeira/ De um demônio
maligno, japonês/ Ouro e laca./ Compassivo, observo/
As túmidas veias frontais, denunciando/ O esforço de
ser maligno”. (Tradução de Haroldo de Campos).
Entretanto, por mais que Puntila se esforce por
evitar êste esforço, as suas tentativas de ser cordial se
corrompem ante o “vício da responsabilidade”. O me­
lhor que consegue, no estado ébrio, é tornar-se “fami-
lionário”, para citar a expressão com que Heinrich Heine
caracterizou esta atitude ao definir o comportamento
do rico Rotchschild ao receber o poeta pobre. Todos os
esforços do fazendeiro de ser generoso, por mais autên­
ticos que sejam, fracassaram. A situação torna-os ambí­
guos, contamina-os de suspeitas, ao ponto de poderem
ser interpretados como artimanha para desarmar os
criados. “Se (os patrões) tivessem corpo de urso, ou
cobra, a gente tomava mais cuidado”, diz a telefonista.
A bondade chega a revestir-se de aspectos quase amea­
çadores. É esta lição da peça a exceção e a regra: O
criado bondoso aproxima-se do patrão sedento, em pleno
deserto, para dar-lhe água e êste o mata, interpretando
mal o seu movimento. O juiz absolve o réu: em seme­
lhante situação, no mundo em que vivemos, o patrão
não podia esperar um gesto generoso do criado. Em
face da regra de um sistema em que “ser humano é uma
exceção”, a desconfiança do patrão se justifica, como se
justifica inversamente a desconfiança do criado em Pun­
tila.
É nesta desconfiança que vive Matti, o criado céti­
co, solidário com os seus colegas, que tem a sabedoria
e um pouco também a esperteza dos oprimidos. Apesar
de ser um “operário consciente”, tem dificuldade em re-

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st ir ao encanto de Puntila. Mas pelo menos sabe des­
ta falha. “Êle é familiar demais”, assegura, desfamilia-
r i z a n d o a nossa familiaridade com essa familiaridade. Ou
e n t ã o narra uma estória: “Ah, sim, intimidade demais
é s e m p r e perigoso. Uma vez eu trabalhava numa fábri­
ca de papel, e o porteiro pediu demissão porque o dire­
tor lhe perguntou como o filho ia passando.” Em ou­
tra parte insiste: “Mal dou uma respirada e êle (Pun­
tila) já fica fraternal. Eu vou-me embora.” No mesmo
s e n t i d o o Ruivo diz: “Bom, eu vou-me embora. O que
eu quero é um emprêgo.”
É evidente que Matti, como personagem, não tem
as esplêndidas possibilidades cênicas de Puntila embora,
como pessoa, lhe seja superior. Na dialética de suas re­
lações, bem de acôrdo com Hegel, o senhor se torna ca­
da vez mais dependente de quem dêle depende, e quan­
do Matti abandona Puntila a perda será maior para o
patrão do que para o criado. Mas a sua função cênica
é, em certa medida, de apoio apenas; cabe-lhe ser o
parceiro que permite a Puntila revelar-se a si e a si­
tuação fundamental, enquanto ao mesmo tempo, pela
sua concordância discordante, é um comentário vivo
das atitudes senhoris. Representa uma espécie de si­
nal de exclamação ou de aspas ambulantes em carne e
osso que distanciam, acentuam e desmascaram o com­
portamento de Puntila. A linguagem da concordância
fingida tem, neste sentido, função contundente — veja-
se por exemplo a cena Noturno (quadro 10). A conci­
liação irônica visa a efeitos de humor negro que lem­
bram os obtidos por Jonathan Swift, ao recomendar,
nos moldes de um meticuloso plano econômico, o aba­
te de crianças pobres, recém-nascidas, para enriquecer
de carne tenra a mesa dos abastados.
Na dramaturgia universal, desde Menandro e Plau-
to a Molière e aos pósteros, são muito freqüentes as co­
médias e farsas com a constelação senhor-criado e qua­
se sempre o criado é mais esperto que o senhor. Brecht
exigiu mesmo que o papel de Matti fôsse preenchido de
modo a realçar a sua superioridade espiritual, compen­
sando assim o encanto robusto de Puntila. Bem menos
típico, nos moldes desta relação vetusta, é o fato de o
senhor e não o çriado ser o personagem cômico, aquêle,
portanto, cuja dignidade é exposta em tôda a sua fra­
gilidade.
Mais realce obtém o personagem de Matti como par­
ceiro e alvo sexual de Eva. Tôda a “trama amorosa”
da peça, com Eva oscilando entre o diplomata e o cria­
do, embora aparente ser o fio da meada que liga as ce­
nas, se destina de fato apenas a apoiar o tem a funda­
mental. Não só os ensaios de generosidade humana,
também os impulsos amorosos e as relações entre ho­
mem e mulher se tornam precários no mundo puntilia-
no. Até o amor à natureza afigura-se suspeito, no ini­
mitável episódio do monte Hatelma. Conquanto poética,
esta cena é ao mesmo tempo uma das mais saborosas
paródias à patriotice e ao epicureísmo paisagista da
burguesia (“Onde, no mundo, você encontra um céu
igual ao nosso?”). Neste ponto, a peça alcança comici­
dade extraordinária na mistura safada e inextricável
entre culinarismo estético (ante a paisagem) e prag­
matismo econômico. O interêsse material interrompe
constantemente o êxtase lírico pela “rigidez adquirida”
do proprietário, bem de acôrdo com a análise bergsonia-
na do cômico. Um buraco nas calças, desvendando as
ceroulas, tom a ridícula a solene casaca estético-patrió-
tica.
É evidente que a esquematização da tem ática e es­
trutura não faz jus à peça. É com a consciência atri­
bulada que o comentarista reduz um organismo tão vivo,
tão rico e poético a um esqueleto. O homem de teatro
e poeta Brecht atinge nesta obra aquela maturidade
em que supera, em todos os momentos, as intenções

22
didáticas, sem em nenhum momento eliminá-las. Por
isso acentuou que essa peça popular não visa a uma
“tendência”, devendo ser apresentada de um modo não
demasiadamente realista. Insistiu em que se realçasse
o encanto natural do fazendeiro, figurando a sua em-
briaguês de uma forma poética e delicada e a sua so­
briedade sem brutalidade e de maneira não muito gro­
tesca. Mas em seguida pediu que não se levasse o seu
“charme” ao ponto de tomar ao público a liberdade de
criticá-lo. De qualquer modo, a comicidade de Puntila
__ a inferioridade do superior — é vista com humor, is­
to é, com certa simpatia compassiva. Nesta fase da sua
vida, Brecht, de algum modo, está de conluio com a fra­
queza humana: a culpa fundamental não cabe a Pun­
tila e sim à ordem reinante de que, embora esteio, é
também vítima. Também êle, o rico, da mesma forma
como a pobre Shen-Te de A boa alma, está dividido em
duas metades.
Mais que o esquema didático, exposto nesta apre­
sentação, importa compreender o humanismo de Brecht.
É verdade, a peça não visa a uma tese moral. Para
Brecht, as soluções supremas pressupõem as humildes.
Os valores sociais, embora inferiores aos morais, são
precisamente por isso os básicos. Sem a realização do
inferior, mas básico, não se desenvolve e frutifica o su­
perior. Só depois de estabelecida a justiça social podem
revelar-se o amor e a bondade na sua pureza e auten­
ticidade. Tôda a ênfase de Puntila é humanista. No ho­
rizonte da obra, não visível mas onipresente, espécie de
imagem sugerida pelos contornos negativos da sombra
que projeta no universo ambíguo da peça, pressente-se
um mundo mais generoso em que Puntila pode ser bom
e Matti, seu amigo.

A natol R o sen feld

23
Prólogo

(Recitado pela ordenhadora)

R espeitável público, nossa época é triste.


Sábio é quem se atormenta, tolo é quem vive em paz.
Mas como não adianta deixar de rir,
Escrevemos esta comédia
Para vos divertir.
As piadas que ouvireis nesta representação
Não foram pesadas em balanças de precisão.
Não somos usurários
Que buscam e rebuscam medidas exatas
Damos é era sacos e toneladas
como batatas.
Senhoras e senhores, apresentamos hoje
Um animal pré-histórico — o latifundiário.
Em linguagem mais simples: um proprietário
agrário.
Conheceis bem o cidadão:

25

__
Um animal pau-d’água e comilão.
Onde êle se instala, é certo,
se instala um deserto.
Desta vez, porém, êle vem vindo,
No meio de matas magníficas,
Belos rios, lagos lindos.
Mas, no cenário, nada disso pintamos
Prestai mais atenção no que falamos.
Vereis latas de leite tilintando nos bosques da Finlândia
Aldeias avermelhadas por um verão sem noite
Galos sempre acordados,
Rios que correm tépidos,
A fumaça azul subindo dos telhados
Sentados aí,
Da primeira à últim a fila,
Isso tudo vereis, espero,
Na comédia do senhor Puntila.

26
Puntila Encontra um Homem

(Sala de rejeições do Hotel do Parque


de Tavasto depois de um almôço que
durou dois dias. P u n t i l a , o J u iz e o
G arçom )

P u n t il a

Não, Frederico, a questão deve ser examinada com mais


profundidade. (O Juiz cambaleia na cadeira, dorme. Está
com pletam ente bêbado.) — Garçom, há quanto tempo
estamos aqui?

G arçom
Há dois dias, senhor Puntila.

P u n t il a
(Ao Juiz, em tom de censura.)

27
Só dois dias, ouviu? Você já se dá por vencido e f in g e
que está cansado.
E eu que pretendia falar um pouco a meu respeito, d i­
zer como me sinto só, discutir um pouco de política!
Pois sim! Ao menor empurrão, vocês caem todos como
pêras podres! É, o espírito está vivo, mas a carne é fra­
ca! Onde é que anda aquêle médico que ainda ontem
desafiava todo mundo pra beber com êle? O chefe da
estação viu quando arrastaram êle daqui, o pobre dia­
bo. Mas o chefe também, êsse, coitado, depois de uma
resistência heróica, entregou os pontos às sete da ma­
nhã. Naquela hora o farmacêutico ainda estava de pé.
Mas agora, por onde andará? E essas são — imaginem!
— as maiores autoridades da comarca! Bonito exem­
plo para o povo de Tavasto, um juiz que não agüenta
um copo bebido numa parada de caminho! Já pensou
nisso, Frederico? Um homem culto, ilustre como você,
que tôda cidade olha com admiração, que deveria ser
um modêlo para todos, um modêlo de responsabilidade
e sobretudo de resistên cia... Mas por que você não rea­
ge? Senta aqui firme, vamos, e conversa um pouco co­
migo, lamentável criatura. (Ao G a r ç o m .) — Que dia é
hoje?

G arçom

Sábado, senhor Puntila.

P u n t il a

Como sábado? Devia ser sexta!

G arçom

Desculpe, mas é sábado, senhor Puntila.

28
PUNTILA

^ está me contradizendo? Bonito garçom! Já vi tudo:


te u objetivo é espantar os fregueses para que não voltem
iiiais — daí essa insolência! Olha aqui, me traz outra
a g u a r d e n t e e limpa bem o ouvido pra não confundir
tudo d e nôvo: eu disse uma aguardente e uma sexta-
feira, compreendeu?

G arçom

E n te n d i, senhor Puntila.

P u n t il a
(Ao Jm z.)
Acorda, ô veadão! Não me deixa assim sozinho! Capitu­
lar dessa maneira diante de duas garrafas de bebida! Se
embriagou com o cheiro! Se escondeu no fundo do bar­
co enquanto eu remava neste mar de álcool, neste ocea­
no — velhaco! — e mal se arrisca a botar o nariz de fora.
Que vergonha! Olha só: agora eu vou me aventurar no
líquido elemento. (Sobe à mesa e “cam inha sôbre as
águas”) — e caminho, caminho na aguardente. . . e
afundo, por acaso afundo? (Descobre M a t t i , o cliojer,
que está parado na entrada, já há algum tem po.)
Quem é você?

M atti

Seu chofer, senhor Puntila.

P u n t il a
(Desconfiado.)
Você é o quê? Repete!

29
M atti

O seu chofer, senhor Puntila.

P u n t il a

Assim, sem mais nem menos? Isso qualquer um pode


dizer.
Eu não te conheço.

M atti

Talvez porque o senhor não olhou bem para minha cara.


Estou com o senhor só há um mês e meio.

P u n t il a

E agora, de onde é que você veio?

M atti

Aí de fora. Há dois dias que estou esperando no carro.

P u n t il a

Que carro?

M atti

O seu carro — o Studebaker.

P u n t il a

Engraçado! Você pode provar?

30
M atti

jíão. Só vim avisar que não tenho a intenção de espe-


rar nem um minuto a mais. Agüentei até agora. Mas
não se pode tratar um homem assim.

P u n t il a

Que coisa quer dizer um homem? Agora mesmo você


disse que era um chofer. Você tem de admitir que eu te
peguei numa contradição.

M atti

O senhor já vai ver se eu sou um homem ou não. Nin­


guém vai me tratar como um cachorro, Sr. Puntila! E
não pretendo ficar ali fora a vida inteira até que o se­
nhor se digne a sair.

P u n t il a
Você já disse antes que não ia agüentar. Está se repe­
tindo. Pode ir.

M atti

Já vou. É só me pagar os 175 marcos que me deve. A


carteira eu vou apanhar lá em Puntila.

P u n t il a

Eu conheço essa voz! (Gira em volta de M atti , exami-


nando-o como a um animal estranho.) — É uma voz
de homem! Senta e bebe um copo de aguardente aqui
comigo.
Nós dois precisamos nos conhecer.

31
G arçom
(Entrando com um tabuleiro cheio de copos.)
Aqui está a aguardente, Sr. Puntila, e hoje é sexta-feira.

Agora sim! (Indicando M a t t i J — Um amigo meu.

1 Ah, você é chofer? Eu sempre digo que é viajando que


se conhece as pessoas mais interessantes. (Põe dois co­
pos na mão dêle.)

Eu não sei se vou beber êsse negócio, Sr. Puntila.


Ainda não percebi bem quais são suas intenções.

r ■

Eu já vi tudo. Você é um homem desconfiado. Aliás, é

11 razoável. A gente nunca deve sentar numa mesa com


estranhos. Imagina: é só você fechar um ôlho e te levam
tudo, da cabeça aos pés. Eu sou o grande proprietário
Puntila de Lammi, um homem honrado — tenho no­
venta vacas. Comigo você pode beber tranqüilo, irmão.

Eu sou Matti Altonem: muito prazer em conhecê-lo.


(Em dois tempos bebe os dois copos.)
PUNTILA

O p razer é todo meu. Viu que bom coração eu tenho?


Uma vez apanhei um caramujo no meio da rua e tom ei
co lo c á -lo no jardim para evitar que o amassassem.
L em brando bem fui até mais exagerado. Coloquei-o no
alto de um bambu para êle ficar bem seguro. Você tam ­
bém tem bom coração, se vê logo. Olha, o que eu não
suporto são êsses tipos que escrevem eu com e maiús­
culo. Essa gente merece chicote. Conheço uns proprie­
tários que pesam cada prato de comida que dão aos
empregados. Se dependesse de mim o meu pessoal comia
carne assada o ano inteiro. Êles também são sêres hu­
manos e gostam de comer bem, c o m o ... eu. Estão no
seu direito, você não acha?

M atti

Acho.

PUNTILA

Oh, Matti, é verdade mesmo que eu deixei você esperan­


do lá fora tanto tempo? Isso não se faz; você não sabe
como essas coisas me deprimem. Olha, se eu fizer isso
outra vez, você pega a chave inglêsa e me arrebenta a
cabeça.
Matti, você é meu amigo?

M atti
Não.

PUNTILA
Muito obrigado. Eu sabia. Matti, olhe bem pra mim:
Que é que você vê?

33

M atti

Um pedaço de imbecil gordo e embriagado.

P u n t il a

Vê como as aparências enganam? Não sou nada disso.


Matti, eu sou um homem doente.

M atti
Muito doente.

P u n t il a

Me agrada que você perceba. Nem todo mundo é capaz


de perceber. Ao me ver assim, ninguém diria. (Trágico.)
— Eu tenho ataques, sabe?

M atti

É mesmo, Sr. Puntila?

P u n t il a

Você acha que estou brincando? Tenho ataques, sim!


Acordo e percebo, de repente, que estou sóbrio! Fresco
como um pé de alface. Que é que você acha — é grave?

M atti

São muito comuns êsses seus ataques de frescura?

P u n t il a
Uma vez por mês. O resto do tempo sou perfeitamente
normal, como agora. Isto é, me sinto completamente

34
ihor de tôdas as minhas faculdades, com absoluto do-
seínio de mim mesmo. E, de repente, me vem o ataque,
o primeiro sintoma é uma estranha perturbação na
vista. Pego dois garf°s (Pega um só.) — e só vejo um.

M atti

Fica vesgo?

PUNTILA

Não, vejo só a metade do mundo — mas o pior é que


durante êsses ataques de lucidez total e desvairada, eu
desço ao nível de um animal, não conheço mais nenhum
freio. E quando fico nesse estado, meu irmão, ninguém
pode me acusar de nada do que eu faço — pois me torno
completamente responsável pelos meus atos. (Pertur­
bado.) Você sabe, irmão, o que é que significa ser res­
ponsável pelos próprios atos? Um indivíduo responsável
é capaz de tudo. Por exemplo, é capaz de esquecer o
bem dos próprios filhos, não tem mais amigos, fica mes­
mo disposto a caminhar sôbre o próprio cadáver. Isso
acontece exatamente porque, como dizem os advogados,
é responsável pelas próprias ações.

M atti

E não faz nada contra êsses ataques?

P u n t il a

Faço o que posso, irmão! O que é humanamente pos­


sível fazer! (bebe.) — Mas que adianta? Voltam da
mesma maneira! Veja, por exemplo, como fui abjeto
c°m você que é, evidentemente, uma maravilha de ho-
meni. Taí, pega êsse belo pedaço de carne! Eu gostaria

35
de saber que acaso admirável fêz com que eu te encon­
trasse. Como é que você veio parar no meu serviço?-
diz!

M atti

Perdi o emprêgo que tinha antes. Mas não foi por cul­
pa minha.

PUNTILA

Como foi?

M atti

Eu via fantasmas!

PUNTILA

Verdadeiros?

M atti
(Dando de ombros.)
Foi na fazenda de um certo Dr. Peppman. Ninguém
jamais tinha ouvido falar que havia fantasmas lá em­
baixo. Antes da minha chegada, fantasma era coisa
que não existia ali. Mas se o senhor me perguntar a ra­
zão, eu posso dizer-lhe que os fantasmas foram conse­
qüência da péssima comida. Pois todo mundo sabe que,
quando a massa de farinha vira um bôlo no estômago,
a gente começa a ter pesadelos e a atrair os íncubos.
E eu então, que sou tão sensível a uma boa cozinha,
sofro demais com uma cozinha ruim. Pensei em ir em­
bora logo, mas não tinha pra onde e estava com a moral
muito baixa; então comecei a freqüentar a cozinha e a
fazer uns comentários meio enviesados. Não se passou

36
tempo e as ajudantes de cozinheira começaram a
Díl1!1cabeças de meninos fincadas na cêrca do quintal;
velP mandaram. Logo depois era uma bola cinzenta que
6 i iva da estrebaria; quando a gente pegava tinha olhos
febôca, como um homem. Quando eu contei isso à go-
eernante, ela teve uma coisa! E a arrumadeira também
foi embora quando eu disse a ela que às onze da noite,
lá perto do banheiro, eu tinha visto um homem andando
com a cabeça em baixo do braço e até parou e me pe­
diu fogo pro cachimbo. Foi aí que o Dr. Peppman co­
meçou a ficar irritado dizendo que a culpa era minha,
que eu é que fazia todo o pessoal ir embora, que na fa­
zenda dêle não tinha nenhum fantasma. Ah, não ti­
nha? Estava redondamente enganado, foi o que lhe res­
pondi. Durante duas noites seguidas, enquanto a m u­
lher do Dr. Peppman estava na maternidade esperando
criança, eu tinha visto, com meus próprios olhos, um
espectro branco saindo da janela da governante e en­
trando de mansinho no quarto dêle! Aí, de mêdo, o Dr.
Peppman perdeu a respiração. Me despediu ali mesmo.
Porém, na hora de ir embora, eu disse o que queria: se
êle pretendia que os espíritos o deixassem em paz devia
tomar mais cuidado com a cozinha porque os espíritos
detestam o fedor de carne estragada.

P u n t il a

Compreendo. Você deixou o emprêgo porque êles eram


miseráveis com tua comida. Isso de você querer comer
bem, em absoluto não te diminui a meus olhos — des­
de que você guie bem o meu trator, não seja indiscipli­
nado, e saiba dar a Puntila o que é de Puntila. Assim
tudo irá bem entre nós. Qualquer um pode conviver
com Puntila.

(Canta. ) :

Você brigar comigo é um aperitivo


Pra ir pra cama com aquêle objetivo.

37
Com que prazer Puntila iria para a floresta derrubar
bétulas, limpar os campos e guiar o trator! Mas me
deixam, por acaso? Me botaram um colarinho duro que
eu não posso nem virar o queixo! Não fica bem que o
papai trate da terra, não fica bem que o papai boline
as môças, não fica bem o papai tomar café com os em­
pregados! Mas agora se acabou êsse “não fica bem”.
Viajo para Kurguela, dou m inha filha como noiva ao
attaché, e aí posso me sentar em mangas de camisas
com quem quiser, sem dar satisfação a ninguém. Me
deito com madame Klinckmann e pronto. E a vocês au­
mento imediatamente a diária, pois o mundo é grande
e eu tenho terras e matas que chegam para vocês e
chegam também para Puntila.

M atti
(Ri forte e prolongadamente: depois se levanta.)
Muito bem, muito bem. Agora calma e vamos acordar
o juiz.
Mas cuidado, pelo amor de Deus; se se assusta nos dá
pelo menos trinta anos de cadeia.

P u n t il a
(Detendo M atti J
Quero estar certo de que não existe nenhum abismo en­
tre nós dois. Diz, Matti: “Não existe êsse abismo.”

M atti

Se o senhor manda, Sr. Puntila, não existe êsse abismo.

P u n t il a

Agora me aconselha um pouco, irmão; precisamos fa­


lar de dinheiro.

38
M atti

É claro!
PUNTILA

Ulas é tão vulgar falar de dinheiro.

M atti

E n tão n ã o falamos de dinheiro.

P u n t il a

E n g a n o teu, devemos falar. Por que, pergunto eu, não


p od em os ser vulgares? Somos ou não somos homens
livres?

M atti

Não somos.

P u n t il a

Pois então? Como homens livres, podemos fazer o que


bem entendemos. Portanto, vamos falar de dinheiro.
Tenho que arranjar um dote pra minha filha única, por
isso é que saí por aí. Nesse momento é preciso ser frio,
calculista e bêbado como um côrno. Vejo duas possibili­
dades — ou vender um bosque ou vender-me a mim
mesmo. O que é que você me aconselha?
I, i t vis
M atti

Eu não me venderia, se tivesse um bosque.

P u n t il a
° que é que você está dizendo, meu irmão? Você sabe

39
lá o que é um bosque? Um bosque para você significa
apenas cinqüenta mil alqueires de madeira ou é também
uma verde delícia para os olhos? E você quer vender
uma verde delícia para os olhos? Te envergonha!

M atti

Então vendemos a outra coisa?

P u n t il a

Tu quoque, Brutus? Você quer que eu me venda?

M atti

Para comêço de conversa, quem é que ia comprar?

P u n t il a
Madame Klinckmann.

M a tti

Quem? A tia do attaché?

P u n t il a
Essa mesma. Tem um fraco por mim.

M atti

E pretende vender o seu corpo àquela dona? É espan­


toso, Sr. Puntila!

P u n t il a

Por que, espantoso? Mas então, a liberdade, irmão?


Eu me sacrifico. Que coisa sou eu?

40
M atti

Boa pergunta. Que coisa é o senhor?


(O Juiz desperta e, com a mão, procura sôbre a mesa
u m a campainha imaginária.)

Juiz
Silêncio na sala!

PUNTILA

Dorme e por isso pensa que está no tribunal. Irmão,


acho que agora você colocou o dilema: o que vale mais
_ um bosque como o meu ou um homem como eu.
Você é magnífico! Tá, toma a minha carteira, paga a
conta e guarda depois, senão eu perco. (Apontando o
JUIZ.) — Tira êle daí, leva pra fora! Eu perco tudo, se­
ria melhor não possuir nada. Não te esqueças nunca:
o dinheiro fede; (M atti carrega o Juiz nas costas)
— Êsse é o meu sonho; não possuir nada. Assim podía­
mos andar pela nossa bela Finlândia a pé, ou usando
um automovinho de dois lugares. Ninguém ia nos ne­
gar uma gôta de gasolina; e quando estivéssemos can­
sados entrávamos num a pousada como esta e metíamos
um copinho depois que talvez nos tivessem obrigado a
rachar alguma len h a . . . um trabalho que você era ca­
paz de fazer com a mão esquerda. (Saem. Fecha-se a
cortina.)

Cozinh eira

(Entra no proscênio com um balde e vassourão, e


canta.)

Durante quase três dias


Puntila se embriagou

41
E quando enfim foi embora
o garçom nem cumprimentou
“ô vagabundo e ladrão,
não lhe deram educação?”
“Já viu pessoa educada
depois de andar três dias
com uma unha encravada?”

42
Puntila é Maltratado

(Pátio da propriedade em Kurguela. E va


espera o pai e, enquanto isso, come cho­
colate. O A ttaché , de ((robe-de-cham-
bre”, aparece no alto da escada. É m ui­
to tarde.)

A ttaché

Telefonei outra vez tentando localizá-lo. Na Praça da


Igreja passou um carro com dois homens cacarejando.

E va

São êles. O que tem de bom é que meu pai eu o reco-


nheço no vôo. Quando se fala dêle eu sei logo que é
dêle que se fala. Quando alguém corre com um chicote
atrás de um empregado ou dá um automóvel de presen­
te a uma viúva, eu sei logo: é meu pai.
A t ta c h é

Tenho horror de escândalo. Enfim, aqui, pelo menos,


não estamos na fazenda. Não tenho a menor inclinação
por números, nem vontade alguma de saber quantos li­
tros de leite foram distribuídos na cidade. Aliás, leite
eu nem bebo. Mas para escândalo eu tenho uma sensi­
bilidade única. Assim que o attaché da Embaixada de
Londres, depois de engolir oito conhaques um atrás do
outro, gritou para o outro lado da sala que a duquesa
de Catrumple era uma prostituta; eu o preveni imedia­
tam ente que ia haver um escândalo. E dito e feito.
(Buzina e freios.) — Acho que são êles.

E va

Mme. Klinckmann deve estar muito aborrecida de espe­


rar três dias pelos convidados.

A ttaché

Ah, titia não fica aborrecida muito tempo. Olha, Eva,


estou um pouquinho cansado; gostaria de recolher-me.
Espero que saberá desculpar-me. (Sai rapidamente. De
fora vem o barulho de um portão arrancado dos gonzos.
P u n t il a penetra no vestíbulo com o “Studebaker”. No
fundo do carro, o Juiz e M a t t i . O Juiz com pletam ente
apagado.)

E va

Papai!

P u n t il a

Chegamos, filha. Nada de cerimônias, Eva, não vá acor­


dar ninguém; bebamos ainda uma garrafinha aqui en­
tre nós e depois eu falo com Mme. Klinckmann. Matti,

44
pega a minha mala. Como vê, viemos a tôda pressa
porque eu sabia que você estava nos esperando. Me diz,
você se divertiu?
(Tira o capote, deixa-o cair no chão e sai.)

E va

Mme. Klinckmann já está esperando por vocês há três


dias.

Juiz
Mas Puntila me disse que o sobrinho dela estava aqui
te fazendo companhia. (P u n t il a , ajudado por M atti ,
desce uma mala.)

P u n t il a

Pois é, eu fiquei tranqüilo sabendo que o attach é estava


contigo. Pelo menos havia alguém te fazendo compa­
nhia durante a m inha ausência. Cuidado com a mala,
Matti, não vá acontecer um acidente. (Com infinita
precaução pousa a mala e abre.)

E va

Papai, você é um desastre. Eu morro de tédio aqui. Há


uma semana que estou nesta casa sozinha, com o a tta ­
ché, a tia dêle, e um romance sem capa.

Juiz
Você por acaso não brigou com o attaché? Está se la­
mentando de ter ficado sozinha com êle?

45
E va

Ah, eu não sei nada. Como é que alguém pode brigar


com aquilo?

Juiz
Puntila, parece-me que Eva não demonstra o menor in-
terêsse pela situação. Com o attaché diz que não con­
segue nem brigar! Isso me recorda uma causa de divór­
cio em que a mulher se queixava do marido não lhe ter
dado umas boas bofetadas quando ela atirou um aba­
jur na cabeça dêle! Tinha ficado profundamente hum i­
lhada com a indiferença; assim dizia.

P u n t il a

Está aí; mais uma vez tudo saiu bem. Quando Puntila
se mete num a coisa a coisa sempre sai bem. O quê?
Você não está contente? Deixa êle comigo, aquêle ali.
Sabe o que te digo? Manda êsse attaché andar. Isso
nem homem é. (M atti dá risadinhas cheias de malig­
na satisfação.)

E va

E u disse apenas que ninguém pode se divertir sozinha


com o attaché.

P u n t il a

Mas é o que eu digo também! Pega o Matti aí; com


êle tôdas se divertem.

E va
Ah, papai, você é impossível! (Para M a t t i .) — Apanha
essa mala e leva para cima.

46
PUNTILA

Calma! Calma por favor! Primeiro deixa eu tirar uma


ou duas garrafas. Ainda quero beber um gole enquanto
discuto com você se êsse attaché embrulha ou não em­
brulha o meu estômago. Você pelo menos acertou o noi­
vado com êle?

E va

Não. Nem falamos nisso. (A M a t t i .) — Não abra essa


mala!

P u n t il a

Como? Não combinou o noivado? Em três dias? Mas


que foi que você fêz? Eu te disse que êsse tipo não me
agrada. Eu, pra noivar, preciso só três minutos. Olha,
vai lá em cima e chama êle; eu vou buscar uma das
môças da cozinha pra êle ver como se faz um noivado
relâmpago. E tira fora uma garrafa de Borgonha. Não,
melhor um licor.

E va

Não, acabou, você não bebe mais, papai. ( 4 M a t t i .)


— Leva a mala pro meu quarto lá em cima, o segundo
à direita.

P u n t il a
(Alarmado enquanto M atti levanta a mala.)
Ah, Eva, isso não é coisa que se faça — não é delicado.
Você não pode deixar seu pai morrer de sêde! Eu te
prometo que vou esvaziar só uma garrafa, com tranqüi­
lidade e sabedoria; convido apenas a arrumadeira ou
a cozinheira. E Frederico, naturalmente, o pobrezinho
também está morrendo de sêde! Fica humana, filhinha!

47
E va

Estou em pé até agora exatamente para impedir que


você acorde os empregados.

P u n t il a

Eu estou convencido de que Mme. Klinckmann — por


falar nisso, onde está ela? — ficará um pouco aqui co­
migo, com muito prazer. Frederico está cansado — pode
ir-se deitar. Eu vou trocar umas palavrinhas com Mme.
Klinckmann, o que, aliás, era m inha intenção desde que
cheguei — ah, sempre tivemos um fraco um pelo outro.

E va

E u o aconselho a esperar um pouco mais. Mme. Klinck­


mann já está bem furiosa de ter esperado três dias:
acho que amanhã de manhã você não vai conseguir nem
a honra de vê-la.

P u n t il a

Eu vou lá bater no quarto dela e resolvo tudo. Eu sei


como é que se trata uma mulher; essas coisas, Eva, é
natural — você não pode saber.

E va

Sei, pelo menos, que nenhuma mulher vai querer ficar


com você nesse estado. (A M a t t i .) — Já não lhe disse
para levar a mala? Você acha pouco três dias de atraso?

P u n t il a

Eva, seja razoável. Se você não quer mesmo que eu


suba pro quarto de Mme. Klinckmann, então me chame
aquela gordinha engraçadinha, aquela pequenininha,

48
eu acho que é a governante, não é não? Eu discuto a
coisa com ela e dá no mesmo.

E va

papai, não exagera, ou eu mesma subo com a mala e


quando chegar lá em cima deixo ela rolar pela escada
sem querer.

P u n t il a

(Aterrorizado, êle pára; M atti leva a mala; E va o se­


gue lentam ente. Com voz de rei Lear.) — Vejam como
uma filha trata o próprio pai! (Torna a subir no auto­
móvel.)
— Frederico, a bordo, vamos!

Juiz
Que é que você quer?

P u n t il a

Quero ir-me embora daqui para sempre, isto não me


agrada. Vê, sofro um acidente no terror da noite, as­
sim mesmo faço tudo para chegar na hora e olha como
me tratam. Ah, Frederico, isso me faz lembrar o filho
pródigo: já imaginou o que seria da história se quando
êle voltasse, em vez de um vitelo gordo e fumegante a
família lhe tivesse dado uma esculhambação?
Eu vou-me embora.

J u iz
Pra onde?

49
PUNTILA

Quanta pergunta! Que curiosidade! Você não viu que


minha própria filha me proíbe um cálice de álcool? Não
compreende que agora eu tenho de me embrenhar na
noite em busca de alguém que me faça a caridade de
uma ou duas garrafas?

Juiz
Raciocine um pouco, Puntila. Onde é que você vai en­
contrar bebida alcoólica às duas e meia da manhã? A
venda de álcool sem receita médica é proibida.

P u n t il a

Ah, você também me abandona? E ainda duvida do meu


prestígio — eu não vou conseguir bebida sem receita
médica! Pois eu vou te ensinar como se consegue be­
bida legal a qualquer hora do dia ou da noite.

E va
(Aparecendo no alto da escada.)
Papai, desce daí dêsse automóvel imediatamente.

P u n t il a

Fica boazinha, Eva, e honra teu pai e tua mãe se queres


viver muito tempo nesta terra. Que droga de casa! Têm
o costume de deixar as tripas dos convidados secando
na corda. E eu vou ficar sem mulher? Você vai ver se
fico ou se não fico! Pode ir dizer a essa Klinckmann
que desisto da companhia dela! Pra mim ela é como
a virgem louca — não tem óleo na lâmpada! E agora,
pé na tábua: o chão vai tremer de pavor! Tôdas as
curvas do caminho vão ficar retas de mêdo! (Sai vio­
lentam ente em marcha-à-ré.)
E va
(Descendo a escada, a M a t t i .)

F az êle p a ra r! Faz êle parar, eu disse!

M atti
(Aparecendo atrás dela.)
A gora é tarde. Corre como um louco!

Juiz
B em , a c h o que não vou esperar. Já não sou tão jovem
q u a n to fui um dia. Fica em paz, Eva, não vai aconte­
cer n a d a : teu pai tem uma sorte sem-vergonha. Por
ía vor, o n d e é o meu quarto? (Sobe.)

E va

O terceiro à direita, lá em cima. (A M a t t i .) — Nós dois


tem o s q u e ficar aqui montando guarda para evitar que
êle beb a com as empregadas ou caia noutras intimida-
des.

M atti
(Que procura uma posição cômoda.)
Ah, sim, intimidade demais é sempre perigoso. Uma vez
eu trabalhava numa fábrica de papel e o porteiro pediu
demissão porque o diretor lhe perguntou como o filho
ia passando.

E va

Muita gente se aproveita dessas fraquezas de meu pai.


Êle é bom demais.
M atti

é verdade, os momentos em que se embriaga são a fe­


licidade para quem trabalha com êle. Vira um homem
formidável, só vê no mundo camundongos brancos e
fica com vontade de fazer carinho nêles, de tão bom
que fica. Ah, êle é tão bom!

E va

Não me agrada nada ouvir você falar assim de seu pa­


trão. Espero que não tome ao pé da letra tudo que êle diz.
Sobretudo com respeito ao attaché. Não quero que ande
por aí repetindo as coisas que êle disse aqui de brinca­
deira.

M atti

O quê? Que o attaché não é um homem? Quanto a isso,


que coisa vem a ser um homem? — as opiniões diver­
gem. Eu, por exemplo, uma vez trabalhava numa fá­
brica de cerveja. A dona da fábrica tinha uma filha —
uma filha, sabe como é — que sempre me chamava pa­
ra levar o roupão dela no banheiro porque essa filha
era uma môça muito pudica. “Me traz o meu roupão,
M atti!” gritava ela — e eu lá ia com o roupão e en­
contrava ela completamente nua.
“Sabe, Matti, algum homem podia me ver tomando ba­
nho.”

E va

Não entendo o que você quer dizer com isso.

M atti

Eu não quero dizer nada, falo só para matar o tempo,


pra empurrar a conversa pra frente. Quando falo com

52
oS patrões eu nunca quero dizer nada, não tenho ne­
n h u m a opinião. Não se pode admitir uma coisa dessas
n o s empregados.

E va
(Depois de um a pausa.)
G o sta r ia que você soubesse que o attaché é muito bem
v isto n o s altos escalões do Ministério do Exterior e tem
u m a b ela carreira diante de si. É uma das cabeças mais
b r ilh a n te s da nova geração.

M atti

Compreendo.

E va

O que eu quis dizer, quando disse o que disse a meu pai


— na sua frente! — é que não me tinha divertido tanto
quanto o meu pai pensava. Além disso, o fato de um
homem ser ou não divertido não tem a menor impor­
tância.

M atti

Eu conheci um sujeito que ficou milionário vendendo


margarina e artigos parecidos. E não era um sujeito
divertido.

E va

Não sei porque estou lhe dando trela falando do attaché.


Nós nos conhecemos desde meninos. Acho que eu sou
uma pessoa com energia demais, sabe, por isso me abor-
ieço com tanta facilidade.

53
M atti

E então começam as dúvidas.

E va

Eu não falei em dúvidas. Não sei porque não me en­


tende. Acho que deve estar cansado. Por que não vai
dormir?

M atti

Porque estou lhe fazendo companhia.

E va

Não é preciso. O que eu tinha a lhe dizer já disse:


que o attaché é um homem inteligente e bem educado,
que não deve ser julgado nem pela aparência, nem pelo
que diz, nem pelo que faz. É cheio de atenções, lê nos
meus olhos todos os meus desejos. É incapaz da mais
leve grosseria, de abusar da minha confiança ou de
fazer qualquer exibição de virilidade. Eu gosto muito
dêle. Mas. . . você está com sono?

M atti

Fala, fala, pode continuar falando, senhorita. Se eu


fecho os olhos é pra me concentrar melhor.

CORTINA

C ozinheira
(Entra com um pano de limpeza e uma pàzinha.
Canta.)

54
A filha do patrão leu um livro imoral
E agora diz ser intelectual
Encontrando um empregado
Olhou-o bem no rosto
e perguntou com enfado:
“É verdade que apesar de chofer
Você também, é homem, quando quer?”

55
As Noivas Matinais do Sr. Puntila

(Alvorecer na vila. Casinhas de madeira.


Numa está escrito: C o r r e io . Noutra, V e ­
t e r in á r io . Noutra, S e m e n t e s e E r v a s .
No meio da praça, um poste telegráfico.
P u n t il a bate com o Studebaker no poste
e o ofende violentam ente:)

P u n t il a

Via livre! Esta não é a auto-estrada de Tavasto!? Sai


da frente, porcaria de poste — que ousadia, interromper
dessa maneira o caminho de Puntila! Quem é você?
Você tem um bosque? Tem noventa vacas? E então,
como se permite en tã o ? ... Para trás! Se der mais um
passo vai se arrepender amargamente: chamo a polícia
e mando te prender como subversivo. (Desce do carro.)
— Ah, insiste em não sair, hein? (Vai até uma das ca-
sas e bate à janela. E m a , a contrabandista, espreita m e-
drosamente.) — Bom dia, linda senhora, passou bem a

57
/
/
noite? Preciso que me faça um pequeno favor. Eu sou
o grande proprietário Puntila de Lammi, e me encontro
numa situação verdadeiramente dolorosa: minhas vacas
estão com escarlatina. Por isso tenho necessidade abso­
luta de comprar álcool legítimo. Poderia a bela jovem
me dizer onde mora o veterinário? Eu derrubo a ponta­
pé a merda dêsse barracão se você não me disser logo
onde êle mora, tá ouvindo?

Ema

Meu Deus! O senhor está muito exaltado! A casa do


veterinário é aquela ali. Mas se não o entendi mal, o
senhor está precisando de álcool. E álcool eu tenho,
álcool bom, álcool forte. Eu mesma faço.

P u n t il a

Sai da m inha frente, perdida! Você tem a audácia de


me oferecer seu álcool ilegal? Você não sabe que eu só
bebo álcool permitido pela lei? Que o outro nem me
passa pela garganta? Antes a morte do que desrespeitar
as leis de meu país. Sou um escravo da lei. Quando
preciso mandar espancar alguém ou o faço de acôrdo
com o código penal ou não o faço.

Ema

Meu caro senhor, quer saber de uma coisa? V á para o


diabo que o carregue com suas leis! (Desaparece. P u n ­
t il a corre à casa do V e t e r in á r io e toca. O V e t e r in á r io
surge.)

P u n t il a

Veterinário, veterinário, afinal te peguei. Eu sou o gran­


de proprietário Puntila de Lammi, tenho noventa vacas

58
e tôdas as noventa estão com febre aftosa. Tenho pois
neCessidade urgente de álcool autorizado.

V e t e r in á r io

penso que o amigo errou de enderêço. Acho melhor


voltar para onde veio, com a graça de Deus.

P u n t il a

Veterinário, você me decepciona. Acho até que você não


é veterinário de verdade. Senão saberia o que todos dão
a Puntila quando as vacas de Puntila estão com febre
aftosa. Não estou mentindo. Se eu dissesse que elas
estavam com câncer estaria mentindo mas quando digo
que estão com febre aftosa não é mentira — é um si­
nal secreto entre homens de bem.

V e t e r in á r io

E se eu não entender o sinal?

P u n t il a

Bem, se não entender eu me sentirei na obrigação de


avisar que Puntila é o mais terrível samurai de tôda
esta região. Já tem três veterinários na consciência.
Sôbre êle até existe uma canção popular. Isso o ajuda
a compreender minhas dificuldades?

V e t e r in á r io
(Rindo.)
Ajuda, ajuda. Se o senhor é realmente um homem tão
terrível, é justo que eu lhe dê uma receita. Quero ape­
nas estar certo de que é febre aftosa.
PUNTILA

Olha, veterinário, as minhas vacas estão com manchas


vermelhas dêste tamanho. Em duas delas as manchas
já estão até ficando pretas; não é a doença em sua
forma mais violenta? E depois a dor-de-cabeça que so­
frem as pobrezinhas. Ficam a noite inteira berrando
e gemendo, se virando na cama, incapazes de pensar
em outra coisa que não nos próprios pecados.

V e t e r in á r io

Neste caso é meu dever fornecer-lhe o alívio imediata­


mente. (Escreve a receita.)

PUNTILA

A conta, manda pra Puntila, já sabe. (Corre à Farmácia


e toca a campainha violentam ente. Enquanto espera,
E m a , a contrabandista, sai do barracão.)

Ema
(Enquanto lava um a garrafa, canta.)
Era no tempo de amora
O carro veio de fora
E entrou nesta cidade
Com um homem de verdade.

(Torna a sair. Na janela aparece M a n d a , a empregada


da Farmácia.)

M anda

Hei, que é que você quer? Arrancar a campainha?

60
PUNTILA

É melhor ficar sem campainha do que sem companhia,


co m o eu. Pissi pissi pissi pissu sarará sururu. Preciso
álcool para noventa vacas, amor da minha vida. De­
pressa, meu tesouro.

M anda

Você precisa é que eu chame um guarda, isso sim.

P u n t il a

ô bonequinha. Um guarda prum homem como Puntila


de Lammi? O que adianta um guarda? Pra mim pre­
cisa pelo menos dois. Mas pra que dois guardas? Eu
quero bem aos guardas, coitados, êles têm os pés maio­
res do mundo e cinco dedos em cada pé, por quê?
Porque também amam a ordem, como eu. (Entrega a
receita.) — Aqui está, lê aí, minha pombinha — uma
lei e uma ordem. (A empregada da Farmácia vai buscar
o álcool. Enquanto isso E m a , a contrabandista, sempre
lavando a garrafa, aparece outra vez.)

Ema
(Canta.)
E fomos colhêr amoras
êle se deitou na grama
cobiçando a tôdas nós
com o seu olhar em chama.

(Torna a sair. M a n d a traz o álcool)

M anda
(Rindo.)
Olha que garrafão! Espero que consiga também alguns

61
arenques para melhorar o porre que essas vacas vão
tomar. (Entrega a garrafa.)

PUNTILA

Glu glu glu glu g l u ... Oh música fin la n d esa ... a


mais bela música do m undo. . . Meu Deus, eu ia esque­
cendo. Agora tenho o álcool mas não tenho mulher.
E você nem tem álcool nem tem homem. Linda farma­
cêutica, quer ser minha noiva?

M anda

Muito agradecida, Sr. Puntila de Lammi, mas eu, sabe,


só fico noiva de acôrdo com as regras — “anel direi-
tinho e um gole de vinho.”

P u n t il a

De acôrdo, não será isso q u e. . . O importante é que


você fique noiva, e já não é sem tempo. Que vida você
levou até agora? Me fala um pouco de você, me diz
como é que vive; pra ser teu noivo eu preciso saber
tudo.

M anda

Eu? A m inha vida é a seguinte: estudei quatro anos


e meu patrão me paga menos que à cozinheira. A me­
tade do meu ordenado eu mando para a minha mãe,
que sofre do coração. Eu também sofro, puxei a ela.
Dia sim, dia não, pego o turno da noite. A farmacêutica
vive com ciúmes porque o patrão dá em cima de mim.
O doutor tem uma letra horrível e eu uma vez troquei
as receitas. Os remédios caindo na roupa queimam
tudo e o senhor sabe o preço das fazendas. Eu não te­
nho am igos: o chefe de polícia, o gerente da cooperativa

62
e o diretor da biblioteca já são casados: portanto eu
não tenho muito com que me divertir. O senhor quer
saber? não acho a vida muito engraçada não.

PUNTILA

Está vendo? Fica com Puntila! Toma, bebe um gole.

M anda

E o anel? Se diz “anel direitinho e um gole de vinho”.

P u n t il a

ô Santo Deus! Não servem as argolas da cortina?

M anda

Quantas argolas o senhor quer? Uma só, ou várias?

P u n t il a

Muitas, uma não chega. Puntila quer muito de tudo,


sempre. Uma garôta só não tem sentido para Puntila,
você entende? (Enquanto a empregada da Farmácia vai
buscar as argolas da cortina, E m a sai de casa outra
vez.)

Ema
(Canta.)
E enquanto fermentávamos as amoras
Conosco êle brincava alegremente
e rindo ria e ria rindo
metendo o dedo no recipiente.
(Torna a entrar em casa e fica espiando da janela.)

63
(A em pregada da Farmácia dá as argolas a P u n t i l a .
Enquanto isso repete, a bocca chiusa, o tem a da
outra.)

P u n t il a
(Botando uma argola no dedo dela.)
Eu te espero na minha casa, domingo, em Puntila, às
oito horas. Vamos fazer uma grande festa de noivado.
(Êle vai andando. Passa Lisu, a ordenhadora, com um
balde na mão.) — Espera aí, minha pombinha. Eu te
quero, menina. Você me agrada. Onde vai a esta hora
da manhã?

Lisu
Tirar leite de vaca.

P u n t il a

Como, minha filha, então o balde é tudo que você bota


entre as pernas? Não quer um homenzinho para você?
Ah, mas que vida é a tua! Vem cá, me conta como é
a tua vida, menina. Você me interessa.

L is u

Minha vida é assim: me levanto às três e meia da


manhã para varrer o estábulo e limpar as vacas. Depois
tenho que ordenhar as vacas e lavar os baldes com
soda cáustica e outras porcarias que queimam as mãos.
Aí limpo o estábulo outra vez e tomo café que me dá
dor de estômago, porque é daqueles, né? Como um
pouco de pão com manteiga e tiro uma pestana. Na
hora do almôço cozinho umas batatas com salsa. Cárne
eu não vejo nunca. De vez em quando a patroa me
dá um ôvo de presente ou eu acho algum no mato.

64
Depois eu torno a varrer o estábulo, tiro mais leite das
vacas, torno a lavar os baldes. Minha obrigação é or­
denhar cento e vinte litros de leite por dia. De noite
como pão com leite. Me dão dois litros de leite por dia,
mas as outras coisas eu tenho que comprar na fazen­
da. De cinco em cinco domingos eu tenho um dia inteiro
livre, de noite vou dançar; às vêzes me dou mal e faço
um filho. Tenho dois vestidos. Também tenho uma bi­
cicleta.

PUNTILA

E eu tenho uma fábrica inteira, um moinho a vapor,


uma serraria e não tenho mulher. Que é que você diz,
minha franguinha? Está aqui o anel, bebe um gole ali
e estamos noivos de acôrdo com tôdas as regras. Você
também já sabe; domingo às oito, lá em casa, em Pun-
tila. De acôrdo?

Lisu
De acôrdo.

P u n t il a
(Continuando a andar.)
Em frente, em frente, a caminho da cidade. Não agüen­
to a curiosidade de saber quem é que já está de pé a
esta hora da manhã. As mulheres são irresistíveis e esta
hora: acabaram de sair da cama, ainda estão com os
olhos brilhantes e pecam inosos. . . e em volta, o mundo
ainda é tão jovem, (chega à Central Telefônica. S a n d r a ,
a telefonista, está saindo.) — Bom-dia, ó deusa da vi­
gília. Mulher onisciente, que sabe tudo através dos fios
mágicos da telefonia. Bom-dia a ti, minha pomba-rôla.

65
S andra

Bom-dia, Sr. Puntila. O senhor tão cedo? Que acon­


teceu?
P u n t il a

Então não sabe? Procuro espôsa.

S andra

Ah, é o senhor? Eu procurei pelo senhor a noite inteira.

P u n t il a

Sim, você sabe tudo. E passa a noite inteira acordada,


em vigília pela cidade. Me diz aqui — que vida você
leva?

S an d r a

Já lhe digo: minha vida é a seguinte: ganho cinqüenta


marcos mas há trinta anos que não saio do escritório.
Atrás do escritório tenho um terreninho onde planto
batatas, dava para mim viver, já não dá porque agora
eu tenho que pagar o meu almôço e o café está cada
vez mais caro. Eu sei tudo que acontece na cidade e
mesmo no estrangeiro. O senhor ficaria espantado se
soubesse o que eu sei. Por isso é que até agora não
casei. Sou secretária do Clube dos Trabalhadores, meu
pai era sapateiro. Ligar e desligar linhas de telefone,
fazer purê de batatas e saber tudo, essa é a minha vida,
Sr. Puntila.

P u n t il a

Pois é hora de mudarmos de vida! E depressa. Telefone


imediatamente ao escritório central e comunica ao di-

66
tor que você vai se casar com Puntila de Lammi. Aqui
*stá o anel, aqui está a bebida, aqui está tudo de acor­
do com as regras, e domingo às oito, já sabe, lá em casa.

S andra
(Rindo.)
E starei lá sem falta. Já sei que domingo é a festa de
n oivad o de sua filha.

P u n t il a
(Para E m a , a contrabandista.)
Como vê, c a r a s e n h o r a , e s t o u n o iv a n d o a q u i d e f o r m a
coletiv a ; e s p e r o q u e a s e n h o r a m e d ê o p r a z e r d e c o m ­
parecer t a m b é m . (Ela estende o dedo; P u n t i l a coloca
a argola.)

As Q ua tr o
(Cantam.)
Quando acabamos de comer
O homem já tinha ido embora
Mas até hoje ainda esperamos
E achamos que êle não demora

P u n t il a

Está tudo bem. Agora posso voltar a correr com meu


carrinho, atravesso os pinhais, atravesso a floresta e
ainda chego a tempo no Mercado dos Trabalhadores.
Choc c7.oc choc choc choc choc chic chic chic chic. Um
viva ? j filhas desta terra abençoada, a vós que, durante
anos e anos, vos levantastes em vão com a alvorada. Mas
Puntila chegou para vos fazer ditosas. Vinde a mim, vós
tôdas que acendeis o fogo das matinas fazendo o fumo
subir pelos telhados, brilhante à luz do dia. Vinde tôdas,
de pés nus; a erva fresca da manhã conhece os vossos
pés: Puntila também vai conhecê-los!

CORTINA

C o zinheira
(Como antes, mas agora com uma tigela de louça e uma
colher batendo massa.)

Quando Puntila foi passear


Viu uma camponesinha madrugadora,
“ó Bela”, disse, “do peito arfante
aonde levas — quero ajudar-te —
tua beleza, que é tão tocante?
Será que acaso
sais ainda escuro
de tua barraca
para ordenhar minha vaca?
Por mim, ó bela,
nunca te levantes de teu leito;
eu deito.”
O Mercado dos Trabalhadores

(O Mercado dos Trabalhadores, na Praça


do Burgo de Lammi. P u n t i l a e M a t t i
escolhem mão-de-obra. Música de feira,
m uitas vozes.)

Ç
\

P u n t il a

Já achei demais você me deixar sair sozinho de casa;


porém é ainda mais imperdoável que você não tenha
ficado me esperando, me obrigando a te arrancar da
cama pra me trazer ao Mercado dos Trabalhadores.
Fazes como os Apóstolos, no Monte das Oliveiras. Agora
eu sei que tenho de ficar de ôlho em você. Basta eu
beber um copo a mais que você se aproveita pra tomar
as suas liberdades.

M atti

E» Sr. Puntila.
PUNTILA

Eu não quero brigar com você, que isso me repugna.


Falo pro teu bem, não me leve a mal, me compreenda.
Se começa com um pequeno descuido e se termina na
cadeia. Um empregado que espuma de inveja diante
da comida do patrão, é intolerável! Agora, um empre­
gado que trabalha, é outra coisa. Porém, se fica exigin­
do horas de repouso e pedaços de carne assada do ta ­
manho de tampas de privada, cai logo em nosso desa­
grado e temos de lhe mostrar o ôlho da rua! Mas é
evidente que você não vai se arriscar a isso.

M atti

Não vou não, Sr. Puntila. Eu li uma vez no Correio de


Helsinki, no suplemento dos domingos, que a humildade
é uma prova de educação. Quando se é discreto, quando
se domina a paixão, se vai longe. Dizem que Kotilai-
nem, o proprietário das três fábricas de papel, é a mo­
déstia em pessoa. E se nós começarmos a escolher antes
que nos levem os melhores?

P u n t il a

Eu quero uns bem fortes. (Examina um latagão.) —


Êsse daí não é mau, tem uns bons costados. Mas os
pés não me agradam; você deve gostar muito de ficar
sentado, hein? Tem os braços do mesmo tam anho da­
quele ali que é muito menor: olha êsse outro como
tem os braços compridos! (Ao baixinho.) Você é bom
trabalhador de campo?

O G ordo

O senhor não vê que eu estou tratando com êsse ho­


mem?
PUNTILA

j também estou tratando com êle e peço-lhe o favor


de não me incomodar!

O G ordo

Eu incomodo?

PUNTILA

Não me venha com perguntas insolentes! Tenho horror


disso! (Ao T r a b a lh a d o r .) — Em Puntila eu pago meio
marco por metro de turfa. Pode se apresentar segunda-
feira. Como é o teu nome?

O G ordo

Mas que grosseria! Eu estou combinando a maneira de


alojar êsse homem com a família e o senhor vem pescar
nas minhas águas. Há pessoas que não deviam ser ad­
mitidas no Mercado.

P u n t il a

Ah, você tem família? Eu dou trabalho a todo mundo.


Tua mulher é forte? Pode trabalhar no campo? Quantos
filhos você tem e de que idade?

T r abalhador

Três. Oito, onze e doze anos. A mais velha é uma


menina.

P u n t il a

Vai trabalhar na cozinha. Dir-se-ia que vocês foram


feitos pra mim. (A M a t t i , de modo que o G ordo ouça)

71
— Você vê como se comportam certas pessoas hoje em
dia?

M atti

Isso me deixa irritadíssimo.

, T rabalhador

E o alojamento?

P u n t il a

Principesco! Vou examinar tua carteira no café. M e


espera lá no muro. (A M a t t i J — Aquêle outro lá eu
vou levar por causa dos costados, mas está com uma
calça muito boa; se fôsse bom trabalhador já a tinha
rasgado. É preciso sempre prestar m uita atenção nas
roupas dêles. Muito boas, é porque não querem estra­
gá-las trabalhando; muito ruins, são desleixados. Uma
olhada e a gente julga um trabalhador. A idade pra
mim, não importa; às vêzes um velho até trabalha mais.
Tem mais mêdo de ser despedido. O principal, para
mim, é o homem. Basta que não seja totalm ente burro.
Os inteligentes, êsses não quero nem ver. Passam o dia
contando as horas do trabalho, ah, eu não gosto disso
— quero manter relações amistosas com o meu pessoal.
Ah, ia me esquecendo, precisava arranjar também uma
ordenhadora. Mas antes vê se encontra ainda um ou
dois trabalhadores para eu escolher. Eu vou telefonar.
(Dirige-se ao café, M a t t i fala a um T rabalhador
R u iv o .)

M atti

Estamos precisando de um homem pra trabalhar na


turfa, na propriedade de Puntila. Mas eu sou só o cho­
fer, não sei mais o que dizer; o velho foi telefonar.

72
T r a ba lh ado r R u iv o

C om o é a coisa lá?

M atti

Mais ou menos. Quatro litros de leite por dia, não é


mau. Dizem que dão também as refeições. O quarto não
é lá essas coisas.

T rabalh ado r R u iv o

E a escola fica longe? Eu tenho um guri.

M atti

Uma hora e quinze.

T rabalh ado r R u iv o

Não é muito, com bom tempo.

M atti
No verão, não é muito.

T rabalh ado r R u iv o
(Depois de uma pausa.)
Acho que vou gostar do lugar, não encontrei nada de
bom até agora e êsse troço já vai fechar.

M atti

Vou falar com êle. Vou dizer que você é humilde e que
não é teimoso; êle gosta disso. A essa altura êle já
telefonou e deve estar mais tratável. Lá vem êle.
PUNTILA
(De bom humor, saindo do café.)
Você achou alguma coisa? Me lembrei também que te­
nho de levar um pouquinho de leite, aí uns doze marcos.

M atti

Êsse aí não é mau. Me lembrei de tudo que o senhor


disse e fiz umas perguntas a êle. Sabe cuidar bem das
próprias calças mas não exagera e não vive contando
as horas de trabalho.

PUNTILA

Êle me agrada; é todo fogo, todo chama. Vou pro café,


vamos discutir.

M atti

é melhor resolver logo, Sr. Puntila, porque já vai fe­


char e a gente não encontra mais nada.

P u n t il a

Por que essa pressa? Entre amigos tudo se arranja. Eu


confio na tua escolha, Matti; estou tranqüilo. Eu te
conheço e te estimo. (A um T r a b a lh a d o r M is e r á v e l .)
— Olha, êsse daí não me parece ruim — tem um bom
aspecto. Eu preciso de gente na turfa, mas também
estou com falta de pessoal no campo. Vem, vamos con­
versar.

M atti

Sr. Puntila, não quero me meter, mas êsse daí não é


bom para o senhor; não agüenta a virada.

74
T rabalhador M iserável

yê se te manca! Não agüento o quê?

M atti

O nze horas e meia de trabalho no verão. Eu só quero


lhe evitar uma decepção, Sr. Puntila. Depois êle não
agüenta e o senhor vai ter que mandar êle embora. . .

P u n t il a

Vamos pro café! (O P r im e ir o T r a b a lh a d o r , o R u iv o


e o M is e r á v e l seguem P u n t i l a e M a t t i até a frente
do café, sentam-se num banco.) — Olá, garçom! Antes
de começar tenho que acertar um negócio com meu
amigo aqui. Matti, você deve ter notado ainda agora
que eu ia tendo um daqueles ataques, você sabe, eu te
falei. Eu teria compreendido perfeitamente se você ti­
vesse me dado uma boa surra, como eu recomendei que
fizesse sempre que me visse em tal estado. Matti, você
me perdoa? É impossível eu tratar de negócios sabendo
que existe alguma coisa entre nós dois.

M a tti

Já está tudo esquecido há muito tempo. Não pense mais


nisso. Vamos resolver logo o assunto dos contratos para
êles ficarem mais tranqüilos.

P u n t il a
(Escreve na carteira do primeiro trabalhador.)
Eu te compreendo, Matti, você me despreza. Você me
olha com asco, só admite o tom frio dos negócios. (Ao
primeiro trabalhador.) — Estou escrevendo o que com­
binamos; pra tua mulher também. Eu dou leite, fari­
nha e feijão, no inverno.
M atti

E agora o adiantamento — sem isso não há contrato.

P u n t il a

Não precisa me empurrar. Deixa eu tomar meu café


em paz. (À môça que serve.) — Deixa isso aí, ou me­
lhor, traz uma cafeteira bem grande, nós nos servimos.
A cara dessa gente! Detesto êsse Mercado de Trabalha­
dores. Quando quero comprar cavalos e vacas está bem,
eu vou ao mercado com prazer. Mas vocês — vocês,
que diabo, são homens! — É assim que se negocia
vocês, no mercado? Isso não devia ser permitido, não
é verdade?

O M ise r á v e l

é evidente.

M atti

Desculpe, Sr. Puntila, eu não concordo. Êsses daí pro­


curam trabalho, o senhor procura trabalhadores — se
negocia. Isso pode acontecer no mercado ou na igreja
— é sempre mercado. Eu gostaria que o senhor acabasse
logo.

P u n t il a

Você hoje está no seu dia pior, hein? Pra me contra­


dizer numa coisa assim tão clara. Você acha direito
ficar me examinando pra ver se eu tenho pé chato, da
mesma maneira que se examina um cavalo, abrindo
a bôca pra ver os dentes dêle?

76
M atti
(R i)
Não, ao senhor eu levo em confiança. (Falando do
Êle tem mulher e a filhinha está na escola.
r u iv o .)

P u n t il a

Ela é menina ainda? Olha, lá vem o gordo de nôvo.


Basta o jeito dêle andar pra fazer ferver o sangue dos
trabalhadores — é um andar de patrão. Aposto como
êle pertence à Guarda Nacional e obriga os empregados
a fazer ginástica todos os domingos pra lutar contra
os russos quando fôr preciso. Você não acha?

O Ruivo
Minha mulher lava. Faz mais em meio dia de trabalho
do que qualquer outra mulher num dia inteiro.

P u n t il a

Matti, eu sei que nem tudo está enterrado e esquecido


entre nós dois. Conta pra êle a história dos teus fan­
tasmas. Êles vão gostar.

M atti

Depois. Primeiro os adiantamentos. Estou lhe avisando.


Está ficando tarde. Está fazendo êles perderem tempo.

P u n t il a
(Bebe.)
Não Matti, você não vai me obrigar a ser desumano.
Eu quero me aproximar dos meus homens do ponto de
vista humano, antes de qualquer outra ligação. Pri­
meiro tenho que explicar a êles a espécie de homem
que sou, pra que êles decidam se podem conviver co­
migo. Diz a êles: que espécie de homem eu sou?

M atti

Sr. Puntila, permita que eu lhe garanta que nenhum


dêles está interessado nisso; estão interessados é num
contrato. Eu recomendo que o senhor contrate êsse daí
(m ostra o RuivoJ — êle é capaz para o serviço, o senhor
vai ver. Quanto aos outros, um conselho; apanhando
turfa vocês não vão ganhar nem pro pão dormido.

P u n t il a

Aquêle ali não é Surkala? O que é que êle está fazendo


no Mercado?

M atti

Está procurando emprêgo. O senhor prometeu ao padre


botar êle na rua porque disse que é vermelho.

P u n t il a

Quem? Surkala? Meu único empregado inteligente?


Toma, dá êsses dez marcos a êle e diz para êle vir aqui.
Vai voltar conosco no Studebaker. Amarramos a bicicle­
ta dêle na mala e não tem nada de ficar procurando
não sei o que por aí. O coitado tem quatro filhos. O que
é que vão dizer de mim? Eu quero que o padre se lasque,
é um cara desumano — nunca mais vai botar os pés
lá em casa. Surkala é um trabalhador de primeira.

M atti

Eu falo com êle agora mesmo. Não é preciso correr;


com a reputação que tem, Surkala não arranja nada.

78
£u só queria que o senhor terminasse com êsse pessoal,
lia s estou vendo que o senhor não quer nada — quer
é passar o tempo.

P u n t il a
(Sorrindo dolorosamente.)
Ah, é assim que você me julga, Matti? Sim senhor, você
não me entende nada, apesar de tôdas as oportunida­
des que lhe dei.

O Ruivo
O senhor podia assinar logo o meu contrato? Senão eu
vou procurar outra coisa enquanto é tempo.

P u n t il a

Está vendo? Você faz essa gente fugir de mim, Matti.


Com o teu temperamento tirânico você me obriga a me
comportar contra minha natureza. Mas eu hei de te
convencer de que Puntila é outra coisa. Quando eu
compro um homem eu não o faço de coração frio. Quero
que a minha propriedade seja um lar para êle. Não
estou certo?

O Ruivo
Bom, eu vou-me embora. O que eu quero é um emprêgo.

P u n t il a

Espera aí! Êle foi mesmo! Êle me servia! Eu não ia ligar


pras calças dêle — não julgo um homem pelas calças.
Não gosto é de fazer negócios quando bebo, nem que
seja um copo. Por que tratar de negócios quando a gente
sente é vontade de cantar? A vida é tão bonita. Quando
eu penso na volta, que beleza! Ao entardecer, então,

79
eu adoro esta terra! A gente vai correndo e as bétulas
vão passando. Antes vamos beber mais um copinho.
Vamos, vocês têm de beber, fiquem algres como Puntila,
eu gosto de alegria e nunca olho as despesas quando
estou com gente amiga. (R apidam ente distribui um
marco a cada um. Ao M is e r á v e l .) — Não se deixe im­
pressionar, vou te dar um bom lugar — você vai ficar
no moinho a vapor, um trabalho fácil.

M atti

Então por que não assina a carteira dêle?

P u n t il a

Mas pra que isso? Agora é que nós nos conhecemos. Eu


dou minha palavra de que tudo vai ser feito da manei­
ra mais correta. Então vocês não sabem o que significa
a palavra de um homem de Tavasto? O Monte Hatel-
ma pode desabar — não é provável, hein, mas, enfim,
pode — o palácio de Tavasto pode desmoronar, hein,
mas a palavra de um cidadão de Tavasto, essa é defini­
tiva, todo mundo sabe. Podem vir comigo.

M ise r á v e l

Eu lhe agradeço. Pode contar comigo, Sr. Puntila. Eu


vou.

M atti

Em vez de dar o fora! Eu não tenho nada contra o se­


nhor, Sr. Puntila, mas é por causa dêles.

P u n t il a
(Num tom compenetrado.)
É uma atitude muito bonita essa tua, Matti. Eu sei que

80
você não é rancoroso. Aprecio muito a tua boa-fé e a
lea ld a d e com que defende os meus interêsses. Mas você
n ã o deve se esquecer de que Puntila pode se dar ao
lu x o de ir a todo vapor contra os próprios interêsses,
h e in ? Olha, Matti, quero que você me dê sempre a sua
op in iã o . Promete? (Aos outros.) — Sabem por que êle
p erd eu o último emprêgo? Porque o patrão guiava e
q u a n d o fazia as mudanças arranhava a embreagem. Êle
aí disse que o patrão tinha alma de carrasco.

M atti

Besteira minha.

P u n t il a
(G ravem ente.)
Eu gosto de você por causa dessas besteiras.

M atti
(Levanta-se.)
Vamos embora? E Surkala?

P u n t il a

Matti, Matti, homem sem fé. Eu não te disse que êle ia


voltar conosco, que é um trabalhador de primeira e um
espírito independente? Isso me faz lembrar o gordo de
ainda agora, o que queria roubar os meus trabalhado­
res. Ainda tenho umas coisas pra dizer a êle. É o per­
feito capitalista.

81
Escândalo em Puntila

(Pátio da propriedade de Puntila, com


uma cabina de banho, cujo interior è
visível. Manhã. Na porta do pátio, L aina
a cozinheira, e a arrumadeira F in a , pin­
tam um cartaz com os dizeres: B e n v in -
dos ao noivado . Pelo portão entram P u n ­
tila e M atti com alguns trabalhadores,
entre os quais S ur k a la J

L aina
(Descendo da escada.)
Benvindo a Puntila! D. Eva, o A ttaché e o Juiz já che­
garam ;estão almoçando.

P u n t il a
° que eu quero é ser o primeiro a apresentar desculpas

83
a você e sua família, Surkala. Faz o seguinte: vai bus­
car teus filhos, os quatro: eu quero exprimir pessoal­
mente a êles o meu remorso pela angústia e a incerteza
em que foram lançados por minha culpa.

S urkala
Não é preciso, Sr. Puntila.

PUNTILA
( Gravemente.)
É preciso, Surkala. (S urk ala sai.) — Êsses cavalheiros
vão ficar aqui. Serve um copo para cada um, Laina;
vão trabalhar na derrubada do bosque.

L aina

O senhor não ia vender o bosque pro noivado?

P u n t il a

Eu? Eu não vendo nada. O dote de minha filha ela o


tem entre as pernas!

M atti

Podíamos aproveitar agora pra dar o adiantamento e o


senhor ficava livre disso, Sr. Puntila.

P u n t il a

Eu vou à sauna. Fina, me traz um café. (Entra no


banheiro e se despe.)

M iserável

Você acha que êle me emprega?

84
M atti

Não. Q u a n d o ficar bom vê como você é e . ..

M ise r á v e l

Mas bêbado também êle não resolve.

M atti

Eu avisei p r a v o c ê s n ã o v ir e m s e m o c o n t r a t o . ("Fi n a
traz o álcool e os trabalhadores pegam um copo cada
um.)

T rabalh ado r

Fora isso, como é que êle é?

M atti

Muito confiado! Pra vocês isso não tem importância,


vocês ficam na floresta. Mas pra mim, no carro, estou
nas mãos dêle; mal dou um respirada e êle já fica
fraternal. Eu vou-me embora. ( S u r k a l a entra com os
quatro filhos. A mais velha carrega o menor.) — Pelo
amor de Deus, dá o fora! Assim que êle sair do banho
e tomar o café vai ficar mais fresco que um pé de alfa­
ce! Azar o teu se ainda te encontra na propriedade.
Acho melhor você sumir por alguns dias. ( S u r k a l a faz
um gesto de concordância e desaparece com os filhos.)

P u n t il a

(Que, enquanto se despe, ouviu alguma coisa mas não


entendeu bem, lança um olhar fora da cabina de ba-
nho e vê S u r k a l a com os meninos.)

85
PUNTILA

Ah, Surkala, já já estou aí! Matti, vem cá, eu preciso


que você me jogue água. (Ao M is e r á v e l J — Você tam ­
bém pode entrar. Quero que me conheça mais intim a­
mente. (M a t t i e o Miserável seguem P u n t il h a na cabina
de banho. M a t t i joga água em cima de P u n t i l l a . S u r ­
k a l a sai furtivam ente com os meninos.) — Um balde só
chega; eu detesto água.

M atti

Não, não — precisa mais — agüenta. Depois o senhor


toma café e vai cumprimentar as visitas.

PUNTILA

E eu não posso ir cumprimentar as visitas com um balde


só? Quer me fazer de imbecil?

M ise r á v e l

Eu também acho que chega um balde só. Se vê que o


Sr. Puntila detesta água.

P u n t il a

Está ouvindo, Matti?; assim é que falam os que me


querem bem. Conta pra êle como eu coloquei no devido
lugar aquêle gordo do Mercado. ( F in a entra.) — Ah,
lá vem essa deliciosa criatura trazendo o meu café. Está
bem forte? Quero um licor também.

M atti

Então pra que o café? Nada de licor.

86
PUNTILA

já sei, você agora está zangado comigo porque eu deixo


a s pessoas esperando. Tem tôda a razão. Mas então conta
a história do gordo, vai. Fina também pode escutar.
(Conta.) — Olha, era um grandão, barrigudo e desagra­
dável, um verdadeiro capitalista, que tentava me roubar
um trabalhador. Mas vai, Matti, conta você enquanto
eu tomo o café.

M atti

(Percebe que F in a tem os olhos grudados na tina onde


está P u n t i l a J — Quando nós pegamos o carro, a char-
rette dêle estava lá junto. Assim que êle viu o Sr. Pun-
tila ficou furioso; pegou no chicote e deu no cavalo com
tanta fôrça que o bicho empinou, relinchando de dor.

P u n t il a

Eu não posso ver ninguém maltratar um animal.

M atti

Aí o Sr. Puntila segurou a rédea do cavalo e acalmou


o coitado. Enquanto isso ia dizendo ao gordo alguns
pensamentos. Eu achei até que o gordo ia dar uma chi­
cotada no Sr. Puntila, mas êle viu que o nosso lado era
mais forte e falou qualquer coisa a respeito de gente
sem educação, imbecis, e coisas semelhantes. Na certa
pensou que nós não íamos entender. Mas o Sr. Puntila
tem uma inteligência fina e perguntou a êle se, por
acaso, tinha instrução bastante para saber que os gor­
dos morrem fàcilmente de um ataque apopléctico.

P u n t il a
Conta como êle ficou vermelho como um peru; tinha
tanta raiva que nem sabia o que responder diante da­
quela gente.

M atti

Êle ficou vermelho como um peru e o Sr. Puntila gri­


tou: “Você não deve se deixar dominar pela raiva, por­
que pode morrer agora mesmo com tôda essa gordura
estragada que tem no corpo”. E que se êle ficava assim
vermelho é porque o sangue lhe subia ao cérebro, coisa
que devia evitar para o bem de seus filhos.

P u n t il a

E quando eu disse de lado pra você: “Não devemos irri­


tá-lo, percebe-se que é um transtornado”. Aí é que êle
ficou irritado mesmo, você notou?

M atti

Nós falávamos dêle como se êle não estivesse ali, as


pessoas em volta riam cada vez mais e êle ficava cada
vez mais vermelho. Aí é que êle começou a ficar pare­
cido com um peru. Antes só com um tijolo descascado.
Bem feito pra êle. Quem mandou dar no cavalo? Um
dia, no vagão de um trem, eu vi um sujeito que dan­
çava de raiva em cima do próprio chapéu, só porque
tinha perdido a passagem. E a passagem estava justa­
mente na fita do chapéu.

P u n t il a

Agora você perdeu o fio. Eu disse a êle também que


prum homem gordo qualquer esforço físico — por exem­
plo, chicotear um cavalo — pode ser mortal. Que, por
isso, êle não devia maltratar os animais.
F in a

Ninguém deve fazer isso.

P u n t il a

M uito bem, Fina. Você merece um licor. Vai buscar,


vai.

M atti

Pra Fina tem aí o café. O senhor já está melhor, Sr.


P u n tila ?

P u n t il a

Pior. Estou pior.

M atti

O Sr. Puntila subiu muito na minha consideração tra­


ta n d o assim aquêle tipo. Bem podia ter dito: “Não te­
n h o nada com isso; não quero fazer inimigos entre os
v iz in h o s.”

P u n t il a
(Que vai ficando melhor aos poucos.)
Eu não tenho mêdo de ninguém.

M atti

É verdade. Mas quantos podem dizer isso? Só o senhor.


Só o senhor pode arranjar outro garanhão para as
éguas.

89
P u n t il a

O que é que têm as éguas com a história?

M atti

Eu ouvi dizer que foi o gordo que comprou a Fazenda


Sumala. Agora é o proprietário do único garanhão que
nos serve nestes oitocentos quilômetros em volta.

F in a

Foi êle quem comprou? E vocês só souberam depois da


briga? ( P u n t i l a se levanta e passa por trás jogando um
últim o balde d ’água sôbre si mesmo.)

M atti

Nós soubemos depois, mas o Sr. Puntila já sabia. Tanto


sabia que gritou para o gordo que o garanhão dêle
não servia mais pras nossas éguas porque estava todo
cheio de perebas. Como foi mesmo que o senhor disse?

P u n t il a

Isso mesmo: pereb as... não interessa.

M atti

Isso mesmo, perebas, não interessa! Foi engraçado.

F in a

Só faltava a gente mandar as mulas de trem para se­


rem cobertas.

90
PUNTILA
(Sombrio.)
O u tr o ca fé. (Servem-lhe.)

M atti
(Forte.)
O a m o r aos animais é a maior qualidade dos habitan­
tes de Tavasto, todo mundo sabe. Por isso é que eu fi­
q u ei tão espantado com o comportamento do gordo.
O uvi falar também que êle é cunhado de Madame
K lin c k m a n n . Eu nem quis dizer nada porque se o
Sr. Puntila soubesse disso ia tratar o gordo ainda pior.
(Puntila lhe lança um olhar.)

F in a

O café estava bem forte?

P u n t il a

Não me faça perguntas imbecis. Eu não bebi? (A M a t t i .)


Você aí: acha que vai ficar o dia inteiro em pé sem
fazer nada? Vai engraxar as botas e lavar o carro —
aquilo está imundo; é uma cloaca. E não responde —
se te apanho dizendo piadinhas ou falando mal de mim
nas minhas costas, anoto isso na tua carteira, fica avi­
sado ! (Sai, sombrio, envolvendo-se no roupão de banho.)

F in a

Por que você deixou êle brigar com o dono da Sumala?

M atti
Ué, eu sou o anjo da guarda dêle? Vi que êle estava
praticando um ato generoso e honesto — isto é, estú-

91
pido, porque ia contra os interêsses dêle. Eu ia impedir?
Sempre que está alto êle é realmente possuído por um
fogo sagrado. Teria desprêzo por mim. E eu não quero
que êle tenha desprêzo por mim. Quando está alto, eu
digo.

P u n t il a
(G ritando de fora.)
Fina! (Ela aparece com as roupas.) Presta bem aten­
ção no que eu decidi, senão vão deformar as minhas
palavras, como sempre. (M ostra um dos trabalhadores.)
Eu gostaria de ficar com aquêle ali, está vendo — êle
não procura se mostrar, só cuida do trabalho, mas re­
fleti melhor; não fico com ninguém. Resolvi vender o
bosque de uma vez por tôdas. Vocês podem agradecer
a êsse aí. O canalha me escondeu uma coisa que era
fundamental. Ah, isso me faz lem brar... (G rita.) — Ei,
você aí! ( M a t t i sai da cabina.) — É; você mesmo. Me
dá teu paletó! Eu disse me dá teu paletó, você não
ouviu? ( M a t t i entrega o paletó) — Agora eu te peguei,
velhaco! (M ostra a carteira) — Sabe o que é que eu
achei no teu bôlso? Eu não me engano nunca! Eu vi
que você tinha cara de cadeia. Isto aqui é a minha
carteira — é ou não é?

M atti

É, Sr. Puntila.

P u n t il a

Acho que nesta você está perdido. De dez anos de prisão


ninguém te livra. É só ligar para a polícia.

M atti

É, Sr. Puntila.

92
PUNTILA

jyias êsse gôsto eu não te dou. É o que você queria,


liein? Coçar a barriga o dia inteiro numa cela confortá-
vel e comer o pão dos contribuintes? Te caía bem, não?
Ainda mais agora, em plena colheita! Ao trabalho, pa-
tife! Vais ter que arrebentar os rins no trator. E eu
vou anotar tudo na tua carteira, tá ouvindo?

M atti

Estou, Sr. Puntila. ( T u n t i l a sai furioso em direção à


casa 'principal. Na soleira, E va, com um chapéu de pa­
lha na mão, ouve o fim do diálogo.)

M iserável

Eu vou com o senhor, Sr. Puntila?

P u n t il a

Eu não preciso de você — você não presta.

M iserável

Mas agora o Mercado de Trabalhadores já fechou.

P u n t il a

Você devia ter visto isso mais cedo. Mas não, achou me­
lhor explorar a minha generosidade. Eu tomo nota dos
aproveitadores como você — eu tomo nota de todos os
que procuram abusar da minha bondade. (Entra na casa
principal.)

T rabalhador

É assim que êles são. Antes te levam de automóvel. De-

93
pois te fazem voltar a pé nove quilômetros. E trabalho,
nada. É bom pra gente aprender a não ir nessa conver­
sa de amabilidades.

M iserável
Eu denuncio êle.

M atti
A quem? (Os trabalhadores, desiludidos, vão saindo da
propriedade.)

E va

Por que você não se defende? Todo mundo sabe que


quando está bêbado êle dá a carteira aos outros pra
pagar as contas.

M atti
Eu aqui não ganho pra me defender. Já notei que os
patrões não vêem com bons olhos os empregados que
se defendem.

E va

Ah, não banca o santo e o resignado. Hoje não estou


com a menor disposição de achar graça em nada.

M atti

é mesmo. Hoje é o dia do seu noivado com o attaché.

E va
Mais respeito, ouviu? O attaché é um homem encanta­
dor. Apenas não é o marido ideal.

94
M atti

Isso acontece. Mas uma mulher tem que escolher. Não


p o d e casar com todos os homens encantadores nem
com todos os attachés.

E va

Meu pai me dá tôda liberdade, você bem sabe. Disse-


m e que eu posso casar com quem quiser, até com você.
Só que, como prometeu a m inha mão ao attaché, não
q u e r que se diga que não tem palavra. Por isso é que
eu hesito tanto — e vou acabar casando com êle.

M atti

A senhorita está numa sinuca.

E va

N ão estou em sinuca nenhuma, para usar sua expres­


são grosseira. E até nem sei porque vim discutir com
você coisas tão delicadas.

M atti

Discutir é humano, senhorita. É a vantagem que os ho­


mens têm sôbre os animais. Se as vacas pudessem
discutir entre elas a senhorita acha que continuariam
a dar leite?

E va

Isso não tem nada a ver com o nosso assunto. Eu acho


que, provàvelmente, não vou ser feliz com o attaché;
mas o rompimento deve partir dêle. Como é que eu vou
fazer êle compreender isso?

95
M atti

É, uma pedrinha só não chega — precisa um parale­


lepípedo.

E va

Que é que você quer dizer com isso?

M atti

Que eu é que devo resolver o caso; eu sou grosso.

E va

Como é que você pode me ajudar num assunto assim


tão delicado?

M atti

Digamos que eu me senti encorajado pelas palavras tão


íntimas que o Sr. Puntila deixou escapar durante a be­
bedeira — segundo as quais a senhorita devia me agar­
rar para marido. E que a senhorita — posso tratá-la
por você? — tenha se sentido atraída pela minha fôrça
bruta (pense em Tarzan.) Então o attaché nos pega em
flagrante e diz: “Você não é digna de mim. Uma mu­
lher que se degrada com um chofer não serve para um
attaché.” Funciona?

E va

Eu não posso lhe pedir uma coisa dessas.

M atti

Ora, pra mim é um serviço como outro qualquer. Em


compensação eu não lavo o carro. Em meia hora nós

96
resolvemos tudo. O importante é êle compreender que
pegam os a um grau de intimidade que não tem mais
re m é d io .

E va

Com o?

M atti

Eu chamo você de Eva na frente dêle.

E va

Por exemplo?

M atti

“Eva, você esqueceu de abotoar o vestido nas costas.”

E va

(Passa instintivam ente a mão nas costas.) — Não es­


queci não. Está abotoado. Ah bom! Você já estava en­
saiando! Mas êle não vai se importar com isso. Não é
tão sensível assim; tem muitas dívidas.

M atti

Então, distraído, eu posso puxar o lenço do bôlso e deixo


cair uma pecinha íntim a sua. É pouco sutil?

E va

Já é melhor. Mas êle dirá que você tem uma paixão se­
creta por mim e que apanhou a . . .

97
M atti

A meia.

E va

. . . a meia quando eu não estava. (Pausa.) — Estou


vendo que não lhe falta imaginação nesse sentido.

M atti

Eu faço o melhor que posso, senhorita. Procuro imagi­


nar tôdas as situações entre nós, mesmo as mais em­
baraçosas, pra ver se encontro uma saída.

E va

É melhor deixar, sabe?

M atti

Como quiser. Não servia também.

E va

O que é que não servia?

M atti

Se as dívidas do attaché são muito grandes, só há um


jeito — sairmos juntos do banheiro. Menos do que isso
não adianta. Pra tudo mais êle vai encontrar sempre
uma justificativa. Não conseguirá ver nada de mal no
que fizermos. Por exemplo, se eu começar a devorá-la
de beijos na frente dêle, êle compreenderá que isso é
porque eu não consigo mais resistir à sua beleza. E
assim por diante.

98
E va

_p nUnca sei quando você está brincando e quando está


f ila n d o a sério. Você está fazendo pouco de mim, por
a c a s o ? Com você eu nunca estou segura.

M atti

E por que você quer estar segura? Não se trata de in­


v estir um capital. A incerteza é tão humana, pra falar
com o seu pai. Eu adoro as mulheres, mas não tenho
certeza delas.

E va

Em você, isso não me surpreende.

M atti

Vê? Você também gosta muito da incerteza.

E va

Eu só quis dizer que nunca se sabe onde você quer


chegar.

M atti

O dentista também — a gente nunca sabe onde êle quer


chegar. E, no entanto, a gente senta lá e abre a bôca. . .

E va

Êsse seu jeito de falar me mostra que a história do ba­


nheiro junto com você não vai. É evidente que você ia
se aproveitar da situação.

99
M atti

Enfim, alguma coisa da qual você tem certeza. Sabe, a


senhorita tem tantos escrúpulos que eu até fico sem
vontade de comprometê-la.

E va

Eu acho melhor que você me comprometa sem muita


vontade. Escuta: eu concordo com o negócio do ba­
nheiro. Mas é melhor andar depressa. Daqui a pouco
êles acabam de comer e vêm pra cá discutir o noivado.
Vamos logo.

M atti

Entra você primeiro — eu vou buscar o baralho.

E va

Baralho pra quê?

M atti

Como é que nós vamos passar o tempo no banheiro?


(Entra em casa. E va se dirige lentam ente para o ba­
nheiro. A cozinheira entra com um cêsto.)

L a in a

Bom-dia, D. Eva. Eu vou apanhar pepinos. Quer ir


comigo?

E va

Não, obrigada. Estou com dor de cabeça. Vou tomar um


banho. (Entra na cabina. A cozinheira abana a cabeça.
P u n t i l a e o Attaché entram , vindos da casa. Fumam
charutos.)

A t ta c h e

S a b e Puntila, estou com vontade de ir com Eva para


a Côte D’Azur. O Barão Vaurien me empresta a Rolls
R oyce. Quer me parecer que isso é uma excelente pro­
p a g a n d a para a Finlândia e para seu Corpo Diplomá­
tico. Há tão poucas mulheres de classe em nosso meio.
fLAiNA entra com o cêsto cheio de pepinos.)

P u n t il a

Onde é que está m inha filha? Saiu?

L a in a

Está aí dentro, Sr. Puntila. Disse que ia tomar um ba­


nho porque está com m uita dor de cabeça. (Sai.)

P u n t il a

Eva sempre com essas extravagâncias. Desde quando


se toma banho pra dor-de-cabeça?

A t ta c h e

É realmente muito original, mas quer saber de uma


coisa, Puntila? Nós não exploramos devidamente nossos
banhos finlandeses. Eu até já conversei isso com o Mi­
nistro quando estávamos numa conferência tentando
obter um empréstimo. Precisamos de métodos mais
agressivos para difundir a cultura finlandesa. Por exem­
plo: por que não há banhos finlandeses no Piccadilly?

101
PUNTILA

Por falar nisso, o Ministro vem ou não vem à nossa


festa?

A tta c h é

Êle me prometeu solenemente. Está em débito comigo


depois que eu o apresentei ao diretor do Banco Inter­
nacional de Comércio; êle está muito interessado em
estanho.

P u n t il a

Eu preciso falar com êle.

A tta c h é

Êle tem um fraco por mim — todo mundo sabe lá no


Ministério. Me disse uma vez: “Você é um homem que
se pode enviar a qualquer lugar, você não comete indis­
crições, não se mete em política”. Êle acha que eu re­
presento muito bem.

P u n t il a

Será de espantar se você não fizer uma carreira bri­


lhante. Mas o Ministro tem que estar aqui na festa de
noivado, eu conto firme com êle. Aí é que eu vou ver o
teu prestígio.

A tta c h é

Fica tranqüilo, Puntila. Uma coisa já é proverbial no


Ministério: eu não perco nada, eu sempre acho. (M a t t i
entra, um guardanapo no ombro, se dirige ao banheiro.)
V

PUNTILA

O nde é que você vai, ô vagabundo? Eu teria vergonha


de fic a r assim zanzando sem fazer nada. Como é que
você justifica o dinheiro que te pagam? Olha que eu
n ã o te dou a carteira e você acaba como um bacalhau
p odre daqueles que caem do barril e ninguém apanha.

M atti

Sim, Sr. Puntila. ( T u n t i l a se volta de nôvo para o


tranqüilam ente, entra na cabina. P u n ­
A t t a c h é . M a tti,
t i l a , a princípio, não vê nada de mau nisso. Logo êle
se lembra de que E v a está lá e olha estupefato para a
porta que M a t t i acabou de fechar.)

P u n t il a

Como vão as tuas relações com Eva?

A t ta c h é

Muito bem. Ela me trata com uma certa frieza, mas é


temperamento dela. Eu comparo isso à nossa situação
com a Rússia. Em linguagem diplomática se diria que
nossas relações são corretas. Vem comigo, vamos colhêr
um ramo de rosas brancas para ela.

P u n t il a
(Vai saindo com êle, sempre de olhar fixo na porta.)
Vamos sim, acho que é melhor.

M atti
(D entro do banheiro.)
Vai tudo bem. Êles me viram entrar.

103
E va

Engraçado meu pai não ter feito nada. A cozinheira i


disse que eu estava aqui.

/
M atti

Quando êle percebeu já era tarde. Deve estar com a ca-


beça estourando da ressaca. Mas foi sorte nossa êle ter
visto porque eu acho que só a intenção de te compro­
meter não chega. É preciso que realmente aconteça al­
guma coisa entre nós dois.

E va

Será que vão pensar mal de nós, apesar de tudo? Nin­


guém faz essas coisas assim de manhã cedo.

M atti

É bom: isso indica uma paixão fulminante, que não


escolhe hora nem local. Um sete-e-meio? (Dá as cartas.)
— Em Viburgo, eu tive um patrão que comia a qual­
quer hora do dia, qualquer quantidade. Antes do café,
às vêzes até depois do almôço, se lhe dessem um fran-
guinho assado, êle não conversava. A paixão dêle era
comer. Fazia parte do govêrno.

E va

Como é que você pode comparar?

M atti

Como? Em amor há também o mesmo tipo de apetite.


É a tua vez. Você acha que no estábulo esperam até
que seja noite? É verão, estamos excitados. Lá fora,

104
•en te demais em tôda parte. Num quartinho como êste
%fic a muito bem, bem protegido. Mas está quente, hein?
/ Tira o paletó.) — Por que você não fica um pouco mais
à v o n ta d e ? Pode deixar que eu não olho. Quanto é que
v a le — meio marco?

E va

Eu me pergunto se não é tremendamente vulgar tudo


isso que você está me dizendo. Não se esqueça de que
n ã o está falando com uma empregadinha.

M atti

Eu não tenho nada contra as empregadinhas.

E va

O que você não tem mesmo é educação.

M atti

Eu já ouvi dizer isso. Os choferes são conhecidos pela


grosseria. E não sei porque, não têm o menor respeito
pela gente de bem. Dizem que é por causa da intim i­
dade no automóvel; a gente de bem fica sentada logo ali
atrás, fala muito, os choferes ouvem tudo e vão per­
dendo o respeito. Deve ser isso. Sete-e-meio, ganhei.

E va
No Sacré-Coeur de Bruxelas só se falava de coisas muito
limpas.

M atti

Eu não me referia a coisas limpas ou sujas; me referia


à estupidez do que falam. É a sua vez de dar. Mas em­
baralha bem, senão sai o mesmo jôgo.

105
(Entram P u n t i l a e o A t t a c h é ; êste com um ramo de
rosas.)

A tta c h é

Mas essa Madame Lehtinem tem um espírito! Eu disse: 1


“Você seria perfeita, se não fôsse tão rica!” E ela me
respondeu: “Eu acho perfeito ser tão rica!” Ah ah ah!
Você sabe, Puntila, que quando eu fui apresentado à
filha de Rotschild, no palácio do Barão de Vaurien, ela
me deu exatamente a mesma resposta? Uma mulher
de espírito, também!

M atti

Dá uma risadinha como se eu estivesse te fazendo cóce­


gas. Se não êles passam sem nem perceber nada. (E va
ri um pouco sem deixar de jogar cartas.)

A tta c h é
(Parando.)
Ué. Não é Eva?

P u n t il a

Que nada! Impossível. Deve ser outra qualquer.

M atti
(Alto, jogando as cartas.)
Mas como você é cosquenta!

A t ta c h é

Escuta!

106
M atti
(Baixo.)
Agora se defende um pouco.

P u n t il a

É o chofer que está aí. Acho melhor você levar as rosas


lá pra dentro.

E va
(Alto.)
Não! Não! Assim não!

M atti

Ah, deixa!

A t ta c h é

Mas você sabe, Puntila, é igualzinha à voz de Eva.

P u n t il a

Por favor, Eino, não me ofenda.

M atti

Agora me trata com mais intimidade; você desistiu de


uma resistência inútil.

E va

Não! Não! Não! (Baixo.) — O que é que eu digo mais?

107
M atti

Diz que eu abuso, que eu não tenho o direito. . . Pensa


numa situação verdadeira! Faz o teu papel: põe sen­
sualidade nisso!

E va

Você abusa, Matti, você não tem o d ireito ...

P u n t il a
(Berra.)
Eva!

M atti

Mais! Mais! Você está cega de paixão! (Bota as cartas


de lado, enquanto continuam a representar a cena de
amor.) Se êle entrar tem que nos pegar em flagrante.
Senão não serve.

E va

Ah, isso não!

M atti
(Virando um banco com um ponta-pé.)
Agora você vai sair daqui como uma cadelinha mo­
lhada.

P u n t il a

Eva!
( M a t t i despenteia cuidadosamente os cabelos de Eva.
Ela arranca um botão da blusa e sai.)

108
E va

Você me chamou, papai? Eu estava mudando de roupa


para ir dar um mergulho.

PUNTILA

O que é que te deu? Que maluquice você estava fazendo


aí no banheiro? Você pensa que nós somos surdos?

A t ta c h é

Não fica irritado, Puntila; que é que tem Eva estar no


banheiro? ( M a t t i sai do banheiro com ar de fingido
embaraçado, mas não tornou a se vestir. Pára, atrás de
E vaJ

E va
(Fazendo que não vê M a t t i , mas um pouco intim idada.)
Que foi que você ouviu, papai? Não aconteceu nada.

P u n t il a

Ah, você acha que isso não é nada? Vira de costas!

M atti
(Fazendo o intim idado.)
Sr. Puntila, a Srta. Eva estava só jogando o sete-e-meio
comigo. Se o senhor não acredita estão aqui as cartas.
Foi tudo um equívoco.

P u n t il a

Cala a bôca, você! Você está despedido (A E v a .J — E


agora, o que é que Eino vai pensar de você?

109
A t ta c h é

Quer saber de uma coisa, Puntila? Se êles estavam só


jogando o sete-e-meio nós fomos vítimas de um equí­
voco. Uma vez a princesa Bibesco ficou tão excitada
jogando bacará que arrebentou um colar de pérolas.
Eva, eu trouxe rosas brancas para você. (Lhe dá as
rosas.) — Vem, Puntila, vamos jogar um pouco de bi­
lhar. (Puxa-o pelas mangas.)

P u n t il a
(Cheio de fúria concentrada.)
Eva, eu torno a falar contigo depois. Quanto a você,
meu sedutor, se se arriscar outra vez a dar um pio na
frente de m inha filha em vez de fazer como deve: que
é tirar da cabeça êsse boné fedorento e tratar de lavar
essas orelhas imundas como as de um porco — ah,
teus dias estão contados. Teu dever é olhar para a filha
daquele que te dá trabalho como quem olha para uma
criatura de essência superior que se dignou descer en­
tre os mortais. Me deixa, Eino, você acha que eu posso
admitir tanta impudência? (A M a t t i ) — Repete: qual
é o teu dever?

M atti

Olhar para sua filha como quem olha para uma cria­
tura de essência superior que se dignou descer entre
os mortais.

P u n t il a

E diante dêsse espetáculo sem par, você deve arregalar


os olhos num estupor de incredulidade, mal acredi­
tando que possa existir uma criatura assim.

110
M atti

Eu devo arregalar os olhos num estupor de increduli­


dade, mal acreditando que possa existir uma criatura
assim.

PUNTILA

E como desde que ficou homem você nunca pensou


senão em porcarias com as mulheres, diante de seme­
lhante prodígio de inocência, sentirá o sangue subir
até as orelhas, envergonhado de seus pensamentos im­
puros e terá vontade de sumir terra adentro. Compre­
endeu?

M atti

C o m p r e e n d i, s im sen h or. (O A t t a c h é arrasta P u n tiia


para dentro da casa.)

E va

Estaca zero.

M atti

Ê le t e m m a is d ív id a s d o q u e a g e n t e p e n s a v a .

CORTINA

L a in a
(Com um recipiente onde bate a nata com o
espumador)
Nesta propriedade há um banheiro
Onde acontecem coisas de manhã.

111
Nossa patroazinha tão cristã
Se tranca lá com o motorista
Jogando sete-e-meio.
Seu noivo, o attaché,
Não acha feio.
Puntila disse:
“Êsse attaché
é um homem tolerante
de tudo o que vê.
Nada tem de plebeu.
Mas de tudo que compra
O devedor sou eu.”.
Conversa Sobre Caranguejos

(Cozinha da propriedade de P u n t i l a .
Do Exterior, de vez em quando, vem
música de dança. No teto está suspenso
um porco m orto há pouco. M a t t i , de
chinelos, lê o jornal. É noite.)

F in a

(Entra com um m onte de roupa suja, vai à caldeira,


joga dentro.) — D. Eva quer falar contigo.

M atti

Está certo. Vou acabar o café.

F in a

Não precisa fingir que não acabou, só para bancar o


importante. Êsse negócio dela conversar contigo parece

113
que te subiu um pouco à cabeça. Aquela não tem nin­
guém com quem falar, coitada.

M atti
Você sabe que numa noite assim eu gosto de deixar que
as coisas me subam um pouco à cabeça? Por exemplo,
Fina, se de repente te desse uma vontade de ir comi­
go até o rio eu esquecia êsse chamado da patroa e fi­
cava com você.

F in a

Não, obrigada. Não estou com vontade.

M atti
(Abre outro jornal.)
Está pensando no professor?

F in a

Entre mim e o professor não existe nada. Êle só que­


ria me instruir e me emprestou um livro. É um homem
muito gentil.

M atti

Pena que ganhe tão pouco com a instrução que tem.


Eu ganho trezentos marcos, êle duzentos. É bem ver­
dade que eu devo saber mais que êle. Se um professor
é ignorante, o máximo que pode acontecer é alguém
não aprender a ler o jornal. Antigamente isso podia ser
um mal. Mas, hoje, que adianta ler o jornal? A censura
não deixa sair nada. Eu chego a pensar que se não hou­
vesse professores não havia necessidade da censura e
o govêrno economizava o ordenado dos censores. Mas

114
i enguiço na estrada, os patrões, que andam sem-
se eAbados, acabam rolando pela ribanceira ou, o que
P1Tior sujam a roupa na lama. (Faz um gesto para que
v n a se sente em seus joelhos. Entram o Juiz e o A d v o ­
g a d o com toalhas nos ombros. Estão saindo da sauna.)

Juiz
V o cê t e m alguma coisa para nos oferecer? Aquêle es­
p lê n d id o le it e do outro dia? (M a t t i , com a escumadei-
ra, enche dois copos, F in a sai com a roupa.)

A dvogado

Hum, que maravilha!

Juiz
Eu sempre que venho aqui tomo um copo de leite de­
pois da sauna.

A dvogado

Ah, as noites de verão da Finlândia!

Juiz
A mim me dão uma trabalheira infernal as noites de
verão da Finlândia. Os processos de alimentos para os
filhos ilegítimos são um verdadeiro hino às nossas noi­
tes de verão. Para poder compreender o poder de sedu­
ção de nossas matas durante essa estação você pre­
cisa ir ao tribunal. Quanto aos nossos rios então, nem
se fala. Parece que no verão as mulheres ficam exci­
tadas só de olharem os rios. Uma culpou o feno, por
causa do cheiro forte que exala com o calor. Colhêr

115
!

amoras é outra atividade perigosa, e ordenhar vacas,


então — ah, como me cansa essa gente tôda orde­
nhando vacas no verão. O govêrno também devia man­
dar cercar de arame farpado tôdas as moitas do cami­
nho. A tentação dos sentidos é tão reconhecida que
não se permite o banho de sauna conjunto — homens
prum lado, mulheres pro outro. Mas que adianta?
Quando acaba o banho êles entram juntos nos bos­
ques! É impossível. Qualquer freio é impossível no ve­
rão. Andam juntos de bicicleta, sobem juntos nos mon­
tes de feno e deitam juntos nos jardins porque sopra
um fresquinho delicioso. E nascem crianças porque o
verão é muito curto e nascem crianças porque o inver­
no é muito longo.

A dvogado

O bonito é que os velhos também participam. Nos


julgamentos as testemunhas são sempre os velhos.
Vêem tudo: vêem o casal que some no mato, vêem os
tamancos esquecidos na porta da despensa, vêem que
o rosto da môça está acalorado porque ela foi colhêr
cerejas, ocupação aliás que não faz calor a ninguém,
a não ser que a pessoa ponha nela um ardor excessivo. E
não vêem só, os velhos também ouvem: os vasos de
leite tilintam, as camas rangem. E assim, com os
olhos e as orelhas, êles também participam da festa
e também gozam um pouco do verão.

Juiz j
(Ouvindo alguém tocar a cam painha — A M a t t i )
Quer fazer o favor de ir ver quem é que está chaman­
do? Ou melhor, deixa que nós vamos — seremos acusa­
dos de não respeitar as oito horas de trabalho. (Sai com
o advogado.)

116
E va

(Entra com andar provocante de estrêla de cinema e


com uma piteira na bôca.) — Eu toquei, chamando.
V o cê está muito ocupado?

M atti

Eu? Não! É que só vou pegar no trabalho às seis da


manhã.

E va

Eu vim lhe perguntar se você não quer ir de barco até


a ilha. Podíamos ir pegar uns caranguejos pro almôço
de amanhã.

M atti

Ah, remar a essa hora? Não acha que já é hora de


dormir?

E va

Eu não estou cansada. No verão durmo muito mal, não


sei por quê. Se você fôsse dormir agora, dormia logo?

M atti

Direto.

E va

Que inveja! Bem, prepara as tarrafas. Papai quer ca­


ranguejos no almôço de qualquer maneira. (Gira sô-
bre si mesm a e sai com o andar provocante que apren­
deu no cinema.)

117
M atti
(.Impressionado.)
Então vamos, eu remo.

E va

Mas não está muito cansado?

M atti

De repente criei nova disposição. É melhor você ir mu­


dar de roupa. Vamos andar no lôdo.

E va

Está bem. As tarrafas estão na despensa. (Ela sai.


M a t t i veste uma japona. Ela volta de Short bem curto
e sandálias.) — Cadê as tarrafas? Você não apanhou?

M atti

Vamos pegar com a mão. É muito mais divertido.

E va

Mas com as tarrafas é muito mais prático.

M atti

Eu estive lá com a arrumadeira e a cozinheira, não


faz quinze dias; pegamos tudo com a mão e foi diver­
tidíssimo, você pode perguntar a elas. Eu tenho uma
habilidade danada, você sabia? A maior parte das pes­
soas parece que tem cinco polegares na mão. Eu não;
tenho cinco dedos. Os caranguejos são espertos e as

118
pedras escorregam muito, mas a noite está muito cla­
ra, ajuda. Não tem uma nuvem no céu, olhei agora
mesmo.

E va
(Hesitando)
É melhor com a tarrafa. Se pega mais.

M atti

Você quer muitos?

E va

Papai não come nada que não seja servido em abun­


dância.

M atti

Então é outra conversa. Eu pensei que bastava pegar


uns três ou quatro e depois a gente ficava um pouco
junto, assim, né? A noite está tão bonita!

E va

Já sei que a noite está bonita. Você já disse isso antes.


Vai buscar as tarrafas.

M atti

Ah, não vai me dizer que você leva tão a sério


caranguejos. Duas bôlsas chegam? Eu conheço u
gar onde tem caranguejo assim. Em cinco minutos pe­
gamos o bastante para salvar as aparências.

119
O que é que você está dizendo? Olha, fala claro —
você quer pegar os caranguejos ou não quer?

M atti
(Depois de uma pausa.)
Pensando bem, já é um pouco tarde. (T om a a sentar
e a ler o * jornal.) — Amanhã de m anhã às seis em
ponto eu tenho que levar o Studebaker na estação para
esperar o attaché. Se a gente ficar pescando até as três
ou quatro da manhã não vai me sobrar nem um tem-
pinho pra dormir. Quer dizer, se você faz mesmo ques­
t ã o .. . (sem uma palavra, E va se vira e sai. M a t t i tor­
na a tirar a japona e lê. Entra L a in a , vinda da sauna.)

L a in a

Fina e a cozinheira mandam perguntar se você não


quer ir lá em baixo no rio. Estão lá até agora, rindo
muito.

M atti

Eu vou assim que acabar de ler o jornal. (Pausa.) —


Estou muito cansado. Primeiro o Mercado de Traba­
lhadores, depois tive que andar horas com o trator den­
tro do pântano e as correias ainda acharam de arre­
bentar.

L a in a

Também estou morta — o dia inteiro no forno, prepa­


rando os doces. Eu não fui feita pra festas de noivado.
Mas estou com pena de ir já pra cama — lá fora está
tão bonito. É até um pecado dormir com uma noite
assim ! (Olha para fora pela janela) — Acho que vou
descer um pouco. O cavalariço vai tocar sanfona —
eu gosto tanto. (Sai m orta de cansaço mas com passo
decidido. Eva entra no m om ento èra que M a tti vai
saindo pela outra porta. Está em trajes de viagem.)

E va
Preciso que você me leve à estação imediatamente.

M atti
Pois não. Cinco minutos pra tirar o Studebaker. Espe­
ro no portão.

E va
Vejo que nem se interessa em saber o que pretendo
fazer na estação.

M atti
Acho que pretende pegar o trem das onze para Hel-
sinki.

E va
Porém não demonstra a menor surprêsa.

M atti
Eu devia me surpreender por quê? A surprêsa de um
chofer não adianta nada. Não tem a menor influênci?
sôbre o curso dos acontecimentos. Na verdade, em ge­
ral, nem sequer percebem se êle ficou surpreendido.
E va

Decidi passar algumas semanas na casa de uma ami­


ga em Bruxelas e não quero incomodar papai. Preciso
que você me empreste duzentos marcos pra passagem.
Naturalmente papai lhe devolve assim que eu escre­
ver de lá.

M atti
(Sem entusiasmo.)
Está bem.

E va

Não precisa ficar com mêdo do seu dinheiro. Meu pai


pode não se importar com quem eu me comprometo,
mas dinheiro a você êle não vai querer ficar devendo,

M atti
(Cauteloso.)
Eu não sei se êle se sentirá meu devedor, eu dando a
você êsse dinheiro.

E va
(Depois de um a pausa.)
Eu já estou arrependida de ter pedido.

M atti

Eu não sei se seu pai vai gostar muito de você partir


assim na véspera do noivado, quando os doces já estão
todos prontos. Você não devia levar a mal êle ter dito

122
que podia se interessar por mim. Foi uma distração
^êle — só pensa na sua felicidade. Êle mesmo me
disse. Quando está de porre, digamos, quando bebeu
uma dose além da conta, às vêzes êle não sabe mais
onde está a sua felicidade — e age segundo o senti­
mento da hora. Mas quando não bebeu nada e é de
nôvo um homem inteligente, te compra logo um atta-
ché, uma pessoa à altura de seus milhões. Você pode
ser embaixatriz em Paris ou no Nepal e fazer tudo que
lhe agradar. Por exemplo, numa noite assim bonita
como esta, se você tiver vontade de fazer alguma coisa,,
você faz. Se não tiver, não faz.

E va

Quer dizer que agora você me aconselha a ficar com


o attaché?

M atti

Srta. Eva: a sua situação econômica não lhe permite


desagradar seu pai.

E va

Em suma, você já mudou de idéia. Sabe o que você é:


um cata-vento.

M atti

De acôrdo. Mas não é justo falar assim de um cata-


vento. São feitos de ferro, não há nada mais sólido. A
única coisa que não têm é uma base forte, um apoio
seguro. Eu também, infelizmente, não tenho base ne­
nhuma. (Esfrega o índice com o polegar.)

123
E va

Então eu tenho que aceitar o teu conselho com muita


prudência, já que você não tem a base necessária para
me aconselhar com honestidade. Tôdas as tuas belas
palavras sôbre o amor de meu pai podem ter nascido
apenas do mêdo de arriscar o dinheiro da passagem.

M atti

E o meu emprêgo, que não é tão mau assim.

E va

Sr. Altonem, o senhor é um miserável materialista, ou


como dizem no seu meio, o senhor só cuida de sua bar­
riga. Eu nunca vi ninguém mais agarrado ao dinheiro
e ao bem-estar. Ah, não são só os ricos que vivem pen­
sando no dinheiro.

M atti

Lamento ter desiludido a senhorita. Mas não foi culpa


minha. O seu pedido foi tão direto. Se tivesse apenas
sugerido, se tivesse feito só uma alusão, se tivesse dei­
xado a coisa só nas entrelinhas, podíamos ter evitado
falar de dinheiro tão grosseiramente. O dinheiro pro­
voca desarmonia em tôda parte.

E va
(Senta.)
Não vou me casar com o attaché.

M atti

Eu pensei bem e não entendo por que não casar com


êle. Êle ou outro qualquer dá no mesmo; eu conheço

124
êsses tipos todos. São todos iguais. Muito bem educa­
dos, não jogam um sapato na cabeça da gente nem
quando estão bêbados, não discutem questões de di­
nheiro, sobretudo quando não é dêles, e são capazes de
gostar de uma pessoa como gostam de um vinho —
porque aprenderam.

E va

É. Mas eu com o attaché não caso não. Me caso com


você.

M atti

Como assim?

E va

Papai podia nos dar uma serraria.

M atti

Podia lhe dar uma serraria.

E va

Nos dar — se nos casamos.

M atti

Olha, môça, uma vez, na Carélia, eu trabalhei numa


fazenda onde o dono era um ex-empregado. Tôda vez
que o vigário vinha visitar a fazenda a mulher man­
dava o marido ir pescar. Quando havia festa êle era
encarregado de abrir as garrafas e depois ia pra trás
da estufa e ficava jogando paciência. Êle já tinha fi-

125
lhos grandes e todos só o chamavam pelo primeiro no­
me: “Vitor, me traz as botas! Depressa, Vitor!” Sabe
que eu não gosto disso, senhorita?

E va
Eu sei. Você quer ser o patrão. Posso imaginar como
pretende tratar sua mulher.

M atti
Já andou pensando nisso?

E va
Nem em sonho! Você acha que eu não tenho mais em
que pensar? Passo o dia inteiro pensando em você. O
que é que levou você a achar isso? Além disso estou far­
ta de ouvir falar de você mesmo, do que quer, do que
gosta, do que ouviu dizer. Eu sei muito bem o que há
por trás das suas historinhas inocentes, das suas inso­
lências! Você é insuportável! Quer saber de uma coisa?!
Eu tenho horror aos egoístas! (Sai, M atti tom a a se
sentar e lê o jornal.)

CORTINA

L aina
( Canta enquanto unta de manteiga uma fôrma de doce.)
Bela e sozinha
a filha do patrão desceu à cozinha
de noite, com uma luz.
“Chofer, que músculos bonitos!
Viu a roupa que eu pus

126
para pescar caranguejos?”
E o chofer, com um bocejo:
“Ah, suave donzela, seu desejo
de pescar caranguejo
no verão é natural
Mas inda não percebeu
que estou lendo o jornal?”

127
A Associação das Noivas
do Sr. Puntila

Pátio da casa de P u n t i l a . Domingo de


manhã. Na sacada, P u n t i l a discute com
E v a , que segura o espelho para êle. De
longe ouve-se o badalar dos sinos.

P u n t il a

Você casa com o attaché e pronto! Do contrário não te


dou um níquel. Sou o responsável pelo teu futuro.

E va

Mas antes você me disse que eu não devia casar com


êle porque não é um homem. Que eu devia casar com
alguém que eu amasse.

P u n t il a

Acontece que eu falo um pouco demais quando bebo

129
um copo além da sêde. Mas não me agrada nada essa
tua mania de sofismar com minhas palavras. Hoje nós
vamos festejar um noivado duplo. Só não entendo por
que Mme. Klinckmann ainda não respondeu ao meu
convite. Mas ela vem, você vai ver. A não ser que a his­
tória da sauna já tenha chegado aos ouvidos dela. Você
acha que ela é mulher de engolir uma sobrinha assim?
Estou te avisando, Eva: se te pego outra vez com êsse
chofer, ai de ti! Você não pensou sequer no escândalo
quê seria se alguém te visse saindo da sauna com êle?
(Olha para o lado e vocifera.) Quem foi que soltou os
cavalos no campo de trevos?

Uma Voz
Foi uma ordem do cavalariço, Sr. Puntila!

P u n t il a

Tira os animais daí! (A Eva.) — Basta que eu me au­


sente meio dia e tudo aqui vira de cabeça para baixo.
Você sabe por que é que os cavalos foram parar no
campo de trevo? Porque o senhor cavalariço faz amor
com a jardineira. Sabe por que aquela potranca que
tem só um ano e dois meses já está prenhe e não vai
mais crescer? Porque a governanta vive aí se esfre­
gando com o veterinário. Também por isso, natural­
mente, ninguém tem tempo de impedir que o touro
cubra minhas vaquinhas virgens; e êle faz o que lhe
apetece. Que porcaria! E se a jardineira — ah, com
essa vou ter uma conversinha! — não ficasse aí o tem­
po todo se abrindo para o cavalariço, êste ano eu não
tinha só cem quilos de tomate para vender. Uma mina
de ouro, êsses tomates! Em suma, de uma vez por tô-
das, eu tenho que acabar com essas sujeiras na minha
fazenda! Me custam muito caro, compreende? E você
também, com o teu chofer! Um basta nisso! Não vou
permitir que arruinem a minha propriedade.

130
E va

Mas eu não estou arruinando nada!

PUNTILA

Eu avisei! Não pretendo tolerar nenhum escândalo. Eu


te preparei um noivado de seis mil marcos e estou fa­
zendo tudo o que posso pra introduzir você na melhor
sociedade — você sabe o que é que isso custa. Isso me
custa um bosque. E você sabe o que é um bosque? En­
tão, se não sabe, como é que se comporta assim, dessa
maneira, andando com gato e cachorro, até com meu
chofer?! (M a t t i surgiu em baixo, no pátio. Escuta.) —
Se eu gastei rios de dinheiro na tua educação em Bru­
xelas não foi pra você se atirar nos braços de um cho­
fer! Se não se mantém essa gente no devido lugar, êles
sc tornam insolentes e acabam querendo dormir na
nossa cama. Dez passos de distância, sempre, e ne­
nhuma intimidade — senão é o caos. Nesse ponto eu
sou intransigente. (Sai. No portão da propriedade apa­
recem as quatro mulheres de Kurguela. Elas se consul­
tam , tiram os lenços da cabeça, substituindo-os por
adornos de palha. Cada uma traz um ram alhete de flo­
res do campo. S a n d r a , a telefonista, é m andada à
frente.)

T e l e f o n is t a

Bom-dia! Eu queria falar com o Sr. Puntila.

M atti

Creio que hoje não vai ser possível. Êle está de mau-
humor.

S andra

Mas acho que não vai recusar ver a noiva.

131
M atti

Você é noiva dêle?

S andra

Acho que sim.

P untila
(Fora de cena.)
E não quero mais ouvir palavras como essa! Pra mim,
dizer amor é o mesmo que dizer porcaria e nesta casa
eu não admito porcarias! A tua festa de noivado já
começou, eu já mandei matar um leitão e não posso
mais dar marcha-à-ré na morte dêle. Você acha que o
leitão vai me fazer a gentileza de voltar a roncar no
chiqueiro só porque você mudou de idéia? E depois,
eu já decidi e está decidido. Quero viver em paz nesta
casa, de hoje em diante. Não me obedece e eu mando
pôr um cadeado na porta do teu quarto, entende?
(Passos e logo uma batida de porta com violência.
M a t t i pega uma vassoura comprida e se põe a varrer
o pátio.)

S andra

Tenho a impressão que conheço essa voz.

M atti

é natural — é a voz de seu noivo.

S andra
/
É mesmo? Engraçado, em Kurguela a voz era diferente.

132
M atti

Ah vocês ficaram noivos em Kurguela? Quando o Sr.


puntila estava procurando álcool legítimo?

S an d r a

A voz era diferente mas as circunstâncias também:


acho que é por isso que estou estranhando. E, além
disso, eu via a cara dêle enquanto falava, uma cara
aberta, cordial: estava sentado no automóvel e tinha
o rosto iluminado pela luz da aurora.

M atti

Eu conheço êsse rosto e conheço essa aurora. Mas acho


melhor você voltar pra casa. Você é demais aqui. (E m a
avança. Finge que não conhece a telefonista.)

Ema

O Sr. Puntila está? Eu tenho urgência de falar com êle.

M atti

Infelizmente é impossível. Mas pode falar aqui com


a noiva dêle.

S andra
(.Representando.)
Você não é Ema Takimainen, que faz contrabando de
álcool?

Ema

Eu, contrabando de álcool? Só porque uso um pouco de


aguardente para fazer massagens na mulher do chefe
de polícia? A mulher do chefe da estação também usa
meu álcool pra fazer licor de cereja. Por aí você vê que
é_ álcool legítimo. E que história de noiva é essa? Es­
tão vendo só? A telefonista diz que é noiva do meu noi­
vo, o Sr. Puntila. Essa é muito forte, ô andrajosa.

S an d r a
(Radiante.)
E o que é que eu tenho aqui no meu dedo, você não
enxerga não, ô bruxa?

Ema
(Venenosa.)
Uma verruga. E aqui no meu, o que é que você vê? A
noiva sou eu, não é você. Noiva direito — com anel e
bebida.

M atti

Um momentinho. As senhoritas são ambas de Kurgue-


la? Parece que lá tem mais noivas do que môscas no
verão. (Avançam agora Lisu, a ordenhadora e M a n d a ,
a empregada da farmácia.)

A mbas

É aqui que mora o Sr. Puntila?

M atti

Vocês são de Kurguela? Então êle não mora aqui. Eu


sei muito bem, porque sou chofer dêle. Êsse Sr. Pun­
tila de quem vocês ficaram noivas é um outro senhor
com o mesmo nome.
Lisu
Mas eu sou Lisu Jackara! O Sr. Puntila é mesmo meu
noivo, eu posso provar. (Indicando a Telefonista.) —
Ela também pode provar; ela também é noiva dêle.

E m a e S an d r a

Sim, p o d e m o s p r o v a r . Nós t ô d a s q u a t r o s o m o s n o iv a s
do Sr. P u n t ila . (Tôdas começam a rir.)

M atti

Estou contente que possam provar. Vou falar claro;


se a noiva fôsse uma só eu não me interessava, mas eu
reconheço a voz do povo onde quer que a ouça. Pro­
ponho que vocês fundem uma Associação das Noivas do
Sr. Puntila. E logo ajunto uma pergunta do maior in-
terêsse; que pretendem fazer?

S andra

Contamos pra êle? Bom, nós temos um velho convite


do Sr. Puntila pra virmos tôdas as quatro à festa de
noivado.

M atti

Bem, um convite dêsses vale tanto quanto a neve do


ano passado. Acho que vocês vão fazer o efeito de qua­
tro patos selvagens que chegam no pântano quando o
caçador já foi embora.

Ema

Isso quer dizer que não somos benvindas.

135
M atti

Não quero dizer isso. Estão é chegando muito cedo. Vou


procurar apresentar vocês no momento adequado, para
que recebam o tratamento digno das noivas que são.

M anda

É tudo brincadeira; nós só queremos nos divertir e


dançar um pouco.

M atti

Se esperarem o momento propício, isso se arranja.


Quando êles bebem um pouco ficam mais animados e
adoram o grotesco. Êsse é o momento pras quatro noi­
vas fazerem sua entrada triunfal. O padre vai se escan­
dalizar e quando o padre se escandaliza o Juiz é um
homem feliz. Nós, a Associação das Noivas do Sr. Pun-
tila, entraremos na sala cantando o Hino Municipal e
levando uma anágua como estandarte. (Gargalhadas
Gerais.) — Mas é preciso ordem; sem ordem o Sr. Pun-
tila não admite nem brincadeira.

Ema

Você acha que ganhamos um café ou que nos deixam


dançar alguma coisa?

M atti

As vossas reivindicações são perfeitamente justas. Uma


vez que falsas esperanças foram levantadas e despesas
foram feitas, a Liga tem todo o direito de tentar obter
reembolso ou compensação pelo dinheiro versado. Vo­
cês vieram de trem, não?

136
E ma
De sco-unda! (F ina atravessa o pátio carregando uma
bola de manteiga.)

Lisu

Q u e b e le z a !

Ema

M anteiga d e primeira!

M anda
Hei, por favor, não sei como se chama; nós acabamos
de chegar de trem. Você não podia nos dar um copo
de leite?

M atti
Um copo de leite antes do almôço? Estraga o apetite.

Lisu
Não tenha mêdo.

M atti
Para o sucesso de nossa missão é preciso que eu faça o
noivo beber alguma coisa que não seja leite.

S andra
É verdade — senti que êle estava com a voz sêca.

137
M atti

Telefonista: você que sabe tudo e propaga o que sabe,


já me entendeu. Ela sabe que o álcool pra êle é mais
importante do que o leite pra vocês.

Lisu
É verdade que Puntila tem noventa vacas? Ouvi dizer.

S andra

Você ouviu isso, mas não ouviu a voz dêle.

M atti

Eu acho que vocês tôdas são môças sensatas. Portanto,


contentem-se, por enquanto, com o cheiro da cozinha.
(Atrás da cozinheira dois homens carregam o leitão
morto.)

M ulheres

Puxa! Isso dá prum batalhão! Tosta êle bem, heim?!


Mete um pouco de manjerona.

Ema

Vocês acham que eu posso abrir um pouco a saia du­


rante o almôço, quando ninguém estiver olhando? Está
apertada!
S andra

À mesa?

M anda

O Sr. Puntila podia ver.

138
M atti

Vocês já pensaram no almôço de que vão participar?


Vocês estarão assim com o Juiz, Presidente do Supre­
mo Tribunal de Viburgo. Ouçam só o que eu vou fa­
lar: (Crava a vassoura no chão e se dirige ao juiz.) —
“Sr. Juiz, eis aqui quatro mulheres de condição modes­
ta dominadas pela ansiedade, apavoradas com o fato
de poderem ver rejeitadas suas pretensões. Para virem
até aqui, ao encontro do espôso prometido, percorre­
ram a pé os longos e esburacados caminhos das nossas
estradas municipais. Uma bela manhã, dez dias atrás,
um senhor muito bem alimentado apareceu na aldeia
delas, dirigindo um Studebaker. Entregou a cada uma
o anel sacramental e prometeu casar com elas. É pos­
sível que agora negue tudo, que afirme que nada disso
aconteceu. Sr. Presidente, cumpra vosso dever dando
uma sentença humana a favor dessas pobres mulheres,
ou eu o advirto de que um dia o Supremo Tribunal de
Viburgo deixará de existir!”

S andra

Bravo!

M atti

O advogado também beberá à saúde de vocês; o que é


que você vai dizer a êle, Ema Takinainem?

Ema

Direi: “Estou encantada com a oportunidade de tê-lo


conhecido”. E depois: “O senhor por acaso não podia
fazer minha declaração de impôsto e depois discutir
com os fiscais?” E depois: “O senhor que fala tão bem,
não pode dar um jeitinho de livrar meu marido do
serviço militar? O coronel vive infernando a vida dêle

139
e eu, sozinha, não agüento com a plantação de bata­
tas. E eu também queria que alguém não deixasse mais
o dono do armazém me roubar quando bota no cader­
no os preços do sabão, do querosene e do açúcar.”

M atti

Isso é o que se chama aproveitar a ocasião. Mas se o


teu marido fôr o Sr. Puntila você não precisa se preo­
cupar com os impostos. Quem casar com êle pode pa­
gar. O médico também vai estar à mesa. O que é que
vocês vão dizer a êle?

S andra

“Sr. Doutor” eu vou dizer, “eu ainda sinto aquela dor


na espinha, mas não precisa fazer essa cara porque eu
pretendo pagar muito bem essa consulta, assim que me
casar com o Sr. Puntila. Também não precisa ter pres­
sa, porque ainda estamos na sopa, a água pro café nem
está no fogo e o senhor é responsável pela saúde públi­
ca.” {Um trabalhador rola um barril de cerveja pra
dentro de casa.)

Ema

Hum, cerveja!

M atti

O Padre é outro que vai estar na mesa. O que é que


você vai dizer a êle?

Lisu
Vou dizer: “Agora vou ter tempo de ir à Igreja aos
domingos, se tiver vontade”.

140
M atti

p ra discurso de almôço é muito curto. De modo que


cu vou acrescentar: “Monsenhor, hoje é o dia em que
Lisu a ordenhadora, se senta pela primeira vez diante
de um prato de porcelana. O senhor deve ficar muito
contente com isso porque está escrito que todos são
iguais diante de Deus; ora, por que também não serem
iguais diante do Sr. Puntila? E pode estar certo de que
Lisu, como nova dona desta propriedade, haverá de tra­
tá-lo muito bem: sempre umas garrafinhas de vinho
branco no dia de seu aniversário; assim o senhor po­
derá continuar sua eloqüência em louvor das campi­
nas celestes, e ela não terá mais que conduzir as vacas
nas campinas da terra.” (Enquanto M a t t i fala, P u n ­
t i l a aparece na sacada e escuta, o rosto sombrio.)

P u n t il a

Quando você acabar o discurso, me avisa. Quem é essa


gente aí?

S andra
(Rindo)
As suas noivas, Sr. Puntila. O senhor não se lembra?

P u n t il a

Eu? Nunca vi nenhuma de vocês.

Ema

Como não me conhece? Não está vendo o anel?

141
M anda

O anel feito com as argolas da cortina da farmácia de


Kurguela.

P u n t il a

O que é que vocês vieram fazer aqui? Arranjar encren­


ca?

M atti

De maneira alguma. Agora mesmo estávamos discutin­


do como aumentar a alegria da festa e fundamos a As­
sociação das Noivas do Sr. Puntila.

P u n t il a

E por que não um Sindicato? Onde você se mete as


coisas acabam nisso. Eu te conheço, eu sei o jornal que
você lê.

Ema

é tudo brincadeira, Sr. Puntila — queríamos ver só se


nos davam um café.

P u n t il a

Eu sei o que são essas brincadeiras! Vocês vieram foi


fazer chantagem, querem ver se me arrancam alguma
coisa!

Ema

De modo algum, Sr. Puntila!

142
PUNTILA

eU ensino vocês! Só porque eu fui amável querem


a p r o v e i t a r de mim, ganhar o dia à m inha custa, não
^9 olha, se não saírem imediatamente eu chamo a po-
Hcia e mando prender tôdas. Você aí — estou te conhe­
c e n d o : v o c ê não é a telefonista de Kurguela? Vou tele­
fonar à direção para perguntar como é que êles admi­
tem essas brincadeiras num funcionário público. E
quanto às outras, eu vou saber quem são, uma por
uma.

Ema
C o m p r e e n d e m o s . O senhor sabe, Sr. Puntila, o que mais
d e s e ja m o s era ter alguma coisa pra lembrar na velhi­
ce. Vou só me sentar um pouco aqui no chão de sua
c a s a , para poder dizer que me sentei um dia na pro­
p r ie d a d e d o Sr. Puntila, convidada por êle. (Senta-se
no chão.) — Assim, oh! Ninguém saberá que eu me sen­
tei n o chão, ninguém poderá me chamar de mentirosa.
N ã o preciso dizer que não me deram uma cadeira e eu
t iv e que me sentar no solo de Tavasto — que os livros
d e e s c o la dizem que paga todo o suor que a gente em­
p r e g a n ê le . O que os livros não dizem é que um empre­
g a o suor e quem recebe é o outro. Êsse cheirinho bom
n ã o é vitelo assado? Aquilo que eu vi não era uma bola
d e m a n t e ig a ? O que passou rolando não era um bar­
ril d e cerveja? (Canta.)

E o lago e o monte
e as nuvens no horizonte
s ã o o amor do povo de Tavasto
desde as quedas imensas do Aabo
ao verde vergel virgíneo e vasto
Me digam, eu não tenho razão? E agora me levantem,
n ã o me deixem nessa posição histórica.

143
PUNTILA

Fora! Fora daqui!

(As quatro mulheres jogam no chão os adornos de pa


lha. M a t t i varre os adornos. Cortina.)

L aina
(Enquanto enxágua os copos de vinho, canta.)
As noivas da Associação chegaram tôdas
para os festejos do noivado
E o Sr. Puntila gritou
já irritado, àquela hora da manhã:
“Mas desde quando, na tosquia,
as ovelhas têm direito à parte da lã?
Só porque vou pra cama com vocês
uma vez na vida
sou obrigado a dar comida?”
ú

Histórias Finlandesas

Entrada principal. Anoitece. As quatro


mulheres voltam para casa.

Lisu

Como é que a gente vai adivinhar quando um patrão


está de ôvo virado?

Ema

Quando bebem, brincam com a gente, beliscam a gente


onde não devem e se não tomamos cuidado nos arras­
tam pro mato. Cinco minutos depois já foram mordidos
por um escorpião e temos sorte se não chamam a po­
lícia. (Pára.) Tem um prego neste sapato. (Saltitando
vai a uma elevação, senta-se e tira o sapato.)

145
S andra

A sola furou.

Lisu
Não foi feita para andar cinco horas de estrada.

Ema

Agora não presta mais. Podia ter durado um ano. Me


pega uma pedra. (A telefonista lhe dá uma pedra e
enquanto uma bate a sola as outras se sentam em vol­
ta.) — Eu disse que a gente não deve levar patrão
a sério. Uma hora estão assim, outra hora estão assado,
outra cozido. A mulher do antigo chefe de polícia às
vêzes me chamava de madrugada pra fazer massagem
quando os pés inchavam. Pois cada vez que eu chegava
ela me tratava de um jeito diferente. Dependia dos
negócios lá dela com o marido. Parece que êle andava
com a empregada. Um dia ela me ofereceu bombons,
compreendi que êle tinha deixado a empregada. Mas
deve ter voltado a andar com a garôta porque, de re­
pente, a madame não conseguia mais se convencer que
eu tinha feito dez massagens durante o mês e não seis.
Perdeu completamente a memória — mas contra mim.

M anda

é , mas às vêzes tem uma memória de ferro. Como


Pekka, o que ficou rico nos Estados Unidos! Depois
de vinte anos voltou pra ver a família. Êles eram tão
pobres que pediam a minha mãe as cascas de batata,
imaginem só. Mas quando Pekka voltou êles fizeram
um carneiro assado pro americano ficar satisfeito. Êle
comeu, ficou satisfeito e depois lembrou que há muito

146
tinha emprestado vinte marcos ao avô. E ba-
temp° ^ cabeça, cheio de pena, tanta dor êle tinha de
^ d esp ed ir pra sempre de seus vinte marcos. (As m u­
lheres riem.)

S andra

Mas se não fôsse assim, como é que iam ficar ricos?


N u m a noite de inverno de 1908 o lago estava gelado.
Era uma noite horrível. Um proprietário, nosso conhe­
cido, contratou um cocheiro para atravessar o lago.
Êles sabiam que havia um buraco no gêlo em algum
lugar mas não sabiam onde. Por isso o cocheiro teve
que andar a pé, na frente do carro, durante doze qui­
lômetros. O proprietário estava com tanto mêdo que
prometeu um cavalo se êle conseguisse chegar do outro
lado. No meio do lago o homem disse ao cocheiro que
se chegassem do outro lado lhe daria um vitelo bem
gordo. Depois, quando começaram a avistar as luzes
da aldeia êle disse: “Vamos, coragem, fôrça — ou você
não ganha o seu relógio!” A cinqüenta metros da mar­
gem êle ainda falava de um saco de batatas. Quando
chegaram êle deu ao cocheiro meio marco de gorjeta
e disse: “Puxa, como você demorou!”

Ema

Precisava afogar todos.

S andra

Nós somos muito estúpidos e êles muito sabidos —


nos tapeiam sempre. O que atrapalha é que êles são
igualzinho a nós. Se tivessem corpo de urso, ou de
cobra, a gente tomava mais cuidado.
M anda

Não se deve nunca brincar com êles. Não se deve acei­


tar nada dêles, nunca.

Ema

É bonito de dizer — não aceitar nada dêles. Êles têm


tudo e nós nada. Não beber água do rio, morrendo de
sêde.

M anda

Por falar nisso eu estou morrendo de sêde.

Lisu
Eu também. Em Kansala tinha uma môça que dormiu
com o filho do patrão. Saiu um filhinho, mas no Tri­
bunal de Helsinki êle negou tudo pra não ter que pagar
os alimentos. Então ela arranjou um advogado e o
advogado levou pro tribunal tôdas as cartas que o ra­
paz tinha escrito para ela quando estava no serviço
militar. O que êle dizia nas cartas era tão claro que
ninguém lhe tirava cinco anos de cadeia por falso ju­
ramento. Só que quando o juiz começou a ler a pri­
meira carta em voz alta, bem devagar, palavra por
palavra, a môça berrou que queria suas cartas de volta
e não ganhou os alimentos. Dizem que chorava como
uma cascata quando saiu do Tribunal. A mãe dela es­
tava furiosa e o patife ria, satisfeito! Coitada, estava
apaixonada!

S andra

Se comportou como uma idiota!

148
Ema

. 0 sapato. Depende. Podia até ter feito bem,


agindo assim. Eu conheço um rapaz de Viburgo que
- nuis receber nada dêles. Tinha dezoito anos e como
a n d a v a metido com os vermelhos foi internado no
campo de Tammerfors. Não lhe davam nada pra co-
er pra não morrer de fome, êle comia capim. A mãe
então foi visitar êle levando alguma coisa: teve que
andar oitenta quilômetros! A pé! Ela era lavradora
numa plantação e a patroa deu a ela um peixe e meio
quilo de manteiga. A maior parte do tempo ela ia a
pé, mas quando passava um carro de lavradores ela
pedia carona por um pedaço de caminho. E aí con­
tava: “Vou ver meu filho Athi, no campo de concen­
tração de Tammerfors e minha patroa me deu êste
peixe e meio quilo de manteiga para levar para êle.”
Logo que acabava de dizer isso mandavam ela descer
porque o filho era um vermelho. Aí ela passava pelas
lavadeiras do rio e contava de nôvo: “Vou encontrar
meu filho Athi, no campo de concentração de Tam­
merfors e minha patroa, que Deus a abençoe, me deu
um peixe e meio quilo de manteiga pra levar pra êle.”
E quando ela chegou no campo repetiu a mesma his­
tória e repetiu para o próprio comandante que caiu
na gargalhada e deixou ela entrar, coisa que era abso­
lutamente proibida. Na frente do campo ainda havia
capim, mas dentro dos cercados nada, nem um fio;
nem uma casca de árvore; êles tinham comido tudo.
Isso acontecia sempre, vocês não sabiam? Entre guerra
e prisão já tinha dois anos que ela não via o filho.
Athi estava um espêto: “Ah, você está aí, Athi meu
filho” ela disse. “Tome, olha: trouxe um peixe e meio
quilo de manteiga. A patroa me deu para você.” Athi
disse bom-dia, perguntou como ia o reumatismo dela,
falou de alguns vizinhos, mas a manteiga e o peixe
nem quis ver. Ou melhor, ficou com raiva quando ela
insistiu e gritou: “Você foi pedir por caridade à pa­
troa, essa porcaria? Devolve tudo a ela: eu não aceito
nada dessa gente!” E assim ela teve que embrulhar
tudo de nôvo. Athi estava morto de fome. Ela se des­
pediu dêle e voltou para casa, um pouco a pé e um
pouco de carro, quando encontrava algum. Uma vez
disse a um camponês: “O meu filho Athi está no cam­
po de concentração morto de fome mas não quis acei­
tar nem o peixe nem a manteiga que eu levei, porque
foi a patroa que deu de caridade e dessa gente êle não
aceita nada.” A viagem era muito comprida e ela
muito velha. De tempos em tempos ela se sentava na
beira da estrada e comia um pouquinho de peixe e um
pouquinho da manteiga. Não comia m uito porque o
peixe e a manteiga já não estavam mais frescos — até
fediam um pouco. Mas repetia pras mulheres que la­
vavam no rio: “No campo de concentração o meu filho
Athi não quis aceitar nem o peixe nem a manteiga
porque foi a patroa que deu de caridade e dessa gente
êle não aceita nada.” Repetia isso pra todo mundo que
encontrava e deve ter causado uma certa impressão
nas pessoas, porque eram oitenta quilômetros de es­
trada.

Lisu
Ainda há homens como êsse Athi.

Ema

Muito poucos.

(Levantam -se e saem sem dizer mais nada.)

CORTINA

150
L a in a
(Com um moinho na mão. Mói café e canta.)
A festa das quatro noivas
que eram noivas de um velhaco
termina com as quatro noivas
pondo a viola no saco.
Galo que crê nos senhores
chamando-os de protetores
passa a viver sem cautela
e é o primeiro na panela.

151

W ^ ÊÊm
Puntila dá a Filha
a um Homem

Sala de jan tar com pequenas mesas e


um grande Buffet. À esquerda, mesas
com café e outros utensílios. O Padre, o
Juiz e o Advogado tom am café e fumam.
P u n t il a está sentado num canto e bebe
em silêncio. Na sala ao lado se dança ao
som de um gramofone.

O P adre

É muito raro encontrar-se uma fé verdadeira. O que


se encontra geralmente é dúvida e indiferença. Dá para
desesperar o nosso povo. Eu não me canso de repetir
que se não fôsse pela vontade do Altíssimo não nasceria
nem um amendoim e, no entanto, êles encaram a na­
tureza como uma coisa natural. Como se, dando frutos,
ela não fizesse mais que sua obrigação. Para mim essa
descrença tôda vem do fato dêles não freqüentarem
a Igreja aos domingos, deixando-me falar aos bancos
vazios. Como se não tivessem bastante bicicletas; cada
criado tem uma. O que acontece é que são umas almas
danadas! Essa é a verdade verdadeira. Senão, como se
explica o que aconteceu na semana passada, à cabecei­
ra de um agonizante? Eu estava lhe explicando as
maravilhas que aguardam a um homem quando atra­
vessa em paz as fronteiras da morte quando êle me
perguntou: “o que é que o senhor acha: as batatas
vão agüentar a chuva?” Não dá uma vontade de largar
tudo? Tanto trabalho pôsto fora.

Juiz
Eu o compreendo, monsenhor. Iluminar escuridão tão
negra não é tarefa fácil.

A dvogado

Também pra nós advogados a vida anda difícil. Sem­


pre vivemos das brigas dos camponeses, homens de
cabeça dura, que preferem pedir esmola do que renun­
ciar a um direito. Continuam com a mesma vontade
de brigar, de se ofender, de se esfaquear, de fazer uns
aos outros todo o mal possível. Mas assim que sabem
que um advogado cobra quatro marcos por uma con­
sulta, ficam logo calminhos e abandonam o mais lindo
processo pelo deus do ouro.

Juiz
São os nossos tempos; tempos de comércio e cobiça.
Um nivelamento geral. Acabaram-se os bons tempos. A
gente que lida com o povo muitas vêzes desespera —
mas é preciso paciência. Nós da elite temos que fazer
tudo para civilizá-los um pouquinho que seja.

154
A dvogado

p u n t i l a , por exemplo, pode não fazer nada — fica


olhando. A plantação não precisa dêle. Mas um pro­
cesso, um processo é uma coisa extremamente com­
plicada. A gente fica de cabelos brancos pra fazer um
processo atingir a maturidade. Quantas vêzes pensamos
que um processo vai morrer jovem por falta de teste­
munhas e, de repente, êle recupera a saúde de nôvo,
crescendo normalmente? Quando um processo começa,
quando é mocinho, é que precisa dos maiores cuidados.
É enorme a taxa de mortalidade dos processos jovens.
Mas uma vez bem alimentado de documentos êle cresce
sozinho. Um processo que passou dos quatro ou cinco
anos tem tôda possibilidade de atingir uma idade avan­
çada. Mas até a gente chegar lá, que luta de cão!
(Entram o A t t a c h é e a M u l h e r d o P a d r e J

M ulher do P adre

Sr. Puntila, tem que cuidar um pouco mais de seus


convidados. O Senhor Ministro está dançando com Eva,
mas já perguntou várias vêzes pelo senhor.

Juiz
Também acho que você não está dando ao Ministro
a atenção devida. ( P u n t i l a não responde.)

A tta c h é

Agora mesmo, monsenhor, sua espôsa deu ao Ministro


uma resposta brilhante, deliciosa! Êle perguntou se ela
não gostava de jazz. Fiquei esperando a resposta com
o máximo de curiosidade. Ela refletiu um instante e
respondeu: “Pra mim todos os tipos de dança são indi­
ferentes. Eu só dançaria se pudesse dançar com a mú­

155
sica de um órgão de igreja.” O ministro chorou de rir
com a resposta. Que é que você acha, Puntila?

P u n t il a

Não acho nada. Não costumo criticar meus convidados.


(Faz um sinal para o Juiz se aproximar.) — Frederico,
essa cara te agrada?

Juiz
Que cara?

P u n t il a

A do attaché. Fala a verdade, hein!?

Juiz
Cuidado, Puntila, o ponche está muito forte.

A tta c h é
(Repete a bôcca chiúsa a melodia da sala ao lado e
ensaia passos de dança.)
É um ritmo irresistível, não é?

P u n t il a
(Faz nôvo gesto para o Juiz se aproximar. Êste procura
não notar.)
Frederico, fala com sinceridade. Diz a verd ad e... Que
é que você acha dessa cara? Olha que essa cara vai
me custar um bosque. (Os outros convidados cantam
em côro: “Eu procuro T it in a ...”)

156
A ttaché
(Que não percebe nada.)
não consigo guardar uma letra de música; já na
era um inferno eu decorar uns pontos. Agora,
c o la
o ritmo eu tenho no sangue.

Advogado
(Vendo que os sinais de P untila se tornam mais
evidentes.)
E stá um calor danado aqui. Vamos pro salão? (Tenta
arrastar o A ttach é.,)

A ttaché
Mas há um verso que não me sai da cabeça: “We have
no bananas”. Portanto, m inha falta de memória não
é de desesperar.

P untila
Frederico, olha e julga: olha bem, Frederico!

Juiz
Vocês conhecem a piada do judeu que esqueceu o
capote no café? Não conhecem? Pois é: êle esqueceu
o capote no café. O pessimista disse: “Êle vai encon­
trar o capote.” O otimista disse: “Êle não vai encontrar
o capote.” (Todos riem.)

A ttaché
Bem. E depois? (Novas risadas.)

Juiz
Meu caro Eino, parece que você não pegou bem o sen­
tido da piada.

157
PUNTILA

Frederico!

A t ta c h é

Então me explica, por favor. Eu tenho a impressão de


que o senhor trocou as respostas. O otimista devia
dizer: “Êle vai encontrar o capote.”

Juiz
Não, não o pessimista! Procura entender. A piada está
justam ente aí: o capote é tão velho que é melhor não
encontrá-lo.

A t ta c h é

Ah, o capote é muito velho!? Mas isso o senhor não


tinha dito. Ah, ah, ah! É a piada mais formidável que
eu já ouvi.

P u n t il a
(Levanta-se, sombrio.)
Chegou o momento de intervir. Não sou obrigado a su­
portar um homem assim! Frederico, você não quis
responder a uma pergunta que eu te fiz com a má­
xima seriedade: você acha que devo introduzir na
minha família uma cara dessas? Você se recusou a
responder. Mas eu sou homem bastante decidido para
resolver sozinho. Um homem sem humor não é um
homem. (Com dignidade.) — Saia de minha casa! É
você mesmo! Não adianta se voltar assim, como se eu
estivesse falando com outra pessoa!

Juiz
Puntila, você está exagerando.

158
A t ta c h é

senhores, eu peço que ignorem êsse incidente. Não


odem imaginar como é delicada a posição dos mem­
bros do Corpo Diplomático. Basta a mais insignificante
m an c h a do ponto de vista moral para que nos neguem
certas credenciais. Em Paris, por exemplo, a sogra do
secretário da legação romena agrediu o amante com
um guarda-chuva e o escândalo foi imediato.

P u n t il a

Um gafanhoto de fraque! Um gafanhoto pretende de­


vorar um bosque inteiro!

A tta c h é
(Nervoso.)
Compreendeu; que ela tivesse um amante, é normal;
que ela o tivesse agredido, é concebível. Mas com um
guarda-chuva: é vulgar. Aí está a nuança.

A dvogado

Puntila, êle tem razão. A honra que está em jôgo aqui


é uma honra especialíssima. Êle pertence ao Corpo
Diplomático.

Juiz
Êsse ponche está forte demais para você, Puntila.

P u n t il a

Frederico, você ainda não percebeu a gravidade da


situação.
A t ta c h é

Enquanto não se disser explicitamente o nome de nin­


guém, tudo é reparável. A coisa só se torna irreparável
quando as injúrias são acompanhadas explicitamente
dos nomes a quem se dirigem.

PUNTILA
(Com amargo sarcasmo.)
E como é que eu faço agora, Frederico? Não vou poder
me livrar dêle? Esqueci o nome dêle! Louvado seja
Deus, já sei! Está aqui. (Puxa do bôlso.) — Está aqui,
na promissória que êle me deu para resgatar. Se chama
Eino Silaka. Vocês acham que êle agora vai embora?

A t ta c h é

Atenção senhores; um nome foi pronunciado. A partir


dêste momento, cada palavra que não seja pesada até
o último miligrama, pode ter conseqüências funestas.

P u n t il a

Êsse não tem jeito. (Vocifera.) — Dá o fora daqui, eu


já não disse? E nunca mais me apareça em minha
casa, está ouvindo? Você acha que vou entregar minha
filha a um gafanhoto de fraque?

A tta c h é
(Voltando-se para P u n t i l a J
Puntila, você está ficanao ofensivo. Se me põe para
fora de sua casa atravessa a imperceptível e delicada
fronteira que conduz ao escândalo.

P u n t il a

Agora é demais. Agora eu perco a paciência. Eu não

160
eria g rita r. Queria te fazer entender assim, discre­
tam e n te , que a tua cara me revolta o estômago, e que
é m elhor você sair da minha frente. Mas você me
obriga a falar claro e direto. É só por isso que eu te
digo: “D á o fora daqui, seu merda!”

A tta c h é

P u n tila , isso eu não tolero. Senhores, os meus respeitos!


(Vai saindo.)

P u n t il a

Sai mais depressa! Quero te ver correndo, seu patife!


Eu vou te ensinar a me dar respostas insolentes! (Corre
atrás dêle. Todos o seguem, com exceção da M u l h e r ,
do P adre e do JuizJ

M ulher do P adre

Agora vai ser um escândalo!

E va
(Entra cantarolando.)
Que barulho é êsse aí fora? Que foi que aconteceu?

M ulher
(Correndo para E v a J
Ah, querida, aconteceu uma desgraça! Seja forte, mi­
nha filha, tenha ânimo!

E va

Mas que foi que aconteceu?

161
Juiz
Toma antes um xerez, Eva. Teu pai bebeu uma garrafa
inteira de ponche e botou o Eino para fora de casa.
De repente não agüentou mais a cara dêle.

E va

O xerez está com gôsto de rôlha, que pena. Que foi


que papai disse?

M ulher

Você não está transtornada, Eva?

E va

Estou, estou. (O P adre volta.)

P adre

Hi, foi terrível!

M ulher

Que foi que aconteceu? Alguma coisa de nôvo?

P adre

Uma cena terrível no pátio. Puntila atacou-o a pe­


dradas.

E va

Acertou alguma?

162
P adre

- crei O Advogado protegeu-o com o corpo. E o Mi­


nistro aí na sala.

E va

Tio F red erico, a g o r a estou quase certa de que êle não


volta . F e liz m e n te o Ministro estava aqui. Senão, não
h a v eria n e m a metade do escândalo.

M ulher

Eva! (Entra P untila , seguido de M atti, L aina e F ina .)

P untila
Amigos, acabo de dar uma olhada na abjeção do m un­
do. Entrei ali no salão com as melhores intenções, para
anunciar que eu tinha cometido um grave êrro mas
que estava disposto a repará-lo. Que eu quase tinha
deixado minha filha casar com um gafanhoto de fra­
que, mas agora ia entregá-la a um homem, como sem­
pre foi minha intenção. Eu disse: “Êsse homem, êsse
rapaz magnífico, é Matti Altomem, um ótimo chofer
e um excelente amigo. Quero que todos brindem à fe­
licidade de um casal jovem e ditoso.” Pois muito bem:
querem saber qual foi a reação? O Ministro, que eu
pensava ser um homem esclarecido, me olhou como se
olha um cogumelo venenoso. E pediu o automóvel. Na­
turalmente todos o imitaram — um bando de macacos!
Que espetáculo! Me senti um mártir cristão diante dos
leões — mas a minha opinião êles souberam. Consegui
Pegar o Ministro antes dêle subir no automóvel e lhe
disse também que êle era um merda. Creio que exprimi
bem o sentimento de todos, não é verdade?

163
M atti

Sr. Puntila, acho que devíamos ir todos para a co- !j


zinha, discutir o assunto com uma garrafinha d e
ponche.

P u n t il a

E por que na cozinha? O noivado de vocês ainda n ã o


foi festejado. Só festejamos o outro, o falso. Uma des­
pesa inútil. Vamos reunir as mesinhas tôdas e fazer
uma grande. Recomeçemos tudo. Fina, senta aqui d o
meu lado. (Os outros reúnem as mesinhas, como êle
mandou, formando uma mesa grande. E v a e M a t t i
pegam cadeiras. P u n t i l a se senta no meio da sala.)

E va

Não fica me olhando assim. Você está com o olhar


igualzinho ao de meu pai, ontem de manhã, quando
lhe serviram um ôvo podre. Você já me olhou de outra
maneira, outras vêzes.

M atti

Estava olhando a forma do ôvo.

E va

Ontem de noite quando você quis ir à ilha pescar


caranguejos comigo, os caranguejos entravam na con­
versa só como pretexto.

M atti

Era de noite e ninguém tinha ainda falado em casa­


mento.
PUNTILA

-ir-na senta aqui do meu lado! Leina, senta tambémJ


Monsenhor, senta o senhor também aí perto da môça.
Senhora, por favor, ali junto da cozinheira. E você,
Frederico, escolhe um bom lugar para você. Matti, Eva,
aiegria! Senhora, por favor, faça as honras da casa!
(Todos se sentam com má vontade. Silêncio. Para a
cozinheira) — Laina, deixa essa garrafa em paz e bota
as tuas quatro letras nessa cadeira. Quatro letras, é:
r - A - B - O.

M ulher do P adre
(À cozinheira.)
Já pôs os cogumelos na conserva êste ano?

L a in a

Não ponho na conserva. Deixo secar.

M ulher

Como?

L a in a

Corto em pedacinhos, furo com uma agulha, enfio num


barbante e penduro ao sol.

P u n t il a

Quero dizer algumas palavras sôbre o noivo de minha


filha. Matti, eu te observei em segrêdo e formei uma
opinião definitiva sôbre o teu caráter. Não quero me
referir ao fato de que, depois que você veio trabalhar
conosco, aqui não há mais nenhuma máquina engui­
çada. O que desejo ressaltar especialmente em você é
o homem. Não esqueci o que aconteceu hoje de manhã.
Enquanto eu, como um Nero qualquer, gritava lá em
cima da sacada expulsando minhas pobres noivas, pudel
observar bem o teu comportamento. Você conhece bem
êsses meus ataques. Deve ter visto que, durante todo
o almôço, eu fiquei à parte, em profundo recolhimen­
to, pensando nas pobres mulheres que voltavam a pé
pela estrada de Kurguela sem uma gôta de vinho de­
pois de tanta injustiça. Depois disto eu não me espan­
taria se elas perdessem a confiança em mim. Agora
eu te pergunto, Matti: você é capaz de esquecer o que
aconteceu?

M atti

Faça de conta que já esqueci, Sr. Puntila. Mas diga à


sua filha, com todo o pêso de sua autoridade de pai,
que ela não pode se casar com um chofer.

P adre

Muito bem!

E va
Papai, ontem Matti e eu discutimos algumas idéias
enquanto você estava fora. Matti não acredita que você
lhe dê uma serraria nem que eu consiga me adaptar
à vida de um chofer.

P u n t il a

O que é que você acha, Frederico?

Juiz
Não me pergunta nada, João. Nem fica me olhando
com êsse olhar de boi morto. Pergunta a Laina!

166
PUNTILA

t a in a ,pergunto a você. Você me acha capaz de eco­


n o m izar quando se trata de minha própria filha? Acha
ou e eu não sou capaz de lhe dar uma serraria, um
m o in h o e ainda por cima um bosque?

L aina
(Interrompida enquanto explica seus cogumelos à
mulher do Padre, o que é visível pela mímica.)
Vou fazer um café pro senhor, Sr. Puntila.

PUNTILA
(A M a t t i. ,)
Matti, você trepa bem?

M atti
Dizem que sim.

P untila
Não quero saber o que dizem — quero que você me
diga. Você sabe fazer a coisa como se deve? Não há
nada mais importante na vida. Você não vai falar, eu
sei, você não é homem de contar vantagem. Mas me
diz só: você trepou com Fina? Porque, nesse caso, eu
pergunto a ela. Ah, não? Não compreendo!

M atti

Deixa isso pra lá, Sr. Puntila.

E va
(Que bebeu um pouco, se levanta e faz um discurso.)
Meu caro Matti, te peço que me aceites como espôsa,

167
porque eu também preciso de um homem como tôdas
as outras. Se você quiser podemos antes ir pescar
caranguejos sem tarrafa. No mais, eu não me acho
nada de extraordinário, como talvez você pense, mas
sei que poderemos viver juntos, mesmo sem muito di­
nheiro.

P u n t il a

Bravo!

E va

Se porém você acha que ir pescar caranguejo não é


uma coisa muito séria, eu pego imediatamente a mi­
nha mala e vamos para a casa de sua mãe. Papai não
tem nada em contrário, tem?

P u n t il a

Nada, nada. De acordíssimo.

M atti
(Se levanta e bebe dois copos seguidos.)
Srta. Eva, estou disposto a fazer qualquer animalidade
com a senhorita, menos a de levá-la à casa de mamãe.
A pobre velha teria um ataque. Você sabe que lá em
casa só tem um sofá? Senhor cura, descreva para essa
môça a construção de uma cozinha de pobre, com cama
de dormir e tudo.

P adre
( Sério.)
Um lugar assaz modesto.

168
E va

por que descrever? Eu vou ver pessoalmente.

M atti

Está bem. Vai logo perguntar a m inha mãe onde é o


banheiro.

E va

Ora, eu não sei? Eu vou ao banho público.

M atti

Só se fôr com o dinheiro do Sr. Puntila. Você continua


com essa serraria na cabeça! Não conta com isso, me­
nina. Amanhã de manhã o Sr. Puntila fica bom e va­
mos ter que enfrentar de nôvo um homem sensato.

P u n t il a

Cala a bôca, Matti! Não fala mais dêsse Puntila que


agora é nosso inimigo comum. Esta noite nós já afo­
gamos êsse miserável numa garrafa de ponche. E agora
quem está aqui sou eu mesmo, um ser humano. Be­
bam vocês também, não tenham mêdo, fiquem hu­
manos!

M atti

Repito que não posso apresentar você à minha mãe.


Minha mãe me jogava os tamancos na cabeça se eu
aparecesse lá em casa com uma mulher assim. Essa
é a verdade.

169
E va

Você não precisava dizer isso.

P u n t il a

Eva tem razão, Matti. Você agora passou dos limites.


Ela tem seus defeitos, concordo, é possível que engorde
com a idade, como a mãe, mas não antes dos trinta
e cinco. Por enquanto ainda vale uma boa missa.

M atti

Não falo de engordar — digo apenas que não tem senso


prático, que não foi educada o suficiente para ser mu­
lher de um chofer.

P adre

Sou da mesmíssima opinião.

M atti

Não tem nada que rir, menina. Se minha mãe come­


çasse a te examinar da cabeça aos pés, você perdia tôda
essa alegria. Ficava dêste tamanho.

E va

Então, vamos, Matti, experimenta. Eu sou a mulher


de um chofer. Me diz o que eu tenho de fazer.

P u n t il a

Bravo, Eva. Fina, traz uns sanduíches, vamos comer


uma coisinha. Enquanto isso, Matti, você examina Eva
de lado a lado, de trás e de frente, por cima e por
baixo.

170
M atti

Fica sentada, Fina! A minha casa não tem empregada.


Q u a n d o chega uma visita qualquer a gente só pode
oferecer o que come todo dia. Vai buscar o arenque,
Eva !

E va
(Alegre.)
Correndo. (Sai.)

PUNTILA
(Gritando.)
Não esquece a manteiga! (A M a t t i J — Estou sensibi­
lizado com a tua decisão de fazer tudo sozinho, sem
depender do meu dinheiro. Muito poucos seriam ca­
pazes disso.

M ulher do P adre
(À cozinheira.)

Eu não. Eu nunca ponho os cogumelos no sal. Deixo


cozinhar no limão, com uma pitadinha de manteiga.
Mas isso só é bom pros bem pequenininhos, que pa­
recem uns botões. Também ponho na conserva os
lactários.

L a in a

Os lactários não são cogumelos muito finos, como qua­


lidade — mas o gôsto é bom. Os cogumelos melhores
são os boletos e os sépias.

E va
(Que volta com o arenque servido num a bandeja.)

171
Na cozinha não tem manteiga, tem?

M atti

Aí está êle! Eu o reconheço. (Pega a travessa.) —


Ainda ontem vi teu irmão, e antes de ontem comi al­
guém de tua família. Tua família tem me alimentado
sempre desde que me entendo. Quantas vêzes por se­
mana você vai comer arenque, Eva?

E va

Três vêzes, Matti, se fôr preciso.

L a in a

Três vêzes? Vai ter que comer muito mais!

M atti

Você vai ter muito que aprender. Minha mãe, que era
cozinheira de uma fazenda, servia arenque cinco vêzes
por semana. Laina serve oito. (Segura o arenque pelo
rabo e o suspende no ar.) — Sê bendito, ó arenque, com ­
panheiro do pobre. Tu que nos sacias a fome a qual­
quer hora do dia e a qualquer hora do dia nos envene­
nas as tripas. Tu que vens do mar e acabas na terra.
Graças à tua fôrça maravilhosa os pinheirais são abati­
dos, os campos semeados. Tu que pões em movimento
essa máquina chamada criadagem que infelizmente
ainda não é moto-perpétuo. Ó arenque maldito! Se tu
não existisse começaríamos a exigir dos patrões carne
de porco e então que seria da nossa Finlândia bem ama­
da? (Deposita o prato, corta o arenque em pedaços e
dá um pedaço a cada um.)

172
PUNTILA

para mim tem um gôsto especial, delicioso. Como tão


rara m e n te . Essas diferenças não deviam existir. Se de­
pendesse de mim eu botava numa caixa tôda a renda
da propriedade e cada um se servia do dinheiro confor­
me precisasse. Afinal, êsse dinheiro pertence a quem
tra b a lh a . Sem o trabalho a caixa estaria vazia. Eu não
estou certo?

M atti

Não o aconselho a fazer isso, Sr. Puntila. Em meia hora


a caixa ficava vazia e em pouco tempo o banco tomava
conta da propriedade.

P u n t il a

Isso é o que você diz. Eu não penso assim. Eu sou qua­


se um comunista. Se eu fôsse empregado transformaria
num inferno a vida de Puntila. Vamos, continua o teu
exame, me interessa.

M atti

Se penso no que uma mulher deve demonstrar que sabe


fazer antes que eu possa apresentá-la à minha mãe, me
vem logo à cabeça um par de meias. (Tira o sapato, tira
uma meia e entrega-a a E v a .) — Por exemplo, Eva, você
é capaz de cerzir uma meia?

Juiz
Mas isso é exigência demais! O arenque ainda vai, mas
eu acho que nem o amor de Julieta por Romeu resisti­
ria à prova de remendar uma meia suja. Um amor ca ­
paz de tal sacrifício se tornaria fatalmente insuportá-

173
vel, depois de um certo tempo. Demonstraria um tempe­
ramento fogoso, passional, e os temperamentos assim
mais cedo ou mais tarde acabam no tribunal.

M a tti

Nas classes mais baixas, Sr. Juiz, as meias não são cer­
zidas por amor, mas por economia.

P adre

Não creio que as Pias Irmãs de Caridade do Educandário


de Bruxelas, onde Eva foi criada, tenham pensado em
tal eventualidade. (E va volta com agulha e linha e se
põe a costurar.)

M atti

Pois agora tem que aprender o que as Pias Irmãs de


Caridade do Educandário de Bruxelas se esqueceram de
ensinar. (A E v a .) — Eu não pretendo censurar as de­
ficiências de sua educação desde que você dê provas de
boa-vontade. Você foi infeliz na escolha de seus pais;
não lhe ensinaram nada que preste. Já no arenque você
demonstrou uma espantosa ausência de conhecimentos
básicos. Escolhi agora a questão das meias para apro­
fundar mais até onde vão tuas deficiências.

F in a

Eu ensino à senhorita como se faz.

P u n t il a

Coragem, Eva, você é muito esperta. Tem que conse­


guir. (E v a , hesitando, entrega a meia a M a t t i . M a t t i

174
a levanta, olhando-a com olhar de escárnio. O remendo
c horrível.)

F in a

Sem o ôvo nem eu fazia melhor.

P u n t il a

Por que você não usou o ôvo, Eva?

M atti

Ignorância. (Ao Juiz, que ri.) — Não há nada pra rir;


ficou uma porcaria. (A E v a .) — E se você fôsse casada
com um chofer e êle só tivesse essa meia! Seria uma
tragédia! Mas vou lhe dar mais uma oportunidade. Vê
se sai melhor dessa! (Põe uma mesa de lado.) — Uma
cadeira, por favor.

E va
(Trazendo a cadeira.)
É, Matti, reconheço que a meia foi uma vergonha.

M atti

Agora imagine que eu sou chofer numa casa onde você


também ajuda lavando roupa e conservando a estufa
acesa, no inverno. Estou voltando pra casa de noite;
como é que você me recebe?

E va

Agora eu vou me sair melhor, Matti, você vai ver. Che­


ga em casa! (M a t t i se afasta alguns passos e depois fin­

175
ge que chega em casa.) — Matti! (Corre para êle e o
beija.)

M atti

Primeiro êrro: intimidade e frivolidade quando eu che­


go em casa morto de cansaço. (Finge abrir uma bica e
lavar-se; depois estende as mãos esperando uma toalha.)

E va
(Não entende e continua a matraquear.)
Oh, pobre Matti, está muito cansado? O dia inteiro eu
fico pensando em você — você trabalha tanto! Eu que­
ria tanto poder te ajudar.

F in a
(Sussurra.)
A toalha! (Dá uma a Eva.)

E va
(Deprimida.)
Perdão, eu não tinha entendido. ( M a t t i grunhe gros­
seiram ente e se senta numa cadeira perto da mesa. Es­
tira uma perna para que E v a lhe descalce a bota.)

P u n t il a
(Que se levantou e segue ansioso a cena.)
Tira! Tira! (E v a tira a bota de M a t t i mas term ina sen­
tada no chão.)

P adre

Estou achando a lição extraordinária. Está se vendo


que essa união não é uma coisa natural.

176
M atti

Nem sempre eu exijo que m inha mulher faça isso; mas


hoje trabalhei o dia inteiro no trator, estou meio morto.
De qualquer maneira precisamos considerar que isso
possa acontecer. Que é que você fêz hoje, Eva?

E va
(Sentada no chão.)
Lavei roupa.

M atti

Quantos lençóis você lavou?

E va

Quatro, Matti.

M atti

Fina, diz a ela.

F in a

Você lavou no mínimo dezessete, sem contar as duas ti­


nas de roupa menor.

M atti

Tinha água na bica? Ou você teve que ir buscar de bal­


de, como aqui, onde a bomba está sempre enguiçada?

P u n t il a

Essa é comigo, Matti, entendi bem. Mas eu mereço. Sou


um patife.

177
E va

Fui buscar de balde.

M atti

E as unhas? (Examina as mãos dela.) — Você quebrou


lavando a roupa ou atiçando fogo. Sabe o que é que
você deve fazer? Põe sempre um pouco de gordura nas
mãos. Depois de um certo tempo as mãos de minha mãe
ficaram assim (Mímica.) — inchadas e vermelhas. Eu
sei que você está muito cansada, Eva, mas ainda vai
ter que lavar meu uniforme. Preciso dêle bem limpo
amanhã de manhã.

E va

Sim, Matti.

M atti

Assim já estará sêco amanhã de manhã e você não pre­


cisa levantar muito cedo para passar. Basta acordar
às quatro e meia. (Procura alguma coisa em cima da
mesa.)

E va
(Preocupada.)
O que é?

F in a

O jornal. ( E va salta e entrega a M a t t i um jornal im a­


ginário. Mas M a t t i não o pega e continua a procura
em cima da mesa.) — Em cima da mesa! (E va joga o
jornal em cima da mesa mas ainda não tirou a segunda

178
ta dêle; êle bate com o pé, impaciente. Depois de ti-
r a segunda bota ela se levanta satisfeita, dá um sus-
piro e ajeita os cabelos.)

E va

Eu m esm a bordei êste avental para dar mais colorido à


m in h a roupa. Um pouco de côr alegra a vida e vai bem
em q u alq u er lugar. Depois, não custa muito. É só a
gente te r bom gôsto. Você gosta, Matti? ( M a t t i , inter­
rompido na leitura do jornal, deixa-o cair no chão. Fita
Eva sem dizer nada, ela fica apavorada.)

F in a

Nunca falar coisa alguma enquanto o marido lê o jor­


nal.

M atti
(Levanta-se.)
Você viu?

P u n t il a

Eva, você me decepcionou.

M atti
(Quase com compaixão.)
É preciso corrigir tudo. Quer comer arenque três vêzes
por semana, se esquece do ôvo de cerzir meias e quan­
do, à noite, eu volto pra casa esgotado de trabalho não
tem nem o bom-senso de ficar de bôca fechada. Agora
me diz: se me chamarem de noite para levar o velho
a estação — o que é que acontece?
E va

Você vai ver! (Finge que abre a janela e grita para /o-
ra.) — O quê? A essa hora da noite? Mal acabou de
chegar! Não tem nem o direito de dormir? É o cúmulo!
O senhor que vá curar o seu pileque no diabo que o car­
regue! Meu marido não sai porque eu não quero! Vou
até esconder as calças dêle!

P u n t il a

Magnífico! Você tem que reconhecer que foi magnífico,


M atti!

M atti
(Rindo.)
Formidável, Eva! Vou ficar sem emprêgo, é verdade,
mas se minha mãe estivesse aqui ia adorar você. (Dá-
lhe uma palmada.)

E va
(Primeiro muda de espanto, depois furiosa.)
Não me faça isso!

M atti

O que foi?

E va

Como se atreve a me bater aí?

Juiz
Cara Eva, acho que o teu exame foi um fiasco do prin­
cípio ao fim.

180
PUNTILA

Mas que é que você tem, Eva?

M atti

Se ofendeu? Eu não devia fazer isso?

E va

Papai, pra falar a verdade, não sei mais se a coisa fun­


ciona.

P adre

Eu acho que não.

P u n t il a

O que é que significam essas dúvidas?

E va

Cheguei à conclusão de que minha educação foi tôda


errada. Acho melhor ir dormir.

P u n t il a

Agora eu sou obrigado a me meter. Senta aí, Eva!

E va

Não, papai, deixa eu ir, é melhor. Infelizmente você


não vai ter festa de noivado. Boa-noite. (Sai.)

181
PUNTILA
Eva! (Tam bém o P adre e o Juiz se preparam para
sair. Mas a M u l h e r do P adr e ainda fala dos cogumelos
com L a i n a .)

M ulher do P adre

Você quase me convenceu. Mas sabe, tôda a minha vida


eu salguei os cogumelos — assim eu estou mais garan­
tida. Antes, porém, eu pélo êles.

L a in a

Não é preciso. Basta limpar bem.

P adre

Vem, Ana, é tarde.

P u n t il a

Eva! Matti, não sei mais o que fazer com essa menina.
Eu lhe arranjo um marido, uma maravilha de homem,
pensando que ela vai se levantar tôdas as manhãs can­
tando como uma cotovia, cheia de felicidade. E ela, não,
faz a gostosa, não sabe, d u v id a ... Eu boto ela fora de
casa! Então você pensa que eu não sei que você ia se
casar com o attaché só pra me contentar? Você não
tem caráter, é um boneco. Olha, você não é mais minha
filha!

P adre

Sr. Puntila, o senhor não sabe o que está dizendo!

P u n t il a

E me deixa em paz o senhor também, vá pregar na sua

182
igreja, que ali nem os cachorros entram pra lhe ouvir!

P adre
gr. P untila, os m eus cum prim entos.

P untila
Vai, vai! E abandona aqui êste pobre pai trespassado
de tristeza! Pai de tal filha a quem eu surpreendi em
flagrante delito de sodomia com aquêle gafanhoto ca­
muflado de diplomata. Santo Deus! Qualquer campo­
nesa ignorante é capaz de lhe ensinar pra que é que
serve aquêle traseiro que Deus fabricou com o suor do
seu rosto; é pra atrair um homem para a cama! E pra
que êle lamba os beiços cada vez que olha aquilo! (Ao
Juiz.) — E você, no momento exato, nem sequer abre
a bôca, pra impedi-la de ser uma porcaria. Vai embora
também, vai!

Juiz
Ora chega, Puntila, me deixa em paz. Eu lavo as mãos
dêsse negócio todo. (Sai Sorrindo.)

P untila
Há trinta anos que você lava as mãos. Já deviam estar
bem limpas a essa altura! Mas não se esqueça, Frede­
rico, que essas eram mãos de camponês, antes que você
se tornasse juiz e começasse a bancar o Pôncio Pilatos.

P adre
(Tentando arrancar a mulher da conversa com
a cozinheira.)
Vamos embora, Ana, já é tarde!
M ulher do P adre

Não, primeiro eu ponho na água fria e, antes de co­


zinhar, eu tiro os talos. É melhor. Você deixa quanto
tempo cozinhando?

L a in a

Só até a primeira fervura.

P adre

Ana, eu estou esperando! (Sai.)

P u n t il a

E isso são homens? Para mim não são! (Voltando à


mesa.)

M atti

Mas é o que êles são. Um doutor meu amigo, sempre


que via alguém batendo no cavalo, dizia: “Não o trate
assim com tanta humanidade!” Não podia dizer bes­
tialidade.

P u n t il a

Homem de profunda sabedoria. Gostaria muito de beber


com êle. Bebe um pouco também, Matti. Gostei de teu
exame.

M atti

Sr. Puntila, desculpe se dei uma palmada no traseiro


de sua filha. Não fazia parte do exame. Só queria lhe
dar maior intimidade. S aiu . . . pela culatra. Serviu ape-

184
nas para mostrar o abismo que nos separa. O senhor
tam bém notou, não notou?

P u n t il a

Não tem nada que pedir desculpas, Matti, ela não é


m ais minha filha. Vem, senta aqui comigo; vamos be­
ber ainda mais um copinho.

M atti

Não seja tão definitivo, Sr. Puntila. (A M u liie r do


P adre e à cozinheira) — Como é, as senhoras pelo
menos chegaram a um acôrdo sôbre os cogumelos?

M u lh er do P adre

E o sal, vai junto?

L aina

Ah, sim, em primeiro lugar. (Saem.)

P u n t il a

Ouve só. Ainda estão dançando lá fora!


(Do lago vem a voz de S ur k a la , o vermelho.)

SURKALA

Entre os suecos vivia uma condêssa


pálida e bela condessinha
“Guarda-floresta, pega esta meia minha
a liga arrebentou, a liga, a liga.
Ajoelha aqui e ajuda a tua am iga!”
“Condêssa não me olhes assim.

185
Só pela fome aqui vim.
Os seus seios são tão brancos.
Frio é o aço do machado, é frio, é frio,
O amor é cheio, a morte é um vazio”.
Foge a cavalo o belo guarda-bosques.
Foge a cavalo até o mar.
“ô canoeiro, me leva no teu barco, barco, barco
me leva, canoeiro no teu barco
até o fim do mar”.

P u n t il a

É comigo, isso. Essas cantigas me fazem mal ao coração.

CORTINA

L a in a
(Enxugando os pratos, canta.)
A rapôsa apaixonou-se pelo galo
“Paixão — tu tens paixão por mim, paixão?”
A noite foi doce mas logo veio o dia, o dia
E ao levantar do sol, após tanta paixão,
Só havia penas de galo pelo chão.

186
Noturno

É noite. P u n t il a e M a t t i m ijam no
palco.

P u n t il a

Eu não poderia viver na cidade. Eu gosto de sair ao


ar livre e mijar tranqüilamente sob o céu estrelado, no
chão de Deus. Sem isso a vida não vale nada. Dizem
que quem faz isso assim é um primitivo, mas eu acho
muito mais primitivo mijar numa caneca de louça.

M atti

Compreendo, Sr. Puntila; êsse é o seu esporte.

P u n t il a

Não gosto das pessoas que não sabem gozar a vida.


Quero o meu pessoal sempre contente. Quando vejo um

187
empregado meu de cabeça baixa, fisionomia abatida,
fico irritado.

M atti

Compreendo bem os seus sentimentos. Mas não sei por


que essa gente tem um ar tão infeliz aqui na sua pro­
priedade. São todos amarelos como limão, só pele e osso,
parecem vinte anos mais velhos do que são. Acho que
fazem isso pra irritar o senhor.

P u n t il a

Como se aqui passassem fome!

M atti

E se passassem? Já deviam estar acostumados, que


diabo! Mas não querem entender. Não têm boa-vontade.
Em 18, quando oitenta mil morreram na guerra, aí
sim, tivemos um belo período de paz! Parecia o Paraíso.
Já imaginou? Oitenta mil bôcas famintas a menos?

P u n t il a

Também não precisava tanto.

188
O Sr. Puntila e Seu Criado Matti
Escalam o Monte Hatelma

Sala de bilhares da casa de P u n t il a .


Perto do bilhar, numa mesinha, está sen­
tado P u n t il a , com um pano molhado
em volta da cabeça examinando contas
e suspirando. L a in a , a cozinheira, está
perto, atenta, com outro pano e uma
bacia.

P u n t il a

Se o attaché se permitir telefonar pra Helsinki outra


vez, eu rompo êsse noivado. Que êle me custe um bosque
ainda vai, mas êsses pequenos roubos me deixam fu­
rioso. E olha aí que porcaria êsse livro com o registro
da produção de ovos. Tem manchas em todos os alga­
rismos. Parece que as galinhas puseram diretamente-

189
nêle. O que é que vocês querem — que eu vá pro gali­
nheiro verificar diretamente no rabo de cada uma?

F in a
(Entrando.)
O Sr. Cura e o Síndico da Cooperativa Central do Leite
querem falar com o senhor.

P u n t il a

Não quero falar com ninguém, minha cabeça explode


— você não vê? Manda entrar. (Entra o A d v o g a d o e o
P a d r e . F in a sai.)

A dvogado

Bom-dia, João.

P adre

Bom-dia, Sr. Puntila. Espero que tenha dormido bem.


Por acaso encontrei o advogado na rua e resolvemos
dar um pulinho até aqui pra ver como o senhor ia
passando.

A dvogado

Foi uma noite cheia de mal-entendidos.

P u n t il a

Se está se referindo ao episódio com Eino, já falei com


êle ao telefone. Êle pediu desculpas e está tudo resol­
vido.

190
A dvogado

Não, não é bem isso, meu caro João. Quero te dizer


uma coisa mais importante; tudo que se refere à tua
propriedade, aos teus domínios, a tua família, às tuas
relações com a gente do govêrno, tudo isso é problema
teu. Infelizmente há outras questões e outras relações.

PUNTILA

Olha, Pekka, não me vem com os teus rodeios. Fala


claro. Se eu arranjei outra encrenca qualquer eu pago,
que diabo!

P adre

Desgraçadamente existem encrencas que o dinheiro não


pode pagar, prezado Sr. Puntila. Em suma: viemos aqui
para resolver amigàvelmente o problema de Surkala.

P u n t il a

Que problema?

P adre

O senhor declarou na nossa presença que pretendia


despedir Surkala porque êle é um vermelho fichado (a
expressão é sua) que exerce uma influência deletéria
sôbre a comunidade.

P u n t il a

Eu disse até que ia botá-lo daqui pra fora a pontapés.

P adre

O prazo legal para despedi-lo terminou ontem, Sr. Pun-

191
tila. E Surkala não foi despedido. Senão a filha dêle
não estaria na Igreja hoje de manhã.

P u n t il a

Como, não foi despedido? Laina! (E ntra L a in a gritan­


do.) Surkala não foi despedido?

L a in a

Não senhor.

P u n t il a

Como não foi?

L a in a

O senhor se encontrou com êle no mercado de traba­


lhadores e em vez de mandar embora o senhor trouxe
êle na Studebaker e ainda lhe deu uma nota de dez
marcos!

P u n t il a

Descarado! Sem-vergonha! Me tomar dez marcos quan­


do eu já tinha lhe dito mil vêzes que sumisse da m inha
frente no fim do contrato! Fina! (Entra F i n a .,) Chama
Surkala, depressa! ( F i n a sai.) A cabeça me estala.
(L a in a põe uma nova compressa na testa dêle.)

A dvogado

Não é melhor um café?

P u n t il a

Você tem razão. Pekka, eu devia estar bêbado. Quando

192
bebo um copo demais sempre faço coisas dêsse gênero.
É de arrancar os cabelos! Surkala se aproveita. Mas
êsse aí eu boto na cadeia!

P adre

Sr. Puntila, estou certo de que o senhor foi realmente


enganado. Nós todos conhecemos a sua boa-fé. Natural­
mente se aproveitaram do fato do senhor ter bebido,
estar sob o influxo do álcool.

P u n t il a

Terrível! Terrível! (Desesperado.) E agora, o que é que


eu vou dizer à Guarda Nacional? É uma questão de
honra! Se sabem do fato, estou perdido. Não me com­
pram mais nem uma gôta de leite. Mas a culpa é tôda
de Matti, o chofer. É quem estava sentado perto dêle,
ainda vejo a cena diante dos meus olhos. Êle sabia
muito bem que eu não suporto Surkala. E ainda me
fêz dar dez marcos a êsse canalha!

P adre

Calma, Sr. Puntila, não precisa fazer disso uma tra­


gédia. São coisas que acontecem.

P u n t il a

Não diga isso — o senhor mesmo não acredita no que


está dizendo. Se eu continuo assim preciso ser inter­
ditado — ter um tutor. Me digam o que é que eu faço
com meu leite todo? Bebo sozinho? Estou arruinado,
Pekka! Não fica aí de braços cruzados, resolve alguma
coisa! Você tem que intervir, você é o Síndico da Coope­
rativa. Ou não é? Farei uma doação à Guarda Nacional.
Eoi o álcool, foi o maldito álcool. Laina, de hoje em

193
diante, não quero ver mais uma gôta de álcool nesta
ca sa !

A dvogado

Já estamos entendidos — você o manda embora ime­


diatamente, pronto! Êsse sujeito envenena qualquer
ambiente.
P adre

E com isso nós nos despedimos, Sr. Puntila. Como vê,


com boa-vontade, nada é irreparável. O que é preciso
nesta vida é ter boa-vontade, Sr. Puntila.

P u n t il a
(Aperta-lhe a mão.)
Eu lhe agradeço.

P adre

Não tem nada o que agradecer. Só cumprimos o nosso


dever.

A dvogado
(Saindo.)
A propósito, Puntila, seria bom você se informar dos
antecedentes dêsse seu chofer. Êsse também tem uma
cara meio sinistra. (Saem o A dvogado e o P a d r e J

P u n t il a

Laina, eu nunca mais toco numa gôta de álcool. Nunca


mais! Hoje de manhã, assim que acordei, tomei essa
decisão. É uma maldição. Eu disse pra mim mesmo;
agora eu vou ao estábulo e tomo uma decisão. Eu sou

194
um verdadeiro devoto das vacas e o que eu decido no
estábulo é sagrado. (Solene.) Traz pra cá tôdas as gar­
rafas que estão no armário dos selos, tôdas! Todo o
álcool que houver em casa! Quero destruir tudo, que­
brar tôdas as garrafas, eu mesmo, uma a uma! Não
pensa no que custaram, Laina — pensa na nossa pro­
priedade.

L a in a

Sim senhor, Sr. Puntila, mas o senhor decidiu mesmo?

P u n t il a

O escândalo de Surkala, êsse canalha que eu ainda vou


botar daqui pra fora a pontapés, me serviu de lição.
E diz a Altomem que venha cá imediatamente. Êsse
espírito do mal.

L a in a

Hii! Surkala estava com as bagagens prontas pra ir


embora e agora já desarrumou tudo de nôvo. (Sai cor­
rendo. Entra S u r k a l a com os filhos.)

P u n t il a
(Tirando o pano da cabeça.)
Não adianta você me trazer essa demagogia. As minhas
contas são contigo.

S urkala

Eu sei, Sr. Puntila. Trouxe êles de propósito. Êles po­


dem escutar, não vai fazer nenhum mal a êles. (Pausa.
Entra M a t t i J

195
M atti

Bom-dia, Sr. Puntila. Como vai a dor de cabeça?

P u n t il a

Ah, você está aí, canalha? O que foi mais que você
arranjou, quietinho, quietinho, nas minhas costas? Ahn?
Eu não te avisei ontem que te botava na rua? Boto na
rua e não anoto tua carteira.

M atti

Muito bem, Sr. Puntila.

P u n t il a

E cala a bôca aí! Já estou cheio das tuas insolências


e sem-vergonhices. Já me abriram os olhos. Me diz,
quanto você levou de Surkala?

M atti

Não entendo o que o senhor quer dizer, Sr. Puntila.

P u n t il a

Você vai dizer que não tem uma combinação com Sur­
kala? Que você também não é um vermelho? E que
não fêz tudo que podia pra evitar que eu despedisse
êsse patife aí? Não é?

M atti

Desculpe, Sr. Puntila. Eu executo apenas o que o senhor


manda. ( L a in a e F in a continuam trazendo garrafas
para dentro.)

196
PUNTILA
Você tinha a obrigação de saber que minhas ordens
eram idiotas.

M atti
O senhor me desculpe mas é muito difícil distinguir
entre as suas ordens. Se eu fôr executar só as inteli­
gentes é melhor me despedir logo. Fico o dia inteiro
sem fazer nada.

P u n t il a

É inútil fazer essa cara de inocente, assassino! Você


sabe muito bem que eu não tolero indivíduos como êsse,
que passam a vida cochichando e cochichando até que
um dia os trabalhadores me chegam aqui pedindo mais
10 minutos pro almôço. O que você é, é um bolchevique!
Se eu não botei êsse daí pra fora na hora exata e agora
tenho que pagar três meses pra que êle tire da minha
frente essa cara imunda, a culpa foi do álcool. Agora
você me levou a isso por puro cálculo! Mas desta vez
é sério, Laina! Vocês estão vendo; não vou só deixar
de beber! Vou destruir até à últim a gôta todo o álcool
que haja nesta casa. Até agora não tinha tomado essa
decisão, sempre deixava uma garrafa à mão para os
momentos de fraqueza — foi a minha desgraça! Uma
vez eu li que o princípio do alcoolismo é a compra do
álcool. Pena que êsse pensamento não seja mais divul­
gado. De qualquer forma, se há álcool em casa devemos
destruí-lo. (A M a t t i J Eu mandei te chamar porque
queria que você assistisse a essa destruição — é uma
lição que você jamais vai esquecer.

M atti
Muito obrigado, Sr. Puntila. O senhor quer que eu vá
ao pátio e comece a quebrar tudo?

197
PUNTILA

Eu mesmo faço isso, gatuno. Bem que você gostaria,


hein? (Levanta uma garrafa e examina.) de destruir
essa bebida magnífica mandando-a goela abaixo.

L a in a

O senhor não devia olhar tanto essa garrafa, Sr. Pun-


tila. Joga pela janela e está acabado.

P u n t il a

Tem razão. (Ameaça M a t t i com a garrafa.) Agora você


não vai poder mais me obrigar a beber, canalha. Você
goza vendo as pessoas grunhindo como porcos diante
de você; diz a verdade. Você, olha, você não tem ne­
nhum amor pelo trabalho e se não fôsse pelo mêdo de
morrer de fome você nem movia um dedo! Parasita!
Bem que gostaria de continuar me seguindo como uma
sombra, passando noites inteiras me contando histórias
porcas e me instigando a ofender meus convidados!
Por que você goza quando tudo é imundo e sórdido.
É natural, você nasceu numa privada. Você é um cri­
minoso, você mesmo me confessou por que foi despedido
tantas vêzes, e eu não me esqueço — te surpreendi ati­
çando contra mim aquelas mulheres de Kurguela. Um
elemento desagregador — eis o que você é. (D istraida­
m ente começa a verter o conteúdo da garrafa num copo
que M a t t i , bem serviçal, lhe trouxe.) A verdade é que
você me odeia; mas não pensa que vai me amolecer
mais uma vez com o teu “Perfeitamente, Sr. Puntila!”

L a in a

Sr. Puntila!

108
PUNTILA

Deixa, não se preocupe, só quero verificar se o vendedor


n ã o me tapeou e, ao mesmo tempo festejo a minha de­
cisã o irrevogável! (Bebe. A M a t t i J Desde o primeiro
instante eu percebi quem você era e fiquei de ôlho,
esperando apenas o momento em que se traísse. E por
isso eu me embriaguei com você: mas você nem des­
confiou. (Continua a beber.) Pensou que estava me
arrastando a uma vida de dissipações e que podia me
explorar bebendo também à minha custa; mas meus
amigos me abriram os olhos. Que Deus os proteja —
bebo à saúde dêles. (Bebe.) Se começo a pensar em mi­
nha vida nestes últimos tempos me vêm calafrios —
aquêles três dias no hotel do Parque, aquela corrida
atrás de álcool autorizado, as mulheres de K u rgu ela...
que vida, que vida! Sem sentido, sem razão! E a môça
do estábulo, você se lembra dela? Naquela m a n h ã ...
Ah, tinha os seios quentes, brancos, e teria se aprovei­
tado da minha bebedeira, se eu deixasse. . . Se chama­
va Lisu, não era? E você sempre atrás! Temos que
concordar — foram bons tempos, hein? Mas a minha
filha eu não te dou não, patife. Você é um p a tife ...
sim, tem que admitir. Mas também reconheço, não é
um filho da puta. (Bebe.)

Laina
Sr. Puntila, o senhor está bebendo de nôvo!

P u n t il a

Eu bebendo? Você chama isso beber? Uma ou duas


garrafas! (Pega a segunda garrafa. Lhe dá a garrafa
vazia.) Quebra isso e joga fora os cacos; já te disse não
quero ver mais isso na m inha frente. E não me olha
como Nosso Senhor olhava Pedro. Detesto gente que
vem me cobrar até a últim a nuança do que eu digo.

199
(Indicando M atti.,) Êsse daí p ro cu ra me a rra s ta r pro
abismo, m as você quer que eu coma as u n h as dos pés
de chateação, que eu m orra de tédio. Que vida eu levo
aqui? Fico o dia inteiro m artirizando êsses miseráveis
ou calculando a forragem p ras vacas. Sai, c ria tu ra
m esquinha. (L aina e F in a saem balançando a cabeça.)
M esquinhas! Sem im aginação. (Aos filhos de S u r k a la J
Assaltem, roubem , sejam com unistas m as não sejam
jam ais criatu ras m esquinhas: é P u n tila quem aconse­
lh a isso. (A S u r k a la J Mo desculpe se me introm eto
n a educação dos teus filhos. (A M a tt iJ Abre essa
garrafa!

M atti

Espero que o ponche esteja bom, não misturado como


da outra vez. O senhor não pode confiar nada nesse
vendedor, Sr. Puntila.

P u n t il a

Eu sei, por isso estou sempre em guarda. Primeiro bebo


um golinho, mas um golinho bem pequeno, assim;
posso cuspir logo se percebo que não presta. Pelo amor
de Deus, Matti, sem essas precauções quem sabe quanta
porcaria eu já não tinha engolido! Pega também uma
garrafa, e festeja a minha decisão irrevogável: que
calamidade! A tua, Surkala!

M atti

Êles podem ficar, Sr. Puntila?

P u n t il a

Mas temos que falar agora dessas coisas? Agora que


tudo está tão bem entre nós? Você é um desastre. E

200
depois, que adianta a Surkala continuar aqui? A nossa
propriedade é muito pequena pra ele. Não lhe agrada
ficar aqui, eu compreendo. Se eu fôsse êle também não
ficava. Pra mim Puntila seria um capitalista reles, sujo.
Sabe o que eu faria com Puntila? Eu o meteria num
trabalho violento, numa mina de sal, que assim êle
aprendia o que é trabalho duro, o sanguessuga. Tenho
ou não tenho razão, Surkala? Fala, não fica com ceri­
mônia não.

A F il h a M a is V e l h a de S urkala

Mas nós não queremos ir embora, Sr. Puntila.

P u n t il a

Não; não; Surkala vai embora. Eu sei que quando êle


decide ir nem dez cavalos o impedem. (Vai até a m e­
sinha. Tira o dinheiro da caixa e o entrega a S u r k a l a ,
depois de separar 10 marcos.) Menos dez. (Aos m eni­
nos.) Vocês devem ter orgulho dêsse pai, um pai que
por ter fé nas próprias convicções agüenta tôdas as
conseqüências. Você, Helle, que é a mais velha, deve
ser sempre o amparo dêle. E agora, adeus. (Estendendo
a mão a S u r k a l a , mas S u r k a l a não a aperta.)

S urkala

Vem, Helle, vamos embora. Aqui vocês já ouviram tudo


que tinham pra ouvir. (Sai com os filhos.)

P u n t il a
(Aflito.)
Mas nem me apertou a mão! Você viu? A minha mão
não é digna dêle? Eu esperava que êle me dissesse
alguma coisa ao despedir-se. . . Uma palavra. Nada.
Pra êle nossa propriedade é uma merda. Eu já sabia;

201
é um homem sem raízes. O lugar onde nasceu não lhe
significa nada. Por isso achei melhor deixar que fôsse
embora, já que insistia tanto. Ah, uma cena dolorosa.
(Bebe.) Mas nós, Matti, você e eu, somos diferentes.
Você é um amigo, é que me indica o caminho na mi­
nha árdua estrada. Só de olhar tua cara me vem sêde.
Quanto é que eu te pago por mês, Matti?

Matti
Trezentos, Sr. Puntila.

P untila
Te aumento pra trezentos e cinqüenta. Estou particular­
m ente satisfeito com você. (Sonhando.) Matti, um dia
quero subir contigo ao monte Hatelma; a vista lá é
formosa; dali é que você vai ver como é bonito o país
em que nasceu. Vai se morder de raiva por não ter
conhecido aquilo antes. Vamos ao Monte Hatelma agora
mesmo, Matti? Você vai ver que vale a pena. E não
precisamos nem ir lá — podemos ir lá em espírito.
Bastam quatro cadeiras.

Matti
Dentro do horário eu faço o que o senhor quiser, Sr.
Puntila!

P untila
Talvez você não tenha a imaginação necessária. (M atti
não responde. P untila , com veemência.) Vamos, Matti,
me faz uma montanha. Não economiza nada, não recua
diante de coisa alguma, usa os maiores blocos de pedra
que encontrar. Senão você não consegue fazer o monte
Hatelma e não poderemos gozar o panorama.

202
M atti

Faço tudo exatamente como o senhor manda, Sr. Pun-


tila. (Com um pontapé destrói um precioso relógio de
pêndulo e um armário enorme cheio de armas; com os
fragmentos e algumas cadeiras constrói furiosamente
uma montanha em cima da mesa de bilhar.) Eu sei
muito bem que não posso fazer questão da jornada de
oito horas quando o senhor me pede uma boa monta­
nha no meio de um vale.

PUNTILA

Pega aquela cadeira ali. Assim! Segue a minha orien­


tação, Matti, e o monte Hatelma ficará pronto num
piscar de olhos. Eu sei o que precisa e o que não pre­
cisa pruma montanha dessa; a responsabilidade é mi­
nha. Você sozinho é capaz de construir um monte que
não vale a pena; um monte sem paisagem, que não
me daria a menor satisfação. Pra você o que interessa
é ter trabalho; pra mim o que interessa é canalizar êsse
trabalho para um fim útil. E agora eu preciso de dois
caminhos; um pra atingir o cume da montanha, outro
pra levar até lá os meus cem quilos de banha! Nin­
guém jamais poderá chegar lá em cima; você vê, você
nem pensou nisso, hein? Você não pensa em nada!
Eu sim, sei orientar as pessoas. Eu só queria ver o que
você ia fazer sem mim!

M atti
(Tira algumas peças do monte, como quem faz
dois caminhos.)
Pronto, Sr. Puntila, pronto, os caminhos estão prontos.
A montanha está pronta, é só subir. É uma montanha
perfeita, com um caminho perfeito e não uma coisa
inacabada e primitiva como essas de Nosso Senhor.
Também, teve que fazer tudo naquela correria; em seis
dias alguém pode fazer alguma coisa que preste? Re­
sultado: teve que corrigir botando no mundo um mon­
tão de escravos. Se não o mundo não funcionava.

P u n t il a
(Começa a Subir.)
Eu vou quebrar o chifre.

M atti
• (Segurando-o.)
Isso também podia lhe acontecer aqui na planície, se
eu não estivesse sempre a seu lado.

P u n t il a

é por isso que eu te levo comigo, Matti. É por isso que


eu quero que você tenha uma visão da terra que te
deu a vida e sem a qual você seria uma bosta. Reco­
nhece, Matti.

M atti

Até a morte. Será que basta? No Mensageiro de Hel-


sinki diz que a gratidão pela pátria deve ir além da
morte.

P u n t il a

Olha, primeiro os campos e os prados; depois as flôres


com os pinheiros que brotam da rocha nua, árida, e
parecem se alimentar do nada; como será que conse­
guem viver em semelhante miséria?

204
Matti
Seriam empregados ideais, hein, Sr. Puntila?!

P untila
Avante, Matti, vamos subir mais! Deixamos lá em baixo
os edifícios, obra do homem e entramos no reino puro
e grandioso da natureza. A paisagem aqui é mais des­
pojada, mais austera. Matti, abandona agora tôdas as
tuas mesquinhas preocupações cotidianas e te entrega
à emocionante sensação que tens diante de ti.

«
M atti
Estou fazendo o melhor que posso, Sr. Puntila.

P untila
Ah, terra bendita! Me dá mais um copo pra que eu
possa gozar com plenitude tôda a beleza dessa paisa­
gem esplêndida.

M atti
Um momento; vou buscar no vale. (Desce e torna a
subir.)

P untila
Eu me pergunto se você tem capacidade de apreciar
todo o esplendor desta terra. Você nasceu aqui mesmo,
em Tavasto?

M atti
Nasci.

205
PUNTILA

Agora eu te pergunto: onde, no mundo, você encontra


um céu igual ao nosso? Já ouvi dizer que em outros
lugares é mais azul. Mas aqui as nuvens são mais leves,
o vento mais delicado. Mesmo que me dessem outro
céu pra escolher, o azul que eu quero é êste. E quando
um bando de gansos selvagens se levanta do pântano,
batendo violentamente as asas, isso não é nada? Não
vai atrás de conversa dos outros, Matti, fica em Ta-
vasto! Quem te aconselha é Puntila!

M atti
#

Muito bem, Sr. Puntila.

P u n t il a

E os lagos? Sem falar nos bosques, lá em baixo, está


vendo? São os meus — aquêles lá, junto da pedreira,
eu vou mandar derrubar; mas olha bem os lagos, Matti,
fixa a vista só nuns três ou quatro e vê! Procura não
pensar nem mesmo nos peixes dos quais êles estão
cheios. Pensa só na paisagem dêsses lagos quando o
sol se levanta, isso basta. Isto basta pra você nunca
mais querer sair daqui. Se você algum dia fôr embora
vai morrer de saudade! Na Finlândia, Matti, nós temos
oitenta mil lagos como êsses!

M atti

Sim senhor, penso apenas na paisagem dêsses lagos.

P u n t il a

Você está vendo aquêle pequeno rebocador, com cara


de bulldog? E mais em baixo aquêles troncos de árvo­
res. Já limpos e lisos, rolando dentro d’água na luz da

206
m a n h ã ? Aquilo é uma pequena m ina de ouro, Matti.
Eu sinto o cheiro da madeira fresca a quilômetros de
distância e você? Ah, os odores da Finlândia são um
capítulo à parte. Por exemplo, os morangos e as amoras
depois da chuva. E as fôlhas de bétula quando você
vai à sauna e manda que te batam com vontade. De
m a n h ã , na cama, como cheiram! Onde é que você en­
contra uma coisa assim, Matti? Onde você tem uma
vista dessas?

M atti

Em parte alguma, Sr. Puntila.


%

P u n t il a

Você sabe quando essa vista me agrada mais? Quando


os contornos começam a ficar imprecisos, se dissolven­
do na distância, como em certos momentos de amor
— a gente fecha os olhos e as coisas se esfum am . . .
Acho que essa espécie de amor só existe entre nós,
aqui em Tavasto.

M atti

Lá onde eu nasci, Sr. Puntila, tinha umas cavernas


com uma porção de pedras enormes redondas e lisas
como bolas de bilhar.

P u n t il a

Ah, e você lá dentro, vendo as pedras, em vez de tomar


conta das vacas, ó , vacas lá em baixo, está vendo?
Atravessando o lago a nado.

M atti

Estou vendo. Mais de cinqüenta.


PUNTILA

Sessenta pelo menos. E, mais na frente, está vendo o


trem? Limpando bem o ouvido você ouve até o ruído
das latas de leite tinindo lá dentro.

M atti

É, limpando muito bem.

P u n t il a

Ah, tenho que te mostrar também a antiga Tavasto.


Nós também temos cidades antigas. Lá em baixo o
Hotel do Parque — vinho excelente. Mais pra cá o
castelo, mas êsse me desagrada, foi transformado numa
prisão de mulheres, para criminosas políticas, o que é
que mulher tem que se meter em política? Mas os
moinhos a vapor, vistos assim de longe, fazem um belo
efeito, hein? Dão vida à paisagem. E ali à esquerda,
que é que você vê?

M atti

É. Ali à esquerda o que é que eu vejo?

P u n t il a

Campes! Campos até onde a vista alcança; aquêles


mais perto são os de Puntila, incluindo o pântano onde
a terra é tão gorda que se deixamos as vacas pastar
ali, temos que ordenhá-las três vêzes por dia e o trigo
cresce até aqui, duas vêzes por ano. Canta comigo:

As ondas do Roine, ondas delicadas


beijando a areia branca como leite.

208
(E ntram F in a e L a i n a J
F in a

Jesus!

L a in a

A c a b a r a m c o m a b ib lio te c a !

M atti

Subimos ao monte Hatelma e estamos gozando o pa­


norama.

P u n t il a

Vamos, cantem! Não têm amor à pátria?


Todos (menos M a t t i J :

As ondas do Roine, ondas delicadas


beijando a areia branca como leite.

P u n t il a

Oh, terra de Tavasto, sê bendita! Sê bendita com teu


céu, com teus lagos, teu povo e teus bosques! (A M a t t i J
Diz a verdade, Matti, você não sente o coração trans­
bordar de emoção diante disso tudo?

M atti

Sim, Sr. Puntila, vejo os seus bosques e sinto que meu


coração transborda.

CORTINA
Matti Volta as Costas ao Sr. Puntila

Pátio da propriedade de P u n t i l a . M a t t i
sai da casa com uma mala. L a in a o se­
gue com um pacote. É m anhã cedo.

L a in a

Leva, Matti. Embrulhei aí umas coisas pra você comer.


Por que é que você vai embora assim tão cedo? Espera
ao menos que o Sr. Puntila se levante.

M atti

É o que eu quero evitar. Essa noite tomou um porre


tão grande que quando ia amanhecendo me prometeu
metade de um bosque. E diante de testem unhas, im a­
gina! Desta vez, quando souber disso, chama a polícia
m esm o!

211
L a in a

Mas se você fôr embora assim, sem a carteira, você está


perdido.

M atti

Uma carteira? Pra que é que eu quero uma carteira


onde estará escrito ou que eu sou um bolchevique ou
que eu sou um homem? Em qualquer dos dois casos
eu não vou conseguir nenhum emprêgo.

L a in a

Êle estava tão acostumado contigo. Vai sentir tua falta.

M atti

é , mas eu já enchi. Que se arranje. Depois do caso de


.Surkala eu não agüento mais as intimidades dêle.
Obrigado pelo embrulho, Laina. E adeus.

L a in a
(Assoando o nariz, comovida, em soluços.)
Felicidade, Matti, felicidade. (Sai. )

M atti
(Anda alguns passos, depois se volta.)
Antes, porém, a minha despedida.
Longa vida, Sr. Puntila, longa vida!

Que não és o pior, bem se percebe


(chega a ser quase um homem quando bebe.)
Mas não pode durar, nossa amizade,

212
passa o pileque, passa a fraternidade
De que vale chorar
Se a luta cão e gato é milenar?
Não gastem à toa
uma lágrima boa.
Quem vencerá?
Chegou a hora do teu criado te voltar as costas
sem esperar respostas.
Só quando fôr o senhor de si mesmo
dono do seu suor
poderá dizer pra todos:
“Não tem patrão melhor.”

(sai ràpidamente.)

213
COMPÔS E IMPRIMIU / GUANABARA / 1966
o caso do chofer Matti nesta peça) foi
escrita na Finlândia, em 1940, em cola­
boração com a escritora Hella Wuoli-
joki, que deu asilo ao escritor alemão
quando êste se refugiava do nazismo. A
peça ficou oito anos S 6 m ver o palco,
até que em 1948 estreou em Zurich, sob
a direção do próprio Bertolt Brecht,
com um grupo de atôres alemães que vi­
ria a formar o núcleo central do Berli-
ner En&e,mble que, aliás, iniciou suas ati­
vidades cçrn a montagem dêste texto, em
1949.
Desfilam, na peça os temas fundam en­
tais de Brepht, tais como a análise de
um mundo çrn transformação, a luta de
classes representada aqui pelos dois an-
ífjtagonistas (Puntila e Matti) e tôda a
existência de um painel social ocupado
pelos grandes senhores (o latifundiá­
rio, o diplomata, o padre, o juiz, o ad­
vogado) e pela gente do povo (os traba­
lhadores, as empregadas, as noivas.)
No seu ensaio Notas sôbre um teatro
popular, o autor faz porém questão de
declarar que esta não é uma peça de
tese política, devendo ser encarada co­
mo exercício de estilo popular e repre­
sentada como commedia delVarte.
O teatro de Brecht começou a ser
mais conhecido a partir de 1954, quan­
do da triunfal apresentação em Paris
de Mãe Coragem, que reformulou vários
conceitos de dramaturgia e de encena­
ção. O poeta alemão é, sem dúvida, a
mais importante influência do teatro
moderno, e seus inúmeros escritos teó­
ricos, suas peças e seus poemas têm ca­
da vez maior aceitação. Morto em 1956,
suas teorias continuam sendo pratica­
das pelo Berliner Ensemble, companhia
que fundou e é dirigida por sua viúva,
Helène Weigel.
F lá v io RANcer.
Peça que o próprio autor batiza de popular, sendo, em­
BRASILEIRA

bora, uma das maiores produções do seu talento,

O SENHOR PUNTILA
e Seu C r i a d o Ma t t i
CIVILIZAÇÃO

tem o sabor de uma commeàia delVarte em que desfilam


os temas fundamentais de
B E R T O L T B R E C H T :
a análise de um mundo em transformação, a luta de
classes representada pelo rico fazendeiro finlandês Pun-
DA

tila e o seu chofer Matti, tôda a existência de um painel


social ocupado pelos grandes senhores (o latifundiário,
o diplomata, o padre, o juiz, o advogado) e pela gente
CATEGORIA

do povo (os trabalhadores, as empregadas, as noivas).


DE
LANÇAMENTO
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