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R aqu e l R o l nik
Pensar a cidade
como lugar para todos
A urbanista que ajudou a criar o Ministério das Cidades afirma que não acabaremos com
a violência se não superarmos o apartheid em nossas comunidades e diz que, além de
funcionar, o espaço coletivo precisa ser belo
A
trajetória da arquiteta e urbanista Raquel Rolnik de algum modo se
confunde com as discussões e propostas que levaram à criação do
Estatuto das Cidades, lei 10.257, aprovado em julho de 2001 pelo
Congresso Nacional. Diretora de Planejamento da cidade de São
Paulo de 1989 a 1992, gestão Luísa Erundina, Raquel foi até julho
deste ano secretária de Programas Urbanos no recém-criado Ministério das
Cidades, que ajudou a implantar. Formada pela Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo da Universidade de São Paulo, doutora em história urbana
pela Universidade de Nova York, ela é professora da PUC de Campinas e
professora associada ao Programa de Pós-Graduação em Projetos Urbanos
na Universidade de Buenos Aires e integrante do Lincoln Institute of Land
Policy. Nesta entrevista a Getulio, concedida em sua casa encravada numa
íngreme encosta do bairro de Vila Madalena, em São Paulo, Raquel falou
com o mesmo entusiasmo com que apresentava em programas de rádio, como
o Cidades do Brasil, as propostas que implantava no Ministério. A seguir,
alguns dos melhores momentos.
O puxadinho não existe na legislação, é ilegal. E o país é um monte de Vamos fazer um monte de Cidade Tiradentes, terríveis, lá no meio do nada,
puxadinhos! A legislação não toma conhecimento da produção real. ou vamos preencher os vazios urbanos, ofertar com mistura social?
gislação não toma conhecimento Por que saiu e o que gostaria de ter dade urbana têm que cumprir sua nem estou falando de desvio, de orgulhar. A ponte foi uma obra que dades tem a missão de promover essa
da produção real. Aí vem a ques- feito e não conseguiu? função social”. É o plano diretor de superfaturamento... a população abraçou e virou símbolo cultura, de fazer políticas urbanas, de
tão: como é que a produção real se Que pergunta difícil! Bom, fui cada cidade que dirá qual é a fun- de Brasília. Não sou contra monu- liderar esse processo, porque é para
relaciona com a gestão do governo para ajudar a construir o Ministério ção social específica. A razão disso é Está falando do trabalho sério dos depu- mentos. Mas acho que, se investimos isso que ele serve. Não pode ser só um
municipal? Negociando na excep- das Cidades, que não existia. Isso importante: como o governo federal tados em propor emendas e trazer recur- num processo público e coletivo de mero distribuidor de recursos! Mas é
cionalidade. É como dizer, “Olha, foi um ganho: a idéia de concentrar vai regular o que é a função social? sos para a população que representam. definição dos destinos da cidade, é a isso que ele está se reduzindo no
é irregular, mas eu tolero porque num lugar só, na Esplanada, toda Cada território tem de definir sua Claro que pode ser sério. Entretan- importante que esse processo, no momento. Foi por isso que eu saí.
sabe como é, não posso tirar... mas a política urbana do país. Dentro peculiaridade social, cultural, ge- to, a lógica da distribuição de recur- qual os políticos evidentemente
você fica me devendo um favorzi- do Ministério, assumi a Secretaria ográfica e histórica. É necessário sos, nesse momento, não se integra participaram, seja implementado. A A senhora foi Diretora de Planejamen-
nho, afinal de contas a coisa está Nacional de Programas Urbanos, que isso seja construído por todos. com a lógica de construção dos espa- missão do Ministério das Cidades, to da cidade de São Paulo de 1989 a
errada...” Em vez de a lei se abrir completamente nova, encarregada Não pode ser um processo só da ços públicos. É como se convivessem no meu entender, é trabalhar pela 1992. Para alguns, foi o melhor período
para a totalidade da cidade e pôr de disseminar a implementação do Prefeitura e da Câmara Municipal. duas lógicas paralelas. Essa coisa de construção de outra cultura urbana, que a cidade teve do ponto de vista de
todo mundo para dentro, ela man- Estatuto da Cidade. Estive direta- O Ministério das Cidades fez uma construir pontes para ganhar votos. de valorização do espaço público, do políticas urbanas. O que senhora diz?
tém essa dicotomia: os de dentro e mente envolvida com a discussão estratégia para lançar material de pedestre, de uma cidade para todos, Nossa, foi a minha verdadeira
os de fora. E os de fora negociam, que levou à aprovação do Estatu- apoio, fomentou oficinas de traba- A própria Brasília tem a ponte JK que mais coesa e menos segregada. Não escola [risos]. Aprendi muito. Foi
ponto a ponto, como é que podem to. Participei ativamente do debate lho e capacitação de atores locais deve ter custado fortunas na admi- é missão do Ministério das Cidades nesse cargo que, não só eu, mas um
entrar. com urbanistas, advogados, juristas, para construir coletivamente, com nistração Joaquim Roriz. É uma coisa ficar distribuindo verbas de acordo conjunto de urbanistas e técnicos
movimentos sociais e populares, o Conselho Nacional das Cidades, personalista para deixar uma marca. com a filiação partidária. levantamos pautas e questões para a
A senhora foi Secretária Nacional de associações de favelas, setor imo- resoluções esclarecendo pontos em Acho a ponte JK belíssima. E a cidade que foram intensamente dis-
Programas Urbanos do Ministério das biliário, indústria da construção, relação à aplicação do Estatuto. O cidade tem que ter símbolos e mar- Vamos falar sobre o papel do arqui- cutidas pela primeira vez. Na época
Cidades entre 2003 e 2007. Ou seja... enfim, foi um momento de intenso resultado foi surpreendente: quase cos. Não basta só funcionar, tem que teto na construção desses marcos. enfrentamos dificuldades e enorme
Acabei de sair [risos]. debate. A maior parte das tarefas de 90% dos municípios fizeram o plano. ser linda. A população tem que se O arquiteto não se prestou a projetar oposição para levantar essas pautas.