Você está na página 1de 332













1

As (r)existências possíveis por meio de iniciativas socioambientais locais


Ana Clara Martins Krueger1

Objeto e Objetivos do trabalho


Do açúcar à indústria têxtil - passando pelo café e a fábrica de pólvora - o território
em que se encontra a Comunidade do Horto foi e ainda é palco de diversos processos
que caracterizam a formação histórica do Rio de Janeiro desde o século XVI. Contudo,
apesar da região apresentar uma população que a ocupa de modo geracional antes
mesmo de receber seu nome - em 1875 -, seus moradores enfrentam a ameaça de
remoção como um fantasma cotidiano. É nas décadas de 1980 que as primeiras ações
movidas pela União surgem - podendo destacar os anos de 2012 e 2021 como períodos
marcantes de continuação dessa movimentação - eclodidas por uma relação incerta com
o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, especulação imobiliária e atritos com os
moradores dos arredores.
Nesse contexto de instabilidade, dentre as diversas iniciativas emergentes para a
resistência e agência sociocultural da área, surge o projeto Horto Natureza e o
Guardiões do Rio - objetos deste estudo. O primeiro, aparece enquanto uma ação
voluntária de moradores - em especial, de Roberto, fundador e atuante no projeto desde
2001 - a qual envolve a criação de uma horta comunitária, remoção consciente de
animais silvestres e limpeza do rio que passa pela comunidade, o Rio dos Macacos. Por
sua vez, o segundo empreendimento advém por parte do governo municipal, o qual,
segundo os próprios participantes, aproveitou a já precedente proposta no local,
viabilizando financeiramente a participação dos residentes - Roberto Fonseca, Ricardo
Matheus, Luis Cláudio de Sá e Alvin Figueiredo - no Horto Natureza e tem por objetivo
a limpeza dos rios cariocas. O Guardiões do Rio, desse modo, compartilha os mesmos
integrantes que o Horto Natureza e suas atividades se misturam de alguma forma -
sendo utilizados tanto o uniforme verde e azul do Guardiões quanto a camiseta
personalizada do projeto de Roberto ao longo das produções do dia-a-dia.

1
Graduande do curso de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Bolsista
pelo Projeto de Pesquisa e extensão em aplicação da quádrupla hélice da inovação (IEEA/Tecgraf)
Orientador: Felipe Süssekind Viveiros de Castro. Email: anackrueger@gmail.com
2

Aqui, foco na iniciativa do Horto Natureza, pois é uma criação feita pelos
moradores para os moradores. O Guardiões torna-se mais um complemento que se
fusiona ao primeiro projeto. Além disso, a escolha da iniciativa como foco principal
desta pesquisa se dá por sua função socioambiental interativa com o restante da
comunidade - como veremos mais tarde, nas escolas, por exemplo - e por sua
intencionalidade de resistência. Nesse sentido, o que me impactou ao longo do trabalho
de campo é que quando perguntados o porquê da existência da atividade voluntária,
Alvin me responde o motor dessa pesquisa, questão repetida por Roberto: “para mudar a
narrativa”. Em um contexto no qual a imprensa, influenciada pelos moradores do Jardim
Botânico, difundiu por anos notícias que tratavam os habitantes do Horto de forma
pejorativa, eles nos contam sobre a necessidade de mostrar que não são invasores que
acabam com a natureza, mas sim que merecem estar ali, pois contribuem ativamente
para a preservação e manutenção do local - característica que de Souza (2012) retratará
como ethos da comunidade. Alvin também fala sobre como, em contato com uma
funcionária brasileira da ONU, percebeu que a casa é mais do que quatro paredes, mas é
a história de uma pessoa, algo que nenhum valor pode alcançar, e sair à força de um
local assim é traumático. Nessa perspectiva, a importância para ele do projeto é relativa
a “mostrar nossa história, a preservação e como nossa comunidade participa disso”.
Quanto à forma que o Horto Natureza e o Guardiões do Rio interagem com o
restante da população do Horto, para além da horta comunitária - que leva o nome de
um professor caro aos trabalhadores dessas empreitadas, Walter -, destaca-se duas das
três escolas que atendem os habitantes da região: Júlia Kubitschek e Camilo Castelo
Branco. A partir delas, foi possível observar projetos integrativos que consistem tanto
em visitações à horta comunitária com os alunos quanto em vínculos ainda mais
institucionais, como a iniciativa municipal do “Esse rio é meu”, a qual os colégios
buscam estimular a conscientização referente à conservação dos rios. Desse modo, por
meio dos empreendimentos aqui estudados, os ensinos fundamentais I e II possuem
acesso de maneira lúdica às iniciativas socioambientais presentes em sua própria
comunidade.
Posto o cenário que se apresenta, sob a luz da tese de Laura Olivieri de Souza
(2012) - quem defende que a população do Horto constitui uma comunidade tradicional
e é “portanto, portadora de uma memória social que precisa ser preservada” (p.5) - este
trabalho tem como objetivo contribuir para a preservação de tal memória social - a qual
o Horto Natureza auxilia na construção -, demonstrando que as ameaças de remoção
3

não são enfrentadas no cotidiano de maneira passiva, mas também nem sempre de modo
belicoso. Para além, intenta-se compreender os contornos dos projetos objetos deste
estudo, mapear os embates acerca das denominações sociais Horto - à exemplo do título
"invasores" - e contribuir com experiências de troca entre a universidade e a
comunidade por meio de atividades de extensão.

Metodologia adotada
O trabalho de Laura Olivieri de Souza (2012), denominado “Horto florestal: um
lugar de memória do Rio de Janeiro - A construção do Museu do Horto e seu
correspondente projeto social de memória”, chama atenção por sua defesa referente à
tradicionalidade da população do Horto. Isso apenas se torna possível - tendo em mente
que a caracterização legal inviabiliza o enquadramento da Comunidade do Horto desta
forma -, pois, a autora sustenta a perspectiva de Hobsbawm no que diz respeito à
tradição e costumes, compreendendo que a tradição se consolida por via do
enraizamento dos costumes no ethos dos moradores e da vida cultural local, que
reafirma uma integridade social. Ainda é válido ressaltar que embora a população do
Horto não possa ser reconhecida legalmente enquanto tradicional - apesar de sua relação
quilombola no passado - em 2021, foi aprovado em primeira votação na Câmara
Municipal o reconhecimento da região como Área de Especial Interesse Social - dando
alguma institucionalização à importância deste lugar.
Ainda me apoiando na conceituação utilizada por Souza (2012), praticando a
chamada arqueologia cultural, sua tese argumenta que o Horto é um “lugar de memória”
(Nora apud SOUZA, 2012) - ou seja, um lugar material onde a memória social se ancora
e pode ser apreendida pelos sentidos; um lugar funcionais porque é embebido de
memórias coletivas; e um lugar simbólico, onde as identidades coletivas se expressam.
Em correlato, expressa-se igualmente o conceito de "memória social", a qual
compreende-se a partir da noção de “aquela que está inserida em um campo de lutas e
relações de poder, configurando um contínuo embate entre lembrança e esquecimento” e
em uma “abordagem em que a memória se torna um instrumento privilegiado de
transformação social (Gondar & Dodebei apud SOUZA, 2012. p. 22), isto é, inserido
em um contexto de embate pelo poder, a memória se torna um instrumento essencial
para a transformação social.
Ademais, a pesquisa buscou se ancorar em uma leitura acerca de conflitos urbanos
- utilizando enquanto orientação a concepção do direito à cidade. Entende-se, deste
4

modo, um referencial em Lefebvre (2016) e David Harvey (2014), sendo este último
detentor da síntese “O direito à cidade é muito mais que a liberdade individual de ter
acesso aos recursos urbanos: é um direito de mudarmos a nós mesmos, mudando a
cidade” (Harvey, 2014:28). Nesse sentido, o presente estudo procurou compreender o
Horto Natureza - em especial, a horta comunitária - como um reivindicador de seu
direito à produzir a cidade, se apropriando de um espaço físico para expressar ideais e
preencher as necessidades de parte de uma comunidade.
Estabelecido um norte teórico, feito um levantamento histórico e contando com um
arcabouço antropológico e referente à entrada à campo, a pesquisa adentrou o trabalho
externo. Esta fase consiste em visitas à horta comunitária - local onde os participantes
do Horto Natureza se concentram -, observação das atividades, realização de entrevistas
tanto abertas quanto estruturadas e acúmulo de registros fotográficos, sonoros, entre
outros tipos de registros documentais. As entrevistas abertas e estruturadas tiveram,
respectivamente, o objetivo de obter relatos mais amplos e afetivos, bem como absorver
informações mais assertivas acerca da infraestrutura da comunidade e seus costumes.

Conclusões
Em conclusão, buscou-se demonstrar um pouco do contexto de uma população que
enfrenta cotidianamente a ameaça de perder sua casa em plena zona sul carioca, região
supervalorizada a qual, nos anos 2000, se encontrava em décimo lugar referente aos
maiores valores de Índice de Desenvolvimento Humano nos bairros do Rio de Janeiro.
É importante salientar que não é apenas o preconceito contra a pobreza que está em
perspectiva, mas também explicita-se uma questão de desigualdade racial - uma vez
que, segundo o Censo (IBGE, 2010), cerca de 62,1% dos moradores do Horto se
declaram pardos ou pretos. Em contraposição, cerca de 82,9% da população do Jardim
Botânico, área que faz fronteira com o Horto e residência dos grupos que mais
movimentaram ações a favor das remoções, se declara branca.
Todavia, exalta-se o poder de ação e as diferentes formas de resistência
provenientes da comunidade do Horto - dentre elas, o objeto de estudo desta pesquisa. A
subversão de narrativa almejada pelos trabalhadores do Horto Natureza se expressa
como um elemento essencial para este trabalho, bem como a noção de que existem
múltiplas maneiras de preservar e produzir a tão necessária memória social - posta em
jogo quando o Jardim Botânico do Rio de Janeiro tem sucesso em se apropriar de
lugares caros aos moradores, à exemplo do Clube Caxinguelê, ou o mesmo instituto
5

descuida de um dos poucos lugares que homenageiam seus funcionários residentes do


Horto, caso do roseiral Pedro Cachimbo.
Para além, assume-se como os seguintes passos deste trabalho uma investigação
mais aprofundada acerca da relação controversa entre os habitantes do Horto e o
Instituto Jardim Botânico. É exemplar desta dinâmica duas situações: o episódio que
presenciei durante uma ida à campo quando, frente uma visita do INEA, os integrantes
do Horto Natureza suspeitaram fortemente de uma denúncia partida pelo parque e o
relato de que, após o surgimento de uma vaga de emprego no Jardim Botânico, o
fundador do projeto encaminhou um dos participante para trabalhar na instituição. É
válido ressaltar que parte da comunidade foi construída para atender os trabalhadores do
Jardim Botânico, resultando no fato de que muitos moradores trabalharam ou ainda
trabalham no parque. Por fim, acreditando na capacidade de troca entre a universidade e
a comunidade, trabalha-se com a possibilidade de auxílio do desenvolvimento de
retomada do Museu do Horto, iniciativa igualmente de resistência e memória que surgiu
a partir da Associação de Moradores e Amigos do Horto (AMAHOR).

Referências Bibliográfica
ASSOCIAÇÃO DE MORADORES E AMIGOS DO HORTO. AMAHOR, 2023.
Home. Acesso em: 21 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://amahor.org/
BONI, V.; QUARESMA, S. J. Aprendendo a entrevistar: como fazer entrevistas em
Ciências Sociais. TESE, Santa Catarina, Vol. 2, n° 1, p. 60-80, Janeiro-Julho, 2005.
GONÇALVES, R. S; LESSA, V. M. A luta pelo direito à cidade: a luta dos moradores
do Horto Florestal do Rio de Janeiro contra a remoção. In: Encontro Nacional de
Pesquisadores em Serviço Social, 16, 2018, Vitória. Anais [...] Vitória: UFES, 2018. p.
1-14.
GUELPA, Séverin. When the line meets the root. Geneva: Matza, 2022
HARVEY, David. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. Trad
Jeferson Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2014
HORTO. Museu das Remoções, [s.d]. Acesso em 21 de fevereiro de 2023. Disponível
em: https://museudasremocoes.com/horto/
HORTO. NEPHU, 2018. Acesso em 21 de fevereiro de 2023. Disponível em:
http://nephu.sites.uff.br/programa/mapeando-conflitos/mapeando-comunidades/comunid
ades-do-rio-de-janeiro/horto/
6

Instituto Pereira Passos. Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH), por


ordem de IDH, segundo os bairros ou grupo de bairros - 1991/2000. Rio de Janeiro:
Instituto Pereira Passos, 2018. Acesso em: 21 de fevereiro de 2023. Disponível em:
https://www.data.rio/documents/58186e41a2ad410f9099af99e46366fd/about
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo
Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. INSTITUTO BRASILEIRO DE
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE).
LEFEBVRE, Henri, O direito à cidade. Trad. Rubens Eduardo Frias. ed 5. São Paulo:
Centauro, 2001
SANTOS, Carolina Câmara Pires do et al. A Comunidade do Horto e a Luta por um
Território Ancestral, no Contexto do Racismo Ambiental (artigo). Wikifavelas, [s.d].
Acesso em 21 de fevereiro de 2023. Disponível em:
https://wikifavelas.com.br/index.php/A_Comunidade_do_Horto_e_a_Luta_por_um_Ter
rit%C3%B3rio_Ancestral,_no_Contexto_do_Racismo_Ambiental_(artigo)
SOUZA, Laura Olivieri Carneiro de. Horto Florestal: um lugar de memória da
cidade do Rio de Janeiro: A construção do Museu do Horto e seu correspondente
projeto social de memória, 2012. Tese (doutorado) - Curso de Serviço Social, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
SOUZA, Marcelo Lopes de. Proteção ambiental para quem? A instrumentalização da
ecologia contra o direito à moradia”. Mercator, Fortaleza, v. 14, n. 4, p. 25-44, dez.
2015
TELLES, Vera da Silva. "Cidade: produção de espaços, formas de controle e conflitos."
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41
7

A MATA ATLÂNTICA NO ANTROPOCENO: destruição e restauração das áreas


verdes no Rio de Janeiro

João Novello Whately1

Atualmente, marcas de perturbações ecológicas decorrentes das intervenções humanas


no ambiente podem ser observadas em praticamente todos os ecossistemas que recobrem a
Terra. Nesse sentido, as paisagens globais atuais, nas palavras da antropóloga Anna Tsing
(2019), estão repletas de ruínas. Tal circunstância, na qual paisagens arruinadas podem ser
encontradas por toda parte, constitui em grande medida o panorama da nova época geológica
que vem sendo denominada Antropoceno. (CRUTZEN; STOERMER, 2015; TSING, 2019).
Ao tomar a Mata Atlântica brasileira como ponto de referência para refletir sobre os
impactos das ações humanas sobre os ambientes, seria possível apontar, em um primeiro
momento, a severa redução sofrida pelo bioma ao longo de “séculos de mineração, agricultura
e pecuária imprevidentes”, nas palavras do historiador ambiental Warren Dean (DEAN, 2021,
p. 19). De fato, o bioma como um todo encontra-se hoje reduzido a cerca de 12,4% de sua
cobertura original (SOS Mata Atlântica/INPE, 2021), ao passo que, na cidade do Rio de
Janeiro, a área ocupada atualmente por vegetação de Mata Atlântica corresponde,
aproximadamente, a 28,9% da área total do município (ARBILLA; SILVA, 2018, p. 1769).
Sob uma perspectiva que enfatiza majoritariamente os processos de devastação
sofridos pelo bioma, Dean questiona até mesmo se ainda seria correto referir-se à Mata
Atlântica no tempo presente, levando em consideração que a quase totalidade de seus
remanescentes apresenta algum grau de intervenção humana. (DEAN, 1996, p. 31).
Entretanto, seria possível apontar que o questionamento proposto por Dean tem como
premissa a ideia de que a “verdadeira” Mata Atlântica seria aquela intocada pelo ser humano.
Sob essa perspectiva, descrita por vezes como “declencionista” (PÁDUA; CARVALHO,
2020), a interação ecológica do humano com o ambiente tende a ser reduzida à sua capacidade
destruidora (SOLÓRZANO, 2019, p. 109). Contudo, ao abordar a formação das áreas verdes
do Rio de Janeiro, narrar somente os processos de devastação sofridos pelo bioma no local é
contar apenas uma parte da história. Afinal, ainda durante a segunda metade do século XIX,
as áreas da cidade degradadas pelo desmatamento e pela cafeicultura se tornaram o cenário de
um dos mais emblemáticos trabalhos de reflorestamento realizados no Brasil, dando origem à

1
Graduando do curso de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Bolsista de Iniciação
Científica (PIBIC/CNPq). Orientador: Felipe Süssekind Viveiros de Castro. Email: joao.whately@gmail.com
8

atual Floresta da Tijuca, que compõe, atualmente, um dos maiores trechos florestais urbanos
do mundo (SALES, 2021; SOLÓRZANO, 2019, p. 8). Seria possível, ainda, apontar outros
projetos de reflorestamento empreendidos na cidade a partir da década de 1980, que também
contribuíram para moldar as áreas florestadas do Rio de Janeiro. (ZAÚ; SARTORI, 2021).
Assim, pode-se afirmar que as atuais florestas da cidade constituem paisagens
complexas, resultantes da “sobreposição de diversos usos pretéritos” (SOLÓRZANO, 2019, p.
114), que permitem observar, através de sua própria composição, as marcas deixadas tanto por
atividades humanas devastadoras quanto por esforços empreendidos em prol da restauração
ecológica (SOLÓRZANO, 2017; SALES, 2021). Todavia, a configuração dessas áreas verdes
não resulta somente da realização de diferentes programas humanos de transformação das
paisagens, mas também das atividades dos vários agentes não-humanos que as constituem
(CAPILÉ et. al., 2021).
Nesse sentido, as perturbações ocorridas historicamente nessas florestas urbanas
também poderiam ser pensadas a partir das suas implicações sobre as múltiplas relações entre
espécies que compõem tais paisagens, como por exemplo, a partir dos efeitos gerados pela
introdução de espécies exóticas (SOLÓRZANO, 2019), ou pela reintrodução de espécies
extintas (FERNANDEZ, 2017). Conforme aponta a antropóloga Anna Tsing, paisagens “não
são apenas cenários para a ação histórica: elas são ativas” (TSING, 2022, p. 226). Assim,
segundo a autora, a observação das mesmas permite perceber os modos através dos quais
humanos e não humanos se articulam em processos de “adaptação colaborativa” às
perturbações ecológicas (TSING, 2019, p. 23).
Em artigos presentes na obra “Viver nas ruínas” (2019), Tsing caracteriza o
Antropoceno como a época da perturbação humana. Ao mesmo tempo, a autora também
argumenta que “o Antropoceno pede à antropologia que leve a sério as questões de
habitabilidade” (TSING, 2019, p. 204). Nesse sentido, para compreender o que torna os
lugares habitáveis em meio a essa “época de terrores ambientais” (TSING, 2021, p. 177), se
faz necessário estudar os entrelaçamentos dos modos de vida presentes nas assembleias de
espécies que compõem as paisagens (TSING, 2022).
Seguindo essa proposta, a presente pesquisa tem por objeto as áreas verdes da cidade
do Rio de Janeiro, tomadas enquanto paisagens resultantes não apenas dos diferentes
processos históricos de interferência humana, como também das relações estabelecidas entre
as múltiplas espécies que as integram - sendo estas espécies nativas, exóticas ou mesmo
espécies reintroduzidas por projetos de restauração ecológica.
9

Em primeiro lugar, a pesquisa tem como objetivo analisar os processos de devastação e


regeneração das áreas de Mata Atlântica no Rio de Janeiro, buscando evidenciar o
envolvimento de humanos e não-humanos na composição dessas paisagens. Além disso,
pretende-se também traçar conexões entre os processos de formação dessas áreas verdes e as
discussões em torno do Antropoceno e das “questões de habitabilidade” apontadas por Tsing
(2019).
Em relação à metodologia, o presente trabalho tem como principal referencial
teórico-metodológico a abordagem apresentada por Tsing no artigo “O Antropoceno mais que
humano” (2021), no qual a autora propõe a utilização de marcadores - ou, nas suas palavras,
“detonadores” - do Antropoceno como ferramentas conceituais para analisar as
transformações ecológicas ocorridas nas paisagens perturbadas por projetos humanos
(TSING, 2021). Cada um dos “detonadores” apresentados por Tsing – a saber: “Invasão”,
“Império”, “Capital” e “Aceleração” – está associado ao desenvolvimento de determinados
“projetos materiais de transformação da paisagem” (TSING, 2021, p. 179) que, por sua vez,
estão diretamente relacionados com o surgimento de dinâmicas “ferais” imprevistas, que se
desenvolvem à medida em que não humanos emaranham-se nesses projetos humanos, fazendo
emergir novos “mundos sociais mais que humanos” (TSING et. al., 2021).
Seria possível exemplificar essa abordagem apresentada no artigo a partir de uma
conjuntura histórica específica: a invasão do continente americano por colonizadores
europeus, ocorrida a partir do final do século XV. Essa invasão, conforme aponta Tsing, foi
acompanhada pelas invasões biológicas de plantas, animais e microrganismos transportados
pelos colonizadores, que impactaram profundamente as comunidades humanas e não humanas
das Américas (TSING et. al, 2021). Entretanto, as invasões biológicas - abrangidas pelo
marcador “Invasão” – não se restringem ao século XV. As introduções biológicas continuaram
ocorrendo ao longo dos 500 anos desde a invasão europeia às Américas (TSING, 2021, p.
181). Assim, é possível apontar uma outra característica dos “detonadores”: segundo Tsing,
eles não periodizam a história ou estabelecem uma cronologia, uma vez que todos os quatro
marcadores – e seus efeitos sobre as paisagens – “estão conosco no presente” (TSING, 2021,
p. 181). Nesse sentido, tais conceitos permitem, acima de tudo, caracterizar processos
históricos ocorridos em diferentes momentos, a partir dos efeitos engendrados pelas
sucessivas ondas de “projetos humanos de transformação das paisagens” (TSING et. al.,
2021).
10

Assim, a metodologia adotada para analisar os processos que moldaram as paisagens


da cidade tem sido a caracterização de tais processos a partir da identificação dos mesmos
com os marcadores e “projetos humanos de transformação da paisagem” apontados acima,
buscando identificar também as dinâmicas ecológicas que se desenvolveram a partir do
envolvimento de não humanos em tais projetos. Para tal, os processos de devastação e
regeneração do bioma (e suas dimensões mais que humanas) têm sido investigados através da
pesquisa bibliográfica a respeito da formação da Mata Atlântica no Rio de Janeiro – a partir
de livros e artigos produzidos por diferentes campos de conhecimento, tais como a História
Ambiental e a Ecologia Histórica. Em uma próxima etapa da pesquisa, pretende-se também
realizar entrevistas e trabalhos de campo junto a integrantes de projetos locais de conservação,
reflorestamento e refaunação (tais como os projetos Refloresta Rio e Refauna2), e a moradores
de áreas próximas às Unidades de Conservação ambiental da cidade (RIO PREFEITURA,
2023).
Em conclusão, o trabalho de identificação dos processos históricos ocorridos na Mata
Atlântica do Rio de Janeiro com os diferentes detonadores do Antropoceno apresentados por
Tsing (2021) possibilitou, em primeiro lugar, ir além de um mero levantamento histórico
acerca dos processos de devastação e regeneração que moldaram os remanescentes florestais
da cidade. Afinal, a utilização dessas ferramentas conceituais possibilitou adotar as paisagens
atuais como referência para, a partir de determinados aspectos identificáveis no presente,
refletir sobre os “projetos humanos de transformação da paisagem” desenvolvidos no passado.
É o caso, por exemplo, da presença das jaqueiras na Floresta da Tijuca, que permite resgatar a
trajetória de diferentes “projetos humanos de transformação da paisagens”: a introdução de
espécies exóticas durante a colonização (ligado ao marcador de “Invasão”); e a utilização da
jaqueira nos reflorestamentos empreendido no século XIX - tida como uma das várias
espécies de valor madeireiro empregadas à época como proposta estratégica de fortalecimento
econômico do Estado brasileiro (relacionado, sob essa perspectiva, ao marcador “Capital”)
(SOLÓRZANO, 2019; SALES, 2021, p.19-20; 126).
Em segundo lugar, a aplicação dos marcadores propostos por Tsing à história da Mata
Atlântica no Rio de Janeiro também possibilitou considerar com maior atenção a dimensão
“mais que humana” (TSING, 2021) dos processos que moldaram as áreas verdes da cidade, a
partir da identificação dos participantes não humanos das dinâmicas que constituem tais
paisagens. Como exemplo dessa participação, pode-se destacar o crescimento espontâneo das

2
https://refloresta-rio-pcrj.hub.arcgis.com/; https://refauna.org.br/
11

comunidades vegetais - ou “assembleias” - da floresta da Tijuca, que passou a ocorrer a partir


do momento em que os projetos humanos de reflorestamento no local foram interrompidos, ao
final do século XIX (SALES, 2021, p. 196-197). Conforme aponta Sales (2021), a área
plantada durante os 33 anos em que ocorreram os trabalhos de reflorestamento no local, ainda
na segunda metade do século XIX, corresponde a apenas a 22% do atual setor Floresta da
Tijuca.
Ainda em relação às dinâmicas ecológicas mais que humanas nas áreas verdes da
cidade, também foi possível identificar algumas controvérsias ambientais relativas a não
humanos que, ao se emaranharem em projetos humanos, ganham qualidades “ferais”
imprevistas (TSING et. al., 2021). É o caso, por exemplo, do problema representado pelo
mico de espécie invasora Callitrix jacchus, cuja presença na floresta da Tijuca, no início dos
anos 70, prejudicou as tentativas de reintrodução do - praticamente extinto - mico leão
dourado (Leontopithecus rosalia) no local (DRUMMOND, 1997, p. 230).
Em terceiro lugar, a utilização dos marcadores também permitiu traçar paralelos entre
os processos experimentados localmente na Mata Atlântica do Rio de Janeiro e processos
globais, que, para Tsing, “ativam novas formas do Antropoceno” (TSING, 2021, p. 180).
Dentre eles, seria possível apontar as invasões biológicas, a devastação provocada pela
implementação das plantations, a contaminação e poluição decorrentes da industrialização e
urbanização entre outros (DEAN, 2021; OLIVEIRA, 2010; TSING et. al, 2021).
Por fim, a relevância atribuída por Tsing às questões relativas à habitabilidade (2019)
também permitiu refletir acerca do importante papel das áreas verdes do Rio de Janeiro para a
cidade. Pode-se considerar que essas áreas verdes contribuem historicamente para a
manutenção da habitabilidade de diversas maneiras: seja através da absorção de CO2,
garantindo a qualidade do ar em regiões da cidade (ARBILLA; SILVA, 2018), seja através da
recuperação de nascentes e mananciais – conforme se deu ainda no século XIX, (SALES,
2021), ou, ainda, na preservação de encostas (ZAÚ; SARTORI, 2021). Tais exemplos
evidenciam a importância dessas paisagens “mais que humanas” na manutenção de condições
de habitabilidade em escala local, em meio a uma época caracterizada por terrores ambientais
(TSING, 2019).

REFERÊNCIAS
12

ARBILLA, G.; SILVA, C. M. Floresta da Tijuca: Uma Floresta Urbana no Antropoceno.


Revista Virtual de Química, v. 10, n. 6, pp. 1758-1791, 2018.

CAPILÉ, Bruno; FRANÇA, Ana Marcela; SALES, Gabriel Paes da Silva. A agência
compartilhada de plantas e humanos na elaboração do mosaico de paisagens do Rio de Janeiro
oitocentista: uma proposta metodológica. Anuario de Historia Regional y de las Fronteras,
v. 26, n. 2, pp. 49-80, 2021.

CRUTZEN, Paul J.; STOERMER, Eugene F. “O antropoceno”. Piseagrama, Belo Horizonte,


sem número, 06 nov. 2015.

DEAN, Warren. A ferro e fogo: A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São
Paulo: Companhia das Letras, 2021.

DRUMMOND, José Augusto. Devastação e preservação ambiental no Rio de Janeiro.


Niterói: Eduff. 1997.

FERNANDEZ F. A. S. et. al. Rewilding the Atlantic Forest: restoring the fauna and
ecological intetactions of a protected area. Pespectives in ecology and conservation, n. 15,
out, 2017.

OLIVEIRA, R. R. (org.). As marcas do homem na floresta: História ambiental de um trecho


urbano da mata atlântica. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2010.

PÁDUA, José Augusto; CARVALHO, Alessandra Izabel de. A construção de um país


tropical: apresentação da historiografia ambiental sobre o Brasil. História, Ciências, Saúde –
Manguinhos, Rio de Janeiro, v.27, n.4, out.-dez. 2020, p.1311-1340

RIO PREFEITURA. Carioca digital, 2023. Unidades de Conservação ambiental.


Disponível em: < https://carioca.rio/tema/unidades-de-conservacao-ambiental/>. Acesso em:
24/02/2023.

SALES, Gabriel Paes da Silva. A História contada a partir das árvores: um ensaio sobre o
plantio da Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX. Tese
(Doutorado) - Geografia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2021.

SOLÓRZANO, Alexandro. et. al. A história de transformação da paisagem do Parque


Nacional da Tijuca: uso, ocupação e legados socioecológicos impressos na paisagem. ANAIS
SNCMA, v. 8, n. 1, out, 2017. Disponível em:
http://anais.unievangelica.edu.br/index.php/sncma/article/view/20/27.

SOLÓRZANO, Alexandro. Novas perspectivas sobre o debate da dicotomia sociedade X


natureza a partir da Ecologia Histórica: Introdução e domesticação de uma espécie exótica na
Mata Atlântica. Revista Desigualdade & Desigualdade, n. 17, pp. 107-127, 2019.
13

SOS Mata Atlântica/INPE. Atlas dos remanescentes florestais da Mata Atlântica. Período
2019-2020. Relatório Técnico. Fundação SOS Mata Atlântica, Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais, São Paulo, 2021.

TSING, Anna L., DEGER, Jennifer, SAXENA, Alder K., and ZHOU, Feifei. Feral Atlas:
The More-Than-Human Anthropocene, Redwood City: Stanford University Press 2021.
TSING, A. L. O Antropoceno mais que Humano. Ilha – Revista de Antropologia, v. 23, n. 1,
pp. 176-191, 2021.

TSING, A. L. O cogumelo no fim do mundo: sobre a possibilidade de vida nas ruínas do


capitalismo. São Paulo: n-1 edições, 2022.

TSING, A. L. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB, Mil
Folhas, 2019.

ZAÚ, André Scarambone; SARTORI, Richieri Antonio (org.). Florestas aos Montes: A
recuperação das matas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Edição do autor, 2021.
14

Incessante até cessar: tempo, cuidado e sofrimento


Luana Papelbaum Micmacher1

O presente trabalho busca investigar como tempo, gênero e cuidado se encontram na


produção de sofrimentos psíquicos vividos por mulheres no contexto de uma Clínica da Família
na Zona Norte do Rio de Janeiro. Essa temática parte de minha experiência como estagiária de
Psicologia do Núcleo Ampliado de Saúde da Família (NASF) na unidade de saúde entre
novembro de 2021 e novembro de 2022, e da presença cotidiana de narrativas femininas em
que se sobressaiam queixas de sobrecarga de cuidado ao outro. Percebeu-se um movimento de
chegada ao serviço somente quando tal sofrimento se instalava de modo a paralisar o corpo,
seja a partir de uma dor crônica, um sofrimento depressivo intenso, uma paralisia conversiva,
entre outras manifestações de sofrimento que impediam, inclusive, que esses sujeitos
ocupassem seu lugar de cuidadoras que traziam em seus relatos.
Essa questão será apresentada a partir de um caso paradigmático, cuja imagem volta a
aparecer de diversas maneiras nos corpos e vozes de muitas outras mulheres, em sua
singularidade. Na Clínica da Família onde fui estagiária, atendi uma mulher, junto à psiquiatra
que realiza o matriciamento2 no dispositivo de saúde e do médico de família. Vou chamá-la aqui
de Kátia3. Cerca de cinquenta anos, chega ao serviço paralisada. Não consegue mexer a metade
direita de seu corpo. Já havia feito todos os exames para descobrir a etiologia desse sintoma,
mas nada que houvesse registro fisiológico fora encontrado. Então, Kátia fala. No atendimento,
ela nos conta como se viu paralisada não somente por acumular e assumir o papel de cuidado
de todos os seus filhos e parentes, sempre forte para todos, mas também por ser incumbida da
tarefa de buscar seu neto, que morrera dez minutos depois de nascer, pelo hospital. O corpo do
bebê havia sido perdido. Os familiares - e os profissionais de saúde da maternidade - delegaram
a ela essa tarefa, já que ela era a mais forte para aguentar esse tranco. Kátia traz seu
movimento incansável, para cima e para baixo, abrindo sacos com

1
Instituto de Psicologia/UFRJ. Orientadores: Camilo Barbosa Venturi (IP/UFRJ) e Laura Rebecca Murray
(NEPP-DH/UFRJ)
2
Matriciamento ou apoio matricial é um modo de produzir saúde que, ao invés de basear-se na prática tradicional
de encaminhamento, visa compartilhar o cuidado, mantendo a equipe de referência do usuário do SUS no papel de
organizadora da rede de cuidado junto ao paciente. É, portanto, uma maneira de integrar, junto à equipe de
referência da Atenção Primária à Saúde, saberes multidisciplinares. É uma intervenção pedagógico-terapêutica que
amplia o cuidado ao usuário, sem a perda do vínculo com a equipe que o acompanha cotidianamente no serviço de
saúde da família (GONÇALVES et al, 2011).
3
Todos os nomes de sujeitos e lugares foram modificados dos diários de campo para a presente pesquisa a fim de
manter o sigilo profissional e o anonimato de usuários, profissionais da clínica da família e demais pessoas
envolvidas nas histórias aqui trazidas.
15

bebês recém-nascidos já mortos, e enquanto fala, movimenta seu braço direito. Ninguém da
família a entende. O chefe, muito menos; e a sobrecarga de tarefas, além de submetê-la a
humilhações, passando assim por cima de seu tempo de luto. Diante de tanta sobrecarga,
movimentos exaustivos, demandas sem fim, Kátia paralisa seu corpo. É só então que chega ao
serviço. Mesmo que todos os seus filhos sejam usuários habituais da clínica, de todos ela cuida,
mas para si, ela diz, não há tempo. No encontro com Kátia, o sofrimento aparece como forma
de evidenciar um corpo que não para, que é demandado continuamente pelo outro, ao qual se
delega e se espera o papel de cuidado incessante. Até cessar. Kátia sofre em um contexto de
temporalidade em que se vive o tempo como tempo-recurso, tempo-coisa, no qual o presente é
comprimido em função do excesso de demandas, da aceleração em diversos - quiçá todos - os
níveis de sociabilidade. Além disso, Kátia é uma mulher, mãe solteira de seis filhos,
trabalhadora de um supermercado que fica a duas horas de sua casa, moradora de uma das
maiores favelas do Rio de Janeiro, território submetido constantemente a violências de Estado4
que estruturam a vida de seus moradores, em sua grande maioria negros. É a partir dessa
interseção, ou mesmo sobreposição de temporalidades que inicio essa pesquisa.
De início, para iluminar esse caso paradigmático, é importante nos localizarmos
brevemente no panorama das dinâmicas temporais que regem o cotidiano no mundo ocidental
na Modernidade Tardia (ROSA, 2019), compreendendo a aceleração que se impõe em todos os
níveis da vida, somada ao imperativo do uso eficiente do tempo no contexto de produção
neoliberal, isto é, a noção de que se deve fazer de tudo o possível para produzir mais em menos
tempo. O sociólogo Hartmut Rosa propõe a aceleração como definidora de nossa era, afetando
os mais diversos níveis de nossas vidas. Percebe-se como, ao mesmo tempo em que nos
sentimos comprimidos temporalmente, isto é, vivendo em permanente experiência de estar
correndo contra o tempo, a cada dia inventam-se novos dispositivos tecnológicos que
prometem poupar nosso tempo. No entanto, paradoxalmente, a experiência vivida não é de
sobra de tempo, mas de carência deste. Visualiza-se como a tecnologia adentra nossas vidas
como meio de acelerar processos e inseri-los na lógica da eficiência temporal, fenômeno
nomeado como “solucionismo tecnológico”. Na busca pela solução do “problema” do tempo e
da necessidade de torná-lo eficiente, encontramos uma espécie de barreira, algo que não pode
ser acelerado: o cuidado, o que provoca tensionamentos e aflições vividas comumente por
aquelas que cuidam (WAJCMAN, 2019).
4
Tomo como referência a noção de violência de Estado enquanto violações que se dão tanto pela ausência de
políticas públicas, dentre elas, as de cuidado, quanto pelas “frequentes incursões policiais, que na sanha da guerra
às drogas expõem comunidades inteiras a constantes cenas de violências extremas em seu cotidiano”
(MAYORCA; BARROS, 2019, p. 73).
16

Tendo em vista tal panorama temporal, propõe-se explorar o cuidado em sua dimensão
de múltipla temporalidade e como uma atividade que, de certo modo, resiste ao imperativo da
aceleração. Assume-se, a partir da aproximação dos estudos sobre os usos do tempo e gênero,
a temporalidade como um campo regulado por regimes de poder, entre eles o patriarcado
(DAVIES, 1987; 1994). Davies, em sua obra, propõe uma distinção entre “tempo do relógio”
e “tempo processual”, não enquanto opostos, mas como temporalidades que se sobrepõem
uma à outra. Enquanto o primeiro refere-se a uma temporalidade organizada de modo linear e
quantificável, voltado para a produção, o segundo é percebido pela experiência nos trabalhos
de cuidado, que sempre envolvem algo que não se finda, temporalidade marcada pelo
imprevisível dos encontros e nos quais não se explicita aquilo que foi produzido. Percebe-se
que a maneira como encaramos comumente nossa relação com tempo impele para que o
“tempo processual” seja encaixado no “tempo do relógio”, o que provoca conflitos e aflições
que emergem em formas sintomáticas pelas cuidadoras nesta pesquisa.
Ainda que o cuidado se apresente como uma barreira intransponível à aceleração, ele é
uma atividade fundamental à sustentação do sistema capitalista, o que nos convoca à
aproximação da Teoria da Reprodução Social (BHATTACHARYA, 2019; FRASER, 2017),
que perspectiva o trabalho reprodutivo do cuidado de modo a politizá-lo, compreendendo
assim o cuidado enquanto atividade essencial à manutenção da vida e ao funcionamento do
sistema capitalista, na medida em que é desvalorizado para que o trabalho produtivo possa
produzir e acumular capital de modo acelerado. Tais teóricas propõem que há uma crise na
cadeia de cuidados, nas quais as mulheres negras são cada vez mais colocadas a suprir
demandas de cuidados não cobertas pelo Estado e por mulheres brancas que deixaram de
trabalhar no âmbito doméstico, sendo então essa população frequentemente exercendo tal
função de maneira mal remunerada. Além de “dar conta dos seus”, ainda precisam “dar conta
dos outros”, sem que tal tarefa seja reconhecida, fruto da herança dos três séculos de
escravidão no Brasil.
Após esta contextualização teórica do que concerne nossa problemática, busca-se
reunir as três dimensões até aqui apresentadas: tempo, cuidado e gênero. Nesse momento,
partirei tendo como referência central a minha própria vivência como estagiária de Psicologia
e dos relatos produzidos em um diário de experiências desse estágio, no qual acompanho a
equipe do Núcleo Ampliado de Saúde da Família. No estágio, me encontrei com diversas
mulheres em sofrimento psíquico, como Kátia, que chegaram até o atendimento voltado para
a saúde mental por meio de uma experiência de paralisia, tendo, de modo geral, como
principal queixa, a impossibilidade de exercer o papel de cuidado ao qual essas mulheres são
17

recorrentemente demandadas a assumir em suas famílias. É presente também o desejo de ter


seu movimento restituído, a fim de dar conta desse lugar no seio familiar e comunitário, além
de poder desempenhar outras diversas atividades cotidianas, como o trabalho remunerado que
se dá fora da própria casa.
Tais relatos foram elaborados a partir de uma escuta clínica, tanto em interconsultas -
atendimentos realizados com mais de um profissional - quanto em atividades grupais, além de
visitas domiciliares que realizei, acompanhando equipes mínimas em sua rotina no território
abrangido pela Clínica da Família. Como forma de trazer aqui os diários de campo, “pego
emprestada” de Sennett uma metodologia de aproximação com as usuárias da clínica:
(...) disfarcei de forma um pouco mais pesada as identidades individuais do
que se faria ao relatar entrevistas formais; isso significou trocar lugares e
épocas, e de vez em quando juntar várias vozes em uma ou dividir uma em
muitas. (...) Minha esperança é ter refletido com exatidão o sentido do que
ouvi, embora não, exatamente, as circunstâncias (2015, p. 10).

Proponho, portanto, fazer uma espécie de mosaico: por meio da escuta dos
sofrimentos em questão, o que se segue são colagens e sobreposições desses encontros, que,
em suas singularidades, denunciam o cerne deste trabalho - o fato de muitas mulheres só
chegarem ao serviço de saúde quando tais estruturas de aceleração e de sobrecarga de cuidado
dos outros que delas dependem “escangalham”, impondo uma paralisia a esses sujeitos, que
desejam, tão logo possível, retomar o ritmo perdido, que é imposto a elas na medida em que
precisam dar conta de tudo.
A partir delas, busco investigar como essas aparições sintomáticas denunciam algo
que as transpassa, na tentativa de apontar para o fato de que o que está no centro dessas
experiências de adoecimento são, para além de uma dor pessoal, uma dor produzida
socialmente pela escassez de políticas públicas de cuidado no Brasil, que empurra essas
mulheres a darem conta de toda uma estrutura em seus núcleos familiares e comunitários, sem
o amparo de um outro nesse processo de cuidado, tão complexo e conturbado. Reunindo tais
relatos sob uma perspectiva psicanalítica do sintoma, percebe-se como esses sofrimentos, ao
chegarem ao serviço, são uma mensagem endereçada a um outro, uma demanda por cuidado
de si, que denuncia, juntamente, tal lacuna de políticas públicas e toda uma estrutura de
opressão de classe, gênero e raça que produz adoecimento.
Busca-se, portanto, explorar a dimensão do adoecimento enquanto experiência de
“desaparecimento de si” (LE BRETON, 2018), recorrendo também à noção de “fuga para
doença” (FREUD, 1905), diante dos impasses e aflições vividos pelas mulheres desta
pesquisa, a quem se demanda dar conta de alguns duplos: trabalho produtivo e trabalho
18

reprodutivo; tempo do relógio e tempo processual; tempo de “estar com” e tempo de “correr
atrás” (FERNANDES, 2018). Percebe-se como, diante das tensões temporais e sociais vividas
por essas mulheres, é recorrente a escuta de expressões como “andar sem rumo”, “sumir do
mundo”, para expressar o desejo pelo sumiço, pelo alívio do peso de existir frente às
demandas que são impostas diariamente. Diante das infinitas demandas que são convocadas a
responder cotidianamente, uma saída encontrada por muitas mulheres é o adoecimento, tanto
como forma de desaparecer - deixar de ser demandada - mas também de aparecer - o
adoecimento enquanto um pedido, um modo de demandar para si um cuidado, denunciando
assim toda uma estrutura social de distribuição do trabalho e dos lugares sociais de mulheres
na qual o trabalho de cuidado é compartilhado de forma parcial, sobrecarregando aquelas que
ocupam o lugar de cuidadoras principais em seus meios sociais.
Procura-se, portanto, encontrar lugar e palavras para tais sofrimentos femininos,
compreendidos neste trabalho como um sintoma social (KEHL, 2009) de uma época
extremamente acelerada, e a aparição dessas múltiplas formas de paralisia como uma revolta,
e até mesmo, uma denúncia ao modo de operação temporal da contemporaneidade, no qual se
exige do sujeito ser cada vez mais si mesmo, de forma autônoma, livre e responsável (LE
BRETON, 2018) e, especialmente, do papel ao qual as mulheres são delegadas nesse
contexto.
Politizar e dar palavra ao sofrimento ligado à temporalidade e ao cuidado são uma
aposta para se pensar as políticas públicas do cuidado no Brasil, que nesse campo são
incipientes e acabam por individualizar uma questão de ordem coletiva, que impacta
diretamente a vida das mulheres (MORANDI; MELO, 2021). Nesse sentido, como
considerações desta pesquisa, percebe-se a urgência de uma agenda de políticas públicas que
busquem dar suporte e compartilhar as tarefas de cuidado que cotidianamente sobrecarregam
cuidadoras. Além disso, pensando em trabalhos intrainstitucionais, percebe-se a importância
dos dispositivos de escuta não somente individuais, mas também coletivos, como grupos
terapêuticos, nos quais tais sofrimentos passam a ser compartilhados e partilhados, o que se
soma a um espaço relevante para a formação de vínculos entre as usuárias atendidas nos
serviços. Enquanto mudanças efetivas não se dão em relação a uma estrutura que parece
difícil de escapar e, até mesmo para que este trabalho não se finde mergulhado em pura
angústia, trago aqui uma fala de uma usuária que gerou riso e choro no último encontro do
grupo de mulheres que participei como estagiária: “mulheres unidas jamais serão vencidas”.
Talvez, a partir daí, algo já tenha começado.
19

REFERÊNCIAS

BHATTACHARYA, Tithi. “O que é a teoria da reprodução social?”. Originalmente publicado


em 10 set. 2013 no periódico Socialist Worker. Tradução para o português publicada na
Revista Outubro, n. 32, 1º semestre, 2019.

DAVIES, Karen. Time, Gender, Science and Everyday Life. 1987.

DAVIES, Karen. The Tensions between Process Time and Clock Time in Care-Work: The
Example of Day Nurseries. Time & Society. 1994; 3 (3): p. 277-303.

FERNANDES, Camila. O tempo do cuidado: batalhas femininas por autonomia e mobilidade.


In: RANGEL, Everton; FERNANDES, Camila; LIMA, Fatima (orgs.). (Des)Prazer da
Norma. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens Edições, 2018, p. 297 - 320.

FRASER, Nancy. “Crisis of Care? On the Social-Reproductive Contradictions of


Contemporary Capitalism”. In: BHATTACHARYA, Tithi (org.). Social Reproduction
Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. Londres: Pluto Press, 2017.

FREUD, Sigmund. Fragmento da análise de um caso de histeria (1905 [1901]). In: Obras
Completas, volume 6. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

GONÇALVES, Daniel Almeida et al. Guia prático de matriciamento em saúde mental.


Brasília: Ministério da Saúde: Centro de Estudo e Pesquisa em Saúde Coletiva, 2011.

KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo,
2009.

LE BRETON, David. Desaparecer de si: Uma tentação contemporânea. Petrópolis: Editora


Vozes, 2018.

MAYORCA, Daniela Sevegnani; BARROS, Allyne Fernandes Oliveira. Efeitos psicossociais


da violência de Estado e a operação clínica do direito à reparação. In: LOPEDOTE, Maria
Luiza et al (orgs.). Corpos que sofrem: como lidar com os efeitos psicossociais da
violência?. São Paulo: Editora Elefante, 2019. p. 69 - 79.

MORANDI, Lucilene; MELO, Hildete. Cuidados no Brasil: conquistas, legislação e


políticas públicas. 2021. Conquistas, legislação e políticas públicas. São Paulo: Friedrich
Ebert Stiftung (FES). Brasil, Dezembro de 2020.

ROSA, Harmut. Aceleração: A transformação das estruturas temporais na modernidade.


Trad. Rafael Silveira. São Paulo: Editora Unesp, 2019.

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. 16a ed. Rio de Janeiro: Record, 2015.
WAJCMAN, Judy. 'Fitter, happier, more productive’. In: KING, Vera; GERISCH, Benigna
Gerisch; ROSA, Hartmut (orgs.). Lost in Perfection. Oxfordshire, Inglaterra: Routledge,
2019. p. 51- 60.
20

IGBÁ: As Histórias que nossos corpos carregam.

Maria Clicia de Almeida 1

O ato de se conhecer é um ato revolucionário para sujeitos dissidentes. Fugir da


normatividade em um mundo pensado a partir da difusão de uma monocultura colonialista das
ideias (DANNER, 2015) é por muito tempo desconhecer a si próprio. É comum em grupos
LGBTIA+, enquanto trocamos sobre nossas vivências, conversarmos sobre nossa descoberta,
desde o momento em que nos questionamos pela primeira vez até o momento em que
adquirimos a compreensão de quem somos. Tal experiência exemplifica bem a problemática
do se contar apenas uma história sintomática do universalismo: Se difundem uma história
branca e cisheterormativa como a universal, onde me encaixo enquanto sujeito racializado
LGBTIA+? Onde buscar referências para que me (re)conheça e afirme para o mundo quem eu
sou? O processo de apagamento de outras cosmovisões - estas que existem para acolher a
pluriversalidade - afeta diretamente nesta construção de quem sou. Estamos em fuga. Não
queremos histórias de quem não nos representam dentro de nossos corpos-cabaças, ao
contrário, queremos revogar aqui - e em outros espaços - nosso poder de trazer outras
narrativas na contribuição de um adiamento ao fim do mundo2.
Este escrito parte de quem eu fui para quem sou agora, fazendo um exercício reflexivo
em conjunto (ora pois, sou minha comunidade) de pedir licença e explorar minha cabaça e as
narrativas que me construíram até o presente momento. Tratando-se de uma autoetnografia, as
reflexões costuradas neste ensaio partem de memórias, relatos, observações e conversas
obtidas no meu convívio com minha própria comunidade de santo (meu terreiro), tendo o
principal objetivo investigar processos de identificação/tomada de consciência sobre si de
corpos dissidentes/racializados a partir de sua corporalidade. A decisão de utilizar este método
parte do fator que norteia todo este trabalho: Sou tanto quanto minha comunidade um sujeito
de observação. Se trata também de uma revolução epistemológica, pois, como menciona
MAIA e BATISTA (2020), a autoetnografia se constrói como uma tomada de protagonismo
em produção científica daqueles que outrora apenas poderiam falar pela boca do intelectual
(este muitas vezes branco, cis e hétero). Em resposta a SPIVAK (2004), neste texto o

1
Graduanda em Ciências Sociais (ICHS/UFRRJ) 2 Ver
em Krenak (2015).
21

subalterno não somente pode falar, como também jogar na roda os seus saberes e defender que
há sim ciência nos espaços que a colonialidade insiste em dizer que não.
O trabalho de campo foi realizado no Ilê Asé Omimó Ifé, terreiro de candomblé da
nação ketú, localizado no Sul Fluminense do Rio de Janeiro, em uma cidade chamada Barra
Mansa. É uma comunidade de santo em nascimento, no qual consta ao total oito filhos de
santo, um babalorixá (pai de santo) e uma iyá kekerê (mãe pequena), que se reúnem enquanto
família há pouco mais de cinco anos na luta para que este impulso de axé se tornasse mais
tarde uma família com ilê fixo, assentamentos firmados e constante trabalho. Como filha já
iniciada desta casa, os registros em trabalho de campo não se tratavam de um período
específico destinado a construção desta pesquisa, mas um constante olhar investigador em
cada experiência vivenciada no cotidiano de trabalho deste terreiro.
Diante de tal experiência enquanto membro desta comunidade, posso compartilhar o
grande segredo sobre o axé - tal força vital que movimenta o mundo: Ela não se vive de outra
forma que não seja no coletivo. Enquanto rezo e passo um ebó no corpo, peço não só por mim
mas sempre pela comunidade porque, se não for assim, o axé não circula. Ele é a força que faz
a roda girar. Ensinou a muito tempo atrás Oxum ao buscar ajuda de todos os orixás para
iniciar sua primeira filha, sua primeira yawo. Portanto, se em meu corpo-cabaça carrego o axé,
carrego comigo a história da minha comunidade.
A palavra igbá é utilizada dentro dos terreiros para se referir aos assentamentos dos
santos que fizeram morada na casa. Quando um santo é assentado, louças e outras
aparamentas2 são utilizadas como representação desta entidade em nossa terra. Em outros
contextos ainda pertencentes à mesma cosmovisão, igbá é a ponte entre o orum ( mundo
espiritual ) e o ayé (terra, nosso mundo carnal) e, a partir desta compreensão é possível
perceber que nossos corpos também são igbá. Costumeiramente, usamos louças para
representar nossos orixás e os segredos que compõem este assentamento são elementos que
fazem alusão às histórias de passagem destes aqui na terra. Imaginem: Cabaças repletas dos
axés que narram histórias destas Entidades. O quão isso é diferente do que nós somos? Sou
um corpo-cabaça e carrego comigo diversos elementos que narram a minha história.
Somos produtos dos espaços em que nos esbarramos, dos afetos que nos marcaram, e
desse impulso que nos movimenta a experimentar enquanto construímos a nossa identidade.

2
Objetos que rememoram o culto à algum orixá.
22

Enquanto nos movimentamos na experimentação da identidade acumulamos axé, marcas do


nosso coletivo e experiências de nossas próprias trajetórias. Assim se concretiza a sabedoria
yorubá que nos conta que viveríamos em terra tal como nossos orixás: nos movimentando e
narrando histórias que compõem seus igbás.

Encruzilhadas/Encontros.
Lá na encruza eu vi coisa de se admirar
eu vi cego enxergar
eu vi mudo falar
Eu vi Maria Padilha de joelhos a gargalhar.
(Ponto de pombogira)

As encruzilhadas sempre foram o espaço dos malandros, das putas (ou pombogiras?),
das travas, de outres! É na encruza que se deixa o padê de Exú para os trabalhos começarem e
é nela também que a grande confluência da vida acontece. É com a movimentação, agito e
história de cada corpo que se cruza ali que o axé é espalhado cotidianamente. As histórias que
carregamos em nosso corpo-cabaça são os cruzamentos de nossas vivências afetadas pelos
encontros e desencontros ocorridos neste lugar.
Quem se encontrava na encruzilhada tinha sido empurrade, pela euro-universalidade
difusa, até as mais estreitas brechas pela sobrevivência. Se viam lá aqueles que de alguma
forma a existência era percebida como um confronto à norma, quase como se tais corpos
tivessem consigo o poder de implodir com a falsa narrativa propagada. Essa encruzilhada está
para além de um espaço fisicamente localizado onde pessoas que por ali passaram se
conectaram. Localiza-se estrategicamente no encontro de narrativas que a colonialidade
produziu como desvio. É nesse lugar em especial que a ginga foi produzida e os movimentos
de resistência destes corpos foram lançados como luta. (RUFINO, 2019, pp.19)
Falar da corporalidade para povos diásporos e afrobrasileiros é falar da sobrevivência
da ancestralidade destes. Quando trazidos para cá, deixaram para trás suas casas, famílias,
objetos sacros, vestimentas, acessórios e tudo aquilo que poderia ser usado como forma de
conexão à sua terra mãe. Toda a ponte que poderiam fazer com sua terra estava em seu corpo:
Danças, lutas, marcas, rituais e movimentos que para além de simbolizar a resistência de
escravizados que se recusaram a deixar suas identidades serem apagadas, simbolizava também
23

a história de etnias, reinos e comunidades que foram dizimadas na tentativa de se apagar a


pluriversalidade do mundo.
A cosmovisão monoteísta (BISPO, 2015) pintou um mundo focado no binarismo das
experiências. Entre o mal e o bem, deus e o diabo, homem e mulher, urge a necessidade de se
encontrar outras maneiras de se viver, ver e sentir a vida. É apontado também uma base
relacionada a poder e punição, representada na figura de deus: um todo poderoso, criador do
céu e da terra que deve ser amado acima de todas as coisas.

O povo eurocristão monoteísta, por ter um Deus onipotente,


onisciente e onipresente, portanto único, inatingível,
desterritorializado, acima de tudo e de todos, tende a se organizar de
maneira exclusivista, vertical e/ou linear. Isso pelo fato de ao
tentarem ver o seu Deus, olharem apenas em uma única direção.
(BISPO, 2015).

Quando evidenciamos a existência de qualquer relação de poder, estamos dialogando


também sobre relações de dominação. Não por coincidência a cosmovisão destacada está
diretamente ligada ao processo de colonização no território brasileiro, que contou com a
presença marcante de jesuítas em comunidades indígenas com o objetivo de catequizar povos
originários, ou, em outras palavras, disseminar uma visão de mundo que pretendia ser única.
Mas, quando há imposição e dominação, há também a possibilidade de resistência a partir das
brechas encontradas no meio do caminho.
Em contrapartida, analisar a cosmovisão politeísta (BISPO, 2015) e sua possibilidade
de confluências com diversas narrativas nos permite percebê-la como uma grande
encruzilhada repleta de possibilidades para a resistência de corpos dissidentes. Este lugar onde
não há fórmula, não há verticalidade, é construído de processos horizontais e outras narrativas
anteriormente silenciadas. Assim funciona a oralidade: não é uma briga para descobrir quem
está narrando o certo, mas sim a magia de se ouvir um novo conto cada vez que outra pessoa
narra.

O corpo-cabaça:
Exú quebra a cabaça
24

Espalha a semente
Exú olha o caminho da gente!
(Ponto de Exú)

Se os corpos dos nossos ancestrais foram os responsáveis por guardar histórias, afetos,
resistências e a força que não permitiu nosso apagamento por completo, a este devemos um
olhar atento e cuidadoso, buscando compreender qual o papel que este corpo tem na
construção de quem eu sou. Outrora falava-se de performances, outras vezes de expressões,
aqui eu falo do momento de estilhaçar-se, oferecendo tudo aquilo que nossa corporalidade nos
permite carregar e ser na resistente afirmação de que Não vão nos apagar agora3.
A proposta de construirmos nossos corpos enquanto cabaças é o exercício de mesclar
nossa história, as histórias de nossas comunidades e espalharmos esta energia vital - o axé
enquanto resistência à monoculturas. AmarElo, proposto pelo rapper Emicida, nos apresenta a
reflexão e possibilidade de abrir espaços para que nós falássemos, não nossas cicatrizes. Aqui
estamos falando, e falando numa boa5 sobre os atravessamentos que nos marcaram até que
chegássemos neste ponto de encontro que nomeio de encruzilhada. Dentro da academia
viciada em nos desnaturalizar - afinal, somos natureza - em um contínuo esforço de nos
transformar apenas em noções de consciência (GONZALEZ, 1983) propomos um movimento
de construir acerca de nossas noções de memória. Esse texto é um convite para politizar
nossas marcas. Reconhecermos-nos como cabaça para participar do movimento de
estilhaçar-se e espalhar nossas sementes-saberes, contribuindo assim para o giro da roda em
um movimento decolonial, nos comprometemos em, enquanto resgatamos a nossa
ancestralidade, nos movimentarmos em sentido anti-horário.

Glossário:
Axé: Força vital.
Assentar: Ritual de preparo da materialização do sagrado.
Assentamento: Representação do sagrado materializado.
Babalorixá: Pai de santo.

3
A gente combinamos de não morrer, Conceição Evaristo, 2016.
5
Ver Gonzalez (1984).
25

Cabaça: 1. Outra palavra para igbá. 2. Vegetal utilizado em alguns rituais no candomblé,
possuindo diversas funções.
Exú: Orixá do movimento e transformação.
Igbá: 1. Assentamento sagrado de um orixá. 2. A ponte entre o mundano e o espiritual; a
conexão entre os dois mundos.
Ilê: Casa.
Iya kekerê: Mãe pequena, cargo de uma casa de santo; O braço direito do pai de santo.
Padê: Comida feita de farinha de mandioca.
Pombogira: Entidade feminina, conhecida popularmente como exú mulher.
Orixá: Divindade do candomblé.
Oxum: Orixá das águas doces e fertilidade.

REFERENCIAS

DANNER, F.; DORRICO, J. Pensamento indígena brasileiro como crítica da modernidade:


sobre uma expressão de Ailton Krenak: Array. Griot: Revista de Filosofia, 2019.

EMICIDA. AmarElo. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2019.

EVARISTO, Conceição. Olhos d'água. Pallas Editora, 2016.

FELDMAN-BIANCO, Bela. Antropologia das sociedades contemporâneas. Métodos. São


Paulo: Editora UNESP, 2010.

FORTIN, Sylvie. Contribuições possíveis da Etnografia e da Auto-etnografia para a


pesquisa.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura Brasileira. Brasília, DF: Anpocs, 1983.

KRENAK, Ailton. Ideias para se adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras,
2020.

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

MAIA, Suzana; DOS SANTOS BATISTA, Jeferson. Reflexões sobre a Autoetnografia.


Revista Prelúdios, p. 240-246, 2020.
26

POLI, Ivan. Antropologia dos orixás: a civilização iorubá a partir dos seus mitos, seus orikis
e suas diásporas. 2.ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2019

QUIJANO, Aníbal. “Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina”. In:


Lander, Edgardo (comp.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales.
Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.

RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019.

SANTOS, Antônio Bispo. Colonização, Quilombos. 2ª edição Brasília: AYÔ, 2019. SIMAS,
Luiz Antonio. O corpo encantado nas ruas. 6ª edição Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2020.

SPIVAK, GayatriChakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte:


Editora UFMG, 2014.

STRATHERN, Marilyn. Os limites da autoantropologia. In: _____. O efeito etnográfico. São


Paulo: Cosac & Naif, 2014. (p.133-157)
27

GENEALOGIAS E MEMÓRIAS: HISTÓRIAS E AS FONTES DE ÁGUA NA


COMUNIDADE DE LAGOA DE FORA, SÃO RAIMUNDO NONATO-PI

Raíssa Barberino Miranda 1

Objeto e objetivos do trabalho

A presente pesquisa está sendo realizada em Lagoa de Fora, uma comunidade rural
localizada nas proximidades da cidade São Raimundo Nonato- PI em conjunto a integrantes
da família do fundador da comunidade: Serapião Negreiros. A partir da revisão do legado da
Antropologia Rural que se fundamenta, tradicionalmente, no Brasil na tríade terra, trabalho e
família para a construção das sociedades camponesas (WOORTMAN, 1994; ALMEIDA,
1986) e pela ideia de “Alquimias de Parentesco” (MARQUES; LEAL, 2018), esta proposta
analisa arranjos familiares, laços de consanguinidade e o acesso à água em cacimbas,
barreiros e barragens que recuperam vínculos de parentesco de moradores de Lagoa de Fora
com o patriarca e fundador da localidade.

O nosso objetivo é coletar narrativas, memórias e analisar como os saberes


genealógicos acionados e produzidos por membros da comunidade produzem e atualizam as
reputações e trajetórias da família Negreiros em Lagoa de Fora, assim como, perante as
“famílias oligárquicas” das cidades (NEGREIROS, 2021). Esta pesquisa pretende contribuir à
teoria antropológica sobre Parentesco, a qual, ao invés do ser o sangue a substância vital na
produção de relações de reciprocidade, relacionalidades, territórios e famílias, a água
forneceria esta conexão em Lago de Fora. Substância que, para o semiárido piauiense,
cogitamos ser o elemento primordial que perpassa a corrente da vida entre as gerações e as
memórias, da família Negreiros (INGOLD, 2022).

1
Bolsista PIBIC do CNPq, Antropologia, Campus da Serra da Capivara, Universidade Federal do Vale do São
Francisco, UNIVASF. raissa.barberino@discente.univasf.edu.br. Orientadora: Natacha Simei Leal (UNIVASF)
28

Metodologia adotada

Embasando-nos na revisão bibliográfica sobre Antropologia rural (WOORTMAN,


1994; ALMEIDA, 1986) e as teorias sobre Parentesco (MARQUES; LEAL, 2018; INGOLD,
2022), buscamos pensar as informações extraídas da documentação disponibilizada por
familiares do fundador (santinhos de missas de sétimo dia, banners comemorativos de festas
de família, biografias, livros), as memórias dos mais velhos, e, nas histórias das lagoas
localizadas dentro do território da comunidade. Ainda, buscamos contextualizar a
proatividade da família em elaborar genealogias a partir de um olhar tanto para a história da
cidade quanto para as histórias da migração dos Negreiros para a região da cidade São
Raimundo Nonato.

Dentre as entrevistas realizadas, conversamos com um integrante célebre da família:


o Pe. Herculano de Negreiros. A partir desta entrevista, descobrimos a história do
estabelecimento definitivo da família na cidade que ocorreu por volta do final do século XIX
quando toda a região já era latifundiária e foi distribuída às famílias de origem do norte da
Bahia, do Pernambuco e Ceará - chamadas de famílias oligárquicas pelo Padre. Jornada desta
família a São Raimundo iniciou-se com saída de um Negreiros originalmente de Jacobina,
cidade do interior da Bahia a qual trabalhavam como caixeiros viajantes. Com esta profissão,
os permitiu viajar por toda a região do norte da Bahia ao Piauí e Pernambuco. Foi desta forma
que os Negreiros descobriram a cidade, e se encantaram com uma região de lagoas e terrenos
propícios para a criação de gado. Para se instalarem na região, realizaram um acordo de
mercadorias em troca de algumas terras longe do centro de São Raimundo Nonato, com uma
das famílias oligárquicas da cidade, os Macêdos.

Essa faixa de terra, a qual o antepassado dos Negreiros fizeram um acordo, hoje
possui diversas comunidades. Umas estão mais próximas do centro de São Raimundo, outras
mais distantes, como é o caso da Lagoa de Fora. Entretanto, em todas, é possível encontrar
um Negreiros. Até porque, cada uma foi fundada por um dos filhos do primeiro Negreiros a
chegar à região. No caso da comunidade em que trabalhamos, ela recebeu o nome devido a
Lagoa que Seu Serapião - o fundador da comunidade - descobriu ao explorar a imensa faixa
de terra disponibilizada a eles. Dentro da Lagoa, Serapião e os seus filhos foram construindo
barragens, poços e cacimbas as quais carregam o nome de seus construtores, e têm usos
privados apenas para certos “troncos” da família – aqueles que participaram de sua
construção. Estas estruturas de água são passadas de geração em geração, e o direito de uso
29

costuma ser respeitado por todos aqueles que residem na localidade.

Além do levantamento histórico, mapeamos a genealogia que é demonstrada pelas


estruturas na lagoa, utilizando-as como fonte de documentação. Para compreender as
linhagens das gerações familiares, trabalhamos com análises dos santinhos, colecionados pelo
discente de bacharelado em Antropologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco
(UNIVAF): Luis Alex de Negreiros. Esta coleção foi iniciada pela sua saudosa avó e hoje, ele
dá continuidade com muito carinho e reverência perante as lembranças e narrativas do
passado que ainda se faz presente.

Para os que não conhecem, santinhos são folhetos, ou como diria Jaqueline Pereira
de Souza na sua tese para o doutorado em 2018:

[...] são participações fúnebres no qual a família manda confeccionar em papel de


fotografia ou em cartolina, a foto do falecido, com data de nascimento e falecimento,
além da imagem do santinho protetor do finado e uma oração ou frase para marcar
lembrança eterna de quem já morreu. (SOUZA, 2018, p. 125).

Fotografia 1: Santinhos da coleção de Luis Alex. Fotografia registrada por Natacha Leal, 13 de agosto de 2022.
30

Além dos santinhos do Luis Alex, do mapeamento da água e das entrevistas com o
Pe. Herculano, utilizamos as genealogias produzidas pelos mesmos, para compreender e
vislumbrar melhor a imensa árvore genealógica que configura os ramos da família. Assim,
casando os dados obtidos com as lagoas, cacimbas e poços, com as informações das
genealogias e narrativas dos moradores, a partir dos aportes teóricos, nos deparamos com uma
família extremamente ligada a sua terra, aos conhecimentos da “criação de água” e, acima de
tudo, com os seus parentes.

Conclusão

Apesar de ter citado apenas dois integrantes familiares que produziram genealogias
com base um conhecimento consolidado do método e coleta de dados genealógica no formato
do clássico método genealógico de William H. R. Rivers (1864-1922) – afinal, além dos
santinhos, o Alex elaborou uma genealogia para a sua monografia cujo tema é a sua família.
Em Lagoa de Fora, muitos dos Negreiros de sua forma elaboraram e elaboram genealogias
com formatos distintos, uns com o intuito de lembrar, outros mapear a expansão da família no
território brasileiro e outros para documentar a existência dessas pessoas que não estão mais
presentes. É interessante observar uma família que antes era tão desprezada na cidade, mas a
partir das publicações do Pe, Herculano sobre a sua família e utilizar a genealogia como
estratégia política para se colocar em equivalência às demais famílias poderosas e conseguir
ganhar duas eleições seguidas a base da publicidade familiar.

Um estudo sobre as produções de genealogias demonstram que, quem as produziu ao


longo da história tendeu a serem famílias nobres ou de poder político significativo em seu
Estado, com o intuito de controlar a “linha de sangue real” e pura de suas famílias (INGOLD,
2007). Essas famílias ao longo da história foram bem documentadas. Nas fotos antigas da
cidade de São Raimundo o leitor encontrará os Macêdo, mas, famílias como os Negreiros e as
demais da cidade foram deixadas à margem da história da cidade.

Toda a documentação encontrada sobre essa ilustre família foi a partir do esforço
laborioso de seus integrantes nos arquivos de igrejas, os poucos documentos públicos da
cidade e a nomeação dos poços e barragens que, de alguma forma, tornaram-se fontes da
história. Ao final, o mais interessante de tudo, é perceber que toda a narrativa da família
Negreiros se iniciou com a descoberta da Lagoa, flui através do tempo pela comunidade e
retorna para as suas águas. Águas com a propriedade de fluir, unir e construir as relações desta
31

família por gerações.

A expressão “criar água” a qual costuma ser usualmente empregada de forma


animada e orgulhosa por seus entes, torna a água uma substância intimista, presente em seu
cotidiano. É por via do manejo da água e seu sistema de herança, que propiciam a criação e
delimitação de seus territórios, a manutenção de memórias e a produção de famílias e
genealogias. Essa relação é comprovada ao escutarmos o tom de voz caloroso e orgulhoso das
gerações atuais ao mencionar as construções de seus antepassados. O orgulho de saber que
aqueles poços e cacimbas foram construídos por meio de suas habilidosas mãos que
proporcionaram a coexistência com o semiárido nordestino. No fim das contas, se para uns é
o sangue que significa herança, pertencimento, direito, nobreza e família, para os Negreiros,
talvez, a água cumpra perfeitamente esse papel.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Mauro William Barbosa de. Redescobrindo a família rural. Revista Brasileira
de. Ciências Sociais, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 66-93, 1986.
INGOLD, Tim. Lines: a brief history. London: Routledge, 2007.

MANDELLI, Mariana Carolina; SOARES, Michel de Paula; FAVERO, Raphael Piva Favalli.
"O método genealógico na pesquisa antropológica". 2017. In: Enciclopédia de
Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia.
Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/obra/o-metodo-genealogico-na-pesquisa-antropologica.
Acesso em: 28 jan. 2023
MARQUES, Ana Cláudia R.; LEAL, Natacha S. (org.). Alquimias do parentesco: casas,
gentes, papéis, territórios. São Paulo: Gramma/ Terceiro Nome, 2018.
SOUZA, Jaqueline Pereira. A lida com a morte e o evocar dos mortos: experiências
fúnebres no Norte do Piauí, Brasil. Tese (Doutorado em Antropologia) - Universidade Federal
do Pará, Belém-Pará, 2018.
WOORTMANN, Ellen. Herdeiros, parentes e compadres. Colonos do Sul e sitiantes do
Nordeste. São Paulo: Hucitec, 1994.
32

Escritos localizados: testemunho do golpe de 2016 e sua incorporação emnossa


estrutura temporal de relações sob uma visão feminista decolonial
Pamela C. Oliveira – Programa de Pós-Graduação em Sociologia/Unicamp

Introdução
A perspectiva parcial para garantir uma versão feminista da objetividade da
ciência, os “saberes localizados”, defendidos por Donna Haraway (1995) tornam-se o
ponto de partida para este artigo. Trago, a partir dela, uma proposta de fio condutor para
observar o período de organização e consolidação do golpe1 que removeu Dilma Rousseffda
presidência, entre 2015 e 2016. Parto da interpretação de situações ordinárias, cotidianas,
vivenciadas por mim como experiências palpáveis e reais naquele período. Como princípio
entendo que é no tempo presente em que se desenrolam momentos passíveis da criação de
novas possibilidades de existência, em situações ordinárias do dia-a-dia. Uma concepção de
que o tempo cotidiano é o espaço-tempo mais poderoso para qualquer prática que pretenda
provocar mudanças (HELLER, Agnes, 2000) 2.

Esta leitura acerca do cotidiano como lugar da transformação social é algo que
podemos aproximar da ideia de “esperança ontológica” apontada pelo educador Paulo
Freire (2011; 2015). Tal ideia carrega uma proposta de práxis revolucionária3 que tem
caminhado comigo há muitos anos. E que, de alguma forma, me traz até a ética ordináriada
antropóloga Veena Das (2012, p.140 apud VIANNA, Adriana, 2020, p.11), em que a
“dimensão mais dramática da expressão de valores” só pode ser realmente sentida em
veracidade “quando integrada ao fluxo da vida cotidiana”.

A ética ordinária de Das parte das “pequenas disciplinas” que as pessoas


empreendem cotidianamente, compreendendo “um processo mais sinuoso e exigente, no
qual, uma vez mais, o tempo tem papel decisivo, bem como a capacidade de confrontar- se
continuamente com o desastre” (VIANNA, op. cit., p.11-12). Desse modo, faço coro à

1
Aqui utilizamos o termo “golpe de Estado”, ou “golpe”, para delinear a postura assumida por esta
pesquisadora em relação ao procedimento de impeachment que culminou na deposição da ex-presidenta
Dilma Rousseff. Conferir texto de Ivana Jinkings, na apresentação “O golpe que tem vergonha de ser
chamado de golpe”, do livro “Porque gritamos golpe? ” (2016).
2
Faço a escolha de inserir o nome completo das pessoas autoras, de modo que possamos facilitar, ainda que
até certo ponto, a identificação de gênero de tais pessoas, com intuito maior de promover a visibilidade de
mulheres nas ciências.
3
A prática que se faz e, ao fazer, refaz-se por ser impactada pela realidade, pela qual o povo qualifica-se e
aprende, conforme apontada por Karel Kosik (1976).

1
33

proposta de uma ciência sucessora (HARDING, Sandra, 1986, apud HARAWAY, Donna,
1995) e feminista que ofereça melhores e mais adequadas explicações do mundo “de modo
a viver bem nele, e na relação crítica, reflexiva em relação às nossas próprias e às práticas
de dominação de outros e nas partes desiguais de privilégio e opressão que todas as
posições contém” (HARAWAY, Donna, op. cit., p.15).

Posso dizer que este artigo é uma tentativa inicial e tímida de caminhar nessa
direção, promovendo reflexões críticas às práticas dessa autora e experiências em minha
trajetória feminista4, a partir desse saber localizado, com interpretações do cotidiano sob
uma análise desde a ética ordinária de Veena Das. Para tal, tem grande contribuição
metodológica a proposta etnográfica que Das (2011) apresenta em O ato de testemunhar:
violência, gênero e subjetividade, ao fazer um movimento exemplar de interpretar a
Partição da Índia em 1949 “a partir dos olhos de Asha”, uma viúva que vivencia as
transformações impostas pela Partição em sua vida cotidiana. Transformações as quais
Das interpreta não a partir de “como os acontecimentos estavam presentes nas
consciências como acontecimentos passados, mas como vieram a ser incorporados na
estrutura temporal das relações (grifo meu) ” (Ibid., p.09).

Assim, tentarei propor, em primeira pessoa, uma “visão desde um corpo” que é
“complexo, contraditório, estruturante e estruturado” (HARAWAY, op. cit., p.30) acerca
das marcas do golpe de Estado consolidado em 2016 e de sua incorporação em nossa
estrutura temporal de relações. Quero evidenciar as diferentes dimensões das violências
sofridas, que se sobrepõe e se embaralham nos planos das macro e micro políticas. Mais
especificamente olho para os aspectos das relações e hierarquias de gênero e raciais no
entorno das práticas de mulheres feministas como mecanismos de “habitar o mundo em
cenários de devastação ou mesmo de grande indefinição” (VIANNA, 2020, p.13), que se
tornou o caso para os movimentos sociais populares5, movimentos feministas, e para as
mulheres empobrecidas, racializadas e LGBTQIAP+ após o golpe6.

4
Os limites desse breve artigo impedem que muitas dessas experiências sejam narradas. Iremos priorizar
alguns momentos para que esses possam ser melhor interpretados à luz do escopo aqui proposto.
5
Cf: MIANI, Rozinaldo. Os pressupostos teóricos da comunicação comunitária e sua condição dealternativa
política ao monopólio midiático. Intexto, Porto Alegre, UFRGS, v. 02, n. 25, 2011.
6
O lema integralista que clamava “por Deus, pela Pátria e pela Família”, proclamado por diversos
parlamentares na Câmara dos Deputados durante votação do impeachment e, entre eles, o então deputado
Jair Bolsonaro, já demonstrava amplo rechaço a um projeto emancipador, em que coubessem as demandas
dessas e desses sujeitos/as/es, e cuja repulsa vem a se consolidar nos anos subsequentes com a presidência
assumida primeiro por Michel Temer e, em seguida, por Bolsonaro.

2
34

Com efeito, estou buscando contribuir com a parcela das Ciências Sociais que
está se propondo a interpretar não somente as transformações que ocorreram no interior
das instituições democráticas (como as relativas ao avanço de uma política de austeridade e
ao esfacelamento da democracia no país), mas também daquelas mudanças engendradas e
incorporadas no seio das práticas feministas em movimentos sociais populares.
Especialmente no que dizem respeito à assimilação da problemática das relações e
hierarquias de gênero e raciais para as lutas da classe trabalhadora e da relevância dessas
questões como cruciais na atualização das lutas populares para o momento presente, com o
intuito de novos imaginários de futuro7. Um futuro que “não se traduz necessariamente em
um plano ou projeto, mas talvez possa ser mais bem compreendido como decorrência do
‘caráter elusivo do cotidiano’”, pela “capacidade de imaginar antes mesmo de ver que nos
anima a sustentar a vida em momentos de atordoamento” (DAS, 2018, p. 537 apud
VIANNA, 2020, p.13).

Para isso, minha proposta é trazer como linha condutiva alguns pequenos trechos
destacados de um caderno pessoal de anotações, que mantenho desde 2015. Por vezes, tais
escritos traziam percepções subjetivas, corpóreas e parciais das situações que eu estava
vivenciando enquanto mulher, militante feminista, branca, bissexual, originada da classe
trabalhadora e da periferia de São Paulo, também pesquisadora, comunicadora popular, e
então residente de uma cidade do interior do Paraná. O propósito de incorporar esses
pequenos trechos é o de, como sugere Veena Das (2011), provocar um descenso ao
cotidiano de modo a retornar em um momento do passado, recorrendo também à memória,
não para “oferecer um exemplo de uma regra geral ou uma exceção a ela, mas mostrar
como surgem novas normas em experimentos com a vida, na auto-criação espiritual”
(Ibid., p.16). Buscando, com isso, uma reinterpretação dos fatos em que me coloco como
protagonista, a partir de uma trajetória empírica que estará em diálogo com as propostas
teóricas aqui oferecidas (FIGUEIREDO, Angela, 2020, p.245). Como se verá adiante, as
situações relatadas visam contribuir para um caleidoscópio de pequenas ações8 que, ao
serem testemunhadas, também proporcionam uma reapropriação do mundo, a partir das
modificações experimentadas.

7
Este é o tema de minha pesquisa de Mestrado em Sociologia (PPGS/Unicamp) que está em andamento e
com conclusão prevista para 2023.
8
Vale destacar ainda que estas ações aqui representadas não findam ou pleiteiam a totalização de ações de
resistência a este episódio violento do golpe ou mesmo acerca dos mecanismos de resistência encontrados
pelas mulheres em sua multiplicidade de experiências e localidades. Entendo o ativismo como nos coloca
Patricia Hill Collins (2016, p.113) em que é necessário enxergarmos “a decisão no foro íntimo de rejeitar

3
35

Somo ainda voz às reflexões críticas e pertinentes da filósofa Yuderkys Espinosa


Miñoso (2020), agregando aqui uma perspectiva feminista decolonial para a interpretação
dessas práticas e transformações a serem analisadas em um contexto brasileiro. A autora
propõe uma genealogia da experiência que seja crítica da colonialidade da razão feminista a
partir da experiência histórica na América Latina. Ela argumenta a importância em se
questionar as práticas e sua eficácia, levantando questões como “o que realmente fazemos
quando falamos ou quando atuamos? ”, com o intuito de observar as condições de
possibilidades que nos constituem. Ou seja, “observar esses a priori (grifo da autora) para
problematizá-los, desnaturalizá-los”, para traçar “a história das práticas” e “observarcomo e
em que momento surgiram e por quê” (Ibid., p.102).

É digno de ressalva apontar que a proposta deste breve ensaio não é a de assumir
uma perspectiva universalizante e generalizada, fechada ou incontestável das análises aqui
propostas. Isso seria negar a perspectiva parcial assumida. Pelo contrário, a parcialidade é
oferecida desde este lugar particular que visa “possibilidades de conexões e aberturas
inesperadas que o conhecimento situado oferece”, uma junção de “visões parciais e de
vozes vacilantes numa posição coletiva de sujeito que promete uma visão de meios de
corporificação finita continuada, de viver dentro de limites e contradições”9 (HARAWAY,
op. cit., p.34). Além disso, buscarei absorver neste ensaio as reflexões de Miñoso (op. cit.,
p.105) sobre suas experiências e o testemunho ativo, em que ela debruça sobre seu arquivo
pessoal como ativista “empenhada no fazer e nos debates do feminismo na América Latina”
em seu intuito de traçar uma genealogia da experiência com uma crítica da colonialidade
da razão feminista. Com isso, entendo que o autorrelato contribui com a costura de “novas
narrativas e interpretações que permitem descentralizar o sujeito

definições externas da condição feminina afro-americana” (idem) (e, neste caso, afro-brasileira) como
ativismo. Isso vai de encontro com a concepção de a práxis revolucionária ser efetivada no tempo cotidiano, em
experimentos com a vida, não estando restrita às organizações coletivas de ativismos e lutas sociais.
9
Me somo às críticas de Yuderkys Miñoso acerca das teorias produzidas nos Estados Unidos e na Europa,
principalmente apoiadas em um academicismo de maioria branca. Entendo que, ao localizar a interpretação
subjetiva do processo de golpe, como ela, estou também buscando contribuir com um feminismo
contextualizado na América Latina, que carrega sua história de colonialidade, especificamente no Brasil.
Além disso, tal qual Miñoso (Ibid., p.106-107), entendo que parte das teorias feministas do perspectivismo
(standpoint theories) possuem problemas, a exemplo da incapacidade de, por si só, superar a trava do
“essencialismo universalista da categoria mulher” e, portanto “a trava do racismo, do eurocentrismo e da
colonialidade presentes na teoria feminista mais difundida” mas, assim como ela, reconheço que contribuem
para “a construção de um método de análise que toma a experiência como fonte de conhecimento”, e que a
“perspectiva do ponto de vista feminista na pesquisa opera, a partir de um questionamento da experiência de
quem está mais baixo na escala do privilégio”.

4
36

normativo clássico do feminismo, enquanto rompemos o quadro teórico-conceitual e


argumentativo produzido por ele” (Ibid., p.115).

Uma perspectiva parcial e feminista do contexto do golpe de 2016

A armação para a derrubada da ex-presidenta Dilma Rousseff10 foi vivenciada por


mim no mesmo período em que eu, ainda bastante jovem, aos 22 anos, me aprofundava na
militância e nos estudos feministas. Pouco antes de me graduar, em novembro de 2015, à
luz do dia de Luta contra a Violência contra as Mulheres (25/11), apartir de um desejo e de
uma necessidade latente, eu e outras colegas estudantes e jornalistas consolidamos a
criação de um coletivo de jornalistas feministas e antirracistas para discutirmos relações e
hierarquias de gênero e raciais e comunicação, e também nossas experiências enquanto
mulheres e comunicadoras.

É desde aquela época que eu mantenho um caderno de anotações com situações


que vivi e que experimentei. A prática de escrita, de algum modo, serviu “para gravar em
minha memória e na memória coletiva” momentos dentro da política feminista que vivi,
local e regionalmente, de maneira correlata ao que relata Miñoso (op. cit., p.104). As
anotações revisitadas me fazem perceber elementos que eu trazia em meu discurso e,
igualmente relevantes, as formas como esses aspectos foram ganhando outros contornos ou
mudando de rumos, desenrolando novas reapropriações do mundo (DAS, idem), com o
caminhar dos acontecimentos e das violências testemunhadas individual e coletivamente,
junto a meu processo de amadurecimento. Foram exacerbando os “dilemas e os limites das
práticas teórico-políticas produzidas, sustentadas e alimentadas pelo feminismo e os
movimentos sociossexuais contemporâneos” (MIÑOSO, ibid., p.103), me ensinando no
movimento de uma práxis revolucionária enquanto eu ia compondo e coabitando novos
territórios (entre passeatas, marchas, o movimento estudantil, ocupações, eventos
acadêmicos, movimentos populares, partidos políticos, etc.).

No coletivo, vínhamos compartilhando experiência de violências e discriminações


de gênero e/ou racistas que havíamos vivenciado ou que seguíamos vivenciando,
principalmente em relacionamentos íntimos ou profissionais. Também dividíamos críticas
que tecíamos sobre a reprodução de discursos deste cunho em

10
MIGUEL, Luis Felipe. O colapso da democracia no Brasil: da constituição ao golpe de 2016. São Paulo:
Fundação Rosa Luxemburgo, Expressão Popular, 2019; RUBIM, Linda. ARGOLO, Fernanda (Orgs.). O
golpe na perspectiva de gênero. Salvador: Editora UFBA, 2018.

5
37

reportagens jornalísticas, em destaque para reportagens sensacionalistas que relatavam


casos de feminicídio, lesbocídio e transfeminicídio. De modo que, um dos primeiros
sentimentos que essas vivências e trocas me proporcionaram foi o de estar envolta em algo
maior do que eu, que extrapolava minha história pessoal e encontrava ecos em outros
corpos11. Assim, conforme amadurecemos o coletivo, passamos a realizar oficinas sobre
feminismo, com o intuito de, juntas, combater a violência contra as mulheres e promover
uma conscientização sobre relacionamentos abusivos. Naquele período estávamos
impactadas por dois feminicídios que haviam ocorrido vitimando meninas muito jovens,
com menos de 18 anos, em decorrência do agravamento do abuso em seus
relacionamentos afetivos-sexuais, o que resultou em escolhermos uma das escolas para
ministrar as oficinas devido à uma das vítimas ter estudado lá até seu assassinato.

Concomitantemente, eu avançava para finalizar meu trabalho de conclusão do


curso de graduação em Jornalismo. Minha pesquisa visava mostrar, em um curto
documentário, a trajetória das mulheres Sem Terra do Paraná desde a fundação do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), sob a proposta de uma
comunicação popular, a partir das conversas estabelecidas com mulheres de dois
assentamentos12. Estava me aprofundando nas discussões feministas e as leituras e
experiências de um feminismo popular13 começavam a apontar transformações nas minhas
interpretações e percepções sobre relações e hierarquias de gênero, classe e raciais no Brasil
e na América Latina, e me afastar cada vez mais de um feminismo “repaginado pelo
liberalismo”14.

Me marcavam os processos das oficinas com adolescentes e o de acompanhar as


mulheres do Eli Vive I e II, em Londrina, e da COPAVI, em Paranacity, para a filmagemdo
meu documentário. Eu pude conviver alguns dias com algumas dessas mulheres, em suas
residências e testemunhar seus cotidianos nos assentamentos. À luz do que propõe

11
Eu destacava a relevância da coletividade em minhas anotações: “A solidão de pensamento, de política, de
posicionamento é um buraco escuro e sem fim. Cair lá te leva à desesperança, desencantamento, ceticismo,
descrença. (...). É essa luta diária contra a desilusão, ao ceticismo (sic), à dureza (sic) da vida nessa
sociedade. Esse abismo te engole e te faz sofrer. Te afunda muito mais. Mas caindo naquelas trevas, você
nota outras vozes, pedidos de socorro, mãos estendidas. Gritos de mulher. Mãos de batalha” (OLIVEIRA,
Pamela, 2015).
12
O documentário Mulher Sem Terra em Movimento (Pamela Oliveira, 2016) teve 1,8 mil visualizações até
este momento e pode ser visto pelo Youtube. Disponível em https://youtu.be/o5UsTUagZ7U. Acessado em
19/01/2023.
13
Cf: SILVA, Carmen S. M. Feminismo popular e lutas antissistêmicas. Recife: Edições SOS Corpo, 2016. 14
Cf: FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: Redistribuição, reconhecimento e Participação, in:
Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, outubro, 2002.

6
38

Das, estive com elas participando em pequenas rotinas, compartilhando conversas,comidas


e dramas do dia a dia (VIANNA, op. cit., p.13). Ao andar pelos assentamentos, por
exemplo, eu observava e sentia as mudanças subjetivas e coletivas proporcionadas pelos
processos de luta pelo direito à moradia, à terra, ao alimento, ao trabalho, à dignidade, a
viver sem violência. Situações que me sensibilizaram tanto quanto os discursos que elas
trouxeram durante as entrevistas. O ato de testemunhar me tocava de forma que, além de
encher de esperança, me ensinava sobre as contradições do tempo presente, em processos
conflituosos, dinâmicos, complexos de tecer novos hábitos e práticas de convívio, em
valores realmente integrados à vida cotidiana.

“Me sinto revigorada ao ver a força nas palavras da Margarida15”, escrevia em 15


de dezembro de 2015, sobre a liderança que havia me acolhido em sua casa. “Ela mal sabe,
mas me inspira. Nada como ser bem recebida e ver a esperança nos olhos e nas mãosde uma
MULHER. Uma líder” (OLIVEIRA, Pamela, 2015). E, posteriormente, adicionava
reflexões sobre como aquela simples presença em sua casa, o acolhimento recebido, a
inspiração que ela me provocara com seu modo de vida e seus relatos sobre otempo em que
esteve acampada em luta pela terra: “Margarida olha as coisas com bons olhos. Está
empolgada. Passou 5 anos debaixo de uma lona e hoje organiza mais de 500 famílias
assentadas no Eli. Sua ‘pequena’ trajetória tem muita dor, mas Margarida só sorri”, eu
narrava, e concluía, “hoje, definitivamente, foi um dia que vai marcar a minha vida. Ainda
não sei os efeitos (grifo nosso) ” (idem). De algum modo, aquela experiência catártica
apresentava aos meus olhos “novas normas em experimentos com a vida” (DAS, op. cit.), e
moldando, a cada passo, minha prática e meu olhar feminista.

Elas agiam de forma totalmente ofensiva à prática neoliberal: estabeleciam novas


relações de cuidado na criação das crianças e na relação com seus companheiros –
incluindo cozinhas coletivas e mecanismos de combate interno à violência doméstica e
intrafamiliar -, estabeleciam novos parâmetros de felicidade e realização (incluindo as
perspectivas de luta, por exemplo), produziam alimentos frutos da reforma agrária e
baseados na agroecologia, estavam assumindo a liderança local e regional do MST,
ocupando espaços políticos de decisão e de estratégia. Elas me sinalizavam outras formas

15
Nome alterado de modo a preservar a privacidade. A partir daqui os nomes de militantes feministas ou
outras mulheres que eu venha citar, que estavam em relação direta comigo e que não as pesquisadoras ou
personalidades públicas (como artistas e políticas), serão alterados com este fim.

7
39

de relação com o mundo e consigo mesmas, com o trabalho de cuidado, me ensinavam o


que era ser “forjada na luta”, o que era a práxis, o que era o feminismo popular.

Neste bojo, o impeachment se estabelecia como saída neoliberal e


neoconservadora, reacionária a esses processos cotidianos de transformação social. Foi
pouco depois, mais próximo à consolidação do golpe, em abril de 2016, que militantes
Sem Terra do Eli Vive I e II passaram a organizar atividades e atos de protesto na cidadede
Londrina, como parte da Frente Brasil Popular, com muitas mulheres a frente desses
eventos. Era de entendimento de nós que, entre as várias motivações ao golpe, esteve uma
reação específica e não ocasional ao avanço das questões de gênero na política, e a não
casual evidência de Dilma Rousseff ser a primeira mulher a presidir o país. Nas palavras da
cientista política Flávia Biroli, Dilma foi deposta em um contexto de reação às

transformações na posição social relativa das mulheres e às poucas, mas


significativas, conquistas no âmbito institucional. O conteúdo de classe do
golpe, isto é, seu conteúdo antipopular, claramente revelado nos
desdobramentos posteriores – destruição da legislação trabalhista que
estabelecia garantias para trabalhadoras e trabalhadores, por exemplo – é uma de
suas faces; o conteúdo de gênero é, sem dúvida, outra face. Ambas compõem o
processo que converge na deposição da primeira mulher a chegar à presidência
(BIROLI, Flávia, 2018, p.78).

De fato, era um contexto histórico-político “em que a competência das mulheres


para a vida pública e, especificamente, para a política foi abertamente contestada” e, com
isso, “também, o ambiente em que foram rompidos laços e diálogo com os movimentos
feministas” (Ibid, p.78), e movimentos sociais em geral, como o próprio MST. Dois anos
mais tarde, em 14 de março de 2018, somos ainda marcadas pelo brutal assassinato da
vereadora do Rio de Janeiro pelo PSOL, Marielle Franco16.

Violências políticas e violência contra as mulheres: traumas, motivações, fraturas


sociais e imaginários de futuro

Alguns meses depois de ter meu TCC e documentário entregues, meu olhar estava
modificado por estas experiências, e pela vivência de greve e ocupações pelo movimento
estudantil17. Eu observava a gravidade do que estávamos presenciando em

16
Pelos limites do artigo, não poderemos explorar esse tema e as maneiras como o assassinato deMarielle
Franco e Anderson Gomes, seu motorista, foi incorporado por nós em nossa práxis feminista. Cf: “Mulheres
negras na política: Marielle e suas sementes”, publicado no Outras Palavras. Disponível em
https://outraspalavras.net/feminismos/mulheres-negras-na-politica-marielle-e-suas-sementes/. Acessado em
01/02/2023.
17
O Movimento Estudantil da UEL, eu incluída, ocupou a reitoria em 2015 em greve pelo repasse integral
do custeio da universidade e outras pautas. Em 2016, mais de mil escolas foram ocupadas no país por
estudantes secundaristas, segundo a UBES, contra a PEC de Teto de Gastos (EC 95). Na ocasião eu

8
40

relação à possibilidade de um golpe de Estado. Em 18 de março de 2016 eu escrevia “hoje


não é um dia comum” (OLIVEIRA, Pamela, 2015). Era o dia de atos em defesa da
democracia de direito, convocados por centrais sindicais, partidos e movimentos sociais,
realizados no país todo. De alguma forma, minha percepção daquele dia já era da
possibilidade de uma “fratura irremediável no experimento democrático iniciado no Brasil
em 1985” (MIGUEL, Luís Felipe, 2016, p.31), com um medo subjetivo, ao mesmo tempo
em que coletivo, de que o golpe se concretizasse e do que resultaria daí para as populações
brasileiras, para nós mulheres, para as periferias, para os movimentos sociais,para a ciência.

“Na verdade, tenho o coração bem apreensivo”, anotei. “Me sinto amedrontada,
mas sinto também que retroceder e deixar fortalecerem bandeiras golpistas é um erro”. E
em seguida trazia uma indignação em particular, em referência à uma situação que havia
ocorrido na época: “como alguém pode socar uma mulher na boca porque ela opta por não
gritar ‘Fora Dilma’? Pois é, tem acontecido. É surreal, não parece a vida cotidiana”
(OLIVEIRA, idem). Podemos interpretar, desse modo, que a percepção de tal violência
política, enquanto ações de censura que se mesclavam com a violência contra mulheres, o
racismo e o ódio de classe, já evidenciavam o passado habitado no presente (DAS, Ibid.).
Eram marcas de um país colonizado, fundado em relações de opressão e exploração, e
com uma classe dominante ressentida pelo pacto democrático que resultou na Constituição
de 1998. Um momento em que, visto o medo coletivo, em reuniões organizativas para atos
de protesto, desligávamos nossos celulares e removíamos as baterias para não corrermos os
riscos de que nossas falas fossem interceptadas pela políciamilitar.

A sombra do que havia sido o golpe de 64 ecoava em nós 50 anos depois. A


iminência do golpe indicava a existência de novos subtextos e nós testemunhávamos
aquilo em nosso cotidiano. Agregávamos o “fantasma do comunismo” à nossa lista de
razões para sofrer agressões e, portanto, usar roupas de cor vermelha poderia apresentar
mais um perigo – principalmente se tratava-se de uma mulher, uma pessoa negra e/ou
trans. Desse modo, o que eu expressava como uma experiência surreal, na verdade
revelava as sensibilidades palpáveis que atravessavam o meu cotidiano e a minha
subjetividade a contragosto, a vida de minhas companheiras de luta, criando tais “fraturas

trabalhava como jornalista colaboradora para a Mídia Ninja cobrindo e dando suporte às ocupações em
Londrina.

9
41

irremediáveis” em minha própria concepção de política, em um momento em que eu e


tantas outras jovens estávamos nos forjando como agentes políticos. Se tratava de um
conhecimento venenoso capaz de “alterar nossa maneira de estar-com-os-outros” (DAS,
Veena, op. cit) e de encarar a resistência que deveríamos consolidar contra o golpe.

Além disso, esta nota em meu caderno (quando também associada à minha
experiência no coletivo de jornalistas sobre o compartilhamento de experiências de
violência) exibe, ao mesmo tempo, uma preocupação pessoal com a violência política e
com a violência contra as mulheres. Uma preocupação que dizia a respeito do caráter
misógino do golpe e também sobre o olhar voltado à uma bandeira histórica
constantemente atualizada e convocada pelos movimentos feministas brasileiros como
aglutinador. Para nós, que adentrávamos jovens no campo do feminismo, a violência era
um elemento mobilizador, tanto por conta das experiências que tínhamos agregado a
respeito de nossas famílias e relacionamentos afetivos-sexuais, quanto pela experiência
como jornalistas18, realizando ou acompanhando as coberturas midiáticas sobre
feminicídios.

Yuderkys Espinosa Miñoso (idem, p. 102), em sua proposta de uma genealogia da


experiência para uma crítica da colonialidade da razão feminista, recupera algumas das
principais bandeiras feministas dignas de manifestações públicas e massivas de mulheres
em países sul-americanos. Ao fazê-lo, ela propõe que nos perguntemos sobre as
motivações e fundamentações, por exemplo, das convocações de marchas pelo “direito ao
aborto”, ou mesmo dos gritos de ordem como “meu corpo, minhas regras”. Sua avaliação
sugere que muitas das práticas feministas latino-americanas estão ainda engendradas em
uma razão feminista universal e eurocêntrica, que não nos separam “das teorias, apostas e
slogans do feminismo produzido nos países centrais”.

Do mesmo modo, recuperando a trajetória feminista mais recente (desde os anos


80) no Brasil, identificamos uma luta feminista com alto foco no combate à violência de
homens contra as mulheres19. A experiência dessa violência, em suas variadas expressões,

18
Enquanto estudante de jornalismo, em 2013, sofri agressões da Polícia Militar paranaense, em uma
situação em que decidi denunciar um abuso policial. Além de agredida e de ter tido meus pertences tomados e
meu celular violado, também fui levada detida à delegacia, junto a mais dois outros jovens, onde tivemos de
assinar um termo circunstanciado em que eu assumia ter desacatado autoridade e agredido os policiais.Entrei
com processo na justiça civil e, em 2021, em segunda instância, tive os danos morais concedidos. 19 A
cientista política Flávia Biroli (2017) recupera uma trajetória da participação política das mulheres no país e
aponta algumas das principais bandeiras de luta dos movimentos feministas a partir do século XX: a
institucionalização da agenda feminista em duas frentes prioritárias nas lutas dos anos 80, sendo o combate

10
42

foi e continua sendo um ponto de virada de chave para a aproximação junto do feminismo,
como uma possível porta de entrada para os debates feministas. Miñoso (Ibid., p. 115)
ressalta preocupação com o tema ao se questionar como a “violência interpessoal entre
homens e mulheres transformou-se no foco da interpretação feminista acerca da violência
contra as mulheres? ”, e no que “resulta essa interpretação a ser feita apenas na chave de
gênero? ”. Os limites deste texto não permitem que eu me aprofunde, mas acredito ser
relevante apontar que os aspectos iniciais aqui trazidos podem nos ajudar a provocar novas
questões que verifiquemos importantes para a compreensão de nossas práticas feministas e
bandeiras de luta no Brasil.

Somado com outras fontes documentais – artigos, fotografias, vídeos, outras


experiências empíricas –, reler nossas experiências pessoais pode nos auxiliar a
perguntarmos, por exemplo, quais razões para a violência contra as mulheres marcar as
lutas de mais de uma geração de mulheres feministas no Brasil? Entendendo suas
intersecções com outros aspectos, como a política, e com outras estruturas de
desigualdades, como as relações de classe, raciais, étnicas, a geopolítica, etc. Com esse
questionamento, viso propor, para além da interpretação quantitativa dos casos de
violência contra mulheres e feminicídio, em que pese a grande ocorrência e persistência
desses casos, também uma interpretação qualitativa a respeito de nossas escolhas como
feministas, e de quais pontos de vista partimos para analisar tais violências, com sua
interseccionalidade, e para dar respostas a elas.

Saltando brevemente para o ano de 2019, quanto tive a oportunidade de


entrevistar a historiadora e teórica feminista Silvia Federici para o jornal Brasil de Fato20,
ela trouxe, por exemplo, ao recuperar as contra-pedagogias da crueldade, de Rita Segato
(2018), uma análise sobre a funcionalidade do extermínio de mulheres. Em sua avaliação,

matar as mulheres é a medida mais rápida, mais eficaz para destruir a resistência
de qualquer comunidade contra a expropriação, contra a privatização. Isso
porque são as mulheres que mantém as comunidades juntas. As mulheres
representam a vida, a reprodução da vida, e matá-las manda uma mensagem de
terror, de medo à comunidade (FEDERICI, Silvia, 2019).

à violência e a defesa de políticas para a saúde das mulheres. Já em 2000, quando é fundada a Marcha
Mundial de Mulheres (MMM), o destaque junto à pobreza e à violência é significativo.
20
Cf: Silvia Federici: matar as mulheres é a forma mais eficaz de destruir a resistência - Autora de "O Ponto
Zero da Revolução" aponta a cooperação como saída para enfrentar um sistema cada vez mais violento.
Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/10/09/silvia-federici-matar-as-mulheres- e-a-forma-
mais-eficaz-de-destruir-a-resistencia (Acessado em 30/11/2022)

11
43

Tal perspectiva pode contribuir para um olhar mais cirúrgico sobre a questão da
violência de gênero, que evite a redução desse mecanismo apenas à ideia de uma violênciade
homens contra mulheres, mas que proponha um olhar integral a esse respeito, bem como
sobre as políticas públicas que exigiremos de modo a combater a raiz do problema, e a
nossa reação à essas ações no interior das organizações. Isto é, partindo da interpretação
de testemunho de Das, permite nos questionar como a violência sofrida pelas mulheres no
Brasil está moldando nossas lutas e nossa participação política. Como o testemunho da
violência política e misógina traumática, vivenciada por Dilma Rousseff e outras
parlamentares, e de outras violências íntimas, incluindo as sofridas por nós em nossas
relações pessoais e durante a participação em movimentos sociais populares, têm moldado
nossa capacidade de ação e nossas prioridades? E também a respeito de como
compõem/conformam nossos imaginários sobre o queremos quando nos definimos como
feministas no Brasil e na América Latina?

Realizando uma entrevista como mulheres militantes do Movimento de


Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD) e do Levante Popular da Juventude21, a
questão da violência ainda aparece como um elemento capaz de remover as mulheres da
prática política. Nos territórios (ocupações e demais trabalhos de base), quando elas são
violentadas por seus cônjuges, podem parar de frequentar os espaços. No interior do
movimento, ao sofrerem violências dos mais variados tipos, as mulheres militantes vão
sendo desmotivadas a compor a organização. Aspectos que demandam reflexões sobre as
condições para as mulheres em espaços políticos e sobre como garantir a nossa
permanência e a escuta de nossas vozes, objetiva e simbolicamente, nesses espaços em que
há outros atores com quem devemos dialogar.

Protestos, encontros, trocas: questões de gênero, classe e raciais no período de


consolidação do golpe

As perguntas colocadas acima levam a um segundo ponto de reflexão acerca dos


aspectos experienciados na luta feminista brasileira recente. Uma delas, de grande força, é
a assimilação em diferentes níveis das perspectivas interseccionais e decoloniais para a
crítica feminista e a práxis revolucionaria das mulheres no país. Desde cerca de 1970, os
esforços de feministas racializadas em criticar o feminismo europeizado, embranquecido e
estritamente acadêmico estão rendendo cada vez mais frutos no Brasil, principalmente

21
Entrevistas com mulheres militantes do MTD são parte do escopo de minha dissertação de mestrado.

12
44

dos anos 2000 para cá22. Em seu livro Explosão feminista: arte, cultura, política e
universidade, Heloísa Buarque de Hollanda (2018) destaca um sentimento de atualização
das práticas e teorias feministas: “Há pouquíssimo tempo, por volta de 2015, eu acreditava
que a minha geração teria sido, talvez, a última empenhada na luta das mulheres”, diz ela.
“Até que um vozerio, marchas, protestos, campanhas na rede e meninas na rua se
aglomeraram” conclui. E quando realizamos a “descida ao ordinário”, entendemos ao que
Hollanda se refere. Conseguimos compreender novos subtextos que passam a ser
articulados devido às turbulências que vivenciávamos (DAS, Veena, ibid., p.36), incluindo
os conflitos internos ao movimento feminista, que visam romper com velhos paradigmas
para construir novas perspectivas feministas que contemplem as diferentes experiências
das mulheres no país, devido às marcas da colonialidade e do conservadorismo que
fundamentam a sociedade capitalista e sua materialidade no Brasil.

Em 2016, enquanto pululavam manifestações pró-golpe, algumas estratégias de


resistência floresciam nos corredores da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e em
outros espaços da cidade. Saíamos da experiência da primavera feminista brasileira pelos
atos intitulados “Fora Cunha”23 e pelo alto potencial de unidade das mulheres negras
demonstrado na realização da Marcha das Mulheres Negras, com cerca de 40 mil mulheres
em Brasília em novembro (RIBEIRO, Djamila, 2016).

Na UEL, eventos foram realizados devido à data. Em um deles uma daslideranças


negras da cidade, Odara, trouxe em suas falas, anotadas em meu caderno, uma denúncia
acerca da fundação da cidade de Londrina sobre a larga utilização da mão-de- obra negra
na colheita do café e nos prostíbulos (OLIVEIRA, Pamela, 2015), mostrando como esses
aspectos não estavam recebendo a devida atenção dentre as pesquisas científicas, mas
estavam no radar das organizações e movimentos sociais locais. Meses depois, no dia 25
de março de 2016, às vésperas da votação na Câmara sobre o

22
Roseane Amorim da Silva e Jaileila de Araújo Menezes (2018) apresentam o estado da arte a respeito de
pesquisas que se utilizavam da perspectiva interseccional, ao investigar o banco de dados da Biblioteca
Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), apontando a existência de 123 dissertações e 64 teses que
utilizavam a interseccionalidade entre 2008 e 2018. Ou seja, apenas 187 publicações em 10 anos. Contudo,
com o maior índice de publicações em 2016. Enquanto no banco dados SciELO, entre 2002 e 2018, foram
localizados 65 artigos, com maior quantitativo de publicações em 2016 seguido de 2014.
23
Convocados por mulheres feministas de diferentes organizações, realizamos protestos massivos em
sequência, a partir de novembro de 2015, em diversas cidades pelo país. Exigimos a remoção de Eduardo
Cunha (então MDB) da presidência da Câmara, em decorrência da busca neoconservadora pela aprovação do
Projeto de Lei (PL) 5069, de 2013, que dificultava o acesso de vítimas de estupro aos medicamentos
necessários para prevenção de gravidez indesejada e exigia a comprovação dos danos do estupro. Cunha, ao
mesmo tempo, tornava-se figura crucial para o processo de golpe de Estado.

13
45

impedimento de Dilma Rousseff, com o apoio de sindicatos e partidos, conseguimos fretar


um ônibus e fomos rumo à Niterói (RJ) para o 7° Encontro de Mulheres Estudantes (EME)
da União Nacional dos Estudantes (UNE), na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Nesse contexto o EME traz o tema “Cultura Feminista Transformando o Brasil”, com a
proposta de pensar a cultura feminista enquanto “algo construído no dia a dia”, com
“solidariedade, coragem, criatividade política e uma produção extensa de novos modos de
vida” (UNE, 2016), que estava incidindo diretamente em processos de transformação do
Brasil. De Londrina, não foram apenas estudantes da UEL, mas também de outras
universidades e organizações políticas, como do movimento sindical e de partidos (PSOL
e PT), entre elas a própria Odara.

A experiência de, sob esse contexto de neoconservadorismo, reunir cerca de duas


mil mulheres em um espaço auto-gestionado foi vivida por mim como algo extremamente
irruptivo, transformador. Até hoje, relembrar situações que presenciei, desde performances
artísticas, oficinas, discussões e conflitos entre mulheres com diferentes vivências, à
experiência do banho coletivo e dos eventos culturais noturnos com a presença exclusiva
de mulheres (cisgênero e transgênero), invocam uma sensação de ter vivenciado algo
realmente marcante na trajetória feminista brasileira24. No momento em que o horror à
política frutificava no país (CLETO, Murilo, 2016), nos reuníamos no Rio de Janeiro para
fazer política com nossos corpos e nos ajudar a sustentar a vida naquele momento de
atordoamento. Em meu caderno, escrevia:

Aqui estamos, apenas mulheres reunidas. Mulheres e seus corpos. Corpos em


resistência, apenas por existir, por problematizar e por se unir com um objetivo
comum. (...). Estamos aqui, com banhos coletivos, filas enormes, pouco
dinheiro, debatendo racismo, sexismo, política e conjuntura (crítica brasileira).
Estamos aqui. Sendo mais do que corpos para uso. Corpos políticos. Corpos
belos. Corpos resistentes. (OLIVEIRA, Pamela, 2015)

Avalio que era também por estarmos cientes das violências misóginas contra a
figura de Dilma, do processo político de censura e perseguição da esquerda em um
repaginado “antipetismo” e dos riscos que, enquanto mulheres, trabalhadoras, pessoas
negras, indígenas, transexuais, idosas e empobrecidas enfrentávamos e passaríamos a
enfrentar, o Encontro manifestava uma resistência. Partindo da análise de Djamila Ribeiro
(op.cit, p.128), desde uma perspectiva feminista negra sobre golpe, isso evidencia a

24
Tais resistências nos espaços acadêmicos se fazem extremamente necessárias, de modo a ocupá-los,
sugerindo outros mecanismos de apropriação e de imaginário político. Contudo, não são as únicas
maneiras em que tais corpos resistem, visto que a própria existência seja encarnação de resistência, visto
os recursos violentos da sociedade para exterminar essas sujeitas.

14
46

necessidade e a oportunidade proporcionada por essa fratura da democracia, de a esquerda


“se reconstruir, trazendo novos atores e vozes para se repensar um modelo de nação”.
Neste sentido, retornamos a Londrina fortalecidas por essas discussões e construções
coletivas, com nossas utopias feministas renovadas apesar do refluxo democrático, e
conseguimos manter certa unidade entre as feministas presentes para os próximos eventos
de lutas que vieram.

Conclusão

Isto posto, cabe então recuperarmos a objetividade feminista de Haraway (1995)


para assimilar também como essas relações em rede, essa solidariedade entre as mulheres
em sua multiplicidade estavam nos permitindo fazer uma leitura muito mais objetiva da
realidade social. Como partimos das nossas experiências subjetivas-coletivas para
interpretar as situações que assolam o cotidiano no país, entre violências e potências de
luta. Vivenciamos um entendimento prático de que “não há maneira de ‘estar’
simultaneamente em uma das posições privilegiadas (subjugadas) estruturadas por gênero,
raça, nação e classe” (ibid., p.26-27). Desse modo, ao resistirmos à simplificação, à fixação
racional, e realizarmos a junção de visões parciais e vozes vacilantes que estão numa
“posição coletiva de sujeito”, logramos garantir “uma visão de meios de corporificação
finita, continuada, de viver dentro de limites e contradições” (idem, p.33- 34).
Conseguimos estabelecer pontes entre nossas diferenças (ANZALDÚA, Gloria e
MORAGA, Cherrie, 1981, apud DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira, 2020), de modo a
reavivar e atualizar nossos imaginários de um futuro feminista.

Minha impressão é de que, na história recente, as fraturas provocadas pelo


contexto do golpe de 2016 levaram-nos a testemunhar determinadas violências na vida
cotidiana que foram sendo assimiladas subjetivamente, habitando nosso presente com esse
conhecimento venenoso (e outros que se somam a ele). Por essas percepções preliminares
denota-se a relevância desse período enquanto efervescente para transformações profundas
no modo de agir feminista, dentro dos movimentos sociais populares e de organizações
distintas, incluindo os espaços científicos, onde houve (e há) o tensionamento de relações e
opiniões para que haja atualização das estratégias de luta, de modo a agregar outros
saberes localizados, das margens ao centro (HOOKS, bell, 2019), em contraposição à vaga
ideia de sujeito universal do feminismo ou mesmo do sujeito operário clássico e universal
da classe trabalhadora.

15
47

Em outras palavras, enquanto feministas comprometidas com a práxis


revolucionária, estamos atuando para promover uma disputa no interior das lutas sociais e,
com isso, na sociedade, a respeito da compreensão sobre as relações e hierarquias de
gênero, raciais, étnicas e sexuais como fundamentais para a sobrevivência e a vida digna.E,
com efeito, estando inseridas no meio acadêmico, como também acabamos por questionar
a ciência que se pretende universalista e imparcial (bem como suas estruturas) e, assim,
levantar problemas sobre a preferência de teorias que reproduzem a razão branca,
masculina, heteronormativa e centrada na Europa e Estados Unidos.

Referências

ANZALDÚA, Gloria e MORAGA, Cherríe, 1981 (orgs). This bridge call my back:
writings by radical women of color. Albany: Suny Press, 1981. In: DÍAZ-
BENÍTEZ,María Elvira. Muros e pontes no horizonte da prática feminista: uma
reflexão. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (orgs). Pensamento feminista hoje:
perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro. Bazar do Tempo, 2020.

BIROLI, Flávia. Feminismos e ação política. In: Gênero e desigualdades: limites


dademocracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2017.

BIROLI, Flávia. Uma mulher foi deposta: sexismo, misoginia e violência política. In:
RUBIM, Linda. ARGOLO, Fernanda (Orgs.). O golpe na perspectiva de gênero.
Salvador: Editora UFBA, 2018.

CFEMEA. Mulheres negras na política: Marielle e suas sementes. Outras Palavras,


2021[online]. Disponível em: <https://outraspalavras.net/feminismos/mulheres-negras-
na- politica-marielle-e-suas-sementes/>. (Acessado em 01 de Fevereiro de 2023).

CLETO, Murilo. O triunfo da antipolítica. In: Por que gritamos golpe? Para entender
oimpeachment e a crise política no Brasil. JINKINGS, Ivana; DORIA, Kim; CLETO,
Murilo (orgs). São Paulo: Boitempo, 2016.

COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica


do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 1,
Janeiro/Abril, 2016.

DAS, Veena. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cadernos


Pagu,2011: pp. 9-41

16
48

FEDERICI, Silvia. Silvia Federici: matar as mulheres é a forma mais eficaz de destruir
aresistência: Autora de "O Ponto Zero da Revolução" aponta a cooperação como saída
para enfrentar um sistema cada vez mais violento. [Entrevista concedida à Pamela
Oliveira] Jornal Brasil de Fato, 2019 [online]. Disponível em:
<https://www.brasildefato.com.br/2019/10/09/silvia-federici-matar-as-mulheres-e-a-
forma-mais-eficaz-de-destruir-a-resistencia> (Acessado em 30 Novembro 2022).

FIGUEIREDO, Angela. Carta de uma ex-mulata a Judith Butler. In: HOLLANDA,


Heloísa Buarque de (orgs). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio
deJaneiro. Bazar do Tempo, 2020.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 50° Ed., 2011.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio


deJaneiro: Paz e Terra: 51° Ed., 2015.

HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o


privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, 1995: pp. 07-4.

HARDING, Sandra. The Science Question in Feminism. Cornell University Press,

1986.HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2000, v2.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Explosão feminista: arte, cultura, política


euniversidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

HOOKS, bell. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva


[PalavrasNegras], 2019.

KOSIK, Karel. NEVES, Célia (trad.). TORÍBIO, Alderico (trad.). Dialética do


concreto.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2. ed., 1976.

MIGUEL, Luis Felipe. A democracia na encruzilhada. In: Por que gritamos golpe?
Paraentender o impeachment e a crise política no Brasil. JINKINGS, Ivana; DORIA,
Kim; CLETO, Murilo (orgs). São Paulo: Boitempo, 2016.

MIÑOSO, Yuderkys Espinosa. Fazendo uma genealogia da experiência: o método rumo a


uma crítica da colonialidade da razão feminista a partir da experiência histórica na
América Latina. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (orgs). Pensamento feminista
hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro. Bazar do Tempo, 2020.

17
49

OLIVEIRA, Pamela. Caderno de anotações pessoal. Londrina, Paraná, 2015.

RIBEIRO, Djamila. Avalanche de retrocessos: uma perspectiva feminista negra sobre o


impeachment. In: Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise
políticano Brasil. JINKINGS, Ivana; DORIA, Kim; CLETO, Murilo (orgs). São Paulo:
Boitempo, 2016.

SEGATO, Rita. Contra-pedagogías de la crueldad. Ciudad Autónoma de Buenos


Aires:Prometeo Libros, 2018.

SILVA, Roseane Amorim da; MENEZES, Jaileila de Araújo. A interseccionalidade na


produção científica brasileira. Pesqui. prát. psicossociais [online]. vol.15, n.4, pp. 1-
16,2020. Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-
89082020000400010> (Acessado em 30 Novembro 2022).

UNE (União Nacional dos Estuantes). 7º EME da UNE vai debater a cultura
feminista que está transformando o Brasil: Mulheres estudantes de todos a regiões e
universidadesdo país se encontrarão em Niterói. UNE [online], 2016. Disponível em
<https://www.une.org.br/noticias/7o-eme-da-une-vai-debater-a-cultura-feminista-que-
esta-transformando-o-brasil/> (Acessado em 30 Novembro 2022).

VIANNA, Adriana. Vida, palavras e alguns outros traçados: lendo Veena Das.
Mana[online] v. 26, n. 3, 2020. Disponível em <https://doi.org/10.1590/1678-
49442020v26n3a205> (Acessado em 30 Novembro 2022).

18
50

O cauim do Tatu

André Sanches1
Gustavo Godoy2

“Ywytu ai pegou o canto dos bichos, como esse daqui”, nos disse Ira Te (ou Salomão)
apontando para nosso gravador; “É por isso que hoje muitos dos cantos ainda estão por aí”.
Salomão é pajé da aldeia Xie pihun renda, no sul da TI Alto Turiaçu. Com ele, gravamos sobre
como aprendeu a pajelança e algumas estórias. “São apenas três as que eu sei bem”, uma delas é
a de Ywytu ai, que conta sobre a festa do cauim patrocinada pelo Tatu, ocasião em que os bichos
convidados chegam cantando.
Ouvimos outras versões dessa estória cantada: as narradas por Naji, Mati (pai de
Salomão), Petrônio, Sansã, Kawasu Putyr, Xupera; são as que pudemos documentar até agora.
Em outras ocasiões a mesma estória também foi registrada e relatada, como nos diários índios de
Darcy Ribeiro, nas suas anotações de campo entre 1950 e 1951.
Ribeiro ficou admirado com a narrativa e a quantidade de cantos que a integram: “Bem
contada, deve ser maravilhosa, nunca ouvi coisa melhor para um disco. Além disso, é uma
excelente descrição caricaturesca das festanças ka’apor e uma boa explanação sobre os hábitos
dos animais” (Ribeiro 1996 [2014]: 457). Na realidade, antes de ser uma descrição caricatural da
festa, é uma descrição das ações que os Bichos fizeram na festa e um conjunto de explicações
caricatas que os próprios Bichos relatam em seus cantos sobre si mesmos. Não é apenas uma
representação humorística da festa, mas uma maneira de os Bichos se descreverem e se
compreenderem suas características e atitudes.
Na sequência, apresentaremos alguns motivos pelos quais consideramos pertinente o
estudo dessa narrativa. Em seguida comentamos rapidamente sobre nosso projeto de
documentação; fazemos uma breve observação sobre os gestos como parte da arte verbal e
apresentamos as versões da narrativa de Ywytu que estamos utilizando neste trabalho.

1
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (PPGAS-USP).
2
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (PPGAS-MN).

1
51

A relevância do estudo do mito da cauinagem do Tatu


O mito ka’apor da cauinagem do Tatu é único em seu estilo e oferece um olhar
importante sobre o ritual: a visão girada de Ywytu, um homem que observou a festa patrocinada
pelo Tatu. O que desencadeia os eventos do mito é um abortamento e, por isso, dentro do
conjunto mitológico ka’apor, o mito da cauinagem do Tatu pode ser agrupado aos outros que
tratam dos momentos de vulnerabilidade de pessoas que passaram por situações com excesso de
sangue; situações que exigem resguardo, como o nascimento, a primeira menstruação e o
homicídio. Ywytu vai caçar quando seu filho abortou. Também é curioso o fato de não aparecer
um pajé, visto que o pajé é constante em situações semelhantes.
Apesar de se referir à narrativa de um evento de bichos percebidos sob seu aspecto
humano, a narrativa apresenta a antiga forma ka’apor de chegar até a cauinagem. Na narrativa,
aparecem diálogos que utilizam uma variedade antiga da língua ka'apor, o que inclui expressões
e palavras que não aparecem na comunicação cotidiana, tampouco nas cauinagens que pudemos
presenciar.
Embora tenha narrador e diálogos, a narrativa é centralmente cantada. Por isso a
consideramos como uma opereta, pois composta de pequenos cantos. Essa opereta carrega um ar
cômico sobre os Bichos bêbados com o cauim. Além disso, evidencia um jogo de perspectivas
interessante: na narrativa, os Bichos, sob seu aspecto humano, cantam uma forma estrófica sobre
temas relacionados a seus costumes como embiaras. Sua parte humana traz uma reflexão sobre
seus costumes animais. Quem escuta é um humano que adentra um mundo antes não manifesto
para ele, por conta de seu desvio de conduta em relação ao sangue.
Tão ou mais importante quanto a visão girada de Ywytu, é sua audição girada. O mito da
cauinagem do Tatu é único em que os cantos aparecem com tanto destaque: em quantidade e
importância para o que está sendo narrado. Os cantos dos animais apresentam um estilo diferente
dos outros cantos do repertório ka’apor. Isto é, de um ponto de vista musical, possuem uma
prosódia diferente, bem como outros motivos melódicos e rítmicos. O que há de semelhança
entre os cantos é justamente o comentário a respeito das qualidades dos animais e suas relações,
algo que costuma aparecer nos cantos ka’apor, mas dedicados, quase em exclusividade, aos
pássaros.
Por conta do descuido de Ywytu, sua escuta dos cantos e sua memória, os Ka’apor
herdaram essa coletânea de cantos animais; uma espécie de miniguia musical de identificação de

2
52

espécies que apresenta uma interessante reflexão dos animais e dos humanos sobre seus
costumes. Hoje conta como patrimônio mítico ka’apor, apresentando as sempre presentes
variações na versão dos diferentes narradores. Por fim, do ponto de vista comparativo, o mito da
cauinagem do Tatu não possui versões que correspondam diretamente a ele em outros povos.

A documentação da mitologia e dos gestos


A análise do mito da cauinagem do Tatu é parte do nosso projeto de documentação da
mitologia e dos gestos do povo ka’apor. Em nossa pesquisa, gravamos várias versões de cada
mito, utilizando duas câmeras para capturar tanto os gestos amplos quanto as ações faciais que
compõem a narrativa. O objetivo é registrar algumas das variações dos mitos, utilizando a
documentação linguística para criar uma mitografia robusta, com textos transcritos em ka’apor e
enfatizar que os gestos são parte integrante da língua e, portanto, das narrativas.
A documentação de versões dos vários autores permite encontrar estruturas linguísticas
recorrentes. Isso vale para os gestos, visto que as ações e imagens apresentadas nas narrativas se
repetem em diferentes contadores. Isso é, o mito é um estímulo padronizado pré-pronto. Além
desse aspecto da repetição, cada narrador retém diferentes nuances do mito, alguns episódios são
narrados por uns, outros por outros. No caso do mito do Tatu, alguns narradores lembram de
diferentes cantos e outros não cantam nada, e relatam apenas os acontecimentos mesmo que
mencionem que os bichos cantavam, mas que eles é que já não sabem.
Com esse projeto, construímos um acervo audiovisual com a ideia de que um mito é o
conjunto de suas variações. Há também dois projetos paralelos de documentação. Um da
mitologia do povo Mbya, da mesma família linguística que o ka’apor, a família tupi. O outro
acervo é de descrição da língua de sinais ka’apor. Com os três acervos será possível contrastar
tanto a mitologia e seus gestos em dois povos relacionados geneticamente, assim como entre os
gestos que fazem parte da língua oral ka’apor, e a língua de sinais do mesmo povo.
Nossos acervos, ainda em construção, podem ser acessados em:
Godoy, Gustavo and André Sanches de Abreu. 2022. Ymanihar ma’e panduha: Myths and
accompanying co-speech gestures in Ka’apor. Endangered Languages Archive.
URL: https://www.elararchive.org/dk0704
Aniz, Vitória and Gustavo Godoy. 2020. Documentation and description of Ka’apor Sign Language.
Endangered Languages Archive.
URL: http://hdl.handle.net/2196/31e54111-bf0d-4477-8b37-b845ce76d837

3
53

A arte gestual
Os gestos são verbais, isto é, fazem parte do fenômeno linguístico. Por isso, toda arte
verbal deve ter um correspondente gestual. No caso ka’apor, torna-se explícito nas observações
de Ribeiro (1996 [2020]), que teve a oportunidade de trabalhar com contadeiros muito
expressivos em sua arte gestual. Observa que Kwaxipuru “narra muito bem, com voz expressiva
e com uma riqueza de gestos que quase transforma as narrações em pantomimas” (p. 352).
Comenta de “uma velha muito conversadeira “[…] Ela fala muito, faz muitos gestos e, contando
os mitos kaapor, quase os interpreta em pantomima enquanto fala.” (p.445). Por fim, do capitão
Ianawaku, observa (p.154): “Contando um caso, imita ruídos e vozes, faz gestos largos e quase
se excita, os olhos brilham, porém o tom da voz, embora expressivo e variado, nunca se alteia
demais”. Ribeiro (p.185) inclusive planejou a documentação da arte gestual, com Apĩ
(Anakãpuku, que considerou seu melhor informante): “Ele contará a um grupo a grande aventura
de sua vida [...] Contando esse caso, Anakanpukú salta como um tigre e imita com gestos de
pantomima cada passagem da luta, caindo finalmente no chão, ferido. Creio que nessas narrações
de caçadas e lutas é que está uma das origens do teatro. Em filmes, deve dar bom efeito”.
Infelizmente, nenhum de nossos consultores executa seus mitos segundo essa arte
verbo-gestual, assim, ao que parece, sua a forma mais rica está desaparecendo. Felizmente, uma
equipe do Museu Goeldi, documentou em vídeo esse estilo de arte verbo-gestual com o finado
Pirangwa (Cantos e Mitos ka'apor, Rosileide Gomes Costa 2007), filho do Apĩ aclamado por
Ribeiro. Entretanto, em nosso projeto poderemos documentar o inventário gestual, mesmo que
não seja em sua forma mais teatral.

As versões
As versões que estamos trabalhando até o momento, são as seguintes:
Versão de Sarumã ru ambyr (Mati), acompanhado por Sarumã mãi 30/06/2014 (gravado por Gustavo);
URL: https://cutt.ly/i3zxHNt
Versão de Ira (Salomão/Sarumã), acompanhado por Sarumã mãi e 19/01/2022 (gravado por André e
Gustavo); URL: https://cutt.ly/i3zxNOi
Versão Nasare-mãi (Naji) 29/01/2022 (Gravado por André e Gustavo).
URL: https://cutt.ly/C3zcerF
Versão de Kawasu Putyr, 28/09/2022 (gravado por André); URL: https://cutt.ly/c3zStDK

4
54

Como o trabalho de transcrição e tradução é consideravelmente dispendioso,


concentraremos a atenção nas narrativas que mais pudemos estudar, transcrever e traduzir. São
elas as versões do finado Mati e de Salomão; nelas o trabalho está mais avançado, embora ainda
não tenhamos o passado a limpo, linha por linha, junto aos Ka’apor.
Além das versões gravadas, há ainda versões escritas. Ribeiro (1996 [2020]) conta duas
que são as mais discrepantes do conjunto. “Soó ramúi” [sɔʔɔ ɾamũi ‘animal avô’] (pp. 457-458)
contada pela “velha loquaz”, numa situação que convém elucidar, já que Ribeiro observa que
foram na verdade narradas pelo indigenista João Carvalho, que as ouviu de Ariuá (que na época
era um ka’apor que sabia se expressar em português e afeito aos bens da “civilização”); a “velha”
apenas foi explicando as lacunas de João, e a narrativa foi antes uma entrevista do que
propriamente a execução de um mito. Nela há uma sequência de acontecimentos que pouco tem
a ver com a segunda versão (sem indicação do narrador), anotada por Darcy, ou então com as
versões que colhemos.
Com o mesmo título, mas em português, “Caçada antiga” (pp. 497-498), contada quando
tomavam mandiocaba oferecida pelo capitão <Paranã-Pyk>, mas sem autoria especificada. Esta é
mais parecida com as versões que coletamos. Também há correspondências com outras duas
versões escritas do mito: uma nas coletâneas de mitos organizada por J. Kakumasu, e outra
presente na coletânea organizada por C. Lopez, ambas apresentam o texto em ka’apor com uma
versão em português.
Nossa versão de referência é a narrada por Salomão em 19 de janeiro de 2022. É ela que
resumimos agora:

Ywytu já ia caçar. A esposa disse: – “Teu filho furou!” (=foi abortado). – “Uhum. Tá bem. Não está vivo,
você matou meu filho.” E foi. – “Assim você vai encontrar anhanga!” – “Não, eu não vou encontrar.” Ia
matar veado-vermelho. O veado estava brabo com ele, visto que o filho dele foi abortado (isto é, não
estava arisco e fugiu, como devem normalmente agir as caças). O veado ficou encarando, correu e depois
acossou Ywytu, já que estava brabo. Então o dono do veado fez Ywytu ficar doido.
Ywytu dormiu ao lado da vareda. Quando ficou mais tarde ia sair de lá, mas sua conhecença foi apagada.
A vareda estava próxima de Ywytu, que sabia onde estava quando estava caçando. Agora seu
discernimento sumiu. Então, ilusoriamente, Tatu estava num bananal, da variedade sarara. Ywytu estava
em um marajazal (Bactris maraja). Estava escurecendo, então fazia um barulho, alguém estava cortando
algo.
Então um grupo de pessoas dizia – “É agora que vai acontecer.” Tinha um cajueiro. Iam levantar criança
(=batizar). Era o cauim de Tatu. Era a base de um grande cajuí, que tinha um buraco nela. Naquele
buraco, ficava muita água. É isso que os tatus bebiam. Então Ywytu estava sentado, escutando. Então, sua
visão girou. Seu ouvido girou também, sua audição. – “É agora que vai acontecer.” – “Que seja assim.” –
“Ham.” – “Como que vai ser?” – “Juntem-se nele.” Disse para a mulher, a esposa de Tatu.

5
55

O senhor Tatu (mexia no camucim) KWA KWA KWA era o barulho. Mas nem era camucim: era só o toco
do cajuzeiro. KWA KWA KWA, mexia no camucim. Antigamente que o olhar de Ywytu girou, por isso
quem observava se apresentavam como gente. KWA KWA KWA. Tinha uma criançada e uma mulherada.
As cuias delas eram muito belas. Então, uma pegava uma cuiada, outra vinha e pegava outra cuiada de
cauim. Então a Tatu distribuía, ia dando carregando o cauim na cuia. Era uma vereda de tatu – mas ao
olhar de Ywytu era um caminho como o de aldeia: a Tatu dava o cauim através das casas.
A Tatua cantava: – “Eu gosto de comer ovo de carumbé! Eu gosto de comer ovo de carumbé! Eu gosto de
comer ovo de carumbé!” Foi cantando, sumiu de vista. Então o avô Tatu cantava “hm-hmm, xirararau,
hm-hmm xirararau hmm”. Estava na rede, onde a Tatu chegou para dar-lhe cauim. Foi cantando. Chegou
até os bichos e deu cauim. Ficaram bêbados. Mateiro, Caititu, Foboca, Cuxiú, Paca, Cutia,
Pomba-Amargosa, Araçari-Banana. Todos ficaram bêbados.
Quem chegou primeiro foi o Quati. O Quati cantou: – “Quati õrẽ! Quati õrẽ!” Cantava de longe – “Quati
õrẽ! Onde o inimigo se levanta agora?” Estava olhando para o Jaguaretê. Então pulou da árvore. – “Nós já
estamos indo vindo!” Estava pegado no braço da esposa. – “Temos muitas flechas de tabocas conosco!
Muito afiadas!” A esposa do Quati falou – “A taboca vai me cutucar!!”. – “Quati! Quati õrẽ! Quati! Quati
õrẽ! Onde o inimigo se levanta agora?” Chegaram até o Tatu. – “Ê aí que você está, irmão!” – “Aqui eu
amarrei sua rede, Xômano!” A filha do Tatu olhou o Quati e disse – “Ê avô de queixo afiado.” O Quati
ficou irritado e retrucando apontou sua flecha para o pescoço da Tatuzinha. A Senhora Tatu disse para não
fazer assim, que as crianças são à toa mesmo, meio variadas das ações. Trancara a filha Tatua na casa, isso
é, colocaram ela no buraco do tatu, que ficava no chão.
Outro chegou, o Caititu. Cantou “Sou devorador de fígado de cachorro!” Também cumprimenta e vai até
sua rede. Na sequência chega Mateiro, Paca e Rato-Curu. Então chegou o louco do Cutia "kĩkĩkĩkĩkĩkĩ
kĩĩĩĩĩĩ kĩĩĩĩ kĩĩ kĩ". Batia pisando na terra “PU PU PU PU”. Pegou no braço da filha do tatu e surucou ela.
“Assim não, Avô!” disse a senhora Tatua. Chegou depois o Mucura. Chegou Cuxiú “XÕXÕXÕXÕXÕ”.
Estava cortando as madeiras. Chegou Pomba-Amargosa cantando “Sou comedor de comida de saí!” Junto
de Pomba-Amargosa chegou Araçari-Banana. Este último disse: “Eu sou serrador de ipê”.
Pomba-Amargosa disse “Eu também sou assim. Minha carne é amarga. Os Netos não me comem. Os
netos, os Cabeças-Pretas [isso é, o povo ka’apor]”. Araçari ficou bravo e eles brigaram. Separaram a briga
deles. Chegou o Caça-Numerosa (ou Caça-Cambeba) [talvez um furão] e perguntou “HUMF HUMF! O
que está cheirando de gostoso aqui? Eu quero comer isso! Deve ser gostoso mesmo, na minha opinião!
Onde que colocaram?” As mulheres falaram que não tinha nada. Ywytu velhaco se afasou, mundando um
pouco de lugar. A filha de Caça-Cambeba chegou até Ywytu e disse “Afaste-se um pouco mais daqui! O
papai quer comer carne de gente! Vai te comer! Vai entrar em você e te comer inteiro! Vá! Afasta mais!”.
Caça-Cambeba procurava, mas só tinha o lugar onde Ywytu estava.
Então, ficou claro. Chegou Macaco-da-noite. Veio cantando e quase tava chegando. Meio de longe
perguntou “Ainda tem mias Xômano?” “Acabou o cauim! Pode voltar, indo embora!”. Ele ficou brabo e
voltou com a esposa.
Clareou o dia, Ywytu olhou e não tinha mais nada daquilo. De noite havia se transformado, parecia uma
aldeia. Quando clareou, não, parecia floresta de novo. Olhou e viu o toco do cajueiro, cheio de líquido.
Tava partido o toco. Em volta estava tudo limpo o chão, como chão de casa. Ywytu foi olhando e viu o
rabo de um tatu saindo. “Você que agora tinha acabado de se girar (=transformar).” Ywytu flechou o Tatu
na garganta e foi embora. Ywytu viu que só havia a pera (=tipo de cestaria descartável para carregar
caça). O mateiro que ele matara e carneara não estava mais lá. A carne do mateiro, que já havia sido
trinchada, grudou-se de volta. O mateiro tinha ressuscitado, ido embora e jogado fora a pera e foi. Jabuti
ainda estava ali. Ywytu foi pelo caminho. Tinha dormido bem perto do caminho. Ywytu pegou todos os
cantos. Sabe o que parece? Parece câmera, gravador. Gravou tudo. Ao voltar tomou banho. De noite,
contou que viu tatu batizando e cantou todas as músicas. Os outros pegaram os cantos também. Depois
que pegaram, até hoje os cantos estão aqui, desde antigamente. Agora acabou. Foi assim.

6
56

Em uma das versões de Ribeiro, narrada por João Carvalho, o veado morto pelo caçador,
que não é Ywytu, é um foboca, e não um mateiro. Ao seguir sua embiara que ressuscitou e fugiu,
o caçador vai parar na casa do Vento (ywytu pode ser traduzido também como ‘vento’, além de
ser nome do protagonista da estória) e lá estava tendo a cauinagem (RIBEIRO, 1996, p. 457). Os
bichos eram convidados do Vento. Ribeiro explica que cada morador da casa do Vento é um tipo
diferente de ventania. Ou seja, aqui “Ywytu” é o próprio vento, que, então, andava na terra e era
visível para os antigos. Na primeira versão escrita por Ribeiro, Ywytu batiza o filho do tatu, mas
também o mata pois estava cantando pouco, baixo. É Ywytu quem ensina as canções que cantam
os bichos (e o jenipapo). Além de aparecerem também entre os convidados bichos de Vento, um
casal de Guaribas, o Veado-Mateiro e Veado Foboca.
Na segunda é Ywytu que mata um veado mateiro (Ib., p.497). O veado abatido pula de
suas costas e o avisa que seu filho já nasceu. Na casa do Tatu canastra tinha uma festa de
nominação de crianças, e estavam batizando o filho do tatupeba. A onça estava no mato
ameaçando o Tatu. A história passa com os animais chegando e cantando. Há também a fala
ritual da chegada dos bichos, do mesmo modo que conta Salomão. Ao fim, Ywytu mata os tatus
que encontra bêbados pelo caminho de volta pra casa.
A versão de Naji, moradora de Axingi renda, foi narrada em uma entrevista após ela
comentar sobre sua aversão à bebida, diferentemente de seu pai, que bebia muito o cauim. O
relato começa com a raiz do cajueiro, ia começar o batizado. O filho de Ywytu abortou, e ele foi
caçar, buscar jabutis, mas sem conseguir nenhum. Quando voltou, começou a chover. Então se
sentou na base de um jenipapeiro, foi quando viu os tatus falando que beberiam o sumo do caju e
batizariam as crianças. A história, a partir daqui, é bem semelhante às outras versões, mas com
algumas diferenças sutis. O cauim é chamado de tɛŋi pelos bichos que bebem tanto que acabam
brigando entre si. Chegam então os bravos soltados Cuxiús e participam da briga. Depois a
Preguiça vem acabar com a bagunça e Ywytu acaba por matar o Tatu. Naji conta ao fim que seu
pai não comia nenhum dos bichos: nem cuxiú, nem guariba, e nem tatu.

Resumo e estrutura da narrativa


O filho de Ywytu é abortado, o que gera um estado de vulnerabilidade. Ywytu fica com
cheiro forte para os bichos. Mesmo assim (ou sem saber) Ywytu vai para a mata para caçar
mateiro (ou pegar jabuti). O veado-mateiro desencadeia a girada na percepção de Ywytu, que
fica leso, não consegue voltar, que passa a ver a noite como dia, vê o marajazal como plantação

7
57

de banana. Vê a água que fica estancada no toco ou na raiz de um cajueiro como uma igaçaba, da
qual a Senhora Tatua pega cauim para ir pela vereda distribuindo para outras Embiaras, que
chegam cantando até a festa.
A desventura de Ywytu pode ser sintetizada na sequência abstrata: (i) um estado de
vulnerabilidade que acarreta uma interdição, seguida de (ii) uma transgressão, que acarreta (iii)
uma consequência que é anulada quando, por fim, há o (iv) retorno do protagonista.
Enquadrada na estrutura está a recheadura – a descrição do festejo. Organizamos os
eventos e músicas da narrativa em um quadro, para sintetizar e ver as variações:

Tatu Patrocinador da Festa


Episódios:
Estava com medo de Jaguaretê e, por isso, cantava baixinho.
Ribeiro 1: come castanhas de caju retiradas para fazer cauim. É morto por Ywytu pois devia estar cantando
mais. Ywytu se pergunta: — Será um anhanga que está aí cantando?
Naji: está com seu irmão preparando a festa de nominação de seu filho
Mariuza: unhas de Tatu são as tabocas que Quati deu a ele

Ribeiro 1:
(Canto 1) Katú, katú.
(Canto 2) Tauxim-pará, tauxim-pará.

Senhora tatua Hábito Alimentar


Episódio:
Leva o cauim cantando

Mati
kaɾum͡bɛ ɾupiʔa aʔuu katu ʔm̩̚m̩̚m̩̚ː ‘Ovo de carumbé eu gosto de comer hmmm
kaɾum͡bɛ ɾupiʔa aʔu katu ʔm̩̚m̩̚m̩̚ː Ovo de carumbé eu gosto de comer hmmm
kaɾum͡bɛ ɾupiʔa aʔu katu. Ovo de carumbé eu gosto de comer’

Ribeiro1
Tatu-katú, tatu-katú..

(i) infantilidade
Filha Tatua
(ii) objeto sexual
Episódios:
(i) Faz comentário sobre o nariz focinho do quati, que se enraivece e, por isso, é trancada na toca.
(ii) É perseguida pela cutia que se excita com ela.
- Sem canto

Tatuzão (Avô) Atributo Físico


Episódios: É um dos primeiros a chegar na festa.
Naji: Causa algum espanto nos filhos dos outros tatus, por conta do seu tamanho; Os tatus-pais pedem para
que seus filhos prestem atenção no canto do avô.
Salomão, Mati, Naji: ʃiɾaɾaɾaɾauuu ʃiɾaɾaɾauuuu

8
58

Jaguaretê Hábito alimentar


Episódios:
É comedor de tatus
Ribeiro 2: Está no mato ameaçando o Tatu
Naji: não está presente, é inimigo do Quati.

-Sem canto

Mucura Similaridade da aparência (Focinho afilado)


Episódio: É um dos primeiros a chegar na festa
Ribeiro 2: cheira como um karai (branco)

Naji: Mãita ʔm̚m̚m̚m̚m̚ mãita ʔm̚m̚m̚m̚m̚

Mucuri
Episódio: Chega na festa junto com Mucura.
Sem canto definido (Mati Ka’apor improvisa um - ʔm̚ʔm̚ː ~ ʔm̚ʔm̚ː ~ ʔm̚ʔm̚ː )

Jabuti Hábito Alimentar


Episódios: A única versão em que o jabuti-tina está presente na festa foi narrada por Naji. O jabuti canta
sobre como o mucura gosta de comer seus ovos.
Naji: ihɛ̃ piʔa ɾɛʔu atu ‘Meu ovo você gosta de comer’
(canta para mucura)

Quati Inimizade com Jaguaretê


Episódios:
Mati: (i) Segurança de Tatu
(ii) ofende-se com a filha de Tatu

Ribeiro 1: o quati com as flechas, um capacete de penas de japu na cabeça e com o próprio rabo virado
para cima, como se fosse um enfeite de penas de arara.

Naji: Pergunta sobre a presença de seu inimigo Jaguaretê, que não está presente

Mariuza: dá flecha-taboca para Tatu

Salomão:
kʷaʃi kʷaʃi oɾɛ̃ Quati Quati orẽ
mɪ tuwãjã apo pu'am pu'am nahã mɪ Onde será que se levanta o inimigo?
kʷaʃi kʷaʃi oɾɛ,̃ kʷaʃi, Quati Quati orẽ Quati
mɪ kotɪ tuwãjã pu'am pu'am apo mɪ Em que direção se levanta o inimigo agora?
kʷaʃi Quati

Beija-flor Hábito Alimentar


Episódio:
O beija-flor apenas chega para a festa. A única versão em que aparece é a contada por Naji.
Naji:
haaaai haihaihaihaiiiii maʔɜ putɪɾ ihɛ̃ aʔu atu ‘Haaai haihaihaihaiiii As flores eu gosto de comer. As
maʔɜ putɪɾ ta ihɛ̃ aʔu atu haai haihaihaihai flores eu gosto de comer haihaihaihai’

Veado Mateiro Característica física/artefato


Episódio:

9
59

Chifres são como cerne de árvore

Salomão:
tamũi mɪɾa mɪtɛɾ kɛ wɛɾuɾ rɛko ɛ̃ ɛ̃ Velho veio-trouxe o cerne do tronco ê ê

Ribeiro 1:O que é? É minha camisa encarnada. O que é? É minha camisa encarnada. O homem já vem me
botar aqui, aqui, po
r aqui, pelas costas, por aqui, pelas costas, por aqui, kéu, kéu

Veado Foboca (i) Característica física/artefato


(ii) Sobre o cauim
Episódio:
Ribeiro 1:
Eu estou gordo, estou gordo. A corda do arco do velho eu vou suspender. Eu estou gordo, estou gordo. A
corda do arco do velho eu vou suspender.
Mati:
mɛɾɛɾɛ mɛɾɛɾɛ mɛɾɛɾɛː Merere merere merere
hɛ-̃ kagĩ hɛʔɛ̃ Meu cauim tá doce
mɛɾɛɾɛ mɛɾɛɾɛ mɛɾɛɾɛː Merere merere merere
hɛ-̃ kagĩ hɛʔɛ̃ Meu cauim é doce

Paca Característica física

Mati
hɛ̃ ɾuwa-kɛ paɾĩĩː Minha Face é aleijada
hɛ̃ ɾuwa-kɛ paɾĩw̃ɪ ̃ Minha Face é aleijada
hɛ̃ ɾuwa-kɛ paɾĩĩː Minha Face é aleijada
hɛ̃ ɾuwa-kɛ paɾĩĩw̃ Minha Face é aleijada
hɛ̃ ɾuwa-kɛ paɾĩw̃ɪ ̃ Minha Face é aleijada
hɛ̃ ɾuwa-kɛ paɾĩw̃ɪ ̃ Minha Face é aleijada

Cutia Saliência Sexual


Episódios:
Ribeiro 2: A cutia ficou com o membro duro e foi atrás da mulher do tatu, ela se meteu na loca e ele foi
atrás; quando saiu estava com o pau esfolado, vermelho.
Naji: Cutia Vai atrás da filha do Tatu
Salomão: kɪ́~̃ kɪ́~̃ kɪ́~̃ kɪ́ ̃ kɪ́ɪ̃ ́ ̃ kɪ́ɪ̃ ́ ̃ kɪ́ɪ̃ ̂ ɪ̃ ̂ ̃ kɪ̀ɪ̃ ̀ɪ̃ ̀ ̃
Naji: tãtãtã ʔm̚m̚m̚m̚m̚ tãtãtãtã ʔm̚m̚m̚m̚m̚

Caititu Inimizade com Cachorro


Episódios:
Inimigo do cachorro
Mariuza: “Caititu cantava sobre o cachorro”
Ribeiro1: cantava - Eu vou fuçar terra, eu vou fuçar terra
Salomão:
jawar pɪʔaŋʷaɾ Comedor de fígado de cachorro
jawar pɪʔaŋʷaɾ Comedor de fígado de cachorro

Araçari Comportamento
Episódio:
Diz que é cortador de ipê

Ribeiro 1: cantava — Eu vou cortar pau-d’arco. Eu vou comer açaí. Agora, araçari corta mesmo a flor de
pau-d’arco e come muito açaí.

10
60

— Vou cortar flor amarela, vou cortar flor amarela.

Pomba-amargosa Qualidade Anticulinária


Episódio:
Comenta que sua carne é amarga ao brigar com Araçari, depois fala que ele não corta ipê coisa nenhuma

Ribeiro 1: cantava — Minha carne está amarga, minha carne está amarga, minha barriga agora apagou.
— Comi muito açaí, minhas tripas estão amargas

Tapir
Episódios:
Ribeiro 1: A anta, do outro lado, falando muito, tic, tic, tic.

Ribeiro 2: A anta estava muito bêbada, só cantava assim: — Manon, manon, katú, katú (morreu, morreu, é
bom, é bom).
Salomão:
tuk tuk tuk
ihɛ̃ pɪ-kɛ tuɾɛ
ihɛ̃ pɪ-kɛ tuɾɛːɛː
ihɛ̃ pɪ-kɛ tuɾɛ
tuk tuk tuk
ha.ha.ha

sɔʔɔ akã pɛ (sɔʔɔ hɛta) Antropofagia


(Furão grande?)
Episódios: O sɔʔɔ akã pɛ sente cheiro de Ywytu. Ele cheira como carne de caça, e por isso quer comê-lo
- Sem canto

Cuxiú Característica física/Artefato


Episódios:
Rabo dele é um facão
Ribeiro 1: “macaco preto, muito bêbado, com um facão, cortando os paus”
Naji: São sonda (soldados) que brigam na festa com seus facões.
Salomão: ʃõʃõʃõõõõ ʃõʃõʃõõõ
Naji: ʃãʃãʃããã ʃãʃãʃããã

Preguiça Posição Social


Episódio: É o kapitʃã e chega na festa para interromper uma briga generalizada. Aparece apenas na versão
narrada por Naji.

- Sem canto

Mutum-pinima Característica física/Artefato


Episódio: O mutum aparece apenas na primeira versão escrita por Ribeiro. Nela, o mutum tem um chapéu
crespo

- Sem canto

Macaco da Noite Hábito noturno


Episódio: Chega atrasado, quando o cauim já havia acabado

-Sem canto

11
61

Pequenas observações linguísticas


A mudança na percepção de Ywytu, que permite observar e ouvir a cauinagem, é
expressa pelo verbo wak ‘virar’. Aqui cabe observar que os gestos, por serem ações visuais
deixam explícito a diferença de perspectivas:

(1053) pɛ tatu mɛʔɛ̃ ɾahɔ "kɔ" (1054) hapɛ ɾupi hapɛ ɾupi

então tatu 3.dar 3.levar aqui vareda pelo vareda pelo

(1055) ta* tatu ɾapɛ ɾiki ihɔn

hesitação tatu vareda ênfase 3.ir

(1056) aʔɛ u-sak-ha=jɛ pɛ ɾupi kuja-ʔɛ̃ ɾupi

3 3-ver-NMLZ=HSAY então pelo esse-NMLZ pel


o

(1057 ɪwɪtu a-ja u-sak-ha kuja-ʔɛ̃ ɾupi


)

Ywytu assim 3-ver-nmlz esse-NMLZ pelo

(1058 "uɛ" mɛʔɛ̃~mɛʔɛ̃ ɾahɔ ɔk ɾupi (1059 ɛha-kɛ u-wak


) )

ue! 3.dar~RED 3.levar casa pelo visão 3-virar


‘Então a Tatua levava [na cuia] distribuindo [o cauim]: “Está aqui”. Pela vareda, pela vareda. Era pela vareda de tatu
que ia. No que se apresentava ao olhar dele [de Ywytu], ia por um caminho, por um [caminho] como esse aqui
(Salomão aponta para o caminho na aldeia). A visão dele tinha girado.’
O verbo wak, ‘girar’, refere-se antes a uma mudança de perspectiva do que uma
transformação. Entretanto, a mesma raiz pode indicar a transformação, quando prefixados com
morfema causativo, como quando a esposa de Ywytu explica o motivo de o tatu ficar se
transformando para ele, segundo a versão de Mati ambyr:

(393) "nɛ ɾaʔɪɾ kʷɛhɛ u-puk

2SG filho onte 3-furar


m

ɛɾɛhɛ pɛ ma* tatu nɛ-pɛ ju-mu-wa~wak" aja i-pɛ=jɛ

por.iss entã HES tatu 2SGS-DAT DETR-CAUS-girar~RED assi 3-DAT=HSAY


o o m
‘Teu filho furou [=foi abortado] ontem (gesto de destaque), por isso que então (gesto de apontando para o
interlocutor) o tatu ficou se transformando para você (outros apontamentos para o interlocutor)” assim [a esposa]
disse a ele”

12
62

Portanto wak ‘girar’ (intransitivo) é uma ação que afeta a visão e a audição, ju-mu-wak
‘se fazer girar’ é o evento correspondente que o tatu se gira em gente. Na versão escrita por
Mariuza Ka’apor, o u-wak pode ser combinado com i-pɛ ‘para ele’, enfatizando que algo
‘virou-se’ para o experienciador, no caso Ywytu.
Na língua araweté (Heurich 2015: 188-189), <eɾowã> ‘virar’ também é usado para
transformações, como no mito em que divindade “Jaguaretê” transforma pessoas e seus artefatos
em bichos. Entretanto, o wak ka’apor é um girar intransitivo, enquanto <eɾowã> em araweté é
transitivo (um agente vira um paciente, alguém transformado em outra coisa)
Além de o verbo u-wak ser usado para mostrar a transformação da percepção, há mais um
elemento que codifica a percepção alterada. Trata-se do clítico frasal tipɛ, que indica a
modalidade frustrativa, isso é, marca, entre outras coisas, uma ação realizada sem efeito, em vão.
Esse uso está presente nas narrativas.
Entretanto, existe um outro uso em ka’apor que só percebemos com essa narrativa:
Na versão de Salomão:

(1012 pakɔ saɾaɾa-tɪ ɾupi=tipɛ=jɛ


)

banana.variedade-ajuntament através=FRUSTRATIVO=HSAY
o
‘Conta-se que estava, de forma aparente, através de uma plantação de banana-sarara.’

Na versão de Kawasu Putyr:

(49 pɛ pɪtun ɔ-hɔ iʃɔ=jɛ upa-ta pɪtun iʃo=jɛ


) ɔ-hɔ

então escuro 3-ir cont=HSY fim-FUTURO escur 3-ir CONT=HSY


o

(50) sawaʔɛ kuja maʔã~maʔã=wɛ=tĩ

homem assim olhar~RED=ainda=também

(51 pɛ wɛra=tipɛ=jɛ
)

então clareou= FRUSTRATIVO =HSY


‘Então estava escurecendo. Estava terminando de anoitecer.’ (Gesto rítmico executado junto com ‘escuro’. ‘O
homem desse jeito (move a cabeça para a esquerda e em seguida a mão esquerda aponta na mesma direção
indicando onde o homem estava olhando) também continuou olhando e olhando.’‘Então, ficou claro [raiou o dia],
aparentemente, conta-se.’

13
63

Nos exemplos acima, o tipɛ marca os eventos experienciados por Ywytu nesse estado
girado de percepção. Se tomarmos a definição mais básica da modalidade frustrativa, como uma
expectativa não realizada (Overall 2017). Talvez esse uso poderia ser explicado como eventos
percebidos de maneira não desejadas. Veicula ações realizadas, algo testemunhado, mas não
com uma percepção esperada, normal. E, assim, apresenta traços semânticos em comum com um
evento não realizado, ou realizado sem efeito.
Esse uso do clítico tipɛ não é obrigatório em todas as sentenças, sendo que os dois pontos
de vista, o regular e o girado, podem ser expressos por explicações, tal como nos exemplos com
u-wak acima.
Também parte do léxico indica, a despeito da forma humana, que são os bichos que estão
falando entre si:
(236) pɛ tɛŋi kɛ aĩ tɛ̃ʃĩ aja=jɛ
então cauim AFT Cont.Vertica irmão Assim=hsy
l
(237) kɔ aĩ jɛ (238) ma’ɛ tɛŋi a’u=ta a-ʃɔ =jɛ
kɛɾuhũ
aqui Cont. vertical HSY hes. cauim 1-ingerir=fut 1-cont. =HSY
grande
(239) ham! a’ɛ=tĩ =jɛ (240) Pɛ ʃɪha pukʷaɾ i-pɛ
sim 3=també =HSY então 3.rede 3.amarra 3-DAT
m r
‘Então “Tem cauim, meu irmão?” assim falou “Aqui está (na vertical)” respondeu. “Pois Cauimzão eu vou beber”
falou. “Tá bom” o tatu também disse então amarrou a rede (do Mucura) para ele.
No trecho acima, da narração de Naji, os bichos se referem ao cauim pelos termos tɛŋi e
tɛŋi kɛɾuhũ. Tais termos são a maneira pela qual apenas os bichos chamam o cauim. E não se
trata de léxico antigo. Difere, portanto, de tẽʃĩ que, nos ensinou Faustino Rossi, e que é maneira
antiga de se falar ‘meu irmão’.
Da mesma forma, ʃĩ e ʃupɛɾau aparecem como vocativos no trecho a seguir trecho da
narração de Salomão. Os dois denotam parentesco ou proximidade entre os interlocutores (Tatu e
Veado-mateiro). As traduções utilizadas, ‘irmão’ e ‘compadre’ foram as que os ka’apor fizeram
no momento em que nos explicaram os dois termos:
(1161) pɛ "pɛ i-ʔaĩ pɛ, ʃĩ?" aja=jɛ
então aí 3-vertical aí irmão assim=HSY
(1162 "ko wɛ -aĩ, ʃupɛɾau" aja=jɛ
)
Aqui ainda Cont.Vertical compadr assim=HSY
e
(1163) "ɛ-mɔndɔ i-pɛ" pɛ hakɛhaɾ mɔnɔ kawĩ mɔnɔ, pɛ u-ʔu

14
64

IMP-levar 3.dat então 3-esposa 3-levar cauim 3-levar entã 3-beber


o
‘Então “Tem aí em pé, mano?” assim falou “Aqui ainda está (na vertial), compadre” respondeu. “Leve pra ele” então a esposa (do
tatu) levou cauim. Então ele (o veado mateiro) bebeu’

Algumas variações do tema


Olhando rapidamente na mitologia da América do Sul, não é óbvio achar muitos mitos
correspondentes à desventura de Ywytu na cauinagem do Tatu. Isso é curioso na medida em que
praticamente todo o resto da mitologia ka’apor apresenta contrapartidas rapidamente
identificáveis nas tradições de outros povos. Entretanto, há algumas correspondências que
podemos indicar.
A narrativa ka’apor não é um mito de origem. É um causo. Um acontecimento. Em
contrapartida, há narrativas de outros povos que usam a codificação estética das espécies para
descrever suas origens. É o caso do povo manoki, que habita o vale do Juruena no atual estado
do Mato Grosso. Podemos sintetizar o início dos tempos, segundo o conhecimento manoki da
seguinte forma (Moura 1960, Mampuche & Ulipyace 2021):
Após emergirem a partir de uma pedra, os humanos, que se tornariam diferentes povos, se comunicavam
com os animais. O tuxaua da floresta, o Jaguaretê, convidou todos para uma grande festa. Jaguaretê tinha
uma intenção maliciosa, pois queria se vingar dos animais [a versão não explica o motivo]. De longe os
Manoki observavam os padrões de pintura corporal. As mulheres, após a festa, como não tinham pinturas.
Então, Deus Inuli sentiu pena delas e colocou um arco-íris no céu para que pudessem copiar a pintura.

O mito manoki enfatiza que Jaguaretê fez a festa para se vingar dos animais. O mito
ka'apor, por sua vez, observa que Jaguaretê é inimigo de Tatu, cujos convidados da cauinagem
são comparados por causa do focinho comprido.
O povo araweté também comenta sobre uma festa patrocinada, não pelo Jaguaretê, mas
por um caraíba chamado “Jaguaretê” que transforma as pessoas e seus atributos em bichos,
porque Jaguaretê tinha matado sua mãe (Viveiros de Castro 1986) ou porque Macaco tinha
contado uma mentira (Heurich 2015). No mito araweté do surgimento das espécies, uma
divindade de nome "Jaguaretê" gira/transforma as pessoas em bicho. Uma versão explica que é
por causa de um Jaguaretê real que comeu sua mãe, mas a versão é muito pouco desenvolvida.
Outra versão conta que é por causa de uma mentira de um bicho que o deus "Jaguaretê" realiza a
transformação.
O mito manoki mistura temas presentes em dois diferentes mitos do povo ka’apor: o do
arco-íris (espírito da gigante sucuri Maju), que conta como as aves conseguiram suas cores

15
65

características a partir do sangue de uma cobra imensa, e o do cauim do Tatu, que conta sobre
uma festa que reúne os animais, que apresentam um distintivo cultural.
Outro mito que apresenta o tema de padrões corporais e do arco-íris é um mito
pemón-arekuna (Koch-Grünberg 1916), em que primeiro as aves e depois os bichos de pelo,
adquirem uma flauta (uma vocalização) e uma propriedade física (um padrão de pintura
corporal) que os distingue enquanto espécie. Como o relato de Ywytu, o mito pemón-arekuna é
um guia de identificação das espécies (Lévi-Strauss 1964). No mito arekuna há também um pai
em uma situação de vulnerabilidade de sua percepção, visto que foi criada e casou-se com uma
Tapira, com quem compartilha a percepção girada, já que os carrapatos são suas miçangas e os
cachorros são cobras venenosas. Com que gerou uma criança que é extraída do corpo da
mãe-bichos assassinada pelos seus parentes. No mito de Ywytu, o tema correspondente é o
aborto que resulta no giro da percepção. No mito arekuna o giro da percepção que leva ao
"abortamento" da mãe, assassinada pelos seus parentes, entre os quais foi vítima de uma tentativa
de infanticídio. O filho do mito arekuna é que gerará o confronto que culminará na origem das
espécies (mesmo que as percepções das espécies já diferissem, seus corpos ainda não estavam
especificados).
O mito arekuna é sistemático na transformação por aquisição de flautas e padrões de
pintura corporal. Por outro lado, os cantos da cauinagem do Tatu, são heterogêneos. No mito
ka'apor, a morte prematura de um filho gera a aproximação da percepção das espécies como
semelhantes para Ywytu. No mito arekuna a morte de um filho extraído prematuramente gera o
afastamento que as espécies adquirem.
No mito ka'apor propriedades e relações "naturais" das embiaras tornam-se "culturais" no
evento cauinagem. No mito arekuna, ocorre o inverso: elementos "culturais" (flautas e padrões
de pintura) usados em um evento tornam-se "naturais" na separação definitiva das espécies.
O mito manoki também versa sobre a diferença das espécies, observando a diferença
entre os grafismos. O mito manoki se foca na codificação gráfica dos animais (que será "natural"
pois será o corpo das espécies). Esses mesmos grafismos são apropriados pelas mulheres cujo
corpo é “pré-cultural” (já que não tinham pinturas), que no mito estão em um estado primitivo de
carência de grafismo (tornando-se “cultura” humana).
Outro mito que conta o surgimento das espécies, transforma o Cutia sexualizado do mito
ka’apor em uma jovem Cutia, que acaba de passar pelo processo de sua sexualização. É um mito

16
66

do povo dito suruí do Pará, ou aikewara. A narrativa trata igualmente de uma festa,
desencadeada por uma condição sangrenta (Calheiros 2014: 36-41). Quando estava no bucho de
sua mãe, Cutia foi prometida para seu tio materno, Amerew. Quando a jovem prometida Cutia
virou moça, sua primeira menstruação cai no chão. O cheiro doce da menarca atrai Cobra, que
era o portador do maracá. Cobra começa a cantar, para atrair a moça e transar, mas seu canto não
é muito bom. Cutia permanecia reclusa. A velha Mucura chega dizendo que ela é a desejada
Cutia e foi cantando até Cobra. Entretanto, Cobra sentia que Mucura não tinha o cheiro doce da
menstruação recente, e sim uma vagina catinguenta. Amerew foi olhar essa dança, que acha
bizarra. Mas por fim Cobraconsegue seduzir Cutia. Amerew, o traído, transforma em alimárias
os que festejavam em torno da sua ex-prometida, a recém menstruada.
Podemos abstrair algumas invariantes dessas narrativas, embora suas fabulações sejam
diversas.
Situação sangrenta Arco-íris Padrões e cantos

Ka’apor aborto faz pai-frustrado ver (Arco-Íris é de onde aves Animais tem arte musical sobre si mesmos,
uma festa em que Jaguaretê extraem suas cores) artefatos correspondem ao corpo, ações na festa
é inimigo do patrocinador correspondem a hábitos, como o Cutia transador
(Natureza = Cultura, do ponto de vista girado)

Manoki Jaguaretê patrocina uma Arco-íris é apresentado pela …que invejaram ao verem os animais belamente
festa para se vingar dos divindade para as mulheres pintado na festa (Mulheres : Natureza :: Animais :
animais terem grafismos… Cultura)

Araweté intenção vingativa de deus (..cuja mãe foi morta) ..transforma pessoas em bichos, sendo seus
com nome de “Jaguaretê” adornos agora partes do corpo

Arekuna Intenção vingativa das aves, …morto por uma …animais extraem suas cores e seus cantos
vingando a morte de um cobra-arco-íris da qual..
menino…

Aikewara Primeira menstruação da (vagina seca da velha …noivo traído causa a transformação de quem
virgem Cutia gera uma festa Mucura) cantava em animais

Retomada
O mito da narrativa do Tatu é interessante por vários motivos. Ele é o único mito ka’apor
centrado em cantos. Seus cantos são uma arte que foi pegada dos bichos, episódio que o mito

17
67

também narra. Embora as viradas que levam do humano ao animal e vice-versa sejam comuns
nos mitos, o que é marcante na experiência de Ywytu é que os Animais se “autorrepresentam”,
que assumem o lugar de canto, mesmo que de forma reportada. Em outros mitos, animais são
reportados fazendo algo enquanto humanos que os caracterizaria em sua forma animal. Como
encontrar um Martim-pescador com rede de pesca e um Pica-Pau dando machadas em um
tronco. No mito ka’apor da cauinagem do Tatu, os animais, enquanto gente, estão executando
uma arte verbal sobre si mesmos.
Apresentamos aqui algumas abordagens para tratar as narrativas míticas. O objetivo final
é criar versões ricas e uma mitografia robusta, ou seja, uma documentação completa e precisa
das narrativas míticas. Destacamos aqui aspectos principais:
(1) Nosso projeto utiliza as ferramentas da documentação linguística: (a) gravando dados em
vídeo com duas câmeras e (b) buscando transcrever as narrativas de forma precisa. Observamos
que o ponto (b) ainda está em curso.
(2) A coleta de versões de diferentes narradores é uma boa estratégia para capturar variações nos
episódios. Nas fichas expostas acima, mostramos como tabelamos essas variações.
(3) Explicações e esclarecimentos: A solicitação de explicações e esclarecimentos de consultores
locais e pesquisadores especializados (como Faustino Rossi Kaapor) permite enriquecer a
compreensão das narrativas míticas, que nem sempre é clara mesmo com a transcrição, exigindo
contextualização e notas.
Mostramos uma pequena comparação com mitos que apresentam temas similares.
Infelizmente, os mitos de alguns povos (como manoki, araweté e aikewara) apresentam versões
muito fragmentárias. Esperamos que projetos similares ao nosso, que busquem arquivar e
abordar a mitologia de um povo sob diferentes perspectivas, no futuro possam contribuir com
essa lacuna.

Bibliografia:
CALHEIROS, Orlando. (2014). Aikewara: Esboços de uma sociocosmologia tupi-guarani.
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
EDUCAÇÃO, S. de E. de (Ed.). (2021). Matemática manoky. Gráfica Print.

18
68

GARCÉS, Claudia López (org.). (2011). Ka’apor ma’e panu ha ke - a palavra dos moradores da
mata: narrativas tradicionais do povo indígena Ka’apor. Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém.
HEURICH, Guilherme Orlandini. (2015). Música, morte e esquecimento na arte verbal
Araweté. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social, Museu Nacional.
KOCH-GRÜNBERG, Theodor. (1924). Vom Roroima zum Orinoco: Ergebnisse einer Rese in
Nordbrasilien und Venezuela un den Jahren 1911-1913. In Zwiter Band: Mythen und Legenden
der Taulipang und Arekuna-Indianer. Verlag Strecker und Schröder in Stuttgart.
LÉVI-STRAUSS, Claude. (1964). Le cru et le cuit. Plon.
RIBEIRO, Darcy. (1996). Diários Índios: os Urubus-Kaapor. 2008. ed. São Paulo: Companhia das
Letras.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. (1986). Araweté: os deuses canibais. Jorge Zahar Ed.

19
69

COMPLEXIFICANDO OS DEBATES SOBRE SAÚDE MENTAL E


(AUTO)CUIDADO NO CONTEXTO ACADÊMICO NEOLIBERAL: uma análise
interseccional do sofrimento psíquico discente na FFLCH-USP
Felipe Paes Piva1

RESUMO
O objetivo geral desta proposta é entender as múltiplas dimensões das questões relacionadas à saúde mental e ao
cuidado de alunos de graduação e pós-graduação na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Relacionando como as transformações estruturais e institucionais do ensino superior, sob a guinada neoliberal, se
apresentam para os discentes da FFLCH e podem afetar sua saúde mental. Como as dimensões individuais,
socioestruturais, coletivas e institucionais se relacionam e se determinam mutuamente quando procuramos
entender como as narrativas de sofrimento são geradas, o que as mantém e quais são as possibilidades de lidar
com essa temática dentro da Universidade. Se desejamos apreender como o sofrimento psíquico tem incidido
sobre as vivências universitárias, não podemos nos prender apenas aos eventos críticos, é preciso descer ao
ordinário, ao nível do cotidiano, as diferentes formas que esse sofrimento é corporificado e vivenciado, pelos
relatos e narrativas desses estudantes.
PALAVRAS-CHAVE: saúde mental, marcadores sociais da diferença, universidade

Introdução

Em 2017, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) registrou ao


menos seis tentativas de suicídio (COLLUCCI, 2017). Naquele mesmo ano foram registrados
dois suicídios consumados em outras unidades da universidade, na Faculdade de Veterinária e
no Instituto de Ciências Biomédicas. Neste último caso, um aluno de doutorado se suicidou no
laboratório no qual trabalhava, deixando, numa lousa que havia no local, uma mensagem em
que relatava estar cansado de tentar, de ter esperança, de viver. A mensagem terminava com a
expressão em inglês "I'm just done" (MORAES, 2017). Em 2018, mais cinco casos de suicídio
de alunos foram registrados, dois alunos da FFLCH, um da Escola Politécnica, um da Escola
de Artes, Ciências e Humanidades da USP Leste e um da Escola de Engenharia de São Carlos.
Tais ocorrências levaram à mobilização novamente em torno da discussão sobre saúde mental
no meio acadêmico, juntamente com a criação de um Escritório de Saúde Mental (ESM) na
universidade. A criação do Escritório foi um marco na
história da universidade, sendo a primeira vez que foi desenvolvida institucionalmente uma

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo. E-mail:
felipe.piva@usp.br. Orientadora: Heloisa Buarque de Almeida.
1
70

ferramenta unificada de assistência psicológica. Até então, apenas algumas Faculdades


ofereciam assistência por iniciativas próprias (VIEIRA, 2018)2.
No primeiro semestre de 2021, cinco estudantes de graduação da FFLCH tiraram suas
próprias vidas, apenas três casos foram reconhecidos pela instituição até o momento. Um
deles foi o caso emblemático de Ricardo, um aluno negro da Geografia que se jogou do alto
da moradia estudantil, onde era morador, em maio do ano passado. Recebia atendimento do
ESM desde 2019 (PALHARES, 2021), um dos lugares em que ele relatava sofrer racismo
pelos colegas de curso e até mesmo por docentes. O estudante chegou a avisar diferentes
órgãos e serviços da universidade que iria se suicidar nas escadas do bloco que residia
estudantil, mas nenhuma atitude institucional foi tomada para prevenir sua morte, nem mesmo
a Guarda Universitária presente durante o ocorrido estava preparada para tomar alguma ação
(UNEAFRO, 2021). A repercussão de sua morte fez com que colegas, amigos e familiares
fizessem um cortejo em sua memória, na Praça do Relógio da USP, onde os participantes
apontaram negligência por parte da universidade e questionaram a omissão da instituição, com
cartazes com dizeres como “A USP adoece e mata” e “A culpa é da USP” (CAMARGO,
2021).
O sofrimento psíquico discente não é uma problemática exclusiva da USP, nem do
âmbito universitário nacional, mas global. Há um crescente volume de pesquisas, das mais
variadas áreas de conhecimento, que tem voltado sua atenção para a problemática segundo as
especificidades de cada contexto local e institucional. Fleming (2021) destaca que muito se
sabe sobre o que deu errado no Ensino Superior mundial desde a ascensão do neoliberalismo,
porém pouca atenção foi dada para o peso psicológico e emocional que os constantes cortes de
verbas e a introdução da tecnocracia e da corporatização tiveram sobre a vida dos docentes e
discentes. Para Gill (2009), exaustão, stress, sobrecarga, insônia, ansiedade, vergonha, culpa e
sentimentos de deslocamento fazem parte da vida acadêmica hoje. Tais sentimentos, enquanto
experiências afetivas corporificadas, ocupam uma posição de sigilo e silêncio. Assim, tendem
a ser tratadas como experiências individuais e pessoais, enquadrado dentro de um discurso
extremamente individualista, ao invés de características estruturais da universidade
contemporânea.

2
Atualmente, o Escritório de Saúde Mental foi desativado pela nova Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento.
Um novo projeto será apresentado e implementado em breve.
2
71

No caso específico desta pesquisa, as narrativas sobre sofrimentos psíquicos de


graduandos e pós-graduandos da FFLCH não habitam as estatísticas e só ganharam o espaço
do dizível em situações extraordinárias, ainda que elas habitem o ordinário (PARREIRAS,
2018; DAS, 2020). Como defende Maluf (2010), se desejamos apreender como o sofrimento
psíquico tem incidido sobre as vivências universitárias, não podemos nos prender apenas aos
eventos críticos, é preciso descer ao ordinário, ao nível do cotidiano, para as diferentes formas
que esse sofrimento é corporificado e vivenciado. São pelas falas, relatos e narrativas desses
estudantes sobre suas experiências de aflição, sofrimento e adoecimento, sobre seus
itinerários e estratégias de alívio, que articulam-se com outras dimensões da experiência e da
existência social. Parte-se do entendimento de que há a junção dos mais diversos fatores
sociais, como os marcadores sociais da diferença, que apontam uma maior suscetibilidade de
sofrimento psíquico de alguns grupos em detrimento de outros (PIVA, 2021a, 2021b, 2022a,
2022b).
Este artigo se baseia nos desenvolvimentos de dois projetos: o primeiro, a iniciação
científica “O adoecimento psíquico na graduação: uma análise antropológica do sofrimento
psíquico na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP)”3 que fiz entre
2020 e 2021 sob orientação da Heloisa Buarque de Almeida (Piva, 2021a, 2021b, 2022a,
2022b); e o projeto de mestrado que venho realizando desde 2021. Tal projeto é uma
continuação e uma ampliação do anterior ao abarcar a pós-graduação e os efeitos da
neoliberalização da academia.

O Sofrimento Psíquico Sob o Olhar Antropológico

Segundo Le Breton (2013), a dor e o sofrimento não são simplesmente íntimos, são
também impregnados pelo social, cultural e relacional, são fruto de uma educação, isto é, não
escapam ao vínculo social. A saúde como objeto da antropologia não se constitui pela
determinação do que é saúde ou doença, normal ou patológico, mas é por intermédio do que
os sujeitos, numa determinada configuração cultural, pensam e vivem com essas
classificações psiquiátricas de si (SARTI, 2010). O sofrimento psíquico é um fenômeno
complexo, que envolve dimensões e relações de múltipla causalidade. Para Fassin (2012), o

3
A pesquisa teve apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo: Processo: 2019/27798-9.
Agradeço à FAPESP pelo auxílio oferecido para o desenvolvimento da pesquisa.
3
72

sofrimento não é só uma categoria psicológica ou fisiológica, mas também uma construção
contemporânea e política, no sentido da sua entrada na esfera pública e ter se tornado um
problema político. Representações culturais do sofrimento são apropriadas pela cultura
popular e por instituições para propósitos morais e políticos. Essas representações moldam o
sofrimento como uma forma de experiência social, como algo que é aprendido, compartilhado
e, pode ser, contradito. Assim, o que representamos e como nós representamos prefiguram o
que será ou não feito para intervir (KLEINMAN, DAS e LOCK, 1997).
Destarte, o sofrimento hoje é uma linguagem do presente, uma “economia moral”. Nos
termos de Fassin (2015), a economia moral se refere à produção, circulação e apropriação de
valores e afetos em relação a um determinado problema social que, consequentemente,
caracteriza um momento histórico particular e um mundo social específico a maneira que esse
problema é constituído e entendido coletivamente. Os valores e afetos definem “sentimentos
morais” de um humanitarismo que direciona nossa atenção ao sofrimento dos outros,
principalmente dos mais vulneráveis, e nos fazem querer remediá-lo. Tais sentimentos se
tornaram uma força essencial na política contemporânea, pois sustentam discursos e
legitimam práticas.
O sofrimento na universidade evidencia não só as pressões, contradições e impasses da
vida universitária, mas também a metamorfose estrutural da sociedade. Entendo aqui que o
sofrimento psíquico no ambiente universitário envolve dimensões individuais,
socioestruturais, coletivas e institucionais, assim como argumentado por Leão, Ianni, Goto
(2019a, 2019b). Ao longo deste projeto ao tratar de sofrimento psíquico não me refiro apenas
à transtornos mentais, isto é, às categorizações biomédicas e psicopatológicas, mas também ao
conjunto diverso de reações de mal-estar, sofrimento, adoecimento, tristeza, aflição, dor,
desconforto, estresse, angústia, tensão e afins diante de algum evento, situação, contexto que o
sujeito possa se defrontar durante certo momento de vida. Sua intensidade varia desde uma
simples preocupação até um mal-estar intenso. Sendo assim, o sofrimento tanto pode estar
relacionado a (a) trajetória pessoal: seja uma reação psicoemocional diante de algum evento
ou contexto difíceis, diagnóstico psicopatológico e afins; (b) questões coletivas envolvendo os
diversos marcadores sociais da diferença (raça, classe, gênero, sexualidade, dentre outros) que
fazem a intermediação subjetiva entre o individual e o coletivo; (c) mudanças estruturais das
condições de vida, de redistribuição econômica, de reconhecimentos culturais e históricos, do
acesso à saúde, à moradia, à alimentação, à educação e toda uma série de efetivação de

4
73

direitos; (d) pode estar relacionado diretamente ao contexto institucional universitário (global
e nacional), da mercantilização e corporatização da universidade pública, precarização das
condições de trabalho e pesquisa, cortes sistemáticos de recursos, falta e inefetividade de
políticas de permanência e de saúde mental, dentre outras problemáticas.
Na realidade social, como salienta Fraser (2001), toda luta por justiça social implica
duplamente demandas por mudança cultural e por mudanças econômicas, isto é, demandas
por reconhecimento (HONNETH, 2015) e por redistribuição econômica. Ambas estão
enraizadas em processos e práticas que sistematicamente prejudicam alguns grupos em
detrimento de outros. Se por um lado, observa-se na última década que um processo
significativo de democratização dos campi nacionais está em curso, principalmente quando
olhamos para marcadores sociais da diferença como raça, gênero e classe; por outro, isso não
pode ser dissociado de questões que envolvam a permanência na universidade, sendo a saúde
mental uma delas.
Os marcadores sociais da diferença (CANCELA, MOUTINHO e SIMÕES, 2015;
SAGGESE, MARINI, LORENZO, SIMÕES e CANCELA, 2018) referem-se à abordagem
interseccional que provém do feminismo negro estadunidense (COLLINS, 2019; LORDE,
2019). Davis (2018) defende que a interseccionalidade é um projeto político e interdisciplinar
em defesa a uma perspectiva sobre as experiências singulares de se viver como mulher negra,
de seu compartilhamento de perspectivas comuns. Contudo, o grande diferencial é que tal
ferramenta não se restringe aos marcadores de raça e gênero, sempre leva em conta a grande
variedade e pluralidade de outros marcadores sociais, como os de classe, nacionalidade,
religião, idade e orientação sexual, marcadores que acabam moldando vidas individuais. Essas
marcações sociais da diferença não estão completamente isoladas, nem constituem distintos
reinos de experiência, mas existem “em” e “através” da relação que constituem entre si
(MCCLINTOCK, 2010).
Como advogam Ecclestone e Brunila (2015), o entendimento contemporâneo de
justiça social reflete um longo interesse nas dimensões psicoemocionais da iniquidade social e
a necessidade de respostas informadas coletiva e politicamente. Tal luta por justiça almeja
expor e falar dos efeitos e causas psicoemocionais da iniquidade como uma fonte chave do
reconhecimento. Da mesma forma, o suicídio e sua prevenção também são questões vitais
para a justiça social. Tal abordagem enfatiza, para Button e Marsh (2020), que precisamos
desenvolver um entendimento sobre as formas pelas quais processos socioestruturais criam

5
74

condições duradoras que geram e consolidam mais fatores de risco ao suicídio mais para
algumas pessoas do que outras, segundo seus marcadores sociais. Promover justiça dentro do
contexto da prevenção de suicídio significa previnir os processos sociais e as condições
estruturais que interagem com os fatores pessoais psicológicos que aumentam a ideação
suicida, tentativas e mortes. É reconhecer o suicídio enquanto uma questão multifacetada e
composta pelos marcadores sociais, fatores e atravessamentos culturais, econômicos,
biológicos, psicológico, políticos e outros (NAVASCONI, 2019).

Um Breve Histórico da Adoção de Políticas Afirmativas na USP

Carlotto (2021) aponta que a criação da Universidade de São Paulo (USP), em 1934,
foi marcada pela tentativa de reunir faculdades isoladas a uma faculdade nova, a Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), de caráter eminentemente científico, cuja função deveria
ser integradora das demais. Desse modo, a criação da USP representou um marco decisivo no
cenário do ensino superior nacional por ter conseguido, pela primeira vez, dar dinamismo e
organicidade para uma faculdade propriamente científica, capaz de impulsionar a
institucionalização da pesquisa nacional, e que tornou-se o principal modelo para as demais
instituições universitárias do país.

Desde o ano de 1995, a Universidade de São Paulo vinha discutindo a necessidade de


medidas que visassem à criação de um sistema para a ampliação de estudantes negros e de
baixa renda. Apenas onze anos mais tarde e muitos embates e disputas, a USP, em 2006, ao
invés das cotas raciais, estabelece um sistema de bonificação com critérios socioeconômicos,
o Programa de Inclusão Social da USP (Inclusp). No contexto da promulgação da Lei das
Cotas, na USP se desencadeou uma discussão a respeito da possibilidade de adoção de cotas
em seus vestibulares. Contudo, optou-se por implementar mudanças em seu sistema
preexistente, assim, novas alterações são feitas no Inclusp (PIOTTO e NOGUEIRA, 2013).
Portanto, entre a possibilidade de adotar um modelo de cotas étnico-raciais, a USP preferiu
dar sequência ao seu projeto político de cotas sociais, presumindo ser o modelo mais de
acordo com seus princípios de expansão universitária.
Apenas em 2015, a USP passa a aderir ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu).
Embora tal adoção tenha sido uma mudança histórica na forma de ingresso, que nos últimos

6
75

40 anos era representada pela Fuvest, o modelo de inclusão adotado pela USP até então tinha
como grande enfoque o aluno de escola pública, a questão étnico-racial foi parcial e
deficientemente contemplada até então. Após um intenso engajamento de movimentos negros
na USP e do Núcleo de Consciência Negra, em 2017, através das congregações das unidades e
do Conselho Universitário, a USP introduziu as cotas raciais nos seus processos de seleção,
Fuvest e Sisu. O sistema de cotas foi aplicado no edital da Fuvest em 2018, reservando cerca
de 37% das vagas para alunos de escolas públicas e desse valor 13,7% foram reservados para
pretos, pardos e indígenas. Definiu-se que a cada ano a reserva de cotas irá aumentar até
atingir a meta de 50% das vagas destinadas ao sistema de cotas em 2021.
Hoje, a FFLCH é a maior unidade de toda a USP, com cerca de 13 mil estudantes
ativos de graduação e pós-graduação, 400 docentes, 300 funcionários, 11 departamentos
distribuídos em 5 áreas de conhecimento: Ciências Sociais, Filosofia, Geografia, História e
Letras (FFLCH, 2021). Como constatou Braga (2019), a FFLCH é a faculdade que possui a
maior presença de homens e mulheres negras discentes de toda a USP. Em sua maioria, tais
alunos estão cursando no período noturno, o que indica uma relação entre trabalho e estudo.

A Institucionalização da Pesquisa no Ensino Superior Brasileiro

Em 1976, é criado o programa de avaliação de pós-graduação pela CAPES com os


intuitos gerais de criar um sistema permanente de informações sobre a pós-graduação
brasileira, regular sua expansão, credenciamento de cursos e orientar investimento das
agências federais (PATRUS, SHIGAKI, DANTAS, 2018). Contudo, foi apenas a partir de
1980 que a sistemática de avaliação da pós-graduação se firmou no país, tornando-se o centro
das preocupações (FURTADO, HOSTINS, 2014). Na década de 1990, fortemente
influenciada pelo Pacto de Bolonha4 e pela tendência norte-americana “publique ou pereça”5,
a CAPES estabelece mudanças nas sistemáticas de avaliação da pós-graduação, introduzindo

4
O Pacto de Bolonha de 1999 foi um documento assinado por ministros da educação dos países da União
Europeia que visava a realização de ações de reestruturação do ensino superior nesses países, com o objetivo
principal de promover e elevar a competitividade nacional e internacional do sistema de ensino superior europeu
(Reis, Blundi, Pinto e Silva, 2020).
5
O “publish or perish” é um fenômeno que tem sua origem nos anos 1950, nos EUA. Tornou-se mundialmente
conhecido pela expressão “publique ou pereça”, significando que professores/pesquisadores universitários que
não publicassem de acordo com os parâmetros postos como ideais pelos órgãos financiadores, pela burocracia
universitária ou pelo mercado, veriam sua carreira definhar e extinguir-se (Sguissardi, 2010).
7
76

indicadores que pudessem expressar os níveis de concorrência e competitividade entre os


programas. É também nesse período que a CAPES passou a adotar um tempo médio de
titulação de dois anos para o mestrado e quatro para o doutorado (FÁVERO, CONSALTÉR e
TONIETO, 2019).
Tal reestruturação afetou não somente as Instituições de Ensino Superior, como também
os Coordenadores de Programas de Pós-Graduação, os docentes e os discentes, que passaram
a ser sujeitados a se preocupar com índices, classificações, fatores de impacto, rankings,
publicações e a lidar com situações que envolvem um grande grau de competição entre os
programas e entre os próprios pós-graduandos (REIS et al., 2020). Como pontuam Serafim,
Junior e Dias (2022), o novo modelo estava mais voltado à regulação e controle do que um
processo de avaliação que acompanhasse apenas a superação e o crescimento qualitativo dos
programas. Consequentemente, tal modelo deslocou a centralidade da docência para a
centralidade na pesquisa, fazendo com que a produção intelectual ganhasse grande
importância como indicador avaliativo. Portanto, a prioridade central está em produzir ciência
no sentido de participar de eventos científicos, emitir pareceres e elaborar artigos, pois é essa
produção que passa a ser avaliada, julgada e que gera conhecimento “publicável” (REIS et al.,
2020).
Contudo, este não é um fenômeno nacional, como aponta Moreira (2009), nosso sistema
de avaliação da pós-graduação se inscreve numa convergência das políticas educacionais que
se promovem em diferentes países, com histórias, estruturas e tradições distintas. Uma
convergência de princípios e tecnologias comuns, de mecanismos operacionais e de resultados
semelhantes. Ao analisar o ensino superior inglês no final do século XX, Strathern (1999)
argumenta que a educação encontra-se engolfada pela “cultura da avaliação” provinda do
neoliberalismo, isto é, uma avaliação intensificada cujo o objeto de exame não é exatamente o
desempenho acadêmico dos candidatos, mas da estrutura que viabiliza esse desempenho, as
próprias instituições. Elas que estão sob escrutínio. A educação superior se juntou tardiamente
às outras instituições públicas que, nas duas décadas do século XX, foram afetadas pela
“medição da produtividade” e tudo que ela significa em termos de procedimentos
administrativos e objetivos financeiros.
Dentro dessa lógica avaliativa, Sguissardi (2010) chama de “produtivismo acadêmico” o
fenômeno derivado dos processos, oficiais ou não, de avaliação, de regulação e controle, que
se caracteriza pela excessiva valorização da quantidade da produção científico-acadêmica,

8
77

tendendo a desconsiderar a sua qualidade. No caso brasileiro, o produtivismo acadêmico


alimenta-se do e no processo de competição, seja entre universidades, programas de
pós-graduação e docentes/pesquisadores. A proeminência a cada dia maior do produtivismo
acadêmico segue a lógica do empresariamento e mercantilização, isto é, da transformação das
universidades em empresas e corporações, nos seus moldes gerenciais. Tal modelo tem
influenciado diretamente na organização interna dos programas de pós-graduação e na vida
dos pesquisadores. Assim, o pesquisador, incorporando a lógica que se instaura, passa a ser
gestor de si, tentando constantemente adaptar-se às múltiplas demandas da escrita acadêmica,
prazos, disciplinas, publicações e afins (Reis et al., 2020).

Se há um principal motor estruturante por trás das mudanças verificadas ao longo das
últimas décadas, é o neoliberalismo. Entendo neoliberalismo nos termos de Dardot e Laval
(2016) como uma racionalidade, que tem como principal característica a generalização da
concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação6. Segundo
Gill (2009), a neoliberalização da Academia gerou sujeitos que precisam se automonitorar,
serem flexíveis, criativos e internalizar novas formas de auditoria e cálculo.

O Sofrimento Psíquico no Cotidiano Universitário

Um dos desenvolvimentos significativos do neoliberalismo na vida contemporânea,


para Hamann (2012), está no gradativo embaralhamento, inversão ou mesmo eliminação das
distinções tradicionais entre público e privado. Problemas antes considerados mazelas sociais
transferiram-se para o domínio privado: pobreza, desemprego, falta de moradia, racismo,
sexismo e heterossexismo. Todos foram reinterpretados como questões privadas que deveriam
ser atendidas pelo cultivo de “sensibilidades” pessoais em relação aos outros ou mesmo
fortalecendo a própria autoestima. Da mesma maneira, enfermidades e doenças são
frequentemente consideradas como um problema de perda de receita, em vez de um efeito de
um ambiente insalubre ou condições precárias. O discurso neoliberal fortalece as práticas de
promoção da plena responsabilidade dos indivíduos pela sua própria saúde e bem-estar.

6
Longe de limitar-se à esfera econômica, tende à totalização por seu poder de integração de todas as dimensões
da existência social. Assim, práticas discursivas e institucionais, no fim do século XX, engendraram a figura do
“sujeito empresarial”, um sujeito competitivo inteiramente imerso na competição generalizada.
9
78

Em todas as esferas da sua existência, o sujeito empresarial é exposto a riscos vitais, dos
quais ele não pode se esquivar, e a gestão desses riscos está ligada a decisões estritamente
privadas. Ser empresa de si mesmo pressupõe viver inteiramente em risco, uma “insegurança
ontológica” (ILLOUZ, 2022). Gerando uma individualização radical que faz com que todas as
formas de crise social sejam percebidas como crises individuais, todas desigualdades são
atribuídas a uma responsabilidade individual, assim, transforma as causas externas em
responsabilidades individuais e os problemas ligados ao sistema em fracassos pessoais. A
distribuição dos recursos econômicos e das posições sociais é vista exclusivamente como
consequência de percursos, bem-sucedidos ou não, de realização pessoal (Dardot e Laval,
2016). Aqueles que fracassam em prosperar sob tais condições sociais não podem culpar
ninguém, nem coisa nenhuma além de si mesmos, pois a racionalidade neoliberal permite que
se evite qualquer tipo de responsabilidade coletiva, estrutural ou governamental pela vida
(Hamann, 2012). Nesse sentido, no ambiente universitário, mesmo o desemprego estrutural e
a precarização do trabalho, das condições de pesquisa e de ensino, a falta de oportunidade no
mercado de trabalho depois da graduação ou pós-graduação, podem ser convertidas em culpa
e responsabilidades individuais (LEÃO, IANNI e GOTO, 2019a).
Algo que pude constatar na pesquisa anterior foi o grande volume de narrativas de
graduandos em torno dos sentimentos de uma cobrança frequente e excessiva enquanto culpa
e responsabilidade individuais. Falavam de uma forte cobrança por resultados, por
produtividade, por desempenho acima da média. Sentimento esse que pode ser tanto infligido
pela estrutura acadêmica, mas também por uma comparação constante entre o próprio corpo
discente e, muitas vezes, uma comparação autoinfligida pela própria vivência nesse ambiente,
como disse um interlocutor, é algo que contagia. A competição generalizada se apresenta de
diferentes maneiras, seja pelo domínio de línguas estrangeiras, conteúdos aprendidos,
matrículas em matérias, oportunidades de estágio e intercâmbio, iniciações científicas, bolsas
de auxílio e pesquisa, ranqueamento/ habilitações (para os alunos de Letras), a maioria dessas
coisas são baseadas no desempenho acadêmico individual, na média ponderada.
Contudo, tal competitividade e cobrança generalizada não leva em conta as diferentes
variáveis culturais, sociais e econômicas dos alunos, isto é, seus marcadores sociais da
diferença, como se todos iniciassem a trajetória acadêmica em pé de igualdade. Como
demonstram Bourdieu e Passeron (2014) em seu estudo do ensino superior francês, as
desigualdades sociais se manifestam não apenas no acesso ao ensino superior, mas nas

10
79

escolhas entre diferentes percursos acadêmicos, pois as oportunidades objetivas de cada grupo
social condicionam a experiência dos atores, configuram suas esperanças subjetivas e suas
escolhas concretas, fazendo com que contribuam, mesmo sem ter consciência disso, para a
realização de uma trajetória acadêmica e social próxima de seu perfil social (MACEDO,
2019). As vantagens e desvantagens ligadas à origem tenderiam a se apresentar de modo
articulado. Na pesquisa, isso se demonstrou pelo tipo de instituição cursada no ensino básico,
a escolaridade e a ocupação dos pais, ser a primeira geração de sua família a entrar numa
universidade pública, o curso escolhido, a forma de ingresso, o uso de políticas afirmativas, a
necessidade de bolsas de apoio/auxílio, morar ou não na moradia estudantil, ter feito ou não
uma iniciação científica, trabalhar ou não na área de formação, ser pesquisador-bolsista. São
chances diferenciadas de acesso a oportunidades culturais e acadêmicas. Tudo isso representa
diferentes posicionamentos no espaço social, “estilos de vida” e gostos de classe (Bourdieu,
2013), na universidade e na sociedade como um todo. As desigualdades sociais, nas as
intrincadas maneiras que o machismo, o racismo, a LGBTfobia se intersectam nas estruturas
universitárias, vão se convertendo e se acumulando como desigualdades acadêmicas, que
podem muitas vezes serem experimentadas como problemas individuais, assim, podendo ser
convertidas em culpa e responsabilidades individuais.
Leão, Ianni e Goti (2019a; 2019b) apontam que, no ambiente universitário, quando
crises produzidas, social e institucionalmente, são percebidas como crises individuais, não são
considerados os efeitos adoecedores do próprio ambiente e das práticas institucionais, seja os
eventuais desafios acadêmicos, as violências simbólicas e físicas, as insuficiências das
políticas de permanência etc. As respostas ao sofrimento, portanto, tendem a se organizar de
forma individualizada e aquém da complexidade do fenômeno. Em linhas gerais, as
estratégias institucionais de promoção de saúde mental na USP podem ser agrupadas em duas
macro-estratégias: clínico-terapêuticas e de educação em saúde. Primeiro, quem adoece é
encaminhado à clínica individual dos serviços de saúde mental ligados à universidade7, para
depois retornar às engrenagens da máquina que o adoeceu e que permanece intocada. Sofre
quem não é resiliente o bastante, quem não se organizou adequadamente, quem não sabe
como estudar etc. Afastando, assim, a análise de eventuais fatores supra-individuais que
7
Durante a pesquisa anterior, pude constatar que apesar desta ser a lógica institucional mais aplicada no trato do
sofrimento psíquico, muitos estudantes nunca tinham procurado nenhum dos serviços oferecidos pela
universidade, grande parte deles nem sabiam da existência desses ofertados. Em parte, isso aponta a falta de
visibilidade e divulgação que a própria instituição faz de seus recursos. Os alunos não possuem informações
suficientes nem sobre a qual desses serviços recorrer.
11
80

possam estar ligados à experiência de sofrimento expresso neste ambiente em específico.


Aubrecht (2019), olhando para o contexto universitário canadense, afirma que, ao invés de um
ponto fora da norma, o sofrimento psíquico é apresentado pelos serviços universitários como
algo ordinário e até esperado, como uma realidade afortunada da vida cotidiana na
universidade neoliberal. Nesse contexto, as linhas divisórias entre o sucesso e a sobrevivência
se tornam borradas.
A hegemonia das estratégias clínicas demonstram o entendimento de que a saúde
mental é um monopólio clínico-terapêutico8, majoritariamente individual, e que demanda
esforços de normatização. Por outro lado, não é necessariamente mais saúde mental que se
produz com educação em saúde mental, mas possivelmente maior resiliência e adaptabilidade
a uma lógica de ensino adoecedora. Adquire-se instrumentos não para promover saúde
mental, mas para melhor navegar o campo minado do ambiente acadêmico e suas exigências
de desempenho e produtivismo acadêmicos. O viés da autoadministração implicado nesses
serviços oferecidos, transforma a experiência do sofrimento em um objeto administrativo9,
não se pergunta o porquê do sofrimento ou sobre seu contexto social de emergência, mas
busca dar respostas organizativas a ele.
O conceito de resiliência domina os atuais programas e serviços oferecidos pela
universidade. Tal conceito também oferece uma forma de racionalizar as dificuldades, os
afastamentos e a própria remoção de estudantes. Servindo de medida para o pertencimento: a
Universidade não pode ser a casa daqueles estudantes que enfrentam dificuldades mas não se
recuperam, não se adaptam. Uma análise crítica da resiliência nos programas e serviços
universitários podem nos mostrar como universidades racionalizam o desaparecimento e a
remoção daqueles que “não-pertencem” (AUBRECHT, 2016).

8
A “Rede Não Cala” aparece como uma alternativa e contraposição às estratégias institucionais. A Rede foi
composta em abril de 2015 por professoras e pesquisadoras de diferentes institutos da USP em oposição à
violência institucional, tendo como principal foco dar às vítimas um suporte que elas não encontraram na
Universidade. Desse modo, advogam com e pelas pessoas que sofreram violências no contexto universitário,
para, a partir disso, desenvolver ações comunicativas e pedagógicas, e também aprimorar os mecanismos
administrativos de denúncia (Almeida, 2019b; Cruz et al., 2018), levando em conta os fatores supra-individuais
que possam estar ligados à experiência de sofrimento expresso na universidade.
9
Vale destacar que até a nomeação dos serviços de saúde mental apresenta esse viés administrativo e
empresarial, como o extinto Escritório de Saúde Mental, que foi um serviço de apoio clínico emergencial criado
originalmente como resposta aos adoecimentos discentes. A própria ideia de Escritório não só remete a uma
figura empresarial como também destoa dos outros serviços oferecidos pela USP, pois não estava diretamente
vinculado ao Instituto de Psicologia ou aos Hospitais da USP, mas estava vinculado diretamente à Pró-Reitoria
de Graduação.
12
81

Vemos nisso a materialização da gramática neoliberal do sofrimento psíquico, na qual


apenas o indivíduo que sofre e, por mérito próprio, deve superar o sofrimento por
aprimoramento pessoais. Tal gramática, por um lado, transfigura riscos e contradições sociais
em fracassos e culpa pessoal; por outro, naturaliza estas mesmas contradições e as descola de
seu contexto sociopolítico. Na medida em que as contradições sociais são sentidas como culpa
ou responsabilidade individual, a resposta se torna também mais subjetiva e menos política.
Consequentemente, isto as retira das possibilidades de disputa política destas contradições.
Para os autores, não podemos perder de vista que, junto com a dimensão estritamente
individual do sofrimento há também a fatores supra-individuais coletivos, institucionais e
socioestruturais. É preciso pensar o fenômeno e as estratégias para lidar com ele, de forma a
atingir também estas dimensões supra-individuais, considerando a complexidade das
experiências de sofrimento e o necessário protagonismo dos estudantes. Estratégias
individualizantes impedem de pensar o sofrimento e possibilidades de resposta coletivamente
organizadas, transformações institucionais, ou sob o ponto de vista socioestrutural (LEÃO,
IANNI e GOTI, 2019a; 2019b).
Mais da metade dos participantes da pesquisa anterior já recebeu algum diagnóstico
psicopatológico. Tal número elevado é comum nas pesquisas sobre sofrimento psíquico na
universidade. Nacional e internacionalmente, verifica-se a prevalência de problemas de saúde
mental entre graduandos e pós-graduandos (STOCK e LEVINE, 2016; AUERBACH et al.,
2018; GAIOTTO et al., 2021). Os acompanhamentos terapêuticos mais recorridos são a
psicoterapia e a análise psicanalítica. Tais recursos provêm da rede privada de serviços
envolvendo saúde mental. Embora tenha um grande número de diagnósticos psicopatológicos,
o acompanhamento terapêutico nem sempre é acessado, provavelmente, pelos custos elevados
na rede privada e a demanda elevada que não consegue atendimento na rede pública. Portanto,
isso nos mostra que a problemática não é falta de demanda, mas a junção da falta de
informações e divulgação dos serviços oferecidos pela USP, da falta de vagas nos
atendimentos, atendimento estritamente pontual e emergencial, serviços tidos como inefetivos
e que podem contribuir para a piora da situação do aluno. Fazendo que os discentes só vejam
na rede privada a possibilidade de um apoio efetivo e continuado10.

10
Isso é referente àqueles que possuem as condições financeiras necessárias para continuar o tratamento na rede
privada. Um dos questionamentos deste projeto é sobre os outros motivos que podem levar ao estudante a não
procurar apoio psicológico, seja na rede pública ou privada.
13
82

Condições Precárias: a distribuição desigual de sofrimentos e de cuidados

Em contraposição a individualização radical proposta pelo neoliberalismo, podemos


entender a distribuição desigual de sofrimentos em termos estruturais e coletivos pelos
conceitos de precariedade e condição precária. A precariedade, para Butler (2015; 2018; 2019;
2021), tem de ser compreendida como uma condição generalizada: todas vidas são, por
definição, precárias, pois podem ser eliminadas e sua persistência não está garantida. A vida
sempre surge e é sustentada dentro de determinadas condições que a dão suporte. Não há vida
sem a dependência de redes mais amplas de apoio, cuidado, sociabilidade e trabalho.
Contudo, há uma distribuição diferencial de precariedade, uma condição de
precariedade. Tal distribuição diferencial é uma questão material e perceptual, visto que tais
vidas não são “consideradas” potencialmente valiosas e, assim, são obrigadas a suportar uma
exposição diferenciada à violência, isto é, sob determinados regimes de poder, alguns grupos
são visados mais prontamente que outros. A condição precária também pode implicar numa
mudança da realidade psíquica, num aumento relativo da sensação de ser descartável ou
dispensável que se distribui proporcionalmente à condição precária. Tal processo pode
envolver um aumento de ansiedade em relação ao próprio futuro e em relação àqueles que
podem depender dessa pessoa (BERLANT, 2011).
Como defende Ahmed (2022), quando o mundo inteiro está organizado para promover
sua sobrevivência, as próprias condições desse mundo promovem o seu bem-estar. Assim, o
privilégio é uma zona de amortecimento, pois diz respeito ao amparo disponível. Não
significa que nos tornamos invulneráveis, mas que o privilégio pode reduzir os custos da
vulnerabilidade, há maiores chances de acolhimento. Quanto mais precária for a sua situação,
menor o apoio oferecido. Ser pobre, ser negra/o, ser mulher, ser não-heterossexual, dentre
outros marcadores, colocam sua vida em risco. Sua saúde é comprometida quando você não
tem acesso a recursos que possam dar suporte à vida em todas as suas contingências. Um
sistema de saúde é também um sistema de suporte. Você precisa afirmar que certas vidas
importam quando o mundo está determinado em dizer que elas não importam.
Em contraposição ao discurso neoliberal, no qual você se torna responsável pela
degradação de sua saúde, pelo próprio fracasso em cuidar melhor de si, o cuidado no cotidiano
toma forma e é experienciado através de relações concretas tecidas em arranjos sociais
14
83

desiguais, que apontam como forças políticas e econômicas se realizam na vida cotidiana dos
sujeitos (Han, 2012). Precisamos reorganizarmo-nos por meio do trabalho ordinário, cotidiano
e frequentemente meticuloso de nos cuidarmos e de criação de uma comunidade. Um
autocuidado que não seja mais uma técnica de governança, mas um meio de encontrar formas
para existir num mundo que torna a existência de algumas populações difíceis (AHMED,
2022).

Considerações Finais

Quando nos voltamos para as narrativas de adoecimento psíquico dentro e fora do


contexto universitário, estamos tratando, sobretudo, da condição de precariedade, da condição
de estar sempre condicionado ao outro, de como a vida surge e é sustentada por meio da
dependência de uma série de redes sociais e dentro de condições determinadas. Estar
condicionado ao outro implica posicionamentos desiguais nas relações de poder que podem
estabelecer certas vidas como mais valiosas, certos sofrimentos como legítimos ou não.
Consequentemente, como sofrimentos advindos do machismo, racismo, LGBTfobia e
desigualdade social são tidos como legítimos ou não no âmbito universitário, pois tais
sofrimentos se intersectam nas estruturas universitárias e vão se convertendo e se acumulando
como desigualdades acadêmicas, que podem muitas vezes serem experimentadas como
problemas individuais. Em contraposição a isso, precisamos nos perguntar dos motivos,
causas e contextos do sofrimento em nosso meio, das dimensões psicoemocionais das
iniquidades sociais e a necessidade de respostas informadas coletiva e politicamente.
Considerando os efeitos adoecedores do ambiente e das práticas institucionais, dos
desafios do fazer acadêmico, das violências simbólicas e das insuficiências das políticas de
permanência e de saúde mental. É necessário estabelecer uma outra gramática do sofrimento
psíquico na universidade, uma gramática que não jogue para os alunos os riscos e as
contradições socioestruturais como responsabilidades, fracassos e culpas individuais, os
descolando de seu contexto sociopolítico e institucional.
Não podemos olhar para o sofrimento psíquico no meio universitário apenas como
uma condição generalizada da precarização constante que o meio acadêmico está submetido
na conjuntura atual. Por mais que todo aluno possa estar condicionado a sofrer em decorrência
das relações estabelecidas dentro e fora da universidade, tal sofrimento não é vivido da mesma

15
84

maneira, não é reconhecido da mesma maneira e, portanto, não impacta a todos da mesma
maneira. Nosso sofrimento está sempre condicionado pelos atravessamentos característicos de
uma forma particular de viver, do valor distintivo determinado pela posicionamentos
dinâmicos que assumimos e somos levados a assumir no espaço social. Um fenômeno tão
complexo e tão urgente como este demanda reflexões para além dos indivíduos. Precisamos
olhar para as engrenagens institucionais, para os fatores supra-individuais. E, acima de tudo,
precisamos de respostas coletivamente organizadas e transformações institucionais que
realmente levem em conta as experiências diversas e distintas dos discentes. Sendo a
precariedade uma das experiências definidoras da vida acadêmica contemporânea, a tarefa de
repolitizar a saúde mental na Universidade é urgente!

REFERÊNCIAS

AHMED, Sara. Viver uma vida feminista. São Paulo: Editora UBU, 2022.

AUBRECHT, Katie. Psy-Times: The Psycho-Politics of Resilience in University Student Life.


Intersectionalities: A Global Journal of Social Work Analysis, v. 5, n. 2, 2016.

_____. The ‘Nothing But’: University Student Mental Health and the Hidden Curriculum of
Academic Success. Canadian Journal of Disability Studies, 8(4), 2019.

AUERBACH, Randy. et al. WHO World Mental Health Surveys International College
Student Project: Prevalence and distribution of mental disorders. J. Abnorm. Psychol.,
Washington, DC, v. 127, n. 7, 2018.

BASSO, Murilo. Risco de suicídio entre alunos de medicina exige cuidados. Gazeta do Povo,
Paraná, 14 de jul. de 2017. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/ed
ucacao/risco-de-suicidio-entre-alunos-de-medicina-exige-cuidados-9t2e1rd3d1xaao8daz
bq2rbk9/>.Acesso em: 10 de dez. de 2019.

BERLANT, Lauren. Cruel Optimism. New York: Duke University Press, 2011. BOURDIEU,
Pierre. Capital Simbólico e Classes Sociais. Novos estudos - CEBRAP, v. 96, 2013.

________________; PASSERON, Jean-Claude. Os herdeiros: os estudantes e a cultura.


Editora UFSC: Florianópolis, 2014.

BRAGA, Tuwile J. K. A territorialidade do corpo negro na USP. 2019. 134f. Dissertação


(Mestrado em Geografia Humana) - Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana,
Universidade de São Paulo, SP, 2019.

BUTLER, Judith. Quadros de Guerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

16
85

______________. A Vida Psíquica do Poder. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017.

______________. Corpos em Aliança e a Política das Ruas. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira,
2018.

______________. Vidas Precárias. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019.

______________. A força da não-violência. São Paulo, Boitempo, 2021.

CAMARGO, Roberta. Estudante vítima de racismo comete suicídio dentro da USP. Alma
Preta Jornalismo Preto e Livre, São Paulo, 1 de jun. de 2021. Disponível em:
<https://almapreta.com/sessao/cotidiano/estudante-vitima-de-racismo-comete-suicidio-d
entro-da-usp/>. Acesso em: 25 de ago. de 2021.

CANCELA; MOUTINHO; SIMÕES (orgs). Raça, etnicidade, sexualidade e gênero. São


Paulo: Editora Terceiro Nome, 2015.

CARLOTTO, Maria. O campo brasileiro de ensino superior em perspectiva estrutural:


tendências históricas e contemporâneas. Pensata: Revista dos Alunos do Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais Da UNIFESP, v. 10, n. 1, 2021.

CARTA CAPITAL. Casos de suicídio e depressão deixam universidades em alerta. Carta


Capital, São Paulo, 23 de set. de 2017. Disponível em:
<https://www.cartacapital.com.br/sociedade/casos-de-suicidio-e-depressao-deixam-univ
ersidades-em-alerta>. Acesso em: 10 de set. de 2020.

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro. São Paulo: Boitempo, 2019.

COLLUCCI, Cláudia. Medicina da USP se mobiliza após tentativas de suicídio. Folha de S.


Paulo, São Paulo, 12 de abril de 2017. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2017/04/1874794-medicina-da-usp-se
-mobiliza-apos-tentativas-de-suicidio.shtml>. Acesso em: 10 de dez. de 2019.

CRUZ; ALMEIDA; D’OLIVEIRA; FREIRE DE ARAUJO LIMA; LAGO &


MACHADO. “Don’t Stay Silent: Network of Female Professors Against Gender Violence at
University of São Paulo (USP)”. Annual Review of Critical Psychology, v. 15, 2018.

DAS, Veena. Vida e Palavras A Violência e sua Descida ao Ordinário. São Paulo: Editora
da Unifesp, 2020.

DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2018.

17
86

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016.

DIAS, Rafael; SERAFIM, Milena. Comentários sobre as transformações recentes na


universidade pública brasileira. Avaliação, v. 20, n. 2, 2015.

ECCLESTONE, Kathryn; BRUNILA, Kristiina. Governing emotionally vulnerable subjects


and "therapisation" of social justice. Pedagogy, Culture & Society, v. 23, n. 4, 2015.

FASSIN, Didier. Humanitarian reason. A moral history of the present. Los Angeles:
University of California Press, 2011.

_____________. “Governing Precarity”. In: (Ed.). At the Heart of the State: The moral
world of institutions. London: Pluto Press, 2015.

FÁVERO, Altair A.; CONSALTÉR, Evandro; TONIETO, Carina. A avaliação da


Pós-graduação e a sua relação com a produção científica. Eccos Revista Científica, n. 51,
2019.

FLEMING, Peter. Dark academia: how universities die. London: Pluto Press, 2021.

FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento?. In: SOUZA, Jessé (org.)


Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília:
Editora UnB, 2001.

FURTADO, H. L.; HOSTINS, R. C. L. Avaliação da pós-graduação no Brasil. Revista de


Educação PUC-Campinas, n. 19, v. 1, 2014.

GAIOTTO, Emiliana. et al. Síntese rápida para enfrentamento do sofrimento psíquico de


universitários. São Paulo: EEUSP, 2021.

GILL, Rosalind. Breaking the silence: the hidden injuries of the neoliberal academia. In:
Flood,R. & Gill,R. (Eds.) Secrecy and Silence in the Research Process: Feminist
Reflections. London: Routledge, 2009.

_____________. Beyond individualism: the psychosocial life of the neoliberal university. In:
Spooner, M. (Ed.), A Critical Guide to Higher Education & the Politics of Evidence.
Canada: Uni. Regina Press, 2017.

HAMANN, Trent. Neoliberalismo, governamentalidade e ética. Revista Ecopolítica, n. 3,


2012.

HAN, Clara. Life in Debt: Times of Care and Violence in Neoliberal Chile. Uni. of
California Press, 2012.

HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São
Paulo: Ed. 34, 2015.

18
87

KLEINMAN, A.; DAS, V.; LOCK. M. Introduction. In: KLEINMAN, A.; DAS, V.; LOCK.
Social Suffering. University of California Press. Berkeley, 1997.

ILLOUZ, Eva. The End of Love: A Sociology of Negative Relations. United Kingdom:
Polity, 2022.

INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO


TEIXEIRA (INEP). Sinopse Estatística da Educação Superior 2020. Brasília: Inep, 2022.
Disponível em: <https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estat
isticas-e-indicadores/censo-da-educacao-superior>. Acesso: 20 out. 2022.

LEÃO, T; IANNI, A; GOTO, C. Individualização e Sofrimento Psíquico na Universidade:


Entre a Clínica e a Empresa De Si. Revista Humanidades & Inovação, v. 6, n. 9, 2019a.

________. Sofrimento psíquico e a universidade em tempos de crise estrutural. Revista EM


PAUTA, Rio de Janeiro, v. 17, n. 14, 2019b.

LE BRETON, David. Antropologia da Dor. São Paulo: Editora FAP-UNIFESP, 2013.

LORDE, Audre. Irmã Outsider. São Paulo: Autêntica, 2019.

MACEDO, Renata M. Escolhas possíveis: narrativas de classe e gênero no ensino


superior privado. Tese (doutorado em Antropologia Social). Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2019.

MALUF, Sônia Weider. Gênero, Saúde e Aflição: Políticas Públicas, Ativismo e


Experiências Sociais In: MALUF; TORNQUIST (orgs.). Gênero, saúde e aflição. Santa
Catarina: Letras Contemporâneas, 2010.

MARTINS, Carlos Benedito. As origens pós-graduação nacional (1960-1980). Revista


Brasileira de Sociologia, v. 6, n. 13, 2018.

MCCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial.


Campinas: Ed. da Unicamp, 2010.

MORAES, Fernando T. Suicídio de doutorando da USP levanta questões sobre saúde mental
na pós. Folha de S. Paulo, São Paulo, 27 de out. de 2017. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2017/10/1930625-suicidio-de-doutorando-da-u
sp-levanta-questoes-sobre-saude-mental-na-pos.shtml>. Acesso em: 12 de set. de 2020.

MOREIRA, Antonio Flávio. A cultura da performatividade e a avaliação da Pós-Graduação


em Educação no Brasil. Educação em Revista, v. 25, n. 3, 2009.

PALHARES, Isabela.Suicídio de três estudantes nos últimos dois meses acende alerta na USP.
Folha de S. Paulo, São Paulo , 3 de jun. de 2021. Disponível:

19
88

<https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2021/06/suicidio-de-tres-estudantes-nos-ulti
mos-dois-meses-acende-alerta-na-usp.shtml/>. Acesso: 1 ago. de 2021.

PARREIRAS, Carolina. Vulnerabilidades, dilemas e dores: fragmentos de uma pesquisadora


das/nas violências. Cadernos de Campo, v. 27, n. 1, 2018.

PATRUS, R.; SHIGAKI, H. B.; DANTAS, D. C. Quem não conhece seu passado está
condenado a repeti-lo. Cadernos EBAPE.BR, v. 16, n. 4, 2018.

PIOTTO, Débora C. Estudantes das camadas populares na USP: encontros com a


desigualdade social. In: PIOTTO (Org.). Camadas populares e universidades públicas. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2014.

PIOTTO, Débora; Nogueira, Maria A. Inclusão vista por dentro: a experiência via Inclusp.
Educação, v. 36, 3, 2013.

PIVA, Felipe Paes. O sofrimento psíquico de graduandos da Faculdade de Filosofia, Letras e


Ciências Humanas (USP) durante a pandemia de covid-19: diálogos interseccionais sobre
condições precárias e vulnerabilidades. Anais do V Seminário Internacional Desfazendo
Gênero. Campina Grande: Realize Editora, 2021a.

___________. O adoecimento psíquico de Graduandos da Faculdade De Filosofia, Letras e


Ciências Humanas (USP): Diálogos interseccionais com a antropologia da saúde. VII RAMS
- Reunião de Antropologia de Mato Grosso do Sul, 2021, Campo Grande. Anais do Evento
VII RAMS, 2021b.

________. As intermediações entre o coletivo e o individual no sofrimento psíquico de


graduandos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (USP): diálogos
antropológicos com campos da saúde mental. Anais da ReACT-Reunião de Antropologia
da Ciência e Tecnologia, v. 5, n. 5, 2022a.

________. A racionalidade neoliberal como gestora e geradora do sofrimento psíquico


universitário: uma análise interseccional do sofrimento psíquico na Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (USP). 33ª Reunião Brasileira de Antropologia, 2022, Curitiba.
Anais da 33ª Reunião Brasileira de Antropologia, 2022b.

REIS, Ana Carolina et al. O desmantelamento da ciência brasileira no deliberado corte de


bolsas: aspectos políticos e consequências psicossociais para estudantes de pós-graduação.
Muiraquitã: Revista de Letras e Humanidades, v. 8, 2020.

RIMKE, Heidi. Introduction: Mental and Emotional Distress as a Social Justice Issue. Studies
in Social Justice, v. 10, n. 1, pp. 4-17, 2016.

SAGGESE; MARINI; LORENZO; SIMÕES; CANCELA (orgs). Marcadores sociais da


diferença: gênero, sexualidade, raça e classe em perspectiva antropológica. São Paulo:
Editora Terceiro Nome, 2018.

SERAFIM, Milena P. O processo de mercantilização das instituições de educação superior.


Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior, v. 16, n. 2, 2011.

20
89

SGUISSARDI, Valdemar. Produtivismo acadêmico. In: OLIVEIRA; DUARTE;


VIEIRA (org.). Dicionário de trabalho, profissão e condição docente. Belo Horizonte:
UFMG, 2010.

STOCK, Susan R.; LEVINE, Heidi. Common Mental Health Issues. New Directions for
Students Services, n. 156, pp. 9-18, 2016.

STRATHERN, Marilyn. "Melhorar a classificação" a avaliação no sistema universitário


britânico. Novos Estudos, n. 53, 1999.

UNEAFRO. Em Meio ao Racismo Institucional, Aluno Negro Tira a Própria Vida na USP.
UneAfro Brasil, São Paulo, 28 de mai. de 2021. Disponível
em: <https://uneafrobrasil.org/em-meio-ao-racismo-institucional-aluno-negro-tira-a-pr
opria-vida-na-usp/>. Acesso em: 15 de ago. de 2021.

VIEIRA, Bianka. USP tem 4 suicídios em 2 meses e cria escritório de saúde mental para
alunos. Folha de S. Paulo, São Paulo, 01 de ago. de 2018. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/08/usp-tem-4-suicidios-em-2-meses-e-c
ria-escritorio-de-saude-mental-para-alunos.shtml>. Acesso em: 12 de set. de 2020.

21
90

MATERNIDADE NAS ARTES VISUAIS: CONTRIBUIÇÕES DA PESQUISA


AUTOETNOGRÁFICA.

GABRIELA DA SILVA DEZIDÉRIO

Palavras-chave: Arte materna, Autoetnografia, Ciências Sociais

Introdução

Tomou forma nos últimos anos, e em especial na última década, no campo das
artes visuais no Brasil e no mundo, um panorama de produções artísticas voltadas para a
discussão da maternidade e suas condições. De caráter quase sempre ativista, em
constante diálogo com o debate sobre maternidade no ambiente acadêmico e com as
teorias feministas, essas artistas, com suas poéticas e obras trazem reflexões sobre
desigualdades e estereótipos de gênero, performance social e os atravessamentos que
recobrem o corpo da mulher em nossa sociedade.
Tais trabalhos recorrem na grande maioria das vezes a fragmentos autobiográficos
e adotam a perspectiva da pesquisa autoetnográfica na construção de suas narrativas,
agregando ao debate feminista e de gênero, e dialogando, por conseguinte, com o campo
das ciências sociais.
Este estudo pretende traçar um breve panorama do contexto das narrativas
maternas nas artes visuais brasileiras, nos últimos cinco anos, buscando destacar e
analisar os discursos que apresentam tais obras e artistas. Em paralelo, busca analisar as
contribuições da metodologia de pesquisa auto etnográfica para a construção desses
trabalhos, onde a subjetividade do indivíduo é o material central a ser esmiuçado e
compreendido. Propondo ainda, pensar a autoetnografia como uma das vias possíveis de
restauração de dinâmicas desarmônicas que operam em contextos específicos tais como
o mercado das artes ou campo acadêmico nos quais não raro, mulheres mães são
excluídas.
Para tanto, este estudo teve sua origem efetiva no parto. Primeiramente, nos dos
meus filhos. Pois embora não se volte à minha experiência particular de maternidade, foi
a partir da minha própria experiência que passei a observar atentamente contextos
protagonizados por mulheres mães que, assim como eu, reivindicam por espaço para
91

seguirem com suas trajetórias pessoais, e com isso, também construírem novas formas de
maternar.
A realidade é que os primeiros anos de vida de uma criança, inserem a mulher
num mundo à parte. E uma vez apartadas, dialogam com questões por vezes invisíveis
àqueles que não compartilham de suas experiências e percepções.
São muitos, os recortes possíveis para pensar a maternidade. E mesmo dentro de
contextos tão singulares, como os grupos voltados para a gestação, amamentação, parto,
dinâmicas de parentalidade, saúde e educação de filhos – dentre outros espaços destinados
às mulheres mães – é possível encontrar realidades tão diversas, em comunhão com o
conceito de interseccionalidade onde gênero, raça e classe, definem diferentes formas de
vivência, o que não será a fundo abordado neste estudo.
Introduzo este trabalho com tal apontamento, para frisar que o pressuposto aqui é
que as narrativas maternas que conseguem alcançar certa notoriedade no campo da arte,
partem das experiências de mulheres que, ao menos gozam, do privilégio de acesso a
esses espaços, e que por isso se inserem num determinado recorte social, que permite que
suas narrativas possam reverberar numa dimensão pública, e com isso alcançam certa
visibilidade. Ainda assim, quando se é mãe, nem sempre é fácil ocupar espaços na vida
pública - mesmo que nesses espaços, antes, pudéssemos nos ver de alguma forma
inseridas. Neste cenário, é possível que se configure um campo profícuo à análise da
própria condição que, para além da indignação frente ao panorama aqui brevemente
apresentado, vem sendo força motriz para uma produção artística e acadêmica por parte
de mulheres que nos últimos anos reconfigura o contexto da produção acadêmica: a
tomada da própria experiência enquanto objeto de estudo.
No entanto, estudos que priorizam perspectivas biográficas por vezes se deparam
com entraves metodológicos, e com descrença por parte do meio acadêmico. Em certas
áreas de estudo, o afastamento ainda é considerado condição para a produção de uma
análise científica séria. Afirma-se aí, a problemática em torno de estudos que têm como
objeto de análise a subjetividade.
No afã de dialogar com a questão metodológica previamente apontada, este estudo
propõe a autoetnografia como método a ser analisado, em perspectiva com as produções
artísticas em torno da maternidade e suas discussões. Mas, antes de aprofundar em tal
análise, considero importante apresentar ainda que de forma breve, o panorama da arte
materna no Brasil, e definir os contornos do recorte ao qual se debruça este estudo.
92

Arte Materna

De acordo com Marta Mencarini e Tatiana Reis em fala no curso sobre “Arte,
feminismos e maternagens” ministrado em 2022 pelo SESC São Caetano, as primeiras
manifestações artísticas que trouxeram a temática da maternidade com um viés crítico e
até mesmo político, se deram nos Estados Unidos em meados da década de 1970. O grupo
Mother Art trouxe através de obras nas linguagens da performance e instalação artística,
questionamentos frente à condição materna e à exclusão social de mães com filhos ainda
criança e de suas proles.
No Brasil, a artista Maria Maiolino cria em 1976, na série “Fotopoemação”, a obra
“Por um fio”, na qual se autorretrata ligada através de um fio à sua mãe e sua filha,
chamando assim a atenção para a questão da parentalidade. E, embora já em 1968, a
artista Lygia Clark possa ter de alguma forma apontado para a metáfora da maternidade,
em sua obra intitulada “A casa é o corpo”, foi principalmente no decorrer da última
década, a partir de 2010, que a temática da maternidade passa a compor um volume maior
de obras de arte, em leituras críticas, ganhando assim, contorno, corpo e espaço no campo
da arte contemporânea - na “voz” das próprias artistas mães, e não apenas enquanto objeto
a ser representado.
A crescente inserção de temáticas em torno da maternidade na arte, além de
demarcar o nível ascendente da inserção feminina no mercado artístico, aponta para uma
possível mudança quanto ao status de sua participação nesse contexto. O que sinaliza uma
possível legitimação das temáticas de interesse feminino, em detrimento das necessidades
de adequação aos assuntos já em voga no campo, dinâmica comum em outros momentos,
numa perspectiva historiográfica da inserção feminina no contexto das artes legitimadas
brasileiras. O que por sua vez, evidência certa maleabilidade do campo artístico brasileiro,
principalmente nos últimos anos, para questões identitárias.
No desejo de mapear, ainda que de forma breve, o contexto da arte materna no
Brasil da última década, a pandemia de Covid-19 também teve o seu papel enquanto
demarcador desta inserção de mulheres mães e da temática da maternidade no campo da
arte. Uma vez que, ao transportar para o ambiente virtual a socialização própria do meio,
a exemplo de reuniões, exposições e vernissagens, que antes ocorriam em ambientes
muitas das vezes hostis para crianças e mães com filhos ainda bebês, torna possível o
acesso antes inviável ou difícil.
93

A partir dos relatos de artistas mães na ocasião de um encontro remoto sobre arte
e maternidade, é possível afirmar que apesar das dificuldades em se preservar atividades
criativas e de interesse pessoal em meio a rotina de cuidados com os filhos, a pandemia
facilitou o acesso de mulheres mães a eventos de artes e editais de fomento - viabilizando
assim a realização e veiculação de inúmeros trabalhos. Isto pode configurar uma possível
causa para a ampliação das discussões em torno da temática da maternidade no campo da
arte contemporânea, desde então.
Embora os trabalhos em arte materna tratem principalmente de impressões
pessoais das artistas sobre as próprias experiências de maternidade, é possível encontrar
aspectos que alinhavam tais trabalhos. Considerando a maternidade enquanto experiência
corporal, a forma com que a arte materna imprime sua marca no campo artístico também
parte do corpo. Experiências performáticas, registros fotográficos ou em áudio visual,
paisagens sonoras, escritas descritivas, configuram narrativas que ampliam e evidenciam
desconfortos e conflitos que envolvem a realidade de quem materna.
Ainda que o pilar do desconforto materno esteja na condição social e política da
maternidade em nossa sociedade, em geral, não se pode dissociar tais questões dos
atravessamentos corporais de suas autoras. Mesmo quando a maternidade não se realiza
a partir de uma gestação, nas narrativas sobre aborto, ou nas outras múltiplas
possibilidades de maternar, a representação de tais experiências na arte contemporânea se
dá em geral a partir do corpo.
Das artistas que representam suas experiências de maternidade, e alcançam
determinado reconhecimento nos dias de hoje, a maioria já interagia de alguma forma
com o campo artístico antes mesmo de se tornarem mães, sendo elas artistas, estudantes,
professoras ou pesquisadoras das artes nas suas mais diversas linguagens. O que sugere
também um diálogo com os mundos acadêmico e político que, nos últimos anos, ajudaram
a constituir direitos de interesse para as mulheres.
As artistas que produzem arte materna são em geral feministas, e utilizam a arte
como expressão de suas militâncias – o que reforça a importâncias das teorias feministas
e de gênero nas suas narrativas. Vale destacar o caráter de denúncia e os questionamentos
que tecem frente aos estereótipos de gênero e papéis sociais associados às mulheres. O
que remete ao pensamento de Judith Butler:

“... o lema feminista que diz que “o pessoal é político” sugere, em


parte, que a experiência subjetiva não apenas é estruturada pela
94

existência de configurações políticas, mas afeta e estrutura tais


configurações. A teoria feminista tem procurado compreender como as
estruturas culturais e políticas sistêmicas ou invasivas são
implementadas e reproduzidas por atos e práticas individuais, bem
como de que maneira a análise de situações aparentemente pessoais
fica mais clara quando consideramos um contexto cultural
compartilhado mais amplo. Na verdade, o impulso feminista (e não
tenho dúvida de que há mais de um) muitas vezes partiu do
reconhecimento de que a minha dor, o meu silêncio, a minha raiva ou
a minha percepção não são, em última análise, só meus, e me colocam
em uma situação cultural compartilhada que me habilita e me autoriza
de certas formas inesperadas. O pessoal, assim, é implicitamente
político, no sentido de que está condicionado por estruturas sociais
compartilhadas. (Butler, 2018, p. 6)”

Este trecho da autora, presente em “Os atos performativos e a constituição do


gênero: um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista”, também reforça a
importância de uma perspectiva autoetnografia para pensar questões ligadas ao
feminismo, a exemplo das reflexões críticas em torno da experiência da maternidade, que
na grande maioria das vezes aponta problemáticas comuns, ao menos para segmentos de
mulheres específicos, como ocorre com as mães trabalhadoras, mães artistas, mães
cientistas, mães acadêmicas, mães que não trabalham, mães que abdicaram de suas
profissões, mães que compartilham uma realidade de maternidade solo, mães negras,
lésbicas, maternidades atípica, etc.

Autoetnografia

Tomando como referência a afirmação de que “o pessoal é político”, é possível


pensar que este “pessoal” também seja passível de análise sob uma perspectiva das
ciências sociais. Análise esta, que abarca a subjetividade em sua natureza singular e
imprevisível, onde a autoetnografia surge como uma alternativa metodológica cabível
para as pesquisas qualitativas, uma vez que se debruça nas “narrativas auto
interpretadoras” (Brilhante e Moreira, 2016, p. 4), e permite uma via de acesso oposta
95

ao distanciamento, mas que, no entanto, se apresenta mais afeita ao estranhamento, na


tentativa de ver-se enquanto outro.
Para Fabiane Gama, a autoetnografia “nega a separação entre racionalidades e
emoções, dados e análises, eu e o outro”, trata-se de “um conhecimento que vai contra a
“lógica iluminista, colonial e imperialista que desqualifica e reprime formas de
conhecimentos atreladas à experiência” (RAIMONDI apud GAMA, 2020, p.3). E
“trilha caminhos menos “seguros” que aqueles trilhados pelo conhecimento científico
que se propõe neutro, objetivo”.
A autoetnografia configura, portanto, uma dinâmica um tanto quanto mais
democrática, e decolonial - no sentido de busca por transcender a colonialidade que ainda
hoje cerceia corpos. E, conforme se volta para o que é experimentado socialmente sem
que ocorra o apagamento do sujeito (Gama, 2020, p. 4), alinha-se com os propósitos
feministas, de gênero e dos demais campos de estudos identitários.
No afã de falar de autoetnografia, escorrego no desejo por defini-la – Afinal, o
que é etnografia? – É uma pergunta com a qual tenho lidado nos últimos tempos. Ao que
me parece, a autoetnografia é um método avesso a definições precisas. E digo método e
não técnica, tomando ambos os termos em suas definições lexicais, sendo método
compreendido como um processo organizado, lógico e sistemático de pesquisa, e técnica
um conjunto de procedimentos. Assim, me pareceu mais correto, ao menos para este
estudo, apontar o que a autoetnografia trata e qual a natureza das questões com as quais
ela lida.
Para Gama, na autoetnografia o pesquisador “reflete sobre sua própria
experiência, ou a partir dela, para analisar questões da sociedade e/ou cultura à qual
pertence” (2022, p. 4). Em “Formas, fôrmas e fragmentos”, Brilhante e Moreira
relacionam a autoetnografia, com os questionamentos acerca do lugar social de onde
falamos e de qual escrita buscamos, e propõe pensar a autoetnografia como uma contação
de história que interliga a arte e a vida, tendo o corpo do pesquisador na linha de frente.
Para eles, a autoetnografia é uma pesquisa de cunho performático, pedagógico e político,
que abala as “profundas conexões entre os sistemas de validação e a valorização dos
modelos coloniais”. (2022, p. 1)
Estudar-se em perspectiva com a cultura e com o comportamento dos grupos com
o qual se identifica, tomando-se como sujeito/ objeto primeiro de análise, numa dinâmica
onde esses dois estados se fundem e se integram, propõe uma estrutura narrativa que, uma
vez partindo de vozes oprimidas, pode tornar-se um recurso, ainda que não o único, de
96

reparação dessas opressões. Especialmente se assim procedermos no campo acadêmico,


ainda tão impactado pelo positivismo, em vias de amenizar processos de exclusão há
muito perpetuados. O que se aplica também ao igualmente elitista e excludente, campo
da arte.
Neste estudo, vou dialogar com os campos acadêmico e da arte, e com os
paradigmas neles hoje operantes. Em especial, aqueles que são afetados pelas
particularidades da metodologia autoetnográfica. Sendo que, se por um lado, no contexto
acadêmico analisar-se enquanto sujeito/ objeto primeiro de estudo, pode ser uma
alternativa arriscada, por abalar o cânone da objetividade cientifica e do afastamento
ainda valorizado em determinadas vertentes das ciências, por outro, tomar-se como
temática da própria produção artística é um fenômeno recorrente nas artes – e ainda mais
nas artes contemporâneas.
Retomando a discussão conceitual sobre autoetnografia, numa tentativa de
sintetizar a reflexão proposta até então, para Barros e Motta:

“Autoetnografia representa a experiência pessoal no contexto das relações,


categorias sociais e práticas culturais, de forma que o método procura
revelar o conhecimento de dentro do fenômeno, demonstrando, assim,
aspectos da vida cultural que não podem ser acessados na pesquisa
convencional”. (Barros e Motta, 2015)

Artistas e Obras

Interessa para este estudo, o contexto das artistas emergentes: mulheres mães
ainda com crianças pequenas, que pleiteiam através de seus trabalhos sobre maternidade,
um espaço de legitimidade no campo das artes, e produzem em diálogo com as redes
sociais. Por se tratarem de mulheres com maior proximidade com as peripécias dos
primeiros anos da maternidade, lidando diretamente com a realidade de conciliar carreira
e cuidado com os filhos, em algumas ocasiões lidando também com o abandono paterno,
falta de políticas de apoio à maternidade, ausência de redes de solidariedade,
maternidades plurais e inúmeros julgamentos, dentre outras questões, que faz com que
suas narrativas apontem para problemáticas carentes de solução, e as tornam vulneráveis
em suas condições que clamam por reconhecimento e visibilidade.
97

Frente ao apagamento, ocasionado pela trivialidade do que é socialmente


instituído, cabe questionar sobre os desdobramentos sociopolíticos de decupar a realidade
individual cotidiana produzindo estranhamentos. E depois regurgitar essas experiências
de forma estetizada. Como fez Jocarla Gomes, mãe de gêmeas ainda na primeira infância,
no seu autorretrato de 2022: “pausa” (figura 1). A artista se expõe em pose reflexiva num
banheiro, possivelmente o de sua casa, olhando contemplativa para o alto, através de um
basculante. Uma pose que remete às composições imagéticas de um clássico
renascentista, com uma toalha na cabeça, e a nudez mais insinuada do que evidente. Uma
pose sob efeito de duplicação da sua imagem, o que sugere a saída de sua alma do corpo.
Enquanto ao seu lado, no chão, um aglomerado de roupas e, penduradas à altura de seu
ombro, um conjunto de calcinhas. Através desta paródia imagética, surge uma reflexão
sobre a situação muito comum na vida das mães de crianças dessa faixa etária: a
dificuldade em se ter momentos de pausa, silêncio e privacidade.

(Imagem extraída da página da própria artista na rede social Instagram.)


98

A artista mãe Leticia Bassit também retrata as problemáticas da maternidade a


partir das próprias experiências, ao expor uma sequência de fotos suas com seus dois
filhos, em lugares públicos como cinema, biblioteca, aeroporto, transporte público e o
balcão de um bar – sendo uma das crianças ainda em fase de lactação: “Aqui cabe uma
mãe?” (figuras 2, 3, 4 e 5). Mostra através de imagens, a problemática da inserção e
acolhimento de mulheres e crianças nos mais diversos espaços. Questiona sobre os
julgamentos que recaem sobre as mães com filhos ainda pequenos, e que insistem em
manter uma vida social como a de pessoas não mães.

(Imagens de autoria da fotógrafa Marcelle Cerutti e extraídas da página da própria


artista na rede social Instagram.)
99

Também a artista mãe Malu Teodoro, de codinome Maria Meteora denuncia, na


série “Você está morta” de 2021, a questão da violência intrafamiliar e da invisibilidade
do trabalho materno. A artista expõe a si e a sua filha ainda bebê, ambas nuas, com frases
que configuram violência verbal e psicológica, bordadas sobre imagens impressas
(Figuras 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13).

(Imagens extraídas da página da própria artista na rede social Instagram.)

Outros nomes compõem a cena materna no Brasil hoje, dentre elas: Priscilla Buhr,
Roberta Barros, Clarissa Borges, Maíra Freitas, Tatiana Reis, Marjô Mizumoto, Clarissa
100

Gonçalvez, Roberta Campos, Márcia Falcão, Mahyrah Alvez, Bruna Alcântara, Renata
Felinto, Evellin Costa... São algumas das artistas mães que elaboram suas narrativas a
partir da análise das próprias experiências com a maternidade.
Para além do legado estético das obras e da potência dos discursos, a arte materna
aponta para uma postura reflexiva frente à maternidade. A necessidade de compreender e
de alguma forma acomodar a própria experiência, se funde ao desejo de compreender e
transformar a sociedade no fenômeno ascendente que iremos chamar de maternidade
política.
Para tanto, o caráter coletivo que circunda essas mulheres artistas e suas
maternidades vai além da perspectiva comparada sobre as próprias experiências, e se
configura na organização de grupos de mães e coletivos de artistas que se sustentam em
dinâmicas de cooperatividade, promovendo eventos, estudos, registros e espaços que
ajudam a definir os contornos, divulgam e legitimam a arte materna. Neste panorama, a
internet, através das redes sociais, tem desempenhado um importante papel no movimento
de integração dessas artistas e da divulgação de seus trabalhos.

Conclusão – Autoetnografia e Arte Materna

Por se tratar de um método que acolhe a afetividade de quem pesquisa, e “revela


o conhecimento de dentro do fenômeno” (Barros e Motta, 2015), a autoetnografia, no
contexto específico do estudo da arte materna e das pesquisas em torno da maternidade,
agrega ao considerar relevante relatos e impressões que, em outros métodos, seriam
desconsiderados.

“Sendo um conhecimento criado através da narração (verbal, mas


também através de outros meios), é uma forma de produzir conhecimento que
se engaja profundamente com práticas representacionais e éticas: o uso da
metáfora, de textos confusos, da escrita experimental, as formas poéticas e a
ruptura do tempo linear são alguns dos dispositivos que caracterizam
trabalhos autoetnográficos contemporâneos (Grant, 2014). Ao desafiarem as
normas e fronteiras representacionais e experimentar com as formas,
estruturas e conteúdo, trabalhos autoetnográficos investem na expressão das
emoções como uma forma de abordagem cultural e apresentam como autoras
pessoas encarnadas. Dessa forma, eles ampliam o que se pode dizer sobre
101

determinados assuntos, pessoas e instituições, e até mesmo sobre a disciplina


antropológica.” (GAMA, 2020, p. 5)

Sendo assim, a afetividade presente na experiência da maternidade, tem sido o


modus operandi tanto nas artes, quanto nos estudos acadêmicos sobre maternidade. A
análise de fragmentos autobiográficos sustentam a construção narrativa das artistas
maternas em suas obras e, ainda que nem sempre ocorra uma relação direta dessas artistas
com o contexto das pesquisas acadêmicas, é possível traçar um paralelo entre as obras
visuais, sonoras, literário-ficcionais ou literário-científicas, que tenham como ponto de
partida a maternidade com o exercício da metodologia autoetnográfica, em seu
movimento de correlacionar a experiência particular ao fenômeno coletivo. O que reforça
mais uma vez, o quanto os campos das artes e das ciências sociais interagem e são
próximos, e a influência que exercem em discussões do cotidiano.
Em síntese, a subjetividade dos afetos e da experiência individual tem o seu valor
enquanto material de análise, quando o que se almeja compreender é a sociedade e os
indivíduos que a compõem.

Bibliografia

BRILHANTE, Aline Veras Morais e MOREIRA, Cláudio. Formas, fôrmas e


fragmentos: uma exploração performática e autoetnográfica das lacunas, quebras e
rachaduras na produção de conhecimento acadêmico. In: Interface (Botucatu)
[online]. vol.20, 2016, n.59, pp.1099-1113.

BUTLER, Judith. Os atos performativos e a constituição do gênero: um ensaio sobre


fenomenologia e teoria feminista. Tradução: Jamile Pinheiro Dias. Chão de feira:
caderno de leituras n. 78, 2018.
______________. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade.
Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

GAMA, Fabiene. A autoetnografia como método criativo: experimentações com a


esclerose múltipla. In: Anuário Antropológico. v.45 n.2 | 2020 - 2020/v.45 n.2.
102

______________. Etnografias, autorrepresentações, discursos e imagens: somando


representações. In: GONÇALVES, Marco Antônio; HEAD, Scott (Orgs.). Devires
imagéticos: representações/apresentações de si e do outro. Rio de Janeiro: 7letras, 2009.

OLINTO, Heidrun Krieger. Arte etnográfica. Légua & meia: Revista de literatura e
diversidade cultural. Feira de Santana: UEFS, v. 4, no 3, 2005, p. 274-275.

RAIMONDI, Gustavo. Corpos que (não) importam na prática médica: uma


autoetnografia performática sobre o corpo gay na escola médica. Tese (Doutorado
em Saúde Coletiva) – Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 2019.

VERSIANI, Daniela G.C.B. 2005. Autoetnografias: conceitos alternativos em


construção. Rio de Janeiro: 7Letras,2005.
103

Fenomenologia carnal:
A corporeidade como um paradigma para antropologia

Autor: Pedro Paulo Valerio Vaz


Orientador: Sergio Baptista da Silva

RESUMO

Este texto buscará expor e problematizar alguns pontos da teoria do antropólogo


Thomas Csordas (2008), apresentados no texto “A corporeidade como um paradigma
para a antropologia” (2008). Em vez de resumir o texto do Csordas, em um exercício de
um sobrevoo geral sobre seus argumentos, a proposta é apresentar o aprofundamento de
alguns dos assuntos, ou seja, será feita uma análise mirada em alguns dos argumentos
do antropólogo, principalmente os ligados à escola filosófica da fenomenologia e, mais
especificamente, à teoria do filósofo Maurice Merleau-Ponty (2000) expostas no livro
“A natureza: Curso do Collège de France” (2000). Resumidamente, a intenção desta
resenha é expor pontos de contato entre a fenomenologia de Merleau-Ponty e o discurso
de Csordas, mostrando alguns pressupostos que ambos assumem junto a uma
problematização dos pontos considerados mais importantes.

Palavra-chaves: corporeidade. fenomenologia. percepção.


104

Introdução

Nos últimos anos, dentro das ciências sociais, o tema corpo está sofrendo um
“autêntico boom” (VALE DE ALMEIDA, 2004, p. 2). Nas últimas décadas, foram
muitos os cientistas sociais1, tanto antropólogos como sociólogos e mesmo filósofos,
que privilegiaram a compreensão do corpo em suas pesquisas. Como Miguel Vale de
Almeida (2004) explica, entre as correntes teóricas que buscam compreender a noção de
corpo estão, por exemplo: os pesquisadores que privilegiam uma teoria prática, outros
que buscam se ancorar nas premissas da fenomenologia, outros ligados à crítica
artística, também existem outros que se baseiam nos estudos de ciência, alguns outros
próximos do conceito de “biopolitíca”, entre muitos outros enquadramentos teóricos
(VALE DE ALMEIDA, 2004). Este texto buscará principalmente expor e problematizar
alguns pontos da teoria do antropólogo Thomas Csordas (2008), apresentados no texto
“A corporeidade como um paradigma para a antropologia” (2008).
Para alcançar o objetivo proposto, em um primeiro momento do texto será
apresentada, em uma pequena introdução, os argumentos do pesquisador David Le
Breton (2011), que foi um dos responsáveis por delimitar o papel do corpo nos
primordios da civilização moderna. Já em um segundo momento do texto, será exposto
alguns dos pressupostos teóricos da fenomenologia carnal de Merleau-Ponty (2000),
com o auxílio do filósofo Graham Harman (2005)2, para que então, em um terceiro
momento, seja apresentada a proposta da corporeidade do antropólogo Csordas (2008).
Neste terceiro momento, serão articulados seus principais argumentos relacionados a
alguns pressupostos primários da fenomenologia de Merleau-Ponty (2000).

O nascimento do corpo moderno

Entre os pesquisadores que iniciaram os estudos sobre o corpo nas ciências


sociais se encontra David Le Breton (2011), que, com sua obra “Antropologia do corpo
e modernidade” (2011), problematizou principalmente o nascimento da noção de corpo
nos primórdios da modernidade enquanto “resto” (LE BRETON, 2011, p. 96) e as
consequências dessa nova invenção em uma pesquisa baseada em profunda literatura

1
Entre eles podemos citar; Thomas Csordas (1990), Aparecida Vilaça (1993), María Puig de La Bellacasa
(2011), entre outros.
2
Graham Harman tornou-se um filósofo conhecido na década passada, ao colaborar com a criação da
escola filosófica “realismo especulativo”, com sua teoria orientada aos objetos.
105

histórica sobre o tema. Para Le Breton o corpo enquanto uma “realidade autônoma” (LE
BRETON, 2011, p. 72) surgiu em meados do segundo milênio da história ocidental,
quando, principalmente, através dos estudos de anatomistas ele foi finalmente tocado e
pesquisado (LE BRETON, 2011).
Como David Le Breton escreveu na última frase do capítulo “As fontes de uma
representação moderna do corpo”, “o corpo nada mais é do que apenas um resto” (LE
BRETON, 2011, p. 96) na modernidade. E durante todo o artigo o autor fornece os
argumentos que levaram o corpo receber tal “depreciação” (LE BRETON, 2011, p. 95),
que ocorreu junto à tomada de “consciência do indivíduo” (LE BRETON, 2011, p. 95)
moderno, e também junto sobretudo as inovações das ciências, econômica, política e
médica (LE BRETON, 2011, p. 60-72). E, como o pesquisador também afirma, esse
movimento está ligado diretamente ao nascimento do “homem3 da modernidade” (LE
BRETON, 2011, p. 89), que surge ligado a três principais pontos: o primeiro enquanto o
humano “cindido de si mesmo” (LE BRETON, 2011, p. 89); o segundo sobre o humano
cindido dos outros humanos; e o terceiro enquanto o humano cindido do cosmos. E,
como o antropólogo continua a expor em seu texto, o corpo moderno é exatamente o
“resíduo” (LE BRETON, 2011, p. 89) desses três movimentos. Em suma, ele é o
“indício” (LE BRETON, 2011, p. 73), ou seja, é uma espécie de sintoma desses três
rompimentos impostos pelo nascimento da civilização moderna e de sua epistemologia
e ontologia específicas.
Para entender o que Le Breton denomina enquanto o nascimento do corpo, que
ocorre junto ao nascimento da modernidade, inicialmente é preciso entender o que o
autor chama de sociedades “tradicionais” (LE BRETON, 2011, p. 44), as sociedades
pré-modernas, ou seja, as que existiram antes da moderna, como as medievais e as
renascentistas (LE BRETON, 2011, p. 43). Como Le Breton expõe, nas sociedades pré-
modernas o que existe são sociedades “holistas” (LE BRETON, 2011, p. 44), nas quais
o humano e o mundo são feitos da mesma “substância” (LE BRETON, 2011, p. 44), ou
seja, onde existe ainda uma “correspondência” (LE BRETON, 2011, p. 95) entre a carne
do humano e a carne do mundo, e assim ambos vivem em uma relação de identidade,
em uma espécie de perfeição total e única.
O termo holística é pensado por Le Breton através de outro pesquisador, Louis
Dumont (1983), que pensa as sociedades tradicionais enquanto civilizações nas quais
3
O antropólogo utiliza a palavra “homem” para se referir aos humanos, porém durante este texto
usaremos a palavra “humano”, devido à problematizações sobre o tema que foram feitas pela antropologia
após a escrita do texto de Le Breton.
106

reina uma espécie de totalidade social em que os indivíduos são radicalmente


subordinados e, não têm autonomia alguma, pois vivem como imersos na unidade social
em uma relação de total dependência (LE BRETON, 2011, p. 44). No mesmo sentido do
parágrafo anterior, Le Breton dá o nome de “antropologia cósmica” (LE BRETON,
2011, p. 43) para o referido momento antes da modernidade, quando o humano ainda
não estava separado de todo o mundo, de todo o cosmos, de todo o outro, sejam os
outros não humanos ou mesmo os outros humanos.
Essa exposição de Le Breton do momento anterior à modernidade, das
sociedades tradicionais enquanto sociedades isoladas em um passado distante do qual a
modernidade se diferencia, do qual as sociedades modernas se separam, é um
argumento que coloca o antropólogo enquanto um autor moderno, no sentido de Bruno
Latour (2013). Ou seja, o autor se encaixa perfeitamente na leitura de Latour realizada
na obra Jamais fomos modernos (1994), pois, como o filósofo diz, a modernidade tem
vários significados possíveis, porém um ponto comum reúne todos esses significados,
pois sempre a modernidade é pensada enquanto “um novo regime, uma aceleração, uma
ruptura, uma revolução” (LATOUR, 20013, p. 15) que sempre acontece baseada em um
passado sobretudo “estável” (LATOUR, 2013, p. 15). Então, nesse sentido, podemos
colocar o antropólogo Le Breton como um clássico moderno.
Como os argumentos exposto acima indicam, para Le Breton a modernidade
nasceu junto a um movimento de depreciação do corpo. Isso por que junto ao
nascimento do indivíduo moderno ocorreu também o movimento de deslocamento do
corpo para o segundo plano, quando o corpo foi estabilizado enquanto “resto” (LE
BRETON, 2011, p. 96). Nas próximas páginas desse texto serão agora apresentados
argumentos de outros autores posteriores a Le Breton, que foram articulados para retirar
o corpo do segundo plano e dar lhe o papel de protagonista dentro das ciências
humanas. E para dar início a esse movimento serão apresentados alguns argumentos de
Merleau Ponty (2000), para que logo em seguida o paradigma da corporeidade de
Thomas Csordas (2008) seja exposto e problematizado.

Fenomenologia carnal

Como Graham Harman explica (2005, p. 53), a fenomenologia carnal de


Merleau-Ponty (2000) parte do pressuposto de que ter um corpo implica em posicionar-
se menos diante das coisas, e estar mais imerso ou costurado às coisas, ao mundo.
107

Sendo assim, a fenomenologia carnal de Merleau-Ponty apresenta ao leitor a estranha


sensação de se estar no mundo imerso entre as “voluptuous textures” (HARMAN,
2005, p. 3) dos objetos que o circulam, em uma imersão na qual a razão da mente não
realiza a comunicação com as coisas que existem, mas a percepção do corpo é a
primeira comunicação com tudo o que existe para além do humano, e também com os
outros humanos. Como Merleau-Ponty resume, “não é o olho que vê, e também não é a
alma. É sim o corpo que vê” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 351). Se nos argumento
apresentados acima de Le Breton é sobretudo a “alma” do sujeito moderno, já separada
do corpo que conhece, que é protagonista, na fenomenologia de Merleau-Ponty ocorre
uma inversão onde o corpo é alçado ao papel de destaque.
Nesse sentido, a fenomenologia de Merleau-Ponty começa antes da razão, antes
do mundo objetivo, pois se inicia na percepção, anterior ao pensamento, e que logo se
encontra no mundo pré-objetivo (MERLEAU-PONTY, 2000). A posição pré-objetiva de
Merleau-Pounty, refere-se mais exatamente ao momento da percepção humana, que
ocorre antes da separação entre o objeto e o sujeito. Em suma, a fenomenologia joga o
leitor em um ambiente anterior aos pensamentos sobre o mundo, pois é uma filosofia da
imersão do corpo no mundo (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 337).
Dessa forma, é interessante que o leitor tenha em mente a experiência fundadora
da possibilidade de uma filosofia fenomenológica, que é exatamente a experiência que
cria uma abertura para o pré-objetivo possível. Como Graham Harman explica (2005, p.
10), a fenomenologia parte de uma primeira regra, que proíbe a utilização de qualquer
teoria exterior à experiência para explicar o mundo, pois primeiramente é preciso
descrever a própria experiência de estar no mundo, enquanto um corpo em meio a
outros corpos.
Explicando de outra forma, os sujeitos modernos acostumaram-se a conhecer o
mundo com as ciências naturais sobretudo e, logo, pensam em alcançar a compreensão
do mundo quando veem toda a experiência da razão diante do planeta reduzida “set of
atoms and chemical and genetic codes” (HARMAN, 2005, p. 10). Isto é, para a
fenomenologia de Merleau-Ponty pensar o mundo através da teoria científica
materialista clássica é um erro de método, pois primeiramente o humano deve suspender
tudo o que sabe e permitir que a experiência do corpo imerso no mundo o guie para
atravessar o caminho do conhecimento. Então, a fenomenologia, inicialmente, é como
um método de conhecimento que impede logo em seu primeiro passo o uso de qualquer
108

teoria de mundo apreendida anteriormente, pois impõe um passo para trás, um passo em
direção ao encontro espontâneo do corpo humano com o mundo.
Nesse sentido, a fenomenologia convida o leitor para um mergulho no mundo
através da percepção do corpo humano, que é colocado como instrumento protagonista
para o conhecimento das coisas e, logo, a fenomenologia de Merleau-Ponty não
convida para uma reflexão da mente sobre o mundo, pois antes de conhecê-lo com sua
mente, o humano percebe o mundo com seu corpo, ou então, antes de encontrar um
mundo objetivo, o humano encontra o pré-objetivo. E, como Merleau-Ponty estabelece,
esse movimento de suspensão da razão para encontro direto com a experiência coloca o
corpo no centro da questão, pois é justamente ele que percebe, que realiza contato com
o mundo, pois o corpo é a “abertura” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 351) para o
mundo, é o que nos coloca no mundo, o que nos situa no mundo.
No entanto é importante notar que o corpo de Merleau-Ponty não é o
material/inerte das ciências naturais, ou seja, não é mais um objeto entre os outros
objetos do mundo, mas um corpo sensível a todos os outros corpos e que, assim,
funciona enquanto uma “universal traslation tool” (HARMAN, 2005, p. 49) em relação
às coisas do mundo. Ou seja, antes de ser mais um objeto passivo entre todos os corpos
possíveis, todos objetos passivos, o que é o mundo proposto pelo movimento de
objetificação das ciências naturais, o corpo fenomenológico é o sujeito ativo que
permite a relação com o mundo, ou seja, o corpo é o meio de comunicação com tudo o
que existe. De novo aqui estamos diante de uma inversão do corpo exposto por Le
Breton, pois ao invés de passivo, depreciado, o corpo é ativo, é valorizado na
fenomenologia carnal..
Dessa forma, para a fenomenologia de Merleau-Ponty o corpo humano conhece
o mundo em um primeiro momento. Logo, o corpo para a fenomenologia carnal é mais
um “quem” do que um “que”, é mais aquele que conhece do que aquilo que é
conhecido, e assim, todos os humanos conhecem o mundo através de um mesmo corpo,
ou seja, ser humano é ter um corpo humano antes de ter um pensamento humano
(MERLEAU-PONTY, 2000, p. 336).
Nesse sentido, se o corpo é um tradutor, é porque ele é aquilo que encontra o
mundo e que precisa enfrentar, o ler, o compreender, o pensar. Em suma, a
fenomenologia afirma que a humanidade não é a razão, ou seja, o humano não é
definido enquanto o único ser que pensa, mas o humano é “outra maneira de ser corpo”
109

(MERLEAU-PONTY, 2000, p. 336), ou seja, o humano é um humano sobretudo por seu


corpo, o ser humano “é uma outra corporeidade” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 336).
Logo, a fenomenologia carnal impede que o conhecimento seja um movimento
de voo da consciência sobre o próprio corpo e sobre o mundo, que então passa a ter uma
visão total e distante das coisas, uma espécie de visão de “lugar nenhum”, pois o corpo
sempre está “interposto entre o que está diante de mim, e o que está atrás de mim”
(MERLEAU-PONTY, 2000, p. 338). Então o corpo se torna um obstáculo
intransponível para que possa conhecer o mundo, pois conhecer o mundo é passar pelo
corpo, é ser o corpo. Logo, o primeiro passo para se compreender o humano é
compreender sua “maneira de ser corpo” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 345).
Após essa breve introdução de alguns pressupostos da fenomenologia carnal,
será discutida a teoria do antropólogo Csordas, que busca aproximar esses pressupostos
da fenomenologia carnal em direção à antropologia, para que assim seja possível a
criação de um novo paradigma antropológico, que possibilite que o corpo seja alçado ao
papel de protagonismo nas pesquisas dos antropólogos.

A antropologia carnal proposta por Csordas

No texto “A corporeidade como um paradigma para antropologia” (2008), o


antropólogo Thomas Csordas expõe que sua teoria, fortemente inspirada na
fenomenologia de Merleau-Ponty, busca abrir caminho para o “colapso da dualidade
entre corpo e mente, sujeito e objeto” (CSORDAS, 2008, p. 104) nos estudos
antropológicos. Ou seja, a teoria apresentada pelo autor propõe que não se parta da
diferença entre a natureza de um lado e a cultura do outro. Nesse sentido, a teoria de
Csordas se coloca ao lado de outras, contemporâneas da antropologia, como de Eduardo
Kohn (2013), Eduardo Viveiros de Castro (2001), Anna Tsing (2010) e Tim Ingold
(2010), que também buscam desmoronar a famosa dualidade moderna entre natureza e
cultura.
E, para realizar esse movimento, segundo o antropólogo Csordas (2008, p. 102),
é preciso pensar o corpo humano enquanto sujeito e não enquanto objeto, pois é o
corpo humano que, em seu movimento, percebe o mundo a seu redor. O antropólogo,
em seus argumentos, expõe que o corpo enquanto sujeito começa seu movimento em
um mundo ainda “pré-objetivo” (CSORDAS, 2008, p. 103), em um momento no qual o
corpo humano ainda está misturado com outros corpos humanos e não está separado do
110

mundo como um todo. Nesse sentido, não é a razão, mas o corpo humano que percebe e
conhece o mundo em seu movimento. Então, a objetificação do próprio corpo, e
também dos outros, é um resultado secundário da reflexão (CSORDAS, 2008, p. 142).
Como Harman explica de modo curioso (2005, p. 49), o corpo, para a
fenomenologia de Merleau-Ponty, é o trauma original humano, no sentido psicanalítico
de algo impossível de se superar e que sempre funcionará como o limite do
conhecimento do mundo para aquele que está encarnado em alguma pele em
movimento. Nesse sentido, sempre se conhece situado no corpo, fixado no corpo, preso
no corpo, e o movimento de transcendê-lo para realizar o conhecimento é impossível.
Esse movimento proposto pela fenomenologia de Merleau-Ponty contradiz a ideia da
construção de conhecimento como um olho de Sirius, aquele que tudo vê e que está
acima de tudo, pois a fenomenologia carnal impõe que se enxerga até o limite de seu
próprio corpo, e logo nunca se vê tudo. Então, o conhecimento é possível até um certo
limite e nunca se conhece todo o mundo (HARMAN, 2005, p. 3).
Logo, o humano primeiro encontra o mundo com seu corpo, e seu corpo também
é o limite de sua possibilidade de encontrar o mundo, ou seja, só se percebe o mundo
em um corpo e, assim, o corpo é principal instrumento de conhecimento de tudo e todos
que existem. A fenomenologia apresenta o corpo como entrada e limite do mundo.
Nesse sentido, também Csordas busca dar um passo antes da objetificação em direção à
um mundo onde ainda não exista nenhum objeto anterior, exterior e fixo, pois sua ideia
principal é focar a atenção da antropologia justamente no processo de objetificação.
Como o antropólogo explica no começo de seu artigo, para implodir a dicotomia
natureza/cultura é preciso um novo paradigma, uma nova “perspectiva metodológica”
(CSORDAS, 2008, p. 101), fundamentada e sólida, que permita repensar os dados
antropológicos, para que assim seja possível propor, enquanto consequência, novas
questões para os estudos empíricos da antropologia. Ou seja, a pesquisa de Csordas, ao
contrário da fenomenologia apresentada na segunda parte do presente texto, pensa em
problematizar principalmente os dados obtidos pelo trabalho etnográfico dos
antropólogos e no texto “A corporeidade como um paradigma para a antropologia”
(2008) esse movimento será feito através da exposição de diferentes rituais religiosos.
Mais à frente, um desses rituais será explicado com detalhes.
De acordo com Csordas, o novo paradigma deverá ser orientado sobretudo pelos
passos metodológicos da fenomenologia de Merleau-Ponty, pois foi o filósofo que,
através da problematização da percepção, introduziu o “princípio metodológico”
111

(CSORDAS, 2008, p. 105) da corporeidade, que permite o abandono da dualidade


mente e corpo. Isso porque, segundo Csordas, a corporeidade expõe que a própria
consciência é o corpo, ou melhor, que a consciência é o corpo em movimento, pois “a
consciência é o corpo se projetando no mundo” (CSORDAS, 2008, p. 105). Como foi
apresentado na segunda parte deste texto, nesse ponto o movimento do corpo é
considerado enquanto consciência, ou seja, é através do movimento do corpo que se
conhece, que se traduz o mundo. Nesse sentido, o movimento do antropólogo é trazer os
pressupostos da fenomenologia para seu trabalho, porém esses pressupostos servirão
sobretudo enquanto instrumento para as pesquisas antropológicas avançarem por novos
caminhos. E podemos ver como nesses argumentos o antropólogo se mostra distante do
corpo exposto por Le Breton, pois Csordas abandona a dualidade corpo e mente, ao
contrário de Le Breton que eleva essa dualidade a própria condição da manifestação do
corpo na modernidade.
Para compreender o paradigma da corporeidade de Csordas e a noção do corpo
enquanto um fenômeno cultura, que está aberto a transformações culturais, o
antropólogo utiliza um belo exemplo do pesquisador Maurice Leenhardt. (1947). Como
Csordas descreve, o antropólogo Leenhardt, enquanto fazia seu trabalho de campo, em
certo momento, perguntou para um xamã se o que os europeus inseriram nos modos de
pensar dos indígenas seria a noção de “alma”. Porém, de forma surpreendente, o xamã
revela que ele, e também seu povo, conheciam a noção de espírito e que o os europeus
tinham trazido de novo era a noção de corpo (CSORDAS, 1994, p. 6). Ou seja, essa
pequena anedota aponta que a noção de “corpo” foi encarada pelos indígenas enquanto
uma novidade e não a noção de “alma”.
Diante dessa anedota de campo de Leenhardt, segundo Csordas, é possível
concluir que a visão indígena diz que não foi e que não é sempre que os seres humanos
vivem em corpos objetivados, pois nem sempre o corpo conhecido pelas ciências
modernas, enquanto anterior, exterior e fixo, existiu. Sendo assim, para os indígenas, as
pessoas não são individualizadas, mas sim vivem em um mundo “sociomythic”
(CSORDAS, 1994, p. 7) no qual o corpo humano está misturado com os outros corpos
humanos e inclusive misturado com o mundo em geral. Ou seja, o exemplo propõe que
o corpo objetificado, tal qual as ciências naturais modernas conhecem, é algo específico
de nossa civilização, e justamente por isso, a objetificação é sempre um processo, pois o
mundo objetivo pode apenas existir como resultado de um processo, para ser mais
exato, enquanto o processo de conhecimento das ciências modernas.
112

Logo em seguida em seu texto, Csordas apresenta outro argumento ancorado


diretamente na fenomenologia, que diz: “longe de ser constante, a percepção é
indeterminada por natureza” (CSORDAS, 2008, p. 106). Isso por que existe sempre
algo além do que a percepção alcança, ou seja, “há sempre mais do que chega aos
olhos” (CSORDAS, 2008, p. 106), e assim, a realidade e o mundo, seguem sempre com
parte fora percepção humana, pois nunca é totalmente traduzível. Nesse sentido, a
antropologia carnal proposta por Csordas interdita a possibilidade de se conhecer a
realidade por completo, pois ela se encontra sempre além do conhecimento humano, ou
seja, a realidade não é transparente, mas sempre opaca, turva. Todo esse argumento do
autor está fundamentado na afirmação metafísica central da fenomenologia de que
“objects always lie beyond any possibility of total presence” (HARMAN, 2005, p. 3)”.
Como Csordas apresenta ainda no sentido exposto acima, perceber a
realidade/ou mundo é em suma perceber sua “riqueza e indeterminação” (CSORDAS,
2008, p. 106). E, nesse sentido, o antropólogo continua a explicar sua teoria, pois o
começo do movimento de conhecimento não se dá sobre “objetos anteriores à
percepção” (CSORDAS, 2008, p. 106), pois não existe esse objeto transparente e total
no começo do estar no mundo. Então, para Csordas, é preciso um trajeto para que objeto
seja percebido enquanto fora do corpo, ou seja, é preciso um percorrer um caminho para
que o objeto apareça enquanto pertencendo ao “mundo objetivo” (CSORDAS, 2008, p.
106). Isso por que o objeto enquanto anterior, exterior e fixo não é o começo da
experiência. Em suma, para Corsdas o corpo está no mundo e não diante do mundo em
um primeiro momento.
Logo, o que Csordas faz com sua teoria é retirar a percepção dos objetos já
exteriorizados do protagonismo e colocar o processo de objetificação enquanto
movimento principal de construção do conhecimento. Um argumento interessante e
curioso é dado por Csordas para afirmar a não necessária existência do corpo enquanto
anterior, exterior à mente humana, pois, segundo o antropólogo, em vários momentos da
experiência humana, é possível esquecer-se do próprio corpo, ou seja, é possível
perceber o mundo sem a experiência de ter um corpo cindido do resto do mundo. Isso
acontece quando, por exemplo, alguma pessoa fala por horas e, durante seu discurso,
esquece do próprio corpo ou mesmo sente seu corpo como se estivesse desaparecendo.
(CSORDAS, 1994, p. 8). Após essa breve introdução dos pressupostos assumidos por
Csordas, a seguir, será apresentado seu exemplo etnográfico.
113

E é principalmente o exemplo religioso trazido do trabalho de campo por


Csordas que mostra o potencial de um novo paradigma da corporeidade. E esse exemplo
vem de sua pesquisa realizada nas religiões pentecostais. É válido seguir os argumentos
do antropólogo. Ao descrever as práticas do cristianismo carismático da América do
Norte com relação ao exorcismo, ou seja, a prática de expulsão dos espíritos malignos
dos corpos dos fiéis, o antropólogo percebe um problema teórico (CSORDAS, 2008, p.
113). Para Csordas, a antropologia de modo hegemônico tem pensando o espírito de um
certo modo, porém a fenomenologia pode cooperar para a alteração desse modo.
Como o antropólogo expõe, de modo hegemônico, e sem levar em conta a
fenomenologia carnal, o processo de exorcismo começa a ser pensado pela antropologia
já como o espírito definido enquanto um “objeto constituído” (CSORDAS, 2008, p.
113), que é sobretudo imaterial. E exatamente por ter a característica imaterial nessa
versão hegemônica, o espírito tem o poder de transpor os limites do corpo de um
humano, ou seja, pode tanto fazer o caminho de dentro para fora do corpo de alguém, o
que seria uma espécie de incorporação, quanto de fora para dentro, o que seria uma
espécie de expulsão, excorporação. Ou seja, nesse sentido, o espírito é algo com seus
limites bem definidos, e o corpo também, por isso pode-se pensar em uma diferença de
“interioridade/exterioridade” (CSORDAS, 2008, p. 113) entre eles.
Com o novo paradigma da corporeidade, não se tem algum objeto como aquele
visto pelo sujeito que expulsa o demônio de dentro do sujeito endemoniado, que no caso
seria o objeto/demônio, diante do corpo com a possibilidade de entrar ou de sair dele,
mas existe o objeto/demônio, percebido pela pessoa que se comunica com ele
diretamente, que é o endemoniado, que não percebe o demônio “dentro de si”, mas sim
como uma espécie de “excesso” (CSORDAS, 2008, p. 116), um transbordamento.
Como Csordas explica, do ponto de vista de quem esta em contato direto com o
demônio se tem a percepção de um “pensamento, comportamento ou emoção”
(CSORDAS, 2008, p. 116) fora de controle. Nem exatamente externo nem exatamente
interno, mas uma espécie de desequilíbrio, de inconstância, de variação, é
experimentado por aquele que encontra o espírito diretamente. Nesse sentido, o
paradigma da corporeidade abre espaço para um corpo ainda dissolvido no mundo e
sem a percepção exata de uma parte dentro de si e de outra fora de si.
Então o antropólogo continua sua explicação e, se no exemplo do espírito já
objetificado no mundo os demônios são “objetos culturais” (CSORDAS, 2008, p. 115),
no segundo exemplo, o do ponto de vista pré-objetivo, o espírito e é algo “espontâneo e
114

sem conteúdo pré-ordenado” (CSORDAS, 2008, p. 115). Ou seja, a fenomenologia abre


espaço para se pensar em uma posição anterior à instituição do que é dentro do corpo e
fora do corpo. E no campo pré-objetivo o espírito é mais uma “transgressão ou
ultrapassagem” (CSORDAS, 2008, p. 116), um excesso, uma agitação de frequências
diferentes, que faz a estrutura da percepção humana tremer e trocar de frequência, o que
gera como consequência a percepção da presença de algo espontâneo e indeterminado.
Em suma, os espíritos percebidos pelas pessoas “possuídas” não é percebido enquanto
algo de fora que invade a interioridade e também não é anulado quando expulso de
dentro pra fora.
É exatamente nesse sentido que a filosofia é aplicada por Csordas, pois ela é
instrumentalizada pelo pesquisador para repensar os dados empíricos através do
trabalho de campo dos antropólogos, pois o exemplo dos demônios mostra como eles
podem ser vistos enquanto objetos ou como também pode pensar no processo de
percepção de cada pessoa diante dos espíritos, antes ainda da objetificação. E é no final
do artigo que Csordas propõe seu argumento mais curioso, pois, para o antropólogo, se
é possível pensar em uma abordagem corporificada do espírito, através daquele que o
percebe, também seria possível pensar em uma “abordagem corporificada da
linguagem” (CSORDAS, 2008, p. 126). O movimento proposto por Csordas é a
transformação da linguagem, aquilo que define o humano desde Aristóteles como a
característica humana “imaterial” mais importante, em algo também corporificado.
Para explicar seu pensamento, inicialmente Csordas expõe, em uma
interpretação semiótica, que é hegemônica em seu tempo, como compreende a
glossolalia. A forma como o antropólogo expõe a glossolalia para a semiótica pode ser
vista enquanto algo que “rompe o mundo de significado humano” (CSORDAS, 2008, p.
128), pois ela funcionaria enquanto uma linguagem estranha o bastante para dissolver as
estruturas das linguagens ordinárias hegemônicas, como as línguas portuguesa, a inglesa
e outras, o que então abriria espaço para uma “mudança cultural criativa” (CSORDAS,
2008, p. 128). Em suma, para a semiótica a glossolalia é como uma “perda pós-bélica de
uma língua unificada”, é como um momento no qual as estruturas das linguagens
hegemônicas perdem suas definições nítidas, o que permitiria a emergência de algo, de
uma novidade, de uma “nova” linguagem.
Porém, Csordas, através de uma leitura fenomenológica, propõe que a
glossolalia pode ser pensada enquanto uma “lucidez pré-bélica” (CSORDAS, 2008, p.
128), pois seria o resultado exatamente de um momento anterior à objetificação do
115

mundo, ou seja, a glossolalia pode ser vista enquanto um “fenômeno da corporeidade”


(CSORDAS, 2008, p. 128). Nesse sentido, a linguagem não é vista enquanto uma
“representação de pensamento” (CSORDAS, 2008, p. 128) que ocorre após o trabalho
de organização da razão, mas enquanto “um gesto verbal com significado imanente”.
Como Csordas apresenta, essa explicação fenomenológica da glossolalia expõe que a
“fala e pensamento são coextensivos” (CSORDAS, 2008, p. 128), e, logo, as palavras
humanas são menos representações do pensamento e mais um “estilo articulatório”
(CSORDAS, 2018, p. 128) do próprio corpo.
A curiosa teoria de Csordas, coloca que o ato de falar é sobretudo um “gesto
fonético” (CSORDAS, 2008, p. 128) que pode acontecer em uma “posição existencial”
(CSORDAS, 2008, p. 128) específica do corpo no mundo. Em suma, para Csordas
existe uma espécie de corpo inteligente, e a fala é o resultado do movimento desse corpo
em um “mundo repleto de significação” (CSORDAS, 2008, p. 128), ou seja, a fala é
sobretudo um “ato corporal” (CSORDAS, 2008, p. 129).
Como Merleau-Ponty diz, o corpo é um instrumento de comunicação com o
mundo que ocorre antes do pensamento (MERLEAU-PONTY, 2000). E essa parece a
chave da fenomenologia para sua aplicação dentro das teorias antropológicas, pois o
corpo então pode ser colocado como o instrumento comum pelo qual todos os humanos
conhecem o mundo, ou melhor, como o instrumento pelo qual todos os humanos
traduzem o mundo. Então o mundo objetivo é um resultado final do trabalho de
percepção humana e, anterior a este trabalho, o corpo simplesmente está no mundo, em
um mundo “pré-objetivo” (CSORDAS, 2008, p. 103).

Conclusão apressada

Como foi apresentado na terceira parte deste artigo, um dos grandes


pressupostos da fenomenologia que Csordas adota é o da impossibilidade de uma total
presença do objeto para quem o busca compreender, o que abre espaço para um retorno
ao pré-objetivo, e para uma exposição da criação do objeto durante o processo de
percepção. E na conclusão de seu artigo, o antropólogo retoma essa ideia, cintando
diretamente uma frase famosa de Merleau-Ponty, expondo que o objeto não é algo
anterior, e exterior a percepção, justamente por que “ele é dado como a soma infinita de
uma série indefinida de visões perspectivadas em cada uma das quais o objeto é dado”
(CSORDAS, 2008, p. 140, apud MERLEAU-PONTY, 2000) e como resultado dessa
116

afirmação ontológica, que busca tratar o que existe no mundo, o que há para ser
conhecido, o objeto, o mundo, nunca esta presente completamente para aquele que o
observa. Em suma, essa afirmação acima impõe que o mundo nunca é exaurido pela
percepção humana.
Então diante da impossibilidade de totalizar qualquer objeto fora do próprio
corpo completamente, cabe as teorias do paradigma da corporeidade dar um passo para
trás, para não partir do objeto anterior, exterior e fixo, mas sim para a partir de um outro
patamar da experiência, onde o objeto “está presente e vivo” (CSORDAS, 2008, p.
140), pois ainda não passou pelo processo das ciências naturais que o matam, no sentido
de que o totalizam enquanto exterior ao corpo humano. Interessante é notar, como esses
argumentos de Csordas importados da fenomenologia o fazem arriscar princípios
ontológicos, no sentido de que sua teoria assume pressupostos claros sobre a estrutura
da realidade.
A teoria de Csordas, mesmo já pensada há décadas atrás, ainda parece ter um
grande potencial, justamente por se colocar claramente contra os regimes conceituais
teóricos e práticos modernos que insistem em colocar o corpo em segundo plano. Como
o antropólogo coloca, sua intenção é justamente a de desmoronar a dicotomia moderna
entre corpo e mente que de ao corpo a característica de algo menor, menos importante.
E como Le Breton expõe em sua obra “Antropologia do corpo e modernidade” (2011),
essa tendência tem fortes raízes no processo histórico de desenvolvimento das ciências
modernas, o que aponta que sua alteração exigira muito trabalho dos pesquisadores das
ciências sociais.
117

Bibliografia

CSORDAS, Thomas. A corporeidade como um paradigma para a antropologia. In:


Corpo, Significado, Cura. Porto Alegre: Editora da UFRGS, pp. 101-146, 2008.

CSORDAS, Thomas. Introduction: the body as representation and being-in-the-world.


In: Experience and Embodiment, pp. 2- 28,1994.

HARMAN, Graham. Guerrila Metaphysics; Phenomenology and the carpetry of


things. Chicago: Open Court, 2005.

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Trad.


Carlos Irineu da Costa. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013.

LE BRETON, David. Antropologia do corpo. Petrópolis: Editora Vozes, 2001.

MERLEAU-PONTY, Maurice. A natureza; Curso do Collège de France. Trad.


Dominique Séglard. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

VALE DE ALMEIDA, Miguel. O corpo na teoria antropológica. Revista de


Comunicação e linguagens. São Paulo, v. 33, p. 49-66, 2004.
118

Conhecendo a Antropologia pelo desenho: experimentações pedagógicas e


metodológicas

Katianne de Sousa Almeida1

Resumo: Este trabalho compartilha abordagens preliminares da pesquisa de doutorado


sobre o uso do desenho como artifício pedagógico para a formação antropológica dentro
da estrutura disciplinar acadêmica em Universidades brasileiras, especificamente
inserido no curso de Antropologia na Universidade Federal de Goiás (UFG) dentro da
disciplina “Antropologia da Percepção: fluxos, subjetividades e grafias”. O objetivo é
divulgar estratégias de ensino de Antropologia utilizando o desenho para se
compreender de forma prática as diversidades, as sutilezas e as temporalidades
existentes no trabalho de campo antropológico. Foi importante identificar nas aulas a
relação histórica, em que desde a concepção da Antropologia como campo do
conhecimento, do uso do desenho como ferramenta de pesquisa e auxílio à compreensão
das expressões culturais de grupos sociais registradas nos diários de campo, aos dias
atuais em que o desenho saiu do diário e assumiu um lugar de destaque na produção de
ideias e síntese de conceitos. A Antropologia feita com desenhos coloca em diálogo
linguagens e metodologias diversas, o que pode provocar uma produção de
conhecimento científico mais dinâmico e acessível, consequentemente, a ampliação dos
horizontes epistêmicos da disciplina, assumindo os riscos da experimentação no
desenvolvimento da Antropologia na contemporaneidade. As produções gráficas dentro
da disciplina evidenciaram o engajamento das(dos) pesquisadoras(es) em evocar a
linguagem do desenho em suas investigações ou observações, buscando ampliar o
debate acerca das diversas possibilidades de comunicar seus trabalhos para além das
palavras. O diálogo proposto entre desenho e Antropologia vem portanto, construindo
importantes fundamentos teóricos e imagéticos para potencializar a elaboração do
pensamento antropológico não apenas como ferramenta de pesquisa, mas um método
capaz de mostrar outros caminhos para as etnografias.
Palavras-chave: experimentações, desenho, epistemologia gráfica.

1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/UFG).

2Movimento 1:
Atmosfera: o exercício deve ser realizado debaixo do chuveiro. Caso não se sinta à vontade. Fazer
119

O começo como ponto da questão

Escolhemos uma à outra


e as fronteiras das batalhas de cada uma
a guerra é a mesma
se perdermos
um dia o sangue das mulheres coagulará
sobre um planeta morto
se vencermos
não há como saber
procuramos além da história
por um encontro mais novo e mais possível (Audre Lorde).

Abrir este texto com a poesia de Audre Lorde, escritora feminista negra e ativista
dos direitos civis, significa um desejo ambicioso de amparo diante da jornada por novos
caminhos e, conforme suas palavras “toda mudança implica crescimento, e crescer pode
ser doloroso”(Lorde, 2019: 140). Ao preparar a sua imersão – leitora ou o leitor – em
águas poéticas e, talvez, mais suaves e amenas a intenção é iniciar a navegação
conduzida pela seguinte questão o que as rupturas de fronteiras dentro de um campo
disciplinar pode vir a nos dizer dentro da produção antropológica contemporânea?
Ainda mediante essa incipiente proposta de interlocução gostaria de compartilhar
ao longo deste texto, assim como Audre Lorde, poesias e ilustrações, de minha autoria,
que visam extrapolar a roupagem tradicional de produção de conhecimento
antropológico fazendo uma bricolagem entre texto, imagem e poesia como um desafio
experimental em narrar as tensões existentes na contemporaneidade, através dos
desdobramentos políticos, como as lutas contra o colonialismo dos saberes, as
intervenções das(os) aliadas(os) e pesquisadoras(es), resultantes das políticas de ações
afirmativas, diante ao epistemicídio, além do apagamento das produções latinas e das
mulheres negras.
A estratégia criativa de produção sensível e viva da ciência, por meio da
combinação das linguagens das grafias é um chamado urgente para a transformação
epistemológica da Antropologia.
Este trabalho compartilha abordagens preliminares da pesquisa de doutorado
sobre o uso do desenho como artifício pedagógico para a formação antropológica dentro
da estrutura disciplinar acadêmica em Universidades brasileiras. O objetivo é divulgar
estratégias de ensino de Antropologia utilizando o desenho para se compreender de
forma prática as diversidades, as sutilezas e as temporalidades existentes no trabalho de
campo antropológico.

2
120

Dentro desta perspectiva, o desenho é pensado como uma maneira de investigação


e uma forma de se aprender a fazer Antropologia. A primeira experiência de campo que
presenciei a relação entre ensino e aprendizagem na Antropologia com o desenho foi na
disciplina “Antropologia da Percepção: fluxos, subjetividades e grafias” ministrada pelo
Prof. Luis Felipe Kojima Hirano ofertada dentro do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social (PPGAS/UFG) no primeiro semestre de 2021. Ao todo foram
realizadas seis grafias que conectaram o desenho com a poesia, como um projeto
Antropográfico, em que o foco estava no “aprender-fazendo” e no “pensar-fazendo”.
Os exercícios incorporaram percepções, movimentos, corporalidades e grafias que
conduziram um diálogo quanto à polissemia das linguagens, suas autoridades e
interdependências. Portanto, era importante descrever as sensações que apareceriam
tanto durante o exercício proposto quanto ao se fazer o desenho. A partir das leituras de
Ingold (2015), fui sensibilizada a produzir conhecimentos que trouxessem a vida de
volta para a Antropologia. Logo, a vida percebida por meio de fluxos, como
movimento, ou seja, compreender outros modos de existir que percebem o mundo.
Neste caso a percepção é um modo de subjetivação.
O primeiro movimento e grafia 012 da disciplina foi nomeado como “Checando a
visão do todo3”. O objetivo estava em conhecer a partir de si mesmo outras grafais e

2 Movimento 1:
Atmosfera: o exercício deve ser realizado debaixo do chuveiro. Caso não se sinta à vontade. Fazer
sentado no quarto, como fizemos em aula.
1) Coloque as conchas ou copos próximos aos ouvidos. Ouça um som que se assemelha ao o som do mar
ou da cachoeira. Esse som deverá continuar durante todo o exercício.
2) Caminho do olhar e centro de força:
a) Com os olhos fechados, ouvindo o som do mar e sentindo a água cair na pele. Fique com os olhos
soltos, verifique para onde seu olhar se dirige ou tenta se dirigir. Perceba as cores ou flashes de luz que
surgem com os olhos fechados.
b) Tente caminhar levemente com as pupilas para esquerda, veja se as pupilas são puxadas para o centro
do seu olho ou para outro lugar. Repita esse movimento para direta, para cima e para baixo. A ideia é ver
se os olhos estão soltos ou se estão sendo puxados para alguma região. Faça o movimento calmamente.
3) Observando o espaço como um “todo” com os olhos soltos: deslocando a atenção perceptiva: como
fizemos em aula, tente olhar com os olhos fechados para toda extensão do campo visual. Preste atenção
nas margens dos olhos. Tente ver o campo visual como um todo.
4) Abra os olhos calmamente, observe a atmosfera do lugar, as sensações na pele, na visão e na audição.
Grafia 1:
1) Pegue um papel em branco, lápis, giz de cera ou caneta.
2) Não utilize borracha. No desenho como diz Ingold cada linha leva uma continuação. A borracha além
de servir como um sensor, pode reprimir uma a emergência de uma linha singular.
3) Não olhe para o desenho, tente movimentar as mãos conforme as sensações que o exercício provocou.
4) Desenhe quantas vezes quiser.

3 Adaptado em conversa com a Javiera Abufhele do exercício: Reorganizando-se (entre o “campo do


lugar” e o campo pessoal). Do livro Tarefas V3 da terapia Arte Org. por Jovino Camargo Jr.

3
121

reconhecer de outra maneira o campo, ou seja, produzir Antropologia a partir da


ontologia do fazer, se diferenciando das metodologias passivas.
Nesta primeira atividade produzi o desenho e a poesia que seguem abaixo:

Figura 1 - Salmões-pássaros. Produção da autora, 2021. Materiais utilizados: carvão, pastel seco e caneta
nanquim sobre papel.

Salmões-pássaros
Entra, fecha a porta.
Cria-se uma atmosfera de segurança, respira fundo.
Não é um ato banal de higiene, estou no exercício.
Ligo o chuveiro, cheiro de água, toque frio, a água escorre e a cabeça se entrega às
sensações.
Dois copos estão na bancada e eles são ferramentas do exercício.
Copos, água, banheiro, frio e chuva.
Espaço, ferramentas, sons e vem o suspiro.
O ar entra mais profundamente pelo nariz, garganta, esôfago, pulmões e preenche o
corpo.
A água toca cabelo, face, costas, frente e dedos dos pés.
Copos nos ouvidos e eu me preencho de mim mesma e das memórias antes do mundo
acabar e logo retorno para aquele janeiro de 2020 dentro do mar, onde eu gritei: até
logo!
Só que esse logo não veio e nem sei quando ou se virá.

4
122

Fecho os olhos e tento alcançar essa memória numa sensação mais profunda e já me
desloco para o barulho das correntezas, aquelas pequenas quedas d'água que possuem
pedras brilhantes.
Seriam pedras ou vagalumes?
Vou levando os olhos para os espaços múltiplos e pequenas luzes que se assemelham ao
prisma brilhando incandescentes.
Eu criei os vagalumes, mas de repente se dispersaram e viraram pequenos focos de luz
branca em dias de natal.
Porém, essa luz em forma de pontos cada vez se torna mais embaçada e esparsa e vira
um enorme borrão e, então, os pensamentos retornam.
Copos, olhos fechados, água do chuveiro são som, visão e tato, tudo torna-se um
mergulho dentro daquilo que se quer preencher.
Quando se entra no oceano é você que o preenche ou ele que está te preenchendo?
O movimento de zigue-zague é cheio de dualidades ou dubiedades.
Dentro da água é possível sentir a sensação de mergulhar e também a sensação de voar.
O som dos copos também traz a sensação de estar em um avião ou pular de uma ponte.
Mergulhar com peixes, voar como vagalumes, repousar como as memórias.
O banheiro tornou-se um santuário e foi um refúgio para toda a influência externa de
sentidos e de informações.
Dentro desse equilíbrio forjado, o desenho construiu-se como um momento de afago.
Continuava o clima de reduto protetivo e não estavam implicadas as regras de forma,
volume e cores.
Na memória eram somente os salmões de Ingold subindo as cachoeiras e que eu os tinha
transformado em pássaros.
E este olhar era exclusivamente meu dentro daquela experiência.

Durante a realização dos exercícios era importante compreender que toda


observação é uma forma de participação, portanto devíamos superar a dicotomia
pensamento versus ação. Ingold (2002) critica o fato que o foco da experimentação na
Antropologia está no trabalho de campo e que é necessário um movimento para que ela
aconteça também em sala de aula.
Ao se ensinar Antropologia por meio de atividades com desenhos, o professor se
coloca em fluxo para repensar os modos de pedagogia, ao tensionar conceitos, para a
valorização dos processos, ao invés dos produtos, portanto criando um espaço fértil de
engajamento para se romper com os cânones que estruturaram a Antropologia Clássica.

De forma muito sintética, eu diria que, ao trazer o desenho para dentro da


antropologia, problematizam-se duas dimensões centrais da área: a experiência
etnográfica e a produção de narrativas a partir dela. Da primeira, se desdobram
questões como as do diálogo entre as subjetividades de investigadores e
interlocutores, da busca de horizontalidade entre esses universos, da evocação de
memórias, da produção de trocas e colaboração, mas sobretudo do projeto de viver
uma experiência de campo num tempo alongado, de modo sensível, focada em
captar o momento e consciente das próprias limitações desse empreendimento. Da
segunda, fruto dessa consciência, se enfrentam os problemas da representação e
fabricação de uma alteridade sistematizada, objetificada, pela linearidade da voz
antropológica e seus jogos hermenêuticos(Ramos, 2010: 25). Contra essas

5
123

armadilhas, os textos e as imagens artesanais evocariam fragmentos das múltiplas


dimensões do processo vivido, dando a ver as possibilidades e impossibilidades da
produção (e divulgação) do conhecimento etnográfico e antropológico (Kuschnir4,
2016:11).
Sendo assim, a escrita deste trabalho assumiu uma postura sensível para o diálogo
com aquilo que foi observado, ou melhor, foi por meio das grafias que se pretendeu
tornar viva a produção do conhecimento. A produção científica divulgada pelos eventos
acadêmicos e pelas revistas especializadas de Antropologia estão, necessariamente,
conectadas a uma análise crítica das ações humanas, entretanto, há o mundo do sensível
que a escrita acadêmica ortodoxa, por vezes, não alcança e dentro da proposta da
Antropologia Gráfica temos mais uma dimensão capaz de capturar elementos que se
esquivam.

Os nós pelo caminho

O ato de experimentar é, na maioria das vezes, um salto no desconhecido, tanto


por suas características inovadoras e ousadas, quanto por enfrentar uma posição de
fluidez que, para alguns, pode significar uma desestabilização perigosa no campo da
construção do pensamento científico.
Experimentar é um estado de vivacidade, ou seja, é construir uma ciência viva
capaz de duvidar de si mesma constantemente. A dúvida é um dos pilares, ou também
podemos dizer a curiosidade, daquilo que compõe a produção científica e a pesquisa.
Pesquisamos porque queremos entender, compreender, analisar, teorizar, enfim,
em todos esses verbos estamos vivenciando um modo de experiência científica. Quando
propus uma tese desenhada no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
dentro da Universidade Federal de Goiás (PPGAS-UFG) a intenção foi colaborar com o
debate que almeja potencializar o alcance dos conceitos científicos, assim como
sinalizou, em seu chamado urgente, o professor e antropólogo indígena Gersem
Baniwa5:

A disciplina deve ceder lugar a indisciplina metodológica para dar lugar à


diversidade, do inesperado, ao sonho humano, ao possível e sobretudo à busca pelo
desconhecido e pela liberdade de pensar, de fazer e de viver; e estimular e valorizar
o espontâneo, o que não é conduzido, pelos dogmas criados e impostos, para que o
homem recupere sua capacidade de pensar, inventar, criar, acertar e errar, enfim ser
humano e não máquina ou peça de uma máquina pré-moldada, ou seja, humano
como humano ou o índio como índio (2019: 49-50).

4
Karina Kuschnir é antropóloga branca professora associada do Departamento de Antropologia Cultural
do IFCS/UFRJ, onde coordena o Laboratório de Antropologia Urbana.
5
Atualmente é professor associado no Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília.

6
124

A sugestão de uma indisciplina não fica isolada na exposição acima, ela também é
um manifesto de algumas pesquisadoras e pesquisadores, aos quais posso recomendar
como leitura as produções de Dias 6 (2019), Krenak 7 (2019), Quintiliano 8 (2019),
Novais9 (2018), Collins10 (2016), Neale Hurston11 (2019).
Em resumo, as ideias das autoras e autores citadas (citados) acima expressam
dimensões éticas, estéticas, políticas e teóricas da Antropologia, em seu contexto
contemporâneo, onde as sutilezas de um campo disciplinar, compostas por gêneros
invisíveis, inaudíveis e indizíveis, não trazem respostas prontas e objetivas, mas coloca
este campo o tempo todo em questão, ou melhor em tensão apresentando suas rupturas e
deslocamentos. De acordo com Collins:

Como outsiders within, estudiosas feministas negras podem pertencer a um dos


vários distintos grupos de intelectuais marginais cujos pontos de vista prometem
enriquecer o discurso sociológico contemporâneo. Trazer esse grupo – assim como
outros que compartilham um status de outsider within ante a sociologia – para o
centro da análise pode revelar aspectos da realidade obscurecidos por abordagens
mais ortodoxas (2019: 101).
Retomando as palavras de Audre Lorde, certa que o crescimento é doloroso trago
também para o debate a contribuição de Manuela Carneiro da Cunha12 (2009) que
entende a contemporaneidade como “tempos de reflexividade representacional e de
ansiedade intelectual” (p. 320). Por efeito desta perspectiva, a Antropologia perante as
viradas (ou poderiam ser imaginadas como verdadeiras capotadas) linguísticas,
epistêmicas, ontológicas, ecológicas é interpelada pelos seus produtores de
conhecimento, quanto ao direito de narrar e ao direito de imaginar o mundo sem muros,
por vezes, tidos como intransponíveis dentro de categorias analíticas ortodoxas.
A potencialidade de uma produção sensível e performática no campo
antropológico faz parte da disputa colocada em evidência, principalmente, por
pesquisadoras(es) indígenas e negras(os) que criticam o modus operandi da
Antropologia que, de acordo com elas(eles), ainda usa epistemologias brancas
colonizadoras e dificulta a diversidade dos saberes, dos sujeitos e das metodologias.
O reencantamento da Antropologia para além das dualidades que separam sujeito
do objeto, natureza e cultura, estrutura da ação, objetividade da subjetividade, o eu e o
6
Antropóloga negra feminista e professora da Universidade Federal de Goiás.
7
Ativista do movimento socioambiental e defesa dos direitos indígenas e doutor honoris causa pela
Universidade Federal de Juiz de Fora/MG.
8
Antropreta negra quilombola. Doutoranda em Antropologia Social pela UFG.
9
Antropólogo branco, mestre em Antropologia Social pelo PPGAS/UFG e professor de Jornalismo.
10
Filósofa, socióloga negra estadunidense e professora universitária.
11
Antropóloga e cineasta negra estadunidense.
12
Antropóloga luso-brasileira.

7
125

outro, é uma tentativa de romper com a versão opaca das narrativas controladas pelo
olhar centrado e hegemônico.
Para compor a interlocução desse conceito de reencantamento da Antropologia
trago as contribuições de Ingold13 (2015) que mostra um caminho para abrir a percepção
de dentro para fora e assumir uma ideia diferente de recepção passiva do conhecimento.
Ingold é um dos autores que tentam superar a dicotomia natureza versus cultura, pois
por meios de seus argumentos sobre as maneiras como a vida se desdobra ele afirma
que ela não é exclusiva dos seres sencientes, as coisas possuem vida e a vida é
constituída de fluxos contínuos.
A fim de dar um desdobramento para esta reflexão segue o segundo poema e
desenho provocadas a partir do movimento e grafia 02 da disciplina “Antropologia da
Percepção”:

Figura 2 – Desenrolar. Produção da autora, 2021. Materiais utilizados: caneta nanquim e aquarela sobre
papel couché cinza 250g.

Desenrolar14

13
é um antropólogo britânico e presidente de Antropologia Social da Universidade de Aberdeen.
14
Pauta do movimento 2 e grafia 2 da disciplina Antropologia da Percepção:
1) Consiga um novelo de fio grosso ou de lã e leve um destes emaranhados de fios com você.
2) Sente-se na sala de casa, mas de tal forma que você tenha uma parte da sala em sua visão

8
126

Foi mais barulhento dessa vez, pois o som do chuveiro não estava mais lá.
A água com os copos fizeram eco na mente e abafaram os pensamentos.
Sem esse subterfúgio eles gritavam, eles: os pensamentos.
No ato de desenrolar o cordão grosso de algodão seu material, orgânico como a pele,
parecia se integrar como tecido, entrelaçando a trama.
Cada enrolar dos fios, como uma cobra que se adapta à superfície, fazem vibrar os
microporos sensoriais e levantam os meus pelos, como uma sensação de arrepiar-se ao
medo do sufocamento.
Volta o som do barulho, como muitas vozes a pedir atenção e querem apoderar-se do
meu corpo.
Entretanto, rapidamente quanto mais fios preenchem dedos, braços, cabeça, pescoço, o
calor aumenta e sinto que vou preenchendo e silenciando os pensamentos.
O cordão que enrola também desenrola e volta ao seu quilo de barbante.
No pulsar do encontro tátil há também a experiência do olhar.
O estar ao centro não é tão confortável, pois o centro é o espaço do confronto.
Lembro-me das vozes e as faço escapar também fugindo do olhar.
O olhar vai para cada margem da sala e sempre para cima, as quinas da parede e os
desenhos de cada canto são também cada parcela dos fios do barbante de algodão que
encosta na pele e novamente a aquece.
Sento, deito e me enrolo junto com o longo barbante que me prende, mas também
aquece, são braços que sufocam ou que protegem?
Não sei distinguir a diferença, porque os pensamentos voltam a gritar.
O desenrolar rápido traz uma sensação de libertação, mas a matéria sem a presença de
outra matéria diminui a sensação de calor e volto a enrolar os fios calmamente para
sinalizar a despedida do movimento e acalmar as mãos enlouquecidas dos pensamentos
que tentam gesticular abraços necessários a me preencher e abraçar dizendo que vai
ficar tudo bem.

Pra essa atividade foi importante tirar os contornos e abrir o espaço para os fluxos,
ou seja, estar aberta aos processos. Esse é um movimento importante para o
engajamento político dentro da produção científica, pois ao se engajar no mundo que o
percebemos e a partir desta percepção que compartilhamos nossas subjetividades,
consequentemente as percepções estão sempre em transformação.

panorâmica. (Caso não seja possível fazer na sala de casa, faça no quarto com a janela aberta, pois é um
exercício a ser realizado num lugar intermediário entre o fechado (banheiro) e o aberto (varanda, quintal
ou em parques).
3) Dedique os próximos minutos a desenrolar e enrolar os fios. Ora olhe para os fios, ora olhe para algum
lugar da sala e tente manter sua visão panorâmica como ilustrado no segundo círculo maior na figura
acima.
4) Modifique sua postura corporal, a velocidade das mãos, o lugar para onde você está olhando, a visão
panorâmica da sala, de tal forma que você encontre um jeito de ficar com os fios e com você com
tranquilidade.
5) Depois desenhe e escreve sobre a experiência.
a) Descreva como foi a sensação tátil ao enrolar e desenrolar os fios;
b) Descreva o caminho do olhar;
c) Descreva de que maneira a mudança na postura corporal, mudou sua sensação tátil e o campo de visão;
d) Descreva de que maneira mexer nos fios em velocidades diferentes provocaram outras sensações.
Do livro Tarefas V3 da terapia Arte Org. por Jovino Camargo Jr.

9
127

A Antropologia, como campo disciplinar, que teve sua base inaugural postulada
na dicotomia do sujeito do conhecimento em contrapartida ao objeto do conhecimento é
questionada pelos grupos periféricos e marginalizados (feministas, movimento negro,
ambientalistas, indígenas, quilombolas, entre outros) quanto às suas metanarrativas
(etnógrafo versus nativo; sujeito versus objeto; campo versus teoria; ocidente versus
oriente) na contemporaneidade. O campo do saber da disciplina antropológica tanto nos
países centrais como nos periféricos está “envolvido agora na tarefa de descolonização
das paisagens mentais, a qual implica uma revisão radical dos seus cânones, tanto
teóricos como temáticos” (Carvalho, 2001:111).
Sendo assim, é crucial trazer os conhecimentos forjados nas margens para o
centro, não de forma polarizada, mas pulverizados e dinâmicos, como um movimento
migratório de produção de conhecimento multisituado.
Diante dessas considerações é evidente a urgência em se revisar as ferramentas
analíticas consagradas na Antropologia clássica, ou seja, verificar se elas continuam
sendo suficientes para o atual contexto contemporâneo em que as fronteiras estão
borradas, ou seja, onde elas estão em processo de dissolução.
As experiências atravessam as corporalidades da(do) pesquisadora(pesquisador)
em campo e neste trabalho foi por meio das grafias que repensei alguns elementos-
chave do trabalho do antropólogo, o que Roberto Cardoso de Oliveira (1996) definiu na
tríade: o olhar, o ouvir e o escrever. Ao me abrir para as grafias, os fluxos, os
emaranhados propostos por Ingold (2015) percebi que não há uma só maneira de olhar,
ou seja, olhamos para, olhamos com, ouvimos vendo. Para refletir sobre as
transformações nas formas de conhecer trago o desenho e a poesia que foram
consequentes ao movimento e grafia 0415 proposto na disciplina “Antropologia da
Percepção”:

15
Movimento e Grafia 4: “Entre o ver, o escutar e o sentir”
atmosfera: o exercício de polo fechado para ser realizado debaixo do chuveiro.
Atenção: não permaneça muito tempo com olhos fechados e debaixo da água quente, pois pode dar
tontura. Caso venha algum desconforto mude de posição da cabeça, do corpo ou abra os olhos.
1) De pé, coloque as conchas ou copos iguais próximos aos ouvidos. Ouça um som que se assemelha ao
som de conchas nos ouvidos. Esse som deverá continuar durante todo o exercício.
2) Caminho do olhar e centro de força: com os olhos fechados, ouvindo o som e sentindo a água cair na
pele. Fique com os olhos soltos, verifique para onde seu olhar se dirige ou tenta se dirigir. Perceba as
cores ou flashes de luz que surgem com os olhos fechados.
3) Deixe a água cair em diferentes partes do corpo: na cabeça, peito, costas, barriga e etc.
4) Olhe calmante para cima e para baixo e depois para os lados.
5) Agache e faça o mesmo procedimento que fez em pé. Se tiver dificuldade de ficar agachado, utilize um
banquinho.

10
128

Figura 3 - Navegar-se. Produção da autora, 2021. Materiais utilizados: colagem digital com fotografia e
desenho digital no aplicativo Procreate no Ipad.

Navegar-se
Pulsa a energia do universo
mesmo diante à ansiedade intelectual.
Espaço e ferramentas de uma experiência
e cada etapa é um aprofundamento
tanto do sentir, da gota que cai, do frio do ambiente úmido, das luzes
que não se cansam de dançar formando uma galáxia dentro do vazio
dos meus olhos e do som que engole os pensamentos para o precipício
da intimidade.
Sinto-me dentro de uma concha, pequena,
navegando sobre meus próprios pensamentos,
já que não há subterfúgios para a fuga
fluxo contínuo.
Dentro do vácuo deste mundo tudo acontece em câmera lenta
a água que percorre o corpo simula um barco que avança ao movimento do vento
o barco não tem qualquer máquina para deslocar-se
aquém do que a natureza ou a sorte podem lhe oferecer.
A embarcação percorre cabeça, ombros, abdômen, costas, pernas, dedos

6) Levante-se com calma, saia da ducha. Sem os copos, com os olhos fechados, observe, o som, a pele e a
visão.

11
129

eu estou sendo minunciosamente explorada e fico com medo,


porque o conhecimento também traz esse efeito, ele escancara o que, por vezes, pode
estar escondido.
Ao agachar, o medo se dissipa e me sinto segura,
mas é uma sensação frágil
uma vez que meu tamanho fica menor
estar confortável pode não ser suficiente.
E, muitas vezes, são essas as escolhas que fazemos em nosso cotidiano
ora estar seguro
ora estar confortável
ora estar grandioso
ora estar em paz consigo mesma.
Observo tudo ao redor daquele ambiente
olho para aquele espaço e parece que eu não o conheço
ou desconheço a mim mesma
ou estou naufragando
ou se estou dentro do barco.
São esses os motivos que trazem a fotografia uma maquiagem borrada
que esvai uma produção externa vulnerável
de se manter forte em circunstâncias tempestuosas.

Neste contexto turbulento de produção de conhecimento me alio a outros


trabalhos de antropólogas, antropólogos e antropólogues que fazem um chamado para a
construção de outras Antropologias com a respectiva quebra de paradigmas coloniais,
racistas, misóginos, sexistas, homofóbicos, transfóbicos, capacitistas. Por último,
concisamente, coloca-se em questão: Que lugar é esse da Antropologia em tempos
sombrios?
As antropólogas, os antropólogos e antropólogues são interpelados igualmente por
seus pares, já que não se pode escapar da posicionalidade, reiterada por Abu-Lughod16
(2018), e pelos grupos outrora identificados como objetos de pesquisa, a darem vida aos
seus trabalhos e uma escuta unida à práxis mais sensível e efetivamente coparticipativa
com seus interlocutores.
Inspirada pela provocação de Abu-Lughod (2018) apresento a ilustração abaixo
que carrega como símbolo o duelo das apresentações dicotômicas e a engenhosa
habilidade, por meio de um toque sútil, que encontros transdisciplinares podem se
tornar estratégias para provisórias transgressões aos binarismos, as dualidades e,

16
Lila Abu-Lughod é uma antropóloga palestina-americana. Ela é professora de Ciências Sociais no
Departamento de Antropologia da Universidade de Columbia em Nova York. Eu, como autora deste
artigo, influenciada por seus argumentos quanto à posicionalidade da escrita e também a partir das
contribuições dos estudos da crítica à crise representacional fundamentada por Clifford e Marcus (2016)
indiquei ao longo deste trabalho referenciais identitários e vínculo de trabalho das autoras e autores que
foram importantes para o diálogo da abordagem aqui proposta.

12
130

principalmente, o rompimento com a linguagem compartimentada produzida pela


modernidade e pelo cânone cartesiano.
A transdisciplinaridade é uma abordagem, em que o sujeito assume todas as
dimensões do conhecimento, o qual é integrado pela ciência e pela natureza (ou também
podemos considerar as relações de humanos e não-humanos) e, consequentemente,
compreende a existência do sagrado para transcender os limites da fragmentação.
Assumir a complexidade das coisas como espaço frutífero é aprender a viver em
conjunto, aprender a conhecer, aprender a fazer e, assim, construir uma nova ontologia
capaz de abraçar pedagogias experimentais.

Figura 4 – Duelo. Produção da autora, 2021. Materiais utilizados: desenho digital no aplicativo Procreate
no Ipad.

Infelizmente, muitos denunciam que a Antropologia institucionalizada ficou


produtivista e sem tempo para se entusiasmar com o processo e se permitir inovar em
movimentos experimentativos.
A Antropologia na contemporaneidade sente-se impelida a desenvolver uma
performance proativa de construção de significados e recursos mais sensíveis quanto
aos processos comunicativos.

13
131

Para engrossar o caldo deste debate retomo os argumentos de Shah (2020), em


que ela questiona os limites da produção do conhecimento na Antropologia e a
inevitabilidade em se buscar estratégias potencialmente revolucionárias como uma
forma de engajamento do pesquisador, em suas palavras “precisamos ser cada vez mais
claros sobre o que fazemos, por que fazemos e por que isso é importante” (p.375).
A partir desse chamado e unindo-o às autoras e aos autores já citados neste artigo,
a minha pesquisa de doutorado visa construir fundamentos imagéticos e teóricos sobre o
uso do desenho como produção do conhecimento e um método capaz de potencializar a
argumentação na elaboração do pensamento científico antropológico.
Quando se evoca a linguagem dos desenhos busca-se traduzir para além das
palavras (estas que são canonicamente aceitas como instrumentos capazes de produzir e
reproduzir o pensamento científico) interpretações visuais de conceitos. Sendo assim, é
imperativo abrir o debate e forçar as concepções dos outros modos de se comunicar o
pensamento científico.
Mesmo que se identifiquem as chamadas viradas epistêmicas sejam elas
ontológicas, linguísticas, afetivas, discursivas, pragmáticas, antropológicas, ecológicas,
o diálogo para além da fronteira acadêmica foi alcançado ou ainda estamos vivendo em
um círculo fechado de construção do conhecimento?
Por intermédio da perspectiva de Goldman17 (2010) reforçam-se os argumentos da
necessidade visceral, dentro da prática antropológica, para que se efetive o processo
criativo da virada antropológica, ou seja, em que se desestruture as bases colonialistas,
imperialistas do arcabouço disciplinar da Antropologia.
Diante da perspectiva deste autor de um “fim da antropologia”, o propósito, na
verdade, não é a sua extinção, todavia seria tornar a Antropologia “mais segura de si e
menos cínica”, segundo as palavras de Roy Wagner 18 , mais transparente. A
Antropologia no contemporâneo deve abraçar sua característica criativa e inventiva para
enfim tornar-se concretamente dialógica, ética e prática, como sugerido por Ortner
(2011:439) “com os pés no mesmo chão dos nativos”.

17
Márcio Goldman é antropólogo branco brasileiro professor titular da UFRJ.
18
Roy Wagner nasceu em Cleveland, Ohio. Foi um antropólogo cultural norte-americano especializado
em antropologia simbólica.

14
132

Grafias finais

Às vezes, enquanto acadêmicos, nos perguntamos qual é a nossa contribuição, de


forma mais geral, para a ciência produzida a nível local e também global, pois
almejamos corresponder ao investimento ao qual nos sentimos privilegiadas(os) em
receber, tanto pelo Estado (dentro das Universidades Públicas) quanto também pela
sociedade. Acredito que ao estimular criativamente a produção do conhecimento
comprometo-me com o pacto de não perpetuar os instrumentos do epistemicídio19 na
Antropologia, fomentando assim um diálogo transdisciplinar, dinâmico e fluido.
Em prol de reforçar uma Antropologia engajada criei o desenho abaixo,
denominado “em nossas mãos”.

Figura 5 – Em nossas mãos. Produção da autora, 2021. Materiais utilizados: aquarela sobre papel 300g
com finalização digital no Illustrator.

19
Epistemicídio é um conceito trabalhado por Sueli Carneiro em sua tese e advém do pensamento de
Boaventura Sousa Santos (1997), “para quem o epistemicídio se constituiu e se constitui num dos
instrumentos mais eficazes e duradouros da dominação étnica/racial, pela negação que empreende da
legitimidade das formas de conhecimento, do conhecimento produzido pelos grupos dominados”
(CARNEIRO, 2005:96). Desta forma, quando me comprometi a não perpetuar os instrumentos do
epistemicídio na Antropologia rompi com a ideia de produção de uma única forma de conhecimento
válido, em que se exclui a diversidade dos saberes, assim como o processo persistente de enunciação de
uma produção teórica no campo disciplinar da Antropologia citando apenas antropólogos brancos, do
norte global. Para uma certa produção de conhecimento antropológico, seja ela desde os movimentos
coloniais até a contemporaneidade, os corpos negros são vistos como fontes de saber, mas não como
produtores de conhecimento, ou como interlocutores no diálogo acadêmico.

15
133

Como estratégia criativa de produção sensível e viva da ciência trago a


linguagem das grafias como mais um reforço para a virada epistemológica e ontológica
da Antropologia.
Posto isto, para reafirmar a multiplicidade das linguagens neste artigo, pois
acredito que as epistemes são também táteis e não exclusivamente abstratas sinalizo que
os desenhos e as poesias articulados às produções textuais são caminhos interessantes
para a combinação dos afetos e o desenvolvimento da produção do conhecimento.
Colocar em cena processos da diversidade humana, ao qual é o esforço da empreitada
antropológica, é uma demanda tão complexa e tão profunda que as palavras não são
suficientes.
Em concordância com o pensamento feminista negro em que se afirma que
nossos passos vêm de longe concatenado às fabulações de Donna Haraway20 (2016)
sobre as Histórias de Camille precisamos costurar colaborações improváveis sem se
preocupar muito com os tipos ontológicos convencionais, os futuros são possíveis,
mesmo que agora os vejamos como implausíveis, todavia eles são reais (p.136).
Não gostaria de terminar este texto com um nó que encerra ou dificulta outras
possíveis continuidades, pois a particularidade da linha é emaranhar-se por tantas outras
trajetórias. Deixo, portanto, neste espaço em que findo as palavras uma poesia e uma
ilustração sobre o amor.
A palavra amor apresentada como dispositivo analítico num artigo pode ser
melindrosa, mas é este sentimento capaz de dar energia suficiente para enfrentar
desgastes e os tensionamentos nas fronteiras epistemológicas. Diante desse embate não
posso me esquivar de assumir riscos, porque ao final não é possível controlar os
imponderáveis da vida cotidiana.
O amor dentro da pesquisa
Com afeto escrevo sobre o sentimento mais inquieto
e que nos move cotidianamente
perpassa todas as lembranças, as vivências presentes e os sonhos futuros
o amor
O amor é um sentimento companheiro
ele nos dá o apoio quando queremos desistir
ou quando nos sentimos enfraquecidos.
O amor tem a textura do beijo que acalenta e afaga,
que protege e faz um carinho
que nos enche de tranquilidade
Entretanto, ao mesmo tempo que ele traz a calma, a paz e o sossego
20
é bióloga, filósofa, escritora branca estadunidense e professora emérita no Departamento de História da
consciência, na Universidade da Califórnia em Santa Cruz.

16
134

o amor carrega suas contradições e perturbações


Ter amor, fazer amor, estar embriagada de amor
é também estar mergulhada no desejo e na paixão.
Nos devaneios de passos e descompassos
entusiasmada com as chamas desse sentimento que aquece o peito
o amor nos envolve em dor, em perdas e saudades.
Só que no final, o amor significa o meu cordão umbilical com o mundo
a metáfora do apego
o que me faz ser o que sou.

Figura 6 – A cura prática. Produção da autora, 2021. Materiais utilizados: desenho digital no aplicativo
Procreate no Ipad.

Referências

ABU-LUGHOD, Lila. A escrita contra a cultura. Equatorial, v. 5, n°. 8, p. 193-226,


2018. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/equatorial/article/view/15615. Acesso
em 15 jun. 2021.
BANIWA, Gersem Luciano. Desafios no caminho da descolonização indígena. Novos
Olhares Sociais, Revista do PPGCS/UFRB, vol. 2, n°. 1, p. 41-50, 2019. Disponível em
< https://www3.ufrb.edu.br/ojs/index.php/novosolharessociais/article/view/463>.
Acesso 16 jun. 2021.
CARNEIRO, Sueli. A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser.
2005. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

17
135

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. “Cultura” e cultura: conhecimentos tradicionais e


direitos intelectuais. In: Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify,
2009. p.311-373.
CARVALHO, José Jorge de. O olhar etnográfico e a voz subalterna. Horizontes
Antropológicos, vol. 7, n°.15, p. 107-147, 2001. Disponível em:
https://repositorio.unb.br/handle/10482/25786. Acesso em 16 jun. 2021.
CLIFFORD, James; MARCUS, George. A escrita da cultura: poética e política da
etnografia. Rio de Janeiro: Papeis Selvagens, EdUFRJ, 2016.
COLLINS, Patrícia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica
do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n°. 1, p. 99-127,
2016. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/se/a/MZ8tzzsGrvmFTKFqr6GLVMn/abstract/?lang=pt. Acesso
em 15 jun. 2021.
DE OLIVEIRA, Roberto Cardoso. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever.
Revista de antropologia, p.13-37, 1996. Disponível em:
https://www.jstor.org/stable/41616179 . Acesso 25 jul.2022.
DIAS, Luciana de Oliveira. Quase da família: corpos e campos marcados pelo racismo e
pelo machismo. Humanidades & Inovação, Tocantins, v. 6, n°. 16, p.9-12. nov.2019.
Disponível em:
https://revista.unitins.br/index.php/humanidadeseinovacao/article/view/1823. Acesso
em 16 jun. 2021.
GOLDMAN, Márcio. 2011. O fim da antropologia. Novos estudos. – CEBRAP, edição
89, vol. 30, n°.1, p. 195-211, 2011. São Paulo. Disponível em
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002011000100012.
Acesso 24 jun. 2021.
HARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene.
Durham and London: Duke University Press, 2016.
INGOLD, Tim. Culture and the perception of the environment. In: Bush base, forest
farm. routledge, 2002, p.51-68. Disponível em:
https://www.taylorfrancis.com/chapters/edit/10.4324/9780203036129-9/culture-
perception-environment-tim-ingold . Acesso 20 jul. 2022.
INGOLD, Tim. Estar Vivo: Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição.
Petrópolis: Editora Vozes, 2015.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo, Cia das Letras, 2019.
KUSCHNIR, Karina. A antropologia pelo desenho: experiências visuais e etnográficas.
Cadernos Arte e Antropologia, vol. 5, n. 2, p. 5-13, 2016. Disponível em:
https://journals.openedition.org/cadernosaa/1095. Acesso 15 jun. 2021.
LORDE, Audre. Irmã outsider. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2019.
NEALE HURSTON, Zora. O que os editores brancos não publicarão. Ayé – Revista de
Antropologia, v. 1, n°. 1, p. 106-11, 2019 Disponível em:

18
136

https://revistas.unilab.edu.br/index.php/Antropologia/article/view/288. Acesso em 16
jun. 2021.
NOVAIS, Kaito Campos de. Gestos de Amor, Gestações de Lutas: uma etnografia
desenhada sobre o movimento Mães pela Diversidade. 2018. Dissertação (Mestrado em
Antropologia Social) – Faculdade de Ciências Sociais, Universidade Federal de Goiás,
Goiânia, 2018.
ORTNER, Sherry. Teoria na antropologia desde os 1960. Mana, v. 17, n°.2, p.419-466,
2011. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/mana/a/vW6R7nthts99kDJjSR79Qcp/?format=pdf&lang=pt.
Acesso 23 jun. 2021.
QUINTILIANO, Marta. Redes Afro-Indígenas: uma autoetnografia sobre trajetórias,
relações e tensões entre cotistas de Pós-Graduação e Políticas de Ações Afirmativas na
Universidade Federal de Goiás. 2019. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) –
Faculdade de Ciências Sociais, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2019.
SHAH, Alpa. Etnografia? Observação participante, uma práxis potencialmente
revolucionária. R@u – Revista de Antropologia da UFSCAR, v. 12, n°. 1, p.373-392,
2020. Disponível em: http://www.rau.ufscar.br/wp-content/uploads/2020/09/17.pdf.
Acesso 18 jun. 2021.

19
137

De Maria Degolada à Maria da Conceição: as disputas sobre a história fundacional


de uma vila em Porto Alegre/RS conectadas a imaginários nacionais

Barbara Jungbeck1

Resumo: Este trabalho de orientação etnográfica, entrevistas semiestruturadas e pesquisa com arquivos
digitais tem como intuito compreender como as diferentes narrativas de memórias populares sobre a
origem da vila periférica Maria da Conceição, localizada na cidade de Porto Alegre, conectam-se a duas
diferentes escalas. Em uma escala microssocial, o objetivo é entender como as histórias influenciam e são
influenciadas pelas concepções dos moradores sobre preconceitos sociais. Em uma escala macrossocial, o
interesse é pela conexão da origem de uma vila específica com fatos históricos do desenvolvimento
urbano em nível municipal, estadual e nacional. O propósito em aproximar essas duas escalas de análise é
de caráter qualitativo: como a cidade é constituída e disputada pelas narrativas de pessoas e como ela
mesma constitui afetações nas pessoas. A vila Maria da Conceição foi erguida rodeando uma gruta
construída para “Maria Degolada”, uma figura do folclore municipal conhecida por atender a preces de
saúde ou de proteção da polícia. Maria Francelina Trenes, de origem alemã, foi assassinada por seu
namorado, policial militar. Foi tornada Maria da Conceição, santa católica, por uma freira que ali chegou
em missão em 1952.

Palavras-chave: Maria Degolada; periferias urbanas; violência policial.

Introdução
08 de dezembro, Brasil: dia nacional de Nossa Senhora da Conceição. Durante a
manhã deste dia, em 2022, estive junto às crianças da Pequena Casa da Criança, ONG
católica que fica na vila Maria da Conceição, Porto Alegre. Na ausência da irmã Pierina,
Paulinho, coordenador do setor de espiritualidade, chamou a diretora da escola, uma
mulher branca com cabelos loiros e lisos, com seu sotaque baiano para fazer a oração em
homenagem à santa católica. Ao microfone, ela pede para as crianças repetirem em voz
alta e com os olhos fechados: “Nossa senhora, agradecemos pela Pequena Casa, pela
nossa família, pela nossa saúde e pela comida no prato”. Saímos da escola, dentro do
prédio da ONG, em torno de 30 crianças e 10 adultos, e nos encaminhamos para a sua
frente, onde repousa a imagem de Nossa Senhora da Conceição em sua capela de pedra.
Fizemos o sinal da cruz, rezamos um Pai Nosso e cantamos em sua homenagem.
Enquanto cantavam, eu balançava um pandeiro para dar ritmo à música, junto de
Paulinho que batucava o tambor. Paulinho relembrou às crianças a importância de fazer
1
Mestranda em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
138

o sinal da cruz toda vez que passassem pela capela. As meninas que estavam comigo
me contaram que faziam isso todos os dias pedindo proteção, tinham em torno de 7
anos e eram negras, assim como a maioria das outras crianças.
Naquela mesma manhã, Paulinho contou-me que nos outros anos costumavam
caminhar até a gruta de Maria Degolada, a uns 500 metros da Pequena Casa. Porém,
neste ano, os problemas da vila pioraram, e ele não tinha a intenção de colocar as
crianças em risco. Antes de chamar a diretora para fazer a oração, ele explicou às
crianças que Maria Degolada é um nome “feio”, que traz sentimentos ruins, por isso,
quando a irmã Nely chegou à vila nos anos 80, mudou seu nome para Maria da
Conceição, homenageando-a, posteriormente, oferecendo o nome também à vila.
Enquanto Paulinho falava, João2 segurava a imagem de nossa senhora branca sob um
manto azul. João, menino também branco, com cabelos loiros e mais alto que seus
colegas, disse que estava acostumado a carregar imagens em procissões, sendo sempre
escolhido por sua força, mas também se voluntaria porque gosta. Quando voltamos para
o pátio e ele largou a imagem, perguntei se havia participado das procissões anteriores
até a gruta de Maria Degolada. Ele não respondeu com afirmação ou negação, mas
contou que, recentemente, Paulão3 construiu uma mansão na baixada, o que dificultou a
saída das pessoas pelas ruas da vila, pois estava sendo procurado por outros traficantes
e, por isso, atraindo a polícia que atira. As notícias sobre Paulão diziam que a polícia
tinha lhe encontrado foragido na Bonja4, o que perguntei para João, ao passo que ele
respondeu que não, mas que a polícia o prendeu há um tempo. Mesmo assim, a gangue
rival continuava rondando a vila, o que significa a presença de policiamento. João não
me permitiu mais falar, mas começou a narrar a história de seu avô. Certo dia, estava
trabalhando como segurança em um show de Rap, na vila, e foi morto com tiros de
fuzis pelos traficantes. João não sabia o motivo do ato, mas pensava que os traficantes
queriam entrar no show para matar os rappers, o que não aconteceu.

2
Todos os nomes das crianças são fictícios no intuito de proteger seu anonimato.
3
Paulão da Conceição é ex-chefe do tráfico de drogas da Vila Maria da Conceição. Atualmente, integra
os Bala na Cara, do bairro Bom Jesus, que estão em conflito com outras duas facções da cidade pelo
controle do território da vila Maria da Conceição. (Disponível
em:
https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADcia/traficante-paul%C3%A3o-integro
u-se-%C3%A0-fac%C3%A7%C3%A3o-do-bairro-bom-jesus-em-porto-alegre-diz-denarc-1.886168.
Acesso em: 23 jan 2022.
4
Bonja é um diminutivo de bairro Bom Jesus.
139

A abertura deste trabalho com uma longa vinheta etnográfica tem o intuito de
ilustrar as diversas perspectivas e relações que pretendo explorar nas próximas páginas.
A vila Maria da Conceição cresceu em torno do local onde Maria Degolada foi
assassinada. Foi erguida por pessoas expulsas de suas habitações durante a expansão de
projetos de urbanização da cidade de Porto Alegre, entre os anos 40 e 50. A irmã Nely
Capuzzo, pertencente à Congregação Missionárias de Jesus Crucificado e natural de
Minas Gerais, realizava seu trabalho missionário prestando assistência a famílias
vulneráveis que ocupavam ruas do centro da cidade, em um espaço que ficou conhecido
como Doca das Frutas. Alvo de preocupação da administração pública, as pessoas da
Doca foram forçadas a deixar suas “malocas”5, sendo transportadas de caminhão para
uma antiga pedreira, no alto de um morro, na zona leste. Com a continuidade do
trabalho da irmã Nely, o local passou a se chamar Maria da Conceição, em homenagem
à santa católica e, como narrado por Paulinho, para dar um novo significado à Maria
Degolada e seus milagres.
A história de Maria Degolada tem versões conflitantes. A primeira versão conta
que foi degolada por seu namorado durante uma tarde de piquenique em uma pedreira
abandonada, localizada sobre um dos altos morros da cidade. Ele era policial militar e
ela prostituta. A segunda versão inverte a história da moça, conta que era “de família” e
subia o morro todos os dias para levar marmitas para seu pai, que era pedreiro. Um
policial militar à paisana, perseguia a menina todos os dias com a intenção de pedi-la
em namoro. Com suas sequentes negações, certa tarde ele agarrou-a à força, estuprou e
degolou. A identidade da moça confirmou que seu nome era Maria Francelina Trenes,
nascida na Alemanha, e o assassino foi descrito como “mestiço” e analfabeto, chamado
Bruno Soares Bicudo. Após sua morte, em 1899, Maria tornou-se reconhecida por
milagres realizados àqueles que lhe faziam promessas, principalmente no que dizia
respeito a pedidos de proteção contra a polícia. Além disso, não atende a preces de
policiais. Por isso, construíram uma capela na cena do crime, a qual ficou reconhecida
como patrimônio da comunidade em 2012 e passa, atualmente, por um processo de
tombamento como patrimônio histórico-cultural do município de Porto Alegre.

5
O processo de crescimento de periferias de Porto Alegre não foi o mesmo que aconteceu em outras
metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo. As casas foram nomeadas como malocas, pela semelhança
com alojamentos indígenas, onde residem diversas famílias no mesmo espaço. Assim, o que ficou
conhecido como “favela” em outros lugares, foi chamado de “malocas” em Porto Alegre (Furini, 2022).
140

Sua história foi central para livros de literatura e história, peças de teatro, teses e
dissertações acadêmicas no Brasil. É considerada parte do folclore popular da cidade de
Porto Alegre e identificada como uma “santa assombrada” que assusta crianças nos
banheiros das escolas. Além disso, ela é reconhecida por parte da comunidade como um
símbolo de resistência contra a exclusão social e a violência estatal, por ter sido
assassinada por um policial em uma zona periférica da cidade.
A partir desses vários cruzamentos e versões narrativas, o foco principal deste
trabalho é investigar como um mito de origem local que relaciona, cria e é criado por
pessoas, cidade e religião se conecta, em diferentes escalas, com imaginários nacionais
compostos por contraposições como certo e errado, pureza e pecado, branco e preto, céu
e inferno, homem e mulher, limpo e sujo, pureza e perigo. Com isso, surgem perguntas
que tentam ligar fios entre a vila Maria da Conceição nos dias de hoje e a morte de
Maria Degolada dos dias de ontem. Maria da Conceição, branca e virgem, gerou seu
filho salvador Jesus Cristo, branco; Maria Francelina, branca e virgem, foi morta por
um homem preto e irradia milagres de salvação e moradia para pessoas socialmente
vulneráveis que foram jogadas na antiga pedreira, transfigurando-se em Maria da
Conceição; Maria Degolada, prostituta, foi morta porque atentou com objetos contra seu
namorado, não atende a preces de policiais e assombra crianças que a chamam. Seria
possível relacionar essas diferentes versões da história em diferentes escalas temporais e
espaciais? A primeira Maria, mãe de Jesus, que permite a continuação da humanidade.
Maria Francelina, imigrante alemã, mãe da vila e de uma nação brasileira branca. Maria
Degolada, representação do perigo e afronta às leis constitucionais, mãe da desordem
social, do povo preto da Doca das Frutas, ameaça às crianças pretas, atualmente
transformada em um símbolo de resistência e descendência.

A cidade se separa
1899 é o ano em que ocorreu o assassinato, nos termos da época, de Maria
Francelina Trenes, alemã de nascimento, com 21 anos, no antigo Morro do Hospício em
Porto Alegre. Antes de tentar responder diretamente à problemática que guia este
trabalho, é necessário remontar à época na qual o feminicídio ocorreu. Neste ano, Porto
Alegre era o centro da economia do estado, contando com telegráficos, bondes, uma
usina hidrelétrica e rede de esgotos. Dez anos antes, em 1888, o regime de escravidão
foi abolido por meio da assinatura de Princesa Isabel. No mesmo ano e no mesmo mês,
saiu um artigo de Nina Rodrigues afirmando que os homens não nascem iguais, além de
141

defender duas jurisdições diferentes para brancos e pretos, dando largada às análises
raciais do país (Schwarcz, 1996). Nos finais do século, meados de 1890, a faculdade
baiana de medicina, liderada pelo mesmo Nina Rodrigues, passou a desenvolver teses
sobre medicina legal, apoiadas pelas pesquisas criminologistas italianas de Lombroso, a
fim de identificar traços físicos de criminosos. Como já sabido, os perfis bateram com
os chamados “mestiços”, descendentes de escravizados africanos e indígenas. A partir
dessas constatações, eis que surge a explicação para o atraso econômico e social
brasileiro: a miscigenação. A forma de reverter a situação todos já sabemos: a política
de branqueamento da população brasileira, visando um futuro mais branco por meio da
imigração europeia.
Maria Francelina Trenes foi morta na época em que esses ideais borbulhavam.
As capitais Porto Alegre e Rio de Janeiro tornaram-se destinos desejados dos imigrantes
alemães desde 1822, ano no qual o país tornou-se República. Chegavam pelo porto de
Guaíba, em Porto Alegre, migrando para o interior do estado do Rio Grande do Sul
desbravando suas terras prometidas. Maria Francelina foi fruto dessa imigração.
Já no final dos anos 1930 e início dos anos 1940, quando irmã Nely Capuzzo
pisou em Porto Alegre vinda de Minas Gerais em prol da realização de sua missão
religiosa, a cidade de Porto Alegre enfrentava a efervescência da urbanização. Mais de
300 mil habitantes ocupavam a capital e obras em torno do centro histórico pretendiam
uma cidade de cartão postal da modernização nacional, principalmente em suas portas
de entrada. As águas do Guaíba6 representavam as regiões do litoral brasileiro (como
lidas pelos intérpretes do Brasil) associadas à civilização, por onde chegavam
imigrantes europeus e dinheiro para rodar a economia. Enquanto seu interior, rodeado
de mata (ou sertão), significava a exploração e selvageria. Lugar de escravizados
fugidos (Bona, 2016) e indígenas selvagens.
Desde a “abolição da escravatura”, pretos ex-escravizados fixaram moradia na
Colônia Africana, onde hoje se encontram os bairros Bom Fim, Rio Branco, Farroupilha
e Cidade Baixa. Integraram-se sorrateiramente à cidade ascendendo economicamente
com ela (Silveira, 2014). Porém, não faziam parte da modernização brasileira. Foi em
1940, com o intenso processo de urbanização, que essas regiões começaram a ser
gentrificadas. Limpas e branqueadas. As pessoas pretas foram empurradas para o meio,

6
Guaíba é considerado, geograficamente, um lago que junta suas águas à Lagoa dos Patos, desaguando
no oceano Atlântico. Porém, a origem de seu nome é tupi-guarani e significa “rio que se alarga”.
Atualmente, é considerado um ato de resistência cultural chamá-lo de rio.
142

para a mata. A Colônia Africana, ponto central cobiçado da cidade, foi o foco das novas
políticas, mas não só. A “limpeza” iniciou no centro histórico, às margens do Guaíba,
local onde concentravam-se vendedores ambulantes, principalmente de comida. Essa foi
a principal ocupação trabalhista das mulheres ex escravizadas que permaneceram em
Porto Alegre, enquanto os homens trabalhavam no porto e cuidavam de embarcações
(Schantz, 2009).
Foi no porto que desembarcaram aqueles que ocupariam a Doca das Frutas.
Dessa vez, os imigrantes vinham do próprio estado para vender suas frutas na capital. A
maioria dos vendedores eram negros “libertos” que após a “abolição” procuraram por
pedaços de terra para cultivar (Schantz, 2009). Alguns, visualizando a oportunidade de
ascender financeiramente ao estabelecer um comércio, não voltavam para suas terras. É
importante ressaltar que a maioria das pessoas da Doca das Frutas foram descritas como
brancas, em ocorrências policiais, mas os dados da época, levantados por Furini (2022),
mostram que, perante a população porto alegrense, as pessoas negras estava
sobrerrepresentadas nas “vilas de malocas”. Assim surgiram as primeiras “malocas” da
cidade: termo cunhado pela mídia e autoridades políticas para descrever as habitações
indesejadas de pessoas pobres.
Algumas velhas, quase imprestáveis, tábuas, pedras, tijolos que foram
arrecadados aqui e ali, e mais um montão de bugigangas, tudo isso arranjado
à maneira da mais rudimentar arquitetura, é uma casa de maloqueiros. Visão
de uma moderna cidade – Pôrto Alegre, 1958. Ainda aqui se veem cenas
como esta da fotografia: a maloca e o alteroso edifício ao fundo, para
contrastar. Aí, a pobre negra nem de pé pode estar; tudo foi feito, apenas,
para abrigá-la do tempo quando a noite chega. De dia, é pedir esmolas ou
viver de expediente em biscates (PÔRTO ALEGRE..., 1958, p. 1, apud
Furini, 2022, p. 29).

A Doca das Frutas, ou Vila Surgida das Águas, surgiu assim, às beiras do
Guaíba, onde hoje encontramos a rua Voluntários da Pátria. O local era foco de
ininterruptas intervenções policiais por serem consideradas “classes perigosas” com
“desvios morais”, criminalidade, prostituição, sujeira e pobreza (Furini, 2022). Para ter
sucesso em seu processo de urbanização e modernização, a cidade deveria lidar com o
problema das “malocas”. Ênfase especial é dada às crianças nas reportagens
jornalísticas. Transmitiam um apelo às autoridades e civis para salvá-las da pobreza e
dos possíveis desvios morais nos quais seriam socializadas.
As crianças, segundo a reportagem, apareceriam nos barcos, entre porcos
cachorros e aves imundas e ali, naquele “chão” tudo era “miséria, imundície,
fome e doença”. Não saberiam, aquelas “coitadinhas” que estavam vivendo
uma semana destinada a elas: a semana da criança. Seus rostos “não
escondem a beleza e a aparente saúde, nem mesmo por detrás do barro que
marca o rostinho inocente”, estando elas, não obstante, satisfeitas com a
143

situação, pois “ignoram que amanhã poderá estar irremediavelmente doente


do corpo e da alma, vivendo como vive naquela sujeira, naquele ambiente de
promiscuidade, imoral, onde o crime, há muito eclipsou totalmente a virtude”
(ARRUDA, 1951, p. 7) (Furini, 2022, p. 52).

Neste cenário, irmã Nely Capuzzo aparece como salvadora assistencialista e


inicia seus trabalhos missionários na Doca das Frutas, denunciando a desigualdade
social da cidade. Perante os fracassos enunciados das iniciativas midiáticas para conter
e auxiliar aquela população, as obras católicas missionárias foram incentivadas, uma
vez que mostraram-se eficazes. Irmã Nely começou seu trabalho com as crianças.
Colocava-as sentadas em rodas para estudar princípios cristãos. Com o tempo, passou a
ser requisitada pelas famílias, sentindo-se na obrigação de compartilhar seus
sofrimentos por meio da mídia. Descrevia detalhadamente suas experiências no local
para os jornais, ilustrando o meio social no qual as crianças cresciam, vendo suas
mulheres tomadas por colonos que passavam pelo porto e brigas armadas entre os
homens, além de denunciar a ação violenta do poder público contra a população.
Publicou, mais tarde, um livro como fruto de todos os seus relatos e percepções.
Porém, antes de seus apelos surtirem qualquer efeito, viu a população da Doca
das Frutas ser carregada por caminhões, uma parte das casas destruída e outra carregada
junto com as pessoas para o antigo Morro do Hospício, uma pedreira desativada. Estava
em execução a “limpeza” do centro histórico e a separação da cidade. Quando a Doca
das Frutas se separa do centro, se encontra com Maria Degolada.

Maria Degolada, perigosa, prostituta, selvagem


A primeira versão que recorto da história é de Maria Degolada, a prostituta de
21 anos. Maria Francelina Trenes, imigrante alemã, gostava de namorar e compartilhava
vários homens. Em uma tarde ensolarada, subiu o Morro do Hospício com o homem do
qual era amante, o policial militar Bruno, para fazer um piquenique acompanhados de
amigos. No alto do morro havia uma figueira, conhecida por ser o ponto de encontro de
casais. Em determinado momento da tarde, separaram-se dos amigos e começaram a
discutir, elevando as vozes, até que Maria atacou Bruno com um pedaço de lenha e
outro de ferro, investindo contra o amante e gritando que já teria com quem passar a
noite. O policial militar, ao ouvir a última frase proferida, cortou a garganta de Maria
Francelina.
Bruno Soares Bicudo foi condenado e preso em 1900, um ano depois da
ocorrência. No período entre o processo e a prisão, o militar agregou outras informações
144

ao relato. Contou que ele e Maria estavam morando juntos há um ano e que, no dia e
horário do piquenique, ela se afastou do grupo com José da Olaria. Bruno foi atrás e
descobriu que estavam se beijando, ao que Maria grita “José é melhor do que você”. Já
embriagado, ela ataca-o com um pedaço de lenha e ele se protege com a faca,
cometendo o assassinato em defesa de sua honra.
O crime chocou a população porto alegrense, que ergueu uma capela no local do
assassinato. Desde sua construção, virou costume as noivas ofertarem à Maria Degolada
peças do enxoval de casamento e do próprio vestido, suplicando proteção e bom
casamento. Moças solteiras também faziam suas preces pedindo seu favor e interseção
para encontrar um bom parceiro. Maria Degolada começou a ficar famosa por seus
milagres (curas de enfermidades, crianças mudas que passaram a falar, etc.), juntando
moradores aos seus arredores. Até agora não encontrei fontes em concordância sobre os
primeiros que fixaram moradia ali, mas quando a população da Doca das Frutas foi
jogada no morro já haviam casas dispostas ao redor da figueira que abrigava a capela.
Ribeiro (1960, p. 3-4)7, em seu trabalho de conclusão de curso em Assistência Social,
escreve que o morro foi habitado pela primeira vez em 1946, por famílias transferidas
das vilas Caída do Céu e Forno do Lixo.
Morta por um policial militar, Maria Degolada não atende às preces de policiais.
Ela também protege contra os policiais. Transcrevendo Dawsey (2009, p. 142), seria
Maria Degolada a manifestação da memória involuntária da cidade? Seria Maria
Degolada a protetora branca dos pretos pobres violentados pelo Estado representado
pela polícia? Seria aquela que dá moradia quando o Estado nega? Seria a suja, mulher
depravada, marginal, prostituta, protetora da criminalidade, dos imorais? Seria ela
perigosa, a natureza das emoções descontroladas, selvagens?

Maria da Conceição, limpa, virgem, civilizada


A segunda versão da história é contada após a chegada de irmã Nely Capuzzo,
com as pessoas expulsas da Doca das Frutas. Maria Francelina Trenes era filha de
imigrantes alemães trabalhadores, uma moça de família. Todos os dias, a jovem de 21
anos subia o Morro do Hospício para entregar marmita para seu pai, que trabalhava no
alto. Desde que começou a aparecer naquela região, o policial militar Bruno

7
A referência à Ribeiro (1960) foi retirada de banners dispostos nas paredes da ONG Pequena Casa da
Criança. Não consegui localizá-lo na internet, imagino que esteja disponível em versão impressa na
universidade pela qual a autora se formou, dada a antiguidade do trabalho.
145

apaixonou-se, tendo suas declarações negadas por Maria. Certo dia, no horário em que
ela caminhava até seu pai, o policial a esperou no meio do trajeto e estuprou-a. Com a
resistência feroz de Maria, degolou-a sob a figueira. Há ainda outra versão que
caracteriza a moça da mesma forma, mas, nessa, namorava com seu assassino e era
adepta a ter relações sexuais apenas após o casamento, como uma boa moça de família.
O policial, que não compartilhava com os ideais de sua namorada, tentou tomá-la à
força. Da mesma forma, Maria resistiu e ele a degolou, com a faca que carregava na
cintura, sob a figueira.
Bruno Soares Bicudo, assassino de Maria Francelina Trenes, é descrito, nessa
narrativa, como um “mestiço” analfabeto vindo de Uruguaiana em busca de trabalho há
quatro anos. Nas primeiras páginas dos jornais da época, a capa vinha estampada com
as palavras “mestiço mal-encarado”. Já sua vítima carregava cabelos loiros, pele branca
e olhos azuis.
Irmã Nely chegou no Morro do Hospício ajudando as pessoas a reconstruírem
suas casas. Com a ajuda de sua congregação, recebeu a doação de um micro-ônibus,
chamado Carro Capela, para atender às crianças e suas famílias. Ali ela ministrava
cursos de higiene pessoal, hábitos saudáveis e oferecia catequese para as crianças.
Eventualmente, um padre era convidado a rezar missas, instalando microfone e caixas
de som. Por meio do reconhecimento da comunidade, iniciou-se um mutirão para
construção da primeira Pequena Casa da Criança com a mão de obra da comunidade e
doações financeiras externas. Ao mesmo tempo, Maria Degolada tornava-se cada vez
mais famosa, no estado do Rio Grande do Sul, por ser uma “santa assombrada”:
conhecida por aparecer nos banheiros das escolas se chamada três vezes na frente do
espelho. Não tenho certeza se foi por influência do trabalho missionário da irmã Nely,
mas ela foi uma forte influenciadora para que Maria Degolada se tornasse Maria da
Conceição, mãe de Jesus Cristo, usando a assombração como argumento para a
mudança.
Conta-se que, ao chegar no morro, uma criança veio correndo em sua direção.
Irmã Nely entregou a ela uma medalha de Nossa Senhora da Conceição. A criança
retirou-se correndo em direção a sua família, a quem mostrou seu presente gritando que
a freira havia a presenteado com uma imagem de Maria Degolada. Entrando em contato
com as histórias do local, a irmã influenciou na transfiguração de Maria Degolada à
santa católica, sendo apoiada por pessoas que testemunharam sua aparição, vestida com
146

roupas brancas, pedindo para que não fosse chamada pelo nome “feio” de Maria
Degolada.
Seria a transfiguração de Maria Degolada em Maria da Conceição, mãe de Deus,
pelo catolicismo de irmã Nely, a purificação da prostituta, suja? A salvadora dos
“selvagens” pretos da periferia? A figura de Maria Mãe de Deus esteve presente no
imaginário nacional desde a chegada de Pedro Álvares Cabral, guiado por Maria. O
início da República foi marcado pela presença do feminino enquanto novo símbolo
nacional, com a derrubada do rei (Carvalho, 2017[1990]). Antes de proclamar a
independência da República, Dom Pedro I passou pela capela de Nossa Senhora
Aparecida e prometeu fazê-la padroeira do território brasileiro independente. Vale
destacar que essa capela foi erguida por trabalhadores aflitos à virgem Aparecida que os
socorreu em 1717. Princesa Isabel, antes de assinar a lei Áurea em 1888, ofertou à
virgem sua coroa, suplicando para que governasse o Brasil. Precedendo a Terceira
República (Carvalho, 2017[1990]), o feminino como mãe protetora da Nação foi
batizada com um nome: Marianne. Estatuetas e gravuras em sua homenagem
começaram a se espalhar pelo Brasil, principalmente na região sul, e o governo
começou a incentivar o culto à Virgem Maria. Em 1941, o Brasil foi consagrado ao
Imaculado Coração de Maria, sob as palavras: “Vede as ciladas que em toda parte se
armam aos bons costumes, contaminando todas as coisas com o mais desenfreado
sensualismo. Purificai, ó Virgem Imaculada, de tantas impurezas a Terra; ou ao menos,
conservai limpas as nossas famílias. Vede como se tenta convulsionar a sociedade e
lançá-la no torvelinho da rebelião contra toda a lei e autoridade”8.
Em 2019, sob a presidência de Bolsonaro, o Brasil foi novamente consagrado ao
Imaculado Coração de Maria, ritual realizado dentro do Palácio do Planalto. E, na vila
Maria da Conceição dos dias de hoje, a ONG católica, com sua capela à Maria da
Conceição, visa afastar as crianças dos “males sociais, como a delinquência, a
prostituição e a criminalidade”.

Maria Degolada e a Mãe Preta


Na vila Maria da Conceição do ano de 2022, o imaginário compartilhado por um
grupo artístico de crianças moradoras, negras, guiadas por uma professora branca de

8
Disponível
em:
https://padrepauloricardo.org/episodios/75-anos-da-consagracao-do-brasil-ao-imaculado-coracao-de-mari
a?page=9. Acesso em: 10/04/2023.
147

arte, inverte o processo de transfiguração de Maria Degolada em Maria da Conceição


em busca do que chamam “raízes”, “ancestralidade”. Por meio de visitas à capela,
ensaiam coreografias de dança e compõem letras de rap em prol de retomar a história
de Maria Degolada, denunciando seu feminicídio. “De Onde Nós Viemos”, nome do
projeto que deu origem ao grupo, foi criado por uma graduanda em Dança com o intuito
de ensinar história por meio da dança. As coreografias são batucadas em ritmos
afro-brasileiros homenageando o continente africano. A maquiagem e as roupas são
montadas pelas próprias crianças, com cores e pinturas que representam Oxum.
Porém, dentro da Pequena Casa da Criança, onde o mesmo grupo de dança
aprende sobre raça e negritude, quem carrega e reza à Maria da Conceição e quem
ensina sobre Maria Degolada são brancas. Irmã Nely, que deu acesso à Maria Degolada
para aquela criança preta, é branca. Antes disso, a protetora da polícia, o abrigo e a
salvadora das enfermidades, é Maria Francelina, branca. Quem gerou a vila é branca. A
nação da primeira República é branca. Quem descobriu o Brasil em 1500 é branco.
Lélia Gonzalez (1984) foi a primeira mulher brasileira a discutir a maternidade
da cultura brasileira. Utilizando aportes psicanalíticos, principalmente o complexo de
Édipo freudiano, a autora argumenta que a ama de leite, a mãe preta, africaniza a cultura
brasileira, ensinando às crianças brancas o “pretuguês” e moldando a cultura por meio
da linguagem oral. O racismo, dessa forma, seria o sintoma da neurose cultural
brasileira. Isso significa que o racismo brasileiro assume uma “forma de denegação, ou
seja, a ideia de que a cultura brasileira é negra ao mesmo tempo que se esforça para
negar essa característica” (Silveira, 2022, p. 2), assim como o primeiro desejo sexual do
filho para com a mãe. Os filhos da mãe preta a negam ao mesmo tempo que carregam
sua subjetividade por meio da linguagem. Essa afirmação, para Gonzalez, resulta na
vitória da mãe preta em uma batalha mais que discursiva, uma vez que as raízes
africanas não podem ser apagadas da cultura brasileira.
Rita Segato (2006), discordando de Lélia Gonzalez a respeito do conceito de
negação, ancora-se na leitura edipiana de Lacan e nos estudos de McClintock (2010)
sobre o apagamento da atração pela babá na teorização do complexo de Édipo por
Freud. Segato reflete sobre como as teorias “modernizadoras” e higienistas surgidas no
século XIX a respeito das amas de leite culminaram na passagem de amas de leite a
amas secas e, após, às babás, estando entrelaçado ao racismo. A mãe preta concebida
por Lélia Gonzalez continua, segundo Segato, transmitindo a negritude para crianças
brancas, porém argumenta que o processo de transmissão não ocorre pela negação
148

freudiana, mas pelo conceito de “foraclusão” de Lacan. A foraclusão é “uma ausência


que, contudo, determina uma entrada defeituosa no simbólico ou, dito em outras
palavras, a lealdade a um simbólico inadequado que virá certamente à falência com a
irrupção do real, quer dizer, de tudo aquilo que não é capaz de conter e organizar”
(Segato, 2006, p. 18). Assim, esse fenômeno não representa apenas uma negação da
mãe preta, mas um desconhecimento intencional, não há nada que se quer saber a
respeito. A mãe preta e a babá preta têm sua raça desconhecida, suprimida. Há uma
necessidade subjetiva de afastamento da mulher preta, da negritude da mãe e da babá,
pois sua aparição “desorganizaria” a vida social.
A partir desse mesmo gancho de argumentação, Segato enfatiza a duplicidade da
mãe: a mãe preta e a mãe cívica. Por meio da teoria lacaniana de Édipo, a autora
sinaliza que a mãe cívica ocupa a função do pai, ou do Nome-do-pai, conceito lacaniano
que diz respeito à função paterna de inserir a criança na cultura separando-a dos afetos e
emoções maternas. Isso acontece porque a mãe cívica deve tirar a criança da mãe preta,
transformada em babá, para colocá-la na cultura, na sociedade. A mãe cívica, dessa
forma, ficaria “igualmente aprisionada numa lógica masculina e misógina, que retira da
mãe-babá sua condição humana e a transforma em objeto de compra e venda” (Segato,
2006, p. 18 apud Silveira, 2022, p. 8).
Seria Maria Francelina, Maria Degolada e Maria da Conceição mães cívicas?
Cada uma a sua maneira simbolizando sua sociedade, sua nação? Desconhecendo e
ausentando a mãe preta que permanece presente nas raízes africanas da cultura
brasileira? E, se reconhecida a negritude da mãe preta, babá, desordenará um projeto de
sociedade embranquecida, denunciando a exclusão social da população preta da
periferia?

Considerações finais
A escrita deste trabalho em formato de perguntas pretende menos responder do
que abrir caminhos. Maria Francelina Trenes, Maria Degolada e Maria da Conceição
relacionam não apenas mulheres e sociedade, mas relações e representações. A história
de Maria Francelina Trenes representa e é representada pelas relações entre pessoas,
cidade, história e tempo. A minha tentativa, neste texto, foi representar minhas
representações das representações. Há inúmeras leituras e narrativas sobre o feminicídio
que ocorreu em 1899 e meu intuito não foi encontrar a verdadeira ou a que mais se
aproxima de provas concretas. Detive-me a analisar como elas representam e são
149

representadas não apenas por porto-alegrenses ou moradores da vila Maria da


Conceição, mas como se alargam e se conectam com diversos imaginários nacionais em
diferentes temporalidades.
O mito de criação da vila Maria da Conceição se vincula aos ideais republicanos
da construção de uma nação. A proibição da visita à gruta de Maria Degolada, descrita
na vinheta com a qual abri essas páginas, nas entranhas da vila, se deve ao perigo da
selvageria que reside no interior, na mata fechada e no sertão, onde os pretos
escravizados fogem e se escondem dos senhores de terras. Logo, as crianças
caminharam até a gruta de Maria da Conceição, em frente à ONG Pequena Casa da
Criança, na entrada da vila, na margem de liminaridade, onde os colonizadores brancos
ancoram seus navios, desnudam as terras e “civilizam”. No mesmo lugar onde
desembarcam os imigrantes italianos e alemães na República, em um projeto salvador
da nação. Mesmo que os navios negreiros tenham se esparramado nos portos, as pessoas
escravizadas foram largadas com foices em mãos para abrir caminho aos brancos recém
chegados. A violência faz parte do cotidiano desde quando pisaram nas novas terras,
onde as crianças, ao final da aula, voltam para o interior com medo da polícia invadir o
terreno dos traficantes, abrigados em suas casas ao redor de Maria Degolada.

Referências
BONA, D. T. A arte da fuga: dos escravos fugidos aos refugiados. São Paulo: OIP,
2017 (2016).
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: O imaginário da República no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017[1990].
DAWSEY, John. História noturna de Nossa Senhora do Risca-Faca. Estudos
Feministas, 17(1), 2009.
FURINI, V. R. Trabalho, conflitos e solidariedades: ordem e desordem na Doca das
Frutas (Porto Alegre/RS – 1940-1953). Dissertação (Mestrado em História) -
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2022.
GONZALEZ, L. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Revista Ciências Sociais
Hoje, Brasília, Anpocs, p. 223-244, 1984.
MCCLINTOCK, A. Cap.1: A situação da terra: genealogias do imperialismo e Cap.6: A
família branca do homem: o discurso colonial e a reinvenção do patriarcado. In:
MCCLINTOCK, A. Couro Imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial.
Campinas: Unicamp, 2010[1995].
150

SCHANTZ, A. P. D. Libertos no Rio Grande de São Pedro: Porto Alegre e Viamão


no final do século XVIII e início do XIX. Dissertação (Mestrado em História) -
Universidade Federal da Bahia, 2009.
SCHWARCZ, L. Usos e abusos da mestiçagem e da raça no Brasil: uma história das
teorias raciais em finais do século XIX. Afro-Ásia, Salvador, n. 18, 1996.
SEGATO, R. O Édipo Brasileiro: a dupla negação de gênero e raça. Brasília: Editora
da Universidade de Brasília, 2006.
SILVEIRA, L. A mãe preta e o Nome-do-pai: questões com Lélia Gonzalez.
Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 30, n. 3, e79996, 2022.
SILVEIRA, A. B. JAYME MOREIRA DA SILVA: ESCRITAS DO
COTIDIANO. Oficina do Historiador, Porto Alegre, EDIPUCRS, v. 7, n. 2, jul./dez.,
p. 40-61, 20
151

A igreja evangélica e a produção de Sujeitos Políticos

Manuela Lowenthal1

Resumo:

O artigo tem como objetivo analisar ações públicas de atores religiosos no que diz respeito à participação
civil. Para delimitação do tema, foi definido analisar a entrada de lideranças evangélicas aos Conselhos
Tutelares, buscando compreender se há algum tipo de estímulo e formação por parte da igreja de forma a
promover um incentivo ao interesse pela ação pública A pesquisa propõe compreender de que forma é
feita esta articulação, quais são os meios mobilizados, atores envolvidos e as narrativas acionadas.

Palavras-Chaves: Conselhos Tutelares; sujeitos políticos; Igreja Evangélica.

Introdução

Nas últimas eleições de Conselheiro Tutelar na cidade de São Paulo, 53% das/os
conselheiras/os que tomaram posse em 2020 foram pessoas ligadas a igrejas evangélicas
de tradição pentecostal e neopentecostal, e, muitas delas ligadas à IgrejaUniversal do
Reino de Deus (IURD). A atuação da Igreja Universal (IURD) destaca-se nesse
universo, e é sem dúvida uma importante articuladora e incentivadora de candidaturas
de seus membros e lideranças aos Conselhos Tutelares. A partir disto, a presente
pesquisa busca refletir sobre como algumas igrejas evangélicas passam a funcionar
como um espaço de construção de sujeitos políticos e sociais, assim como uma
ferramenta de inserção de atores evangélicos no espaço público, buscando pensar a
produção desses sujeitos políticos a partir da disputa pelo Estado.

Parte do interesse deste trabalho se debruça em mapear a relação entre o governo


federal e os Conselhos Tutelares, focando nas estratégias e formas que atores
evangélicos

1
Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal Paulista (UNIFESP). Orientadora: Lilian
Maria Sales Pinto. Pesquisa financiada pela FAPESP-Processo nº2021/ 12381-5. E-mail:
manuela.lowenthal@unifesp.br
152

são inseridos em Conselhos Tutelares através de igrejas evangélicas, e posteriormente


passam a atuar na política institucional. Nesse sentido, a pesquisa tem como foco central
pensar neste processo de construção desses sujeitos políticos evangélicos a partir de
uma dada vinculação religiosa, mas também compreender como ocorrem esses novos
padrões de participação social, política e civil.

A pesquisa se insere em um contexto mais amplo de emergência de evangélicos


no cenário político, a crescente busca de pessoas evangélicas para cargos de
Conselheiros Tutelares estaria relacionada à consolidação de uma Frente Parlamentar no
Congresso? Ser evangélico faria alguma diferença quanto à participação cívica? A
prática religiosa traz consequências perceptíveis para a cidadania? Há interferência dos
valores cristãos nas ações exercidas? São algumas das questões que buscamos
compreender ao longo desta pesquisa que se encontra ainda em fase inicial.

Um dos focos da pesquisa é observar como esses grupos evangélicos passaram a


valorizar um engajamento no espaço público seguindo a lógica dos movimentos cívicos,
na chave da cidadania e da “responsabilidade social da igreja”, a fim de reivindicarem
uma noção específica de família e direitos humanos. Outra questão que está sendo
analisada é o fato de que Conselhos Tutelares podem estar funcionando como um
instrumento que permite que atores religiosos tenham um contato inicial com a política,
para que posteriormente se introduzam na política institucional.

O crescimento da presença dos evangélicos na esfera política: sua defesa da


"família" e dos "valores cristãos"

Diversos autores (FRESTON, 1994; SOUZA, 2009; MONTERO, 2012;


MACHADO, 2015) assinalaram a formação da Assembleia Nacional Constituinte
(ANC), em 1986, como o estopim para a entrada dos evangélicos na política
institucional brasileira. Embora esse bloco coeso dentro do Parlamento que foi se
formando ao longo das décadas só foi oficializada em 2016.
Porém, muito antes da criação do Estatuto da Frente Parlamentar Evangélica
(FPE) e da sua institucionalização, já observa-se um crescimento vertiginoso do bloco
evangélico no Parlamento. Várias igrejas, em destaque para Assembleia de Deus,
Universal do Reino de Deus e Igreja do Evangelho Quadrangular, desempenharam, ao
longo das últimas décadas, relevante sucesso na eleição de candidaturas de seus líderes
153

através de estratégias variadas, tema muito abordado pela literatura da área (NOVAIS,
2001; ORO, 2003; BOHN, 2004; SOUZA, 2009; DUARTE, 2013; VITAL DA CUNHA
E LOPES, 2013; MACHADO, 2015).
Em 1998 foram eleitos 49 deputados federais, e esse número só não foi maior,
pois alguns parlamentares não foram reeleitos. Porém, foi a partir da legislatura de 2002
que esse bloco se expande de maneira significativa fortalecendo a presença evangélica
também no âmbito do legislativo federal. Nessa legislatura pode-se notar um aumento
do número de candidatos lançados, e o número de eleitos também.
Segundo estudos, a curva do número de Parlamentares evangélicos cresce de
forma exponencial ao longo dos anos, com exceção de 2006, que foi um ano na qual
houve uma queda expressiva do número de cadeiras ocupadas por candidatos
evangélicos devido ao escândalo político do esquema do mensalão, ocorrido no ano
anterior, em 2005. Este escândalo abalou profundamente as estruturas do bloco, uma
vez que muitos nomes de deputados evangélicos entraram como envolvidos no
esquema, alguns deles como Bispo Carlos Rodrigues (PLRJ) e Wanderval Santos
(PL-SP), ambos da Igreja Universal. Além disso, houve também a Operação
Sanguessuga, operação que tinha como intuito acabar com o esquema de fraudes em
licitações na área da saúde, e expôs 72 deputados federais, na qual 28 eram evangélicos.
Dessa forma, o ano de 2006 pode ser considerado como marcado por uma crise eleitoral
evangélica. Apenas 30 deputados federais eram evangélicos.
Porém, em 2010, o bloco volta a crescer, aumentando o número de deputados
eleitos em cerca de 50% em comparação a 2007. Segundo Mariano e Geraldi (2019), as
eleições de 2010 foram fortemente influenciadas por propostas recheadas de debates e
temas morais, como o aborto e a homofobia, e que tinham, como pano de fundo, a
"defesa da família". Dessa forma, reativou-se um movimento político-ideológico de
cunho moral que se fortaleceu ainda mais após o lançamento dos programas de combate
à homofobia e do PLC 122/2006, que visava criminalizá-la, e principalmente do
PNDH-3, que propunha a descriminalização do aborto. Neste último documento, eram
abordadas algumas pautas consideradas polêmicas e que não haviam sido discutidas até
então nos documentos anteriores, dentre elas estão: a união estável entre pessoas do
mesmo sexo, a descriminalização do aborto, e o direito de adoção por casais
homoafetivos. Na concepção desse bloco evangélico, todas essas pautas representavam
uma "ameaça à família cristã", e por isso organizam uma potente reação contrária a
essas pautas.
154

Nesse cenário, a principal vitória do bloco evangélico foi a reformulação da


redação do PNDH-3 (MACHADO, 2017, p. 373), na qual foram retirados alguns
tópicos como aquele que mostravam a concordância à descriminalização do aborto. Este
fato ficou marcado como o início do posicionamento “antigênero” no país e o papel
central destes setores na atuação em relação à manutenção de uma configuração familiar
"tradicional" por parte da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.
Desde então, atores religiosos passaram a atuar publicamente para impedir ou
dificultar qualquer ação do Executivo Federal que busque reformular as diversas
configurações de família e dos direitos sexuais e reprodutivos. Temáticas referentes ao
aborto, aos novos modelos de família e a homossexualidade ganharam grande
centralidade nas eleições de 2010 e 2014 para a Presidência da República (MACHADO,
2018, p.374), isso ficou evidente principalmente a partir do reação claramente
combativa de lideranças evangélicas que passaram a exigir que fosse retirada toda e
qualquer proposta voltada à descriminalizar o aborto e a expandir os direitos
reprodutivos dos planos de governo de todos os candidatos.
Muitos estudos na área (MACHADO, 2013; MACHADO; PICCOLO, 2011,
NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2013, VITAL DA CUNHA; LOPES, 2013) demonstram,
que tais comportamentos por parte de parlamentares evangélicos tem sido reativos,
porém, em determinado momento esses atores passam da reação à ação, buscando não
apenas barrar a expansão dos direitos apresentados pelos grupos progressistas, mas
colocar a sua concepção de mundo, os seus valores e a sua moralidade à totalidade da
sociedade brasileira (MACHADO, 2017).
Exemplo emblemático disso foi a proposição, em 2013, pelo deputado
evangélico Anderson Ferreira do projeto de lei 6583/13 que se refere à criação do
Estatuto da Família, documento na qual propõe limitar a definição de família apenas à
união entre um homem e uma mulher, propondo de forma evidente a exclusão de
arranjos familiares baseados no afeto e a promoção e valorização da "família
tradicional" (MACHADO, 2017, p.372). Outro exemplo marcante foi a proposição do
Estatuto do Nascituro, que reverteria todas as possibilidades de aborto no país ao
colocar o feto, ou até mesmo a célula fecundada, enquanto sujeito de direitos.
De acordo com a antropóloga Maria das Dores de Campos Machado (2017),
quando o Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), membro da Assembleia de Deus e
filiado à Frente Parlamentar Evangélica foi eleito à presidência da Câmara dos
Deputados,
155

muitos arquivos de Projetos de Leis sobre a proibição do aborto e a valorização da


heterossexualidade foram desarquivados.
Em meio a essa disputa "em defesa da família" e dos "valores cristãos" na esfera
política brasileira acontece, em 2018, a eleição de Jair Messias Bolsonaro, que se alinha
aos valores e pautas da FPE (ALMEIDA, 2019). Desde o início de seu mandato,
Bolsonaro deixou evidente que iria desempenhar no campo do Federal Executivo, todas
as demandas e ações articuladas até então no campo do Legislativo pela FPE. O
presidente Jair Bolsonaro, mesmo antes de se lançar candidato à presidência, já
demonstrava seu forte posicionamento em concordância com a chamada “nova direita
cristã”, o que resultou em uma aliança forte e resistente, na qual recebeu enorme
respaldo da população.
Com apoio de figuras públicas centrais do universo evangélico, Bolsonaro
passou a ser considerado portador dos "valores cristãos" e se alçou enquanto "salvação"
frente à esquerda que supostamente pretendia “destruir a família tradicional".
Sintetizava e representava adequadamente os valores desse grupo, expressado por suas
lideranças no período pré eleitoral: Bolsonaro “é a favor dos valores de família, é contra
essa bandidagem de erotizar criança em escola, que toda a esquerda quer”2. O
posicionamento a favor da família e da moral cristã e o apoio de figuras públicas
evangélicas contribuíram para que Bolsonaro alavancasse nas eleições (MARIANO,
GERALDI, 2019).
Um dos feitos que muito nos importa no governo de Jair Bolsonaro no que se
refere ao campo da moral, foi a criação do Ministério da Mulher, Família e Direitos
Humanos (MMFDH). Em uma nítida intenção de mobilizar tanto uma base parlamentar
evangélica, quanto o eleitor evangélico que é sensível à perspectiva moral acerca da
família e da regularização desta unidade, o atual governo acrescentou o termo "família"
ao nome do ministério (ALMEIDA, 2019), Bolsonaro implementou este ministério
como o responsável por gerir os direitos humanos e a centralidade da família. A
evangélica e ex-conselheira tutelar, Damares Alves foi a escolhida para estar à frente
deste ministério. Damares ficou muito conhecida por suas pregações religiosas
preocupadas especialmente com a erotização infantil, a ameaça à família tradicional,
aborto, homossexualidade, movimentos LGBTI e Feministas (ALONSO, 2019). O
MMFDH desde sua criação, vem trabalhando de forma ativa em consonância com o
Executivo Federal, a fim de reestabelecer uma suposta ordem moral e a valorização de
preceitos morais, cristãos e tradicionais.

2
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45829796. Acesso em: 16/04/2021.
156

O que nos importa aqui é perceber o quanto o crescimento e o vigor com que a
FPE vêm atuando na esfera política está diretamente atrelada ao avanço das pautas
progressistas relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos e a questões de gênero,
percebidas genericamente por setores evangélicos como uma "ameaça a família
tradicional". Diversas pesquisas da área das ciências sociais (MACHADO, 2017;
MACHADO E BURITY, 2014; SÍVORI E FACCHINI , 2017) já demonstraram que
esse cenário foi se constituindo justamente como uma reação e resistência às mudanças
socioculturais, legais e políticas que convergem para o reconhecimento dos direitos das
mulheres e das pessoas LGBTI no Brasil, principalmente a partir da década de 1990,
quando o país passa por um cenário de criação de políticas públicas voltadas para a
priorização da diversidade e para a inclusão de minorias historicamente marginalizadas.
Nesse contexto, o cenário nacional se torna propício à ampliação dos direitos e à
instituição de um pluralismo cada vez mais difuso em concordância com as novas
diretrizes estabelecidas internacionalmente voltadas aos direitos humanos.
Por outro lado, há também a grande adesão por parte da população à estas pautas
conservadoras, representadas e defendidas por lideranças religiosas no Parlamento. Este
fenômeno ficou muito expressivo na última eleição, na qual Bolsonaro foi eleito diante
de grande parcela da população que se mostrava identificada com tal discurso moral-
cristão.
Segundo o sociólogo Pierucci, essas demandas advém de parte da população que
confunde a esfera política com a moralidade privada, e portanto, atribuem às
autoridades políticas o poder e até mesmo o dever de instaurar a ordem moral cristã na
sociedade como um todo (PIERUCCI, 1996a, pp. 165-166). Este debate traz à tona a
problemática da secularidade. A antropóloga Paula Monteiro contribui com a
importante perspectiva metodológica que destaca o papel da religião na formação do
espaço público, assumido como um espaço que se constitui discursivamente em
contraposição a outras esferas (MONTERO, 2012). É importante ressaltar, portanto, que
não há nenhum espaço na sociedade em que a religião não esteja presente, considerando
que a igreja católica é parte constituinte da construção do Estado brasileiro e do espaço
público. De acordo com Paula Montero (2018), a Igreja se beneficiou dessa relação para
desenvolver na sociedade civil, uma específica proximidade entre catolicismo e
patriotismo, construindo assim, uma determinada identidade nacional.
Portanto, é possível afirmar que presença da religião no espaço público não é
algo inédito, porém, o fenômeno da inserção de lideranças evangélicas na política
institucional
157

ainda é algo relativamente recente. O pesquisador Ronaldo Almeida (2019) coloca que
lideranças e parlamentares evangélicos possuem um conservadorismo ativo e
propositivo, isso significa que buscam mais do que conter os avanços das pautas
progressistas, mas disputam efetivar a moralidade evangélica como universal e pública,
reivindicando que seus valores morais sejam inscritos na ordem legal do país.
Destacamos que muitos desses valores estão relacionados à moralidade e a defesa de
uma configuração familiar específica, classificada por eles genericamente de "família"
ou ainda de "família cristã".
Segundo o sociólogo Juan Marco Vagionne (2005), a defesa da família estaria na
base da organização política dos atores religiosos, inclusive evangélicos. A expansão
dos direitos das minorias sexuais e dos direitos relacionados à reprodução são
percebidos como ameaça que a estrutura familiar tradicional estaria sofrendo na
atualidade. Os movimentos de agentes religiosos em sua mobilização na esfera política,
buscam influenciar processos eleitorais e também processos judiciais na oposição às
pautas defendidas pelos movimentos LGBT e feministas.
Neste sentido, a eleição do presidente Bolsonaro não é um fato isolado, está
relacionado diretamente a todo este processo descrito aqui. A movimentação reativa ao
avanços de pautas vinculadas aos direitos sexuais e reprodutivos está em curso desde o
início da entrada dos evangélicos na arena pública, porém, a complexidade de sua
articulação e o vigor com que esta reação ocorre, foi se reformulando ao longo do
tempo, acompanhando também o avanço das demandas suscitadas por grupos
minoritários e movimentos sociais vinculados à grupos feministas e LGBTQI.
As transformação na dinâmica política brasileira descrita acima são o pano de
fundo sobre o qual atores religiosos ligados à vertentes evangélicas buscam redefinir o
seu lugar na sociedade brasileira a fim de influir sobre a “religião civil” do país,
reconfigurando e gerindo novas formas de atuação cívica, como é o caso da entrada de
líderes evangélicos em Conselhos Tutelares.
O Conselho Tutelar passa a ser um novo campo de disputa em construção, que
não se restringe mais ao campo da política institucional, e a disputa de cargos eletivos
no poder legislativo e executivo. Esta mudança da política institucional para a atuação
na política de base, naquela que interfere diretamente nas famílias, pode representar
uma estratégia de "defesa da família", de uma configuração familiar específica, moldada
por valores por parte dos evangélicos, assim como pode vir a assumir função de uma
espécie de “escola” para evangélicos que se interessam pela atuação política, uma vez
que proporciona uma experiência primeira com o fazer político e o debate público.
158

Conselho Tutelar e a atuação de atores e igrejas evangélicas

A criação dos Conselhos Tutelares no Brasil está atrelada ao art. 227 da


Constituição de 1988, que garante a responsabilidade do Estado perante o direito das
crianças e dos adolescentes, mas foi principalmente em 1990 com a escrita e
promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que o Sistema de Garantia
de Direitos foi de fato efetivado (CUNHA, 2013). Entre os órgãos deste sistema estava
o Conselho Tutelar, órgão incumbido de proporcionar as circunstâncias de
desenvolvimento compatíveis com a infância (TEIXEIRA, 2021). Este período consiste
em um novo momento nos modos de participação civil junto ao Estado, na qual se torna
responsável por criar e efetivar políticas públicas no que concerne à infância
(BULHÕES, 2010).
Desde sua criação, os Conselhos Tutelares foram definidos como órgão
permanente, ou seja, os Conselhos Tutelares representam algo que existe e se organiza
independente do cenário político, isso garante que este dispositivo seja autônomo e livre
para cumprir suas atribuições e a forma de se executar, garantindo o fortalecimento de
uma instância protetiva de direitos junto ao Estado e à sociedade civil. Os conselhos
tutelares não pertencem ao Poder Judiciário, mas são considerados como um órgão
administrativo, ligado ao Poder Executivo (TEIXEIRA, 2021).
Na prática cotidiana, os conselheiros atuam diretamente junto à comunidade, são
acionados pelas instituições, como as escolas, e devem "fiscalizar" as famílias nos casos
de denúncias relativas aos direitos das crianças e dos adolescentes. Todo município
brasileiro deve possuir ao menos um Conselho Tutelar constituído por 5 conselheiros.
Os conselheiros tutelares são eleitos pela comunidade local através de voto
secreto e facultativo. Para se candidatar à conselheiro tutelar, segundo o artigo 133 do
ECA, é necessária a comprovação de idoneidade moral, isso significa que o candidato
não deve ter passagem pela polícia e nem antecedentes criminais, porém, na ausência
deste documentos, é aceita também uma carta de recomendação escrita por lideranças
locais. Esse quesito é interessante para pensarmos em como isto pode ser utilizado por
igrejas, considerando que a recomendação por parte de lideranças religiosas a fim de
indicar um conselheiro tutelar, pode representar para determinadas comunidades um
fator determinante de confiança e reconhecimento.
Em relação às atribuições, o Conselho Tutelar realiza a intervenção em situações
de risco e vulnerabilidade social sofrido por crianças entre zero a doze anos, e à
159

adolescentes entre doze a dezoito anos incompletos. Além desses casos, o Conselho
Tutelar tem também o poder de intervir em casos em que envolvam ameaça e violação
de direitos, entre as condições consideradas de risco estão a vulnerabilidade
habitacional, o abandono do ensino fundamental, a inadaptação familiar ecomunitária, a
prostituição, a utilização e a dependência de drogas ilícitas, a execuçãode atos
infracionais, a omissão ou abandono dos responsáveis (CUNHA, 2013).
É nesse universo de atuação que os atores evangélicos têm buscado operar,
através do lançamento de candidaturas de seus membros nas eleições para os Conselhos
Tutelares. A antropóloga Jaqueline Teixeira vem realizando levantamentos sobre essa
nova área de atuação de segmentos evangélicos. Segundo a autora:

As eleições para os conselhos tutelares em 2019 foram as mais


disputadas. No sul do país, na cidade de Porto Alegre, no pleito de 2019
houve um crescimento de 175% do número de candidatas/os em relação
aos anos anteriores, foram 385 pessoas concorrendo a 50 vagas, logo
após a apuração dos votos especulava-se que apenas 20 dessas vagas
tinham ido para pessoas cuja campanha não tinha sido feita em
associações religiosas. As chamadas candidaturas “abençoadas” foram
foco de vigílias de oração e de panfletagem,produzindo não apenas
números recorde de candidatura, mas filas nos postos de votação.
(TEIXEIRA, 2021, p. 19)

Fato semelhante foi observado na cidade de São Paulo. Dados do Jornal El País
apontam que 53% das/os conselheiras/os que tomaram posse em 2020 são pessoas
ligadas a igrejas evangélicas de tradição pentecostal e neopentecostal, e, muitas delas
ligadas à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD)3.
A atuação da Igreja Universal (IURD), destaca-se nesse universo, e é sem
dúvida uma importante articuladora e incentivadora de candidaturas de seus membros e
lideranças aos Conselhos Tutelares. Em 2019, o jornal Folha Universal, principal mídia
impressa e portal de notícias da igreja, dedicou quatro postagens para falar sobre a
importância das candidaturas de novas/os conselheiros tutelares. Para além das
publicações em seu jornal institucional de maior circulação, houveram postagens nos
blogs de lideranças centrais, tais como o do Bispo Edir Macedo,e de sua filha Cristiane
Cardoso.
Dessa maneira, os dados preliminares já apontam para esse interesse de atores
evangélicos, sobretudo ligados à IURD, nos Conselhos Tutelares de algumas capitais

3
Ver em < https://brasil.elpais.com/brasil/2020-12-15/igrejas-evangelicas-neopentecostais-dominam-
conselhos-tutelares-em-sao-paulo-e-no-rio.html?rel=buscador_noticias > Acesso em 10/04/2022.
160

brasileiras. Considerando que os conselheiros atuam diretamente junto à comunidade, e,


mais especificamente, junto às famílias, é necessário compreender quais são as
orientações que vêm sendo dadas pelas religiões evangélicas para "seus" candidatos aos
Conselhos e também o incentivo à votação por parte dos fiéis. Existem orientações
específicas relativas a esses temas no material de orientação das Igrejas? Em caso
afirmativo, quais seriam essas orientações?
Diversos vídeos postados no canal do youtube da Igreja Universal do Reino de
Deus e em outras redes sociais nos permite identificar que há um estímulo e uma
enorme campanha para que lideranças evangélicas se candidatassem para cargos de
Conselheiros Tutelares, e que fiéis participassem massivamente da votação.
Foi identificado também uma plataforma de cursos de capacitação voltados para
evangélicos coordenada pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. A
plataforma que recebe o nome de Escola Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (ENDICA)4, oferece diversos cursos de formação e extensão voltados à
profissionais que trabalham no Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do
Adolescente. Além de Conselheiros Tutelares, profissionais que atuam na Rede de
Atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS), no Sistema Educacional, na Rede
Socioassistencial, Conselhos de Direitos, Polícias Militares do Batalhão Escolar,
Delegacias de Proteção à Criança e ao Adolescente, Unidades de Acolhimento
Institucional, Vara da Infância e Juventude também podem se inscrever nos cursos.
A Plataforma ENDICA tem como intuito promover a capacitação e o
treinamento de profissionais que atuam de alguma forma com crianças e adolescentes,
estabelecendo uma rede concreta e direta entre o MMFDH e esses profissionais. Dentre
os principais cursos oferecidos estão: “A atuação dos Conselheiros de Direitos e
Conselheiros Tutelares”, “Convivência Familiar e Comunitária”, “Abuso e exploração
sexual”, além de cursos de especialização e cursos de Mestrado com estas mesmas
temáticas.
Os Conselhos Tutelares seriam um braço do Estado na qual pode ser ocupado
estrategicamente por sujeitos religiosos a fim de operacionalizar pautas vinculadas à
preceitos morais, uma vez que a posição do Conselheiro viabiliza a aproximação do
Estado com a sociedade civil e diretamente com as famílias. A inserção de lideranças
evangélicas nos Conselhos Tutelares poderia funcionar como um meio de se imputar as

4
Disponível em
<http://ens.ceag.unb.br/sinase/ens2/index.php?option=com_blankcomponent&view=default&Itemid=10>
Acesso em 06/02/2023.
161

concepções e valores pertencentes ao universo dessas religiões às famílias atendidas


pelos Conselhos, ou de exercer a "fiscalização" sobre a violação dos direitos das
crianças e dos adolescentes com base em preceitos religiosamente orientados.
Importa destacar que a análise da presença e da atuação dos atores evangélicos
nos Conselhos Tutelares ganha ainda mais centralidade a partir da eleição do ex
presidente Jair Bolsonaro em 2018, com o aumento de parlamentares evangélicos e com
a ocupação da pasta do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos por
Damares Alves, pastora evangélica ligada ao fortemente à Conselhos Tutelares. Nesse
contexto, as pautas sobre a infância passaram a serem muito debatidas principalmente
entre duas frentes parlamentares: a Frente Parlamentar Evangélica e a Frente
Parlamentar de Segurança Pública, o que ocasionou na criação de mais três Frentes
Parlamentares com este mesmo foco, sendo estas a Frente Parlamentar Mistade
Combate a Pedofilia; a Frente Parlamentar Mista da Primeira Infância e a Frente
Parlamentar de Incentivo a Adoção de Crianças, responsável também por alterações em
artigos do ECA5.
A principal alteração realizada pelo governo referente ao ECA foi a Lei
13.824/2019 aprovada em maio de 2019 que alterou o art. 132, na qual estabelece novos
requisitos para o processo de escolha dos membros dos Conselhos Tutelares, facilitando
a entrada de representantes de grupos evangélicos neste órgão. Até então, cada
conselheiro tutelar não poderia ser reconduzido mais de uma vez, isso foi modificado a
partir desta lei, o que facilitou a permanência de segmentos religiosos, devido à sua
força em eleger lideranças religiosas para o Conselho Tutelar. Essa alteração tende à
dificultar a rotatividade democrática de eleição de conselheiros tutelares.
Além disso, Damares Alves alterou a forma de promover a relação direta com a
gestão dos Conselhos Tutelares, na qual passou a ser promovida através de programas
lançados pela Secretaria da Criança, vinculado ao Ministério da Família e dos Direitos
Humanos, assim como pela criação de plataformas. Em diversas plataformas e eventos,
Damares e seus assessores viabilizam o contato com conselheiros tutelares de forma
direta, disponibilizando materiais, cartilhas com orientações, cursos de formação e até
mesmo um número de whatsapp para contato direto. Essas cartilhas e os materiais
produzidos por duas secretarias ligadas ao MMFDH, a secretaria da criança e a
secretaria da família, também serão alvo de nossa análise nesta pesquisa.

5
Ver
em
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/183226/INFANCIA_E_PARLAMENTO.pdf?seque
nce=3&isAllowed=y Acesso em 04/05/2021.
162

A atuação da ex-conselheira Tutelar como Ministra chamou muito a atenção em


relação à sua preocupação com os Conselhos Tutelares e com a defesa dos direitos das
crianças e adolescentes. Essa pauta a acompanha desde o início de sua carreira na vida
pública, quando atuava como missionária e pastora da Igreja do Evangelho
Quadrangular. Como ministra, Damares desde o início esteve comprometida com a
questão da infância, reconhecendo a família como lugar de vulnerabilidade infantil. Sua
liderança como ministra torna evidente o foco no fortalecimento e na reformulação dos
Conselhos Tutelares.
Através de diversas plataformas, Damares promoveu eventos e lives onde
disponibilizou materiais e cartilhas, como a "Família Protetora"6, e estabeleceu uma
relação direta com conselheiros tutelares que a solicitarem. Essa relação direta entre um
órgão do Poder Executivo Federal e Conselhos Tuteares ganhou visibilidade s em 2020,
devido ao caso da menina de dez anos que foi vítima de violência sexual por parte de
seu tio. Esse caso se tornou palco de disputa envolvendo Conselheiros Tutelares da
cidade, que eram contrários ao aborto e repassaram o caso para a assessoria da Ministra
Damares, na qual passou a intervir pessoalmente. Tal caso tornou-se alvo de denúncia
por parte do Ministério Público, a fim de investigar se Damares Alves havia realizado
cerceamento de Direitos Humanos.
Damares inaugurou uma específica relação de proximidade entre o Estado e a
sociedade, em particular, trouxe uma nova concepção acerca do papel e função dos
Conselhos Tutelares, conscientizando os evangélicos acerca do motivo pela qual
deve-se ocupar este espaço. Além da atuação de Damares Alves, também foram
construídas várias estratégias de racionalização e engajamento por parte de igrejas
evangélicas afim de obter vitória de seus pares em cargos de conselheiros. Campanhas
de conscientização sobre a importância dos Conselhos incidiram no desenvolvimento do
que se pode chamar de pedagogia de construção de engajamento, ou seja, o Conselho
Tutelar passou a ser visto como um espaço na qual a igreja poderia atuar frente à
sociedade, e mais do que isso, um local de formação e aprendizado para líderes
religiosos sem experiência política se inserirem na arena pública.
Muitos atores evangélicos iniciaram suas carreiras políticas no Conselho Tutelar,
o que mostra que esse espaço representa um canal que interliga indivíduos até então

36
Ver em https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/maio/FAMILIAPROTETORA.pdf
Acesso em 10/04/2021.
163

marginalizados pela sociedade com possíveis espaços de tomada de decisão. Em


entrevista, um Conselheiro Tutelar mencionou que “Conselheiros Tutelares possuem a
mesma responsabilidade de juízes”.
Os Conselhos Tutelares, nesse sentido passam a funcionar como um espaço de
exercício político, onde há formação, aprendizado, conexões são feitas, e onde atores
evangélicos atuam frente à funções sociais, além de proporcionar a possibilidade de
atuar futuramente como assessores parlamentares em câmaras municipais, estaduais,
federais ou até mesmo em escala maior, como na disputa por cargos legislativos.

Resultados prévios

Considerando que a pesquisa ainda está em andamento, os resultados ainda são


inconclusos, porém, é possível levantar algumas questões pertinentes até o momento.

A primeira questão é considerar que os Conselhos Tutelares representam para


alguns setores de grupos evangélicos uma pedagogia de construção de engajamento e
inserção no espaço público, na qual o Conselho Tutelar funciona como um espaço de
formação, aprendizado e engajamento de líderes religiosos no ambiente político. A
partir dessa experiência prévia em Conselhos Tutelares, esses líderes passam a atuar em
outros cargos e funções da política institucional.

Uma segunda discussão que pode ser levantada a partir do que foi coletado até
aqui é o teor das campanhas dos Conselheiros Tutelares da última eleição. Alguns
elementos se sobressaíram, como a questão da identidade religiosa: foi observado que a
identidade religiosa se torna um instrumento de verificação da confiança utilizado para
construir a ideia de que o candidato evangélico se preocupa mais com a família do que
os outros. Nesse sentido, podemos também apontar a categoria família como sendo a
pauta mais mobilizada destas campanhas, e principalmente ênfase na ideia de que a
família é portadora de direitos, dessa forma a “proteção da criança” é acionada para
justificar a proteção da família. Portanto, a mobilização da chamada “ideologia de
gênero” é trazida à discussão para a elaboração da narrativa sobre a ameaça à família.

Diante destas considerações, é possível compreender esta dinâmica como uma


ampliação da noção de participação política, na qual sujeitos religiosos que não são
restritos à Igreja Católica como antes, passam a atuarem enquanto sujeitos políticos e o
Estado passa a ser disputado por mais parcelas da população, enquadrando em um novo
164

formato e padrão de participação política com novos atores, mecanismos e dispositivos,


em uma gramática pentecostal cujas demandas e agenda convergem de forma
conflituosa com outros grupos sociais.

Referências
ALMEIDA, Ronaldo. Deus acima de todos. In: Democracia em Risco? 22 ensaios
sobre o Brasil Hoje. São Paulo, Companhia das Letras, p. 35-51, 2019ª.

. Bolsonaro Presidente Conservadorismo, evangelismo e a crise


brasileira. São Paulo, Novos estudos- CEBRAP, 185-213, 2019b.

ALONSO, Ângela. A comunidade moral bolsonarista. In: Democracia em Risco? 22


ensaios sobre o Brasil Hoje. São Paulo, Companhia das Letras, p. 35-51, 2019.

BORTOLIN, Paula. A controvérsia em torno do projeto de lei 122/2006: Uma análise


da oposição de parlamentares evangélicos à criminalização da homofobia. Dissertação
de Mestrado em Ciências Sociais, Unifesp. Guarulhos, 2018.

BRASIL, Câmara dos Deputados. Estatuto da Frente Parlamentar Evangélica.


Disponível em:< http://www.camara.leg.br/internet/deputado/ Frente _
Parlamentar/53658- integra.pdf>. Acesso em: 17 ago. 2020.

BRASIL, Câmara dos Deputados. Estatuto da Frente Parlamentar Evangélica.


Disponível em: <http://www.camara.leg.br/internet/deputado/Frente_ Parlamentar/
53466- integra.pdf>. Acesso em: 17 ago. 2020b.

CAMURÇA, Marcelo. RELIGIÃO, POLÍTICA E ESPAÇO PÚBLICO NO BRASIL:


perspectiva histórico/sociológica e a conjuntura das eleições presidenciais de 2018.
Estudos de Sociologia, Recife, Vol. 2 n. 25. 2019.

CASANOVA, José. Private and Public Religions. In: Public Religious in the Modern
World, Chicago and London, University of Chicago Press, 1994.

DUARTE, Tatiane dos Santos. Cultura religiosa e direitos humanos no cotidiano do


legislativo brasileiro. Vol. VII/ Nº2/ p.156-170, 2013.

FRESTON, Paul. Breve história do pentecostalismo brasileiro. In: ANTONIAZZI,


Alberto et al. Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do
pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994.

GONÇALVES, Rafael Bruno. A atuação de Marco Feliciano na comissão de Direitos


Humanos e Minorias (CDHM). Mandrágora, v.23. n. 2, p. 205-245, 2017.

GIUMBELLI, Emerson. A presença do religioso no espaço público: modalidades no


Brasil. IN: Religião e Sociedade v.28 n.2. Rio de Janeiro, 2008.
165

MACHADO. Maria das Dores Campos. Religion and moral conservatism in brazilian
politics. Politics and Religion Journal. V. 12, p. 55-77, 2018.

. Pentencostais, sexualidade e família no


Congresso Nacional. Horizontes Antropológicos (UFRGS. Impresso), v. 47, p.
351-380, 2017.

; BURITY, Joanildo. A ascensão política dos


pentecostais no Brasil na avaliação de líderes religiosos. Dados, vol.57, n.3, p. 601-631,
2014.

MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil.


São Paulo: Edições Loyola, 1999.

; GERARDI, André Dirceu. Eleições presidenciais na


América Latina em 2018 e ativismo político de evangélicos conservadores. Revista
USP. São Paulo, n. 120, p. 61-76, janeiro/fevereiro/março 2019.

MONTERO, Paula. Syncretism and Pluralism in the Configuration of Religious


Diversity in Brazil. Mecila: Working Papers Series, v. 04, p. 01-16, 2018.

NOVAES, Regina Reynes. A divina política: notas sobre as relações delicadas entre
religião e política. Revista da USP, São Paulo, vol.49, p.60-81, Mar-Mai, 2001.

ORO, Ari Pedro. A política da Igreja Universal e seus reflexos nos campos religioso e
político brasileiros. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 2003.

PRANDI, Reginaldo; SANTOS, Renan William do. Quem tem medo da bancada
evangélica? Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 29, n. 2. 2017.

TEIXEIRA, Jaqueline. Infância, religião e conservadorismo nas disputas pelos


conselhos tutelares no Brasil. 2021, No Prelo.

VAGGIONE, Juan Marco. Reactive Politicization and Religious Dissidence. The


Political Mutations of the Religious in Social Theory and Practice. Social Theory and
Practice, vol. 31, n. 2: 233-255, 2005.

VITAL DA CUNHA, Christina e LOPES, Paulo Victor Leite. Religião e Política: uma
análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de
LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2013.
166

CENOTÁFIOS NAS VIAS: MEMÓRIAS, REPRESENTAÇÕES E


RITUALIZAÇÕES DA MORTE NAS ESTRADAS

Elisa Gonçalves Rodrigues1

Resumo: Esta proposta é um recorte de ideias advindas de minha dissertação Espaços da


morte na vida vivida e suas sociabilidades no Cemitério Santa Izabel em Belém-PA:
Etnografia Urbana e das Emoções numa cidade cemiterial (PPGSA-UFPA), que visa
apresentar as representações e ritualizações da morte e do morrer nas estradas paraenses
através das memórias e narrativas dos moradores das bordas das vias, BRs, estradas e
rodovias. Ancorada nas dimensões da Antropologia Urbana, das Emoções, da Morte e do
Imaginário, busco interpretar o ritual, a manutenção da memória e do que fixa o morto
nas rodovias em suas diversas maneiras materiais e simbólicas que abarcam este ritual
urbano. Compreendendo o cenotáfio como representação simbólica do corpo, aloco esta
categoria para pensar a agência dos objetos e as construções tumulares nos locais onde
aconteceram as mortes. As narrativas dos moradores, que por vezes presenciam os
acidentes e as mortes, compõem parte do trabalho, além das imagens dos mausoléus e
cruzes nas estradas. Sendo assim, noto que as sociabilidades em torno deste rito fomentam
uma perspectiva dialógica ao processo ritual cemiterial, com diferentes movimentações
frente aos ritos, sendo repassado a cada geração, rompendo a temporalidade das mortes.
Palavras-chave: Morte. Ritual. Memória.

Abstract: This proposal is a clipping of ideas arising from my dissertation Spaces of


death in lived life and their sociabilities in Santa Izabel Cemetery in Belém-PA: Urban
Ethnography and Emotions in a cemetery city (PPGSA-UFPA), which aims to present the
representations and ritualizations of death and dying on the roads of Pará through the
memories and narratives of the residents of the roadsides, BRs, roads and highways.
Anchored in the dimensions of Urban Anthropology, Emotions, Death and the Imaginary,
I seek to interpret the ritual, the maintenance of memory and what fixes the dead on the
highways in their various material and symbolic ways that encompass this urban ritual.
Understanding the cenotaph as a symbolic representation of the body, I allocate this
category to think about the agency of objects and the tomb constructions in the places
where the deaths took place. The narratives of residents, who sometimes witness
accidents and deaths, make up part of the work, in addition to images of mausoleums and
crosses on the roads. Therefore, I note that the sociabilities around this rite foster a
dialogical perspective to the cemetery ritual process, with different movements in relation
to the rites, being passed on to each generation, breaking the temporality of deaths.
Keywords: Death. Ritual. Memory.

1
Doutoranda em Antropologia (PPGSA-UFPA). Mestra em Antropologia (UFPA) e Graduada em
Ciências Sociais (UFPA). É pesquisadora associada da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais
(ABEC). Integra o Grupo de Pesquisa Antropologia das Paisagens: memórias e imaginários na Amazônia
- CNPq. E-mail: elisagoncalves00@gmail.com.
167

Introdução

Em minhas deambulações pelas estradas em direção ao Cemitério Santa Izabel em


Belém-PA, locus de pesquisa na graduação, mestrado e doutorado, notei algumas
semelhanças em cruzes fincadas na BR 136 - uma rodovia na mesorregião nordeste do
estado do Pará que liga principalmente os municípios de Castanhal e Abade -, conhecidas
como cenotáfios, representando mortes diversas, normalmente relacionadas a acidentes
de trânsito, mas também escutei relatos de assassinatos onde o ritual é o mesmo.

Após investigar e tecer redes (BOTT, 1975) com alguns dos moradores próximos
dessas cruzes, pude então compreender o movimento que se faz e em como estes objetos
e construções são feitos e ritualizados (GENNEP, 2011). As casas das estradas,
construídas de maneiras espaçadas no decorrer das rodovias, estimulam diversas
dimensões do medo (GILBERT DURAND, 1989:66) em determinadas curvas da estrada
que são consideradas perigosas, e por isso, os acidentes costumam acontecer em
determinados lugares e não em outros.

Para melhor situar os leitores, explico que os cenotáfios são formas de homenagem
às pessoas cujo restos mortais não se tem localização, e são de suma importância para o
trabalho do luto e ritual da morte. O simbolismo fortemente cultuado através dos
cenotáfios espalhados no mundo inteiro permitem que a peregrinação, turismo e devoção
por pessoas importantes e conhecidas sejam efetuadas. Como muitas outras palavras, o
cenotáfio provém do grego. Está formado pela raiz kenos, que significa vazio, e por
taphos, que significa túmulo. Portanto, um cenotáfio é um túmulo em que não há uma
pessoa falecida.

Sobre alguns cenotáfios

O Brasil possui diversos cenotáfios que compõem a memória e a narrativa de


vários espaços no país. Em muitos panteões nacionais e de todo o mundo existem algumas
modalidades deste tipo de ritual, já que normalmente ocorre com os túmulos de
personalidades famosas que têm um valor simbólico e não incorporam o cadáver do
ilustre indivíduo.

Mas, diferente deste tipo de cenotáfio, as representações históricas costumam ser


expressas através deste tipo de memória material. O Panteão da Inconfidência é um
168

exemplo, local onde estão os restos mortais de 13 dos 24 inconfidentes sentenciados (os
que não estão ali, ou são porque não tiveram seus túmulos localizados ou porque não se
sabe a identificação). Há, ainda, uma lápide vazia, representando os que ali não estão.

Outro exemplo desse tipo de construção simbólica é o cenotáfio de Mozart,


construído ao lado de Beethoven, possuindo uma sepultura nos "sepulcros de honra" do
Zentralfriedhof, no Cemitério Central de Viena. O cenotáfio existe pois Mozart morreu
sem recursos em 1791 e foi enterrado em uma vala comum sem caixão, de acordo com
um decreto do então imperador José II, por isso quase um século depois foi impossível
identificar seus ossos. Tal construção permite não só o rito fúnebre, mas visitações de
músicos do mundo inteiro para conhecer a representação física do grande artista.

Ainda na escala estrangeira, o cenotáfio em Whitehall, em Londres, chamado de


The Glorious dead foi construído em 1920 por sir Edwin Lutyens para homenagear os
mortos da Primeira Guerra Mundial. Já a Caverna dos Patriarcas ou Gruta de Macpela é
um monumento muito procurado por religiosos, pois nele há a representação de quatro
casais bíblicos importantes: Adão e Eva; Abraão e Sara; Isaque e Rebeca, Jacó e Lea.

Parte dessas construções ligam-se ao simbólico dos corpos e suas representações


físicas, como é o caso das cruzes nas estradas. De maneira dialógica, e por normalmente
estarem fincadas em lugares distantes de cemitérios, tais cruzes acabam sendo a extensão
mais próxima de um campo-santo, condensando grande parte dos rituais mortuários e
funerários que são feitos pela comunidade aos arredores, segundo moradores com quem
pude conversar.

Construções metodológicas

Metodologicamente lancei mão da Etnografia de Rua (ECKERT; ROCHA, 2003),


que me permitiu explorar as estradas com construções de cenotáfios e suas imediações
através das minhas passagens sem destino fixo – mas com intencionalidade etnográfica -
, buscando perceber/enxergar detalhes que despertem a atenção e a curiosidade da
percepção de eventos/episódios/situações vividas no coletivo, mediante observações
diretas e atentas às ações dos sujeitos naquele contexto – considerando, ainda, as
conversas e entrevistas como parte relevante do estudo - que envolveram, por isso mesmo,
deslocamentos constantes de minha parte no cenário urbano.
169

Um dos exercícios da etnografia de rua inclui, então, o uso da "câmera na mão"


junto da caminhada, no caso desta pesquisa, trata-se do celular na mão. Os registros das
imagens fotográficas feitos, ou por vezes “roubados”, furtivamente obtidos, fez parte do
processo de realização da etnografia. Essa prática da "etnografia de rua" também segue a
proposta de observation flottante, como Pétonnet (2008) denominou o exercício de
observação de pesquisa na rua, em movimento.

Assim, de acordo com Eckert e Rocha (2003), a etnografia "na" rua que amarra as
perspectivas desse recorte de pesquisa consiste na observação sistemática nas ruas e
avenidas, bem como dos cenotáfios, e na descrição etnográfica dos cenários, dos
personagens que conformam a rotina da vivência com essas representações e a
constituição das relações ali presentes. Ainda na perspectiva antropológica urbana,
também me ancoro na Etnografia da Duração, que se propõe pensar através das narrativas
dos grupos sociais, a memória dos lugares de pertença e dos lugares de vivência
(ECKERT; ROCHA, 2010).

Cenotáfios nas estradas

Com construções feitas utilizando diferentes tipos de materiais, com espaços para
ritualizar com velas e flores, correspondendo a uma dimensão simbólica dos campos
santos às margens das vias, os cenotáfios se espalham pelas vias, e tal qual nos cemitérios,
especialmente os urbanos, tais cruzes reaparecem ao sujeito nas datas simbólico-coletivas
(RODRIGUES; SILVEIRA, 2022), compondo parte do ritual mortuário nas datas
destinados aos ritos cemiteriais, como ocorre em Finados.

Em conversas com moradores das margens das estradas onde registrei parte dos
cenotáfios, percebi o distanciamento e a aproximação, numa mesma medida, em relação
às cruzes. Quando pensamos no deslocamento de um objeto mórbido, fúnebre, e o
retiramos do lugar que lhe adequado convencionalmente - o cemitério -, para um espaço
de vida conduz uma expectativa, ou melhor, uma quebra de expectativa quanto ao uso
desses objetos na consagração do que se entende por rito funerário (PADOVESE, 2002),
uma vez que, quando estão fora do espaço cemiterial, não cumprem seu papel, e mais que
isso, levam consigo a morbidez objetal que os acompanham dentro do cemitério.
170

A relação com as velas, as flores, as placas de agradecimentos e diversos outros


objetos trazem à tona o modo como estes materiais também atravessam e sustentam as
relações entre transeuntes e os mortos nas estradas, sendo, portanto, uma extensão física
da devoção/visita, uma vez que agência do objeto não está somente distribuída na rede de
relações, não dependendo só dessa perspectiva, pois a agência refere-se àquela pessoa: é
ela quem atribuiu a agência a um objeto ao produzí-lo, usá-lo e/ou significá-lo, ou seja, a
intencionalidade do agente humano é central (GELL, 1998), portanto, o contexto o
permeia e se torna parte inseparável dele (GELL, 1977, p.31).

Notei que há uma semelhança no culto às almas que morreram nas estradas, mas
que ocorrem de formas diferentes aos cultos feitos nos campos-santos. As consagrações
de Santos Milagreiros ocorrem e constituem parte do imaginário (DURAND, 1989) local,
especialmente diante da tragicidade da morte, sendo estas almas procuradas para pedidos
de graças, e assim que alcançadas, a manutenção e construção de uma nova cruz ou
túmulo é feita, como sinal de agradecimento diante da graça alcançada.

Imagem 1 - Cenotáfio na estrada

Fonte: Elisa Rodrigues, 2021.

Na imagem abaixo, vê-se que houve um pedido, seu cumprimento e uma nova
construção do cenotáfio como agradecimento às graças alcançadas. Esse movimento é
comum em tais cruzes, construindo o que chamo de milagreiros rotativos, uma vez que,
171

segundo moradores, há sempre uma nova pessoa fazendo pedidos e agradecendo as


graças, dada a rotatividade das estradas, não possuindo um caráter perpétuo.

Moradores também relatam que é possível fazer o pedido em uma cruz, e se


atendido, agradecer em outra, fazendo desse movimento um ritual rotativo, constante e
frequente nas grandes estradas:

Imagem 2 - Cenotáfio na estrada após graça alcançada

Fonte: Elisa Rodrigues, 2021.

Os mortos servem para afirmar, para circunscrever os vivos, segundo Manoela


Carneiro da Cunha (1978:145), e nesse processo de representação, as memórias dos
moradores foram de fundamental importância para a composição desta investigação
inicial. É a partir destas memórias, recorrentes através das tradições (HOBSBAWM,
1990), que conseguimos compreender os processos de transformação, as ressurgências e
as rupturas instauradoras do passado proposta por François Dosse (2004:184) quando
coloca que “[a] história envereda cada vez mais pelos caminhos obscuros e complexos da
memória até em seus modos extremos de cristalização, tanto ideais quanto materiais”.

Dona Maria, uma das moradoras de um dos cenotáfios que registrei, diz que há
uma enorme comoção quando alguma cruz é arrancada da estrada pela prefeitura, bem
como mobilização para construção ou mesmo a recolocação do cenotáfio retirado:

A gente fica muito chateado quando eles vêm aqui limpar e arranca a cruz. Não
tem necessidade, sabe? E a gente vai lá em Finados, a gente conhece os
parentes de quem morreu ali, sabe quem são, e a gente também vê gente
cultuando. Aqui não tem cemitério por perto, às vezes é lá que a gente acende
alguma vela e em Finados tem sempre algumas pessoas deixando vela, flores,
é uma forma de culto pra quem tá longe do corpo ou que está passando.
172

Imagem 3 - Cenotáfio com resquícios de Finados de 2021

Fonte: Elisa Rodrigues, 2021.

Diante das emoções de Dona Maria, diálogo com Rezende e Coelho (2010:62)
quando dissertam sobre como “o indivíduo, ao falar do que sente, comunica-se consigo
mesmo através dos outros, compreendendo, por meio desta expressão, aquilo que sente.”
A fé rogada pela prece, um dos rituais feitos para pedir uma graça ou agradecer por ter
alcançado uma, é também um movimento feito coletivamente pelos devotos às almas das
estradas, em que os moradores do local e os familiares das vítimas expressam emoções
individuais e coletivas, e conforme Mauss (1979), pertence tanto à crença quanto ao culto:

Mais do que qualquer outro sistema de fatos, ela participa ao mesmo tempo da
natureza do rito e da natureza da crença. É um rito, pois ela é uma atitude
tomada, um ato realizado diante das coisas sagradas. Ela se dirige à divindade
e à influência; ela consiste em movimentos materiais dos quais se esperam
resultados. Mas, ao mesmo tempo, toda prece é sempre, em algum grau, um
credo. Mesmo onde o uso a esvaziou de sentido, ela ainda exprime ao menos
um mínimo de ideias e de sentimentos religiosos. Na prece o crente age e
pensa. E a ação e pensamento estão estreitamente unidos, brotam em um
mesmo momento religioso, num único e mesmo tempo. Esta convergência é
aliás bem natural. A prece é uma palavra. Ora, a linguagem é um movimento
que tem um objetivo e um efeito; é sempre no fundo um instrumento de ação.
Mas, age exprimindo ideias, sentimentos que as palavras traduzem para o
exterior e substantificam. Falar é ao mesmo tempo agir e pensar: eis porque a
prece pertence ao mesmo tempo à crença e ao culto. (MAUSS, 1979. p. 103)

Tal prece se materializa nas novas construções feitas após as graças, nas flores e
coroas deixadas para estas almas nos locais de sua morte. Essa devoção, feita tanto por
173

familiares quanto por transeuntes das estradas representam a extensão dos espaços da
morte como os cemitérios, e concretizam nas estradas densas representações afetivas de
um ente querido, movimento para além do que se entende pelas cruzes, que normalmente
são sinônimos de um “alerta” para motoristas desatentos informando que ali já morreu
alguém.

Imagem 4 - Cenotáfio construído após graça alcançada

Fonte: Elisa Rodrigues, 2021.

As memórias que constituem estes espaços (SILVEIRA, 2004) nas vias fazem
parte do ato de rememorar, um constante exercício de trabalho realizado pelo de sujeito
que recorda (HALBWACHS, 2006; RICOEUR, 2007). Dentro destas memórias, há
desdobramentos da fé, do medo, do culto e de outras configurações coletivas nas
proximidades das cruzes.

Os cenotáfios também constituem paisagens do medo (TUAN, 2006),


especialmente a noite, onde moradores costumam relatar vozes e pedidos de socorro
próximo às cruzes das estradas. Há também alguns outros relatos sobre “gente ruim”,
como seu João chamou, que significa uma pessoa que faz coisa ruim, é desonesta ou
mesmo faz “trambicagem” com o pessoal comunidade. João, numa conversa comigo, diz
que as curvas mais perigosas são perto da casa destas pessoas:
174

Olha, tem um pessoal aqui da comunidade que não é muito gente boa, minha
filha. ali na frente morre gente direto de acidente, pode ver que tem outros
buracos de cruzes, mas a prefeitura sempre arranca quando limpa. Eu tenho é
medo de passar ali na frente, sempre que passo é devagar, atento, para não
acontecer nada comigo. E a noite? Hum. A gente escuta aqui alguns pedidos
de socorro perto desses lugares, mas ninguém vai lá ver o que é, está tudo
escuro.

As afetações (FAVRET-SAADA, 2010) que permeiam determinados lugares das


estradas, conforme afirma seu João, também constituem os encontros coletivos que
desembocam, nas datas simbólico-coletivas, no cemitério mais próximo do local, o
Cemitério Municipal da Vila de Getúlio Vargas “Cândido Duarte”, fundado em 1999. O
interlocutor comenta que sempre se reúnem algumas pessoas, numa espécie de cortejo em
carros e motos, para ir de alguma cruz até o cemitério e continuar as preces no cruzeiro
das almas.

Imagem 5 - Cemitério Municipal da Vila de Getúlio Vargas “Cândido Duarte” (1999)

Fonte: Elisa Rodrigues, 2021.

Dona Carla relatou como funcionam tais datas na ida até o cemitério:
175

Sempre nos reunimos numa das cruzes da estrada, normalmente a mais


próxima daqui, e vamos seguindo até lá com velas. Deixamos algumas velas
na cruz também, afinal, essas almas precisam ser iluminadas já que os postes
mesmo da prefeitura não contam [contou rindo]. Sempre levamos alguns
banquinhos, umas comidas e rezamos no cemitério e conversamos sobre o que
a pessoa fazia, e assim a gente faz a nossa Iluminação2.

As sociabilidades (SIMMEL, 1983) desenhadas neste percurso que dona Carla


relata muito se aproxima de outras lugares do Pará que tem como ritual em Finados a
Iluminação dos Mortos, como Curuçá-PA e Salinópolis-PA, duas cidades onde acontece
a Iluminação, uma festa no Dia dos Mortos para homenagear e estar próximo, de maneira
não enlutada, os que já se foram.

Considerações finais

Por ser um trabalho experimental dentro de minhas pesquisas, certamente após


novas entrevistas outros desdobramentos acontecerão e poderão dimensionar novas
perspectivas ainda não visualizadas até então. Portanto, ainda há ambiências e
perspectivas do sensível (MAFFESOLI, 1994) para serem investigadas.

Neste trajeto inicial pude notar e configurar algumas dimensões da morte e do


morrer nas estradas e as ritualizações coletivas que são feitas nestes espaços das rodovias.
Outras dimensões da sensorialidade (LE BRETON, 2016) através da materialidade do
(PELLINI 2016), tratam da maneira como a materialidade do mundo nos impacta através
dos sentidos, e por isso, determina a força e a qualidade dos processos de lembrar e
esquecer. O ritual, neste contexto, opera dentro de uma relação corporal onde a
estimulação ou o controle sensorial criam e sedimentam as memórias e subjetividades
deste processo.

Em novas oportunidades de deambulações, tecerei novas redes e táticas para


compreender e participar dos cortejos até o cemitério e compreender as sociabilidades
(SIMMEL, 1983) que se desenvolvem nesse percurso e no ritual de iluminação nas
estradas.

2
Iluminação dos Mortos é um ritual onde os túmulos são enfeitados com grinaldas de flores, velas
são acesas e preces são realizadas pelos praticantes, que por vezes usam camisas personalizadas
homenageando o morto familiar para honrar seus antepassados (SALES, 2022).
176

Referências Bibliográficas:

BOTT, Elisabeth. Família e rede social. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Os mortos e os outros: Uma análise do sistema
funerário e da noção de pessoa entre os índios krahó. São Paulo, Hucitec, 1978.
DOSSE, François. História e Ciências Sociais. Trad. Fernanda Abreu. Bauru: Edusc,
2004.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Tradução de Hélder
Godinho. 1ª edição. Lisboa, Presença, 1989.
ECKERT, C.; ROCHA, A. L. C. da. Etnografia de Rua: Estudo de Antropologia Urbana.
ILUMINURAS, Porto Alegre, v. 4, n. 7, 2003. DOI: 10.22456/1984-1191.9160.
Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/iluminuras/article/view/9160. Acesso em:
15 fev. 2023.
FAVRET-SAADA, Jeanne. “Ser afetado”. Cadernos de Campo, n.2005.p.155-161,
2010.
GELL, Alfred. Magic, perfume, dream. In: Symbols and sentiments: Cross-cultural
studies in symbolism, p. 25-38, 1977.
GELL, Alfred. Art and Agency: an anthropological theory. Oxford: Oxford University
Press, 1998.
GENNEP, Arnold Van. Os ritos de passagem: estudo sistemático dos ritos da porta e da
soleira, da hospitalidade, da adoção, gravidez e parto, nascimento, infância, puberdade,
iniciação, coroação, noivado, casamento, funerais, estações, etc. Petrópolis: Vozes, 2011.
HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo, Centauro, 2006.
HOBSBAWM, Eric; Ranger, Terence. A invenção das tradições. RJ: Paz e Terra, 1990.
LE BRETON, David. Antropologia dos Sentidos. Tradução Francisco. Morás.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.
MAUSS, Marcel. A Prece. In: Roberto Cardoso de Oliveira (Org.). Marcel Mauss:
Antropologia. Tradução de Regina Lúcia de Mora es Morel. São Paulo: Ática, 1979
(Coleção Grandes Cientistas Sociais).
MAFFESOLI, Michel. O poder dos espaços de representação. Rio de Janeiro:
TempobBrasileiro, no 116, 1994.
PADOVESE, L. Diálogos entre Santos de Mármore. Petrópolis: Vozes, 2002.
PELLINI, José Roberto. Rituais: afetos, sentidos e memórias. Uma proposta. Habitus:
Goiânia, 14(1), p. 141-156, jan/jun. 2016.
PÉTONNET, Colette. Observação Flutuante: o exemplo de um cemitério parisiense.
Antropolítica. Niterói, n. 25, p. 99-111, 2. Sem. 2008. Acessado em 03/11/2021, do
http://www.uff.br/antropolitica/revistasantropoliticas/revista_antropolitica_25.pdf.
177

REZENDE, Claudia Barcellos; COELHO, Maria Cláudia. Antropologia das Emoções.


Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas. Série Sociedade e Cultura, 2010.
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa 1. A intriga e a narrativa histórica. Tradução:
Claudia Berliner. São Paulo: WMF Martins Fontes. 2010.
ROCHA, A. L. C. D; ECKERT, C. Cidade narrada, tempo vivido: estudos de etnografias
da duração. Rua [online]. Campinas, 2010 v. 16, n.1. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rua/article/view/8638850. Acesso em:
15 fev. 2023.
RODRIGUES, E. G.; ABREU DA SILVEIRA, F. L. . ÀS PORTAS DAS CIDADES
URBANA E CEMITERIAL NA CIDADE DE BELÉM (PA). Revista Conhecimento
Online, [S. l.], v. 1, p. 67–85, 2022. DOI: https://doi.org/10.25112/rco.v1.2867.
Disponível em:
https://periodicos.feevale.br/seer/index.php/revistaconhecimentoonline/article/view/286
7. Acesso em: 05 fev. 2023.
SALES, Valéria Fernanda Sousa. Saudades, Reencontros e Manicuera:
espetacularidades entrecruzadas de afeto na Iluminação dos Mortos em Curuçá-PA. 2022.
175f. Tese (Doutorado em Artes) – Programa de Pós-Graduação em Artes, UFPA, Belém-
PA.
SILVEIRA, F. L. A. As paisagens fantásticas e o barroquismo das imagens. Estudo
da memória coletiva dos contadores de causos da região missioneira do Rio Grande do
Sul. In: Tese de doutorado. Porto Alegre: UFRGS, 2004.
SIMMEL, Georg. Sociabilidade, um exemplo de Sociologia pura e formal. In:
MORAES E FILHO. E .D. (org). São Paulo: Ática, 1983.
TUAN, Yi-Fu. Paisagens do medo. Tradução de Lívia de Oliveira. 1a edição. São Paulo,
Unesp, 2006.
178

ENTRE CASAS, COMÉRCIOS E TEMPORALIDADES: uma etnografia nos


entornos da Arena do Grêmio
Autor: Bruno Guilhermano Fernandes (PPGAS/MN/UFRJ)1

RESUMO

O presente artigo apresenta um recorte analítico oriundo de uma dissertação de mestrado. Trata-se de uma
investigação etnográfica em um contexto urbano, caracterizado e alterado pela presença de uma arena multiuso
(ou estádio de futebol), além de outras infraestruturas. De modo geral, na pesquisa de mestrado, privilegiei os
efeitos da construção de um conjunto de empreendimentos para famílias de comerciantes e suas casas, além da
formação de práticas econômicas diversas e modos específicos de ganhar a vida. Empiricamente, analiso
dinâmicas e aspectos que singularizam o bairro Farrapos, onde se localiza a chamada Arena Porto-Alegrense
(estádio do Grêmio Foot-Ball Porto-Alegrense), na zona norte de Porto Alegre/RS. O foco nos entornos, espaços
urbanos adjacentes à Arena do Grêmio, constitui-se como recorte empírico desta investigação, por concentrar
um conjunto de comércios, os quais reportam às relações diárias de sustento de moradores e comerciantes. O
estudo buscou mapear transformações econômicas e a mutabilidade das casas, geridas por famílias e afins,
edificações que promovem ganhos econômicos com os eventos e são dinamizadas por fluxos humanos variados,
simultaneamente. Como tema complementar, retratei, também, mudanças, conflitos e disputas nos espaços da
cidade, a partir do território analisado. O que aconteceu, afinal, com localidades do bairro Farrapos após
mudanças urbanas nas últimas décadas? Como o espaço urbano passou a ser objeto de especulação imobiliária, a
partir de um conjunto de empreendimentos? Sendo assim, a este artigo, pretendo analisar algumas
transformações geradas no bairro e nas casas, após a concretização da Arena do Grêmio como
megaempreendimento, reconstituindo historicidades e memórias em torno das mudanças urbanas ocorridas,
desde o ponto de vista de moradores do bairro e mediante o emprego de fontes bibliográficas, documentais e
etnográficas.

PALAVRAS-CHAVE: Práticas econômicas; Casas; Temporalidades; Arena do Grêmio; Bairro Farrapos.

Introdução

O presente artigo apresenta um recorte analítico oriundo de uma pesquisa e


dissertação de mestrado, finalizada em março de 2023. Na dissertação, busquei desdobrar
percepções atreladas a uma investigação etnográfica em um bairro situado, dinamizado pela
presença de um estádio de futebol, ou melhor, de uma arena privada multiuso destinada a
eventos esportivos, artísticos e festivos. Nessa pesquisa, de modo geral, privilegiei os efeitos
da construção de um conjunto de empreendimentos para famílias de comerciantes e em suas
casas, além da formação de práticas econômicas diversas.
Desta forma, pretendi identificar perspectivas locais e analisar práticas econômicas
nos entornos da Arena Porto-Alegrense (estádio do clube Grêmio Futebol Porto-Alegrense),
situada no bairro Farrapos, zona norte de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. O foco
nos entornos, espaços urbanos adjacentes à Arena do Grêmio, constitui-se como recorte

1
Doutorando no programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ. Pesquisa
financiada pela CAPES e pelo programa FAPERJ Mestrado nota 10, sob a orientação de Federico Neiburg.
179

empírico de pesquisa, por concentrar um conjunto de comércios, os quais reportam às


relações diárias de sustento de moradores e comerciantes.
Como elaboração inicial, busquei seguir alguns questionamentos: Como a
arenização do futebol e as transformações urbanas relacionadas, no contexto do bairro
Farrapos em Porto Alegre/RS, produzem, promovem e modulam práticas econômicas,
dinâmicas familiares e mudanças nos espaços das casas e no contexto estudado? De que
forma práticas econômicas, parentesco e casas estão conectados com transformações urbanas
de um determinado território? Como, do ponto de vista dos moradores comerciantes, é
possível ganhar a vida (e tornar o cotidiano habitável) a partir de empreendimentos feitos no
bairro, sobretudo a Arena do Grêmio?
O estudo buscou mapear transformações econômicas e a mutabilidade das casas,
geridas por famílias e afins, edificações que promovem ganhos econômicos com os eventos e
são dinamizadas por fluxos humanos variados, simultaneamente. A análise está situada, desta
maneira, em práticas econômicas e nos fluxos temporais que modulam casas e comércios e,
como se pode destacar, produzem laços familiares e vínculos sociais outros. Como tema
complementar, retratei, também, mudanças, conflitos e disputas nos espaços da cidade, a
partir do território de estudo.
Sendo assim, a este artigo, pretendo analisar algumas transformações geradas no
bairro e nas casas, após a concretização da Arena do Grêmio como megaempreendimento,
reconstituindo historicidades e memórias em torno das mudanças urbanas ocorridas, desde o
ponto de vista de moradores do bairro. O que aconteceu, afinal, com uma localidade do bairro
Farrapos após mudanças urbanas visualizadas nas últimas décadas? Como o espaço urbano
passou a ser objeto de especulação imobiliária, a partir de um conjunto de empreendimentos?
São questões que pretendo perseguir, sem necessariamente modelar um discurso totalizante,
que enquadra e simplifica as vidas aqui retratadas. Desejo produzir um olhar etnográfico que
evita “narrativas congeladas”, tal como sugeriu Veena Das (2020 apud VIANNA, 2021), isto
é, sem pretensões de dar um lugar definitivo às palavras e ao que elas podem representar.

***

O processo de planejamento, construção, adaptação, funcionamento e incorporação


de um empreendimento a determinado território exige um trabalho não apenas de
modificação espacial e material, mas também de organização e racionalização constante do
180

tempo. Desaprovações coexistem junto às aceitações, na perspectiva de quem convive


cotidianamente com as novas edificações.
No âmbito da construção da Arena do Grêmio, na zona norte de Porto Alegre/RS,
não foi diferente. O cenário em transição, no ano de 2010, demarcava uma separação entre
paisagens anteriores e novas, à época: canteiros de obras, caminhões, operários vindos do
nordeste brasileiro, vigas de concreto, máquinas barulhentas, prédios sendo levantados em
uma localidade com predominância de casas residenciais. As coisas mudaram no que seria a
periferia da periferia: “aqui era o final da vila Farrapos”, comunicou um interlocutor,
residente no bairro desde 1992, olhando e apontando o dedo indicador para a área modificada.
A mudança foi intensa, temporal e espacialmente.
Em dois anos, milhares de trabalhadores da construção civil mobilizaram forças e
recursos técnicos para viabilizar projetos com ampla visibilidade nas escalas local e nacional,
tendo como mote a edificação da Arena Porto-Alegrense, ou, como se chama popularmente,
Arena do Grêmio2 – além de torres residenciais e infraestruturas de mobilidade urbana, como
uma rodovia nova, todas vizinhas da primeira. Para fazer tudo isso e mais um pouco era
preciso energia. Comércios foram ampliados e outros surgiram na localidade, para alimentar,
nutrir, matar a sede, enunciar saudade e dar esperança aos que trabalhavam nas obras.
A Arena do Grêmio é um antigo sonho de gestores e torcedores do Grêmio FootBall
Porto Alegrense, clube de elite do futebol brasileiro. Esse sonho, ao ser concretizado,
materializou e efetuou uma operação lógica de comparação entre “o velho Olímpico” (antigo
estádio do clube) e “a nova casa do Grêmio” (a “moderna Arena”). Traduziu, para quem
investiu dinheiro no bairro, a transição da concepção de decadência industrial ao novo “4°
distrito” - zona que aglutina bairros da região norte de Porto Alegre em torno de ideários de
revitalização e gentrificação de resíduos industriais (MARX et al. 2021).
Alguns trabalhos antropológicos sugeriram que megaempreendimentos atraem novas
infraestruturas, que reúnem uma combinação de objetos, espaços, pessoas e práticas que
produzem e reproduzem a vida urbana (SIMONE, 2004; GUPTA, 2018; CAMPOS, 2020).
Uma aparência de solidez, durabilidade e rigidez remitiria a ideia de que essas infraestruturas
seriam materialidades que conformariam um ideal de cidade, planejado por gestores,
arquitetos, engenheiros e urbanistas. Por outro lado, existem processos de apropriação não

2
Segundo o site do equipamento, trata-se do maior e mais moderno complexo multiuso da América Latina.
Disponível em: < https://arenapoa.com.br/sobre/>.
181

planejada dessas materialidades, os quais se conectam com as formas sociais pelas quais o
espaço urbano é manejado pelas populações que nele fazem a vida3.
Após a concretização do novo empreendimento no bairro Farrapos, para quem “é de
fora da vila”, como é meu caso, a aproximação territorial passou a ser, também, mediada por
definições temporais associadas aos eventos, realizados na nova Arena. É na prática do
pertencimento clubístico e em manifestações torcedoras variadas que, em geral, os “de fora”
adentram no bairro, conhecem e se apropriam de um conjunto de atividades e práticas que
dão sentidos cognitivos e emocionais ao torcer. Esses sentidos, também, são mediados pelas
trocas econômicas e pelo consumo. A produção de uma territorialidade clubística é efeito de
um processo de modificação urbana, amparada na financeirização do solo urbano pela
iniciativa privada, a partir da tolerância e permissividade de determinados atores públicos
(NORMANN, 2020).
Com efeito, é possível notar como aquele recorte espacial possibilita zonas de
sociabilidade singulares, dentro do contexto mais amplo de convívio na capital. Em outras
palavras, o fato de torcer pelo Grêmio aproxima milhares de pessoas não apenas a um projeto
moderno arquitetônico, que se desdobrou em arena multiuso, mas, também, a um território
marcado por fluxos humanos e econômicos variados, em dias com e sem eventos no estádio -
momentos rotinizados nas dinâmicas de vida de quem é residente no bairro.
Por outro lado, neste texto, valorizo historicidades narradas por determinados
interlocutores de pesquisa, fontes documentais e em trabalhos acadêmicos, articulados a um
conjunto de achados etnográficos. Convém mencionar, de partida, que o bairro Farrapos foi
sendo formado, ao longo das últimas décadas, como resultado de conjuntos habitacionais
populares e de ocupações de áreas públicas por diferentes atores. Alterado, porém, nos
últimos anos, pela formação do chamado “Complexo Arena do Grêmio/ Bairro Liberdade”,
um conjunto de novas infraestruturas.
Como é possível apreender, o chamado “Complexo Multiuso Arena do
Grêmio/Bairro Liberdade” (NORMANN, 2020) esteve associado a formatação de um bairro
planejado atrelado à revitalização prometida pelo estádio. Convém apontar,
complementarmente, que até o ano de 2016, a Arena do Grêmio situou-se no bairro Humaitá.
As palavras críticas de Jardel, outro interlocutor e antiga liderança comunitária da região,
merecem ser destacadas e são reveladoras dos efeitos de mudanças nos atos de nomeação do
3
Em tese sobre “mobilidades, dinheiros e infraestruturas”, Campos (2020), por exemplo, demonstrou como
existem práticas cotidianas compartilhadas por passageiros do sistema de transporte do Rio de Janeiro/RJ que
não se coadunam com as ideias de planejamento e previsibilidade da locomoção, concebidas por atores estatais e
privados.
182

espaço urbano: “Quiseram elitizar mais o bairro, mudaram o nome pra Humaitá. Tiraram o
nome da Vila, ficou bairro Humaitá. Imagina construírem apartamento na vila Farrapos?
Humaitá é diferente”. Contudo, por mudanças no Plano Diretor de Porto Alegre, o estádio
passou a fazer parte do “novo” bairro Farrapos, antes Vila Farrapos, saindo do domínio do
bairro vizinho, o Humaitá (MARTINS, 2019).

Fazendo casas, consolidando um bairro

A partir de sua pesquisa etnográfica sobre o fenômeno de consolidação das favelas


no Rio de Janeiro, Mariana Cavalcanti (2009) indicou a relevância de se compreender os
sentidos e os trajetos de transformações sociais e históricas que transcendem as comunidades
em si. Por outro lado, destacou como é necessário, nessa abordagem analítica, se atentar às
narrativas e memórias locais, igualmente. Como demonstra o trabalho dessa antropóloga, o
estudo das condições habitacionais constitui uma importante fonte de conhecimento sobre a
vida social. De momento, focarei em articular as memórias e registros locais a partir do
encontro com alguns interlocutores, para comunicar como trajetórias habitacionais e
experiências vividas se entrelaçam às temporalidades e espacialidades do presente e às suas
percepções das mudanças no bairro onde residem (CAVALCANTI, 2009).
À luz de alguns estudos geográficos sobre a região, efetivamente, tornou-se possível
constatar que a década de 1990 é um período com um elevado número de ocupações nos
bairros Farrapos e Humaitá, além de um alto número de ocupações irregulares de imóveis
existentes na região (MARTINS, 2010, p. 50; NORMANN, 2020, p. 61). Trata-se de um
período marcado por demandas de moradia, por movimentos comunitários em torno de
habitação e por melhores condições de vida.
O bairro Farrapos se situa na zona norte de Porto Alegre, em torno de 6 km do
Centro da cidade e a 2 km do Aeroporto Salgado Filho, limitando-se ao sul com o bairro de
Navegantes, ao leste com o bairro Humaitá, ao oeste com os rios Jacuí e Gravataí e ao norte
com o município de Canoas. Como parte da literatura geográfica indica, o território sofreu
parte de seus primeiros movimentos de ocupação nas décadas de 1950 e 1960, a partir de
zonas residenciais para atender o crescimento populacional atrelado ao êxodo rural e ao
processo de industrialização da capital (MARTINS, 2010; NORMANN, 2020).
A antiga Companhia de Habitação do Estado do Rio Grande do Sul (COHAB-RS)
projetou e construiu os primeiros conjuntos habitacionais no bairro, ainda nos anos 1960.
183

Assim, o processo de financeirização na economia imobiliária4, observado no bairro


atualmente, contrasta com lógicas comunitárias e estatais de produção de moradias populares,
ainda na década de 1990 (NORMANN, 2020). O que era “área de banhado”, tal como
definido por muitos interlocutores residentes na avenida Padre Leopoldo Brentano, hoje virou
“área residencial valorizada”, impulsionando a financeirização de terrenos e a especulação
imobiliária, resultado direto de novas concepções e materialidades advindas de
megaempreendimentos no local.
Em um dos capítulos da dissertação (FERNANDES, 2023), busquei salientar como
órgãos estatais de habitação (a nível estadual e municipal) foram participativos no processo
de destinação de áreas para a consolidação de moradias populares, resultantes da conversão
de ocupações em áreas de assentamento à habitação social, configurando a passagem do
“barraco à casa” (CAVALCANTI, 2009). Como é possível depreender, a construção da nova
arena - protegida pelo imaginário clubístico e pelo clamor popular atribuído ao futebol - foi
central para que um novo regime de financeirização do espaço urbano fosse consolidado no
bairro Farrapos, sobretudo depois de 2010.
No trabalho genuíno de Tássia Normann (2020), encontramos o emprego da
categoria de “tolerância exacerbada” de atores públicos e privados no cenário de concepção e
construção do estádio. Notadamente, existiram processos de intervenção do capital privado
mediados por uma postura condescendente do poder público entrelaçadas com articulações
políticas variadas, diante dos novos investimentos mobilizados para que alterações
ocorressem nesses territórios.
Contudo, gostaria de sugerir uma perspectiva etnográfica para compreender como
tais processos foram absorvidos e vivenciados no âmbito das casas e famílias residentes no
bairro. Novos problemas foram experimentados pelos “vizinhos da Arena”, mas, também,
novas socialidades passaram a ser vivenciadas, no bojo da execução de
megaempreendimentos que mudaram as rotinas e, fundamentalmente, as formas de morar e
ganhar a vida na região. Tais dimensões puderam ser capturadas a partir de um “olhar de

4
Em sua dissertação, Tássia Normann explica que o processo de financeirização da economia imobiliária
(a produção de espaços em ativos financeiros) está relacionado com mudanças nos padrões de consumo de
imóveis, para uso e como modo de investimento. Essas mudanças foram ocasionadas, também, pelos aumentos
da oferta de crédito e da contratação de financiamentos habitacionais, a partir de um conjunto de atores e
engrenagens que convertem bens imobiliários em ativos financeiros. Esse processo está representado pela
abertura de capital das grandes construtoras e incorporadoras, emissão de papéis financeiros e cotas de fundos de
investimentos imobiliários. Em outros termos, a propriedade urbana deixa de ser um imóvel para fins variados e
passa a ser incorporada como produto no sistema financeiro, tornandose líquida e móvel nos fluxos financeiros.
Com efeito, o mercado da construção civil e o setor imobiliário passam a influenciar cada vez mais as mudanças
dos espaços urbanos através de sua mercantilização e financeirização (NORMANN, 2020, p. 85).
184

perto e de dentro” possibilitado pela experimentação etnográfica (MAGNANI, 2002). No que


segue, tentarei comunicar perspectivas acerca de qual era o cenário encontrado na localidade,
antes da construção da Arena do Grêmio.

Como era o bairro sem a Arena do Grêmio?

Ao longo do trabalho de campo e das entrevistas realizadas5, procurei questionar


sobre o que existia no território onde foi construída a Arena do Grêmio. Uma narrativa
demonstrou-se recorrente entre os moradores da avenida Padre Leopoldo Brentano.
Seu Carlos Miguel é residente desde 1994 na localidade (data que coincide com o
período dos assentamentos populares relatados anteriormente). Mesmo aposentado, ele ainda
é trabalhador do setor industrial e, sendo torcedor do Internacional, não se sente representado
pelo estádio gremista, em termos clubísticos. Em nossas interações, ele expôs, também, que
optou por não abrir comércio na sua residência já que possui ocupações cotidianas na
indústria e os seus ganhos são suficientes para sustentar a casa e a sua família (que conta,
também, com receitas oriundas de suas filhas e genro). Porém, faz usos singulares e que
demarcam as multifuncionalidades dos espaços, associadas às temporalidades dos eventos:
em dias sem jogos na Arena, usa a sua área adjacente para lazer e realização de caminhadas;
em dias de jogos, consegue manejar um aluguel da área em frente à sua casa para os bares
vizinhos, que aproveitam para espalhar mesas, cadeiras e churrasqueiras portáteis no local.
Refere-se a uma forma inventiva de monetizar a partir das práticas comerciais contidas na
vizinhança - e que, na prática, alteram circulações na parte da frente de sua casa. Neste
sentido, ter grades, portões e janelas para a vigilância do terreno é central.
Entretanto, gostaria de destacar outro ponto, salientado por Rosângela, filha de
Carlos Miguel, contido nas memórias sobre o que existia no “lugar da Arena”. Nas narrativas
desses interlocutores, dois locais foram destacados: a presença de “um CTG” (Centro de
Tradições Gaúchas) e “uma escola ao lado” (com parte de seu prédio convertido em base a
um posto de polícia, atualmente). As mudanças na área, efetivamente, se relacionam com a
edificação de empreendimentos que poderiam ter um custo elevado, caso fossem feitos em
terrenos com alto valor imobiliário. A estratégia é central, no bojo das dinâmicas do mercado
imobiliário: construir grandes empreendimentos em terrenos de baixo custo (MARTINS,
2010).
5
O trabalho de campo etnográfico foi realizado durante um ano, especialmente em 2022. 10 entrevistas foram
realizadas, além de um survey que contou com a colaboração de cerca de 60 comerciantes.
185

Em outro caso, pude acessar as lembranças de um morador da Padre Leopoldo


Brentano, avenida em frente à Arena do Grêmio. Proprietário de um bar desde 2012 e
residente na região a 36 anos, Nildo, 62 anos de idade, relatou-me: “Quando vim pra cá, na
Leopoldo, não tinha essa avenida aqui. Era tudo grama. Aparamos tudo aqui. Meu irmão, que
não morava aqui e gostava de acampar, ele levantava a barraca dele aqui na frente”. Em sua
memória narrada, destaca-se a forma como novas infraestruturas foram alterando fluxos e a
reprodução da vida social urbana naquele território: “Aqui mudou muito, bem antes da Arena.
Depois com a Arena mudou mais e depois veio a 448, a BR, veio em cima”. Suas lembranças
coincidem com as de outros interlocutores, incluindo Carlos e Rosângela. Ele detalhou sobre
o que havia na região antes da Arena: “Tinham uns campos de futebol aqui antes. No lugar da
Arena, tinha um CTG e uma escola estadual. Aqui na frente, tinha uma escola técnica. Eram
duas escolas”. Antes da nova arena, equipamentos diversos compunham a paisagem urbana
local: uma escola técnica com plantações e campos de futebol, um CTG e mais uma escola
estadual. Equipamentos comunitários que, após os novos empreendimentos, foram
“negociados com a OAS”. A sigla OAS, nesse caso, reporta ao Grupo OAS (atual Grupo
Metha), um conglomerado de empresas no ramo da engenharia civil e que foi responsável
pela construção da Arena do Grêmio, juntamente a outros investidores (NORMANN, 2020).
Nildo não ocultou, nas interações, um certo saudosismo ao que existia antes da
Arena: “Tinha uma pequena plantação, hortas, vinculadas à escola. A gente ia na frente e eles
faziam feira”. Apesar de ter ganhos econômicos com o comércio acoplado à sua casa, Nildo
revelou-me que seu projeto de futuro é adquirir uma casa em um “sítio no interior”, em busca
de “uma vida mais pacata e segura”, já que se aposentou ainda em 2012 (sendo representante
comercial).
Aqui, para fins de contextualização, é preciso retomar alguns fatos sobre a
formatação do chamado “Complexo Multiuso Arena do Grêmio/Bairro Liberdade”
(NORMANN, 2020). A ideia de bairro planejado, com o seu projeto concretizado
parcialmente e com adaptações, foi atrelada à revitalização prometida pelo estádio e a uma
ideia de futuro planificado. Esse projeto complexo possibilitou o advento de novas
infraestruturas: além da Arena (de suas áreas externas, como a esplanada, ruas adjacentes e
estacionamento externo), 7 novas torres foram construídas ao lado, configurando o chamado
“Condomínio Liberdade” e instaurando a lógica de verticalização condominial no bairro.
Ademais, o complexo abarca estruturas de mobilidade, como viadutos e acesso à rodovia
186

BR-4486. Analiticamente, Akhil Gupta chamou a atenção para a maneira como esses
investimentos em infraestruturas envolvem planejamento e cálculos de futuro, ao mesmo
tempo em que tentam consolidar o futuro prometido, imaginado e vendido (GUPTA, 2018, p.
63).

Imagem 1: A Arena do Grêmio. No lado esquerdo da foto, casas e comércios da Vila Farrapos. Ao lado direito,
torres/edifícios do Condomínio Liberdade. Na parte superior, elevados que dão acesso à BR-448, que desponta
ao fundo da tela, cortando o município de Canoas. Foto: Luciano Lanes/ Arquivo PMPA7.

Ademais, para conectar a avenida Padre Leopoldo Brentano com a BR-448, novos
viadutos foram edificados, no interstício do estádio com as casas do bairro. Nas observações
realizadas, foi possível notar como a inauguração da BR-448, que liga a capital com a região

6
O Complexo Multiuso da Arena do Grêmio/Bairro Liberdade, segundo Normann (2020, p. 108) previa a
criação de outros empreendimentos que não foram viabilizados. O projeto inicial contemplava a construção de
um hotel, centro comercial, centro de eventos e shopping center. A dissertação referida realiza a análise da
distribuição espacial dos empreendimentos, incluindo os que não foram concretizados até 2020. Salienta como
os espaços ainda podem ser modificados. Assim, a área residencial assentada no bairro Liberdade seria
complementada com um complexo empresarial e comercial. Na prática, a área desse último tornou-se
estacionamento. A consolidação do Complexo, como um todo, passaria por ideais de autossuficiência e
autonomia em relação às suas adjacências, abdicando das interações com o contexto social diversificado do
bairro Farrapos, conforme a autora.
7
Matéria “Finalizado acordo para retomada das obras nos entornos da Arena do Grêmio“, publicada em 09 de
abril de 2021, a qual refere às contrapartidas de infraestrutura, à comunidade vizinha, que devem ser feitas após
a construção do estádio - obras ainda inacabadas. Reportagem do portal G1:
<https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2021/04/09/finalizado-acordo-para-retomada-dasobras-do-ent
orno-da-arena-do-gremio-em-porto-alegre.ghtml>.
187

metropolitana, ainda em 2013, foi impactante aos moradores, sobretudo por aumentar o
trânsito na região, o barulho e a emissão de poeiras e outros poluentes (poluição sonora e
ambiental excessiva)8. Nildo foi objetivo, nesse aspecto: “O que mudou o trânsito aqui foi a
448, esse pó que vem diariamente pra cá e o barulho. Tem que limpar sempre”. Em suas
palavras, afirmou que existem vizinhos que costumam sair do bairro em dias de jogo, já que o
movimento de torcedores e o trânsito também aumentam, significativamente.
O barulho e o trânsito de caminhões, carros e ônibus alteram os sons e as relações
naquele território. Sobretudo, caminhões com cargas enormes, que passam e seguem em
direção a um viaduto, que corta a BR-290 (Freeway) e dá acesso à BR448 (a “rodovia do
Parque”), inaugurada no final de 2013. Na época, a obra era vista como uma das principais
estradas de ligação de Porto Alegre com sua região metropolitana e interior. Mas,
notadamente, a perturbação sonora que advém da rodovia, acessada através do bairro
Farrapos, modifica quaisquer interações naquela localidade. Esse impacto ambiental
contrastava com os fluxos e outros tipos de frequências sonoras percebidos em dia de jogos
do Grêmio, já que Avenida Padre Leopoldo Brentano era fechada e o trânsito de caminhões e
ônibus, em direção à BR448, desviado para outras estradas da cidade. Em dia de jogo, o
barulho também é intenso, mas com vibrações distintas: carros de sons, bandas, torcedores
falando e gritando, a tropa da cavalaria militar passando... porém, seguem altos e frequentes.
Antes da concepção das infraestruturas citadas, o local apresentava outra
configuração socioespacial – como apontam os interlocutores e documentam trabalhos
acadêmicos sobre os bairros. A paisagem era composta por equipamentos atrelados à Escola
Técnica Santo Inácio, importante referência para aprimorar a urbanização dos bairros
Humaitá e Farrapos (MARTINS, 2010). Sendo instalada na área em 1972, ofertando cursos
técnicos e o antigo 2° grau, a escola foi considerada uma das primeiras edificações do bairro,
mesmo sendo feita em frente a uma estrada de chão (atual avenida Padre Leopoldo Brentano).
Outras edificações de porte semelhante eram indústrias instaladas no sul do bairro, próximas
à avenida Farrapos. Ademais, como demonstra Martins (2010), o acesso ao local era
dificultado, já que existiam poucas linhas de transporte público no bairro.

8
Nas várias vezes que estive no bairro fui também afetado pela poluição ambiental e sonora da avenida que dá
acesso à rodovia mencionada. Frequentemente, ao retornar do trabalho de campo, notava minhas roupas sujas e
meu corpo empoeirado. Abordo uma maneira de ser marcado bastante particular e, igualmente, prejudicial à
saúde - reveladora de algumas condições de moradia dos residentes naquele recorte socioespacial estudado e de
impactos das obras de infraestrutura à população local. Além disso, a maioria das entrevistas gravadas
registraram barulhos de automóveis e caminhões, ao fundo. Alguns moradores reclamavam de tais condições,
outros diziam-se “acostumados”.
188

Imagem 2: vista aérea da Escola Santo Inácio, atual local da Arena do Grêmio e do Condomínio Liberdade, em
foto retirada na década de 1970. Ao lado esquerdo, o bairro Humaitá com aéreas ainda pouco povoadas,
predominando campos e terrenos alagadiços (algumas plantações de arroz, também relembradas por alguns
interlocutores). Ao lado direito, o bairro Farrapos, já sendo parcialmente povoado com moradias populares.
Fonte: Martins, 2010, p. 47 (retirado dos arquivos da Escola Santo Inácio).

A mudança da escola para outro bairro de Porto Alegre, em Belém Novo, foi motivo
de polêmica em jornais da época, por denúncias de irregularidades no contrato entre o
governo estadual, empreiteira e clube9. A escola que, em 2019, poderia atender cerca de 2 mil
alunos estavam atendendo menos de cem, conforme matéria do jornal Extra Classe. A área
permutada para a construção da Arena é de 38 hectares, afirma a reportagem. O terreno teria
sido doado pelo governo estadual à Federação dos Círculos Operários do Rio Grande do Sul
(FCORS), para a instalação de uma escola técnica de nível secundário. A reportagem
relembra o que moradores descreveram durante o trabalho de campo, ao serem questionados
sobre o que existia no terreno antes da Arena do Grêmio: “Descrito como um banhado, o
local sediou a escola técnica Santo Inácio e um parque popular mantido pela FCORS, com
oito campos de futebol de várzea e um clube tradicionalista” (Extra Classe, 19/06/2019).
Além disso, o periódico expõe alguns bastidores da época, como o corte de convênios do
governo estadual com a escola – que fragilizou a sua manutenção no bairro Farrapos - e a
participação de um ex-presidente gremista no governo de Yeda Crusius, governadora entre

9
A matéria publicada no portal “Extra classe”, em 12 de junho de 2019, faz menção ao ocorrido e detalhe as
áreas permutadas. Disponível em: <
https://www.extraclasse.org.br/educacao/2019/06/santo-inacio-dafraude-da-oas-aos-atrasos-de-salarios/>.
189

2007 e 201110. Ainda em 2008, o governo estadual doou outro terreno para a FCORS, o qual
viabilizou a mudança da escola e liberação do terreno no que era, na época, bairro Humaitá.
Outra edificação encontrada no local, segundo alguns interlocutores, era a Escola
Estadual Oswaldo Vergara, vizinha da escola técnica referida. Tal presença foi suscitada por
antigos moradores do bairro e por parte da literatura especializada (MARTINS, 2010), que
lembram como as duas escolas eram equipamentos procurados pelos familiares e vizinhos.
Em matéria do Jornal ZH, ainda de 2010, registrou-se que a construtora OAS havia iniciado a
construção de um novo prédio para a escola, em outra avenida do bairro, de modo a liberar a
área para a construção da Arena. A expectativa, à época, era a de que o prédio novo ficasse
pronto e liberado ainda em 2011. Além disso, outras duas escolas do bairro receberam
reformas por parte da construtora11.

As mudanças no espaço urbano e suas temporalidades

Apesar das ocupações datarem das décadas de 1950 e 1960, tanto o bairro Farrapos,
como o seu vizinho Humaitá, tiveram suas criações oficializadas apenas no ano de 198811.
Como destacou Martins (2010), no período de 1996 a 2005 ocorre um grande crescimento
populacional no bairro Humaitá, repercutindo no seu vizinho. O bairro passa a ser objeto de
especulação e de investimentos imobiliários, além do estabelecimento de novas vilas
populares (MARTINS, 2010, p. 51). Já no período de 2006 a 2009, uma retórica emergente
passa a ser mobilizada pelo setor imobiliária: a concepção do chamado “Novo Humaitá”,
associado à construção da Arena do Grêmio, fundamentalmente.
Acompanhando as audiências públicas em 2010, Danielle Martins (2010) destacou
como o projeto viria acompanhado por impactos urbanos e ambientais, sobretudo aumentando
a poluição da região e o trânsito. O projeto previa que o complexo da Arena do Grêmio

10
Uma divulgação no portal do governo estadual do Rio Grande do Sul noticiou: “Yeda anuncia Paulo Odone
como secretário extraordinário da Copa de 2014”, ainda em 2009. A participação de Odone na cúpula diretiva
do governo estadual é central para as páginas seguintes à construção da Arena e na organização de Porto Alegre
como cidade-sede da Copa do Mundo de 2014. Paulo Odone foi presidente do Grêmio em 5 mandatos, nos
períodos seguintes: 1987-1991 / 2005-2009 / 2011-2013. Disponível em: <
11
https://estado.rs.gov.br/yeda-anuncia-paulo-odone-como-secretario-extraordinario-da-copa-2014 >.
Atento-me para o fato de que, na reportagem, o presidente do Grêmio, Paulo Odone, naquela ocasião, afirmou
que a obra da Arena representaria o “resgate do bairro Humaitá”, valorizando o novo empreendimento e
atenuando as críticas de retiradas das escolas da região. No caso da escola, contudo, o seu prédio está situado,
até os dias atuais, no bairro Farrapos. Matéria disponível em:
https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2010/11/oas-da-inicio-as-obras-da-escola-oswaldo-vergara3097080
.html .
11
Os bairros Farrapos e Humaitá foram criados pela Lei nº 6.218 de 17/11/1988, no âmbito municipal.
190

tivesse construções destinadas ao esporte, lazer, comércio, residências e de serviços. A ideia,


como suscita a autora, era a de construção de um hotel, shopping, centro de convenções,
edifícios residenciais, torres empresariais, estacionamentos e o estádio/arena (MARTINS,
2010, p. 89).
Até 2022, no entanto, apenas a Arena do Grêmio, estacionamentos e um condomínio
com sete torres, além de viadutos com ligação à BR-448, foram materializados. O
desdobramento da “Operação Lava-Jato”12 no Brasil e o envolvimento de dirigentes do Grupo
OAS em escândalos de corrupção alteraram a capacidade de investimento do conglomerado,
que, ainda no início de 2015, solicitou recuperação judicial para poder quitar dívidas com
credores (realizando a venda de empresas do Grupo e bloqueando a possibilidade do Grêmio
adquirir a Arena como proprietário definitivo, naquele período)13.
Algo semelhante ocorreu no Rio de Janeiro, no mesmo período, como destacaram
Julia O’Donnel, Lilian de Sampaio e Mariana Cavalcanti (2020), em artigo sobre concepções
de passado e de futuro envolvendo a região da “Barra-Olímpica”, um recorte na zona leste da
cidade. Como elucidam as autoras, o contexto prévio de efervescência do setor imobiliário
(impulsionado pela Copa do Mundo FIFA 2014 e pelas Olímpiadas de 2016) começa a se
dissipar principalmente em 2015, quando uma nova recessão econômica se intensifica no
Brasil, somada à instabilidade política e ao envolvimento de empreiteiras em escândalos de
corrupção, desdobrados pela “Operação Lava-Jato”. A inversão de expectativas do mercado
imobiliário não apenas ocorre na cidade do Rio de Janeiro. Ocorre, também, em Porto Alegre,
o que fica visível no caso das obras que foram projetadas no bairro Farrapos. A ideia do
“Condomínio Liberdade”, midiatizada como um bairro planejado dentro do chamado 4°
distrito da cidade, fica em suspeição.

12
Em depoimento à Polícia Federal, Alberto Youssef, um dos doleiros participantes de esquemas de lavagem de
dinheiro envolvendo políticos, a Petrobrás e empreiteiras, afirmou que a construtora OAS se utilizou de um
escritório no interior da Arena do Grêmio, para receber dinheiro de “caixa 2” em espécie, mas sem envolver os
dirigentes e profissionais do clube gremista. A matéria está disponível no portal G1:
http://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/2015/02/oas-recebeu-dinheiro-de-caixa-2-dentroda-arena
-do-gremio-diz-doleiro.html.
13
Detalhes na matéria do Jornal ZH: <
https://gauchazh.clicrbs.com.br/economia/noticia/2015/03/semincluir-a-arena-do-gremio-oas-pede-recuperacao-j
udicial-4730228.html>.
191

Imagem 3: Torres do Condomínio Liberdade. Julho de 2022 (acervo do autor).

A ocupação espacial dessa localidade é explicada pelo crescimento populacional da


cidade. Algo importante a salientar, no entanto, é que a zona norte de Porto Alegre (que reúne
bairros como Farrapos, Humaitá, Navegantes, São Geraldo e Floresta) é historicamente
denominada de 4° distrito, região na qual, ao longo do século XIX e XX, diversas indústrias e
fábricas foram instaladas - impulsionando a economia da capital gaúcha (MARX et al., 2021).
O 4° distrito era o grande centro industrial da cidade. Após um longo processo de
desindustrialização, a região ficou sendo habitada por vilas operárias, conjuntos habitacionais
e foi ampliada por ocupações diversas.
Um traço significativo na zona norte de Porto Alegre, por conta desse processo
histórico, é a presença de poucos prédios e edifícios, sendo a paisagem daquele recorte
urbano preenchida por galpões industriais, casas e condomínios de baixa estatura. Mais
recentemente, porém, alguns conjuntos habitacionais populares foram construídos, como se
nota nos bairros Humaitá, Navegantes e Anchieta. Com efeito, a construção do chamado
“bairro” ou “condomínio Liberdade” nos entornos da Arena do Grêmio é um marco à
verticalização arquitetônica na região, como se vê nas imagens anteriores. Junto a isso, uma
promessa de futuro está associada à ideia de recuperação do chamado 4° distrito, ocasionando
riscos de gentrificação e de maior segregação na região (MARX et al., 2021).

Algumas considerações
192

Neste artigo, busquei discorrer sobre algumas transformações no bairro Farrapos e,


por consequência, em seu vizinho Humaitá, nos entornos da Arena do Grêmio. Com o uso de
material etnográfico produzido a partir de trabalho de campo e de pesquisa documental (em
portais jornalísticos e registros fotográficos), objetivei valorizar o domínio das historicidades,
narradas por determinados interlocutores residentes no bairro, mesclando com achados de
outros trabalhos acadêmicos especializados. Ao evocar memórias sobre as transformações
concentrei, no texto, perspectivas das pessoas que vivenciam, cotidianamente, a história
dessas mudanças.
Deste modo, pude desdobrar informações sobre as formas pelas quais determinadas
casas foram produzidas e as lógicas de ocupação espacial presentes naquele recorte da cidade
– não necessariamente de todo o conjunto de casas do bairro. O advento do chamado
“Complexo Multiuso da Arena do Grêmio/ Bairro Liberdade” constitui-se como um evento
emblemático aos interlocutores, também por possibilitar a instituição de uma nova lógica de
ocupação urbana, baseada no ideário condominial e na financeirização do solo urbano,
transformando a moradia em objeto de mercado, portanto. Antes das obras da Arena, no
entanto, outras lógicas de produção de moradia, mediadas por instituições estatais e por lutas
sociais específicas, foram identificadas.
Ao fim e ao cabo, não almejei traçar uma história definitiva sobre as ocupações e a
produção de obras e moradias no bairro estudado. O recorte temporal de transformações é,
relativamente, recente: sobretudo, destaquei modificações a partir da década de 1990. Desta
forma, tal como sugere Mariana Cavalcanti (2009), desejei modular uma perspectiva
processual da constituição da ocupação urbana, ressaltando como a cidade e as casas são
constituídas como processos sociais, que envolvem investimentos cotidianos e de longo
prazo, subjetivos e econômicos, com desdobramentos que tensionam lógicas mercantis nos
territórios. Significa dizer, em outros termos, que além de vetores externos atuarem
constantemente na modulação de casas, outros processos e fluxos definem valores e
expectativas associados à construção social dos espaços.
Deste modo, múltiplas temporalidades - associadas à memória, aos eventos críticos,
mas, também, à imaginação do futuro -, produzem uma tensão constitutiva do território
analisado.

Referências:
193

CAVALCANTI, Mariana. Do barraco à casa: tempo, espaço e valor(es) em uma favela


consolidada. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n. 69, pp. 69-80, 2009.

CAMPOS, Marcos. Sobre o corre da arte: uma etnografia dos futuros vividos e do ganhar a
vida na cidade do Rio de Janeiro. Tese de doutorado, IESP/UERJ, 2022, 311 f.

DAS, Veena. Vida e Palavras. A violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora
Unifesp, 2020.

FERNANDES, Bruno Guilhermano. (no prelo). Entre casas, comércios e temporalidades:


uma etnografia de práticas econômicas nos entornos da Arena do Grêmio. Dissertação de
Mestrado, PPGAS/MN, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2023, 214 f.

GUPTA, Akhil. The Future in Ruins. Thoughts on the temporality of infrastructure. In:
ANAND, Nikhil; GUPTA, Akhil; APPEL, Hannah (Ed.). The promise of infrastructure.
Duke University Press, 2018.

MAGNANI, José Guilherme. De perto e de dentro: notas para uma Etnografia Urbana.
Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 17, n. 49, pp. 11-29, 2002.

MARX, Vanessa; ARAÚJO, Gabrielle; SOUZA, Vitória de. Relação global-local e


transformação urbana no 4º distrito de Porto Alegre. In: Revista Política e Planejamento
Regional. RPPR – Rio de Janeiro – v. 8, n. 2, pp. 273-296, 2021.

MARTINS, Daiane Grillo. Manifestações torcedoras e território: inter-relações das


imediações de um estádio de futebol. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação
em Educação Física, Universidade Federal de Pelotas, 2019, 101 f.

SIMONE, Abdou Maliq. People as infrastructure: Intersecting fragments. Public culture,


Johannesburg, v. 16, n. 3, pp. 407-429, 2004.

MARTINS, Daniella Paula. O Humaitá de ontem, de hoje e de amanhã. Dissertação de


Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2010, 126 f.

NORMANN, Tássia Coser. A Arena do Grêmio e o Bairro Liberdade e sua relação com a
financeirização da produção da metrópole de Porto Alegre. Dissertação de Mestrado,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2020, 225 f.

O’DONNELL, Julia; SAMPAIO, Lilian Amaral de; CAVALCANTI, Mariana. Entre futuros e
ruínas: os caminhos da Barra Olímpica. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc. Rio de
Janeiro, v. 13, n. 1, p. 119-146, 2020.

VIANNA, Adriana. Vida, Palavras e Alguns Outros Traçados: Lendo Veena Das. Mana, v.
26, n. 3, pp. 1-20, 2020.
194

MATERNIDADE, PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO & ESCOLHAS


(IM)POSSÍVEIS

Gisele Camilo da Mata1

RESUMO

No esforço de contribuir para a expansão dos estudos acerca da maternidade, sobretudo aqueles que consideram
simultaneamente gênero e raça no contexto acadêmico-científico, busco tensionar e questionar a produção de
conhecimento tido como hegemônico. Constitui-se, assim, uma interpretação do cotidiano de estudantes e
pesquisadoras mães na UFMG, a partir de imagens socialmente produzidas e reconhecidas, como ponto de
partida para analisar as relações entre maternidade, universidade, ciência, bem como as redes de apoio e
estratégias mobilizadas frente às barreiras postas à formação acadêmica e científica, sendo esses os elementos
centrais das reflexões desenvolvidas pelas colaboradoras nesta pesquisa. Guiando-me pelos aportes do debate
feminista negro, especialmente no pensamento da socióloga Patricia Hill Collins, em diálogo com intelectuais
negras brasileiras e na Análise do Discurso, procuro analisar a vivência da maternidade no cotidiano das
estudantes e pesquisadoras mães em sua inserção na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Trata-se de
uma pesquisa qualitativa, para a qual se utilizam as entrevistas semiestruturadas como principal metodologia.
Adicionalmente, espera-se que a interface desses pressupostos como possibilidade teórico-crítica permita refletir
sobre os discursos a respeito da maternidade intersectada por raça e classe e que circulam também entre outros
espaços, doméstico e social, não isentando o ambiente acadêmico e científico.

PALAVRAS-CHAVE: maternidade, estudantes-mães, universidade e ciência, redes de apoio e estratégias

Maternidade & produção do conhecimento

A identidade “mãe” como conhecemos e em sintonia à narrativa ocidental foi forjada


com intuito de estabelecer um elo entre o sexo feminino e a relação com o cuidado. Ainda que
a categoria “mãe” tenha se naturalizado, estudos recentes como Silvia Federici (2017)
demonstram a historicidade que a compõe, o que nos permite colocar o fenômeno da
maternidade em discurso questionando e tensionando a produção do conhecimento tido como
hegemônico.
É também a partir dessa historicidade que percebemos como predominou por anos na
sociedade brasileira a noção que aos homens era atribuídos a dedicação ao trabalho e aos
estudos, enquanto à mulher destinavam-se às tarefas de cuidado como trabalho não
remunerado, com o lar e os filhos, em outras palavras, a reprodução da força de trabalho.
Contudo, a percepção da categoria mãe como portadora de “instinto materno” há muito tem
sido interpelada. Elisabeth Badinter, em 1985, ao publicar Um amor conquistado: o mito do

1
Mestre em Educação e Docência – PROMESTRE/FaE/UFMG
195

amor materno demonstra o amor materno como mito socialmente construído, contrapondo a
noção de que se confere o exercício da maternidade como características essenciais da mulher.
À luz dessas leituras, bem como das contribuições do feminismo negro e dos estudos
das opressões interseccionais de raça, classe, gênero e sexualidade, o conceito de imagens de
controle e autodefinição da socióloga Patricia Hill Collins (2019) podem auxiliar na reflexão
da experiência das mulheres em geral e das mulheres negras em particular, sobretudo na
maneira como a maternidade atravessa as vivências de estudantes e pesquisadoras mães em
percurso acadêmico-científico na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Esse
ensaio através de uma postura crítica e implicada, propõe compreendermos as diversas
interdições travestidas de naturalidade que emaranhadas a frases e gestualizações,
aparentemente banais, no cotidiano de estudantes e pesquisadoras mães, mas que denotam o
lugar social da maternidade.
Interdições que dizem respeito às escolhas possíveis e impossíveis no percurso
acadêmico-científico de mulheres mães e em como o espaço universidade recepciona as
corporalidades maternas e lida com suas especificidades e demandas. A mãe acadêmica
encontra-se espremida por forças discursivas nessa fronteira entre produtividade e
permanência do percurso formativo.
Assim, este texto esboça duas perspectivas. Expresso, primeiramente, como a minha
vivência subjetiva me levou a questões objetivas na pesquisa, quando coloco em tela as
intersecções raça, gênero, classe e deficiência. Situando inclusive de que lugar falo como
pesquisadora que é mulher, negra, mãe e de origem familiar em que a chefia feminina é
predomínio.
Em segundo lugar estabeleço o compromisso político e intelectual que assumo a partir
de Gonzalez, 1984; hooks2, 1995; Carneiro, 2005; Collins, 2019 como movimento de
reconhecimento e autoafirmação como intelectual. Ainda que este movimento de
autodefinição e autoafirmação possa ser recebido como algo estranho ou incômodo, meu
aporte em outras intelectuais feministas negras constitui sólida argumentação, uma vez que,
essas intelectuais construíram um pensamento situado e posicionado, legado que me sustenta
e igualmente sustenta a pesquisa realizada.

Mãestranda & pesquisadora

2
Honrando e respeitando a grafia escolhida pela autora foi mantido no texto o nome e sobrenome em letras
minúsculas, uma vez que representa uma forma de enfrentamento à corrente do academicismo capitalista e
hegemônico que valoriza nomes frente às ideias.
196

A maternidade foi o que me levou à pesquisa. E a expressão maternidade atípica


informa a condição de maternagem com uma criança diagnosticada dentro do Transtorno do
Espectro Autista (TEA). A importância desses dados representa como constitui-se a expressão
mãestranda, cunhada a partir dessa experiência com a neurodiversidade em paralelo à
formação acadêmico-científica.
Trazer a categoria que constituiu-se no decorrer da pesquisa intenta, antes, visibilizar
questões subjetivas que entrelaçam-se com os contextos político, econômico, social e
sobretudo sanitário que assolaram o país e o mundo com a pandemia do Covid19. Em
seguida, demonstrar como a categoria mãestranda relaciona-se à neurodiversidade.
A pesquisa toma forma no mesmo ano em que o isolamento social como medida de
biossegurança é instaurado. O que vivenciamos, simultaneamente, nesse momento é uma
adequação ao modelo remoto das atividades e interações sociais. O meio virtual mostrou-se,
do ponto de vista da dinâmica de realização das entrevistas, um facilitador. Isso porque as
diversas demandas sociais e também da maternidade poderiam tornar-se empecilho à
realização das entrevistas com as colaboradoras, não isentando, para essa realização, os
arranjos e dinâmicas da própria pesquisadora. E o meio virtual como ferramenta que
viabilizou a pesquisa, encontra amparo no que a antropóloga Cláudia Ferraz (2019) afirma,
em seus estudos sobre etnografia digital, sobre uma nova configuração de “adaptação dos
métodos de investigação nas Ciências Sociais a fim de permitir análises fiéis dos movimentos
e das atuações da cultura estudada nas redes sociais” (FERRAZ, 2019, p. 12),
Contudo, outros fatores se somaram ao meio remoto de interação social e que diz
respeito ao trabalho do cuidado, naturalizado como atribuição da mulher e por conseguinte à
maternidade. Trazer esse ponto é escancarar a sobrecarga materna, a violência contra a
mulher, o machismo e o racismo que estruturam nossa sociedade. E as imagens de controle e
estereótipos que são acionados e correlacionados ao imaginário social da maternidade, da
mulher e do cuidado. E é também, em simultâneo, evidenciar um posicionamento não
romantizado da maternidade.
Por meio da pesquisa de do referencial teórico-crítico do feminismo negro
interseccional busco ampliar o conceito acerca da maternidade no Brasil considerando a
diversidade, pluralidade e complexidade das experiências de maternidades que, simbólica,
cultural, histórica e socialmente convencionou-se conformar essas vivências no âmbito
privado-doméstico urge em um mim como movimento de mudança epistêmica, especialmente
no espaço acadêmico-científico. Esse é um movimento a longo prazo que intenta tensionar as
bases estruturais de nossa sociedade.
197

De modo geral, pesquisar “as relações das vivências da maternidade no cotidiano das
estudantes e pesquisadoras mães na UFMG, percebendo as potências e estratégias dessas
mulheres que resistem no ambiente acadêmico” foi possível por ter sido acolhida e
desenvolvida na linha de pesquisa Educação, Ensino e Humanidades vinculada ao Programa
de Pós-Graduação de Mestrado Profissional em Educação e Docência ofertado na Faculdade
de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais – PROMESTRE/FaE/UFMG. (MATA,
2022)
Tendo a UFMG como lócus de pesquisa, me debrucei em questões específicas acerca
da relação da maternidade, universidade e ciência para a mudança social de paradigma,
compreendendo essa relação na ciência, na dinâmica de formação acadêmica e da carreira
científica das estudantes e pesquisadoras mães da UFMG. E a partir dessa compreensão
ampliei a reflexão para a composição das redes de apoio, bem como das estratégias
mobilizadas e que se configuraram como resistência e permanência no ambiente
acadêmico-científico na dinâmica de formação das colaboradoras da pesquisa. Para realizar
essa análise, aportei teórica e metodologicamente no pensamento feminista negro.
Especificamente em dois conceitos, imagens de controle e autodefinição, para fazer o debate
com os dados. Importante ressaltar que esses conceitos são provenientes da socióloga
estadunidense Patricia Hill Collins (2019) e foi necessário um esforço de transposição ao
contexto brasileiro para a análise.
Esforço necessário quando consideramos os distintos contextos, o geográfico, o
político, o econômico e o social em todas as suas particularidades.
Realizo essa transposição do conceito imagens de controle para o contexto brasileiro
ao dialoga-lo com intelectuais negras brasileiras (GONZALEZ, 1984; 1988; BAIRROS,
1995; 2008; CARNEIRO, 2003; 2005; TRINDADE, 2005; WERNECK, 2006 e BUENO,
2020) e muitas outras a fim de aprofundar a discussão.

Escolhas (im)possíveis

Como mulher negra, mãe solo e periférica que afronta as estatísticas e estereótipos
socialmente construídos para localizar e estigmatizar mulheres negras sou fruto de uma
vontade inexorável oriunda da constante afirmação “é através dos estudos que se vence na
vida”, legado ancestral que objetiva proporcionar escolhas e oportunidades que possam
romper com o ciclo de desigualdade social. Minha narrativa encontra, como afirma Bispo
(2019) “confluências” e aproximações nas vivências de outras mulheres negras na medida em
198

que sempre estudei em escola pública e alguém que também cresceu sob o mito da
democracia racial da nossa sociedade e a constante tentativa de embranquecimento pelo
apagamento da intelectualidade negra tanto quanto pela ausência de letramento racial.
Experencio a leitura e conhecimento sobre autores negros e autoras negras quando participo
de um projeto de Ações Afirmativas na Pós-graduação ofertado pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Destacar esse acontecimento tensiona mostrar o lapso temporal de
quase 40 anos vividos sem me (re)conhecer como mulher negra. Portanto, assumir uma
escrita em primeira pessoa como possibilidade de desafiar estruturas hegemônicas e
opressoras é também implicar-me diretamente nesse ensaio que aqui apresento.
Estar e transitar nos diversos espaços de produção do conhecimento, é assim que se
estabelece(u) o elo mulher negra-mãe atípica na pós-graduação-pesquisadora. Para além da
relação maternidade, universidade e ciência as questões expostas informam sobre
atravessamentos geracionais que conectados às questões de gênero, raça, classe e também
deficiência incidem e estruturam nossa sociedade. Trazê-las aqui é ainda um modo de romper
com a construção social da maternidade que pressupõe posicionamento romantizado dessa
experiência como apontou Badinter (1985) pelo mito do amor materno.

Contribuições do feminismo negro

Como aponta Sueli Carneiro (2020) em Escritos de uma Vida o mito da democracia
racial promovia o apagamento da categoria política de raça, em dados estatísticos por
exemplo, com intuito de eliminar identificação das desigualdades raciais. E assim como
outras grandes intelectuais negras brasileiras como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento,
Luiza Bairros que são referências no pensamento crítico, situado e posicionado enquanto
estratégia de resistência de mulheres negras que se compreende o pensamento feminista
negro.
Essa base teórica é legado que suporta esse ensaio, pois coloca em evidência a
maternidade de mulheres negras que distancia-se da concepção hegemônica de maternidade.
É também um compromisso político e intelectual na medida em que o feminismo negro busca
romper com a suposta universalidade de gênero e composição homogênea de um grupo que
compartilha direitos e oportunidade sociais. Ao mesmo tempo, o feminismo negro “informa o
movimento de mulheres negras, a coletividade compartilhada entre e por essas mulheres nos
mais variados espaços e áreas do conhecimento”. (MATA, 2022, p. 34)
199

Imagens de controle

Tomo de empréstimo os conceitos imagens de controle e autodefinição desenvolvidos


pela socióloga norte-americana Patricia Hill Collins em seu primeiro livro, Pensamento
feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento3 para caracterizar
as mulheres negras como agentes do conhecimento. Segundo Collins (2019) as imagens de
controle são a dimensão ideológica e interconectada do racismo e sexismo articulados de
forma mútua no interior da matriz de dominação nos sistemas de poder e se articulam de
forma a comunicar-se uns com os outros. Dessa forma, baseadas em estereótipos, as imagens
de controle aplicadas às mulheres negras, são articuladas pelas categorias raça e sexualidade
dentro dos sistemas de poder.
Entretanto, ainda que as imagens de controle se formulem a partir da categoria gênero
para definir mulheres negras, Collins demonstra que a forma como mulheres negras desafiam
as imagens de controle desde o processo de escravização é na constituição de uma tradição
intelectual em que as mulheres negras se autodefinem. Winnie Bueno (2020) vai evocar e
concordar com Collins reconhecendo nos processos de resistências às imagens externamente
definidas da condição feminina pela produção de autoimagens positivas de si como
autodefinição.
Considerando as dinâmicas e especificidades do contexto brasileiro e estadunidense,
foi aportando em Gonzalez (1984), Carneiro (2020), e demais pensadoras feministas negras
que o conceito de imagens de controle e autodefinição pôde ser compreendido e aplicado ao
contexto brasileiro. Esse aporte contribui para a reflexão das convergências e divergências
frente aos discursos que circulam e se atualizam a respeito da maternidade, bem como sobre
as estratégias de resistência e permanência de estudantes e pesquisadoras mães na UFMG.

Patricia Hill Collins argumenta que as imagens de controle são dinâmicas e podem
mudar e moldarem-se aos contextos e territórios, por isso servem para “abordarmos novas
formas de controle em um contexto transnacional”. (COLLINS, 2019, p. 140)
Assim, fazer esse movimento de transposição de um conceito norte-americano para a
realidade brasileira busca tanto para visibilizar a participação política de mulheres negras
brasileiras na contemporaneidade, quanto convocar a reflexão dos padrões vigentes na
academia. De modo amplo, é também para provocar a reflexão e debate sobre ser mulher

3
No original Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness and the Politics of Empowerment.
Lançado em sua primeira edição em 1990. Segunda edição lançada em 2000. Importante destacar que no Brasil,
a primeira edição traduzida foi em julho de 2019 pela Editora Boitempo. O que representou uma lacuna de quase
30 anos após a primeira edição!
200

negra e mãe em formação acadêmico-científica, herança e legado ancestral, como estratégia


de resistência de mulheres negras.
A abordagem interseccional, compreendendo raça, gênero e classe como estruturantes
de desigualdades sociais, para se pensar maternidade justifica-se pela multiplicidade das
opressões que atuam nas vivências de pessoas negras, especialmente as mulheres negras que
são mães e estão em trajetória acadêmico-científica. É nesse sentido que a maternidade traz
problematizações que atravessam e circulam, por meio dos discursos de gênero, os espaços
sociais em geral, o acadêmico e científico em particular e mesmo o ambiente doméstico.

Podcast – recurso educacional

Como uma das exigências de um mestrado profissional, a elaboração de um recurso


educacional constitui-se em uma tecnologia social aplicada à educação. A riqueza desse
produto/recurso educacional está na ineditude do conjunto de dados obtidos na pesquisa, e
também porque esses mesmos dados podem calçar projetos e políticas que considerem a
maternidade em perspectiva relacional, estrutural, organizacional e institucional na
universidade.
Assim, com caráter de intervenção pedagógica, na pesquisa utilizou-se o podcast
como recurso educacional e como ferramenta devido à relação proximal entre tecnologia e
educação. É o que aponta diversos estudos (FREIRE, 2013; SPINELLI e DANN, 2019;
FLEISCHER e MOTA, 2021) sobre o podcast como meio de produção e divulgação do
conhecimento.

Identidade visual do podcast

Figura 1: PodM.A.M.A.: Mulheres Acadêmicas, Mães Atuantes


201

Baseada nas entrevistas foi construída a análise sobre as narrativas sob a à luz do
referencial teórico. Apresento a seguir um breve perfil das mulheres entrevistadas e das redes
de apoio e estratégias que acionaram em seu percurso formativo.

Figura 2 – Dimensões individuais e coletivas de mães na Graduação e Pós-Graduação

Esses dados aqui dispostos em forma de quadro não elencam em sua totalidade a
dimensão das experiências individuais e coletivas das estudantes que são mães e
pesquisadoras na UFMG. No entanto, essa forma resumida de seus perfis remete, de um lado,
à concepção social da maternidade atrelada à conjugalidade. E de outro lado, à incidência do
racismo atravessado por gênero e a disposição de redes de apoio – quando há – coligado à
202

maternidade no percurso acadêmico-científico dessas mulheres. Inclusive essa dinâmica


visibiliza, ao mesmo tempo, os limites estruturais de ocupação, inclusão e permanência de
estudantes-mães no ensino superior brasileiro4. Para a ocupação e permanência nesse
ambiente árido e muitas vezes hostil, essas mulheres mobilizam diferentes estratégias, além
das redes de apoio, ao longo de sua formação. Abaixo apresento algumas que chamo de
compartilhar o cuidado:

Figura 3 – Compartilhar o cuidado: Redes de Apoio & Estratégias

Algumas das mulheres entrevistadas enquanto se formavam mobilizaram a


universidade para além do tripé ensino, pesquisa e extensão. Mobilizaram as dimensões
estruturais, institucionais e ainda seus atos normativos. Toda essa movência sinaliza, ao
mesmo tempo, como a constituição das redes de apoio, sejam elas permanentes ou
transitórias, é imprescindível para a trajetória acadêmica de mulheres mães na universidade.
É um termômetro importante que defendo incluir maternidade como um movimento
de mudança epistêmica enquanto fenômeno e marcador social da diferença.

Considerações finais

Muitas são as mulheres mudando a história e a ciência, entre elas está bell hooks
(1952-2021) que resgato uma mensagem potente demais e que diz respeito à produção
conhecimento e intelectual:

4
Discussão que elaboro em outro trabalho (FERNANDES; ROCHA; MATA, 2020)
203

Muitas vezes, o trabalho intelectual leva ao confronto com duras realidades. Pode
nos lembrar que a dominação e a opressão continuam a moldar as vidas de todos,
sobretudo das pessoas negras e mestiças. Esse trabalho não apenas nos arrasta para
mais perto do sofrimento, como nos faz sofrer. Andar em meio a esse sofrimento
para trabalhar com ideias que possam servir de catalisadores para a transformação
de nossa consciência e nossas vidas, e de outras, é um processo prazeroso e
extático. Quando o trabalho intelectual surge de uma preocupação com a mudança
social e a política racial, quando esse trabalho é dirigido para as necessidades das
pessoas, nos põe numa solidariedade e comunidade maiores. Enaltece
fundamentalmente a vida. (hooks, 1995, p. 477- 478)

Para além da relação maternidade, universidade e ciência essas questões informam


sobre atravessamentos geracionais que conectados as questões de discriminação racial, de
gênero, classe e também deficiência incidem e estruturam nossa sociedade. Trazê-las aqui é
ainda um modo de romper com a construção social da maternidade que pressupõe
posicionamento romantizado dessa experiência como aponta Badinter (1985) e o mito do
amor materno.
Assim, em uma sociedade regida por privilégio político, de raça, classe e subordinação
é imperativo demarcar o lugar que falamos e é por isso que propomos desconstruir noções
naturalizadas que se tornam a norma quando evidenciamos maternidade enquanto fenômeno,
ou seja, como marcador social da diferença, intersectada por raça, gênero e classe nas
dinâmicas relacionais da universidade e ciência. E assim como propõe Collins (2019) nos
tornamos agentes de conhecimento da realidade da própria vida.
Dito de outro modo, no diálogo com os fundamentos da epistemologia feminista
negra, qual seja a prática de autodefinição e a experiência como critério de significado, que as
redes de apoio e as estratégias de permanência e resistência por exemplo, tornam-se condição
de ocupação da universidade, da pesquisa e da ciência.
Por fim, mas não encerrando, maternidade é um lugar de potência e autodefinição.
Essa afirmação pretende marcar seu lugar epistêmico no debate acadêmico-científico.

REFERÊNCIAS

BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução de


Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
BUENO, Winnie. Imagens de controle: um conceito do pensamento de Patricia Hill Collins.
Porto Alegre, RS: Zouk, 2020.
CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020.
204

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a


política do empoderamento. Tradução Jamille Pinheiro Dias. 1. ed. São Paulo: Boitempo,
2019.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa; mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo:
Elefante, 2017.

FERNANDES, Talita Melgaço; ROCHA, Thaís Teles; MATA, Gisele Camilo da.
MaternAtiva: pensando um Campus para mães e crianças através das ações afirmativas e das
redes de apoio. Em Sociedade, v. 3, n. 1, p. 86-113, 2020.
FERRAZ, Cláudia Pereira. A etnografia digital e os fundamentos da antropologia para estudos
qualitativos em mídias online. Aurora., v. 12, n. 35, p. 46-69, 2019.
FLEISCHER, Soraya; MOTA, Julia Couto. Mundaréu: um podcast de Antropologia como
uma ferramenta polivalente. GIS - Gesto, Imagem e Som - Revista de Antropologia, São
Paulo, v. 6, n. 1, e-172390, 2021.
FREIRE, Eugênio Paccelli Aguiar. Podcast na educação brasileira: natureza,
potencialidades e implicações de uma tecnologia da comunicação. Orientador: Arnon Alberto
Mascarenhas de Andrade. 2013. 338 f. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, Natal, 2013.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais
Hoje, Anpocs, p. 223-244, 1984.
hooks, bell. Intelectuais Negras. Revista de Estudos Feministas. Florianópolis, v. 3, n. 2, p.
464-478, 1995.
MATA, Gisele Camilo da. Quem pode ser mãe: maternidade, produção do conhecimento,
escolhas (im)possíveis e vivências de estudantes na UFMG. 2022. 169f. Dissertação
(Mestrado Profissional em Educação e Docência) – Faculdade de Educação. Universidade
Federal de Minas Gerais. Minas Gerais. 2022.
205

ESTAR-SE PERDIDO: notas etnográficas sobre as personas do antropólogo


João Pedro de Oliveira Medeiros1

RESUMO

Intenta-se com este breve artigo discorrer acerca do sentimento de “perder-se” em campo, consubstancial a
fragmentação das personas do antropólogo. Com base em uma etnografia realizada entre fevereiro de 2021 e
fevereiro de 2022 uma escola de teatro niteroiense, busquei, nas competências de investigador e estudante
matriculado, acompanhar a trajetória dos cursantes do módulo curricular “Iniciação ao Teatro e Experimentação
Teatral”. Ainda que temática e teoricamente orientada, minha estadia em campo redundava no sentimento
mencionado. Faz-se necessário, à luz dessas questões, refletir sobre os dilemas, percalços e saldos metodológicos
da referida empreitada.

PALAVRAS-CHAVE: Perder-se; Etnografia; Teatro.

No começo, não parei de oscilar entre esses dois obstáculos: se eu “participasse”, o trabalho
de campo se tornaria uma aventura pessoal, isto é, o contrário de um trabalho; mas se
tentasse “observar”, quer dizer, manter-me à distância, não acharia nada para “observar”.
No primeiro caso, meu projeto de conhecimento estava ameaçado, no segundo, arruinado.

Jeanne Favret-Saada, Ser afetado

Introdução

Estar-se perdido me soa de algum modo angustiante, retomo àquele sentimento infantil
de desamparo. Rememoro hoje, comicamente, o pavoroso torpor de, quando criança, me ver
desgarrado de meus pais em alguma ida ao supermercado, loja de departamento ou shopping
center. A situação se desdobrava, no mais das vezes, à humilhante recorrência a um adulto ou
ao sistema de anúncio sonoro do estabelecimento.
“Perdido”, esta talvez seja a definição que daria para o sentimento que experimentei
em certos momentos de meu trabalho de campo; este, realizado em uma escola de teatro em
Niterói. Na ocasião, intentei, na qualidade de pesquisador e cursante, acompanhar o percurso

1
Bacharel em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente, é bolsista da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES, Brasil) do mestrado acadêmico no
Programa de Pós-Graduação em Antropologia da mesma universidade. Sob a orientação do professor Luiz
Fernando Rojo, conduz o projeto de pesquisa intitulado “O Indivíduo no Teatro: do noviço ao ator-personagem,
uma possibilidade de contestação pelo corpo?”.
1
206

formativo dos estudantes matriculados no módulo “Iniciação ao Teatro e Experimentação


Teatral”.
Mais ou menos recorrente, “estar-se perdido” perfez o meu “estar lá”. De qualquer
modo, ele pode ser considerado constitutivo do fazer antropológico, das áureas, exóticas e
oceânicas empreitadas de outrora. Em suma, do encontro com o Outro e os curtos-circuitos
proporcionados pela alteridade. A particularidade da minha condição, de modo algum
exclusiva etnograficamente, se justapôs a paulatina intensificação de minhas relações de
amizade com os interlocutores, o desejo de praticar descompromissadamente a arte
dramatúrgica e a prazerosa absorção pelas dinâmicas de preparo do espetáculo, ensaios,
leituras de peças etc. Além das ocasiões de confraternização e festejo extra-institucional.
Alusente em demasia aos aspectos românticos e anedóticos de que Roberto Damatta
(1978) identificou por anthropological blues, as linhas a seguir se dedicam a compreensão
desse fenômeno, a um só tempo, pessoal, subjetivo, metodológico e humano. Antes de
adentrá-lo pormenorizadamente, faz-se necessário a breve apresentação do contexto
pesquisado.

I.

Através da observação participante, técnica malinowskiana consagrada, alcei-me à


pesquisa entre estudantes de um curso de iniciação ao teatro na Escola de Teatro Niterói2,
localizada na cidade que a nomeia, município da região metropolitana do Rio de Janeiro. A
Escola de Teatro Niterói, no mercado há duas décadas e com mais de 2.000 alunos formados
em suas dependências, é conhecida por seu protagonismo regional em matéria de produção
cultural, realização de espetáculos e na distribuição de pessoal ao redor de secretarias, pastas
culturais da cidade, dentre outras áreas.
Ao longo de minha estadia etnográfica, foram pesquisados os dois módulos iniciais do
curso: o primeiro e o segundo módulo (1 ano) compreendiam a modalidade de “Iniciação ao
Teatro e Experiência Teatral”3. Havia ainda a modalidade de curso reservada àqueles que
aspiravam a profissionalização; esta categoria se intitulava “Formação de Atores” e incluía a
2
Com o intuito de preservar a identidade do espaço escolar, assim como a de meus interlocutores,
optei por trocar seus respectivos nomes pessoais por pseudônimos.
3
Os cursos da escola eram tidos como economicamente acessíveis pela maioria de seus participantes.
Os últimos valores a que tive contato eram os seguintes para o Curso de Iniciação ao Teatro (1 ano):
para moradores do município de Niterói, 12 x R$195,00; para moradores de outros municípios,
R$185,00. Para o Curso de Formação de Atores (2 anos), os valores eram os seguintes: para moradores
do município de Niterói, R$210,00; para moradores de outros municípios, R$200. Além disso, era
cobrado uma taxa de R$50,00 para a efetivação da matrícula.
2
207

realização de outros dois módulos semestrais4. Estipulava-se, assim, dois anos para a
formação do ator na instituição, o curso era dividido em quatro módulos consecutivos e em
cada um deles o discente era apresentado a conhecimentos relacionados a prática teatral, além
de participar da Prática de Montagem ao fim de cada semestre.
O desenho curricular da Formação de Atores incorporava invariavelmente o conteúdo
programático destinado à Iniciação ao Teatro. Neste trabalho, a análise não inclui a segunda
secção da formação teatral estipulada pela instituição. No primeiro ano de curso, o discente
era introduzido à prática dramatúrgica por meio de jogos, brincadeiras, exercícios de
improvisação cênica, que envolviam princípios de expressão corporal, impostação de voz, etc.
Além disso, os alunos eram instruídos, mais atentamente no segundo módulo, à História do
teatro e do espetáculo, Teatro e cultura e a noções sobre estética da cena.
É preciso não perder de vista o pano de fundo englobante de toda a pesquisa
etnográfica: a pandemia da COVID-19. Ainda que suas implicações extrapolem os limites
deste estudo, sua existência – atenuada em alguns momentos e violenta em outros – interferiu
extensamente na realização e na presença (física ou virtual) em campo. In situ, experimentei
etnograficamente as nuances relacionadas ao ensino remoto em teatro; o uso de máscara de
proteção nas expressivas e exaustivas sessões de aula; os medos e receios relacionados ao
contágio, mas o desejo de interação e circulação etc.
Com a gradual retomada dos serviços presenciais no ano de 2021, ano em que esta
pesquisa deu seu ponta pé inicial, a escola de teatro optou por um ensino híbrido, onde eram
oferecidas aulas simultâneas: as sessões presenciais eram transmitidas, ao vivo, através de um
computador com câmera e áudio para os alunos que não se sentiam seguros de saírem de suas
casas ou que apresentassem possíveis sintomas do vírus. A distância do local de moradia para
a escola, a insegurança proporcionada pela pandemia, assim como a aparição de eventuais
sintomas relacionados a COVID-19 (ou mesmo sua confirmação através da positivação do
teste) eram os motivos ligados ao não comparecimento presencial dos discentes.

4
Em seu site, a escola listava as seguintes modalidades de curso: para crianças e adolescentes; para
terceira idade; para reingresso teatral; treinamento para testes de elenco; para iniciação ao teatro; e
para a formação de atores. A instituição particular ofertava ainda uma grande variedade de oficinas de
curta duração (presenciais ou online) e “laboratórios”. À época, as primeiras modalidades custavam
R$100,00 e tinham por finalidade oferecer ao público interessado experiências artísticas variadas,
sobre tópicos como dança popular brasileira, dança árabe, canto etc. Através dos “laboratórios”, cursos
temáticos com duração semestral, a escola oferecia experiências teatrais, com mensalidades no valor
de R$145, para não-leigos. Os laboratórios eram no formato intensivo, destinados a profissionais da
área e sempre abordavam tópicos específicos, como Monólogos ou Improvisações.
3
208

O trabalho de acompanhamento foi realizado em duas turmas distintas, onde alunos


com e sem expectativas artístico-profissionais dividiam sala. A primeira experiência ocorreu
na turma de segunda-feira à tarde (15h - 18h) entre os meses de fevereiro e abril de 2021; a
segunda, as segundas-feiras à noite (18:30h - 21:30h), entre abril de 2021 e fevereiro de 2022.
A faixa etária dos integrantes da primeira turma compreendia jovens de 16 anos de idade até
adultos com 24 anos de idade; na segunda turma o perfil etário se estendia, compreendia
jovens a partir dos 16 anos de idade até adultos com 42 anos de idade. Ambas as turmas não
tinham mais do que 12 integrantes matriculados; cerca de 10 alunos, incluindo-me,
participavam das sessões semanais de aula. Apenas 2 discentes frequentavam as aulas
impreterivelmente no modo virtual, ambos eram da primeira turma.

II.

Enfim, foram acompanhadas as trajetórias formativas dos discentes com e sem


expectativas artístico-profissionais em suas atividades semanais: nos aquecimentos, jogos e
brincadeiras, improvisos, ensaios, espetáculos e, por último, mas não menos importante, em
seus períodos de descontração. Espreita sobre tais modos de participação a premissa de que o
terreno em aberto era não somente inexplorado pelo antropólogo como também para seus
nativos.
Ali, todos deveriam quebrar a barreira do silêncio, da vergonha juvenil e da
inabilidade dramatúrgica para explorarem, socializarem e fazerem daquele espaço um lugar
familiar. Nessas circunstâncias, a própria utilização da categoria “nativo” se tornava
inapropriada, pois ela vacilava em conciliar aquilo que Howard Becker (1993) – um dos mais
respeitados cientistas sociais da atualidade, cuja vasta produção inclui textos notáveis sobre
metodologia, técnicas de pesquisa qualitativa e epistemologia – estipulava como técnica de
observação em estudos de caso:

O observador se coloca na vida da comunidade de modo a poder ver, ao longo de um


certo período de tempo, o que as pessoas normalmente fazem enquanto realizam seu
conjunto diário de atividades. Ele registra suas observações o mais breve possível
depois de fazê-las. Ele repara nos tipos de pessoas que interagem umas com as
outras, o conteúdo e as consequências da interação, e como ela é discutida e avaliada
pelos participantes e outros depois do evento. Ele tenta registrar este material tão
completamente quanto possível por meio de relatos detalhados de ações, mapas de
localização de pessoas enquanto atuam e, é claro, transcrições literais das
conversações (p. 120).

Subjaz na pertinente síntese do autor estadunidense, a premissa de que o investigador


adentra uma região previamente socializada, com suas regras próprias e com sua sociologia

4
209

particular. Em tais circunstâncias, cabe ao pesquisador em trabalho de campo registrar aquilo


que se dá conta, vivencia e observa. A partir daí, erguer uma teoria post factum dos
acontecimentos. Ora, o que acontece quando o antropólogo, tal qual a maior parte de seus
interlocutores, se veem enredados pelo mesmo caminho de socialização? Quais são as
implicações de ser tão noviço quanto seus interlocutores?
Certamente não fui o primeiro e não serei o último em tais circunstâncias5. Nas mais
de 200 páginas de meu diário de campo, narro minhas tortuosidades, adversidades, triunfos e,
diga-se de passagem, momentos cômicos. A seguir, lanço mão de algumas passagens de tal
documento para clarificar, com a presença de sentimentos tão vívidos, as nuances de minha
situação à época: repleta de desafios, empasses e dúvidas.
As páginas se iniciam com a manifesta animação de começar em um novo campo, a
ansiedade pelo inexplorado. Diário de campo, fevereiro de 2021: “Antes de adentrar aquele
antigo prédio no coração de Niterói, eu estava um pouco nervoso, mas feliz por iniciar um
novo ciclo temático em uma ‘nova aldeia’”.
Em função das típicas demandas de uma escola de teatro – dentre elas a participação
em alongamentos e aquecimentos; dinâmicas corporais, jogos e brincadeiras etc –, os escritos
que se seguiram ilustram um lugar de completa inabilidade dramatúrgica, receio em me expor
ao ridículo6 e inaptidão corporal para com a dança. Diário de campo, 22 de fevereiro de 2021:

[...] A dança também fazia parte do alongamento. Pelo o que pude observar, o
Maracatu dá plasticidade aos movimentos, recria os movimentos teatrais com
maestria. Tive muitas dificuldades em acompanhar meus colegas e a professora que
presidia a dança. Percebi que tenho grandes problemas de coordenação motora.

5
Uma exemplificação academicamente próxima é a de Luiz Fernando Rojo (s/d, no prelo) em sua
etnografia Por mares nunca dantes navegados. De modo a ampliar o escopo de sua participação
analítica no campo da prática esportiva da vela, o antropólogo se matriculou, na época de seu trabalho
de campo, na “escolinha” de vela do clube em questão, em São Francisco, bairro de Niterói. Ao fim de
seu primeiro semestre de aulas, o pesquisador obteve o simbólico diploma de “velejador” e, com a sua
formatura, foi incorporado aos “treinos” – sessão tida como séria para os nativos – e participou de
regatas. Em determinado momento de seu trabalho, o antropólogo foi surpreendido por seus
interlocutores com o convite de filiação à Federação de Vela do Rio de Janeiro (FEVERJ).
6
“Não ter medo de se expor ao ridículo” foi uma das máximas a que me deparei desde muito cedo com a
realização do trabalho de campo. A expressão era fundamentalmente proferida pelos professores que presidiam
as sessões. Os contextos de enunciação variavam, mas, no mais das vezes, era mobilizada em ocasiões tidas
como incômodas ou embaraçosas para os alunos, como, por exemplo, situações de dança ou de expressão
corporal não usual (ex: imitar um animal). Se expor ao ridículo consistia não somente em não ter vergonha
dentro de sala, mas romper, dentro da perspectiva nativa, a película social que tanto travava os corpos dos
integrantes e os impediam de aprender a dominar e a veicular seus corpos da maneira adequada a prática
dramatúrgica. Além disso, expor-se ao ridículo proporcionava, segundo o ponto de vista institucional, o cultivo
coletivo à harmonia uma vez que os discentes se entregavam uns aos outros. (MEDEIROS, 2022a).
5
210

Com o aumento dos casos da COVID-19 e o recrudescimento da situação pandêmica,


não deixo de dar meu parecer sobre a incômoda situação de ter aulas de teatro virtuais. Diário
de campo, 29 de março de 2021:

Senti falta da transição na ponte e do sono na Avenida Brasil. Hoje foi de ficar em
casa e ter, entre os parentes, uma aula de teatro. Eu estava bastante pensativo sobre ir
ou não a essa aula. Sempre tive, acredito, uma dificuldade em misturar diferentes
ambientes. No caso, o de pesquisa com o privado, domiciliar. Refleti um pouco
mais, pensei em uma conversa com Madu [minha companheira], onde ela me dizia o
quão interessante seria analisar o ensino de teatro no contexto virtual. É uma ideia
original, de fato. Decidi, por fim, participar. Fiquei com receio, é verdade. Aparatei
o quintal de casa com um tapete, uma mesa, meu notebook, um ventilador – caso
fizesse calor, o que ocorreu – e meu diário.

Ainda no contexto de aulas online, em meados do mês de abril, vi-me obrigado, por
razões pessoais, a trocar de horário no curso. Não tardei em ser acolhido pela segunda turma,
há três meses reunida e altamente entrosada. Na ocasião, caí de cabeça em uma pequena
apresentação que estava sendo preparada há poucas semanas. A professora informou que,
infelizmente, eu não poderia participar por ter estado de fora dos demais ensaios, restando a
mim somente assistir. Luísa, uma das estudantes mais engajadas com as sessões, protestou e
reivindicou minha participação ainda que coubesse a mim um papel inferior. Após a aula, os
alunos se dedicaram, dentre outras coisas, a me enquadrar proveitosamente naquela trama.
Sucedeu-se daí, uma discussão de horas, bastante descontraída e jocosamente entrecortada,
para a realização das devidas alterações.
Ao contrário das narrativas heróicas comuns à Etnografia clássica, onde o pesquisador
adentrava um ambiente exótico, se via em face de um conjunto de adversidades contextuais e,
em seguida, triunfava sobre a barreira que o separava do nativo; minha situação etnográfica
contrariava trajetórias unilineares. É bem verdade que as passagens acima assinalam um certo
êxito etnográfico. Se as vinculações e envolvimentos, por um lado, ajudavam-me no
importante exercício de “estar lá”, entre eles; por outro, desandavam-me ao sabor das
experimentações teatrais. Fui afetado de modo que minhas personas se dissolveram àquele
caldeirão.
Flertava paulatinamente, então, com o sentimento de “se estar perdido”. Tal
sentimento era coextensivo a minha presença e absorção nas dinâmicas da turma do curso de
teatro. No processo de escrita do diário, o sentimento mencionado aparecia sob a forma de
interrupção do fluxo descritivo de algum dado de pesquisa; quando em campo, ele geralmente
procedia de um “estalo” epifânico. Resgato de meus registros etnográficos, respectivamente,
ambas as situações.

6
211

Diário de campo, 28/06/2021:

[...] A personagem de Ric, o caipira, foi fortemente retrabalhado pela professora;


contudo, ele ainda conserva traços daquilo que não deveria mais ser: uma figura
caricaturada do red neck.
A maior parte do tempo esqueço que estou pesquisando, isso pode ser perigoso.
(grifo meu).

Diário de campo, 26/07/2021:

Em um daqueles momentos de eventual recordação de que aquela era a


minha pesquisa e, não simplesmente, um lazer semanal, fui para a coxia7 e,
de lá, avistei o [ensaio do] terceiro ato de nossa peça.

Por fim, um paradoxo se apresenta aqui: Como estar “perdido” e, ao mesmo tempo,
tão fixado às dinâmicas singulares do campo e de suas pessoas? Faz-se necessário, talvez,
aludir aos modos a que me vi, por eles, enquadrado. Isto é, aos modos nativos de percepção
do antropólogo. Que papéis me cabiam ali?

III.

É sempre muito impreciso dissertar sobre a posição que cabe ao antropólogo em seu
exercício etnográfico. O acesso às informações, construção de dados de pesquisa e os modos
de registro dependem invariavelmente do papel que o investigador desempenha em campo.
Segundo o antropólogo e performer Ricardo Salgado (2016) em seu artigo A persona do
antropólogo na etnografia como acção, a elaboração da persona do antropólogo é
radicalmente influenciada por sua identidade, personalidade e sensibilidade; assim como, por
suas orientações teórica e opções metodológicas; suas ansiedades e anseios.
Em suma, a experiência etnográfica exige do pesquisador a habilidade de conhecer a si
mesmo, ou seja, de se tornar instrumento de sua própria observação. De se fazer ‘outro’ para
revelar-se a si mesmo (Ibid). Diante de tais considerações, é possível discorrer acerca de meus
posicionamentos etnográficos, o meu lugar entre eles.
Recordo-me de quando, assim que obtive o aceite de minha proposta de pesquisa pelo
diretor da Escola de Teatro Niterói, foram demandados relatórios mensais de minha parte. A
exigência tinha por finalidade acompanhar meus registros, os campos de interesse
pesquisados e a trajetória analítica como um todo. Algum tempo depois, descobri que tal
prática era comum a todo o corpo docente da escola; este encaminhava regularmente

7
Em teatro, a coxia se refere ao espaço situado fora da cena, detrás das cortinas. No formato de palco italiano, a
coxia abrange o perímetro do palco, sem abarcar aquilo que é apresentado. A coxia também pode ser chamada de
bastidores.
7
212

relatórios de presença e de aula – um diário escolar, por excelência – de modo a ser


regularmente avaliado e, caso necessário, (re)adequado à proposta institucional8.
A diretiva intentava manter, sob o campo de observação escolar, aquilo que se
produzia etnograficamente. Não tardei em me desvencilhar de tais exigências, pois, em muitos
aspectos, ligavam-me ao corpo docente e não ao discente – objeto de atenção final. Assim,
não demorou muito para eu perceber que, entre os últimos, existiam distinções significativas
e, portanto, não poderiam ser compreendidos como uma massa compacta e indistinguível.
À época, era possível reduzir a dois grupos de interesse os matriculados no curso:
àqueles com motivações profissionais e àqueles sem motivações profissionais. Entre os que
nutriam expectativas profissionais com a formação, estavam, em sua maioria, adolescentes ou
jovens adultos estudantes do ensino-médio, universitários e/ou assalariados que planejavam se
tornar atores, atrizes ou dubladores.
Entre esses, a obtenção do registro profissional, o chamado DRT (Delegacia Regional
do Trabalho), era um assunto comum, corriqueiramente acionado junto a professora com a
finalidade de tirar dúvidas acerca dos trâmites que antecediam sua obtenção, além de os
benefícios relacionados à sindicalização etc. É a esse grupo de pessoas, por exemplo, que a
modalidade estendida do curso (dois anos) se referia – apesar de não haver nenhum tipo de
impedimento para desejosos sem anseios artísticos participarem –, pois ele dava carga horária
e conteúdo para portifólio suficientes para a obtenção do registro técnico provisório9.
Entre os que não nutriam perspectivas profissionais com o curso estavam uma minoria
de adultos economicamente estáveis. Eles enxergam a realização da prática teatral como uma
atividade lúdica em suas vidas; esta que se interpunha a cotidianidade e, mais
especificamente, a rotina de trabalho. Em outra ocasião me detive a tal grupo e as diferentes
formulações do que para eles significavam “fazer teatro” (MEDEIROS, 2022b), mas é cabível
situar que este pequeno grupo de interlocutores era composto, à época, por um agente de
segurança pública, uma advogada, um psicanalista e um professor de idiomas. De maneira

8
Em entrevista, em 10/08/2022, o diretor da Escola de Teatro Niterói me explicou que a sua crescente demanda
por tais relatórios docentes se deviam ao fato de que, desde o início da pandemia, a escola passou por uma
grande renovação em seu quadro de professores. Logo, a entrega regular do diário escolar funcionava como um
artifício institucional de “controle de qualidade”.
9
A provisoriedade parece ser, na verdade, uma constante na vida do artista amador. A ascensão e o
sucesso profissional do artista, em oposição a outras ocupações profissionais, está ligada, tal como
Howard Becker (2008) observou em Outsiders ao discorrer sobre a cultura dos músicos de casa
noturna, ao cumprimento de uma série de vagas de emprego disponíveis ao longo de sua trajetória
profissional. Nesse quesito, o portfólio parece ser um importante signo de legitimação do percurso,
pois, ao reunir artigos de jornais, divulgações, gravações, fotografias, dentre outras coisas, uma linha
narrativa móvel tornava a carreira tangível. Cabia então ao discente iniciar seu portfólio a partir dos
trabalhos que viesse a desenvolver, ao fim de cada módulo, na escola.
8
213

muito resumida, o contato com o curso parecia servir para eles como uma fonte inesgotável e
polivalente de atributos que incidiam positivamente na vida de seus envolvidos: na resolução
em potencial de problemas relacionados à timidez e ampliação do círculo social ao
“descobrimento de outras formas de ser e estar no mundo”.10
Tendo isso em mente, a partir do momento que se ingressava no curso de teatro, uma
das primeiras abordagens que se fazia ao noviço era o porquê ele estava ali, o que lhe atraía e
quais eram suas expectativas com a realização daquela iniciação ou formação. Esse era,
talvez, um momento crucial para o porvir do discente no curso que, onde por meio de sua
réplica, algumas expectativas lhe seriam apresentadas. Além disso, foi somente com base na
verificação nativa de tal cisão que a instrumentalização analítica em “campos de interesse”
procedeu.
Aqueles que se inclinavam a carreira artística delineavam seus sonhos e anseios
profissionais, senão à dramaturgia, a dublagem ou a áreas afins. Sob um consenso tácito,
deveriam se mostrar mais engajados aos ensinamentos passados em sala de aula, mais
disponíveis à realização de ensaios extraclasses (onlines ou presenciais) e, por fim, mais
comprometidos com os diferentes trâmites que envolviam a realização de um espetáculo:
ensaio, figurino, cenário, maquiagem, texto, montagem etc.
Aqueles que respondiam às interrogações iniciatórias com expectativas diversas e não
diretamente ligadas ao projeto artístico, eram, de uma determinada forma, livres de certas
cobranças. Se esperava deles, acima de tudo, uma coparticipação comprometida.
Curiosamente, por não almejar uma carreira artística, minha presença era ocasionalmente
referida ao lugar do segundo grupo.
Ainda que minha inserção estivesse indubitavelmente atrelada a fatores laborais, afinal
eu estava em trabalho de campo, não foram poucas as vezes que, em momentos furtivos, a
professora, em tom de comicidade, aludia para a possibilidade de minha carreira acadêmica
ser interrompida para dar seguimento à uma trajetória dramatúrgica. Por “pertencer” a tal
posição, seus integrantes, sem tardar, confidenciavam a mim suas indignações, incômodos ou
desapontamentos. Essas situações ocorriam quando viam suas reduzidas responsabilidades

10
A divisão das turmas em dois grupos de interesse não é feita a fim de estancar tais categorias e
esgotá-las. A escolha por trilhar uma carreira artística ou a escolha por vivenciar a experiência teatral
como algo próximo ao lazer eram opções significativamente conectas. Não raro, alguém que entrava
no curso com o deliberado desejo de fruir sem compromisso daquela atividade, optava em algum
momento de sua formação por enveredar à dramaturgia, obter o DRT e atuar na área. Também não era
incomum adeptos ao projeto artístico-profissional desistirem da área por falta de oportunidades,
desilusão ou qualquer outro motivo pessoal.
9
214

teatrais em cobrança ou quando, em atividades comuns a toda classe, consideravam que


haviam empregado demasiado esforço.
À época, além de me ver posicionado nesse “papel”, a saber, o de um aluno sem o
projeto da carreira artística, cumpri outros papéis – no rigor da palavra. Por conta dos
encargos relacionados à produção das montagens ao fim de cada módulo semestral, tive a
oportunidade de interpretar duas personagens – Dona Carme [Foto 1] e Sr. Aprígio11. Não será
possível alongar-me em demasia ao interessante processo pessoal e coletivo de elaboração das
personagens de uma peça. Menos ainda será possível dar a devida atenção a peça teatral, o
grande sentido de acontecimento grupal que lhe acompanha e o sentimento de consagração
presente em seu feito. Contudo, basta chamar atenção para alguns aspectos interessantes desse
momento para a devida qualificação do argumento que se segue.

Figura 1 - Antropólogo em ensaio

Fonte: João Pedro Medeiros / Arquivo pessoal

Para além dos ensaios e passadões, o período que antecedia a realização do espetáculo
era marcado pela composição grupal do espetáculo. O processo supracitado consistia, dentre
outras coisas, em adaptações no texto da peça, preparação de cenário e figurino,

11
Esses foram as personagens que, respectivamente, interpretei nas montagens realizadas pela escola. A
primeira, Dona Carmen, foi adaptada à peça As Doutoras de França Junior, jornalista e teatrólogo brasileiro do
século XIX. Coincidência ou não, o fato de Dona Carmen ter sido criada para adequar o número de alunos da
sala ao de personagens da peça e, mais do que isso, de tal papel ter sido entregue justamente ao antropólogo
conformam aspectos curiosos do ponto de vista de antropológico. A segunda personagem, “Aprígio”, advém da
peça O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues (2019 [1961]).
10
215

enquadramento e marcação de posicionamento nas cenas. Quanto à elaboração das


personagens, a mobilização se desdobrava em exercícios de atribuição de história às
personagens, além de emoções, sentimentos, personalidades, trejeitos, entonações, etc. A
atenção à minuciosidade, aos detalhes comportamentais e expressivos de cada aluno para
consigo e para com seus demais companheiros se desvela em um verdadeiro laboratório da
micro-expressividade humana.
Na ocasião de minha formulação de Dona Carmen, encontrei sérias dificuldades em
realizar aquilo que meus colegas de sala pareciam completar com certo êxito, me conectar
com a personagem. Isto significava criar uma espécie de elo psicológico entre o “eu” do aluno
e o “outro”, sua personagem, esta entidade que pairava nebulosamente acima de cada um;
personagem que, por ocasião do texto, conservava características, modos de ser e estar no
palco. Tais aspectos não eram, de forma alguma, o produto final daquilo que atores ou atrizes
deveriam “encarnar”. O trabalho de atores e atrizes (em formação), no contexto pesquisado,
se dava na tensão entre assumir aquilo que se compreendia – presumia, intuía etc. – do texto e
a assunção de aspectos pessoais ou grupais convenientes à apresentação.
No caso de Dona Carmen, não me chegava à consciência o que deveria significar e
implicar o se conectar. Essa espécie de identificação intrapessoal que tanto meus
interlocutores aparentavam liquidar se expressava em circunstâncias como as de uma
interlocutora que, após semanas de árduo trabalho na concepção de sua personagem, revelou
uma informação curiosa. Carlota, sua personagem, era uma mulher à frente de seu tempo,
sufragista e médica em uma época que pouco lhe cabia além dos cuidados da casa, do marido
e da prole. A interlocutora confidenciou à turma que certa noite, quando ouvia por um acaso
jazz, percebeu que, ainda que não gostasse daquele gênero musical, apreciou, pois “aquele era
o tipo de música que Carlota ouviria”.
Demorei algum tempo para entender que minhas dificuldades para com a personagem
mencionada não resultavam somente da minha qualidade de neófito em teatro ou que,
diferente dos meus interlocutores, eu não havia desenvolvido uma relação com ela; não! Eu
havia sim criado uma relação com Dona Carmen. Meu lugar (topos) – localização tanto física
quanto social de um agente – estava a tal ponto fincada no seio da reiteratividade grupal que
vim a desenvolver tal senso de apreciação/relação para com minha personagem. O que havia,
portanto, era uma relação distanciada, cuja minha objetificação em relação ao envelhecimento

11
216

e a velhice12 impediram-me ou limitaram-me o acesso ao meu estoque de imagens e


referências senis.
Confusões à parte o processo de elaboração de minhas personagens, também ocupei o
papel de amigo, colega de turma, confidente e companheiro. De um modo englobante, todos
aqueles que participavam do universo teatral eram mais ou menos aderentes às modalidades
comportamentais e relacionais tidas socialmente como “mente aberta” ou “cabeça aberta”
(COELHO, 1989; REZENDE, 1990). Dando um tom permissivo às relações que se
constituíam no interior da escola, havia uma áurea atrativa, convidativa e favorável a
formação do companheirismo, senão da amizade. A sociabilidade teatral não se limitava de
forma alguma aos encontros semanais na escola. Ainda que se estivesse em um contexto
pandêmico, peças teatrais, intervenções artísticas, lonas circenses e “noitadas” eram somente
alguns dos contextos de encontro grupal possíveis. Participar de tais circuitos não somente
contribui para o entrosamento do pesquisador juntos aos seus interlocutores – aspecto
essencial a empreitada proposta –, mas também promoveu, à sua maneira, o tensionamento
das inúmeras personas que habitavam o antropólogo naquele momento.

***

Interseccionada de algumas formas, minha situação em campo – etnógrafo, colega,


noviço e sem pretensões artístico-profissionais, por exemplo –, longe de me permitir
reivindicar a autoridade da experiência, corroborou a sensação de um conjunto de emoções e
sentimentos difusos. Inefáveis, eles só podem ser adjetivados por palavras tão propriamente
imprecisas: extravio, evasão, disjunção, confusão e fragmentação. Aspectos que a “perda” ou
o “perder-se” conjugam em suas várias acepções, “estar-se perdido” foi a escolha semântica
para dar cabo reflexivamente daquele momento.

IV.

Toda esta problemática foi concebida muito tardiamente no arranjo de minhas


elocubrações metodológicas no decurso da elaboração do projeto de pesquisa a qual engloba
toda esta iniciativa. De muitos modos receei e adiei este momento da escrita: o período em
que olharia retrospectivamente para a situação metodológica de minha pesquisa.

12
No bacharelado, desenvolvi uma etnografia sobre envelhecimento institucionalizado em uma ILPI
(Instituição de Longa Permanência para Idosos). Naquela ocasião, por conta da natureza do trabalho
empreendido na instituição, coube a objetificação da observação a primazia dos dados construídos em
campo (MEDEIROS, 2020).
12
217

Quer dizer, à época da realização do trabalho de campo, as orientações


teórico-metodológicas que alicerçavam minha proposta me instruíam, muito facilmente, para
o tipo de olhar particularmente proveitoso para o exercício da objetificação. Naquelas
circunstâncias, poderia, sem grandes esforços, dissertar sobre os mais variados tópicos: a
importância dos jogos e das brincadeiras para o ator em formação, o papel da imaginação
neste processo (MEDEIROS, 2022a); a função (quase) terapêutica do teatro para uma secção
dos estudados (MEDEIROS, 2022b), dentre outros tópicos. Entretanto, tal exercício era feito
a partir de um distanciamento ilusivo de minha parte, isto é, a presença etnográfica era pouco
explorada. Ou, quando se revelava, exibia-se enquanto um mero instrumento da circunstância.
Uma lacuna insuportável se revelava em meus escritos: além de imerso no “nós” da escrita do
diário de campo, onde eu me encontrava? Por que me debruço em demasia nos aspectos
subjetivos e da ordem de minha identificação etnográfica?
Em primeiro lugar, as representações de si sempre se revelam dentro de um ponto de
vista valorativo; refletem o bem e o mal, o desejável e o indesejável, o superior e o inferior.
Arregimentadas dessa maneira, algumas autoimagens se tornam centrais e, outras, periféricas
(LA TAILLE, 2002). Logo, o que se constata, a partir da perspectivação do material de
campo, é que a persona etnográfica sofreu um processo de periferização ao mesmo tempo em
que outros fragmentos do self do pesquisador ganharam relevo.
Em segundo lugar, deve-se lembrar que há muito os aspectos sensíveis e emocionais
adentram o escopo do entendimento antropológico. Nesse quesito, tal qual o trabalho de
Jeanne Favret-Saada (2005) Ser afetado sugere, a observação participante não pode ser
redutível à observação. No artigo em questão, a autora dirige duras críticas ao fazer
etnográfico dos antropólogos anglo-saxões que se interessavam pela temática da feitiçaria.
Para ela, a observação-participante empreendida por esses pesquisadores se restringia ao
pagamento de informantes, sua observação e a recolha de seus relatos. Assim, a
“participação” ficava restrita aos informantes e, ao antropólogo, o ato de estar fisicamente lá,
observando.
Para os antropólogos anglo-saxões, ao se observar chegava-se ao “factual” e, tão logo,
ao “real”, “ao comportamento”. Os desdobramentos reflexivos aí contidos são claros: o ponto
de vista nativo é desqualificado, suas palavras rebaixadas a “representação” e “imaginário”; a
palavra do pesquisador, por outro lado, eleva-se a verdade dogmática, visão arquimediana
sobre os fenômenos. Ao deter a palavra final, o antropólogo aprofunda a cisão entre “eu” /
“eles”, entre pesquisador e pesquisado. Blindado neste lugar elevado, à duração em que se

13
218

desvela naturalmente a imersão etnográfica se torna segmentada em “eventos”, “fenômenos”


e “episódios” por conseguinte observáveis, analisáveis e inquiridos.
No lado oposto, ao se estar “enfeitiçado”, isto é, incluso e afetado pelo sistema
comunicativo nativo, o antropólogo é agitado pelas sensações, percepções e pensamentos
típicos da interação grupal a que está incluso. Os modos de comunicação aí inclusos não se
limitam, de forma alguma, a emissão de códigos verbais, mas também na participação de
interações não-verbais – o que Fravet-Saada chama de “comunicação involuntária e não
intencional” –, ou seja, nos modos de percepção e transmissão das intensidades a outrem. O
antropólogo partilha de tal rede: da percepção de outrem em seu campo sensorial e da
comunhão com esse “outro” das intensidades e alterações de qualidade ligadas ao lugar de
convívio.
O enigma do “estar-se perdido” talvez se resolva aí: ao se constatar minha absorvência
àquelas dinâmicas de correr pela sala, cantar e dançar; estar atento ao imediatismo dos
improvisos e do desligar proporcionado pelos aquecimentos e alongamentos; mas também no
fervoroso empenho para a realização dos espetáculos ou nos espaços de descontração
extra-institucionais. Ou seja, todas essas micro participações forneceram o “núcleo duro” ao
qual me esforcei em me localizar entre eles, pois “[...] estar-se situado, eis no que consiste o
texto antropológico como empreendimento científico” (GEERTZ, 2017, p. 10).
Outrora estive preocupado, enquanto pesquisador, com o papel de “completo
participante”, postulado dentre outros papéis cabíveis ao investigador13 por Raymond Gold
(2001 apud SALGADO, 2016, p. 208). Sentia-me sendo encaminhado para tal lugar. O
completo participante

[...] no limite, implica a omissão da verdadeira identidade do investigador e/ou o


propósito da investigação. Corresponde ao papel de undercover, à construção de
uma persona que quer participar na prática social dissimuladamente, mas que se
obriga em lembrar que não poderá deixar de ser um observador no processo de
gestão dos encontros a que a etnografia como acção obriga. Será o que se procura
com o going native. É alguém que entra num regime de participação integrado na
composição social do grupo de estudo e que desempenha o papel com um propósito
definido, consciente das repercussões políticas dos seus actos. O registo dessa
experiência é muito limitado. (p. 209, grifo meu).

Incomodamente ressoante em minhas experiências de campo, suas memórias e


escritos, o trecho acima destaca a borda limítrofe que o antropólogo ultrapassa quando é
absorvido, em demasia, por seu contexto de pesquisa. Going native, ou seja, tornar-se nativo,
nunca foi uma opção em meu caso. Contudo, considero relevante reavaliar, com otimismo, tal

13
Além do completo participante, existiriam ainda o completo observador; o observador como
participante; e o participante como observador.
14
219

“regime de participação integrado na composição social do grupo de estudo”; positivar, por


conseguinte, o estatuto do “sentir-se perdido” e vislumbrar as diferentes possibilidades de
registro proporcionadas por minha fragmentação. Digo, ao nível da documentação
etnográfica, quais foram os possíveis saldos de quando interpretei Dona Carmen e, depois, Sr.
Aprígio? Ou de quando estive na posição de amigo e confidente? Ou ainda, na de noviço sem
qualquer experiência anterior em palco?
Não viso dar solução a todas as indagações que perfizeram esta análise, senão somente
direcionar o percurso reflexivo de minha estadia etnográfica. Tais questionamentos são
voltados, portanto, a cada volta ao diário de campo, as memórias daquele 1 ano, aos seus
registros fotográficos e de vídeo; além dos esporádicos reencontros com os interlocutores.
Afinal,

As operações de conhecimento acham-se estendidas no tempo e separadas umas das


outras: no momento em que somos mais afetados, não podemos narrar a experiência;
no momento em que a narramos não podemos compreendê-la. O tempo da análise
virá mais tarde. (FAVRET-SAADA, 2005, p. 160, grifo meu).

REFERÊNCIAS

BECKER, Howard. Métodos de pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Hucitec,1993.


_____________. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. 1. Ed. Rio de Janeiro: Zahar,
2008.
COELHO, Maria Claudia. Teatro e contracultura: um estudo de antropologia social.
Dissertação (Mestrado) - UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 1989.
DA MATTA, Roberto. O ofício de etnólogo, ou como ter anthropological blues. Boletim do
Museu Nacional: Antropologia, n. 27, maio. 1978. p.1-12.
FAVRET-SAADA, Jeanne. Ser afetado. Cadernos de Campo, nº 13, ano 14, São Paulo: USP,
2005 (trad. Paula Siqueira).
FRANÇA JUNIOR. As Doutoras. [1889].
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC. 2017 [1973].
DE LA TAILLE, Yves. O Sentimento de Vergonha e suas Relações com a Moralidade.
Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 15, n. 1, pp. 13-25, 2002.
MEDEIROS, João. P. Institucionalização, envelhecimento e corpo: Uma etnografia sobre
controle institucional e processos de diferenciação em um asilo da Baixada Fluminense – RJ.
Monografia (Graduação em Antropologia). Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia. Niterói, 2020.

15
220

_____________. D’a seriedade humana de brincar à imaginação do ator em formação:


considerações antropológicas sobre jogo e corpo em uma escola de teatro em Niterói (RJ).
Perspectivas Sociais, v. 8, p. 209-226, 2022a.
_____________. O teatro funciona para mim de forma terapêutica. Como algo que me faz
bem, onde eu posso trabalhar minhas emoções e me conhecer melhor?: Notas etnográficas
sobre Teatro, Emoção e Indivíduo. In: 33ª Reunião Brasileira de Antropologia - RBA, 2022,
Curitiba (online). Anais 33ª Reunião Brasileira de Antropologia - RBA. Curitiba, 2022b.
RODRIGUES, Nelson. O beijo no asfalto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019 [1961].
ROJO, Luiz Fernando. Por mares nunca dantes navegados: Uma etnografia da prática de
vela em um clube de Niterói (RJ). (s/d, no prelo).
SALGADO, Ricardo S. A Persona do Antropólogo na Etnografia como Ação: o Jogo dos
Papéis, do Registo e as Metodologias Teatrais. In: MARTINS, Humberto; MENDES, Paulo
(orgs.), Trabalho de campo: envolvimento e experiências em antropologia. Lisboa: ICS,
Imprensa de Ciências Sociais, pp. 201-220, 2016.
REZENDE, Claudia B. Diversidade e Identidade: discutindo jovens de camadas médias
urbanas. In: VELHO, Gilberto (Org). Individualismo e juventude. Programa de
Pós-Graduação de Antropologia Social. Museu Nacional – UFRJ, Rio de Janeiro.
Comunicação n. 18, 1990.

16
221

“NÃO DEU PARA ESTUDAR E SÓ APRENDI A FAZER SERVIÇO DE CASA


MESMO”: a produção do sujeito mulher/mãe/educanda da EJA
Josêclea da Silva Nascimento Porfírio1

Resumo

O presente artigo é um recorte de uma pesquisa de mestrado em andamento e busca discutir sobre a produção do
sujeito mulher/mãe/educanda da Educação de Jovens e Adultos (EJA) a partir da perspectiva de sexualidade,
gênero e Estado, além de perpassar por categorias como classe social, raça, família, parentesco e maternidade. O
trabalho é fundamentado na discussão sobre sujeito e poder (FOUCAULT, 2013); sujeito e sexualidade
(FOUCAULT, 1997). Assim como também na interface entre gênero e Estado apresentada por Vianna e
Lowenkron (2017) e Veena Das (2020). Para coleta dos dados foram realizadas entrevistas individuais
semi-estruturadas ocorridas numa escola municipal da cidade de Santa Rita/PB, no turno noturno (horário em
que a EJA é ofertada) com três mulheres/mães/educandas da modalidade de ensino. Nos relatos, fatores como
infância precarizada, trabalho e gravidez na adolescência são apontadas pelas interlocutoras como os motivos da
não escolarização na idade regular. Além disso, em suas histórias de vida identificamos questões como racismo
de Estado, a prática da “circulação de crianças”, diferentes modelos familiares, ausência paterna e moralidade
materna. A partir disso, verificou-se que essas relações de poder e práticas sociais que atravessam a existência
dessas mulheres constituem o processo de produção desse sujeito.

Palavras-chave: Sujeito. Gênero. Estado.

Introdução
O presente artigo é um recorte de uma pesquisa de mestrado em andamento sobre
“Sentidos de maternidade para mulheres/mães/educandas da Educação de Jovens e Adultos
(EJA)”. Foi escrita como trabalho final da disciplina Estado, Políticas Públicas, Gênero e
Família, ofertada pelo PPGA-UFPB e cursada no período de 2022.2.

O estudo tem como objetivo discutir sobre a produção do sujeito


mulher/mãe/educanda a partir da perspectiva de sexualidade, gênero e Estado, além de
perpassar por categorias como classe social, raça, família, parentesco e maternidade. A
pergunta que norteia nosso estudo é como essas dimensões contribuem para pensar esse
sujeito com o duplo papel da maternidade e da escolarização? Para fomentar a discussão,
partiremos dos relatos de vida de mulheres mães e educandas da EJA de uma escola
municipal localizada em Santa Rita/PB.

1
Mestranda em Antropologia Social – Programa de Pós-Graduação em Antropologia – Universidade
Federal da Paraíba. Email: josysilvajsn@hotmail.com.
222

Dentro de um contexto geral, o que elas tem em comum? São mulheres da classe
trabalhadora que, por diferentes motivos, não estudaram na idade regular2 ou tiveram que
interromper seus estudos e agora encontraram na EJA a porta de entrada para a escolarização.
Além disso, são mães que buscam atender às exigências da maternidade. Assim, estamos
diante de um sujeito produzido pelas relações de poder em que estão inseridas.
Para além de uma discussão teórica baseada nos estudos de Michel Foucault sobre
sujeito e poder (FOUCAULT, 2003), sujeito e sexualidade (FOUCAULT, 1997); assim como
os estudos sobre Gênero e Estado (VIANNA; LOWENKRON, 2017), (DAS, 2020); o artigo
pretende apresentar as trajetórias de vidas de mulheres cujos corpos e existências são
atravessados por marcadores sociais da diferença como classe social e raça. Dando voz e
visibilidade para esses sujeitos que, de diferentes maneiras foram silenciadas, sendo-lhes
negado o direito a educação.

O campo de pesquisa e os relatos de vida de mulheres/mães/educandas da EJA


A pesquisa foi realizada numa escola municipal que oferta a modalidade de ensino
EJA no turno noturno, situada em Santa Rita/PB, município localizado na região
Metropolitana da capital João Pessoa/PB. O município é dividido em zona rural e zona
urbana, sendo a escola, na qual a pesquisa foi realizada, localizada na zona urbana.
Sobre a EJA, é importante salientar que a modalidade de ensino é resultado das
mobilizações de setores progressistas e movimentos sociais em prol da garantia dos direitos
sociais e responsabilidade do Estado em atender as demandas da população mais pobre do
país (DI PIERRO; JOIA; RIBEIRO, 2001). Conquista essa que só foi garantida através da
Constituição de 1988. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN – Lei nº
9.394/96) reforçou o direito a educação aos jovens e adultos: Art. 37. A educação de jovens e
adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino
fundamental e médio na idade própria (BRASIL, 1996, p. 13)3.
Dito isso, para o desenvolvimento da pesquisa foram realizadas entrevistas
presenciais semiestruturadas no período de novembro e dezembro de 2022, na própria escola.
Para a escrita desse estudo, analisamos os relatos de vidas de três educandas, às quais
apresentamos com nomes fictícios: Mara, 71 anos, autodeclarada negra, natural do Rio de
Janeiro, atualmente estudante no ciclo II (que na EJA equivale o 4º e o 5º ano do Ensino

2
A idade regular é a faixa etária de escolarização obrigatória da educação básica que vai dos 04 aos 17 anos, de
acordo com o inciso I do Art. 4º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9394/96)
3
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, 1996.
223

Fundamental I). Luana, 42 anos, natural da Paraíba, autodeclarada parda, também aluna do
ciclo II. E Marta, 30 anos, autodeclarada parda, natural do Rio Grande do Norte, aluna do
ciclo III (que na EJA equivale o 6º e o 7º ano do Ensino Fundamental II). Os relatos dessas
mulheres carregam contextos sociais, suas infâncias e adolescências, e revelam os motivos da
não escolarização na idade regular. Ressalta-se que todas são oriundas da classe trabalhadora,
e suas histórias retratam situações de pobreza e precariedade vividas durante suas trajetórias.
É o que identificamos na fala de dona Mara ao ser perguntada sobre como foi sua infância:
“A gente era muito pobre. Não tive oportunidade nem eu nem meus irmãos mais
velhos de estudar porque o colégio era muito longe e meus pais não me deixavam ir.
E outra, também não tínhamos dinheiro para comprar o material nem a farda do
colégio. Aí a gente não estudamos”. (Mara)

Dona Mara vem de uma família constituída por pai, mãe e 14 filhos. Ao analisar sua
fala, percebemos que a pobreza que vivenciou com a família a impossibilitou de estudar na
infância. Para a população negra as desigualdades e precariedade são resultados de um
histórico de violência e abandono e negligência do Estado em suas responsabilidades sociais.
Foucault (2005) discute sobre o poder no Estado moderno – o Biopoder – e o racismo de
Estado. Segundo o autor, o paradoxo do Biopoder está na seguinte questão: como se exerce o
direito de matar em uma tecnologia de poder que tem como objetivo fazer viver?
É aí que o racismo entra, como um dispositivo que determina quem deve morrer,
baseada numa ideia de raça. Nessa perspectiva de “fazer viver ou deixar morrer” pode-se
afirmar que quando o Estado não dá as condições de vida, se deixa morrer. É possível pensar
nessa morte não apenas física. Conforme esclarece Foucault (2005, p. 306): “É claro, por tirar
a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas também tudo o que pode ser
assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou,
pura e simplesmente, a morte politica, a expulsão, a rejeição, etc”.
Dessa forma, não seria “exercer o poder da morte” permitir que uma criança não
estude por ser a escola distante ou por sua família não ter condições financeiras para comprar
o material escolar e a farda? Não seria isso a morte do direito à educação? Continuando seu
relato, nossa interlocutora afirma:
“Por isso eu não estudei nova. Não deu para estudar e só aprendi a fazer serviço de
casa mesmo”. (Mara)

Sua fala fomenta a discussão sobre como nossa sociedade condiciona a mulher,
desde a infância aos trabalhos domésticos, restringido-a ao espaço privado. Dessa forma, o
espaço doméstico tornou-se para dona Mara seu ambiente de aprendizagem. O trabalho
doméstico aparece na fala de dona Luana como motivo de interrompimento dos estudos. No
224

caso dela, precisou trabalhar ainda na adolescência na casa da vizinha e como cuidadora de
idosos. Segundo ela:

“Estudei até os 14. Com 15 fui trabalhar já em João Pessoa… com 13 anos eu já
trabalhava do lado da casa de mainha na casa da vizinha e com 15 anos fui pra
João Pessoa trabalhar como cuidadora de idosa”. (Luana)

A história de Luana se assemelha a de várias jovens oriundas de famílias pobres que


interrompem os estudos para trabalhar e ajudar no orçamento familiar. É importante pensar
que essas atividades remuneradas exercidas por essas mulheres continuam sendo os serviços
domésticos e práticas do cuidado que, socialmente, são considerados trabalho das mulheres.
Em seu relato de como foi sua infância, Luana fala que durante os primeiros anos de
vida foi criada pela avó materna indo morar com a mãe após o falecimento da avó:
“Eu morava mais com minha avó aí depois que minha avó faleceu aí eu fui morar
com minha mãe”. (Luana)

Esse fato chama atenção para pensar nas estruturas familiares e as formas de
infância. O caso de Luana revela uma prática comum entre os grupos populares brasileiros
que a antropóloga Cláudia Fonseca (2006, p. 14) denomina de “circulação de criança”, que
seria “o grande número de crianças que passa parte da infância ou juventude em casas que não
a de seus genitores”. A autora observa essa prática como uma estrutura de organização de
parentesco em grupos brasileiros de baixa renda, saindo de uma ótica de “problema social”
para um “processo social” (FONSECA, 2006).
É a partir de suas realidades que esses modelos familiares se organizam como
estratégia de manutenção da sobrevivência. Assim, não existe um modelo familiar superior ou
inferior, melhor ou pior, mas “um enorme leque de práticas de organização doméstica e social,
dando prova da criatividade dos humanos para inventar formas culturais conforme o contexto
em que vivem” (FONSECA, 2006, p. 21).
Essa perspectiva também se alinha à história de Marta. Ao ser questionada sobre
como foi sua infância ela conta:
“Não foi muito boa porque eu perdi minha mãe eu tinha 07 anos de idade aí eu fui
criada pela minha irmã, minha avó, meu pai e minha tia”. (Marta)

O relato da Marta nos revela como a prática da circulação de crianças é comum na


nossa sociedade. Além disso, mostra a ideia de uma “infância não muito boa” devido a perda
da mãe e o convívio com o pai. De acordo com ela, aos 12 anos foi morar com o primeiro
namorado (pai de sua primeira filha) por não querer mais viver com o pai:
“Assim, não foi uma infância muito boa não, porque quando eu completei 12 anos
225

eu fui morar com o pai da minha menina… Assim, na época meu pai bebia muito aí
minha vó não deixava eu morar totalmente com ele. Eu passava o dia com ele e a
noite eu ia pra casa da minha tia ou da minha avó. Porque minha vó não confiava,
como eu era pequena né” (Marta)

A partir de sua fala, é possível dizer que essa desconfiança da avó era baseada no
fato do pai de Marta “beber muito” e talvez por isso, não ser capaz de cuidar dela. Essa
incapacidade do seu pai caracteriza uma forma de “ausência paterna”. Sobre isso, Fernandes
(2020) com base em uma etnografia realizada em um complexo de favelas no Rio de Janeiro,
discute as ausências masculinas e de Estado na vida de mulheres mães e pobres. Ela verificou
que a ausência paterna nas temáticas do cuidado com as crianças era contante. Sendo as
mulheres “as principais responsáveis pela proteção, educação e mobilidade das crianças,
incluindo sua integridade física” (FERNANDES, 2020, p. 2012). A discussão elaborada pela
autora, nos permite refletir sobre o caso da Marta. Apesar de estar fisicamente presente, o seu
pai não proporcionou os cuidados e a proteção necessária para sua criação, sendo estes,
exercidos pela avó, a tia e a irmã mais velha. Nesse sentido, essa ausência do pai resultou na
sua saída de casa para morar com o namorado. Conforme ela relatou, aos 12 anos, morando na
casa da sogra, continuou estudando. Porém, aos 14 anos engravidou, fato que dificultou sua
permanência na escola:
“Quando eu engravidei de Marina eu continuei estudando, mas aí depois da
gravidez quando ela nasceu não tinha com quem ficar. A minha sogra às vezes
ficava mas ela reclamava. Aí por causa da amamentação eu ficava com o peito
cheio de leite né aí eu peguei e desisti. Vim voltar agora”. (Marta)

A fala da jovem nos indica outro motivo bastante recorrente entre as mulheres que
não conseguem concluir os estudos: a gravidez na adolescência. Robles (2015) aborda o risco
como uma categoria reguladora na saúde das mães, filhos e mulheres grávidas usuárias do
Sistema Único de Saúde (SUS). Conforme aponta a autora, a partir do estabelecimento de
“fatores de risco” pelo Ministério da Saúde, a gravidez na adolescência se enquadra na
perspectiva de “gravidez de risco”, questão que ela problematiza em seu estudo. Nessa
perspectiva, a mãe adolescente é vista como a incapaz, a desviante em relação ao padrão
reprodutivo veiculado pelo dispositivo regulador. Dessa forma, “o risco é um recurso cultural
através do qual a saúde pública procura impor padrões desejáveis de conduta” (ROBLES,
2015, p. 152).
Há também uma associação entre “risco” e classe social. Segundo a autora:
O “risco de engravidar” está relacionado à classe social, já que nas camadas médias
as jovens dificilmente têm gravidezes indesejadas (seus recursos financeiros e apoio
familiar permitem realizar abortos seguros). Nesse sentido, a gravidez na
adolescência se torna um “problema de saúde pública” que, objetivado pela noção de
226

risco, alimenta discursos alarmistas sobre a sexualidade nas camadas populares. (p.
153)

Desse modo, a imagem negativa da mãe adolescente vai sendo construída baseada no
modelo de mãe e na idealização da família nuclear. Contudo, ao vemos os relatos de Marta,
percebemos a ideia de “moralidade materna”. Apesar de ter sido mãe “fora da idade
desejável” a jovem “cumpriu suas obrigações maternas”, “deixando” os estudos para cuidar
de sua filha – rompendo com a ideia de que a mãe adolescente é irresponsável com seu bebê.
Segundo a interlocutora, o fato da filha “não ter com quem ficar” e ficar com “o peito cheio
de leite” devido a amamentação, foram os motivos que a fizeram interromper os estudos. Isso
nos possibilita dizer que a preocupação da jovem era com a criança.
Pensando em maternidade, percebe-se que o foco é sempre no bem-estar e
desenvolvimento da criança sendo à mãe a figura responsabilizada por esse processo. Sobre
isso, discutindo tecnologias de governo e moralidade materna, Fonseca (2012) aborda os
Programas educativos alternativos para o desenvolvimento da Primeira Infância envolvendo a
ciência, política e moralidade materna, atrelado à noção da relação familiar, principalmente,
os cuidados maternos. Desse modo, os cuidados maternos vão sendo aprimorados visando o
pleno desenvolvimento da criança. E o que a autora sugere é que a moralização do
comportamento feminino não se respalda mais numa fatalidade biológica da mulher, “Agora,
seu destino é selado pelos imperativos da biologia (desenvolvimento cerebral) do bebê”
(FONSECA, 2012, p. 272).
A partir dessas perspectivas, vai sendo idealizada a figura da boa mãe. Aquela que
não se enquadra nessa expectativa feminina é considerada imoral, irresponsável, negligente. A
partir dessa perspectiva de mãe ideal, vão sendo construído mecanismos de controle e
regulação, seja através de discursos ou intervenções estatais, para ensinar às mães práticas de
uma boa maternagem. São esses padrões reguladores que vão moldando as subjetividades
dessas mulheres, determinando os comportamentos esperados para ser mulher e desempenhar
uma boa maternidade.

A subjetivação do sujeito: um diálogo com Foucault


Para fundamentar teoricamente a discussão sobre a produção do sujeito, abordaremos
a perspectiva de sujeito e poder (FOUCAULT, 2013) e sexualidade (FOUCAULT, 1997). O
filósofo Foucault preocupa-se em compreender como os seres humanos, dentro da nossa
cultura, tornam-se sujeitos. Ele percebe que enquanto o sujeito é colocado em relações de
produção e de significações, é também colocado em relações de poder complexas. E dessa
227

forma, são essas relações de poder responsáveis pela produção do sujeito e sua subjetividade.
Mas o que seria essas relações de poder? Segundo o autor, as relações de poder são um modo
de ação que age sobre a ação dos outros (FOUCALT, 2013).
Cabe ressaltar que, esse poder, visto como condutor do comportamento do sujeito,
não é exercido através da violência, mas só pode ser exercido sobre “sujeitos livres”. Sendo
assim, é possível compreender esse poder sendo incorporado pelo próprio sujeito, o que vai
implicar a subjetivação, ou seja, o processo de torna-se sujeito.
No caso da escolarização, esta é considerada um elemento valorizado em nossa
sociedade. O que permite pensar como são tratadas e vistas aquelas pessoas que não passaram
por esse processo, que não detém do “conhecimento científico”? Ou ainda, qual o lugar social
daquelas pessoas que são escolarizadas “fora da idade regular”? Que sujeitos são esses que se
constituem à margem dessas relações de poder ou de comportamento educacional esperado?
Essa perspectiva de subjetivação, também nos possibilita refletir acerca dos discursos
sobre maternidade produzidos e reproduzidos no bojo das relações de poder em que as
mulheres estão inseridas (família, religião, mídia, etc) e que são tão bem incorporados por
elas. Quando, por exemplo, uma jovem engravida e “decide” interromper os estudos para se
dedicar exclusivamente ao seu bebê, se respaldando na concepção de que aquele novo ser
depende totalmente de sua atenção, afeto, amor e cuidados. Nenhuma mulher pode contestar
isso, ou caso conteste, poderá ser demonizada ou considerada uma péssima mãe. É
interessante pensar como esse processo de subjetivação acontece dentro de um campo de
disputa de saber-poder que é a sexualidade. Na sua obra História da sexualidade, Foucault
(1997) afirma que o dispositivo da sexualidade é um discurso articulado entre vários
especialistas e instituições para produzir um sujeito. Dessa forma, a construção do que é o
sexo produz o que seria o sujeito. O autor busca “analisar a formação de um certo tipo de
saber sobre o sexo, não em termos de repressão ou de lei, mas em termos de poder” (p. 88). E
esse poder não é uma instituição ou uma estrutura, mas o campo estratégico das relações de
poder constituído de diferentes agentes.
Discorre que a sexualidade não deve ser descrita como um ímpeto rebelde. Ela
aparece mais como:
[...] um ponto de passagem particularmente denso pelas relações de poder, entre
homens e mulheres, entre jovens e velhos, entre pais e filhos, entre educadores e
alunos, entre padres e leigos, entre administração e população. Nas relações de
poder, a sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos dotados da maior
instrumentalidade: utilizável no maior número de manobras, e podendo servir de
ponto de apoio, de articulação às mais variadas estratégias. (p. 98)
228

Assim, apesar de o sexo ser subjetivo, ele perpassa pelas relações de poder, se
tornando uma construção histórica fundamentada nos discursos e práticas de poder. Segundo
o autor, a partir do século XVIII surgiram quatro grandes conjuntos estratégicos para pensar a
sexualidade. Dentre eles a “Histerização do corpo da mulher”, no qual, analisa esse corpo
como saturado de sexualidade; integrado às práticas médicas; posto em comunicação com o
corpo social (fecundidade regulada), o espaço familiar e a vida das crianças (responsabilidade
biológica-moral). Nesse sentido, a mãe aparece como a imagem de mulher nervosa que
“constitui a forma mais visível desta histerização” (FOUCAULT, 1997, p. 99).
Com isso, entende-se o dispositivo da sexualidade como um discurso produzido
historicamente através das relações de poder. Trazendo para nossa discussão, percebemos que
a concepção do que é ser mulher e do que é ser mãe é pautada em um discurso de agentes e
grupos dominantes que é incorporado por esses sujeitos. Isso nos possibilita iniciar a reflexão
acerca da interface entre gênero e Estado e de como essa relação mútua produz sujeitos em
nossa sociedade.

A interface entre Gênero e Estado


Vianna e Lowenkron (2017), discutem as relações de mútua constituição entre
gênero e Estado, tomando-os como dinâmicas mutuamente produtivas, que elas chamam de o
“duplo fazer”. Buscam compreender seus limites e fronteiras como parte integrante de suas
inteligibilidades. Dessa forma, apontam que a vida social de ambos os termos é distinta.
Assim, entendem o Estado como o termo que “designa unidades sociopolíticas,
institucionalidades e fronteiras que moldam e afetam tanto ordens macropolíticas, quanto
rotinas burocráticas que nos regem a todos cotidianamente”; e gênero como um campo de
batalha percebido, circulado e experimentado como “algo de ‘segunda ordem’, de natureza
eminentemente analítica” (VIANNA; LOWENKRON, 2017, p. 2).
As autoras questionam como o Estado cria as relações, performances, representações
de gênero. Partindo do entendimento que todos os aspectos e dimensões que atravessam nossa
vida social não existem fora do Estado, mas acontece nele e por ele, se tornando
compreensíveis, enfatizam que o modo que o Estado regula, enquadra os corpos, as relações,
os afetos e sujeitos é através de um trabalho contínuo de produção (VIANNA;
LOWENKRON, 2017). Com isso, endossamos a discussão a respeito da produção de um
sujeito – a mulher – a partir da perspectiva do Estado como uma rede de relações que detém
do poder sobre os corpos e subjetividades dos indivíduos.
Segundo as autoras, o Estado, enquanto categoria, tornou-se objeto de reflexão e
229

estudos das teóricas feministas através do envolvimento delas com aparatos institucionais e
governamentais. Em meados do século XX, o feminismo se expandia, assim como suas pautas
de reivindicações como equidade salarial, direitos reprodutivos, legalização do aborto,
liberdade sexual, etc. Nos anos de 1980 as feministas iniciam as primeiras formulações
teóricas sobre o gênero no/do Estado, refletindo acerca de como o Estado participava das
opressões das mulheres.
Dentre essas perspectivas, a ideia de que o “Estado é masculino” tornou-se popular
entre as teóricas feministas. Nessa concepção, em uma sociedade onde os poderes políticos e
as instituições são masculinizadas (ou seja, ocupadas majoritariamente por homens), a mulher
é submetida ao poder masculino que formula leis a partir de suas ideologias e perspectivas, ou
seja: “o Estado, por meio da lei, institucionaliza o poder masculino sobre mulheres através da
institucionalização do ponto de vista masculino na lei” (MACKINNON, 1989, p. 169 apud
VIANNA; LOWENKRON, 2017, p. 10). Salienta-se que as autoras não necessariamente se
alinham a essa perspectiva, mas, a apresenta como uma das abordagens feministas elaboradas
acerca da relação entre Estado e gênero.
Veena Das (2020) traz subsídios para fomentar essa discussão. Em sua pesquisa
sobre mulheres hindus que sobreviveram aos violentos eventos da Partição da Índia, ocorrido
em 1947, a autora buscou entender como as ansiedades públicas em torno da sexualidade e da
pureza poderiam ter criado as bases que colocaram a figura da mulher raptada como ponto de
mobilização para o restabelecimento da nação como espaço puro e masculino.
Problematizando a ação do Estado para recuperar e devolver essas mulheres aos seus
territórios, a autora aponta que a história sobre rapto e recuperação dessas mulheres funciona
como uma autorização da relação particular entre contrato social (contrato entre os homens
para instituir o político) e contrato sexual (acordo para circunscrever as mulheres ao âmbito
doméstico sobre a autoridade da figura do pai ou do marido). Assim, o rapto das mulheres
sinaliza um estado de desordem, e a recuperação destas, um estado de ordem social.
A autora ressalta que o interesse pelo resgate dessas mulheres baseava-se não em sua
definição como cidadãs, mas “como seres sexuais e reprodutivos”. Isso ficou evidente nas
exigências feitas por alguns membros da Câmara que enfatizavam que “mulheres em idade
reprodutiva deveriam ser recuperadas” (DAS, 2020, p. 53).
Dessa maneira, podemos compreender como o Estado, a partir de aparatos legais e
discursos fundamentados nas idealizações masculinas sobre as mulheres, oprimem, dominam
e excluem as mulheres de seus direitos sociais básicos como a educação e a liberdade sobre
seus corpos, por exemplo. Assim, ao analisar os relatos de vida das mulheres mães e
230

educandas da EJA, verifica-se que esse sujeito é constituído de discursos ora respaldados na
idealização da maternidade, como no caso de Marta; ora na atribuição da mulher ao espaço
privado representado pelos trabalhos domésticos, como no caso de dona Mara e Luana.
Também se pensarmos no percurso histórico da educação feminina podemos identificar como
as ideias machistas aparados por leis, fomentaram a negação do direito à educação para as
mulheres. Nesse sentido, percebe-se a presença do Estado, em diferentes instituições (como a
família e a escola) atuando na vida desses sujeitos.

Considerações finais
Este estudo buscou entender como as dimensões e categorias analíticas como classe
social, raça, gênero, família e maternidade contribuem na subjetivação da
mulher/mãe/educanda da EJA.
Identifica-se que infância precarizada, necessidade de trabalhar “muito cedo” e a
gravidez na adolescência são questões que aparecem nos relatos das interlocutoras como
motivos da não escolarização na idade regular. Além disso, identifica-se o racismo de Estado
evidenciado nas desigualdades sociais presentes na trajetória de dona Mara; a ideia de
“circulação de crianças” e diferentes modelos de famílias, ausência paterna e moralidade
materna, revelados na história de Luana e Marta. Todas essas relações de poder e práticas
sociais que perpassam a existência dessas mulheres fazem parte do processo de produção
desses sujeitos.

Para finalizar esse artigo e abrir a possibilidade de novas discussões, apontamos a


EJA como uma modalidade de ensino importante na vida dessas mulheres, proporcionando a
continuidade ou o acesso à educação que outrora foi interrompido ou negado, permitindo a
construção de novos objetivos e realizações para elas. Portanto, compondo também esse
conjunto de relações de produção do sujeito mulher/mãe/educanda. Para tanto, trago a fala de
dona Mara que expressa a importância dessa modalidade na sua vida:
E agora que eu fui procurar um colégio pra poder aprender a escrever que eu
aprendi, aprendi a ler também, mas agradeço o EJA, agradeço o EJA porque deu
oportunidade pra quem não estudou quando era criança. (Mara)

Referências

DAS, Veena. A figura da mulher raptada: o cidadão sexuado. In: Vida e palavras: a violência
e sua descida ao ordinário. Tradução Bruno Gambarotto. São Paulo: Editora Unifesp, 2020. p.
43-66.
231

DI PIERRO, M. C.; JOIA, O.; RIBEIRO, V. M. Visões da educação de jovens e adultos no


Brasil. Cadernos CEDES, nº 55, p. 58-77, novembro/2001. DOI:
https://doi.org/10.1590/S0101-32622001000300005 Disponível em:
<http://www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: 15 de março de 2023.

FERNANDES, Camila. A força da ausência. A falta dos homens e do “Estado” na vida de


mulheres moradoras de favela. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana,
Rio de Janeiro, n. 36, p. 206-230, set/dez 2020. DOI:
https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2020.36.09.a. Disponível em: https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/SexualidadSaludySociedad. Acesso em: 09 dez. 2022.

FONSECA, Cláudia. A outra família brasileira: antropologia, desigualdade e diferença. In:


Caminhos da adoção. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2006, p. 13-23.

FONSECA, Cláudia. Tecnologias globais de moralidade materna: as interseções entre ciência


e política em programas “alternativos” de educação para a primeira infância. In: FONSECA,
Claudia; ROHDEN, Fabíola; MACHADO, Paula (org.). Ciências na Vida: Antropologia da
ciência em perspectiva. São Paulo: Terceiro Nome, 2012, p. 253-275.

FOUCAULT, Michel. “O sujeito e o poder”. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel


Foucault, uma trajetória filosófica. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013,
p. 273-295.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France, 1975-1976. São


Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 285-315.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, Vol. 1. Rio de Janeiro: Graal, 1981, p.


88-108; 127-149.

ROBLES, Alfonsina Faya. Da gravidez de "risco" às "maternidades de risco". Biopolítica e


regulações sanitárias nas experiências de mulheres de camadas populares de Recife. Physis –
Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 139-169, mar. 2015. DOI:
https://doi.org/10.1590/S0103-73312015000100009. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/physis/a/VTzD7nYZBCphGVcbKBn9mkF/abstract/?lang=pt. Acesso
em: 11 nov. 2022.

VIANNA, Adriana; LOWENKRON, Laura. O duplo fazer do gênero e do Estado:


interconexões, materialidades e linguagens. Cadernos Pagu [online]. 2017, n. 51, e175101.
Disponível em: <https://doi.org/10.1590/18094449201700510001>. Epub 08 Jan 2018. ISSN
1809-4449. https://doi.org/10.1590/18094449201700510001.
232

“Yo no soy empleable, porque mi pertenencia étnica pesa mucho mas que mi valia
profisional o mi currículo”: interseccionando o feminismo romaní/cigano

Luciana de Assiz Garcia1


Yuri Tomaz dos Santos2
RESUMO: As nuances que contornam os recortes de gênero da discriminação racial, ou, ao revés, os recortes
raciais que incidem nas discriminações de gênero, nos revelam que, no des-re-tecer das relações sociais,
múltiplos fenômenos somam-se, cruzam-se e contrapõem-se. Logo, torna-se imprescindível que se aumente a
sensibilidade sobre as múltiplas discriminações a que mulheres ciganas estão sujeitas, especialmente a partir da
intersecção dos diversos marcadores que atravessam o “ser mulher” e cigana, que, invariavelmente, refletem nos
processos de negação de direitos com base na pertença étnica. À vista disso, o presente estudo, de cunho
qualitativo e bibliográfico, des-re- pensando as enunciações das mulhers ciganas, busca compreender o campo
das epistemologias interseccionais feministas, relacionando-as ao universo dos Movimentos Feministas
Cigano/Romaní. Com a presente pesquisa, foi possível re-flexionar que a experiência do feminino, desde a lente
cigana, ilustra como as materialidades, ou melhor, os entrecruzamentos de certos eixos de opressões, gera, na
tessitura do real – aquela solidificada no dia a dia –, um quadro permanente de intensificação das
vulnerabilidades que são reiteradas e negociadas nos mais diversos níveis.

PALAVRAS-CHAVE: Mulheres Ciganas. Feminismo. Etnicidade.

INTRODUÇÃO

A diversidade étnica cigana, na atualidade, é inconteste. Além do que, condiciona a


historicidade de tais povos a uma compreensão plural em sua excepcionalidade (TEIXEIRA,
2009). Deste modo, o todo “homogêneo” a que designamos Ciganos, no Brasil – inclusive
estima-se que haja cerca de 800 mil a 1 milhão de ciganas no país –, esmiúça-se, sobretudo,
em três grandes grupos étnicos, que também possuem suas próprias divisões, quais sejam:
Rom, Sinti e Calon (MOONEN, 2013).
Neste sentido, torna-se imprescindível que se aumente a sensibilidade quanto às
condições de “ser”, (re)existir, e resistir daqueles/as que integram as comunidades ciganas,
tendo em vista – e também como deslocamento analítico especial – os marcadores sociais da
diferença, prospectados em gênero, raça e classe como fatores conectadamente inscritos nos
mais diversos eixos de opressão.

1
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), graduada em
Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), integrante do Grupo de Pesquisa Conflitos
Socioambientais (GPCONS) e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia pela Universidade
Federal da Grande Dourados – PPGANT UFGD. Email: cambalim1@hotmail.com
2
Mestrande pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Bacharel em Comunicação Social/Jornalismo (UFV). Membre do Grupo de Pesquisas em Gestão e
Desenvolvimento de Territórios Criativos (GDTeC-UFV) e do Pesquis(ações) sob(re) resistênciais sociais
(DiVerso-UFGD). Assoaciade à Associação Brasileira de Pesquisadores e Pesquisadoras Negros e Negras
(ABPN). Bolsista de mestrado CAPES. E-mail: yuri.tomaz90@gmail.com
233

Deste modo, no cerne do que se faz com a percepção do distinto, de considerá-lo


em sua concretude, reside a chave a ser virada para o acesso aos pontos interseccionados à
encruzilhada (HIRANO, 2019) e as pedagogias de tais encruzilhadas (RUFINO, 2018), pois
nela e a partir dela são possíveis agenciar modos ontológicos de existência. Logo, a
experimentação da vida, condicionada pelo filtro ‘mulher e cigana’, é atravessada por um
modo de ser e experimentar o mundo de forma singular, denotando posicionalidades,
dialogadas (mesmo nos silenciamentos!) em seu entorno.
À vista disso, o presente estudo, de cunho qualitativo e bibliográfico, buscou
compreender o campo das epistemologias interseccionais, relacionando-as ao universo dos
Movimentos Feministas Romaní/Ciganos. Pode-se dizer que a articulação da luta de
mulheres ciganas gestou-se no bojo de movimentos sociais ciganos da metade do século
XX, e desde o início ecoaram as vozes dissidentes de ciganas das mais diversas
nacionalidades.
Destaca-se o uso do conceito duplo Romaní/Cigano em virtude do termo Romaní
ser utilizado, via de regra, para designar Povos Ciganos pertencentes a etnia Rom, portanto,
necessitando sempre ser completado com o termo “cigano”, de maior abrangência.
Propomos – reconhecendo a contaminação de nosso terreno social contemporâneo,
ocidental, capitalista, sexista, racista, cisheteronormativo, judaico-cristão e que propaga as
mais diversas matrizes de opressão – desconstruir a subordinação, ou melhor, a justaposição
dos marcadores sociais da diferença como modus operandi de abejeção, considerando-os, ao
revés, elementos imbricados que se “entrelaçam e se reforçam, forjando sistemas de
estratificação e opressão interseccionados” (SARDENBERG, 2015, p. 56).
A articulação das mulheres ciganas, neste contexto, nos convida a questionar a
homogeneidade dos viveres – do ser mulher –, tecendo “críticas a uma postura hegemônica
branca e burguesa do feminismo tradicional” (REA, 2017, p. 36), que, não raro, impõe uma
racionalidade colonialista para a mulher cigana, ao fraturar o processo emancipatório e de
autonomia de cada um, desconsiderando a capacidade de agências , negociações e de falar
por si mesma, ou seja, de agenciar e produzir mudanças (REA, 2017).
Por fim, com a pesquisa observamos a incipiência das discussões sobre Feminismo
Romaní/Cigano e, frente a tal lacuna, a necessidade de estudos que foquem tal temática.
Também percebemos ser indispensável compreender o lugar a partir do qual ressonam as
vozes ciganas, considerando que embora hajam similitudes nas mais diversas vivências que
subjaz a experiência e modos de subjetivações singulares e próprios desse grupo étnico, é
234

convidativo que estejamos atentos/as quanto ao vício colonialista de pensar o mundo a


partir de uma pretensa homogeneidade, quiçá de uma lupa etnocêntrica, em detrimento da
diversidade, inclusive no tocante ao fazer-sabercientífico-acadêmico e, sobretudo,
antropológico.

1 “AY TU DIRI SO KERDJAN? DJORA ROMA DJORA ROMA UDJARGHAL;


LAS LI VOI LA CHIKE NA TCHU VI DAS MA; ALE SA VOI DIHI DAS STA?”3

“Diri, Diri, como isso pôde ter acontecido? Ela não era boa para mim, ela sequer
me beijava. E no fim ela me deixou por outra pessoa! Ei, Diri, Diri, você matou a
sua esposa, a mais bela! Minha esposa era bonita, eu a matei, assim ela não seria
mais infiel. Deus, Deus, sinto muito por ter feito isso com minha esposa. Ei,
ciganos, ei garotos, digam-me, como isso pode ter acontecido?” (RÓTA, 1999)

Do todo expressado, dentro do amálgama daquilo a que chamamos cultura, a


música – e o que nela se aninha –, talvez seja o âmbito mais emotivo e lúdico de um povo.
Dizia Friedrich Nietzsche que “Sem a música, a vida seria um erro” (2009, p. 28). Ousamos
a acrescentar que seria uma grande perda cognitiva para aqueles/as que desejam
compreender como outros tecidos e retalhos de vida são costurados, bricolados.
Não obstante, a canção folclórica “Diri, Diri, So Kerdjan?” coloca-se como um
grande desafio – quiçá um escape poético, a partir do qual assuntos intocáveis emergem –
quando ecoada na potencialidade das vozes ciganas femininas e suas lutas. De modo geral,
no Brasil as músicas em Romaní4 são bastante divulgadas, sobretudo entre bailarinas de
dança cigana, muito embora as traduções sejam de raro acesso para os gadjes5.
E como é importante o acesso às traduções! Reverberando o que Fonseca (1991, p.
17) chamou de “destilações sem rosto, altamente estilizadas, da experiência coletiva” a
canção “Diri, Diri, So Kerdjan?” – do grupo de ciganos húngaros chamado Romanyi Rota6
–, indo direto ao ponto, escancara, a partir de vozes coletivas que misturam timbres
“femininos” e “masculinos”7, uma situação extremamente delicada envolvendo o que
chamamos, hegemonicamente, de feminicídio.

3
Música Diri, Diri, So Kerdjan? do grupo Romanyi Rota. Tradução livre: “Ei, Diri, Diri como isso pôde ter
acontecido? Como você pode ter assassinado sua esposa?”
4
Idioma cigano utilizado pelos grupos de etnia Rom.
5
Pessoas não ciganas
6
Romanyi Rota significa rodas ciganas em húngaro.
7
Aqui utilizamos os termos “femininos” e “masculinos” entre aspas na intenção de fissurar esses conceitos
binários, alocados sobre uma égide ocidental na qual os corpos são generificados e sexualizados conforme
expectação do jogo social em que os sujeitos são lidos a partir dessa binarização, em que a subjetividade e a
noção de pessoa não considerados, a priori. Estamos cientes que dentro do grupo étnico existem pessoas não-
binárias, transgêneros, travestis, transexuais e múltiplas identidades que agudizam o processo de
subalternidade e abjeção.
235

A música começa com Diri, sendo questionado sobre o porquê de haver


assassinado sua esposa. É possível perceber que quem questiona é o coletivo, nas
conjecturas dos pares e do grupo,de modo perplexo. Diri responde que a esposa não era boa,
não o beijava e ainda o havia deixado por outro.
O coletivo, implacável, responde: “Ei Diri, você matou a sua esposa, a mais bela!”,
ou seja, os argumentos não se sobressaem aos fatos, a esposa de Diri está morta, e foi ele
quem a matou. Diri retruca, afirmando que realmente ela era bonita e por assim ser a matou,
portanto ela não o trairia mais. No mesmo instante em que afirma tê-la assassinado,
demonstra-se arrependido, questionando ao coletivo, sobretudo aos garotos ciganos: “como
isso pôde ter acontecido?”.
Percebe-se certa linearidade contornando a narrativa da história, provocando em
nós – embebidos/as de todas as reservas possíveis – o sentimento de que as fronteiras
étnicas não são alimentadas apenas por traços diacríticos, mas também pelo acionamento de
singulares formas de tratar categorias que nos atravessam enquanto seres humanos, ou seja,
a todos/as.
Expresso de outro modo, podemos dizer que o comportamento de Diri não difere
daquele tão presente, por exemplo, na brutalidade machista da sociedade brasileira –
inclusive, o índice de Feminicídio vem aumentando de modo alarmante a cada ano
(DUARTE et al., 2022) – porém, ao mesmo tempo, por mais que existam similitudes, essas
não explicam, por si só, toda a complexidade cultural que envolve a posicionalidade de Diri
e da vítima, sua esposa (provavelmente uma mulher cigana).
Logo, havemos de considerar também que uma série de chaves culturais são
acionadas nas relações entre as pessoas. Assim como a mulher branca das sociedades
capitalistas hegemônicas não é fruto da casualidade, importa – sob pena de cair nas
armadilhas do colonialismo – reconhecermos que as mulheres ciganas também são fruto de
processos de causalidade.
Ou seja, tais mulheres constituem e dão forma a sua ciganidade8 (e as noções de
honra, família, casamento, filhos, fidelidade etc.) a partir de um contexto próprio; que não
pode ser negligenciado, como bem pontua a pesquisadora Barbara Jardim na entrevista
‘Devir Cigana: tradição, rupturas, ativismo e empoderamento’ realizada com Cassi Ladi

8
“A ciganidade é a forma de se relacionar com o mundo e consigo mesmo que os ciganos desenvolveram em
uma história milenar, permeada de perseguições e sofrimentos, sem nunca perder de vista que tudo isso
serviria para reforçar sua identidade cultural.” (ANDRADE JR, 2013, p. 96).
236

Reis Coutinho, pesquisadora dos povos ciganos no Brasil e com a calin9 Leda Oliveira
Cruz. Vejamos
De formação sabidamente patriarcal, os modos de organização familiar dos
povos ciganos suscitam debates, por vezes acalorados. Observamos
especialmente aqui os feminismos hegemônicos: com uma análise crítica
que universaliza a categoria mulher e o conceito de opressão, com base nas
experiências da mulher branca, ocidental, é de suma importância a
ponderação desses debates para não cair num lugar de “salvacionismo”,
com a pretensa posição de uma tutela ocidental (SAID, 1978) de mulheres
que partem de outros lugares sociais e culturais. Questionar as socialidades
ciganas, ou seja, os diversos modos de organização desses grupos, com
base em uma epistemologia ocidental, ignorando outros marcadores sociais
da diferença que atravessam de modo entrelaçado as experiências das
ciganas além de gênero (raça, etnia, classe, etc.) sinaliza de forma explícita
essas mulheres como as outras. O que deve ser proposto, de fato, é o
reconhecimento da legitimidade da voz das próprias mulheres ciganas ao
relatar suas experiências (2020, p. 166).

Diante do excerto supra, que conversa diretamente com os incômodos


compartilhados por Lila Abu-Lughod (2012) no texto “As mulheres muçulmanas precisam
realmente de salvação? Reflexões antropológicas sobre o relativismo cultural e seus outros”
tem-se evidente a imprescindível consideração do que a feminista cigana Alexandra Oprea –
no artigo: Re-envisioning Social Justice from the Ground Up: Including the Experiences of
Romani Women – chama de análise “the bottom up” (2020, p. 29). Melhor dizendo, é o olhar
debaixo pra cima, observando as experiências/demandas das mulheres ciganas a partir de
sua própria racionalidade, ainda que isto implique na divergência interpretativa de alguns
conceitos hegemonicamente estabelecidos.
Historicamente, as bases que definem o “ser mulher cigana”10 no mundo, seja em
seu próprio universo ou no universo gadje, solidificaram a confluência de códigos
norteadores das dinâmicas de “multiculturalidade expressa nas variadas microciganidades,
que por sua vez compartilham da mesma esfera identitária: a macrociganidade. Suas inter-
relações internas são marcadas por semelhanças e diferenças” (SHIMURA, 2017, p. 43),
isto é, as costuras relacionais produzidas a partir do ser mulher cigana tencionam-se
alicerçadas em alguns pontos de referência, tais como: a dimensão das relações interétnicas,
ou seja, de um grupo cigano para outro grupo cigano – entre Sinti e Calon, por exemplo; a
dimensão das relações intraétnicas, compreendidas entre pessoas do mesmo grupo étnico –

9
Mulher cigana da etnia Calon
10
Refletimos a dimensão do “ser mulher cigana” como uma construção ontológica de modo de sentir, perceber
e experimentar o mundo, esquivando-nos de possíveis compreensões ontológicas biologizantes do “ser
mulher” como sendo da ordem da essencialização generificada.
237

por exemplo, entre duas pessoas da etnia Calon (SHIMURA, 2017); e, por último, pelas
conexões tecidas com o entorno não cigano – dito de outro modo, pelos encontros com a
sociedade majoritária.
E é neste espaço de interações que despontam os marcadores sociais da diferença
como lentes analíticas de uma realidade multifacetada, de complexa compreensão. Se
partimos da premissa de que as culturas, e as identidades étnicas, não se resumem em
essencialidades – pois também experimentam o transcorrer do tempo –, e sim a um processo
contínuo e dinâmico de arranjo cultural da vida, que subjaz o processo de significação e
ressignificação do (re)viver em suas mais diversas dimensões, então teremos de reconhecer
que estabelecer vínculos com a mulher cigana – e com toda a estrutura que a envolve, dentro
e fora de seu grupo de pertença –, ter sororidade, suscita uma profunda atitude de escuta; à
la Gayatri Chakravorty Spivak: pode a subalterna cigana falar?
Quais espaços os movimentos feministas, e de enfrentamento às violências de
gênero, sobretudo aquelas constantemente vivenciadas por mulheres, têm reservado para
ecoar as vozes ciganas? O quão dispostos estamos em refletir sobre os mais diversos e
determinantes fenômenos – como estabelecimento de socialidades a partir de alianças
matrimoniais e parentescos11, sobre assimetria de gênero em contexto cultural singular, entre
outros – a partir dos entendimentos ‘nativos’?
O processo de alteridade, de performar e produzir “o outro”, que só existe a partir
de um “eu” (ABU-LUGHOD, 2018), no intuito de compreendê-lo em sua complexidade,
envolve entender e des-re-pensar, a partir da racionalidade da mulher cigana, tanto o que ela
pensa/experimenta a partir de sua própria individualidade, quanto o que ela
pensa/experimenta a partir do olhar coletivo de seu grupo – sobre condutas como a de Diri,
por exemplo.
E por assim ser, ou seja, visando preencher tais lacunas e visando construir
categorias teóricas próprias de interpretação da realidade que as tocam e afetam,
evidentemente “a partir das reflexões já precedentemente realizadas pelas feministas
oriundas de grupos subalternos e discriminados” (REA, 2017, p. 33), emerge, embebido da
perspectiva interseccional, o Movimento Feminista Romaní/Cigano, contribuindo para a
abrangência da crítica aos processos sociais de racialização e generificação da vida e das
assimetrias hegemonicamente estabelecidas e contornadas pelos mais diversos marcadores

11
A este respeito sugerimos a leitura da dissertação de Juliana Miranda Campos “Casamento Cigano -
produzindo parentes entre os Calons do São Gabriel” e a Tese da mesma autora intitulada “O Nascimento da
Esposa: movimento, casamento e gênero entre os calons mineiros”
238

sociais da diferença, tensionando e colocando em disputa as macro relações assentadas na


ideia de uma sociedade monolítica.

2 CAMINHOS INTERSECCIONAIS: PENSANDO O CONCEITO DE GÊNERO


E RAÇA COMO CHAVES ANALÍTICAS

As nuances que contornam os recortes de gênero e discriminação racial, ou, em


tempos de (ainda) podermos subversões, os recortes raciais que incidem nas discriminações
de gênero (CRENSHAW, 2002) revelam-nos que no des-re-tecer das relações sociais,
múltiplos fenômenos somam-se, cruzam-se e contrapõem-se no jogo social da experiência da
vida vivida, ou de uma vida passível de ser vivível (BUTLER, 1990). O palco do real, elástico
e nem sempre previsível, arrasta-se para trás e para frente, no tempo passado e futuro. O
presente, às vezes suspenso, reverbera no cruzamento entre o que foi e seu devir, assombrado
pelo espectro dos paradigmas superados ou vigilante sobre os liames a não seguir.
No texto “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação
racial relativos ao gênero” publicado na Revista Estudos Feministas, em 2002, Kimberlé
Crenshaw, que nomeou o conceito de interseccionalidade em 1989 – embora as discussões
empreendidas pela teórica tenha seus antecedentes em movimentos sociais anteriores ao
cânon científico, como nos acena Kyrillos (2020) – costurando o reflexo histórico da
misoginia nas produções normativas e a luta feminina para romper tal lógica, inova ao propor
um modelo provisório cujo intuito é identificar as mais variadas formas de subordinação,
especialmente aquelas advindas da interação entre dois marcadores sociais da diferença, quais
sejam: raça e gênero. Além do que, indica um caminho, protocolo, a ser percorrido e que
contribui para melhor localização das “discriminações interativas” (CRENSHAW, 2002, p.
171).
A autora destaca a relevância da discussão sobre desigualdade de gênero, dentro do
Direito, especialmente do universo discursivo dos Direitos Humanos. Sabemos que, no
aspecto formal, o princípio da igualdade de gênero encontra respaldo, em âmbito geral, na
Carta das Nações Unidas, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Convenção para
Eliminação de todas as formas de Discriminação contra Mulheres, e, no âmbito brasileiro, a
Constituição Federal de 1988, a Lei Maria da Penha, dentre outros dispositivos legais.
Não restam dúvidas de que tais conquistas de garantias, sobretudo conceituais,
decorrem de mudanças paradigmáticas no valor dado ao recorte gênero “no projeto ampliador
do escopo dos direitos humanos das mulheres” (CRENSHAW, 2002, p. 172). Portanto,
contornam um processo histórico não linear, constituído por relações dialéticas, marcadas por
239

conflitos, sendo esse inerente em um sistema socioeconômico contraditório e gerador de


desigualdades.
Havemos de considerar que a própria noção de violações de direitos, por muito
tempo, esteve afastada dos abusos sofridos por mulheres. A tutela do Direito, embebida da
experimentação masculina da vida, em seus parâmetros iniciais, universalistas,
desconsiderava as circunstâncias específicas em que mulheres sofriam abuso, escondendo- se
por detrás do argumento de diferenciação entre esfera pública e privada, estando o âmbito
doméstico sob guarda particular/familiar do chefe da família, dito de outro modo, sob
responsabilidade patriarcal (CRENSHAW, 2002).
A experimentação da vida, condicionada pelo filtro feminino, é atravessada por uma
ontologia própria, que denota certa posicionalidade, dialogada (mesmo no silenciamento) com
seu entorno. Deste modo, exemplificadamente,

quando mulheres eram detidas, torturadas ou lhes eram negados outros


direitos civis e políticos, de forma semelhante como acontecia com os
homens, tais abusos eram obviamente percebidos como violações dos
direitos humanos. Porém, quando mulheres, sob custodiada, eram
estupradas, espancadas no âmbito doméstico ou quando alguma tradição lhes
negava acesso à tomada de decisões, suas diferenças em relação aos homens
tornavam tais abusos ‘periféricos’ em se tratando de garantias básicas dos
direitos humanos. (CRENSHAW, 2002, p.172).

À vista do excerto acima, infere-se a articul-ação da perspectiva de gênero como


elemento de justificação da marginalização das violências sofridas por mulheres, o que,
segundo a autora supracitada, na atualidade, a partir dos movimentos sociais de mulheres,
tomou outros contornos. Melhor dizendo, “a diferença deixou de ser uma justificativa para
exclusão do gênero” passando, em si mesma, a “servir de apoio da própria lógica de
incorporação de uma perspectiva de gênero” (CRENSHAW, 2002, p. 173), cuja sustentação é
conduzida por processos discursivos discriminatórios, de uma constante violência assentada
nas matizes de um todo hegemônico.
Nesse ínterim, o que queremos chamar atenção é que embora no contexto ocidental,
capturado pela lógica patriarcal e da expropriação do outro sujeito, as mulheres sintam o peso
da discriminação pautada no gênero, é fato também que a isso agregam-se demais fatores que
atravessam suas “identidades sociais”, estabelecendo uma “diferença que faz diferença na
forma como vários grupos de mulheres vivenciam a discriminação” (CRENSHAW, 2002,
p.173); é o caso por exemplo dos marcadores de classe, etnia, orientação sexual,
nacionalidade etc.
240

A rede de fios acionada na convivência em sociedade perpassa por múltiplas e


simultâneas relações assimétricas, e neste sentido, a interseccionalidade, enquanto chave
analítica, rompe a “visão monolítica de análise”, extrapolando o campo do gênero. Assim,
uma mulher indígena, cigana ou quilombola, está exposta a singulares condições de
vulnerabilidades, que, de certo modo, afetam suas existências desproporcionalmente àqueles
desafios enfrentados por mulheres brancas pertencentes às sociedades hegemônicas. A título
ilustrativo podemos dizer, portanto, que mulheres racialmente marginalizadas lidam com
processos de apagamentos/silenciamentos tanto no enfrentamento às táticas machistas ,
muitas vezes dentro de seus próprios grupos (d)e pertença, quanto nos aspectos contaminados
pela narrativa do racismo; sofrem um duplo processo de exclusão.
Segundo Hirano (2019), antes mesmo da própria conceituação do termo
interseccionalidade, em 1977, coletivos feministas de negras e lésbicas de Boston, Combahee
River Collective, já reivindicavam a imprescindível imbricação de raça e gênero como
categorias entrecruzadas, e não mutuamente excludentes.
Em solo brasileiro, na década de 1980, encontraremos a inegável contribuição de
Lélia Gonzales pensando a violência conectada entre racismo, sexismo e classe (tríplice
discriminação), a partir da figura da mãe preta, da “doméstica” e “da mulata”. Já naquele
contexto a autora apontava sobre o efeito da posicionalidade e sua consequência na
interpretação dos fenômenos frutos de tais justaposições. Melhor dizendo, chamava nossa
atenção para o lugar a partir do qual nossa fala se situa ou é situada; algo cujo reconhecimento
é notório na contemporaneidade acadêmica das discussões que se pretendem des-re-pensar do
ponto de vista anticoloniais ou contra colonial.
Portanto, como já sinalizado, há de se considerar que, antes da sistematização do
conceito de interseccionalidade no âmbito das discussões acadêmicas sobre raça e gênero, já
havia certa articulação de tais marcadores de forma dispersa na esfera prática das lutas, das
reinvindicações sociais, a partir dos movimentos (sociais), e de pontuais pesquisas. Deste
modo, o marco estabelecido com Kimberlé Crenshaw dialoga com a evolução de muitas
“análises entrecruzadas” gestadas no contexto que a antecede
Por fim, ressalta-se que, neste cenário, tecer gênero atrelado a raça e classe –
sobretudo, ao pensar o recorte América Latina – revela-se algo de extrema potência, pois
reverbera na discussão de colonialidade e de uma pós-modernidade fabricada pelo ocidente na
desumanização do outro no Sul Global, chancelado as lógicas coloniais, patriarcais e
capitalistas no ‘território’ em tela. Reconhecer tais nuances, ou seja, o caráter relacional entre
os elementos que produzem vida em sociedade, é condição sine qua non para uma
241

interpretação eficaz – que supera a quimera.


Até porque, historicamente, os privilégios para uns em detrimento de outros
estabeleceram-se como uma produção sociocultural, mantida e alimentada, cautelosamente, a
partir de um conjunto sistemático de estratégias – processos de clivagem social –, sobretudo
dos grupos estabelecidos hegemonicamente, como bem ilustra o processo de colonização na
América do Sul.
Segundo a pesquisadora Caterina Alessandra Rea, no artigo “Redefinindo as
fronteiras do pós-colonial. O feminismo cigano no século XXI” (2017), a influência das
teorias feministas – situadas no espaço/tempo conhecido como pós-colonial – faz-se bastante
presente nas produções de mulheres ciganas que encampam o Movimento Feminista
Romaní/Cigano, tais como as ativistas Alexandra Oprea, Nicoleta Bitu, Enisa Eminova e
Isabela Mihalache.
Neste contexto, a categoria pós-colonial estabelece-se como “um lugar de tensão”
que condensa em si múltiplos marcadores socais, manejados e reconfigurados para operar em
ato contínuo, “transformando e reconsolidando vínculos de opressão” (REA, 2017, p.32).
Assim, desconsiderar que a trajetória ou a condição social de mulheres brancas difere de
tantas outras possiblidades do ser mulher é distanciar-se da fonte de produção das
desigualdades, é desconsiderar que nos constituímos “a partir de relações sociais conflituosas
e contraditórias mediadas por um sistema socioeconômico gerador de desigualdade”
(SARMENTO; AGUIAR, 2022, p. 3).
Espectra neste ponto Lila Abu-Lughod, nos fazendo vigilantes quanto à “aceitação
da possiblidade de diferença” (2012, p. 462), tornando-se imprescindível a compreensão
casuística – caso a caso –, da heterogeneidade estabelecida, e das formas de opressões que
emergem a cada contexto.

3. ESTE É O FEMINISMO CIGANO, O CONSTRUÍDO PELO POVO CIGANO!

Passos diaspóricos em uma vida feita no embalo do movimento – na Latcho Drom1.


Sabemos que os Povos Ciganos, oriundos da Índia, entre os séculos XIV e XV já haviam se
espalhado por todo o continente Europeu. Especula-se que no Brasil os primeiros grupos
tenham chegado a partir de 1574 com a vinda do cigano João Torres – trazendo consigo sua
esposa Angelina e família – degredado de Portugal para a colônia brasileira (GARCIA;
CALEIRO, 2022).

1
Estrada segura, em dialeto cigano.
242

Historicamente, muitos estigmas foram criados por parte da sociedade hegemônica


no intuito de ‘banir’ tais povos de seu entorno. A grande ciganóloga Florencia Ferrari nos
acenaque códigos sobrenaturais eram “acionados para falar de ciganos, principalmente das
mulheres” (2002, p. 38). Notadamente, veja-se uma atmosfera alimentada pelo “discurso
cristão das associações entre ciganos, bruxas e demônios”, que atribuía às mulheres ciganas
poderes sobrenaturais, profundamente mesclados a uma “conotação sexual” (FERRARI,
2002, p. 39).
Tomando todas as reservas possíveis, visando não cair nas armadilhas do
salvacionismo – à lá Abu-Lughod (2012) – , observamos que às mulheres ciganas foi
reservado o lugar de e(r)xotismo por parte dos olhares das sociedades majoritárias, que
sempre a fetichizaram, algo bem pontuado pela cigana Rebecca Souza

O fetiche sobre nós é forte. Olhe em suas lembranças: naturalmente, cigano é


sinônimo de “Carmen”, a cigana sedutora e infiel. Mesmo na cultura popular
infantil, “O Corcunda de Notre Dame”, exibido pela Disney em 1996, é um
exemplo. Enquanto as outras princesas têm uma imagem delicada e até
mesmo uma virgindade implícita, Esmeralda, a cigana, é pintada como uma
mulher sensual, que seduz e enfeitiça com sua dança, fazendo com que os
homens santos e piedosos da igreja e todos os “homens bons” caiam em
pecado. Tudo isso ligado à imagem de uma menina de 16 anos – a idade do
personagem na obra de Víctor Hugo (2017, n.p).

O excerto acima, referente ao texto intitulado “Sou mulher, feminista e cigana”,


tecido pela colunista cigana Rebecca Souza, provoca-nos a reflexão sobre a construção
ocidental da imagem da mulher cigana. Mas não só! Abre-nos a oportunidade de
problematizarmos muitas outras lacunas inexploradas e que carecem de maiores
aprofundamentos.
À título ilustrativo, podemos elencar o próprio recorte de gênero incidente nas
estratégias políticas do degredo português, que não media esforços na tentativa de
desmantelar as famílias ciganas, ordenando a deportação de mulheres ciganas para as colônias
brasileiras – ou seja, em um momento de completa escassez de mulheres brancas no ‘novo
mundo’ – e, por outro lado, dos homens ciganos (maridos) e filhos maiores para as galés,
como consta em um documento português de 1708 (MOONEN, 2013).
Pensando nestas lacunas, não problematizadas pelo Feminismo branco hegemônico,
surge o chamado Movimento Feminista Romaní/Cigano. Em linhas gerais, mesmo que a
apropriação da categoria feminismo seja recente, importa mencionar que muitas ativistas
“estiveram densamente comprometidas com uma agenda política pautada na emancipação das
mulheres Romani/Ciganas” (JARDIM; ARAS, 2021, p. 5), inclusive desafiando a própria
243

centralidade das narrativas masculinas nos espaços de reivindicação de direitos, ou seja, em


resistência ao próprio ativismo político cigano feito por homens e pautado na discursividade
generalista das experiências de exclusão social vivenciada por homens.
Como bem pontua Caterina Rea (2017), nos últimos 20 anos muitas redes de
associações de mulheres ciganas, tais como Roma Women Initiative (RWI), International
Roma Women’s Network (IRWN), Roma Women’s Federation, Federation of Roma, Kale and
Manouch Women, dentre outras, estabeleceram-se, mostrando-nos que organizações
socioculturais não implicam em uma perspectiva acrítica e estática das posicionalidades
endógenas.
Inclusive, vale destacar que muitas das mulheres ativas nestes movimentos optaram
por não se declararem abertamente feministas, ou seja, esforçam-se de modo anônimo para, a
partir do coletivo, influenciar políticas voltadas para as populações ciganas, sobretudo, com
recortes de gênero. Somam-se a essas aquelas que abertamente declaram-se feministas como
Soraya Post, Alexandra Oprea, Angéla Kóczé, Nicoleta Bitu, Carmen Fernandez, Maria José
Jimenez (Guru), entre outras.
Tecendo a crítica ao ativismo político cigano, feito por homens, que ignoravam por
completo os diversos marcadores que endossam a experiência da opressão étnico-racial
vivenciada por mulheres, inicia-se a articulação das próprias mulheres ciganas chamando
atenção para os desafios enfrentados tanto pela pertença étnica, a uma minoria completamente
subalternizada, quando pelo fato, com igual peso, de serem mulheres, geralmente pobres.
Neste compasso, o surgimento do movimento feminista cigano/romaní, que
inicialmente começa no século XXI na Europa e nos Estados Unidos, deu-se pautado na
necessidade de autodeterminação, reconhecimento e inclusão das mulheres ciganas nos
espaços políticos e sociais a nível macro, inclusive nos próprios discursos feministas e
antirracistas, que historicamente, assim com os movimentos ativistas ciganos feitos por
homens, ignoraram as violências vivenciadas por mulheres de etnia cigana. Segundo Jardim e
Aras
Teóricas feministas romani como Oprea (2004), fazendo uso da ferramenta
teórico-metodológica da interseccionalidade, elaborada originalmente por
feministas negras, ao apontarem questões da interseccionalidade política,
abordadas por feministas negras como Crenshaw (2002), denunciavam o fato
de as demandas específicas das mulheres ciganas tenderem, na melhor das
hipóteses, a serem colocadas em segundo plano nos problemas enfrentados
pelas populações ciganas. Desse modo, mulheres ciganas tinham seus
problemas “relegados para a periferia” (OPREA, 2004, p. 33) ao se tornarem
ativistas (2021, p. 6).
244

Neste sentido, as reivindicações das mulheres ciganas acabam por incidir tanto na
luta pelo combate à opressão racista, quanto pelos atravessamentos advindos da condição de
gênero e classe. Sem perder de vista a heterogeneidade de realidades socioculturais, presente
nas mais diversas etnias ciganas, sabemos, a título ilustrativo, que as mulheres ao exercerem
seus ofícios tradicionais, como a leitura das mãos, sempre estiveram em uma condição de
vulnerabilidade diferente da enfrentada pelos homens ciganos, inclusive sendo alvos fáceis de
repressão policial (BORGES, 2007).
Nesta perspectiva, a cada dia que passa é menos comum depararmos-nos com
mulheres ciganas vestidas com suas saias rodadas e coloridas nos centros urbanos em busca
de curiosos interessados em ouvir a buena dicha. Em sua lida diária, as mulheres ciganas
encontram às vezes um bom resultado e outras nem tanto, sendo frequentemente “banidas das
ruas, estigmatizadas pela sociedade envolvente e vistas como forma de contágio,
contaminação e poluição” (VEIGA; MELLO, 2012, p. 94).
A cigana Elizete Moreira, mais conhecida como “Preta”, em entrevista a Sanches
(2005), relatou sobre do preconceito ao qual as ciganas se expõem indo ler a mão na rua, ela
nos diz que “As pessoas têm medo, a gente fica envergonhada. Tem pessoa que maltrata,
xinga, quer agredir até. A gente tem de sair de perto. A gente fica ouvindo que rouba criança,
fica acanhada. Só ficam criticando, mas nós não somos aquilo”. Por esses e outros motivos,
ao que parece a prática da leitura das mãos tem sido rejeitada por parte das meninas mais
jovens.
De acordo com as interlocutoras ciganas de Ana Kátia Pereira Pinto (2010, p.77), o
costume está sendo modificado principalmente porque as ciganas mais jovens não têm
demonstrado o desejo em aprender a buena dicha por “sentirem vergonha de ir às ruas”,
assim, o “costume de ir às ruas é cada vez menos comum entre as ciganas”, sendo que
“muitos grupos, fixos ou semi-nômades, já aboliram esta tradição”. Ou seja, o trânsito entre
diversos mundos também gera processos de adoção/abandono/ressignificação de práticas
culturais.
As frentes de discussão acabam por se sobressair tanto em relação aos conflitos
internos, nos próprios grupos, como nos conflitos inerentes às reivindicações por espaço nas
sociedades hegemonicamente estabelecidas. No ano de 2017, em uma conferência realizada
por integrantes da Associação Ciganas Feministas pela Diversidade, sob o nome
“Hitzaldia/Conferencia: Este es el feminismo romaní, el construído por el Pueblo gitano”, a
cigana Maria José Jimenez, conhecida como Guru, direcionando-se a um público feminista
branco, diz
245

“Vocês são privilegiadas. A vocês chegam impactos, mesmo que sejam


pequenos, das políticas que vêm desenvolvendo há séculos no estado
espanhol, no estado europeu, nas empresas, etc. A nós, ainda não chegou
nenhum vislumbre, nem um vislumbre desses privilégios, que por ser não
ciganas, voces têm. Exemplo: Lei de Igualdade. Algum elemento da Lei de
Igualdade? Conciliação? Falemos de conciliação? (...) Claro, precisamos
estar lá, matando-nos com quem tiver que matar-se para conseguirmos ser
mães e trabalhar. Claro que sim. Contudo para mim, a conciliação familiar
me dá igual, porque a mim não empregam. Porque eu não sou empregável,
porque se eu quero limpar este edificio, e me apresento com você ao cargo
e sabem que eu sou cigana, se me veem cigana e se me notam cigana (...) a
mim não escolhem, nenhuma de vocês escolheria alguma cigana para
limpar as suas casas, mesmo que tivessem cinco profissões. Por se acaso
roubam em casa. Isso não é algo que estou inventando, não é algo pontual a
uma cigana em 600 ou três mil, acontece a todas as ciganas. Absolutamente
a todas as ciganas. Eu não sou empregável, porque minha pertença étnica
pesa muito mais que minha vida profissional ou meu currículo2 (16m27s)
Grifou-se.

À vista da narrativa supratranscrita, podemos compreender que a interpretação da


realidade e dos desafios enfrentados por mulheres ciganas denotam uma escuta profunda dos
seus anseios e de suas reivindicações. A perspectiva de tratar mulheres e grupos
raciais/étnicos como categorias separadas resulta na incompreensão do feminismo tradicional
da posição complexa ocupada pela mulher cigana.
Torna-se inegável a ampliação dos emergentes arranjos socioculturais, remodelados
frente aos novos rumos que a mulher cigana tem projetado para si, considerando tanto a sua
tradicional responsabilidade frente à preservação da cultura (em alguns grupos), das
identidades tradicionais e da transmissão dos valores éticos e morais do grupo aos
descendentes, quanto “seu desejo de afirmar-se para além da maternidade e do casamento”
(ANDRADE, 2022, p. 01).
Interessa-nos também observar os caminhos enfrentados por tais mulheres quanto às
tensões/negociações dentro dos próprios grupos de pertença. Neste sentido, o movimento de
“adaptar-se às dinâmicas das sociedades contemporâneas sem renunciar às suas tradições”
(ANDRADE, 2022, p. 01), deve ser respeitado. Deste modo, a adoção de uma posição
dialógica e de escuta profunda das vozes ciganas – a partir de suas próprias expressões e
construções epistêmicas – com toda certeza reverberará em uma maior compreensão de como
operam os eixos de opressão em suas mais diversas possibilidades.

NOTAS INCONCLUSIVAS

2
Tradução livre.
246

No desenrolar do estudo, exploramos a imprescindível necessidade de compreender a


realidade da mulher cigana a partir da análise relacional entre as diversas categorias de classe,
gênero e raça, como marcadores sociais da diferença, posto que tais imbricações
potencializam o campo de compreensão sobre os fatores de intensificação das
vulnerabilidades dessas mulheres, e nos dão caminhos para a compreensão dos processos de
exclusão experenciado nos mais diversos níveis.
Por fim, com a pesquisa constatamos a incipiência das discussões sobre Feminismo
Romaní/Cigano e, frente a tal lacuna, a necessidade de estudos que foquem tal temática.
Também percebemos ser indispensável compreender o lugar a partir do qual ressonam as
vozes ciganas, considerando que – embora haja similitudes nas mais diversas vivências –
havemos de estar sempre vigilantes quanto ao vício colonialista de pensar o mundo a partir de
uma pretensa homogeneidade em detrimento da diversidade. O Movimento Romaní/Cigano,
neste sentido, coloca-se como um grande desafio teórico/crítico ao paradigma do feminismo
branco hegemônico e suas perspectivas colonialistas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABU-LUGHOD, Lila. As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? Reflexões


antropológicas sobre o relativismo cultural e seus Outros”. Revista Estudos Feministas, v.
20, n. 2, p. 451-470, mai./ago. 2012.

ABU-LUGOHD, Lila. A escrita contra a cultura. Equatorial. 5(8): 193-226. 2018.

ANDRADE, Virgínia Nunes. Mulheres ciganas e a emergência de um novo feminismo: os


limites da tradição e a reivindicação de outras identidades. In: II Simpósio Internacional em
Narrativas Gênero e Política. Anais...Belo Horizonte (MG) UniBH, 2018. Disponível em:
https//www.even3.com.br/anais/ngp2018/106128-MULHERES-CIGANAS-E-A-
EMERGENCIA-DE-UM-NOVO-FEMINISMO--OS-LIMITES-DA-TRADICAO-E-A-
REIVINDICACAO-DE-OUTRAS-IDENTIDA. Acesso em: 10 fev. 2023.

ANDRADE JR, Lourival. Os ciganos e os processos de exclusão. Revista Brasileira de


História. São Paulo, v. 33, nº 66, p. 95-112, Out. 2013.
BORGES, Isabel Cristina Medeiros Mattos. Cidades de portas fechadas: A intolerância
contra os Ciganos na Organização Urbana na Primeira República. 2007. 131 f. Dissertação
(Mestrado em História) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2007.

BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York:
Routledge. 1990.

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da


discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10,
n. 1, p. 171-188, jan., 2002. Disponível
em: https://www.scielo.br/j/ref/a/mbTpP4SFXPnJZ397j8fSBQQ/?format=pdf&lang=pt.
247

Acesso em: 09 fev. 2023.

DIAS NETTO JUNIOR, Edmundo Antonio. Povos ciganos: entre o preconceito e uma
afirmação de direitos que tarda em chegar. In: BRASIL, Ministério Público Federal.
Coletâneas de artigos Povos Ciganos: direitos e instrumentos para sua defesa. Brasília: MPF,
2020. E-book. Disponível em:
http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/maio_cigano_coletanea_versao _final.pdf. Acesso
em: 09 fev. 2023.

DUARTE, Ana Clara de Oliveira. et al. Feminicídio no BRASIL: Impacto da pandemia na


violência contra a mulher. Disponível em:
https://repositorio.animaeducacao.com.br/bitstream/ANIMA/24935/1/Feminic%C3%ADd
io%20no%20Brasil.pdf. Acesso em: 10 fev. 2023.

DUQUE, Tiago; OLIVEIRA, Esmael Alves de; BECKER, Simone. Agência e


interseccionalidade em quadra: inquietações sobre escolas e diferenças em Mato Grosso do
Sul. Interritórios: Revista de Educação Universidade Federal de Pernambuco, Caruaru, v.
6, n. 10, p. 225 – 242, 2020.

FERRARI, Florencia. Um olhar oblíquo: contribuições para o imaginário ocidental sobre o


cigano. 2002. 264 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Departamento de
Antropologia Social Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2002

GARCIA, Luciana de Assiz; CALEIRO, Manuel Munhoz. O COLORIDO CIGANO NO


MUNDO GADJE: (DES) CONSTRUINDO NORMATIVIDADES In: SILVEIRA,
Amanda Ferraz; et al. (orgs.). Conflitos Sociambientais, Territorialidades e Fronteiras.
Curitiba, PR: CEPEDIS, 2022. Disponível em: https://conflitossocioambientais.org/wp-
content/uploads/2022/09/Conflitos-socioambientais-territorialidades-e-fronteirasT2.pdf.
Acesso em: 09 fev. 2023.

HITZALDIA/CONFERENCIA: Este es el feminismo romaní, el construido por el pueblo


gitano. [S. l.: s. n.], 2017. 1 vídeo (38m20s). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=dKaKpVtsuH4. Acesso em: 02 nov. 2022.

HIRANO, Luis Felipe Kojima. Marcadores sociais das diferenças: rastreando a construção de
um conceito em relação à abordagem interseccional e a associação de categorias. In:
HIRANO, Luis Felipe Kojima; ACUNA, Maurício; MACHADO, Bernardo Fonseca (Org.).
Marcadores sociais das diferenças: fluxos, trânsitos e intersecções. Goiânia: Imprensa
Universitária, p. 27-54, 2019.
JARDIM, Bárbara; ARAS, Lina Maria Brandão de. PODE A SUBALTERNA CIGANA
FALAR? Movimento de mulheres ciganas e uma nova perspectiva feminista no século
XXI. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero 12, 2021, Florianópolis. Anais [...].
Florianópolis: UFSC, 2021, p. 01-10. Disponível em:
https://www.fg2021.eventos.dype.com.br/resources/anais/8/fg2020/1630677388_ARQUI
VO_25dc0c06eeb525330c512d5fa05a25f2.pdf. Acesso em: 02 nov. 2022.

JÚNIOR, Luiz Rufino Rodrigues. Pedagogias da Encruzilhadas. Revista Periferias, (10)1:


71-88. 2018.

KYRILLOS, Gabriela de Moraes. Uma análise crítica sobre os antecedentes da


248

interseccionalidade. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 1, 2020.

MOONEN, Frans. Anticiganismo: Os ciganos na Europa e no Brasil. Recife: [s.l.], 2011.


Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/pacto_naci
onal_em/anticiganismo.pdf . Acesso em: 09 fev. 2023.

MOONEN, Frans. Políticas Ciganas no Brasil e na Europa. 2. ed. Recife: [s.n.], 2013.

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos: como filosofar com o martelo. São Paulo:
Golden Books, 2009.

OPREA, Alexandra. Re-envisioning Social Justice from the Ground Up: Including the
Experiences of Romani Women. Essex Human Rights Review, Los Angeles, v. 1, n. 1, p.
29-39, 2004.

PINTO, Ana Kátia Pereira. Pintando borboletas: processos educativos dos alunos ciganos.
2010. X f. Dissertação (Mestre em Educação) – Centro Pedagógico da Universidade Federal
do Espírito Santo, Vitória, 2010.

PEREIRA, Cristina da Costa. Lendas e histórias ciganas. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

PEREIRA, Cristina da Costa. Os ciganos ainda estão na estrada. Rio de Janeiro: Rocco,
2009.

PIERONI, Geraldo. Vadios e Ciganos, Heréticos e Bruxas: Os degredados no Brasil colônia.


1991. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009.

QUIJANO, Aníbal. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas


latino-americanas. Buenos Aires: CLASCO, 2005.

REA, Caterina Alessandra. Redefinindo as fronteiras do pós-colonial. O feminismo cigano no


século XXI. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 31-50, 2017.

REBECCA, Souza. Sou mulher, feminista e cigana. Disponível em:


https://azmina.com.br/colunas/sou-mulher-feminista-e-cigana/. Acesso em: 10 fev. 2023.

RÓTA, Romanyi. Diri diri korkergyán. [1999]. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=juvSGOXLwms&t=2581s. Acesso em: 09 fev. 2023.
249

SANTOS, Sérgio Coutinho; KABENGELE, Daniela do Carmo; MONTEIRO, Lorena


Madruga. Necropolítica e crítica interseccional ao capacitismo: um estudo comparativo da
convenção dos direitos das pessoas com deficiência e do estatuto das pessoas com
deficiência. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 81, p. 158-170, abr., 2022.
SANCHES, Pedro Alexandre. Vida Cigana: Iguais e desiguais. Disponível em:<
http://pedroalexandresanches.blogspot.com.br/2005/07/vida-cigana-iguais-e-
desiguais.html>. Acesso em: 09 fev. 2023.
SARMENTO, Viviane Nunes; AGUIAR, Wanda Maria Junqueira. Corpos de menor valor,
sociedade de mais valia: uma discussão sócio-histórica acerca do nascimento cultural da
pessoa com deficiência. D.E.L.T.A., São Paulo, v. 38, n.1, p.1-17, 2022.
SARDENBERG, Cecilia M B. Caleidoscópios de Gênero: Gênero e Interseccionalidades na
dinmica das relações sociais. Mediaçðes, Londrina, v. 20, ed. 2. Disponível em:
https://www.proquest.com/docview/1761730887. Acesso em: 09 fev. 2023.

SILVA, Valéria Sanchez. Devir Cigano: O encontro cigano-não cigano (rom-gadjé) como
elemento facilitador do processo de individualização. 2006. 247 f. Dissertação (Mestrado
em Psicologia Clínica) – PUC de São Paulo, São Paulo, 2006.
SPIVACK, Chakravorty Gayatri. Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte, Editora
UFMG, 2010.
SHIMURA, Igor. A ideia de ciganidade como chave para o reconhecimento da pluralidade
cigana no brasil. In: BRASIL, Ministério Público Federal. Coletâneas de artigos Povos
Ciganos: direitos e instrumentos para sua defesa. Brasília: MPF, 2020. Ebook. Disponível
em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/maio_cigano_coletanea_versao _final.pdf.
Acesso em: 09 fev. 2023.
TEIXEIRA, Rodrigo Corrêia. Ciganos em Minas Gerais. Belo Horizonte: Crisália, 2007.
VEIGA, Felipe Berocan; MELLO, Marco Antonio da Silva. A incriminação pela diferença:
casos recentes de intolerância contra ciganos no Brasil. In: As máscaras da Guerra da
Intolerância, 66., 2012, Anais... Rio de Janeiro: ISER, 2012. p. 86-108.
250

MEMÓRIAS E NARRATIVAS DECOLONIAIS DE MULHERES NEGRAS NO


MUSEU DA MARÉ
Mariah Cristina Rodrigues Carbone1

RESUMO

Ao apontar para a invisibilização das histórias de mulheres negras nos museus tradicionais, a presente pesquisa
tem como objetivo investigar as relações de poder existentes no campo da Memória Social e dos museus,
trazendo as práticas do Museu da Maré e as narrativas das mulheres negras como instrumentos decoloniais para a
superação das tradições museais. A pesquisa foi realizada através do método qualitativo por meio de observação
participante e de entrevistas às colaboradoras do museu. O Museu da Maré é referência mundial em relação às
práticas propostas pela Museologia Social na busca pela dinamicidade da memória a partir do protagonismo dos
diversos sujeitos na construção de suas histórias, memórias e no apontamento das referências culturais, assim
como por viabilizar a resolução das demandas sociais e pedagógicas do Complexo da Maré. Ao demonstrar que
as estruturas dos museus na modernidade foram configuradas conforme a lógica colonial de hierarquização e de
exploração de modo a sustentar a matriz colonial de poder, a Museologia Social vem como um movimento
crítico na década de 70 a esse modelo tradicional de museu promovendo a diversidade das narrativas históricas e
culturais. No mesmo sentido, associa-se o pensamento feminista negro como instrumento crítico-teórico,
demonstrando a diversidade que permeia o grupo das mulheres negras enquanto grupo político de combate às
opressões de raça e gênero.

PALAVRAS-CHAVE: Museologia Social, Decolonialidade; Interseccionalidade

A Museologia Social rompe com os paradigmas dos museus tradicionais da


modernidade ao questionar o papel social dos museus. Os parâmetros estabelecidos pelo
movimento da Nova Museologia propõem a valorização das diversidades culturais, a
participação da comunidade na construção coletiva dos acervos, assim como no
desenvolvimento local e na resolução das demandas sociais presentes nos lugares que os
museus se encontram. Desse modo, o presente trabalho tem a intenção de contextualizar os
desdobramentos críticos que contribuíram para a ruptura paradigmática do campo
museológico com a Declaração de Santiago para demonstrar como as práticas estabelecidas
pelo Museu da Maré através de seus agentes participativos fortalecem as narrativas das
mulheres negras consolidando suas memórias enquanto grupo político diante do sistema de
opressões, associando assim o pensamento feminista negro como instrumento crítico
decolonial.
Para a realização da pesquisa foi utilizado o método qualitativo de observação
participante nas exposições e nos demais espaços do museu entre 2019 e 2021. Ao longo
1
Formada em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) onde atuou no projeto de
pesquisa "Museus da consciência, um novo desafio" que teve a finalidade de investigar as iniciativas da
Museologia Social no estado do Rio de Janeiro. Atualmente é mestranda no Programa de Pós-Graduação em
Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
251

desse período tive a oportunidade de entrevistar a Marilena Nunes e a Dona Vera que se
identificam enquanto mulheres negras, moradoras do Complexo da Maré e fazem parte da
equipe do museu. Nessa entrevista, além de contarem de suas rotinas e de como conheceram o
Museu da Maré, elas falaram sobre suas histórias de vida, dos desafios encontrados no
percurso ocasionados pela questão da cor da pele, pela textura do cabelo, por serem mulheres
e pelas dificuldades econômicas, mas que encontraram no museu um espaço de lutas, de
referências culturais e simbólicas onde puderam afirmar suas identidades, ampliar suas vozes
e expressões.
O Museu da Maré foi inaugurado em maio de 2006 durante a 4ª Semana de Museus,
embora o histórico de seus projetos e ações tenham sido iniciados anteriormente a partir do
Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM). O Museu da Maré fica localizado
na Zona Norte do Rio de Janeiro e foi um dos primeiros museus comunitários criados na
cidade a partir da iniciativa dos moradores como meio de reivindicar os direitos sociais para
as favelas do Complexo da Maré. Entre esses direitos, o direito à memória.
A construção do acervo do Museu da Maré foi feita com o apoio dos moradores que
doaram seus objetos pessoais à exposição de longa duração “ Os Tempos da Maré”. A
exposição “Os Tempos da Maré” é dividida por partes correspondentes aos tempos de cada
época que perpassam a história da Maré, relatando os aspectos presentes no cotidiano dos
moradores ao longo da história de constituição do bairro, assim como propor reflexões a
respeito das conjunturas do território, desde o “Tempo das Águas até o “Tempo do Futuro”.
Em 2019, ano em que iniciei a pesquisa com as visitas de campo, o museu tinha como
exposição temporária no “Tempo do Futuro” um conjunto de obras que retratavam a vida de
Marielle Franco, vereadora negra e mareense que foi brutalmente assassinada durante seu
mandato um ano antes. A exposição chamada “Tempos de Marielle” que atualmente se
encontra no Museu da República, mantém a sua intenção de reivindicar justiça pelo
assassinato de Marielle a partir da memória de seu legado que se concretiza como referência
para as diversas mulheres negras e moradores de favelas.
. O museu faz parte da Rede de Museologia Social do Estado do Rio de Janeiro que
integra museus comunitários, ecomuseus, pontos de memória entre outras iniciativas que tem
como objetivo difundir o debate acerca das práticas da museologia social no estado,
atendendo os parâmetros da nova museologia com as funções de comunicar e resolver as
252

demandas e conflitos locais. As políticas do movimento da Museologia Social se


configuraram como demandas emergentes dos museus latino-americanos diante de suas
especificidades históricas pela experiência do processo colonialista e pela crítica à exaltação
da história hegemônica da nação.
Ao abordarmos o contexto que levou o campo dos museus à uma autoavaliação, vimos
que as definições de museu foram sendo modificadas de acordo com os diferentes cenários da
contemporaneidade, permitindo novos formatos do fazer museal. A partir da década de 50 o
movimento crítico da museologia latino-americana passou a questionar a função social dos
museus. Entre os eventos ligados ao Conselho Internacional de Museus (ICOM), as
contribuições vindas da América Latina se destacaram no fomento das rupturas com as
práticas do museu tradicional da modernidade. No caso do Museu da Maré, a narração das
histórias do bairro e de seus habitantes dá protagonismo aos moradores na realização de suas
memórias, contrapondo assim os apagamentos históricos dos museus nacionais.
Ao traçar a perspectiva histórica dos museus brasileiros, a pesquisadora Myrian Santos
no artigo “Museus Brasileiros e Políticas Culturais” assinala autores como John Gillis, Jessica
Evans e David Boswell que apontam para a relação entre os museus e a formação dos Estados
nacionais. Santos nos diz que alguns desses autores se influenciaram pelos trabalhos de
Michel Foucault ao considerarem os museus como instituições abertas ao público capazes de
ordenar, civilizar e disciplinar grandes setores da população. No entanto, Santos ressalta que
diferente de outros países os museus nacionais no Brasil não poderiam estar associados às
práticas disciplinares sobre grandes setores populacionais, considerando que a desigualdade
de renda e educacional no histórico do país levou apenas as classes mais altas a frequentarem
os primeiros museus nacionais.
Diante disso, em 1972 a Mesa Redonda de Santiago no Chile se configurou como um
marco na história da Museologia. O evento teve a finalidade de debater o desenvolvimento e o
papel dos museus no mundo contemporâneo, afirmando o museu como uma instituição
pública tem o papel fundamental na resolução dos problemas no meio urbano e rural que
contribui para o desenvolvimento científico e para a educação permanente, tomando
consciência dos seus aspectos técnicos, sociais, econômicos e políticos para pensar o futuro da
sociedade. A Declaração de Santiago atribuiu ao museu o papel de agente participativo
juntamente com a comunidade na identificação e resolução das demandas locais e o
253

comprometimento com o desenvolvimento social e cultural, definindo assim alguns dos


princípios básicos da ideia de “museu integral” que opera à serviço da sociedade:

Que o museu é uma instituição a serviço da sociedade, da qual é parte integrante e


que possui nele mesmo os elementos que lhe permitem participar na formação da
consciência das comunidades que ele serve; que ele pode contribuir para o
engajamento destas comunidades na ação, situando suas atividades em um quadro
histórico que permita esclarecer os problemas atuais, isto é, ligando o passado ao
presente, engajando-se nas mudanças de estrutura em curso e provocando outras
mudanças no interior de suas respectivas realidades nacionais (Declaração de
Santiago, 1972).

A pesquisadora mexicana Brenda Cocotle identificou duas tendências que operam na


tentativa de desmontar o arcabouço colonial no museu. A primeira se refere à política de
identidade e representatividade estabelecida com os processos de multiculturalismo e da
hibridização cultural que ocorreu em paralelo à crise do tradicionalismo do Estado-nação. A
segunda tendência diz respeito à introdução dos conceitos das teorias decoloniais com
reflexões sobre as narrativas e representações vindas dos discursos coloniais. Podemos
considerar que nessa perspectiva o Museu da Maré se orienta pelas duas tendências, tanto pela
valorização da identidade coletiva dos moradores e da diversidade cultural mareense, quanto
por viabilizar as narrativas produzidas localmente, deslocando o olhar do viés histórico
nacionalista.
Sob a perspectiva da teoria crítica do grupo de estudos decoloniais latino-americano, o
museu tradicional se configurou como uma das instituições da modernidade responsáveis por
exercer a colonialidade do poder/saber. O sociólogo peruano Aníbal Quijano introduziu na
década de 90 o termo colonialidade para ressignificar o processo colonialista como uma das
faces do projeto político da modernidade europeia. O grupo de estudos
“Modernidade/Colonialidade” defende que a abertura da modernidade na Europa com a
construção dos estados nacionais culminou com o projeto imperialista de colonização das
Américas.
Além do domínio político dos territórios americanos e do genocídio étnico, o
colonialismo foi responsável pela hierarquização cultural-epistemológica e pela criação de
categorias raciais colocadas como subalternas em relação ao homem branco europeu. Estes
fatores contribuíram para o início do capitalismo global ao perpetuar a estrutura da divisão do
254

trabalho no estabelecimento de funções e papéis sociais determinados pela produção das


diferenças de gênero e raciais, o que Quijano definiu como a colonialidade do poder:

A globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que


começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e
eurocentrado como um novo padrão de poder mundial. Um dos eixos
fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população
mundial de acordo com a idéia de raça, uma construção mental que expressa a
experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as
dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade
específica, o eurocentrismo. Esse eixo tem, portanto, origem e caráter colonial,
mas provou ser mais duradouro e estável que o colonialismo em cuja matriz foi
estabelecido. Implica, consequentemente, num elemento de colonialidade no
padrão de poder hoje hegemônico (QUIJANO, 2005).

Outro integrante do grupo “Modernidade/Colonialidade”, o argentino Walter Mignolo,


nos diz que a ideia de colonialidade vem como o lado mais obscuro da modernidade. A matriz
colonial do poder é construída por quatro domínios interrelacionados: o controle da economia;
da autoridade; do gênero e da sexualidade; do conhecimento e da subjetividade. Esses
domínios se desdobram em duas direções, na luta entre os Estados imperiais europeus e nos
sujeitos coloniais indígenas e africanos que foram explorados e escravizados (MIGNOLO,
2017). Mignolo diz que esses domínios são sustentados por dois pilares, o fundamento racial e
patriarcal do conhecimento, onde seu fundamento histórico é pautado na teologia cristã. Ao
enumerar os históricos de instituições que articulam o controle do domínio da diferença entre
o colonial e o imperial, Mignolo aponta o museu como uma das instituições responsáveis pela
hierarquização estética:

Uma hierarquia estética (a arte, a literatura, o teatro, a ópera) que, através das suas
respectivas instituições (os museus, as escolas das belas artes, as casas de ópera, as
revistas lustrosas com reproduções esplêndidas de pinturas), administra os sentidos e
molda as sensibilidades ao estabelecer as normas do belo e do sublime, do que é arte
e do que não é, do que será incluído e do que será excluído, do que será premiado e
do que será ignorado (Kant, 1960; Mignolo e Tlostanova, 2012; Mignolo, 2012;
Tlostanova, 2010a) (MIGNOLO, 2017, p. 11).

Nos diz ainda que as colônias europeias foram fontes de material bruto para a
fundação dos museus de história natural e de antropologia na Europa:

A partir do século XVII, as colônias europeias forneceram o material bruto para a


fundação dos museus de curiosidades (Kunstkamera), que mais tarde separaram as
peças do mundo não europeu (museus de história natural, de antropologia) dos
255

museus de arte (principalmente europeia, a partir do Renascimento) (MIGNOLO,


2017, p. 12).

Estes casos demonstram como as estruturas dos museus na modernidade foram


configuradas conforme a lógica colonial de hierarquização e de exploração, e que as
instituições na modernidade foram estruturadas de modo a sustentar a matriz colonial de
poder. Com isto, Walter Mignolo aponta como a geopolítica e o corpo-político (entendidos
como a configuração biográfica de gênero, religião, classe, etnia e língua) foram ocultados da
composição do conhecimento e das questões epistemológicas. Ao considerarmos a lógica por
trás do processo colonialista, vemos que a relação de alteridade estabelecida pelo homem
europeu centralizado na história, dispõe, sobretudo para as mulheres negras, uma posição de
subalternidade diante do contexto da modernidade.
Portanto, o feminismo negro se estabeleceu como um movimento que veio para
abarcar as demandas raciais não contempladas pela teoria feminista universalista ao
considerar o racismo histórico do sistema colonial. O movimento das mulheres negras se
configura como um movimento político de combate ao racismo e às desigualdades de classe e
gênero. A produção da alteridade é colocada como um debate central no pensamento
feminista negro, considerando a invisibilização e o silenciamento das mulheres negras. A
apropriação de suas narrativas apresenta as mulheres negras na posição de objetos de
conhecimento cercados de estigmas e estereótipos que permeiam o imaginário social.
Segundo a pensadora Carla Akotirene a inter-relação entre classe, raça e gênero
orientam o suporte analítico da interseccionalidade que confronta o sistema de opressões que
atinge as mulheres negras:

A interseccionalidade visa dar instrumentalidade teórico-metodológica à


inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cishetetopatriarcado produtores
de avenidas identitárias em que mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo
cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe, modernos aparatos coloniais
(AKOTIRENE, 2020, p. 19).

Carla Akotirene nos diz que a interseccionalidade como instrumento


teórico-metodológico dos grupos subalternizados, além de propiciar a análise pela ótica de
raça, classe, nação e gênero, requer uma sensibilidade interpretativa dos efeitos identitários,
256

admitindo a matriz colonial de poder conferida no sistema global como fonte dos múltiplos
níveis de discriminação e dominação.
Ainda que o conceito de interseccionalidade tenha sido cunhado pela norte-americana
Kimberlé Crenshaw em 1989 ao identificar a interseção identitária na reprodução do racismo
no feminismo universalista e do machismo dentro do movimento negro, Akotirene ressalta o
pioneirismo da análise interseccional de Lélia Gonzalez ao interpretar a formação cultural
brasileira. No artigo “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira” de 1984, a antropóloga Lélia
Gonzalez aponta para o lugar da mulher negra no processo de formação da cultura brasileira e
os diferentes modos de rejeição e integração de seu papel. O racismo e o sexismo para Lélia é
um duplo fenômeno que produz efeitos violentos sobre a mulher negra.
Pela ótica psicanalítica, Lélia Gonzalez indica que o racismo naturalizado na cultura
brasileira relega às pessoas negras o lugar da incapacidade intelectual, da infantilização
através da linguagem utilizada. Com isto, indaga “por que o negro é isso que a lógica da
dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós o sabemos) domesticar?”. Desse modo,
Gonzalez trabalha com as noções de consciência e memória para demonstrar que no
imaginário social as mulheres negras são taxadas como mulatas, domésticas e mãe pretas:

Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da


alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz
presente. Já a memória, a gente considera como o não-saber que conhece, esse lugar
de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência
da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que a
memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, a consciência se
expressa como discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura,
ocultando a memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma como a
verdade. Mas a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura: por isso, ela fala
através das mancadas do discurso da consciência. O que a gente vai tentar é sacar
esse jogo aí, das duas, também chamado de dialética (GONZALEZ, 1984, p. 226).

Ao descrever as situações nas quais as mulheres negras são categorizadas e lembradas,


Lélia Gonzalez evidenciou o mito da democracia racial forjado na cultura brasileira como
campo da dialética entre a memória e a consciência para demonstrar os efeitos linguísticos e
políticos da exploração da mulher negra no país. Podemos constatar a dinâmica racial descrita
por Lélia Gonzalez na fala de Marilene Nunes que é atriz e arte educadora do Museu da Maré:

Também tive desconforto quando na escola ou em algum ambiente era chamada de


nega de cabelo duro, e por achar que as pessoas estavam certas, e que o meu cabelo
era feio por ser duro, muitas das vezes usei e alisei com pente quente para que
257

ficasse liso. Mas, Graças a Deus com o passar do tempo fui conhecendo e
convivendo com pessoas e lugares que me ajudaram muito a assumir minha
verdadeira identidade.

De outro modo, diante das atividades empenhadas no Museu da Maré, a Marilene se


posiciona diante de diferentes frentes e iniciativas políticas que compõem assim as facetas de
sua subjetividade e que rompem com os estigmas relacionados a ela ao longo de sua vida. Ela
é coordenadora da Brinquedoteca e da Biblioteca, é contadora de histórias e pesquisadora no
Projeto de História Oral do museu. Como uma das co-fundadoras do Museu, Marilene diz que
o Museu da Maré representa a vivência , a preservação viva da história e da memória local da
comunidade.
Ao analisar a natureza interligada das opressões que as mulheres negras vivenciam a
autora estadunidense Patricia Hill Collins expõe alguns temas chaves da construção do
pensamento feminista negro. Entre eles, Collins nos diz que as mulheres negras “defendem
um ponto de vista ou uma perspectiva singular sobre suas experiências e que existirão certos
elementos nestas perspectivas que serão compartilhados pelas mulheres negras como grupo”
(COLLINS, 2016). No entanto, ainda que existam elementos em comuns que pertençam às
pautas do movimento de mulheres negras a diversidade de classe, religião, idade e orientação
sexual que constituem as identidades dessas mulheres resultarão em diferentes perspectivas da
mesma temática, os “temas universais que são incluídos nos pontos de vista de mulheres
negras podem ser experimentados e expressos de forma distinta por grupos diferentes de
mulheres afro-americanas” (COLLINS, 2016). Podemos analisar através do pensamento de
Collins que o movimento feminista negro, embora seja composto por mulheres negras que
reivindicam pautas de temas em comuns, as mulheres negras são diversas e suas identidades
são construídas a partir de experiências subjetivas.
Como movimento social e grupo político, as mulheres negras reivindicam suas pautas
de luta contra as desigualdades históricas a partir de uma perspectiva interseccional ao
considerarem as violências de gênero e raça. No entanto, suas subjetividades moldam os
diferentes campos de atuação de suas lutas, considerando a classe, a geração, a sexualidade, a
religião, entre outros âmbitos de sociabilidade. Nesse sentido, a autodefinição e a
autoavaliação das mulheres negras possibilitam a reapropriação de suas narrativas.
258

A Dona Vera que faz parte da gestão do Museu da Maré, nasceu em Minas mas veio
morar no Morro do Timbau ainda criança junto com a sua tia Dona Orosina Vieira que foi
uma das primeiras moradoras da Maré. Dona Vera carrega o legado dessa importante
referência histórica da Maré, o simbolismo de sua presença no museu se coloca como
memória viva, onde por meio da oralidade contribui com a passagem de suas memórias da
infância às novas gerações, lembrando das lutas viabilizadas pelos moradores de lá em busca
do desenvolvimento do território. Ressalta sempre que pode a importância da atuação e do
legado de Marielle Franco enquanto mulher negra mareense. Ao falar sobre o que o Museu da
Maré representa para ela, Dona Vera diz com muito orgulho de seu parentesco com a primeira
mulher mareense:

O Museu da Maré representa a memória da comunidade. E acho muito importante ter


um arquivo com o nome de minha tia, pois sou sobrinha neta de uma das primeiras
moradoras da Maré, Dona Orosina Vieira.

Além de Dona Vera e Marilene, o museu conta com diversas mulheres na sua equipe.
Podemos considerar que as mulheres negras que compõem o Museu da Maré, rompem através
da narração sobre suas histórias de vida com as imagens de alteridade produzidas
externamente, estabelecendo a amplitude de suas falas como estratégia discursiva decolonial
diante dos apagamentos impostos pela história oficial dos museus tradicionais e pelas
imposições da matriz colonial de poder. O Museu da Maré busca resgatar a identidade coletiva
local a partir de referências políticas e culturais em comuns, marcadas nas memórias e nas
histórias dos moradores. Ao ressaltar a diversidade de narrativas de memórias a partir das
histórias de vidas e do acervo participativo da comunidade, o Museu da Maré se alia às
práticas da Museologia Social, se tornando um movimento social de luta pelo direito à
memória. As referências de memória consolidam a identidade coletiva dos moradores
mareenses, promovendo o sentimento de pertencimento, de valorização de si e do território.
De outro modo, a partir da oralidade, o Museu da Maré possibilita a visibilização e a
autodefinição das mulheres negras.

Referências
259

COCOTLE, Brenda Caro. Nós prometemos descolonizar o museu: uma revisão crítica da
política museal contemporânea. São Paulo: MASP, 2019.

COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do


pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado: 2016.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. In: Revista Ciências Sociais
Hoje, Anpocs, pp. 223-244, 1984.

MIGNOLO, W. D. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Tradução: Marco de


Oliveira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, 2017.

MIGNOLO, W. D. The darker side of western modernity: global futures, decolonial


options. Duke University, Durham, NC, EUA: 2011.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. Buenos


Aires: 2005.

SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. “Museus brasileiros e política cultural”. Rev. Bras. Ci.
Soc. v. 19, n. 55, 2004.
260

A dimensão ecológica do ofício de raizeira e raizeiro do Cerrado na candidatura a


patrimônio cultural
Marília Amaral (Doutoranda – PPGAS-MN/UFRJ)

Resumo: Este ensaio tem como objetivo destacar a dimensão ecológica do ofício de raizeira e raizeiro do
Cerrado, evidenciando os regimes e disputas de poder relativos à propriedade da terra e à preservação ambiental
no bioma Cerrado. Para tanto, será abordada em linhas gerais a questão da diversidade do/no bioma Cerrado e
seu uso político por raizeiras e raizeiros no discurso de unidade em contraposição à destruição do bioma, na
candidatura a patrimônio cultural. Nesse bojo, passaremos pela reflexão, em caráter ensaístico, referente ao
avanço do agronegócio na colonização interna do país e a formas de resistência e movimentos contra
hegemônicos relacionados a isso.

Palavras-chave: raizeiras e raizeiros; Cerrado; resistências.

1. Introdução

Em 2006, a Articulação Pacari, coletivo composto por diferentes grupos que se


utilizam dos saberes locais sobre as plantas do bioma Cerrado para a produção de remédios
caseiros1, enviou pedido formal de registro2 ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan), visando à patrimonialização do que posteriormente ficou definido como o
ofício de raizeiras e raizeiros do Cerrado.
Demandas como essa estão relacionados à extroversão da categoria patrimônio
cultural, que vem sendo paulatinamente apropriada por diferentes grupos sociais, abrangendo
novas “tipologias” e gerando outras problemáticas e questões a serem enfrentadas. Tendo em
vista as controvérsias que esses conhecimentos envolvem em relação às agências reguladoras
e práticas médicas oficiais, é possível perceber um

1
Segundo a solicitação de registro reapresentada em 2009, “As farmacinhas produzem em média 14 formas de
remédios caseiros: garrafada, tintura, xarope, vinagre medicinal, pomada, creme, sabonete, pílula, bala medicinal
ou pastilha, doce ou geleia medicinal, óleo medicado, pó, chá (planta seca), e multimistura. Dessas 14 formas,
são produzidos, em média, 40 tipos diferentes de remédios, com o uso de aproximadamente 70 espécies de
plantas medicinais”.
2
Registro é o instrumento jurídico instituído no âmbito do governo federal para reconhecer bens de natureza
imaterial como patrimônio cultural do Brasil (Decreto n° 3.551/2000). Fonte:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3551.htm Acesso em 09 de julho de 2022.
261

movimento de aproximação em relação aos setores do meio ambiente e da cultura em


busca de legitimidade para desempenhar o ofício.
A noção de patrimônio cultural, como sintetiza Arantes (2012), diz respeito a um
complexo processo de atribuição de valor em nome do interesse público. Inicialmente
desenvolvida na esfera pública, apesar dos seus efeitos conservadores como ritos e
símbolos oficiais, foi posteriormente apropriada pelos mais diversos atores. Em razão
disso, a dinamicidade transformadora da categoria torna-se evidente, uma vez que novos
sentidos lhe podem ser atribuídos, inclusive que sejam contrários à intenção de preservar,
de modo que tal apropriação se mostra como um desafio perene e estrutural para as
instituições responsáveis pela proteção e conservação desses bens culturais (ARANTES,
2012).
A Associação Pacari, demandante da patrimonialização em tela, foi criada,
conforme D’Almeida (2018), em 2005, ano anterior à demanda por registro ao Iphan,
embora já existisse como coletivo não formalizado3. O nome dado ao coletivo deve-se a
características da árvore. Localizada em ambientes do Cerrado, sendo que suas sementes
são espalhadas pelo vento, a Pacari é, por este motivo, comumente encontrada próxima a
outras variedades de plantas. O grupo optou por se autodenominar dessa maneira a fim de
simbolizar a agregação de distintos sujeitos e comunidades que integram a articulação e
estão “espalhados pelo bioma Cerrado”, como explicitado nas fontes de pesquisa
consultadas4.
Essa autodenominação demonstra a importância ocupada pelas plantas na leitura
de mundo das raizeiras e raizeiros e a cadeia de relações mobilizadas por elas, de modo
que evocam um conjunto mais amplo de relações sociais, bem como agenciamentos para
além do humano (HETHERINGTON, 2013; DOVE, 2019 e VIEIRA; 2021). Assim, não

3
Essa constituição como associação formalizada está relacionada à questão da identificação dos
representantes legítimos de povos tradicionais no âmbito das políticas governamentais, a qual vem gerando a
criação de novos sujeitos de direito, isto é, personalidades jurídicas (CARNEIRO DA CUNHA, 2017). Os
movimentos de homogeneização jurídica e comoditização dos conhecimentos tradicionais têm gerado
complexidades crescentes e paradoxos, na medida em que as políticas relativas ao tema se pautam no
estabelecimento de contratos entre sujeitos de direito (ABREU, 2014; COELHO DE SOUZA, 2010). Isso
tem feito com que uma série de povos e grupos sociais adotem formas associativas para se adequarem a
essas exigências, criando novos sujeitos. Dessa maneira, conforme destaca Abreu (2014), ainda se nota a
prevalência de outras lógicas, como a das patentes e a dos direitos individuais e empresariais, sobre o
reconhecimento de autorias coletivas de conhecimentos tradicionais.
4
No final desta Introdução, são descritas as fontes consultadas, quais sejam: a) o “processo administrativo”
relativo ao pedido formal de registro do ofício de raizeiras e raizeiros do Cerrado como patrimônio cultural
do Brasil; b) o livro “Farmacopeia Popular do Cerrado” (2010), publicação em formato digital produzida
pelo coletivo responsável pelo pedido; c) o “Protocolo Comunitário Biocultural das Raizeiras do Cerrado:
direito consuetudinário de praticar a medicina tradicional” (2015), outra publicação desenvolvida por
iniciativa desse coletivo.
262

somente a natureza é domesticada pelo humano, como também o humano é pela natureza.
Daí a importância de levar a sério outras cosmologias não seculares do ponto de vista
antropológico, alargando o campo de percepção e tornando visível a força de outras
leituras de mundo5.
Com relação à representatividade da Articulação Pacari, ela abrange praticantes do
ofício em regiões dos estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul, Tocantins e
Maranhão, não havendo menção expressa ao Distrito Federal e demais porções de outros
estados que, conforme o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio6), fazem parte do bioma Cerrado. Na demanda por reconhecimento como
patrimônio cultural, a associação apresentou-se como “rede socioambiental” formada por
integrantes da sociedade civil que trabalham com “saúde comunitária, cultura e meio
ambiente” e sua sede está localizada na Cidade de Goiás.
A rede mobilizadora abarca um grupo extenso e heterogêneo de pessoas envolvidas
no ofício, localizadas em distintas regiões desses estados do Cerrado, totalizando quase
300 integrantes de maioria formada por mulheres de zonas rurais vinculadas à igreja
católica (pastorais), conforme perfil predominante sintetizado por D’Almeida (2018),
embora também façam parte da articulação comunidades indígenas e quilombolas7. Não é
raro que as pessoas praticantes desse ofício dominem também outros saberes, como o de
parteiras, benzedeira/es e rezadeira/es, aspecto para o qual o próprio grupo chama a
atenção nas fontes de pesquisa analisadas.
Não está definido com precisão no material consultado o número total de pessoas
que se identificam como raizeiras e raizeiros do Cerrado dentro da Articulação Pacari

5
Nesse sentido, aparecem como possibilidades empíricas futuras refletir acerca da agência das plantas: quais
situações são criadas por elas, quais atores mobilizam, quais relações evocam, o que elas informam, entre
outras questões. Isso porque, as plantas são elementos tão relevantes quanto os humanos nesses regimes de
conhecimento, não havendo uma maneira única de se relacionar com elas (HETHERINGTON, 2013;
DOVE, 2019 e VIERA; 2021).
6
Conforme o sítio eletrônico do ICMBio, “O Cerrado é um dos cinco grandes biomas do Brasil, cobrindo
cerca de 25% do território nacional e perfazendo uma área entre 1,8 e 2 milhões de km2 nos Estados de
Goiás, Tocantins, Mato Grosso do Sul, sul do Mato Grosso, oeste de Minas Gerais, Distrito Federal, oeste da
Bahia, sul do Maranhão, oeste do Piauí e porções do Estado de São Paulo”. Disponível em:
https://www.icmbio.gov.br/cbc/conservacao-da-
biodiversidade/biodiversidade.html#:~:text=O%20Cerrado%20%C3%A9%20um%20dos,oeste%20do%2
0Piau%C3%AD%20e%20por%C3%A7%C3%B5es Acesso em: 02 de setembro de 2022.
7
Dentre os quilombolas, é possível mencionar as comunidades Kalunga, do Buracão e do Cedro, no estado
de Goiás, sendo que na última funciona o Centro Comunitário de Plantas Medicinais do Quilombo do Cedro.
Dentre os indígenas, nas fontes verificadas, é feita menção aos povos Pataxó-Pankararu e Xakriabá, no
estado de Minas Gerais. Além disso, fazem parte do coletivo assentamentos da reforma agrária, grupos de
mulheres, centros comunitários, farmacinhas comunitárias, agricultores e extrativistas, para além de agentes
pastorais, quilombolas e indígenas já mencionados.
263

(isto é, dentre os seus quase 300 integrantes). Assim, o próprio grupo tem realizado uma
série de reuniões, encontros e mapeamentos com vistas a identificar os sujeitos que se
reconhecem dessa maneira e os seus saberes relativos ao uso das plantas no Cerrado.
Com o intuito de autorregular a prática, foi desenvolvida pesquisa popular para a
produção de uma farmacopeia do Cerrado8. Essa pesquisa visou registrar os
conhecimentos tradicionais9 relativos aos saberes e usos de plantas medicinais do Cerrado,
mas também funcionar como um instrumento político de proteção à apropriação indevida
desses recursos e conhecimentos. O trabalho se deu entre os anos de 2001 a 2005, em
Minas Gerais, Goiás, Tocantins e Maranhão, contando com metodologia específica e com
a participação de representantes comunitários. O resultado disso foi um material rico em
ilustrações e informações, denominado “monografias populares”, sobre nove plantas do
Cerrado e conhecimentos tradicionais associados a elas. As plantas escolhidas foram:
Barbatimão, Pacari, Rufão, Algodãozinho, Pé de Perdiz, Batata de Purga, Ipê-Roxo, Buriti
e Velame.
Este ensaio tem como objetivo destacar a dimensão ecológica do ofício de raizeira
e raizeiro do Cerrado, evidenciando os regimes e disputas de poder relativos à questão da
propriedade da terra e à preservação ambiental no bioma Cerrado. Para tanto, detive minha
10
atenção em algumas fontes de pesquisa, quais sejam: a) o “processo administrativo”
relativo ao pedido formal de registro do ofício de raizeira e raizeiro do Cerrado como
patrimônio cultural do Brasil; b) o livro “Farmacopeia Popular do Cerrado” (2010),
publicação em formato digital produzida pelo coletivo responsável pelo pedido; c) o
“Protocolo Comunitário Biocultural das Raizeiras do Cerrado: direito consuetudinário de
praticar a medicina tradicional” (2015), outra publicação desenvolvida por iniciativa desse
coletivo. Com isso, pretendo analisar o peso da questão

8
Conforme a própria publicação, assim é definido o termo farmacopeia: “As farmacopeias, do grego
fármaco – princípios ativos ou medicamento – e, peia – fabricação –, são livros oficiais do governo para a
identificação dos medicamentos de um país e o controle de qualidade em sua fabricação. Nelas encontram-
se registradas principalmente substâncias químicas, plantas, derivados de animais e outras matérias-primas
utilizadas na preparação de medicamentos” (p. 56). A publicação apresenta ainda os trabalhos comunitários
que resultaram nessa catalogação.
9
Seguindo o pensamento de Carneiro da Cunha (2017), Pantoja (2016) em discussão conceitual sobre o
assunto reforça que os conhecimentos tradicionais não são uma categoria nativa. Sua paulatina apropriação
pelos grupos se deve à sua dimensão pública e política, incluindo sob sua significação notória elasticidade e
heterogeneidade de coletividades, as quais podem estar localizados em áreas urbanas, periurbanas,
rurais/florestais e dominam saberes diferenciados sobre o ambiente no qual vivem. Da mesma forma que o
conceito de cultura, constituiu-se então em “arma dos fracos”.
10
Faz parte desse material todo o conjunto documental que compõe aquilo que na administração pública é
denominado “processo administrado”; nele, são inseridas todas as comunicações que visam dar andamento a
essa demanda.
264

ambiental na construção do discurso sobre o ofício de raizeira e raizeiro do Cerrado,


conferindo unidade a esse grupo diverso e contrapondo-se à destruição do bioma.

2. Diversidade no/do bioma Cerrado e seu uso político

Na justificativa do pedido de patrimonialização, a Associação Pacari destacou o


“bioma Cerrado” como um dos “mais ameaçados do mundo” e dedicou alguns parágrafos
para a sua caracterização.
No descritivo, a “extraordinária biodiversidade” do Cerrado foi salientada, bem
como a sua flora, fauna e nascentes de água de relevância nacional. Sobre o potencial
hídrico do Cerrado, no protocolo comunitário das raizeiras, ele é caracterizado como “mãe
d’água do Brasil”11 por possuir nascentes de grandes rios e alimentar seis relevantes bacias
hidrográficas brasileiras. O material explica que o Cerrado é um dos biomas mais
ameaçados do mundo, tendo perdido 70% de sua cobertura vegetal natural e apresentando
alto índice de degradação. Na justificativa do pedido de registro, expôs-se então que:
Ocupando cerca de 24% do território nacional, o Cerrado é fonte de
recursos naturais para as comunidades locais, principalmente para a
saúde, alimentação e artesanato.
Um dos exemplos deste valor é a diversidade de raízes, entrecascas,
resinas, óleos, folhas, flores, etc que são primorosamente manejados
pelos povos do Cerrado para a prática da medicina popular.

Face ao exposto, o conhecimento e os usos feitos pelos “povos do Cerrado” quanto


à diversidade de recursos naturais do bioma foram sublinhados. A Articulação Pacari
definiu as raizeiras e raizeiros como “conhecedores de referência nas comunidades locais,
vivem da coleta de frutos e plantas medicinais e recebem as pessoas em suas casas para
cuidar das doenças mais comuns através de remédios caseiros”. Em complemento a essa
descrição, o coletivo detalhou que:
Os frutos servem para a alimentação e também para extrair óleos com
propriedades medicinais (azeite de buriti, óleo de babaçu, manteiga de
bacuri, etc). Das plantas medicinais coletam raízes, semente, cascas,
flores, folhas e resinas que servem de matéria-prima na preparação de
remédios caseiros (batata de purga, vagem da sucupira, casca de
barbatimão, folha de congonha, resina de angico, etc).

11
Conforme o Protocolo Comunitário, “O Cerrado também é considerado a “mãe d’água do Brasil”, por
possuir as nascentes de grandes rios, como o São Francisco, o Araguaia, o Xingu e o Tocantins. Suas águas
alimentam seis importantes bacias hidrográficas brasileiras, entre elas a bacia Amazônica e a bacia dos rios
Paraná e Paraguai” (p. 7).
265

Para eles, a valorização dos “modos de fazer da medicina popular” promove tanto
a preservação ambiental como a proteção dos conhecimentos tradicionais relativos ao
meio ambiente. No que tange às “relações multiespécie”, isto é, aquelas que se dão com as
plantas, os animais e demais seres vivos, é possível diferenciar o modo de atuação das
raizeiras e raizeiros do Cerrado em relação aos empreendimentos voltados à
monocultura12, fator demarcado pelo grupo que está pleiteando a patrimonialização em
tela.
Desse modo, diferentemente do tratamento abstraído como recurso ou
investimento – como ocorre nas monoculturas –, existe todo um procedimento por parte
dos raizeiros que compõe o processo de coleta, englobando rezas e rituais, referências a
seres do mundo espiritual, a observação das fases da lua e das relações das plantas com os
demais seres da fauna e flora antes de se proceder à coleta, sendo que os remédios
produzidos são utilizados inclusive para uso veterinário13.
É importante observar que a formulação inicial do pedido de patrimonialização
passou depois por reconfigurações. Desse modo, se em um primeiro momento, o enfoque
da associação recaiu sobre o livro da “Farmacopeia Popular do Cerrado”, posteriormente,
isto é, após sugestão de instância colegiada14 e de técnicos do Iphan, houve sua
modificação no sentido de tornar central os saberes das pessoas que exercem essas práticas
e não a farmacopeia em si. Assim, tal instância sugeriu o foco nos ofícios e saberes
relativos ao documentado no livro.
É possível observar no pedido de 2006, e mais expressamente na reformulação de
2009, realizados pela associação, a ênfase no manejo e uso sustentável dos recursos do
Cerrado, predominando o argumento concernente à biodiversidade e a questão da
preservação ambiental do Cerrado, embora também haja a sua caracterização como prática
que visa a curas, sendo mencionadas algumas controvérsias relacionadas às
regulamentações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e à necessidade

12
Nos sistemas voltados à monocultura, tanto as pessoas, como as plantas e os animais, são abstraídas de
modo a se tornarem recursos ou investimentos e isto está relacionado à padronização do mundo, atuando em
contínua tensão com a diversidade natural e cultural ao operar mediante réplicas e escalabilidades
(MITMAN; HARAWAY e TSING, 2019).
13
Além disso, podemos mencionar as diferenças na forma de classificação das plantas a partir dos regimes
de conhecimento próprios de cada grupo, possuindo uma diversidade de denominações que transcende a
taxonomia científica oficial.
14
Esta instância é a Câmara do Patrimônio Imaterial, responsável por fazer uma primeira avaliação dos
pedidos de registro (após a instrução técnica do processo pelos servidores do Iphan). Isso ocorre antes de a
solicitação ser levada à votação pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, órgão colegiado de
decisão máxima do Iphan.
266

de legitimidade para o desempenho da prática e comercialização dos remédios caseiros


(mediante cobrança de baixo valor e sem inviabilizar a prática de doações).
A reformulação da justificativa para o pedido de patrimonialização dedicou uma
seção específica ao Cerrado, intitulada “Bioma Cerrado - uso sustentável associado aos
conhecimentos tradicionais”. Nela, a perda da cobertura vegetal natural do bioma foi
descrita como resultado do avanço da fronteira agrícola, principalmente das monoculturas
e pastagens que teriam imposto um modelo de ocupação da terra, desconsiderando os
sistemas locais de produção diversificada e a soberania alimentar dos povos do Cerrado.
Um levantamento preliminar do Inventário Nacional de Referências Culturais15 do
Oficio de Raizeira e Raizeiro do Cerrado teve conclusões exemplificativas do foco na
preservação ambiental dessa candidatura. Realizada no âmbito do processo de pedido de
registro, a pesquisa concluiu pela existência de diferentes “perfis” de raizeiras e raizeiros
(indígenas, quilombolas, extrativistas, entre outros), contudo preponderou a construção de
uma unidade na descrição acerca do que seria o ofício, construída em torno do bioma
Cerrado16.
A partir desses elementos, nota-se então a centralidade do “bioma Cerrado” nessa
candidatura como patrimônio cultural do Brasil, como fator de unidade da diversidade de
“perfis” de raizeiros e raizeiros. Simão e Rodrigues (2019) comentam o intenso processo
vivido pelo grupo até as mobilizações pelo reconhecimento da prática como patrimônio
cultural. Assim, antes mesmo do pedido, o coletivo conseguiu se afirmar como sujeito
político e se articular com o setor público ambiental e com fundos e instituições de
pesquisa internacionais, o que possibilitou a produção do livro concernente à farmacopeia
popular do Cerrado e do seu próprio protocolo comunitário.
Diante do exposto, as raizeiras e raizeiros do Cerrado se configuram como um
movimento de mobilização política contra hegemônico em relação a circuitos oficiais
agroindustriais, constituindo resistência junto a outras comunidades e culturas no sentido

15
Conforme o sítio eletrônico do Iphan: “O Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) é uma
metodologia de pesquisa desenvolvida pelo Iphan para produzir conhecimento sobre os domínios da vida
social aos quais são atribuídos sentidos e valores e que, portanto, constituem marcos e referências de
identidade para determinado grupo social”. Disponível em: Página - IPHAN - Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional Acesso em: 10 de setembro de 2022.
16
No tópico “dificuldades e desafios de raizeiras e raizeiros do Cerrado”, do INRC do Oficio de Raizeira e
Raizeiro do Cerrado, fica evidente o peso da questão ambiental na construção da unidade do grupo e são
mencionados alguns entraves à livre prática do ofício, entre eles: “a) Falta de legislação que assegure o
direito do uso tradicional e sustentável dos recursos naturais no cuidado com a saúde;[...] e) Conversão
de ecossistemas naturais em monoculturas e perda de biodiversidade do Cerrado; f) Falta de áreas
comunitárias para o manejo sustentável de plantas medicinais; [...]”.
267

da valorização da diversidade natural e cultural do bioma. As relações do grupo com o


trabalho e com a terra têm características diferentes daquelas que fundamentam as
monoculturas e as plantations17, gerando lutas permanentes para assegurar o território,
base essencial para vida desses povos no Cerrado
Apesar desse “legado da plantation”, marcado pela desigualdade, imposição e
conflito, pela opressão racial e violência (MOORE, ALLEWAERT, GÓMEZ e MITMAN,
2021), Santos (2015), ou Antônio Bispo, como é mais conhecido, exalta as resistências
dos modos alternativos de plantação e a gestão da ecologia realizada por determinados
segmentos, de maneira a indicar formas possíveis de futuro, ao passo que tais modelos
operam com base em ações menos nocivas de relacionamento com a natureza e o meio
ambiente. Embora ainda desacreditados como modelos econômicos viáveis, esses
movimentos de resistência têm buscado e alcançado de diferentes formas cada vez mais
legitimidade, conquistando espaços e proliferando diferenças, ao invés de acabar com elas.

3. Avanço do agronegócio na colonização interna do país e no Cerrado

O avanço do agronegócio no Cerrado é indissociável dos projetos de colonização


que integraram planos nacionais de modernização da agricultura na década de 1970.
Conforme Heredia, Palmeira e Leite (2010, p. 169),
Com efeito, até os anos de 1970, as terras dos estados do Centro-Oeste, hoje
cobertas pela soja, eram consideradas inadequadas para a agricultura e eram
ocupadas por populações indígenas e pequenos posseiros, além de algumas
fazendas de pecuária extensiva dispersas ao longo de um vasto território. Já
regiões como o Triângulo Mineiro e Oeste baiano eram áreas tradicionalmente
ocupadas pela criação de gados, praticada sobretudo em grandes fazendas, e
cultivos ligados à pequena produção agrícola destinada ao consumo local e
regional.

Foram então os programas governamentais de ocupação dos Cerrados que levaram


à região a soja e outros produtos considerados adequados ao tipo de agricultura que se
pretendia desenvolver, de modo que os autores apontam a relação entre o desenvolvimento
do agronegócio na região com o incentivo de políticas públicas. Dessa maneira, houve o
estímulo ao deslocamento e fixação de colonos interessados em se

17
Trata-se de uma simplificação radical, expansiva e replicável, que destrói florestas e economias locais
(TSING, 2019).
268

estabelecer nos Cerrados ou ainda o fomento a atividades colonizadoras de caráter


privado.
Os colonos do Sul foram os primeiros a chegar em algumas regiões, a exemplo do
Mato Grosso, integrando um processo tanto de eugenia como de “pioneirismo nacional”.
Em contraste com as populações locais que lá viviam, esses migrantes eram vistos como
símbolo de progresso e desenvolvimento, sendo que a “ideologia do pioneirismo”
ignorava, pois, o fato de que essas regiões já eram habitadas, propagando a falsa ideia de
“espaço vazio”.
Embora a plantation, alicerce desses processos de ocupação, possa ser descrita em
termos gerais, cada sistema apresenta singularidades e especificidades no modo como se
manifesta em determinada região, de modo que é sempre com cuidado que devemos falar
de ocupações territoriais mais abrangentes, como as do Cerrado, bioma que abarca
diferentes estados e porções territoriais do país. Daí a importância de etnografias
referentes às mais diversas implantações do sistema plantation no Brasil e no mundo18.
Nesse sentido, etnografias realizadas no Mato Grosso (MARQUES, 2015;
ALMEIDA, 2021) e em Minas Gerais (NOVAES, 2011; COMERFORD, 2014) são
elucidativas do processo de colonização interna nos Cerrados, embora seja complicado
fazer algumas generalizações. De acordo com Marques (2015, p. 139), “o deslocamento
para Mato Grosso se insere na lógica da busca pela ‘terra nova’, que desde algumas
gerações orientava outros deslocamentos”. A soja, que já era cultivada em larga escala no
Sul desde os anos de 1960, foi vista como meta pelos “pioneiros” do Mato Grosso. Para
isso, contaram com o apoio da tecnociência para o desenvolvimento de sementes
adaptadas ao clima do Cerrado, além do tratamento do solo e demais tecnologias de
cultivo, havendo notório investimento tecnológico na cultura de soja na região. A partir
dos anos de 1980, a soja se consolida então como produto de exploração principal voltada
crescentemente ao mercado externo.

18
Da mesma forma, também é necessário complexificar a visão que se tem do agronegócio. No âmbito dessa
temática, Pompeia (2020) discorre acerca da articulação dentro da estrutura do poder estatal e do
reordenamento de formas de atuação política no campo do agronegócio. Ele observou um impulso
organizado e sistemático das representações patronais relativas aos complexos agroindustriais, que não
significa propriamente um retorno à unidade de representação e nem um retorno à fase das multifiliações.
Trata-se, pois de uma “concertação política”, de modo que os detentores do poder referente ao agronegócio
desenvolveram maneiras de racionalizar as diferenças e encontrar consensos nas relações com o poder
estatal, organizando o grupo. São então agentes heterogêneos atuando em concerto, os quais têm obtido êxito
nas mesas de negociações com o poder público e perante a opinião pública por meio de diferentes
estratégias.
269

Ampliando o cenário, Almeida (2021) relata sobre o avanço da soja na colonização


interna relativa ao norte Mato-Grossense, sendo isso paradigmático de um novo estágio da
agricultura nas Américas. Isso posto, o Brasil estaria em segundo lugar em área e em
produção desde os anos 1980. Para a autora, um conjunto de projetos de colonização
interna nas Américas que tende à submissão de populações nativas e “minorias étnicas”
está diretamente relacionado a essa posição do país no ranking internacional19. Isso
significou a integração de novas áreas aos circuitos do mercado global de commodities.
Importante salientar que esse processo representa a supressão da vegetação nativa e a
introdução de novos produtos agricultores e substâncias na terra, com impacto direto na
ecologia e modo vida das populações locais.
Assim como Marques (2015), Almeida (2021) tensiona a ideia de “fundação” (ou
“pioneirismo” nos termos de Marques) e disserta sobre o uso de categorias classificatórias
relacionadas à origem ou identidade regional, revelando a dimensão racial e o projeto de
eugenia ligado a esse processo20. A autora diferencia dois processos de ocupação no norte
Mato-Grossense, o primeiro seria de “expansão” e o segundo “pioneiro”, sendo que a
frente de expansão se trata da ocupação espontânea do território pela perambulação de
grupos indígenas e demais populações de áreas ocupadas pela pecuária e agricultura de
exportação e a outra, frente pioneira, seria relativa à ocupação territorial economicamente
organizada pelas empresas agrícolas, agricultura familiar e comercial, com incentivos do
governo.
Sobre os processos de ocupação em Minas Gerais, mais precisamente no Alto
Parnaíba, Comerford (2014) também demarca a década de 1970 como divisora de águas
em relação à introdução da “agricultura moderna, tecnificada e em larga escala” na região
devido ao auxílio da tecnologia no sentido de criar produtos agrícolas adaptáveis a essas
terras, desenvolvendo sua fertilidade e permitindo que lá fossem plantadas determinadas
variedades de grãos. Em decorrência disso, foram empreendidos projetos oficiais de
colonização voltados à agricultura, com crédito subsidiado. Nesse processo, o Cerrado foi
substituído por grandes plantações de arroz, soja, milho, café, trigo, entre outros grãos.

19
Sua expansão para o Centro-Oeste, Amazônia e oeste baiano se deu nesse mesmo período histórico, de
modo que até 2019 o Mato Grosso concentrava cerca de 28% da produção de soja nacional (ALMEIDA,
2021).
20
Almeida (2021, p. 4) relata que: “Até os anos 1970, a área estudada era coberta por floresta parcamente
habitada, pontuada por seringais, garimpos e fazendas de pecuária extensiva. A população preestabelecida
de comunidades ribeirinhas e indígenas foi sendo impelida a abandonar seus territórios e, virtude de uma
série de políticas que tinham como objetivo a fixação de população exógena, oriunda das regiões Sul e
Sudeste”.
270

Em consonância com a pesquisa desenvolvida por Comerford (2014), Novaes


(2011) descreve a posição de pouco destaque do Cerrado mineiro na produção
agropecuária antes do impulso relativo à década de 1970, com a revolução verde e
modernização conservadora, e na década de 1980, com as inovações mecânicas, físicas e
químicas, de modo que havia o cultivo de feijão e milho em áreas próximas às nascentes e
a pecuária superextensiva. Em decorrência do processo de colonização, ela cita uma série
de procedimentos utilizados para elevar a produtividade da produção cafeeira no Cerrado,
surgindo a marca Café do Cerrado nos anos de 1990. Com relação a essa marca, houve a
sua idealização como diferenciação de origem e certificado de qualidade, contando com o
suporte político nacional.
Ainda que tais processos de ocupação compartilhem características comuns, nota-
se a partir das etnografias estudadas determinadas especificidades em cada região,
resultando disso a importância do deslocamento em relação aos grandes debates abstratos
em direção à pesquisa de campo, de modo a possibilitar a compreensão nos contextos
locais de como são criadas e vividas as categorias nativas. Por outro lado, é possível
observar também semelhanças que permitem compreender no nível macro analítico como
esses processos se dão e quais são as suas consequências gerais.
No caso do Cerrado, por meio dos estudos apresentados, conseguimos observar
como a tecnologia e os projetos de colonização desenvolvidos especialmente entre os anos
de 1970 e 1980 foram cruciais para os processos de alteração radical da paisagem que foi
sendo substituída por grandes monoculturas. Isso impactou negativamente tanto na
existência e no ritmo de ciclos, da terra, água, animais, plantas etc., numa perspectiva
ecológica e ambiental, como também multiplicou clivagens sociais em relação às
populações que lá existiam e as que chegaram posteriormente, do ponto de vista social e
político.

4. Disputas, resistências e afirmação de coletividades

Assim como nas demais produções escritas da Articulação Pacari (que se


constituem também como instrumentos políticos, como reiteradamente afirma o grupo), o
“Protocolo Comunitário21 Biocultural das Raizeiras do Cerrado: direito consuetudinário

21
Segue a conceituação de protocolos comunitários dada pelo próprio grupo nessa publicação: “são
instrumentos políticos que contêm acordos elaborados por povos e comunidades tradicionais, sobre temas
relevantes aos seus modos de vida, visando à garantia de seus direitos consuetudinários” (p. 4) Fonte:
271

de praticar a medicina tradicional”, publicação de 2015, mobilizou características naturais


do Cerrado e processos de destruição, ameaça e expropriação ocorridos nesse bioma e
sobre seus povos para compor os elementos que justificam a importância do ofício e da
sua valorização e continuidade22. O objetivo do protocolo, conforme apresenta seus
idealizadores, foi instrumentalizar a conquista legal que garante direitos a quem “faz o uso
tradicional e sustentável da biodiversidade brasileira para a saúde”. Para a sua elaboração,
o grupo contou com o conhecimento e compartilhamento de ideias acumulados desde
2008, por meio de encontros regionais e nacionais, nos quais relata o protagonismo das
mulheres.
O documento trata, em suma, da proteção dos saberes relativos às plantas do
bioma, proteção esta preconizada pela Lei da Biodiversidade23, a qual regula tanto a
constituição federal como a Convenção sobre Diversidade Biológica (1992). Essa previsão
legal foi um marco importante para as populações que reivindicam o reconhecimento de
suas identidades coletivas, dispondo sobre o acesso e a repartição de benefícios
decorrentes do uso de conhecimentos tradicionais associados ao meio ambiente, com
vistas à sua conservação e uso sustentável.
Apesar de sua relevância, é necessário ponderar, contudo, os efeitos práticos desse
marco legal no que diz respeito ao compartilhamento de benefícios. Embora se apresente
como um dos defensores da legalidade do acesso aos recursos genéticos e/ou saberes
tradicionais relativos à biodiversidade no plano internacional, haja vista sua imagem de
país mega diversificado, Carneiro da Cunha (2007) exemplifica como o Brasil
internamente não combate a biopirataria nacional, carecendo de esforços efetivos de
proteção desses conhecimentos que garantam a repartição de benefícios aos seus
respectivos povos.
Conforme a autora, perde-se a oportunidade de implantar um regime de
colaboração e intercâmbio mutuamente respeitoso entre os saberes (científico e

https://absch.cbd.int/api/v2013/documents/E5195138-7269-5615-AD9E-
E25D19844AFB/attachments/202716/Protocolo_Comunitario-Raizeiras.pdf Acesso em 09 de julho de 2022.
22
Como dito anteriormente, tal caracterização coloca a biodiversidade e o meio ambiente em posição
destacada nessa candidatura a patrimônio cultural do Brasil.
23
Lei 13.123, de 20 de maio de 2015, que “Regulamenta o inciso II do § 1º e o § 4º do art. 225 da
Constituição Federal, o Artigo 1, a alínea j do Artigo 8, a alínea c do Artigo 10, o Artigo 15 e os §§ 3º e 4º
do Artigo 16 da Convenção sobre Diversidade Biológica, promulgada pelo Decreto nº 2.519, de 16 de março
de 1998; dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento
tradicional associado e sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da
biodiversidade; revoga a Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001; e dá outras providências”.
272

tradicionais), na medida em que as exigências de confidencialidade e monopólio dos


mecanismos de proteção da propriedade intelectual acabam entrando em conflito com as
regras próprias de conhecimento dos sistemas tradicionais. Em decorrência de concepções
como essa, não é raro ocorrerem ainda confusões entre os conceitos de soberania e
propriedade, além da negação do individual como sendo sempre o coletivo, considerado
um indivíduo corporativo (CARNEIRO DA CUNHA, 2017). Soma-se a isso, a
consideração equivocada de que as culturas sempre são endógenas e não exógenas
(obtidas de outros) e que determinados grupos não teriam noção alguma de propriedade,
sendo erigidos como símbolo contra a cobiça. Para a autora, existem outras formas de
direitos sobre coisas que precisam ser investigadas, para além de soluções binárias24.
Por considerar relevante identificar os sujeitos detentores dos saberes sobre as
plantas do Cerrado, a Articulação Pacari apresentou a “identidade social das raizeiras do
Cerrado” no protocolo comunitário. Na publicação, a associação reforçou a pertença
múltipla das raizeiras, visto que uma pessoa pode ter “multi-identidades”, por exemplo,
identificar-se ao mesmo tempo como quilombola e agricultora familiar, entre outras
possibilidades. Como parte dessa identificação, a “troca espiritual com a natureza”
também foi salientada. Por fim, a associação apresenta no protocolo comunitário as metas
das raizeiras para a biodiversidade do Cerrado e suas relações com as políticas públicas25.
Cabe lembrar que, embora a migração não seja um fenômeno recente, houve no Cerrado
um impulso migratório específico entre os anos de 1950 e 1970 diretamente ligado à
expansão do agronegócio, uma vez que era concebido como espaço “vazio”, a ser
explorado, de modo que as populações nativas foram desconsideradas nesse processo
(HEREDIA, PALMEIRA e LEITE, 2010; RUMSTAIN, 2012 e 2015; MARQUES, 2015).
Essas populações foram associadas ao atraso e à degradação, ao passo que a

24
Gallois (2012) também debate esse tema. Analisando algumas práticas culturais dos Wajãpi, ela demonstra
como na concepção do povo existe a preocupação da perda da precedência no acesso aos próprios saberes,
pois se forem apropriados por outros se tornarão indisponíveis aos Wajãpi, contudo, o valor está fundado na
capacidade de circulação e não no monopólio de saberes – gerando o paradoxo de que para assegurarem a
adequada circulação têm que se legitimar afirmando-se como donos.
25
Entre tais metas, estaria a capacitação dos povos e comunidades tradicionais quanto à Lei da
Biodiversidade; a criação da Universidade Popular do Cerrado, para o ensino e aprendizagem de formas de
uso tradicional e sustentável da biodiversidade do bioma; a gestão comunitária das áreas consideradas
prioritárias para a coleta sustentável de plantas medicinais; a eliminação de incentivos lesivos à
biodiversidade, especialmente no que diz respeito à mineração e agropecuária extensivas; as medidas para
evitar a extinção das espécie nativas ameaçadas e daquelas que são prioridade para a medicina tradicional do
Cerrado; as farmacopeias tradicionais relativas a todos os biomas brasileiros para verificar aquelas que
prioritariamente devem ser conservadas; o direito à manutenção das sementes crioulas pelos povos do
Cerrado e que as políticas públicas incorporem práticas tradicionais de cultivo e sistemas agroecológicos de
produção de alimentos, visando a soberania alimentar dos povos do Cerrado.
273

instalação de complexos agroindustriais e a chegada de migrantes do sul associaram-se ao


progresso. Assim, as florestas e vegetações nativas foram substituídas paulatinamente pela
monocultura de soja, milho, algodão, eucalipto e outras em produções de larga escala,
alterando a paisagem e gerando tensões em torno da ocupação e propriedade da terra. Isso
posto, os empreendimentos agroindustriais tornaram a região foco de conflitos permanentes
envolvendo as populações camponesas do Cerrado.
Conforme o Protocolo Comunitário produzido pela Articulação Pacari:
Atualmente vivem no Cerrado mais de 80 povos indígenas e uma grande diversidade
de povos tradicionais, como ribeirinhos, raizeiras, quilombolas, quebradeiras de
coco babaçu, entre outros. Estes povos fazem o uso sustentável de flores, óleos,
frutos, folhas, madeiras, sementes, raízes, cascas e resinas para a sua alimentação,
medicina, vestuário, moradia, utensílios, ferramentas, móveis e artesanato.

Diante do exposto, é relevante citar notícias e demais documentos que compõem o


processo administrativo analisado, as quais evidenciam conflitos relativos à propriedade da
terra e sua gestão ecológica envolvendo as populações do Cerrado. O primeiro desses
arquivos a ser comentado trata-se de um informativo jornalístico de 2014, sobre um protesto
para criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Nascentes dos Gerais, por
populações tradicionais compostas por “geraizeiros, apanhadores de flores sempre-vivas,
vazanteiros, veredeiros, catingueiros, quilombolas e indígenas [povo Xakriabá]” – que se
apresentaram como parte das “comunidades tradicionais dos Cerrados Brasileiros”. A notícia
fez menção a relatos dessas populações sobre conflitos e violências praticados por fazendeiros
e invasores na região das serras e planaltos de Minas Gerais.
Há também o pleito pelo registro dos “Saberes dos remanescentes de escravos e
herdeiros diretos de Chico Moleque, fundador da comunidade, na prática de manipulação e
indicação terapêutica de plantas nativas do Cerrado”, encaminhado pela comunidade
quilombola do Cedro, em 2016. Tal demanda parece estar ligada diretamente ao fato de até
aquela data não ter havido retorno quanto ao reconhecimento como patrimônio do ofício de
raizeira e raizeiro do Cerrado. No pleito, a representante da comunidade relata “perseguição
dos farmacêuticos da cidade de Mineiros referente ao Centro de Plantas Medicinais da
Comunidade Quilombola do Cedro”.
No mesmo documento, também foram relatadas “perseguições de terras da
Comunidade Quilombola do Cedro”, relacionadas à expansão urbana e pressões do setor
imobiliário, que estariam cercando as terras com loteamentos, condomínios residenciais e
asfalto irregulares. Tal estaria se dando, conforme o relato, sem o cumprimento das
obrigações legais relativas ao licenciamento ambiental. Em decorrência disso, teria ocorrido
274

inclusive vazamento de esgoto no córrego do Cedro vindo de um dos residenciais


recém-implantados. Além desses relatos, o grupo aproveita o pleito para denunciar outras
dificuldades relativas ao território na comunidade.
Assim, esses conflitos demonstram que existem diferentes maneiras de se estabelecer
relações com a terra, as plantas e o ambiente para além da plantation e seu modus operandi
vinculado à superexploração da força de trabalho, à segregação espacial e racial e à
domesticação da natureza via uniformização das paisagens e desenvolvimento de redes
tecnocientíficas. Apesar de ser este o modelo hegemônico, as reivindicações dos Quilombolas
do Cedro, das raizeiras e raizeiros do Cerrado e demais povos do Cerrado evidenciam a
existência de movimentos de resistência, que continuam afirmando a sua posição e
reivindicando direitos.

5. Considerações finais

Este ensaio buscou destacar a dimensão ecológica do ofício de raizeiras e raizeiros do


Cerrado, a partir da qual o grupo confere unidade à diversidade de perfis de raizeiros
identificados, além de se contrapor à destruição ambiental e de estabelecer um diferencial
para a candidatura a patrimônio cultural26. Dessa maneira, o bioma funciona como elemento
unificador, distintivo e legitimador do ofício.
Tal situação está relacionada ao debatido por Almeida (2017). Em seu estudo, ele
preferiu conceituar as populações tradicionais como grupos que lutam para conquistar uma
identidade pública conservacionista, utilizando o conservadorismo ambiental como arma
política e conquista de liberdade e direitos fundiários. Dessa maneira, o autor desnaturaliza a
concepção de populações tradicionais como aquelas que adotam comportamentos
necessariamente de preservação ambiental ou uso sustentável dos recursos (isso deve ser
analisado caso a caso), constituindo antes grupos ou coletivos dispostos a comprometer-se a
uma série de práticas conservacionistas, em troca de algum tipo de benefício e sobretudo de
direitos territoriais, fazendo uso político do mito do “bom selvagem ecológico”.

26
Comparado ao outro caso de candidatura a patrimônio cultural que envolve saberes e usos de plantas
medicinais, esta questão do peso e diferencial que o fator ambiental (bioma Cerrado) representa no
reconhecimento relativo às raizeiras e raizeiros fica ainda mais evidente.
275

Neste trabalho, observou-se ainda que o avanço do agronegócio no Cerrado acirrou


uma série de conflitos em torno da terra, uma vez que este processo de colonização interna
supervalorizou os empreendimentos agrícolas e os povos do sul e sudeste como
“pioneiros” ao postular que essas populações “levaram” a “modernidade” para a região,
desconsiderando os povos que já existiam no local. Para além dessas disputas, tal processo
de ocupação resultou no aplacamento da diversidade ambiental e cultural do Cerrado,
gerando uma série de efeitos ecológicos e sociais negativos, aos quais os grupos de
resistência tentam se opor. Tais grupos evidenciam assim que existem outros modelos de
gestão ecológica para além das plantations e sua prática emblemática da monocultura,
resistindo às adversidades e indicando futuros possíveis.

6. Referências

ABREU, Regina Maria do Rego Monteiro de. Os embates em torno da categoria


“conhecimento tradicional” e o tema dos “direitos coletivos”. Vivência: Revista de
Antropologia, v. 1, n. 42, 20 jun. 2014.

ALMEIDA, Luciana Schleder. Significados locais da colonização interna no norte mato-


grossense. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais [online], v. 23, 2021.

ALMEIDA, Mauro William Barbosa de. Populações tradicionais e conservação ambiental.


In: CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas e outros ensaios: Manuela
Carneiro da Cunha. São Paulo: Ubu Editora, 2017.

ARANTES, Antonio Augusto. Patrimônio cultural. In: SOUZA LIMA, Antonio Carlos.
(Org.). Antropologia e direito: temas antropológicos para estudos jurídicos. Rio de
Janeiro/Brasília: Contracapa/Laced/ Associação Brasileira de Antropologia, 2012.

BRASIL. Processo Administrativo n° 01450.010388/2006-15, referente ao registro como


Patrimônio Cultural do Brasil do Ofício de Raizeiras e Raizeiros no Cerrado (Farmacopeia
Popular do Cerrado). Brasília: Iphan.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. “Cultura” e cultura: conhecimentos tradicionais e


direitos intelectuais. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Cultura com aspas e
outros ensaios: Manuela Carneiro da Cunha. São Paulo: Ubu Editora, 2017.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Relações e dissensões entre saberes tradicionais e


saber científico. Revista USP, (75), 76-84, 2007.

COELHO DE SOUZA, Marcela Stockler. A cultura invisível: conhecimento indígena e


patrimônio imaterial. Anuário Antropológico [Online], I, 2010.
276

COMERFORD, John. Produzindo moralidades: dilemas, polêmicas e narrativas em terras


do “agronegócio”. In: WERNECK, Alexandre; CARDOSO DE OLIVEIRA, Luiz Roberto
(orgs.) Pensando bem. Ensaios de sociologia e antropologia da moral. Rio de Janeiro:
Casa da Palavra, 2014.

D'ALMEIDA, Sabrina Soares. Guardiãs das folhas: mobilização identitária de raizeiras


do cerrado e a autorregulação do ofício. 2018. Tese (Doutorado em Antropologia Social) -
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2018.

DIAS, Jaqueline Evangelista; LAUREANO, Lourdes Cardozo. (org.). Protocolo


comunitário biocultural das raizeiras do Cerrado: direito consuetudinário de praticar a
medicina tradicional. Turmalina: Articulação Pacari, 2015. Disponível em:
<https://absch.cbd.int/api/v2013/documents/E5195138-7269-5615-AD9E-
E25D19844AFB/attachments/202716/Protocolo_Comunitario-Raizeiras.pdf>. Acesso
em 09 de julho de 2022.

DIAS, Jaqueline Evangelista; LAUREANO, Lourdes Cardozo. (coord.). Farmacopéia


popular do Cerrado. Goiás: Articulação Pacari, 2010. Disponível em: <AVA ICMBio:
Midiateca>. Acesso em 09 de julho de 2022.

DOVE, Michael R. Plants, Politics, and the Imagination over the Past 500 Years in the
Indo-Malay Region. Current Anthropology Volume 60, Supplement 20, August 2019.

GALLOIS, Dominique Tilkin. Donos, detentores e usuários da arte gráfica kusiwa.


Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 55, n. 1, 2012.

HEREDIA, Beatriz; PALMEIRA, Moacir; LEITE, Sérgio P. Sociedade e Economia do


“Agronegócio” no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 25, n. 74, 2010.

HETHERINGTON, K. Beans before the law: Knowledge practices, responsibility, and the
Paraguayan soy boom. Cultural Anthropology, 28(1), 65-85, 2013.

MARQUES, Ana Claudia. "Negócios de Família". Em Percurso e Destino: Parentesco


e família no sertão de Pernambuco e Médio-Norte do Mato Grosso. (Capítulo 5) Texto
apresentado ao concurso de livre-docência, Departamento de Antropologia, Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo, 2015.

MITMAN, Gregg; HARAWAY, Donna & TSING, Anna. Reflections on the


Plantationocene (mesa redonda). Edge Effects, Center for Culture, History, and
Environment in the Nelson Institute at the University of Wisconsin-Madison, 2019.
https://edgeeffects.net/haraway-tsing-plantationocene/

MOORE, Sophie Sapp; ALLEWAERT, Monique; GÓMEZ, Pablo; MITMAN, Gregg.


2021. "Plantation Legacies". Em Edge Effects -Center for Culture, History, and
Environment in the Nelson Institute at the University of Wisconsin-Madison, 2021.
https://edgeeffects.net/plantation-legacies-plantationocene/
277

NOVAES, R. B. Gente de fora: vida e trabalho dos assalariados do café em uma região
de Minas Gerais. Editora E-papers, 2011.

PANTOJA, Mariana Ciavatta. “Conhecimentos tradicionais”: uma discussão conceitual.


In: X Simpósio Linguagens e Identidades da/na Amazônia Sul-Ocidental, VIII Colóquio
Internacional “As Amazônias, as Áfricas e as Áfricas na Pan-Amazônia”, 2016, Rio
Branco. Anais. Rio Branco, PPGLI/UFAC, 2016.

RUMSTAIN, A. Peões no trecho: trajetórias e estratégias de mobilidade no Mato Grosso,


n. 2, Editora E-papers, 2012.

RUMSTAIN, A, A Casa e o Mundo: família e trabalho na dinâmica das idas e vindas do


“mundo da vida” e da “vida no mundo”. - Rio de Janeiro: Tese de Doutorado, UFRJ,
2015.

SANTOS, Antonio Bispo dos. Colonização, Quilombos. Modos e significações. Brasília:


INCTI-UnB/CNPq, 2015.

SIMÃO, Lucieni de Menezes; RODRIGUES, Mariana Leal. Rede Fitovida: dez anos em
busca do Registro de Patrimônio Cultural Imaterial. In: TAMASO, Izabela;
GOLÇALVES, Renata de Sá; VASSALLO, Simone (Orgs.). A antropologia na esfera
pública: patrimônios culturais e museus. Goiânia: Editora da Imprensa Universitária,
2019.

TSING, Anna. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília:IEB


Mil Folhas, 2019.

VIEIRA, Rosa Cavalcanti Ribas. 2021. Óleo de palma, pessoas e casas na floresta do
Mayombe. Tese de doutorado. PPGAS/MN/UFRJ e EHESS, 2021.
278

Feitos e Fetiches: práticas colecionistas e a subjetividade expositiva no Museu de Arte


Indígena em Curitiba, Paraná
Tatiane Gayas

RESUMO

Este presente trabalho constitui-se de uma análise antropológica sobre a coleção de objetos expostas no Museu de
Arte Indígena de Curitiba, Paraná. Para tal, proponho uma análise sobre o processo de classificação dos objetos
musealizados neste espaço particular e que foram adquiridos a partir de práticas de colecionistas realizadas em
expedições pelo Brasil. Pretendo compreender as formas pelas quais este acervo foi construído, quais perspectivas
orientaram estas práticas e a produção dos discursos sobre a alteridade ao identificar as relações de poder- saber que
se fazem consolidadas no discurso expositivo. A pesquisa etnográfica aqui exposta tem como intuito olhar para o
caminho feito por esses objetos, as hierarquizações, assimetrias e dualidades de como eles estão sendo expostos e
quais narrativas estão sendo comunicadas. Longe de qualquer objetivo sobre conclusões e afirmações, o intuito
dessa pesquisa é abrir espaço para o debate de práticas colecionistas que deslocam objetos em espaços e tempos e
em quais discursos as instituições se apoiam nessas práticas expositivas, a pretensão não é de questionar o que é
arte, mas iniciar essa reflexão sobre que tipos de artes indígenas estão sendo expostas.

Palavras-Chave: colecionismo, museu, arte indígena.


279

MAI e Arte Indígena

Como foi explicado no início deste artigo, objetos de origem não europeia não se
classificam como obra de arte para os historiadores da arte, reflexo de um pensamento
eurocêntrico. Sendo assim, os objetos produzidos dentro de diferentes culturas eram por uma
arte europeia relegados à classificação de “arte primitiva”, que não se encaixava nos moldes
europeus de classificar obras de arte.
Se objetos indígenas cristalizam ações, valores e ideias, como na arte conceitual, ou
provocam apreciações valorativas da categoria dos tradicionais conceitos de beleza e perfeição
formal, como entre nós, por que sustentar que conceitualmente esses povos desconhecem o que
nós conhecemos como ‘arte’? (LAGROU, 2010).
É a incapacidade de compreender as variedades de se fazer arte que leva muitos
estudiosos de arte não ocidental, principalmente daquela chamada de “arte primitiva”, a
expressar comentários de que os povos dessas culturas quase não falam sobre arte o que, na
verdade, esses comentários significam é que esses povos não falam de arte como seus estudiosos
falam em termos de propriedades formais, de seu conteúdo simbólico, de seus valores afetivos, e
de seus elementos estilísticos (GEERTZ, 2018).
Imagino que uma das respostas para o questionamento proposto por Els Lagrou (2010)
vem da própria antropologia e da corrente evolucionista de pensamento que nomeava a cultura
material de povos aborígenes, africanos e ameríndios como “arte primitiva”. Essa “arte
primitiva” começa a ser vista em expedições antropológicas e catalogadas como artefatos
etnográficos. "Culturas" se tornam assim coleções etnográficas.

As aquisições desses objetos etnográficos são transformadas em arte pelos museus


ocidentais (quando não classificados são apenas excluídos) ou são compostos em coleções
etnográficas, essas coleções e exposições formam a identidade étnica, primitiva e pouco
evoluída sobre a cultura dos produtores daqueles objetos, criando assim um imaginário dos “sem
cultura” no ocidente (MATTHIAS, 2014).

Os objetos reclassificados como ''arte primitiva'' foram admitidos no museu imaginário


da criatividade humana, o discurso e as instituições da antropologia moderna construíram
imagens comparativas e sintéticas do Homem buscando imparcialmente por entre os modos de
280

viver autênticos do mundo, estranhos na aparência ou obscuros na origem (CLIFFORD, 1989).


Mas é infactível eximir a história da antropologia na construção desse imaginário do “Outro”
exótico, como coloca Tal Asad abaixo:

Antropólogos podem dizer que contribuíram para a herança cultural das


sociedades que estudaram através de um registro empático de formas de vidas
locais que, de outro modo, teriam se perdido para a posteridade. Mas eles
também contribuíram, algumas vezes indiretamente, para a estrutura de poder
representada pelo sistema colonial (ASAD, 1973).

Clifford (1989) afirma que toda apropriação de cultura, pressupõe uma posição temporal
e uma forma de narrativa histórica específicas. Juntar, possuir, classificar e avaliar sem dúvida
não se restringem unicamente ao Ocidente, mas em outros lugares essas práticas não precisam
estar associadas à acumulação ou à preservação, sendo assim a práxis de um colecionar cultural
tem como princípio as noções europeias de temporalidade e ordem.

Essa constante perda dos valores culturais forjada no contato e no aculturamento de


povos indígenas, que buscava inicialmente somente uma forma de dominação e subordinação
desses povos, era de tal forma autoritária e destrutiva que não permitia deixar rastros étnicos,
como a língua, costumes e rituais. A falta de lugar social para esses povos marginalizados pelo
Estado e ideologicamente alimentados pela religião dominante cristã, levou essas populações
para um deslocamento do lugar original para outro que seus dominadores queriam perpetuar
(TACCA, 2018).

Se por um lado o apagamento das histórias desses povos foi intenso e sistemático, por
outro havia o acúmulo de cultura material sendo exportada para Europa, promovendo, não as
memórias dessas culturas que foram saqueadas, mas sim do colonizador. Consagre-se assim a
entrada de objetos nos locais que chamamos de museus, que se tornam um espaço de
organização, classificação e exposição através de coleções desses objetos.

Observar exposições e a diferença delas dentro de mesmo museu é interessante para ver a
forma como os objetos são recategorizados e reclassificados, a maneira como são apresentados e
as relações propostas entre eles variam bastante e oferecem a possibilidade de o público atribuir
significados a eles objetos de diferentes maneiras considerando que eles sofrem uma
281

mudança drástica ao serem desconectados de uma vida cotidiana para então serem musealizados
(VINCENT, 2014).

Museus são universos e pontos de contato, como propõe James Clifford (2016) e cada
exposição é um universo recortado, impossível de ser aprendido em sua totalidade.
Considerando as elaborações anteriores neste presente artigo, descreveu abaixo uma análise e
reflexão minhas, dadas as impressões que obtive em uma visita ao Museu de Arte Indígena de
Curitiba (MAI). Essas compreensões são feitas não de um ponto de vista de crítica de arte, mas
sim de uma perspectiva antropológica de se pensar espaços expositivos, quando estes o fazem a
partir de coleções de arte indígena.

O MAI (Museu de Arte Indígena) foi inaugurado em 2016 em Curitiba, Paraná e está
localizado em uma área prestigiosa da cidade, porém fora das regiões onde há uma concentração
maior de museus. Seu acervo compõe aproximadamente quatro mil objetos, sendo mil deles
expostos em dois andares, são coleções de arte plumária, cestaria, máscaras ritualísticas,
adornos, instrumentos, utilitários e armas.

Importante colocar aqui que o MAI é um museu particular e para acessá-lo é preciso
entrar em um edifício comercial, o acervo vem de uma inicial coleção particular de sua então
proprietária Julianna Padolan que os adquiriu em formato de compra durante suas expedições
pelo Brasil onde teve contato com diversas etnias. Foi em 2009, na cidade de Clevelândia,
interior do Paraná, que o MAI é concebido então como espaço expositivo aberto ao público.
Julianna abre seu acervo particular.

O espaço atual onde o museu está localizado, desde 2016 na cidade de Curitiba, pode ser
considerado um lugar moderno, amplo e bem iluminado, mas não deixa de ter em sua estrutura
as características de um espaço comercial, no térreo, junto a recepção por onde entrei, há uma
pequena vitrine de objetos expostos para venda, são colares, pimentas e algumas cestarias.
282

Figura 01 – Fachada do Museu de Arte Indígena

Fonte: Site do MAI.

Uma escada em formato caracol desloca o visitante para o primeiro andar da


exposição, à medida que inicie a subida notei na parede, ao lado da escada, diversos retratos
de indígenas, o som era de água se movendo, de chuva caindo e animais na floresta, há uma
clara intenção cenográfica de que haja uma imersão do visitante.
283

Figura 02 – Espaço interno Museu de Arte Indígena

Fonte: Site do MAI.

Já no primeiro andar, mas antes de entrar no começo da exposição é possível identificar


um local que é usado para palestras e eventos. São bancos de madeira e redes de descanso
dispostos dentro de um espaço que muito se assemelha a uma oca.
284

Figura 03 – Espaço de eventos Museu de Arte Indígena

Fonte: Site do MAI.

Uma televisão e um microfone lutam esteticamente para se abrigar em um espaço


essencialmente feito de madeira. Noto que o aroma do ar mudou, é possível identificar notas
madeirados e picantes, que lembram talvez algo relacionado à pimenta. É um artifício olfativo
para manter a imersão proposta pela cenografia, conforme coloquei acima.

A museografia e a organização do espaço expositivo, utiliza-se de vários suportes e


linguagens que vão além da escrita, providenciando a circulação do corpo em um determinado
espaço onde haja uma proximidade com os objetos (GOLDSTEIN, 2021).

Essa é a diferença de uma narração estritamente escrita e outra que se utiliza de técnicas
visuais e espaciais para acessar os objetos expostos. E isso pode ser claramente percebido em
minhas visitas ao MAI, há uma intenção em se fazer do espaço um lugar de experiência. No
artigo sobre sua pesquisa de campo no Museu Quai Branly Nina Vincent (2014) traz uma
reflexão a partir de um pensamento crítico que James Clifford também faz sobre o Quais Branly,
e que se aplica às minhas reflexões sobre o MAI:
285

Os elementos que sugerem uma “fantasia primitivista”, como as paredes laterais em


vidro coberto por adesivo translúcido estampado de folhagens, as cores terrosas,
revestimento em couro, nichos em forma de caverna no corredor que corta o espaço
expositivo e o problema da pouca informação fornecida pelas legendas, que se
encontram muito distantes dos objetos e são quase ilegíveis naquela luz. James Clifford
(2007, p. 30, 31 apud VINCENT, 2014) o descreveu como um lugar em que “a
dominação da arquitetura sobre o conteúdo é extrema (VINCENT, 2014).

A partir do meu olhar de observação sobre MAI, é possível aplicar essa citação que Nina
Vicent (2014) faz de James Clifford (CLIFFORD, 2007 apud VINCENT, 2014) sobre a
“dominação da arquitetura sobre o conteúdo” pode ser identificada nas paredes com desenhos de
animais como araras e tucanos, no intuito de propor imersão na floresta por meio de aromas e
sons, o espaço educativo em formato de oca e feito madeira. Tudo isso coloca a cenografia
muito acima do conteúdo de curadoria e das informações sobre os objetos reforçando essa
“fantasia primitivista” (CLIFFORD, 2007 apud VINCENT, 2014) e os estereótipos enraizados
em nossas estruturas de pensamentos.

A exposição começa com um mapa do Brasil desenhado na parede, nele destacam-se as


etnias e os troncos linguísticos que existiam no país antes da colonização, é uma imagem
educativa e chama a atenção de quem inicia a visita, já ao outro lado, na parede em frente ao
mapa, há figuras ilustrativas desenhadas à giz e que fazem referências aos pássaros com
plumagem colorida junto um conteúdo explicativo sobre como são feitas as extrações de penas
para a arte plumária.

Os objetos expostos estão inseridos dentro de um cubo asséptico e recoberto com vidro, a
exposição é dividida por tipo de objeto e um texto curatorial propõem-se a contextualizar o
visitante sobre questões específicas que envolvem a produção desses objetos, a primeira é de
arte plumária. Nas paredes encontram-se informações das etnias que os produziram.
286

Figura 04 – Exposição Plumária Museu de Arte Indígena

Fonte: Site do MAI.

As legendas estão ao lado dos objetos, dentro do cubo de vidro e contam apenas com
informações básicas, como o nome do objeto em si, etnia a qual pertence, a procedência e as
dimensões. Não há quase nenhuma informação sobre os objetos, sobre a coleta, forma como
chegou até ali, e nem de quando foi adquirido pela proprietária do museu. De acordo com Nina
Vincent (2014) há diversas maneiras de inserir essas informações de contextualizações dos
objetos, como, por exemplo, placas, legendas, mapas, diagramas, catálogos, guias e
performances, ou estabelecer relações com outros objetos classificando-os com base nas
relações históricas, mas isso é ausente no MAI.

Com as mudanças ocorridas na própria antropologia e na interpretação dos objetos, os


museus também sofrem mudanças na forma de apresentá-los, sendo assim a contextualização
dos objetos, seu “uso original” e o conhecimento sobre a cultura na qual foram produzidos
passam a ser mais valorizados (VINCENT, 2014).

O MAI se apresenta como um museu de “arte indígena”, mas dentro de um pensamento


antropológico a classificação do espaço se enquadra como um museu de “arte etnográfica”. São
objetos comprados e coletados ao logo das expedições de sua proprietária, imagino que a ideia
de abranger como “arte indígena” tenha como proposta fazer um deslocamento, desvencilhando
esses objetos das práticas etnográficas de coleta colocando-os como objetos de arte, ao invés de
artefatos.
287

Figura 05 – Exposição Máscara Ritualísticas Museu de Arte Indígena

Fonte: Site do MAI.

Porém, a narrativa de museu de arte, ao invés de museu etnográfico (que é o que à


primeira vista o MAI se assemelha) não é clara. Os textos da curadoria, importantes aliados na
construção de narrativas propostas por museus, não refletem a ideia de um espaço para
promover a arte além do artefato, há pouco texto curatorial e o que existe é sucintamente
educativo sobre etnias e a classificação dos objetos por tipo. O papel do curador, daquele que
orienta a visualidade de uma exposição – sua estética – é de extrema relevância por materializar
as poéticas e políticas presentes nas exposições (VINCENT, 2014).
288

Figura 06 – Placas de identificação de objetos Museu de Arte Indígena

Fonte: Arquivo pessoal Tatiane Gayas

Além das problemáticas acerca das formas como os objetos são expostos, o que também
me chama a atenção são as falas da proprietária Julianna Padolan em uma entrevista concedida a
uma revista local de Curitiba, onde ela diz:

Eu sempre tive contato com arte e pedi a uma amiga, do Mato Grosso do Sul, que me
mostrasse algo bem de raiz deles e ela me convidou a ir até uma aldeia. Eu disse:
“Ainda existe índio?”. E ela ficou chocada. “Em que mundo você vive?”, me
perguntou. Como brasileira, fiquei muito envergonhada de não conhecer o que existe
de mais original no nosso país, que é a cultura indígena. Quando entrei na aldeia, fiquei
ainda mais impactada. Aí começou todo esse despertar em querer saber quais são esses
povos, onde eles estão, como vivem (PADOLAN, 2018).
289

Em outra parte da entrevista, Julianna afirma que: “desconstruir a imagem do “índio”


genérico e a ideia da cultura congelada são outros pilares do nosso trabalho. Eu e você
podemos ter um celular, mas ele não, ele nem precisa estar vestido” (PADOLAN, 2018). As
duas falas destacadas de Julianna não contribuem para um possível diálogo que visa reformular
a herança colonial (objetivo subjetivo do museu de arte indígena o qual é proprietária), pelo
contrário, ela fortalece o estereótipo do indígena “não evoluído”, do “exótico” acessível.

Figura 07 – Julianna Padolan

Fonte: Revista TOP VIEW

De forma contraditória à fala de sua proprietária, o MAI, em seu folheto de boas-vindas à


exposição, coloca que os pilares de nos quais o museu pretende trabalhar são: a desconstrução
da imagem do indígena genérico, ressaltando assim a diversidade cultural linguística e
geográfica das diversas etnias, desconstrução da ideia de “cultura congelada” na qual facilidades
do mundo contemporâneo não anulam a cultura e, principalmente trabalhar com atividades que
promovam o conhecimento e a valorização dos povos indígenas.
290

A falta de revisão entre a fala de Padolan e a proposta do MAI suscita uma narrativa
questionável, a forma como a proprietária coloca sua percepção sobre os povos originários,
reforça o estereótipo herdado de um processo colonial e, não coincide com a proposta do
discurso da promoção de alteridade do museu.

Questiono se é possível fazer uma separação entre a concepção da proprietária, que


também foi responsável pela coleta dos objetos expostos, em relação aos povos originários, da
proposta educativa orientada pelo MAI. É através de um olhar mais amplo sobre como o
próprio museu é concebido e organizado que me permite uma interpretação além daquilo que
ao qual se propõe a fazer em seus pilares, há portando uma desconexão entre a fala da sua
proprietária, o conteúdo informativo sobre a proposta do museu, o texto de curadoria e a
forma como os objetos são expostos. O espaço tem a intenção de ser um lugar educativo e
disruptivo, mas precisa de uma revisão narrativa e expositiva.

De acordo com Clifford (1988) é necessária uma maior autoconsciência histórica na


maneira de expor e ver os objetos não ocidentais pode fazer com que os modos como
antropólogos, artistas, e seus públicos, se refazem e colecionam o mundo, sejam ao menos
sacudidos e postos em movimento. Seria o MAI um espaço organizado como promoção
pessoal de sua proprietária por meio dos objetos indígenas ali expostos? Esse artigo se propõe
a falar de arte, mas acredito que a partir dele pode se desdobrar uma outra reflexão sobre a
coleção dos objetos, feita por Julianna Padolan e a forma como se opera essa disputa de
narrativas, entre aquilo que o museu se propõe a ser como um local de educação e das
controvérsias falas de sua proprietária.

As origens dos objetos e a coleção particular do MAI

Todo material nos museus, principalmente quando falamos em coleções etnográfica,


chegou lá através de um processo de coleta, de acordo com Susan Pearce (1994) distingue três
modos de acumulação de objetos:

- O que caracteriza os souvenirs, objetos que adquirem sua unidade de


coleção apenas a partir de sua associação com uma única pessoa e sua história de
vida,
- O que é considerado uma coleta fetichista. Essas coleções são conhecidas
não pelo objeto ou de onde deriva, mas pelo nome do seu proprietário ou
291

colecionador original e,
- O terceiro modo que são as coletas sistemáticas que não funcionam com o
acúmulo, como a coleta fetichista, mas pela seleção de alguns exemplos, destinados
a substituir todos os outros de sua espécie.

A história das coleções quando envolve arte/cultura, colecionador/colecionável em


relações assimétricas de colonizador/colonizado, é fundamental para uma compreensão da
maneira como os grupos sociais que inventaram a antropologia e a arte moderna apropriaram-
se das coisas exóticas, mostra como as coleções, em especial os museus etnográficos, criam a
ilusão da representação coerente de um mundo recortando os objetos de contextos específicos
e em seguida elaboram um esquema de classificação para guardar ou expor o objeto de forma
que suprima as histórias específicas de produção e de apropriação do objeto (CLIFFORD,
1988).

Isso podemos observar na forma como o MAI coletou e expôs seus objetos, há essa
ilusão proposta por Clifford de representação, mas os objetos são recortes de uma coleção
particular e, como não há uma trajetória clara de como e por que eles chegaram até ali, seu
contexto e sua história são sequestrados pela sua coletadora e posteriormente, colecionadora.

Analisando a trajetória dos objetos do MAI é possível classificar a coleção, de acordo


com Pearce (1994) como: “uma coleta fetichista”. Embora, haja uma disposição de colocar a
luz da elucidação nos objetos, há também uma história associada às suas coletas, que
subjetivamente estampam o pano de fundo do contexto do espaço expositivo.

Julianna coletou e colecionou esses objetos, não com o objetivo de criar uma coleção
etnográfica, mas como um acúmulo de objetos que materializam suas experiências. A
semelhança do colecionador com o acumulador não é óbvia, enquanto um acumula passiva e
acriticamente uma variedade heterogênea de coisas que acredita que serão úteis um dia, o
colecionador busca ativamente apenas certos tipos de objetos em que ele está interessado, se
apega e tende a usar a coleção para melhorar sua autodefinição (BAEKELAND, 1981).

O conceito de coleção distingue-se da acumulação, de amontoados e armazenados, a


coleção emerge para a cultura, visa objetos diferenciados que tem papel de troca, de
conservação, de comércio, de ritual social e exibição, esses são acompanhados de projetos e
incluem nesse jogo uma exterioridade social das relações humanas (BAUDRILLARD, 2002).
292

Houve assim, uma transição de postura da proprietária do MAI, que se deslocou de uma
acumuladora de artefatos de indígenas para uma colecionadora de arte indígena.

Quando jogamos luz nas coleções, James Clifford traz o exemplo de crianças, de
quando elas colecionam há algo revelador para a análise, a acumulação de carros em
miniatura, bonecos, pedras, conchas lápis, tudo isso somado a pequenos rituais faz com que
observamos as sutis ranhuras da obsessão do indivíduo de se apropriar do mundo, reunindo
coisas em torno de si transformando pequenos tesouros pessoais em algo público
(CLIFFORD, 1988). É na ausência de contextos e informações e, na presença de sua
proprietária em toda a história da coleção, que é possível identificar sua obsessão com os
artefatos indígenas ali expostos em tentativa de emergir um sentimento de posse sobre o que
aqueles objetos representam. De acordo com James Clifford:

A análise clássica do "individualismo possessivo" ocidental (1962) feita por C. B.


MacPherson traça o surgimento no século XVII de um eu ideal como possuidor: o
indivíduo cercado pela propriedade e pelos bens acumulados. O mesmo ideal pode
servir para as coletividades à medida que fazem e refazem seus "eus''
culturais…Aqui o colecionar está inevitavelmente ligado à obsessão, recordação
(CLIFFORD, 1988).

O que Clifford coloca acima é uma reflexão sobre essas extensões de “eus” que
surgem com a prática colecionista, do sujeito colecionador sendo representado pelo objeto
colecionado e do objeto colecionado sendo como parte também do colecionador.

A coleção de Julianna, depois de um acúmulo considerável englobando e articulando


uma prática fetichista, deixa então de estar dentro de sua residência particular para ser
apresentada ao público em seu primeiro espaço expositivo localizado em Clevelândia, interior
do Paraná, no ano de 2009. O destino do colecionador de o “Outro” na estante, passa para a
posição de o “Outro” acessível. O MAI é o tesouro pessoal de sua proprietária.

Outras formas de arte indígena

De acordo com Ilana Goldstein (2021): “artistas e curadores não indígenas têm
buscado aproximações com os povos originários”. Um exemplo é a curadoria de Moacir dos
Anjos de “A queda do céu”, exposição organizada no Paço das Artes em São Paulo, no início
de 2015, em referência ao livro de mesmo nome publicado por Davi Kopenawa e o
antropólogo Bruce Albert. Ao contemplar o universo ameríndio, iniciativas como essas
293

aumentaram a sensibilidade para o trabalho de artistas indígenas em espaços institucionais


antes dominados exclusivamente pela arte ocidental, reforça Goldstein (2021).

Penso que é uma estratégia sim, de insurgência e de reação, como eu digo também,
um direito de resposta a um projeto de arte brasileira e a um processo histórico da
arte brasileira onde não fomos incluídos e já que não podemos voltar no tempo com
uma máquina do tempo para reconstruir essa história da arte podemos agora
construir uma historiografia a da arte contemporânea (BANIWA, 2021).

Movimentos para evidenciar uma omissão ocorridas em narrativas já são presentes no


Brasil. A Pinacoteca de São Paulo adquiriu, pela primeira vez, em 2019, obras de dois artistas
indígenas contemporâneos: Feitiço para salvar a Raposa Serra do Sol, de Jaider Esbell, do
povo Makuxi de Roraima; Voyeurs, menu, luto, vitrine; O antropólogo moderno já nasceu
antigo; e Enfim, civilização, de Denilson Baniwa, artista do povo Baniwa do Amazonas. Em
31 de outubro de 2020, a Pinacoteca de São Paulo inaugurou a exposição de longa duração de
seu acervo ao mesmo tempo que abriu a primeira exposição dedicada à arte dos povos
originários, Vexoá. A 34ª edição da Bienal de São Paulo, que começou em setembro de 2021,
abriu com

coloniais enraizados na história e na cultura dita brasileira”.

Figura 1
294

Entradas da 34ª Bienal de São Paulo (Foto: Amazônia Real)


295

Figura 2

Primeira Missa, 2019, Denilson Baniwa. Fonte: Catálogo da 29° Edição do programa de exposições
CCS.

Figura 3

Ẽpry vẽnkhãpóv (Encruzilhada), 2022, Luiz da Silva Kaingang e/ and Joanilton da Silva Foság,
Coletivo Kókir. Foto: Alexandre Mazzo/Ziviani Fotografia
296

Conclusão

Ao repassar por todos os pontos trazidos nesses textos, sejam por percepções e
interpretações minhas ou pelo diálogo com autores, um ponto que fica latente é de qual versão
da história da arte indígena nós vamos ou devemos contar? Quando digo nós, digo de um lugar
de branquitude, de crítica ao eurocentrismo nas artes e na visão de belo que é imposta por uma
cultura ocidentalizada.

A contextualização de colecionismos e da produção de artefatos, é uma fundamentação


teórica necessária sobre essas práticas, porque é a partir disso que nos movemos sobre a história
desses objetos, a sua coleta envolta em ausências. Mas, a reflexão proposta é de uma arte além.

Latour (2004) vai questionar o que é informação e o que os membros de uma expedição
devem levar na volta para que o centro possa fazer uma ideia de outro lugar, ao coletar plantas,
objetos e outras coisas que possam teoricamente representar um lugar não acabam apenas
simplificando sua integralidade? Ao transpor objetos, colocando-os em exposição, o MAI não
estaria também reduzindo a imensa complexidade de inúmeros povos indígenas? Um gabinete
de curiosidades, um relato de viagem, um volume de pranchas ornitológicas, devem ser tomados
como a ponta de um vasto triângulo que permite graus insensíveis. (LATOUR, 2004).

Para Clifford (1989) contar essas outras histórias, histórias locais de sobrevivência e
emergência da cultura, precisamos resistir aos hábitos da mente e sistemas de autenticidade
arraigados em nós, é necessário um exercício de suspeita da tendência quase que automática de
perpassarmos os povos indígenas e os objetos não-ocidentais.

Se a proposta do MAI é ser um Museu de Arte Indígena, como o próprio nome diz, há
uma desconexão entre o seu discurso e a agência dos objetos expostas. O papel do curador é
uma prática que propõe uma contextualização da exposição, isso nos permite ver e compreender
essas exposições e nos relacionar com ela de forma mais aprofundada, no caso do MAI, uma
curadoria mais apurada evitaria o rótulo da “arte primitiva” e da percepção de coleção
etnográfica. A curadoria nunca é neutra, ela borra as fronteiras e assume posicionamentos
promovendo encontros entre objetos e visitantes.

A descentralização dessa prática, colocando um indígena no papel indispensável de


curador enriqueceria o discurso narrativo irrompendo mais vozes nos discursos museológicos e
assim, por consequência, mais agências e efeitos nas experiências com a arte indígena, como o
297

que foi proposto pelo MUPA (Museu Paranaense) com a curadoria de bolsistas indígenas que
propõe uma nova perspectiva sobre o próprio acervo etnográfico do museu. Artistas trabalham
com a capacidade de seu público, capacidade essa de ver, ouvir, sentir, tocar e às vezes até de
sentir o gosto e, embora alguns elementos destas capacidades sejam inatos, são ativados e
passam a existir como experiência de vida, sobre as quais se possa pensar ou até mesmo reagir
(GEERTZ, 2018).

Não é uma questão sobre não aprofundar a discussão de “arte x artefato” ou da


relevância dos objetos indígenas e suas agências, mas sim promover lugares e espaços para
que a arte indígena ocupa além do objeto etnográfico, mesmo no caso do MAI onde essa
classificação não é evidente, há uma leitura etnográfica sobre a aquisição dos objetos e sobre
a formo como eles estão expostos. Para uma exposição mais simétrica, a saída se faz através
de artistas e curadores indígenas e da viabilidade de lugares propensos a exibir essas obras de
arte.

REFERÊNCIAS

ASAD, Talal. Introduction. In: Anthropology and the Colonial Encounter. New York:
Humanities, 1973. p. 9-19. (tradução disponível na Ilha –Revista de Antropologia:
https://doi.org/10.5007/2175-8034.2017v19n2p313)

BAEKLAND, Frederick. [1982]. “Psychological Aspects of Art Collecting’. In: Pearce, S. (


ed.) Interpreting Objects & Collections. London & NY: Routledge, 1994, pp. 205-19.

BANIWA, DENILSON: https://www.behance.net/denilsonbaniwa

BANIWA, Gersem Luciano. Antropologia colonial no caminho da antropologia


indígena. Novos Olhares Sociais, v. 2, n. 1, p. 22-40, 2019.

BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos. 4ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2009.

BIENAL DE SÃO PAULO. Disponível em: http://www.bienal.org.br/post/7510

CLIFFORD, James. 1988. “Cap. 10. “Colecionando Arte e Cultura”, em The predicament
of culture. Twentieth-Century Ethnography, Literature, and Art. Massachussetts: Harvard Un.
Press. Pp. 215-252 [Tradução ao português em Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, 23, 1994].

FAZ ESCURO MAS EU CANTO: 34ª Bienal de São Paulo estreia com mais de mil obras.
Disponível em: https://viagemegastronomia.cnnbrasil.com.br/noticias/faz-escuro-mas-
298

eucanto-34a-bienal-de-sao-paulo-estreia-com-mais-de-mil-obras/

GEERTZ, Clifford. Arte como um sistema cultural. In: O saber local. Petrópolis: Vozes,
2018. p. 98 – 124.

GOLDSTEIN, Ilana. “Comentário II. Um olhar antropológico sobre a curadoria da


agência dos objetos e sua artificação”. Anais do Museu Paulista, vol. 29, 2021.
KOPYTOFF, Igor. [1986]. “A biografia cultural das coisas: a mercantilização como
processo”. In: APPADURAI, Arjun (ed.). A vida social das coisas. As mercadorias sob uma
perspectiva cultural. Niterói: EdUFF, 2008, pp. 143-178

LAGROU, Els. Arte ou artefato? Agência e significado nas artes indígenas. PROA: Revista
de Antropologia e Arte, n. 2, 2010.

LATOUR, Bruno. 2004. Redes que a razão desconhece: laboratórios, bibliotecas, coleções.
In: André Parente (org.). Tramas da rede: novas dimensões filosóficas, estéticas e políticas da
comunicação. (Trad. Marcela Mortara) Porto Alegre: Sulina, pp.39-63.

MATTHIAS, Ronaldo. Antropologia e Arte. São Paulo: Claridade, 2014.

MUSEU DE ARTE INDÍGENA DE CURITIBA. Disponível em:


http://maimuseu.com.br/site/acervo_mai/ Acesso em 10 de mar de 2023.

MUSEU PARANAENSE ABRE EXPOSIÇÃO “MEJTERE”, COM CURADORIA DE


INDÍGENAS. 2023. Disponível em:
https://www.plural.jor.br/noticias/cultura/museu-paranaense-abre-a-exposicao-mejtere-
comcuradoria-de-indigenas/

PADOLAN, Julianna. Como Julianna Podolan Martins criou, com recursos próprios, um
dos museus mais importantes de Curitiba. Entrevista concedida a Revista Top View,
Curitiba, Paraná, dezembro, 2018. Disponível
em:https://topview.com.br/poder/entrevista-julianna-podolan-martins/ Acesso: 22 dez. 2022.

PEARCE, Susan. “Collecting reconsidered” In: Interpreting objects and collections.


London & New York: Routledge, 1994.

PINACOTECA DE SÃO PAULO, Acervo. Disponível em:


https://pinacoteca.org.br/programacao/exposicoes/pinacoteca- acervo/

QUEIROZ, Cristina. Conquista de território. Diálogo entre a antropologia e as artes


impulsiona a inserção de artistas indígenas no cenário museológico. Disponível em:
https://www.nexojornal.com.br/externo/2021/04/05/Conquista-de-territ%C3%B3rio

ROCHA, Marcelo Garcia. Arte Indígena Contemporânea: entrevista a Denilson


Baniwa. Cartema, v. 9, n. 9, p. 62-71, 2021.
TACCA, Fernando. A imagem, a alma e o pó. Jornal da Unicamp, 2018. Disponível em:
https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2018/01/17/imagem-alma-e-o-po Acesso em 2
299

mar 2023.

VINCENT, Nina. O Museu do Quai Branly e suas exposições: “Objetos etnográficos”,“arte


primitiva” e propostas curatoriais. Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, v. 11, n.
1, 2014.
300

Travessias (pós)identitárias: notas em busca das fissuras possíveis


ewa nïara1

Laroye Exu! Exu é mojubá!


Laroye Pombagira! Lebara é odara!
Patakori Ogum! Ogunhê!

Resumo
Esta proposta de ensaio vem em movimentos autoetnográficos para refletir sobre questões que perpassam a
minha vivência de negridão e travecagem. Traçando delimitações da existência dentro destas categorias
enquanto identidade re/apresentada pela minha corpa socialmente, e também traçando rotas de fuga das mesmas,
com a compreensão de que propostas identitárias são limitadas por natureza. Ser vida ultrapassa as fronteiras. O
mistério da vida está na infinitude. Perpasso por epistemologias negras e travestis, principalmente, como
embasamento para minhas fruições antropológicas, seguindo por veredas artísticas e espirituais que se anunciam
em minha intimidade. Nada obstante, esta escrita não é uma tentativa de findar ideias e conhecimentos, e sim de
deixar rastros no mapa da retomada que se desenha em frente aos meus olhos, criando nós de vida nas frestas
ocas da colonialidade. Uma apreciação do pergaminho do passado–presente–futuro que se desenrola e se mostra
em partes, grafado no tempo espiralar da memória. Sigo bricolando conhecimentos para encorpar uma
epistemologia travesti preta, pois urge transnegrecer o meio acadêmico.

Palavras-chave: identidade, decolonialidade, transmutação

Introdução
Ultimamente, muito me pergunto em qual sentido estou construindo minha
identidade. Seja ela uma identidade já nomeada ou não. Hoje me admito enquanto preta,
travesti e favelada. Um dia pensei nessas identificações enquanto uma matéria rígida que se
edifica linearmente, para cima, almejando o céu e que não para de crescer.
Solidifica.
De fato, não sou nenhuma dessas categorias identitárias, mas também que nenhuma
delas sou eu por inteira. Não são capazes de encapsular uma vida, e nem deve ser o objetivo
de qualquer ser pulsante ser reduzida a uma delas. Pois, para além da sua inegável força
política e, de certa forma, necessidade de demarcação, elas não representam muito além de
uma resposta ao desgosto colonial e sua sistematização. O desafio aqui fica sendo admitir as
identidades sem torná-las fixas, mas também sem esvaziar seus sentidos, considerando que os
efeitos das suas presenças podem ser sentidos interna e externamente na vida de cada
indivíduo. De que forma eu posso não ser capturada, mas também não ser minha própria
1
Artista transmídia, pesquisadora y arte-educadora. Mestranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ) e bacharela em Design-Moda pela Universidade Federal do
Ceará (UFC). Makumbeira, filha do Abassá de Omolu e Ilê de Iansã.
301

capturadora? Como se dar o reconhecimento do posicionamento crítico, sem se engessar nas


identidades? Como estar nos espaços enquanto “ato provocador” e de “insubordinação
política”?

Do trauma à rebeldia
Não estamos produzindo taxonomias conhecidas
[Pedra Silva]

Há um estado de dupla consciência ao qual o indivíduo negro é posto a


esforçadamente estar para habitar a modernidade, assim como Paul Gilroy (2001) afirma em
“O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência”, que existe uma pressão social para se
encaixar nas identidades pré-fixadas e validadas no contexto, até mesmo as que são tidas
como inferiores nas pirâmides sociais, apontando “a labuta pelo absurdo brutal da
classificação racial que deriva de — e também celebra — concepções racialmente exclusivas
de identidade nacional, da qual os negros foram excluídos, ora como não-humanos, ora como
não-cidadãos” (GILROY, 2001, pp. 41).
Um ponto que me chama a atenção nesta citação são as categorizações enquanto
não-humanos e não-cidadãos, pontos que debato com outros vieses noutro texto2, publicado
nos anais da 33ª Reunião Brasileira de Antropologia, no qual escrevo sobre a violência do
processo civilizatório amparando na cis/hetero/branquitude na desumanização, a articulação
da burocracia no genocídio sistemático das outridades e o papel da biomedicina na
manufatura de narrativas binárias, que classificam identidades marginalizadas dentro da
antinaturalidade/anormalidade/perigo.
Gilroy segue a dar pistas interessantes nos estudos raciais e de identidade, como
quando coloca a ocupação desse espaço de consciência dupla também enquanto uma ação de
insubordinação política — ato provocador, resistência —, o que entendo como demarcação
da agência dos indivíduos negros, e como indícios de rotas de fuga da plantation, que podem
até não quebrar as algemas brancas3 por completo, mas creio ser um respiro quilométrico em
direção à liberdade.
Uma dessas rotas de fuga apontadas pelo autor é a arte, posicionando a arte negra
enquanto um demarcador da identidade racial. Aqui a exemplo do hip-hop, que ao seu ver é

2
nïara, ewa. Refletindo transvestigeneridades negres-natives no cis-tema patriarcal capitalista
supremacista branco imperialista. In: 33ª Reunião Brasileira de Antropologia, 2022. Disponível em:
<http://www.portal.abant.org.br/evento/rba/33RBA/files/1661462420_ARQUIVO_b94fc5c26ff1fdb38aaa
bdd8cb283fc6.pdf>. Acesso em: 06 de dez. de 2022.
3
ALMA no olho. Zózimo Bulbul. Estúdio de Mixagem: Laboratório Imagem Líder Rio, Rio de Janeiro, RJ,
1973. curtametragem (12 min.), 35 mm, P&B.
302

uma cultura símbolo de autenticidade racial.

Para os descendentes de escravos, o trabalho significa apenas servidão, miséria e


subordinação. A expressão artística, expandida para além do reconhecimento
oriundo dos rancorosos presentes oferecidos pelos senhores como substituto
simbólico para a liberdade da sujeição torna-se, dessa forma, o meio tanto para a
automodelagem individual como para a libertação comunal. Poiésis e poética
começam a coexistir em formas inéditas — literatura autobiográfica, maneiras
criativas especiais e exclusivas de manipular a linguagem falada e, acima de tudo, a
música. As três transbordaram os vasilhames que o estado-nação moderno forneceu
a elas (GILROY, 2001, pp. 100)

Quando como Audre Lorde (2019) escreve sobre a sua forma de resistir através da
escrita, que a “poesia não é um luxo”, e que escrever é uma forma de se reconhecer e contar a
própria história, bem como almejar os sentidos da liberdade. Denotando que a poesia — e me
atrevo a dizer a arte — é um espaço muito caro para as corpas e subjetividades
subalternizadas.

Os patriarcas brancos nos disseram: penso, logo existo. A mãe Negra dentro de nós
– a poeta – sussurra em nossos sonhos: eu sinto, portanto eu posso ser livre. Poesia
cunha a linguagem para expressar e empenhar essa demanda revolucionária, a
implementação daquela liberdade (LORDE, 2019, pp. 47).

Neste espaço de ampla difusão das narrativas coloniais e escassez de histórias


distantes da violência, existe uma vontade imensa de se rebelar contra os projetos de morte e
esquecimento, pois a “perda dá origem ao anseio e, nessas circunstâncias, não seria
exagerado considerar histórias como uma forma de compensação ou mesmo como
reparações, talvez o único tipo que nós iremos receber” (HARTMAN, 2021, pp. 109). O que
me traz à rebeldia de esperançar a despeito das tribulações.

Rebeldia: o desejo ávido por um mundo não governado pelo senhor, pelo homem ou
pela polícia. O caminho errante tomado pelo enxame sem líder em busca de um
lugar melhor que aqui. A poesia social que sustenta os despossuídos. Rebelde: o
movimento desregulado da deriva e da errância; permanências sem um destino fixo,
possibilidades ambulantes, migrações intermináveis, debandada e fuga, locomoção
negra; a luta diária para viver livre. A tentativa de escapar à captura pela não
acomodação. [...] Rebelar-se: vagar, não ter amarras, ficar à deriva, vadiar, errar,
navegar, deambular e buscar. Reivindicar o direito à opacidade. Atacar, se revoltar,
recusar. Amar o que não é amado. Perder-se para o mundo. É a prática do contrário
social, o solo insurgente que permite novas possibilidades e novos vocabulários; [...]
É um recurso queer da sobrevivência negra. [...] A rebeldia é uma contínua
exploração daquilo que poderia ser; uma improvisação com os termos da existência
social, quando esses já foram ditados, quando há pouco espaço para respirar, quando
você se vê condenada a uma vida de servidão, quando o lar da servidão assoma em
qualquer sentido que você vá. É a infatigável prática de tentar viver quando você
nunca foi destinada a sobreviver (HARTMAN, 2022, pp. 241 e 242).
303

Ainda que as problemáticas do dia a dia não se desfaçam, acabo por concordar com a
arte como um espaço de escape, no qual é possível visitar ou até mesmo habitar as rupturas
do cis-tema colonial, e quiçá realizar os reparos necessários, se não na estrutura, em mim
mesma. Encontrando o verdadeiro, o bom e o belo em tudo aquilo que me foi dito, e é
constantemente relembrado como matável em minha sujeita.

A arte é a força de fazer a realidade dizer o que ela não teria conseguido dizer por
seus próprios meios ou, em todo o caso, o que ela perigava deixar voluntariamente
em silêncio (...) exijo um outro centro do mundo, outras desculpas para nomear,
outras maneiras de respirar… porque ser poeta, hoje em dia, é querer, com todas as
suas forças, com toda sua alma e toda sua carne, face aos fuzis, face ao dinheiro que
também se torna um fuzil, e sobretudo face à verdade recebida, sobre a qual nós,
poetas, temos autorização de mijar, que nenhum rosto da realidade humana seja
empurrado para baixo do silêncio da História (TANSI, 1985. In: BONA 2020, pp.
3).

Obviamente que ainda que um caminho ou possibilidade palpável, se entregar


aprender a se nomear e se dedicar à arte, seja enquanto prática de auto(re)conhecimento ou
mesmo num contexto profissional, não significa necessariamente fugir por completo das
amarras constitutivas da sociedade em que vivemos, assim como Castiel Vitorino Brasileiro
(2022) nos comunica:

A colonialidade instaura uma realidade na qual as relações das pessoas retintas com
o sangue são desenvolvidas a partir da violência racial. Nesse contexto de
plantation brasileira, existe o sadismo da aniquilação e tortura para com as pessoas
negras e indígenas, que orienta até mesmo a agenda nacional de arte (visual,
performance, teatral e cinematográfica), que passa a defender, comissionar e
alimentar a reencenação da dor racial como uma prática revolucionária, antirracista
e até mesmo “decolonial”; uma série de artimanhas com a linguagem portuguesa, a
fim de garantir à branquitude seu lugar de supremacia. Trata-se de uma camada
deste racismo contemporâneo desenvolvido com o capitalismo neoliberal e que
marca um novo momento de compra e venda da vida negra (BRASILEIRO, 2022,
pp. 17 e 18). Sim, tornar-se negra/o não nos descaracteriza dessa ontologia que nos
violenta, a modernidade. E não defendo uma certa consciência racial amparada na
primazia da cognição, porque a racialização negra é complexa e atua em todos os
níveis vitais organizados e descritos pelas psiquiatrias, psicanálises, antropologias;
consciência, inconsciência, intuição, criatividade. Esses níveis, ou camadas, não
existem como um fato universal, são antes a Forma que a modernidade escolheu
para organizar/nomear os mistérios da espécie Homo Sapiens (BRASILEIRO, 2022,
pp. 23).

Deste modo, passo a entender que a autonomeação e a construção individual das


subjetividades identitárias podem me servir enquanto refúgios, mas também enquanto um
caminho que convidam à travessia. Preciso me lembrar (e ser constantemente lembrada pelos
tensionamentos) que nenhuma caixa identitária servirá para definir completamente minha
existência e nem de nenhuma outra que se pareça comigo. Tais definições hoje em dia me
aparecem muito mais como águas a serem singradas.
304

Estar dedicando meu tempo de vida e toda a labuta para expressar ideias de mundo/s
através da arte é extremamente reparador. Não obstante, sei que ao apresentar essas
fabulações, abrir meus processos artísticos e participar dos circuitos de arte não significam
apenas emancipação para minha corpa e labor, mas também atrai os processos de
comodificação das minhas perspectivas e do que/m represento. Ao refletir sobre essa relação,
Jota Mombaça (2020) insiste que não é uma questão apenas de agência. Não está na simples
escolha entre fazer/não fazer ou participar/não participar, principalmente considerando todos
os processos de extorsão pelo qual as identidades marginalizadas continuam a passar.
Sigo me perguntando como retomar a agência sobre mim da qual fui despossuída em
prol das classificações da raça, do gênero e outras categorizações, mas também de forma a
me desobrigar de resolver os problemas criados pela cisbranquitude, evitando recair nas
mesmas armadilhas. Ainda por cima, me desfazendo das ferramentas de opressão que me
foram ensinadas, e que parecem não apenas tentadoras, mas por tantas vezes necessárias para
a minha própria sobrevivência no cis-tema.

dissolver ficções de poder.


reparar as rupturas ontológicas.
fertilizar e arar a terra para a fruição da vida.
unir potências confabulativas no encontro consigo.
Transcestrais do porvir
Deu meia noite
Era quase meio dia
Xica Manicongo que destrave sua língua
A saia rodava e sua boca remexia
Que a contradição nos banhe com sua feitiçaria
[Linn da Quebrada;
Castiel Vitorino Brasileiro (composição)]

Me entendo enquanto uma travesti. Sou uma travesti, é assim que me declaro. Ao
mesmo tempo que me entendo enquanto uma mulher. Ao meu ver, as duas noções não são
necessariamente as mesmas, ainda que no meu caso, minha mulheridade esteja inscrita na
minha travestilidade, assim como minha travestilidade está inscrita na minha travestilidade.
Ser travesti não me faz mais ou menos mulher, da mesma forma que ser mulher não me faz
mais ou menos travesti. São duas partes da minha (in)constância, da minha pessoa e da minha
identidade. Essas partes se amparam uma na outra e se retroalimentam.
Por que me admito mulher? Pois acredito que a mulheridade, que mulheres são seres
múltiplos. Diferentemente do homem/macho, pois vejo a masculinidade como geralmente
305

unilateral e pouco dimensionada para ter muitas camadas. Então, minha referência é de
mulheres, que amplamente falando e abrangendo diferentes sociedades, estão nesse processo
de retomada de poder para se conhecer mais a fundo, se compreender emocionalmente e se
constituir enquanto uma identidade complexa de sentidos. Por isso também, desde pequena
me identifiquei com a feminilidade e a mulheridade. Sendo que só mais a frente fui ter acesso
à possibilidade da travestilidade, e consequentemente passei a tentar compreender o que é ser
uma travesti e o que me faz de mim uma delas. Estamos debatendo gênero e estou seguindo a
proposta de não continuar no binarismo de poder apenas ser homem ou ser mulher. Entendo o
gênero como algo altamente mais fluído do que a cisgeneridade pode conceber, logo a
proposta binária de gênero me esmorece, pois acredito no poder da transmutação.
Sobre a travestilidade, especificamente, mas também sobre os gêneros que se
constituem fora da binariedade. Atualmente venho me deparando com registros de diversas
sociedades onde tais identidades se apresentam e possuem papéis sociais variados. A
exemplo, as Māhū na Polinésia Francesa e no Havaí; as Muxhe e Biza'ah nas culturas
zapotecas na região de Oaxaca, no sul do México; Kimbandas4 no Reino de Ndongo, hoje
conhecida como Angola; Dois-espíritos em comunidades nativas da América do Norte; as
Gallae ou Gala na Mesopotâmia e as Hijras na Índia.
Identidades encapsuladas na modernidade dentro da transgeneridade enquanto um
termo guarda-chuva ao mesmo tempo que foram todas condenadas pela colonialidade. De
forma alguma estou tentando cometer anacronismos com termos como “gênero”,
“transgeneridade”, “androginia”, dentre outros usados aqui, pois isso seria novamente
redutor. Então me afasto da reificação que tais categorias trazem para apresentar elos entre os
entendimentos atuais no debate e registros históricos pré-colonização.
Vejo exemplos de sociedades altamente complexas, povos nativos de suas regiões que
construíam suas formas de existência e percepções de “gênero” de maneiras muito além do
binarismo imposto. Tal qual o povo Dogon, nativos que ocupam a Falésia de Bandiagara, no
Mali. Que em sua cosmogonia acreditam que Amma, a divindade suprema representada
como um ser com seios e pênis, criou o mundo e os humanos a partir de gêmeos
“andróginos”, chamados de Nommo e Ogo. Enquanto isso, os Bambaras, que vivem na
região que compreende os países do Mali, Guiné, Burkina Faso e Senegal, no oeste de África,
acreditam em outras entidades também descritas com características “andróginas”, o ser
criador Ngala, que se relaciona com Faro, que faz crescer os frutos (OLIVEIRA, 2019).
Entre os nagôs, a divindade criadora do mundo é orixá Obatalá, ser sem identidade de

4
Termo quem vem da língua Mbundu, com significado de “curador”, “curandeiro”, “xamã”, “quem se comunica
com o além”.
306

gênero definida e vista como “andrógina” ou “hermafrodita” por em determinado momento


ter se fundido com uma outra orixá, Odudua. Além disso, outre orixá, Oxumarê, que tem seu
culto assentado originariamente na cultura Daomé, na região centro-sul de África, e que
assume formas interessantes para entendermos gênero entre as entidades. Ainda que
comumente referide como uma energia masculina e usando pronomes masculinos, pelo
menos no culto afro-brasileiro, os ìtan5 falam de Oxumarê, conhecido por ser orixá do
arco-íris, assume forma masculina metade do ano e feminina na outra metade, enquanto em
outras oralidades, assume forma masculina em uma parte do ano e na outra a forma de uma
cobra colorida como o arco-íris. Esta entidade está altamente ligada ao poder da transmutação
por conta das suas características de assumir diferentes formas, além da sua ligação com as
simbologias que o animal cobra carrega e os sinais que o arco-íris representa.
Na Antiga Mesopotâmia vemos o exemplo das Gallae (ou Gala), que foram criadas
para serem sacerdotisas do culto de Inanna — Rainha do Céu, e deusa do sexo, da guerra e da
justiça —, papel exclusivamente feminino. O interessante nesse culto, é que mesmo as
sacerdotisas que possuiam o sexo assinalado como masculino, passavam a assumir
identidades e nomes femininos, através das roupas e dos gestos quando se juntavam ao
sacerdócio. Passavam a cantar em um dialeto exclusivamente das mulheres utilizado para
traduzir os ensinamentos das divindades femininas. Para todos os efeitos sociais, assumiam o
devir mulher, estando profundamente ligadas ao cuidado das pessoas e sendo membros
respeitados da comunidade. Realizando os cantos, lamentações, rituais de luto, presidindo
cerimônias religiosas e curando e cuidando dos doentes e pobres. Isto se dava também por
acreditarem no poder da transformação da deusa Inanna, como mostram alguns dos cantos
que foram transcritos e achados na cidade-estado de Ur. Lá foi encontrado um cilindro datado
do Século XXIII a.C., com escritos de Enheduanna, alta sacerdotisa do culto de Inanna, que
escreve um hino em culto à deusa onde fala dos seus poderes: “Destruir, criar, arrancar,
estabelecer [os poderes] são seus, Inanna. / Transformar um homem em mulher e uma mulher
em homem [o poder] é seu, Inanna” (DANIELS, 2021, tradução nossa).
Tudo isso foi — e continua — sendo extensivamente apagado pela colonialidade e o
trauma do esquecimento. Por estes motivos, ainda que me admita uma mulher como qualquer
outra, tento me posicionar distante do conceito insípido do que é ser mulher inventado pela
Europa. A inexistente e idealizada “mulher de verdade”, afinal penso que se dizer uma
“mulher de verdade” por ter nascido com vagina ou mesmo obtê-la posteriormente, significa
apenas que se acredita/ou suficientemente na ficção de poder para seguir os moldes

5
As histórias dos Orixás, relatos míticos que acontecem em registros orais passados de geração em geração.
Muitos foram adaptados em versões escritas.
307

insustentáveis do que é ser essa mulher na sociedade ocidental. Então acredito muito mais
que existem muitas mulheres, diferentes mulheridades e formas de devir mulher no mundo.
Em outras sociedades são as nossas que cuidam das crianças, sendo as responsáveis
por educar as crianças de uma forma holística. As nossas são as curandeiras. São as nossas as
divinas.
As nossas são as anciãs que viram grandes oráculos. São as nossas as que constroem
templos onde as pessoas vão porque acreditam que as nossas preces são ouvidas mais rápido
pelas divindades.
Nós somos as professoras. Nós somos as feiticeiras. Nós somos as iyalorixás. Nós
somos as sacerdotisas. Nós somos as curandeiras. A gente tem ciência, tem axé, tem o poder
do conhecimento, da feitiçaria, do cuidado, da kura. Poderes que não se esquecem, grafados
na nossa corpa-matéria e enraizados no próprio nó da vida.
Em entrevista, Lina Pereira (2020), também conhecida como Linn da Quebrada, diz
que “a palavra ‘Deus’ é composta de ‘eus’. Deus tem ‘eu’ em si. E eu só posso acreditar em
um Deus que também acredite em mim” (PEREIRA, 2020). Então nos entender enquanto
divinas é muito mais uma lembrança, memórias de saberes cosmogônicos, alembramentos
dos giros na kalunga e de todas as vezes que precisamos morrer para ressuscitar.
Me deparo com a possibilidade de me entender enquanto uma parte divina do mundo.
Assim, dentro da espiritualidade e das minhas re/conexões ancestrais, encontro possibilidade
de estar viva no aqui-agora. Giro na makumba para um dia me encantar e ser uma ancestral
de tantas outras. Uma transcestral do futuro.

travestis negras nativas são territórios transcestrais


de emoções, histórias, narrativas, memórias, feitiços, artes, kuras, ______ a
desobedipotência é restauração
o kaos é a redescoberta
cria mapas da retomada
rezas, feitiços, bruxarias, makumbarias, orikís, mistérios, encantos
antídotos para o veneno colonial
a kura está na impermanência da transmutação

Mergulhando no meu poder de amaldiçoar a colonialidade e os lugares cis-brancos.


Meu compromisso não é necessariamente com nenhum destes campos do conhecimento e
fazeres científicos. Mas ver que um atravessa outro em movimentos espiralares para construir
308

o conhecimento que inscrevo. Na minha presentificação atual, o movimento possível é de


construir antropologia através da minha arte e espiritualidade, sendo que o caminho de
retorno também se faz evidente, produzindo vida e empirismo, bem como grafando os
saberes que carrego até aqui. Porventura, nas minhas tentativas de estudar e fazer
antropologia, o que estou fazendo é travestilogia, e ela é feita da minha matéria escura.
quando os caminhos das solas dos pés
encruzam com as linhas das palmas das mãos

Agô!
Peço para o pedaço de terra embaixo de meus pés

Exú não fala para qualquer ouvido,


muito menos para aqueles que não querem ou não sabem ouvir

O susto que a carranca dá é sopro na vida das meninas-travestis


e nossas transcestrais estão vivas em Elegbara!
Abençoadas por Osíris.

Transmutadas e sem lógica linear,


onde toda vereda é travessia
adentro do tempo espiralar.

O que acontece aqui é convite à descrença.


Se faz maculação da língua em seu sentido,
para que outras palavras se tornem possíveis
em significados, sons e visualidades.
O Compromisso é com a traição de gênero(s):
de gente, de linguagens, de devir, de fazer, _______

Sei que desejam, curiam e querem se aproximar.


entre gritos, murmúrios, sussurros, rezas,
gargalhadas, gaitadas, choros, lamentos,
estrondos, silêncios—

um sonoro sopro
sopro de vida

para além disso, viemos te dizer que não somos apenas


as carcaças trans racializadas que habitamos

hoje incensando, purificando o ambiente


oferendando frutas para alimentar as cabeças
309

amanhã estaremos
acendendo as fornalhas,
mas dessa vez,
não seremos nós
as que vão queimar
Poética inscrita no tempo a partir das reverberações da performance “tento desenhar secretamente o
mapa do nosso lugar” de abigail Campos Leal com ativação de ewa nïara, acontecida em 07 de
outubro de 2022, no Museu da Imagem e do Som (MIS-CE), parte do programa formativo
Trans.Implic.Ações, curado por Rômulo Silva.

Referências

BRASILEIRO, Castiel Vitorino. Quando o sol aqui não mais brilhar: a falência da
negritude. São Paulo: n-1 edições; Editora Hedra, 2022.
DANIELS, Morg. Ancient Mesopotamian Transgender and Non-Binary
Identities. Academus, 2016. Disponível em:
<https://www.academuseducation.co.uk/post/ancient-mesopotamian-transgender-and-non-bi
nar y-identities>. Acesso em: 28 de jan. de 2023.
ELNAIEM, Mohammed. The “Deviant” African Genders That Colonialism
Condemned. JSTOR Daily, 2021. Disponível em: <https://daily. jstor.
org/the-deviant-african-genders-that-colonialism-condemned>. Acesso em: 24 de jan. de
2023.
GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed. 34;
Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.
HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. In: Spillers, Hortense J., et al. Pensamento
negro radical. São Paulo: Crocodilo; n-1 edições, 2021, pp. 104-129.
__________, Saidiya. Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas
negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais. São Paulo: Fósforo, 2022.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Editora
Cobogó, 2020.
LEAL, abigail Campos. a carcaça trans racializada y a vida. Instituto Temporário de
Pesquisa sobre Censura – Casa 1, 2020.
_____, abigail Campos. Ex/Orbitâncias: Os Caminhos da Deserção de Gênero. Glac
Editora, 2021.
LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e conferências. Autêntica Editora, 2019.
MOMBAÇA, Jota. A plantação cognitiva. São Paulo: MASP Afterall-Arte e
Descolonização, 2020. Disponível em:
<https://assets.masp.org.br/uploads/temp/temp-QYyC0FPJZWoJ7Xs8Dgp6.pdf>. Acesso
em: 16 de dez. de 2022.
__________, Jota. Não vão nos matar agora. Editora Cobogó, 2021.
nïara, ewa. Refletindo transvestigeneridades negres-natives no cis-tema patriarcal
capitalista supremacista branco imperialista. In: 33ª Reunião Brasileira de
Antropologia, 2022. Disponível em:
<http://www.portal.abant.org.br/evento/rba/33RBA/files/1661462420_ARQUIVO_b94fc5c2
6ff 1fdb38aaabdd8cb283fc6.pdf>. Acesso em: 06 de dez. de 2022.
OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes de. Divas, Divinas e Poderosas: Fragmentos
310

discursivos a respeito da presença de travestis e mulheres transexuais no campo do


sagrado. Peita.me, 2019. Disponível em:
<https://peita.me/blogs/news/divas-divinas-e-poderosas-fragmentos-discursivos-arespeito-da
-pr esenca-de-travestis-e-mulheres-transexuais-no-campo-do-sagrado>. Acesso em: 09 de
dez. de 2022.
PEREIRA, Lina (QUEBRADA, Linn da). Conversa com Bial, Rio de Janeiro: Rede Globo,
10 de agosto de 2020. Programa de TV.
SANTANA, Dora. Quão Trans é o Trans Atlântico Negro?. Austin: University of Texas,
2016. Disponível em: <https://blogueirasnegras.org/quao-trans-e-o-trans-atlantico-negro/>.
Acesso em: 09 de jan. de 2023.
SANTANA, Dora Silva. Mais Viva! Reassembling Transness, Blackness, and Feminism.
Transgender Studies Quarterly, v. 6, n. 2, p. 210-222, 2019.
SOUZA, Dediane. Eu travesti de nós sobre nós: Produção de narrativas de humanidades de
travestis em Fortaleza, um recorte do caso Dandara no jornal O Povo. In: 33ª Reunião
Brasileira de Antropologia, 2022. Disponível em:
<http://www.portal.abant.org.br/evento/rba/33RBA/files/1661204150_ARQUIVO_a8dab6d9
16
2579cce68965a7b8e20c06.pdf>. Acesso em: 07 de dez. de 2022.
______, Dediane. “Dando o nome”: Eu e Dandara na construção de narrativas de
humanidades de travestis em Fortaleza-CE a partir de um recorte do Jornal O Povo.
Orientador: Kleyton Rattes. 2022. 140 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) -
Programa Associado de Pós Graduação em Antropologia, Centro de Humanidades,
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Universidade Federal
do Ceará, Fortaleza, 2022. Disponível em: <https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/69714>.
Acesso em: 07 de dez. de 2022.
ALMA no olho. Zózimo Bulbul. Estúdio de Mixagem: Laboratório Imagem Líder Rio, Rio
de Janeiro, RJ, 1973. curtametragem (12 min.), 35 mm, P&B.
311

A luta das mulheres: coletividade, política e agroecologia

Women's struggle: collectivity, politics and agroecology

Vitória de Fátima dos Santos Sousa1

“Da luta eu não fujo!”


- Margarida Alves

1 Introdução

No Assentamento Santa Madalena2, em Tianguá3, as mulheres estão à frente da


produção agroecológica e são essenciais para a transmissão dos conhecimentos técnicos, uma
vez que os homens exercem ofícios urbanos ou trabalham para ‘patrões’4. Assim sendo, este
trabalho pretende discutir as mais variadas formas de associações coletivas estabelecidas por
essas agricultoras. Desse modo, elas se vinculam coletivamente: através das trocas de
conhecimentos e da rede de apoio informal criadas por elas, bem como se associam
politicamente, já que são elas que fazem as principais articulações dentro e fora do
assentamento.
Observo que passar a morar no Assentamento representa um momento de liberdade
para as agricultoras, pois agora elas possuem o seu ‘lugarzinho’5. As agricultoras me narram
que desde quando elas se mudaram para lá ‘tudo melhorou’. Desse modo, nas falas das
agricultoras, noto que o Assentamento Santa Madalena ‘deu’ para elas ‘terra para plantar’ e
uma ‘casinha’ para morar. Assim, a história do Assentamento foi construída e atada às
histórias das mulheres que produziram este trabalho comigo.
Divido o trabalho em três sessões: na primeira, procuro mostrar a rede informal de
apoio mútuo, como elas se ajudam individualmente e como elas estabelecem trocas de
ensinamentos. Na segunda sessão, trato da associação política feita por essas mulheres. Já na

1
Cientista Social e Mestranda em Antropologia Social (PPGAS-MN/UFRJ)
2
O Assentamento Santa Madalena fica localizado na zona rural da cidade de Tianguá (CE), a aproximadamente
quinze minutos da sede, via BR-222. Nele, residem trinta e cinco famílias assentadas, divididas entre o “Santa
Madalena I” (onde moram trinta e uma delas) e o “Santa Madalena II” (onde moram as outras quatro).
3
Tianguá – palavra tupi que significa o “gancho que puxa as águas” - é uma cidade de 68. 901 habitantes, de
acordo com o último censo do IBGE. É um município que tem sua economia voltada para a agricultura, bem
como a maioria das cidades da Serra da Ibiapaba. Conforme dados do IPECE (Instituto de Pesquisa e Estratégia
Econômica do Ceará), o município se divide em três áreas distintas: chapada - isto é, a serra ou cuesta; carrasco e
sertão. Ao andar por a zona rural e a urbana se percebe muitas árvores nativas, sobretudo, carnaubeiras e ipê
amarelo-do-cerrado, árvore que é considerada o símbolo da cidade.
4
Por ‘patrões’, os assentados se referem aos donos de terras da região, de quem muitos foram ‘moradores’, i.e.,
trabalhadores rurais cujo acesso à terra e mesmo a uma casa era mediado por um proprietário rural, com quem
dividiam a produção agrícola (Palmeira, 1977; Teixeira, 2014).
5
As falas das minhas interlocutoras aparecem durante o trabalho entre aspas simples.
312

terceira, apresento questões sobre a rede de agroecologia, construída pelas agricultoras, que há
no Assentamento.

2 A rede informal de apoio


Nas observações que fiz em campo e conversas que tive com minhas interlocutoras,
percebi que elas dão muita importância aos seus quintais produtivos. Assim como Siliprandi
(2016, p. 313), percebo que são nesses espaços “em volta da casa”, onde as agricultoras
mantêm os canteiros com as verduras e criam animais, como as galinhas.
Durante as entrevistas que realizei e conversas informais que tive com as agricultoras,
elas me falaram que, semanalmente, mais precisamente todas as segundas-feiras, elas se
reúnem em um dos quintais produtivos de uma das mulheres e trabalham coletivamente
naquele local.
Nesses momentos de ajuda coletiva, elas plantam, mudam canteiros de lugar, fazem
composto para adubar as plantas, conversam e trocam conselhos. Liliane, uma das minhas
interlocutoras, me disse que é ‘bem melhor’ trabalhar em conjunto, pois ‘quando tá todo
mundo, começa conversar ali e nem vê a hora passando’. Outras agricultoras me
compartilharam que esses momentos são ‘muito bons’, porque elas podem conversar à
vontade e ‘dar risadas’ sem a presença dos maridos e dos filhos. Nas palavras de Liliane:

Liliane: Toda segunda-feira nós vamos trabalhar nos quintais das vizinhas.
Vitória: Aonde?
Liliane: Nós se junta, o grupo das mulheres que participa do Cepema [se referindo a
rede agroecológica EcoCeará], acho que tem dez ou onze pessoas que participa. Aí
toda segunda-feira nós vamos para um quintal. Aí as dez pessoas vão pra casa de um,
na outra segunda nós já vamos pra casa de outra. Eu só tava com esses daqui [ela
estava se referindo aos canteiros mais próximos da sua cozinha], aí quando as
meninas vieram nós fizemos aqueles lá da frente. Aí eu já tô limpando. [...]
Liliane: É porque assim, a gente tá trabalhando sozinha e começa o sol esquentar, aí
pensa “não! já vou é pra casa!”, aí quando tá todo mundo começa a conversar ali e
nem vê a hora passando.

Desse modo, sem a rede de mulheres ela não teria plantado os outros canteiros de
coentro e cebolinha. Ou seja, a rede de apoio é fundamental para que as agricultoras possam
desenvolver melhor a agroecologia.
Parece-me que encontros parecidos também foram observados por Federici (2017) ao
relatar os momentos coletivos protagonizados pelas mulheres da Europa do século XVI nas
“terras comunais”. Nesses espaços de sociabilidade, as mulheres camponesas “se reuniam,
trocavam notícias, recebiam conselhos e podiam formar um ponto de vista – autônomo da
313

perspectiva masculina – sobre os acontecimentos da comunidade” (FEDERICI, apud


CLARK, 2017, p.138). No contexto de pesquisa no meio rural brasileiro, sobretudo com o
enfoque em mulheres, Froes (2012, p. 86) mostra que o trabalho coletivo é muito valorizado,
também, por suas interlocutoras:

Todas demonstraram reconhecer e valorizar os aspectos positivos da cooperativa. (...)


Deste modo, elementos como a partilha, a troca de conhecimento e o prazer do
trabalho em equipe são bastante prezados. A cooperativa aparece, portanto, não
somente com um espaço de possibilidades de geração de rendimento, mas também
como espaço de ampliação de saberes, conhecimentos e mudanças de condutas.

Além disso, as agricultoras, como já foi afirmado, trocam conhecimentos entre si. Por
exemplo, durante uma das visitas que fiz, Adriana me mostrou seu canteiro e apontou uma
muda de mamão-anão, dizendo que conseguiu a semente com Dona Eudes, outra agricultora,
tendo sido também com ela que aprendeu a cuidar desse tipo específico de fruto. Ou seja,
uma das agricultoras passou o conhecimento para outra. Tive uma conversa com Maria e
Dona Eudes, Dona Eudes estava reclamando de que não havia colhido milho suficiente. Ela
havia plantado a espécie de milho ligeiro, Maria explicou que o inverno (primeiro semestre do
ano), isto é, o período das chuvas6, interfere no tipo de milho que deve ser plantado:
Dona Eudes: Nosso milho, ele deu pouco esse ano!
Vitória: Por causa do inverno?
Dona Eudes: Não! Porque aqui não é muito bom pra milho mesmo não.
Vitória: E não?!
Dona Eudes: A gente planta... Dá né?! Não dá tão bom, mas dá.
Maria: Não, é o tipo de milho! Tem o milho ligeiro, ele dá bom também.
Dona Eudes: O nosso é o ligeiro!
Maria: E não deu bom não? Foi no início do inverno?
Dona Eudes: Foi! Não deu tão bom não.
Maria: Esse milho não tava ligeiro não (risos). Porque cê viu que tem um milho
aqui que a Chaguinha plantou que é do grandão e esse grandão demora e eu acho
que deu bom, num deu não?
Dona Eudes: Deu.
Maria: Tem muita gente aí que plantou um milho bem grandão. Porque o milho
ligeiro é mais pequenininho, mais baixinho.
Dona Eudes: O nosso não deu não.
Maria: Então esse ano era do milho grandão, não era do ligeiro. Esse ano o inverno
era do milho grande, não era do ligeiro, pra você ver cada ano tem sua diferença...
Muda, porque no ano passado não foi tão bom, mas nesse ano foi bom.
Vitória: O inverno esse ano foi bom?
Maria: Foi ótimo, foi uma maravilha, choveu demais! Então, no caso, a questão era
pra plantar o milho grande, não era o ligeiro, porque o milho ligeiro é com pouco
inverno.

6
Segundo dados do Instituto Chico Mendes a média pluviométrica da Serra da Ibiapaba é “considerada elevada
para os padrões do Estado do Ceará”. Tianguá, sobretudo, que varia seu clima entre tropical semiárido brando e
tropical quente úmido, possui precipitação média de 1.522 mm, entre os meses de janeiro a junho, isto é, no
inverno.
314

As agricultoras, além de se ajudarem no desenvolvimento da agricultura e da


agroecologia em seus quintais, se ajudam cotidianamente. Por exemplo, quando uma das
agricultoras precisa se deslocar até ‘a rua’, ela pede para que a vizinha fique cuidando de seus
‘curumins’7; quando uma fica doente, as outras se deslocam à casa dela para arrumar e
ajudá-la no almoço. No final de 2019, uma das mulheres deu à luz e as outras estavam indo à
casa dela para limpar e ajudar com o bebê. Ou seja, a rede de apoio transcende o espaço dos
quintais produtivos das agricultoras. O conceito de “ajuda”, apresentado por Dainese (2020),
se encaixa nesta forma de associação, visto que “se ajudar” é percebido como algo positivo,
que fortalece laços, cria amizades. Maria, por exemplo, quando precisa sair de casa, conta
com Adriana para ajuda para ‘reparar os meninos’. Em um diálogo que tive com Alessandra e
Maria, essas ajudas apareceram como muito positivas quando se fala sobre coletividade:
Vitória: Por isso que eu falo: às vezes é difícil [conviver com pessoas] mas é bom
ter, né, porque a gente cria, por exemplo, laços de amizade
Maria: É sim! Às vezes, assim, eu já precisei tanto dessas pessoas aqui pra me
ajudar!
Alessandra: É, tem essa parte mermo [...] ajudar uns aos outros quando precisa.

Ademais, as minhas interlocutoras também realizam trabalhos paralelos à agricultura,


fazem artesanato, costuram, trabalham de manicure e cozinham alimentos para venderem em
festividades. Esses trabalhos paralelos são considerados pelas agricultoras uma ‘renda-extra’
para a família. Bem como tais trabalhos fortalecem a rede de apoio entre as mulheres, uma
vez que, elas compram os produtos artesanais, encomendam peças de roupas, fazem as unhas
etc. Elas também trocam verduras e alimentos, presenciei um momento em que Maria e Dona
Eudes estavam trocando ovos e pepinos. Maria deu os ovos para Dona Eudes, ao passo que
Dona Eudes deu os pepinos para Maria.
Além de se ajudarem, trocarem conhecimentos e verduras, as mulheres também
organizam festas e momentos de lazer. A festa da colheita do milho, a festa de Santa
Madalena, a festa de natal, são exemplos de momentos que são organizados pelas agricultoras,
pois são elas que fazem as comidas e as vendem, assim como são elas que organizam as peças
teatrais realizadas durante a festa da colheita. Além disso, elas também planejam momentos
de lazer - por exemplo, elas me contaram que fizeram um passeio ao Sítio do Bosco, lugar
turístico que se encontra em Tianguá, tendo sido elas as responsáveis por conseguir o
transporte e levar os lanches para as crianças comerem quando estivessem lá.
Estive presente em uma seresta e em um torneio de futebol, que ocorreu no campo do
Assentamento, e em ambos os momentos aconteceu um bingo, a venda das cartelas e a venda
7
Forma como as agricultoras se referem aos seus filhos e as outras crianças.
315

das comidas foram feitas pelas mulheres. Nas duas ocasiões o dinheiro arrecadado foi para a
Igreja Católica e as agriculturas consideram importante se engajar ‘nas coisas de Deus’. Elas
são as principais articuladoras dos momentos religiosos, ficam à frente das organizações dos
locais das celebrações, cantam e fazem as leituras sagradas.
Os momentos de trabalho coletivo, de ajuda mútua, de troca de saberes e organização
de festividades são capazes de fortalecer os laços e vínculos entre as agricultoras. Essa rede é
capaz de gerar nas agricultoras, como observei nas conversas entre elas, sentimentos de
partilha, amizade e solidariedade.

3 A associação política

Autoras como Maria Prado & Stella Franco (2013) trazem à luz a participação
feminina no debate público brasileiro, participação essa que vem muito antes da luta
sufragista, mostrando que as mulheres sempre se fizeram presentes no debate político, na luta
pela capacitação intelectual. As autoras também mostram que as mulheres enfrentaram
debates públicos e políticos para além do “ser mulher”, se fazendo presente em diversas
frentes de lutas, ou seja, mulheres fizeram e fazem participação plural em várias discussões. É
dessa forma que as mulheres rurais aparecem: se fazem presentes em múltiplos espaços
políticos.
Maria Ignez Paulilo (2016) discorre sobre “quatro décadas de diálogos”8 acerca de
mulheres rurais, mostrando como as mulheres se associaram em sindicatos de trabalhadores
rurais e como o debate sobre a terra é central para elas, dado que muitas não a têm, ou
enfrentam problemas de herança, no que se refere a questões em torno de disputa pela terra –
Maria Margarida Moura (1978) também discorre sobre como relações de poder entre homens
e mulheres e o direito costumeiro afetam heranças de terras.
Dessa maneira, um dos primeiros pontos que me atentei ao ir a campo pela primeira
vez foi a organização política das agricultoras, dado que são elas quem – em diversos
momentos – estão à frente das articulações dentro e fora do assentamento. Assim sendo, as
agricultoras consideram Dona Raimunda a principal articuladora do Assentamento, pois é ela

8
Maria Dolores de Brito Mota (2006) também fala da importância de perceber as trabalhadoras rurais como
uma categoria política, pois elas sempre estiveram construindo existência pública (MOTA, 2006, p. 346-347) e
demarcando seu lugar nas lutas pelos direitos das agricultoras, já que elas fazem discursos, se organizam
coletivamente, fazendo articulações, essas sementes de Margarida Alves “conquistam a existência social
permitem revelar-se, mostrar-se, apresentando-se e falando em público sem medo de ser mulher trabalhadora
rural.” (MOTA, 2006, p. 352).
316

quem costuma representar a comunidade em reuniões, encontros, eventos, etc. Em uma das
minhas idas, passei dois dias na casa de Dona Raimunda e Seu Benedito, nesses dois dias, nós
ficamos horas conversando sobre esses momentos em que ela foi ‘representar a comunidade
fora’. Esse fato traz muito orgulho para a agricultora: ela me mostrou várias fotos dos eventos
de que participou e percebi seus olhos brilhando de alegria ao recordar dessas ocasiões. Dona
Raimunda diz que ‘apesar da idade’ gosta de se engajar na participação em eventos, pois, para
ela, é ‘importante para o crescimento da comunidade’.
As articulações políticas que as agricultoras constroem para conquistar ganhos para a
comunidade são frutos da associação política coletiva, pois são elas que desenvolvem as
estratégias e fazem as mobilizações necessárias. Como se pode observar em uma fala de
Francisca das Chagas, conhecida entre as agricultoras como ‘Chaguinha’:
Francisca das Chagas: A gente vai arruma, pede, vai lá atrás de arrumar carro pra
vir pra cá, aí arruma uma coisa, arruma outra, aí nessa luta, a gente vai conseguindo
aos poucos. Já tem a Casa de Semente, que é o lugar de reunião [...] já passa o
ônibus que antes não passava, nós tinha que levar lá pra pista os meninos, aí já passa
o ônibus da escola, já tem médico duas vezes por mês aqui. [...] Aí é assim, vem o
carro do lixo também, né?! Coisas que nós da comunidade vamos arrumando. [...] e
a nossa comunidade por ser nova, todo mundo diz que nossa comunidade é nova,
mas já tem bastante coisa, tem iluminação pública, consulta... Mas assim a gente é
direto atrás de trazer as coisas pra cá. Traz um curso, traz uma formação, traz isso,
traz aquilo e a gente vai ali quase secando as canelas atrás da prefeitura, procura o
prefeito, pra arrumar alguma coisa, os vereadores, os secretários. A gente vai e
arruma alguma coisa, mas é assim, comunidade.

Nota-se na fala da interlocutora o uso da palavra “luta”, largamente utilizada no campo


brasileiro. Um dos significados assumidos e apontados por Comerford é o de “lutar pelos
direitos dos trabalhadores rurais” (COMERFORD, 1999, p.39), ou seja, é quando os
trabalhadores e trabalhadoras conjuntamente com os sindicatos e outras organizações se
mobilizam e pressionam instituições e órgãos públicos para conseguirem o que desejam para
as suas comunidades9. Se percebe, na fala da agricultora, que sem as mobilizações da
comunidade as consultas mensais, o transporte público, a iluminação etc., não teriam sido
conquistados, pois elas tiveram que ‘secar as canelas’, isto é, procurar os órgãos públicos.
Ademais, ainda sobre a ‘luta coletiva’, Alessandra, me falou que em dezembro de 2019 houve
uma reunião com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), e que os
representantes do Instituto disseram que ‘toda vez que vão lá [no assentamento], não veem
avanços, é sempre a mesma coisa’. No entanto, as agricultoras disseram que elas ‘já

9
A luta também aparece como uma busca por dignidade, por melhores condições de vida para si e para os seus.
Tal luta passa por o “sacrifício” que é “secar as canelas”, ou seja, elas perdem energias corporais ‘correndo atrás’
do que querem.
317

conquistaram muito para o assentamento’, deram o exemplo do ‘transporte que passa lá


diariamente, das latas de lixo espalhadas por todo o assentamento’ pois antes não tinha e
muitos acabavam jogando ‘o lixo no mato e sujava o assentamento’. Elas falaram também
sobre ‘assessorias técnicas’ que recebem de Organizações Não Governamentais (ONGs), pois
essas Organizações auxiliam no desenvolvimento da agroecologia no assentamento.
Sobre as parcerias que estabelecem com as ONGs e instituições, as agricultoras
apontam a importância de se trabalhar coletivamente, as agricultoras costumam lembrar que
apesar da ‘comunidade ser nova e pequena’ o fato de serem engajadas e ‘abraçarem ideias’ faz
com que a ‘comunidade cresça’. Como é o exemplo do ‘viveiro de mudas’, que os assentados
e as assentadas estão construindo. Essa ideia surgiu e foi ‘abraçada’ em um curso feito no
Assentamento pelo Instituto Federal do Ceará (IFCE)10. Segue o diálogo que tive com Adriana
sobre isso:

Adriana: Nós estamos no processo de fazer ele [se referindo ao viveiro de mudas]
ainda.
Vitória: É o pessoal do IFCE que tá fazendo?
Adriana: Eles deram um curso pra gente aqui e lançaram a ideia do viveiro de
mudas, aí estamos trabalhando coletivamente, pra poder construir.
Vitória: Mas não tá construído ainda?
Adriana: Tá faltando a cobertura, o piso já foi puxado e a lateral tá feitinha, só falta
a cobertura mesmo. E outras coisinhas mais, os detalhes, né?!
Vitória: ah, que bom!
Adriana: Muito bom nossa comunidade aqui, nossa comunidade é pequena, mas é
uma comunidade que têm pessoas que querem, não querem pra si, mas querem
ajudar o coletivo. Depois que a gente veio pra cá muita coisa boa já aconteceu por
causa de pessoas que tiveram força de vontade para abraçar e ajudar [...] como esse
daí do IFCE, a gente fez o curso e eles lançaram a ideia, a gente abraçou e estamos
aí.

Ainda mais, em uma entrevista que fiz com Dona Raimunda, ela me disse que a Casa
de Sementes foi um ganho que elas conquistaram ‘na luta’. As agricultoras me explicaram que
a Casa de Semente11 funciona como uma organização associativa, na qual os associados
precisam participar frequentemente das reuniões e cumprir regras, sendo as principais: fazer a
transição agroecológica no agroecossistema, não fazer queimadas, ou usar veneno na
produção; participar das reuniões, pois caso haja três ausências seguidas nelas, o membro será

10
Em Tianguá há um campus do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, algumas jovens do
assentamento estudam lá e outras almejam ‘passar no ENEM’ para estudarem lá, como por exemplo, em cursos
técnicos como em Agricultura.
11
As Casas de Sementes são implantadas em comunidades rurais pela ONG Cáritas Diocesana, é um espaço
onde os agricultores e agricultoras armazenam e buscam variados tipos de sementes crioulas.
318

desligado, não podendo ‘mais pegar’ as sementes no banco da Casa12. Alessandra, uma das
agricultoras, me explicou que há um ciclo quando se é associado à Casa de Semente. O
associado ‘pega’ as sementes no banco da Casa de Sementes no início do ano para plantar e
quando for colher precisa devolver um litro a mais do que pegou no início.
Além disso, na Casa de Sementes há um coordenador, tesoureiro, selecionadores de
sementes e guardiões das sementes, que são escolhidos através de votação feita pelo grupo.
Dona Raimunda foi selecionadora de sementes e até o fim de 2019 era também a
coordenadora. Na última vez em que estive lá, perguntei se ela pretende voltar para a
coordenação, ela me respondeu que ‘sim’. Dona Raimunda me afirmou que é necessário ter
uma rotatividade nos membros que coordenam a Casa de Sementes, como ela já havia sido
selecionadora e coordenadora, por dois anos, outra pessoa deveria assumir.
Assim, no fim de dezembro de 2019, houve a troca dos membros que coordenam.
Conversei sobre esse fato com duas agricultoras, que não ‘viam com bons olhos’ algumas das
novas coordenadoras, pois as consideram ‘difíceis de conviver’. Pimenta (2006, p.154) ao
estudar assentamentos rurais observou, nas relações entre os seus interlocutores, que há
“instabilidades e conflitos” entre os assentados e as assentadas. Tais conflitos também são
observados por mim entre os moradores e as moradoras do Santa Madalena.
Ainda sobre a dimensão dos conflitos que existem entre as agricultoras e outros
assentados, em conversas informais que tive com Dona Raimunda e Seu Benedito eles me
disseram ‘ninguém quer trabalhar pelo Assentamento, só querem trabalhar fora’ e
continuaram dizendo que os outros agricultores ‘não plantam, não cuidam dos quintais’. Ou
seja, como a maioria dos agricultores precisam exercer ofícios nos centros urbanos ou em
terra dos patrões, Seu Benedito e Dona Raimunda não acham ‘isso positivo para o
desenvolvimento do Assentamento’. Eles me afirmaram que ‘o Assentamento está obsoleto’,
pois os assentados ‘não querem cuidar’ do espaço.
Cabe salientar que a maioria das articulações, conversas e trocas de notícias, etc.
acontecem nas cozinhas das mulheres. Por exemplo, Adriana me disse que quando ‘aparece
uma oportunidade de fazer um curso no Assentamento’, ela primeiro ‘conversa
individualmente’ com as mulheres das quais ela é mais ‘chegada’, Maria e Alessandra,
principalmente. Só depois elas ‘levam pro coletivo’, isto é, durante os momentos de reuniões
formais, que acontecem no ambiente da Casa de Sementes. No entanto, o ambiente das

12
Obtive esses dados em um banner que fica exposto na parede da Casa das Sementes, há pontuado dezessete
regras a serem seguidas pelos membros.
319

cozinhas dessas agricultoras é central para que aconteçam diálogos ‘mais individuais’, é
nesses espaços que as mulheres se reúnem para chegar a uma conclusão se uma pauta
específica deve ser ‘levada para o coletivo’. Nesse sentido, Alves (2016) mostra como o fluxo
de pessoas nas casas da comunidade rural Pinheiro, em Minas Gerais, se dá principalmente na
“circulação entre cozinhas”: “A circulação entre casas é principalmente uma circulação entre
cozinhas, o que destaca o seu caráter social, por excelência, um lugar de reunião. (...) Assim,
ela é um local de produção de alteridade e semelhança, um cômodo político” (ALVES, 2016,
p. 149).
Além de ser um “cômodo político”, é nas andanças entre as cozinhas que surgem as
‘fofocas’ que geram os conflitos entre os assentados e as assentadas, como já abordei
anteriormente. É nesses espaços que as agricultoras, como presenciei algumas vezes, discutem
e dividem opiniões, muitas vezes negativas, sobre outras agricultoras. Foram nas cozinhas que
elas me narraram os conflitos que existem entre elas, foi na cozinha que Seu Benedito e Dona
Raimunda me falaram que os outros assentados ‘não estavam se preocupando com o
Assentamento’. Dessa maneira, foi andando por esses lugares de sociabilidade que conheci
melhor minhas interlocutoras e observei as relações estabelecidas entre elas.
Ainda mais, é importante dizer – mais uma vez – que sem a conquista do
assentamento, da terra própria, não seria possível a discussão sobre as mobilizações coletivas
feitas por minhas interlocutoras, pois antes de passarem a morar ‘no que é seu’, as agricultoras
estavam sujeitas aos patrões: como elas me disseram ‘não tinham direito a nada’. Elas
recordam desse tempo como um ‘tempo sofrido’, no qual não podiam ‘plantar nada para si’,
pois ‘tudo era do patrão’, ou só podiam ‘plantar no inverno’. Como se pode notar nas falas de
algumas delas:

Liliane: Agregado não tem terra, o quintal mesmo é bem pequeno. Aí lá [na terra do
patrão] não tinha onde a gente trabalhar, a não ser no terreno dos outros, e quem
trabalha no terreno dos outros não tem direito a nada, só mesmo a diariazinha ali e
pronto.
Adriana: A gente só trabalhava pra gente no inverno, na época de botar milho,
feijão, fava, essas coisas. [...] O lugar que a gente morava antes de vir pra cá era uma
casinha, nós só tinha direito de ficar na casinha e limpar pra poder se manter no
lugar, mas assim: “ah, tá aqui, esse pedacinho aqui é pra você plantar” não, não
tinha.
Francisca das Chagas: A gente morava dentro do terreno de não poder sair nem aos
domingos, porque tinha que tá pastorando o terreno do homem, né?! Do patrão!
Porque era trabalhando de domingo a domingo, a gente tava trabalhando o tempo
todo.
Dona Eudes: Antes a gente não plantava, não criava. Assim, quando a gente morava
lá no patrão a gente plantava um pedacinho bem pouquinho assim, bem pertinho de
320

casa, né?! Só dava pra comer mesmo.

Dessa maneira, a conquista política da terra originou nas agriculturas um sentimento


de liberdade, pois agora elas podem fazer o que desejam na terra que lhes pertence. A
mudança para o Assentamento Santa Madalena e a conquista da terra, aparece como um
momento muito importante nas vidas das minhas interlocutoras. Quando dividiam esses
momentos comigo, sempre apareciam sorrisos em suas falas, o Assentamento é considerado
por Dona Eudes como um ‘pedacinho do céu’, já para Francisca das Chagas ‘bate uma
felicidade’ em ter uma casa que pertence a ela:
Dona Eudes: Aqui foi a primeira vez que a gente conseguiu o pedacinho de terra da
gente, a casinha da gente, porque a gente não tinha, né?! Não tinha onde plantar
nada. Tinha vontade de plantar, mas não tinha como plantar, nem criar. Aqui a gente
planta, a gente cria, aqui é o pedacinho do céu.
Francisca das Chagas: Morar aqui numa casa por mais que seja simples, é da gente.
Aí é que bate a felicidade de dizer assim: “é minha, né?!”.

Nesse sentido, destaco que na situação estudada por Mello (2011) a conquista da terra
marca uma ruptura, para o(a)s assentado(a)s, no tempo-espaço, pois quando eles chegaram e
foi criado o primeiro assentamento da Reforma Agrária – o 25 de Maio – sentimentos de
sujeição aos patrões deram espaços para sentimentos de liberdade, coletividade e
solidariedade, bem como se nota nas falas das mulheres do Santa Madalena. Nas palavras do
autor (2011, p. 101):

Para os assentados, nesses mais de vinte anos, eles puderam estabelecer uma vida
livres das instabilidades de outrora. Casar, ter filhos, plantar para viver, comercializar
o excedente da produção familiar, ter uma vida comunitária e acessar políticas
públicas. Condições de cidadania percebidas como mudanças no cotidiano.

No trabalho realizado por Sandra Pimenta no assentamento de reforma agrária do Vale


Jequitinhonha, em Minas Gerais, suas interlocutoras também apontam que a conquista de um
espaço próprio foi uma conquista de liberdade. Ao relatar a história de uma das agricultoras
assentadas, a autora afirma:

No processo de conquista e apropriação da terra o sentimento de liberdade


impulsiona a geração de novas capacidades e experiências, que, articuladamente,
resultam na possibilidade de criar e recriar as condições para produzir, trabalhar e
viver com dignidade. Para uma assentada que chegou com a família após a criação
do assentamento, mesmo com a falta de água e a moradia de pau-a-pique, a vida no
assentamento nem se compara aos duros tempos de sujeição do trabalho na carvoeira
(PIMENTA, 2006, p. 156).

Bem como essa interlocutora de Pimenta, que apesar das dificuldades existentes no
início do assentamento, “falta de água e moradia de pau-a-pique”, o sentimento de liberdade é
321

maior que tais condições. Esse mesmo sentimento foi compartilhado por Francisca das
Chagas. Em uma entrevista que realizei com ela, ela me falou que até seus filhos, ‘que são
crianças’, reconheciam que era a ‘casinha’ deles, apesar da falta de energia elétrica:

Francisca das Chagas: Só era vela e lamparina, né? Mas assim era bom. [...] Aí pra
mim foi bom, os meninos gostaram demais. [Eles diziam]: “mãe, mesmo que seja
sem energia, mas tá tão bom, né, mãe?! só nós aqui, é nossa casinha” eles mesmo
dizia que era bom, aí quando chegou energia, aí foi que ficou bom.

Além de gerar o sentimento de liberdade, a conquista do Assentamento gerou também


o engajamento político das agricultoras, uma vez que agora elas participam de reuniões, de
articulações para eventos etc. Dona Raimunda, por exemplo, me contou que já ‘foi
representar’ o Assentamento Santa Madalena fora do Estado do Ceará, em um Encontro de
assentados rurais no Piauí. Adriana, por sua vez, como mulher e jovem, representou o Estado
do Ceará em um encontro de juventudes rurais em Pernambuco.
Dessa forma, o engajamento político das agricultoras fortalece sua associação política
e social. Como bem afirma Pimenta, tal participação em engajamentos políticos constitui
mudanças “tanto no nível pessoal, como nas relações interpessoais, familiares e coletivas”
(PIMENTA, 2006, p. 158), dado que as agricultoras consolidam relações com outros grupos e
associações. Assim sendo, a luta das trabalhadoras rurais por reconhecimento social e político
rompe com a lógica de que as mulheres agricultoras se encontram apenas no universo
casa/cozinha. Minhas interlocutoras ressignificam os padrões que foram historicamente
construídos e mostram que elas podem se inserir em espaços que antes eram considerados
predominantemente masculinos, como é o exemplo da luta política pela terra e da luta
sindical.
Dessa forma, a associação realizada politicamente pelas mulheres do Assentamento
Santa Madalena faz com que elas construam a existência pública (MOTA, 2006), visto que
elas tecem espaços como sujeitos políticos, para que garantam conquistas individuais e
coletivas. Maria, Dona Raimunda, Adriana, Francisca das Chagas, Alessandra, algumas das
minhas interlocutoras, reivindicam seu lugar e autonomia como mulheres através da luta
política e coletiva, mostrando que as mulheres têm o poder de se associar e conquistar direitos
para a comunidade. Além disso, no Assentamento, como bem me afirmou Josivânia, elas
encontraram o ‘verdadeiro amor’, já que as agricultoras também conquistaram liberdade a
partir da luta pela terra, pois agora possuem um lugar para ‘chamar de seu’, para plantar,
gerenciar os espaços e ter hortas da forma como desejam.
322

4 A rede de agroecologia

Falar sobre as práticas agroecológicas desenvolvidas por minhas interlocutoras é falar


sobre a relação que elas têm com o lugar em que vivem. Dado que há uma contraposição entre
a ideia de ‘morar no que é seu’ e de ‘morar na terra dos outros’, isso determina diretamente a
relação estabelecida com a terra (WEITZMAN, 2016). Muitas delas só tiveram contato com a
agricultura orgânica quando passaram a morar no Santa Madalena, outras ‘tinham ideia do que
era o orgânico, mas só foram colocar em prática’ morando no Assentamento. Adriana me
falou que ‘só conhecia na teoria’. Perguntei para ela ‘por que só na teoria?’ e ela me
respondeu:

Adriana: por isso que eu digo assim, é teoria porque o que a gente só vem colocar
em prática é no nosso quintal, porque a gente tem propriedade, porque é meu e eu
posso fazer o que bem quiser, posso destruir como também posso restaurar, então, é
isso aí.

Dona Selma, por sua vez, me disse que se não tivesse mudado para o Assentamento e
conhecido a Fundação Cepema ainda continuaria ‘plantando com veneno’, pois era a forma de
plantio que conhecia quando morava em terra de patrão:

Dona Selma: Lá [na terra do patrão] eu plantava pra ele era com veneno. Agora o
meu aqui é orgânico mesmo, nós num bota nada de veneno não, mas lá era com
veneno. Se eu não tivesse entrado pro Cepema, eu acho que eu continuava com
veneno, mas aí depois que eu entrei pro Cepema eu não boto mais veneno, é
produzido só mesmo na água mesmo. Num boto veneno não, é orgânico mesmo de
verdade mesmo, o meu é! Tenho certeza absoluta!

Como já foi apresentado, a Fundação Cultural Educacional e Popular em Defesa do


Meio Ambiente (Cepema) é uma ONG que presta assessoria técnicas voltadas para o
desenvolvimento da agroecologia no Assentamento Santa Madalena. Nessas assessorias, as
agricultoras aprendem técnicas e manejos do solo, como lidar com as ‘pragas’, etc. Além
dessas assessorias, a Fundação Cepema, por exemplo, também desenvolve rodas de conversas
sobre gênero, oficinas sobre gastronomia e mudanças climáticas para as agricultoras. Bem
como Dona Selma, Maria também teve seu primeiro contato com a agricultura agroecológica
quando passou a fazer parte da Rede EcoCeará:

Maria: Quando eu cheguei aqui, não tinha nem um canteirinho, a gente tinha muito
pé de fruta, como você vê lá, laranja, meu corante, pé de limão, tangerina, ata... Aí a
gente já tinha esses pezinhos de coisas, mas o canteiro em si, orgânico mesmo, foi só
quando eu entrei na Cepema. [...] Primeiro a gente começou com um canteirinho, aí
foi indo, foi indo. Aí vez enquanto vinha os técnicos pra cá, vinha olhar nosso
quintal, dá sugestão de como plantar, como preparar a terra, como proteger o solo.
323

Aí tudo foi através deles. [...] Fomos fazendo e ajeitando, aí tá dando certo.

Liliane, por sua vez, me disse que já tinha tido contato com a agroecologia através do
seu companheiro, que já havia feito um curso sobre agricultura orgânica na empresa em que
trabalhava. No entanto, ela ‘tinha era raiva’ de quando ele falava sobre o assunto:

Liliane: eu tinha raiva quando ele [seu esposo] começava a falar “ah num sei o quê,
num pode queimar, num pode usar veneno, num pode fazer aquilo, num pode...” aí eu
ficava era com raiva. Aí depois que eu comecei a participar [da Rede EcoCeará] que
eu vim entender mais. Aí ele disse: “ah, agora você já sabe como é!”.

Com o passar do tempo, ela começou a ‘ter vontade’ de plantar orgânicos. Com isso,
as mulheres que já integravam a Rede EcoCeará a convidaram para participar de uma oficina
sobre agroecologia, mediada por Fernanda, assessora da Cepema. Assim, Liliane passou a
fazer parte da rede agroecológica:

Liliane: Foi assim, eu já tinha vontade, as meninas já participavam do Cepema, era


sete mulheres que participavam do Cepema, aí elas sempre me convidando, só
porque assim, eu nem entendia o que era o Cepema, aí depois que elas foram
explicando. Aí elas falaram: “não, vamos lá pra oficina, lá a Fernanda explica mais
direito”, aí quando a gente foi, voltou, aí elas me disseram: “agora já que nós fomos,
bora começar lá”. Aí eu fiz esse canteiro ali, aí quando elas vieram [ajuda la a
plantar] nós fizemos os outros de lá.

Alessandra, diferentemente de Liliane, possui conflitos com seu companheiro no que


tange ao gerenciamento da produção, cada um tem ‘seu lado’ para plantar, pois ele faz o uso
de agrotóxico. Alessandra dividiu que seu companheiro a ‘mandou’ sair da Rede EcoCeará,
porque ele ‘não ia deixar de plantar com veneno’, mas ela falou que não sairia, já que estando
na rede ela aprende:

Alessandra: Ele tem o lado dele e eu tenho o meu.


Vitória: Mas por que ele planta com veneno ainda?
Alessandra: Porque o bicho é fresco mesmo.
Vitória: Já tentou falar com ele?
Alessandra: Já, mulher, deu até briga.
Vitória: Por causa disso?
Alessandra: Uhum, porque ele bota veneno na pimentinha-de-cheiro, né?! Eu num
boto não. Aí ele mesmo bota lá nas deles. A única coisa que eu ajudo é tirar as
pimentinhas.
Vitória: E ele não fala nada?
Alessandra: Não, ele não fala nada. Ele já mandou foi eu sair da rede. Eu é porque
eu gosto, eu num saio não.
Vitória: Sair da rede? Por quê?!
Alessandra: Porque ele disse que não vai deixar de botar veneno. Eu gosto mulher,
pra nós aprender as coisas, eu gosto de aprender as coisas.

Como já apontado, no momento, treze mulheres do Assentamento Santa Madalena


324

fazem parte da Rede EcoCeará, estando elas associadas e frequentemente trocando


conhecimentos. Nas falas das minhas interlocutoras, quando perguntadas sobre a EcoCeará,
elas respondem que no assentamento as mulheres estão à frente da Rede, elas dizem que ‘são
as mulheres da EcoCeará’. Inclusive, quando iniciei minha pesquisa, Maria me acompanhou
para realizar entrevistas apenas com mulheres. Nas primeiras idas da equipe da Fundação ao
assentamento, Maria dividiu comigo que não havia muitas agricultoras ‘interessadas’. No
entanto, na medida em que elas observaram a evolução da rede, passaram a querer integrá-la:

Vitória: Como foi que a Cepema chegou aqui, como começou?


Maria: Foi através da Dona Raimunda. A Dona Raimunda chegou pra mim: “olha
Maria vai ter uma reunião da EcoCeará, vai vir, tu quer participar?” Convidou eu, a
Adriana, a Dona Eudes, a Dona Rita, foi esse grupinho que ela convidou, só que ela
convidou pra todo mundo participar, mas quem se interessou mais foi esses que
ficaram, e algumas agora tão querendo entrar né?! Tão vendo resultado.

Sobre o papel de Organizações Não Governamentais em comunidades rurais,


Weitzman (2016) mostra que o desenvolvimento da agroecologia está relacionado com ONGs,
lideranças e autoridades governamentais. Ou seja, há uma rede de sujeitos que incentivam a
agricultura orgânica no meio rural, para serem considerado como “empreendimento
agroecológico”, os agricultores e agricultoras necessitam estar em constante diálogo com tais
organizações:

As práticas agrícolas que são desempenhadas por este conjunto de agricultoras são
moldadas por um padrão estabelecido pela agroecologia, que é construído a partir
das interfaces com os discursos das organizações sociais. Isto é, ser nomeado como
um empreendimento agroecológico não é um processo sem amarras. Portanto, não
tem como nem porque efetivar uma análise das práticas agrícolas encetadas por
minhas interlocutoras como se fossem campos estanques e impermeáveis, porque
estão sendo constantemente nutridas pelos diálogos com outras lideranças, técnicos
de ONGs e autoridades governamentais (WEITZMAN, 2016, p. 233).

Ademais, sobre a construção de discussões que envolvem gênero em comunidades


rurais, Mota (2006, p. 345) afirma que as assessoras técnicas de ONGs estão desenvolvendo
cada vez mais trabalhos específicos para mulheres. No Santa Madalena, observo que as
ONGs, como a Cepema e a Cáritas Diocesana, por exemplo, buscam discutir questões de
gênero com as mulheres em oficinas e rodas de conversas. Em uma roda de conversa que
acompanhei, escutei as agricultoras afirmarem que aquele momento ‘foi maravilhoso’, pois
elas não têm muitas oportunidades para conversar sobre ‘coisas de mulher, coisas íntimas’, em
momentos realizados por ONGs, onde apenas mulheres estejam presentes. Alessandra disse
que espaços como esses, em grupo, ‘é um momento de terapia’.
Em oficinas, cursos e rodas de conversas desenvolvidos pela Fundação Cepema são
325

feitas discussões sobre a importância da alimentação saudável. Participei de uma oficina de


gastronomia, realizada pela Fundação Cepema, em que as agricultoras deveriam trocar
receitas feitas com os produtos – verduras, hortaliças, frutas – que são plantados em seus
quintais produtivos.
Dessa maneira, as agricultoras enxergam os alimentos que consomem como mais
benéficos para a saúde e de maior qualidade. Siliprandi (2016), ao apresentar o ponto de vista
de suas interlocutoras, mostra que há uma diferença entre produtos “poucos processados”, isto
é, os plantados pelas agricultoras e os “produtos processados”, ou seja, os que são
industrializados. Alessandra, em uma conversa informal que tivemos, disse que ‘não gosta’ de
comprar produtos ‘processados’. Pois os considera ‘ruins’. Ela nos relatou que ‘as comidas
ficam mais gostosas’ quando o alimento ‘é pisado13 na mão e não é processado em máquina’.
Ela nos deu o exemplo do arroz, da castanha e do fubá, que ficam ‘mais gostosos’ quando são
‘pisados na mão’. Ou seja, na fala de Alessandra se observa que ela reconhece a maior
qualidade dos produtos que consome.
No que tange, ainda, à discussão sobre a saúde, como já mencionei anteriormente, as
agricultoras enxergam que o que elas plantam é mais saudável. Assim sendo, Siliprandi (2016)
aponta a importância que agricultoras que desenvolvem a agroecologia dão para a alimentação
saudável e para a saúde, o que também se observa nas falas de algumas das minhas
interlocutoras:
Liliane: Quem come orgânico tem uma qualidade de vida melhor.
Dona Eudes: É bom plantar sem veneno porque a gente tá levando pra gente e pra
família da gente uma coisa que é saudável, né?! Porque aquilo lá cheio de veneno,
nem as próprias pessoas que planta não come. Às vezes, tem uns tomates que são
brancos de tanto veneno!

Além do mais, ainda sobre a dimensão da saúde das agricultoras, Siliprandi (2016)
discute sobre a “medicalização da saúde”14, isto é, ao fato de cada vez mais as pessoas
procurarem medicamentos em farmácias para tratar doenças. No entanto, muitas das
agricultoras em seus quintais e hortas cultivam plantas medicinais. Além de cultivarem,
minhas interlocutoras trocam informações, como presenciei em diálogos feitos entre elas,
sobre os benefícios que cada planta possui. Em uma das vezes em que estive no
Assentamento, senti dores no estômago, assim, Maria, buscou em sua horta erva-cidreira para

13
Isto é, quando o alimento não é produzido por máquinas, ou seja, todo o processo é feito de forma manual.
14
Esse assunto, também, é tratado em rodas de conversas feitas pelas ONGs em comunidades rurais. Participei
de uma sobre gênero e agroecologia e entre os assuntos que foram discutidos, a questão da ‘recuperação da
tradição de fazer chás’ foi abordada, já que com o passar dos anos os remédios farmacêuticos estão cada vez
mais presentes nas casas das agricultoras e agricultores.
326

fazer um chá e disse que ‘cidreira cura rapidinho dor no estômago’. Outra agricultora me
falou que estava com fortes dores de cabeça, já havia tomado vários remédios, e ‘nada da dor
passar’. Ela me disse que só ‘veio amenizar’ quando ela tomou chá.

5 Considerações finais
Portanto, a rede de agroecologia EcoCeará, é capaz de criar laços entre as mulheres
que moram no Santa Madalena. Ela cria ambientes de sociabilidade, pois as agricultoras se
reúnem para trabalhar coletivamente, mas também tecem uma rede de trocas de aprendizados.
As mulheres que fazem parte da Rede também incentivam outras a se somarem a elas, como é
o exemplo de Liliane, que passou a fazer parte quando ‘as meninas a convidaram’.
As múltiplas experiências dessas mulheres – política, coletiva, individual, em rede –
apontam que trabalhadoras rurais sempre estiveram se fazendo presente em universo para
além do privado, isto é, da casa. Logo, as agricultoras traçam nas tessituras da história o fazer
política dentro e fora de casa, ou seja, a política pode se construir nas conversas de cozinhas,
bem como pode ser em rede, organizadas e associadas, mostrando que são sementes de
Margarida Alves.

REFERÊNCIAS
ALVES, Yara C. A casa raiz e o vôo de suas folhas: Família, movimento e casa entre os
moradores de Pinheiro-MG. 2016. 179f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) –
PPGAS/USP, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2016.

CÂNDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a


transformação de seus meios de vida. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.

COMERFORD, John. Fazendo a luta: Sociabilidade, falas e rituais na construção de


organizações camponesas. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.

DAINESE, Graziele. 2020. Trabalhos, Ajudas e Gênero: um Olhar desde as Experiências das
Mulheres da Terceira Margem-Minas Gerais/Brasil. In: H. M. Palermo; M. L. Capogrossi
(dirs.), Tratado Latinomamericano de Antropología del Trabajo. Buenos Aires: CLACSO,
CEIL, CONICET; Córdoba: Centro de Investigaciones y Estudios sobre Cultura y Sociedad
(CIECS). p.1213-1246.

FREDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo:
Elefante, 2017.

FROES, Lívia. Todo Mundo pela Família: Gestão Feminina e Vida Familiar diante do
Assalariamento Sazonal dos Homens. 2012. 114 f. Dissertação de mestrado. PPGA/UFF,
Universidade Federal Fluminense, 2012.

GARCIA JR., Afrânio. Terra de trabalho: trabalho familiar de pequenos produtores. Rio de
327

Janeiro: Paz e Terra, 1983.

GARCIA JR., Afrânio; HEREDIA, Beatriz. Trabalho familiar e campesinato. América


Latina, ano.14, 1971.

MELLO, Marcos Paulo Campos Cavalcantti de. Quando os assentados chegaram: tempo e
experiência social no MST. 2011. 169f. (Dissertação de Mestrado) – Programa de Pós
Graduação em Sociologia, UFC, Fortaleza: 2011.

MOTA, Maria Dolores de Brito. Margaridas nas ruas: as mulheres trabalhadoras rurais como
categoria política. In: WOORTMANN, E.; HEREDIA, B.; MENASCHE, Renata. (Orgs.).
Coletânea Margarida Alves. Estudos Rurais e Gênero 1. Brasília: MDA, 2006. p. 339-353.

PALMEIRA, Moacir. Casa e Trabalho: nota sobre as relações sociais na plantation tradicional
(1977). In: CLIFFORD, W.; MALAGODI, E.; CAVALCANTI, J.; WANDERLEY, M. (Orgs.).
Camponeses Brasileiros: Leituras e Interpretações Clássicas. v. 1, Brasília: Editora Unesp,
2009. p. 203-215.

PAULILO, Maria Ignez. Mulheres rurais: quatro décadas de diálogo. Florianópolis: Editora da
UFSC, 2016.

PIMENTA, Sara Deolinda Cardoso. Identidades em trajetória: gênero e processos


emancipatórios na reforma agrária. In: WOORTMANN, E.; HEREDIA, B.; MENASCHE,
Renata. (Orgs.). Coletânea Margarida Alves. Estudos Rurais e Gênero 1. Brasília: MDA,
2006. p. 150-176.

PRADO, Maria Ligia; FRANCO, Stella Scatena. Participação feminina no debate público
brasileiro. In: PEDRO, Joana Maria; PINSKY, Carla Bassanezi. (organizadoras). Nova História
das mulheres no Brasil. – 1. ed., 1a reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2013, p. 194-217.

SILIPRANDI, Emma. Mulheres e Agroecologia: Transformando o campo, as florestas e as


pessoas. Editora UFRJ, 2016.

TEIXEIRA, Jorge Luan. Na terra dos outros: mobilidade, trabalho e parentesco entre os
moradores do Sertão dos Inhamuns (CE). 2014. 222 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia
Social) – PPGAS/MN, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2014.

WEITZMAN, Rodica. Tecendo Deslocamentos: Relações de gênero, Práticas Produtivas e


Organizativas entre Trabalhadoras Rurais. 2016. 500 f. Tese (Doutorado em Antropologia
Social) – PPGAS/Museu Nacional/UFRJ, 2016.

WOORTMANN, Ellen; WOORTMANN, Klass. O trabalho da terra: a lógica e a


simbólica da lavoura camponesa. Brasília: Editora da UnB, 1997.

Você também pode gostar