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Livro: Múltiplos olhares sobre as cidades: controle social, memória e direitos


humanos
Resenha Crítica
Professor: Elenise Felzke Schonardie
Mestrando: Marco Antonio Compassi Brun

1 RESENHA

A obra “Múltiplos olhares sobre as cidades: controle social, memória e direitos


humanos” constrói panoramas expansivos e abrangentes sobre os conceitos de cidade e
suas transformações resultantes de mudanças históricas, culturais, políticas e sociais.
Essas modificações nas estruturas das cidades ao longo do tempo permitem a
constatação inicial dos autores de que

as cidades são mais reais do que ideais, pois elas se transformam com o tempo,
o traçado muitas vezes não consegue dar conta de uma perfeita organização
espacial, os problemas são bem mais sociais do que espaciais (SCHONARDIE,
CANABARRO e RICOTTA, 2019, p. 19).

Antes de trabalhar com as problemáticas atuais da cidade, dos direitos e do seu


acesso, torna-se importante contextualizar – historicamente – a formação desse espaço e
as mutações de acordo com as regiões, povos e momentos da humanidade. E essa etapa
inicial é muito bem trabalhada pela obra.
Assim, a escrita traz uma sensação de linha temporal que vai desde os primórdios
da vida em comunidade, inclusive de acordo com apontamentos religiosos e,
especificamente bíblicos, até as grandes metrópoles e megalópoles contemporâneas.
Nesse ínterim, é interessante denotar que algumas cidades, por diversas razões,
passam a se tornar verdadeiros centros históricos da humanidade, pois abrigaram – e ainda
abrigam – séculos de desenvolvimento político-social. Em razão disso, se tornam marcos
do mundo.

Desde a Antiguidade clássica, as cidades se aproximam da arte; é um diálogo


que propicia à cidade pertencer a um determinado estilo construído
historicamente. Muitas cidades são verdadeiros museus a céu aberto, pois
apresentam estilos e obras que as aproximam da própria história da arte. Essas
cidades são os nossos patrimônios culturais que devem ser preservados para
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testemunhar a memória e a história (SCHONARDIE, CANABARRO e


RICOTTA, 2019, p. 39).

Em extensão ao tema, é válido referir que, embora esteja implícito no texto, é


relevante interpretar que o momento de construção nas cidades, mesmo que lento
(SCHONARDIE, CANABARRO e RICOTTA, 2019, p. 41), é o que de fato propicia o
desenvolvimento artístico – seja da arquitetura e engenharia, seja da cultura, com obras,
música, teatro e semelhantes. Sobretudo por uma troca cada vez mais intensa no trabalho
puramente braçal do espaço rural, para o início do comércio e das indústrias.
Dentre as grandes cidades da humanidade, Roma se destaca por suas
características estruturais, de projeto, mas especialmente pelo que representa para o
âmbito político, religioso e social. Uma vez que representa o abrigo de grandes Impérios,
invasões, guerras e desenvolvimento econômico.
No entanto, até por serem um dos berços da filosofia política, as cidades gregas
são

[...] considerada[s] como a origem da civilização ocidental, da qual todos nós


fazemos parte. O legado cultural do mundo ocidental tem suas raízes na Grécia,
tanto a sua exuberante cultura, quanto como a própria democracia, a filosofia,
a arte, a participação política e, acima de tudo, o conceito de polis, que vem
como legado dessa civilização (SCHONARDIE, CANABARRO e RICOTTA,
2019, p. 47).

Após, a obra avança para as poderosas cidades de Paris e Londres, que até hoje
representam grandes pontos turísticos mundiais e simbolizam o multiculturalismo e o
abrigo de milhões de pessoas, povos, etnias, arte e cultura.
Da mesma forma o Rio de Janeiro, com suas belezas naturais e encantos únicos
também se enquadra como um dos pilares das cidades globais. Apesar disso, assim como
em praticamente todos os cantos do mundo, a realidade das cidades – nesse caso com
enfoque nas brasileiras – não cumpre com o seu ideal. E o que os espaços urbanos são,
não representam exatamente o que deveriam ser. É o que inaugura o importante segundo
capítulo da obra.
Para entender um pouco da realidade das cidades brasileiras, manifesta-se
necessário a compreensão da explosão demográfica que iniciou entre o fim do
colonialismo, imigrações e exploração das terras nacionais.
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Toda essa caminhada apontada pelos autores, que fundamentam de maneira muito
clara sobre as transformações observadas nos longos períodos de desenvolvimento do
Brasil, resulta no atual cenário populoso do país.

Segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiros de Geografia e Estatística


– IBGE, o Brasil possui 5.570 cidades. A população brasileira estimada no ano
de 2019 ultrapassou os 210 milhões de habitantes. Segundo os dados
divulgados no censo de 2010, mais de 84 % da população do país encontram-
se nas cidades. E, dentre a população urbana, mais e 46 % vive concentrada
em regiões metropolitanas, regiões integradas de desenvolvimento e
aglomerações urbanas com mais de 1 milhão de habitantes. A partir desses
dados é possível perceber o quanto a questão urbana é complexa e desigual em
cada uma das regiões territoriais do país. (SCHONARDIE, CANABARRO e
RICOTTA, 2019, p. 79-80).

Assim, o conteúdo da obra aliado aos dados expostos permite a percepção de um


crescimento demográfico direcionado às cidades, com foco nas regiões mais
desenvolvidas por, consequentemente, possuírem mais oportunidades de emprego e
moradia. Ou pelo menos é o que deveria ser. Visto que a realidade não reproduz o mesmo
otimismo das afirmações frias.

O início do século XXI apresenta um dado histórico social que deve ser
analisado com a devida atenção, mais de 84% da população brasileira
concentra-se nas cidades. Tal fato desencadeia novas e complexas relações
sociais que irão produzir as mais diversas e complexas consequências para esse
intricado espaço, dotado de territorialidades, que denomina-se de urbano
(SCHONARDIE, CANABARRO e RICOTTA, 2019, p. 87).

Os problemas indicados pelos autores são resultantes de várias razões, dentre eles
a própria explosão demográfica mencionada. No entanto, tais consequências não se
resumem a problemas espaciais e de infraestrutura. São, também, sociais, econômicos e
políticos. Isto é, são refletidos pela separação de classes sociais, privilégios,
discriminação e omissão do Estado que faz com muitos grupos e povos sejam afastados
dos centros das cidades por não serem considerados desejados para aquele espaço.

Por evidente, nem todos as pessoas que se deslocaram de seus espaços de


origem para as cidades brasileiras, encontram nestas condições dignas de vida
de trabalho. Aliás, um contingente considerável da população urbana
(indivíduos de diferentes culturas e posições sociais que são a expressão da
diferença e da desigualdade social) jamais encontrou nas cidades um posto
formal/legal de trabalho e de morada, excluídos do mercado e da vida nas
partes das cidades que poderia ser chamada de cidade legal (dever ser), com
violação de direitos entendidos como fundamentais para garantir a dignidade
humana (SCHONARDIE, CANABARRO e RICOTTA, 2019, p. 87).
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Essa exclusão social reflete na marginalização de povos e grupos da população,


que são obrigados a viver em estado de precariedade ou de baixas condições de
subsistência em comunidades. Assim, visualiza-se duas versões da cidade muito claras. A
que de fato se desenvolve e permite avanços consideráveis a população que detém meios
de acesso, bem como lazer, segurança, conforto e comodidade. E a cidade que exclui, que
limita e que cria obstáculos.
Diante disso, perpetua-se a vivência na comunidade com ciclos de violência e de
escassez de recursos. Os autores, sobre o assunto, apontam conceitualmente que

[...] os centros urbanos em geral apresentam, o que pode-se denominar de,


macrocefalia urbana, originada pelo crescimento populacional acelerado que
provoca um processo de marginalização de espaços e pessoas em razão, não
apenas, da segregação econômica e social, mas também, em razão da ausência
de infraestrutura urbana com seus equipamentos e serviços. Isto não significa
que as cidades brasileiras não tenham sido projetas ou planejadas, mas na
grande maioria dos casos, o crescimento da cidade real não acompanhou esse
planejamento (SCHONARDIE, CANABARRO e RICOTTA, 2019, p. 93).

Tanto o Estado, quanto a população, nesse cenário, busca ofuscar as comunidades


e tenta torná-las invisíveis. A fim de não prejudicar a imagem turística das grandes
cidades, como é o Rio de Janeiro. Assim, há uma exclusão tanto social, quanto espacial,
pois cada vez mais se isola uma parte da população, que ainda que pertencente da cidade,
não usufrui, não acessa e tampouco a reconhece como sua casa – seu lar.
Desse modo, investimentos que deveriam ser destinados para um reequilíbrio
estrutural, passam a ser alocados exclusivamente nos grandes centros, que evoluem de
maneira intensa, enquanto as periferias permanecem travadas em constantes problemas e
violações de direitos humanos e fundamentais.
A transformação dessa realidade passa, como bem pontuam os autores, pela
incorporação dos

[...] direitos humanos à pauta da governança das cidades, visando a eliminação


das desigualdades sociais, da segregação do espaço urbano e das
discriminações em razão do tipo de moradia e da localização dos
assentamentos humanos confundidos como depósitos humanos. A dignidade
da pessoa humana, enquanto princípio, encontra-se presente tanto no direito
ambiental, quanto no direito econômico e no direito à cidade (SCHONARDIE,
CANABARRO e RICOTTA, 2019, p. 99).

Reflexão da qual compartilho, especialmente se considerar as cidades pela sua


realidade e não pelo seu fluxo econômico, turístico e arquitetônico. Visto que mesmo
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cidades extremamente avançadas, sofrem com desigualdade acentuada e com locais


excluídos à margem da sociedade.

As reflexões sobre o espaço social urbano devem sempre partir da realidade


local (o mundo do ser), porquanto o espaço público deve ser referência para a
construção e efetivação das políticas urbanas locais, considerando-se o tempo
e os diferentes atores sociais que integram-no. A participação dos citadinos na
gestão democrática das cidades, pode revelar-se como importante instrumento
para a efetivação dos direitos humanos e dos direito à cidade (o mundo do
dever ser). Afinal, as cidades estão em constante movimento, em constantes
modificações e, estas podem ser direcionadas para garantir a observância da
dignidade humana dos citadinos nelas habitam (SCHONARDIE,
CANABARRO e RICOTTA, 2019, p. 101).

Por fim, o último capítulo da obra trabalha com o tema da segurança urbana e os
impactos que megaeventos causam nas grandes cidades. É o caso do Rio de Janeiro, com
Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs.
Nesse sentido, em ocasiões de grande atenção mundial sobre determinada cidade,
acentua-se, ainda mais, a exclusão de grupos considerados indesejáveis para o espaço
urbano. Logo, intervenções de segurança, apesar de sinteticamente promoverem certa
organização na cidade, apenas escondem e mascaram os reais problemas, com o
afastamento dos povos marginalizados para além dos holofotes. Como se sua realidade
fosse inexistente.

O modelo tradicional da guerra ao tráfico – violento e militar –como método


de contrastar o chamado “inimigo interno” (o jovem, negro, que vive na favela
e que está envolvido no tráfico) não se encaixava na imagem de uma cidade
segura e ao mesmo tempo moderna e democrática. A importância da proteção
dos direitos humanos, pelo menos em princípio, põe em causa o planejamento
de intervenções de segurança, capazes, por um lado, de tranquilizar os
investidores e os públicos internacionais; por outro lado, de ser em
consonância com os princípios democráticos (SCHONARDIE,
CANABARRO e RICOTTA, 2019, p. 112).

Dessa forma, é relevante reproduzir a opinião embasada dos autores que expõe a
falsa impressão causada por intervenções de segurança nas grandes cidades. Uma vez
que, sob a ótica dos direitos humanos, nada mais são do que mais barreiras criadas para
impedir o acesso daqueles que já possuem pouquíssimas chances de fazê-los. É a
afirmação das dificuldades existentes, porém afastada da visão comercial pelo próprio
Estado – na maioria das vezes à força.

Os grupos sociais que recebem uma grande parte das intervenções promovidas
são grupos socialmente excluídos: mendigos/lavadores de janela de carros,
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vendedores ambulantes, prostitutas na rua, ou os moradores dos campos


nômades. Nesse sentido, a forma como o instrumento das leis municipais tem
sido usada, favoreceu medidas destinadas a “limpar” as cidades em nome da
decência urbana, em vez de bloquear ou prevenir delitos específicos
(SCHONARDIE, CANABARRO e RICOTTA, 2019, p. 117).

É fundamental, portanto, que se construa novos mecanismos de governo e de


programas de inclusão social com a aproximação de grupos não apenas dos centros
urbanos, mas sim da possibilidade de acessar as oportunidades e os benefícios. O que
passa tanto pela aplicação e inserção de políticas que sejam voltadas à defesa dos direitos
humanos e que considere a dignidade da pessoa humana. Além da própria conscientização
social.
Para os autores, para finalizar, então, é de se considerar que

Da antiguidade à contemporaneidade, as cidades tem sido fundamentais para


o surgimento de estados, desenvolvimento social e cultural das sociedades,
produção e concentração da riqueza. Para além de um espaço caracterizado
pela densidade populacional, a cidade é acima de tudo um local de encontro e
convívio coletivos. Encontro de diferentes formas de ver e compreender o
mundo, de compartilhar os mesmos espaços com sujeitos diferentes - o outro.
Também, um local da produção e reprodução de uma cultura, a cultura urbana.
Um local da organização da vida pública e do controle, em especial sobre
determinados grupos (SCHONARDIE, CANABARRO e RICOTTA, 2019, p.
122).

Assim, com todas essas considerações, mostra-se fundamental uma reforma


estruturante imediata com a lógica da inclusão social, com segurança e acesso à todos –
e não restrito aos povos privilegiados. A de se primar pelo conjunto, pelo encontro e pelo
convívio coletivo e impedir a segregação e a profunda exclusão existente, com apoio
econômico (com trabalho e oportunidades) e cultural, para se ter o espaço citadino
usufruído pela integralidade da população.

2 REFERÊNCIAS

SCHONARDIE, E. F.; CANABARRO, I. D. S.; RICOTTA, G. Múltiplos olhares


sobre as cidades: controle social, memória e direitos humanos. 2ª. ed. Santa Cruz do
Sul: Essere nel Mondo, 2013.

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