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JVIIILÔR
FERNANDES
CIVILIZAÇÃO
BRASILEIRA
Brecht c o Mundo
em Transformação
___
Coleção
TEATRO HOJE
D ir e ç ã o de D ia s G om es
Volumes Publicados:
Série Autores Nacionais
Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar — se correr o b ic h o
(2a. edição)
Dias Gomes: o s a n t o i n q u é r i t o
Próximos Lançamentos
Série Autores Estrangeiros'.
Sófocles: é d i p o r e i , tradução de Mário da Gama Kury
O SR. PUNTILA
e seu criado Matti
TRADUÇÃO DE
MILLÔR FERNANDES
INTRODUÇÃO DE
ANATOL ROSENFELD
Civilização Brasileira
TÍT U L O DO OR IG INA L A L E M Ã O '.
Montagem de cava de
M a r iu s L a u r it z e n B ern
söbre um desenho de
M il l ô r F ernandes
Exemplar
1966
O rdenhadora
P u n t il a
G arçom
M atti
J u iz
Cozinheira
A ttaché
E va
Ema
V eterinário
M anda
L is u
O G ordo
T rabalhador
T rabalhador ruivo
T rabalhador m ise r á v e l
L aina
SURKALA
F in a
A dvogado
S andra
T elefo n ista
P adre
M u l h e r do P adre
A fil h a m a is velha de S urkala
índice
A Cordialidade Puntiliana 13
Prólogo 25
Puntila é Maltratado 43
Escândalo em Puntila 83
Noturno 187
13
A exposição didática — e divertida — de semelhan
te tema requer, segundo Brecht, os recursos do teatro
épico. Com efeito, Puntila não se atém à dramaturgia
tradicional, aristotélica. Apesar da fabulação saborosa,
a peça não tem unidade de ação, continuidade de uma
intriga a desenvolver-se até o desenlace final. Seria di
fícil chamar de “enrêdo” o noivado precário de Eva, fi
lha de Puntila, com o adido diplomático — realmente o
único esbôço de um argumento contínuo. Muito menos
se encontrará o encadeamento tradicional de uma ação
tensa, com conflito central, clímax, desfecho. A peça,
ao contrário, é constituída de uma seqüência sôlta de
episódios de certo modo independentes, cada qual com
seu próprio clímax. Os quadros repetem, em essência,
a mesma situação, variando-a, focalizando-a de diversas
perspectivas. Todos êles ilustram, de um ou outro mo
do, a relação senhor-criado, principalmente através do
comportamento do patrão e do seu empregado. A cena
do mercado dos trabalhadores generaliza e acentua a
situação fundamental que se reflete, transposta em ou
tro nível, nas relações do pai Puntila para com a filha,
nas relações desta com o noivo oficial, o diplomata, e
para com o criado. Na balada da condessa e do guarda-
florestal o tema ressurge, como se manifesta ainda na
canção das ameixas que acompanha e grifa ironicamen
te os vários noivados do fazendeiro.
A Canção de Puntila, que a cozinheira dirige entre
os quadros ao público, acentua o caráter sôlto, poético-
baladesco, da peça, transformando esta em ilustração
do canto e êste em comentário da peça. A ligação entre
os doze quadros baseia-se, pois m uito mais que numa
ação contínua (que de fato mal existe), no tem a central,
exemplificado por tantos episódios e canções e princi
palmente pelo comportamento do patrão e do emprega
do. Os versos do prólogo e epílogo, emoldurando a peça,
14
carregam-se de acentuar bem a lição, como ocorre na
maturgia dos fins da Idade Média e do Renascimen-
* Ao término, a relação entre Puntila e Matti se dis
solve, p°is Que “água não se mistura com óleo”, e com
.gSo ‘‘dissolve-se” também a peça. Seria difícil falar de
fim ou desfecho. Não há mortes, nem casamentos. Não
jiá nenhuma cena dramática de ruptura violenta das
relações — Matti simplesmente vai embora. A peça não
conclui, portanto. Conquanto Matti se demita, a situa
ção entre senhor e criado continua. Ambos irão ao mer
cado dos trabalhadores, Puntila para procurar outro
criado e Matti para procurar outro patrão. A peça não
tem desfecho, mantém-se aberta, como A boa alma de
Set-Suan ou Mãe Coragem, porque ilustra apenas uma
situação fundamental que continua. O problema levan
tado pela obra não é o “bom patrão” ou o “mau patrão”,
mas o patrão simplesmente. Por isso Matti diz no epílogo
que os criados encontrarão o senhor bom de verdade so
mente quando se tornarem os seus próprios senhores. So
mente então terminará a peça.
Os momentos estruturais apontados, totalmente
contrários à unidade e continuidade do drama aristoté-
lico — com início, meio e fim — tornam esta peça em
uma das mais conseqüentes do teatro épico, cuja teoria
Brecht então já levara ao amadurecimento. Duas ra
zões fundamentais fizeram com que a elaborasse. A pri
meira decorre da convicção antropológica de que a pes
soa humana é o conjunto de tôdas as relações sociais.
Cabe integrá-la, pois, num mundo amplo, mostrando
não só os “navios inclinados” — como se fazia no tea
tro clássico — mas também a “tempestade que os incli
na”, isto é, as fôrças anônimas que atuam sôbre o indi
víduo^ Esta razão do teatro épico encontra ampla ex
pressão em Puntila. O prólogo e epílogo apresentam
uma situação geral, aquela em que, segundo Brecht, rei-
15
1
16
4
alido com a sua aspereza — para romper a continui
dade linear da dramaturgia tradicional. Esta, mercê do
seU encadeamento rigoroso, prende o espectador no
avanço ininterrupto da ação tensa, enreda-o no enrêdo,
não lhe concedendo liberdade crítica. Coloca-lhe o jugo
da identificação com as situações e os personagens, de
modo que vive com êstes o seu destino inexorável,* em
vez de, vivendo embora emocionalmente o seu destino,
ter ao mesmo tempo a possibilidade de distanciar-se o
suficiente para, pela objetivação, chegar ao raciocínio.
Assim compreenderá que êste destino de maneira algu
ma é eterno e inexorável, mas conseqüência de uma si
tuação histórica, de um sistema social (p. ex. o da re
lação senhor-criado). O homem, sem dúvida, é determi
nado pela situação histórica; mas pode, por sua vez, de
terminá-la. O fito principal do teatro épico e do distan
ciamento é, portanto, estudar o comportamento do ho
mem em certas condições e mostrar que estas podem e
devem ser modificadas. É, pois, a “desmistificação”, a
revelação de que as desgraças humanas não são eter
nas e sim históricas, podendo por isso ser superadas. O
distanciamento, mais exatamente, procura tornar estra
nha a nossa situação habitual, anular-lhe a familiari
dade que a torna corriqueira e “natural” e por isso
incompreensível na sua historicidade. Pois tudo que é
habitual apresenta-se como fenômeno natural e por isso
imutável. Temos que ver o nosso mundo e comporta
mento objetivados, por uma momentânea alienação
dêles, para vê-los na sua relatividade e para, dêste
modo, conhecê-los melhor. Todo conhecimento inicia-se
com a perplexidade diante de um fenômeno. Distanciar,
tornar estranho é, portanto, tornar ao mesmo tempo
mais conhecido.
Não é preciso enumerar os múltiplos elementos de
distanciamento introduzidos nesta peça por Brecht
através de comentários cantados, falas cômicas e irô-
17
nicas que, por vêzes, revelam de chôfre tôda uma situa
ção, ou através do “teatro no teatro”, cena em que uma
forma de vida mísera, bem corriqueira e “natural”, é
distanciada e “exposta” pelas tentativas frustradas da
grã-fina de imitá-la. Não é preciso, tampouco, frisar
que o caráter épico do texto só se completa graças aos
recursos do palco. Basta, no contexto de uma ligeira
apresentação, insistir em que o choque do estranhamen
to é introduzido no próprio personagem de Puntila, o
finlandês cordial que se torna ríspido nos seus estados
“loucamente sóbrios”. É sumamente estranho ver de
terminada a cordialidade do chefe, assaz corriqueira,
pela sua embriaguês. Distanciando, ademais, a cordia
lidade ébria mediante o egoísmo sóbrio, Brecht pre
tende desmistificá-la, tornando mais conhecida a sua
função social. Isso, porém, sem que negasse o encanto
e a qualidade cálida dessa generosidade, cujo caráter
envolvente deve sobressair para que possa ser desmas
carada.
Com horror na voz, Puntila confessa que no estado
vil da sobriedade é um homem responsável, forçado a
prestar conta de seus atos. Por isso mesmo é então uma
pessoa de quem se podem esperar as piores coisas. Pa
radoxalmente, ser responsável implica ser imoral. Daí o
seu empenho heróico em beber e em tornar-se dêste mo
do irresponsável, isto é, virtuoso. Ao introjetar a con
tradição alienadora no protagonista, Brecht pretende
demonstrar a dialética da nossa realidade. Puntila está
em constante contradição consigo mesmo, produzindo
na própria pessoa o distanciamento, já que os dois ca
racteres se refutam e estranham, se criticam e ironizam
mutuamente. É no estado irresponsável — quando é
um animal irracional — que se tom a humano e é no
estado racional, isto é, humano, que passa a ser desu
mano. Com efeito, explica Puntila, “é que durante êsses
ataques de lucidez total e desvairada, eu desço ao nível
um animal”. Puntila é, portanto, associai em tôdas
circunstâncias. A sua maldade é “normal”, isto é,
f S ica institucional, e sua bondade é “anormal”, isto é,
articular e caprichosa e por isso sem valor, sem con-
P üência. De fato, nos estados maldosos anula tudo
a n t o de kom nos estados generosos. Tudo fica na
mesma e às vêzes até piora. Vemos que o ébrio bondoso
nada é senão um recurso cênico para representar, de um
modo hilariante e irônico, a ordem puntiiiana que con
sagra a desordem, já que o comportamento humano, em
vez de fazer parte da normalidade das instituições, sur
ge apenas como capricho pessoal, como adôrno que en
feita a dura realidade.
É um êrro acreditar com Martin Esslin (B recht, a
choice of evils) que no personagem de Puntila se opõem,
como fôrças eternamente antagônicas, as emoções e os
impulsos bondosos ao intelecto frio e maligno. Brecht
não pretendeu escrever um drama psicológico ou moral,
embora êste nível de considerações deu-me a problemá
tica básica e se m antenha suspenso, para além dos li
mites da peça, deixado à meditação do público. Brecht
não visa a apresentar com Puntila um homem mau ou
um homem bom, mas simplesmente um fazendeiro que,
para êle, representa uma organização social. É um “mo-
dêlo” proposto para demonstrar exemplarmente a ati
tude do superior que, não importa se com sinceridade
ou para disfarçar a realidade, “concede” ao inferior pa
ternalmente ocasionais benefícios, enquanto de fato,
como vimos, tudo fica na mesma. Para Brecht, a rea
lidade implacável não decorre sobretudo da moralidade
ou da psicologia dos indivíduos, que podem ser bons ou
maus, corruptos ou íntegros, mas do mundo puntiliano.
O fazendeiro seria provàvelmente um “sujeito ótimo”
bem ao contrário da opinião de Esslin (que o con-
sidera essencialmente m a u ); mas as condições não per
mitem que o seja (e se o fôsse, perderia a fazenda, sem
19
grande benefício para ninguém ). O problema, para
Brecht, não é, portanto, moral e sim social. Puntila
quer ser bom, é por isso que se embriaga, pois “terrí
vel é a sedução da bondade” e é duro ser mau: “Na
minha parede, a máscara de m adeira/ De um demônio
maligno, japonês/ Ouro e laca./ Compassivo, observo/
As túmidas veias frontais, denunciando/ O esforço de
ser maligno”. (Tradução de Haroldo de Campos).
Entretanto, por mais que Puntila se esforce por
evitar êste esforço, as suas tentativas de ser cordial se
corrompem ante o “vício da responsabilidade”. O me
lhor que consegue, no estado ébrio, é tornar-se “fami-
lionário”, para citar a expressão com que Heinrich Heine
caracterizou esta atitude ao definir o comportamento
do rico Rotchschild ao receber o poeta pobre. Todos os
esforços do fazendeiro de ser generoso, por mais autên
ticos que sejam, fracassaram. A situação torna-os ambí
guos, contamina-os de suspeitas, ao ponto de poderem
ser interpretados como artimanha para desarmar os
criados. “Se (os patrões) tivessem corpo de urso, ou
cobra, a gente tomava mais cuidado”, diz a telefonista.
A bondade chega a revestir-se de aspectos quase amea
çadores. É esta lição da peça a exceção e a regra: O
criado bondoso aproxima-se do patrão sedento, em pleno
deserto, para dar-lhe água e êste o mata, interpretando
mal o seu movimento. O juiz absolve o réu: em seme
lhante situação, no mundo em que vivemos, o patrão
não podia esperar um gesto generoso do criado. Em
face da regra de um sistema em que “ser humano é uma
exceção”, a desconfiança do patrão se justifica, como se
justifica inversamente a desconfiança do criado em Pun
tila.
É nesta desconfiança que vive Matti, o criado céti
co, solidário com os seus colegas, que tem a sabedoria
e um pouco também a esperteza dos oprimidos. Apesar
de ser um “operário consciente”, tem dificuldade em re-
20
st ir ao encanto de Puntila. Mas pelo menos sabe des
ta falha. “Êle é familiar demais”, assegura, desfamilia-
r i z a n d o a nossa familiaridade com essa familiaridade. Ou
e n t ã o narra uma estória: “Ah, sim, intimidade demais
é s e m p r e perigoso. Uma vez eu trabalhava numa fábri
ca de papel, e o porteiro pediu demissão porque o dire
tor lhe perguntou como o filho ia passando.” Em ou
tra parte insiste: “Mal dou uma respirada e êle (Pun
tila) já fica fraternal. Eu vou-me embora.” No mesmo
s e n t i d o o Ruivo diz: “Bom, eu vou-me embora. O que
eu quero é um emprêgo.”
É evidente que Matti, como personagem, não tem
as esplêndidas possibilidades cênicas de Puntila embora,
como pessoa, lhe seja superior. Na dialética de suas re
lações, bem de acôrdo com Hegel, o senhor se torna ca
da vez mais dependente de quem dêle depende, e quan
do Matti abandona Puntila a perda será maior para o
patrão do que para o criado. Mas a sua função cênica
é, em certa medida, de apoio apenas; cabe-lhe ser o
parceiro que permite a Puntila revelar-se a si e a si
tuação fundamental, enquanto ao mesmo tempo, pela
sua concordância discordante, é um comentário vivo
das atitudes senhoris. Representa uma espécie de si
nal de exclamação ou de aspas ambulantes em carne e
osso que distanciam, acentuam e desmascaram o com
portamento de Puntila. A linguagem da concordância
fingida tem, neste sentido, função contundente — veja-
se por exemplo a cena Noturno (quadro 10). A conci
liação irônica visa a efeitos de humor negro que lem
bram os obtidos por Jonathan Swift, ao recomendar,
nos moldes de um meticuloso plano econômico, o aba
te de crianças pobres, recém-nascidas, para enriquecer
de carne tenra a mesa dos abastados.
Na dramaturgia universal, desde Menandro e Plau-
to a Molière e aos pósteros, são muito freqüentes as co
médias e farsas com a constelação senhor-criado e qua
se sempre o criado é mais esperto que o senhor. Brecht
exigiu mesmo que o papel de Matti fôsse preenchido de
modo a realçar a sua superioridade espiritual, compen
sando assim o encanto robusto de Puntila. Bem menos
típico, nos moldes desta relação vetusta, é o fato de o
senhor e não o çriado ser o personagem cômico, aquêle,
portanto, cuja dignidade é exposta em tôda a sua fra
gilidade.
Mais realce obtém o personagem de Matti como par
ceiro e alvo sexual de Eva. Tôda a “trama amorosa”
da peça, com Eva oscilando entre o diplomata e o cria
do, embora aparente ser o fio da meada que liga as ce
nas, se destina de fato apenas a apoiar o tem a funda
mental. Não só os ensaios de generosidade humana,
também os impulsos amorosos e as relações entre ho
mem e mulher se tornam precários no mundo puntilia-
no. Até o amor à natureza afigura-se suspeito, no ini
mitável episódio do monte Hatelma. Conquanto poética,
esta cena é ao mesmo tempo uma das mais saborosas
paródias à patriotice e ao epicureísmo paisagista da
burguesia (“Onde, no mundo, você encontra um céu
igual ao nosso?”). Neste ponto, a peça alcança comici
dade extraordinária na mistura safada e inextricável
entre culinarismo estético (ante a paisagem) e prag
matismo econômico. O interêsse material interrompe
constantemente o êxtase lírico pela “rigidez adquirida”
do proprietário, bem de acôrdo com a análise bergsonia-
na do cômico. Um buraco nas calças, desvendando as
ceroulas, tom a ridícula a solene casaca estético-patrió-
tica.
É evidente que a esquematização da tem ática e es
trutura não faz jus à peça. É com a consciência atri
bulada que o comentarista reduz um organismo tão vivo,
tão rico e poético a um esqueleto. O homem de teatro
e poeta Brecht atinge nesta obra aquela maturidade
em que supera, em todos os momentos, as intenções
22
didáticas, sem em nenhum momento eliminá-las. Por
isso acentuou que essa peça popular não visa a uma
“tendência”, devendo ser apresentada de um modo não
demasiadamente realista. Insistiu em que se realçasse
o encanto natural do fazendeiro, figurando a sua em-
briaguês de uma forma poética e delicada e a sua so
briedade sem brutalidade e de maneira não muito gro
tesca. Mas em seguida pediu que não se levasse o seu
“charme” ao ponto de tomar ao público a liberdade de
criticá-lo. De qualquer modo, a comicidade de Puntila
__ a inferioridade do superior — é vista com humor, is
to é, com certa simpatia compassiva. Nesta fase da sua
vida, Brecht, de algum modo, está de conluio com a fra
queza humana: a culpa fundamental não cabe a Pun
tila e sim à ordem reinante de que, embora esteio, é
também vítima. Também êle, o rico, da mesma forma
como a pobre Shen-Te de A boa alma, está dividido em
duas metades.
Mais que o esquema didático, exposto nesta apre
sentação, importa compreender o humanismo de Brecht.
É verdade, a peça não visa a uma tese moral. Para
Brecht, as soluções supremas pressupõem as humildes.
Os valores sociais, embora inferiores aos morais, são
precisamente por isso os básicos. Sem a realização do
inferior, mas básico, não se desenvolve e frutifica o su
perior. Só depois de estabelecida a justiça social podem
revelar-se o amor e a bondade na sua pureza e auten
ticidade. Tôda a ênfase de Puntila é humanista. No ho
rizonte da obra, não visível mas onipresente, espécie de
imagem sugerida pelos contornos negativos da sombra
que projeta no universo ambíguo da peça, pressente-se
um mundo mais generoso em que Puntila pode ser bom
e Matti, seu amigo.
23
Prólogo
25
__
Um animal pau-d’água e comilão.
Onde êle se instala, é certo,
se instala um deserto.
Desta vez, porém, êle vem vindo,
No meio de matas magníficas,
Belos rios, lagos lindos.
Mas, no cenário, nada disso pintamos
Prestai mais atenção no que falamos.
Vereis latas de leite tilintando nos bosques da Finlândia
Aldeias avermelhadas por um verão sem noite
Galos sempre acordados,
Rios que correm tépidos,
A fumaça azul subindo dos telhados
Sentados aí,
Da primeira à últim a fila,
Isso tudo vereis, espero,
Na comédia do senhor Puntila.
26
Puntila Encontra um Homem
P u n t il a
G arçom
Há dois dias, senhor Puntila.
P u n t il a
(Ao Juiz, em tom de censura.)
27
Só dois dias, ouviu? Você já se dá por vencido e f in g e
que está cansado.
E eu que pretendia falar um pouco a meu respeito, d i
zer como me sinto só, discutir um pouco de política!
Pois sim! Ao menor empurrão, vocês caem todos como
pêras podres! É, o espírito está vivo, mas a carne é fra
ca! Onde é que anda aquêle médico que ainda ontem
desafiava todo mundo pra beber com êle? O chefe da
estação viu quando arrastaram êle daqui, o pobre dia
bo. Mas o chefe também, êsse, coitado, depois de uma
resistência heróica, entregou os pontos às sete da ma
nhã. Naquela hora o farmacêutico ainda estava de pé.
Mas agora, por onde andará? E essas são — imaginem!
— as maiores autoridades da comarca! Bonito exem
plo para o povo de Tavasto, um juiz que não agüenta
um copo bebido numa parada de caminho! Já pensou
nisso, Frederico? Um homem culto, ilustre como você,
que tôda cidade olha com admiração, que deveria ser
um modêlo para todos, um modêlo de responsabilidade
e sobretudo de resistên cia... Mas por que você não rea
ge? Senta aqui firme, vamos, e conversa um pouco co
migo, lamentável criatura. (Ao G a r ç o m .) — Que dia é
hoje?
G arçom
P u n t il a
G arçom
28
PUNTILA
G arçom
E n te n d i, senhor Puntila.
P u n t il a
(Ao Jm z.)
Acorda, ô veadão! Não me deixa assim sozinho! Capitu
lar dessa maneira diante de duas garrafas de bebida! Se
embriagou com o cheiro! Se escondeu no fundo do bar
co enquanto eu remava neste mar de álcool, neste ocea
no — velhaco! — e mal se arrisca a botar o nariz de fora.
Que vergonha! Olha só: agora eu vou me aventurar no
líquido elemento. (Sobe à mesa e “cam inha sôbre as
águas”) — e caminho, caminho na aguardente. . . e
afundo, por acaso afundo? (Descobre M a t t i , o cliojer,
que está parado na entrada, já há algum tem po.)
Quem é você?
M atti
P u n t il a
(Desconfiado.)
Você é o quê? Repete!
29
M atti
P u n t il a
M atti
P u n t il a
M atti
P u n t il a
Que carro?
M atti
P u n t il a
30
M atti
P u n t il a
M atti
P u n t il a
Você já disse antes que não ia agüentar. Está se repe
tindo. Pode ir.
M atti
P u n t il a
31
G arçom
(Entrando com um tabuleiro cheio de copos.)
Aqui está a aguardente, Sr. Puntila, e hoje é sexta-feira.
r ■
M atti
Acho.
PUNTILA
M atti
Não.
PUNTILA
Muito obrigado. Eu sabia. Matti, olhe bem pra mim:
Que é que você vê?
33
■
M atti
P u n t il a
M atti
Muito doente.
P u n t il a
M atti
P u n t il a
M atti
P u n t il a
Uma vez por mês. O resto do tempo sou perfeitamente
normal, como agora. Isto é, me sinto completamente
34
ihor de tôdas as minhas faculdades, com absoluto do-
seínio de mim mesmo. E, de repente, me vem o ataque,
o primeiro sintoma é uma estranha perturbação na
vista. Pego dois garf°s (Pega um só.) — e só vejo um.
M atti
Fica vesgo?
PUNTILA
M atti
P u n t il a
35
de saber que acaso admirável fêz com que eu te encon
trasse. Como é que você veio parar no meu serviço?-
diz!
M atti
Perdi o emprêgo que tinha antes. Mas não foi por cul
pa minha.
PUNTILA
Como foi?
M atti
Eu via fantasmas!
PUNTILA
Verdadeiros?
M atti
(Dando de ombros.)
Foi na fazenda de um certo Dr. Peppman. Ninguém
jamais tinha ouvido falar que havia fantasmas lá em
baixo. Antes da minha chegada, fantasma era coisa
que não existia ali. Mas se o senhor me perguntar a ra
zão, eu posso dizer-lhe que os fantasmas foram conse
qüência da péssima comida. Pois todo mundo sabe que,
quando a massa de farinha vira um bôlo no estômago,
a gente começa a ter pesadelos e a atrair os íncubos.
E eu então, que sou tão sensível a uma boa cozinha,
sofro demais com uma cozinha ruim. Pensei em ir em
bora logo, mas não tinha pra onde e estava com a moral
muito baixa; então comecei a freqüentar a cozinha e a
fazer uns comentários meio enviesados. Não se passou
36
tempo e as ajudantes de cozinheira começaram a
Díl1!1cabeças de meninos fincadas na cêrca do quintal;
velP mandaram. Logo depois era uma bola cinzenta que
6 i iva da estrebaria; quando a gente pegava tinha olhos
febôca, como um homem. Quando eu contei isso à go-
eernante, ela teve uma coisa! E a arrumadeira também
foi embora quando eu disse a ela que às onze da noite,
lá perto do banheiro, eu tinha visto um homem andando
com a cabeça em baixo do braço e até parou e me pe
diu fogo pro cachimbo. Foi aí que o Dr. Peppman co
meçou a ficar irritado dizendo que a culpa era minha,
que eu é que fazia todo o pessoal ir embora, que na fa
zenda dêle não tinha nenhum fantasma. Ah, não ti
nha? Estava redondamente enganado, foi o que lhe res
pondi. Durante duas noites seguidas, enquanto a m u
lher do Dr. Peppman estava na maternidade esperando
criança, eu tinha visto, com meus próprios olhos, um
espectro branco saindo da janela da governante e en
trando de mansinho no quarto dêle! Aí, de mêdo, o Dr.
Peppman perdeu a respiração. Me despediu ali mesmo.
Porém, na hora de ir embora, eu disse o que queria: se
êle pretendia que os espíritos o deixassem em paz devia
tomar mais cuidado com a cozinha porque os espíritos
detestam o fedor de carne estragada.
P u n t il a
(Canta. ) :
37
Com que prazer Puntila iria para a floresta derrubar
bétulas, limpar os campos e guiar o trator! Mas me
deixam, por acaso? Me botaram um colarinho duro que
eu não posso nem virar o queixo! Não fica bem que o
papai trate da terra, não fica bem que o papai boline
as môças, não fica bem o papai tomar café com os em
pregados! Mas agora se acabou êsse “não fica bem”.
Viajo para Kurguela, dou m inha filha como noiva ao
attaché, e aí posso me sentar em mangas de camisas
com quem quiser, sem dar satisfação a ninguém. Me
deito com madame Klinckmann e pronto. E a vocês au
mento imediatamente a diária, pois o mundo é grande
e eu tenho terras e matas que chegam para vocês e
chegam também para Puntila.
M atti
(Ri forte e prolongadamente: depois se levanta.)
Muito bem, muito bem. Agora calma e vamos acordar
o juiz.
Mas cuidado, pelo amor de Deus; se se assusta nos dá
pelo menos trinta anos de cadeia.
P u n t il a
(Detendo M atti J
Quero estar certo de que não existe nenhum abismo en
tre nós dois. Diz, Matti: “Não existe êsse abismo.”
M atti
P u n t il a
38
M atti
É claro!
PUNTILA
M atti
P u n t il a
M atti
Não somos.
P u n t il a
P u n t il a
° que é que você está dizendo, meu irmão? Você sabe
39
lá o que é um bosque? Um bosque para você significa
apenas cinqüenta mil alqueires de madeira ou é também
uma verde delícia para os olhos? E você quer vender
uma verde delícia para os olhos? Te envergonha!
M atti
P u n t il a
M atti
P u n t il a
Madame Klinckmann.
M a tti
P u n t il a
Essa mesma. Tem um fraco por mim.
M atti
P u n t il a
40
M atti
Juiz
Silêncio na sala!
PUNTILA
Cozinh eira
41
E quando enfim foi embora
o garçom nem cumprimentou
“ô vagabundo e ladrão,
não lhe deram educação?”
“Já viu pessoa educada
depois de andar três dias
com uma unha encravada?”
42
Puntila é Maltratado
A ttaché
E va
E va
A ttaché
E va
Papai!
P u n t il a
44
pega a minha mala. Como vê, viemos a tôda pressa
porque eu sabia que você estava nos esperando. Me diz,
você se divertiu?
(Tira o capote, deixa-o cair no chão e sai.)
E va
Juiz
Mas Puntila me disse que o sobrinho dela estava aqui
te fazendo companhia. (P u n t il a , ajudado por M atti ,
desce uma mala.)
P u n t il a
E va
Juiz
Você por acaso não brigou com o attaché? Está se la
mentando de ter ficado sozinha com êle?
45
E va
Juiz
Puntila, parece-me que Eva não demonstra o menor in-
terêsse pela situação. Com o attaché diz que não con
segue nem brigar! Isso me recorda uma causa de divór
cio em que a mulher se queixava do marido não lhe ter
dado umas boas bofetadas quando ela atirou um aba
jur na cabeça dêle! Tinha ficado profundamente hum i
lhada com a indiferença; assim dizia.
P u n t il a
Está aí; mais uma vez tudo saiu bem. Quando Puntila
se mete num a coisa a coisa sempre sai bem. O quê?
Você não está contente? Deixa êle comigo, aquêle ali.
Sabe o que te digo? Manda êsse attaché andar. Isso
nem homem é. (M atti dá risadinhas cheias de malig
na satisfação.)
E va
P u n t il a
E va
Ah, papai, você é impossível! (Para M a t t i .) — Apanha
essa mala e leva para cima.
46
PUNTILA
E va
P u n t il a
E va
P u n t il a
(Alarmado enquanto M atti levanta a mala.)
Ah, Eva, isso não é coisa que se faça — não é delicado.
Você não pode deixar seu pai morrer de sêde! Eu te
prometo que vou esvaziar só uma garrafa, com tranqüi
lidade e sabedoria; convido apenas a arrumadeira ou
a cozinheira. E Frederico, naturalmente, o pobrezinho
também está morrendo de sêde! Fica humana, filhinha!
47
E va
P u n t il a
E va
P u n t il a
E va
P u n t il a
48
eu acho que é a governante, não é não? Eu discuto a
coisa com ela e dá no mesmo.
E va
P u n t il a
Juiz
Que é que você quer?
P u n t il a
J u iz
Pra onde?
49
PUNTILA
Juiz
Raciocine um pouco, Puntila. Onde é que você vai en
contrar bebida alcoólica às duas e meia da manhã? A
venda de álcool sem receita médica é proibida.
P u n t il a
E va
(Aparecendo no alto da escada.)
Papai, desce daí dêsse automóvel imediatamente.
P u n t il a
M atti
(Aparecendo atrás dela.)
A gora é tarde. Corre como um louco!
Juiz
B em , a c h o que não vou esperar. Já não sou tão jovem
q u a n to fui um dia. Fica em paz, Eva, não vai aconte
cer n a d a : teu pai tem uma sorte sem-vergonha. Por
ía vor, o n d e é o meu quarto? (Sobe.)
E va
M atti
(Que procura uma posição cômoda.)
Ah, sim, intimidade demais é sempre perigoso. Uma vez
eu trabalhava numa fábrica de papel e o porteiro pediu
demissão porque o diretor lhe perguntou como o filho
ia passando.
E va
E va
M atti
E va
M atti
52
oS patrões eu nunca quero dizer nada, não tenho ne
n h u m a opinião. Não se pode admitir uma coisa dessas
n o s empregados.
E va
(Depois de um a pausa.)
G o sta r ia que você soubesse que o attaché é muito bem
v isto n o s altos escalões do Ministério do Exterior e tem
u m a b ela carreira diante de si. É uma das cabeças mais
b r ilh a n te s da nova geração.
M atti
Compreendo.
E va
M atti
E va
53
M atti
E va
M atti
E va
M atti
CORTINA
C ozinheira
(Entra com um pano de limpeza e uma pàzinha.
Canta.)
54
A filha do patrão leu um livro imoral
E agora diz ser intelectual
Encontrando um empregado
Olhou-o bem no rosto
e perguntou com enfado:
“É verdade que apesar de chofer
Você também, é homem, quando quer?”
55
As Noivas Matinais do Sr. Puntila
P u n t il a
57
/
/
noite? Preciso que me faça um pequeno favor. Eu sou
o grande proprietário Puntila de Lammi, e me encontro
numa situação verdadeiramente dolorosa: minhas vacas
estão com escarlatina. Por isso tenho necessidade abso
luta de comprar álcool legítimo. Poderia a bela jovem
me dizer onde mora o veterinário? Eu derrubo a ponta
pé a merda dêsse barracão se você não me disser logo
onde êle mora, tá ouvindo?
Ema
P u n t il a
Ema
P u n t il a
58
e tôdas as noventa estão com febre aftosa. Tenho pois
neCessidade urgente de álcool autorizado.
V e t e r in á r io
P u n t il a
V e t e r in á r io
P u n t il a
V e t e r in á r io
(Rindo.)
Ajuda, ajuda. Se o senhor é realmente um homem tão
terrível, é justo que eu lhe dê uma receita. Quero ape
nas estar certo de que é febre aftosa.
PUNTILA
V e t e r in á r io
PUNTILA
Ema
(Enquanto lava um a garrafa, canta.)
Era no tempo de amora
O carro veio de fora
E entrou nesta cidade
Com um homem de verdade.
M anda
60
PUNTILA
M anda
P u n t il a
Ema
(Canta.)
E fomos colhêr amoras
êle se deitou na grama
cobiçando a tôdas nós
com o seu olhar em chama.
M anda
(Rindo.)
Olha que garrafão! Espero que consiga também alguns
61
arenques para melhorar o porre que essas vacas vão
tomar. (Entrega a garrafa.)
PUNTILA
M anda
P u n t il a
M anda
62
e o diretor da biblioteca já são casados: portanto eu
não tenho muito com que me divertir. O senhor quer
saber? não acho a vida muito engraçada não.
PUNTILA
M anda
P u n t il a
M anda
P u n t il a
Ema
(Canta.)
E enquanto fermentávamos as amoras
Conosco êle brincava alegremente
e rindo ria e ria rindo
metendo o dedo no recipiente.
(Torna a entrar em casa e fica espiando da janela.)
63
(A em pregada da Farmácia dá as argolas a P u n t i l a .
Enquanto isso repete, a bocca chiusa, o tem a da
outra.)
P u n t il a
(Botando uma argola no dedo dela.)
Eu te espero na minha casa, domingo, em Puntila, às
oito horas. Vamos fazer uma grande festa de noivado.
(Êle vai andando. Passa Lisu, a ordenhadora, com um
balde na mão.) — Espera aí, minha pombinha. Eu te
quero, menina. Você me agrada. Onde vai a esta hora
da manhã?
Lisu
Tirar leite de vaca.
P u n t il a
L is u
64
Depois eu torno a varrer o estábulo, tiro mais leite das
vacas, torno a lavar os baldes. Minha obrigação é or
denhar cento e vinte litros de leite por dia. De noite
como pão com leite. Me dão dois litros de leite por dia,
mas as outras coisas eu tenho que comprar na fazen
da. De cinco em cinco domingos eu tenho um dia inteiro
livre, de noite vou dançar; às vêzes me dou mal e faço
um filho. Tenho dois vestidos. Também tenho uma bi
cicleta.
PUNTILA
Lisu
De acôrdo.
P u n t il a
(Continuando a andar.)
Em frente, em frente, a caminho da cidade. Não agüen
to a curiosidade de saber quem é que já está de pé a
esta hora da manhã. As mulheres são irresistíveis e esta
hora: acabaram de sair da cama, ainda estão com os
olhos brilhantes e pecam inosos. . . e em volta, o mundo
ainda é tão jovem, (chega à Central Telefônica. S a n d r a ,
a telefonista, está saindo.) — Bom-dia, ó deusa da vi
gília. Mulher onisciente, que sabe tudo através dos fios
mágicos da telefonia. Bom-dia a ti, minha pomba-rôla.
65
S andra
S andra
P u n t il a
S an d r a
P u n t il a
66
tor que você vai se casar com Puntila de Lammi. Aqui
*stá o anel, aqui está a bebida, aqui está tudo de acor
do com as regras, e domingo às oito, já sabe, lá em casa.
S andra
(Rindo.)
E starei lá sem falta. Já sei que domingo é a festa de
n oivad o de sua filha.
P u n t il a
(Para E m a , a contrabandista.)
Como vê, c a r a s e n h o r a , e s t o u n o iv a n d o a q u i d e f o r m a
coletiv a ; e s p e r o q u e a s e n h o r a m e d ê o p r a z e r d e c o m
parecer t a m b é m . (Ela estende o dedo; P u n t i l a coloca
a argola.)
As Q ua tr o
(Cantam.)
Quando acabamos de comer
O homem já tinha ido embora
Mas até hoje ainda esperamos
E achamos que êle não demora
P u n t il a
CORTINA
C o zinheira
(Como antes, mas agora com uma tigela de louça e uma
colher batendo massa.)
Ç
\
P u n t il a
M atti
E» Sr. Puntila.
PUNTILA
M atti
P u n t il a
O G ordo
O G ordo
Eu incomodo?
PUNTILA
O G ordo
P u n t il a
T r abalhador
P u n t il a
71
— Você vê como se comportam certas pessoas hoje em
dia?
M atti
, T rabalhador
E o alojamento?
P u n t il a
M atti
72
T r a ba lh ado r R u iv o
C om o é a coisa lá?
M atti
T rabalh ado r R u iv o
M atti
T rabalh ado r R u iv o
M atti
No verão, não é muito.
T rabalh ado r R u iv o
(Depois de uma pausa.)
Acho que vou gostar do lugar, não encontrei nada de
bom até agora e êsse troço já vai fechar.
M atti
Vou falar com êle. Vou dizer que você é humilde e que
não é teimoso; êle gosta disso. A essa altura êle já
telefonou e deve estar mais tratável. Lá vem êle.
PUNTILA
(De bom humor, saindo do café.)
Você achou alguma coisa? Me lembrei também que te
nho de levar um pouquinho de leite, aí uns doze marcos.
M atti
PUNTILA
M atti
P u n t il a
M atti
74
T rabalhador M iserável
M atti
P u n t il a
M a tti
P u n t il a
(Escreve na carteira do primeiro trabalhador.)
Eu te compreendo, Matti, você me despreza. Você me
olha com asco, só admite o tom frio dos negócios. (Ao
primeiro trabalhador.) — Estou escrevendo o que com
binamos; pra tua mulher também. Eu dou leite, fari
nha e feijão, no inverno.
M atti
P u n t il a
O M ise r á v e l
é evidente.
M atti
P u n t il a
76
M atti
(R i)
Não, ao senhor eu levo em confiança. (Falando do
Êle tem mulher e a filhinha está na escola.
r u iv o .)
P u n t il a
O Ruivo
Minha mulher lava. Faz mais em meio dia de trabalho
do que qualquer outra mulher num dia inteiro.
P u n t il a
M atti
P u n t il a
(Bebe.)
Não Matti, você não vai me obrigar a ser desumano.
Eu quero me aproximar dos meus homens do ponto de
vista humano, antes de qualquer outra ligação. Pri
meiro tenho que explicar a êles a espécie de homem
que sou, pra que êles decidam se podem conviver co
migo. Diz a êles: que espécie de homem eu sou?
M atti
P u n t il a
M atti
P u n t il a
M atti
78
£u só queria que o senhor terminasse com êsse pessoal,
lia s estou vendo que o senhor não quer nada — quer
é passar o tempo.
P u n t il a
(Sorrindo dolorosamente.)
Ah, é assim que você me julga, Matti? Sim senhor, você
não me entende nada, apesar de tôdas as oportunida
des que lhe dei.
O Ruivo
O senhor podia assinar logo o meu contrato? Senão eu
vou procurar outra coisa enquanto é tempo.
P u n t il a
O Ruivo
Bom, eu vou-me embora. O que eu quero é um emprêgo.
P u n t il a
79
eu adoro esta terra! A gente vai correndo e as bétulas
vão passando. Antes vamos beber mais um copinho.
Vamos, vocês têm de beber, fiquem algres como Puntila,
eu gosto de alegria e nunca olho as despesas quando
estou com gente amiga. (R apidam ente distribui um
marco a cada um. Ao M is e r á v e l .) — Não se deixe im
pressionar, vou te dar um bom lugar — você vai ficar
no moinho a vapor, um trabalho fácil.
M atti
P u n t il a
M ise r á v e l
M atti
P u n t il a
(Num tom compenetrado.)
É uma atitude muito bonita essa tua, Matti. Eu sei que
80
você não é rancoroso. Aprecio muito a tua boa-fé e a
lea ld a d e com que defende os meus interêsses. Mas você
n ã o deve se esquecer de que Puntila pode se dar ao
lu x o de ir a todo vapor contra os próprios interêsses,
h e in ? Olha, Matti, quero que você me dê sempre a sua
op in iã o . Promete? (Aos outros.) — Sabem por que êle
p erd eu o último emprêgo? Porque o patrão guiava e
q u a n d o fazia as mudanças arranhava a embreagem. Êle
aí disse que o patrão tinha alma de carrasco.
M atti
Besteira minha.
P u n t il a
(G ravem ente.)
Eu gosto de você por causa dessas besteiras.
M atti
(Levanta-se.)
Vamos embora? E Surkala?
P u n t il a
81
Escândalo em Puntila
L aina
(Descendo da escada.)
Benvindo a Puntila! D. Eva, o A ttaché e o Juiz já che
garam ;estão almoçando.
P u n t il a
° que eu quero é ser o primeiro a apresentar desculpas
83
a você e sua família, Surkala. Faz o seguinte: vai bus
car teus filhos, os quatro: eu quero exprimir pessoal
mente a êles o meu remorso pela angústia e a incerteza
em que foram lançados por minha culpa.
S urkala
Não é preciso, Sr. Puntila.
PUNTILA
( Gravemente.)
É preciso, Surkala. (S urk ala sai.) — Êsses cavalheiros
vão ficar aqui. Serve um copo para cada um, Laina;
vão trabalhar na derrubada do bosque.
L aina
P u n t il a
M atti
P u n t il a
M iserável
84
M atti
M ise r á v e l
M atti
Eu avisei p r a v o c ê s n ã o v ir e m s e m o c o n t r a t o . ("Fi n a
traz o álcool e os trabalhadores pegam um copo cada
um.)
T rabalh ado r
M atti
P u n t il a
85
PUNTILA
M atti
PUNTILA
M ise r á v e l
P u n t il a
M atti
86
PUNTILA
M atti
P u n t il a
M atti
P u n t il a
Conta como êle ficou vermelho como um peru; tinha
tanta raiva que nem sabia o que responder diante da
quela gente.
M atti
P u n t il a
M atti
P u n t il a
P u n t il a
M atti
P u n t il a
M atti
P u n t il a
(Que vai ficando melhor aos poucos.)
Eu não tenho mêdo de ninguém.
M atti
89
P u n t il a
M atti
F in a
M atti
P u n t il a
M atti
F in a
90
PUNTILA
(Sombrio.)
O u tr o ca fé. (Servem-lhe.)
M atti
(Forte.)
O a m o r aos animais é a maior qualidade dos habitan
tes de Tavasto, todo mundo sabe. Por isso é que eu fi
q u ei tão espantado com o comportamento do gordo.
O uvi falar também que êle é cunhado de Madame
K lin c k m a n n . Eu nem quis dizer nada porque se o
Sr. Puntila soubesse disso ia tratar o gordo ainda pior.
(Puntila lhe lança um olhar.)
F in a
P u n t il a
F in a
M atti
Ué, eu sou o anjo da guarda dêle? Vi que êle estava
praticando um ato generoso e honesto — isto é, estú-
91
pido, porque ia contra os interêsses dêle. Eu ia impedir?
Sempre que está alto êle é realmente possuído por um
fogo sagrado. Teria desprêzo por mim. E eu não quero
que êle tenha desprêzo por mim. Quando está alto, eu
digo.
P u n t il a
(G ritando de fora.)
Fina! (Ela aparece com as roupas.) Presta bem aten
ção no que eu decidi, senão vão deformar as minhas
palavras, como sempre. (M ostra um dos trabalhadores.)
Eu gostaria de ficar com aquêle ali, está vendo — êle
não procura se mostrar, só cuida do trabalho, mas re
fleti melhor; não fico com ninguém. Resolvi vender o
bosque de uma vez por tôdas. Vocês podem agradecer
a êsse aí. O canalha me escondeu uma coisa que era
fundamental. Ah, isso me faz lem brar... (G rita.) — Ei,
você aí! ( M a t t i sai da cabina.) — É; você mesmo. Me
dá teu paletó! Eu disse me dá teu paletó, você não
ouviu? ( M a t t i entrega o paletó) — Agora eu te peguei,
velhaco! (M ostra a carteira) — Sabe o que é que eu
achei no teu bôlso? Eu não me engano nunca! Eu vi
que você tinha cara de cadeia. Isto aqui é a minha
carteira — é ou não é?
M atti
É, Sr. Puntila.
P u n t il a
M atti
É, Sr. Puntila.
92
PUNTILA
M atti
M iserável
P u n t il a
M iserável
P u n t il a
Você devia ter visto isso mais cedo. Mas não, achou me
lhor explorar a minha generosidade. Eu tomo nota dos
aproveitadores como você — eu tomo nota de todos os
que procuram abusar da minha bondade. (Entra na casa
principal.)
T rabalhador
93
pois te fazem voltar a pé nove quilômetros. E trabalho,
nada. É bom pra gente aprender a não ir nessa conver
sa de amabilidades.
M iserável
Eu denuncio êle.
M atti
A quem? (Os trabalhadores, desiludidos, vão saindo da
propriedade.)
E va
M atti
Eu aqui não ganho pra me defender. Já notei que os
patrões não vêem com bons olhos os empregados que
se defendem.
E va
M atti
E va
Mais respeito, ouviu? O attaché é um homem encanta
dor. Apenas não é o marido ideal.
94
M atti
E va
M atti
E va
M atti
E va
95
M atti
E va
M atti
E va
M atti
E va
M atti
96
resolvemos tudo. O importante é êle compreender que
pegam os a um grau de intimidade que não tem mais
re m é d io .
E va
Com o?
M atti
E va
Por exemplo?
M atti
E va
M atti
E va
Já é melhor. Mas êle dirá que você tem uma paixão se
creta por mim e que apanhou a . . .
97
M atti
A meia.
E va
M atti
E va
M atti
E va
M atti
98
E va
M atti
E va
M atti
E va
M atti
E va
99
M atti
E va
M atti
E va
M atti
L a in a
E va
A t ta c h e
P u n t il a
L a in a
P u n t il a
A t ta c h e
101
PUNTILA
A tta c h é
P u n t il a
A tta c h é
P u n t il a
A tta c h é
PUNTILA
M atti
P u n t il a
A t ta c h é
P u n t il a
(Vai saindo com êle, sempre de olhar fixo na porta.)
Vamos sim, acho que é melhor.
M atti
(D entro do banheiro.)
Vai tudo bem. Êles me viram entrar.
103
E va
/
M atti
E va
M atti
E va
M atti
104
•en te demais em tôda parte. Num quartinho como êste
%fic a muito bem, bem protegido. Mas está quente, hein?
/ Tira o paletó.) — Por que você não fica um pouco mais
à v o n ta d e ? Pode deixar que eu não olho. Quanto é que
v a le — meio marco?
E va
M atti
E va
M atti
E va
No Sacré-Coeur de Bruxelas só se falava de coisas muito
limpas.
M atti
105
(Entram P u n t i l a e o A t t a c h é ; êste com um ramo de
rosas.)
A tta c h é
M atti
A tta c h é
(Parando.)
Ué. Não é Eva?
P u n t il a
M atti
(Alto, jogando as cartas.)
Mas como você é cosquenta!
A t ta c h é
Escuta!
106
M atti
(Baixo.)
Agora se defende um pouco.
P u n t il a
E va
(Alto.)
Não! Não! Assim não!
M atti
Ah, deixa!
A t ta c h é
P u n t il a
M atti
E va
107
M atti
E va
P u n t il a
(Berra.)
Eva!
M atti
E va
M atti
(Virando um banco com um ponta-pé.)
Agora você vai sair daqui como uma cadelinha mo
lhada.
P u n t il a
Eva!
( M a t t i despenteia cuidadosamente os cabelos de Eva.
Ela arranca um botão da blusa e sai.)
108
E va
PUNTILA
A t ta c h é
E va
(Fazendo que não vê M a t t i , mas um pouco intim idada.)
Que foi que você ouviu, papai? Não aconteceu nada.
P u n t il a
M atti
(Fazendo o intim idado.)
Sr. Puntila, a Srta. Eva estava só jogando o sete-e-meio
comigo. Se o senhor não acredita estão aqui as cartas.
Foi tudo um equívoco.
P u n t il a
109
A t ta c h é
P u n t il a
(Cheio de fúria concentrada.)
Eva, eu torno a falar contigo depois. Quanto a você,
meu sedutor, se se arriscar outra vez a dar um pio na
frente de m inha filha em vez de fazer como deve: que
é tirar da cabeça êsse boné fedorento e tratar de lavar
essas orelhas imundas como as de um porco — ah,
teus dias estão contados. Teu dever é olhar para a filha
daquele que te dá trabalho como quem olha para uma
criatura de essência superior que se dignou descer en
tre os mortais. Me deixa, Eino, você acha que eu posso
admitir tanta impudência? (A M a t t i ) — Repete: qual
é o teu dever?
M atti
Olhar para sua filha como quem olha para uma cria
tura de essência superior que se dignou descer entre
os mortais.
P u n t il a
110
M atti
PUNTILA
M atti
E va
Estaca zero.
M atti
Ê le t e m m a is d ív id a s d o q u e a g e n t e p e n s a v a .
CORTINA
L a in a
(Com um recipiente onde bate a nata com o
espumador)
Nesta propriedade há um banheiro
Onde acontecem coisas de manhã.
111
Nossa patroazinha tão cristã
Se tranca lá com o motorista
Jogando sete-e-meio.
Seu noivo, o attaché,
Não acha feio.
Puntila disse:
“Êsse attaché
é um homem tolerante
de tudo o que vê.
Nada tem de plebeu.
Mas de tudo que compra
O devedor sou eu.”.
Conversa Sobre Caranguejos
(Cozinha da propriedade de P u n t i l a .
Do Exterior, de vez em quando, vem
música de dança. No teto está suspenso
um porco m orto há pouco. M a t t i , de
chinelos, lê o jornal. É noite.)
F in a
M atti
F in a
113
que te subiu um pouco à cabeça. Aquela não tem nin
guém com quem falar, coitada.
M atti
Você sabe que numa noite assim eu gosto de deixar que
as coisas me subam um pouco à cabeça? Por exemplo,
Fina, se de repente te desse uma vontade de ir comi
go até o rio eu esquecia êsse chamado da patroa e fi
cava com você.
F in a
M atti
(Abre outro jornal.)
Está pensando no professor?
F in a
M atti
114
i enguiço na estrada, os patrões, que andam sem-
se eAbados, acabam rolando pela ribanceira ou, o que
P1Tior sujam a roupa na lama. (Faz um gesto para que
v n a se sente em seus joelhos. Entram o Juiz e o A d v o
g a d o com toalhas nos ombros. Estão saindo da sauna.)
Juiz
V o cê t e m alguma coisa para nos oferecer? Aquêle es
p lê n d id o le it e do outro dia? (M a t t i , com a escumadei-
ra, enche dois copos, F in a sai com a roupa.)
A dvogado
Juiz
Eu sempre que venho aqui tomo um copo de leite de
pois da sauna.
A dvogado
Juiz
A mim me dão uma trabalheira infernal as noites de
verão da Finlândia. Os processos de alimentos para os
filhos ilegítimos são um verdadeiro hino às nossas noi
tes de verão. Para poder compreender o poder de sedu
ção de nossas matas durante essa estação você pre
cisa ir ao tribunal. Quanto aos nossos rios então, nem
se fala. Parece que no verão as mulheres ficam exci
tadas só de olharem os rios. Uma culpou o feno, por
causa do cheiro forte que exala com o calor. Colhêr
115
!
A dvogado
Juiz j
(Ouvindo alguém tocar a cam painha — A M a t t i )
Quer fazer o favor de ir ver quem é que está chaman
do? Ou melhor, deixa que nós vamos — seremos acusa
dos de não respeitar as oito horas de trabalho. (Sai com
o advogado.)
116
E va
M atti
E va
M atti
E va
M atti
Direto.
E va
117
M atti
(.Impressionado.)
Então vamos, eu remo.
E va
M atti
E va
M atti
E va
M atti
118
pedras escorregam muito, mas a noite está muito cla
ra, ajuda. Não tem uma nuvem no céu, olhei agora
mesmo.
E va
(Hesitando)
É melhor com a tarrafa. Se pega mais.
M atti
E va
M atti
E va
M atti
119
O que é que você está dizendo? Olha, fala claro —
você quer pegar os caranguejos ou não quer?
M atti
(Depois de uma pausa.)
Pensando bem, já é um pouco tarde. (T om a a sentar
e a ler o * jornal.) — Amanhã de m anhã às seis em
ponto eu tenho que levar o Studebaker na estação para
esperar o attaché. Se a gente ficar pescando até as três
ou quatro da manhã não vai me sobrar nem um tem-
pinho pra dormir. Quer dizer, se você faz mesmo ques
t ã o .. . (sem uma palavra, E va se vira e sai. M a t t i tor
na a tirar a japona e lê. Entra L a in a , vinda da sauna.)
L a in a
M atti
L a in a
E va
Preciso que você me leve à estação imediatamente.
M atti
Pois não. Cinco minutos pra tirar o Studebaker. Espe
ro no portão.
E va
Vejo que nem se interessa em saber o que pretendo
fazer na estação.
M atti
Acho que pretende pegar o trem das onze para Hel-
sinki.
E va
Porém não demonstra a menor surprêsa.
M atti
Eu devia me surpreender por quê? A surprêsa de um
chofer não adianta nada. Não tem a menor influênci?
sôbre o curso dos acontecimentos. Na verdade, em ge
ral, nem sequer percebem se êle ficou surpreendido.
E va
M atti
(Sem entusiasmo.)
Está bem.
E va
M atti
(Cauteloso.)
Eu não sei se êle se sentirá meu devedor, eu dando a
você êsse dinheiro.
E va
(Depois de um a pausa.)
Eu já estou arrependida de ter pedido.
M atti
122
que podia se interessar por mim. Foi uma distração
^êle — só pensa na sua felicidade. Êle mesmo me
disse. Quando está de porre, digamos, quando bebeu
uma dose além da conta, às vêzes êle não sabe mais
onde está a sua felicidade — e age segundo o senti
mento da hora. Mas quando não bebeu nada e é de
nôvo um homem inteligente, te compra logo um atta-
ché, uma pessoa à altura de seus milhões. Você pode
ser embaixatriz em Paris ou no Nepal e fazer tudo que
lhe agradar. Por exemplo, numa noite assim bonita
como esta, se você tiver vontade de fazer alguma coisa,,
você faz. Se não tiver, não faz.
E va
M atti
E va
M atti
123
E va
M atti
E va
M atti
E va
(Senta.)
Não vou me casar com o attaché.
M atti
124
êsses tipos todos. São todos iguais. Muito bem educa
dos, não jogam um sapato na cabeça da gente nem
quando estão bêbados, não discutem questões de di
nheiro, sobretudo quando não é dêles, e são capazes de
gostar de uma pessoa como gostam de um vinho —
porque aprenderam.
E va
M atti
Como assim?
E va
M atti
E va
M atti
125
lhos grandes e todos só o chamavam pelo primeiro no
me: “Vitor, me traz as botas! Depressa, Vitor!” Sabe
que eu não gosto disso, senhorita?
E va
Eu sei. Você quer ser o patrão. Posso imaginar como
pretende tratar sua mulher.
M atti
Já andou pensando nisso?
E va
Nem em sonho! Você acha que eu não tenho mais em
que pensar? Passo o dia inteiro pensando em você. O
que é que levou você a achar isso? Além disso estou far
ta de ouvir falar de você mesmo, do que quer, do que
gosta, do que ouviu dizer. Eu sei muito bem o que há
por trás das suas historinhas inocentes, das suas inso
lências! Você é insuportável! Quer saber de uma coisa?!
Eu tenho horror aos egoístas! (Sai, M atti tom a a se
sentar e lê o jornal.)
CORTINA
L aina
( Canta enquanto unta de manteiga uma fôrma de doce.)
Bela e sozinha
a filha do patrão desceu à cozinha
de noite, com uma luz.
“Chofer, que músculos bonitos!
Viu a roupa que eu pus
126
para pescar caranguejos?”
E o chofer, com um bocejo:
“Ah, suave donzela, seu desejo
de pescar caranguejo
no verão é natural
Mas inda não percebeu
que estou lendo o jornal?”
127
A Associação das Noivas
do Sr. Puntila
P u n t il a
E va
P u n t il a
129
um copo além da sêde. Mas não me agrada nada essa
tua mania de sofismar com minhas palavras. Hoje nós
vamos festejar um noivado duplo. Só não entendo por
que Mme. Klinckmann ainda não respondeu ao meu
convite. Mas ela vem, você vai ver. A não ser que a his
tória da sauna já tenha chegado aos ouvidos dela. Você
acha que ela é mulher de engolir uma sobrinha assim?
Estou te avisando, Eva: se te pego outra vez com êsse
chofer, ai de ti! Você não pensou sequer no escândalo
quê seria se alguém te visse saindo da sauna com êle?
(Olha para o lado e vocifera.) Quem foi que soltou os
cavalos no campo de trevos?
Uma Voz
Foi uma ordem do cavalariço, Sr. Puntila!
P u n t il a
130
E va
PUNTILA
T e l e f o n is t a
M atti
Creio que hoje não vai ser possível. Êle está de mau-
humor.
S andra
131
M atti
S andra
P untila
(Fora de cena.)
E não quero mais ouvir palavras como essa! Pra mim,
dizer amor é o mesmo que dizer porcaria e nesta casa
eu não admito porcarias! A tua festa de noivado já
começou, eu já mandei matar um leitão e não posso
mais dar marcha-à-ré na morte dêle. Você acha que o
leitão vai me fazer a gentileza de voltar a roncar no
chiqueiro só porque você mudou de idéia? E depois,
eu já decidi e está decidido. Quero viver em paz nesta
casa, de hoje em diante. Não me obedece e eu mando
pôr um cadeado na porta do teu quarto, entende?
(Passos e logo uma batida de porta com violência.
M a t t i pega uma vassoura comprida e se põe a varrer
o pátio.)
S andra
M atti
S andra
/
É mesmo? Engraçado, em Kurguela a voz era diferente.
132
M atti
S an d r a
M atti
Ema
M atti
S andra
(.Representando.)
Você não é Ema Takimainen, que faz contrabando de
álcool?
Ema
S an d r a
(Radiante.)
E o que é que eu tenho aqui no meu dedo, você não
enxerga não, ô bruxa?
Ema
(Venenosa.)
Uma verruga. E aqui no meu, o que é que você vê? A
noiva sou eu, não é você. Noiva direito — com anel e
bebida.
M atti
A mbas
M atti
E m a e S an d r a
Sim, p o d e m o s p r o v a r . Nós t ô d a s q u a t r o s o m o s n o iv a s
do Sr. P u n t ila . (Tôdas começam a rir.)
M atti
S andra
M atti
Ema
135
M atti
M anda
M atti
Ema
M atti
136
E ma
De sco-unda! (F ina atravessa o pátio carregando uma
bola de manteiga.)
Lisu
Q u e b e le z a !
Ema
M anteiga d e primeira!
M anda
Hei, por favor, não sei como se chama; nós acabamos
de chegar de trem. Você não podia nos dar um copo
de leite?
M atti
Um copo de leite antes do almôço? Estraga o apetite.
Lisu
Não tenha mêdo.
M atti
Para o sucesso de nossa missão é preciso que eu faça o
noivo beber alguma coisa que não seja leite.
S andra
É verdade — senti que êle estava com a voz sêca.
137
M atti
Lisu
É verdade que Puntila tem noventa vacas? Ouvi dizer.
S andra
M atti
M ulheres
Ema
À mesa?
M anda
138
M atti
S andra
Bravo!
M atti
Ema
139
e eu, sozinha, não agüento com a plantação de bata
tas. E eu também queria que alguém não deixasse mais
o dono do armazém me roubar quando bota no cader
no os preços do sabão, do querosene e do açúcar.”
M atti
S andra
Ema
Hum, cerveja!
M atti
Lisu
Vou dizer: “Agora vou ter tempo de ir à Igreja aos
domingos, se tiver vontade”.
140
M atti
P u n t il a
S andra
(Rindo)
As suas noivas, Sr. Puntila. O senhor não se lembra?
P u n t il a
Ema
141
M anda
P u n t il a
M atti
P u n t il a
Ema
P u n t il a
Ema
142
PUNTILA
Ema
C o m p r e e n d e m o s . O senhor sabe, Sr. Puntila, o que mais
d e s e ja m o s era ter alguma coisa pra lembrar na velhi
ce. Vou só me sentar um pouco aqui no chão de sua
c a s a , para poder dizer que me sentei um dia na pro
p r ie d a d e d o Sr. Puntila, convidada por êle. (Senta-se
no chão.) — Assim, oh! Ninguém saberá que eu me sen
tei n o chão, ninguém poderá me chamar de mentirosa.
N ã o preciso dizer que não me deram uma cadeira e eu
t iv e que me sentar no solo de Tavasto — que os livros
d e e s c o la dizem que paga todo o suor que a gente em
p r e g a n ê le . O que os livros não dizem é que um empre
g a o suor e quem recebe é o outro. Êsse cheirinho bom
n ã o é vitelo assado? Aquilo que eu vi não era uma bola
d e m a n t e ig a ? O que passou rolando não era um bar
ril d e cerveja? (Canta.)
E o lago e o monte
e as nuvens no horizonte
s ã o o amor do povo de Tavasto
desde as quedas imensas do Aabo
ao verde vergel virgíneo e vasto
Me digam, eu não tenho razão? E agora me levantem,
n ã o me deixem nessa posição histórica.
143
PUNTILA
L aina
(Enquanto enxágua os copos de vinho, canta.)
As noivas da Associação chegaram tôdas
para os festejos do noivado
E o Sr. Puntila gritou
já irritado, àquela hora da manhã:
“Mas desde quando, na tosquia,
as ovelhas têm direito à parte da lã?
Só porque vou pra cama com vocês
uma vez na vida
sou obrigado a dar comida?”
ú
Histórias Finlandesas
Lisu
Ema
145
S andra
A sola furou.
Lisu
Não foi feita para andar cinco horas de estrada.
Ema
M anda
146
tinha emprestado vinte marcos ao avô. E ba-
temp° ^ cabeça, cheio de pena, tanta dor êle tinha de
^ d esp ed ir pra sempre de seus vinte marcos. (As m u
lheres riem.)
S andra
Ema
S andra
Ema
M anda
Lisu
Eu também. Em Kansala tinha uma môça que dormiu
com o filho do patrão. Saiu um filhinho, mas no Tri
bunal de Helsinki êle negou tudo pra não ter que pagar
os alimentos. Então ela arranjou um advogado e o
advogado levou pro tribunal tôdas as cartas que o ra
paz tinha escrito para ela quando estava no serviço
militar. O que êle dizia nas cartas era tão claro que
ninguém lhe tirava cinco anos de cadeia por falso ju
ramento. Só que quando o juiz começou a ler a pri
meira carta em voz alta, bem devagar, palavra por
palavra, a môça berrou que queria suas cartas de volta
e não ganhou os alimentos. Dizem que chorava como
uma cascata quando saiu do Tribunal. A mãe dela es
tava furiosa e o patife ria, satisfeito! Coitada, estava
apaixonada!
S andra
148
Ema
Lisu
Ainda há homens como êsse Athi.
Ema
Muito poucos.
CORTINA
150
L a in a
(Com um moinho na mão. Mói café e canta.)
A festa das quatro noivas
que eram noivas de um velhaco
termina com as quatro noivas
pondo a viola no saco.
Galo que crê nos senhores
chamando-os de protetores
passa a viver sem cautela
e é o primeiro na panela.
151
W ^ ÊÊm
Puntila dá a Filha
a um Homem
O P adre
Juiz
Eu o compreendo, monsenhor. Iluminar escuridão tão
negra não é tarefa fácil.
A dvogado
Juiz
São os nossos tempos; tempos de comércio e cobiça.
Um nivelamento geral. Acabaram-se os bons tempos. A
gente que lida com o povo muitas vêzes desespera —
mas é preciso paciência. Nós da elite temos que fazer
tudo para civilizá-los um pouquinho que seja.
154
A dvogado
M ulher do P adre
Juiz
Também acho que você não está dando ao Ministro
a atenção devida. ( P u n t i l a não responde.)
A tta c h é
155
sica de um órgão de igreja.” O ministro chorou de rir
com a resposta. Que é que você acha, Puntila?
P u n t il a
Juiz
Que cara?
P u n t il a
Juiz
Cuidado, Puntila, o ponche está muito forte.
A tta c h é
(Repete a bôcca chiúsa a melodia da sala ao lado e
ensaia passos de dança.)
É um ritmo irresistível, não é?
P u n t il a
(Faz nôvo gesto para o Juiz se aproximar. Êste procura
não notar.)
Frederico, fala com sinceridade. Diz a verd ad e... Que
é que você acha dessa cara? Olha que essa cara vai
me custar um bosque. (Os outros convidados cantam
em côro: “Eu procuro T it in a ...”)
156
A ttaché
(Que não percebe nada.)
não consigo guardar uma letra de música; já na
era um inferno eu decorar uns pontos. Agora,
c o la
o ritmo eu tenho no sangue.
Advogado
(Vendo que os sinais de P untila se tornam mais
evidentes.)
E stá um calor danado aqui. Vamos pro salão? (Tenta
arrastar o A ttach é.,)
A ttaché
Mas há um verso que não me sai da cabeça: “We have
no bananas”. Portanto, m inha falta de memória não
é de desesperar.
P untila
Frederico, olha e julga: olha bem, Frederico!
Juiz
Vocês conhecem a piada do judeu que esqueceu o
capote no café? Não conhecem? Pois é: êle esqueceu
o capote no café. O pessimista disse: “Êle vai encon
trar o capote.” O otimista disse: “Êle não vai encontrar
o capote.” (Todos riem.)
A ttaché
Bem. E depois? (Novas risadas.)
Juiz
Meu caro Eino, parece que você não pegou bem o sen
tido da piada.
157
PUNTILA
Frederico!
A t ta c h é
Juiz
Não, não o pessimista! Procura entender. A piada está
justam ente aí: o capote é tão velho que é melhor não
encontrá-lo.
A t ta c h é
P u n t il a
(Levanta-se, sombrio.)
Chegou o momento de intervir. Não sou obrigado a su
portar um homem assim! Frederico, você não quis
responder a uma pergunta que eu te fiz com a má
xima seriedade: você acha que devo introduzir na
minha família uma cara dessas? Você se recusou a
responder. Mas eu sou homem bastante decidido para
resolver sozinho. Um homem sem humor não é um
homem. (Com dignidade.) — Saia de minha casa! É
você mesmo! Não adianta se voltar assim, como se eu
estivesse falando com outra pessoa!
Juiz
Puntila, você está exagerando.
158
A t ta c h é
P u n t il a
A tta c h é
(Nervoso.)
Compreendeu; que ela tivesse um amante, é normal;
que ela o tivesse agredido, é concebível. Mas com um
guarda-chuva: é vulgar. Aí está a nuança.
A dvogado
Juiz
Êsse ponche está forte demais para você, Puntila.
P u n t il a
PUNTILA
(Com amargo sarcasmo.)
E como é que eu faço agora, Frederico? Não vou poder
me livrar dêle? Esqueci o nome dêle! Louvado seja
Deus, já sei! Está aqui. (Puxa do bôlso.) — Está aqui,
na promissória que êle me deu para resgatar. Se chama
Eino Silaka. Vocês acham que êle agora vai embora?
A t ta c h é
P u n t il a
A tta c h é
(Voltando-se para P u n t i l a J
Puntila, você está ficanao ofensivo. Se me põe para
fora de sua casa atravessa a imperceptível e delicada
fronteira que conduz ao escândalo.
P u n t il a
160
eria g rita r. Queria te fazer entender assim, discre
tam e n te , que a tua cara me revolta o estômago, e que
é m elhor você sair da minha frente. Mas você me
obriga a falar claro e direto. É só por isso que eu te
digo: “D á o fora daqui, seu merda!”
A tta c h é
P u n t il a
M ulher do P adre
E va
(Entra cantarolando.)
Que barulho é êsse aí fora? Que foi que aconteceu?
M ulher
(Correndo para E v a J
Ah, querida, aconteceu uma desgraça! Seja forte, mi
nha filha, tenha ânimo!
E va
161
Juiz
Toma antes um xerez, Eva. Teu pai bebeu uma garrafa
inteira de ponche e botou o Eino para fora de casa.
De repente não agüentou mais a cara dêle.
E va
M ulher
E va
P adre
M ulher
P adre
E va
Acertou alguma?
162
P adre
E va
M ulher
P untila
Amigos, acabo de dar uma olhada na abjeção do m un
do. Entrei ali no salão com as melhores intenções, para
anunciar que eu tinha cometido um grave êrro mas
que estava disposto a repará-lo. Que eu quase tinha
deixado minha filha casar com um gafanhoto de fra
que, mas agora ia entregá-la a um homem, como sem
pre foi minha intenção. Eu disse: “Êsse homem, êsse
rapaz magnífico, é Matti Altomem, um ótimo chofer
e um excelente amigo. Quero que todos brindem à fe
licidade de um casal jovem e ditoso.” Pois muito bem:
querem saber qual foi a reação? O Ministro, que eu
pensava ser um homem esclarecido, me olhou como se
olha um cogumelo venenoso. E pediu o automóvel. Na
turalmente todos o imitaram — um bando de macacos!
Que espetáculo! Me senti um mártir cristão diante dos
leões — mas a minha opinião êles souberam. Consegui
Pegar o Ministro antes dêle subir no automóvel e lhe
disse também que êle era um merda. Creio que exprimi
bem o sentimento de todos, não é verdade?
163
M atti
P u n t il a
E va
M atti
E va
M atti
M ulher do P adre
(À cozinheira.)
Já pôs os cogumelos na conserva êste ano?
L a in a
M ulher
Como?
L a in a
P u n t il a
M atti
P adre
Muito bem!
E va
Papai, ontem Matti e eu discutimos algumas idéias
enquanto você estava fora. Matti não acredita que você
lhe dê uma serraria nem que eu consiga me adaptar
à vida de um chofer.
P u n t il a
Juiz
Não me pergunta nada, João. Nem fica me olhando
com êsse olhar de boi morto. Pergunta a Laina!
166
PUNTILA
L aina
(Interrompida enquanto explica seus cogumelos à
mulher do Padre, o que é visível pela mímica.)
Vou fazer um café pro senhor, Sr. Puntila.
PUNTILA
(A M a t t i. ,)
Matti, você trepa bem?
M atti
Dizem que sim.
P untila
Não quero saber o que dizem — quero que você me
diga. Você sabe fazer a coisa como se deve? Não há
nada mais importante na vida. Você não vai falar, eu
sei, você não é homem de contar vantagem. Mas me
diz só: você trepou com Fina? Porque, nesse caso, eu
pergunto a ela. Ah, não? Não compreendo!
M atti
E va
(Que bebeu um pouco, se levanta e faz um discurso.)
Meu caro Matti, te peço que me aceites como espôsa,
167
porque eu também preciso de um homem como tôdas
as outras. Se você quiser podemos antes ir pescar
caranguejos sem tarrafa. No mais, eu não me acho
nada de extraordinário, como talvez você pense, mas
sei que poderemos viver juntos, mesmo sem muito di
nheiro.
P u n t il a
Bravo!
E va
P u n t il a
M atti
(Se levanta e bebe dois copos seguidos.)
Srta. Eva, estou disposto a fazer qualquer animalidade
com a senhorita, menos a de levá-la à casa de mamãe.
A pobre velha teria um ataque. Você sabe que lá em
casa só tem um sofá? Senhor cura, descreva para essa
môça a construção de uma cozinha de pobre, com cama
de dormir e tudo.
P adre
( Sério.)
Um lugar assaz modesto.
168
E va
M atti
E va
M atti
P u n t il a
M atti
169
E va
P u n t il a
M atti
P adre
M atti
E va
P u n t il a
170
M atti
E va
(Alegre.)
Correndo. (Sai.)
PUNTILA
(Gritando.)
Não esquece a manteiga! (A M a t t i J — Estou sensibi
lizado com a tua decisão de fazer tudo sozinho, sem
depender do meu dinheiro. Muito poucos seriam ca
pazes disso.
M ulher do P adre
(À cozinheira.)
L a in a
E va
(Que volta com o arenque servido num a bandeja.)
171
Na cozinha não tem manteiga, tem?
M atti
E va
L a in a
M atti
Você vai ter muito que aprender. Minha mãe, que era
cozinheira de uma fazenda, servia arenque cinco vêzes
por semana. Laina serve oito. (Segura o arenque pelo
rabo e o suspende no ar.) — Sê bendito, ó arenque, com
panheiro do pobre. Tu que nos sacias a fome a qual
quer hora do dia e a qualquer hora do dia nos envene
nas as tripas. Tu que vens do mar e acabas na terra.
Graças à tua fôrça maravilhosa os pinheirais são abati
dos, os campos semeados. Tu que pões em movimento
essa máquina chamada criadagem que infelizmente
ainda não é moto-perpétuo. Ó arenque maldito! Se tu
não existisse começaríamos a exigir dos patrões carne
de porco e então que seria da nossa Finlândia bem ama
da? (Deposita o prato, corta o arenque em pedaços e
dá um pedaço a cada um.)
172
PUNTILA
M atti
P u n t il a
M atti
Juiz
Mas isso é exigência demais! O arenque ainda vai, mas
eu acho que nem o amor de Julieta por Romeu resisti
ria à prova de remendar uma meia suja. Um amor ca
paz de tal sacrifício se tornaria fatalmente insuportá-
173
vel, depois de um certo tempo. Demonstraria um tempe
ramento fogoso, passional, e os temperamentos assim
mais cedo ou mais tarde acabam no tribunal.
M a tti
Nas classes mais baixas, Sr. Juiz, as meias não são cer
zidas por amor, mas por economia.
P adre
M atti
F in a
P u n t il a
174
a levanta, olhando-a com olhar de escárnio. O remendo
c horrível.)
F in a
P u n t il a
M atti
E va
(Trazendo a cadeira.)
É, Matti, reconheço que a meia foi uma vergonha.
M atti
E va
175
ge que chega em casa.) — Matti! (Corre para êle e o
beija.)
M atti
E va
(Não entende e continua a matraquear.)
Oh, pobre Matti, está muito cansado? O dia inteiro eu
fico pensando em você — você trabalha tanto! Eu que
ria tanto poder te ajudar.
F in a
(Sussurra.)
A toalha! (Dá uma a Eva.)
E va
(Deprimida.)
Perdão, eu não tinha entendido. ( M a t t i grunhe gros
seiram ente e se senta numa cadeira perto da mesa. Es
tira uma perna para que E v a lhe descalce a bota.)
P u n t il a
(Que se levantou e segue ansioso a cena.)
Tira! Tira! (E v a tira a bota de M a t t i mas term ina sen
tada no chão.)
P adre
176
M atti
E va
(Sentada no chão.)
Lavei roupa.
M atti
E va
Quatro, Matti.
M atti
F in a
M atti
P u n t il a
177
E va
M atti
E va
Sim, Matti.
M atti
E va
(Preocupada.)
O que é?
F in a
178
ta dêle; êle bate com o pé, impaciente. Depois de ti-
r a segunda bota ela se levanta satisfeita, dá um sus-
piro e ajeita os cabelos.)
E va
F in a
M atti
(Levanta-se.)
Você viu?
P u n t il a
M atti
(Quase com compaixão.)
É preciso corrigir tudo. Quer comer arenque três vêzes
por semana, se esquece do ôvo de cerzir meias e quan
do, à noite, eu volto pra casa esgotado de trabalho não
tem nem o bom-senso de ficar de bôca fechada. Agora
me diz: se me chamarem de noite para levar o velho
a estação — o que é que acontece?
E va
Você vai ver! (Finge que abre a janela e grita para /o-
ra.) — O quê? A essa hora da noite? Mal acabou de
chegar! Não tem nem o direito de dormir? É o cúmulo!
O senhor que vá curar o seu pileque no diabo que o car
regue! Meu marido não sai porque eu não quero! Vou
até esconder as calças dêle!
P u n t il a
M atti
(Rindo.)
Formidável, Eva! Vou ficar sem emprêgo, é verdade,
mas se minha mãe estivesse aqui ia adorar você. (Dá-
lhe uma palmada.)
E va
(Primeiro muda de espanto, depois furiosa.)
Não me faça isso!
M atti
O que foi?
E va
Juiz
Cara Eva, acho que o teu exame foi um fiasco do prin
cípio ao fim.
180
PUNTILA
M atti
E va
P adre
P u n t il a
E va
P u n t il a
E va
181
PUNTILA
Eva! (Tam bém o P adre e o Juiz se preparam para
sair. Mas a M u l h e r do P adr e ainda fala dos cogumelos
com L a i n a .)
M ulher do P adre
L a in a
P adre
P u n t il a
Eva! Matti, não sei mais o que fazer com essa menina.
Eu lhe arranjo um marido, uma maravilha de homem,
pensando que ela vai se levantar tôdas as manhãs can
tando como uma cotovia, cheia de felicidade. E ela, não,
faz a gostosa, não sabe, d u v id a ... Eu boto ela fora de
casa! Então você pensa que eu não sei que você ia se
casar com o attaché só pra me contentar? Você não
tem caráter, é um boneco. Olha, você não é mais minha
filha!
P adre
P u n t il a
182
igreja, que ali nem os cachorros entram pra lhe ouvir!
P adre
gr. P untila, os m eus cum prim entos.
P untila
Vai, vai! E abandona aqui êste pobre pai trespassado
de tristeza! Pai de tal filha a quem eu surpreendi em
flagrante delito de sodomia com aquêle gafanhoto ca
muflado de diplomata. Santo Deus! Qualquer campo
nesa ignorante é capaz de lhe ensinar pra que é que
serve aquêle traseiro que Deus fabricou com o suor do
seu rosto; é pra atrair um homem para a cama! E pra
que êle lamba os beiços cada vez que olha aquilo! (Ao
Juiz.) — E você, no momento exato, nem sequer abre
a bôca, pra impedi-la de ser uma porcaria. Vai embora
também, vai!
Juiz
Ora chega, Puntila, me deixa em paz. Eu lavo as mãos
dêsse negócio todo. (Sai Sorrindo.)
P untila
Há trinta anos que você lava as mãos. Já deviam estar
bem limpas a essa altura! Mas não se esqueça, Frede
rico, que essas eram mãos de camponês, antes que você
se tornasse juiz e começasse a bancar o Pôncio Pilatos.
P adre
(Tentando arrancar a mulher da conversa com
a cozinheira.)
Vamos embora, Ana, já é tarde!
M ulher do P adre
L a in a
P adre
P u n t il a
M atti
P u n t il a
M atti
184
nas para mostrar o abismo que nos separa. O senhor
tam bém notou, não notou?
P u n t il a
M atti
M u lh er do P adre
L aina
P u n t il a
SURKALA
185
Só pela fome aqui vim.
Os seus seios são tão brancos.
Frio é o aço do machado, é frio, é frio,
O amor é cheio, a morte é um vazio”.
Foge a cavalo o belo guarda-bosques.
Foge a cavalo até o mar.
“ô canoeiro, me leva no teu barco, barco, barco
me leva, canoeiro no teu barco
até o fim do mar”.
P u n t il a
CORTINA
L a in a
(Enxugando os pratos, canta.)
A rapôsa apaixonou-se pelo galo
“Paixão — tu tens paixão por mim, paixão?”
A noite foi doce mas logo veio o dia, o dia
E ao levantar do sol, após tanta paixão,
Só havia penas de galo pelo chão.
186
Noturno
É noite. P u n t il a e M a t t i m ijam no
palco.
P u n t il a
M atti
P u n t il a
187
empregado meu de cabeça baixa, fisionomia abatida,
fico irritado.
M atti
P u n t il a
M atti
P u n t il a
188
O Sr. Puntila e Seu Criado Matti
Escalam o Monte Hatelma
P u n t il a
189
nêle. O que é que vocês querem — que eu vá pro gali
nheiro verificar diretamente no rabo de cada uma?
F in a
(Entrando.)
O Sr. Cura e o Síndico da Cooperativa Central do Leite
querem falar com o senhor.
P u n t il a
A dvogado
Bom-dia, João.
P adre
A dvogado
P u n t il a
190
A dvogado
PUNTILA
P adre
P u n t il a
Que problema?
P adre
P u n t il a
P adre
191
tila. E Surkala não foi despedido. Senão a filha dêle
não estaria na Igreja hoje de manhã.
P u n t il a
L a in a
Não senhor.
P u n t il a
L a in a
P u n t il a
A dvogado
P u n t il a
192
bebo um copo demais sempre faço coisas dêsse gênero.
É de arrancar os cabelos! Surkala se aproveita. Mas
êsse aí eu boto na cadeia!
P adre
P u n t il a
P adre
P u n t il a
193
diante, não quero ver mais uma gôta de álcool nesta
ca sa !
A dvogado
P u n t il a
(Aperta-lhe a mão.)
Eu lhe agradeço.
P adre
A dvogado
(Saindo.)
A propósito, Puntila, seria bom você se informar dos
antecedentes dêsse seu chofer. Êsse também tem uma
cara meio sinistra. (Saem o A dvogado e o P a d r e J
P u n t il a
194
um verdadeiro devoto das vacas e o que eu decido no
estábulo é sagrado. (Solene.) Traz pra cá tôdas as gar
rafas que estão no armário dos selos, tôdas! Todo o
álcool que houver em casa! Quero destruir tudo, que
brar tôdas as garrafas, eu mesmo, uma a uma! Não
pensa no que custaram, Laina — pensa na nossa pro
priedade.
L a in a
P u n t il a
L a in a
P u n t il a
(Tirando o pano da cabeça.)
Não adianta você me trazer essa demagogia. As minhas
contas são contigo.
S urkala
195
M atti
P u n t il a
Ah, você está aí, canalha? O que foi mais que você
arranjou, quietinho, quietinho, nas minhas costas? Ahn?
Eu não te avisei ontem que te botava na rua? Boto na
rua e não anoto tua carteira.
M atti
P u n t il a
M atti
P u n t il a
Você vai dizer que não tem uma combinação com Sur
kala? Que você também não é um vermelho? E que
não fêz tudo que podia pra evitar que eu despedisse
êsse patife aí? Não é?
M atti
196
PUNTILA
Você tinha a obrigação de saber que minhas ordens
eram idiotas.
M atti
O senhor me desculpe mas é muito difícil distinguir
entre as suas ordens. Se eu fôr executar só as inteli
gentes é melhor me despedir logo. Fico o dia inteiro
sem fazer nada.
P u n t il a
M atti
Muito obrigado, Sr. Puntila. O senhor quer que eu vá
ao pátio e comece a quebrar tudo?
197
PUNTILA
L a in a
P u n t il a
L a in a
Sr. Puntila!
108
PUNTILA
Laina
Sr. Puntila, o senhor está bebendo de nôvo!
P u n t il a
199
(Indicando M atti.,) Êsse daí p ro cu ra me a rra s ta r pro
abismo, m as você quer que eu coma as u n h as dos pés
de chateação, que eu m orra de tédio. Que vida eu levo
aqui? Fico o dia inteiro m artirizando êsses miseráveis
ou calculando a forragem p ras vacas. Sai, c ria tu ra
m esquinha. (L aina e F in a saem balançando a cabeça.)
M esquinhas! Sem im aginação. (Aos filhos de S u r k a la J
Assaltem, roubem , sejam com unistas m as não sejam
jam ais criatu ras m esquinhas: é P u n tila quem aconse
lh a isso. (A S u r k a la J Mo desculpe se me introm eto
n a educação dos teus filhos. (A M a tt iJ Abre essa
garrafa!
M atti
P u n t il a
M atti
P u n t il a
200
depois, que adianta a Surkala continuar aqui? A nossa
propriedade é muito pequena pra ele. Não lhe agrada
ficar aqui, eu compreendo. Se eu fôsse êle também não
ficava. Pra mim Puntila seria um capitalista reles, sujo.
Sabe o que eu faria com Puntila? Eu o meteria num
trabalho violento, numa mina de sal, que assim êle
aprendia o que é trabalho duro, o sanguessuga. Tenho
ou não tenho razão, Surkala? Fala, não fica com ceri
mônia não.
A F il h a M a is V e l h a de S urkala
P u n t il a
S urkala
P u n t il a
(Aflito.)
Mas nem me apertou a mão! Você viu? A minha mão
não é digna dêle? Eu esperava que êle me dissesse
alguma coisa ao despedir-se. . . Uma palavra. Nada.
Pra êle nossa propriedade é uma merda. Eu já sabia;
201
é um homem sem raízes. O lugar onde nasceu não lhe
significa nada. Por isso achei melhor deixar que fôsse
embora, já que insistia tanto. Ah, uma cena dolorosa.
(Bebe.) Mas nós, Matti, você e eu, somos diferentes.
Você é um amigo, é que me indica o caminho na mi
nha árdua estrada. Só de olhar tua cara me vem sêde.
Quanto é que eu te pago por mês, Matti?
Matti
Trezentos, Sr. Puntila.
P untila
Te aumento pra trezentos e cinqüenta. Estou particular
m ente satisfeito com você. (Sonhando.) Matti, um dia
quero subir contigo ao monte Hatelma; a vista lá é
formosa; dali é que você vai ver como é bonito o país
em que nasceu. Vai se morder de raiva por não ter
conhecido aquilo antes. Vamos ao Monte Hatelma agora
mesmo, Matti? Você vai ver que vale a pena. E não
precisamos nem ir lá — podemos ir lá em espírito.
Bastam quatro cadeiras.
Matti
Dentro do horário eu faço o que o senhor quiser, Sr.
Puntila!
P untila
Talvez você não tenha a imaginação necessária. (M atti
não responde. P untila , com veemência.) Vamos, Matti,
me faz uma montanha. Não economiza nada, não recua
diante de coisa alguma, usa os maiores blocos de pedra
que encontrar. Senão você não consegue fazer o monte
Hatelma e não poderemos gozar o panorama.
202
M atti
PUNTILA
M atti
(Tira algumas peças do monte, como quem faz
dois caminhos.)
Pronto, Sr. Puntila, pronto, os caminhos estão prontos.
A montanha está pronta, é só subir. É uma montanha
perfeita, com um caminho perfeito e não uma coisa
inacabada e primitiva como essas de Nosso Senhor.
Também, teve que fazer tudo naquela correria; em seis
dias alguém pode fazer alguma coisa que preste? Re
sultado: teve que corrigir botando no mundo um mon
tão de escravos. Se não o mundo não funcionava.
P u n t il a
(Começa a Subir.)
Eu vou quebrar o chifre.
M atti
• (Segurando-o.)
Isso também podia lhe acontecer aqui na planície, se
eu não estivesse sempre a seu lado.
P u n t il a
M atti
P u n t il a
204
Matti
Seriam empregados ideais, hein, Sr. Puntila?!
P untila
Avante, Matti, vamos subir mais! Deixamos lá em baixo
os edifícios, obra do homem e entramos no reino puro
e grandioso da natureza. A paisagem aqui é mais des
pojada, mais austera. Matti, abandona agora tôdas as
tuas mesquinhas preocupações cotidianas e te entrega
à emocionante sensação que tens diante de ti.
«
M atti
Estou fazendo o melhor que posso, Sr. Puntila.
P untila
Ah, terra bendita! Me dá mais um copo pra que eu
possa gozar com plenitude tôda a beleza dessa paisa
gem esplêndida.
M atti
Um momento; vou buscar no vale. (Desce e torna a
subir.)
P untila
Eu me pergunto se você tem capacidade de apreciar
todo o esplendor desta terra. Você nasceu aqui mesmo,
em Tavasto?
M atti
Nasci.
205
PUNTILA
M atti
#
P u n t il a
M atti
P u n t il a
206
m a n h ã ? Aquilo é uma pequena m ina de ouro, Matti.
Eu sinto o cheiro da madeira fresca a quilômetros de
distância e você? Ah, os odores da Finlândia são um
capítulo à parte. Por exemplo, os morangos e as amoras
depois da chuva. E as fôlhas de bétula quando você
vai à sauna e manda que te batam com vontade. De
m a n h ã , na cama, como cheiram! Onde é que você en
contra uma coisa assim, Matti? Onde você tem uma
vista dessas?
M atti
P u n t il a
M atti
P u n t il a
M atti
M atti
P u n t il a
M atti
P u n t il a
208
(E ntram F in a e L a i n a J
F in a
Jesus!
L a in a
A c a b a r a m c o m a b ib lio te c a !
M atti
P u n t il a
P u n t il a
M atti
CORTINA
Matti Volta as Costas ao Sr. Puntila
Pátio da propriedade de P u n t i l a . M a t t i
sai da casa com uma mala. L a in a o se
gue com um pacote. É m anhã cedo.
L a in a
M atti
211
L a in a
M atti
L a in a
M atti
L a in a
(Assoando o nariz, comovida, em soluços.)
Felicidade, Matti, felicidade. (Sai. )
M atti
(Anda alguns passos, depois se volta.)
Antes, porém, a minha despedida.
Longa vida, Sr. Puntila, longa vida!
212
passa o pileque, passa a fraternidade
De que vale chorar
Se a luta cão e gato é milenar?
Não gastem à toa
uma lágrima boa.
Quem vencerá?
Chegou a hora do teu criado te voltar as costas
sem esperar respostas.
Só quando fôr o senhor de si mesmo
dono do seu suor
poderá dizer pra todos:
“Não tem patrão melhor.”
(sai ràpidamente.)
213
COMPÔS E IMPRIMIU / GUANABARA / 1966
o caso do chofer Matti nesta peça) foi
escrita na Finlândia, em 1940, em cola
boração com a escritora Hella Wuoli-
joki, que deu asilo ao escritor alemão
quando êste se refugiava do nazismo. A
peça ficou oito anos S 6 m ver o palco,
até que em 1948 estreou em Zurich, sob
a direção do próprio Bertolt Brecht,
com um grupo de atôres alemães que vi
ria a formar o núcleo central do Berli-
ner En&e,mble que, aliás, iniciou suas ati
vidades cçrn a montagem dêste texto, em
1949.
Desfilam, na peça os temas fundam en
tais de Brepht, tais como a análise de
um mundo çrn transformação, a luta de
classes representada aqui pelos dois an-
ífjtagonistas (Puntila e Matti) e tôda a
existência de um painel social ocupado
pelos grandes senhores (o latifundiá
rio, o diplomata, o padre, o juiz, o ad
vogado) e pela gente do povo (os traba
lhadores, as empregadas, as noivas.)
No seu ensaio Notas sôbre um teatro
popular, o autor faz porém questão de
declarar que esta não é uma peça de
tese política, devendo ser encarada co
mo exercício de estilo popular e repre
sentada como commedia delVarte.
O teatro de Brecht começou a ser
mais conhecido a partir de 1954, quan
do da triunfal apresentação em Paris
de Mãe Coragem, que reformulou vários
conceitos de dramaturgia e de encena
ção. O poeta alemão é, sem dúvida, a
mais importante influência do teatro
moderno, e seus inúmeros escritos teó
ricos, suas peças e seus poemas têm ca
da vez maior aceitação. Morto em 1956,
suas teorias continuam sendo pratica
das pelo Berliner Ensemble, companhia
que fundou e é dirigida por sua viúva,
Helène Weigel.
F lá v io RANcer.
Peça que o próprio autor batiza de popular, sendo, em
BRASILEIRA
O SENHOR PUNTILA
e Seu C r i a d o Ma t t i
CIVILIZAÇÃO