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Graduande do curso de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Bolsista
pelo Projeto de Pesquisa e extensão em aplicação da quádrupla hélice da inovação (IEEA/Tecgraf)
Orientador: Felipe Süssekind Viveiros de Castro. Email: anackrueger@gmail.com
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Aqui, foco na iniciativa do Horto Natureza, pois é uma criação feita pelos
moradores para os moradores. O Guardiões torna-se mais um complemento que se
fusiona ao primeiro projeto. Além disso, a escolha da iniciativa como foco principal
desta pesquisa se dá por sua função socioambiental interativa com o restante da
comunidade - como veremos mais tarde, nas escolas, por exemplo - e por sua
intencionalidade de resistência. Nesse sentido, o que me impactou ao longo do trabalho
de campo é que quando perguntados o porquê da existência da atividade voluntária,
Alvin me responde o motor dessa pesquisa, questão repetida por Roberto: “para mudar a
narrativa”. Em um contexto no qual a imprensa, influenciada pelos moradores do Jardim
Botânico, difundiu por anos notícias que tratavam os habitantes do Horto de forma
pejorativa, eles nos contam sobre a necessidade de mostrar que não são invasores que
acabam com a natureza, mas sim que merecem estar ali, pois contribuem ativamente
para a preservação e manutenção do local - característica que de Souza (2012) retratará
como ethos da comunidade. Alvin também fala sobre como, em contato com uma
funcionária brasileira da ONU, percebeu que a casa é mais do que quatro paredes, mas é
a história de uma pessoa, algo que nenhum valor pode alcançar, e sair à força de um
local assim é traumático. Nessa perspectiva, a importância para ele do projeto é relativa
a “mostrar nossa história, a preservação e como nossa comunidade participa disso”.
Quanto à forma que o Horto Natureza e o Guardiões do Rio interagem com o
restante da população do Horto, para além da horta comunitária - que leva o nome de
um professor caro aos trabalhadores dessas empreitadas, Walter -, destaca-se duas das
três escolas que atendem os habitantes da região: Júlia Kubitschek e Camilo Castelo
Branco. A partir delas, foi possível observar projetos integrativos que consistem tanto
em visitações à horta comunitária com os alunos quanto em vínculos ainda mais
institucionais, como a iniciativa municipal do “Esse rio é meu”, a qual os colégios
buscam estimular a conscientização referente à conservação dos rios. Desse modo, por
meio dos empreendimentos aqui estudados, os ensinos fundamentais I e II possuem
acesso de maneira lúdica às iniciativas socioambientais presentes em sua própria
comunidade.
Posto o cenário que se apresenta, sob a luz da tese de Laura Olivieri de Souza
(2012) - quem defende que a população do Horto constitui uma comunidade tradicional
e é “portanto, portadora de uma memória social que precisa ser preservada” (p.5) - este
trabalho tem como objetivo contribuir para a preservação de tal memória social - a qual
o Horto Natureza auxilia na construção -, demonstrando que as ameaças de remoção
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não são enfrentadas no cotidiano de maneira passiva, mas também nem sempre de modo
belicoso. Para além, intenta-se compreender os contornos dos projetos objetos deste
estudo, mapear os embates acerca das denominações sociais Horto - à exemplo do título
"invasores" - e contribuir com experiências de troca entre a universidade e a
comunidade por meio de atividades de extensão.
Metodologia adotada
O trabalho de Laura Olivieri de Souza (2012), denominado “Horto florestal: um
lugar de memória do Rio de Janeiro - A construção do Museu do Horto e seu
correspondente projeto social de memória”, chama atenção por sua defesa referente à
tradicionalidade da população do Horto. Isso apenas se torna possível - tendo em mente
que a caracterização legal inviabiliza o enquadramento da Comunidade do Horto desta
forma -, pois, a autora sustenta a perspectiva de Hobsbawm no que diz respeito à
tradição e costumes, compreendendo que a tradição se consolida por via do
enraizamento dos costumes no ethos dos moradores e da vida cultural local, que
reafirma uma integridade social. Ainda é válido ressaltar que embora a população do
Horto não possa ser reconhecida legalmente enquanto tradicional - apesar de sua relação
quilombola no passado - em 2021, foi aprovado em primeira votação na Câmara
Municipal o reconhecimento da região como Área de Especial Interesse Social - dando
alguma institucionalização à importância deste lugar.
Ainda me apoiando na conceituação utilizada por Souza (2012), praticando a
chamada arqueologia cultural, sua tese argumenta que o Horto é um “lugar de memória”
(Nora apud SOUZA, 2012) - ou seja, um lugar material onde a memória social se ancora
e pode ser apreendida pelos sentidos; um lugar funcionais porque é embebido de
memórias coletivas; e um lugar simbólico, onde as identidades coletivas se expressam.
Em correlato, expressa-se igualmente o conceito de "memória social", a qual
compreende-se a partir da noção de “aquela que está inserida em um campo de lutas e
relações de poder, configurando um contínuo embate entre lembrança e esquecimento” e
em uma “abordagem em que a memória se torna um instrumento privilegiado de
transformação social (Gondar & Dodebei apud SOUZA, 2012. p. 22), isto é, inserido
em um contexto de embate pelo poder, a memória se torna um instrumento essencial
para a transformação social.
Ademais, a pesquisa buscou se ancorar em uma leitura acerca de conflitos urbanos
- utilizando enquanto orientação a concepção do direito à cidade. Entende-se, deste
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modo, um referencial em Lefebvre (2016) e David Harvey (2014), sendo este último
detentor da síntese “O direito à cidade é muito mais que a liberdade individual de ter
acesso aos recursos urbanos: é um direito de mudarmos a nós mesmos, mudando a
cidade” (Harvey, 2014:28). Nesse sentido, o presente estudo procurou compreender o
Horto Natureza - em especial, a horta comunitária - como um reivindicador de seu
direito à produzir a cidade, se apropriando de um espaço físico para expressar ideais e
preencher as necessidades de parte de uma comunidade.
Estabelecido um norte teórico, feito um levantamento histórico e contando com um
arcabouço antropológico e referente à entrada à campo, a pesquisa adentrou o trabalho
externo. Esta fase consiste em visitas à horta comunitária - local onde os participantes
do Horto Natureza se concentram -, observação das atividades, realização de entrevistas
tanto abertas quanto estruturadas e acúmulo de registros fotográficos, sonoros, entre
outros tipos de registros documentais. As entrevistas abertas e estruturadas tiveram,
respectivamente, o objetivo de obter relatos mais amplos e afetivos, bem como absorver
informações mais assertivas acerca da infraestrutura da comunidade e seus costumes.
Conclusões
Em conclusão, buscou-se demonstrar um pouco do contexto de uma população que
enfrenta cotidianamente a ameaça de perder sua casa em plena zona sul carioca, região
supervalorizada a qual, nos anos 2000, se encontrava em décimo lugar referente aos
maiores valores de Índice de Desenvolvimento Humano nos bairros do Rio de Janeiro.
É importante salientar que não é apenas o preconceito contra a pobreza que está em
perspectiva, mas também explicita-se uma questão de desigualdade racial - uma vez
que, segundo o Censo (IBGE, 2010), cerca de 62,1% dos moradores do Horto se
declaram pardos ou pretos. Em contraposição, cerca de 82,9% da população do Jardim
Botânico, área que faz fronteira com o Horto e residência dos grupos que mais
movimentaram ações a favor das remoções, se declara branca.
Todavia, exalta-se o poder de ação e as diferentes formas de resistência
provenientes da comunidade do Horto - dentre elas, o objeto de estudo desta pesquisa. A
subversão de narrativa almejada pelos trabalhadores do Horto Natureza se expressa
como um elemento essencial para este trabalho, bem como a noção de que existem
múltiplas maneiras de preservar e produzir a tão necessária memória social - posta em
jogo quando o Jardim Botânico do Rio de Janeiro tem sucesso em se apropriar de
lugares caros aos moradores, à exemplo do Clube Caxinguelê, ou o mesmo instituto
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Referências Bibliográfica
ASSOCIAÇÃO DE MORADORES E AMIGOS DO HORTO. AMAHOR, 2023.
Home. Acesso em: 21 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://amahor.org/
BONI, V.; QUARESMA, S. J. Aprendendo a entrevistar: como fazer entrevistas em
Ciências Sociais. TESE, Santa Catarina, Vol. 2, n° 1, p. 60-80, Janeiro-Julho, 2005.
GONÇALVES, R. S; LESSA, V. M. A luta pelo direito à cidade: a luta dos moradores
do Horto Florestal do Rio de Janeiro contra a remoção. In: Encontro Nacional de
Pesquisadores em Serviço Social, 16, 2018, Vitória. Anais [...] Vitória: UFES, 2018. p.
1-14.
GUELPA, Séverin. When the line meets the root. Geneva: Matza, 2022
HARVEY, David. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. Trad
Jeferson Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2014
HORTO. Museu das Remoções, [s.d]. Acesso em 21 de fevereiro de 2023. Disponível
em: https://museudasremocoes.com/horto/
HORTO. NEPHU, 2018. Acesso em 21 de fevereiro de 2023. Disponível em:
http://nephu.sites.uff.br/programa/mapeando-conflitos/mapeando-comunidades/comunid
ades-do-rio-de-janeiro/horto/
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Graduando do curso de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Bolsista de Iniciação
Científica (PIBIC/CNPq). Orientador: Felipe Süssekind Viveiros de Castro. Email: joao.whately@gmail.com
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atual Floresta da Tijuca, que compõe, atualmente, um dos maiores trechos florestais urbanos
do mundo (SALES, 2021; SOLÓRZANO, 2019, p. 8). Seria possível, ainda, apontar outros
projetos de reflorestamento empreendidos na cidade a partir da década de 1980, que também
contribuíram para moldar as áreas florestadas do Rio de Janeiro. (ZAÚ; SARTORI, 2021).
Assim, pode-se afirmar que as atuais florestas da cidade constituem paisagens
complexas, resultantes da “sobreposição de diversos usos pretéritos” (SOLÓRZANO, 2019, p.
114), que permitem observar, através de sua própria composição, as marcas deixadas tanto por
atividades humanas devastadoras quanto por esforços empreendidos em prol da restauração
ecológica (SOLÓRZANO, 2017; SALES, 2021). Todavia, a configuração dessas áreas verdes
não resulta somente da realização de diferentes programas humanos de transformação das
paisagens, mas também das atividades dos vários agentes não-humanos que as constituem
(CAPILÉ et. al., 2021).
Nesse sentido, as perturbações ocorridas historicamente nessas florestas urbanas
também poderiam ser pensadas a partir das suas implicações sobre as múltiplas relações entre
espécies que compõem tais paisagens, como por exemplo, a partir dos efeitos gerados pela
introdução de espécies exóticas (SOLÓRZANO, 2019), ou pela reintrodução de espécies
extintas (FERNANDEZ, 2017). Conforme aponta a antropóloga Anna Tsing, paisagens “não
são apenas cenários para a ação histórica: elas são ativas” (TSING, 2022, p. 226). Assim,
segundo a autora, a observação das mesmas permite perceber os modos através dos quais
humanos e não humanos se articulam em processos de “adaptação colaborativa” às
perturbações ecológicas (TSING, 2019, p. 23).
Em artigos presentes na obra “Viver nas ruínas” (2019), Tsing caracteriza o
Antropoceno como a época da perturbação humana. Ao mesmo tempo, a autora também
argumenta que “o Antropoceno pede à antropologia que leve a sério as questões de
habitabilidade” (TSING, 2019, p. 204). Nesse sentido, para compreender o que torna os
lugares habitáveis em meio a essa “época de terrores ambientais” (TSING, 2021, p. 177), se
faz necessário estudar os entrelaçamentos dos modos de vida presentes nas assembleias de
espécies que compõem as paisagens (TSING, 2022).
Seguindo essa proposta, a presente pesquisa tem por objeto as áreas verdes da cidade
do Rio de Janeiro, tomadas enquanto paisagens resultantes não apenas dos diferentes
processos históricos de interferência humana, como também das relações estabelecidas entre
as múltiplas espécies que as integram - sendo estas espécies nativas, exóticas ou mesmo
espécies reintroduzidas por projetos de restauração ecológica.
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https://refloresta-rio-pcrj.hub.arcgis.com/; https://refauna.org.br/
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REFERÊNCIAS
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CAPILÉ, Bruno; FRANÇA, Ana Marcela; SALES, Gabriel Paes da Silva. A agência
compartilhada de plantas e humanos na elaboração do mosaico de paisagens do Rio de Janeiro
oitocentista: uma proposta metodológica. Anuario de Historia Regional y de las Fronteras,
v. 26, n. 2, pp. 49-80, 2021.
DEAN, Warren. A ferro e fogo: A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São
Paulo: Companhia das Letras, 2021.
FERNANDEZ F. A. S. et. al. Rewilding the Atlantic Forest: restoring the fauna and
ecological intetactions of a protected area. Pespectives in ecology and conservation, n. 15,
out, 2017.
SALES, Gabriel Paes da Silva. A História contada a partir das árvores: um ensaio sobre o
plantio da Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX. Tese
(Doutorado) - Geografia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2021.
SOS Mata Atlântica/INPE. Atlas dos remanescentes florestais da Mata Atlântica. Período
2019-2020. Relatório Técnico. Fundação SOS Mata Atlântica, Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais, São Paulo, 2021.
TSING, Anna L., DEGER, Jennifer, SAXENA, Alder K., and ZHOU, Feifei. Feral Atlas:
The More-Than-Human Anthropocene, Redwood City: Stanford University Press 2021.
TSING, A. L. O Antropoceno mais que Humano. Ilha – Revista de Antropologia, v. 23, n. 1,
pp. 176-191, 2021.
TSING, A. L. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB, Mil
Folhas, 2019.
ZAÚ, André Scarambone; SARTORI, Richieri Antonio (org.). Florestas aos Montes: A
recuperação das matas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Edição do autor, 2021.
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Instituto de Psicologia/UFRJ. Orientadores: Camilo Barbosa Venturi (IP/UFRJ) e Laura Rebecca Murray
(NEPP-DH/UFRJ)
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Matriciamento ou apoio matricial é um modo de produzir saúde que, ao invés de basear-se na prática tradicional
de encaminhamento, visa compartilhar o cuidado, mantendo a equipe de referência do usuário do SUS no papel de
organizadora da rede de cuidado junto ao paciente. É, portanto, uma maneira de integrar, junto à equipe de
referência da Atenção Primária à Saúde, saberes multidisciplinares. É uma intervenção pedagógico-terapêutica que
amplia o cuidado ao usuário, sem a perda do vínculo com a equipe que o acompanha cotidianamente no serviço de
saúde da família (GONÇALVES et al, 2011).
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Todos os nomes de sujeitos e lugares foram modificados dos diários de campo para a presente pesquisa a fim de
manter o sigilo profissional e o anonimato de usuários, profissionais da clínica da família e demais pessoas
envolvidas nas histórias aqui trazidas.
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bebês recém-nascidos já mortos, e enquanto fala, movimenta seu braço direito. Ninguém da
família a entende. O chefe, muito menos; e a sobrecarga de tarefas, além de submetê-la a
humilhações, passando assim por cima de seu tempo de luto. Diante de tanta sobrecarga,
movimentos exaustivos, demandas sem fim, Kátia paralisa seu corpo. É só então que chega ao
serviço. Mesmo que todos os seus filhos sejam usuários habituais da clínica, de todos ela cuida,
mas para si, ela diz, não há tempo. No encontro com Kátia, o sofrimento aparece como forma
de evidenciar um corpo que não para, que é demandado continuamente pelo outro, ao qual se
delega e se espera o papel de cuidado incessante. Até cessar. Kátia sofre em um contexto de
temporalidade em que se vive o tempo como tempo-recurso, tempo-coisa, no qual o presente é
comprimido em função do excesso de demandas, da aceleração em diversos - quiçá todos - os
níveis de sociabilidade. Além disso, Kátia é uma mulher, mãe solteira de seis filhos,
trabalhadora de um supermercado que fica a duas horas de sua casa, moradora de uma das
maiores favelas do Rio de Janeiro, território submetido constantemente a violências de Estado4
que estruturam a vida de seus moradores, em sua grande maioria negros. É a partir dessa
interseção, ou mesmo sobreposição de temporalidades que inicio essa pesquisa.
De início, para iluminar esse caso paradigmático, é importante nos localizarmos
brevemente no panorama das dinâmicas temporais que regem o cotidiano no mundo ocidental
na Modernidade Tardia (ROSA, 2019), compreendendo a aceleração que se impõe em todos os
níveis da vida, somada ao imperativo do uso eficiente do tempo no contexto de produção
neoliberal, isto é, a noção de que se deve fazer de tudo o possível para produzir mais em menos
tempo. O sociólogo Hartmut Rosa propõe a aceleração como definidora de nossa era, afetando
os mais diversos níveis de nossas vidas. Percebe-se como, ao mesmo tempo em que nos
sentimos comprimidos temporalmente, isto é, vivendo em permanente experiência de estar
correndo contra o tempo, a cada dia inventam-se novos dispositivos tecnológicos que
prometem poupar nosso tempo. No entanto, paradoxalmente, a experiência vivida não é de
sobra de tempo, mas de carência deste. Visualiza-se como a tecnologia adentra nossas vidas
como meio de acelerar processos e inseri-los na lógica da eficiência temporal, fenômeno
nomeado como “solucionismo tecnológico”. Na busca pela solução do “problema” do tempo e
da necessidade de torná-lo eficiente, encontramos uma espécie de barreira, algo que não pode
ser acelerado: o cuidado, o que provoca tensionamentos e aflições vividas comumente por
aquelas que cuidam (WAJCMAN, 2019).
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Tomo como referência a noção de violência de Estado enquanto violações que se dão tanto pela ausência de
políticas públicas, dentre elas, as de cuidado, quanto pelas “frequentes incursões policiais, que na sanha da guerra
às drogas expõem comunidades inteiras a constantes cenas de violências extremas em seu cotidiano”
(MAYORCA; BARROS, 2019, p. 73).
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Tendo em vista tal panorama temporal, propõe-se explorar o cuidado em sua dimensão
de múltipla temporalidade e como uma atividade que, de certo modo, resiste ao imperativo da
aceleração. Assume-se, a partir da aproximação dos estudos sobre os usos do tempo e gênero,
a temporalidade como um campo regulado por regimes de poder, entre eles o patriarcado
(DAVIES, 1987; 1994). Davies, em sua obra, propõe uma distinção entre “tempo do relógio”
e “tempo processual”, não enquanto opostos, mas como temporalidades que se sobrepõem
uma à outra. Enquanto o primeiro refere-se a uma temporalidade organizada de modo linear e
quantificável, voltado para a produção, o segundo é percebido pela experiência nos trabalhos
de cuidado, que sempre envolvem algo que não se finda, temporalidade marcada pelo
imprevisível dos encontros e nos quais não se explicita aquilo que foi produzido. Percebe-se
que a maneira como encaramos comumente nossa relação com tempo impele para que o
“tempo processual” seja encaixado no “tempo do relógio”, o que provoca conflitos e aflições
que emergem em formas sintomáticas pelas cuidadoras nesta pesquisa.
Ainda que o cuidado se apresente como uma barreira intransponível à aceleração, ele é
uma atividade fundamental à sustentação do sistema capitalista, o que nos convoca à
aproximação da Teoria da Reprodução Social (BHATTACHARYA, 2019; FRASER, 2017),
que perspectiva o trabalho reprodutivo do cuidado de modo a politizá-lo, compreendendo
assim o cuidado enquanto atividade essencial à manutenção da vida e ao funcionamento do
sistema capitalista, na medida em que é desvalorizado para que o trabalho produtivo possa
produzir e acumular capital de modo acelerado. Tais teóricas propõem que há uma crise na
cadeia de cuidados, nas quais as mulheres negras são cada vez mais colocadas a suprir
demandas de cuidados não cobertas pelo Estado e por mulheres brancas que deixaram de
trabalhar no âmbito doméstico, sendo então essa população frequentemente exercendo tal
função de maneira mal remunerada. Além de “dar conta dos seus”, ainda precisam “dar conta
dos outros”, sem que tal tarefa seja reconhecida, fruto da herança dos três séculos de
escravidão no Brasil.
Após esta contextualização teórica do que concerne nossa problemática, busca-se
reunir as três dimensões até aqui apresentadas: tempo, cuidado e gênero. Nesse momento,
partirei tendo como referência central a minha própria vivência como estagiária de Psicologia
e dos relatos produzidos em um diário de experiências desse estágio, no qual acompanho a
equipe do Núcleo Ampliado de Saúde da Família. No estágio, me encontrei com diversas
mulheres em sofrimento psíquico, como Kátia, que chegaram até o atendimento voltado para
a saúde mental por meio de uma experiência de paralisia, tendo, de modo geral, como
principal queixa, a impossibilidade de exercer o papel de cuidado ao qual essas mulheres são
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Proponho, portanto, fazer uma espécie de mosaico: por meio da escuta dos
sofrimentos em questão, o que se segue são colagens e sobreposições desses encontros, que,
em suas singularidades, denunciam o cerne deste trabalho - o fato de muitas mulheres só
chegarem ao serviço de saúde quando tais estruturas de aceleração e de sobrecarga de cuidado
dos outros que delas dependem “escangalham”, impondo uma paralisia a esses sujeitos, que
desejam, tão logo possível, retomar o ritmo perdido, que é imposto a elas na medida em que
precisam dar conta de tudo.
A partir delas, busco investigar como essas aparições sintomáticas denunciam algo
que as transpassa, na tentativa de apontar para o fato de que o que está no centro dessas
experiências de adoecimento são, para além de uma dor pessoal, uma dor produzida
socialmente pela escassez de políticas públicas de cuidado no Brasil, que empurra essas
mulheres a darem conta de toda uma estrutura em seus núcleos familiares e comunitários, sem
o amparo de um outro nesse processo de cuidado, tão complexo e conturbado. Reunindo tais
relatos sob uma perspectiva psicanalítica do sintoma, percebe-se como esses sofrimentos, ao
chegarem ao serviço, são uma mensagem endereçada a um outro, uma demanda por cuidado
de si, que denuncia, juntamente, tal lacuna de políticas públicas e toda uma estrutura de
opressão de classe, gênero e raça que produz adoecimento.
Busca-se, portanto, explorar a dimensão do adoecimento enquanto experiência de
“desaparecimento de si” (LE BRETON, 2018), recorrendo também à noção de “fuga para
doença” (FREUD, 1905), diante dos impasses e aflições vividos pelas mulheres desta
pesquisa, a quem se demanda dar conta de alguns duplos: trabalho produtivo e trabalho
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reprodutivo; tempo do relógio e tempo processual; tempo de “estar com” e tempo de “correr
atrás” (FERNANDES, 2018). Percebe-se como, diante das tensões temporais e sociais vividas
por essas mulheres, é recorrente a escuta de expressões como “andar sem rumo”, “sumir do
mundo”, para expressar o desejo pelo sumiço, pelo alívio do peso de existir frente às
demandas que são impostas diariamente. Diante das infinitas demandas que são convocadas a
responder cotidianamente, uma saída encontrada por muitas mulheres é o adoecimento, tanto
como forma de desaparecer - deixar de ser demandada - mas também de aparecer - o
adoecimento enquanto um pedido, um modo de demandar para si um cuidado, denunciando
assim toda uma estrutura social de distribuição do trabalho e dos lugares sociais de mulheres
na qual o trabalho de cuidado é compartilhado de forma parcial, sobrecarregando aquelas que
ocupam o lugar de cuidadoras principais em seus meios sociais.
Procura-se, portanto, encontrar lugar e palavras para tais sofrimentos femininos,
compreendidos neste trabalho como um sintoma social (KEHL, 2009) de uma época
extremamente acelerada, e a aparição dessas múltiplas formas de paralisia como uma revolta,
e até mesmo, uma denúncia ao modo de operação temporal da contemporaneidade, no qual se
exige do sujeito ser cada vez mais si mesmo, de forma autônoma, livre e responsável (LE
BRETON, 2018) e, especialmente, do papel ao qual as mulheres são delegadas nesse
contexto.
Politizar e dar palavra ao sofrimento ligado à temporalidade e ao cuidado são uma
aposta para se pensar as políticas públicas do cuidado no Brasil, que nesse campo são
incipientes e acabam por individualizar uma questão de ordem coletiva, que impacta
diretamente a vida das mulheres (MORANDI; MELO, 2021). Nesse sentido, como
considerações desta pesquisa, percebe-se a urgência de uma agenda de políticas públicas que
busquem dar suporte e compartilhar as tarefas de cuidado que cotidianamente sobrecarregam
cuidadoras. Além disso, pensando em trabalhos intrainstitucionais, percebe-se a importância
dos dispositivos de escuta não somente individuais, mas também coletivos, como grupos
terapêuticos, nos quais tais sofrimentos passam a ser compartilhados e partilhados, o que se
soma a um espaço relevante para a formação de vínculos entre as usuárias atendidas nos
serviços. Enquanto mudanças efetivas não se dão em relação a uma estrutura que parece
difícil de escapar e, até mesmo para que este trabalho não se finde mergulhado em pura
angústia, trago aqui uma fala de uma usuária que gerou riso e choro no último encontro do
grupo de mulheres que participei como estagiária: “mulheres unidas jamais serão vencidas”.
Talvez, a partir daí, algo já tenha começado.
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REFERÊNCIAS
DAVIES, Karen. The Tensions between Process Time and Clock Time in Care-Work: The
Example of Day Nurseries. Time & Society. 1994; 3 (3): p. 277-303.
FREUD, Sigmund. Fragmento da análise de um caso de histeria (1905 [1901]). In: Obras
Completas, volume 6. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo,
2009.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. 16a ed. Rio de Janeiro: Record, 2015.
WAJCMAN, Judy. 'Fitter, happier, more productive’. In: KING, Vera; GERISCH, Benigna
Gerisch; ROSA, Hartmut (orgs.). Lost in Perfection. Oxfordshire, Inglaterra: Routledge,
2019. p. 51- 60.
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1
Graduanda em Ciências Sociais (ICHS/UFRRJ) 2 Ver
em Krenak (2015).
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subalterno não somente pode falar, como também jogar na roda os seus saberes e defender que
há sim ciência nos espaços que a colonialidade insiste em dizer que não.
O trabalho de campo foi realizado no Ilê Asé Omimó Ifé, terreiro de candomblé da
nação ketú, localizado no Sul Fluminense do Rio de Janeiro, em uma cidade chamada Barra
Mansa. É uma comunidade de santo em nascimento, no qual consta ao total oito filhos de
santo, um babalorixá (pai de santo) e uma iyá kekerê (mãe pequena), que se reúnem enquanto
família há pouco mais de cinco anos na luta para que este impulso de axé se tornasse mais
tarde uma família com ilê fixo, assentamentos firmados e constante trabalho. Como filha já
iniciada desta casa, os registros em trabalho de campo não se tratavam de um período
específico destinado a construção desta pesquisa, mas um constante olhar investigador em
cada experiência vivenciada no cotidiano de trabalho deste terreiro.
Diante de tal experiência enquanto membro desta comunidade, posso compartilhar o
grande segredo sobre o axé - tal força vital que movimenta o mundo: Ela não se vive de outra
forma que não seja no coletivo. Enquanto rezo e passo um ebó no corpo, peço não só por mim
mas sempre pela comunidade porque, se não for assim, o axé não circula. Ele é a força que faz
a roda girar. Ensinou a muito tempo atrás Oxum ao buscar ajuda de todos os orixás para
iniciar sua primeira filha, sua primeira yawo. Portanto, se em meu corpo-cabaça carrego o axé,
carrego comigo a história da minha comunidade.
A palavra igbá é utilizada dentro dos terreiros para se referir aos assentamentos dos
santos que fizeram morada na casa. Quando um santo é assentado, louças e outras
aparamentas2 são utilizadas como representação desta entidade em nossa terra. Em outros
contextos ainda pertencentes à mesma cosmovisão, igbá é a ponte entre o orum ( mundo
espiritual ) e o ayé (terra, nosso mundo carnal) e, a partir desta compreensão é possível
perceber que nossos corpos também são igbá. Costumeiramente, usamos louças para
representar nossos orixás e os segredos que compõem este assentamento são elementos que
fazem alusão às histórias de passagem destes aqui na terra. Imaginem: Cabaças repletas dos
axés que narram histórias destas Entidades. O quão isso é diferente do que nós somos? Sou
um corpo-cabaça e carrego comigo diversos elementos que narram a minha história.
Somos produtos dos espaços em que nos esbarramos, dos afetos que nos marcaram, e
desse impulso que nos movimenta a experimentar enquanto construímos a nossa identidade.
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Objetos que rememoram o culto à algum orixá.
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Encruzilhadas/Encontros.
Lá na encruza eu vi coisa de se admirar
eu vi cego enxergar
eu vi mudo falar
Eu vi Maria Padilha de joelhos a gargalhar.
(Ponto de pombogira)
As encruzilhadas sempre foram o espaço dos malandros, das putas (ou pombogiras?),
das travas, de outres! É na encruza que se deixa o padê de Exú para os trabalhos começarem e
é nela também que a grande confluência da vida acontece. É com a movimentação, agito e
história de cada corpo que se cruza ali que o axé é espalhado cotidianamente. As histórias que
carregamos em nosso corpo-cabaça são os cruzamentos de nossas vivências afetadas pelos
encontros e desencontros ocorridos neste lugar.
Quem se encontrava na encruzilhada tinha sido empurrade, pela euro-universalidade
difusa, até as mais estreitas brechas pela sobrevivência. Se viam lá aqueles que de alguma
forma a existência era percebida como um confronto à norma, quase como se tais corpos
tivessem consigo o poder de implodir com a falsa narrativa propagada. Essa encruzilhada está
para além de um espaço fisicamente localizado onde pessoas que por ali passaram se
conectaram. Localiza-se estrategicamente no encontro de narrativas que a colonialidade
produziu como desvio. É nesse lugar em especial que a ginga foi produzida e os movimentos
de resistência destes corpos foram lançados como luta. (RUFINO, 2019, pp.19)
Falar da corporalidade para povos diásporos e afrobrasileiros é falar da sobrevivência
da ancestralidade destes. Quando trazidos para cá, deixaram para trás suas casas, famílias,
objetos sacros, vestimentas, acessórios e tudo aquilo que poderia ser usado como forma de
conexão à sua terra mãe. Toda a ponte que poderiam fazer com sua terra estava em seu corpo:
Danças, lutas, marcas, rituais e movimentos que para além de simbolizar a resistência de
escravizados que se recusaram a deixar suas identidades serem apagadas, simbolizava também
23
O corpo-cabaça:
Exú quebra a cabaça
24
Espalha a semente
Exú olha o caminho da gente!
(Ponto de Exú)
Se os corpos dos nossos ancestrais foram os responsáveis por guardar histórias, afetos,
resistências e a força que não permitiu nosso apagamento por completo, a este devemos um
olhar atento e cuidadoso, buscando compreender qual o papel que este corpo tem na
construção de quem eu sou. Outrora falava-se de performances, outras vezes de expressões,
aqui eu falo do momento de estilhaçar-se, oferecendo tudo aquilo que nossa corporalidade nos
permite carregar e ser na resistente afirmação de que Não vão nos apagar agora3.
A proposta de construirmos nossos corpos enquanto cabaças é o exercício de mesclar
nossa história, as histórias de nossas comunidades e espalharmos esta energia vital - o axé
enquanto resistência à monoculturas. AmarElo, proposto pelo rapper Emicida, nos apresenta a
reflexão e possibilidade de abrir espaços para que nós falássemos, não nossas cicatrizes. Aqui
estamos falando, e falando numa boa5 sobre os atravessamentos que nos marcaram até que
chegássemos neste ponto de encontro que nomeio de encruzilhada. Dentro da academia
viciada em nos desnaturalizar - afinal, somos natureza - em um contínuo esforço de nos
transformar apenas em noções de consciência (GONZALEZ, 1983) propomos um movimento
de construir acerca de nossas noções de memória. Esse texto é um convite para politizar
nossas marcas. Reconhecermos-nos como cabaça para participar do movimento de
estilhaçar-se e espalhar nossas sementes-saberes, contribuindo assim para o giro da roda em
um movimento decolonial, nos comprometemos em, enquanto resgatamos a nossa
ancestralidade, nos movimentarmos em sentido anti-horário.
Glossário:
Axé: Força vital.
Assentar: Ritual de preparo da materialização do sagrado.
Assentamento: Representação do sagrado materializado.
Babalorixá: Pai de santo.
3
A gente combinamos de não morrer, Conceição Evaristo, 2016.
5
Ver Gonzalez (1984).
25
Cabaça: 1. Outra palavra para igbá. 2. Vegetal utilizado em alguns rituais no candomblé,
possuindo diversas funções.
Exú: Orixá do movimento e transformação.
Igbá: 1. Assentamento sagrado de um orixá. 2. A ponte entre o mundano e o espiritual; a
conexão entre os dois mundos.
Ilê: Casa.
Iya kekerê: Mãe pequena, cargo de uma casa de santo; O braço direito do pai de santo.
Padê: Comida feita de farinha de mandioca.
Pombogira: Entidade feminina, conhecida popularmente como exú mulher.
Orixá: Divindade do candomblé.
Oxum: Orixá das águas doces e fertilidade.
REFERENCIAS
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura Brasileira. Brasília, DF: Anpocs, 1983.
KRENAK, Ailton. Ideias para se adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras,
2020.
KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
POLI, Ivan. Antropologia dos orixás: a civilização iorubá a partir dos seus mitos, seus orikis
e suas diásporas. 2.ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2019
RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019.
SANTOS, Antônio Bispo. Colonização, Quilombos. 2ª edição Brasília: AYÔ, 2019. SIMAS,
Luiz Antonio. O corpo encantado nas ruas. 6ª edição Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2020.
A presente pesquisa está sendo realizada em Lagoa de Fora, uma comunidade rural
localizada nas proximidades da cidade São Raimundo Nonato- PI em conjunto a integrantes
da família do fundador da comunidade: Serapião Negreiros. A partir da revisão do legado da
Antropologia Rural que se fundamenta, tradicionalmente, no Brasil na tríade terra, trabalho e
família para a construção das sociedades camponesas (WOORTMAN, 1994; ALMEIDA,
1986) e pela ideia de “Alquimias de Parentesco” (MARQUES; LEAL, 2018), esta proposta
analisa arranjos familiares, laços de consanguinidade e o acesso à água em cacimbas,
barreiros e barragens que recuperam vínculos de parentesco de moradores de Lagoa de Fora
com o patriarca e fundador da localidade.
1
Bolsista PIBIC do CNPq, Antropologia, Campus da Serra da Capivara, Universidade Federal do Vale do São
Francisco, UNIVASF. raissa.barberino@discente.univasf.edu.br. Orientadora: Natacha Simei Leal (UNIVASF)
28
Metodologia adotada
Essa faixa de terra, a qual o antepassado dos Negreiros fizeram um acordo, hoje
possui diversas comunidades. Umas estão mais próximas do centro de São Raimundo, outras
mais distantes, como é o caso da Lagoa de Fora. Entretanto, em todas, é possível encontrar
um Negreiros. Até porque, cada uma foi fundada por um dos filhos do primeiro Negreiros a
chegar à região. No caso da comunidade em que trabalhamos, ela recebeu o nome devido a
Lagoa que Seu Serapião - o fundador da comunidade - descobriu ao explorar a imensa faixa
de terra disponibilizada a eles. Dentro da Lagoa, Serapião e os seus filhos foram construindo
barragens, poços e cacimbas as quais carregam o nome de seus construtores, e têm usos
privados apenas para certos “troncos” da família – aqueles que participaram de sua
construção. Estas estruturas de água são passadas de geração em geração, e o direito de uso
29
Para os que não conhecem, santinhos são folhetos, ou como diria Jaqueline Pereira
de Souza na sua tese para o doutorado em 2018:
Fotografia 1: Santinhos da coleção de Luis Alex. Fotografia registrada por Natacha Leal, 13 de agosto de 2022.
30
Além dos santinhos do Luis Alex, do mapeamento da água e das entrevistas com o
Pe. Herculano, utilizamos as genealogias produzidas pelos mesmos, para compreender e
vislumbrar melhor a imensa árvore genealógica que configura os ramos da família. Assim,
casando os dados obtidos com as lagoas, cacimbas e poços, com as informações das
genealogias e narrativas dos moradores, a partir dos aportes teóricos, nos deparamos com uma
família extremamente ligada a sua terra, aos conhecimentos da “criação de água” e, acima de
tudo, com os seus parentes.
Conclusão
Apesar de ter citado apenas dois integrantes familiares que produziram genealogias
com base um conhecimento consolidado do método e coleta de dados genealógica no formato
do clássico método genealógico de William H. R. Rivers (1864-1922) – afinal, além dos
santinhos, o Alex elaborou uma genealogia para a sua monografia cujo tema é a sua família.
Em Lagoa de Fora, muitos dos Negreiros de sua forma elaboraram e elaboram genealogias
com formatos distintos, uns com o intuito de lembrar, outros mapear a expansão da família no
território brasileiro e outros para documentar a existência dessas pessoas que não estão mais
presentes. É interessante observar uma família que antes era tão desprezada na cidade, mas a
partir das publicações do Pe, Herculano sobre a sua família e utilizar a genealogia como
estratégia política para se colocar em equivalência às demais famílias poderosas e conseguir
ganhar duas eleições seguidas a base da publicidade familiar.
Toda a documentação encontrada sobre essa ilustre família foi a partir do esforço
laborioso de seus integrantes nos arquivos de igrejas, os poucos documentos públicos da
cidade e a nomeação dos poços e barragens que, de alguma forma, tornaram-se fontes da
história. Ao final, o mais interessante de tudo, é perceber que toda a narrativa da família
Negreiros se iniciou com a descoberta da Lagoa, flui através do tempo pela comunidade e
retorna para as suas águas. Águas com a propriedade de fluir, unir e construir as relações desta
31
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Mauro William Barbosa de. Redescobrindo a família rural. Revista Brasileira
de. Ciências Sociais, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 66-93, 1986.
INGOLD, Tim. Lines: a brief history. London: Routledge, 2007.
MANDELLI, Mariana Carolina; SOARES, Michel de Paula; FAVERO, Raphael Piva Favalli.
"O método genealógico na pesquisa antropológica". 2017. In: Enciclopédia de
Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia.
Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/obra/o-metodo-genealogico-na-pesquisa-antropologica.
Acesso em: 28 jan. 2023
MARQUES, Ana Cláudia R.; LEAL, Natacha S. (org.). Alquimias do parentesco: casas,
gentes, papéis, territórios. São Paulo: Gramma/ Terceiro Nome, 2018.
SOUZA, Jaqueline Pereira. A lida com a morte e o evocar dos mortos: experiências
fúnebres no Norte do Piauí, Brasil. Tese (Doutorado em Antropologia) - Universidade Federal
do Pará, Belém-Pará, 2018.
WOORTMANN, Ellen. Herdeiros, parentes e compadres. Colonos do Sul e sitiantes do
Nordeste. São Paulo: Hucitec, 1994.
32
Introdução
A perspectiva parcial para garantir uma versão feminista da objetividade da
ciência, os “saberes localizados”, defendidos por Donna Haraway (1995) tornam-se o
ponto de partida para este artigo. Trago, a partir dela, uma proposta de fio condutor para
observar o período de organização e consolidação do golpe1 que removeu Dilma Rousseffda
presidência, entre 2015 e 2016. Parto da interpretação de situações ordinárias, cotidianas,
vivenciadas por mim como experiências palpáveis e reais naquele período. Como princípio
entendo que é no tempo presente em que se desenrolam momentos passíveis da criação de
novas possibilidades de existência, em situações ordinárias do dia-a-dia. Uma concepção de
que o tempo cotidiano é o espaço-tempo mais poderoso para qualquer prática que pretenda
provocar mudanças (HELLER, Agnes, 2000) 2.
Esta leitura acerca do cotidiano como lugar da transformação social é algo que
podemos aproximar da ideia de “esperança ontológica” apontada pelo educador Paulo
Freire (2011; 2015). Tal ideia carrega uma proposta de práxis revolucionária3 que tem
caminhado comigo há muitos anos. E que, de alguma forma, me traz até a ética ordináriada
antropóloga Veena Das (2012, p.140 apud VIANNA, Adriana, 2020, p.11), em que a
“dimensão mais dramática da expressão de valores” só pode ser realmente sentida em
veracidade “quando integrada ao fluxo da vida cotidiana”.
1
Aqui utilizamos o termo “golpe de Estado”, ou “golpe”, para delinear a postura assumida por esta
pesquisadora em relação ao procedimento de impeachment que culminou na deposição da ex-presidenta
Dilma Rousseff. Conferir texto de Ivana Jinkings, na apresentação “O golpe que tem vergonha de ser
chamado de golpe”, do livro “Porque gritamos golpe? ” (2016).
2
Faço a escolha de inserir o nome completo das pessoas autoras, de modo que possamos facilitar, ainda que
até certo ponto, a identificação de gênero de tais pessoas, com intuito maior de promover a visibilidade de
mulheres nas ciências.
3
A prática que se faz e, ao fazer, refaz-se por ser impactada pela realidade, pela qual o povo qualifica-se e
aprende, conforme apontada por Karel Kosik (1976).
1
33
proposta de uma ciência sucessora (HARDING, Sandra, 1986, apud HARAWAY, Donna,
1995) e feminista que ofereça melhores e mais adequadas explicações do mundo “de modo
a viver bem nele, e na relação crítica, reflexiva em relação às nossas próprias e às práticas
de dominação de outros e nas partes desiguais de privilégio e opressão que todas as
posições contém” (HARAWAY, Donna, op. cit., p.15).
Posso dizer que este artigo é uma tentativa inicial e tímida de caminhar nessa
direção, promovendo reflexões críticas às práticas dessa autora e experiências em minha
trajetória feminista4, a partir desse saber localizado, com interpretações do cotidiano sob
uma análise desde a ética ordinária de Veena Das. Para tal, tem grande contribuição
metodológica a proposta etnográfica que Das (2011) apresenta em O ato de testemunhar:
violência, gênero e subjetividade, ao fazer um movimento exemplar de interpretar a
Partição da Índia em 1949 “a partir dos olhos de Asha”, uma viúva que vivencia as
transformações impostas pela Partição em sua vida cotidiana. Transformações as quais
Das interpreta não a partir de “como os acontecimentos estavam presentes nas
consciências como acontecimentos passados, mas como vieram a ser incorporados na
estrutura temporal das relações (grifo meu) ” (Ibid., p.09).
Assim, tentarei propor, em primeira pessoa, uma “visão desde um corpo” que é
“complexo, contraditório, estruturante e estruturado” (HARAWAY, op. cit., p.30) acerca
das marcas do golpe de Estado consolidado em 2016 e de sua incorporação em nossa
estrutura temporal de relações. Quero evidenciar as diferentes dimensões das violências
sofridas, que se sobrepõe e se embaralham nos planos das macro e micro políticas. Mais
especificamente olho para os aspectos das relações e hierarquias de gênero e raciais no
entorno das práticas de mulheres feministas como mecanismos de “habitar o mundo em
cenários de devastação ou mesmo de grande indefinição” (VIANNA, 2020, p.13), que se
tornou o caso para os movimentos sociais populares5, movimentos feministas, e para as
mulheres empobrecidas, racializadas e LGBTQIAP+ após o golpe6.
4
Os limites desse breve artigo impedem que muitas dessas experiências sejam narradas. Iremos priorizar
alguns momentos para que esses possam ser melhor interpretados à luz do escopo aqui proposto.
5
Cf: MIANI, Rozinaldo. Os pressupostos teóricos da comunicação comunitária e sua condição dealternativa
política ao monopólio midiático. Intexto, Porto Alegre, UFRGS, v. 02, n. 25, 2011.
6
O lema integralista que clamava “por Deus, pela Pátria e pela Família”, proclamado por diversos
parlamentares na Câmara dos Deputados durante votação do impeachment e, entre eles, o então deputado
Jair Bolsonaro, já demonstrava amplo rechaço a um projeto emancipador, em que coubessem as demandas
dessas e desses sujeitos/as/es, e cuja repulsa vem a se consolidar nos anos subsequentes com a presidência
assumida primeiro por Michel Temer e, em seguida, por Bolsonaro.
2
34
Com efeito, estou buscando contribuir com a parcela das Ciências Sociais que
está se propondo a interpretar não somente as transformações que ocorreram no interior
das instituições democráticas (como as relativas ao avanço de uma política de austeridade e
ao esfacelamento da democracia no país), mas também daquelas mudanças engendradas e
incorporadas no seio das práticas feministas em movimentos sociais populares.
Especialmente no que dizem respeito à assimilação da problemática das relações e
hierarquias de gênero e raciais para as lutas da classe trabalhadora e da relevância dessas
questões como cruciais na atualização das lutas populares para o momento presente, com o
intuito de novos imaginários de futuro7. Um futuro que “não se traduz necessariamente em
um plano ou projeto, mas talvez possa ser mais bem compreendido como decorrência do
‘caráter elusivo do cotidiano’”, pela “capacidade de imaginar antes mesmo de ver que nos
anima a sustentar a vida em momentos de atordoamento” (DAS, 2018, p. 537 apud
VIANNA, 2020, p.13).
Para isso, minha proposta é trazer como linha condutiva alguns pequenos trechos
destacados de um caderno pessoal de anotações, que mantenho desde 2015. Por vezes, tais
escritos traziam percepções subjetivas, corpóreas e parciais das situações que eu estava
vivenciando enquanto mulher, militante feminista, branca, bissexual, originada da classe
trabalhadora e da periferia de São Paulo, também pesquisadora, comunicadora popular, e
então residente de uma cidade do interior do Paraná. O propósito de incorporar esses
pequenos trechos é o de, como sugere Veena Das (2011), provocar um descenso ao
cotidiano de modo a retornar em um momento do passado, recorrendo também à memória,
não para “oferecer um exemplo de uma regra geral ou uma exceção a ela, mas mostrar
como surgem novas normas em experimentos com a vida, na auto-criação espiritual”
(Ibid., p.16). Buscando, com isso, uma reinterpretação dos fatos em que me coloco como
protagonista, a partir de uma trajetória empírica que estará em diálogo com as propostas
teóricas aqui oferecidas (FIGUEIREDO, Angela, 2020, p.245). Como se verá adiante, as
situações relatadas visam contribuir para um caleidoscópio de pequenas ações8 que, ao
serem testemunhadas, também proporcionam uma reapropriação do mundo, a partir das
modificações experimentadas.
7
Este é o tema de minha pesquisa de Mestrado em Sociologia (PPGS/Unicamp) que está em andamento e
com conclusão prevista para 2023.
8
Vale destacar ainda que estas ações aqui representadas não findam ou pleiteiam a totalização de ações de
resistência a este episódio violento do golpe ou mesmo acerca dos mecanismos de resistência encontrados
pelas mulheres em sua multiplicidade de experiências e localidades. Entendo o ativismo como nos coloca
Patricia Hill Collins (2016, p.113) em que é necessário enxergarmos “a decisão no foro íntimo de rejeitar
3
35
É digno de ressalva apontar que a proposta deste breve ensaio não é a de assumir
uma perspectiva universalizante e generalizada, fechada ou incontestável das análises aqui
propostas. Isso seria negar a perspectiva parcial assumida. Pelo contrário, a parcialidade é
oferecida desde este lugar particular que visa “possibilidades de conexões e aberturas
inesperadas que o conhecimento situado oferece”, uma junção de “visões parciais e de
vozes vacilantes numa posição coletiva de sujeito que promete uma visão de meios de
corporificação finita continuada, de viver dentro de limites e contradições”9 (HARAWAY,
op. cit., p.34). Além disso, buscarei absorver neste ensaio as reflexões de Miñoso (op. cit.,
p.105) sobre suas experiências e o testemunho ativo, em que ela debruça sobre seu arquivo
pessoal como ativista “empenhada no fazer e nos debates do feminismo na América Latina”
em seu intuito de traçar uma genealogia da experiência com uma crítica da colonialidade
da razão feminista. Com isso, entendo que o autorrelato contribui com a costura de “novas
narrativas e interpretações que permitem descentralizar o sujeito
definições externas da condição feminina afro-americana” (idem) (e, neste caso, afro-brasileira) como
ativismo. Isso vai de encontro com a concepção de a práxis revolucionária ser efetivada no tempo cotidiano, em
experimentos com a vida, não estando restrita às organizações coletivas de ativismos e lutas sociais.
9
Me somo às críticas de Yuderkys Miñoso acerca das teorias produzidas nos Estados Unidos e na Europa,
principalmente apoiadas em um academicismo de maioria branca. Entendo que, ao localizar a interpretação
subjetiva do processo de golpe, como ela, estou também buscando contribuir com um feminismo
contextualizado na América Latina, que carrega sua história de colonialidade, especificamente no Brasil.
Além disso, tal qual Miñoso (Ibid., p.106-107), entendo que parte das teorias feministas do perspectivismo
(standpoint theories) possuem problemas, a exemplo da incapacidade de, por si só, superar a trava do
“essencialismo universalista da categoria mulher” e, portanto “a trava do racismo, do eurocentrismo e da
colonialidade presentes na teoria feminista mais difundida” mas, assim como ela, reconheço que contribuem
para “a construção de um método de análise que toma a experiência como fonte de conhecimento”, e que a
“perspectiva do ponto de vista feminista na pesquisa opera, a partir de um questionamento da experiência de
quem está mais baixo na escala do privilégio”.
4
36
10
MIGUEL, Luis Felipe. O colapso da democracia no Brasil: da constituição ao golpe de 2016. São Paulo:
Fundação Rosa Luxemburgo, Expressão Popular, 2019; RUBIM, Linda. ARGOLO, Fernanda (Orgs.). O
golpe na perspectiva de gênero. Salvador: Editora UFBA, 2018.
5
37
11
Eu destacava a relevância da coletividade em minhas anotações: “A solidão de pensamento, de política, de
posicionamento é um buraco escuro e sem fim. Cair lá te leva à desesperança, desencantamento, ceticismo,
descrença. (...). É essa luta diária contra a desilusão, ao ceticismo (sic), à dureza (sic) da vida nessa
sociedade. Esse abismo te engole e te faz sofrer. Te afunda muito mais. Mas caindo naquelas trevas, você
nota outras vozes, pedidos de socorro, mãos estendidas. Gritos de mulher. Mãos de batalha” (OLIVEIRA,
Pamela, 2015).
12
O documentário Mulher Sem Terra em Movimento (Pamela Oliveira, 2016) teve 1,8 mil visualizações até
este momento e pode ser visto pelo Youtube. Disponível em https://youtu.be/o5UsTUagZ7U. Acessado em
19/01/2023.
13
Cf: SILVA, Carmen S. M. Feminismo popular e lutas antissistêmicas. Recife: Edições SOS Corpo, 2016. 14
Cf: FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: Redistribuição, reconhecimento e Participação, in:
Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, outubro, 2002.
6
38
15
Nome alterado de modo a preservar a privacidade. A partir daqui os nomes de militantes feministas ou
outras mulheres que eu venha citar, que estavam em relação direta comigo e que não as pesquisadoras ou
personalidades públicas (como artistas e políticas), serão alterados com este fim.
7
39
Alguns meses depois de ter meu TCC e documentário entregues, meu olhar estava
modificado por estas experiências, e pela vivência de greve e ocupações pelo movimento
estudantil17. Eu observava a gravidade do que estávamos presenciando em
16
Pelos limites do artigo, não poderemos explorar esse tema e as maneiras como o assassinato deMarielle
Franco e Anderson Gomes, seu motorista, foi incorporado por nós em nossa práxis feminista. Cf: “Mulheres
negras na política: Marielle e suas sementes”, publicado no Outras Palavras. Disponível em
https://outraspalavras.net/feminismos/mulheres-negras-na-politica-marielle-e-suas-sementes/. Acessado em
01/02/2023.
17
O Movimento Estudantil da UEL, eu incluída, ocupou a reitoria em 2015 em greve pelo repasse integral
do custeio da universidade e outras pautas. Em 2016, mais de mil escolas foram ocupadas no país por
estudantes secundaristas, segundo a UBES, contra a PEC de Teto de Gastos (EC 95). Na ocasião eu
8
40
“Na verdade, tenho o coração bem apreensivo”, anotei. “Me sinto amedrontada,
mas sinto também que retroceder e deixar fortalecerem bandeiras golpistas é um erro”. E
em seguida trazia uma indignação em particular, em referência à uma situação que havia
ocorrido na época: “como alguém pode socar uma mulher na boca porque ela opta por não
gritar ‘Fora Dilma’? Pois é, tem acontecido. É surreal, não parece a vida cotidiana”
(OLIVEIRA, idem). Podemos interpretar, desse modo, que a percepção de tal violência
política, enquanto ações de censura que se mesclavam com a violência contra mulheres, o
racismo e o ódio de classe, já evidenciavam o passado habitado no presente (DAS, Ibid.).
Eram marcas de um país colonizado, fundado em relações de opressão e exploração, e
com uma classe dominante ressentida pelo pacto democrático que resultou na Constituição
de 1998. Um momento em que, visto o medo coletivo, em reuniões organizativas para atos
de protesto, desligávamos nossos celulares e removíamos as baterias para não corrermos os
riscos de que nossas falas fossem interceptadas pela políciamilitar.
trabalhava como jornalista colaboradora para a Mídia Ninja cobrindo e dando suporte às ocupações em
Londrina.
9
41
Além disso, esta nota em meu caderno (quando também associada à minha
experiência no coletivo de jornalistas sobre o compartilhamento de experiências de
violência) exibe, ao mesmo tempo, uma preocupação pessoal com a violência política e
com a violência contra as mulheres. Uma preocupação que dizia a respeito do caráter
misógino do golpe e também sobre o olhar voltado à uma bandeira histórica
constantemente atualizada e convocada pelos movimentos feministas brasileiros como
aglutinador. Para nós, que adentrávamos jovens no campo do feminismo, a violência era
um elemento mobilizador, tanto por conta das experiências que tínhamos agregado a
respeito de nossas famílias e relacionamentos afetivos-sexuais, quanto pela experiência
como jornalistas18, realizando ou acompanhando as coberturas midiáticas sobre
feminicídios.
18
Enquanto estudante de jornalismo, em 2013, sofri agressões da Polícia Militar paranaense, em uma
situação em que decidi denunciar um abuso policial. Além de agredida e de ter tido meus pertences tomados e
meu celular violado, também fui levada detida à delegacia, junto a mais dois outros jovens, onde tivemos de
assinar um termo circunstanciado em que eu assumia ter desacatado autoridade e agredido os policiais.Entrei
com processo na justiça civil e, em 2021, em segunda instância, tive os danos morais concedidos. 19 A
cientista política Flávia Biroli (2017) recupera uma trajetória da participação política das mulheres no país e
aponta algumas das principais bandeiras de luta dos movimentos feministas a partir do século XX: a
institucionalização da agenda feminista em duas frentes prioritárias nas lutas dos anos 80, sendo o combate
10
42
foi e continua sendo um ponto de virada de chave para a aproximação junto do feminismo,
como uma possível porta de entrada para os debates feministas. Miñoso (Ibid., p. 115)
ressalta preocupação com o tema ao se questionar como a “violência interpessoal entre
homens e mulheres transformou-se no foco da interpretação feminista acerca da violência
contra as mulheres? ”, e no que “resulta essa interpretação a ser feita apenas na chave de
gênero? ”. Os limites deste texto não permitem que eu me aprofunde, mas acredito ser
relevante apontar que os aspectos iniciais aqui trazidos podem nos ajudar a provocar novas
questões que verifiquemos importantes para a compreensão de nossas práticas feministas e
bandeiras de luta no Brasil.
matar as mulheres é a medida mais rápida, mais eficaz para destruir a resistência
de qualquer comunidade contra a expropriação, contra a privatização. Isso
porque são as mulheres que mantém as comunidades juntas. As mulheres
representam a vida, a reprodução da vida, e matá-las manda uma mensagem de
terror, de medo à comunidade (FEDERICI, Silvia, 2019).
à violência e a defesa de políticas para a saúde das mulheres. Já em 2000, quando é fundada a Marcha
Mundial de Mulheres (MMM), o destaque junto à pobreza e à violência é significativo.
20
Cf: Silvia Federici: matar as mulheres é a forma mais eficaz de destruir a resistência - Autora de "O Ponto
Zero da Revolução" aponta a cooperação como saída para enfrentar um sistema cada vez mais violento.
Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/10/09/silvia-federici-matar-as-mulheres- e-a-forma-
mais-eficaz-de-destruir-a-resistencia (Acessado em 30/11/2022)
11
43
Tal perspectiva pode contribuir para um olhar mais cirúrgico sobre a questão da
violência de gênero, que evite a redução desse mecanismo apenas à ideia de uma violênciade
homens contra mulheres, mas que proponha um olhar integral a esse respeito, bem como
sobre as políticas públicas que exigiremos de modo a combater a raiz do problema, e a
nossa reação à essas ações no interior das organizações. Isto é, partindo da interpretação
de testemunho de Das, permite nos questionar como a violência sofrida pelas mulheres no
Brasil está moldando nossas lutas e nossa participação política. Como o testemunho da
violência política e misógina traumática, vivenciada por Dilma Rousseff e outras
parlamentares, e de outras violências íntimas, incluindo as sofridas por nós em nossas
relações pessoais e durante a participação em movimentos sociais populares, têm moldado
nossa capacidade de ação e nossas prioridades? E também a respeito de como
compõem/conformam nossos imaginários sobre o queremos quando nos definimos como
feministas no Brasil e na América Latina?
21
Entrevistas com mulheres militantes do MTD são parte do escopo de minha dissertação de mestrado.
12
44
dos anos 2000 para cá22. Em seu livro Explosão feminista: arte, cultura, política e
universidade, Heloísa Buarque de Hollanda (2018) destaca um sentimento de atualização
das práticas e teorias feministas: “Há pouquíssimo tempo, por volta de 2015, eu acreditava
que a minha geração teria sido, talvez, a última empenhada na luta das mulheres”, diz ela.
“Até que um vozerio, marchas, protestos, campanhas na rede e meninas na rua se
aglomeraram” conclui. E quando realizamos a “descida ao ordinário”, entendemos ao que
Hollanda se refere. Conseguimos compreender novos subtextos que passam a ser
articulados devido às turbulências que vivenciávamos (DAS, Veena, ibid., p.36), incluindo
os conflitos internos ao movimento feminista, que visam romper com velhos paradigmas
para construir novas perspectivas feministas que contemplem as diferentes experiências
das mulheres no país, devido às marcas da colonialidade e do conservadorismo que
fundamentam a sociedade capitalista e sua materialidade no Brasil.
22
Roseane Amorim da Silva e Jaileila de Araújo Menezes (2018) apresentam o estado da arte a respeito de
pesquisas que se utilizavam da perspectiva interseccional, ao investigar o banco de dados da Biblioteca
Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), apontando a existência de 123 dissertações e 64 teses que
utilizavam a interseccionalidade entre 2008 e 2018. Ou seja, apenas 187 publicações em 10 anos. Contudo,
com o maior índice de publicações em 2016. Enquanto no banco dados SciELO, entre 2002 e 2018, foram
localizados 65 artigos, com maior quantitativo de publicações em 2016 seguido de 2014.
23
Convocados por mulheres feministas de diferentes organizações, realizamos protestos massivos em
sequência, a partir de novembro de 2015, em diversas cidades pelo país. Exigimos a remoção de Eduardo
Cunha (então MDB) da presidência da Câmara, em decorrência da busca neoconservadora pela aprovação do
Projeto de Lei (PL) 5069, de 2013, que dificultava o acesso de vítimas de estupro aos medicamentos
necessários para prevenção de gravidez indesejada e exigia a comprovação dos danos do estupro. Cunha, ao
mesmo tempo, tornava-se figura crucial para o processo de golpe de Estado.
13
45
Avalio que era também por estarmos cientes das violências misóginas contra a
figura de Dilma, do processo político de censura e perseguição da esquerda em um
repaginado “antipetismo” e dos riscos que, enquanto mulheres, trabalhadoras, pessoas
negras, indígenas, transexuais, idosas e empobrecidas enfrentávamos e passaríamos a
enfrentar, o Encontro manifestava uma resistência. Partindo da análise de Djamila Ribeiro
(op.cit, p.128), desde uma perspectiva feminista negra sobre golpe, isso evidencia a
24
Tais resistências nos espaços acadêmicos se fazem extremamente necessárias, de modo a ocupá-los,
sugerindo outros mecanismos de apropriação e de imaginário político. Contudo, não são as únicas
maneiras em que tais corpos resistem, visto que a própria existência seja encarnação de resistência, visto
os recursos violentos da sociedade para exterminar essas sujeitas.
14
46
Conclusão
15
47
Referências
ANZALDÚA, Gloria e MORAGA, Cherríe, 1981 (orgs). This bridge call my back:
writings by radical women of color. Albany: Suny Press, 1981. In: DÍAZ-
BENÍTEZ,María Elvira. Muros e pontes no horizonte da prática feminista: uma
reflexão. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (orgs). Pensamento feminista hoje:
perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro. Bazar do Tempo, 2020.
BIROLI, Flávia. Uma mulher foi deposta: sexismo, misoginia e violência política. In:
RUBIM, Linda. ARGOLO, Fernanda (Orgs.). O golpe na perspectiva de gênero.
Salvador: Editora UFBA, 2018.
CLETO, Murilo. O triunfo da antipolítica. In: Por que gritamos golpe? Para entender
oimpeachment e a crise política no Brasil. JINKINGS, Ivana; DORIA, Kim; CLETO,
Murilo (orgs). São Paulo: Boitempo, 2016.
16
48
FEDERICI, Silvia. Silvia Federici: matar as mulheres é a forma mais eficaz de destruir
aresistência: Autora de "O Ponto Zero da Revolução" aponta a cooperação como saída
para enfrentar um sistema cada vez mais violento. [Entrevista concedida à Pamela
Oliveira] Jornal Brasil de Fato, 2019 [online]. Disponível em:
<https://www.brasildefato.com.br/2019/10/09/silvia-federici-matar-as-mulheres-e-a-
forma-mais-eficaz-de-destruir-a-resistencia> (Acessado em 30 Novembro 2022).
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 50° Ed., 2011.
1986.HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2000, v2.
MIGUEL, Luis Felipe. A democracia na encruzilhada. In: Por que gritamos golpe?
Paraentender o impeachment e a crise política no Brasil. JINKINGS, Ivana; DORIA,
Kim; CLETO, Murilo (orgs). São Paulo: Boitempo, 2016.
17
49
UNE (União Nacional dos Estuantes). 7º EME da UNE vai debater a cultura
feminista que está transformando o Brasil: Mulheres estudantes de todos a regiões e
universidadesdo país se encontrarão em Niterói. UNE [online], 2016. Disponível em
<https://www.une.org.br/noticias/7o-eme-da-une-vai-debater-a-cultura-feminista-que-
esta-transformando-o-brasil/> (Acessado em 30 Novembro 2022).
VIANNA, Adriana. Vida, palavras e alguns outros traçados: lendo Veena Das.
Mana[online] v. 26, n. 3, 2020. Disponível em <https://doi.org/10.1590/1678-
49442020v26n3a205> (Acessado em 30 Novembro 2022).
18
50
O cauim do Tatu
André Sanches1
Gustavo Godoy2
“Ywytu ai pegou o canto dos bichos, como esse daqui”, nos disse Ira Te (ou Salomão)
apontando para nosso gravador; “É por isso que hoje muitos dos cantos ainda estão por aí”.
Salomão é pajé da aldeia Xie pihun renda, no sul da TI Alto Turiaçu. Com ele, gravamos sobre
como aprendeu a pajelança e algumas estórias. “São apenas três as que eu sei bem”, uma delas é
a de Ywytu ai, que conta sobre a festa do cauim patrocinada pelo Tatu, ocasião em que os bichos
convidados chegam cantando.
Ouvimos outras versões dessa estória cantada: as narradas por Naji, Mati (pai de
Salomão), Petrônio, Sansã, Kawasu Putyr, Xupera; são as que pudemos documentar até agora.
Em outras ocasiões a mesma estória também foi registrada e relatada, como nos diários índios de
Darcy Ribeiro, nas suas anotações de campo entre 1950 e 1951.
Ribeiro ficou admirado com a narrativa e a quantidade de cantos que a integram: “Bem
contada, deve ser maravilhosa, nunca ouvi coisa melhor para um disco. Além disso, é uma
excelente descrição caricaturesca das festanças ka’apor e uma boa explanação sobre os hábitos
dos animais” (Ribeiro 1996 [2014]: 457). Na realidade, antes de ser uma descrição caricatural da
festa, é uma descrição das ações que os Bichos fizeram na festa e um conjunto de explicações
caricatas que os próprios Bichos relatam em seus cantos sobre si mesmos. Não é apenas uma
representação humorística da festa, mas uma maneira de os Bichos se descreverem e se
compreenderem suas características e atitudes.
Na sequência, apresentaremos alguns motivos pelos quais consideramos pertinente o
estudo dessa narrativa. Em seguida comentamos rapidamente sobre nosso projeto de
documentação; fazemos uma breve observação sobre os gestos como parte da arte verbal e
apresentamos as versões da narrativa de Ywytu que estamos utilizando neste trabalho.
1
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (PPGAS-USP).
2
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (PPGAS-MN).
1
51
2
52
espécies que apresenta uma interessante reflexão dos animais e dos humanos sobre seus
costumes. Hoje conta como patrimônio mítico ka’apor, apresentando as sempre presentes
variações na versão dos diferentes narradores. Por fim, do ponto de vista comparativo, o mito da
cauinagem do Tatu não possui versões que correspondam diretamente a ele em outros povos.
3
53
A arte gestual
Os gestos são verbais, isto é, fazem parte do fenômeno linguístico. Por isso, toda arte
verbal deve ter um correspondente gestual. No caso ka’apor, torna-se explícito nas observações
de Ribeiro (1996 [2020]), que teve a oportunidade de trabalhar com contadeiros muito
expressivos em sua arte gestual. Observa que Kwaxipuru “narra muito bem, com voz expressiva
e com uma riqueza de gestos que quase transforma as narrações em pantomimas” (p. 352).
Comenta de “uma velha muito conversadeira “[…] Ela fala muito, faz muitos gestos e, contando
os mitos kaapor, quase os interpreta em pantomima enquanto fala.” (p.445). Por fim, do capitão
Ianawaku, observa (p.154): “Contando um caso, imita ruídos e vozes, faz gestos largos e quase
se excita, os olhos brilham, porém o tom da voz, embora expressivo e variado, nunca se alteia
demais”. Ribeiro (p.185) inclusive planejou a documentação da arte gestual, com Apĩ
(Anakãpuku, que considerou seu melhor informante): “Ele contará a um grupo a grande aventura
de sua vida [...] Contando esse caso, Anakanpukú salta como um tigre e imita com gestos de
pantomima cada passagem da luta, caindo finalmente no chão, ferido. Creio que nessas narrações
de caçadas e lutas é que está uma das origens do teatro. Em filmes, deve dar bom efeito”.
Infelizmente, nenhum de nossos consultores executa seus mitos segundo essa arte
verbo-gestual, assim, ao que parece, sua a forma mais rica está desaparecendo. Felizmente, uma
equipe do Museu Goeldi, documentou em vídeo esse estilo de arte verbo-gestual com o finado
Pirangwa (Cantos e Mitos ka'apor, Rosileide Gomes Costa 2007), filho do Apĩ aclamado por
Ribeiro. Entretanto, em nosso projeto poderemos documentar o inventário gestual, mesmo que
não seja em sua forma mais teatral.
As versões
As versões que estamos trabalhando até o momento, são as seguintes:
Versão de Sarumã ru ambyr (Mati), acompanhado por Sarumã mãi 30/06/2014 (gravado por Gustavo);
URL: https://cutt.ly/i3zxHNt
Versão de Ira (Salomão/Sarumã), acompanhado por Sarumã mãi e 19/01/2022 (gravado por André e
Gustavo); URL: https://cutt.ly/i3zxNOi
Versão Nasare-mãi (Naji) 29/01/2022 (Gravado por André e Gustavo).
URL: https://cutt.ly/C3zcerF
Versão de Kawasu Putyr, 28/09/2022 (gravado por André); URL: https://cutt.ly/c3zStDK
4
54
Ywytu já ia caçar. A esposa disse: – “Teu filho furou!” (=foi abortado). – “Uhum. Tá bem. Não está vivo,
você matou meu filho.” E foi. – “Assim você vai encontrar anhanga!” – “Não, eu não vou encontrar.” Ia
matar veado-vermelho. O veado estava brabo com ele, visto que o filho dele foi abortado (isto é, não
estava arisco e fugiu, como devem normalmente agir as caças). O veado ficou encarando, correu e depois
acossou Ywytu, já que estava brabo. Então o dono do veado fez Ywytu ficar doido.
Ywytu dormiu ao lado da vareda. Quando ficou mais tarde ia sair de lá, mas sua conhecença foi apagada.
A vareda estava próxima de Ywytu, que sabia onde estava quando estava caçando. Agora seu
discernimento sumiu. Então, ilusoriamente, Tatu estava num bananal, da variedade sarara. Ywytu estava
em um marajazal (Bactris maraja). Estava escurecendo, então fazia um barulho, alguém estava cortando
algo.
Então um grupo de pessoas dizia – “É agora que vai acontecer.” Tinha um cajueiro. Iam levantar criança
(=batizar). Era o cauim de Tatu. Era a base de um grande cajuí, que tinha um buraco nela. Naquele
buraco, ficava muita água. É isso que os tatus bebiam. Então Ywytu estava sentado, escutando. Então, sua
visão girou. Seu ouvido girou também, sua audição. – “É agora que vai acontecer.” – “Que seja assim.” –
“Ham.” – “Como que vai ser?” – “Juntem-se nele.” Disse para a mulher, a esposa de Tatu.
5
55
O senhor Tatu (mexia no camucim) KWA KWA KWA era o barulho. Mas nem era camucim: era só o toco
do cajuzeiro. KWA KWA KWA, mexia no camucim. Antigamente que o olhar de Ywytu girou, por isso
quem observava se apresentavam como gente. KWA KWA KWA. Tinha uma criançada e uma mulherada.
As cuias delas eram muito belas. Então, uma pegava uma cuiada, outra vinha e pegava outra cuiada de
cauim. Então a Tatu distribuía, ia dando carregando o cauim na cuia. Era uma vereda de tatu – mas ao
olhar de Ywytu era um caminho como o de aldeia: a Tatu dava o cauim através das casas.
A Tatua cantava: – “Eu gosto de comer ovo de carumbé! Eu gosto de comer ovo de carumbé! Eu gosto de
comer ovo de carumbé!” Foi cantando, sumiu de vista. Então o avô Tatu cantava “hm-hmm, xirararau,
hm-hmm xirararau hmm”. Estava na rede, onde a Tatu chegou para dar-lhe cauim. Foi cantando. Chegou
até os bichos e deu cauim. Ficaram bêbados. Mateiro, Caititu, Foboca, Cuxiú, Paca, Cutia,
Pomba-Amargosa, Araçari-Banana. Todos ficaram bêbados.
Quem chegou primeiro foi o Quati. O Quati cantou: – “Quati õrẽ! Quati õrẽ!” Cantava de longe – “Quati
õrẽ! Onde o inimigo se levanta agora?” Estava olhando para o Jaguaretê. Então pulou da árvore. – “Nós já
estamos indo vindo!” Estava pegado no braço da esposa. – “Temos muitas flechas de tabocas conosco!
Muito afiadas!” A esposa do Quati falou – “A taboca vai me cutucar!!”. – “Quati! Quati õrẽ! Quati! Quati
õrẽ! Onde o inimigo se levanta agora?” Chegaram até o Tatu. – “Ê aí que você está, irmão!” – “Aqui eu
amarrei sua rede, Xômano!” A filha do Tatu olhou o Quati e disse – “Ê avô de queixo afiado.” O Quati
ficou irritado e retrucando apontou sua flecha para o pescoço da Tatuzinha. A Senhora Tatu disse para não
fazer assim, que as crianças são à toa mesmo, meio variadas das ações. Trancara a filha Tatua na casa, isso
é, colocaram ela no buraco do tatu, que ficava no chão.
Outro chegou, o Caititu. Cantou “Sou devorador de fígado de cachorro!” Também cumprimenta e vai até
sua rede. Na sequência chega Mateiro, Paca e Rato-Curu. Então chegou o louco do Cutia "kĩkĩkĩkĩkĩkĩ
kĩĩĩĩĩĩ kĩĩĩĩ kĩĩ kĩ". Batia pisando na terra “PU PU PU PU”. Pegou no braço da filha do tatu e surucou ela.
“Assim não, Avô!” disse a senhora Tatua. Chegou depois o Mucura. Chegou Cuxiú “XÕXÕXÕXÕXÕ”.
Estava cortando as madeiras. Chegou Pomba-Amargosa cantando “Sou comedor de comida de saí!” Junto
de Pomba-Amargosa chegou Araçari-Banana. Este último disse: “Eu sou serrador de ipê”.
Pomba-Amargosa disse “Eu também sou assim. Minha carne é amarga. Os Netos não me comem. Os
netos, os Cabeças-Pretas [isso é, o povo ka’apor]”. Araçari ficou bravo e eles brigaram. Separaram a briga
deles. Chegou o Caça-Numerosa (ou Caça-Cambeba) [talvez um furão] e perguntou “HUMF HUMF! O
que está cheirando de gostoso aqui? Eu quero comer isso! Deve ser gostoso mesmo, na minha opinião!
Onde que colocaram?” As mulheres falaram que não tinha nada. Ywytu velhaco se afasou, mundando um
pouco de lugar. A filha de Caça-Cambeba chegou até Ywytu e disse “Afaste-se um pouco mais daqui! O
papai quer comer carne de gente! Vai te comer! Vai entrar em você e te comer inteiro! Vá! Afasta mais!”.
Caça-Cambeba procurava, mas só tinha o lugar onde Ywytu estava.
Então, ficou claro. Chegou Macaco-da-noite. Veio cantando e quase tava chegando. Meio de longe
perguntou “Ainda tem mias Xômano?” “Acabou o cauim! Pode voltar, indo embora!”. Ele ficou brabo e
voltou com a esposa.
Clareou o dia, Ywytu olhou e não tinha mais nada daquilo. De noite havia se transformado, parecia uma
aldeia. Quando clareou, não, parecia floresta de novo. Olhou e viu o toco do cajueiro, cheio de líquido.
Tava partido o toco. Em volta estava tudo limpo o chão, como chão de casa. Ywytu foi olhando e viu o
rabo de um tatu saindo. “Você que agora tinha acabado de se girar (=transformar).” Ywytu flechou o Tatu
na garganta e foi embora. Ywytu viu que só havia a pera (=tipo de cestaria descartável para carregar
caça). O mateiro que ele matara e carneara não estava mais lá. A carne do mateiro, que já havia sido
trinchada, grudou-se de volta. O mateiro tinha ressuscitado, ido embora e jogado fora a pera e foi. Jabuti
ainda estava ali. Ywytu foi pelo caminho. Tinha dormido bem perto do caminho. Ywytu pegou todos os
cantos. Sabe o que parece? Parece câmera, gravador. Gravou tudo. Ao voltar tomou banho. De noite,
contou que viu tatu batizando e cantou todas as músicas. Os outros pegaram os cantos também. Depois
que pegaram, até hoje os cantos estão aqui, desde antigamente. Agora acabou. Foi assim.
6
56
Em uma das versões de Ribeiro, narrada por João Carvalho, o veado morto pelo caçador,
que não é Ywytu, é um foboca, e não um mateiro. Ao seguir sua embiara que ressuscitou e fugiu,
o caçador vai parar na casa do Vento (ywytu pode ser traduzido também como ‘vento’, além de
ser nome do protagonista da estória) e lá estava tendo a cauinagem (RIBEIRO, 1996, p. 457). Os
bichos eram convidados do Vento. Ribeiro explica que cada morador da casa do Vento é um tipo
diferente de ventania. Ou seja, aqui “Ywytu” é o próprio vento, que, então, andava na terra e era
visível para os antigos. Na primeira versão escrita por Ribeiro, Ywytu batiza o filho do tatu, mas
também o mata pois estava cantando pouco, baixo. É Ywytu quem ensina as canções que cantam
os bichos (e o jenipapo). Além de aparecerem também entre os convidados bichos de Vento, um
casal de Guaribas, o Veado-Mateiro e Veado Foboca.
Na segunda é Ywytu que mata um veado mateiro (Ib., p.497). O veado abatido pula de
suas costas e o avisa que seu filho já nasceu. Na casa do Tatu canastra tinha uma festa de
nominação de crianças, e estavam batizando o filho do tatupeba. A onça estava no mato
ameaçando o Tatu. A história passa com os animais chegando e cantando. Há também a fala
ritual da chegada dos bichos, do mesmo modo que conta Salomão. Ao fim, Ywytu mata os tatus
que encontra bêbados pelo caminho de volta pra casa.
A versão de Naji, moradora de Axingi renda, foi narrada em uma entrevista após ela
comentar sobre sua aversão à bebida, diferentemente de seu pai, que bebia muito o cauim. O
relato começa com a raiz do cajueiro, ia começar o batizado. O filho de Ywytu abortou, e ele foi
caçar, buscar jabutis, mas sem conseguir nenhum. Quando voltou, começou a chover. Então se
sentou na base de um jenipapeiro, foi quando viu os tatus falando que beberiam o sumo do caju e
batizariam as crianças. A história, a partir daqui, é bem semelhante às outras versões, mas com
algumas diferenças sutis. O cauim é chamado de tɛŋi pelos bichos que bebem tanto que acabam
brigando entre si. Chegam então os bravos soltados Cuxiús e participam da briga. Depois a
Preguiça vem acabar com a bagunça e Ywytu acaba por matar o Tatu. Naji conta ao fim que seu
pai não comia nenhum dos bichos: nem cuxiú, nem guariba, e nem tatu.
7
57
de banana. Vê a água que fica estancada no toco ou na raiz de um cajueiro como uma igaçaba, da
qual a Senhora Tatua pega cauim para ir pela vereda distribuindo para outras Embiaras, que
chegam cantando até a festa.
A desventura de Ywytu pode ser sintetizada na sequência abstrata: (i) um estado de
vulnerabilidade que acarreta uma interdição, seguida de (ii) uma transgressão, que acarreta (iii)
uma consequência que é anulada quando, por fim, há o (iv) retorno do protagonista.
Enquadrada na estrutura está a recheadura – a descrição do festejo. Organizamos os
eventos e músicas da narrativa em um quadro, para sintetizar e ver as variações:
Ribeiro 1:
(Canto 1) Katú, katú.
(Canto 2) Tauxim-pará, tauxim-pará.
Mati
kaɾum͡bɛ ɾupiʔa aʔuu katu ʔm̩̚m̩̚m̩̚ː ‘Ovo de carumbé eu gosto de comer hmmm
kaɾum͡bɛ ɾupiʔa aʔu katu ʔm̩̚m̩̚m̩̚ː Ovo de carumbé eu gosto de comer hmmm
kaɾum͡bɛ ɾupiʔa aʔu katu. Ovo de carumbé eu gosto de comer’
Ribeiro1
Tatu-katú, tatu-katú..
(i) infantilidade
Filha Tatua
(ii) objeto sexual
Episódios:
(i) Faz comentário sobre o nariz focinho do quati, que se enraivece e, por isso, é trancada na toca.
(ii) É perseguida pela cutia que se excita com ela.
- Sem canto
8
58
-Sem canto
Mucuri
Episódio: Chega na festa junto com Mucura.
Sem canto definido (Mati Ka’apor improvisa um - ʔm̚ʔm̚ː ~ ʔm̚ʔm̚ː ~ ʔm̚ʔm̚ː )
Ribeiro 1: o quati com as flechas, um capacete de penas de japu na cabeça e com o próprio rabo virado
para cima, como se fosse um enfeite de penas de arara.
Naji: Pergunta sobre a presença de seu inimigo Jaguaretê, que não está presente
Salomão:
kʷaʃi kʷaʃi oɾɛ̃ Quati Quati orẽ
mɪ tuwãjã apo pu'am pu'am nahã mɪ Onde será que se levanta o inimigo?
kʷaʃi kʷaʃi oɾɛ,̃ kʷaʃi, Quati Quati orẽ Quati
mɪ kotɪ tuwãjã pu'am pu'am apo mɪ Em que direção se levanta o inimigo agora?
kʷaʃi Quati
9
59
Salomão:
tamũi mɪɾa mɪtɛɾ kɛ wɛɾuɾ rɛko ɛ̃ ɛ̃ Velho veio-trouxe o cerne do tronco ê ê
Ribeiro 1:O que é? É minha camisa encarnada. O que é? É minha camisa encarnada. O homem já vem me
botar aqui, aqui, po
r aqui, pelas costas, por aqui, pelas costas, por aqui, kéu, kéu
Mati
hɛ̃ ɾuwa-kɛ paɾĩĩː Minha Face é aleijada
hɛ̃ ɾuwa-kɛ paɾĩw̃ɪ ̃ Minha Face é aleijada
hɛ̃ ɾuwa-kɛ paɾĩĩː Minha Face é aleijada
hɛ̃ ɾuwa-kɛ paɾĩĩw̃ Minha Face é aleijada
hɛ̃ ɾuwa-kɛ paɾĩw̃ɪ ̃ Minha Face é aleijada
hɛ̃ ɾuwa-kɛ paɾĩw̃ɪ ̃ Minha Face é aleijada
Araçari Comportamento
Episódio:
Diz que é cortador de ipê
Ribeiro 1: cantava — Eu vou cortar pau-d’arco. Eu vou comer açaí. Agora, araçari corta mesmo a flor de
pau-d’arco e come muito açaí.
10
60
Ribeiro 1: cantava — Minha carne está amarga, minha carne está amarga, minha barriga agora apagou.
— Comi muito açaí, minhas tripas estão amargas
Tapir
Episódios:
Ribeiro 1: A anta, do outro lado, falando muito, tic, tic, tic.
Ribeiro 2: A anta estava muito bêbada, só cantava assim: — Manon, manon, katú, katú (morreu, morreu, é
bom, é bom).
Salomão:
tuk tuk tuk
ihɛ̃ pɪ-kɛ tuɾɛ
ihɛ̃ pɪ-kɛ tuɾɛːɛː
ihɛ̃ pɪ-kɛ tuɾɛ
tuk tuk tuk
ha.ha.ha
- Sem canto
- Sem canto
-Sem canto
11
61
(1053) pɛ tatu mɛʔɛ̃ ɾahɔ "kɔ" (1054) hapɛ ɾupi hapɛ ɾupi
12
62
Portanto wak ‘girar’ (intransitivo) é uma ação que afeta a visão e a audição, ju-mu-wak
‘se fazer girar’ é o evento correspondente que o tatu se gira em gente. Na versão escrita por
Mariuza Ka’apor, o u-wak pode ser combinado com i-pɛ ‘para ele’, enfatizando que algo
‘virou-se’ para o experienciador, no caso Ywytu.
Na língua araweté (Heurich 2015: 188-189), <eɾowã> ‘virar’ também é usado para
transformações, como no mito em que divindade “Jaguaretê” transforma pessoas e seus artefatos
em bichos. Entretanto, o wak ka’apor é um girar intransitivo, enquanto <eɾowã> em araweté é
transitivo (um agente vira um paciente, alguém transformado em outra coisa)
Além de o verbo u-wak ser usado para mostrar a transformação da percepção, há mais um
elemento que codifica a percepção alterada. Trata-se do clítico frasal tipɛ, que indica a
modalidade frustrativa, isso é, marca, entre outras coisas, uma ação realizada sem efeito, em vão.
Esse uso está presente nas narrativas.
Entretanto, existe um outro uso em ka’apor que só percebemos com essa narrativa:
Na versão de Salomão:
banana.variedade-ajuntament através=FRUSTRATIVO=HSAY
o
‘Conta-se que estava, de forma aparente, através de uma plantação de banana-sarara.’
(51 pɛ wɛra=tipɛ=jɛ
)
13
63
Nos exemplos acima, o tipɛ marca os eventos experienciados por Ywytu nesse estado
girado de percepção. Se tomarmos a definição mais básica da modalidade frustrativa, como uma
expectativa não realizada (Overall 2017). Talvez esse uso poderia ser explicado como eventos
percebidos de maneira não desejadas. Veicula ações realizadas, algo testemunhado, mas não
com uma percepção esperada, normal. E, assim, apresenta traços semânticos em comum com um
evento não realizado, ou realizado sem efeito.
Esse uso do clítico tipɛ não é obrigatório em todas as sentenças, sendo que os dois pontos
de vista, o regular e o girado, podem ser expressos por explicações, tal como nos exemplos com
u-wak acima.
Também parte do léxico indica, a despeito da forma humana, que são os bichos que estão
falando entre si:
(236) pɛ tɛŋi kɛ aĩ tɛ̃ʃĩ aja=jɛ
então cauim AFT Cont.Vertica irmão Assim=hsy
l
(237) kɔ aĩ jɛ (238) ma’ɛ tɛŋi a’u=ta a-ʃɔ =jɛ
kɛɾuhũ
aqui Cont. vertical HSY hes. cauim 1-ingerir=fut 1-cont. =HSY
grande
(239) ham! a’ɛ=tĩ =jɛ (240) Pɛ ʃɪha pukʷaɾ i-pɛ
sim 3=també =HSY então 3.rede 3.amarra 3-DAT
m r
‘Então “Tem cauim, meu irmão?” assim falou “Aqui está (na vertical)” respondeu. “Pois Cauimzão eu vou beber”
falou. “Tá bom” o tatu também disse então amarrou a rede (do Mucura) para ele.
No trecho acima, da narração de Naji, os bichos se referem ao cauim pelos termos tɛŋi e
tɛŋi kɛɾuhũ. Tais termos são a maneira pela qual apenas os bichos chamam o cauim. E não se
trata de léxico antigo. Difere, portanto, de tẽʃĩ que, nos ensinou Faustino Rossi, e que é maneira
antiga de se falar ‘meu irmão’.
Da mesma forma, ʃĩ e ʃupɛɾau aparecem como vocativos no trecho a seguir trecho da
narração de Salomão. Os dois denotam parentesco ou proximidade entre os interlocutores (Tatu e
Veado-mateiro). As traduções utilizadas, ‘irmão’ e ‘compadre’ foram as que os ka’apor fizeram
no momento em que nos explicaram os dois termos:
(1161) pɛ "pɛ i-ʔaĩ pɛ, ʃĩ?" aja=jɛ
então aí 3-vertical aí irmão assim=HSY
(1162 "ko wɛ -aĩ, ʃupɛɾau" aja=jɛ
)
Aqui ainda Cont.Vertical compadr assim=HSY
e
(1163) "ɛ-mɔndɔ i-pɛ" pɛ hakɛhaɾ mɔnɔ kawĩ mɔnɔ, pɛ u-ʔu
14
64
O mito manoki enfatiza que Jaguaretê fez a festa para se vingar dos animais. O mito
ka'apor, por sua vez, observa que Jaguaretê é inimigo de Tatu, cujos convidados da cauinagem
são comparados por causa do focinho comprido.
O povo araweté também comenta sobre uma festa patrocinada, não pelo Jaguaretê, mas
por um caraíba chamado “Jaguaretê” que transforma as pessoas e seus atributos em bichos,
porque Jaguaretê tinha matado sua mãe (Viveiros de Castro 1986) ou porque Macaco tinha
contado uma mentira (Heurich 2015). No mito araweté do surgimento das espécies, uma
divindade de nome "Jaguaretê" gira/transforma as pessoas em bicho. Uma versão explica que é
por causa de um Jaguaretê real que comeu sua mãe, mas a versão é muito pouco desenvolvida.
Outra versão conta que é por causa de uma mentira de um bicho que o deus "Jaguaretê" realiza a
transformação.
O mito manoki mistura temas presentes em dois diferentes mitos do povo ka’apor: o do
arco-íris (espírito da gigante sucuri Maju), que conta como as aves conseguiram suas cores
15
65
características a partir do sangue de uma cobra imensa, e o do cauim do Tatu, que conta sobre
uma festa que reúne os animais, que apresentam um distintivo cultural.
Outro mito que apresenta o tema de padrões corporais e do arco-íris é um mito
pemón-arekuna (Koch-Grünberg 1916), em que primeiro as aves e depois os bichos de pelo,
adquirem uma flauta (uma vocalização) e uma propriedade física (um padrão de pintura
corporal) que os distingue enquanto espécie. Como o relato de Ywytu, o mito pemón-arekuna é
um guia de identificação das espécies (Lévi-Strauss 1964). No mito arekuna há também um pai
em uma situação de vulnerabilidade de sua percepção, visto que foi criada e casou-se com uma
Tapira, com quem compartilha a percepção girada, já que os carrapatos são suas miçangas e os
cachorros são cobras venenosas. Com que gerou uma criança que é extraída do corpo da
mãe-bichos assassinada pelos seus parentes. No mito de Ywytu, o tema correspondente é o
aborto que resulta no giro da percepção. No mito arekuna o giro da percepção que leva ao
"abortamento" da mãe, assassinada pelos seus parentes, entre os quais foi vítima de uma tentativa
de infanticídio. O filho do mito arekuna é que gerará o confronto que culminará na origem das
espécies (mesmo que as percepções das espécies já diferissem, seus corpos ainda não estavam
especificados).
O mito arekuna é sistemático na transformação por aquisição de flautas e padrões de
pintura corporal. Por outro lado, os cantos da cauinagem do Tatu, são heterogêneos. No mito
ka'apor, a morte prematura de um filho gera a aproximação da percepção das espécies como
semelhantes para Ywytu. No mito arekuna a morte de um filho extraído prematuramente gera o
afastamento que as espécies adquirem.
No mito ka'apor propriedades e relações "naturais" das embiaras tornam-se "culturais" no
evento cauinagem. No mito arekuna, ocorre o inverso: elementos "culturais" (flautas e padrões
de pintura) usados em um evento tornam-se "naturais" na separação definitiva das espécies.
O mito manoki também versa sobre a diferença das espécies, observando a diferença
entre os grafismos. O mito manoki se foca na codificação gráfica dos animais (que será "natural"
pois será o corpo das espécies). Esses mesmos grafismos são apropriados pelas mulheres cujo
corpo é “pré-cultural” (já que não tinham pinturas), que no mito estão em um estado primitivo de
carência de grafismo (tornando-se “cultura” humana).
Outro mito que conta o surgimento das espécies, transforma o Cutia sexualizado do mito
ka’apor em uma jovem Cutia, que acaba de passar pelo processo de sua sexualização. É um mito
16
66
do povo dito suruí do Pará, ou aikewara. A narrativa trata igualmente de uma festa,
desencadeada por uma condição sangrenta (Calheiros 2014: 36-41). Quando estava no bucho de
sua mãe, Cutia foi prometida para seu tio materno, Amerew. Quando a jovem prometida Cutia
virou moça, sua primeira menstruação cai no chão. O cheiro doce da menarca atrai Cobra, que
era o portador do maracá. Cobra começa a cantar, para atrair a moça e transar, mas seu canto não
é muito bom. Cutia permanecia reclusa. A velha Mucura chega dizendo que ela é a desejada
Cutia e foi cantando até Cobra. Entretanto, Cobra sentia que Mucura não tinha o cheiro doce da
menstruação recente, e sim uma vagina catinguenta. Amerew foi olhar essa dança, que acha
bizarra. Mas por fim Cobraconsegue seduzir Cutia. Amerew, o traído, transforma em alimárias
os que festejavam em torno da sua ex-prometida, a recém menstruada.
Podemos abstrair algumas invariantes dessas narrativas, embora suas fabulações sejam
diversas.
Situação sangrenta Arco-íris Padrões e cantos
Ka’apor aborto faz pai-frustrado ver (Arco-Íris é de onde aves Animais tem arte musical sobre si mesmos,
uma festa em que Jaguaretê extraem suas cores) artefatos correspondem ao corpo, ações na festa
é inimigo do patrocinador correspondem a hábitos, como o Cutia transador
(Natureza = Cultura, do ponto de vista girado)
Manoki Jaguaretê patrocina uma Arco-íris é apresentado pela …que invejaram ao verem os animais belamente
festa para se vingar dos divindade para as mulheres pintado na festa (Mulheres : Natureza :: Animais :
animais terem grafismos… Cultura)
Araweté intenção vingativa de deus (..cuja mãe foi morta) ..transforma pessoas em bichos, sendo seus
com nome de “Jaguaretê” adornos agora partes do corpo
Arekuna Intenção vingativa das aves, …morto por uma …animais extraem suas cores e seus cantos
vingando a morte de um cobra-arco-íris da qual..
menino…
Aikewara Primeira menstruação da (vagina seca da velha …noivo traído causa a transformação de quem
virgem Cutia gera uma festa Mucura) cantava em animais
Retomada
O mito da narrativa do Tatu é interessante por vários motivos. Ele é o único mito ka’apor
centrado em cantos. Seus cantos são uma arte que foi pegada dos bichos, episódio que o mito
17
67
também narra. Embora as viradas que levam do humano ao animal e vice-versa sejam comuns
nos mitos, o que é marcante na experiência de Ywytu é que os Animais se “autorrepresentam”,
que assumem o lugar de canto, mesmo que de forma reportada. Em outros mitos, animais são
reportados fazendo algo enquanto humanos que os caracterizaria em sua forma animal. Como
encontrar um Martim-pescador com rede de pesca e um Pica-Pau dando machadas em um
tronco. No mito ka’apor da cauinagem do Tatu, os animais, enquanto gente, estão executando
uma arte verbal sobre si mesmos.
Apresentamos aqui algumas abordagens para tratar as narrativas míticas. O objetivo final
é criar versões ricas e uma mitografia robusta, ou seja, uma documentação completa e precisa
das narrativas míticas. Destacamos aqui aspectos principais:
(1) Nosso projeto utiliza as ferramentas da documentação linguística: (a) gravando dados em
vídeo com duas câmeras e (b) buscando transcrever as narrativas de forma precisa. Observamos
que o ponto (b) ainda está em curso.
(2) A coleta de versões de diferentes narradores é uma boa estratégia para capturar variações nos
episódios. Nas fichas expostas acima, mostramos como tabelamos essas variações.
(3) Explicações e esclarecimentos: A solicitação de explicações e esclarecimentos de consultores
locais e pesquisadores especializados (como Faustino Rossi Kaapor) permite enriquecer a
compreensão das narrativas míticas, que nem sempre é clara mesmo com a transcrição, exigindo
contextualização e notas.
Mostramos uma pequena comparação com mitos que apresentam temas similares.
Infelizmente, os mitos de alguns povos (como manoki, araweté e aikewara) apresentam versões
muito fragmentárias. Esperamos que projetos similares ao nosso, que busquem arquivar e
abordar a mitologia de um povo sob diferentes perspectivas, no futuro possam contribuir com
essa lacuna.
Bibliografia:
CALHEIROS, Orlando. (2014). Aikewara: Esboços de uma sociocosmologia tupi-guarani.
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
EDUCAÇÃO, S. de E. de (Ed.). (2021). Matemática manoky. Gráfica Print.
18
68
GARCÉS, Claudia López (org.). (2011). Ka’apor ma’e panu ha ke - a palavra dos moradores da
mata: narrativas tradicionais do povo indígena Ka’apor. Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém.
HEURICH, Guilherme Orlandini. (2015). Música, morte e esquecimento na arte verbal
Araweté. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social, Museu Nacional.
KOCH-GRÜNBERG, Theodor. (1924). Vom Roroima zum Orinoco: Ergebnisse einer Rese in
Nordbrasilien und Venezuela un den Jahren 1911-1913. In Zwiter Band: Mythen und Legenden
der Taulipang und Arekuna-Indianer. Verlag Strecker und Schröder in Stuttgart.
LÉVI-STRAUSS, Claude. (1964). Le cru et le cuit. Plon.
RIBEIRO, Darcy. (1996). Diários Índios: os Urubus-Kaapor. 2008. ed. São Paulo: Companhia das
Letras.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. (1986). Araweté: os deuses canibais. Jorge Zahar Ed.
19
69
RESUMO
O objetivo geral desta proposta é entender as múltiplas dimensões das questões relacionadas à saúde mental e ao
cuidado de alunos de graduação e pós-graduação na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Relacionando como as transformações estruturais e institucionais do ensino superior, sob a guinada neoliberal, se
apresentam para os discentes da FFLCH e podem afetar sua saúde mental. Como as dimensões individuais,
socioestruturais, coletivas e institucionais se relacionam e se determinam mutuamente quando procuramos
entender como as narrativas de sofrimento são geradas, o que as mantém e quais são as possibilidades de lidar
com essa temática dentro da Universidade. Se desejamos apreender como o sofrimento psíquico tem incidido
sobre as vivências universitárias, não podemos nos prender apenas aos eventos críticos, é preciso descer ao
ordinário, ao nível do cotidiano, as diferentes formas que esse sofrimento é corporificado e vivenciado, pelos
relatos e narrativas desses estudantes.
PALAVRAS-CHAVE: saúde mental, marcadores sociais da diferença, universidade
Introdução
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo. E-mail:
felipe.piva@usp.br. Orientadora: Heloisa Buarque de Almeida.
1
70
2
Atualmente, o Escritório de Saúde Mental foi desativado pela nova Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento.
Um novo projeto será apresentado e implementado em breve.
2
71
Segundo Le Breton (2013), a dor e o sofrimento não são simplesmente íntimos, são
também impregnados pelo social, cultural e relacional, são fruto de uma educação, isto é, não
escapam ao vínculo social. A saúde como objeto da antropologia não se constitui pela
determinação do que é saúde ou doença, normal ou patológico, mas é por intermédio do que
os sujeitos, numa determinada configuração cultural, pensam e vivem com essas
classificações psiquiátricas de si (SARTI, 2010). O sofrimento psíquico é um fenômeno
complexo, que envolve dimensões e relações de múltipla causalidade. Para Fassin (2012), o
3
A pesquisa teve apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo: Processo: 2019/27798-9.
Agradeço à FAPESP pelo auxílio oferecido para o desenvolvimento da pesquisa.
3
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sofrimento não é só uma categoria psicológica ou fisiológica, mas também uma construção
contemporânea e política, no sentido da sua entrada na esfera pública e ter se tornado um
problema político. Representações culturais do sofrimento são apropriadas pela cultura
popular e por instituições para propósitos morais e políticos. Essas representações moldam o
sofrimento como uma forma de experiência social, como algo que é aprendido, compartilhado
e, pode ser, contradito. Assim, o que representamos e como nós representamos prefiguram o
que será ou não feito para intervir (KLEINMAN, DAS e LOCK, 1997).
Destarte, o sofrimento hoje é uma linguagem do presente, uma “economia moral”. Nos
termos de Fassin (2015), a economia moral se refere à produção, circulação e apropriação de
valores e afetos em relação a um determinado problema social que, consequentemente,
caracteriza um momento histórico particular e um mundo social específico a maneira que esse
problema é constituído e entendido coletivamente. Os valores e afetos definem “sentimentos
morais” de um humanitarismo que direciona nossa atenção ao sofrimento dos outros,
principalmente dos mais vulneráveis, e nos fazem querer remediá-lo. Tais sentimentos se
tornaram uma força essencial na política contemporânea, pois sustentam discursos e
legitimam práticas.
O sofrimento na universidade evidencia não só as pressões, contradições e impasses da
vida universitária, mas também a metamorfose estrutural da sociedade. Entendo aqui que o
sofrimento psíquico no ambiente universitário envolve dimensões individuais,
socioestruturais, coletivas e institucionais, assim como argumentado por Leão, Ianni, Goto
(2019a, 2019b). Ao longo deste projeto ao tratar de sofrimento psíquico não me refiro apenas
à transtornos mentais, isto é, às categorizações biomédicas e psicopatológicas, mas também ao
conjunto diverso de reações de mal-estar, sofrimento, adoecimento, tristeza, aflição, dor,
desconforto, estresse, angústia, tensão e afins diante de algum evento, situação, contexto que o
sujeito possa se defrontar durante certo momento de vida. Sua intensidade varia desde uma
simples preocupação até um mal-estar intenso. Sendo assim, o sofrimento tanto pode estar
relacionado a (a) trajetória pessoal: seja uma reação psicoemocional diante de algum evento
ou contexto difíceis, diagnóstico psicopatológico e afins; (b) questões coletivas envolvendo os
diversos marcadores sociais da diferença (raça, classe, gênero, sexualidade, dentre outros) que
fazem a intermediação subjetiva entre o individual e o coletivo; (c) mudanças estruturais das
condições de vida, de redistribuição econômica, de reconhecimentos culturais e históricos, do
acesso à saúde, à moradia, à alimentação, à educação e toda uma série de efetivação de
4
73
direitos; (d) pode estar relacionado diretamente ao contexto institucional universitário (global
e nacional), da mercantilização e corporatização da universidade pública, precarização das
condições de trabalho e pesquisa, cortes sistemáticos de recursos, falta e inefetividade de
políticas de permanência e de saúde mental, dentre outras problemáticas.
Na realidade social, como salienta Fraser (2001), toda luta por justiça social implica
duplamente demandas por mudança cultural e por mudanças econômicas, isto é, demandas
por reconhecimento (HONNETH, 2015) e por redistribuição econômica. Ambas estão
enraizadas em processos e práticas que sistematicamente prejudicam alguns grupos em
detrimento de outros. Se por um lado, observa-se na última década que um processo
significativo de democratização dos campi nacionais está em curso, principalmente quando
olhamos para marcadores sociais da diferença como raça, gênero e classe; por outro, isso não
pode ser dissociado de questões que envolvam a permanência na universidade, sendo a saúde
mental uma delas.
Os marcadores sociais da diferença (CANCELA, MOUTINHO e SIMÕES, 2015;
SAGGESE, MARINI, LORENZO, SIMÕES e CANCELA, 2018) referem-se à abordagem
interseccional que provém do feminismo negro estadunidense (COLLINS, 2019; LORDE,
2019). Davis (2018) defende que a interseccionalidade é um projeto político e interdisciplinar
em defesa a uma perspectiva sobre as experiências singulares de se viver como mulher negra,
de seu compartilhamento de perspectivas comuns. Contudo, o grande diferencial é que tal
ferramenta não se restringe aos marcadores de raça e gênero, sempre leva em conta a grande
variedade e pluralidade de outros marcadores sociais, como os de classe, nacionalidade,
religião, idade e orientação sexual, marcadores que acabam moldando vidas individuais. Essas
marcações sociais da diferença não estão completamente isoladas, nem constituem distintos
reinos de experiência, mas existem “em” e “através” da relação que constituem entre si
(MCCLINTOCK, 2010).
Como advogam Ecclestone e Brunila (2015), o entendimento contemporâneo de
justiça social reflete um longo interesse nas dimensões psicoemocionais da iniquidade social e
a necessidade de respostas informadas coletiva e politicamente. Tal luta por justiça almeja
expor e falar dos efeitos e causas psicoemocionais da iniquidade como uma fonte chave do
reconhecimento. Da mesma forma, o suicídio e sua prevenção também são questões vitais
para a justiça social. Tal abordagem enfatiza, para Button e Marsh (2020), que precisamos
desenvolver um entendimento sobre as formas pelas quais processos socioestruturais criam
5
74
condições duradoras que geram e consolidam mais fatores de risco ao suicídio mais para
algumas pessoas do que outras, segundo seus marcadores sociais. Promover justiça dentro do
contexto da prevenção de suicídio significa previnir os processos sociais e as condições
estruturais que interagem com os fatores pessoais psicológicos que aumentam a ideação
suicida, tentativas e mortes. É reconhecer o suicídio enquanto uma questão multifacetada e
composta pelos marcadores sociais, fatores e atravessamentos culturais, econômicos,
biológicos, psicológico, políticos e outros (NAVASCONI, 2019).
Carlotto (2021) aponta que a criação da Universidade de São Paulo (USP), em 1934,
foi marcada pela tentativa de reunir faculdades isoladas a uma faculdade nova, a Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), de caráter eminentemente científico, cuja função deveria
ser integradora das demais. Desse modo, a criação da USP representou um marco decisivo no
cenário do ensino superior nacional por ter conseguido, pela primeira vez, dar dinamismo e
organicidade para uma faculdade propriamente científica, capaz de impulsionar a
institucionalização da pesquisa nacional, e que tornou-se o principal modelo para as demais
instituições universitárias do país.
6
75
40 anos era representada pela Fuvest, o modelo de inclusão adotado pela USP até então tinha
como grande enfoque o aluno de escola pública, a questão étnico-racial foi parcial e
deficientemente contemplada até então. Após um intenso engajamento de movimentos negros
na USP e do Núcleo de Consciência Negra, em 2017, através das congregações das unidades e
do Conselho Universitário, a USP introduziu as cotas raciais nos seus processos de seleção,
Fuvest e Sisu. O sistema de cotas foi aplicado no edital da Fuvest em 2018, reservando cerca
de 37% das vagas para alunos de escolas públicas e desse valor 13,7% foram reservados para
pretos, pardos e indígenas. Definiu-se que a cada ano a reserva de cotas irá aumentar até
atingir a meta de 50% das vagas destinadas ao sistema de cotas em 2021.
Hoje, a FFLCH é a maior unidade de toda a USP, com cerca de 13 mil estudantes
ativos de graduação e pós-graduação, 400 docentes, 300 funcionários, 11 departamentos
distribuídos em 5 áreas de conhecimento: Ciências Sociais, Filosofia, Geografia, História e
Letras (FFLCH, 2021). Como constatou Braga (2019), a FFLCH é a faculdade que possui a
maior presença de homens e mulheres negras discentes de toda a USP. Em sua maioria, tais
alunos estão cursando no período noturno, o que indica uma relação entre trabalho e estudo.
4
O Pacto de Bolonha de 1999 foi um documento assinado por ministros da educação dos países da União
Europeia que visava a realização de ações de reestruturação do ensino superior nesses países, com o objetivo
principal de promover e elevar a competitividade nacional e internacional do sistema de ensino superior europeu
(Reis, Blundi, Pinto e Silva, 2020).
5
O “publish or perish” é um fenômeno que tem sua origem nos anos 1950, nos EUA. Tornou-se mundialmente
conhecido pela expressão “publique ou pereça”, significando que professores/pesquisadores universitários que
não publicassem de acordo com os parâmetros postos como ideais pelos órgãos financiadores, pela burocracia
universitária ou pelo mercado, veriam sua carreira definhar e extinguir-se (Sguissardi, 2010).
7
76
8
77
Se há um principal motor estruturante por trás das mudanças verificadas ao longo das
últimas décadas, é o neoliberalismo. Entendo neoliberalismo nos termos de Dardot e Laval
(2016) como uma racionalidade, que tem como principal característica a generalização da
concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação6. Segundo
Gill (2009), a neoliberalização da Academia gerou sujeitos que precisam se automonitorar,
serem flexíveis, criativos e internalizar novas formas de auditoria e cálculo.
6
Longe de limitar-se à esfera econômica, tende à totalização por seu poder de integração de todas as dimensões
da existência social. Assim, práticas discursivas e institucionais, no fim do século XX, engendraram a figura do
“sujeito empresarial”, um sujeito competitivo inteiramente imerso na competição generalizada.
9
78
Em todas as esferas da sua existência, o sujeito empresarial é exposto a riscos vitais, dos
quais ele não pode se esquivar, e a gestão desses riscos está ligada a decisões estritamente
privadas. Ser empresa de si mesmo pressupõe viver inteiramente em risco, uma “insegurança
ontológica” (ILLOUZ, 2022). Gerando uma individualização radical que faz com que todas as
formas de crise social sejam percebidas como crises individuais, todas desigualdades são
atribuídas a uma responsabilidade individual, assim, transforma as causas externas em
responsabilidades individuais e os problemas ligados ao sistema em fracassos pessoais. A
distribuição dos recursos econômicos e das posições sociais é vista exclusivamente como
consequência de percursos, bem-sucedidos ou não, de realização pessoal (Dardot e Laval,
2016). Aqueles que fracassam em prosperar sob tais condições sociais não podem culpar
ninguém, nem coisa nenhuma além de si mesmos, pois a racionalidade neoliberal permite que
se evite qualquer tipo de responsabilidade coletiva, estrutural ou governamental pela vida
(Hamann, 2012). Nesse sentido, no ambiente universitário, mesmo o desemprego estrutural e
a precarização do trabalho, das condições de pesquisa e de ensino, a falta de oportunidade no
mercado de trabalho depois da graduação ou pós-graduação, podem ser convertidas em culpa
e responsabilidades individuais (LEÃO, IANNI e GOTO, 2019a).
Algo que pude constatar na pesquisa anterior foi o grande volume de narrativas de
graduandos em torno dos sentimentos de uma cobrança frequente e excessiva enquanto culpa
e responsabilidade individuais. Falavam de uma forte cobrança por resultados, por
produtividade, por desempenho acima da média. Sentimento esse que pode ser tanto infligido
pela estrutura acadêmica, mas também por uma comparação constante entre o próprio corpo
discente e, muitas vezes, uma comparação autoinfligida pela própria vivência nesse ambiente,
como disse um interlocutor, é algo que contagia. A competição generalizada se apresenta de
diferentes maneiras, seja pelo domínio de línguas estrangeiras, conteúdos aprendidos,
matrículas em matérias, oportunidades de estágio e intercâmbio, iniciações científicas, bolsas
de auxílio e pesquisa, ranqueamento/ habilitações (para os alunos de Letras), a maioria dessas
coisas são baseadas no desempenho acadêmico individual, na média ponderada.
Contudo, tal competitividade e cobrança generalizada não leva em conta as diferentes
variáveis culturais, sociais e econômicas dos alunos, isto é, seus marcadores sociais da
diferença, como se todos iniciassem a trajetória acadêmica em pé de igualdade. Como
demonstram Bourdieu e Passeron (2014) em seu estudo do ensino superior francês, as
desigualdades sociais se manifestam não apenas no acesso ao ensino superior, mas nas
10
79
escolhas entre diferentes percursos acadêmicos, pois as oportunidades objetivas de cada grupo
social condicionam a experiência dos atores, configuram suas esperanças subjetivas e suas
escolhas concretas, fazendo com que contribuam, mesmo sem ter consciência disso, para a
realização de uma trajetória acadêmica e social próxima de seu perfil social (MACEDO,
2019). As vantagens e desvantagens ligadas à origem tenderiam a se apresentar de modo
articulado. Na pesquisa, isso se demonstrou pelo tipo de instituição cursada no ensino básico,
a escolaridade e a ocupação dos pais, ser a primeira geração de sua família a entrar numa
universidade pública, o curso escolhido, a forma de ingresso, o uso de políticas afirmativas, a
necessidade de bolsas de apoio/auxílio, morar ou não na moradia estudantil, ter feito ou não
uma iniciação científica, trabalhar ou não na área de formação, ser pesquisador-bolsista. São
chances diferenciadas de acesso a oportunidades culturais e acadêmicas. Tudo isso representa
diferentes posicionamentos no espaço social, “estilos de vida” e gostos de classe (Bourdieu,
2013), na universidade e na sociedade como um todo. As desigualdades sociais, nas as
intrincadas maneiras que o machismo, o racismo, a LGBTfobia se intersectam nas estruturas
universitárias, vão se convertendo e se acumulando como desigualdades acadêmicas, que
podem muitas vezes serem experimentadas como problemas individuais, assim, podendo ser
convertidas em culpa e responsabilidades individuais.
Leão, Ianni e Goti (2019a; 2019b) apontam que, no ambiente universitário, quando
crises produzidas, social e institucionalmente, são percebidas como crises individuais, não são
considerados os efeitos adoecedores do próprio ambiente e das práticas institucionais, seja os
eventuais desafios acadêmicos, as violências simbólicas e físicas, as insuficiências das
políticas de permanência etc. As respostas ao sofrimento, portanto, tendem a se organizar de
forma individualizada e aquém da complexidade do fenômeno. Em linhas gerais, as
estratégias institucionais de promoção de saúde mental na USP podem ser agrupadas em duas
macro-estratégias: clínico-terapêuticas e de educação em saúde. Primeiro, quem adoece é
encaminhado à clínica individual dos serviços de saúde mental ligados à universidade7, para
depois retornar às engrenagens da máquina que o adoeceu e que permanece intocada. Sofre
quem não é resiliente o bastante, quem não se organizou adequadamente, quem não sabe
como estudar etc. Afastando, assim, a análise de eventuais fatores supra-individuais que
7
Durante a pesquisa anterior, pude constatar que apesar desta ser a lógica institucional mais aplicada no trato do
sofrimento psíquico, muitos estudantes nunca tinham procurado nenhum dos serviços oferecidos pela
universidade, grande parte deles nem sabiam da existência desses ofertados. Em parte, isso aponta a falta de
visibilidade e divulgação que a própria instituição faz de seus recursos. Os alunos não possuem informações
suficientes nem sobre a qual desses serviços recorrer.
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A “Rede Não Cala” aparece como uma alternativa e contraposição às estratégias institucionais. A Rede foi
composta em abril de 2015 por professoras e pesquisadoras de diferentes institutos da USP em oposição à
violência institucional, tendo como principal foco dar às vítimas um suporte que elas não encontraram na
Universidade. Desse modo, advogam com e pelas pessoas que sofreram violências no contexto universitário,
para, a partir disso, desenvolver ações comunicativas e pedagógicas, e também aprimorar os mecanismos
administrativos de denúncia (Almeida, 2019b; Cruz et al., 2018), levando em conta os fatores supra-individuais
que possam estar ligados à experiência de sofrimento expresso na universidade.
9
Vale destacar que até a nomeação dos serviços de saúde mental apresenta esse viés administrativo e
empresarial, como o extinto Escritório de Saúde Mental, que foi um serviço de apoio clínico emergencial criado
originalmente como resposta aos adoecimentos discentes. A própria ideia de Escritório não só remete a uma
figura empresarial como também destoa dos outros serviços oferecidos pela USP, pois não estava diretamente
vinculado ao Instituto de Psicologia ou aos Hospitais da USP, mas estava vinculado diretamente à Pró-Reitoria
de Graduação.
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Isso é referente àqueles que possuem as condições financeiras necessárias para continuar o tratamento na rede
privada. Um dos questionamentos deste projeto é sobre os outros motivos que podem levar ao estudante a não
procurar apoio psicológico, seja na rede pública ou privada.
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desiguais, que apontam como forças políticas e econômicas se realizam na vida cotidiana dos
sujeitos (Han, 2012). Precisamos reorganizarmo-nos por meio do trabalho ordinário, cotidiano
e frequentemente meticuloso de nos cuidarmos e de criação de uma comunidade. Um
autocuidado que não seja mais uma técnica de governança, mas um meio de encontrar formas
para existir num mundo que torna a existência de algumas populações difíceis (AHMED,
2022).
Considerações Finais
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84
maneira, não é reconhecido da mesma maneira e, portanto, não impacta a todos da mesma
maneira. Nosso sofrimento está sempre condicionado pelos atravessamentos característicos de
uma forma particular de viver, do valor distintivo determinado pela posicionamentos
dinâmicos que assumimos e somos levados a assumir no espaço social. Um fenômeno tão
complexo e tão urgente como este demanda reflexões para além dos indivíduos. Precisamos
olhar para as engrenagens institucionais, para os fatores supra-individuais. E, acima de tudo,
precisamos de respostas coletivamente organizadas e transformações institucionais que
realmente levem em conta as experiências diversas e distintas dos discentes. Sendo a
precariedade uma das experiências definidoras da vida acadêmica contemporânea, a tarefa de
repolitizar a saúde mental na Universidade é urgente!
REFERÊNCIAS
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_____. The ‘Nothing But’: University Student Mental Health and the Hidden Curriculum of
Academic Success. Canadian Journal of Disability Studies, 8(4), 2019.
AUERBACH, Randy. et al. WHO World Mental Health Surveys International College
Student Project: Prevalence and distribution of mental disorders. J. Abnorm. Psychol.,
Washington, DC, v. 127, n. 7, 2018.
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Pierre. Capital Simbólico e Classes Sociais. Novos estudos - CEBRAP, v. 96, 2013.
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______________. Corpos em Aliança e a Política das Ruas. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira,
2018.
CAMARGO, Roberta. Estudante vítima de racismo comete suicídio dentro da USP. Alma
Preta Jornalismo Preto e Livre, São Paulo, 1 de jun. de 2021. Disponível em:
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21
90
Introdução
Tomou forma nos últimos anos, e em especial na última década, no campo das
artes visuais no Brasil e no mundo, um panorama de produções artísticas voltadas para a
discussão da maternidade e suas condições. De caráter quase sempre ativista, em
constante diálogo com o debate sobre maternidade no ambiente acadêmico e com as
teorias feministas, essas artistas, com suas poéticas e obras trazem reflexões sobre
desigualdades e estereótipos de gênero, performance social e os atravessamentos que
recobrem o corpo da mulher em nossa sociedade.
Tais trabalhos recorrem na grande maioria das vezes a fragmentos autobiográficos
e adotam a perspectiva da pesquisa autoetnográfica na construção de suas narrativas,
agregando ao debate feminista e de gênero, e dialogando, por conseguinte, com o campo
das ciências sociais.
Este estudo pretende traçar um breve panorama do contexto das narrativas
maternas nas artes visuais brasileiras, nos últimos cinco anos, buscando destacar e
analisar os discursos que apresentam tais obras e artistas. Em paralelo, busca analisar as
contribuições da metodologia de pesquisa auto etnográfica para a construção desses
trabalhos, onde a subjetividade do indivíduo é o material central a ser esmiuçado e
compreendido. Propondo ainda, pensar a autoetnografia como uma das vias possíveis de
restauração de dinâmicas desarmônicas que operam em contextos específicos tais como
o mercado das artes ou campo acadêmico nos quais não raro, mulheres mães são
excluídas.
Para tanto, este estudo teve sua origem efetiva no parto. Primeiramente, nos dos
meus filhos. Pois embora não se volte à minha experiência particular de maternidade, foi
a partir da minha própria experiência que passei a observar atentamente contextos
protagonizados por mulheres mães que, assim como eu, reivindicam por espaço para
91
seguirem com suas trajetórias pessoais, e com isso, também construírem novas formas de
maternar.
A realidade é que os primeiros anos de vida de uma criança, inserem a mulher
num mundo à parte. E uma vez apartadas, dialogam com questões por vezes invisíveis
àqueles que não compartilham de suas experiências e percepções.
São muitos, os recortes possíveis para pensar a maternidade. E mesmo dentro de
contextos tão singulares, como os grupos voltados para a gestação, amamentação, parto,
dinâmicas de parentalidade, saúde e educação de filhos – dentre outros espaços destinados
às mulheres mães – é possível encontrar realidades tão diversas, em comunhão com o
conceito de interseccionalidade onde gênero, raça e classe, definem diferentes formas de
vivência, o que não será a fundo abordado neste estudo.
Introduzo este trabalho com tal apontamento, para frisar que o pressuposto aqui é
que as narrativas maternas que conseguem alcançar certa notoriedade no campo da arte,
partem das experiências de mulheres que, ao menos gozam, do privilégio de acesso a
esses espaços, e que por isso se inserem num determinado recorte social, que permite que
suas narrativas possam reverberar numa dimensão pública, e com isso alcançam certa
visibilidade. Ainda assim, quando se é mãe, nem sempre é fácil ocupar espaços na vida
pública - mesmo que nesses espaços, antes, pudéssemos nos ver de alguma forma
inseridas. Neste cenário, é possível que se configure um campo profícuo à análise da
própria condição que, para além da indignação frente ao panorama aqui brevemente
apresentado, vem sendo força motriz para uma produção artística e acadêmica por parte
de mulheres que nos últimos anos reconfigura o contexto da produção acadêmica: a
tomada da própria experiência enquanto objeto de estudo.
No entanto, estudos que priorizam perspectivas biográficas por vezes se deparam
com entraves metodológicos, e com descrença por parte do meio acadêmico. Em certas
áreas de estudo, o afastamento ainda é considerado condição para a produção de uma
análise científica séria. Afirma-se aí, a problemática em torno de estudos que têm como
objeto de análise a subjetividade.
No afã de dialogar com a questão metodológica previamente apontada, este estudo
propõe a autoetnografia como método a ser analisado, em perspectiva com as produções
artísticas em torno da maternidade e suas discussões. Mas, antes de aprofundar em tal
análise, considero importante apresentar ainda que de forma breve, o panorama da arte
materna no Brasil, e definir os contornos do recorte ao qual se debruça este estudo.
92
Arte Materna
De acordo com Marta Mencarini e Tatiana Reis em fala no curso sobre “Arte,
feminismos e maternagens” ministrado em 2022 pelo SESC São Caetano, as primeiras
manifestações artísticas que trouxeram a temática da maternidade com um viés crítico e
até mesmo político, se deram nos Estados Unidos em meados da década de 1970. O grupo
Mother Art trouxe através de obras nas linguagens da performance e instalação artística,
questionamentos frente à condição materna e à exclusão social de mães com filhos ainda
criança e de suas proles.
No Brasil, a artista Maria Maiolino cria em 1976, na série “Fotopoemação”, a obra
“Por um fio”, na qual se autorretrata ligada através de um fio à sua mãe e sua filha,
chamando assim a atenção para a questão da parentalidade. E, embora já em 1968, a
artista Lygia Clark possa ter de alguma forma apontado para a metáfora da maternidade,
em sua obra intitulada “A casa é o corpo”, foi principalmente no decorrer da última
década, a partir de 2010, que a temática da maternidade passa a compor um volume maior
de obras de arte, em leituras críticas, ganhando assim, contorno, corpo e espaço no campo
da arte contemporânea - na “voz” das próprias artistas mães, e não apenas enquanto objeto
a ser representado.
A crescente inserção de temáticas em torno da maternidade na arte, além de
demarcar o nível ascendente da inserção feminina no mercado artístico, aponta para uma
possível mudança quanto ao status de sua participação nesse contexto. O que sinaliza uma
possível legitimação das temáticas de interesse feminino, em detrimento das necessidades
de adequação aos assuntos já em voga no campo, dinâmica comum em outros momentos,
numa perspectiva historiográfica da inserção feminina no contexto das artes legitimadas
brasileiras. O que por sua vez, evidência certa maleabilidade do campo artístico brasileiro,
principalmente nos últimos anos, para questões identitárias.
No desejo de mapear, ainda que de forma breve, o contexto da arte materna no
Brasil da última década, a pandemia de Covid-19 também teve o seu papel enquanto
demarcador desta inserção de mulheres mães e da temática da maternidade no campo da
arte. Uma vez que, ao transportar para o ambiente virtual a socialização própria do meio,
a exemplo de reuniões, exposições e vernissagens, que antes ocorriam em ambientes
muitas das vezes hostis para crianças e mães com filhos ainda bebês, torna possível o
acesso antes inviável ou difícil.
93
A partir dos relatos de artistas mães na ocasião de um encontro remoto sobre arte
e maternidade, é possível afirmar que apesar das dificuldades em se preservar atividades
criativas e de interesse pessoal em meio a rotina de cuidados com os filhos, a pandemia
facilitou o acesso de mulheres mães a eventos de artes e editais de fomento - viabilizando
assim a realização e veiculação de inúmeros trabalhos. Isto pode configurar uma possível
causa para a ampliação das discussões em torno da temática da maternidade no campo da
arte contemporânea, desde então.
Embora os trabalhos em arte materna tratem principalmente de impressões
pessoais das artistas sobre as próprias experiências de maternidade, é possível encontrar
aspectos que alinhavam tais trabalhos. Considerando a maternidade enquanto experiência
corporal, a forma com que a arte materna imprime sua marca no campo artístico também
parte do corpo. Experiências performáticas, registros fotográficos ou em áudio visual,
paisagens sonoras, escritas descritivas, configuram narrativas que ampliam e evidenciam
desconfortos e conflitos que envolvem a realidade de quem materna.
Ainda que o pilar do desconforto materno esteja na condição social e política da
maternidade em nossa sociedade, em geral, não se pode dissociar tais questões dos
atravessamentos corporais de suas autoras. Mesmo quando a maternidade não se realiza
a partir de uma gestação, nas narrativas sobre aborto, ou nas outras múltiplas
possibilidades de maternar, a representação de tais experiências na arte contemporânea se
dá em geral a partir do corpo.
Das artistas que representam suas experiências de maternidade, e alcançam
determinado reconhecimento nos dias de hoje, a maioria já interagia de alguma forma
com o campo artístico antes mesmo de se tornarem mães, sendo elas artistas, estudantes,
professoras ou pesquisadoras das artes nas suas mais diversas linguagens. O que sugere
também um diálogo com os mundos acadêmico e político que, nos últimos anos, ajudaram
a constituir direitos de interesse para as mulheres.
As artistas que produzem arte materna são em geral feministas, e utilizam a arte
como expressão de suas militâncias – o que reforça a importâncias das teorias feministas
e de gênero nas suas narrativas. Vale destacar o caráter de denúncia e os questionamentos
que tecem frente aos estereótipos de gênero e papéis sociais associados às mulheres. O
que remete ao pensamento de Judith Butler:
Autoetnografia
Artistas e Obras
Interessa para este estudo, o contexto das artistas emergentes: mulheres mães
ainda com crianças pequenas, que pleiteiam através de seus trabalhos sobre maternidade,
um espaço de legitimidade no campo das artes, e produzem em diálogo com as redes
sociais. Por se tratarem de mulheres com maior proximidade com as peripécias dos
primeiros anos da maternidade, lidando diretamente com a realidade de conciliar carreira
e cuidado com os filhos, em algumas ocasiões lidando também com o abandono paterno,
falta de políticas de apoio à maternidade, ausência de redes de solidariedade,
maternidades plurais e inúmeros julgamentos, dentre outras questões, que faz com que
suas narrativas apontem para problemáticas carentes de solução, e as tornam vulneráveis
em suas condições que clamam por reconhecimento e visibilidade.
97
Outros nomes compõem a cena materna no Brasil hoje, dentre elas: Priscilla Buhr,
Roberta Barros, Clarissa Borges, Maíra Freitas, Tatiana Reis, Marjô Mizumoto, Clarissa
100
Gonçalvez, Roberta Campos, Márcia Falcão, Mahyrah Alvez, Bruna Alcântara, Renata
Felinto, Evellin Costa... São algumas das artistas mães que elaboram suas narrativas a
partir da análise das próprias experiências com a maternidade.
Para além do legado estético das obras e da potência dos discursos, a arte materna
aponta para uma postura reflexiva frente à maternidade. A necessidade de compreender e
de alguma forma acomodar a própria experiência, se funde ao desejo de compreender e
transformar a sociedade no fenômeno ascendente que iremos chamar de maternidade
política.
Para tanto, o caráter coletivo que circunda essas mulheres artistas e suas
maternidades vai além da perspectiva comparada sobre as próprias experiências, e se
configura na organização de grupos de mães e coletivos de artistas que se sustentam em
dinâmicas de cooperatividade, promovendo eventos, estudos, registros e espaços que
ajudam a definir os contornos, divulgam e legitimam a arte materna. Neste panorama, a
internet, através das redes sociais, tem desempenhado um importante papel no movimento
de integração dessas artistas e da divulgação de seus trabalhos.
Bibliografia
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diversidade cultural. Feira de Santana: UEFS, v. 4, no 3, 2005, p. 274-275.
Fenomenologia carnal:
A corporeidade como um paradigma para antropologia
RESUMO
Introdução
Nos últimos anos, dentro das ciências sociais, o tema corpo está sofrendo um
“autêntico boom” (VALE DE ALMEIDA, 2004, p. 2). Nas últimas décadas, foram
muitos os cientistas sociais1, tanto antropólogos como sociólogos e mesmo filósofos,
que privilegiaram a compreensão do corpo em suas pesquisas. Como Miguel Vale de
Almeida (2004) explica, entre as correntes teóricas que buscam compreender a noção de
corpo estão, por exemplo: os pesquisadores que privilegiam uma teoria prática, outros
que buscam se ancorar nas premissas da fenomenologia, outros ligados à crítica
artística, também existem outros que se baseiam nos estudos de ciência, alguns outros
próximos do conceito de “biopolitíca”, entre muitos outros enquadramentos teóricos
(VALE DE ALMEIDA, 2004). Este texto buscará principalmente expor e problematizar
alguns pontos da teoria do antropólogo Thomas Csordas (2008), apresentados no texto
“A corporeidade como um paradigma para a antropologia” (2008).
Para alcançar o objetivo proposto, em um primeiro momento do texto será
apresentada, em uma pequena introdução, os argumentos do pesquisador David Le
Breton (2011), que foi um dos responsáveis por delimitar o papel do corpo nos
primordios da civilização moderna. Já em um segundo momento do texto, será exposto
alguns dos pressupostos teóricos da fenomenologia carnal de Merleau-Ponty (2000),
com o auxílio do filósofo Graham Harman (2005)2, para que então, em um terceiro
momento, seja apresentada a proposta da corporeidade do antropólogo Csordas (2008).
Neste terceiro momento, serão articulados seus principais argumentos relacionados a
alguns pressupostos primários da fenomenologia de Merleau-Ponty (2000).
1
Entre eles podemos citar; Thomas Csordas (1990), Aparecida Vilaça (1993), María Puig de La Bellacasa
(2011), entre outros.
2
Graham Harman tornou-se um filósofo conhecido na década passada, ao colaborar com a criação da
escola filosófica “realismo especulativo”, com sua teoria orientada aos objetos.
105
histórica sobre o tema. Para Le Breton o corpo enquanto uma “realidade autônoma” (LE
BRETON, 2011, p. 72) surgiu em meados do segundo milênio da história ocidental,
quando, principalmente, através dos estudos de anatomistas ele foi finalmente tocado e
pesquisado (LE BRETON, 2011).
Como David Le Breton escreveu na última frase do capítulo “As fontes de uma
representação moderna do corpo”, “o corpo nada mais é do que apenas um resto” (LE
BRETON, 2011, p. 96) na modernidade. E durante todo o artigo o autor fornece os
argumentos que levaram o corpo receber tal “depreciação” (LE BRETON, 2011, p. 95),
que ocorreu junto à tomada de “consciência do indivíduo” (LE BRETON, 2011, p. 95)
moderno, e também junto sobretudo as inovações das ciências, econômica, política e
médica (LE BRETON, 2011, p. 60-72). E, como o pesquisador também afirma, esse
movimento está ligado diretamente ao nascimento do “homem3 da modernidade” (LE
BRETON, 2011, p. 89), que surge ligado a três principais pontos: o primeiro enquanto o
humano “cindido de si mesmo” (LE BRETON, 2011, p. 89); o segundo sobre o humano
cindido dos outros humanos; e o terceiro enquanto o humano cindido do cosmos. E,
como o antropólogo continua a expor em seu texto, o corpo moderno é exatamente o
“resíduo” (LE BRETON, 2011, p. 89) desses três movimentos. Em suma, ele é o
“indício” (LE BRETON, 2011, p. 73), ou seja, é uma espécie de sintoma desses três
rompimentos impostos pelo nascimento da civilização moderna e de sua epistemologia
e ontologia específicas.
Para entender o que Le Breton denomina enquanto o nascimento do corpo, que
ocorre junto ao nascimento da modernidade, inicialmente é preciso entender o que o
autor chama de sociedades “tradicionais” (LE BRETON, 2011, p. 44), as sociedades
pré-modernas, ou seja, as que existiram antes da moderna, como as medievais e as
renascentistas (LE BRETON, 2011, p. 43). Como Le Breton expõe, nas sociedades pré-
modernas o que existe são sociedades “holistas” (LE BRETON, 2011, p. 44), nas quais
o humano e o mundo são feitos da mesma “substância” (LE BRETON, 2011, p. 44), ou
seja, onde existe ainda uma “correspondência” (LE BRETON, 2011, p. 95) entre a carne
do humano e a carne do mundo, e assim ambos vivem em uma relação de identidade,
em uma espécie de perfeição total e única.
O termo holística é pensado por Le Breton através de outro pesquisador, Louis
Dumont (1983), que pensa as sociedades tradicionais enquanto civilizações nas quais
3
O antropólogo utiliza a palavra “homem” para se referir aos humanos, porém durante este texto
usaremos a palavra “humano”, devido à problematizações sobre o tema que foram feitas pela antropologia
após a escrita do texto de Le Breton.
106
Fenomenologia carnal
teoria de mundo apreendida anteriormente, pois impõe um passo para trás, um passo em
direção ao encontro espontâneo do corpo humano com o mundo.
Nesse sentido, a fenomenologia convida o leitor para um mergulho no mundo
através da percepção do corpo humano, que é colocado como instrumento protagonista
para o conhecimento das coisas e, logo, a fenomenologia de Merleau-Ponty não
convida para uma reflexão da mente sobre o mundo, pois antes de conhecê-lo com sua
mente, o humano percebe o mundo com seu corpo, ou então, antes de encontrar um
mundo objetivo, o humano encontra o pré-objetivo. E, como Merleau-Ponty estabelece,
esse movimento de suspensão da razão para encontro direto com a experiência coloca o
corpo no centro da questão, pois é justamente ele que percebe, que realiza contato com
o mundo, pois o corpo é a “abertura” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 351) para o
mundo, é o que nos coloca no mundo, o que nos situa no mundo.
No entanto é importante notar que o corpo de Merleau-Ponty não é o
material/inerte das ciências naturais, ou seja, não é mais um objeto entre os outros
objetos do mundo, mas um corpo sensível a todos os outros corpos e que, assim,
funciona enquanto uma “universal traslation tool” (HARMAN, 2005, p. 49) em relação
às coisas do mundo. Ou seja, antes de ser mais um objeto passivo entre todos os corpos
possíveis, todos objetos passivos, o que é o mundo proposto pelo movimento de
objetificação das ciências naturais, o corpo fenomenológico é o sujeito ativo que
permite a relação com o mundo, ou seja, o corpo é o meio de comunicação com tudo o
que existe. De novo aqui estamos diante de uma inversão do corpo exposto por Le
Breton, pois ao invés de passivo, depreciado, o corpo é ativo, é valorizado na
fenomenologia carnal..
Dessa forma, para a fenomenologia de Merleau-Ponty o corpo humano conhece
o mundo em um primeiro momento. Logo, o corpo para a fenomenologia carnal é mais
um “quem” do que um “que”, é mais aquele que conhece do que aquilo que é
conhecido, e assim, todos os humanos conhecem o mundo através de um mesmo corpo,
ou seja, ser humano é ter um corpo humano antes de ter um pensamento humano
(MERLEAU-PONTY, 2000, p. 336).
Nesse sentido, se o corpo é um tradutor, é porque ele é aquilo que encontra o
mundo e que precisa enfrentar, o ler, o compreender, o pensar. Em suma, a
fenomenologia afirma que a humanidade não é a razão, ou seja, o humano não é
definido enquanto o único ser que pensa, mas o humano é “outra maneira de ser corpo”
109
mundo como um todo. Nesse sentido, não é a razão, mas o corpo humano que percebe e
conhece o mundo em seu movimento. Então, a objetificação do próprio corpo, e
também dos outros, é um resultado secundário da reflexão (CSORDAS, 2008, p. 142).
Como Harman explica de modo curioso (2005, p. 49), o corpo, para a
fenomenologia de Merleau-Ponty, é o trauma original humano, no sentido psicanalítico
de algo impossível de se superar e que sempre funcionará como o limite do
conhecimento do mundo para aquele que está encarnado em alguma pele em
movimento. Nesse sentido, sempre se conhece situado no corpo, fixado no corpo, preso
no corpo, e o movimento de transcendê-lo para realizar o conhecimento é impossível.
Esse movimento proposto pela fenomenologia de Merleau-Ponty contradiz a ideia da
construção de conhecimento como um olho de Sirius, aquele que tudo vê e que está
acima de tudo, pois a fenomenologia carnal impõe que se enxerga até o limite de seu
próprio corpo, e logo nunca se vê tudo. Então, o conhecimento é possível até um certo
limite e nunca se conhece todo o mundo (HARMAN, 2005, p. 3).
Logo, o humano primeiro encontra o mundo com seu corpo, e seu corpo também
é o limite de sua possibilidade de encontrar o mundo, ou seja, só se percebe o mundo
em um corpo e, assim, o corpo é principal instrumento de conhecimento de tudo e todos
que existem. A fenomenologia apresenta o corpo como entrada e limite do mundo.
Nesse sentido, também Csordas busca dar um passo antes da objetificação em direção à
um mundo onde ainda não exista nenhum objeto anterior, exterior e fixo, pois sua ideia
principal é focar a atenção da antropologia justamente no processo de objetificação.
Como o antropólogo explica no começo de seu artigo, para implodir a dicotomia
natureza/cultura é preciso um novo paradigma, uma nova “perspectiva metodológica”
(CSORDAS, 2008, p. 101), fundamentada e sólida, que permita repensar os dados
antropológicos, para que assim seja possível propor, enquanto consequência, novas
questões para os estudos empíricos da antropologia. Ou seja, a pesquisa de Csordas, ao
contrário da fenomenologia apresentada na segunda parte do presente texto, pensa em
problematizar principalmente os dados obtidos pelo trabalho etnográfico dos
antropólogos e no texto “A corporeidade como um paradigma para a antropologia”
(2008) esse movimento será feito através da exposição de diferentes rituais religiosos.
Mais à frente, um desses rituais será explicado com detalhes.
De acordo com Csordas, o novo paradigma deverá ser orientado sobretudo pelos
passos metodológicos da fenomenologia de Merleau-Ponty, pois foi o filósofo que,
através da problematização da percepção, introduziu o “princípio metodológico”
111
Conclusão apressada
afirmação ontológica, que busca tratar o que existe no mundo, o que há para ser
conhecido, o objeto, o mundo, nunca esta presente completamente para aquele que o
observa. Em suma, essa afirmação acima impõe que o mundo nunca é exaurido pela
percepção humana.
Então diante da impossibilidade de totalizar qualquer objeto fora do próprio
corpo completamente, cabe as teorias do paradigma da corporeidade dar um passo para
trás, para não partir do objeto anterior, exterior e fixo, mas sim para a partir de um outro
patamar da experiência, onde o objeto “está presente e vivo” (CSORDAS, 2008, p.
140), pois ainda não passou pelo processo das ciências naturais que o matam, no sentido
de que o totalizam enquanto exterior ao corpo humano. Interessante é notar, como esses
argumentos de Csordas importados da fenomenologia o fazem arriscar princípios
ontológicos, no sentido de que sua teoria assume pressupostos claros sobre a estrutura
da realidade.
A teoria de Csordas, mesmo já pensada há décadas atrás, ainda parece ter um
grande potencial, justamente por se colocar claramente contra os regimes conceituais
teóricos e práticos modernos que insistem em colocar o corpo em segundo plano. Como
o antropólogo coloca, sua intenção é justamente a de desmoronar a dicotomia moderna
entre corpo e mente que de ao corpo a característica de algo menor, menos importante.
E como Le Breton expõe em sua obra “Antropologia do corpo e modernidade” (2011),
essa tendência tem fortes raízes no processo histórico de desenvolvimento das ciências
modernas, o que aponta que sua alteração exigira muito trabalho dos pesquisadores das
ciências sociais.
117
Bibliografia
2Movimento 1:
Atmosfera: o exercício deve ser realizado debaixo do chuveiro. Caso não se sinta à vontade. Fazer
119
Abrir este texto com a poesia de Audre Lorde, escritora feminista negra e ativista
dos direitos civis, significa um desejo ambicioso de amparo diante da jornada por novos
caminhos e, conforme suas palavras “toda mudança implica crescimento, e crescer pode
ser doloroso”(Lorde, 2019: 140). Ao preparar a sua imersão – leitora ou o leitor – em
águas poéticas e, talvez, mais suaves e amenas a intenção é iniciar a navegação
conduzida pela seguinte questão o que as rupturas de fronteiras dentro de um campo
disciplinar pode vir a nos dizer dentro da produção antropológica contemporânea?
Ainda mediante essa incipiente proposta de interlocução gostaria de compartilhar
ao longo deste texto, assim como Audre Lorde, poesias e ilustrações, de minha autoria,
que visam extrapolar a roupagem tradicional de produção de conhecimento
antropológico fazendo uma bricolagem entre texto, imagem e poesia como um desafio
experimental em narrar as tensões existentes na contemporaneidade, através dos
desdobramentos políticos, como as lutas contra o colonialismo dos saberes, as
intervenções das(os) aliadas(os) e pesquisadoras(es), resultantes das políticas de ações
afirmativas, diante ao epistemicídio, além do apagamento das produções latinas e das
mulheres negras.
A estratégia criativa de produção sensível e viva da ciência, por meio da
combinação das linguagens das grafias é um chamado urgente para a transformação
epistemológica da Antropologia.
Este trabalho compartilha abordagens preliminares da pesquisa de doutorado
sobre o uso do desenho como artifício pedagógico para a formação antropológica dentro
da estrutura disciplinar acadêmica em Universidades brasileiras. O objetivo é divulgar
estratégias de ensino de Antropologia utilizando o desenho para se compreender de
forma prática as diversidades, as sutilezas e as temporalidades existentes no trabalho de
campo antropológico.
2
120
2 Movimento 1:
Atmosfera: o exercício deve ser realizado debaixo do chuveiro. Caso não se sinta à vontade. Fazer
sentado no quarto, como fizemos em aula.
1) Coloque as conchas ou copos próximos aos ouvidos. Ouça um som que se assemelha ao o som do mar
ou da cachoeira. Esse som deverá continuar durante todo o exercício.
2) Caminho do olhar e centro de força:
a) Com os olhos fechados, ouvindo o som do mar e sentindo a água cair na pele. Fique com os olhos
soltos, verifique para onde seu olhar se dirige ou tenta se dirigir. Perceba as cores ou flashes de luz que
surgem com os olhos fechados.
b) Tente caminhar levemente com as pupilas para esquerda, veja se as pupilas são puxadas para o centro
do seu olho ou para outro lugar. Repita esse movimento para direta, para cima e para baixo. A ideia é ver
se os olhos estão soltos ou se estão sendo puxados para alguma região. Faça o movimento calmamente.
3) Observando o espaço como um “todo” com os olhos soltos: deslocando a atenção perceptiva: como
fizemos em aula, tente olhar com os olhos fechados para toda extensão do campo visual. Preste atenção
nas margens dos olhos. Tente ver o campo visual como um todo.
4) Abra os olhos calmamente, observe a atmosfera do lugar, as sensações na pele, na visão e na audição.
Grafia 1:
1) Pegue um papel em branco, lápis, giz de cera ou caneta.
2) Não utilize borracha. No desenho como diz Ingold cada linha leva uma continuação. A borracha além
de servir como um sensor, pode reprimir uma a emergência de uma linha singular.
3) Não olhe para o desenho, tente movimentar as mãos conforme as sensações que o exercício provocou.
4) Desenhe quantas vezes quiser.
3
121
Figura 1 - Salmões-pássaros. Produção da autora, 2021. Materiais utilizados: carvão, pastel seco e caneta
nanquim sobre papel.
Salmões-pássaros
Entra, fecha a porta.
Cria-se uma atmosfera de segurança, respira fundo.
Não é um ato banal de higiene, estou no exercício.
Ligo o chuveiro, cheiro de água, toque frio, a água escorre e a cabeça se entrega às
sensações.
Dois copos estão na bancada e eles são ferramentas do exercício.
Copos, água, banheiro, frio e chuva.
Espaço, ferramentas, sons e vem o suspiro.
O ar entra mais profundamente pelo nariz, garganta, esôfago, pulmões e preenche o
corpo.
A água toca cabelo, face, costas, frente e dedos dos pés.
Copos nos ouvidos e eu me preencho de mim mesma e das memórias antes do mundo
acabar e logo retorno para aquele janeiro de 2020 dentro do mar, onde eu gritei: até
logo!
Só que esse logo não veio e nem sei quando ou se virá.
4
122
Fecho os olhos e tento alcançar essa memória numa sensação mais profunda e já me
desloco para o barulho das correntezas, aquelas pequenas quedas d'água que possuem
pedras brilhantes.
Seriam pedras ou vagalumes?
Vou levando os olhos para os espaços múltiplos e pequenas luzes que se assemelham ao
prisma brilhando incandescentes.
Eu criei os vagalumes, mas de repente se dispersaram e viraram pequenos focos de luz
branca em dias de natal.
Porém, essa luz em forma de pontos cada vez se torna mais embaçada e esparsa e vira
um enorme borrão e, então, os pensamentos retornam.
Copos, olhos fechados, água do chuveiro são som, visão e tato, tudo torna-se um
mergulho dentro daquilo que se quer preencher.
Quando se entra no oceano é você que o preenche ou ele que está te preenchendo?
O movimento de zigue-zague é cheio de dualidades ou dubiedades.
Dentro da água é possível sentir a sensação de mergulhar e também a sensação de voar.
O som dos copos também traz a sensação de estar em um avião ou pular de uma ponte.
Mergulhar com peixes, voar como vagalumes, repousar como as memórias.
O banheiro tornou-se um santuário e foi um refúgio para toda a influência externa de
sentidos e de informações.
Dentro desse equilíbrio forjado, o desenho construiu-se como um momento de afago.
Continuava o clima de reduto protetivo e não estavam implicadas as regras de forma,
volume e cores.
Na memória eram somente os salmões de Ingold subindo as cachoeiras e que eu os tinha
transformado em pássaros.
E este olhar era exclusivamente meu dentro daquela experiência.
5
123
4
Karina Kuschnir é antropóloga branca professora associada do Departamento de Antropologia Cultural
do IFCS/UFRJ, onde coordena o Laboratório de Antropologia Urbana.
5
Atualmente é professor associado no Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília.
6
124
A sugestão de uma indisciplina não fica isolada na exposição acima, ela também é
um manifesto de algumas pesquisadoras e pesquisadores, aos quais posso recomendar
como leitura as produções de Dias 6 (2019), Krenak 7 (2019), Quintiliano 8 (2019),
Novais9 (2018), Collins10 (2016), Neale Hurston11 (2019).
Em resumo, as ideias das autoras e autores citadas (citados) acima expressam
dimensões éticas, estéticas, políticas e teóricas da Antropologia, em seu contexto
contemporâneo, onde as sutilezas de um campo disciplinar, compostas por gêneros
invisíveis, inaudíveis e indizíveis, não trazem respostas prontas e objetivas, mas coloca
este campo o tempo todo em questão, ou melhor em tensão apresentando suas rupturas e
deslocamentos. De acordo com Collins:
7
125
outro, é uma tentativa de romper com a versão opaca das narrativas controladas pelo
olhar centrado e hegemônico.
Para compor a interlocução desse conceito de reencantamento da Antropologia
trago as contribuições de Ingold13 (2015) que mostra um caminho para abrir a percepção
de dentro para fora e assumir uma ideia diferente de recepção passiva do conhecimento.
Ingold é um dos autores que tentam superar a dicotomia natureza versus cultura, pois
por meios de seus argumentos sobre as maneiras como a vida se desdobra ele afirma
que ela não é exclusiva dos seres sencientes, as coisas possuem vida e a vida é
constituída de fluxos contínuos.
A fim de dar um desdobramento para esta reflexão segue o segundo poema e
desenho provocadas a partir do movimento e grafia 02 da disciplina “Antropologia da
Percepção”:
Figura 2 – Desenrolar. Produção da autora, 2021. Materiais utilizados: caneta nanquim e aquarela sobre
papel couché cinza 250g.
Desenrolar14
13
é um antropólogo britânico e presidente de Antropologia Social da Universidade de Aberdeen.
14
Pauta do movimento 2 e grafia 2 da disciplina Antropologia da Percepção:
1) Consiga um novelo de fio grosso ou de lã e leve um destes emaranhados de fios com você.
2) Sente-se na sala de casa, mas de tal forma que você tenha uma parte da sala em sua visão
8
126
Foi mais barulhento dessa vez, pois o som do chuveiro não estava mais lá.
A água com os copos fizeram eco na mente e abafaram os pensamentos.
Sem esse subterfúgio eles gritavam, eles: os pensamentos.
No ato de desenrolar o cordão grosso de algodão seu material, orgânico como a pele,
parecia se integrar como tecido, entrelaçando a trama.
Cada enrolar dos fios, como uma cobra que se adapta à superfície, fazem vibrar os
microporos sensoriais e levantam os meus pelos, como uma sensação de arrepiar-se ao
medo do sufocamento.
Volta o som do barulho, como muitas vozes a pedir atenção e querem apoderar-se do
meu corpo.
Entretanto, rapidamente quanto mais fios preenchem dedos, braços, cabeça, pescoço, o
calor aumenta e sinto que vou preenchendo e silenciando os pensamentos.
O cordão que enrola também desenrola e volta ao seu quilo de barbante.
No pulsar do encontro tátil há também a experiência do olhar.
O estar ao centro não é tão confortável, pois o centro é o espaço do confronto.
Lembro-me das vozes e as faço escapar também fugindo do olhar.
O olhar vai para cada margem da sala e sempre para cima, as quinas da parede e os
desenhos de cada canto são também cada parcela dos fios do barbante de algodão que
encosta na pele e novamente a aquece.
Sento, deito e me enrolo junto com o longo barbante que me prende, mas também
aquece, são braços que sufocam ou que protegem?
Não sei distinguir a diferença, porque os pensamentos voltam a gritar.
O desenrolar rápido traz uma sensação de libertação, mas a matéria sem a presença de
outra matéria diminui a sensação de calor e volto a enrolar os fios calmamente para
sinalizar a despedida do movimento e acalmar as mãos enlouquecidas dos pensamentos
que tentam gesticular abraços necessários a me preencher e abraçar dizendo que vai
ficar tudo bem.
Pra essa atividade foi importante tirar os contornos e abrir o espaço para os fluxos,
ou seja, estar aberta aos processos. Esse é um movimento importante para o
engajamento político dentro da produção científica, pois ao se engajar no mundo que o
percebemos e a partir desta percepção que compartilhamos nossas subjetividades,
consequentemente as percepções estão sempre em transformação.
panorâmica. (Caso não seja possível fazer na sala de casa, faça no quarto com a janela aberta, pois é um
exercício a ser realizado num lugar intermediário entre o fechado (banheiro) e o aberto (varanda, quintal
ou em parques).
3) Dedique os próximos minutos a desenrolar e enrolar os fios. Ora olhe para os fios, ora olhe para algum
lugar da sala e tente manter sua visão panorâmica como ilustrado no segundo círculo maior na figura
acima.
4) Modifique sua postura corporal, a velocidade das mãos, o lugar para onde você está olhando, a visão
panorâmica da sala, de tal forma que você encontre um jeito de ficar com os fios e com você com
tranquilidade.
5) Depois desenhe e escreve sobre a experiência.
a) Descreva como foi a sensação tátil ao enrolar e desenrolar os fios;
b) Descreva o caminho do olhar;
c) Descreva de que maneira a mudança na postura corporal, mudou sua sensação tátil e o campo de visão;
d) Descreva de que maneira mexer nos fios em velocidades diferentes provocaram outras sensações.
Do livro Tarefas V3 da terapia Arte Org. por Jovino Camargo Jr.
9
127
A Antropologia, como campo disciplinar, que teve sua base inaugural postulada
na dicotomia do sujeito do conhecimento em contrapartida ao objeto do conhecimento é
questionada pelos grupos periféricos e marginalizados (feministas, movimento negro,
ambientalistas, indígenas, quilombolas, entre outros) quanto às suas metanarrativas
(etnógrafo versus nativo; sujeito versus objeto; campo versus teoria; ocidente versus
oriente) na contemporaneidade. O campo do saber da disciplina antropológica tanto nos
países centrais como nos periféricos está “envolvido agora na tarefa de descolonização
das paisagens mentais, a qual implica uma revisão radical dos seus cânones, tanto
teóricos como temáticos” (Carvalho, 2001:111).
Sendo assim, é crucial trazer os conhecimentos forjados nas margens para o
centro, não de forma polarizada, mas pulverizados e dinâmicos, como um movimento
migratório de produção de conhecimento multisituado.
Diante dessas considerações é evidente a urgência em se revisar as ferramentas
analíticas consagradas na Antropologia clássica, ou seja, verificar se elas continuam
sendo suficientes para o atual contexto contemporâneo em que as fronteiras estão
borradas, ou seja, onde elas estão em processo de dissolução.
As experiências atravessam as corporalidades da(do) pesquisadora(pesquisador)
em campo e neste trabalho foi por meio das grafias que repensei alguns elementos-
chave do trabalho do antropólogo, o que Roberto Cardoso de Oliveira (1996) definiu na
tríade: o olhar, o ouvir e o escrever. Ao me abrir para as grafias, os fluxos, os
emaranhados propostos por Ingold (2015) percebi que não há uma só maneira de olhar,
ou seja, olhamos para, olhamos com, ouvimos vendo. Para refletir sobre as
transformações nas formas de conhecer trago o desenho e a poesia que foram
consequentes ao movimento e grafia 0415 proposto na disciplina “Antropologia da
Percepção”:
15
Movimento e Grafia 4: “Entre o ver, o escutar e o sentir”
atmosfera: o exercício de polo fechado para ser realizado debaixo do chuveiro.
Atenção: não permaneça muito tempo com olhos fechados e debaixo da água quente, pois pode dar
tontura. Caso venha algum desconforto mude de posição da cabeça, do corpo ou abra os olhos.
1) De pé, coloque as conchas ou copos iguais próximos aos ouvidos. Ouça um som que se assemelha ao
som de conchas nos ouvidos. Esse som deverá continuar durante todo o exercício.
2) Caminho do olhar e centro de força: com os olhos fechados, ouvindo o som e sentindo a água cair na
pele. Fique com os olhos soltos, verifique para onde seu olhar se dirige ou tenta se dirigir. Perceba as
cores ou flashes de luz que surgem com os olhos fechados.
3) Deixe a água cair em diferentes partes do corpo: na cabeça, peito, costas, barriga e etc.
4) Olhe calmante para cima e para baixo e depois para os lados.
5) Agache e faça o mesmo procedimento que fez em pé. Se tiver dificuldade de ficar agachado, utilize um
banquinho.
10
128
Figura 3 - Navegar-se. Produção da autora, 2021. Materiais utilizados: colagem digital com fotografia e
desenho digital no aplicativo Procreate no Ipad.
Navegar-se
Pulsa a energia do universo
mesmo diante à ansiedade intelectual.
Espaço e ferramentas de uma experiência
e cada etapa é um aprofundamento
tanto do sentir, da gota que cai, do frio do ambiente úmido, das luzes
que não se cansam de dançar formando uma galáxia dentro do vazio
dos meus olhos e do som que engole os pensamentos para o precipício
da intimidade.
Sinto-me dentro de uma concha, pequena,
navegando sobre meus próprios pensamentos,
já que não há subterfúgios para a fuga
fluxo contínuo.
Dentro do vácuo deste mundo tudo acontece em câmera lenta
a água que percorre o corpo simula um barco que avança ao movimento do vento
o barco não tem qualquer máquina para deslocar-se
aquém do que a natureza ou a sorte podem lhe oferecer.
A embarcação percorre cabeça, ombros, abdômen, costas, pernas, dedos
6) Levante-se com calma, saia da ducha. Sem os copos, com os olhos fechados, observe, o som, a pele e a
visão.
11
129
16
Lila Abu-Lughod é uma antropóloga palestina-americana. Ela é professora de Ciências Sociais no
Departamento de Antropologia da Universidade de Columbia em Nova York. Eu, como autora deste
artigo, influenciada por seus argumentos quanto à posicionalidade da escrita e também a partir das
contribuições dos estudos da crítica à crise representacional fundamentada por Clifford e Marcus (2016)
indiquei ao longo deste trabalho referenciais identitários e vínculo de trabalho das autoras e autores que
foram importantes para o diálogo da abordagem aqui proposta.
12
130
Figura 4 – Duelo. Produção da autora, 2021. Materiais utilizados: desenho digital no aplicativo Procreate
no Ipad.
13
131
17
Márcio Goldman é antropólogo branco brasileiro professor titular da UFRJ.
18
Roy Wagner nasceu em Cleveland, Ohio. Foi um antropólogo cultural norte-americano especializado
em antropologia simbólica.
14
132
Grafias finais
Figura 5 – Em nossas mãos. Produção da autora, 2021. Materiais utilizados: aquarela sobre papel 300g
com finalização digital no Illustrator.
19
Epistemicídio é um conceito trabalhado por Sueli Carneiro em sua tese e advém do pensamento de
Boaventura Sousa Santos (1997), “para quem o epistemicídio se constituiu e se constitui num dos
instrumentos mais eficazes e duradouros da dominação étnica/racial, pela negação que empreende da
legitimidade das formas de conhecimento, do conhecimento produzido pelos grupos dominados”
(CARNEIRO, 2005:96). Desta forma, quando me comprometi a não perpetuar os instrumentos do
epistemicídio na Antropologia rompi com a ideia de produção de uma única forma de conhecimento
válido, em que se exclui a diversidade dos saberes, assim como o processo persistente de enunciação de
uma produção teórica no campo disciplinar da Antropologia citando apenas antropólogos brancos, do
norte global. Para uma certa produção de conhecimento antropológico, seja ela desde os movimentos
coloniais até a contemporaneidade, os corpos negros são vistos como fontes de saber, mas não como
produtores de conhecimento, ou como interlocutores no diálogo acadêmico.
15
133
16
134
Figura 6 – A cura prática. Produção da autora, 2021. Materiais utilizados: desenho digital no aplicativo
Procreate no Ipad.
Referências
17
135
18
136
https://revistas.unilab.edu.br/index.php/Antropologia/article/view/288. Acesso em 16
jun. 2021.
NOVAIS, Kaito Campos de. Gestos de Amor, Gestações de Lutas: uma etnografia
desenhada sobre o movimento Mães pela Diversidade. 2018. Dissertação (Mestrado em
Antropologia Social) – Faculdade de Ciências Sociais, Universidade Federal de Goiás,
Goiânia, 2018.
ORTNER, Sherry. Teoria na antropologia desde os 1960. Mana, v. 17, n°.2, p.419-466,
2011. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/mana/a/vW6R7nthts99kDJjSR79Qcp/?format=pdf&lang=pt.
Acesso 23 jun. 2021.
QUINTILIANO, Marta. Redes Afro-Indígenas: uma autoetnografia sobre trajetórias,
relações e tensões entre cotistas de Pós-Graduação e Políticas de Ações Afirmativas na
Universidade Federal de Goiás. 2019. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) –
Faculdade de Ciências Sociais, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2019.
SHAH, Alpa. Etnografia? Observação participante, uma práxis potencialmente
revolucionária. R@u – Revista de Antropologia da UFSCAR, v. 12, n°. 1, p.373-392,
2020. Disponível em: http://www.rau.ufscar.br/wp-content/uploads/2020/09/17.pdf.
Acesso 18 jun. 2021.
19
137
Barbara Jungbeck1
Resumo: Este trabalho de orientação etnográfica, entrevistas semiestruturadas e pesquisa com arquivos
digitais tem como intuito compreender como as diferentes narrativas de memórias populares sobre a
origem da vila periférica Maria da Conceição, localizada na cidade de Porto Alegre, conectam-se a duas
diferentes escalas. Em uma escala microssocial, o objetivo é entender como as histórias influenciam e são
influenciadas pelas concepções dos moradores sobre preconceitos sociais. Em uma escala macrossocial, o
interesse é pela conexão da origem de uma vila específica com fatos históricos do desenvolvimento
urbano em nível municipal, estadual e nacional. O propósito em aproximar essas duas escalas de análise é
de caráter qualitativo: como a cidade é constituída e disputada pelas narrativas de pessoas e como ela
mesma constitui afetações nas pessoas. A vila Maria da Conceição foi erguida rodeando uma gruta
construída para “Maria Degolada”, uma figura do folclore municipal conhecida por atender a preces de
saúde ou de proteção da polícia. Maria Francelina Trenes, de origem alemã, foi assassinada por seu
namorado, policial militar. Foi tornada Maria da Conceição, santa católica, por uma freira que ali chegou
em missão em 1952.
Introdução
08 de dezembro, Brasil: dia nacional de Nossa Senhora da Conceição. Durante a
manhã deste dia, em 2022, estive junto às crianças da Pequena Casa da Criança, ONG
católica que fica na vila Maria da Conceição, Porto Alegre. Na ausência da irmã Pierina,
Paulinho, coordenador do setor de espiritualidade, chamou a diretora da escola, uma
mulher branca com cabelos loiros e lisos, com seu sotaque baiano para fazer a oração em
homenagem à santa católica. Ao microfone, ela pede para as crianças repetirem em voz
alta e com os olhos fechados: “Nossa senhora, agradecemos pela Pequena Casa, pela
nossa família, pela nossa saúde e pela comida no prato”. Saímos da escola, dentro do
prédio da ONG, em torno de 30 crianças e 10 adultos, e nos encaminhamos para a sua
frente, onde repousa a imagem de Nossa Senhora da Conceição em sua capela de pedra.
Fizemos o sinal da cruz, rezamos um Pai Nosso e cantamos em sua homenagem.
Enquanto cantavam, eu balançava um pandeiro para dar ritmo à música, junto de
Paulinho que batucava o tambor. Paulinho relembrou às crianças a importância de fazer
1
Mestranda em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
138
o sinal da cruz toda vez que passassem pela capela. As meninas que estavam comigo
me contaram que faziam isso todos os dias pedindo proteção, tinham em torno de 7
anos e eram negras, assim como a maioria das outras crianças.
Naquela mesma manhã, Paulinho contou-me que nos outros anos costumavam
caminhar até a gruta de Maria Degolada, a uns 500 metros da Pequena Casa. Porém,
neste ano, os problemas da vila pioraram, e ele não tinha a intenção de colocar as
crianças em risco. Antes de chamar a diretora para fazer a oração, ele explicou às
crianças que Maria Degolada é um nome “feio”, que traz sentimentos ruins, por isso,
quando a irmã Nely chegou à vila nos anos 80, mudou seu nome para Maria da
Conceição, homenageando-a, posteriormente, oferecendo o nome também à vila.
Enquanto Paulinho falava, João2 segurava a imagem de nossa senhora branca sob um
manto azul. João, menino também branco, com cabelos loiros e mais alto que seus
colegas, disse que estava acostumado a carregar imagens em procissões, sendo sempre
escolhido por sua força, mas também se voluntaria porque gosta. Quando voltamos para
o pátio e ele largou a imagem, perguntei se havia participado das procissões anteriores
até a gruta de Maria Degolada. Ele não respondeu com afirmação ou negação, mas
contou que, recentemente, Paulão3 construiu uma mansão na baixada, o que dificultou a
saída das pessoas pelas ruas da vila, pois estava sendo procurado por outros traficantes
e, por isso, atraindo a polícia que atira. As notícias sobre Paulão diziam que a polícia
tinha lhe encontrado foragido na Bonja4, o que perguntei para João, ao passo que ele
respondeu que não, mas que a polícia o prendeu há um tempo. Mesmo assim, a gangue
rival continuava rondando a vila, o que significa a presença de policiamento. João não
me permitiu mais falar, mas começou a narrar a história de seu avô. Certo dia, estava
trabalhando como segurança em um show de Rap, na vila, e foi morto com tiros de
fuzis pelos traficantes. João não sabia o motivo do ato, mas pensava que os traficantes
queriam entrar no show para matar os rappers, o que não aconteceu.
2
Todos os nomes das crianças são fictícios no intuito de proteger seu anonimato.
3
Paulão da Conceição é ex-chefe do tráfico de drogas da Vila Maria da Conceição. Atualmente, integra
os Bala na Cara, do bairro Bom Jesus, que estão em conflito com outras duas facções da cidade pelo
controle do território da vila Maria da Conceição. (Disponível
em:
https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADcia/traficante-paul%C3%A3o-integro
u-se-%C3%A0-fac%C3%A7%C3%A3o-do-bairro-bom-jesus-em-porto-alegre-diz-denarc-1.886168.
Acesso em: 23 jan 2022.
4
Bonja é um diminutivo de bairro Bom Jesus.
139
A abertura deste trabalho com uma longa vinheta etnográfica tem o intuito de
ilustrar as diversas perspectivas e relações que pretendo explorar nas próximas páginas.
A vila Maria da Conceição cresceu em torno do local onde Maria Degolada foi
assassinada. Foi erguida por pessoas expulsas de suas habitações durante a expansão de
projetos de urbanização da cidade de Porto Alegre, entre os anos 40 e 50. A irmã Nely
Capuzzo, pertencente à Congregação Missionárias de Jesus Crucificado e natural de
Minas Gerais, realizava seu trabalho missionário prestando assistência a famílias
vulneráveis que ocupavam ruas do centro da cidade, em um espaço que ficou conhecido
como Doca das Frutas. Alvo de preocupação da administração pública, as pessoas da
Doca foram forçadas a deixar suas “malocas”5, sendo transportadas de caminhão para
uma antiga pedreira, no alto de um morro, na zona leste. Com a continuidade do
trabalho da irmã Nely, o local passou a se chamar Maria da Conceição, em homenagem
à santa católica e, como narrado por Paulinho, para dar um novo significado à Maria
Degolada e seus milagres.
A história de Maria Degolada tem versões conflitantes. A primeira versão conta
que foi degolada por seu namorado durante uma tarde de piquenique em uma pedreira
abandonada, localizada sobre um dos altos morros da cidade. Ele era policial militar e
ela prostituta. A segunda versão inverte a história da moça, conta que era “de família” e
subia o morro todos os dias para levar marmitas para seu pai, que era pedreiro. Um
policial militar à paisana, perseguia a menina todos os dias com a intenção de pedi-la
em namoro. Com suas sequentes negações, certa tarde ele agarrou-a à força, estuprou e
degolou. A identidade da moça confirmou que seu nome era Maria Francelina Trenes,
nascida na Alemanha, e o assassino foi descrito como “mestiço” e analfabeto, chamado
Bruno Soares Bicudo. Após sua morte, em 1899, Maria tornou-se reconhecida por
milagres realizados àqueles que lhe faziam promessas, principalmente no que dizia
respeito a pedidos de proteção contra a polícia. Além disso, não atende a preces de
policiais. Por isso, construíram uma capela na cena do crime, a qual ficou reconhecida
como patrimônio da comunidade em 2012 e passa, atualmente, por um processo de
tombamento como patrimônio histórico-cultural do município de Porto Alegre.
5
O processo de crescimento de periferias de Porto Alegre não foi o mesmo que aconteceu em outras
metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo. As casas foram nomeadas como malocas, pela semelhança
com alojamentos indígenas, onde residem diversas famílias no mesmo espaço. Assim, o que ficou
conhecido como “favela” em outros lugares, foi chamado de “malocas” em Porto Alegre (Furini, 2022).
140
Sua história foi central para livros de literatura e história, peças de teatro, teses e
dissertações acadêmicas no Brasil. É considerada parte do folclore popular da cidade de
Porto Alegre e identificada como uma “santa assombrada” que assusta crianças nos
banheiros das escolas. Além disso, ela é reconhecida por parte da comunidade como um
símbolo de resistência contra a exclusão social e a violência estatal, por ter sido
assassinada por um policial em uma zona periférica da cidade.
A partir desses vários cruzamentos e versões narrativas, o foco principal deste
trabalho é investigar como um mito de origem local que relaciona, cria e é criado por
pessoas, cidade e religião se conecta, em diferentes escalas, com imaginários nacionais
compostos por contraposições como certo e errado, pureza e pecado, branco e preto, céu
e inferno, homem e mulher, limpo e sujo, pureza e perigo. Com isso, surgem perguntas
que tentam ligar fios entre a vila Maria da Conceição nos dias de hoje e a morte de
Maria Degolada dos dias de ontem. Maria da Conceição, branca e virgem, gerou seu
filho salvador Jesus Cristo, branco; Maria Francelina, branca e virgem, foi morta por
um homem preto e irradia milagres de salvação e moradia para pessoas socialmente
vulneráveis que foram jogadas na antiga pedreira, transfigurando-se em Maria da
Conceição; Maria Degolada, prostituta, foi morta porque atentou com objetos contra seu
namorado, não atende a preces de policiais e assombra crianças que a chamam. Seria
possível relacionar essas diferentes versões da história em diferentes escalas temporais e
espaciais? A primeira Maria, mãe de Jesus, que permite a continuação da humanidade.
Maria Francelina, imigrante alemã, mãe da vila e de uma nação brasileira branca. Maria
Degolada, representação do perigo e afronta às leis constitucionais, mãe da desordem
social, do povo preto da Doca das Frutas, ameaça às crianças pretas, atualmente
transformada em um símbolo de resistência e descendência.
A cidade se separa
1899 é o ano em que ocorreu o assassinato, nos termos da época, de Maria
Francelina Trenes, alemã de nascimento, com 21 anos, no antigo Morro do Hospício em
Porto Alegre. Antes de tentar responder diretamente à problemática que guia este
trabalho, é necessário remontar à época na qual o feminicídio ocorreu. Neste ano, Porto
Alegre era o centro da economia do estado, contando com telegráficos, bondes, uma
usina hidrelétrica e rede de esgotos. Dez anos antes, em 1888, o regime de escravidão
foi abolido por meio da assinatura de Princesa Isabel. No mesmo ano e no mesmo mês,
saiu um artigo de Nina Rodrigues afirmando que os homens não nascem iguais, além de
141
defender duas jurisdições diferentes para brancos e pretos, dando largada às análises
raciais do país (Schwarcz, 1996). Nos finais do século, meados de 1890, a faculdade
baiana de medicina, liderada pelo mesmo Nina Rodrigues, passou a desenvolver teses
sobre medicina legal, apoiadas pelas pesquisas criminologistas italianas de Lombroso, a
fim de identificar traços físicos de criminosos. Como já sabido, os perfis bateram com
os chamados “mestiços”, descendentes de escravizados africanos e indígenas. A partir
dessas constatações, eis que surge a explicação para o atraso econômico e social
brasileiro: a miscigenação. A forma de reverter a situação todos já sabemos: a política
de branqueamento da população brasileira, visando um futuro mais branco por meio da
imigração europeia.
Maria Francelina Trenes foi morta na época em que esses ideais borbulhavam.
As capitais Porto Alegre e Rio de Janeiro tornaram-se destinos desejados dos imigrantes
alemães desde 1822, ano no qual o país tornou-se República. Chegavam pelo porto de
Guaíba, em Porto Alegre, migrando para o interior do estado do Rio Grande do Sul
desbravando suas terras prometidas. Maria Francelina foi fruto dessa imigração.
Já no final dos anos 1930 e início dos anos 1940, quando irmã Nely Capuzzo
pisou em Porto Alegre vinda de Minas Gerais em prol da realização de sua missão
religiosa, a cidade de Porto Alegre enfrentava a efervescência da urbanização. Mais de
300 mil habitantes ocupavam a capital e obras em torno do centro histórico pretendiam
uma cidade de cartão postal da modernização nacional, principalmente em suas portas
de entrada. As águas do Guaíba6 representavam as regiões do litoral brasileiro (como
lidas pelos intérpretes do Brasil) associadas à civilização, por onde chegavam
imigrantes europeus e dinheiro para rodar a economia. Enquanto seu interior, rodeado
de mata (ou sertão), significava a exploração e selvageria. Lugar de escravizados
fugidos (Bona, 2016) e indígenas selvagens.
Desde a “abolição da escravatura”, pretos ex-escravizados fixaram moradia na
Colônia Africana, onde hoje se encontram os bairros Bom Fim, Rio Branco, Farroupilha
e Cidade Baixa. Integraram-se sorrateiramente à cidade ascendendo economicamente
com ela (Silveira, 2014). Porém, não faziam parte da modernização brasileira. Foi em
1940, com o intenso processo de urbanização, que essas regiões começaram a ser
gentrificadas. Limpas e branqueadas. As pessoas pretas foram empurradas para o meio,
6
Guaíba é considerado, geograficamente, um lago que junta suas águas à Lagoa dos Patos, desaguando
no oceano Atlântico. Porém, a origem de seu nome é tupi-guarani e significa “rio que se alarga”.
Atualmente, é considerado um ato de resistência cultural chamá-lo de rio.
142
para a mata. A Colônia Africana, ponto central cobiçado da cidade, foi o foco das novas
políticas, mas não só. A “limpeza” iniciou no centro histórico, às margens do Guaíba,
local onde concentravam-se vendedores ambulantes, principalmente de comida. Essa foi
a principal ocupação trabalhista das mulheres ex escravizadas que permaneceram em
Porto Alegre, enquanto os homens trabalhavam no porto e cuidavam de embarcações
(Schantz, 2009).
Foi no porto que desembarcaram aqueles que ocupariam a Doca das Frutas.
Dessa vez, os imigrantes vinham do próprio estado para vender suas frutas na capital. A
maioria dos vendedores eram negros “libertos” que após a “abolição” procuraram por
pedaços de terra para cultivar (Schantz, 2009). Alguns, visualizando a oportunidade de
ascender financeiramente ao estabelecer um comércio, não voltavam para suas terras. É
importante ressaltar que a maioria das pessoas da Doca das Frutas foram descritas como
brancas, em ocorrências policiais, mas os dados da época, levantados por Furini (2022),
mostram que, perante a população porto alegrense, as pessoas negras estava
sobrerrepresentadas nas “vilas de malocas”. Assim surgiram as primeiras “malocas” da
cidade: termo cunhado pela mídia e autoridades políticas para descrever as habitações
indesejadas de pessoas pobres.
Algumas velhas, quase imprestáveis, tábuas, pedras, tijolos que foram
arrecadados aqui e ali, e mais um montão de bugigangas, tudo isso arranjado
à maneira da mais rudimentar arquitetura, é uma casa de maloqueiros. Visão
de uma moderna cidade – Pôrto Alegre, 1958. Ainda aqui se veem cenas
como esta da fotografia: a maloca e o alteroso edifício ao fundo, para
contrastar. Aí, a pobre negra nem de pé pode estar; tudo foi feito, apenas,
para abrigá-la do tempo quando a noite chega. De dia, é pedir esmolas ou
viver de expediente em biscates (PÔRTO ALEGRE..., 1958, p. 1, apud
Furini, 2022, p. 29).
A Doca das Frutas, ou Vila Surgida das Águas, surgiu assim, às beiras do
Guaíba, onde hoje encontramos a rua Voluntários da Pátria. O local era foco de
ininterruptas intervenções policiais por serem consideradas “classes perigosas” com
“desvios morais”, criminalidade, prostituição, sujeira e pobreza (Furini, 2022). Para ter
sucesso em seu processo de urbanização e modernização, a cidade deveria lidar com o
problema das “malocas”. Ênfase especial é dada às crianças nas reportagens
jornalísticas. Transmitiam um apelo às autoridades e civis para salvá-las da pobreza e
dos possíveis desvios morais nos quais seriam socializadas.
As crianças, segundo a reportagem, apareceriam nos barcos, entre porcos
cachorros e aves imundas e ali, naquele “chão” tudo era “miséria, imundície,
fome e doença”. Não saberiam, aquelas “coitadinhas” que estavam vivendo
uma semana destinada a elas: a semana da criança. Seus rostos “não
escondem a beleza e a aparente saúde, nem mesmo por detrás do barro que
marca o rostinho inocente”, estando elas, não obstante, satisfeitas com a
143
ao relato. Contou que ele e Maria estavam morando juntos há um ano e que, no dia e
horário do piquenique, ela se afastou do grupo com José da Olaria. Bruno foi atrás e
descobriu que estavam se beijando, ao que Maria grita “José é melhor do que você”. Já
embriagado, ela ataca-o com um pedaço de lenha e ele se protege com a faca,
cometendo o assassinato em defesa de sua honra.
O crime chocou a população porto alegrense, que ergueu uma capela no local do
assassinato. Desde sua construção, virou costume as noivas ofertarem à Maria Degolada
peças do enxoval de casamento e do próprio vestido, suplicando proteção e bom
casamento. Moças solteiras também faziam suas preces pedindo seu favor e interseção
para encontrar um bom parceiro. Maria Degolada começou a ficar famosa por seus
milagres (curas de enfermidades, crianças mudas que passaram a falar, etc.), juntando
moradores aos seus arredores. Até agora não encontrei fontes em concordância sobre os
primeiros que fixaram moradia ali, mas quando a população da Doca das Frutas foi
jogada no morro já haviam casas dispostas ao redor da figueira que abrigava a capela.
Ribeiro (1960, p. 3-4)7, em seu trabalho de conclusão de curso em Assistência Social,
escreve que o morro foi habitado pela primeira vez em 1946, por famílias transferidas
das vilas Caída do Céu e Forno do Lixo.
Morta por um policial militar, Maria Degolada não atende às preces de policiais.
Ela também protege contra os policiais. Transcrevendo Dawsey (2009, p. 142), seria
Maria Degolada a manifestação da memória involuntária da cidade? Seria Maria
Degolada a protetora branca dos pretos pobres violentados pelo Estado representado
pela polícia? Seria aquela que dá moradia quando o Estado nega? Seria a suja, mulher
depravada, marginal, prostituta, protetora da criminalidade, dos imorais? Seria ela
perigosa, a natureza das emoções descontroladas, selvagens?
7
A referência à Ribeiro (1960) foi retirada de banners dispostos nas paredes da ONG Pequena Casa da
Criança. Não consegui localizá-lo na internet, imagino que esteja disponível em versão impressa na
universidade pela qual a autora se formou, dada a antiguidade do trabalho.
145
apaixonou-se, tendo suas declarações negadas por Maria. Certo dia, no horário em que
ela caminhava até seu pai, o policial a esperou no meio do trajeto e estuprou-a. Com a
resistência feroz de Maria, degolou-a sob a figueira. Há ainda outra versão que
caracteriza a moça da mesma forma, mas, nessa, namorava com seu assassino e era
adepta a ter relações sexuais apenas após o casamento, como uma boa moça de família.
O policial, que não compartilhava com os ideais de sua namorada, tentou tomá-la à
força. Da mesma forma, Maria resistiu e ele a degolou, com a faca que carregava na
cintura, sob a figueira.
Bruno Soares Bicudo, assassino de Maria Francelina Trenes, é descrito, nessa
narrativa, como um “mestiço” analfabeto vindo de Uruguaiana em busca de trabalho há
quatro anos. Nas primeiras páginas dos jornais da época, a capa vinha estampada com
as palavras “mestiço mal-encarado”. Já sua vítima carregava cabelos loiros, pele branca
e olhos azuis.
Irmã Nely chegou no Morro do Hospício ajudando as pessoas a reconstruírem
suas casas. Com a ajuda de sua congregação, recebeu a doação de um micro-ônibus,
chamado Carro Capela, para atender às crianças e suas famílias. Ali ela ministrava
cursos de higiene pessoal, hábitos saudáveis e oferecia catequese para as crianças.
Eventualmente, um padre era convidado a rezar missas, instalando microfone e caixas
de som. Por meio do reconhecimento da comunidade, iniciou-se um mutirão para
construção da primeira Pequena Casa da Criança com a mão de obra da comunidade e
doações financeiras externas. Ao mesmo tempo, Maria Degolada tornava-se cada vez
mais famosa, no estado do Rio Grande do Sul, por ser uma “santa assombrada”:
conhecida por aparecer nos banheiros das escolas se chamada três vezes na frente do
espelho. Não tenho certeza se foi por influência do trabalho missionário da irmã Nely,
mas ela foi uma forte influenciadora para que Maria Degolada se tornasse Maria da
Conceição, mãe de Jesus Cristo, usando a assombração como argumento para a
mudança.
Conta-se que, ao chegar no morro, uma criança veio correndo em sua direção.
Irmã Nely entregou a ela uma medalha de Nossa Senhora da Conceição. A criança
retirou-se correndo em direção a sua família, a quem mostrou seu presente gritando que
a freira havia a presenteado com uma imagem de Maria Degolada. Entrando em contato
com as histórias do local, a irmã influenciou na transfiguração de Maria Degolada à
santa católica, sendo apoiada por pessoas que testemunharam sua aparição, vestida com
146
roupas brancas, pedindo para que não fosse chamada pelo nome “feio” de Maria
Degolada.
Seria a transfiguração de Maria Degolada em Maria da Conceição, mãe de Deus,
pelo catolicismo de irmã Nely, a purificação da prostituta, suja? A salvadora dos
“selvagens” pretos da periferia? A figura de Maria Mãe de Deus esteve presente no
imaginário nacional desde a chegada de Pedro Álvares Cabral, guiado por Maria. O
início da República foi marcado pela presença do feminino enquanto novo símbolo
nacional, com a derrubada do rei (Carvalho, 2017[1990]). Antes de proclamar a
independência da República, Dom Pedro I passou pela capela de Nossa Senhora
Aparecida e prometeu fazê-la padroeira do território brasileiro independente. Vale
destacar que essa capela foi erguida por trabalhadores aflitos à virgem Aparecida que os
socorreu em 1717. Princesa Isabel, antes de assinar a lei Áurea em 1888, ofertou à
virgem sua coroa, suplicando para que governasse o Brasil. Precedendo a Terceira
República (Carvalho, 2017[1990]), o feminino como mãe protetora da Nação foi
batizada com um nome: Marianne. Estatuetas e gravuras em sua homenagem
começaram a se espalhar pelo Brasil, principalmente na região sul, e o governo
começou a incentivar o culto à Virgem Maria. Em 1941, o Brasil foi consagrado ao
Imaculado Coração de Maria, sob as palavras: “Vede as ciladas que em toda parte se
armam aos bons costumes, contaminando todas as coisas com o mais desenfreado
sensualismo. Purificai, ó Virgem Imaculada, de tantas impurezas a Terra; ou ao menos,
conservai limpas as nossas famílias. Vede como se tenta convulsionar a sociedade e
lançá-la no torvelinho da rebelião contra toda a lei e autoridade”8.
Em 2019, sob a presidência de Bolsonaro, o Brasil foi novamente consagrado ao
Imaculado Coração de Maria, ritual realizado dentro do Palácio do Planalto. E, na vila
Maria da Conceição dos dias de hoje, a ONG católica, com sua capela à Maria da
Conceição, visa afastar as crianças dos “males sociais, como a delinquência, a
prostituição e a criminalidade”.
8
Disponível
em:
https://padrepauloricardo.org/episodios/75-anos-da-consagracao-do-brasil-ao-imaculado-coracao-de-mari
a?page=9. Acesso em: 10/04/2023.
147
Considerações finais
A escrita deste trabalho em formato de perguntas pretende menos responder do
que abrir caminhos. Maria Francelina Trenes, Maria Degolada e Maria da Conceição
relacionam não apenas mulheres e sociedade, mas relações e representações. A história
de Maria Francelina Trenes representa e é representada pelas relações entre pessoas,
cidade, história e tempo. A minha tentativa, neste texto, foi representar minhas
representações das representações. Há inúmeras leituras e narrativas sobre o feminicídio
que ocorreu em 1899 e meu intuito não foi encontrar a verdadeira ou a que mais se
aproxima de provas concretas. Detive-me a analisar como elas representam e são
149
Referências
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2017 (2016).
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Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017[1990].
DAWSEY, John. História noturna de Nossa Senhora do Risca-Faca. Estudos
Feministas, 17(1), 2009.
FURINI, V. R. Trabalho, conflitos e solidariedades: ordem e desordem na Doca das
Frutas (Porto Alegre/RS – 1940-1953). Dissertação (Mestrado em História) -
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2022.
GONZALEZ, L. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Revista Ciências Sociais
Hoje, Brasília, Anpocs, p. 223-244, 1984.
MCCLINTOCK, A. Cap.1: A situação da terra: genealogias do imperialismo e Cap.6: A
família branca do homem: o discurso colonial e a reinvenção do patriarcado. In:
MCCLINTOCK, A. Couro Imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial.
Campinas: Unicamp, 2010[1995].
150
Manuela Lowenthal1
Resumo:
O artigo tem como objetivo analisar ações públicas de atores religiosos no que diz respeito à participação
civil. Para delimitação do tema, foi definido analisar a entrada de lideranças evangélicas aos Conselhos
Tutelares, buscando compreender se há algum tipo de estímulo e formação por parte da igreja de forma a
promover um incentivo ao interesse pela ação pública A pesquisa propõe compreender de que forma é
feita esta articulação, quais são os meios mobilizados, atores envolvidos e as narrativas acionadas.
Introdução
Nas últimas eleições de Conselheiro Tutelar na cidade de São Paulo, 53% das/os
conselheiras/os que tomaram posse em 2020 foram pessoas ligadas a igrejas evangélicas
de tradição pentecostal e neopentecostal, e, muitas delas ligadas à IgrejaUniversal do
Reino de Deus (IURD). A atuação da Igreja Universal (IURD) destaca-se nesse
universo, e é sem dúvida uma importante articuladora e incentivadora de candidaturas
de seus membros e lideranças aos Conselhos Tutelares. A partir disto, a presente
pesquisa busca refletir sobre como algumas igrejas evangélicas passam a funcionar
como um espaço de construção de sujeitos políticos e sociais, assim como uma
ferramenta de inserção de atores evangélicos no espaço público, buscando pensar a
produção desses sujeitos políticos a partir da disputa pelo Estado.
1
Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal Paulista (UNIFESP). Orientadora: Lilian
Maria Sales Pinto. Pesquisa financiada pela FAPESP-Processo nº2021/ 12381-5. E-mail:
manuela.lowenthal@unifesp.br
152
através de estratégias variadas, tema muito abordado pela literatura da área (NOVAIS,
2001; ORO, 2003; BOHN, 2004; SOUZA, 2009; DUARTE, 2013; VITAL DA CUNHA
E LOPES, 2013; MACHADO, 2015).
Em 1998 foram eleitos 49 deputados federais, e esse número só não foi maior,
pois alguns parlamentares não foram reeleitos. Porém, foi a partir da legislatura de 2002
que esse bloco se expande de maneira significativa fortalecendo a presença evangélica
também no âmbito do legislativo federal. Nessa legislatura pode-se notar um aumento
do número de candidatos lançados, e o número de eleitos também.
Segundo estudos, a curva do número de Parlamentares evangélicos cresce de
forma exponencial ao longo dos anos, com exceção de 2006, que foi um ano na qual
houve uma queda expressiva do número de cadeiras ocupadas por candidatos
evangélicos devido ao escândalo político do esquema do mensalão, ocorrido no ano
anterior, em 2005. Este escândalo abalou profundamente as estruturas do bloco, uma
vez que muitos nomes de deputados evangélicos entraram como envolvidos no
esquema, alguns deles como Bispo Carlos Rodrigues (PLRJ) e Wanderval Santos
(PL-SP), ambos da Igreja Universal. Além disso, houve também a Operação
Sanguessuga, operação que tinha como intuito acabar com o esquema de fraudes em
licitações na área da saúde, e expôs 72 deputados federais, na qual 28 eram evangélicos.
Dessa forma, o ano de 2006 pode ser considerado como marcado por uma crise eleitoral
evangélica. Apenas 30 deputados federais eram evangélicos.
Porém, em 2010, o bloco volta a crescer, aumentando o número de deputados
eleitos em cerca de 50% em comparação a 2007. Segundo Mariano e Geraldi (2019), as
eleições de 2010 foram fortemente influenciadas por propostas recheadas de debates e
temas morais, como o aborto e a homofobia, e que tinham, como pano de fundo, a
"defesa da família". Dessa forma, reativou-se um movimento político-ideológico de
cunho moral que se fortaleceu ainda mais após o lançamento dos programas de combate
à homofobia e do PLC 122/2006, que visava criminalizá-la, e principalmente do
PNDH-3, que propunha a descriminalização do aborto. Neste último documento, eram
abordadas algumas pautas consideradas polêmicas e que não haviam sido discutidas até
então nos documentos anteriores, dentre elas estão: a união estável entre pessoas do
mesmo sexo, a descriminalização do aborto, e o direito de adoção por casais
homoafetivos. Na concepção desse bloco evangélico, todas essas pautas representavam
uma "ameaça à família cristã", e por isso organizam uma potente reação contrária a
essas pautas.
154
2
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45829796. Acesso em: 16/04/2021.
156
O que nos importa aqui é perceber o quanto o crescimento e o vigor com que a
FPE vêm atuando na esfera política está diretamente atrelada ao avanço das pautas
progressistas relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos e a questões de gênero,
percebidas genericamente por setores evangélicos como uma "ameaça a família
tradicional". Diversas pesquisas da área das ciências sociais (MACHADO, 2017;
MACHADO E BURITY, 2014; SÍVORI E FACCHINI , 2017) já demonstraram que
esse cenário foi se constituindo justamente como uma reação e resistência às mudanças
socioculturais, legais e políticas que convergem para o reconhecimento dos direitos das
mulheres e das pessoas LGBTI no Brasil, principalmente a partir da década de 1990,
quando o país passa por um cenário de criação de políticas públicas voltadas para a
priorização da diversidade e para a inclusão de minorias historicamente marginalizadas.
Nesse contexto, o cenário nacional se torna propício à ampliação dos direitos e à
instituição de um pluralismo cada vez mais difuso em concordância com as novas
diretrizes estabelecidas internacionalmente voltadas aos direitos humanos.
Por outro lado, há também a grande adesão por parte da população à estas pautas
conservadoras, representadas e defendidas por lideranças religiosas no Parlamento. Este
fenômeno ficou muito expressivo na última eleição, na qual Bolsonaro foi eleito diante
de grande parcela da população que se mostrava identificada com tal discurso moral-
cristão.
Segundo o sociólogo Pierucci, essas demandas advém de parte da população que
confunde a esfera política com a moralidade privada, e portanto, atribuem às
autoridades políticas o poder e até mesmo o dever de instaurar a ordem moral cristã na
sociedade como um todo (PIERUCCI, 1996a, pp. 165-166). Este debate traz à tona a
problemática da secularidade. A antropóloga Paula Monteiro contribui com a
importante perspectiva metodológica que destaca o papel da religião na formação do
espaço público, assumido como um espaço que se constitui discursivamente em
contraposição a outras esferas (MONTERO, 2012). É importante ressaltar, portanto, que
não há nenhum espaço na sociedade em que a religião não esteja presente, considerando
que a igreja católica é parte constituinte da construção do Estado brasileiro e do espaço
público. De acordo com Paula Montero (2018), a Igreja se beneficiou dessa relação para
desenvolver na sociedade civil, uma específica proximidade entre catolicismo e
patriotismo, construindo assim, uma determinada identidade nacional.
Portanto, é possível afirmar que presença da religião no espaço público não é
algo inédito, porém, o fenômeno da inserção de lideranças evangélicas na política
institucional
157
ainda é algo relativamente recente. O pesquisador Ronaldo Almeida (2019) coloca que
lideranças e parlamentares evangélicos possuem um conservadorismo ativo e
propositivo, isso significa que buscam mais do que conter os avanços das pautas
progressistas, mas disputam efetivar a moralidade evangélica como universal e pública,
reivindicando que seus valores morais sejam inscritos na ordem legal do país.
Destacamos que muitos desses valores estão relacionados à moralidade e a defesa de
uma configuração familiar específica, classificada por eles genericamente de "família"
ou ainda de "família cristã".
Segundo o sociólogo Juan Marco Vagionne (2005), a defesa da família estaria na
base da organização política dos atores religiosos, inclusive evangélicos. A expansão
dos direitos das minorias sexuais e dos direitos relacionados à reprodução são
percebidos como ameaça que a estrutura familiar tradicional estaria sofrendo na
atualidade. Os movimentos de agentes religiosos em sua mobilização na esfera política,
buscam influenciar processos eleitorais e também processos judiciais na oposição às
pautas defendidas pelos movimentos LGBT e feministas.
Neste sentido, a eleição do presidente Bolsonaro não é um fato isolado, está
relacionado diretamente a todo este processo descrito aqui. A movimentação reativa ao
avanços de pautas vinculadas aos direitos sexuais e reprodutivos está em curso desde o
início da entrada dos evangélicos na arena pública, porém, a complexidade de sua
articulação e o vigor com que esta reação ocorre, foi se reformulando ao longo do
tempo, acompanhando também o avanço das demandas suscitadas por grupos
minoritários e movimentos sociais vinculados à grupos feministas e LGBTQI.
As transformação na dinâmica política brasileira descrita acima são o pano de
fundo sobre o qual atores religiosos ligados à vertentes evangélicas buscam redefinir o
seu lugar na sociedade brasileira a fim de influir sobre a “religião civil” do país,
reconfigurando e gerindo novas formas de atuação cívica, como é o caso da entrada de
líderes evangélicos em Conselhos Tutelares.
O Conselho Tutelar passa a ser um novo campo de disputa em construção, que
não se restringe mais ao campo da política institucional, e a disputa de cargos eletivos
no poder legislativo e executivo. Esta mudança da política institucional para a atuação
na política de base, naquela que interfere diretamente nas famílias, pode representar
uma estratégia de "defesa da família", de uma configuração familiar específica, moldada
por valores por parte dos evangélicos, assim como pode vir a assumir função de uma
espécie de “escola” para evangélicos que se interessam pela atuação política, uma vez
que proporciona uma experiência primeira com o fazer político e o debate público.
158
adolescentes entre doze a dezoito anos incompletos. Além desses casos, o Conselho
Tutelar tem também o poder de intervir em casos em que envolvam ameaça e violação
de direitos, entre as condições consideradas de risco estão a vulnerabilidade
habitacional, o abandono do ensino fundamental, a inadaptação familiar ecomunitária, a
prostituição, a utilização e a dependência de drogas ilícitas, a execuçãode atos
infracionais, a omissão ou abandono dos responsáveis (CUNHA, 2013).
É nesse universo de atuação que os atores evangélicos têm buscado operar,
através do lançamento de candidaturas de seus membros nas eleições para os Conselhos
Tutelares. A antropóloga Jaqueline Teixeira vem realizando levantamentos sobre essa
nova área de atuação de segmentos evangélicos. Segundo a autora:
Fato semelhante foi observado na cidade de São Paulo. Dados do Jornal El País
apontam que 53% das/os conselheiras/os que tomaram posse em 2020 são pessoas
ligadas a igrejas evangélicas de tradição pentecostal e neopentecostal, e, muitas delas
ligadas à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD)3.
A atuação da Igreja Universal (IURD), destaca-se nesse universo, e é sem
dúvida uma importante articuladora e incentivadora de candidaturas de seus membros e
lideranças aos Conselhos Tutelares. Em 2019, o jornal Folha Universal, principal mídia
impressa e portal de notícias da igreja, dedicou quatro postagens para falar sobre a
importância das candidaturas de novas/os conselheiros tutelares. Para além das
publicações em seu jornal institucional de maior circulação, houveram postagens nos
blogs de lideranças centrais, tais como o do Bispo Edir Macedo,e de sua filha Cristiane
Cardoso.
Dessa maneira, os dados preliminares já apontam para esse interesse de atores
evangélicos, sobretudo ligados à IURD, nos Conselhos Tutelares de algumas capitais
3
Ver em < https://brasil.elpais.com/brasil/2020-12-15/igrejas-evangelicas-neopentecostais-dominam-
conselhos-tutelares-em-sao-paulo-e-no-rio.html?rel=buscador_noticias > Acesso em 10/04/2022.
160
4
Disponível em
<http://ens.ceag.unb.br/sinase/ens2/index.php?option=com_blankcomponent&view=default&Itemid=10>
Acesso em 06/02/2023.
161
5
Ver
em
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/183226/INFANCIA_E_PARLAMENTO.pdf?seque
nce=3&isAllowed=y Acesso em 04/05/2021.
162
36
Ver em https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/maio/FAMILIAPROTETORA.pdf
Acesso em 10/04/2021.
163
Resultados prévios
Uma segunda discussão que pode ser levantada a partir do que foi coletado até
aqui é o teor das campanhas dos Conselheiros Tutelares da última eleição. Alguns
elementos se sobressaíram, como a questão da identidade religiosa: foi observado que a
identidade religiosa se torna um instrumento de verificação da confiança utilizado para
construir a ideia de que o candidato evangélico se preocupa mais com a família do que
os outros. Nesse sentido, podemos também apontar a categoria família como sendo a
pauta mais mobilizada destas campanhas, e principalmente ênfase na ideia de que a
família é portadora de direitos, dessa forma a “proteção da criança” é acionada para
justificar a proteção da família. Portanto, a mobilização da chamada “ideologia de
gênero” é trazida à discussão para a elaboração da narrativa sobre a ameaça à família.
Referências
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NOVAES, Regina Reynes. A divina política: notas sobre as relações delicadas entre
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VITAL DA CUNHA, Christina e LOPES, Paulo Victor Leite. Religião e Política: uma
análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de
LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2013.
166
1
Doutoranda em Antropologia (PPGSA-UFPA). Mestra em Antropologia (UFPA) e Graduada em
Ciências Sociais (UFPA). É pesquisadora associada da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais
(ABEC). Integra o Grupo de Pesquisa Antropologia das Paisagens: memórias e imaginários na Amazônia
- CNPq. E-mail: elisagoncalves00@gmail.com.
167
Introdução
Após investigar e tecer redes (BOTT, 1975) com alguns dos moradores próximos
dessas cruzes, pude então compreender o movimento que se faz e em como estes objetos
e construções são feitos e ritualizados (GENNEP, 2011). As casas das estradas,
construídas de maneiras espaçadas no decorrer das rodovias, estimulam diversas
dimensões do medo (GILBERT DURAND, 1989:66) em determinadas curvas da estrada
que são consideradas perigosas, e por isso, os acidentes costumam acontecer em
determinados lugares e não em outros.
Para melhor situar os leitores, explico que os cenotáfios são formas de homenagem
às pessoas cujo restos mortais não se tem localização, e são de suma importância para o
trabalho do luto e ritual da morte. O simbolismo fortemente cultuado através dos
cenotáfios espalhados no mundo inteiro permitem que a peregrinação, turismo e devoção
por pessoas importantes e conhecidas sejam efetuadas. Como muitas outras palavras, o
cenotáfio provém do grego. Está formado pela raiz kenos, que significa vazio, e por
taphos, que significa túmulo. Portanto, um cenotáfio é um túmulo em que não há uma
pessoa falecida.
exemplo, local onde estão os restos mortais de 13 dos 24 inconfidentes sentenciados (os
que não estão ali, ou são porque não tiveram seus túmulos localizados ou porque não se
sabe a identificação). Há, ainda, uma lápide vazia, representando os que ali não estão.
Construções metodológicas
Assim, de acordo com Eckert e Rocha (2003), a etnografia "na" rua que amarra as
perspectivas desse recorte de pesquisa consiste na observação sistemática nas ruas e
avenidas, bem como dos cenotáfios, e na descrição etnográfica dos cenários, dos
personagens que conformam a rotina da vivência com essas representações e a
constituição das relações ali presentes. Ainda na perspectiva antropológica urbana,
também me ancoro na Etnografia da Duração, que se propõe pensar através das narrativas
dos grupos sociais, a memória dos lugares de pertença e dos lugares de vivência
(ECKERT; ROCHA, 2010).
Com construções feitas utilizando diferentes tipos de materiais, com espaços para
ritualizar com velas e flores, correspondendo a uma dimensão simbólica dos campos
santos às margens das vias, os cenotáfios se espalham pelas vias, e tal qual nos cemitérios,
especialmente os urbanos, tais cruzes reaparecem ao sujeito nas datas simbólico-coletivas
(RODRIGUES; SILVEIRA, 2022), compondo parte do ritual mortuário nas datas
destinados aos ritos cemiteriais, como ocorre em Finados.
Em conversas com moradores das margens das estradas onde registrei parte dos
cenotáfios, percebi o distanciamento e a aproximação, numa mesma medida, em relação
às cruzes. Quando pensamos no deslocamento de um objeto mórbido, fúnebre, e o
retiramos do lugar que lhe adequado convencionalmente - o cemitério -, para um espaço
de vida conduz uma expectativa, ou melhor, uma quebra de expectativa quanto ao uso
desses objetos na consagração do que se entende por rito funerário (PADOVESE, 2002),
uma vez que, quando estão fora do espaço cemiterial, não cumprem seu papel, e mais que
isso, levam consigo a morbidez objetal que os acompanham dentro do cemitério.
170
Notei que há uma semelhança no culto às almas que morreram nas estradas, mas
que ocorrem de formas diferentes aos cultos feitos nos campos-santos. As consagrações
de Santos Milagreiros ocorrem e constituem parte do imaginário (DURAND, 1989) local,
especialmente diante da tragicidade da morte, sendo estas almas procuradas para pedidos
de graças, e assim que alcançadas, a manutenção e construção de uma nova cruz ou
túmulo é feita, como sinal de agradecimento diante da graça alcançada.
Na imagem abaixo, vê-se que houve um pedido, seu cumprimento e uma nova
construção do cenotáfio como agradecimento às graças alcançadas. Esse movimento é
comum em tais cruzes, construindo o que chamo de milagreiros rotativos, uma vez que,
171
Dona Maria, uma das moradoras de um dos cenotáfios que registrei, diz que há
uma enorme comoção quando alguma cruz é arrancada da estrada pela prefeitura, bem
como mobilização para construção ou mesmo a recolocação do cenotáfio retirado:
A gente fica muito chateado quando eles vêm aqui limpar e arranca a cruz. Não
tem necessidade, sabe? E a gente vai lá em Finados, a gente conhece os
parentes de quem morreu ali, sabe quem são, e a gente também vê gente
cultuando. Aqui não tem cemitério por perto, às vezes é lá que a gente acende
alguma vela e em Finados tem sempre algumas pessoas deixando vela, flores,
é uma forma de culto pra quem tá longe do corpo ou que está passando.
172
Diante das emoções de Dona Maria, diálogo com Rezende e Coelho (2010:62)
quando dissertam sobre como “o indivíduo, ao falar do que sente, comunica-se consigo
mesmo através dos outros, compreendendo, por meio desta expressão, aquilo que sente.”
A fé rogada pela prece, um dos rituais feitos para pedir uma graça ou agradecer por ter
alcançado uma, é também um movimento feito coletivamente pelos devotos às almas das
estradas, em que os moradores do local e os familiares das vítimas expressam emoções
individuais e coletivas, e conforme Mauss (1979), pertence tanto à crença quanto ao culto:
Mais do que qualquer outro sistema de fatos, ela participa ao mesmo tempo da
natureza do rito e da natureza da crença. É um rito, pois ela é uma atitude
tomada, um ato realizado diante das coisas sagradas. Ela se dirige à divindade
e à influência; ela consiste em movimentos materiais dos quais se esperam
resultados. Mas, ao mesmo tempo, toda prece é sempre, em algum grau, um
credo. Mesmo onde o uso a esvaziou de sentido, ela ainda exprime ao menos
um mínimo de ideias e de sentimentos religiosos. Na prece o crente age e
pensa. E a ação e pensamento estão estreitamente unidos, brotam em um
mesmo momento religioso, num único e mesmo tempo. Esta convergência é
aliás bem natural. A prece é uma palavra. Ora, a linguagem é um movimento
que tem um objetivo e um efeito; é sempre no fundo um instrumento de ação.
Mas, age exprimindo ideias, sentimentos que as palavras traduzem para o
exterior e substantificam. Falar é ao mesmo tempo agir e pensar: eis porque a
prece pertence ao mesmo tempo à crença e ao culto. (MAUSS, 1979. p. 103)
Tal prece se materializa nas novas construções feitas após as graças, nas flores e
coroas deixadas para estas almas nos locais de sua morte. Essa devoção, feita tanto por
173
familiares quanto por transeuntes das estradas representam a extensão dos espaços da
morte como os cemitérios, e concretizam nas estradas densas representações afetivas de
um ente querido, movimento para além do que se entende pelas cruzes, que normalmente
são sinônimos de um “alerta” para motoristas desatentos informando que ali já morreu
alguém.
As memórias que constituem estes espaços (SILVEIRA, 2004) nas vias fazem
parte do ato de rememorar, um constante exercício de trabalho realizado pelo de sujeito
que recorda (HALBWACHS, 2006; RICOEUR, 2007). Dentro destas memórias, há
desdobramentos da fé, do medo, do culto e de outras configurações coletivas nas
proximidades das cruzes.
Olha, tem um pessoal aqui da comunidade que não é muito gente boa, minha
filha. ali na frente morre gente direto de acidente, pode ver que tem outros
buracos de cruzes, mas a prefeitura sempre arranca quando limpa. Eu tenho é
medo de passar ali na frente, sempre que passo é devagar, atento, para não
acontecer nada comigo. E a noite? Hum. A gente escuta aqui alguns pedidos
de socorro perto desses lugares, mas ninguém vai lá ver o que é, está tudo
escuro.
Dona Carla relatou como funcionam tais datas na ida até o cemitério:
175
Considerações finais
2
Iluminação dos Mortos é um ritual onde os túmulos são enfeitados com grinaldas de flores, velas
são acesas e preces são realizadas pelos praticantes, que por vezes usam camisas personalizadas
homenageando o morto familiar para honrar seus antepassados (SALES, 2022).
176
Referências Bibliográficas:
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http://www.uff.br/antropolitica/revistasantropoliticas/revista_antropolitica_25.pdf.
177
RESUMO
O presente artigo apresenta um recorte analítico oriundo de uma dissertação de mestrado. Trata-se de uma
investigação etnográfica em um contexto urbano, caracterizado e alterado pela presença de uma arena multiuso
(ou estádio de futebol), além de outras infraestruturas. De modo geral, na pesquisa de mestrado, privilegiei os
efeitos da construção de um conjunto de empreendimentos para famílias de comerciantes e suas casas, além da
formação de práticas econômicas diversas e modos específicos de ganhar a vida. Empiricamente, analiso
dinâmicas e aspectos que singularizam o bairro Farrapos, onde se localiza a chamada Arena Porto-Alegrense
(estádio do Grêmio Foot-Ball Porto-Alegrense), na zona norte de Porto Alegre/RS. O foco nos entornos, espaços
urbanos adjacentes à Arena do Grêmio, constitui-se como recorte empírico desta investigação, por concentrar
um conjunto de comércios, os quais reportam às relações diárias de sustento de moradores e comerciantes. O
estudo buscou mapear transformações econômicas e a mutabilidade das casas, geridas por famílias e afins,
edificações que promovem ganhos econômicos com os eventos e são dinamizadas por fluxos humanos variados,
simultaneamente. Como tema complementar, retratei, também, mudanças, conflitos e disputas nos espaços da
cidade, a partir do território analisado. O que aconteceu, afinal, com localidades do bairro Farrapos após
mudanças urbanas nas últimas décadas? Como o espaço urbano passou a ser objeto de especulação imobiliária, a
partir de um conjunto de empreendimentos? Sendo assim, a este artigo, pretendo analisar algumas
transformações geradas no bairro e nas casas, após a concretização da Arena do Grêmio como
megaempreendimento, reconstituindo historicidades e memórias em torno das mudanças urbanas ocorridas,
desde o ponto de vista de moradores do bairro e mediante o emprego de fontes bibliográficas, documentais e
etnográficas.
Introdução
1
Doutorando no programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ. Pesquisa
financiada pela CAPES e pelo programa FAPERJ Mestrado nota 10, sob a orientação de Federico Neiburg.
179
***
2
Segundo o site do equipamento, trata-se do maior e mais moderno complexo multiuso da América Latina.
Disponível em: < https://arenapoa.com.br/sobre/>.
181
planejada dessas materialidades, os quais se conectam com as formas sociais pelas quais o
espaço urbano é manejado pelas populações que nele fazem a vida3.
Após a concretização do novo empreendimento no bairro Farrapos, para quem “é de
fora da vila”, como é meu caso, a aproximação territorial passou a ser, também, mediada por
definições temporais associadas aos eventos, realizados na nova Arena. É na prática do
pertencimento clubístico e em manifestações torcedoras variadas que, em geral, os “de fora”
adentram no bairro, conhecem e se apropriam de um conjunto de atividades e práticas que
dão sentidos cognitivos e emocionais ao torcer. Esses sentidos, também, são mediados pelas
trocas econômicas e pelo consumo. A produção de uma territorialidade clubística é efeito de
um processo de modificação urbana, amparada na financeirização do solo urbano pela
iniciativa privada, a partir da tolerância e permissividade de determinados atores públicos
(NORMANN, 2020).
Com efeito, é possível notar como aquele recorte espacial possibilita zonas de
sociabilidade singulares, dentro do contexto mais amplo de convívio na capital. Em outras
palavras, o fato de torcer pelo Grêmio aproxima milhares de pessoas não apenas a um projeto
moderno arquitetônico, que se desdobrou em arena multiuso, mas, também, a um território
marcado por fluxos humanos e econômicos variados, em dias com e sem eventos no estádio -
momentos rotinizados nas dinâmicas de vida de quem é residente no bairro.
Por outro lado, neste texto, valorizo historicidades narradas por determinados
interlocutores de pesquisa, fontes documentais e em trabalhos acadêmicos, articulados a um
conjunto de achados etnográficos. Convém mencionar, de partida, que o bairro Farrapos foi
sendo formado, ao longo das últimas décadas, como resultado de conjuntos habitacionais
populares e de ocupações de áreas públicas por diferentes atores. Alterado, porém, nos
últimos anos, pela formação do chamado “Complexo Arena do Grêmio/ Bairro Liberdade”,
um conjunto de novas infraestruturas.
Como é possível apreender, o chamado “Complexo Multiuso Arena do
Grêmio/Bairro Liberdade” (NORMANN, 2020) esteve associado a formatação de um bairro
planejado atrelado à revitalização prometida pelo estádio. Convém apontar,
complementarmente, que até o ano de 2016, a Arena do Grêmio situou-se no bairro Humaitá.
As palavras críticas de Jardel, outro interlocutor e antiga liderança comunitária da região,
merecem ser destacadas e são reveladoras dos efeitos de mudanças nos atos de nomeação do
3
Em tese sobre “mobilidades, dinheiros e infraestruturas”, Campos (2020), por exemplo, demonstrou como
existem práticas cotidianas compartilhadas por passageiros do sistema de transporte do Rio de Janeiro/RJ que
não se coadunam com as ideias de planejamento e previsibilidade da locomoção, concebidas por atores estatais e
privados.
182
espaço urbano: “Quiseram elitizar mais o bairro, mudaram o nome pra Humaitá. Tiraram o
nome da Vila, ficou bairro Humaitá. Imagina construírem apartamento na vila Farrapos?
Humaitá é diferente”. Contudo, por mudanças no Plano Diretor de Porto Alegre, o estádio
passou a fazer parte do “novo” bairro Farrapos, antes Vila Farrapos, saindo do domínio do
bairro vizinho, o Humaitá (MARTINS, 2019).
4
Em sua dissertação, Tássia Normann explica que o processo de financeirização da economia imobiliária
(a produção de espaços em ativos financeiros) está relacionado com mudanças nos padrões de consumo de
imóveis, para uso e como modo de investimento. Essas mudanças foram ocasionadas, também, pelos aumentos
da oferta de crédito e da contratação de financiamentos habitacionais, a partir de um conjunto de atores e
engrenagens que convertem bens imobiliários em ativos financeiros. Esse processo está representado pela
abertura de capital das grandes construtoras e incorporadoras, emissão de papéis financeiros e cotas de fundos de
investimentos imobiliários. Em outros termos, a propriedade urbana deixa de ser um imóvel para fins variados e
passa a ser incorporada como produto no sistema financeiro, tornandose líquida e móvel nos fluxos financeiros.
Com efeito, o mercado da construção civil e o setor imobiliário passam a influenciar cada vez mais as mudanças
dos espaços urbanos através de sua mercantilização e financeirização (NORMANN, 2020, p. 85).
184
BR-4486. Analiticamente, Akhil Gupta chamou a atenção para a maneira como esses
investimentos em infraestruturas envolvem planejamento e cálculos de futuro, ao mesmo
tempo em que tentam consolidar o futuro prometido, imaginado e vendido (GUPTA, 2018, p.
63).
Imagem 1: A Arena do Grêmio. No lado esquerdo da foto, casas e comércios da Vila Farrapos. Ao lado direito,
torres/edifícios do Condomínio Liberdade. Na parte superior, elevados que dão acesso à BR-448, que desponta
ao fundo da tela, cortando o município de Canoas. Foto: Luciano Lanes/ Arquivo PMPA7.
Ademais, para conectar a avenida Padre Leopoldo Brentano com a BR-448, novos
viadutos foram edificados, no interstício do estádio com as casas do bairro. Nas observações
realizadas, foi possível notar como a inauguração da BR-448, que liga a capital com a região
6
O Complexo Multiuso da Arena do Grêmio/Bairro Liberdade, segundo Normann (2020, p. 108) previa a
criação de outros empreendimentos que não foram viabilizados. O projeto inicial contemplava a construção de
um hotel, centro comercial, centro de eventos e shopping center. A dissertação referida realiza a análise da
distribuição espacial dos empreendimentos, incluindo os que não foram concretizados até 2020. Salienta como
os espaços ainda podem ser modificados. Assim, a área residencial assentada no bairro Liberdade seria
complementada com um complexo empresarial e comercial. Na prática, a área desse último tornou-se
estacionamento. A consolidação do Complexo, como um todo, passaria por ideais de autossuficiência e
autonomia em relação às suas adjacências, abdicando das interações com o contexto social diversificado do
bairro Farrapos, conforme a autora.
7
Matéria “Finalizado acordo para retomada das obras nos entornos da Arena do Grêmio“, publicada em 09 de
abril de 2021, a qual refere às contrapartidas de infraestrutura, à comunidade vizinha, que devem ser feitas após
a construção do estádio - obras ainda inacabadas. Reportagem do portal G1:
<https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2021/04/09/finalizado-acordo-para-retomada-dasobras-do-ent
orno-da-arena-do-gremio-em-porto-alegre.ghtml>.
187
metropolitana, ainda em 2013, foi impactante aos moradores, sobretudo por aumentar o
trânsito na região, o barulho e a emissão de poeiras e outros poluentes (poluição sonora e
ambiental excessiva)8. Nildo foi objetivo, nesse aspecto: “O que mudou o trânsito aqui foi a
448, esse pó que vem diariamente pra cá e o barulho. Tem que limpar sempre”. Em suas
palavras, afirmou que existem vizinhos que costumam sair do bairro em dias de jogo, já que o
movimento de torcedores e o trânsito também aumentam, significativamente.
O barulho e o trânsito de caminhões, carros e ônibus alteram os sons e as relações
naquele território. Sobretudo, caminhões com cargas enormes, que passam e seguem em
direção a um viaduto, que corta a BR-290 (Freeway) e dá acesso à BR448 (a “rodovia do
Parque”), inaugurada no final de 2013. Na época, a obra era vista como uma das principais
estradas de ligação de Porto Alegre com sua região metropolitana e interior. Mas,
notadamente, a perturbação sonora que advém da rodovia, acessada através do bairro
Farrapos, modifica quaisquer interações naquela localidade. Esse impacto ambiental
contrastava com os fluxos e outros tipos de frequências sonoras percebidos em dia de jogos
do Grêmio, já que Avenida Padre Leopoldo Brentano era fechada e o trânsito de caminhões e
ônibus, em direção à BR448, desviado para outras estradas da cidade. Em dia de jogo, o
barulho também é intenso, mas com vibrações distintas: carros de sons, bandas, torcedores
falando e gritando, a tropa da cavalaria militar passando... porém, seguem altos e frequentes.
Antes da concepção das infraestruturas citadas, o local apresentava outra
configuração socioespacial – como apontam os interlocutores e documentam trabalhos
acadêmicos sobre os bairros. A paisagem era composta por equipamentos atrelados à Escola
Técnica Santo Inácio, importante referência para aprimorar a urbanização dos bairros
Humaitá e Farrapos (MARTINS, 2010). Sendo instalada na área em 1972, ofertando cursos
técnicos e o antigo 2° grau, a escola foi considerada uma das primeiras edificações do bairro,
mesmo sendo feita em frente a uma estrada de chão (atual avenida Padre Leopoldo Brentano).
Outras edificações de porte semelhante eram indústrias instaladas no sul do bairro, próximas
à avenida Farrapos. Ademais, como demonstra Martins (2010), o acesso ao local era
dificultado, já que existiam poucas linhas de transporte público no bairro.
8
Nas várias vezes que estive no bairro fui também afetado pela poluição ambiental e sonora da avenida que dá
acesso à rodovia mencionada. Frequentemente, ao retornar do trabalho de campo, notava minhas roupas sujas e
meu corpo empoeirado. Abordo uma maneira de ser marcado bastante particular e, igualmente, prejudicial à
saúde - reveladora de algumas condições de moradia dos residentes naquele recorte socioespacial estudado e de
impactos das obras de infraestrutura à população local. Além disso, a maioria das entrevistas gravadas
registraram barulhos de automóveis e caminhões, ao fundo. Alguns moradores reclamavam de tais condições,
outros diziam-se “acostumados”.
188
Imagem 2: vista aérea da Escola Santo Inácio, atual local da Arena do Grêmio e do Condomínio Liberdade, em
foto retirada na década de 1970. Ao lado esquerdo, o bairro Humaitá com aéreas ainda pouco povoadas,
predominando campos e terrenos alagadiços (algumas plantações de arroz, também relembradas por alguns
interlocutores). Ao lado direito, o bairro Farrapos, já sendo parcialmente povoado com moradias populares.
Fonte: Martins, 2010, p. 47 (retirado dos arquivos da Escola Santo Inácio).
A mudança da escola para outro bairro de Porto Alegre, em Belém Novo, foi motivo
de polêmica em jornais da época, por denúncias de irregularidades no contrato entre o
governo estadual, empreiteira e clube9. A escola que, em 2019, poderia atender cerca de 2 mil
alunos estavam atendendo menos de cem, conforme matéria do jornal Extra Classe. A área
permutada para a construção da Arena é de 38 hectares, afirma a reportagem. O terreno teria
sido doado pelo governo estadual à Federação dos Círculos Operários do Rio Grande do Sul
(FCORS), para a instalação de uma escola técnica de nível secundário. A reportagem
relembra o que moradores descreveram durante o trabalho de campo, ao serem questionados
sobre o que existia no terreno antes da Arena do Grêmio: “Descrito como um banhado, o
local sediou a escola técnica Santo Inácio e um parque popular mantido pela FCORS, com
oito campos de futebol de várzea e um clube tradicionalista” (Extra Classe, 19/06/2019).
Além disso, o periódico expõe alguns bastidores da época, como o corte de convênios do
governo estadual com a escola – que fragilizou a sua manutenção no bairro Farrapos - e a
participação de um ex-presidente gremista no governo de Yeda Crusius, governadora entre
9
A matéria publicada no portal “Extra classe”, em 12 de junho de 2019, faz menção ao ocorrido e detalhe as
áreas permutadas. Disponível em: <
https://www.extraclasse.org.br/educacao/2019/06/santo-inacio-dafraude-da-oas-aos-atrasos-de-salarios/>.
189
2007 e 201110. Ainda em 2008, o governo estadual doou outro terreno para a FCORS, o qual
viabilizou a mudança da escola e liberação do terreno no que era, na época, bairro Humaitá.
Outra edificação encontrada no local, segundo alguns interlocutores, era a Escola
Estadual Oswaldo Vergara, vizinha da escola técnica referida. Tal presença foi suscitada por
antigos moradores do bairro e por parte da literatura especializada (MARTINS, 2010), que
lembram como as duas escolas eram equipamentos procurados pelos familiares e vizinhos.
Em matéria do Jornal ZH, ainda de 2010, registrou-se que a construtora OAS havia iniciado a
construção de um novo prédio para a escola, em outra avenida do bairro, de modo a liberar a
área para a construção da Arena. A expectativa, à época, era a de que o prédio novo ficasse
pronto e liberado ainda em 2011. Além disso, outras duas escolas do bairro receberam
reformas por parte da construtora11.
Apesar das ocupações datarem das décadas de 1950 e 1960, tanto o bairro Farrapos,
como o seu vizinho Humaitá, tiveram suas criações oficializadas apenas no ano de 198811.
Como destacou Martins (2010), no período de 1996 a 2005 ocorre um grande crescimento
populacional no bairro Humaitá, repercutindo no seu vizinho. O bairro passa a ser objeto de
especulação e de investimentos imobiliários, além do estabelecimento de novas vilas
populares (MARTINS, 2010, p. 51). Já no período de 2006 a 2009, uma retórica emergente
passa a ser mobilizada pelo setor imobiliária: a concepção do chamado “Novo Humaitá”,
associado à construção da Arena do Grêmio, fundamentalmente.
Acompanhando as audiências públicas em 2010, Danielle Martins (2010) destacou
como o projeto viria acompanhado por impactos urbanos e ambientais, sobretudo aumentando
a poluição da região e o trânsito. O projeto previa que o complexo da Arena do Grêmio
10
Uma divulgação no portal do governo estadual do Rio Grande do Sul noticiou: “Yeda anuncia Paulo Odone
como secretário extraordinário da Copa de 2014”, ainda em 2009. A participação de Odone na cúpula diretiva
do governo estadual é central para as páginas seguintes à construção da Arena e na organização de Porto Alegre
como cidade-sede da Copa do Mundo de 2014. Paulo Odone foi presidente do Grêmio em 5 mandatos, nos
períodos seguintes: 1987-1991 / 2005-2009 / 2011-2013. Disponível em: <
11
https://estado.rs.gov.br/yeda-anuncia-paulo-odone-como-secretario-extraordinario-da-copa-2014 >.
Atento-me para o fato de que, na reportagem, o presidente do Grêmio, Paulo Odone, naquela ocasião, afirmou
que a obra da Arena representaria o “resgate do bairro Humaitá”, valorizando o novo empreendimento e
atenuando as críticas de retiradas das escolas da região. No caso da escola, contudo, o seu prédio está situado,
até os dias atuais, no bairro Farrapos. Matéria disponível em:
https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2010/11/oas-da-inicio-as-obras-da-escola-oswaldo-vergara3097080
.html .
11
Os bairros Farrapos e Humaitá foram criados pela Lei nº 6.218 de 17/11/1988, no âmbito municipal.
190
12
Em depoimento à Polícia Federal, Alberto Youssef, um dos doleiros participantes de esquemas de lavagem de
dinheiro envolvendo políticos, a Petrobrás e empreiteiras, afirmou que a construtora OAS se utilizou de um
escritório no interior da Arena do Grêmio, para receber dinheiro de “caixa 2” em espécie, mas sem envolver os
dirigentes e profissionais do clube gremista. A matéria está disponível no portal G1:
http://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/2015/02/oas-recebeu-dinheiro-de-caixa-2-dentroda-arena
-do-gremio-diz-doleiro.html.
13
Detalhes na matéria do Jornal ZH: <
https://gauchazh.clicrbs.com.br/economia/noticia/2015/03/semincluir-a-arena-do-gremio-oas-pede-recuperacao-j
udicial-4730228.html>.
191
Algumas considerações
192
Referências:
193
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VIANNA, Adriana. Vida, Palavras e Alguns Outros Traçados: Lendo Veena Das. Mana, v.
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194
RESUMO
No esforço de contribuir para a expansão dos estudos acerca da maternidade, sobretudo aqueles que consideram
simultaneamente gênero e raça no contexto acadêmico-científico, busco tensionar e questionar a produção de
conhecimento tido como hegemônico. Constitui-se, assim, uma interpretação do cotidiano de estudantes e
pesquisadoras mães na UFMG, a partir de imagens socialmente produzidas e reconhecidas, como ponto de
partida para analisar as relações entre maternidade, universidade, ciência, bem como as redes de apoio e
estratégias mobilizadas frente às barreiras postas à formação acadêmica e científica, sendo esses os elementos
centrais das reflexões desenvolvidas pelas colaboradoras nesta pesquisa. Guiando-me pelos aportes do debate
feminista negro, especialmente no pensamento da socióloga Patricia Hill Collins, em diálogo com intelectuais
negras brasileiras e na Análise do Discurso, procuro analisar a vivência da maternidade no cotidiano das
estudantes e pesquisadoras mães em sua inserção na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Trata-se de
uma pesquisa qualitativa, para a qual se utilizam as entrevistas semiestruturadas como principal metodologia.
Adicionalmente, espera-se que a interface desses pressupostos como possibilidade teórico-crítica permita refletir
sobre os discursos a respeito da maternidade intersectada por raça e classe e que circulam também entre outros
espaços, doméstico e social, não isentando o ambiente acadêmico e científico.
1
Mestre em Educação e Docência – PROMESTRE/FaE/UFMG
195
amor materno demonstra o amor materno como mito socialmente construído, contrapondo a
noção de que se confere o exercício da maternidade como características essenciais da mulher.
À luz dessas leituras, bem como das contribuições do feminismo negro e dos estudos
das opressões interseccionais de raça, classe, gênero e sexualidade, o conceito de imagens de
controle e autodefinição da socióloga Patricia Hill Collins (2019) podem auxiliar na reflexão
da experiência das mulheres em geral e das mulheres negras em particular, sobretudo na
maneira como a maternidade atravessa as vivências de estudantes e pesquisadoras mães em
percurso acadêmico-científico na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Esse
ensaio através de uma postura crítica e implicada, propõe compreendermos as diversas
interdições travestidas de naturalidade que emaranhadas a frases e gestualizações,
aparentemente banais, no cotidiano de estudantes e pesquisadoras mães, mas que denotam o
lugar social da maternidade.
Interdições que dizem respeito às escolhas possíveis e impossíveis no percurso
acadêmico-científico de mulheres mães e em como o espaço universidade recepciona as
corporalidades maternas e lida com suas especificidades e demandas. A mãe acadêmica
encontra-se espremida por forças discursivas nessa fronteira entre produtividade e
permanência do percurso formativo.
Assim, este texto esboça duas perspectivas. Expresso, primeiramente, como a minha
vivência subjetiva me levou a questões objetivas na pesquisa, quando coloco em tela as
intersecções raça, gênero, classe e deficiência. Situando inclusive de que lugar falo como
pesquisadora que é mulher, negra, mãe e de origem familiar em que a chefia feminina é
predomínio.
Em segundo lugar estabeleço o compromisso político e intelectual que assumo a partir
de Gonzalez, 1984; hooks2, 1995; Carneiro, 2005; Collins, 2019 como movimento de
reconhecimento e autoafirmação como intelectual. Ainda que este movimento de
autodefinição e autoafirmação possa ser recebido como algo estranho ou incômodo, meu
aporte em outras intelectuais feministas negras constitui sólida argumentação, uma vez que,
essas intelectuais construíram um pensamento situado e posicionado, legado que me sustenta
e igualmente sustenta a pesquisa realizada.
2
Honrando e respeitando a grafia escolhida pela autora foi mantido no texto o nome e sobrenome em letras
minúsculas, uma vez que representa uma forma de enfrentamento à corrente do academicismo capitalista e
hegemônico que valoriza nomes frente às ideias.
196
De modo geral, pesquisar “as relações das vivências da maternidade no cotidiano das
estudantes e pesquisadoras mães na UFMG, percebendo as potências e estratégias dessas
mulheres que resistem no ambiente acadêmico” foi possível por ter sido acolhida e
desenvolvida na linha de pesquisa Educação, Ensino e Humanidades vinculada ao Programa
de Pós-Graduação de Mestrado Profissional em Educação e Docência ofertado na Faculdade
de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais – PROMESTRE/FaE/UFMG. (MATA,
2022)
Tendo a UFMG como lócus de pesquisa, me debrucei em questões específicas acerca
da relação da maternidade, universidade e ciência para a mudança social de paradigma,
compreendendo essa relação na ciência, na dinâmica de formação acadêmica e da carreira
científica das estudantes e pesquisadoras mães da UFMG. E a partir dessa compreensão
ampliei a reflexão para a composição das redes de apoio, bem como das estratégias
mobilizadas e que se configuraram como resistência e permanência no ambiente
acadêmico-científico na dinâmica de formação das colaboradoras da pesquisa. Para realizar
essa análise, aportei teórica e metodologicamente no pensamento feminista negro.
Especificamente em dois conceitos, imagens de controle e autodefinição, para fazer o debate
com os dados. Importante ressaltar que esses conceitos são provenientes da socióloga
estadunidense Patricia Hill Collins (2019) e foi necessário um esforço de transposição ao
contexto brasileiro para a análise.
Esforço necessário quando consideramos os distintos contextos, o geográfico, o
político, o econômico e o social em todas as suas particularidades.
Realizo essa transposição do conceito imagens de controle para o contexto brasileiro
ao dialoga-lo com intelectuais negras brasileiras (GONZALEZ, 1984; 1988; BAIRROS,
1995; 2008; CARNEIRO, 2003; 2005; TRINDADE, 2005; WERNECK, 2006 e BUENO,
2020) e muitas outras a fim de aprofundar a discussão.
Escolhas (im)possíveis
Como mulher negra, mãe solo e periférica que afronta as estatísticas e estereótipos
socialmente construídos para localizar e estigmatizar mulheres negras sou fruto de uma
vontade inexorável oriunda da constante afirmação “é através dos estudos que se vence na
vida”, legado ancestral que objetiva proporcionar escolhas e oportunidades que possam
romper com o ciclo de desigualdade social. Minha narrativa encontra, como afirma Bispo
(2019) “confluências” e aproximações nas vivências de outras mulheres negras na medida em
198
que sempre estudei em escola pública e alguém que também cresceu sob o mito da
democracia racial da nossa sociedade e a constante tentativa de embranquecimento pelo
apagamento da intelectualidade negra tanto quanto pela ausência de letramento racial.
Experencio a leitura e conhecimento sobre autores negros e autoras negras quando participo
de um projeto de Ações Afirmativas na Pós-graduação ofertado pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Destacar esse acontecimento tensiona mostrar o lapso temporal de
quase 40 anos vividos sem me (re)conhecer como mulher negra. Portanto, assumir uma
escrita em primeira pessoa como possibilidade de desafiar estruturas hegemônicas e
opressoras é também implicar-me diretamente nesse ensaio que aqui apresento.
Estar e transitar nos diversos espaços de produção do conhecimento, é assim que se
estabelece(u) o elo mulher negra-mãe atípica na pós-graduação-pesquisadora. Para além da
relação maternidade, universidade e ciência as questões expostas informam sobre
atravessamentos geracionais que conectados às questões de gênero, raça, classe e também
deficiência incidem e estruturam nossa sociedade. Trazê-las aqui é ainda um modo de romper
com a construção social da maternidade que pressupõe posicionamento romantizado dessa
experiência como apontou Badinter (1985) pelo mito do amor materno.
Como aponta Sueli Carneiro (2020) em Escritos de uma Vida o mito da democracia
racial promovia o apagamento da categoria política de raça, em dados estatísticos por
exemplo, com intuito de eliminar identificação das desigualdades raciais. E assim como
outras grandes intelectuais negras brasileiras como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento,
Luiza Bairros que são referências no pensamento crítico, situado e posicionado enquanto
estratégia de resistência de mulheres negras que se compreende o pensamento feminista
negro.
Essa base teórica é legado que suporta esse ensaio, pois coloca em evidência a
maternidade de mulheres negras que distancia-se da concepção hegemônica de maternidade.
É também um compromisso político e intelectual na medida em que o feminismo negro busca
romper com a suposta universalidade de gênero e composição homogênea de um grupo que
compartilha direitos e oportunidade sociais. Ao mesmo tempo, o feminismo negro “informa o
movimento de mulheres negras, a coletividade compartilhada entre e por essas mulheres nos
mais variados espaços e áreas do conhecimento”. (MATA, 2022, p. 34)
199
Imagens de controle
Patricia Hill Collins argumenta que as imagens de controle são dinâmicas e podem
mudar e moldarem-se aos contextos e territórios, por isso servem para “abordarmos novas
formas de controle em um contexto transnacional”. (COLLINS, 2019, p. 140)
Assim, fazer esse movimento de transposição de um conceito norte-americano para a
realidade brasileira busca tanto para visibilizar a participação política de mulheres negras
brasileiras na contemporaneidade, quanto convocar a reflexão dos padrões vigentes na
academia. De modo amplo, é também para provocar a reflexão e debate sobre ser mulher
3
No original Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness and the Politics of Empowerment.
Lançado em sua primeira edição em 1990. Segunda edição lançada em 2000. Importante destacar que no Brasil,
a primeira edição traduzida foi em julho de 2019 pela Editora Boitempo. O que representou uma lacuna de quase
30 anos após a primeira edição!
200
Baseada nas entrevistas foi construída a análise sobre as narrativas sob a à luz do
referencial teórico. Apresento a seguir um breve perfil das mulheres entrevistadas e das redes
de apoio e estratégias que acionaram em seu percurso formativo.
Esses dados aqui dispostos em forma de quadro não elencam em sua totalidade a
dimensão das experiências individuais e coletivas das estudantes que são mães e
pesquisadoras na UFMG. No entanto, essa forma resumida de seus perfis remete, de um lado,
à concepção social da maternidade atrelada à conjugalidade. E de outro lado, à incidência do
racismo atravessado por gênero e a disposição de redes de apoio – quando há – coligado à
202
Considerações finais
Muitas são as mulheres mudando a história e a ciência, entre elas está bell hooks
(1952-2021) que resgato uma mensagem potente demais e que diz respeito à produção
conhecimento e intelectual:
4
Discussão que elaboro em outro trabalho (FERNANDES; ROCHA; MATA, 2020)
203
Muitas vezes, o trabalho intelectual leva ao confronto com duras realidades. Pode
nos lembrar que a dominação e a opressão continuam a moldar as vidas de todos,
sobretudo das pessoas negras e mestiças. Esse trabalho não apenas nos arrasta para
mais perto do sofrimento, como nos faz sofrer. Andar em meio a esse sofrimento
para trabalhar com ideias que possam servir de catalisadores para a transformação
de nossa consciência e nossas vidas, e de outras, é um processo prazeroso e
extático. Quando o trabalho intelectual surge de uma preocupação com a mudança
social e a política racial, quando esse trabalho é dirigido para as necessidades das
pessoas, nos põe numa solidariedade e comunidade maiores. Enaltece
fundamentalmente a vida. (hooks, 1995, p. 477- 478)
REFERÊNCIAS
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa; mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo:
Elefante, 2017.
FERNANDES, Talita Melgaço; ROCHA, Thaís Teles; MATA, Gisele Camilo da.
MaternAtiva: pensando um Campus para mães e crianças através das ações afirmativas e das
redes de apoio. Em Sociedade, v. 3, n. 1, p. 86-113, 2020.
FERRAZ, Cláudia Pereira. A etnografia digital e os fundamentos da antropologia para estudos
qualitativos em mídias online. Aurora., v. 12, n. 35, p. 46-69, 2019.
FLEISCHER, Soraya; MOTA, Julia Couto. Mundaréu: um podcast de Antropologia como
uma ferramenta polivalente. GIS - Gesto, Imagem e Som - Revista de Antropologia, São
Paulo, v. 6, n. 1, e-172390, 2021.
FREIRE, Eugênio Paccelli Aguiar. Podcast na educação brasileira: natureza,
potencialidades e implicações de uma tecnologia da comunicação. Orientador: Arnon Alberto
Mascarenhas de Andrade. 2013. 338 f. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, Natal, 2013.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais
Hoje, Anpocs, p. 223-244, 1984.
hooks, bell. Intelectuais Negras. Revista de Estudos Feministas. Florianópolis, v. 3, n. 2, p.
464-478, 1995.
MATA, Gisele Camilo da. Quem pode ser mãe: maternidade, produção do conhecimento,
escolhas (im)possíveis e vivências de estudantes na UFMG. 2022. 169f. Dissertação
(Mestrado Profissional em Educação e Docência) – Faculdade de Educação. Universidade
Federal de Minas Gerais. Minas Gerais. 2022.
205
RESUMO
Intenta-se com este breve artigo discorrer acerca do sentimento de “perder-se” em campo, consubstancial a
fragmentação das personas do antropólogo. Com base em uma etnografia realizada entre fevereiro de 2021 e
fevereiro de 2022 uma escola de teatro niteroiense, busquei, nas competências de investigador e estudante
matriculado, acompanhar a trajetória dos cursantes do módulo curricular “Iniciação ao Teatro e Experimentação
Teatral”. Ainda que temática e teoricamente orientada, minha estadia em campo redundava no sentimento
mencionado. Faz-se necessário, à luz dessas questões, refletir sobre os dilemas, percalços e saldos metodológicos
da referida empreitada.
No começo, não parei de oscilar entre esses dois obstáculos: se eu “participasse”, o trabalho
de campo se tornaria uma aventura pessoal, isto é, o contrário de um trabalho; mas se
tentasse “observar”, quer dizer, manter-me à distância, não acharia nada para “observar”.
No primeiro caso, meu projeto de conhecimento estava ameaçado, no segundo, arruinado.
Introdução
Estar-se perdido me soa de algum modo angustiante, retomo àquele sentimento infantil
de desamparo. Rememoro hoje, comicamente, o pavoroso torpor de, quando criança, me ver
desgarrado de meus pais em alguma ida ao supermercado, loja de departamento ou shopping
center. A situação se desdobrava, no mais das vezes, à humilhante recorrência a um adulto ou
ao sistema de anúncio sonoro do estabelecimento.
“Perdido”, esta talvez seja a definição que daria para o sentimento que experimentei
em certos momentos de meu trabalho de campo; este, realizado em uma escola de teatro em
Niterói. Na ocasião, intentei, na qualidade de pesquisador e cursante, acompanhar o percurso
1
Bacharel em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente, é bolsista da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES, Brasil) do mestrado acadêmico no
Programa de Pós-Graduação em Antropologia da mesma universidade. Sob a orientação do professor Luiz
Fernando Rojo, conduz o projeto de pesquisa intitulado “O Indivíduo no Teatro: do noviço ao ator-personagem,
uma possibilidade de contestação pelo corpo?”.
1
206
I.
realização de outros dois módulos semestrais4. Estipulava-se, assim, dois anos para a
formação do ator na instituição, o curso era dividido em quatro módulos consecutivos e em
cada um deles o discente era apresentado a conhecimentos relacionados a prática teatral, além
de participar da Prática de Montagem ao fim de cada semestre.
O desenho curricular da Formação de Atores incorporava invariavelmente o conteúdo
programático destinado à Iniciação ao Teatro. Neste trabalho, a análise não inclui a segunda
secção da formação teatral estipulada pela instituição. No primeiro ano de curso, o discente
era introduzido à prática dramatúrgica por meio de jogos, brincadeiras, exercícios de
improvisação cênica, que envolviam princípios de expressão corporal, impostação de voz, etc.
Além disso, os alunos eram instruídos, mais atentamente no segundo módulo, à História do
teatro e do espetáculo, Teatro e cultura e a noções sobre estética da cena.
É preciso não perder de vista o pano de fundo englobante de toda a pesquisa
etnográfica: a pandemia da COVID-19. Ainda que suas implicações extrapolem os limites
deste estudo, sua existência – atenuada em alguns momentos e violenta em outros – interferiu
extensamente na realização e na presença (física ou virtual) em campo. In situ, experimentei
etnograficamente as nuances relacionadas ao ensino remoto em teatro; o uso de máscara de
proteção nas expressivas e exaustivas sessões de aula; os medos e receios relacionados ao
contágio, mas o desejo de interação e circulação etc.
Com a gradual retomada dos serviços presenciais no ano de 2021, ano em que esta
pesquisa deu seu ponta pé inicial, a escola de teatro optou por um ensino híbrido, onde eram
oferecidas aulas simultâneas: as sessões presenciais eram transmitidas, ao vivo, através de um
computador com câmera e áudio para os alunos que não se sentiam seguros de saírem de suas
casas ou que apresentassem possíveis sintomas do vírus. A distância do local de moradia para
a escola, a insegurança proporcionada pela pandemia, assim como a aparição de eventuais
sintomas relacionados a COVID-19 (ou mesmo sua confirmação através da positivação do
teste) eram os motivos ligados ao não comparecimento presencial dos discentes.
4
Em seu site, a escola listava as seguintes modalidades de curso: para crianças e adolescentes; para
terceira idade; para reingresso teatral; treinamento para testes de elenco; para iniciação ao teatro; e
para a formação de atores. A instituição particular ofertava ainda uma grande variedade de oficinas de
curta duração (presenciais ou online) e “laboratórios”. À época, as primeiras modalidades custavam
R$100,00 e tinham por finalidade oferecer ao público interessado experiências artísticas variadas,
sobre tópicos como dança popular brasileira, dança árabe, canto etc. Através dos “laboratórios”, cursos
temáticos com duração semestral, a escola oferecia experiências teatrais, com mensalidades no valor
de R$145, para não-leigos. Os laboratórios eram no formato intensivo, destinados a profissionais da
área e sempre abordavam tópicos específicos, como Monólogos ou Improvisações.
3
208
II.
4
209
[...] A dança também fazia parte do alongamento. Pelo o que pude observar, o
Maracatu dá plasticidade aos movimentos, recria os movimentos teatrais com
maestria. Tive muitas dificuldades em acompanhar meus colegas e a professora que
presidia a dança. Percebi que tenho grandes problemas de coordenação motora.
5
Uma exemplificação academicamente próxima é a de Luiz Fernando Rojo (s/d, no prelo) em sua
etnografia Por mares nunca dantes navegados. De modo a ampliar o escopo de sua participação
analítica no campo da prática esportiva da vela, o antropólogo se matriculou, na época de seu trabalho
de campo, na “escolinha” de vela do clube em questão, em São Francisco, bairro de Niterói. Ao fim de
seu primeiro semestre de aulas, o pesquisador obteve o simbólico diploma de “velejador” e, com a sua
formatura, foi incorporado aos “treinos” – sessão tida como séria para os nativos – e participou de
regatas. Em determinado momento de seu trabalho, o antropólogo foi surpreendido por seus
interlocutores com o convite de filiação à Federação de Vela do Rio de Janeiro (FEVERJ).
6
“Não ter medo de se expor ao ridículo” foi uma das máximas a que me deparei desde muito cedo com a
realização do trabalho de campo. A expressão era fundamentalmente proferida pelos professores que presidiam
as sessões. Os contextos de enunciação variavam, mas, no mais das vezes, era mobilizada em ocasiões tidas
como incômodas ou embaraçosas para os alunos, como, por exemplo, situações de dança ou de expressão
corporal não usual (ex: imitar um animal). Se expor ao ridículo consistia não somente em não ter vergonha
dentro de sala, mas romper, dentro da perspectiva nativa, a película social que tanto travava os corpos dos
integrantes e os impediam de aprender a dominar e a veicular seus corpos da maneira adequada a prática
dramatúrgica. Além disso, expor-se ao ridículo proporcionava, segundo o ponto de vista institucional, o cultivo
coletivo à harmonia uma vez que os discentes se entregavam uns aos outros. (MEDEIROS, 2022a).
5
210
Senti falta da transição na ponte e do sono na Avenida Brasil. Hoje foi de ficar em
casa e ter, entre os parentes, uma aula de teatro. Eu estava bastante pensativo sobre ir
ou não a essa aula. Sempre tive, acredito, uma dificuldade em misturar diferentes
ambientes. No caso, o de pesquisa com o privado, domiciliar. Refleti um pouco
mais, pensei em uma conversa com Madu [minha companheira], onde ela me dizia o
quão interessante seria analisar o ensino de teatro no contexto virtual. É uma ideia
original, de fato. Decidi, por fim, participar. Fiquei com receio, é verdade. Aparatei
o quintal de casa com um tapete, uma mesa, meu notebook, um ventilador – caso
fizesse calor, o que ocorreu – e meu diário.
Ainda no contexto de aulas online, em meados do mês de abril, vi-me obrigado, por
razões pessoais, a trocar de horário no curso. Não tardei em ser acolhido pela segunda turma,
há três meses reunida e altamente entrosada. Na ocasião, caí de cabeça em uma pequena
apresentação que estava sendo preparada há poucas semanas. A professora informou que,
infelizmente, eu não poderia participar por ter estado de fora dos demais ensaios, restando a
mim somente assistir. Luísa, uma das estudantes mais engajadas com as sessões, protestou e
reivindicou minha participação ainda que coubesse a mim um papel inferior. Após a aula, os
alunos se dedicaram, dentre outras coisas, a me enquadrar proveitosamente naquela trama.
Sucedeu-se daí, uma discussão de horas, bastante descontraída e jocosamente entrecortada,
para a realização das devidas alterações.
Ao contrário das narrativas heróicas comuns à Etnografia clássica, onde o pesquisador
adentrava um ambiente exótico, se via em face de um conjunto de adversidades contextuais e,
em seguida, triunfava sobre a barreira que o separava do nativo; minha situação etnográfica
contrariava trajetórias unilineares. É bem verdade que as passagens acima assinalam um certo
êxito etnográfico. Se as vinculações e envolvimentos, por um lado, ajudavam-me no
importante exercício de “estar lá”, entre eles; por outro, desandavam-me ao sabor das
experimentações teatrais. Fui afetado de modo que minhas personas se dissolveram àquele
caldeirão.
Flertava paulatinamente, então, com o sentimento de “se estar perdido”. Tal
sentimento era coextensivo a minha presença e absorção nas dinâmicas da turma do curso de
teatro. No processo de escrita do diário, o sentimento mencionado aparecia sob a forma de
interrupção do fluxo descritivo de algum dado de pesquisa; quando em campo, ele geralmente
procedia de um “estalo” epifânico. Resgato de meus registros etnográficos, respectivamente,
ambas as situações.
6
211
Por fim, um paradoxo se apresenta aqui: Como estar “perdido” e, ao mesmo tempo,
tão fixado às dinâmicas singulares do campo e de suas pessoas? Faz-se necessário, talvez,
aludir aos modos a que me vi, por eles, enquadrado. Isto é, aos modos nativos de percepção
do antropólogo. Que papéis me cabiam ali?
III.
É sempre muito impreciso dissertar sobre a posição que cabe ao antropólogo em seu
exercício etnográfico. O acesso às informações, construção de dados de pesquisa e os modos
de registro dependem invariavelmente do papel que o investigador desempenha em campo.
Segundo o antropólogo e performer Ricardo Salgado (2016) em seu artigo A persona do
antropólogo na etnografia como acção, a elaboração da persona do antropólogo é
radicalmente influenciada por sua identidade, personalidade e sensibilidade; assim como, por
suas orientações teórica e opções metodológicas; suas ansiedades e anseios.
Em suma, a experiência etnográfica exige do pesquisador a habilidade de conhecer a si
mesmo, ou seja, de se tornar instrumento de sua própria observação. De se fazer ‘outro’ para
revelar-se a si mesmo (Ibid). Diante de tais considerações, é possível discorrer acerca de meus
posicionamentos etnográficos, o meu lugar entre eles.
Recordo-me de quando, assim que obtive o aceite de minha proposta de pesquisa pelo
diretor da Escola de Teatro Niterói, foram demandados relatórios mensais de minha parte. A
exigência tinha por finalidade acompanhar meus registros, os campos de interesse
pesquisados e a trajetória analítica como um todo. Algum tempo depois, descobri que tal
prática era comum a todo o corpo docente da escola; este encaminhava regularmente
7
Em teatro, a coxia se refere ao espaço situado fora da cena, detrás das cortinas. No formato de palco italiano, a
coxia abrange o perímetro do palco, sem abarcar aquilo que é apresentado. A coxia também pode ser chamada de
bastidores.
7
212
8
Em entrevista, em 10/08/2022, o diretor da Escola de Teatro Niterói me explicou que a sua crescente demanda
por tais relatórios docentes se deviam ao fato de que, desde o início da pandemia, a escola passou por uma
grande renovação em seu quadro de professores. Logo, a entrega regular do diário escolar funcionava como um
artifício institucional de “controle de qualidade”.
9
A provisoriedade parece ser, na verdade, uma constante na vida do artista amador. A ascensão e o
sucesso profissional do artista, em oposição a outras ocupações profissionais, está ligada, tal como
Howard Becker (2008) observou em Outsiders ao discorrer sobre a cultura dos músicos de casa
noturna, ao cumprimento de uma série de vagas de emprego disponíveis ao longo de sua trajetória
profissional. Nesse quesito, o portfólio parece ser um importante signo de legitimação do percurso,
pois, ao reunir artigos de jornais, divulgações, gravações, fotografias, dentre outras coisas, uma linha
narrativa móvel tornava a carreira tangível. Cabia então ao discente iniciar seu portfólio a partir dos
trabalhos que viesse a desenvolver, ao fim de cada módulo, na escola.
8
213
muito resumida, o contato com o curso parecia servir para eles como uma fonte inesgotável e
polivalente de atributos que incidiam positivamente na vida de seus envolvidos: na resolução
em potencial de problemas relacionados à timidez e ampliação do círculo social ao
“descobrimento de outras formas de ser e estar no mundo”.10
Tendo isso em mente, a partir do momento que se ingressava no curso de teatro, uma
das primeiras abordagens que se fazia ao noviço era o porquê ele estava ali, o que lhe atraía e
quais eram suas expectativas com a realização daquela iniciação ou formação. Esse era,
talvez, um momento crucial para o porvir do discente no curso que, onde por meio de sua
réplica, algumas expectativas lhe seriam apresentadas. Além disso, foi somente com base na
verificação nativa de tal cisão que a instrumentalização analítica em “campos de interesse”
procedeu.
Aqueles que se inclinavam a carreira artística delineavam seus sonhos e anseios
profissionais, senão à dramaturgia, a dublagem ou a áreas afins. Sob um consenso tácito,
deveriam se mostrar mais engajados aos ensinamentos passados em sala de aula, mais
disponíveis à realização de ensaios extraclasses (onlines ou presenciais) e, por fim, mais
comprometidos com os diferentes trâmites que envolviam a realização de um espetáculo:
ensaio, figurino, cenário, maquiagem, texto, montagem etc.
Aqueles que respondiam às interrogações iniciatórias com expectativas diversas e não
diretamente ligadas ao projeto artístico, eram, de uma determinada forma, livres de certas
cobranças. Se esperava deles, acima de tudo, uma coparticipação comprometida.
Curiosamente, por não almejar uma carreira artística, minha presença era ocasionalmente
referida ao lugar do segundo grupo.
Ainda que minha inserção estivesse indubitavelmente atrelada a fatores laborais, afinal
eu estava em trabalho de campo, não foram poucas as vezes que, em momentos furtivos, a
professora, em tom de comicidade, aludia para a possibilidade de minha carreira acadêmica
ser interrompida para dar seguimento à uma trajetória dramatúrgica. Por “pertencer” a tal
posição, seus integrantes, sem tardar, confidenciavam a mim suas indignações, incômodos ou
desapontamentos. Essas situações ocorriam quando viam suas reduzidas responsabilidades
10
A divisão das turmas em dois grupos de interesse não é feita a fim de estancar tais categorias e
esgotá-las. A escolha por trilhar uma carreira artística ou a escolha por vivenciar a experiência teatral
como algo próximo ao lazer eram opções significativamente conectas. Não raro, alguém que entrava
no curso com o deliberado desejo de fruir sem compromisso daquela atividade, optava em algum
momento de sua formação por enveredar à dramaturgia, obter o DRT e atuar na área. Também não era
incomum adeptos ao projeto artístico-profissional desistirem da área por falta de oportunidades,
desilusão ou qualquer outro motivo pessoal.
9
214
Para além dos ensaios e passadões, o período que antecedia a realização do espetáculo
era marcado pela composição grupal do espetáculo. O processo supracitado consistia, dentre
outras coisas, em adaptações no texto da peça, preparação de cenário e figurino,
11
Esses foram as personagens que, respectivamente, interpretei nas montagens realizadas pela escola. A
primeira, Dona Carmen, foi adaptada à peça As Doutoras de França Junior, jornalista e teatrólogo brasileiro do
século XIX. Coincidência ou não, o fato de Dona Carmen ter sido criada para adequar o número de alunos da
sala ao de personagens da peça e, mais do que isso, de tal papel ter sido entregue justamente ao antropólogo
conformam aspectos curiosos do ponto de vista de antropológico. A segunda personagem, “Aprígio”, advém da
peça O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues (2019 [1961]).
10
215
11
216
***
IV.
12
No bacharelado, desenvolvi uma etnografia sobre envelhecimento institucionalizado em uma ILPI
(Instituição de Longa Permanência para Idosos). Naquela ocasião, por conta da natureza do trabalho
empreendido na instituição, coube a objetificação da observação a primazia dos dados construídos em
campo (MEDEIROS, 2020).
12
217
13
218
13
Além do completo participante, existiriam ainda o completo observador; o observador como
participante; e o participante como observador.
14
219
REFERÊNCIAS
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220
16
221
Resumo
O presente artigo é um recorte de uma pesquisa de mestrado em andamento e busca discutir sobre a produção do
sujeito mulher/mãe/educanda da Educação de Jovens e Adultos (EJA) a partir da perspectiva de sexualidade,
gênero e Estado, além de perpassar por categorias como classe social, raça, família, parentesco e maternidade. O
trabalho é fundamentado na discussão sobre sujeito e poder (FOUCAULT, 2013); sujeito e sexualidade
(FOUCAULT, 1997). Assim como também na interface entre gênero e Estado apresentada por Vianna e
Lowenkron (2017) e Veena Das (2020). Para coleta dos dados foram realizadas entrevistas individuais
semi-estruturadas ocorridas numa escola municipal da cidade de Santa Rita/PB, no turno noturno (horário em
que a EJA é ofertada) com três mulheres/mães/educandas da modalidade de ensino. Nos relatos, fatores como
infância precarizada, trabalho e gravidez na adolescência são apontadas pelas interlocutoras como os motivos da
não escolarização na idade regular. Além disso, em suas histórias de vida identificamos questões como racismo
de Estado, a prática da “circulação de crianças”, diferentes modelos familiares, ausência paterna e moralidade
materna. A partir disso, verificou-se que essas relações de poder e práticas sociais que atravessam a existência
dessas mulheres constituem o processo de produção desse sujeito.
Introdução
O presente artigo é um recorte de uma pesquisa de mestrado em andamento sobre
“Sentidos de maternidade para mulheres/mães/educandas da Educação de Jovens e Adultos
(EJA)”. Foi escrita como trabalho final da disciplina Estado, Políticas Públicas, Gênero e
Família, ofertada pelo PPGA-UFPB e cursada no período de 2022.2.
1
Mestranda em Antropologia Social – Programa de Pós-Graduação em Antropologia – Universidade
Federal da Paraíba. Email: josysilvajsn@hotmail.com.
222
Dentro de um contexto geral, o que elas tem em comum? São mulheres da classe
trabalhadora que, por diferentes motivos, não estudaram na idade regular2 ou tiveram que
interromper seus estudos e agora encontraram na EJA a porta de entrada para a escolarização.
Além disso, são mães que buscam atender às exigências da maternidade. Assim, estamos
diante de um sujeito produzido pelas relações de poder em que estão inseridas.
Para além de uma discussão teórica baseada nos estudos de Michel Foucault sobre
sujeito e poder (FOUCAULT, 2003), sujeito e sexualidade (FOUCAULT, 1997); assim como
os estudos sobre Gênero e Estado (VIANNA; LOWENKRON, 2017), (DAS, 2020); o artigo
pretende apresentar as trajetórias de vidas de mulheres cujos corpos e existências são
atravessados por marcadores sociais da diferença como classe social e raça. Dando voz e
visibilidade para esses sujeitos que, de diferentes maneiras foram silenciadas, sendo-lhes
negado o direito a educação.
2
A idade regular é a faixa etária de escolarização obrigatória da educação básica que vai dos 04 aos 17 anos, de
acordo com o inciso I do Art. 4º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9394/96)
3
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, 1996.
223
Fundamental I). Luana, 42 anos, natural da Paraíba, autodeclarada parda, também aluna do
ciclo II. E Marta, 30 anos, autodeclarada parda, natural do Rio Grande do Norte, aluna do
ciclo III (que na EJA equivale o 6º e o 7º ano do Ensino Fundamental II). Os relatos dessas
mulheres carregam contextos sociais, suas infâncias e adolescências, e revelam os motivos da
não escolarização na idade regular. Ressalta-se que todas são oriundas da classe trabalhadora,
e suas histórias retratam situações de pobreza e precariedade vividas durante suas trajetórias.
É o que identificamos na fala de dona Mara ao ser perguntada sobre como foi sua infância:
“A gente era muito pobre. Não tive oportunidade nem eu nem meus irmãos mais
velhos de estudar porque o colégio era muito longe e meus pais não me deixavam ir.
E outra, também não tínhamos dinheiro para comprar o material nem a farda do
colégio. Aí a gente não estudamos”. (Mara)
Dona Mara vem de uma família constituída por pai, mãe e 14 filhos. Ao analisar sua
fala, percebemos que a pobreza que vivenciou com a família a impossibilitou de estudar na
infância. Para a população negra as desigualdades e precariedade são resultados de um
histórico de violência e abandono e negligência do Estado em suas responsabilidades sociais.
Foucault (2005) discute sobre o poder no Estado moderno – o Biopoder – e o racismo de
Estado. Segundo o autor, o paradoxo do Biopoder está na seguinte questão: como se exerce o
direito de matar em uma tecnologia de poder que tem como objetivo fazer viver?
É aí que o racismo entra, como um dispositivo que determina quem deve morrer,
baseada numa ideia de raça. Nessa perspectiva de “fazer viver ou deixar morrer” pode-se
afirmar que quando o Estado não dá as condições de vida, se deixa morrer. É possível pensar
nessa morte não apenas física. Conforme esclarece Foucault (2005, p. 306): “É claro, por tirar
a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas também tudo o que pode ser
assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou,
pura e simplesmente, a morte politica, a expulsão, a rejeição, etc”.
Dessa forma, não seria “exercer o poder da morte” permitir que uma criança não
estude por ser a escola distante ou por sua família não ter condições financeiras para comprar
o material escolar e a farda? Não seria isso a morte do direito à educação? Continuando seu
relato, nossa interlocutora afirma:
“Por isso eu não estudei nova. Não deu para estudar e só aprendi a fazer serviço de
casa mesmo”. (Mara)
Sua fala fomenta a discussão sobre como nossa sociedade condiciona a mulher,
desde a infância aos trabalhos domésticos, restringido-a ao espaço privado. Dessa forma, o
espaço doméstico tornou-se para dona Mara seu ambiente de aprendizagem. O trabalho
doméstico aparece na fala de dona Luana como motivo de interrompimento dos estudos. No
224
caso dela, precisou trabalhar ainda na adolescência na casa da vizinha e como cuidadora de
idosos. Segundo ela:
“Estudei até os 14. Com 15 fui trabalhar já em João Pessoa… com 13 anos eu já
trabalhava do lado da casa de mainha na casa da vizinha e com 15 anos fui pra
João Pessoa trabalhar como cuidadora de idosa”. (Luana)
Esse fato chama atenção para pensar nas estruturas familiares e as formas de
infância. O caso de Luana revela uma prática comum entre os grupos populares brasileiros
que a antropóloga Cláudia Fonseca (2006, p. 14) denomina de “circulação de criança”, que
seria “o grande número de crianças que passa parte da infância ou juventude em casas que não
a de seus genitores”. A autora observa essa prática como uma estrutura de organização de
parentesco em grupos brasileiros de baixa renda, saindo de uma ótica de “problema social”
para um “processo social” (FONSECA, 2006).
É a partir de suas realidades que esses modelos familiares se organizam como
estratégia de manutenção da sobrevivência. Assim, não existe um modelo familiar superior ou
inferior, melhor ou pior, mas “um enorme leque de práticas de organização doméstica e social,
dando prova da criatividade dos humanos para inventar formas culturais conforme o contexto
em que vivem” (FONSECA, 2006, p. 21).
Essa perspectiva também se alinha à história de Marta. Ao ser questionada sobre
como foi sua infância ela conta:
“Não foi muito boa porque eu perdi minha mãe eu tinha 07 anos de idade aí eu fui
criada pela minha irmã, minha avó, meu pai e minha tia”. (Marta)
eu fui morar com o pai da minha menina… Assim, na época meu pai bebia muito aí
minha vó não deixava eu morar totalmente com ele. Eu passava o dia com ele e a
noite eu ia pra casa da minha tia ou da minha avó. Porque minha vó não confiava,
como eu era pequena né” (Marta)
A partir de sua fala, é possível dizer que essa desconfiança da avó era baseada no
fato do pai de Marta “beber muito” e talvez por isso, não ser capaz de cuidar dela. Essa
incapacidade do seu pai caracteriza uma forma de “ausência paterna”. Sobre isso, Fernandes
(2020) com base em uma etnografia realizada em um complexo de favelas no Rio de Janeiro,
discute as ausências masculinas e de Estado na vida de mulheres mães e pobres. Ela verificou
que a ausência paterna nas temáticas do cuidado com as crianças era contante. Sendo as
mulheres “as principais responsáveis pela proteção, educação e mobilidade das crianças,
incluindo sua integridade física” (FERNANDES, 2020, p. 2012). A discussão elaborada pela
autora, nos permite refletir sobre o caso da Marta. Apesar de estar fisicamente presente, o seu
pai não proporcionou os cuidados e a proteção necessária para sua criação, sendo estes,
exercidos pela avó, a tia e a irmã mais velha. Nesse sentido, essa ausência do pai resultou na
sua saída de casa para morar com o namorado. Conforme ela relatou, aos 12 anos, morando na
casa da sogra, continuou estudando. Porém, aos 14 anos engravidou, fato que dificultou sua
permanência na escola:
“Quando eu engravidei de Marina eu continuei estudando, mas aí depois da
gravidez quando ela nasceu não tinha com quem ficar. A minha sogra às vezes
ficava mas ela reclamava. Aí por causa da amamentação eu ficava com o peito
cheio de leite né aí eu peguei e desisti. Vim voltar agora”. (Marta)
A fala da jovem nos indica outro motivo bastante recorrente entre as mulheres que
não conseguem concluir os estudos: a gravidez na adolescência. Robles (2015) aborda o risco
como uma categoria reguladora na saúde das mães, filhos e mulheres grávidas usuárias do
Sistema Único de Saúde (SUS). Conforme aponta a autora, a partir do estabelecimento de
“fatores de risco” pelo Ministério da Saúde, a gravidez na adolescência se enquadra na
perspectiva de “gravidez de risco”, questão que ela problematiza em seu estudo. Nessa
perspectiva, a mãe adolescente é vista como a incapaz, a desviante em relação ao padrão
reprodutivo veiculado pelo dispositivo regulador. Dessa forma, “o risco é um recurso cultural
através do qual a saúde pública procura impor padrões desejáveis de conduta” (ROBLES,
2015, p. 152).
Há também uma associação entre “risco” e classe social. Segundo a autora:
O “risco de engravidar” está relacionado à classe social, já que nas camadas médias
as jovens dificilmente têm gravidezes indesejadas (seus recursos financeiros e apoio
familiar permitem realizar abortos seguros). Nesse sentido, a gravidez na
adolescência se torna um “problema de saúde pública” que, objetivado pela noção de
226
risco, alimenta discursos alarmistas sobre a sexualidade nas camadas populares. (p.
153)
Desse modo, a imagem negativa da mãe adolescente vai sendo construída baseada no
modelo de mãe e na idealização da família nuclear. Contudo, ao vemos os relatos de Marta,
percebemos a ideia de “moralidade materna”. Apesar de ter sido mãe “fora da idade
desejável” a jovem “cumpriu suas obrigações maternas”, “deixando” os estudos para cuidar
de sua filha – rompendo com a ideia de que a mãe adolescente é irresponsável com seu bebê.
Segundo a interlocutora, o fato da filha “não ter com quem ficar” e ficar com “o peito cheio
de leite” devido a amamentação, foram os motivos que a fizeram interromper os estudos. Isso
nos possibilita dizer que a preocupação da jovem era com a criança.
Pensando em maternidade, percebe-se que o foco é sempre no bem-estar e
desenvolvimento da criança sendo à mãe a figura responsabilizada por esse processo. Sobre
isso, discutindo tecnologias de governo e moralidade materna, Fonseca (2012) aborda os
Programas educativos alternativos para o desenvolvimento da Primeira Infância envolvendo a
ciência, política e moralidade materna, atrelado à noção da relação familiar, principalmente,
os cuidados maternos. Desse modo, os cuidados maternos vão sendo aprimorados visando o
pleno desenvolvimento da criança. E o que a autora sugere é que a moralização do
comportamento feminino não se respalda mais numa fatalidade biológica da mulher, “Agora,
seu destino é selado pelos imperativos da biologia (desenvolvimento cerebral) do bebê”
(FONSECA, 2012, p. 272).
A partir dessas perspectivas, vai sendo idealizada a figura da boa mãe. Aquela que
não se enquadra nessa expectativa feminina é considerada imoral, irresponsável, negligente. A
partir dessa perspectiva de mãe ideal, vão sendo construído mecanismos de controle e
regulação, seja através de discursos ou intervenções estatais, para ensinar às mães práticas de
uma boa maternagem. São esses padrões reguladores que vão moldando as subjetividades
dessas mulheres, determinando os comportamentos esperados para ser mulher e desempenhar
uma boa maternidade.
forma, são essas relações de poder responsáveis pela produção do sujeito e sua subjetividade.
Mas o que seria essas relações de poder? Segundo o autor, as relações de poder são um modo
de ação que age sobre a ação dos outros (FOUCALT, 2013).
Cabe ressaltar que, esse poder, visto como condutor do comportamento do sujeito,
não é exercido através da violência, mas só pode ser exercido sobre “sujeitos livres”. Sendo
assim, é possível compreender esse poder sendo incorporado pelo próprio sujeito, o que vai
implicar a subjetivação, ou seja, o processo de torna-se sujeito.
No caso da escolarização, esta é considerada um elemento valorizado em nossa
sociedade. O que permite pensar como são tratadas e vistas aquelas pessoas que não passaram
por esse processo, que não detém do “conhecimento científico”? Ou ainda, qual o lugar social
daquelas pessoas que são escolarizadas “fora da idade regular”? Que sujeitos são esses que se
constituem à margem dessas relações de poder ou de comportamento educacional esperado?
Essa perspectiva de subjetivação, também nos possibilita refletir acerca dos discursos
sobre maternidade produzidos e reproduzidos no bojo das relações de poder em que as
mulheres estão inseridas (família, religião, mídia, etc) e que são tão bem incorporados por
elas. Quando, por exemplo, uma jovem engravida e “decide” interromper os estudos para se
dedicar exclusivamente ao seu bebê, se respaldando na concepção de que aquele novo ser
depende totalmente de sua atenção, afeto, amor e cuidados. Nenhuma mulher pode contestar
isso, ou caso conteste, poderá ser demonizada ou considerada uma péssima mãe. É
interessante pensar como esse processo de subjetivação acontece dentro de um campo de
disputa de saber-poder que é a sexualidade. Na sua obra História da sexualidade, Foucault
(1997) afirma que o dispositivo da sexualidade é um discurso articulado entre vários
especialistas e instituições para produzir um sujeito. Dessa forma, a construção do que é o
sexo produz o que seria o sujeito. O autor busca “analisar a formação de um certo tipo de
saber sobre o sexo, não em termos de repressão ou de lei, mas em termos de poder” (p. 88). E
esse poder não é uma instituição ou uma estrutura, mas o campo estratégico das relações de
poder constituído de diferentes agentes.
Discorre que a sexualidade não deve ser descrita como um ímpeto rebelde. Ela
aparece mais como:
[...] um ponto de passagem particularmente denso pelas relações de poder, entre
homens e mulheres, entre jovens e velhos, entre pais e filhos, entre educadores e
alunos, entre padres e leigos, entre administração e população. Nas relações de
poder, a sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos dotados da maior
instrumentalidade: utilizável no maior número de manobras, e podendo servir de
ponto de apoio, de articulação às mais variadas estratégias. (p. 98)
228
Assim, apesar de o sexo ser subjetivo, ele perpassa pelas relações de poder, se
tornando uma construção histórica fundamentada nos discursos e práticas de poder. Segundo
o autor, a partir do século XVIII surgiram quatro grandes conjuntos estratégicos para pensar a
sexualidade. Dentre eles a “Histerização do corpo da mulher”, no qual, analisa esse corpo
como saturado de sexualidade; integrado às práticas médicas; posto em comunicação com o
corpo social (fecundidade regulada), o espaço familiar e a vida das crianças (responsabilidade
biológica-moral). Nesse sentido, a mãe aparece como a imagem de mulher nervosa que
“constitui a forma mais visível desta histerização” (FOUCAULT, 1997, p. 99).
Com isso, entende-se o dispositivo da sexualidade como um discurso produzido
historicamente através das relações de poder. Trazendo para nossa discussão, percebemos que
a concepção do que é ser mulher e do que é ser mãe é pautada em um discurso de agentes e
grupos dominantes que é incorporado por esses sujeitos. Isso nos possibilita iniciar a reflexão
acerca da interface entre gênero e Estado e de como essa relação mútua produz sujeitos em
nossa sociedade.
estudos das teóricas feministas através do envolvimento delas com aparatos institucionais e
governamentais. Em meados do século XX, o feminismo se expandia, assim como suas pautas
de reivindicações como equidade salarial, direitos reprodutivos, legalização do aborto,
liberdade sexual, etc. Nos anos de 1980 as feministas iniciam as primeiras formulações
teóricas sobre o gênero no/do Estado, refletindo acerca de como o Estado participava das
opressões das mulheres.
Dentre essas perspectivas, a ideia de que o “Estado é masculino” tornou-se popular
entre as teóricas feministas. Nessa concepção, em uma sociedade onde os poderes políticos e
as instituições são masculinizadas (ou seja, ocupadas majoritariamente por homens), a mulher
é submetida ao poder masculino que formula leis a partir de suas ideologias e perspectivas, ou
seja: “o Estado, por meio da lei, institucionaliza o poder masculino sobre mulheres através da
institucionalização do ponto de vista masculino na lei” (MACKINNON, 1989, p. 169 apud
VIANNA; LOWENKRON, 2017, p. 10). Salienta-se que as autoras não necessariamente se
alinham a essa perspectiva, mas, a apresenta como uma das abordagens feministas elaboradas
acerca da relação entre Estado e gênero.
Veena Das (2020) traz subsídios para fomentar essa discussão. Em sua pesquisa
sobre mulheres hindus que sobreviveram aos violentos eventos da Partição da Índia, ocorrido
em 1947, a autora buscou entender como as ansiedades públicas em torno da sexualidade e da
pureza poderiam ter criado as bases que colocaram a figura da mulher raptada como ponto de
mobilização para o restabelecimento da nação como espaço puro e masculino.
Problematizando a ação do Estado para recuperar e devolver essas mulheres aos seus
territórios, a autora aponta que a história sobre rapto e recuperação dessas mulheres funciona
como uma autorização da relação particular entre contrato social (contrato entre os homens
para instituir o político) e contrato sexual (acordo para circunscrever as mulheres ao âmbito
doméstico sobre a autoridade da figura do pai ou do marido). Assim, o rapto das mulheres
sinaliza um estado de desordem, e a recuperação destas, um estado de ordem social.
A autora ressalta que o interesse pelo resgate dessas mulheres baseava-se não em sua
definição como cidadãs, mas “como seres sexuais e reprodutivos”. Isso ficou evidente nas
exigências feitas por alguns membros da Câmara que enfatizavam que “mulheres em idade
reprodutiva deveriam ser recuperadas” (DAS, 2020, p. 53).
Dessa maneira, podemos compreender como o Estado, a partir de aparatos legais e
discursos fundamentados nas idealizações masculinas sobre as mulheres, oprimem, dominam
e excluem as mulheres de seus direitos sociais básicos como a educação e a liberdade sobre
seus corpos, por exemplo. Assim, ao analisar os relatos de vida das mulheres mães e
230
educandas da EJA, verifica-se que esse sujeito é constituído de discursos ora respaldados na
idealização da maternidade, como no caso de Marta; ora na atribuição da mulher ao espaço
privado representado pelos trabalhos domésticos, como no caso de dona Mara e Luana.
Também se pensarmos no percurso histórico da educação feminina podemos identificar como
as ideias machistas aparados por leis, fomentaram a negação do direito à educação para as
mulheres. Nesse sentido, percebe-se a presença do Estado, em diferentes instituições (como a
família e a escola) atuando na vida desses sujeitos.
Considerações finais
Este estudo buscou entender como as dimensões e categorias analíticas como classe
social, raça, gênero, família e maternidade contribuem na subjetivação da
mulher/mãe/educanda da EJA.
Identifica-se que infância precarizada, necessidade de trabalhar “muito cedo” e a
gravidez na adolescência são questões que aparecem nos relatos das interlocutoras como
motivos da não escolarização na idade regular. Além disso, identifica-se o racismo de Estado
evidenciado nas desigualdades sociais presentes na trajetória de dona Mara; a ideia de
“circulação de crianças” e diferentes modelos de famílias, ausência paterna e moralidade
materna, revelados na história de Luana e Marta. Todas essas relações de poder e práticas
sociais que perpassam a existência dessas mulheres fazem parte do processo de produção
desses sujeitos.
Referências
DAS, Veena. A figura da mulher raptada: o cidadão sexuado. In: Vida e palavras: a violência
e sua descida ao ordinário. Tradução Bruno Gambarotto. São Paulo: Editora Unifesp, 2020. p.
43-66.
231
“Yo no soy empleable, porque mi pertenencia étnica pesa mucho mas que mi valia
profisional o mi currículo”: interseccionando o feminismo romaní/cigano
INTRODUÇÃO
1
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), graduada em
Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), integrante do Grupo de Pesquisa Conflitos
Socioambientais (GPCONS) e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia pela Universidade
Federal da Grande Dourados – PPGANT UFGD. Email: cambalim1@hotmail.com
2
Mestrande pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Bacharel em Comunicação Social/Jornalismo (UFV). Membre do Grupo de Pesquisas em Gestão e
Desenvolvimento de Territórios Criativos (GDTeC-UFV) e do Pesquis(ações) sob(re) resistênciais sociais
(DiVerso-UFGD). Assoaciade à Associação Brasileira de Pesquisadores e Pesquisadoras Negros e Negras
(ABPN). Bolsista de mestrado CAPES. E-mail: yuri.tomaz90@gmail.com
233
“Diri, Diri, como isso pôde ter acontecido? Ela não era boa para mim, ela sequer
me beijava. E no fim ela me deixou por outra pessoa! Ei, Diri, Diri, você matou a
sua esposa, a mais bela! Minha esposa era bonita, eu a matei, assim ela não seria
mais infiel. Deus, Deus, sinto muito por ter feito isso com minha esposa. Ei,
ciganos, ei garotos, digam-me, como isso pode ter acontecido?” (RÓTA, 1999)
3
Música Diri, Diri, So Kerdjan? do grupo Romanyi Rota. Tradução livre: “Ei, Diri, Diri como isso pôde ter
acontecido? Como você pode ter assassinado sua esposa?”
4
Idioma cigano utilizado pelos grupos de etnia Rom.
5
Pessoas não ciganas
6
Romanyi Rota significa rodas ciganas em húngaro.
7
Aqui utilizamos os termos “femininos” e “masculinos” entre aspas na intenção de fissurar esses conceitos
binários, alocados sobre uma égide ocidental na qual os corpos são generificados e sexualizados conforme
expectação do jogo social em que os sujeitos são lidos a partir dessa binarização, em que a subjetividade e a
noção de pessoa não considerados, a priori. Estamos cientes que dentro do grupo étnico existem pessoas não-
binárias, transgêneros, travestis, transexuais e múltiplas identidades que agudizam o processo de
subalternidade e abjeção.
235
8
“A ciganidade é a forma de se relacionar com o mundo e consigo mesmo que os ciganos desenvolveram em
uma história milenar, permeada de perseguições e sofrimentos, sem nunca perder de vista que tudo isso
serviria para reforçar sua identidade cultural.” (ANDRADE JR, 2013, p. 96).
236
Reis Coutinho, pesquisadora dos povos ciganos no Brasil e com a calin9 Leda Oliveira
Cruz. Vejamos
De formação sabidamente patriarcal, os modos de organização familiar dos
povos ciganos suscitam debates, por vezes acalorados. Observamos
especialmente aqui os feminismos hegemônicos: com uma análise crítica
que universaliza a categoria mulher e o conceito de opressão, com base nas
experiências da mulher branca, ocidental, é de suma importância a
ponderação desses debates para não cair num lugar de “salvacionismo”,
com a pretensa posição de uma tutela ocidental (SAID, 1978) de mulheres
que partem de outros lugares sociais e culturais. Questionar as socialidades
ciganas, ou seja, os diversos modos de organização desses grupos, com
base em uma epistemologia ocidental, ignorando outros marcadores sociais
da diferença que atravessam de modo entrelaçado as experiências das
ciganas além de gênero (raça, etnia, classe, etc.) sinaliza de forma explícita
essas mulheres como as outras. O que deve ser proposto, de fato, é o
reconhecimento da legitimidade da voz das próprias mulheres ciganas ao
relatar suas experiências (2020, p. 166).
9
Mulher cigana da etnia Calon
10
Refletimos a dimensão do “ser mulher cigana” como uma construção ontológica de modo de sentir, perceber
e experimentar o mundo, esquivando-nos de possíveis compreensões ontológicas biologizantes do “ser
mulher” como sendo da ordem da essencialização generificada.
237
por exemplo, entre duas pessoas da etnia Calon (SHIMURA, 2017); e, por último, pelas
conexões tecidas com o entorno não cigano – dito de outro modo, pelos encontros com a
sociedade majoritária.
E é neste espaço de interações que despontam os marcadores sociais da diferença
como lentes analíticas de uma realidade multifacetada, de complexa compreensão. Se
partimos da premissa de que as culturas, e as identidades étnicas, não se resumem em
essencialidades – pois também experimentam o transcorrer do tempo –, e sim a um processo
contínuo e dinâmico de arranjo cultural da vida, que subjaz o processo de significação e
ressignificação do (re)viver em suas mais diversas dimensões, então teremos de reconhecer
que estabelecer vínculos com a mulher cigana – e com toda a estrutura que a envolve, dentro
e fora de seu grupo de pertença –, ter sororidade, suscita uma profunda atitude de escuta; à
la Gayatri Chakravorty Spivak: pode a subalterna cigana falar?
Quais espaços os movimentos feministas, e de enfrentamento às violências de
gênero, sobretudo aquelas constantemente vivenciadas por mulheres, têm reservado para
ecoar as vozes ciganas? O quão dispostos estamos em refletir sobre os mais diversos e
determinantes fenômenos – como estabelecimento de socialidades a partir de alianças
matrimoniais e parentescos11, sobre assimetria de gênero em contexto cultural singular, entre
outros – a partir dos entendimentos ‘nativos’?
O processo de alteridade, de performar e produzir “o outro”, que só existe a partir
de um “eu” (ABU-LUGHOD, 2018), no intuito de compreendê-lo em sua complexidade,
envolve entender e des-re-pensar, a partir da racionalidade da mulher cigana, tanto o que ela
pensa/experimenta a partir de sua própria individualidade, quanto o que ela
pensa/experimenta a partir do olhar coletivo de seu grupo – sobre condutas como a de Diri,
por exemplo.
E por assim ser, ou seja, visando preencher tais lacunas e visando construir
categorias teóricas próprias de interpretação da realidade que as tocam e afetam,
evidentemente “a partir das reflexões já precedentemente realizadas pelas feministas
oriundas de grupos subalternos e discriminados” (REA, 2017, p. 33), emerge, embebido da
perspectiva interseccional, o Movimento Feminista Romaní/Cigano, contribuindo para a
abrangência da crítica aos processos sociais de racialização e generificação da vida e das
assimetrias hegemonicamente estabelecidas e contornadas pelos mais diversos marcadores
11
A este respeito sugerimos a leitura da dissertação de Juliana Miranda Campos “Casamento Cigano -
produzindo parentes entre os Calons do São Gabriel” e a Tese da mesma autora intitulada “O Nascimento da
Esposa: movimento, casamento e gênero entre os calons mineiros”
238
1
Estrada segura, em dialeto cigano.
242
Neste sentido, as reivindicações das mulheres ciganas acabam por incidir tanto na
luta pelo combate à opressão racista, quanto pelos atravessamentos advindos da condição de
gênero e classe. Sem perder de vista a heterogeneidade de realidades socioculturais, presente
nas mais diversas etnias ciganas, sabemos, a título ilustrativo, que as mulheres ao exercerem
seus ofícios tradicionais, como a leitura das mãos, sempre estiveram em uma condição de
vulnerabilidade diferente da enfrentada pelos homens ciganos, inclusive sendo alvos fáceis de
repressão policial (BORGES, 2007).
Nesta perspectiva, a cada dia que passa é menos comum depararmos-nos com
mulheres ciganas vestidas com suas saias rodadas e coloridas nos centros urbanos em busca
de curiosos interessados em ouvir a buena dicha. Em sua lida diária, as mulheres ciganas
encontram às vezes um bom resultado e outras nem tanto, sendo frequentemente “banidas das
ruas, estigmatizadas pela sociedade envolvente e vistas como forma de contágio,
contaminação e poluição” (VEIGA; MELLO, 2012, p. 94).
A cigana Elizete Moreira, mais conhecida como “Preta”, em entrevista a Sanches
(2005), relatou sobre do preconceito ao qual as ciganas se expõem indo ler a mão na rua, ela
nos diz que “As pessoas têm medo, a gente fica envergonhada. Tem pessoa que maltrata,
xinga, quer agredir até. A gente tem de sair de perto. A gente fica ouvindo que rouba criança,
fica acanhada. Só ficam criticando, mas nós não somos aquilo”. Por esses e outros motivos,
ao que parece a prática da leitura das mãos tem sido rejeitada por parte das meninas mais
jovens.
De acordo com as interlocutoras ciganas de Ana Kátia Pereira Pinto (2010, p.77), o
costume está sendo modificado principalmente porque as ciganas mais jovens não têm
demonstrado o desejo em aprender a buena dicha por “sentirem vergonha de ir às ruas”,
assim, o “costume de ir às ruas é cada vez menos comum entre as ciganas”, sendo que
“muitos grupos, fixos ou semi-nômades, já aboliram esta tradição”. Ou seja, o trânsito entre
diversos mundos também gera processos de adoção/abandono/ressignificação de práticas
culturais.
As frentes de discussão acabam por se sobressair tanto em relação aos conflitos
internos, nos próprios grupos, como nos conflitos inerentes às reivindicações por espaço nas
sociedades hegemonicamente estabelecidas. No ano de 2017, em uma conferência realizada
por integrantes da Associação Ciganas Feministas pela Diversidade, sob o nome
“Hitzaldia/Conferencia: Este es el feminismo romaní, el construído por el Pueblo gitano”, a
cigana Maria José Jimenez, conhecida como Guru, direcionando-se a um público feminista
branco, diz
245
NOTAS INCONCLUSIVAS
2
Tradução livre.
246
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York:
Routledge. 1990.
DIAS NETTO JUNIOR, Edmundo Antonio. Povos ciganos: entre o preconceito e uma
afirmação de direitos que tarda em chegar. In: BRASIL, Ministério Público Federal.
Coletâneas de artigos Povos Ciganos: direitos e instrumentos para sua defesa. Brasília: MPF,
2020. E-book. Disponível em:
http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/maio_cigano_coletanea_versao _final.pdf. Acesso
em: 09 fev. 2023.
HIRANO, Luis Felipe Kojima. Marcadores sociais das diferenças: rastreando a construção de
um conceito em relação à abordagem interseccional e a associação de categorias. In:
HIRANO, Luis Felipe Kojima; ACUNA, Maurício; MACHADO, Bernardo Fonseca (Org.).
Marcadores sociais das diferenças: fluxos, trânsitos e intersecções. Goiânia: Imprensa
Universitária, p. 27-54, 2019.
JARDIM, Bárbara; ARAS, Lina Maria Brandão de. PODE A SUBALTERNA CIGANA
FALAR? Movimento de mulheres ciganas e uma nova perspectiva feminista no século
XXI. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero 12, 2021, Florianópolis. Anais [...].
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Intolerância, 66., 2012, Anais... Rio de Janeiro: ISER, 2012. p. 86-108.
250
RESUMO
Ao apontar para a invisibilização das histórias de mulheres negras nos museus tradicionais, a presente pesquisa
tem como objetivo investigar as relações de poder existentes no campo da Memória Social e dos museus,
trazendo as práticas do Museu da Maré e as narrativas das mulheres negras como instrumentos decoloniais para a
superação das tradições museais. A pesquisa foi realizada através do método qualitativo por meio de observação
participante e de entrevistas às colaboradoras do museu. O Museu da Maré é referência mundial em relação às
práticas propostas pela Museologia Social na busca pela dinamicidade da memória a partir do protagonismo dos
diversos sujeitos na construção de suas histórias, memórias e no apontamento das referências culturais, assim
como por viabilizar a resolução das demandas sociais e pedagógicas do Complexo da Maré. Ao demonstrar que
as estruturas dos museus na modernidade foram configuradas conforme a lógica colonial de hierarquização e de
exploração de modo a sustentar a matriz colonial de poder, a Museologia Social vem como um movimento
crítico na década de 70 a esse modelo tradicional de museu promovendo a diversidade das narrativas históricas e
culturais. No mesmo sentido, associa-se o pensamento feminista negro como instrumento crítico-teórico,
demonstrando a diversidade que permeia o grupo das mulheres negras enquanto grupo político de combate às
opressões de raça e gênero.
desse período tive a oportunidade de entrevistar a Marilena Nunes e a Dona Vera que se
identificam enquanto mulheres negras, moradoras do Complexo da Maré e fazem parte da
equipe do museu. Nessa entrevista, além de contarem de suas rotinas e de como conheceram o
Museu da Maré, elas falaram sobre suas histórias de vida, dos desafios encontrados no
percurso ocasionados pela questão da cor da pele, pela textura do cabelo, por serem mulheres
e pelas dificuldades econômicas, mas que encontraram no museu um espaço de lutas, de
referências culturais e simbólicas onde puderam afirmar suas identidades, ampliar suas vozes
e expressões.
O Museu da Maré foi inaugurado em maio de 2006 durante a 4ª Semana de Museus,
embora o histórico de seus projetos e ações tenham sido iniciados anteriormente a partir do
Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM). O Museu da Maré fica localizado
na Zona Norte do Rio de Janeiro e foi um dos primeiros museus comunitários criados na
cidade a partir da iniciativa dos moradores como meio de reivindicar os direitos sociais para
as favelas do Complexo da Maré. Entre esses direitos, o direito à memória.
A construção do acervo do Museu da Maré foi feita com o apoio dos moradores que
doaram seus objetos pessoais à exposição de longa duração “ Os Tempos da Maré”. A
exposição “Os Tempos da Maré” é dividida por partes correspondentes aos tempos de cada
época que perpassam a história da Maré, relatando os aspectos presentes no cotidiano dos
moradores ao longo da história de constituição do bairro, assim como propor reflexões a
respeito das conjunturas do território, desde o “Tempo das Águas até o “Tempo do Futuro”.
Em 2019, ano em que iniciei a pesquisa com as visitas de campo, o museu tinha como
exposição temporária no “Tempo do Futuro” um conjunto de obras que retratavam a vida de
Marielle Franco, vereadora negra e mareense que foi brutalmente assassinada durante seu
mandato um ano antes. A exposição chamada “Tempos de Marielle” que atualmente se
encontra no Museu da República, mantém a sua intenção de reivindicar justiça pelo
assassinato de Marielle a partir da memória de seu legado que se concretiza como referência
para as diversas mulheres negras e moradores de favelas.
. O museu faz parte da Rede de Museologia Social do Estado do Rio de Janeiro que
integra museus comunitários, ecomuseus, pontos de memória entre outras iniciativas que tem
como objetivo difundir o debate acerca das práticas da museologia social no estado,
atendendo os parâmetros da nova museologia com as funções de comunicar e resolver as
252
Uma hierarquia estética (a arte, a literatura, o teatro, a ópera) que, através das suas
respectivas instituições (os museus, as escolas das belas artes, as casas de ópera, as
revistas lustrosas com reproduções esplêndidas de pinturas), administra os sentidos e
molda as sensibilidades ao estabelecer as normas do belo e do sublime, do que é arte
e do que não é, do que será incluído e do que será excluído, do que será premiado e
do que será ignorado (Kant, 1960; Mignolo e Tlostanova, 2012; Mignolo, 2012;
Tlostanova, 2010a) (MIGNOLO, 2017, p. 11).
Nos diz ainda que as colônias europeias foram fontes de material bruto para a
fundação dos museus de história natural e de antropologia na Europa:
admitindo a matriz colonial de poder conferida no sistema global como fonte dos múltiplos
níveis de discriminação e dominação.
Ainda que o conceito de interseccionalidade tenha sido cunhado pela norte-americana
Kimberlé Crenshaw em 1989 ao identificar a interseção identitária na reprodução do racismo
no feminismo universalista e do machismo dentro do movimento negro, Akotirene ressalta o
pioneirismo da análise interseccional de Lélia Gonzalez ao interpretar a formação cultural
brasileira. No artigo “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira” de 1984, a antropóloga Lélia
Gonzalez aponta para o lugar da mulher negra no processo de formação da cultura brasileira e
os diferentes modos de rejeição e integração de seu papel. O racismo e o sexismo para Lélia é
um duplo fenômeno que produz efeitos violentos sobre a mulher negra.
Pela ótica psicanalítica, Lélia Gonzalez indica que o racismo naturalizado na cultura
brasileira relega às pessoas negras o lugar da incapacidade intelectual, da infantilização
através da linguagem utilizada. Com isto, indaga “por que o negro é isso que a lógica da
dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós o sabemos) domesticar?”. Desse modo,
Gonzalez trabalha com as noções de consciência e memória para demonstrar que no
imaginário social as mulheres negras são taxadas como mulatas, domésticas e mãe pretas:
ficasse liso. Mas, Graças a Deus com o passar do tempo fui conhecendo e
convivendo com pessoas e lugares que me ajudaram muito a assumir minha
verdadeira identidade.
A Dona Vera que faz parte da gestão do Museu da Maré, nasceu em Minas mas veio
morar no Morro do Timbau ainda criança junto com a sua tia Dona Orosina Vieira que foi
uma das primeiras moradoras da Maré. Dona Vera carrega o legado dessa importante
referência histórica da Maré, o simbolismo de sua presença no museu se coloca como
memória viva, onde por meio da oralidade contribui com a passagem de suas memórias da
infância às novas gerações, lembrando das lutas viabilizadas pelos moradores de lá em busca
do desenvolvimento do território. Ressalta sempre que pode a importância da atuação e do
legado de Marielle Franco enquanto mulher negra mareense. Ao falar sobre o que o Museu da
Maré representa para ela, Dona Vera diz com muito orgulho de seu parentesco com a primeira
mulher mareense:
Além de Dona Vera e Marilene, o museu conta com diversas mulheres na sua equipe.
Podemos considerar que as mulheres negras que compõem o Museu da Maré, rompem através
da narração sobre suas histórias de vida com as imagens de alteridade produzidas
externamente, estabelecendo a amplitude de suas falas como estratégia discursiva decolonial
diante dos apagamentos impostos pela história oficial dos museus tradicionais e pelas
imposições da matriz colonial de poder. O Museu da Maré busca resgatar a identidade coletiva
local a partir de referências políticas e culturais em comuns, marcadas nas memórias e nas
histórias dos moradores. Ao ressaltar a diversidade de narrativas de memórias a partir das
histórias de vidas e do acervo participativo da comunidade, o Museu da Maré se alia às
práticas da Museologia Social, se tornando um movimento social de luta pelo direito à
memória. As referências de memória consolidam a identidade coletiva dos moradores
mareenses, promovendo o sentimento de pertencimento, de valorização de si e do território.
De outro modo, a partir da oralidade, o Museu da Maré possibilita a visibilização e a
autodefinição das mulheres negras.
Referências
259
COCOTLE, Brenda Caro. Nós prometemos descolonizar o museu: uma revisão crítica da
política museal contemporânea. São Paulo: MASP, 2019.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. In: Revista Ciências Sociais
Hoje, Anpocs, pp. 223-244, 1984.
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. “Museus brasileiros e política cultural”. Rev. Bras. Ci.
Soc. v. 19, n. 55, 2004.
260
Resumo: Este ensaio tem como objetivo destacar a dimensão ecológica do ofício de raizeira e raizeiro do
Cerrado, evidenciando os regimes e disputas de poder relativos à propriedade da terra e à preservação ambiental
no bioma Cerrado. Para tanto, será abordada em linhas gerais a questão da diversidade do/no bioma Cerrado e
seu uso político por raizeiras e raizeiros no discurso de unidade em contraposição à destruição do bioma, na
candidatura a patrimônio cultural. Nesse bojo, passaremos pela reflexão, em caráter ensaístico, referente ao
avanço do agronegócio na colonização interna do país e a formas de resistência e movimentos contra
hegemônicos relacionados a isso.
1. Introdução
1
Segundo a solicitação de registro reapresentada em 2009, “As farmacinhas produzem em média 14 formas de
remédios caseiros: garrafada, tintura, xarope, vinagre medicinal, pomada, creme, sabonete, pílula, bala medicinal
ou pastilha, doce ou geleia medicinal, óleo medicado, pó, chá (planta seca), e multimistura. Dessas 14 formas,
são produzidos, em média, 40 tipos diferentes de remédios, com o uso de aproximadamente 70 espécies de
plantas medicinais”.
2
Registro é o instrumento jurídico instituído no âmbito do governo federal para reconhecer bens de natureza
imaterial como patrimônio cultural do Brasil (Decreto n° 3.551/2000). Fonte:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3551.htm Acesso em 09 de julho de 2022.
261
3
Essa constituição como associação formalizada está relacionada à questão da identificação dos
representantes legítimos de povos tradicionais no âmbito das políticas governamentais, a qual vem gerando a
criação de novos sujeitos de direito, isto é, personalidades jurídicas (CARNEIRO DA CUNHA, 2017). Os
movimentos de homogeneização jurídica e comoditização dos conhecimentos tradicionais têm gerado
complexidades crescentes e paradoxos, na medida em que as políticas relativas ao tema se pautam no
estabelecimento de contratos entre sujeitos de direito (ABREU, 2014; COELHO DE SOUZA, 2010). Isso
tem feito com que uma série de povos e grupos sociais adotem formas associativas para se adequarem a
essas exigências, criando novos sujeitos. Dessa maneira, conforme destaca Abreu (2014), ainda se nota a
prevalência de outras lógicas, como a das patentes e a dos direitos individuais e empresariais, sobre o
reconhecimento de autorias coletivas de conhecimentos tradicionais.
4
No final desta Introdução, são descritas as fontes consultadas, quais sejam: a) o “processo administrativo”
relativo ao pedido formal de registro do ofício de raizeiras e raizeiros do Cerrado como patrimônio cultural
do Brasil; b) o livro “Farmacopeia Popular do Cerrado” (2010), publicação em formato digital produzida
pelo coletivo responsável pelo pedido; c) o “Protocolo Comunitário Biocultural das Raizeiras do Cerrado:
direito consuetudinário de praticar a medicina tradicional” (2015), outra publicação desenvolvida por
iniciativa desse coletivo.
262
somente a natureza é domesticada pelo humano, como também o humano é pela natureza.
Daí a importância de levar a sério outras cosmologias não seculares do ponto de vista
antropológico, alargando o campo de percepção e tornando visível a força de outras
leituras de mundo5.
Com relação à representatividade da Articulação Pacari, ela abrange praticantes do
ofício em regiões dos estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul, Tocantins e
Maranhão, não havendo menção expressa ao Distrito Federal e demais porções de outros
estados que, conforme o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio6), fazem parte do bioma Cerrado. Na demanda por reconhecimento como
patrimônio cultural, a associação apresentou-se como “rede socioambiental” formada por
integrantes da sociedade civil que trabalham com “saúde comunitária, cultura e meio
ambiente” e sua sede está localizada na Cidade de Goiás.
A rede mobilizadora abarca um grupo extenso e heterogêneo de pessoas envolvidas
no ofício, localizadas em distintas regiões desses estados do Cerrado, totalizando quase
300 integrantes de maioria formada por mulheres de zonas rurais vinculadas à igreja
católica (pastorais), conforme perfil predominante sintetizado por D’Almeida (2018),
embora também façam parte da articulação comunidades indígenas e quilombolas7. Não é
raro que as pessoas praticantes desse ofício dominem também outros saberes, como o de
parteiras, benzedeira/es e rezadeira/es, aspecto para o qual o próprio grupo chama a
atenção nas fontes de pesquisa analisadas.
Não está definido com precisão no material consultado o número total de pessoas
que se identificam como raizeiras e raizeiros do Cerrado dentro da Articulação Pacari
5
Nesse sentido, aparecem como possibilidades empíricas futuras refletir acerca da agência das plantas: quais
situações são criadas por elas, quais atores mobilizam, quais relações evocam, o que elas informam, entre
outras questões. Isso porque, as plantas são elementos tão relevantes quanto os humanos nesses regimes de
conhecimento, não havendo uma maneira única de se relacionar com elas (HETHERINGTON, 2013;
DOVE, 2019 e VIERA; 2021).
6
Conforme o sítio eletrônico do ICMBio, “O Cerrado é um dos cinco grandes biomas do Brasil, cobrindo
cerca de 25% do território nacional e perfazendo uma área entre 1,8 e 2 milhões de km2 nos Estados de
Goiás, Tocantins, Mato Grosso do Sul, sul do Mato Grosso, oeste de Minas Gerais, Distrito Federal, oeste da
Bahia, sul do Maranhão, oeste do Piauí e porções do Estado de São Paulo”. Disponível em:
https://www.icmbio.gov.br/cbc/conservacao-da-
biodiversidade/biodiversidade.html#:~:text=O%20Cerrado%20%C3%A9%20um%20dos,oeste%20do%2
0Piau%C3%AD%20e%20por%C3%A7%C3%B5es Acesso em: 02 de setembro de 2022.
7
Dentre os quilombolas, é possível mencionar as comunidades Kalunga, do Buracão e do Cedro, no estado
de Goiás, sendo que na última funciona o Centro Comunitário de Plantas Medicinais do Quilombo do Cedro.
Dentre os indígenas, nas fontes verificadas, é feita menção aos povos Pataxó-Pankararu e Xakriabá, no
estado de Minas Gerais. Além disso, fazem parte do coletivo assentamentos da reforma agrária, grupos de
mulheres, centros comunitários, farmacinhas comunitárias, agricultores e extrativistas, para além de agentes
pastorais, quilombolas e indígenas já mencionados.
263
(isto é, dentre os seus quase 300 integrantes). Assim, o próprio grupo tem realizado uma
série de reuniões, encontros e mapeamentos com vistas a identificar os sujeitos que se
reconhecem dessa maneira e os seus saberes relativos ao uso das plantas no Cerrado.
Com o intuito de autorregular a prática, foi desenvolvida pesquisa popular para a
produção de uma farmacopeia do Cerrado8. Essa pesquisa visou registrar os
conhecimentos tradicionais9 relativos aos saberes e usos de plantas medicinais do Cerrado,
mas também funcionar como um instrumento político de proteção à apropriação indevida
desses recursos e conhecimentos. O trabalho se deu entre os anos de 2001 a 2005, em
Minas Gerais, Goiás, Tocantins e Maranhão, contando com metodologia específica e com
a participação de representantes comunitários. O resultado disso foi um material rico em
ilustrações e informações, denominado “monografias populares”, sobre nove plantas do
Cerrado e conhecimentos tradicionais associados a elas. As plantas escolhidas foram:
Barbatimão, Pacari, Rufão, Algodãozinho, Pé de Perdiz, Batata de Purga, Ipê-Roxo, Buriti
e Velame.
Este ensaio tem como objetivo destacar a dimensão ecológica do ofício de raizeira
e raizeiro do Cerrado, evidenciando os regimes e disputas de poder relativos à questão da
propriedade da terra e à preservação ambiental no bioma Cerrado. Para tanto, detive minha
10
atenção em algumas fontes de pesquisa, quais sejam: a) o “processo administrativo”
relativo ao pedido formal de registro do ofício de raizeira e raizeiro do Cerrado como
patrimônio cultural do Brasil; b) o livro “Farmacopeia Popular do Cerrado” (2010),
publicação em formato digital produzida pelo coletivo responsável pelo pedido; c) o
“Protocolo Comunitário Biocultural das Raizeiras do Cerrado: direito consuetudinário de
praticar a medicina tradicional” (2015), outra publicação desenvolvida por iniciativa desse
coletivo. Com isso, pretendo analisar o peso da questão
8
Conforme a própria publicação, assim é definido o termo farmacopeia: “As farmacopeias, do grego
fármaco – princípios ativos ou medicamento – e, peia – fabricação –, são livros oficiais do governo para a
identificação dos medicamentos de um país e o controle de qualidade em sua fabricação. Nelas encontram-
se registradas principalmente substâncias químicas, plantas, derivados de animais e outras matérias-primas
utilizadas na preparação de medicamentos” (p. 56). A publicação apresenta ainda os trabalhos comunitários
que resultaram nessa catalogação.
9
Seguindo o pensamento de Carneiro da Cunha (2017), Pantoja (2016) em discussão conceitual sobre o
assunto reforça que os conhecimentos tradicionais não são uma categoria nativa. Sua paulatina apropriação
pelos grupos se deve à sua dimensão pública e política, incluindo sob sua significação notória elasticidade e
heterogeneidade de coletividades, as quais podem estar localizados em áreas urbanas, periurbanas,
rurais/florestais e dominam saberes diferenciados sobre o ambiente no qual vivem. Da mesma forma que o
conceito de cultura, constituiu-se então em “arma dos fracos”.
10
Faz parte desse material todo o conjunto documental que compõe aquilo que na administração pública é
denominado “processo administrado”; nele, são inseridas todas as comunicações que visam dar andamento a
essa demanda.
264
11
Conforme o Protocolo Comunitário, “O Cerrado também é considerado a “mãe d’água do Brasil”, por
possuir as nascentes de grandes rios, como o São Francisco, o Araguaia, o Xingu e o Tocantins. Suas águas
alimentam seis importantes bacias hidrográficas brasileiras, entre elas a bacia Amazônica e a bacia dos rios
Paraná e Paraguai” (p. 7).
265
Para eles, a valorização dos “modos de fazer da medicina popular” promove tanto
a preservação ambiental como a proteção dos conhecimentos tradicionais relativos ao
meio ambiente. No que tange às “relações multiespécie”, isto é, aquelas que se dão com as
plantas, os animais e demais seres vivos, é possível diferenciar o modo de atuação das
raizeiras e raizeiros do Cerrado em relação aos empreendimentos voltados à
monocultura12, fator demarcado pelo grupo que está pleiteando a patrimonialização em
tela.
Desse modo, diferentemente do tratamento abstraído como recurso ou
investimento – como ocorre nas monoculturas –, existe todo um procedimento por parte
dos raizeiros que compõe o processo de coleta, englobando rezas e rituais, referências a
seres do mundo espiritual, a observação das fases da lua e das relações das plantas com os
demais seres da fauna e flora antes de se proceder à coleta, sendo que os remédios
produzidos são utilizados inclusive para uso veterinário13.
É importante observar que a formulação inicial do pedido de patrimonialização
passou depois por reconfigurações. Desse modo, se em um primeiro momento, o enfoque
da associação recaiu sobre o livro da “Farmacopeia Popular do Cerrado”, posteriormente,
isto é, após sugestão de instância colegiada14 e de técnicos do Iphan, houve sua
modificação no sentido de tornar central os saberes das pessoas que exercem essas práticas
e não a farmacopeia em si. Assim, tal instância sugeriu o foco nos ofícios e saberes
relativos ao documentado no livro.
É possível observar no pedido de 2006, e mais expressamente na reformulação de
2009, realizados pela associação, a ênfase no manejo e uso sustentável dos recursos do
Cerrado, predominando o argumento concernente à biodiversidade e a questão da
preservação ambiental do Cerrado, embora também haja a sua caracterização como prática
que visa a curas, sendo mencionadas algumas controvérsias relacionadas às
regulamentações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e à necessidade
12
Nos sistemas voltados à monocultura, tanto as pessoas, como as plantas e os animais, são abstraídas de
modo a se tornarem recursos ou investimentos e isto está relacionado à padronização do mundo, atuando em
contínua tensão com a diversidade natural e cultural ao operar mediante réplicas e escalabilidades
(MITMAN; HARAWAY e TSING, 2019).
13
Além disso, podemos mencionar as diferenças na forma de classificação das plantas a partir dos regimes
de conhecimento próprios de cada grupo, possuindo uma diversidade de denominações que transcende a
taxonomia científica oficial.
14
Esta instância é a Câmara do Patrimônio Imaterial, responsável por fazer uma primeira avaliação dos
pedidos de registro (após a instrução técnica do processo pelos servidores do Iphan). Isso ocorre antes de a
solicitação ser levada à votação pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, órgão colegiado de
decisão máxima do Iphan.
266
15
Conforme o sítio eletrônico do Iphan: “O Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) é uma
metodologia de pesquisa desenvolvida pelo Iphan para produzir conhecimento sobre os domínios da vida
social aos quais são atribuídos sentidos e valores e que, portanto, constituem marcos e referências de
identidade para determinado grupo social”. Disponível em: Página - IPHAN - Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional Acesso em: 10 de setembro de 2022.
16
No tópico “dificuldades e desafios de raizeiras e raizeiros do Cerrado”, do INRC do Oficio de Raizeira e
Raizeiro do Cerrado, fica evidente o peso da questão ambiental na construção da unidade do grupo e são
mencionados alguns entraves à livre prática do ofício, entre eles: “a) Falta de legislação que assegure o
direito do uso tradicional e sustentável dos recursos naturais no cuidado com a saúde;[...] e) Conversão
de ecossistemas naturais em monoculturas e perda de biodiversidade do Cerrado; f) Falta de áreas
comunitárias para o manejo sustentável de plantas medicinais; [...]”.
267
17
Trata-se de uma simplificação radical, expansiva e replicável, que destrói florestas e economias locais
(TSING, 2019).
268
18
Da mesma forma, também é necessário complexificar a visão que se tem do agronegócio. No âmbito dessa
temática, Pompeia (2020) discorre acerca da articulação dentro da estrutura do poder estatal e do
reordenamento de formas de atuação política no campo do agronegócio. Ele observou um impulso
organizado e sistemático das representações patronais relativas aos complexos agroindustriais, que não
significa propriamente um retorno à unidade de representação e nem um retorno à fase das multifiliações.
Trata-se, pois de uma “concertação política”, de modo que os detentores do poder referente ao agronegócio
desenvolveram maneiras de racionalizar as diferenças e encontrar consensos nas relações com o poder
estatal, organizando o grupo. São então agentes heterogêneos atuando em concerto, os quais têm obtido êxito
nas mesas de negociações com o poder público e perante a opinião pública por meio de diferentes
estratégias.
269
19
Sua expansão para o Centro-Oeste, Amazônia e oeste baiano se deu nesse mesmo período histórico, de
modo que até 2019 o Mato Grosso concentrava cerca de 28% da produção de soja nacional (ALMEIDA,
2021).
20
Almeida (2021, p. 4) relata que: “Até os anos 1970, a área estudada era coberta por floresta parcamente
habitada, pontuada por seringais, garimpos e fazendas de pecuária extensiva. A população preestabelecida
de comunidades ribeirinhas e indígenas foi sendo impelida a abandonar seus territórios e, virtude de uma
série de políticas que tinham como objetivo a fixação de população exógena, oriunda das regiões Sul e
Sudeste”.
270
21
Segue a conceituação de protocolos comunitários dada pelo próprio grupo nessa publicação: “são
instrumentos políticos que contêm acordos elaborados por povos e comunidades tradicionais, sobre temas
relevantes aos seus modos de vida, visando à garantia de seus direitos consuetudinários” (p. 4) Fonte:
271
https://absch.cbd.int/api/v2013/documents/E5195138-7269-5615-AD9E-
E25D19844AFB/attachments/202716/Protocolo_Comunitario-Raizeiras.pdf Acesso em 09 de julho de 2022.
22
Como dito anteriormente, tal caracterização coloca a biodiversidade e o meio ambiente em posição
destacada nessa candidatura a patrimônio cultural do Brasil.
23
Lei 13.123, de 20 de maio de 2015, que “Regulamenta o inciso II do § 1º e o § 4º do art. 225 da
Constituição Federal, o Artigo 1, a alínea j do Artigo 8, a alínea c do Artigo 10, o Artigo 15 e os §§ 3º e 4º
do Artigo 16 da Convenção sobre Diversidade Biológica, promulgada pelo Decreto nº 2.519, de 16 de março
de 1998; dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento
tradicional associado e sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da
biodiversidade; revoga a Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001; e dá outras providências”.
272
24
Gallois (2012) também debate esse tema. Analisando algumas práticas culturais dos Wajãpi, ela demonstra
como na concepção do povo existe a preocupação da perda da precedência no acesso aos próprios saberes,
pois se forem apropriados por outros se tornarão indisponíveis aos Wajãpi, contudo, o valor está fundado na
capacidade de circulação e não no monopólio de saberes – gerando o paradoxo de que para assegurarem a
adequada circulação têm que se legitimar afirmando-se como donos.
25
Entre tais metas, estaria a capacitação dos povos e comunidades tradicionais quanto à Lei da
Biodiversidade; a criação da Universidade Popular do Cerrado, para o ensino e aprendizagem de formas de
uso tradicional e sustentável da biodiversidade do bioma; a gestão comunitária das áreas consideradas
prioritárias para a coleta sustentável de plantas medicinais; a eliminação de incentivos lesivos à
biodiversidade, especialmente no que diz respeito à mineração e agropecuária extensivas; as medidas para
evitar a extinção das espécie nativas ameaçadas e daquelas que são prioridade para a medicina tradicional do
Cerrado; as farmacopeias tradicionais relativas a todos os biomas brasileiros para verificar aquelas que
prioritariamente devem ser conservadas; o direito à manutenção das sementes crioulas pelos povos do
Cerrado e que as políticas públicas incorporem práticas tradicionais de cultivo e sistemas agroecológicos de
produção de alimentos, visando a soberania alimentar dos povos do Cerrado.
273
5. Considerações finais
26
Comparado ao outro caso de candidatura a patrimônio cultural que envolve saberes e usos de plantas
medicinais, esta questão do peso e diferencial que o fator ambiental (bioma Cerrado) representa no
reconhecimento relativo às raizeiras e raizeiros fica ainda mais evidente.
275
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278
RESUMO
Este presente trabalho constitui-se de uma análise antropológica sobre a coleção de objetos expostas no Museu de
Arte Indígena de Curitiba, Paraná. Para tal, proponho uma análise sobre o processo de classificação dos objetos
musealizados neste espaço particular e que foram adquiridos a partir de práticas de colecionistas realizadas em
expedições pelo Brasil. Pretendo compreender as formas pelas quais este acervo foi construído, quais perspectivas
orientaram estas práticas e a produção dos discursos sobre a alteridade ao identificar as relações de poder- saber que
se fazem consolidadas no discurso expositivo. A pesquisa etnográfica aqui exposta tem como intuito olhar para o
caminho feito por esses objetos, as hierarquizações, assimetrias e dualidades de como eles estão sendo expostos e
quais narrativas estão sendo comunicadas. Longe de qualquer objetivo sobre conclusões e afirmações, o intuito
dessa pesquisa é abrir espaço para o debate de práticas colecionistas que deslocam objetos em espaços e tempos e
em quais discursos as instituições se apoiam nessas práticas expositivas, a pretensão não é de questionar o que é
arte, mas iniciar essa reflexão sobre que tipos de artes indígenas estão sendo expostas.
Como foi explicado no início deste artigo, objetos de origem não europeia não se
classificam como obra de arte para os historiadores da arte, reflexo de um pensamento
eurocêntrico. Sendo assim, os objetos produzidos dentro de diferentes culturas eram por uma
arte europeia relegados à classificação de “arte primitiva”, que não se encaixava nos moldes
europeus de classificar obras de arte.
Se objetos indígenas cristalizam ações, valores e ideias, como na arte conceitual, ou
provocam apreciações valorativas da categoria dos tradicionais conceitos de beleza e perfeição
formal, como entre nós, por que sustentar que conceitualmente esses povos desconhecem o que
nós conhecemos como ‘arte’? (LAGROU, 2010).
É a incapacidade de compreender as variedades de se fazer arte que leva muitos
estudiosos de arte não ocidental, principalmente daquela chamada de “arte primitiva”, a
expressar comentários de que os povos dessas culturas quase não falam sobre arte o que, na
verdade, esses comentários significam é que esses povos não falam de arte como seus estudiosos
falam em termos de propriedades formais, de seu conteúdo simbólico, de seus valores afetivos, e
de seus elementos estilísticos (GEERTZ, 2018).
Imagino que uma das respostas para o questionamento proposto por Els Lagrou (2010)
vem da própria antropologia e da corrente evolucionista de pensamento que nomeava a cultura
material de povos aborígenes, africanos e ameríndios como “arte primitiva”. Essa “arte
primitiva” começa a ser vista em expedições antropológicas e catalogadas como artefatos
etnográficos. "Culturas" se tornam assim coleções etnográficas.
Clifford (1989) afirma que toda apropriação de cultura, pressupõe uma posição temporal
e uma forma de narrativa histórica específicas. Juntar, possuir, classificar e avaliar sem dúvida
não se restringem unicamente ao Ocidente, mas em outros lugares essas práticas não precisam
estar associadas à acumulação ou à preservação, sendo assim a práxis de um colecionar cultural
tem como princípio as noções europeias de temporalidade e ordem.
Se por um lado o apagamento das histórias desses povos foi intenso e sistemático, por
outro havia o acúmulo de cultura material sendo exportada para Europa, promovendo, não as
memórias dessas culturas que foram saqueadas, mas sim do colonizador. Consagre-se assim a
entrada de objetos nos locais que chamamos de museus, que se tornam um espaço de
organização, classificação e exposição através de coleções desses objetos.
Observar exposições e a diferença delas dentro de mesmo museu é interessante para ver a
forma como os objetos são recategorizados e reclassificados, a maneira como são apresentados e
as relações propostas entre eles variam bastante e oferecem a possibilidade de o público atribuir
significados a eles objetos de diferentes maneiras considerando que eles sofrem uma
281
mudança drástica ao serem desconectados de uma vida cotidiana para então serem musealizados
(VINCENT, 2014).
Museus são universos e pontos de contato, como propõe James Clifford (2016) e cada
exposição é um universo recortado, impossível de ser aprendido em sua totalidade.
Considerando as elaborações anteriores neste presente artigo, descreveu abaixo uma análise e
reflexão minhas, dadas as impressões que obtive em uma visita ao Museu de Arte Indígena de
Curitiba (MAI). Essas compreensões são feitas não de um ponto de vista de crítica de arte, mas
sim de uma perspectiva antropológica de se pensar espaços expositivos, quando estes o fazem a
partir de coleções de arte indígena.
O MAI (Museu de Arte Indígena) foi inaugurado em 2016 em Curitiba, Paraná e está
localizado em uma área prestigiosa da cidade, porém fora das regiões onde há uma concentração
maior de museus. Seu acervo compõe aproximadamente quatro mil objetos, sendo mil deles
expostos em dois andares, são coleções de arte plumária, cestaria, máscaras ritualísticas,
adornos, instrumentos, utilitários e armas.
Importante colocar aqui que o MAI é um museu particular e para acessá-lo é preciso
entrar em um edifício comercial, o acervo vem de uma inicial coleção particular de sua então
proprietária Julianna Padolan que os adquiriu em formato de compra durante suas expedições
pelo Brasil onde teve contato com diversas etnias. Foi em 2009, na cidade de Clevelândia,
interior do Paraná, que o MAI é concebido então como espaço expositivo aberto ao público.
Julianna abre seu acervo particular.
O espaço atual onde o museu está localizado, desde 2016 na cidade de Curitiba, pode ser
considerado um lugar moderno, amplo e bem iluminado, mas não deixa de ter em sua estrutura
as características de um espaço comercial, no térreo, junto a recepção por onde entrei, há uma
pequena vitrine de objetos expostos para venda, são colares, pimentas e algumas cestarias.
282
Essa é a diferença de uma narração estritamente escrita e outra que se utiliza de técnicas
visuais e espaciais para acessar os objetos expostos. E isso pode ser claramente percebido em
minhas visitas ao MAI, há uma intenção em se fazer do espaço um lugar de experiência. No
artigo sobre sua pesquisa de campo no Museu Quai Branly Nina Vincent (2014) traz uma
reflexão a partir de um pensamento crítico que James Clifford também faz sobre o Quais Branly,
e que se aplica às minhas reflexões sobre o MAI:
285
A partir do meu olhar de observação sobre MAI, é possível aplicar essa citação que Nina
Vicent (2014) faz de James Clifford (CLIFFORD, 2007 apud VINCENT, 2014) sobre a
“dominação da arquitetura sobre o conteúdo” pode ser identificada nas paredes com desenhos de
animais como araras e tucanos, no intuito de propor imersão na floresta por meio de aromas e
sons, o espaço educativo em formato de oca e feito madeira. Tudo isso coloca a cenografia
muito acima do conteúdo de curadoria e das informações sobre os objetos reforçando essa
“fantasia primitivista” (CLIFFORD, 2007 apud VINCENT, 2014) e os estereótipos enraizados
em nossas estruturas de pensamentos.
Os objetos expostos estão inseridos dentro de um cubo asséptico e recoberto com vidro, a
exposição é dividida por tipo de objeto e um texto curatorial propõem-se a contextualizar o
visitante sobre questões específicas que envolvem a produção desses objetos, a primeira é de
arte plumária. Nas paredes encontram-se informações das etnias que os produziram.
286
As legendas estão ao lado dos objetos, dentro do cubo de vidro e contam apenas com
informações básicas, como o nome do objeto em si, etnia a qual pertence, a procedência e as
dimensões. Não há quase nenhuma informação sobre os objetos, sobre a coleta, forma como
chegou até ali, e nem de quando foi adquirido pela proprietária do museu. De acordo com Nina
Vincent (2014) há diversas maneiras de inserir essas informações de contextualizações dos
objetos, como, por exemplo, placas, legendas, mapas, diagramas, catálogos, guias e
performances, ou estabelecer relações com outros objetos classificando-os com base nas
relações históricas, mas isso é ausente no MAI.
Além das problemáticas acerca das formas como os objetos são expostos, o que também
me chama a atenção são as falas da proprietária Julianna Padolan em uma entrevista concedida a
uma revista local de Curitiba, onde ela diz:
Eu sempre tive contato com arte e pedi a uma amiga, do Mato Grosso do Sul, que me
mostrasse algo bem de raiz deles e ela me convidou a ir até uma aldeia. Eu disse:
“Ainda existe índio?”. E ela ficou chocada. “Em que mundo você vive?”, me
perguntou. Como brasileira, fiquei muito envergonhada de não conhecer o que existe
de mais original no nosso país, que é a cultura indígena. Quando entrei na aldeia, fiquei
ainda mais impactada. Aí começou todo esse despertar em querer saber quais são esses
povos, onde eles estão, como vivem (PADOLAN, 2018).
289
A falta de revisão entre a fala de Padolan e a proposta do MAI suscita uma narrativa
questionável, a forma como a proprietária coloca sua percepção sobre os povos originários,
reforça o estereótipo herdado de um processo colonial e, não coincide com a proposta do
discurso da promoção de alteridade do museu.
colecionador original e,
- O terceiro modo que são as coletas sistemáticas que não funcionam com o
acúmulo, como a coleta fetichista, mas pela seleção de alguns exemplos, destinados
a substituir todos os outros de sua espécie.
Isso podemos observar na forma como o MAI coletou e expôs seus objetos, há essa
ilusão proposta por Clifford de representação, mas os objetos são recortes de uma coleção
particular e, como não há uma trajetória clara de como e por que eles chegaram até ali, seu
contexto e sua história são sequestrados pela sua coletadora e posteriormente, colecionadora.
Julianna coletou e colecionou esses objetos, não com o objetivo de criar uma coleção
etnográfica, mas como um acúmulo de objetos que materializam suas experiências. A
semelhança do colecionador com o acumulador não é óbvia, enquanto um acumula passiva e
acriticamente uma variedade heterogênea de coisas que acredita que serão úteis um dia, o
colecionador busca ativamente apenas certos tipos de objetos em que ele está interessado, se
apega e tende a usar a coleção para melhorar sua autodefinição (BAEKELAND, 1981).
Houve assim, uma transição de postura da proprietária do MAI, que se deslocou de uma
acumuladora de artefatos de indígenas para uma colecionadora de arte indígena.
Quando jogamos luz nas coleções, James Clifford traz o exemplo de crianças, de
quando elas colecionam há algo revelador para a análise, a acumulação de carros em
miniatura, bonecos, pedras, conchas lápis, tudo isso somado a pequenos rituais faz com que
observamos as sutis ranhuras da obsessão do indivíduo de se apropriar do mundo, reunindo
coisas em torno de si transformando pequenos tesouros pessoais em algo público
(CLIFFORD, 1988). É na ausência de contextos e informações e, na presença de sua
proprietária em toda a história da coleção, que é possível identificar sua obsessão com os
artefatos indígenas ali expostos em tentativa de emergir um sentimento de posse sobre o que
aqueles objetos representam. De acordo com James Clifford:
O que Clifford coloca acima é uma reflexão sobre essas extensões de “eus” que
surgem com a prática colecionista, do sujeito colecionador sendo representado pelo objeto
colecionado e do objeto colecionado sendo como parte também do colecionador.
De acordo com Ilana Goldstein (2021): “artistas e curadores não indígenas têm
buscado aproximações com os povos originários”. Um exemplo é a curadoria de Moacir dos
Anjos de “A queda do céu”, exposição organizada no Paço das Artes em São Paulo, no início
de 2015, em referência ao livro de mesmo nome publicado por Davi Kopenawa e o
antropólogo Bruce Albert. Ao contemplar o universo ameríndio, iniciativas como essas
293
Penso que é uma estratégia sim, de insurgência e de reação, como eu digo também,
um direito de resposta a um projeto de arte brasileira e a um processo histórico da
arte brasileira onde não fomos incluídos e já que não podemos voltar no tempo com
uma máquina do tempo para reconstruir essa história da arte podemos agora
construir uma historiografia a da arte contemporânea (BANIWA, 2021).
Figura 1
294
Figura 2
Primeira Missa, 2019, Denilson Baniwa. Fonte: Catálogo da 29° Edição do programa de exposições
CCS.
Figura 3
Ẽpry vẽnkhãpóv (Encruzilhada), 2022, Luiz da Silva Kaingang e/ and Joanilton da Silva Foság,
Coletivo Kókir. Foto: Alexandre Mazzo/Ziviani Fotografia
296
Conclusão
Ao repassar por todos os pontos trazidos nesses textos, sejam por percepções e
interpretações minhas ou pelo diálogo com autores, um ponto que fica latente é de qual versão
da história da arte indígena nós vamos ou devemos contar? Quando digo nós, digo de um lugar
de branquitude, de crítica ao eurocentrismo nas artes e na visão de belo que é imposta por uma
cultura ocidentalizada.
Latour (2004) vai questionar o que é informação e o que os membros de uma expedição
devem levar na volta para que o centro possa fazer uma ideia de outro lugar, ao coletar plantas,
objetos e outras coisas que possam teoricamente representar um lugar não acabam apenas
simplificando sua integralidade? Ao transpor objetos, colocando-os em exposição, o MAI não
estaria também reduzindo a imensa complexidade de inúmeros povos indígenas? Um gabinete
de curiosidades, um relato de viagem, um volume de pranchas ornitológicas, devem ser tomados
como a ponta de um vasto triângulo que permite graus insensíveis. (LATOUR, 2004).
Para Clifford (1989) contar essas outras histórias, histórias locais de sobrevivência e
emergência da cultura, precisamos resistir aos hábitos da mente e sistemas de autenticidade
arraigados em nós, é necessário um exercício de suspeita da tendência quase que automática de
perpassarmos os povos indígenas e os objetos não-ocidentais.
Se a proposta do MAI é ser um Museu de Arte Indígena, como o próprio nome diz, há
uma desconexão entre o seu discurso e a agência dos objetos expostas. O papel do curador é
uma prática que propõe uma contextualização da exposição, isso nos permite ver e compreender
essas exposições e nos relacionar com ela de forma mais aprofundada, no caso do MAI, uma
curadoria mais apurada evitaria o rótulo da “arte primitiva” e da percepção de coleção
etnográfica. A curadoria nunca é neutra, ela borra as fronteiras e assume posicionamentos
promovendo encontros entre objetos e visitantes.
que foi proposto pelo MUPA (Museu Paranaense) com a curadoria de bolsistas indígenas que
propõe uma nova perspectiva sobre o próprio acervo etnográfico do museu. Artistas trabalham
com a capacidade de seu público, capacidade essa de ver, ouvir, sentir, tocar e às vezes até de
sentir o gosto e, embora alguns elementos destas capacidades sejam inatos, são ativados e
passam a existir como experiência de vida, sobre as quais se possa pensar ou até mesmo reagir
(GEERTZ, 2018).
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In: André Parente (org.). Tramas da rede: novas dimensões filosóficas, estéticas e políticas da
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PADOLAN, Julianna. Como Julianna Podolan Martins criou, com recursos próprios, um
dos museus mais importantes de Curitiba. Entrevista concedida a Revista Top View,
Curitiba, Paraná, dezembro, 2018. Disponível
em:https://topview.com.br/poder/entrevista-julianna-podolan-martins/ Acesso: 22 dez. 2022.
mar 2023.
Resumo
Esta proposta de ensaio vem em movimentos autoetnográficos para refletir sobre questões que perpassam a
minha vivência de negridão e travecagem. Traçando delimitações da existência dentro destas categorias
enquanto identidade re/apresentada pela minha corpa socialmente, e também traçando rotas de fuga das mesmas,
com a compreensão de que propostas identitárias são limitadas por natureza. Ser vida ultrapassa as fronteiras. O
mistério da vida está na infinitude. Perpasso por epistemologias negras e travestis, principalmente, como
embasamento para minhas fruições antropológicas, seguindo por veredas artísticas e espirituais que se anunciam
em minha intimidade. Nada obstante, esta escrita não é uma tentativa de findar ideias e conhecimentos, e sim de
deixar rastros no mapa da retomada que se desenha em frente aos meus olhos, criando nós de vida nas frestas
ocas da colonialidade. Uma apreciação do pergaminho do passado–presente–futuro que se desenrola e se mostra
em partes, grafado no tempo espiralar da memória. Sigo bricolando conhecimentos para encorpar uma
epistemologia travesti preta, pois urge transnegrecer o meio acadêmico.
Introdução
Ultimamente, muito me pergunto em qual sentido estou construindo minha
identidade. Seja ela uma identidade já nomeada ou não. Hoje me admito enquanto preta,
travesti e favelada. Um dia pensei nessas identificações enquanto uma matéria rígida que se
edifica linearmente, para cima, almejando o céu e que não para de crescer.
Solidifica.
De fato, não sou nenhuma dessas categorias identitárias, mas também que nenhuma
delas sou eu por inteira. Não são capazes de encapsular uma vida, e nem deve ser o objetivo
de qualquer ser pulsante ser reduzida a uma delas. Pois, para além da sua inegável força
política e, de certa forma, necessidade de demarcação, elas não representam muito além de
uma resposta ao desgosto colonial e sua sistematização. O desafio aqui fica sendo admitir as
identidades sem torná-las fixas, mas também sem esvaziar seus sentidos, considerando que os
efeitos das suas presenças podem ser sentidos interna e externamente na vida de cada
indivíduo. De que forma eu posso não ser capturada, mas também não ser minha própria
1
Artista transmídia, pesquisadora y arte-educadora. Mestranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ) e bacharela em Design-Moda pela Universidade Federal do
Ceará (UFC). Makumbeira, filha do Abassá de Omolu e Ilê de Iansã.
301
Do trauma à rebeldia
Não estamos produzindo taxonomias conhecidas
[Pedra Silva]
2
nïara, ewa. Refletindo transvestigeneridades negres-natives no cis-tema patriarcal capitalista
supremacista branco imperialista. In: 33ª Reunião Brasileira de Antropologia, 2022. Disponível em:
<http://www.portal.abant.org.br/evento/rba/33RBA/files/1661462420_ARQUIVO_b94fc5c26ff1fdb38aaa
bdd8cb283fc6.pdf>. Acesso em: 06 de dez. de 2022.
3
ALMA no olho. Zózimo Bulbul. Estúdio de Mixagem: Laboratório Imagem Líder Rio, Rio de Janeiro, RJ,
1973. curtametragem (12 min.), 35 mm, P&B.
302
Quando como Audre Lorde (2019) escreve sobre a sua forma de resistir através da
escrita, que a “poesia não é um luxo”, e que escrever é uma forma de se reconhecer e contar a
própria história, bem como almejar os sentidos da liberdade. Denotando que a poesia — e me
atrevo a dizer a arte — é um espaço muito caro para as corpas e subjetividades
subalternizadas.
Os patriarcas brancos nos disseram: penso, logo existo. A mãe Negra dentro de nós
– a poeta – sussurra em nossos sonhos: eu sinto, portanto eu posso ser livre. Poesia
cunha a linguagem para expressar e empenhar essa demanda revolucionária, a
implementação daquela liberdade (LORDE, 2019, pp. 47).
Rebeldia: o desejo ávido por um mundo não governado pelo senhor, pelo homem ou
pela polícia. O caminho errante tomado pelo enxame sem líder em busca de um
lugar melhor que aqui. A poesia social que sustenta os despossuídos. Rebelde: o
movimento desregulado da deriva e da errância; permanências sem um destino fixo,
possibilidades ambulantes, migrações intermináveis, debandada e fuga, locomoção
negra; a luta diária para viver livre. A tentativa de escapar à captura pela não
acomodação. [...] Rebelar-se: vagar, não ter amarras, ficar à deriva, vadiar, errar,
navegar, deambular e buscar. Reivindicar o direito à opacidade. Atacar, se revoltar,
recusar. Amar o que não é amado. Perder-se para o mundo. É a prática do contrário
social, o solo insurgente que permite novas possibilidades e novos vocabulários; [...]
É um recurso queer da sobrevivência negra. [...] A rebeldia é uma contínua
exploração daquilo que poderia ser; uma improvisação com os termos da existência
social, quando esses já foram ditados, quando há pouco espaço para respirar, quando
você se vê condenada a uma vida de servidão, quando o lar da servidão assoma em
qualquer sentido que você vá. É a infatigável prática de tentar viver quando você
nunca foi destinada a sobreviver (HARTMAN, 2022, pp. 241 e 242).
303
Ainda que as problemáticas do dia a dia não se desfaçam, acabo por concordar com a
arte como um espaço de escape, no qual é possível visitar ou até mesmo habitar as rupturas
do cis-tema colonial, e quiçá realizar os reparos necessários, se não na estrutura, em mim
mesma. Encontrando o verdadeiro, o bom e o belo em tudo aquilo que me foi dito, e é
constantemente relembrado como matável em minha sujeita.
A arte é a força de fazer a realidade dizer o que ela não teria conseguido dizer por
seus próprios meios ou, em todo o caso, o que ela perigava deixar voluntariamente
em silêncio (...) exijo um outro centro do mundo, outras desculpas para nomear,
outras maneiras de respirar… porque ser poeta, hoje em dia, é querer, com todas as
suas forças, com toda sua alma e toda sua carne, face aos fuzis, face ao dinheiro que
também se torna um fuzil, e sobretudo face à verdade recebida, sobre a qual nós,
poetas, temos autorização de mijar, que nenhum rosto da realidade humana seja
empurrado para baixo do silêncio da História (TANSI, 1985. In: BONA 2020, pp.
3).
A colonialidade instaura uma realidade na qual as relações das pessoas retintas com
o sangue são desenvolvidas a partir da violência racial. Nesse contexto de
plantation brasileira, existe o sadismo da aniquilação e tortura para com as pessoas
negras e indígenas, que orienta até mesmo a agenda nacional de arte (visual,
performance, teatral e cinematográfica), que passa a defender, comissionar e
alimentar a reencenação da dor racial como uma prática revolucionária, antirracista
e até mesmo “decolonial”; uma série de artimanhas com a linguagem portuguesa, a
fim de garantir à branquitude seu lugar de supremacia. Trata-se de uma camada
deste racismo contemporâneo desenvolvido com o capitalismo neoliberal e que
marca um novo momento de compra e venda da vida negra (BRASILEIRO, 2022,
pp. 17 e 18). Sim, tornar-se negra/o não nos descaracteriza dessa ontologia que nos
violenta, a modernidade. E não defendo uma certa consciência racial amparada na
primazia da cognição, porque a racialização negra é complexa e atua em todos os
níveis vitais organizados e descritos pelas psiquiatrias, psicanálises, antropologias;
consciência, inconsciência, intuição, criatividade. Esses níveis, ou camadas, não
existem como um fato universal, são antes a Forma que a modernidade escolheu
para organizar/nomear os mistérios da espécie Homo Sapiens (BRASILEIRO, 2022,
pp. 23).
Estar dedicando meu tempo de vida e toda a labuta para expressar ideias de mundo/s
através da arte é extremamente reparador. Não obstante, sei que ao apresentar essas
fabulações, abrir meus processos artísticos e participar dos circuitos de arte não significam
apenas emancipação para minha corpa e labor, mas também atrai os processos de
comodificação das minhas perspectivas e do que/m represento. Ao refletir sobre essa relação,
Jota Mombaça (2020) insiste que não é uma questão apenas de agência. Não está na simples
escolha entre fazer/não fazer ou participar/não participar, principalmente considerando todos
os processos de extorsão pelo qual as identidades marginalizadas continuam a passar.
Sigo me perguntando como retomar a agência sobre mim da qual fui despossuída em
prol das classificações da raça, do gênero e outras categorizações, mas também de forma a
me desobrigar de resolver os problemas criados pela cisbranquitude, evitando recair nas
mesmas armadilhas. Ainda por cima, me desfazendo das ferramentas de opressão que me
foram ensinadas, e que parecem não apenas tentadoras, mas por tantas vezes necessárias para
a minha própria sobrevivência no cis-tema.
Me entendo enquanto uma travesti. Sou uma travesti, é assim que me declaro. Ao
mesmo tempo que me entendo enquanto uma mulher. Ao meu ver, as duas noções não são
necessariamente as mesmas, ainda que no meu caso, minha mulheridade esteja inscrita na
minha travestilidade, assim como minha travestilidade está inscrita na minha travestilidade.
Ser travesti não me faz mais ou menos mulher, da mesma forma que ser mulher não me faz
mais ou menos travesti. São duas partes da minha (in)constância, da minha pessoa e da minha
identidade. Essas partes se amparam uma na outra e se retroalimentam.
Por que me admito mulher? Pois acredito que a mulheridade, que mulheres são seres
múltiplos. Diferentemente do homem/macho, pois vejo a masculinidade como geralmente
305
unilateral e pouco dimensionada para ter muitas camadas. Então, minha referência é de
mulheres, que amplamente falando e abrangendo diferentes sociedades, estão nesse processo
de retomada de poder para se conhecer mais a fundo, se compreender emocionalmente e se
constituir enquanto uma identidade complexa de sentidos. Por isso também, desde pequena
me identifiquei com a feminilidade e a mulheridade. Sendo que só mais a frente fui ter acesso
à possibilidade da travestilidade, e consequentemente passei a tentar compreender o que é ser
uma travesti e o que me faz de mim uma delas. Estamos debatendo gênero e estou seguindo a
proposta de não continuar no binarismo de poder apenas ser homem ou ser mulher. Entendo o
gênero como algo altamente mais fluído do que a cisgeneridade pode conceber, logo a
proposta binária de gênero me esmorece, pois acredito no poder da transmutação.
Sobre a travestilidade, especificamente, mas também sobre os gêneros que se
constituem fora da binariedade. Atualmente venho me deparando com registros de diversas
sociedades onde tais identidades se apresentam e possuem papéis sociais variados. A
exemplo, as Māhū na Polinésia Francesa e no Havaí; as Muxhe e Biza'ah nas culturas
zapotecas na região de Oaxaca, no sul do México; Kimbandas4 no Reino de Ndongo, hoje
conhecida como Angola; Dois-espíritos em comunidades nativas da América do Norte; as
Gallae ou Gala na Mesopotâmia e as Hijras na Índia.
Identidades encapsuladas na modernidade dentro da transgeneridade enquanto um
termo guarda-chuva ao mesmo tempo que foram todas condenadas pela colonialidade. De
forma alguma estou tentando cometer anacronismos com termos como “gênero”,
“transgeneridade”, “androginia”, dentre outros usados aqui, pois isso seria novamente
redutor. Então me afasto da reificação que tais categorias trazem para apresentar elos entre os
entendimentos atuais no debate e registros históricos pré-colonização.
Vejo exemplos de sociedades altamente complexas, povos nativos de suas regiões que
construíam suas formas de existência e percepções de “gênero” de maneiras muito além do
binarismo imposto. Tal qual o povo Dogon, nativos que ocupam a Falésia de Bandiagara, no
Mali. Que em sua cosmogonia acreditam que Amma, a divindade suprema representada
como um ser com seios e pênis, criou o mundo e os humanos a partir de gêmeos
“andróginos”, chamados de Nommo e Ogo. Enquanto isso, os Bambaras, que vivem na
região que compreende os países do Mali, Guiné, Burkina Faso e Senegal, no oeste de África,
acreditam em outras entidades também descritas com características “andróginas”, o ser
criador Ngala, que se relaciona com Faro, que faz crescer os frutos (OLIVEIRA, 2019).
Entre os nagôs, a divindade criadora do mundo é orixá Obatalá, ser sem identidade de
4
Termo quem vem da língua Mbundu, com significado de “curador”, “curandeiro”, “xamã”, “quem se comunica
com o além”.
306
5
As histórias dos Orixás, relatos míticos que acontecem em registros orais passados de geração em geração.
Muitos foram adaptados em versões escritas.
307
insustentáveis do que é ser essa mulher na sociedade ocidental. Então acredito muito mais
que existem muitas mulheres, diferentes mulheridades e formas de devir mulher no mundo.
Em outras sociedades são as nossas que cuidam das crianças, sendo as responsáveis
por educar as crianças de uma forma holística. As nossas são as curandeiras. São as nossas as
divinas.
As nossas são as anciãs que viram grandes oráculos. São as nossas as que constroem
templos onde as pessoas vão porque acreditam que as nossas preces são ouvidas mais rápido
pelas divindades.
Nós somos as professoras. Nós somos as feiticeiras. Nós somos as iyalorixás. Nós
somos as sacerdotisas. Nós somos as curandeiras. A gente tem ciência, tem axé, tem o poder
do conhecimento, da feitiçaria, do cuidado, da kura. Poderes que não se esquecem, grafados
na nossa corpa-matéria e enraizados no próprio nó da vida.
Em entrevista, Lina Pereira (2020), também conhecida como Linn da Quebrada, diz
que “a palavra ‘Deus’ é composta de ‘eus’. Deus tem ‘eu’ em si. E eu só posso acreditar em
um Deus que também acredite em mim” (PEREIRA, 2020). Então nos entender enquanto
divinas é muito mais uma lembrança, memórias de saberes cosmogônicos, alembramentos
dos giros na kalunga e de todas as vezes que precisamos morrer para ressuscitar.
Me deparo com a possibilidade de me entender enquanto uma parte divina do mundo.
Assim, dentro da espiritualidade e das minhas re/conexões ancestrais, encontro possibilidade
de estar viva no aqui-agora. Giro na makumba para um dia me encantar e ser uma ancestral
de tantas outras. Uma transcestral do futuro.
Agô!
Peço para o pedaço de terra embaixo de meus pés
um sonoro sopro
sopro de vida
amanhã estaremos
acendendo as fornalhas,
mas dessa vez,
não seremos nós
as que vão queimar
Poética inscrita no tempo a partir das reverberações da performance “tento desenhar secretamente o
mapa do nosso lugar” de abigail Campos Leal com ativação de ewa nïara, acontecida em 07 de
outubro de 2022, no Museu da Imagem e do Som (MIS-CE), parte do programa formativo
Trans.Implic.Ações, curado por Rômulo Silva.
Referências
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negritude. São Paulo: n-1 edições; Editora Hedra, 2022.
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Condemned. JSTOR Daily, 2021. Disponível em: <https://daily. jstor.
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Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.
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negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais. São Paulo: Fósforo, 2022.
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nïara, ewa. Refletindo transvestigeneridades negres-natives no cis-tema patriarcal
capitalista supremacista branco imperialista. In: 33ª Reunião Brasileira de
Antropologia, 2022. Disponível em:
<http://www.portal.abant.org.br/evento/rba/33RBA/files/1661462420_ARQUIVO_b94fc5c2
6ff 1fdb38aaabdd8cb283fc6.pdf>. Acesso em: 06 de dez. de 2022.
OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes de. Divas, Divinas e Poderosas: Fragmentos
310
1 Introdução
1
Cientista Social e Mestranda em Antropologia Social (PPGAS-MN/UFRJ)
2
O Assentamento Santa Madalena fica localizado na zona rural da cidade de Tianguá (CE), a aproximadamente
quinze minutos da sede, via BR-222. Nele, residem trinta e cinco famílias assentadas, divididas entre o “Santa
Madalena I” (onde moram trinta e uma delas) e o “Santa Madalena II” (onde moram as outras quatro).
3
Tianguá – palavra tupi que significa o “gancho que puxa as águas” - é uma cidade de 68. 901 habitantes, de
acordo com o último censo do IBGE. É um município que tem sua economia voltada para a agricultura, bem
como a maioria das cidades da Serra da Ibiapaba. Conforme dados do IPECE (Instituto de Pesquisa e Estratégia
Econômica do Ceará), o município se divide em três áreas distintas: chapada - isto é, a serra ou cuesta; carrasco e
sertão. Ao andar por a zona rural e a urbana se percebe muitas árvores nativas, sobretudo, carnaubeiras e ipê
amarelo-do-cerrado, árvore que é considerada o símbolo da cidade.
4
Por ‘patrões’, os assentados se referem aos donos de terras da região, de quem muitos foram ‘moradores’, i.e.,
trabalhadores rurais cujo acesso à terra e mesmo a uma casa era mediado por um proprietário rural, com quem
dividiam a produção agrícola (Palmeira, 1977; Teixeira, 2014).
5
As falas das minhas interlocutoras aparecem durante o trabalho entre aspas simples.
312
terceira, apresento questões sobre a rede de agroecologia, construída pelas agricultoras, que há
no Assentamento.
Liliane: Toda segunda-feira nós vamos trabalhar nos quintais das vizinhas.
Vitória: Aonde?
Liliane: Nós se junta, o grupo das mulheres que participa do Cepema [se referindo a
rede agroecológica EcoCeará], acho que tem dez ou onze pessoas que participa. Aí
toda segunda-feira nós vamos para um quintal. Aí as dez pessoas vão pra casa de um,
na outra segunda nós já vamos pra casa de outra. Eu só tava com esses daqui [ela
estava se referindo aos canteiros mais próximos da sua cozinha], aí quando as
meninas vieram nós fizemos aqueles lá da frente. Aí eu já tô limpando. [...]
Liliane: É porque assim, a gente tá trabalhando sozinha e começa o sol esquentar, aí
pensa “não! já vou é pra casa!”, aí quando tá todo mundo começa a conversar ali e
nem vê a hora passando.
Desse modo, sem a rede de mulheres ela não teria plantado os outros canteiros de
coentro e cebolinha. Ou seja, a rede de apoio é fundamental para que as agricultoras possam
desenvolver melhor a agroecologia.
Parece-me que encontros parecidos também foram observados por Federici (2017) ao
relatar os momentos coletivos protagonizados pelas mulheres da Europa do século XVI nas
“terras comunais”. Nesses espaços de sociabilidade, as mulheres camponesas “se reuniam,
trocavam notícias, recebiam conselhos e podiam formar um ponto de vista – autônomo da
313
Além disso, as agricultoras, como já foi afirmado, trocam conhecimentos entre si. Por
exemplo, durante uma das visitas que fiz, Adriana me mostrou seu canteiro e apontou uma
muda de mamão-anão, dizendo que conseguiu a semente com Dona Eudes, outra agricultora,
tendo sido também com ela que aprendeu a cuidar desse tipo específico de fruto. Ou seja,
uma das agricultoras passou o conhecimento para outra. Tive uma conversa com Maria e
Dona Eudes, Dona Eudes estava reclamando de que não havia colhido milho suficiente. Ela
havia plantado a espécie de milho ligeiro, Maria explicou que o inverno (primeiro semestre do
ano), isto é, o período das chuvas6, interfere no tipo de milho que deve ser plantado:
Dona Eudes: Nosso milho, ele deu pouco esse ano!
Vitória: Por causa do inverno?
Dona Eudes: Não! Porque aqui não é muito bom pra milho mesmo não.
Vitória: E não?!
Dona Eudes: A gente planta... Dá né?! Não dá tão bom, mas dá.
Maria: Não, é o tipo de milho! Tem o milho ligeiro, ele dá bom também.
Dona Eudes: O nosso é o ligeiro!
Maria: E não deu bom não? Foi no início do inverno?
Dona Eudes: Foi! Não deu tão bom não.
Maria: Esse milho não tava ligeiro não (risos). Porque cê viu que tem um milho
aqui que a Chaguinha plantou que é do grandão e esse grandão demora e eu acho
que deu bom, num deu não?
Dona Eudes: Deu.
Maria: Tem muita gente aí que plantou um milho bem grandão. Porque o milho
ligeiro é mais pequenininho, mais baixinho.
Dona Eudes: O nosso não deu não.
Maria: Então esse ano era do milho grandão, não era do ligeiro. Esse ano o inverno
era do milho grande, não era do ligeiro, pra você ver cada ano tem sua diferença...
Muda, porque no ano passado não foi tão bom, mas nesse ano foi bom.
Vitória: O inverno esse ano foi bom?
Maria: Foi ótimo, foi uma maravilha, choveu demais! Então, no caso, a questão era
pra plantar o milho grande, não era o ligeiro, porque o milho ligeiro é com pouco
inverno.
6
Segundo dados do Instituto Chico Mendes a média pluviométrica da Serra da Ibiapaba é “considerada elevada
para os padrões do Estado do Ceará”. Tianguá, sobretudo, que varia seu clima entre tropical semiárido brando e
tropical quente úmido, possui precipitação média de 1.522 mm, entre os meses de janeiro a junho, isto é, no
inverno.
314
das comidas foram feitas pelas mulheres. Nas duas ocasiões o dinheiro arrecadado foi para a
Igreja Católica e as agriculturas consideram importante se engajar ‘nas coisas de Deus’. Elas
são as principais articuladoras dos momentos religiosos, ficam à frente das organizações dos
locais das celebrações, cantam e fazem as leituras sagradas.
Os momentos de trabalho coletivo, de ajuda mútua, de troca de saberes e organização
de festividades são capazes de fortalecer os laços e vínculos entre as agricultoras. Essa rede é
capaz de gerar nas agricultoras, como observei nas conversas entre elas, sentimentos de
partilha, amizade e solidariedade.
3 A associação política
Autoras como Maria Prado & Stella Franco (2013) trazem à luz a participação
feminina no debate público brasileiro, participação essa que vem muito antes da luta
sufragista, mostrando que as mulheres sempre se fizeram presentes no debate político, na luta
pela capacitação intelectual. As autoras também mostram que as mulheres enfrentaram
debates públicos e políticos para além do “ser mulher”, se fazendo presente em diversas
frentes de lutas, ou seja, mulheres fizeram e fazem participação plural em várias discussões. É
dessa forma que as mulheres rurais aparecem: se fazem presentes em múltiplos espaços
políticos.
Maria Ignez Paulilo (2016) discorre sobre “quatro décadas de diálogos”8 acerca de
mulheres rurais, mostrando como as mulheres se associaram em sindicatos de trabalhadores
rurais e como o debate sobre a terra é central para elas, dado que muitas não a têm, ou
enfrentam problemas de herança, no que se refere a questões em torno de disputa pela terra –
Maria Margarida Moura (1978) também discorre sobre como relações de poder entre homens
e mulheres e o direito costumeiro afetam heranças de terras.
Dessa maneira, um dos primeiros pontos que me atentei ao ir a campo pela primeira
vez foi a organização política das agricultoras, dado que são elas quem – em diversos
momentos – estão à frente das articulações dentro e fora do assentamento. Assim sendo, as
agricultoras consideram Dona Raimunda a principal articuladora do Assentamento, pois é ela
8
Maria Dolores de Brito Mota (2006) também fala da importância de perceber as trabalhadoras rurais como
uma categoria política, pois elas sempre estiveram construindo existência pública (MOTA, 2006, p. 346-347) e
demarcando seu lugar nas lutas pelos direitos das agricultoras, já que elas fazem discursos, se organizam
coletivamente, fazendo articulações, essas sementes de Margarida Alves “conquistam a existência social
permitem revelar-se, mostrar-se, apresentando-se e falando em público sem medo de ser mulher trabalhadora
rural.” (MOTA, 2006, p. 352).
316
quem costuma representar a comunidade em reuniões, encontros, eventos, etc. Em uma das
minhas idas, passei dois dias na casa de Dona Raimunda e Seu Benedito, nesses dois dias, nós
ficamos horas conversando sobre esses momentos em que ela foi ‘representar a comunidade
fora’. Esse fato traz muito orgulho para a agricultora: ela me mostrou várias fotos dos eventos
de que participou e percebi seus olhos brilhando de alegria ao recordar dessas ocasiões. Dona
Raimunda diz que ‘apesar da idade’ gosta de se engajar na participação em eventos, pois, para
ela, é ‘importante para o crescimento da comunidade’.
As articulações políticas que as agricultoras constroem para conquistar ganhos para a
comunidade são frutos da associação política coletiva, pois são elas que desenvolvem as
estratégias e fazem as mobilizações necessárias. Como se pode observar em uma fala de
Francisca das Chagas, conhecida entre as agricultoras como ‘Chaguinha’:
Francisca das Chagas: A gente vai arruma, pede, vai lá atrás de arrumar carro pra
vir pra cá, aí arruma uma coisa, arruma outra, aí nessa luta, a gente vai conseguindo
aos poucos. Já tem a Casa de Semente, que é o lugar de reunião [...] já passa o
ônibus que antes não passava, nós tinha que levar lá pra pista os meninos, aí já passa
o ônibus da escola, já tem médico duas vezes por mês aqui. [...] Aí é assim, vem o
carro do lixo também, né?! Coisas que nós da comunidade vamos arrumando. [...] e
a nossa comunidade por ser nova, todo mundo diz que nossa comunidade é nova,
mas já tem bastante coisa, tem iluminação pública, consulta... Mas assim a gente é
direto atrás de trazer as coisas pra cá. Traz um curso, traz uma formação, traz isso,
traz aquilo e a gente vai ali quase secando as canelas atrás da prefeitura, procura o
prefeito, pra arrumar alguma coisa, os vereadores, os secretários. A gente vai e
arruma alguma coisa, mas é assim, comunidade.
9
A luta também aparece como uma busca por dignidade, por melhores condições de vida para si e para os seus.
Tal luta passa por o “sacrifício” que é “secar as canelas”, ou seja, elas perdem energias corporais ‘correndo atrás’
do que querem.
317
Adriana: Nós estamos no processo de fazer ele [se referindo ao viveiro de mudas]
ainda.
Vitória: É o pessoal do IFCE que tá fazendo?
Adriana: Eles deram um curso pra gente aqui e lançaram a ideia do viveiro de
mudas, aí estamos trabalhando coletivamente, pra poder construir.
Vitória: Mas não tá construído ainda?
Adriana: Tá faltando a cobertura, o piso já foi puxado e a lateral tá feitinha, só falta
a cobertura mesmo. E outras coisinhas mais, os detalhes, né?!
Vitória: ah, que bom!
Adriana: Muito bom nossa comunidade aqui, nossa comunidade é pequena, mas é
uma comunidade que têm pessoas que querem, não querem pra si, mas querem
ajudar o coletivo. Depois que a gente veio pra cá muita coisa boa já aconteceu por
causa de pessoas que tiveram força de vontade para abraçar e ajudar [...] como esse
daí do IFCE, a gente fez o curso e eles lançaram a ideia, a gente abraçou e estamos
aí.
Ainda mais, em uma entrevista que fiz com Dona Raimunda, ela me disse que a Casa
de Sementes foi um ganho que elas conquistaram ‘na luta’. As agricultoras me explicaram que
a Casa de Semente11 funciona como uma organização associativa, na qual os associados
precisam participar frequentemente das reuniões e cumprir regras, sendo as principais: fazer a
transição agroecológica no agroecossistema, não fazer queimadas, ou usar veneno na
produção; participar das reuniões, pois caso haja três ausências seguidas nelas, o membro será
10
Em Tianguá há um campus do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, algumas jovens do
assentamento estudam lá e outras almejam ‘passar no ENEM’ para estudarem lá, como por exemplo, em cursos
técnicos como em Agricultura.
11
As Casas de Sementes são implantadas em comunidades rurais pela ONG Cáritas Diocesana, é um espaço
onde os agricultores e agricultoras armazenam e buscam variados tipos de sementes crioulas.
318
desligado, não podendo ‘mais pegar’ as sementes no banco da Casa12. Alessandra, uma das
agricultoras, me explicou que há um ciclo quando se é associado à Casa de Semente. O
associado ‘pega’ as sementes no banco da Casa de Sementes no início do ano para plantar e
quando for colher precisa devolver um litro a mais do que pegou no início.
Além disso, na Casa de Sementes há um coordenador, tesoureiro, selecionadores de
sementes e guardiões das sementes, que são escolhidos através de votação feita pelo grupo.
Dona Raimunda foi selecionadora de sementes e até o fim de 2019 era também a
coordenadora. Na última vez em que estive lá, perguntei se ela pretende voltar para a
coordenação, ela me respondeu que ‘sim’. Dona Raimunda me afirmou que é necessário ter
uma rotatividade nos membros que coordenam a Casa de Sementes, como ela já havia sido
selecionadora e coordenadora, por dois anos, outra pessoa deveria assumir.
Assim, no fim de dezembro de 2019, houve a troca dos membros que coordenam.
Conversei sobre esse fato com duas agricultoras, que não ‘viam com bons olhos’ algumas das
novas coordenadoras, pois as consideram ‘difíceis de conviver’. Pimenta (2006, p.154) ao
estudar assentamentos rurais observou, nas relações entre os seus interlocutores, que há
“instabilidades e conflitos” entre os assentados e as assentadas. Tais conflitos também são
observados por mim entre os moradores e as moradoras do Santa Madalena.
Ainda sobre a dimensão dos conflitos que existem entre as agricultoras e outros
assentados, em conversas informais que tive com Dona Raimunda e Seu Benedito eles me
disseram ‘ninguém quer trabalhar pelo Assentamento, só querem trabalhar fora’ e
continuaram dizendo que os outros agricultores ‘não plantam, não cuidam dos quintais’. Ou
seja, como a maioria dos agricultores precisam exercer ofícios nos centros urbanos ou em
terra dos patrões, Seu Benedito e Dona Raimunda não acham ‘isso positivo para o
desenvolvimento do Assentamento’. Eles me afirmaram que ‘o Assentamento está obsoleto’,
pois os assentados ‘não querem cuidar’ do espaço.
Cabe salientar que a maioria das articulações, conversas e trocas de notícias, etc.
acontecem nas cozinhas das mulheres. Por exemplo, Adriana me disse que quando ‘aparece
uma oportunidade de fazer um curso no Assentamento’, ela primeiro ‘conversa
individualmente’ com as mulheres das quais ela é mais ‘chegada’, Maria e Alessandra,
principalmente. Só depois elas ‘levam pro coletivo’, isto é, durante os momentos de reuniões
formais, que acontecem no ambiente da Casa de Sementes. No entanto, o ambiente das
12
Obtive esses dados em um banner que fica exposto na parede da Casa das Sementes, há pontuado dezessete
regras a serem seguidas pelos membros.
319
cozinhas dessas agricultoras é central para que aconteçam diálogos ‘mais individuais’, é
nesses espaços que as mulheres se reúnem para chegar a uma conclusão se uma pauta
específica deve ser ‘levada para o coletivo’. Nesse sentido, Alves (2016) mostra como o fluxo
de pessoas nas casas da comunidade rural Pinheiro, em Minas Gerais, se dá principalmente na
“circulação entre cozinhas”: “A circulação entre casas é principalmente uma circulação entre
cozinhas, o que destaca o seu caráter social, por excelência, um lugar de reunião. (...) Assim,
ela é um local de produção de alteridade e semelhança, um cômodo político” (ALVES, 2016,
p. 149).
Além de ser um “cômodo político”, é nas andanças entre as cozinhas que surgem as
‘fofocas’ que geram os conflitos entre os assentados e as assentadas, como já abordei
anteriormente. É nesses espaços que as agricultoras, como presenciei algumas vezes, discutem
e dividem opiniões, muitas vezes negativas, sobre outras agricultoras. Foram nas cozinhas que
elas me narraram os conflitos que existem entre elas, foi na cozinha que Seu Benedito e Dona
Raimunda me falaram que os outros assentados ‘não estavam se preocupando com o
Assentamento’. Dessa maneira, foi andando por esses lugares de sociabilidade que conheci
melhor minhas interlocutoras e observei as relações estabelecidas entre elas.
Ainda mais, é importante dizer – mais uma vez – que sem a conquista do
assentamento, da terra própria, não seria possível a discussão sobre as mobilizações coletivas
feitas por minhas interlocutoras, pois antes de passarem a morar ‘no que é seu’, as agricultoras
estavam sujeitas aos patrões: como elas me disseram ‘não tinham direito a nada’. Elas
recordam desse tempo como um ‘tempo sofrido’, no qual não podiam ‘plantar nada para si’,
pois ‘tudo era do patrão’, ou só podiam ‘plantar no inverno’. Como se pode notar nas falas de
algumas delas:
Liliane: Agregado não tem terra, o quintal mesmo é bem pequeno. Aí lá [na terra do
patrão] não tinha onde a gente trabalhar, a não ser no terreno dos outros, e quem
trabalha no terreno dos outros não tem direito a nada, só mesmo a diariazinha ali e
pronto.
Adriana: A gente só trabalhava pra gente no inverno, na época de botar milho,
feijão, fava, essas coisas. [...] O lugar que a gente morava antes de vir pra cá era uma
casinha, nós só tinha direito de ficar na casinha e limpar pra poder se manter no
lugar, mas assim: “ah, tá aqui, esse pedacinho aqui é pra você plantar” não, não
tinha.
Francisca das Chagas: A gente morava dentro do terreno de não poder sair nem aos
domingos, porque tinha que tá pastorando o terreno do homem, né?! Do patrão!
Porque era trabalhando de domingo a domingo, a gente tava trabalhando o tempo
todo.
Dona Eudes: Antes a gente não plantava, não criava. Assim, quando a gente morava
lá no patrão a gente plantava um pedacinho bem pouquinho assim, bem pertinho de
320
Nesse sentido, destaco que na situação estudada por Mello (2011) a conquista da terra
marca uma ruptura, para o(a)s assentado(a)s, no tempo-espaço, pois quando eles chegaram e
foi criado o primeiro assentamento da Reforma Agrária – o 25 de Maio – sentimentos de
sujeição aos patrões deram espaços para sentimentos de liberdade, coletividade e
solidariedade, bem como se nota nas falas das mulheres do Santa Madalena. Nas palavras do
autor (2011, p. 101):
Para os assentados, nesses mais de vinte anos, eles puderam estabelecer uma vida
livres das instabilidades de outrora. Casar, ter filhos, plantar para viver, comercializar
o excedente da produção familiar, ter uma vida comunitária e acessar políticas
públicas. Condições de cidadania percebidas como mudanças no cotidiano.
Bem como essa interlocutora de Pimenta, que apesar das dificuldades existentes no
início do assentamento, “falta de água e moradia de pau-a-pique”, o sentimento de liberdade é
321
maior que tais condições. Esse mesmo sentimento foi compartilhado por Francisca das
Chagas. Em uma entrevista que realizei com ela, ela me falou que até seus filhos, ‘que são
crianças’, reconheciam que era a ‘casinha’ deles, apesar da falta de energia elétrica:
Francisca das Chagas: Só era vela e lamparina, né? Mas assim era bom. [...] Aí pra
mim foi bom, os meninos gostaram demais. [Eles diziam]: “mãe, mesmo que seja
sem energia, mas tá tão bom, né, mãe?! só nós aqui, é nossa casinha” eles mesmo
dizia que era bom, aí quando chegou energia, aí foi que ficou bom.
4 A rede de agroecologia
Adriana: por isso que eu digo assim, é teoria porque o que a gente só vem colocar
em prática é no nosso quintal, porque a gente tem propriedade, porque é meu e eu
posso fazer o que bem quiser, posso destruir como também posso restaurar, então, é
isso aí.
Dona Selma, por sua vez, me disse que se não tivesse mudado para o Assentamento e
conhecido a Fundação Cepema ainda continuaria ‘plantando com veneno’, pois era a forma de
plantio que conhecia quando morava em terra de patrão:
Dona Selma: Lá [na terra do patrão] eu plantava pra ele era com veneno. Agora o
meu aqui é orgânico mesmo, nós num bota nada de veneno não, mas lá era com
veneno. Se eu não tivesse entrado pro Cepema, eu acho que eu continuava com
veneno, mas aí depois que eu entrei pro Cepema eu não boto mais veneno, é
produzido só mesmo na água mesmo. Num boto veneno não, é orgânico mesmo de
verdade mesmo, o meu é! Tenho certeza absoluta!
Maria: Quando eu cheguei aqui, não tinha nem um canteirinho, a gente tinha muito
pé de fruta, como você vê lá, laranja, meu corante, pé de limão, tangerina, ata... Aí a
gente já tinha esses pezinhos de coisas, mas o canteiro em si, orgânico mesmo, foi só
quando eu entrei na Cepema. [...] Primeiro a gente começou com um canteirinho, aí
foi indo, foi indo. Aí vez enquanto vinha os técnicos pra cá, vinha olhar nosso
quintal, dá sugestão de como plantar, como preparar a terra, como proteger o solo.
323
Aí tudo foi através deles. [...] Fomos fazendo e ajeitando, aí tá dando certo.
Liliane, por sua vez, me disse que já tinha tido contato com a agroecologia através do
seu companheiro, que já havia feito um curso sobre agricultura orgânica na empresa em que
trabalhava. No entanto, ela ‘tinha era raiva’ de quando ele falava sobre o assunto:
Liliane: eu tinha raiva quando ele [seu esposo] começava a falar “ah num sei o quê,
num pode queimar, num pode usar veneno, num pode fazer aquilo, num pode...” aí eu
ficava era com raiva. Aí depois que eu comecei a participar [da Rede EcoCeará] que
eu vim entender mais. Aí ele disse: “ah, agora você já sabe como é!”.
Com o passar do tempo, ela começou a ‘ter vontade’ de plantar orgânicos. Com isso,
as mulheres que já integravam a Rede EcoCeará a convidaram para participar de uma oficina
sobre agroecologia, mediada por Fernanda, assessora da Cepema. Assim, Liliane passou a
fazer parte da rede agroecológica:
As práticas agrícolas que são desempenhadas por este conjunto de agricultoras são
moldadas por um padrão estabelecido pela agroecologia, que é construído a partir
das interfaces com os discursos das organizações sociais. Isto é, ser nomeado como
um empreendimento agroecológico não é um processo sem amarras. Portanto, não
tem como nem porque efetivar uma análise das práticas agrícolas encetadas por
minhas interlocutoras como se fossem campos estanques e impermeáveis, porque
estão sendo constantemente nutridas pelos diálogos com outras lideranças, técnicos
de ONGs e autoridades governamentais (WEITZMAN, 2016, p. 233).
Além do mais, ainda sobre a dimensão da saúde das agricultoras, Siliprandi (2016)
discute sobre a “medicalização da saúde”14, isto é, ao fato de cada vez mais as pessoas
procurarem medicamentos em farmácias para tratar doenças. No entanto, muitas das
agricultoras em seus quintais e hortas cultivam plantas medicinais. Além de cultivarem,
minhas interlocutoras trocam informações, como presenciei em diálogos feitos entre elas,
sobre os benefícios que cada planta possui. Em uma das vezes em que estive no
Assentamento, senti dores no estômago, assim, Maria, buscou em sua horta erva-cidreira para
13
Isto é, quando o alimento não é produzido por máquinas, ou seja, todo o processo é feito de forma manual.
14
Esse assunto, também, é tratado em rodas de conversas feitas pelas ONGs em comunidades rurais. Participei
de uma sobre gênero e agroecologia e entre os assuntos que foram discutidos, a questão da ‘recuperação da
tradição de fazer chás’ foi abordada, já que com o passar dos anos os remédios farmacêuticos estão cada vez
mais presentes nas casas das agricultoras e agricultores.
326
fazer um chá e disse que ‘cidreira cura rapidinho dor no estômago’. Outra agricultora me
falou que estava com fortes dores de cabeça, já havia tomado vários remédios, e ‘nada da dor
passar’. Ela me disse que só ‘veio amenizar’ quando ela tomou chá.
5 Considerações finais
Portanto, a rede de agroecologia EcoCeará, é capaz de criar laços entre as mulheres
que moram no Santa Madalena. Ela cria ambientes de sociabilidade, pois as agricultoras se
reúnem para trabalhar coletivamente, mas também tecem uma rede de trocas de aprendizados.
As mulheres que fazem parte da Rede também incentivam outras a se somarem a elas, como é
o exemplo de Liliane, que passou a fazer parte quando ‘as meninas a convidaram’.
As múltiplas experiências dessas mulheres – política, coletiva, individual, em rede –
apontam que trabalhadoras rurais sempre estiveram se fazendo presente em universo para
além do privado, isto é, da casa. Logo, as agricultoras traçam nas tessituras da história o fazer
política dentro e fora de casa, ou seja, a política pode se construir nas conversas de cozinhas,
bem como pode ser em rede, organizadas e associadas, mostrando que são sementes de
Margarida Alves.
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