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H I ST Ó R I A U R BA N A E A CO N ST I T U I ÇÃ O D O

T R A BA LH O A BST R A CT O
Not as para um a t eoria crít ica do espaço urbano m oderno

Bruno Lam as

Mais do que nunca, m inha ideia é que, na hist ór ia da


cidade europeia, a form a da cidade m udou, não em função
de event os bélicos ou por causa de m udanças dos sist em as
polít icos, m as m udou cada vez que o sist em a de
solidariedades e de int olerâncias, de com pat ibilidades e de
incom pat ibilidades foi reconfigurado. Coisa que não
acont ece t odos os dias e não se encont ra nos sist em as de
levant am ent os est at íst icos em uso.
( Secchi, 2000/ 2006: 182- 3)

Observando o passado de oit o m il anos de urbanização m undial podem os dizer que


est a int egrou sem pre m om ent os de t ransform ação m at erial da Nat ureza — ganhos
de t erra ao m ar, desflorest ação, at erros de zonas pant anosas, a própria const rução
dos edifícios, et c. são m udanças que im plicam sem pre act ividades m at eriais
hum anas de qualquer espécie, um t rabalho concret o. 1 Mas est e avanço do
am bient e art ificial hum ano e urbano sobre o am bient e nat ural não acont eceu
apenas sob um a form a m at erial, vist o nas relações hum anas com a nat ureza
exist irem sem pre sim ult aneam ent e m om ent os m at eriais e ideais ( sim bólicos) . De
fact o não se vê com o é possível j unt ar m ilhares ou m esm o m ilhões de indivíduos
num espaço geográfico lim it ado sem que elas t enham um a ideia do que significa
viverem j unt os e de crescerem assim m esm o frent e à nat ureza.
Com ist o, a fórm ula geral m eram ent e m at erial com eça a m ost rar- se
claram ent e insuficient e. Por um lado, durant e a m aior part e desses oit o m il anos
não exist ia um único conceit o abst ract o que int egrasse em si t oda a t ransform ação
hum ana da nat ureza, aquilo que para nós na sociedade m oderna é im ediat am ent e
associada a t rabalho. Por out ro lado, e m ais im port ant e ainda, nem sem pre a
coexist ência urbana dos indivíduos foi est rut urada em t orno dum a m esm a cat egoria
abst ract a de reconhecim ent o social baseada na capacidade de t rabalhar. Apenas na
sociedade m oderna capit alist a o t rabalho, ou m elhor, a capacidade de t rabalho será

1
Segundo Par k, a cidade é “ o produt o não desenhado dos t rabalhos das gerações sucessivas de
hom ens” ( Park , 1915: 578)

1
inst it uída com o um princípio est rut ural da organização social; com isso a vida social
urbana e a urbanização não só ganharão um a qualidade int eiram ent e nova com o
part iciparão t am bém na est rut uração dessa nova form ação social.
Devem os assim realizar um a diferenciação fundam ent al ent re as sociedades
pré- m odernas e as sociedades m odernas e suas respect ivas form as de vida urbana
e de urbanização, de m odo que aquilo que t êm em com um não ofusque os
fenóm enos que as dist inguem , sob pena de cairm os em generalizações sem
cont eúdo. I st o quer dizer que a relação ent re a ‘cidade’ e o ‘t rabalho’ é m ais
com plexa do que aquela que à prim eira vist a poderíam os j ulgar quando nos
concent ram os apenas na base m at erial. É necessária um a int erpret ação cuidada
t ant o das prát icas urbanas e das prát icas de ‘t rabalho’ e um a relat ivização hist órica
de seu significado, vist o que nem a cidade nem o t rabalho significaram sem pre a
m esm a coisa para t odas as sociedades nem a m udança de um deles im plicava
necessariam ent e ou de m odo im ediat o a m udança do out ro. Apenas o capit alism o
m oderno, ao inst it uir o t rabalho com o ‘obj ect ivo em si próprio’ ( Weber) e ao
est rut urar- se socialm ent e em t orno do t em po de t rabalho abst ract o, t rouxe consigo
um a relação afirm at iva e sist em át ica ent re os significados das prát icas urbanas e o
t rabalho com o ‘form a de m ediação social’ ( Post one, 1993/ 2003) .

1. O sig n if ica d o do ‘t ra balho’ de sd e a cid a d e clá ssica à


cid a d e pr é - in du st r ia l

Pensem os prim eiro no caso da Grécia clássica. Aí, a dispersão geográfica por
m últ iplas ilhas m uit o lim it adas e o correspondent e t ráfego m arít im o favoreceram
num grau at é ent ão desconhecido a t roca de bens de consum o. Trat a- se aí de um a
form a prelim inar e prim it iva da t roca de m ercadorias que est im ulou com isso o
desenvolvim ent o de um a form a m onet ária e da prim eira cunhagem de m oedas nas
cidades da Jónia por volt a de 630 a.C., perm it indo assim a acum ulação de dinheiro
separada da necessidade de bens concret os. I st o levou a que o dinheiro fosse alvo
de grande desconfiança por t oda a Grécia e deu m ot ivos à t eorização de Arist ót eles
sobre as duas form as de riqueza: a nat ural, que era a dos bens necessários ao
governo dom ést ico, e a crem at íst ica, possibilit ada pela acum ulação de dinheiro que
parecia não t er lim it e ( Arist ót eles, 1998: 19- 27) . No ent ant o, apesar de algum as
cidades, com o At enas, conseguirem viver dos ganhos pecuniários da t roca de
m ercadorias, o fenóm eno não se desenvolveu de m odo a poder consolidar- se e
alt erar o m odo de produção da sociedade; t rocava- se sobret udo o excedent e de
um a produção feit a de form a independent e por pequenos produt ores ou realizada

2
por escravos e sobret udo não se produzia direct am ent e para um a possível venda
num m ercado anónim o ( Jappe, 2003/ 2006: 180- 8) .
Nest e enquadram ent o, e apesar de t odos os seus avanços int elect uais e
cult urais, os gregos não desenvolveram nenhum a noção geral de t rabalho; não
unificaram num único conceit o t odas as ocupações concret as desem penhadas pelos
seres hum anos, não porque fossem t eoricam ent e incapazes m as porque
2
considerariam isso t ot alm ent e absurdo. Na realidade, t odas as act ividades
derivadas da necessidade de reprodução m at erial são desprezadas e consideradas
degradant es ( ponos) — o m it o de Sísifo é um a expressão disso m esm o.
A liberdade, por sua vez, encont ra- se para além da necessidade. Nest e
sent ido, a cidadania na polis apenas é at ribuída àqueles que est ão para além da
necessidade biológica e da reprodução m at erial. O reconhecim ent o da cidadania na
Grécia im plicava assim , com o um dos seus crit érios fundam ent ais, que o indivíduo
não t rabalhasse ( em bora nem a palavra ‘t rabalho’ nem um a noção sem elhant e
exist isse) . Só assim se poderia t er a t al “ vida boa” que a polis m at erializava:

A vida “ boa” , com o Arist ót eles qualificava a vida do cidadão, era, port ant o, não apenas m elhor,
m as livre de cuidados ou m ais nobr e que a vida ordinár ia, m as possuía qualidade int eiram ent e
diferent e. Era “ boa” exact am ent e porque, t endo dom inado as necessidades do m ero viver,
t endo- se libert ado do labor e do t rabalho, e t endo superado o anseio inat o de sobrevivência
com um a t odas as cr iat uras vivas, deixava de ser lim it ada ao processo biológico da v ida ( ...)
Nenhum a act iv idade que serv isse apenas para garant ir o sust ent o do indivíduo, para alim ent ar
apenas o processo vit al, era digna de ent rar na esfera polít ica” ( Ar endt , 1958/ 2001: 50) .

Pouco im port a para o nosso t em a que est a posição dos gregos im plicasse a
m anut enção da escravat ura, e que a conhecida ‘vida boa’ dos cidadãos apenas
fosse possível com a vida desum ana de dois t erços da população. O que é relevant e
para um a com paração hist órica é que não possuíam um conceit o abrangent e de
t odas as act ividades produt ivas e m uit o m enos organizavam a vida com unit ária dos
cidadãos em função dum a abst racção sem elhant e. Mais do que um lugar
geográfico, a cidade era um a form a de associação polít ica cuj os laços t ranscendiam
os est im ulados pela m era reprodução biológica, e que excluía m esm o aqueles que
t ornavam possível a exist ência m at erial e o funcionam ent o quot idiano da cidade.
Nem a t roca de m ercadorias ent re cidades nem a cidade enquant o
associação polít ica de cidadãos livres se generalizará no int erior do I m pério

2
“ Encont ram os na Grécia ofícios, act ividades, t arefas; m as ser ia em v ão que procuraríam os nela o
t rabalho. As act ividades são pelo cont rário classificadas em cat egorias irredut ivelm ent e diver sas e
at ravessadas por dist inções que proíbem que considerem os o t rabalho um a função única” ( Méda, 1999:
43)

3
Rom ano. I st o não im pediu de t odo que os rom anos fundassem inúm eras cidades a
part ir do desenvolvim ent o de ant igas aldeias e da consolidação de acam pam ent os
m ilit ares. Mas cada cidade t ent ava nesse cont ext o m ant er um a relat iva aut onom ia
em t erm os polít icos e económ icos, não se desenvolvendo assim nenhum sist em a de
t roca de m ercadorias, sendo a m ais im port ant e ligação ao ext erior feit a pela
cobrança de im post os em benefício do im pério sedeado em Rom a.
A m aior part e das cidades rom anas não se desenvolveram port ant o
enquant o cent ros de produção nem de t rocas, m as prim eiram ent e de gest ão e
dom ínio de um im pério baseado na absorção dos recursos. A própria form a de
riqueza rom ana era orient ada para o consum o quase ilim it ado de um a gigant esca
Rom a e das principais cidades avançadas, e não para a acum ulação de riqueza
abst ract a do im pério com o um t odo; a propriedade de t erras era assim o principal
m ecanism o de criação de um a riqueza baseada em valores de uso. I sso t alvez
explique porque as represent ações do t rabalho não conheceram alt erações de
fundo durant e o período de dom ínio rom ano, seguindo assim o m odelo grego de
desprezo pelas act ividades produt ivas e de reprodução m at erial assent e na
escravat ura. Nesse sent ido, podem os dizer que em bora a reprodução social
necessit asse obviam ent e de um ‘m et abolism o com a nat ureza’ ( Marx) at ravés de
diversos t rabalhos concret os, perm it indo assim a const rução e m anut enção das
inúm eras cidades rom anas, não podem os propriam ent e concluir que o ‘t rabalho’
est rut urasse a vida social do im pério e das suas cidades. 3 Tal só com eçará a
acont ecer de form a em brionária a part ir do desenvolvim ent o urbano da I dade
Média.
Com o fim do im pério as civit as rom anas t ornaram - se ext rem am ent e
vulneráveis a invasões e pilhagens, t endo a sua im port ância decrescido de t al
m aneira que a m aior part e delas desapareceram quase t ot alm ent e. A fert ilidade do
solo europeu, sobret udo da França, Alem anha e I nglat erra, perm it iu a im plant ação
de um a form a de vida agrária e de isolam ent o social, est im ulados pela crescent e
im port ância do crist ianism o, a part ir do próprio int erior do im pério rom ano em
declínio, e do subsequent e desenvolvim ent o das colónias m onást icas por t odo o
m undo rural europeu. Nest e processo, o t rabalho adquiriu um significado

3
“ Dir- se- á que a divisão da sociedade em duas part es, um a subm et ida à necessidade de t rabalhar e a
out ra v ivendo do t rabalho da prim eira, prov a o cont rário. O que é exact o. Mas o t rabalho não est r ut ura a
sociedade no sent ido em que não det erm ina a ordem social. Pelo cont r ário, est a últ im a é det erm inada
por out ras lógicas ( o sangue, a condição...) que per m it em depois a alguns viver em do t rabalho dos
out ros. Sendo assim , o t rabalho não se encont ra no cent ro das represent ações que a sociedade faz de si
própria; não é valorizado, pr ecisam ent e porque não é ainda considerado com o o m eio de derrubar as
barreiras sociais e de inver t er as posições adquir idas pelo nascim ent o” ( Méda, 1999: 52)

4
com plet am ent e diferent e e que só m ais t arde irá verificar- se de um a form a
desenvolvida no apogeu da vida urbana m edieval.
A fundação de m ost eiros nas zonas áridas ou nas florest as profundas,
isolados e independent es das pequenas cidades que resist iam e int eiram ent e
ligados à nat ureza e ao cam po, t ornava indispensável o t rabalho físico dos m onges,
que cont ribuíram assim para um a im port ant e hum anização da paisagem europeia.
Por out ro lado, as exigências dest a sit uação geográfica dos m ost eiros t am bém
est avam de acordo com a concepção agost iniana do t rabalho m onást ico e sua
int erpret ação da criação do m undo enquant o obra divina, t al com o se havia
desenvolvido durant e os prim eiros séculos da crist andade. Elaborou- se assim um a
espécie de “ t eologia do t rabalho” ( Gurevit ch, 1972/ 1990: 311) , onde o ócio
( ocium ) , que nos gregos era um a condição da ‘vida boa’, passa com Sant o
Agost inho a ser sinónim o de preguiça e de um a falt a grave, e os conceit os de ‘obra’
e ‘t rabalho’ com eçam a confundir- se cada vez m ais4 . Nesse cont ext o, o t rabalho
m anual ganha um a im port ância posit iva fundam ent al, enquant o m eio educat ivo e
inst rum ent o de aut odisciplina e assiduidade na lut a cont ra a preguiça e as
t ent ações em geral. Mas o t rabalho não é valorizado por si m esm o m as j ust am ent e
pelo seu caráct er de sofrim ent o, de penit ência e expiação dos pecados hum anos.
Tem os assim um a redefinição paradoxal do t rabalho: est e cont inua a possuir um a
conot ação negat iva m as à qual é agora at ribuída um significado m oral posit ivo.
Durant e o desenvolvim ent o dest a concepção do m undo at é à form ação de
um verdadeiro “ sist em a m onást ico” ( Gurevit ch, 1972/ 1990: 308) era prescrit o aos
m onges um a divisão do seu t em po diário ent re a oração, o t rabalho e o sono,
divisão essa regulada pelos sinos dos próprios m ost eiros, cuj o t ocar passou a
cont rolar t oda a vida quot idiana m onást ica. Com est a relação ent re o significado do
t rabalho e a ordenação t em poral diária poderíam os dizer que j á se encont ra aqui
um a im port ant e part e dos pressupost os do desenvolvim ent o do t rabalho abst ract o
do capit alism o. No ent ant o, devem os t er algum cuidado com o desenvolvim ent o
dest a argum ent ação. Em prim eiro lugar, o t rabalho não era considerado ainda um

4
“ [ T] odas as línguas europeias, ant igas e m odernas, possuem duas palavras de et im ologia diferent e
para designar o que para nós, hoj e, é a m esm a act ividade, e conservam am bas apesar de serem
repet idam ent e usadas com o sinónim as ( ...) Assim , a língua grega diferencia ent re ponein e ergazest hai,
o lat im ent re laborare e facere ou fabricari, que t êm a m esm a raiz et im ológica; o francês ent r e t ravailler
e ouvrer, o alem ão ent r e arbeit en e w erken. Em t odos est es casos, só os equivalent es de ‘t rabalho’ t êm
conot ação de dor e at ribulação. O alem ão Arbeit aplicava- se originariam ent e ao t rabalho agr ícola
execut ado por servos, e não ao t rabalho do art ífice, que era cham ado Werk. O francês t ravailler
subst it uiu a out ra palavra m ais ant iga, labourer, e v em de t r ipalium , que era um a espécie de t ort ura”
( Arendt , 1958/ 2001: 107, 159)

5
‘obj ect ivo em si próprio’ ( Weber) m as com o um m eio de sat isfação divina; 5 em
segundo lugar, não havia um a noção geral de t rabalho e nem t odos os t rabalhos
eram considerados de igual m odo, havendo um a hierarquia de t odos os t rabalhos
concret os que incluía m esm o a int erdição de algum as ocupações aos m onges; em
t erceiro lugar, apesar da int ensa disciplina t em poral, não havia aqui nenhum a
concepção t em poral hom ogénea e abst ract a, vist o que nos m ost eiros as ‘horas’
eram variáveis e dependent es de act ividades concret as. Ora, na est eira de Marx,
Post one ( 1993) j á m ost rou com o a t em poralidade abst ract a é um a das principais
condições necessárias à em ergência do t rabalho abst ract o, que é separado de
qualquer prát ica concret a. Apesar de t odas est as diferenças e das consequent es
reservas t eóricas, podem os dizer, com Mum ford, que

foi no m ost eiro que as finalidades ideais da cidade m edieval foram post as em ordem ,
conservadas em v ida e afinal renovadas. Tam bém foi ali que o valor pr át ico da r est rição, da
ordem , da regular idade, da honest idade e da disciplina int erior foi est abelecido, ant es que t ais
qualidades fossem passadas à cidade m edieval e ao capit alism o pós- m edieval, sob a form a de
invenções e pr át icas de negócios: o relógio, o livro de cont abilidade, o dia ordenado ( Mum for d,
1961/ 1998: 270- 1) .

Fora dos m ost eiros e sobret udo at é aos com eços do século XI , a “ sociedade
m edieval pré- urbana” ( Freit ag, 1971) caract eriza- se por um regim e senhorial a que
o rei concede o dom ínio de vast os t errit órios, incluindo cidades e cam pos, e de
onde os senhores ret iravam a sua legit im idade ‘polít ica’. Assim não exist em aí
act ividades económ icas no sent ido m oderno, dest acando- se claram ent e a ausência
de m ercados de produt os e de t rabalho, sendo a t roca de m ercadorias
perfeit am ent e m arginal e a dom inação social m arcadam ent e abert a e conflit uosa.
Dent ro dest as condições, com o nos diz Freit ag, “ o t rabalho não se const it ui com o
um a ent idade dist int a das suas condições nat urais de realização. A bem dizer, não
exist e nem t rabalho nem produt os” .
A part ir do século XI , e sobret udo dos séculos XI I e XI I I , assist e- se a um
crescim ent o dem ográfico e urbano das sociedades m edievais, im pulsionado pela
cont ínua fuga dos servos cam poneses para a cidade, em busca de prot ecção e
liberdade, e pelo desenvolvim ent o acent uado do com ércio urbano. A evolução
subsequent e dest es dois fenóm enos im plicou, grosso m odo, ( i) a em ergência de
um a m assa social de indivíduos perfeit am ent e desconhecidos, que irão int egrar e
desenvolver as conhecidas corporações, e ( ii) a criação das condições de

5
“ Ent re os m onges, o t rabalho não dev ia t ornar- se um fim em si m esm o. Num m ost eiro francês,
const ruiu- se um m oinho a água, para que os m onges dedicassem m ais t em po à oração” ( Gur evit ch,
1972/ 1990: 308) .

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em ergência da burguesia enquant o prim eira classe verdadeiram ent e urbana, no
sent ido m oderno do t erm o ‘classe’, decisiva na erradicação post erior do regim e
senhorial. Foram sobret udo est as duas sit uações que t rouxeram consigo um a
m assa crescent e de pessoas diferent es de vários cant os do m undo rural europeu e
que deram à cidade m edieval ocident al um im port ant e t raço de het erogeneidade
social, que a dist inguiu profundam ent e das cidades orient ais da m esm a época, e
um im aginário social fort íssim o que se m ant êm ainda hoj e em m uit os discursos
urbaníst icos.
As corporações, ou guildas, são inst it uições com vários obj ect ivos m as
organizadas em t orno das diversas ocupações exist ent es na cidade m edieval, quase
exclusivam ent e de art esãos, e coordenadas pelos respect ivos m est res nas prát icas
da selecção, int egração e educação dos aprendizes, m aiorit ariam ent e const it uídos
por servos libert os com pouquíssim os laços sociais de qualquer espécie. Face à
im port ância que a divisão de t rabalho t em na const it uição das corporações poder-
se- ia pensar que elas são um a form a em brionária do t rabalho abst ract o do
capit alism o; na realidade, porém , t al não acont eceu. Em bora o ‘t rabalho’ servisse
aqui com o um a form a de int egração social, e m esm o de prát ica polít ica, devem os
t er em at enção que aqui ainda est á present e o ofício, ou sej a, um t rabalho concret o
e part icular e não a capacidade de t rabalho em geral; não enquant o ‘força de
t rabalho’ 6 , um a noção est ranha a t odo o m undo m edieval.
Est a é um a dist inção que t em diversos m ot ivos. Em prim eiro lugar, a
dim ensão do m ercado urbano int erno era bast ant e reduzida, o que im plicava que
quase t odos os t rabalhos eram feit os por encom enda e não para um a hipot ét ica
venda num m ercado ext erno. Em segundo lugar, a aprendizagem do ofício é um a
condição indispensável de pert ença à guilda; cada t rabalhador devia ser capaz de
execut ar t odo um ciclo de t rabalhos e conhecer profundam ent e os requisit os da
profissão. I st o significava um a preocupação priorit ária quant o à qualidade dos
produt os, que lhes surgia assim prim eiram ent e com o bens de consum o ou m esm o
com o ‘obra’. Marx e Engels referem - se t am bém a est e aspect o:

[ E] cont ra- se ainda nos art esãos da I dade Média um int eresse pelo seu t r abalho part icular e pela
habilidade nesse t rabalho que podia at é elevar- se a um cert o sent ido art íst ico. E é t am bém por
isso que cada art esão da I dade Média se dava int eiram ent e ao seu t rabalho; suj eit ava- se

6
Freit ag disse- nos o m esm o com out ra explicação: “ Dent r o do quadro corporat ivo, os inst rum ent os de
produção est ão longe de ser em puras e sim ples m er cadorias” , e é est a um a das m ais fort es razões para
que “ o t rabalho não possua ainda a form a geral abst ract a da ‘força de t r abalho’” ( Fr eit ag, 1971) .

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sent im ent alm ent e a ele e est ava- lhe m uit o m ais subordinado do que o t rabalhador m oderno
para o qual o seu t rabalho é perfeit am ent e indifer ent e ( Marx e Engels, 1976: 65) . 7

Em t erceiro lugar, e de acordo com os m ot ivos ant eriores, as guildas


seleccionavam os aprendizes de acordo com “ crit érios part iculares” e não com
quaisquer “ st andards universalist as” ( Sj oberg, 1955: 440) , é essa um a das razões
que post eriorm ent e os levará a oporem - se veem ent e ao desenvolvim ent o da
m anufact ura. De fact o, não foi at ravés das guildas que se desenvolveu a divisão do
t rabalho capit alist a, cuj o grande salt o foi t ornado possível com o aparecim ent o das
prim eiras oficinas de m anufact ura no nort e da I t ália e na Flandres. Desde o seu
início, o sist em a de m anufact ura t ent ou escapar proposit adam ent e ao cont rolo do
sist em a corporat ivo e aos seus regulam ent os a respeit o da qualidade dos produt os
e das condições de t rabalho. E o próprio sist em a corporat ivo irá opor- se à
m anufact ura, não só pela correspondent e perda de cont rolo de um a form a de
produção em declínio m as porque diferia com plet am ent e da form a concret a e de
responsabilidade social que m ot ivava os m em bros das guildas e porque os
cam poneses com eçaram rapidam ent e a ut ilizar o sist em a das m anufact uras com o
um inst rum ent o cont ra o poder arbit rário e discrim inat ório do sist em a corporat ivo
urbano ( Marx e Engels, 1976: 68) .
Em quart o lugar, as guildas desem penhavam funções sociais diversas e não
se rest ringiam apenas a act ividades laborais, assem elhando- se m ais a um a form a
com unit ária baseada no t rabalho concret o. Prest avam apoio m út uo em sit uações de
infort únio individual, assum iam - se com o aut ênt icas irm andades de convivência, em
cert os períodos m ais prósperos const ruíam edifícios com unit ários, realizavam
cerim ónias em honra dos seus respect ivos sant os e cada um a possuía “ um a
am ist osa rivalidade com out ras guildas” ( Mum ford, 1961/ 1998: 295) . São
sobret udo est as as razões que levarão Durkheim a propor, séculos m ais t arde e de
form a perfeit am ent e anacrónica, o regresso das corporações com o um a form a de
solidariedade social e m ediação ent re os indivíduos anóm icos, separados pelo
t rabalho abst ract o produt or de m ercadorias, e a sociedade em presarial capit alist a
com o um t odo.
Finalm ent e, devem os t er em consideração que apesar da relevância do
t rabalho ( concret o) e da exist ência de ruas especializadas por ocupação nas cidades
m edievais ou de bairros especificam ent e dedicados a det erm inadas guildas, não
podem os dizer que exist a um a “ real especialização do uso do solo” ( Sj oberg, 1955:
439) , sendo est im ulada um a clara m ist ura de zonas habit acionais e de t rabalho.

7
Est e é um aspect o que o rom ant ism o t enderá a valor izar e t ent ará recuperar. Pensem os, por ex em plo,
no pensam ent o de William Morris e Jonh Ruskin nos finais do século XI X.

8
Poderíam os ser levados a dizer que est a separação ent re residência e local de
t rabalho no m eio urbano não era necessária por causa dos m eios de t rabalho pouco
incom odat ivos ou pert urbadores da vivência dom ést ica ( o que não é verdade para
t odas as ocupações – por exem plo os ferreiros) , e que só a revolução indust rial irá
t ornar obrigat ória um a t al divisão ( o que num a escala urbana só veio a acont ecer
num est ado avançadíssim o do desenvolvim ent o indust rial pesado) . Mas est e é um
argum ent o profundam ent e enganador. A consolidação da separação espacial do
t rabalho em relação aos out ros m om ent os e espaços da vida quot idiana, sobret udo
da habit ação, é hist oricam ent e ant erior à revolução indust rial. O que int eressa aqui
considerar é que est a divisão espacial t em um m ot ivo m ais social que propriam ent e
t écnico: a inst it uição do t em po de t rabalho abst ract o. E aqui as cidades
desem penharam um papel im port ant e.
Já vim os de que m odo a redefinição do ‘t rabalho’ no sist em a m onást ico foi
acom panhada por um a preocupação crescent e e m uit o part icular com o t em po da
vida quot idiana e o papel desem penhado pelos sinos dos m ost eiros nesse cont ext o.
No ent ant o não foi só nos m ost eiros que a regulação do t em po social se t ornou
im port ant e; o m esm o com eçou a acont ecer nas cidades da I dade Média, sobret udo
a part ir do século XI V, quando um núm ero crescent e de cent ros urbanos
com eçaram a int roduzir sinos com diversas funções sociais. E foi nest e cont ext o
urbano, e não nos m ost eiros, que o t em po passou a ser m edido de form a abst ract a
e independent e at ravés de horas const ant es. Exist e aqui um problem a fundam ent al
para a com preensão da em ergência do t rabalho abst ract o e da form a- valor ( cuj a
m agnit ude, com o se sabe, é dada pelo t em po de t rabalho socialm ent e necessário) ,
sobret udo a respeit o do papel desem penhado pela vida urbana nest a t ransição. 8
Depois do seu crescim ent o dem ográfico nos séculos XI I e XI I I , as cidades
m edievais com eçaram a desenvolver um a m aior necessidade de regulação do
t em po social, t endo sido int roduzido um núm ero crescent e de sinos que, ent re
out ras sit uações, assinalavam a abert ura e o fecho dos m ercados, o principio e o
fim do dia de t rabalho, convocavam assem bleias, m arcavam o recolher,
anunciavam fogos ou perigos de qualquer espécie, et c. Alguns aut ores defendem
que foram est as necessidades m at eriais da densidade e com plexidade da vida
urbana que levaram ao desenvolvim ent o das horas const ant es; Post one defende no
ent ant o, e a nosso ver acert adam ent e, que o surgim ent o da form a t em poral
abst ract a caract eríst ica da sociedade m oderna não pode ser com preendida

8
A part ir das invest igações de Le Goff ( 1977/ 1980) sobre a passagem do que cham ou ‘t em po da igrej a’
para ‘t em po m ercant il’ ( ou ‘t em po m edieval’ para ‘t em po m oderno’) , Post one ( 1993/ 2003: 200- 16)
t ent ou m ost rar com o est e problem a pode ser delim it ado; a sua explicação será ut ilizada de form a am pla
nos argum ent os que se seguem .

9
adequadam ent e apenas em t erm os da nat ureza da vida urbana per se. Afinal j á
exist iam grandes cidades nout ras part es do m undo m uit o ant es do
desenvolvim ent o das horas const ant es nas cidades m edievais do ocident e; e para
além disso, at é ao século XI V, o dia de t rabalho na Europa m edieval cont inuava a
ser m edido de form a nat ural pelo t radicional sol- a- sol, inst it uído pelo ‘t em po da
igrej a’ ( horae canonicae) . Nest e sent ido, a razão para o surgim ent o das horas
const ant es deve ser baseada num a form a sócio- cult ural part icular e não num fact or
m at erial geral com o a concent ração urbana ou o avanço t ecnológico. 9
Para Post one, os sinos de t rabalho eram um a expressão de um a nova form a
social que t inha com eçado a aparecer no fim da I dade Média, part icularm ent e nas
cidades que se t inham especializado na produção de t ecido, com o as da Flandres.
De acordo com Marx e Engels, a t ecelagem foi “ o prim eiro t rabalho que recebeu um
im pulso e t eve um m aior desenvolvim ent o graças à ext ensão das relações
com erciais. A t ecelagem foi a prim eira, e durant e m uit o t em po, a principal
act ividade m anufact ureira” ( Marx e Engels, 1976: 67) , t ornando- se, j unt am ent e
com a ‘indúst ria’ m ineira, a prim eira form a de produção a t ranscender o m ercado
urbano rest rit o, a int ernacionalizar- se e a adquirir um est at ut o de ‘indúst ria’ em
larga escala. Cont ribuiu para est e desenvolvim ent o a procura de t ecido para
fabricar vest uário, o próprio crescim ent o da população europeia, os prim eiros
fenóm enos de ent esouram ent o e circulação de capit al. Para além dist o, a t ecelagem
desenvolvida pela m anufact ura exigia pouca habilidade, t ornando- se por isso
adversária ‘nat ural’ das guildas e desenvolvendo- se quase t ot alm ent e à m argem
dos seus regulam ent os e est at ut os, sobret udo em pequenas oficinas, onde se
int roduziram as prim eiras form as hist óricas de t rabalho assalariado.
Nest a prim eira fase, o t rabalho era pago ao dia pelos próprios m ercadores
de t ecido; ist o significou que durant e a crise económ ica dos fins do século XI I I que
afect ou profundam ent e a t ecelagem , os t rabalhadores dest e ram o ficaram
profundam ent e vulneráveis a sit uações de pobreza, passando eles próprios a exigir
o prolongam ent o do dia de t rabalho, para além do dia t radicional de sol- a- sol, de
form a a aum ent ar os seus salários — não podem os esquecer que a riqueza ainda
era m edida pela produção absolut a de t ecido. De acordo com Le Goff, foi
j ust am ent e nest a fase, e com o form a de cont rolo pelos m ercadores da ‘real’
dim ensão do dia de t rabalho, que se m ult iplicaram os sinos m unicipais de t rabalho
pelas diversas cidades m edievais europeias, pondo fim ao dom ínio hist órico do
t em po da igrej a. Não foi preciso m uit o t em po para que os sinos dessem lugar aos
relógios m ecânicos, ainda de horas variáveis. Durant e a segunda m et ade do século

9
Para um a crít ica sem elhant e ver Cipolla ( 1977/ 1988: 203- 5) .

10
XI V espalharam - se por t odo o m undo urbano europeu diversas t orres m unicipais
com relógios de um só pont eiro, que passaram lent am ent e a reger t oda a vida
quot idiana urbana. No final desse século a t em poralidade abst ract a e hom ogénea
das vint e e quat ro horas j á servia com o ordenador t em poral de diversos t rabalho
concret os nos principais cent ros urbanos europeus, e com isso a própria cidade do
fim da I dade Média ganhava um novo e pouco linear significado. É indispensável
cit arm os aqui longam ent e um a reflexão de Gurevit ch a propósit o de t odo est e
processo hist órico:

A cidade t ornava- se a r epresent ant e de um a nova concepção do m undo e, port ant o, de um a


nova concepção do problem a t em poral. I nst alavam - se relógios m ecânicos nas t orres da cidade.
Est es eram , cert am ent e, um obj ect o de orgulho para os cidadãos, m as respondiam a um a
exigência at é ent ão desconhecida: conhecer o m om ent o pr eciso do dia e da noit e. Com efeit o, a
cidade assist ia à form ação de um m eio social cuj o com port am ent o em relação ao t em po er a
t ot alm ent e diferent e dos feudais e dos cam poneses. Par a o m er cador, o t em po represent av a
dinheiro; para o art esão, a det er m inação do t em po era necessária ao funcionam ent o da sua
oficina. O t em po t ornava- se unidade de m edida do t rabalho. Não era m ais o carrilhão da igrej a,
cham ando à oração, que regulava a vida dos cit adinos, m as a m ar t elada do relógio dos paços
do concelho. A vida urbana ent rava num a fase secular, apesar, de ainda durant e alguns
séculos, se t er t ent ado fazer coincidir o “ t em po religioso” t radicional com o novo t em po laico da
vida de t odos os dias. O t em po adquiria um valor im port ant e, t ransform ando- se em fact or
essencial da produção. O aparecim ent o dos relógios m ecânicos foi, sim ult aneam ent e, o
result ado absolut am ent e nor m al e a font e de progresso no dom ínio da det er m inação do t em po
( ...) Com o seu aparecim ent o, o cont rolo do t em po com eçou a escapar ao clero. A população
urbana apropriou- se do seu próprio t em po e do rit m o par t icular dest e.
Mas se exam inarm os os fact os segundo um a perspect iva hist órico- cult ural m ais vast a, a
consequência m ais not ável da invenção dos relógios m ecânicos não consist irá, t alv ez, nest a
libert ação em relação ao cont rolo religioso operada pelo t em po urbano. Com efeit o, a ausência,
ao longo da m aior part e da hist ória hum ana, da necessidade de um a m edição precisa e
const ant e do t em po e da sua repart ição em fat ias iguais, não se poderá explicar unicam ent e
pela falt a de sist em as adequados. É sabido que quando a sociedade experim ent a qualquer
necessidade, geralm ent e t am bém encont ra os m eios de a sat isfazer. Foi quando os grupos
sociais influent es t om aram consciência da necessidade de conhecer o t em po exact o que os
relógios m ecânicos fizeram a sua aparição nas cidades eur opeias ( ...)
Foi na cidade europeia que, pela pr im eira vez na hist ória, se com eçou a “ separar” o t em po, na
sua form a pura, da vida, cuj as m anifest ações est avam subm et idas a um a m edida ( ...)
Dissem os que a cidade se t inha apropriado do seu própr io t em po e ist o é verdadeiro, no sent ido
em que o t em po escapou ao com ando da I grej a. Mas, em cont rapart ida, foi t am bém
precisam ent e na cidade que o hom em deixou de ser dono do t em po. Tendo, com efeit o,
recebido a possibilidade de se escoar sem t er em cont a os indiv íduos e os acont ecim ent os, o
t em po im pôs a sua própria t irania, à qual os hom ens t iveram de subm et er- se. O t em po
subj ugou- os ao seu rit m o, forçou- os a agir m ais depr essa, a despachar- se, a não deixar
escapar um inst ant e ( Gurev it ch, 1972/ 1990: 174- 8) .

11
Nest a sua apreciação da em ergência do novo significado das cidades, e sem
o t om ar explicit am ent e em linha de cont a na sua reflexão, Gurevit ch t em sem pre
present e, com o ‘pano de fundo’ e de form a ret rospect iva, a ascensão hist órica do
valor com o form a de riqueza social baseada no t em po de t rabalho e da capacidade
de t rabalho com o form a correspondent e de int egração social. É por isso que
algum as das principais cidades do fim da I dade Média ant ecipam det erm inados
fenóm enos espaciais e t em porais t ípicos da vida quot idiana da cidade capit alist a
indust rial.
Mas para se chegar à definição de um a noção geral de t rabalho ainda era
necessário que se abst raísse o cont eúdo das próprias act ividades concret as. Em
cert a m edida, e com o Marx m ost rou, t al só é possível a part ir de um a cert a base
m at erial de desenvolvim ent o dos m eios de produção, que perm it e que os indivíduos
m udem de posição na divisão de t rabalho com algum a facilidade; nest e sent ido, o
desenvolvim ent o da m anufact ura parece- nos um a condição m at erial necessária
para a generalização social de um a noção abrangent e de t rabalho. Mas é preciso
t erm os em cont a que, em si m esm o, o avanço dos m eios de produção não fornece
nenhum m ot ivo para a organização da sociedade em função da noção de t rabalho
em geral ( t rabalho abst ract o) nem para a inst it uição do t em po de t rabalho com o
um a form a de riqueza social abst ract a ( valor) ; m uit o m enos podem os ret irar daí
um a int eira filosofia da hist ória com o Marx fez m uit as vezes. A inst it ucionalização
hist órica de t ais fenóm enos im plicou obrigat oriam ent e t odo um conj unt o de
m udanças na reprodução cult ural e sim bólica da sociedade, onde se j ogaram
claram ent e diversas alt ernat ivas de decisão e acção, que nunca se rest ringem à
pura m at erialidade, ant es de se consolidar gradualm ent e um esquem a de
percepção social est rut urado em t orno do t rabalho abst ract o e do valor.
Apesar da valorização m oral de diversos t rabalhos concret os levada a cabo
em part e do sist em a m onást ico m edieval e da im port ância da divisão de t rabalho
para a form ação das guildas, não se desenvolveu na I dade Média um a noção geral
de t rabalho. O t rabalho significava coisas diferent es consoant e a posição individual
na est rut ura social e a sua própria ocupação, não sendo cert am ent e o m esm o para
o clero, os cam poneses, os art esãos, et c., apesar da posição am bígua do prim eiro e
da condição subordinada dest es últ im os. Por out ro lado, t am bém não se valorizava
o t rabalho em si próprio — bast a pensarm os que enquant o o horae canonicae da
I grej a dom inou a vida m edieval, de acordo com Gurevit ch, o t rabalho era int erdit o
um t erço do ano por causa dos dom ingos, dias de sant os e out ras celebrações
religiosas ( Gurevit ch, 1972/ 1990: 313) . Por isso devem os t er algum as reservas em
relação à afirm ação de Cipolla ( 1977/ 1988: 166) de que “ no int erior da cidade
[ m edieval] , at ribuía- se ao t rabalho um a dignidade int rínseca, sendo dado valor a

12
t odas as profissões honest as” ; do nosso pont o de vist a, est e é um fenóm eno que
surge apenas no decorrer do século XVI .
Para o aparecim ent o de um a concepção geral de t rabalho e sua valorização
em si m esm o foi hist oricam ent e decisiva a definição de ‘vocação’ levada a cabo por
Lut ero e seu desenvolvim ent o subsequent e pelo prot est ant ism o ascét ico calvinist a
( Weber, 1913/ 1996) . Só com o ascet ism o calvinist a, onde cada hom em ,
independent em ent e da sua condição social ou ocupação, t em por dever t rabalhar
para a glória de Deus e criar o seu reino na t erra, é que podem os falar
propriam ent e de um a noção de t rabalho abrangent e e int rinsecam ent e posit iva, do
“ t rabalho com o obj ect ivo em si próprio” ( Weber, 1913/ 1996: 45) . Só a part ir da
Reform a podem os afirm ar que o t rabalho se t ornou a abst racção que o capit alism o
veio a generalizar sob a égide do que Weber cham ou ‘dever profissional’, “ um dever
que cada um deve sent ir, e sent e, para com o cont eúdo da sua act ividade
‘profissional’, qualquer que est a sej a [ e que] é própria da ‘ét ica social’ da cult ura
capit alist a, t endo para ela, em cert o sent ido, um significado const it ut ivo
fundam ent al” ( Weber, 1913/ 1996: 39) . I st o não significa no ent ant o que o
prot est ant ism o é o único responsável do ‘espírit o do t rabalho’ ( Weber) do
capit alism o; com o o próprio Weber m ost rou, o desenvolvim ent o capit alist a
separou- se do cont eúdo religioso do prot est ant ism o e ganhou um a aut onom ia
cult ural e um a dinâm ica própria, com result ados frequent es vezes dist ant es ou
m esm o cont rários às int enções dos iniciais reform adores ( Weber, 1913/ 1996: 62) .

2 . A u r b a n iz a çã o in d u st r ia l d o t r a b a lh o a b st r a ct o

‘St adluft m acht frei’, ‘O ar da cidade libert a’. Est e é a versão alem ã de um
provérbio fixado nas cidades do no cent ro e nort e da Europa na época m edieval,
result ant e de um a norm a j urídica que afirm ava que após a presença de um servo
ou escravo num a cidade, num prazo m aior ou m enor m as sem pre relat ivam ent e
curt o, o seu senhor perdia o direit o de reclam ar essa pessoa com o subm et ida ao
seu poder. Com o Weber m ost rou ao reflect ir sobre est e lem a, est a ideia ilust ra a
cidade com o “ lugar de ascensão da servidão à liberdade” ( Weber, 1922/ 1999:
427) , que no ent ant o im plicava a ‘disponibilidade’ do ant igo servo ao sist em a
corporat ivo e a sua ent rada num a nova form a económ ica. 10 Por isso m esm o,

10
A propósit o do m esm o pr ovérbio alem ão, Rober t E. Park, no seu ensaio clássico, diz- nos algo
sem elhant e j á a propósit o do fim da I dade Média: “ A lei, por si só, não podia cont udo t ornar o ar t esão
livre. Um m er cado abert o no qual ele podia vender os produt os do seu t rabalho era um incident e
necessário da sua liberdade, e era a aplicação da econom ia m onet ária às relações de senhor e hom em
que com plet av am a em ancipação do servo” ( Park, 1915: 584) .

13
podem os dizer que o provérbio t em ainda m ais força quando aplicado à ascensão
da burguesia com o a prim eira classe verdadeiram ent e urbana, com o afirm ava
Pirenne.
Nos séculos XVI I e XVI I I , as cidades exigem cada vez m ais cont rapart idas
para a em ancipação ( o que Gurevit ch j á havia apont ado para o fim da I dade
Média) . Para m uit os, as cidades revelar- se- ão a única possibilidade de
sobrevivência; e aí a liberdade individual urbana surge de form a crescent e com o a
do ‘t rabalho ( form alm ent e) livre’ ( Weber) , ou sej a, livre para ser vendido à
burguesia no em ergent e m ercado da ‘força de t rabalho’. A ‘força de t rabalho’ surge
ent ão com o algo que o indivíduo t em com o seu e que não sabia possuir; algo que
ele pode vender por um det erm inado t em po e de que fala com o se lhe fosse
ext erno. Nest e prim eiro m om ent o, a ‘força de t rabalho’ é a daqueles que nada t êm
senão isso m esm o. Com o m ost rou Tilly ( 1983) , est e foi um processo decisivo e
relat ivam ent e longo.
Na segunda m et ade do século XVI I I surgem as prim eiras definições
realm ent e m odernas de t rabalho. Em 1765, por exem plo, Diderot e D’Alem bert
oferecem - nos o seu conceit o enciclopédico de ‘t rabalho’, definido de um m odo
paradoxal com o um a condenação hum ana e sim ult aneam ent e a font e da sua vida
m at erial e m oral. Para eles, o ‘t rabalho’ é “ a ocupação diária à qual o hom em est á
condenado pela sua necessidade, e à qual deve ao m esm o t em po a sua saúde, a
sua subsist ência, a sua serenidade, o seu bom senso e t alvez a sua virt ude” ( cit ado
de Méda, 1999: 95) . Diderot e D’Alem bert abriram aqui o cam inho para a definição
de t rabalho fornecida por Adam Sm it h um a década m ais t arde ( 1765) no seu ‘A
Riqueza das Nações’ ( Sm it h, 1996) , um a definição t ot alm ent e ‘lim pa’ de t odas as
act ividades concret as at é rest ar apenas o ‘t rabalho’ t out court , o t rabalho em geral,
a capacidade hum ana abst ract a de t rabalhar; que, ainda para m ais, é ent endida
com o a criadora de t oda a riqueza. De cert a form a, Sm it h ‘invent ou’ o conceit o
m oderno de t rabalho; m as para ele se t ornar um a realidade prát ica e palpável, um a
‘abst racção real’, era preciso que se fizesse acom panhar de out ro t ipo de
invenções.
A segunda m et ade do século XVI I I não é só m arcada por puras ‘invenções’
int elect uais; o aparecim ent o das ciências nat urais m odernas e sua aplicação ao
processo produt ivo, enquant o m om ent o do processo de valorização, deu origem a
um a das fases de m aior e m ais rápido desenvolvim ent o t écnico na hist ória hum ana,
sobret udo ent re 1760 e 1790. Mais um a vez o sect or da t ecelagem foi decisivo,
sobret udo em I nglat erra onde o clim a era alt am ent e favorável. Com excepção de
alguns cent ros urbanos, a ‘indúst ria’ t êxt il encont rou- se durant e m uit o t em po
dispersa pelos cam pos, organizada de form a colect iva em oficinas. Depois de 1733

14
os t ecelões com eçaram a usar um a m áquina individual ( fly shut t le) que perm it ia
um a aut onom ia de um indivíduo em relação a out ros aj udant es; em 1764, quando
Adam Sm it h t erm inava a sua obra principal, surgiu a prim eira m áquina de fiação ( a
conhecida j enny) que t ornou possível a um só operário m anobrar cada vez m ais
fios. Em 1771 invent ou- se a prim eira m áquina de fiação m ovida a energia
hidráulica; e em 1778 criou- se a prim eira m áquina de t ecer m ecânica, que sofreu
um im pulso ext raordinário, ent re 1785 e 1790, quando a energia hidráulica foi
subst it uída pela m áquina a vapor de Wat t ( pat ent eada em 1769) . Com ist o, a
indúst ria t êxt il necessit ava de abandonar a organização dispersa pelo cam po e
concent rar- se nas prim eiras grandes oficinas; prim eiro próxim o dos cursos de água
e m ais t arde das m inas de carvão ( que abast eciam o m áquina a vapor) . Est e
aum ent o da produção do fio é, com o referido ant eriorm ent e, dit ado pelas
exigências de m ercados cada vez m aiores e m ais dist ant es; daí que o
desenvolvim ent o da t ecelagem é acom panhado pelas inovações t écnicas nos m eios
de com unicação e t ransport e, que m udam radicalm ent e a paisagem : desde a
abert ura de novos canais navegáveis, a const rução de novas est radas privadas e a
int rodução de diligências para passageiros e m ercadorias, o surgim ent o dos
prim eiros carris de ferro fundido ( em 1767) e a criação da prim eira em presa
ferroviária de t ransport e de m ercadorias, em 1801. Est as prim eiras concent rações e
inovações ‘indust riais’ não só im pulsionaram o crescim ent o das ant igas cidades
com o deram origem a im ensas novas cidades, em locais t ot alm ent e desocupados
no passado.
Mas est a é apenas a part e exclusivam ent e t écnica do processo, que em bora
perm it a a concret ização do ‘t rabalho abst ract o’ não o det erm ina; é a valorização do
valor que im pulsiona e est im ula o desenvolvim ent o indust rial e é apenas ela que
t em com o consequência direct a a organização da sociedade em t orno do ‘t rabalho’,
o que im plica t odo um conj unt o de fenóm enos não- t écnicos. Com o Marx nos
m ost ra, a ascensão do capit alism o é t am bém m arcada pela expulsão violent a dos
pequenos produt ores rurais das suas t erras, pela sua privação dos direit os de caça,
de apropriação da riqueza nat ural dos bosques e m esm o pela proibição de colher
lenha ( Marx, 1974) ; de igual m odo, o cont ínuo em parcelam ent o e vedação das
t erras ant eriorm ent e com uns em redor das aldeias inglesas, que durava desde o
século XVI I , e o aum ent o geral da produt ividade agrícola t ransform aram os ant igos
cult ivadores direct os em rendeiros ou assalariados, coagidos a um nível de vida
forçado, pouco superior ao m ínim o necessário para sobreviver, e que apenas podia
ser m elhorado ent rando direct am ent e para o m ercado da ‘força de t rabalho’
indust rial ( Benevolo, 1994: 16) , que significava cada vez m ais a m igração para a
cidade. Ora, isso ia t am bém ao encont ro das necessidades de valorização do

15
próprio capit alism o: um a vez que a produção era ainda dit ada por flut uações na
procura do m ercado, cada em presário indust rial com eçava a dispor agora de um
excedent e de operários, concent rados num m eio urbano e bem próxim o da fábrica,
t ort urados pela fom e e sem pre disponíveis a venderem a sua ‘força de t rabalho’ por
um a som a m ínim a — é ist o no fundo o que Marx cham ou o ‘exércit o de reserva’.
Junt ando t odos est es fenóm enos ao crescim ent o dem ográfico que a I nglat erra
vinha a assist ir, t em os alguns dos principais m ot ivos da sua urbanização acelerada,
e que levou m uit as cidades à duplicação da sua população no espaço de um a
geração.
Mas as populações expulsas do cam po ou deixadas sim plesm ent e sem
alt ernat iva não chegam às cidades ( ou a part es de cidades) j á edificadas e pront as
a serem habit adas; e em bora ist o sej a int eiram ent e óbvio t em no ent ant o sido
escam ot eado m uit as vezes. Não podem os assim esquecer que o crescent e processo
de urbanização indust rial é, t am bém ele, um processo de produção m at erial cada
vez m ais dirigido pelo valor, que int egra um a significat iva part e da ‘força de
t rabalho’, e que hist oricam ent e ant ecede e depois acom panha as m igrações cam po-
cidade. Linda Clarke ( 1992) , por exem plo, a part ir dum a análise hist órica da
urbanização de um a área de Londres e do seu significado na passagem da cidade
m edieval para a cidade capit alist a, m ost rou com o o sect or da const rução em
I nglat erra se t ornou um dos m ais avançados em t erm os de subm issão do processo
de produção m at erial ao processo de valorização, e que ist o deu- se décadas ant es
da int ensificação dos m ovim ent os m igrat órios: 11 foi um dos prim eiros sect ores onde
o t rabalho assalariado ( o individuo reduzido a m era unidade de ‘força de t rabalho’)
apareceu e se t ornou dom inant e; onde a st andardização at ingiu pela prim eira vez
um a escala nacional ( por ex. at ravés da regulam ent ação de t ij olos) ; que
desenvolveu um a das prim eira grandes m anufact uras de m at eriais; que inst it uiu
form as de gest ão cient ifica e racionalização de t odo o aparat o t écnico e social, et c.
A aut ora m ost ra- nos igualm ent e com o o últ im o t erço do século XVI I I do sect or da
const rução é m arcado por um a t ransição m uit o part icular e especifica do
capit alism o em que a form a- salário por out put ( por peça ou t arefa) é gradualm ent e
subst it uído pela form a- salário por hora ( ou dia) , denunciando a int rodução do valor
com o form a de riqueza abst ract a, e que não só ‘revolucionou’ t oda a est rut ura
ocupacional da const rução urbana, dando origem a um a com plexa hierarquia social

11
I st o ainda é m ais significat ivo se t iver m os em consideração que alguns aut or es, com o Schw arz
( 1992) , afir m am que Londres desde o século XVI I I se dist inguiu pela r elevância dada aos serv iços em
det r im ent o de out ros sect ores.

16
das ‘profissões’, com o alt erou o próprio processo t écnico- const rut ivo dos edifícios
( Clarke, 1992: 56- 8) . 12
Podem os ent ão dizer que, na segunda m et ade do século XVI I I , as cidades
com eçaram a surgir de form a predom inant e, t ant o em t erm os m at eriais com o
sim bólicos, sim ult aneam ent e com o produt o e espaço de concent ração do t rabalho
abst ract o. Do nosso pont o de vist a, não é assim por acaso que est a época vê
nascer os prim eiros ressent im ent os ant i- urbanos da hist ória m oderna
paralelam ent e às prim eiras m et afísicas rom ant izadas da nat ureza e do m undo
rural, 13 que dai em diant e irão acom panhar de form a ideológica t oda a urbanização
ocident al at é aos dias de hoj e.
Ent ret ant o, na prim eira m et ade do século XI X, derrubam - se as m uralhas
m edievais da m aior part e das cidades int eriores dos países europeus e as fábricas
ocupam est a nova periferia urbana ou t ornam - se elas próprias o cent ro das novas
cidades; em qualquer das sit uações o gigant esco espaço fabril do t rabalho
abst ract o t orna- se um m om ent o t ípico e incont ornável da vida urbana das
principais cidades europeias, e ao qual t odas as dem ais funções urbanas se devem
subm et er; depois das cidades inglesas, as francesas, as am ericanas e m ais t arde as
alem ãs. É est a sem dúvida a época m ais próxim a do ideal ut ilit arist a da econom ia
aut ónom a da sociedade; com o é am plam ent e conhecido, est e é t am bém um dos
m om ent os m ais negros na hist ória social urbana europeia e am ericana ( ver
Benevolo, 1994; Goit ia, 1982/ 1991; Kost of, 1992; Mum ford, 1961/ 1998) .
Em cert o sent ido, a hist ória urbana da segunda m et ade do século XI X é a
hist ória das t ent at ivas de correcção dos desast res dos prim eiros cinquent a anos de
lassez faire. O Est ado com eça int ervir na vida social, m as apenas onde a liberdade

12
A aut ora realiza um a dist inção que à prim eira vist a se aproxim a daquela que referim os ent re ‘t rabalho’
com o r elação com a nat ureza e ‘t rabalho’ com o form a de relacionam ent o social: “ Mesm o quando o
processo de produção é considerado a base da urbanização, é sem pre concebido em t er m os do lugar
físico da produção, o produt o prát ico ou o indiv íduo confr ont ando a nat ureza, em vez de em t er m os de
relações sociais ou prát icas sociais. Est as duas concepções da produção, enquant o processo físico ou
social, são, com efeit o, fundam ent alm ent e diferent es e im plicam int erpret ações diam et ralm ent e
opost as” ( Clar ke, 1992: 16) . No ent ant o, não desenvolve at é ao fim a sua argum ent ação por se
encont rar ainda no quadr o da ont ologia m arxist a do t rabalho; nom eadam ent e não ent ende a
especificidade hist órica da pr ópria separação analít ica.
13
Com o é o caso de Rousseau: quando se r et irou de Paris em 1756 disse: “ nunca m ais viv erei num a
cidade! ” ( Rousseau, ap. Kost of, 1992: 51) ; m ais t arde dir ia: “ Ora é o cam po que faz um país e é o povo
do cam po que faz um a nação” ( Rousseau, ap. Ansay e Schoonbrodt , 1989: 433) . Est a ideologia ant i-
urbana de Rousseau é ainda m ais significat iva se t iverm os em consideração que, de acordo com Choay
( Choay, 1972: 23n) , ele foi um dos pr im eiros aut ores a ut ilizar o t er m o ‘urbano’ no sent ido m oderno, ou
sej a, por oposição a ‘rural’, a ‘cam po’. Por out ro lado há que realçar que est a ideologia est ará t am bém
present e em aut ores t ão diferent es de Rousseau com o Niet zsche e Heidegger.

17
t ot al do m ercado falhou reconhecidam ent e; só act ua de form a claram ent e
pert inent e na generalização da legislação para as fábricas, na redução das j ornadas
de t rabalho e na regulação de alguns sect ores básicos da reprodução social; e é
nest e cont ext o t am bém que surgem os prim eiros m om ent os de urbanism o
propriam ent e m oderno, cuj os m om ent os oficiais m ais relevant es foram dit ados por
apelos higienist as.
Durant e esse período, no ent ant o, o t rabalho consolida- se com o um a
verdadeira m et afísica social e est rut ura a quase t ot alidade das m odernas ideologias
polít icas e urbanas, t respassando os diversos discursos em conflit o com o um a
‘m at riz de percepção, de apreciação e de acção’ ( Bourdieu, 1972/ 2002) da/ na
realidade social; sobret udo na visão da classe operária. É por est e m ot ivo que
Giddens pode- nos dizer ret rospect ivam ent e, sem t irar as devidas ilações, que “ os
m ovim ent os de t rabalhadores foram anim ados pelo m esm o nexo de ideias das
organizações capit alist as cont ra as quais se opõem ” ( Giddens, 1984/ 2004: 205) .
Assim , se no final do século XI X um a grande part e das cidades com eçaram a
m elhorar subst ancialm ent e em t erm os m at eriais, o seu significado essencial e
predom inant e de ‘produt o e espaço de concent ração do t rabalho abst ract o’
m ant eve- se inalt erado. É j ust am ent e por isso, parece- nos, que nest a época j á se
haviam alinhavado a m aior part e das principais corrent es e ideologias urbaníst icas
de t odo o século XX e que, sim ult aneam ent e, um a nova preocupação m ais
sociológica com eçava a em ergir sobre a nat ureza da int egração social na cidade
m oderna, sobret udo com os t rabalhos de Tonnies e Sim m el; est es são dois t em as
que t ent arem os abordar num fut uro próxim o.

3 . A con st it u içã o h ist ór ico- socia l d o e sp a ço d e v a lor iz a çã o

No âm bit o do processo hist órico de valorização do valor com eçou a em ergir


na época pré- indust rial um a dissociação social, t em poral e espacial das act ividades
produt ivas — cada vez m enos ent endidas enquant o t rabalhos concret os — em
relação a t odas as out ras act ividades e m om ent os da reprodução social quot idiana,
que passam daí em diant e a ser encaradas com o um ent rave à ‘produt ividade’, um a
noção que com eçava ent ão a surgir. Em t erm os t em porais, a inst it uição do t em po
hom ogéneo foi um m om ent o m arcant e para t odo o processo, com o m ost rou o
hist oriador E.P. Thom pson ( 1967) no seu clássico ensaio sobre a ‘disciplina
t em poral’, sobret udo nos principais cent ros urbanos europeus; m as ant es de se
generalizar por t oda a vida social urbana, com o no diz Kurz, “ o t em po com eçou por
se t ornar abst ract o, independent e e absolut o apenas num espaço social

18
det erm inado, que é precisam ent e o espaço funcional da econom ia em presarial
desvinculado” ( Kurz, 2004) .
A relevância hist órico- social dest a desvinculação é m ais evident e na
separação do t rabalho em relação à residência, processo hist órico progressivo
referido por inúm eros aut ores dos m ais diversos cam pos t eóricos — desde a
arquit ect ura e do urbanism o à hist ória, econom ia e sociologia —, m as cuj a
invest igação é realizada sem um a reflexão sobre a própria abst racção ‘valor’: Adam
Sm it h considerava que a separação da casa e do t rabalho a m ais im port ant e de
t odas as m odernas divisões do t rabalho ( ver Sennet t , 1998/ 2001: 56) ; Max Weber
havia igualm ent e referido que a “ separação espacial ent re o local de produção ou
de com ercialização e o dom icílio” , em bora exist isse nout ros lugares, apenas no
ocident e m oderno ela foi racionalizada de form a sist em át ica no âm bit o da
“ organização capit alist a do t rabalho” ( Weber, 1913/ 1996: 17) ; e na est eira dest e
argum ent o Giddens ( 1984/ 2004: 122) , m ais recent em ent e, apont ou t am bém que
“ o desenvolvim ent o do capit alism o m oderno ( ...) t rouxe consigo a diferenciação
ent re a casa e o local de t rabalho, t endo est a diferenciação consideráveis
im plicações para a organização geral dos sist em as de produção e out ros am plos
elem ent os inst it ucionais das sociedades cont em porâneas” . De fact o, se é cert o que
podem os afirm ar que as sociedades pré- capit alist as possuíam locais de produção
relat ivam ent e separados dos rest ant es locais da vida quot idiana, est a separação
result a fundam ent alm ent e da im posição nat ural das próprias condições da produção
t ecnicam ent e at rasadas e de base agrícola, não sendo sequer t em at izada
socialm ent e enquant o um a separação real; na realidade, não podia ser de out ro
m odo para m uit as act ividades. No caso das sociedades capit alist as o caso é
com plet am ent e diferent e, vist o que, aqui, est a cisão é um a criação hum ana, um a
inst it uição social, ou m elhor, um a ‘aut o- im posição’ que exige a própria
generalização da separação no ‘m undo de vida quot idiano’. Do nosso pont o de
vist a, est a separação deve ser clarificada em t erm os hist órico- sociais com o
expressão espacial da inst it ucionalização do valor e do t rabalho abst ract o com o
form as de relacionam ent o social.
Para isso devem os t ecer algum as considerações crít icas sobre a noção geral
de que a separação das act ividades da reprodução social se deve apenas às
exigências t écnicas, obj ect ivas e m at eriais da produção m oderna; est a ideia
parece- nos reduzir um fenóm eno social, gradual e com plexo aos result ados
m eram ent e funcionais invest igados ret rospect ivam ent e. Por um lado, t ende a
escam ot ear que a produção capit alist a de m ercadorias t em um duplo caráct er: é
sim ult aneam ent e um processo de produção e um processo de valorização; e que é
do segundo que hist oricam ent e t êm derivado as exigências m ais significat ivas e

19
repressivas da vida social m oderna. Por out ro lado, a separação é averiguada com
um cert o det erm inism o espacial e sem considerar os fenóm enos t em porais e sociais
que acom panharam t oda a reest rut uração da vida quot idiana, que parecem surgir
assim det erm inados pela própria divisão espacial. Com o consequência principal
t em os um a redução t eórica do papel real que a valorização do valor desem penha
em grande part e da vida urbana m oderna e não só no espaço de produção. Est as
crít icas m erecem ser desenvolvidas.
Com o desenvolvim ent o acent uado e generalizado dos m odos de t ransport e
no século XX t ornou- se cada vez m ais usual ident ificar a crescent e circulação de
m ercadorias e pessoas com o o fenóm eno espacial fundam ent al e específico da
urbanização capit alist a, o que é evident e ainda hoj e na crit ica da geografia
capit alist a de David Harvey ( 1985) e na t eorização do ‘espaço de fluxos’ de Cast ells
( 1996, 2000/ 2002) ; nest e cont ext o o caso de Schivelbusch m erece ser reflect ido.
Schivelbusch ( 1978) realizou um a invest igação hist órica a propósit o dos efeit os
int roduzidos pelo com boio em I nglat erra e França na prim eira m et ade do século
XI X, sobret udo o m odo com o est e acont ecim ent o alt erou profundam ent e a noção
social de espaço e de t em po nest es países. At ravés de um a análise dos j ornais e
lit erat ura da época, Schivelbusch m ost ra- nos com o eram percepcionadas as
m udanças derivadas da com pressão espaço- t em poral 14 , com a sensação
concom it ant e da aniquilação do espaço pelo t em po, e com o a noção de cidade se
alt erou profundam ent e; nest e âm bit o, Schivelbusch cit a- nos o poet a Henrich Heine
que dizia em 1843: “ Sint o com o se as m ont anhas e florest as de t odos os países
avançassem sobre Paris” ( Schivelbusch op. cit .: 34) . 15 Percebem os isso verificando
t am bém de que m odo o com boio part icipou na perda de im port ância da cidade para
a em ergent e nação com o principal ent idade polít ica e económ ica e o espaço de
int egração social dom inant e; m as est e foi um processo cont radit ório e pouco linear:

A alt eração das relações espaciais at rav és da velocidade int roduzida pelos cam inhos- de- fer r o
não é sim plesm ent e um processo de dim inuição do espaço, m as um processo dual: dim inui e
sim ult aneam ent e aum ent a o espaço. A dialéct ica dest e processo det er m ina que a dim inuição,
ist o é, a com pressão t em poral do t ransport e, causa a expansão do espaço de t ransport e. A
nação cont raída num a m et rópole ( ...) surge inversam ent e com o um a expansão da m et rópole:
ao est abelecer linhas de t ransport e em áreas cada v ez m ais dist ant es, t ende a incorporar t oda a
nação ( Schivelbusch, 1978: 33) .

14
A relação espaço/ t em po é de t al form a indissociável que Schivelbusch m ost ra- nos com o a expansão
das linhas de cam inhos- de- ferro cont r ibuiu para a gener alização do t em po Greenw ich ( Schiv elbusch,
idem : 39) .
15
E o poet a Mallarm é escreveu: “ A Nor m andia, que, com o a Bret anha, faz part e dos Cam inhos- de- Ferro
do Oest e” ( Schivelbusch, idem : 35) .

20
Schivelbusch aborda de seguida a relação ent re a consolidação do
capit alism o e o desenvolvim ent o m oderno dos m eios de circulação e t ransport e.
Para o efeit o, Schivelbusch cit a os Grundrisse de Marx ( Marx, [ 1857] / 1973) ,
quando est e se debruça sobre o processo de circulação espacial das m ercadorias:

Est e m om ent o locacional 16 — o ‘t razer’ do pr odut o ao m er cado, que é um a condição necessár ia


da sua circulação, except o quando o pont o de produção é ele própr io um m ercado — pode ser
m ais precisam ent e vist o com o a t ransform ação do produt o num a m ercadoria ( ap. Schivelbusch,
1978: 37, t ranscrição corr igida)

Schivelbusch int erpret a ent ão que a separação ent re o local de produção e o


local de consum o é j ust am ent e um a das condições necessárias da t ransform ação
dos produt os em m ercadorias e que, assim sendo, o com boio foi na const it uição
dessa t ransform ação um fact or det erm inant e. Segundo o aut or,

[ C] om a dist ância espacial que o produt o percorre no seu cam inho do lugar de produção at é ao
m ercado, perde t am bém a sua ident idade local, o seu aqui- e- agora. As suas propriedades
concr et as e sensíveis que são experim ent adas no local de produção com o o result ado do
processo de t r abalho ( ou, no caso dos frut os da t erra, com o o result ado do crescim ent o nat ural)
aparecem de um m odo m uit o diferent e no dist ant e m ercado. Ali, o produt o, agora m ercadoria,
realiza o seu v alor económ ico, e sim ult aneam ent e ganha novas qualidades enquant o obj ect o de
consum o ( Schivelbusch idem : 37) .

Schivelbusch parece não t er em consideração um aspect o decisivo: é que a


t ese que o aut or apropria de Marx, segundo o próprio Marx, é válida som ent e para
a fase inicial do capit alism o. De acordo com a sua lógica de desenvolvim ent o, a
afirm ação do capit alism o consist e j ust am ent e na subst it uição hist órica generalizada
dest a t roca de m ercadorias num m ercado específico pela produção de m ercadorias
para um m ercado anónim o — ou sej a, da passagem do m ercado à econom ia de
m ercado 17 —, sit uação essa onde as m ercadorias são j á const it uídas na produção
m as que necessit am sem pre dessa aparência no m ercado onde se realizam
econom icam ent e. 18 Schivelbusch descreve assim o processo de t ransform ação dos

16
Schiv elbusch com et e aqui um lapso fundam ent al par a a sua int er pret ação: a versão de Mar x é
‘locat ional m om ent ’ e não ‘locat ional m ovem ent ’ com o Schivelbusch apresent a; cf. Marx ( [ 1857] / 1973:
327) .
17
Do pont o de vist a da hist ória urbana Mum ford ( 1961/ 1998: 445) fala- nos em t er m os sem elhant es a
propósit o da t r ansição hist órica da “ Praça de Mercado à Econom ia de Mercado” .
18 De fact o, Schivelbusch deixa em claro que o parágrafo do qual faz part e a frase de Marx por si cit ada
com eça do seguint e m odo:
Considerada econom icam ent e, a condição espacial, o ‘t razer’ [ t he br inging, B.L.] o produt o para
o m ercado, pert ence ao próprio processo de produção ( ...) Mas est e m om ent o espacial só é

21
produt os em m ercadorias com o se não exist isse ainda revolução indust rial, em bora
um dos supost os agent es dessa t ransform ação – o com boio – a pressuponha a cada
inst ant e. Não é ent ão por acaso que é forçado a rest ringir- se sist em at icam ent e à
venda dos produt os agrícolas para ilust rar a sua t ese. Num dado m om ent o afirm a
que os produt os “ j á não são m ais vist os no seu cont ext o original do aqui- e- agora
do lugar de produção m as no aqui- e- agora do m ercado: cerej as à venda no
m ercado de Paris parecem ser produt os do m ercado, assim com o a Norm andia
parece ser um produt o da linha do cam inho- de- ferro que lá nos leva.”
19
( Schivelbusch, op. cit .: 37, it álico nosso) .
A consequência fundam ent al dest a confusão é que são os cam inhos- de- ferro
e o desenvolvim ent o dos sist em as de t ransport e em geral que parecem surgir com o
o espaço específico da afirm ação hist órica do capit alism o; é o espaço da circulação
que Schivelbusch dist ingue com o sendo o espaço abst ract o capit alist a ao invés do
espaço de produção, ao qual o prim eiro se encont ra subordinado. O aut or não
com preende que aquilo que é específico do capit alism o é j ust am ent e a const it uição
de um espaço separado, abst ract o, const it uído pela e para a lógica da valorização
do valor, e onde é erradicada t oda e qualquer int eracção ent re seres hum anos que
não sirva ao aum ent o de capit al. A época hist órica que Schivelbusch invest iga t em
na fábrica o espaço- sínt ese da m at erialização dest a lógica.

im por t ant e desde que ligado à expansão do m ercado e à capacidade de t roca do produt o ( ...)
Em cert os aspect os, enquant o condição ext er na da exist ência do processo económ ico de
circulação, est e m om ent o pode t am bém ser reconhecido com o part e dos cust os de produção da
circulação, de m odo que, no que diz r espeit o a est e m om ent o, a própr ia circulação surge com o
m om ent o não só do processo de produção em geral, m as t am bém do processo direct o de
produção ( Mar x, [ 1857] / 1973: 326- 7, it álico no original) .
É por est e m ot ivo que Marx conclui que “ se o capit al produz por encom enda, ent ão nem est e m om ent o
[ o da circulação espacial, B.L.] nem a t ransform ação em dinheiro ex ist e com o seu m om ent o part icular .
Trabalho feit o por encom enda, i.e., ofer t a correspondent e a um a pr ocura prév ia, enquant o sit uação
geral ou predom inant e, não é caract eríst ica da grande indúst r ia e de m odo algum em erge da nat ureza
do capit al enquant o condição” ( Marx , [ 1857] / 1973: 327, it álico no original) . Com o se v ê, precisam os de
ent ender de form a dialéct ica o aum ent o da produção indust rial na sua relação necessária ( do pont o de
vist a do capit al) , quer dizer , obj ect iva, com a concom it ant e expansão do m er cado e o desenvolv im ent o
t écnico dos m eios de cir culação no espaço.
19
Est a espécie de est ranheza dos produt os agrícolas ‘parecer em ’ produt os dos m ercados obviam ent e
não pode ser explicada sim plesm ent e do pont o de v ist a de um consum idor urbano do século XI X
m aravilhado pelo desenvolvim ent o t ecnológico; necessit am os de perceber est e fenóm eno socialm ent e e
não de form a m eram ent e t écnica. Em bora o desenvolv im ent o dos m eios de t ransport e sej a um a
condição necessária para est a est ranheza, o papel que Schiv elbusch lhe at ribui é excessivam ent e
det er m inant e. É de algum m odo est e t ipo de fenóm enos que Marx t ent a capt ar com o seu conceit o de
‘fet ichism o das m ercador ias’; c.f. ( Marx, 1867/ 1990: 89- 100) .

22
A fábrica não é um sim ples espaço ‘concret o e sensível’; ali não exist e nada
que se assem elhe ao ‘crescim ent o nat ural’ dos ‘frut os da t erra’. A fábrica não é um
am ont oado de t ij olos, pedras e m adeira, inocent e na aparência arquit ect ónica da
sua form a m at erial, onde se produzem bens de consum o, t am bém eles
perfeit am ent e inocent es; ela incorpora e reproduz det erm inados esquem as de
pensam ent o e regras sociais prát icas ( Sewell Jr, 1992) , t ant o da m icro- escala da
própria fábrica com o das m udanças m acro- est rut urais em que ela própria
20
part icipa . A fábrica é um espaço social específico com um a função social
específica, e é dest a função que decorre a part e m ais significat iva da sua form a
m at erial ( Kurz, 2004) . Nest e aspect o, Biernacki ( 1995) invest igou com o a exigência
capit alist a geral da valorização do t rabalho abst ract o na I nglat erra e da Alem anha
do século XI X, foi suj eit a a reint erpret ações cult urais em cada um dos países e deu
origem a novas form as de organização espacial e t em poral do t rabalho, nas quais a
arquit ect ura fabril ( Markus, 1993) desem penhou um papel fundam ent al ao fornecer
o cont ext o quot idiano de um a necessidade funcional abst ract a — a valorização do
valor.
Nest e cont ext o, se é cert o que as caract eríst icas t écnicas dos m eios de
produção indust rial exigiram hist oricam ent e alt erações profundas na est rut ura das
cidades europeias dos m eados do século XI X, dando origem às pat ologias urbanas
cont est adas pelo discurso urbano reform ist a ( Kost of, 1992: 51) , não podem os
resum ir est as m udanças à necessidade t écnica de um a form a sim plist a. Em bora a
separação espacial ent re funções m at erialm ent e incom pat íveis signifique que
det erm inadas act ividades de produção indust rial não se possam obj ect ivam ent e
desenrolar no int erior do espaço residencial, o inverso j á é pouco razoável. Ou sej a,
não é de t odo evident e a necessidade m at erial de conceber um espaço de produção
que exclua t oda e qualquer int eracção hum ana sensível e não- rent ável ( com o a
convivência, a am izade, o afect o, a criat ividade, et c.) . Est a necessidade deriva do
processo de valorização do valor e não do processo de produção per se.
Por isso m esm o, podem os dizer que o espaço essencial do capit alism o, a
const it uição de um espaço social específico para a produção, separado dos
rest ant es espaços e t em pos da vida quot idiana e com o obj ect ivo final de obt er a
m aior eficácia e rent abilidade possíveis, não deriva das condições m at eriais e
espaciais que caract erizam os m eios t écnicos da produção indust rial. 21 I st o quer

20 O que leva o urbanist a Ber nardo Secchi a afirm ar que “ a fábrica foi, por pelo m enos dois séculos, o
principal lugar de socialização de grande par t e da população urbana, da const r ução de est ilos de vida e
com port am ent os com uns” ( Secchi, 2000/ 2006: 107) .
21 At é porque o próprio desenv olvim ent o desses m eios t écnicos, ou sej a, o rum o que t om a a inovação
da grande m aquinar ia indust rial, necessit a de ser elucidada socialm ent e, sob pena de haver apenas um a

23
dizer que não é nos grandes im pact os da indúst ria pesada, da insalubridade das
suas act ividades, do ruído gerado ou das suas exigências de solo que devem os
procurar o m ot ivo hist órico últ im o da criação de um espaço específico para a
produção. De fact o, e com o j á vim os ant eriorm ent e a propósit o do início da
m anufact ura no final da I dade Média, a abst racção do espaço de produção dos
rest ant es lugares e m om ent os da reprodução social é hist oricam ent e ant erior ao
aparecim ent o da indúst ria.
O desenvolvim ent o da m anufact ura e sua divisão det alhada do t rabalho,
cuj o m om ent o m ais im port ant e Marx periodiza ‘grosso m odo’ ent re os m eados do
século XVI e o últ im o t erço do século XVI I I ( Marx, 1867/ 1996a: 453) , caract eriza-
se de form a explicit a pela inst it ucionalização de um espaço específico para a
produção, onde diversos indivíduos ant eriorm ent e dispersos “ são reunidos em um a
oficina” ( id., ibid.) ; é nest e cont ext o que Marx crit ica a analogia de Adam Sm it h
ent re a divisão do social do t rabalho na sociedade e a divisão social do t rabalho
num a oficina, quando na realidade são fenóm enos “ essencialm ent e diferent es”
( Marx, id.: 469) . Est as oficinas são aquilo a que Adam Sm it h apelidou de
‘workhouses’ — verdadeiras casas de t rabalho inspiradas na organização espacial
dos aquart elam ent os m ilit ares, descrit as por Marx e ainda de form a m ais
porm enorizada por Foucault ( 2004) , que decom põem individualm ent e a m assa
hum ana da ‘força de t rabalho’ e a organizam num espaço analít ico e disciplinar com
o obj ect ivo últ im o de produzir m ercadorias da form a m ais eficient e e rápida
possível. Não por acaso as prim eiras organizações dos indivíduos hum anos
enquant o unidades de ‘força de t rabalho’ deram - se j ust am ent e nos asilos de loucos
e nas prisões do século XVI I e XVI I I . Segundo Marx, e t ot alm ent e diversa da t ese
que o m at erialism o hist órico inint errupt am ent e afirm a, é est a lógica do processo de
valorização do t rabalho ( m ediada pela exigência est rut ural generalizada da
concorrência) que preside e im pulsiona o desenvolvim ent o indust rial, o qual surge
com o o m eio t écnico essencial do capit alism o, a sua expressão t écnica específica. 22

form a hist ór ica de desenvolv im ent o t ecnológico. Em t er m inologia m arx ist a, podem os ent ão dizer que as
‘relações de pr odução’ não coincidem necessariam ent e com as ‘forças de produção’ ( ver t am bém Sayer,
1987) ; e, t endo em consideração que o valor é um a form a de riqueza abst ract a especificam ent e
capit alist a, é at é forçoso que assim sej a.
22
Est a t ese é claram ent e apresent ada a propósit o do esgot am ent o da m ais- valia absolut a num m om ent o
hist órico inicial ( ou sej a, da ext ensão da j ornada de t rabalho) quando o “ capit al lançou- se com força
t ot al e plena consciência à produção de m ais- valia r elat iva por m eio do desenvolv im ent o acelerado do
sist em a de m áquinas” ( Marx, 1867/ 1996b: 42) . E nout ro m om ent o Marx diz- nos: “ O m odo de produção
especificam ent e capit alist a deixa de ser ao t odo um sim ples m eio para a produção de m ais- valia relat iva,
t ão logo t enha- se apoderado de t odo um r am o de produção e, m ais ainda, de t odos os ram os decisivos
de produção. Ele t or na- se agora a form a geral, socialm ent e dom inant e, do processo de produção. Com o
m ét odo par t icular para a pr odução da m ais- valia relat iva at ua ainda som ent e, pr im eir o, na m edida em

24
A seu m odo, Max Weber indicou o m esm o a propósit o do desenvolvim ent o
da ‘organização racional capit alist a do t rabalho’ e a concom it ant e expansão da
racionalidade inst rum ent al, caract erizada, ent re out ros fenóm enos, por um a
segm ent ação das esferas da reprodução social que est ender- se- á do espaço de
produção, ele próprio previam ent e separado, aos out ros espaços e t em pos da vida
quot idiana:

A observação de que a ‘disciplina m ilit ar’ é o m odelo ideal para a m oder na oficina capit alist a, do
m esm o m odo que para a plant ação da Ant iguidade, não precisa de provas especiais. Em
oposição à plant ação, a disciplina descansa aqui com plet am ent e num a base racional, calculando
em grau crescent e, com a aj uda de m ét odos de m edição adequados, o ót im o de r ent abilidade
de cada t rabalhador individual, do m esm o m odo que se faz com um m eio de produção m at erial.
O m áxim o t r iunfo fest ej a, com o é sabido, o adest ram ent o e t reinam ent o racional do t rabalho
produt ivo, baseado nest es cálculos, no sist em a am ericano do scient ific m anagem ent , o qual
chega às últ im as consequências da m ecanização e do disciplinam ent o da em presa. O aparelho
psicofísico do hom em é aqui com plet am ent e adapt ado às ex igências do m undo ex t erno, do
inst rum ent o, da m áquina ou, em um a palavra, da função, despoj ado do seu rit m o dado por sua
própria est rut ura orgânica e subm et ido a um novo rit m o que, depois da análise sist em át ica das
funções de cada m úsculo e da criação de um a ót im a econom ia das forças, corr esponde
perfeit am ent e às condições do t rabalho. Todo est e processo de racionalização realiza- se, aqui e
por t oda a part e, sobret udo t am bém no aparat o burocrát ico do Est ado, paralelam ent e à
cent ralização dos recur sos m at eriais ( Weber, 1922/ 1999: 362, it álico nosso) .

Os achados em píricos de Weber não são m ais pobres por seu


enquadram ent o t eórico se desenvolver fora de qualquer reflexão explícit a sobre o
problem a do valor ou do t rabalho abst ract o. Ent ret ant o ilust ram de um out ro m odo
o vast o conj unt o de fenóm enos sociais quot idianos que, no t em po e no espaço, se
subm et em de um m odo incont ornável ao avanço ‘racionalizado’ da relação valor-
t rabalho abst ract o enquant o a priori social, e cuj a expressão espacial m ais fam osa
é o ‘zonam ent o’ abst ract o defendido pelo planeam ent o urbano funcionalist a que
dom inou grande part e da urbanização ocident al do século XX; est e t em a deverá ser
reflect ido num a próxim a oport unidade.

que se apoder a de indúst r ias at é ent ão apenas form alm ent e subordinadas ao capit al, port ant o em sua
propagação. Segundo, ao serem revolucionadas cont inuam ent e as indúst rias que j á se encont ram em
seu poder , m ediant e a m udança dos m ét odos de produção” ( Marx, 1867/ 1996b: 139) . Aqui se vê que é
o processo de valorização que força o desenvolvim ent o m at er ial da m aquinar ia indust r ial; não o inver so.

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