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ENTREVISTA

R aqu e l R o l nik

Pensar a cidade
como lugar para todos
A urbanista que ajudou a criar o Ministério das Cidades afirma que não acabaremos com
a violência se não superarmos o apartheid em nossas comunidades e diz que, além de
funcionar, o espaço coletivo precisa ser belo

Por Carlos Costa


Fotos Tiana Chinelli

A
trajetória da arquiteta e urbanista Raquel Rolnik de algum modo se
confunde com as discussões e propostas que levaram à criação do
Estatuto das Cidades, lei 10.257, aprovado em julho de 2001 pelo
Congresso Nacional. Diretora de Planejamento da cidade de São
Paulo de 1989 a 1992, gestão Luísa Erundina, Raquel foi até julho
deste ano secretária de Programas Urbanos no recém-criado Ministério das
Cidades, que ajudou a implantar. Formada pela Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo da Universidade de São Paulo, doutora em história urbana
pela Universidade de Nova York, ela é professora da PUC de Campinas e
professora associada ao Programa de Pós-Graduação em Projetos Urbanos
na Universidade de Buenos Aires e integrante do Lincoln Institute of Land
Policy. Nesta entrevista a Getulio, concedida em sua casa encravada numa
íngreme encosta do bairro de Vila Madalena, em São Paulo, Raquel falou
com o mesmo entusiasmo com que apresentava em programas de rádio, como
o Cidades do Brasil, as propostas que implantava no Ministério. A seguir,
alguns dos melhores momentos.

Brasília encanta com os espaços e edifícios. Agora, quem mora lá se queixa de


que é uma cidade em que não se pode andar.
Raquel Rolnik O maior problema de Brasília, infelizmente, não é esse.
Brasília é hoje uma das claras personificações do apartheid que é o modelo
de urbanização brasileiro: a idéia de um espaço de qualidade para poucos,
enquanto as maiorias ficam de fora. Em Brasília isso é levado ao extremo. O
Plano Piloto é um pedaço nobre da cidade e foi projetado inicialmente por
Lucio Costa para ser a cidade inteira, não é?

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Incluindo mordomo e empregada mo- de ter morado quatro anos lá mudou circulação e transporte é produto da muito em função dos interesses liga- casas construídas por eles próprios outros investimentos na mesma
rando no mesmo prédio. a minha visão da cidade. As pessoas relação entre duas políticas: uma de dos ao processo de parcelamento de nos fins de semana, em lotes com- direção. É modelar o processo de
Na mesma quadra, não no mes- que vêm de fora chamam Brasília uso e ocupação do solo, que excluiu solo e abertura de novos loteamentos prados em locais distantes, sem infra- Bogotá, cidade que se transformou
mo prédio. Com isso ele até propôs de desumana. Mas, na verdade, ti- os pobres do acesso à terra urbaniza- na cidade. Esse [dá um estalo com os estrutura, a custo baixo. Isso foi outro em algumas gestões, sob a lideran-
uma tipologia residencial, com apar- rado esse aspecto de alta segregação, da e bem localizada, e não deixou dedos] é que é o negócio! O ônibus grande negócio para os parceladores, ça sucessiva de dois prefeitos, num
tamentos menores, sem elevador, di- viver no Plano Piloto é altamente a eles outra opção senão se instalar e o carro têm uma possibilidade de que venderam milhares de lotes para contexto democrático e com partici-
retamente no piso, e apartamentos gratificante. É um lugar onde, por em periferias distantes e sem infra- alcance muito disperso no território: trabalhadores. Escrevi num artigo, já pação da cidadania. Mas não existe
maiores, chegando até os de quatro exemplo, quem vive na Superquadra estrutura; e a outra de circulação, vão penetrando na medida em que a considerando um período posterior, projeto de uma única pessoa. Cidade
dormitórios com quatro banheiros, tem acesso, a pé, a todos os serviços que privilegiou o sistema viário sobre rua vai se estendendo, viabilizando o do milagre brasileiro, que esse foi é sempre produto coletivo, essa é sua
possibilitando a convivência de básicos. É uma das únicas cidades pneus, em detrimento do sistema so- a ocupação dispersa. Já a ocupação o “santo do milagre”, porque a auto- natureza. Quem disser “eu fui autor
uma diversidade social. Mas o que do Brasil onde os espaços da classe bre trilhos. Isso num momento fun- do bonde e do metrô é concentrada. construção da periferia permitiu um de uma cidade” mente. Claro que
é Brasília hoje? É uma cidade de 2 média e alta não são totalmente mu- damental da história da cidade. O que as pessoas conseguem ocu- crescimento industrial enorme, além temos um problema sério na nossa
milhões de habitantes onde 400 mil rados. Os prédios da Superquadra, par é no máximo uma distância, a da migração, e pagando mão-de-obra história, que é uma dissociação entre
estão no Plano Piloto, e esvaziando. ao contrário dos prédios dos bairros A opção pelas grandes avenidas? pé, da casa até a estação. Nos anos baratíssima, pois o custo da moradia planejamento a longo prazo, com re-
O resto, na verdade a maioria, vive de classe média de São Paulo, Rio, Foi exatamente nos anos 1930 que 1930 a cidade tinha 100 habitantes nunca entrou no cálculo de salário gras estáveis, e os investimentos em
nas cidades-satélites ou nas cidades Salvador ou Belo Horizonte, não são se optou claramente pelo Plano de por hectare, que é mais ou menos do trabalhador. obras, que acabam seguindo lógicas
do entorno do Distrito Federal, ain- gradeados, são abertos. E, no entan- Avenidas de Prestes Maia em detri- uma quadra. Nos anos 1950 eram nem sempre fiéis ao que foi plane-
da mais precárias. É um modelo em to, o problema da violência não é mento de uma proposta apresentada 30 habitantes. Ou seja, a população Sua tese de doutorado foi sobre a ci- jado. Nos raros momentos em que
que se tem uma espécie de “cordão maior do que nos lugares murados. pela Light [The Tramway São Paulo se espalhou para a periferia. Esse dade e a lei. Tomando como exemplo esse encontro acontece, há projetos
sanitário” de verde em volta do Pla- São elementos importantes da quali- Light Company] de continuar com o modelo viabilizou os loteamentos os casos de Bogotá, na Colômbia, com bem-sucedidos na cidade.
no Piloto, separando uma cidade da dade da cidade. monopólio do sistema de bondes e in-

Não existe projeto de uma única pessoa.


Cidade é sempre produto coletivo, essa é sua natureza.
Quem disser “eu fui autor de uma cidade” mente
outra. O transporte não funciona à A senhora publicou Folha Explica São vestir no metrô subterrâneo e articular
noite, por exemplo. Quando as pes- Paulo. Como se explica a cidade de isso ao sistema de trens existente. Essa e explica a expansão periférica. O Enrique Peñalosa, e de Curitiba, com A senhora escreveu sobre o cinismo
soas que moram nas cidades-satélite São Paulo? proposta foi rejeitada, entre outras ra- loteamento foi o grande negócio Jaime Lerner, prefeitos carismáticos dominante na nossa política urbana:
têm de sair às 8h, 9h da noite do Pla- É o inexplicável. O senso comum zões pela péssima fama que tinha a imobiliário para a burguesia. que deixaram um legado, qual é o de um lado reitera nos planos uma re-
no Piloto, não têm ônibus. diz que São Paulo não foi planejada, Light naquele período, por prestar papel da lei na criação de modelos gulação urbanística excludente e de
que é um caos porque não teve pla- um péssimo serviço de transporte. Empreendimentos como a City Lapa, acima da iniciativa de uma pessoa em outro negocia no dia-a-dia interesses
É um modelo perverso recorrente nejamento. Mas existe uma lógica por exemplo? querer mudar a cidade? pontuais e corporativos, com práticas
no país. por trás dessa aparente desordem. Historicamente, a visão é de que foi Sim, os loteamentos da City [City É importante lembrar que não te- clientelistas e de compra de votos.
As cidades-satélite são negras e mu- A tentativa no livro foi a de explicar decisão da elite dona de carros. of São Paulo Improvements and Free- ria acontecido a intervenção Jaime Essa é uma das hipóteses centrais
latas, e o Plano Piloto é branco; uma qual é a lógica que construiu a “de- Na verdade, os anos 1920 são o hold Land Company Limited]. Hou- Lerner em Curitiba sem o plano di- do livro A Cidade e a Lei: o quanto
é de baixa renda, a outra é de alta sordem” de São Paulo. Uma lógica momento de disseminação do auto- ve uma relação promíscua entre a di- retor da cidade elaborado antes dele. nossas regras de uso e ocupação do
renda. Então, há uma reprodução feita de planos, de decisões e políti- móvel com o sistema de produção reção da City e a própria concessão Como também não teria aconteci- solo foram feitas por poucos, para
de indicadores que estão presentes cas públicas, e não da ausência delas. fordista, que o torna possível objeto de serviços públicos. Esses loteamen- do a de Peñalosa em Bogotá sem o poucos, e dialogando com o modo
em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Uma política pública que ao longo de consumo de massa. Isso ainda tos já eram abertos com todos os ser- enorme esforço de planejamento de organização econômico-cultural
Horizonte... Uma contraposição en- da história fez determinadas opções. não era realidade no Brasil. Um gru- viços disponíveis: água, esgoto, luz, feito antes na gestão do Antanas das classes médias e altas; ignorando
tre a periferia pobre e o centro mais O livro recupera como cada uma po muito restrito usava o automóvel. pavimentação. Essas companhias de Mockus [prefeito de Bogotá de 1995 a maior parte da população da cida-
qualificado, que concentra renda nas dessas opções foi construída, quem Nos anos 1930, todos os grupos so- serviços públicos tinham sociedade a 1997 e de 2001 a 2003]. Foi An- de, que tem outras práticas econô-
mãos de poucos. Em Brasília isso é estava por trás e qual foi o efeito a ciais andavam de bonde e usavam o nos loteamentos. Mas para os pobres tanas quem construiu a cultura do mico-culturais em relação à própria
extremo. Nenhuma cidade é tão se- longo prazo. Um exemplo concreto transporte coletivo. Andar de bonde o loteamento de periferia foi a alter- espaço público, quem investiu for- organização do espaço. Portanto,
parada, tão segregada como ela. Isso é o trânsito, que aborrece 100% dos era elegante. Mas é claro que foi nativa de moradia, a favela. Histo- te num planejamento orientado. historicamente a produção social do
é uma vergonha. Mas a experiência paulistanos. O caos no sistema de uma decisão da elite. Eu diria que ricamente os pobres vão morar em Depois veio o Peñalosa e realizou habitat popular, a parte produzida

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pelo povo, por princípio já é ilegal e implementação do Estatuto cabe E houve participação da população? condomínios fechados, numa cidade
irregular. A lei é uma espécie de car- ao município. O papel do governo Isso é um balanço que ainda projetada para ricos?
tografia dos mercados de classe mé- federal, a nosso ver, quando organi- temos de fazer. Mas os resultados Sim, a arquitetura fragmentada e
dia e de alta renda. Não se relaciona zamos o Ministério das Cidades, é virão. Diria que uns 30% desses pla- excludente... E as escolas de arquite-
com a produção popular. Dou um apoiar, auxiliar, sensibilizar os mu- nos foram feitos de fato com parti- tura embarcaram nessa viagem. Teve
exemplo simples: quase não existe nicípios nesse esforço, até porque os cipação da população. Em cidades uma onda perversa nos anos 1990. A
em cidades brasileiras um zonea- municípios são de uma total fragi- menores, de 50, 60 mil habitantes, cidade sumiu das escolas de arquite-
mento que permita construir três, lidade institucional, administrativa tivemos experiências marcantes tura. Não havia mais reflexão sobre a
quatro casas para moradia no mes- e financeira! O Estatuto amarrou a de processo participativo que hoje cidade, só sobre edifícios e projetos.
mo lote. A única forma de construir aplicação dos novos instrumentos se transformam em investimentos Abandonamos a idéia de universali-
vários domicílios no mesmo lote na à elaboração de um plano diretor, concretos de transformação do es- dade, da cidade como espaço coletivo
legislação é a verticalização, ou seja, que é uma espécie de pacto terri- paço. Essa foi uma das principais para todos, em nome de projetos ur-
prédios. Como é que a maior parte torial. ações que coordenei. Agora, por banos isolados. Mas hoje a cidade está
do povo mora? São duas, três casas que saí do Ministério das Cidades? voltando para a escola de arquitetura.
no mesmo lote. Constrói uma, de- Foi uma das coisas que a senhora Porque... Hã... [pausa] Infelizmen- A existência do Ministério das Cidades
pois outra para o filho que casou, implantou? te é uma questão que está no campo e a campanha do plano diretor partici-
outra em cima para alugar... É no plano diretor de cada mu- da cultura política brasileira, stricto pativo contribuíram para a volta dessa
nicípio, com participação dos cida- sensu, e da tradição político-partidá- pauta às escolas. Sou professora numa
Um puxadinho... dãos, que todas as concepções do ria brasileira: um dos principais ele- faculdade de arquitetura, a PUC de
Exatamente, mas o puxadinho Estatuto têm de ser aplicadas. Tro- mentos de reprodução de mandatos Campinas, e assisto à volta do tema
não existe na legislação. E o país cando em miúdos, a Constituição parlamentares são investimentos depois de ter ficado tremendamente
é um monte de puxadinhos! A le- diz: “Toda cidade e toda proprie- urbanos por meio das emendas, e desprestigiado. O Ministério das Ci-

O puxadinho não existe na legislação, é ilegal. E o país é um monte de Vamos fazer um monte de Cidade Tiradentes, terríveis, lá no meio do nada,
puxadinhos! A legislação não toma conhecimento da produção real. ou vamos preencher os vazios urbanos, ofertar com mistura social?
gislação não toma conhecimento Por que saiu e o que gostaria de ter dade urbana têm que cumprir sua nem estou falando de desvio, de orgulhar. A ponte foi uma obra que dades tem a missão de promover essa
da produção real. Aí vem a ques- feito e não conseguiu? função social”. É o plano diretor de superfaturamento... a população abraçou e virou símbolo cultura, de fazer políticas urbanas, de
tão: como é que a produção real se Que pergunta difícil! Bom, fui cada cidade que dirá qual é a fun- de Brasília. Não sou contra monu- liderar esse processo, porque é para
relaciona com a gestão do governo para ajudar a construir o Ministério ção social específica. A razão disso é Está falando do trabalho sério dos depu- mentos. Mas acho que, se investimos isso que ele serve. Não pode ser só um
municipal? Negociando na excep- das Cidades, que não existia. Isso importante: como o governo federal tados em propor emendas e trazer recur- num processo público e coletivo de mero distribuidor de recursos! Mas é
cionalidade. É como dizer, “Olha, foi um ganho: a idéia de concentrar vai regular o que é a função social? sos para a população que representam. definição dos destinos da cidade, é a isso que ele está se reduzindo no
é irregular, mas eu tolero porque num lugar só, na Esplanada, toda Cada território tem de definir sua Claro que pode ser sério. Entretan- importante que esse processo, no momento. Foi por isso que eu saí.
sabe como é, não posso tirar... mas a política urbana do país. Dentro peculiaridade social, cultural, ge- to, a lógica da distribuição de recur- qual os políticos evidentemente
você fica me devendo um favorzi- do Ministério, assumi a Secretaria ográfica e histórica. É necessário sos, nesse momento, não se integra participaram, seja implementado. A A senhora foi Diretora de Planejamen-
nho, afinal de contas a coisa está Nacional de Programas Urbanos, que isso seja construído por todos. com a lógica de construção dos espa- missão do Ministério das Cidades, to da cidade de São Paulo de 1989 a
errada...” Em vez de a lei se abrir completamente nova, encarregada Não pode ser um processo só da ços públicos. É como se convivessem no meu entender, é trabalhar pela 1992. Para alguns, foi o melhor período
para a totalidade da cidade e pôr de disseminar a implementação do Prefeitura e da Câmara Municipal. duas lógicas paralelas. Essa coisa de construção de outra cultura urbana, que a cidade teve do ponto de vista de
todo mundo para dentro, ela man- Estatuto da Cidade. Estive direta- O Ministério das Cidades fez uma construir pontes para ganhar votos. de valorização do espaço público, do políticas urbanas. O que senhora diz?
tém essa dicotomia: os de dentro e mente envolvida com a discussão estratégia para lançar material de pedestre, de uma cidade para todos, Nossa, foi a minha verdadeira
os de fora. E os de fora negociam, que levou à aprovação do Estatu- apoio, fomentou oficinas de traba- A própria Brasília tem a ponte JK que mais coesa e menos segregada. Não escola [risos]. Aprendi muito. Foi
ponto a ponto, como é que podem to. Participei ativamente do debate lho e capacitação de atores locais deve ter custado fortunas na admi- é missão do Ministério das Cidades nesse cargo que, não só eu, mas um
entrar. com urbanistas, advogados, juristas, para construir coletivamente, com nistração Joaquim Roriz. É uma coisa ficar distribuindo verbas de acordo conjunto de urbanistas e técnicos
movimentos sociais e populares, o Conselho Nacional das Cidades, personalista para deixar uma marca. com a filiação partidária. levantamos pautas e questões para a
A senhora foi Secretária Nacional de associações de favelas, setor imo- resoluções esclarecendo pontos em Acho a ponte JK belíssima. E a cidade que foram intensamente dis-
Programas Urbanos do Ministério das biliário, indústria da construção, relação à aplicação do Estatuto. O cidade tem que ter símbolos e mar- Vamos falar sobre o papel do arqui- cutidas pela primeira vez. Na época
Cidades entre 2003 e 2007. Ou seja... enfim, foi um momento de intenso resultado foi surpreendente: quase cos. Não basta só funcionar, tem que teto na construção desses marcos. enfrentamos dificuldades e enorme
Acabei de sair [risos]. debate. A maior parte das tarefas de 90% dos municípios fizeram o plano. ser linda. A população tem que se O arquiteto não se prestou a projetar oposição para levantar essas pautas.

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Concretamente, que medidas foram história das companhias aéreas e a existir na América Latina. O mercado é ros ajuda. Temos, sobretudo, crédito imobiliário valoriza o terreno e dei- urbanistas falam disso, criticando o
tomadas? ANAC [Agência Nacional de Aviação que se encarrega de regular o que o subsidiado para a faixa de renda mais xa os pobres para fora de novo. Al- modelo rodoviarista, que deu erra-
A forma social da cidade e da Civil]. Baixou a consciência no Brasil Estado abdica de fazer. baixa, o que amplia o mercado ha- guém tem de pensar no bem-estar, do? Puxa, precisou cair um avião
propriedade, a idéia de uma cida- hoje de que a ANAC, em vez de regu- Isso é absolutamente trágico. Ain- bitacional para essas famílias. É um e portanto colocar limites ao mer- e morrer um monte de gente para
de mais coesa, menos segregada, lar, fazia o jogo das empresas aéreas. da mais no caso brasileiro, em que grande feito do governo atual. Outro cado. Isso é básico, até Adam Smi- virar consenso? É sempre a lógica
de repovoamento das áreas centrais O que elas tentam fazer? Aumentar temos um território não pactuado, fenômeno é que algumas construto- th concordaria comigo. Temos que perversa do “importante é gerar em-
para evitar o inchamento da perife- o número de conexões ao máximo. em litígio o tempo todo pela ques- ras se capitalizaram porque abriram pensar numa política de incentivo prego, importante é gerar emprego”.
ria. A idéia de cidade para todos, e Elas são empresas e esse é o papel de- tão ambiental, urbanística. Diante seu capital, entraram em bolsa. Vi- para a revalorização de áreas cen- Qual é o modelo de cidade que esta-
de todos, esteve presente no debate. las, buscar mais lucro e rentabilidade. de um território que não tem regras vemos um momento de boa capitali- trais. E não só do centro. Em São mos produzindo com isso? Dou aula
São elementos que depois entraram Com o setor imobiliário acontece o estáveis de como ocupar ou não o zação das construtoras com oferta de Paulo, por exemplo, toda a franja da em Campinas desde 1985. Gente, o
no próprio Estatuto da Cidade. O mesmo: pressionam para lucrar. O solo, prevalece a lei do mais forte. crédito ao consumidor. Nesse con- primeira indústria, ao longo da San- que aconteceu com aquela cidade?
interessante é que foi um movimen- Estado não pode jamais servir apenas É uma lógica que tem a ver com texto, a possibilidade de produção tos–Jundiaí, Mooca, Ipiranga, são Era ma-ra-vi-lho-sa, com qualidade,
to na gestão Luiza Erundina, mas aos interesses do setor privado. Não a história da nossa colonização, ficou maior. Agora, atenção!, alerta!, de fábricas vazias que podem virar espaços públicos de primeira. E o
outras cidades do Brasil também pode! Tem que regular, portanto, os de ocupar o território para extrair perigo! A questão toda é onde esses novas moradias e espaços públicos que virou?! Favelizou, precarizou,
tinham equipes pensando nisso. Foi demais interesses, dos cidadãos, dos riquezas e ir embora. Durante um prédios serão construídos. Vamos fa- para diversos grupos de renda. ficou completamente degradada!
a primeira geração de prefeitos elei- pobres. O problema é que nosso Es- período em que dei aulas na Itália zer um monte de Cidade Tiradentes,
tos no campo democrático-popular tado, do ponto de vista da regulação percebi isso. Um dia me mostraram bem terríveis, lá no meio do nada, ou Olhando para trás, a senhora está feliz O antídoto para isso?
com um compromisso forte com urbanística, está impressionantemen- um centro comunitário e social que vamos preencher os vazios urbanos, com o que fez ou acha que poderia ter O que a gente não tem no Brasil,
a idéia de inversão de prioridades, te submetido ao capital imobiliário! existe em Veneza, e que está lá, ofertar com mistura social, fazer uma feito diferente? e que se Deus quiser vamos formar
investimento na periferia, partici- E se vale disso para se auto-reproduzir funcionando no mesmo local, há intervenção interessante? Tenho sentimentos contraditórios agora, são urbanistas que consigam
pação popular. Hoje essa pauta está nos mandatos, se reeleger. 2 mil anos [risos]. Isso é um teci-

A violência não acabará se não eliminarmos o apartheid.


Não dá para deixar os pobres vivendo em guetos e os ricos
em fortalezas, morrendo de medo
disseminada e aceita. Foi até pasteu- Não por acaso os grandes financiado- do social constituído, um território
rizada, diria [risos]. res de campanhas são as construtoras, pactuado. Acredito que no Brasil a
certo? gente ainda vá passar por isso. Na Mas esse movimento de favelização em relação às pautas e às agendas pensar e desenhar a cidade para
Até que ponto uma cidade pode con- Sem falar em todas as práticas de hora em que ocuparmos todo o ter- vem de longe, dos anos 80, a década que trabalhei ao longo desses anos. chegar a artefatos belos, que se en-
tar com metas que independam do corrupção por superfaturamento, ritório, diminuirmos o crescimento perdida. Por um lado, avançamos, principal- caixem plenamente na concepção
prefeito? desvio de verbas. Mas pouco se fala demográfico, a migração, e tivermos O caos das metrópoles não se mente quando se vê essa discussão do espaço coletivo. Não dá para su-
O modelo teórico do Estatuto da de quanto vale uma mudança na lei uma estabilização da população no deu nos anos 80, mas na década disseminada no Brasil, junto com perar a violência se não superarmos
Cidade é que o plano diretor seja con- de zoneamento ou uma alteração de mesmo lugar 200, 400 anos, a po- anterior, a da expansão econômica. a idéia de que hoje a relação entre essa dicotomia! Como desmontar
sensado pela população e atravesse o perímetro urbano numa câmara mu- pulação começará a ter finalmente É disso que as pessoas têm que ter os governos e as periferias é de mais isso e integrar de novo? Essa é uma
tempo, e, portanto, gestões de diferen- nicipal. Uma mudança na lei de uso laços com o lugar. consciência, porque hoje todos fa- respeito. Por outro, é frustrante ver questão urbanística. A cidade tem
tes partidos. Qual é o problema políti- e ocupação do solo, que ninguém lam em empregos e crescimento. Já esses avanços caminhando tão deva- o poder de fazer isso. Como é que
co de aplicação do plano diretor? Não conhece nem sabe para o que ser- Algumas construtoras, que se dedi- vimos esse filme: crescimento eco- gar, e a reforma urbana ser pouco uma cidade muda o ethos dela? São
acho que é só do prefeito e da câmara. ve, vale bilhões! Toda a tentativa do cam a lançamentos de alto luxo, com nômico de 14%, emprego bomban- importante na agenda política na- Paulo, por exemplo, está prepara-
O problema é dos cidadãos também. Estatuto, de politização do planeja- apartamentos de R$ 1,5 milhão, es- do e as cidades se favelizando. Nos cional. O que se vê como agenda da. Basta ver a reação quanto à lei
Nós ainda não temos uma cultura ci- mento, foi no sentido de trazer para tariam se voltando para a construção anos 1970 houve um crescimento é educação, saúde, segurança, a Cidade Limpa! A população aderiu
dadã construída entre nós, apesar de o planejamento esse importantíssi- de moradias para a população de econômico com concentração de questão urbana parece não ter im- plenamente à idéia. O setor empre-
o país ter evoluído nesse sentido. O mo papel regulador do Estado. baixa renda. É uma mudança de per- renda enorme, excludente. No as- portância. E é tão óbvio hoje, por sarial bateu pesado, e não levou. A
setor de planejamento, de regulação cepção? pecto urbano, a marca é fatal. Se exemplo, construir um trem de alta cidadania adorou! A cidade ficou
de uso e ocupação do solo na nossa ci- Fernando Henrique Cardoso, num perfil É a segunda vez na nossa história não tem divisão de renda, se não velocidade para o Rio de Janeiro e limpa e mais leve para todos. O se-
dade é totalmente submetido ao capi- publicado na Piauí de agosto, diz que que vivemos abundância de crédito tem regulação forte do Estado em outro para Campinas. Quem acha tor empresarial vai ganhar menos
tal. Vou fazer uma analogia com essa ministros do Planejamento deixaram de imobiliário, e a queda da taxa de ju- relação à cidade, a oferta de crédito que não? Agora, há quantos anos os dinheiro, e ponto.

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