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5.7
Resumo Abstract
Entre 2013 e 2014 decorreu no bairro autoprodu- Between 2013 and 2014 the research project
zido da Cova da Moura o projeto de investigação 'Relational Space and Right to the City' was held
‘Espaço Relacional e Direito à Cidade’, inspirado in the self-produced neighbourhood of Cova da
no potencial transformador do conceito lefebvria- Moura, inspired by the transformative potential
no de direito à cidade. Na sua execução, o projeto of the Lefebvrean concept of the right to the city.
veio a centrar-se especialmente num laboratório During its execution, the project focused partic-
de intervenção urbana situada, ‘Este Largo Podia ularly on a situated laboratory of urban interven-
Ser Assim’, focado na reflexão, com os moradores, tion, 'Este Largo Podia Ser Assim' (This Square
sobre perspetivas de transformação de um espaço Could be Like This), centred on the reflection with
público e a sua contribuição para os temas da inhabitants on the possibility of the transforma-
qualificação urbanística numa dinâmica bottom- tion of a public space, and its contribution to the
-up. Este artigo foca-se na dimensão processual subject of the urban qualification, in a bottom-up
do laboratório através do olhar de uma equipa dynamic. This article focusses the processual
multidisciplinar, recorrendo às perspetivas de dimension of the laboratory through the eyes of a
Mouffe e Rancière, explorando as implicações de multidisciplinary team, based on the perspectives
discutir este tipo de processos como espaços de of Mouffe and Rancière, exploring the impli-
prática democrática, onde há lugar à articulação cations of discussing this type of processes as a
de dissensos. space of democratic practice, where there is room
for articulating dissent.
Palavras-Chave Keywords
Dissenso; Agonismo; Investigação-ação participa- Dissent; Agonism; Participated action research;
da; Urbanismo tático; Liminar Tactical Urbanism; Liminar
1. Espaço Relacional e Direito à Ci- colonizados por Portugal, com destaque para Ca-
dade. Investigação-ação no Bairro da bo-Verde. Em 1978, no quadro de forte escassez
Cova da Moura habitacional que marca a época, os moradores
da Cova da Moura procuram assegurar o seu fu-
O bairro da Cova da Moura, integrado no muni- turo no bairro, dado que não eram proprietários
cípio da Amadora, surge em finais da década de dos terrenos onde construíram as suas casas. Or-
1970, quando a ocupação dos terrenos de uma ganizam-se numa Comissão de Moradores e ten-
antiga quinta se intensifica e os usos agrícolas tam obter da autarquia uma postura cooperante,
cedem de vez lugar à construção de habitação quer através do apoio à infraestruturação básica
própria pelos ocupantes, na sua maioria migran- do bairro realizada até ao início dos anos 1980,
tes rurais e imigrantes dos países anteriormente primeiro pela autarquia de Oeiras e mais tarde
a
Arquiteta, doutora em Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, investigadora do CIAUD e membro do Grupo de Estudos Sócio-Ter-
ritoriais, Urbanos e de Ação Local (Gestual-CIAUD/FA-UL).
b
Professor emérito de ‘Cooperative, Social and Intercultural Education’ da Universidade de Lerven, na Bélgica, e Professor convidado da Universidade de Chu-
lalongkorn, em Bangkok.
c
Antropóloga e doutora em Antropologia, investigadora do CIAUD e membro do Grupo de Estudos Sócio-Territoriais, Urbanos e de Ação Local (Gestual-CIAUD/
FA-UL).
d
Arquiteta, doutoranda em Arquitetura no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), membro do Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o
Território (Dinâmia-ISCTE-IUL) e do Instituto em Investigação em Arte, Design e Sociedade (i2ads, FBA-UP).
e
Designer de Comunicação pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa (UL) e doutoranda em Design na Faculdade de Arquitetura da Universidade
de Lisboa, onde também leciona.
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As quatro associações que formam a Comissão de Bairro são: Associação Cultural Moinho da Juventude, Associação de Solidariedade Social do Alto Cova da Mou-
ra, Associação de Moradores do Bairro do Alto da Cova da Moura e o Centro Social Paroquial Nossa Senhora Mãe Deus da Buraca. À exceção da última enunciada,
com carácter religioso, as três associações da Cova da Moura trabalham desde os anos 1980 em áreas como a infraestruturação e melhoramentos urbanos, e também
nas vertentes do desporto, da cultura ou da formação profissional, traduzindo-se num bairro com forte dinamismo associativo.
2
A ‘Iniciativa Bairros Críticos’ – Resolução do Conselho de Ministros nº 143/2005, de 2 de Agosto publicada no DR, I Série – B, de 7 de Setembro de 2005, consistiu
num intervenção sócio-territorial integrada, assente num envolvimento interministerial, na participação de parceiros locais e parcerias público-privadas. A IBC
focou-se em três territórios: Cova da Moura (Amadora), Lagarteiro (Porto) e Vale da Amoreira (Moita).
3
O Projeto ERDC beneficiou de financiamento por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia (refª EXPL/ATP-EUR/1772/2012).
No website do projeto ERDC encontra-se uma síntese das atividades e elementos produzidos — http://erdc.fa.ulisboa.pt (acedido em 10 Junho de 2016).
4
O projeto ERDC foi composto pela seguinte equipa multidisciplinar: Coordenação: antropóloga Júlia Carolino; Oficinas - Joana Pestana Lages (coord), Joana Bra-
ga, Inês Veiga, Sofia Borges, Teresa Sá, Arménio Brito dos Santos; Consultores - Isabel Raposo, Danny Wildemeersch, Eric Hirsch; Avaliação e Monitorização - Ana
Valente; Design Gráfico - Inês Veiga; Documentação Visual - Sofia Borges, Walter Fortes, Celso Lopes; Colaboradores Locais - Associação de Moradores do Bairro
do Alto da Cova da Moura, Associação de Solidariedade Social do Alto da Cova da Moura, Associação Cultural Moinho da Juventude.
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do urbanismo tático. O espaço escolhido, o Lar- quer na reconversão urbanística das extensas
go de Santa Filomena, configura uma das poucas áreas de loteamentos ‘clandestinos’. Verifica-se
aberturas na densa malha do bairro, com carên- que os programas e instrumentos são lentos, fa-
cias fortes ao nível do espaço público. zendo com que alguns destes territórios esperem
Com o fim do projeto de investigação e do durante décadas por uma intervenção que não
laboratório que lhe deu corpo não se verificou chega, agravando-se as condições sócio-espaciais
uma visão partilhada, e sobretudo legitimada, existentes, tal como verificado na Cova da Moura.
entre habitantes e associações locais quanto ao Um agir mais tático na condição liminar, situação
modo de operar uma qualificação concreta. Este de transição, pode contribuir para combater os
desfecho interpelou fortemente a equipa que não longos tempos do planeamento urbano que pro-
deixou de sentir a falta de transformações reais vam ser um fator disruptivo na praxis urbanísti-
como um insucesso, questionando as condições ca, promovendo a operacionalização do direito à
entre a dimensão processual e a dimensão dos cidade, fundamento do projeto ERDC. Foi sobre
resultados que os próprios processos geram. esta premissa, num contexto marcado pela im-
Formulado em dois eixos principais, o pro- potência dos habitantes e associações locais em
jeto ERDC teve como primeiro eixo a constitui- encontrar mecanismos legais e operativos para
ção de um laboratório assente na permanência agir no sentido de melhorar as condições físicas
no terreno da equipa de investigadoras através do bairro — suspenso num limbo jurídico que as-
da realização de oficinas participadas e pesquisa senta na ausência de titularidade da propriedade
etnográfica, numa dinâmica de intervenção urba- pelos seus habitantes — que a articulação entre o
na situada que se designou ‘Este Largo Podia Ser ‘agir tático’ liminar e o direito à cidade tomou for-
Assim’, focada no Largo de Santa Filomena. As ma. O urbanismo tático pode ser visto como ‘uma
oficinas participadas organizadas em torno da re- manobra mais ligeira, de resposta a uma falta, po-
presentação do espaço, objetivaram compreender dendo agir como subversão política ou ação cria-
e criar condições para um desenho urbano inspi- tiva, enquadrada ou não no planeamento conven-
rado nas práticas, saberes e anseios dos morado- cional e sempre mais próxima das pessoas a quem
res. O segundo eixo do projeto ERDC pretendeu se destina’ (id., p. 48). No contexto destas recen-
estabelecer uma relação entre a construção das tes práticas de intervenção na cidade de carácter
propostas de requalificação e o enfoque no espa- temporário ou ‘improvisado’ (Tonkiss, 2013),
ço relacional como modo de promover o direito à questiona-se a atual produção de cidade em con-
cidade, como pensado por Lefebvre (1968). Este texto neoliberal, cujo mecanismo de produção
segundo eixo, embora não seja o foco do presente de desigualdades sócio-espaciais foi descrito por
artigo, substancia o primeiro, dado que é nele que Harvey (1973) há já mais de 4 décadas, fazendo
estão ancorados os dois conceitos orientadores às o mesmo autor recentemente uma chamada de
oficinas: o direito à cidade e a conceção de traba- atenção para a insurgência e luta pela alternativa
lhar liminarmente em territórios autoproduzidos. aos modelos hegemónicos de produção do espaço
A secção seguinte explicita estes conceitos, articu- (2012).
lando-os com a ideia de dissenso enquanto espa- Estes modelos hegemónicos de produção do
ço de prática democrática. espaço são também fruto da vertente racional do-
minante no planeamento urbano, já questionada
pelas abordagens do planeamento colaborativo
2. Do direito à cidade ao espaço do assentes no consenso (Healey, 1997; 2003). No
dissenso entanto, verifica-se que muitas destas aborda-
gens colaborativas são excessivamente centradas
O diálogo com o conceito antropológico de limi- na obtenção de consensos, anulando espaço para
naridade (Turner, 1964) que remete para o hia- o dissenso e para o conflito.
to transitório caracteristicamente associado aos A incorporação do dissenso no âmbito do pla-
processos de passagem de uma condição a outra neamento urbano sugere que as aproximações e
(neste caso, a passagem do ‘irregular’ ao ‘regular’), o compromisso surjam do desenrolar da prática
surgiu no contexto do projeto de investigação e da democrática, provocando a participação na to-
reflexão feita sobre territórios expectantes como o mada de decisões pela ação, por vezes conflitual,
bairro da Cova da Moura (Lages, 2017). onde se expressam interesses e racionalidades,
Os territórios autoproduzidos da Área Metro- ao invés de os anular. Entre o apelo à participa-
politana de Lisboa foram ao longo dos últimos 50 ção das abordagens colaborativas (que suprime
anos alvo de diversos tipos de respostas, quer na o conflito) e o excessivo centramento na técni-
‘erradicação’ dos chamados ‘bairros de barracas’, ca das abordagens racionalistas (que suprime a
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Corresponde ao antigo Jardim Central da Buraca, espaço público ajardinado requalificado ao abrigo do programa de iniciativa comunitária URBAN II (Damaia -
Buraca) em 2004 e com obras de manutenção em 2012.
6
O vídeo projetado está disponível no endereço https:/vimeo.com/95176889 (consultado a 15 de Fevereiro de 2017).
7
O vídeo realizado para apresentação e divulgação da proposta está disponível em https://vimeo.com/95164636 (consultado a 15 de Fevereiro de 2017).
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O debate em torno do desenho proposto sal- fora’ e, portanto, sem familiaridade com as preo-
dou-se em duas posições distintas: por um lado, cupações ‘reais’ dos habitantes e do bairro. As in-
os que continuaram a defender a permanência vestigadoras, por outro lado, esperavam ganhar
dos usos existentes, em exclusivo, mantendo o legitimidade através do conhecimento técnico
estacionamento como estava. Por outro, os que que traziam e da interação aberta em correspon-
gostaram da proposta apresentada e defenderam, dência com os habitantes, abrindo perspetivas
desde logo, a sua execução, criando no Largo no- para uma vida melhor através do (re)desenho de
vas oportunidades para brincar e conviver. Da ex- um novo espaço público para o bairro.
ploração destas possibilidades divergentes surgiu A fricção não se concluiu após a realização da
por fim, de forma mais clara, a questão de quem última oficina. À semelhança de muitas outras lu-
controlaria com eficácia a transformação dos tas no bairro e em seu torno, o debate sobre o fu-
eventuais novos usos potenciados pelos melhora- turo do Largo mantém-se em aberto. O resultado
mentos, com os opositores à mudança colocando final, se se chegar a um, será definitivamente in-
a hipótese de que se instalassem ou expandissem, fluenciado pelas transformações que ocorrerem
no Largo, dinâmicas não residenciais receadas em termos das dinâmicas a nível sociocultural,
pelos moradores (como por exemplo jovens em económico e de poder político a nível municipal e
permanência nas suas dinâmicas urbanas que para lá dele. No entanto, o processo democrático
trariam barulho, agitação e até tráfico de droga, estimulado pelo projeto de investigação não per-
nas palavras de um morador do Largo). de significado. Já Rancière, e de forma um pouco
Não obstante a dinâmica estabelecida, o pro-
jeto chegou ao fim sem que se concretizasse uma
intervenção física no Largo de Santa Filomena.
Para além da explicitação de divergências entre
habitantes locais, do processo participado resul-
taram, também, entre as investigadoras, diver-
gências quanto à natureza dos processos parti-
cipados e, especificamente, à natureza do papel
por si desempenhado em todo o processo. É
sobre estas duas dimensões que se questiona no
ponto seguinte a abertura de um espaço demo-
crático durante o processo com foco no Largo.
4. Um espaço democrático?
diferente de Mouffe, argumenta que o dissenso é entre os seus habitantes, na perspetiva da antro-
um aspeto importante do processo criativo, seja póloga. As arquitetas e designer tendiam para
ele artístico, político ou educacional. Dissenso uma abordagem reflexiva de investigação-ação:
significa rutura, disjunção, ou interrupção do compreender no contexto da intervenção; en-
que é autoevidente. A presença de intervenien- quanto a antropóloga recorrentemente expres-
tes ‘de fora’, demonstrando alternativas para o sou reserva relativamente às formas particulares
ambiente vivido, como foi o caso na experiência de abordar o espaço que caracterizam a perspeti-
do Largo, consiste à luz destas ideias num ato va do ‘especialista’ — no caso o arquiteto/desig-
legítimo, mesmo quando não é bem-vindo por ner —, que chega ao terreno com o seu conheci-
alguns dos habitantes. A apresentação de dife- mento técnico, intervindo e pesquisando a partir
rentes imagens de ‘outros largos’, ou a ideia de da intervenção que o próprio, inevitavelmente,
que o lugar em questão poderia transformar-se gera. No entender da antropóloga, a pesquisa
‘noutro lugar’, apelou à ordem do sensível, ou não se deveria focar de forma dominante na in-
à imaginação dos habitantes, convidando-os a tervenção, mas na compreensão daquele lugar,
considerar formas alternativas de viver em con- enfatizando a perspetiva etnográfica disciplinar-
junto no domínio público. mente mais ligada à antropologia.
Não é claro, no entanto, até que ponto estes Estas visões discordantes revelaram-se so-
acontecimentos trouxeram de facto uma rutura bretudo quando eram necessárias decisões sobre
nas mentes e aspirações dos participantes e da a organização das oficinas, tornando-se mais in-
comunidade mais abrangente. A impressão ge- tensas à medida que as visões divergentes entre
ral, após a realização das oficinas, foi de ambi- os habitantes se expressaram mais claramente. A
valência, estando algumas pessoas e associações conceção de interdisciplinaridade que esteve no
claramente a favor, permanecendo outras em si- centro do desenho do próprio projeto ERDC teve
lêncio, outras expressando o seu desacordo. No como objetivo superar a fragmentação de saberes
final, foi difícil saber se a investigação-ação par- das diversas áreas de conhecimento envolvidas,
ticipada realmente operou ruturas em que ‘um colocando-as em posição de igualdade na im-
choque, fruto de duas formas heterogéneas do portância que conferiam à produção coletiva de
sensível, alberg[asse] um entendimento do esta- conhecimento. Acreditou-se, que numa pesquisa
do do mundo […] [que produzisse] a decisão de reflexiva de investigação-ação participada de ca-
o mudar.’ (Rancière, 2010, p.143). rácter interdisciplinar, a tentativa de superar a
As reflexões de Mouffe e Rancière sobre o fragmentação de saberes contribuísse para uma
dissenso foram relevantes no modo como a equi- articulação entre a academia e as questões trazi-
pa de investigadoras operou e discutiu entre si das pelos habitantes e associações locais da Cova
durante o processo, trazendo diferentes visões da Moura respondendo à produção coletiva do
quanto a como organizar as oficinas e como espaço, do desenho à construção. Contudo, o dis-
avaliar processo e resultados. O dissenso esteve senso originado pelos diferentes posicionamentos
presente, relacionando-se sobretudo com as di- disciplinares mostram a dificuldade inerente à
ferentes perspetivas quanto à forma como o pro- produção de ciência, muito enraizada na tradição
jeto poderia contribuir simultaneamente para a da divisão de saberes, numa luta de adversários.
produção de conhecimento e o melhoramento Este dissenso mostra ainda que a investiga-
do bairro. Logo num estádio inicial, durante o ção não é uma atividade neutra. Em todas as eta-
planeamento das oficinas, perspetivas divergen- pas da pesquisa, desde o planeamento até à ava-
tes emergiram, sobretudo entre as investigado- liação, as decisões tomadas não foram isentas
ras do campo do design e da arquitetura com a de valores. Particularmente no contexto da pes-
investigadora da área da antropologia. quisa interdisciplinar, como foi o caso no pro-
A principal tensão situou-se nos objetivos e jeto ERDC, diferentes visões e paradigmas são
métodos de pesquisa. Quanto aos objetivos, a postos em prática. Desta forma, a pesquisa tem
discussão foi contínua em momentos interca- também, inevitavelmente, uma dimensão políti-
lares de avaliação, questionando se a pesquisa ca, tornando importante que os investigadores
deveria deixar algo de concreto, tangível, simbo- saibam lidar com o dissenso. Para o conseguir,
lizando a diferente perspetiva sobre o desenvol- evitaram-se paralisações em torno de oposições
vimento do bairro (o ponto de vista das arquite- binárias do tipo certo/errado, mais uma vez re-
tas e designer), ou se a pesquisa consistia antes correndo ao agonismo de Mouffe, através do re-
de mais num meio para chegar a um melhor en- conhecimento da legitimidade entre opositores.
tendimento sobre como o espaço do Largo e do Na experiência no Largo de Santa Filomena e
bairro está em construção através das relações nas discussões ocorridas em ambiente académi-
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co, na Faculdade de Arquitetura, os momentos de dissenso quanto ao futuro do bairro, dissenso que
dissenso estiveram obviamente presentes, sendo reflete também, de diferentes maneiras, as pers-
por vezes frustrantes para as investigadoras en- petivas divergentes que existem na comunidade
volvidas. No entanto, através da articulação explí- mais abrangente e para lá dela, provando que a
cita da diferença e do dissenso, houve momentos luta pela hegemonia continua.
de genuína prática democrática, em que o antago- A pesquisa revelou ainda as dificuldades em
nismo se tornou agonismo e onde se criou espaço superar a fragmentação de saberes disciplinares.
para temporariamente ‘reconfigurar as distribui- No entanto, uma vez superados, a articulação da
ções do público e do privado, do universal e do diferença e do dissenso resultaram em momen-
particular’ (Rancière, 2005, p. 62). tos de prática democrática que conduziram a uma
democratização da própria ciência entre investi-
gadoras e habitantes da Cova da Moura, num es-
Conclusão paço de liberdade e aprendizagem mútua que não
pode ser desvalorizado apesar da intervenção no
O Largo de Santa Filomena, um lugar real, atraves- Largo continuar, por enquanto, expectante.
sado e usado todos os dias, tornou-se durante as
oficinas que deram corpo ao laboratório ‘Este Largo
Podia Ser Assim’ um lugar também de experimen- Referências bibliográficas
tação, onde se levantaram questões sobre como vi-
ver em conjunto no bairro e sobre como conceber • Borges, Sofia (2010), "Quando os outros co-
o seu futuro. Procurou-se inspirar este questiona- laboram na prática artística", Mestrado em Estu-
mento pelo desenho, que abrisse possibilidades a do Curatoriais, Lisboa: Faculdade de Belas Artes
modos de usar o espaço entre as pessoas que o fre- da Universidade de Lisboa. Disponível em http://
quentam, e a relacionarem-se umas com as outras repositorio.ul.pt/handle/10451/6541[Cons.
num espaço mais vivido. Ensaiaram-se alternati- 01/05/2017].
vas, nas quais a realidade quotidiana foi parcial e • Borges, Sofia (2012), “Quando o Artista deci-
temporariamente interrompida. Pode considerar- de abrir a porta do seu ateliê e começar a olhar à
-se que, neste sentido, as oficinas construíram um sua volta…”, Revista Crítica de Ciências Sociais,
‘outro lugar’ que pode ser encarado como um lugar n.º 99, pp. 185–202.
de dissenso, onde se criou um tempo e um espaço • Carolino, Júlia; Joana Lage (2012), Pro-
em que as pessoas puderam lidar de forma intensa posta de Pesquisa do Projecto ERDC - Espaço
com os problemas em questão e com as tentativas Relacional e a Promoção do Direito à Cidade,
de tornar públicas as preocupações que tendem a Laboratório Experimental no Bairro da Cova
ser individualizadas e privatizadas no contexto do da Moura, Área Metropolitana de Lisboa. Refa
atual planeamento urbano contemporâneo. EXPL/ATP-EUR/1776/2012 - Fundação Para
Os habitantes explicitaram as suas posições a Ciência e a Tecnologia, Lisboa: GESTUAL -
relativamente ao projeto/processo ‘Este Largo CIAUD.
Podia Ser Assim’ através das suas próprias nar- • Craveiro, Teresa (1983), Cova Da Moura,
rativas, muitas delas baseadas em perceções de Câmara Municipal da Amadora. Policopiado.
transformações urbanas que derivam da não-in- • Harvey, David (1973), Social Justice and the
tervenção pública no bairro nas últimas décadas. City, n.º 1, Londres: Edward Arnold.
Neste sentido, a falta de legitimidade para agir foi • Harvey, David (2012), Rebel Cities: From
sentida por todos (investigadores, associações e the Right to the City to the Urban Revolution,
habitantes) como o bloqueio que levou à não im- Londres: Verso.
plementação dos melhoramentos que associações • Healey, Patsy (1997), Collaborative Planning:
locais viam como desejável. Esta intervenção li- Shaping Places in Fragmented Societies, Vancou-
minar, ancorada na perspetiva do urbanismo tá- ver: UBC Press.
tico, provou necessitar de uma ligação ao poder • Healey, Patsy (2003), “Collaborative Planning
público, ainda que ténue, como forma de superar in Perspective”, Planning Theory, Vol. 2, n.º 2, pp.
as perspetivas divergentes, sobretudo das asso- 101–23.
ciações e alguns habitantes, receosos dos poten- • Holston, James (2008), Insurgent Citi-
ciais efeitos da transformação do Largo. Perma- zenship: Disjunctions of Democracy and Mo-
neceu, pois, incerto, se o desejo de mudança foi dernity in Brazil, Princeton: Princeton Univ.
despoletado entre a maioria dos habitantes da Press.
área em torno do Largo de Santa Filomena. O que • Lages, Joana (2015), “A pesquisa também de-
esta experiência nos mostra é que existe, de facto, senha. Projectos de desenho participado em terri-
72 | Sobre o dissenso. Considerando o laboratório ‘Este Largo Podia ser Assim’, no Bairro da Cova da Moura