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Este texto busca apresentar uma reflexão histórica sobre como as cidades afro-
diaspóricas brasileiras, com ênfase na história urbana da cidade de Salvador, tiveram sua
constituição espacial pautada em signos racistas de exclusão das populações negras dos
processos de produção do espaço urbano.
Enquanto um dos portos que mais recebeu contingente populacional da diáspora
africana2, a cidade de Salvador-BA constitui-se como uma das mais negras fora do
continente africano. A presença negra integrada à construção da cidade e do urbano que
aqui se constituiu: como se afirma e se apaga? Como existe e resiste criando num espaço
tão essencialmente segregado?
1
Professora Substituta da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (FAU UFBA).
Mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal da Bahia (PPGAU UFBA). E-mail: bonfimcibele@gmail.com.
2
Kabengele Munanga considera três momentos afrodiaspóricos na História. O primeiro deles,
compreendendo o continente africano enquanto berço da humanidade, diz respeito aos primeiros grupos
humanos que se deslocaram para povoar outras partes do planeta através de migrações voluntárias. O
segundo, ao qual este artigo se reporta, refere-se ao contingente de africanos que emigraram
compulsoriamente através do tráfico escravista colonial a partir do séc. XV até o XIX. E o terceiro deles
alude ao momento do neocolonialismo, quando, contingenciados pelas condições de exploração dos seus
países de origem e pelas guerras de independência, africanos voltam a migrar especialmente para as
metrópoles colonizadoras europeias, em busca de melhores condições sócio-econômicas de vida.
(Entrevista concedida pelo professor Kabengele. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=MIgSc3zZ4UE&t=2091s, acesso em julho de 2017)
Exclusões urbanas
O urbano é um modo de vida que foi criado com a modernidade. Todas as práticas
que estão fora do ideário de “civilidade” difundido pelo modo de vida urbano, que é
eurocêntrico, acaba por receber um lugar inferior ou subalternizado na estrutura de
produção do espaço da cidade, seja ocupando os piores sítios e localizações na malha
urbana, seja pelo questionamento de suas lógicas próprias de conduta em relação à
ocupação do território, à construção, com o estabelecimento de relações sociais.
Historicamente a presença negra, apesar de afirmada e evidente constitutiva de
cidades afro-diaspóricas como Salvador, sofre sucessivas investidas de apagamento por
estarem fora da lógica da branquitude que institui a ordem urbana.
Urbanização é também utilizada como sinônimo de civilização.
A palavra cidade se origina do latim “civis” (civis, civitas, cité,
civilidade), que deu origem também à civilização. Portanto,
podemos fazer uma relação entre civilização e urbanização.
(LUSTOSA, 2017, p. 126)
Assim, o plano de remodelamento de J.J. Seabra, que rasgara vias para a chegada
do automóvel que se anunciava (Av. Sete de Setembro e Av. Oceânica), expulsara as
populações que habitavam em áreas centrais e as destituiu de suas práticas no intento de
promover e definitivamente civilizar a cidade soteropolitana, tirar-lhe os “aspectos de
Costa d’África, de cabilda de selvagens sem governo", (ALBUQUERQUE, 1996) como
publicado no Jornal A Tarde, de 18 de agosto de 1917.
Era preciso livrar as ruas de práticas como as batucadas e sambas
de rodas que tanto lembravam os tempos coloniais, em que este
era um espaço destinado aos negros de ganho, aos mendigos, aos
moleques de recado. Desfazer-se "das chagas do passado
colonial" se apresentava como tarefa inadiável para os
republicanos baianos. Tarefa inadiável e difícil, em um estado
com dificuldades financeiras, alheio ao processo de
industrialização em curso no eixo centro-sul e que havia herdado
do sistema escravista uma significativa população negra, cuja
cultura apresentava-se diversa do modelo cultural urbano dos
europeus, tão em moda no período. (ALBUQUERQUE, 1996, p.
107)
Mas os intentos de apagamento e expulsão dessas práticas “africanas” da cidade
não foram de todo exitosos. Para além das comidas de tabuleiro, os jogos de rua, a
“vadiagem”, os “batuques”, as festas de largo, a presença negra não se dá nesta
constituição pelo simples viés de uma “contribuição” pontual. Ela é parte intrínseca desta
urbanidade, por mais estruturante que seja a branquitude na sociedade, a presença
criadora desse outro no urbano reinventa-se:
Apesar de constatar que realmente haviam reformas urbanísticas
em curso, como anunciavam "as noticias alviçareiras", os
visitantes e as elites locais notavam que a "picareta demolidora"
não aniquilara o que havia de "incivilizado" nos costumes dos
baianos. Persistiam práticas que para os reformadores serviam
para atestar que mesmo na nova ordem republicana a qual as
cidades brasileiras, apressadamente, tentavam adequar-se
demolindo antigas construções, construindo avenidas,
iluminando as ruas e também estabelecendo novas formas de
ocupação do espaço urbano a Bahia continuava "velha" e
"arcaica", como se ainda permanecesse no século passado,
adiando o seu ingresso na "era da civilização".
(ALBUQUERQUE, 1996, p. 109)
Existências, resistências
Tendo sido o urbano forjado na instituição da branquitude seria o racismo uma instituição
do urbano na sua essência? Essa é uma questão chave levantada pelo apanhado histórico levantado
ao longo do corpo do texto deste artigo. A esta pergunta devemos responder aprofundando a
compreensão das diversas mortes simbólicas, físicas e epistemológicas impostas que se alternam
entre apagamentos, resistências e criação nas formas que os sujeitos negros encontram ao se
estabelecerem na cidade. A quem é concedido o direito de fazer cidade e sob que códigos se pode
construí-la?
Mas a cidade, como um todo, resiste à difusão dessa racionalidade triunfante
graças, exatamente, ao meio ambiente construído, que é um retrato da
diversidade de classes sociais, das diferenças de renda e dos modelos culturais
(SANTOS, 2008, p. 74)
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