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SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Luiz Guilherme Monteiro Albuquerque de Queiroz¹

RESUMO:
O presente artigo irá demonstrar como a segregação social e espacial
sempre estiveram presentes durante o desenvolvimento da cidade. Além disso, irá
demonstrar também como a distância social leva o imaginário popular a enxergar
uma cidade dividida entre civilização e barbárie para demonstrar como o
distanciamento geográfico e social é um mecanismo que a maquina capitalista
utiliza para esconder suas próprias contradições. Tudo isso em uma pesquisa
interdisciplinar que inclui pesquisas sociológicas, antropológicas, jurídicas e
geográficas para analisar exemplos recentes como os "rolezinhos" e as
consequências da instauração da UPP no morro do Vidigal.

Palavras chave: Segregação social e espacial, rolezinhos, UPP.

ABSTRACT:

This article will demonstrate how the social and spatial segregation were
always present during the development of the city. Moreover, it will also
demonstrate how social distance takes the popular imagination to see a city
divided between civilization and barbarism to demonstrate how the geographic
and social distancing is a mechanism that capitalist machine uses to hide its own
contradictions. All this in an interdisciplinary research that includes sociological,
anthropological, legal and geographical research to analyze recent examples as
the "rolezinhos" and the consequences of the establishment of the UPP in the
Vidigal slum.

Keywords: Social and spatial segregation, rolezinhos, UPP.

¹ Bacharel em Ciências Sociais Pela


Universidade Federal Fluminense –
Instituto de Ciências da Sociedade e
Desenvolvimento Urbano. E-mail para
contato: luiz.queiroz.153@gmail.com
1-) Introdução

Em um contexto onde, segundo o censo de 2010 do IBGE, pouco mais de


84% da população nacional reside em áreas urbanas é preciso que, antes de
analisarmos as questões que implicam em segregação social e espacial na cidade
do Rio de Janeiro, seja feio um levantamento histórico a respeito do processo de
urbanização do município com um enfoque especial nas favelas e relações entre
classes.

Durante o inicio do processo de urbanização do Rio de Janeiro as recém


formadas industrias, principalmente a têxtil e a alimentícia, demandavam uma
quantidade de mão-de-obra que a cidade do Rio de Janeiro não podia
proporcionar, porém ocorria simultaneamente no campo o processo de êxodo
rural.

O município do Rio de Janeiro, que já encontrava problemas por não ter


implantado nenhuma política de inclusão social e econômica para os escravos
recém libertos, não se preparou como deveria para a migração do campo para a
cidade e, pela falta de moradia oferecida aos migrantes testemunhou, após a
destruição dos cortiços do centro da cidade em 1866 com a instauração da
"ideologia de Higiene", o processo de favelização que consistia na população
menos favorecida, que dependia da proximidade com o Centro para sobreviver,
subindo os morros do bairro e construindo casas irregulares.

É valido ressaltar que a Paris passou por um processo deveras parecido


como constata Lefebvre ao enunciar que "Os subúrbios (...) foram criados sob a
pressão das circunstâncias a fim de responder ao impulso cego (...) da
industrialização, responder à chegada maciça dos camponeses levados para os
centros urbanos (...).(LEFEBVRE, 2015, p. 24)

Nota-se entretanto que a burguesia de Paris reagiu diferente da carioca em


relação aos subúrbios pois, embora regulamentando de maneira deveras opressora
os subúrbios, esta não procurou remover o proletário. Visto que a burguesia
parisiense não estava movida por impulsos humanistas, o processo de
"suburbanização", como chama Lefebvre, francês teve a diferença gritante de
contar com a distância física em relação ao local de morada da burguesia, fazendo
com que a mesma não se incomodasse com o proletário. A importante lição tirada
dessa diferença de reações é que a burguesia não se incomoda a moradia do
proletário, somente o quer longe de si.

Voltando ao cenário carioca de carência de habitações a preços acessiveis


e crescente urbanização na então capital do Brasil, as favelas cresceram e foi no
ano de 1910 quando durante o processo de "Haussmanização do Rio", que
pretendia imitar a estética urbana de Paris, que o prefeito Francisco Pereira Passos
começou a tradição de remoção dos pobres ao demolir centenas de favelas para
dar espaço a um processo que, na concepção burguesa, deixaria a cidade mais
elegante.

É no início do século XX que, através da implantação de meios para


mobilidade urbana, principalmente os trens, que começa o processo de ocupação
da Zona Sul pela burguesia carioca que procura aproximar-se da praia e da
natureza enquanto se distancia do proletário residente no centro e o Estado, dessa
vez, procurou dar meios que levassem o trabalhador pobre até a Zona Sul para
prestar serviços para que este não fixasse moradia próximo ao burguês.

Porém, embora tenha ocorrido a intervenção de 1910, a primeira menção


oficial das favelas foi no "Código de Obras de 1937" onde elas são citadas como
"aberrações". Em um cenário onde o rico procura viver uma espécie de sonho
europeu, tentando imitar Paris, as favelas que abrigavam os pobres eram vistas
como aberrações não somente pelas suas obras serem desprovidas de beleza mas
principalmente, e pretendo demonstrar isto no decorrer do trabalho, por abrigar
toda a miséria consequente da exploração burguesa.

Mais adiante, próximo ao ano de 1940, o prefeito Henrique Dodsworth


continuou a tradição de remoção denominando as favelas como "um problema de
saúde pública", dando a ela o caráter de doença contagiosa do processo de
urbanização que deveria ser erradicada, e removeu as pessoas que lá moravam
para "parques proletários" isolados do centro urbano onde os portões fechavam as
dez horas da noite as nove era dada uma palestra falando sobre o dia e dando lições
civilizatórias burguesas. Ou seja, afirma Silva (2015, p 74) "removeram certa de
4.000 moradores, com a promessa de que a moradia no parque seria provisória, e
que os moradores poderiam retornar as áreas(...) quando estas passassem por obras
de urbanização". Mas, futuramente, devido a valorização do terreno onde se
instalavam, os parques proletários foram dissolvidos e o pobre, como uma bola de
pingue-pongue que vai e vem movida por forças superiores à sua vontade, foi mais
uma vez expulso de sua morada.

Avançando alguns anos na história, durante o período de ditadura militar


(1964 – 1985) a repressão à favela foi ainda maior, as associações de moradores
fundadas na década de 1940 foram dissolvidas e todo tipo de organização política
na favela era desmobilizada pela força do exercito. Todavia, foi no fim deste
período que Brizola instaurou projetos que visavam desenvolver a infraestrutura
da favela a implantação de serviços básicos e, segundo Silva "o programa
representou o primeiro projeto social com vias a assumir a presença da favela na
cidade, tornando-as parte da cidade legal, funcionando como uma legitimação da
favela na cidade" (SILVA, 2015, p. 79).

Seguindo Adiante, em 1988 com a nova constituição é instaurado o direito


de ir e vir, o uso capião, e o direito de voto para analfabetos que tornou a favela
uma importante espectadora do teatro eleitoral burguês concentrando cerca de
10% dos votos da cidade. Por conseguinte o "plano diretor" de 1922 assumiu
abertamente nos artigos 148 e 151 o objetivo de "integrar as favelas à cidade
normal" demonstrando, nesse dizer, que o governo não assumia a favela como
parte da cidade, ou seja, existe uma ideia de, "cidade partida" que, concentra o
conceito de civilização no asfalto e o conceito de barbárie nas favelas assumindo
que no imaginário popular todos os favelados são bárbaros, criminosos e maus
enquanto moradores do asfalto são civilizados e bons.

Dessa forma o "favela-bairro" falhou ao reduzir as distâncias sociais entre


moradores da favela e do asfalto pois a favela permaneceu sendo, no imaginário
público, um reduto de marginais e, mesmo que urbanizando as áreas da favela, o
espaço, comenta Silva (2015, p 81) "(...) se mantém com a lógica de segregação
que o produziu e no imaginário das pessoas, que continuam a perceber a separação
da favela e do bairro".

É nesse cenário que, já em 2010, o prefeito Eduardo Paes cria o programa


municipal "morar carioca" que, na prática, não passou de uma tentativa de fingir
preocupação com as classes mais pobres para ganhar seu voto de confiança e,
principalmente, seu voto na urna. Houve pelo menos um caso onde uma favela
que recebeu a promessa da urbanização via "morar carioca" e recepcionou agentes
o "iBase", que tinha como função interrogar os moradores a respeito das principais
necessidades da favela, enfrentar, no lugar da prometida urbanização, a remoção
completa, como foi o caso, por exemplo, do Rio das Pedras.

Ou seja, concluímos sobre o processo de urbanização carioca que este foi


fortemente marcado, desde seu principio até os dias de hoje, pela segregação
socioespacial entre classes, com a burguesia procurando expulsar de suas
proximidades os seus próprios empregados enquanto fomentavam contra esses um
preconceito cruel que permanece até os dias de hoje trazendo consequências que
serão descritas mais detalhadamente no decorrer do artigo.

2-) "Nós não podemos ir na Zona Sul": A segregação espacial no meio


urbano carioca
É chegado a hora de analisarmos criticamente as grandes cidades pois,
como visto no capitulo anterior, as grandes cidades são a consequência da
acumulação de excedente produtivo e, sendo assim, se toda produção vem da
exploração do trabalho assalariado, serão obviamente nas grandes cidades onde
encontraremos o ápice da exploração capitalista, o que estou levantando aqui
através das ideias de Karl Marx em relação as ideias do geografo David Harvey
porém, não é nada inédito pois foi visto e revisto em diversos momentos históricos
por diversos cientistas como Friedrich Engels em seu trabalho "a situação da
classe trabalhadora na Inglaterra".

Mas antes devo levantar a pergunta: os indivíduos burgueses, e


principalmente os pequenos burgueses, são tão indiferentes à miséria provocada
pelo seu próprio enriquecimento ? A resposta pode ir em vários sentidos, enquanto
classe o mais provável é que sim, enquanto atores porém, não podemos afirmar
seguramente. Sendo assim o mecanismo do qual o grande capital lança mão para
que tal miséria não seja vista e o enfrentamento das contradições do capitalismo
seja, pra dizer o mínimo, reduzido é o de segregação social, afastando os
indivíduos um dos outros para que os burgueses não tenham necessariamente que
enfrentar a miséria todos os dias.

Engels, em diversos momentos faz alusão a esse tipo de mecanismo e a


como a burguesia se nega a iluminar as consequências da exploração que ela
promove porém, talvez sem aperceber-se de sua importância para a maquina
capitalista na grande cidade, não formula muitas afirmações sobre esse fenômeno.
Escolhi aqui duas passagens que julgo de maior valia para os fins deste capitulo
do artigo, sendo elas; (1) quando Engels refere-se a casos onde trabalhadores
morriam de fome ele afirma que:

Os depoimentos das testemunhas podiam ser os mais claros e inequívocos, mas


a burguesia - à que pertenciam os membros do júri - encontrava sempre um
pretexto para escapar ao terrível veredicto: morte por fome. Nesses casos, a
burguesia não deve dizer a verdade: pronunciá-la equivaleria a condenar a si
mesma (Engels, 2008, p. 69)

(2) quando, citando o jornal inglês "times" de 12 de Outubro de 1843,


Engels transcreve:

Nos milhares de becos e bielas de uma populosa metrópole sempre haverá -


dói dizê-lo – muita miséria que fere o olhar e muita que nunca será vista.
Mas é assustador que, no próprio recinto da riqueza, da alegria e da elegância
(...) numa área da cidade onde o requinte da arquitetura moderna
prudentemente impediu que se construísse qualquer moradia para a pobreza,
(...) é assustador que exatamente aí venham instalar0se a fome e a miséria, a
doença e o vício, com todo o seu cortejo de horrores, destruindo um corpo atrás
do outro, uma alma atrás da outra. (Engels, 2008, p. 69).

Na primeira sentença Engels afirma que expor a miséria causada pela


acumulação acarretaria na instauração da chamada "intranquilidade
revolucionária" que acabaria prejudicando a burguesia., Enquanto a segunda
citação, sendo feito por um importante veículo midiático de disseminação de
ideológica, demonstra claramente o pensamento social da época onde, ao
comentar sobre a tristeza e inevitabilidade da pobreza o jornal "times" começa seu
segundo parágrafo com a frase "mas é assustador que (...)", analisando a sentença
sob a ótica da análise de discurso, mais especificamente utilizando os chamados
"marcadores discursivos", notamos que a escolha da terminologia "mas"
demonstra a intenção de indicar uma oposição, um contraste e, sendo assim, fica
nítida que a opinião do jornal "times" e de seu redator é demonstrar como o
assustador não é a pobreza e nem sua inevitabilidade, o assustador é que a pobreza
esteja geograficamente localizada perto dos ricos, o problema é que o rico está
vendo a pobreza.
Os fenómenos observados por Engels em Londres retratam-se de forma
muito semelhante no município do Rio de Janeiro onde a segregação tem a função
de separar ricos de pobres socialmente e territorialmente, cunhando quais lugares
devem ser frequentados por qual classe seja através do preço de entrada e das
mercadorias comercializadas ou, nos casos que pretendo analisar, através de
imposições sociais que servem para fazer com o pobre não se sinta bem em certos
lugares, Fátima Ceccheto e Simone Monteiro afirmam que seus entrevistados,
quando questionados a respeito de em quais locais eles sofrem preconceito mais
constantemente, apontam que:

(...) espaços públicos, como shopping centers, agências bancárias, ruas e


restaurantes. Nesses locais o preconceito se traduz pelo distanciamento dos
transeuntes, descaso no atendimento, perseguição e violência dos seguranças
dos estabelecimentos comerciais, assim como da própria polícia.

Existem dois possíveis motivos para a discriminação estar localizada


exatamente nesses pontos o primeiro está relacionado com o fato do capitalismo
comercial atual buscar atrelar uma marca a um estilo de vida e, como lugares
também são marcas no mercado imobiliário, procura-se atribuir um determinado
estilo de vida ao local para que esse valorize e, por isso, a burguesia imobiliaria
expulsa os pobres desse locais para os valorizarem; o segundo vem junto com a
segregação social e espacial para, como já foi mencionado, afastar do olhar
burguês a miséria que ela provoca.

No fim do ano de 2013 e inicio de 2014 os "rolézinhos" explodiram através


das redes sociais e, após tomarem a cidade de São Paulo, expandiram-se pelo
Brasil atingindo também o Rio de Janeiro. O evento consistia em juntar um grupo
de jovens pobres para que estes fossem à shoppings centers da Zona Sul onde
olhavam vitrines, conversavam, passeavam e, ocasionalmente, compravam roupas
das marcas da moda, o "rolézinho" na verdade é exatamente o que todo grupo
jovens residentes da Zona Sul carioca faz cotidianamente, a sua única
diferenciação era no que diz respeito a quantidade de pessoas envolvidas e em sua
classe social, não é preciso dizer que a "invasão" do território burguês pelos jovens
pobres do Rio de Janeiro causou apreensão nos frequentadores no shopping e
consequentemente em sua administração que diversas vezes, como no caso do
"Shopping Leblon", fechou as portas.
Foi nessa tentativa de circulação pelo território burguês que a classe
dominada se viu reprimida com violência pela classe dominante que barrava a
entrada de pobres e negros no shopping sem dar nenhuma explicação satisfatória
os seguranças simplesmente barravam aqueles que julgavam não pertencer aquele
espaço, ou seja, pobres e negros. Segundo Pinheiro-Machado e Scalco "o grande
descontentamento vinha das camadas médias e altas, que sentiam a sua paz
ameaçada em um lugar até então protegido da desigualdade" (PINHEIRO-
MACHADO; SCALCO, 2014, p. 11).

Em sua análise as antropólogas concentram-se nas implicações


consumistas da manifestação, demonstrando o desejo dos jovens em adquirir
peças de grife por estas estarem atribuídas a um símbolo de poder aquisitivo e a
um estilo de vida burguês, segundo as mesmas o jovem pobre tenta, através dessas
marcas, inverter sua pobreza demonstrando a ostentação, elas afirmam que:
(...)jovens que veneram marcas globais e que, ao ostentá-las, produzem um
contraste com o contexto social de penúria em que estão inseridos (PINHEIRO-
MACHADO; SCALCO, 2014, p. 3)

Não pretendo aqui cometer a ousadia de apontar como equivocadas as


afirmações dessas renomadas antropólogas mas busco, entretanto, alegar que elas
negligenciaram outra face da moeda que foram os "rolezinhos", a face que está
diretamente ligada a utilização do espaço público e locais de socialização.

Portando, se os jovens favelados do Rio de Janeiro buscaram no consumo


a visibilidade e inclusão social não foi somente pelos motivos levantados pelas
antropólogas mas também por ser o consumo, dentro do sistema capitalista, o
único meio disponível para alcançar tais fins pois no que diz respeito a escola,
moradia e outros aspectos o jovem não depende só de si mas de um estado burguês
que o negligencia. Entretanto esse mesmo estado burguês foi empurrado pela
necessidade capitalista de gerar mais consumidores para seus excedentes
produtivos a implantar políticas de credito imensas que possibilitassem o pobre a
adquirir e acessar bens de consumo que, até o ano de 2000, estavam restritos a
burguesia.

As próprias Pinheiro-Machado e Scalco, em diversos momentos de sua


pesquisa deparam-se com reflexos dessa busca por visibilidade e inclusão social
e em dado momento um de seus entrevistados chega a afirmar que: " "Eu me
arrumo bem para poder ser aceito no shopping e não ser confundido com
bandido, preto e favelado (...)" "(PINHEIRO-MACHADO; SCALCO, p. 15).

Para propósitos analíticos, irei dividir a frase do entrevistado em dois


enunciados diferentes, sendo eles; (1) "eu me arrumo bem para poder ser aceito
no shopping" onde jovem demonstra como seu desejo nas marcas associadas a
burguesia não tem muito a ver com ostentar riqueza para compensar sua pobreza
como sugerem as antropólogas em seu artigo e sim com o desejo legitimo de
circular livremente pelo território que a burguesia tomou para si, o entrevistado
demonstra que seu consumo é um meio para aceitação social e visibilidade, e não
um fim por si só; e (2) " e não ser confundido com bandido, preto e favelado"
bom, segundo a lógica da análise de discurso o jovem demonstra como as pessoas
que não são aceitas no shopping normalmente são pretas e faveladas, reforçando
o que constatou Ceccheto, além disso o jovem coloca estes dois grupos sociais ao
lado de um terceiro, os "bandidos", quase como se os três fossem um só ou, pelo
menos, sofressem as mesmas sanções sociais.

Por fim, podemos concluir que os rolezinhos demonstram o ápice da


segregação socioespacial na sociedade carioca, ou pelo menos representam o
ápice de sua demonstração, durante alguns meses todos pudemos testemunhar
como, fosse no shopping Leblon, no Fashion Mall ou em qualquer outro shopping
da zona sul, a burguesia reage com imensa violência simbólica e física quando os
pobres ameaçam frequentar os mesmos espaços que eles. Vimos shoppings
fecharem, jovens serem expulsos e detidos sem terem feito absolutamente nada
além de circular em um espaço que foi criado exatamente para a circulação e
socialização e tudo para manter afastado dos olhos burgueses a realidade
proletária.

3-) "Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela em que eu


nasci": as "novas" remoções e a elitização da favela do Vidigal

É chegado o momento de analisar a instauração da UPP na favela do


Vidigal porém antes de fazê-lo é preciso relembrar um pouco a história da Policia
Militar. Bom, para inicio de conversa, as forças armadas ou, no caso do Rio de
Janeiro, a polícia militar, é a espada do Estado e, sendo o Estado uma instituição
social burguesa existindo para atender aos interesses da classe dominante, a
polícia militar torna-se a espada da burguesia e, dessa forma, a formação dos
policiais cariocas, segundo Valente, "(...) é semelhante à formação para a guerra
(...) sendo o criminoso percebido como inimigo a ser eliminado, os policiais vistos
como combatentes e a favela como território a ser ocupado" (VALENTE, 2013,
p. 212). A advogada continua afirmando que: A história das polícias no Brasil
demonstra que estas sempre foram instrumento de proteção do Estado e das elites
contra as "classes perigosas", aquelas que (...) representaram uma ameaça ao
status quo (VALENTE, 2013, p. 212)

Thomas Holloway, em seu trabalho "polícia no Rio de Janeiro: repressão


e resistência numa cidade do século XIX" demonstra como o papel da polícia
militar era o de derrubar qualquer um que infringisse as normas de comportamento
impostas pelas mesmas elites políticas que criaram a PM, ou seja, o que eu,
Holloway e Valente atestamos, em diferentes palavras e mobilizando diferentes
conceitos, não passa do fato de que a PM existe exclusivamente como força de
enfrentamento contra o pobre.

Sendo assim "servir e proteger", como estampado nas viaturas e slogans


da PM, não é a real função da polícia ou pelo menos não é servir e proteger a
sociedade civil como um todo, a polícia militar existe com o propósito de
assegurar que a burguesia não seja incomodada e, seja esse incomodo causado
pelo trafico de drogas ou pelo pobre que persiste em caminhar pelo calçadão de
Ipanema, a polícia reagirá da única maneira que sabe, com violência.

Enfim, no Rio de Janeiro, onde o lugar que abriga os indivíduos com mais
concentração monetária, a Zona Sul, é cercada por favelas que concentram a
miséria provocada pelo capitalismo, a máquina capitalista deverá desenvolver
formas cada vez mais criativas de distanciar as classes e, como impor sanções no
uso de espaços públicos através da segregação as vezes não é bastante para
mascarar as contradições capitalistas, foi através das UPP's que a burguesia criou
um mecanismo complexo de elitização das favelas.

É no contexto dos megaeventos que foi elaborado o projeto das Unidades


de Polícia Pacificador(UPP) que, iniciado em 2008, conta hoje com 38 unidades.
A instauração das UPP's é precedida por uma operação de invasão territorial
violenta pelas forças do Estado. Segundo Valente a UPP mascara e legitima a
intenção de ocupar militarmente as favelas próximas dos megaeventos.

A mestra em direito destaca em seu trabalho os pontos positivos da


instalação das UPP's como aumento na segurança, instalação de serviços públicos
inéditos nas comunidades e outras mas, ao comentar sobre os pontos negativos
exclama que:

Entretanto, muitos são os problemas e as denúncias, especialmente dos


moradores. Com a proibição/limitação das festas e bailes funks (...). Os líderes
comunitários se opõem ao projeto, pois foram enfraquecidos, a UPP implica
em uma desmobilização política dos moradores das favelas. (...), a proibição
de festas sem autorização e horários para os bares fecharem (...). Se houve a
entrada de serviços como o SAMU, água, gás e luz e a regularização das
ligações clandestinas aumentando a qualidade dos serviços, as cobranças são
consideradas abusivas e desproporcionais. (...). A "pacificação" vem
acompanhada da valorização e especulação imobiliária que prejudica os
moradores. (VALENTE, 2013, p. 210)

Dessa forma, é notório que a maioria das colocações sobre os pontos


negativos da autora dizem respeito a vida cultural e política dentro da favela,
praticamente tudo que demande alguma organização por parte dos indivíduos é
proibido pelas UPP's, com o claro intuito de desorganizar e desmobilizar aqueles
que poderiam causar algum tipo de mal-estar durante os megaeventos, justamente
aqueles que, um ano antes da copa do mundo da FIFA, tinham organizado os
"rolezinhos" e assustado toda a burguesia da Zona Sul carioca.

Afinal o medo da elite carioca não é dos traficantes pois seu exercito
militar possui mais poder bélico que eles, o que assombra a burguesia é aquilo
posto como "(...)"o medo de o povo descer o morro para exigir compensação pela
enorme desigualdade social e injustiça que faz parte do cotidiano da
cidade"(ALVES; EVANSON, 2013, p. 26)"(VALENTE, 2013, p. 217)".

Além da "estetização da cidade" para os megaeventos, as UPP's tinham


outro motor motivacional em seu projeto e esse seria, obviamente, uma razão
relacionada ao lucro, como demonstra o relatório vazado pelo Wikileaks escrito
pelo Principal Officer do Consulado Geral dos EUA no Rio de Janeiro:

(...) and continues to enjoy genuine support from the governor and the mayor,
bolstered by private enterprise lured by the prospects of reintegrating somo one
milion favela residents into minstream markets, this program could remake
social and economic fabric of Rio de Janeiro.
Ou seja em momento algum as UPP's tinham como preocupação os
moradores da favela e sim as questões econômicas que envolvem a favela e as
questões políticas que da permanência do pobre próximo de mais do rico.

As políticas de urbanização de favelas do Rio de Janeiro são


historicamente inclinadas para a remoção dos pobres de suas casas sem
compensação financeira ou social e, sendo assim, as UPP's representam um
retrocesso a esse projeto para as favelas pois, após instauradas, elas trazem
aumentos em todos os encargos básicos para a sobrevivência humana, tais como
agua e luz, além disso o preço dos imóveis cresce espantosamente, o que leva os
proprietários a elevarem o preço dos alugueis até valores altos de mais para os que
lá residem. Dessa forma, é promovido, aos poucos, uma "remoção branca" ou
"expulsão pelo mercado" para os moradores das favelas pacificadas como a
manicure Débora Brandão, que afirmou em entrevista que:

Tudo está mais caro – diz ela. – O pão que antes custava R$ 0,20 agora está
R$ 0,50. O bujão de gás que custava R$ 45 agora sai a R$ 60. Mas o maior
problema é o aluguel. Eu pagava R$ 300 (por um quarto e sala) e agora estou
pagando quase R$ 800. Não dá mais para aguentar.

Rodrigo Ferreira, presidente da associação de moradores do Vidigal em


2014 afirmou que os moradores da favela são barrados pela burocracia imposta
pela UPP quando tentam organizar alguma festa enquanto os eventos recreativos
voltados para os ricos ocorrem sem restrição de horário ou de volume de música,
o mesmo diz, em uma entrevista, que:

Morador do Vidigal não vai à festa nenhuma na comunidade hoje. Tem festa
que custa R$ 400 a entrada. É pra burguesia mesmo, tanto que o ingresso é
vendido lá embaixo, no Leblon. Está tendo uma remoção branca aqui no
Vidigal, como se fosse um Apartheid mesmo.

A já mencionada especulação imobiliária chega a ser inacreditável, certas


mansões podem chegar ao exorbitante preço de dezoito milhões (18.000.000) de
reais (imagem 1) e, segundo Jonas Barcellos, um dos donos da imobiliária Bella
Vista, que funciona dentro da favela do Vidigal, a parte mais elevada da favela já
é toda dominada por gringos, o mesmo afirma alegremente que:

Lá encontramos franceses, espanhóis, alemães. O Vidigal, de uma maneira


geral, está atraindo a classe média. E o pessoal mais humilde ou que vendeu as
casas para esses novos moradores está voltando para a terrinha (Nordeste). Ou
então se mudando para outros locais do Rio, mais afastados.
Concluímos que as UPP's não foram em momento algum uma política de
luta contra tráfico de drogas (que ainda existe nas favelas pacificadas) e sim uma
maneira de, discretamente e sem os problemas legais e políticos que a remoção
pela força causaria, retirar os pobres da Zona Sul e das áreas dos megaeventos.

Imagem 1

Considerações Finais:

Concluímos que o processo de expulsão do proletário das áreas de


interesse burguês na cidade do Rio de Janeiro começou a mais de cem anos dura
até hoje em um cenário que foi se desenvolvendo baseando-se na segregação.

As remoções que possuíam um caráter ainda mais violento para moradores


de favelas e locais pobres da cidade tornaram-se um mecanismo que usa a
desculpa de pacificação dos morros e de levar cidadania aos bárbaros, ou seja,
levar o asfalto à favela para, após alguns dias de violência e demonstração de
poder, elevar o custo de vida e remover lentamente os pobres.

Vimos também que esta evolução das remoções só tornou-se possível


graças ao preconceito existente no imaginário social que coloca a favela como um
lugar somente de bandidos. Usando a ideia de localização geográfica da
marginalização no morro a segregação social atingiu um nível onde pouco importa
quais medidas sejam tomadas para afastar os "favelados" dos territórios
burgueses. Por fim, a burguesia, que explora e condena à miséria o proletariado,
desenvolveu mecanismos para sequer presenciar o sofrimento que causa.
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