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DIREITO À CIDADE E NEGRITUDE

Cibele Moreira Nobre Bonfim1

Resumo: As reflexões apresentadas neste trabalho integram o corpo da dissertação de


mestrado intitulada Direito à Cidade e Africanidades: fundamentos e encruzilhadas na
constituição do urbano, apresentada em 2017 no Programa de Pós Graduação em
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (PPGAU UFBA). Neste
artigo, busca-se dar ênfase à reflexão histórica sobre como as cidades afro-diaspóricas
brasileiras, com ênfase na história urbana da cidade de Salvador, tiveram sua constituição
espacial pautada em signos racistas de exclusão das populações negras dos processos de
produção do espaço urbano. Para tanto, ressaltam-se três momentos fundamentais dos
discursos de produção da cidade e do campo do urbanismo: a Lei de Terras (1850), que
remonta à transição do sistema colonial para o capitalismo concorrencial no Brasil; o
modelo de urbanismo higienista dos séculos XIX e início do XX e a produção das cidades
pautadas no planejamento estratégico, modelo vigente na atualidade que reifica as lógicas
empresariais de concorrência entre cidades, trabalhando sua imagem através de
intervenções urbanas excludentes e publicitárias.

Palavras-chave: cidade, urbanismo, negritude, diáspora.

Este texto busca apresentar uma reflexão histórica sobre como as cidades afro-
diaspóricas brasileiras, com ênfase na história urbana da cidade de Salvador, tiveram sua
constituição espacial pautada em signos racistas de exclusão das populações negras dos
processos de produção do espaço urbano.
Enquanto um dos portos que mais recebeu contingente populacional da diáspora
africana2, a cidade de Salvador-BA constitui-se como uma das mais negras fora do
continente africano. A presença negra integrada à construção da cidade e do urbano que
aqui se constituiu: como se afirma e se apaga? Como existe e resiste criando num espaço
tão essencialmente segregado?

1
Professora Substituta da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (FAU UFBA).
Mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal da Bahia (PPGAU UFBA). E-mail: bonfimcibele@gmail.com.
2
Kabengele Munanga considera três momentos afrodiaspóricos na História. O primeiro deles,
compreendendo o continente africano enquanto berço da humanidade, diz respeito aos primeiros grupos
humanos que se deslocaram para povoar outras partes do planeta através de migrações voluntárias. O
segundo, ao qual este artigo se reporta, refere-se ao contingente de africanos que emigraram
compulsoriamente através do tráfico escravista colonial a partir do séc. XV até o XIX. E o terceiro deles
alude ao momento do neocolonialismo, quando, contingenciados pelas condições de exploração dos seus
países de origem e pelas guerras de independência, africanos voltam a migrar especialmente para as
metrópoles colonizadoras europeias, em busca de melhores condições sócio-econômicas de vida.
(Entrevista concedida pelo professor Kabengele. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=MIgSc3zZ4UE&t=2091s, acesso em julho de 2017)
Exclusões urbanas
O urbano é um modo de vida que foi criado com a modernidade. Todas as práticas
que estão fora do ideário de “civilidade” difundido pelo modo de vida urbano, que é
eurocêntrico, acaba por receber um lugar inferior ou subalternizado na estrutura de
produção do espaço da cidade, seja ocupando os piores sítios e localizações na malha
urbana, seja pelo questionamento de suas lógicas próprias de conduta em relação à
ocupação do território, à construção, com o estabelecimento de relações sociais.
Historicamente a presença negra, apesar de afirmada e evidente constitutiva de
cidades afro-diaspóricas como Salvador, sofre sucessivas investidas de apagamento por
estarem fora da lógica da branquitude que institui a ordem urbana.
Urbanização é também utilizada como sinônimo de civilização.
A palavra cidade se origina do latim “civis” (civis, civitas, cité,
civilidade), que deu origem também à civilização. Portanto,
podemos fazer uma relação entre civilização e urbanização.
(LUSTOSA, 2017, p. 126)

Pensar a produção do espaço protagonizada por sujeitos negros traz


especificidades muito necessárias. Do ponto de vista da inserção urbana, essa abordagem
tem sido bastante negligenciada, muito em parte pela falsa resolução dos problemas
causados pelo escravismo criminoso a partir da ideia de mestiçagem, que muito mais
promove o apagamento do corpo negro e suas questões do que o inclui num processo
cultural brasileiro, em grande parte por levar-se em conta apenas as questões de classe
econômica, instituídas na relação trabalho-capital.
Para grande parte das populações negras, tendo sofrido sistemáticos processos de
marginalização social e cultural (que se mantém para além da lógica colonialista, através
do racismo estruturante do modo de produção capitalista), a inserção no espaço urbano se
dá historicamente na disputa pelo direito a existir, a construir cidade. Sobre os
mecanismos recorrentes das investidas de apagamento, expulsão, marginalização sofridas
pelo ser social negro no espaço urbano, discorre Muniz Sodré:
Por colocar a liberdade corporal no centro de todo processo
comunicativo, a cultura negra choca-se com o comportamento
burguês-europeu, que impõe o distanciamento entre os corpos.
[...] A intensificação de um império normativo dessa ordem,
correspondente ao aumento do poder das aparências européias no
espaço urbano brasileiro, fazia com que a noção de promiscuidade
abrangesse toda a esfera de atos não garantidos ou autorizados
pelos códigos metropolitanos (SODRÉ, 1988, p. 39)
O “urbano” enquanto ideologia de cultura e civilização – únicas - vem a exacerbar-
se com os ideais de progresso e produtividade da cidade industrial, no séc. XIX na Europa.
Atualmente a ideologia do urbano vive a lógica do planejamento estratégico, respaldada
pela flexibilidade do capitalismo mundial financeiro. Neste artigo, ressaltamos a partir
desses três momentos históricos de produção do urbano no Brasil – transição do regime
colonialista para o sistema capitalista; urbanismo higienista dos séculos XIX e XX e
planejamento estratégico na atualidade – como a presença negra foi deliberadamente
negada da constituição do espaço urbano brasileiro.
Urbano e urbanização historicamente
Marcam o início do capitalismo no Brasil duas leis: a Lei que abole o Tráfico
Negreiro (04/09/1850) e a Lei de Terras (18/09/1850). Esta, instituía o caráter de
proprietário aos grandes latifundiários, garantindo a permanência do sistema de
exploração que agora atribuía um valor capital à terra nunca antes atribuído durante todo
processo colonizador.
A questão da terra, para o negro brasileiro, remonta à lei de terras de 1850,
associada ao fim do tráfico negreiro e à política de imigração europeia e substituição da
mão de obra escrava pelo trabalho assalariado, num sistema em que o corpo negro não
era visto como trabalhador, mas como instrumento de trabalho:
A politica de imigração europeia favoreceu a substituição da mão
de obra africana escravizada pela mão de obra europeia livre. A
mão de obra escravizada, além de dar formação para a europeia,
perdeu as posições anteriores face às ideias racistas e tiveram
dificuldades de inserção nos novos mercados de trabalho urbanos.
(CUNHA, 2007, p. 69)

Oprimido pela servidão compulsória do regime escravocrata, o corpo negro, este


outro constituído enquanto oposição, permanecia controlado, sob tutela do feitor. Com a
abolição da escravidão e a necessidade de constituição de uma nova ordem social se fazia
necessário estabelecer quem eram os sujeitos de direito desta nova ordem.
Se não há mais senzala e chibata, é preciso que o trabalhador seja
“civilizado” se convença de que não há possibilidade de existir
senão vendendo sua força de trabalho, que se veja como
individuo/sujeito proprietário desta força; que tenha como projeto
de existência acumular riquezas, ascender socialmente e viver
como o patrão, acreditando que para isso a única alternativa é
trabalhar até a exaustão. (ROLNIK, 1981, p. 22)
A Lei de terras foi a primeira lei a operacionalizar a nível de toda extensão do
território colonial uma politica de regulação fundiária, política esta que se baseava na
garantia da manutenção dos meios de produção aos proprietários. Garantia de exploração
da terra através de monoculturas, impedimento da regularização de pequenas
propriedades de terra, de agricultura de subsistência (terras estas que deveriam ser
incorporadas aos latifúndios de entorno).
Isto impedia a apropriação de terras por grileiros, os que acessavam a terras
devolutas por ocupação, garantiria a exclusividade produtora nas mãos dos grandes
proprietários e mantinha a mão-de-obra liberada para a produção em larga escala. Ou seja:
favorecia a exploração da terra para acumulação. "O trabalho assalariado só é criado em
sua plenitude pela ação do capital sobre a propriedade da terra”. (MARX, 1978, p. 218)
A primeira política de regulação fundiária no Brasil, pensada e aprimorada pelos
“homens-bons” através da promulgação de inúmeros pequenos decretos desde 1830 e
definitivamente instituída em 1850 com a Lei de Terras, está em acordo com um projeto
politico-ideológico fundamentalmente excludente e colonizador:
Este Projeto, expressando os anseios da classe rural da época,
refletia a preocupação de modernização das estruturas vigentes e,
sobretudo, buscava garantir aos proprietários os instrumentos
jurídicos necessários, que lhes resguardasse o direito de
propriedade e monopólio do solo. (GADELHA, 1989, p. 157)

Consiste a belleza ou essência da colonização, segundo o systema


moderno, em que as terras cultiváveis estejão em tal proporção
com os braços que nellas se empregão, que tenha sempre
proprietário ou emprehendendo braços sufficientes para a cultivar
no todo, e os trabalhadores proprietários que os assalarie;
diminuir o número dos trabalhadores ou aumentar o das terras, é
sustentar o desequilíbrio no sentido que nos afflige. (SOUZA
FRANCO, 1843 apud GADELHA, 1989, p. 158)

A complexidade da transição do regime mercantil-escravista para o capitalismo


não se deu apenas do ponto de vista das restrições de acesso aos meios de produção e à
terra, deu-se também por meio da ideologia do regime.
Estamos diante do confronto entre duas ordens de poder: a que
nascera com o Estado colonial e a que se caracterizava pelas
relações de subordinação Metrópole/Colônia, com sua vertente
interna proprietários/escravos, e a que nascera com o surgimento
do trabalhador livre, de características burguesas. No esforço de
representar o mundo à sua imagem e semelhança, cada ordem
produziu seu imaginário, seja na forma de discurso, seja na forma
de imagem. O choque entre os imaginários em disputa é um
precioso momento de análise da constituição da modernidade nas
cidades. (PECHMAN, 1992, p. 39)

No Estado Moderno europeu, originalmente, o liberalismo e a universalidade


encontram seus limites na imagem do outro que é representado no louco, no criminoso,
na criança e também na mulher. A estes somente é permitida a participação na ordem
social contratual se submetidos à tutela dos sujeitos de direito ou das instituições. No caso
latino-americano colonial, este outro aparece também sob o marco fundamental da
diferença étnica. Barbárie x civilização reaparece aí enquanto discurso legitimador
fundante da construção da ordem liberal do estado republicano, na qual os lugares sociais
são também definidos pelos estágios civilizatórios.
Na ordem liberal republicana, não há mais escravos e agregados
[homens-livres-sem-escravos] e os indivíduos que ocupavam
estes lugares constituirão agora a “barbárie”, zona de opacidade
do espaço social. O que define estas populações é o seu
comportamento não “civilizado” e portanto, sob o ponto de vista
da racionalidade dominante não racional; esta é a condição
suficiente para sua exclusão como “sujeitos livres”,
constituidores do “corpo politico”. (ROLNIK, 1981, p. 20)

Sob esta mesma perspectiva se forjam as reformas higienistas urbanas do início


do século XX em muitas capitais brasileiras. O discurso era de “modernizar” o País, o
que traz inúmeros conflitos com a espacialização das populações negras, uma vez que o
discurso barbárie x civilização é recorrente para justificar as práticas excludentes do
urbanismo de então: “O escravo configurava-se como um empecilho ideológico à higiene
e à modernização. Discursos de diferentes procedências sociais colocavam-no lado a lado
com miasmas e insalubridade”. (SODRÉ, 1988, p. 39)
Já que se trata de constituir uma nova ordem social, é preciso
definir claramente quem são os sujeitos que livremente a
constituem e a ela se submetem. Esta definição implica também
apontar a região do espaço social “excluída” e portanto, sujeita a
punições, rejeitada ou convertida em objeto de intervenção
“transformadora”. (ROLNIK, 1981, p. 30)

O discurso higienista do urbanismo importado da Europa, especialmente da Teoria


Geral da Urbanização (1857) de Indefons Cerdá, considerado o primeiro tratado moderno
do urbanismo, e das reformas urbanas do Barão de Hausmann para Paris (1852 a 1870)
propunham separações funcionalistas da cidade favorecendo circulação e habitação,
traçado ortogonal, abertura de imensas vias (os famosos boulevards), etc. Hausmann
também pautava o “embelezamento” da cidade como uma plataforma das reformas
urbanísticas, valorizando o caráter civilizado e erudito do espaço urbano.
Para os higienistas urbanos, a habitação é algo capaz de produzir
toda uma cosmovisão, a tal ponto que a `melhoria` da classe
operária teria que passar pela reforma do ambiente residencial.
Pensava-se: `o alojamento é uma fonte, de onde decorrerão
sucessivamente a saúde, o bem-estar, a descontração, o gosto pelo
lar e pela família, a ordem física que engendra a ordem moral e,
em conseqüência, todas as virtudes cívicas e privadas`. (SODRÉ,
1988, p. 38)

No discurso modernizador, higienizador em questão, a nova experiência urbana


intentava e apregoava a expulsão dos negros de seus territórios, bem como a condenação
de suas práticas nos espaços públicos. Especialmente na Primeira República baiana,
período em que tais obras foram majoritariamente empreendidas, pelo gestor José
Joaquim Seabra (o período seabrista estende-se de 1912 a 1924), as reformas tinham por
caráter e discurso uma tal “desafricanização” do espaço urbano urgentemente ansiada
pelas elites locais:

Nos primeiros anos republicanos, a medida que conceitos como


pátria, cidadania, progresso e civilizacão passaram a ser mais
constantes nos discursos dos intelectuais e políticos, crescia o
empenho destes no processo de "desafricanização" do espaço
urbano de Salvador. Como esclarece Alberto Heráclito Ferreira
Filho as idéias higienistas e progressistas em voga naqueles anos
consideravam inadequadas determinadas práticas sócio-culturais,
por guardarem explícitas relações com a herança africana.'
(ALBUQUERQUE, 1996, p. 105)

Assim, o plano de remodelamento de J.J. Seabra, que rasgara vias para a chegada
do automóvel que se anunciava (Av. Sete de Setembro e Av. Oceânica), expulsara as
populações que habitavam em áreas centrais e as destituiu de suas práticas no intento de
promover e definitivamente civilizar a cidade soteropolitana, tirar-lhe os “aspectos de
Costa d’África, de cabilda de selvagens sem governo", (ALBUQUERQUE, 1996) como
publicado no Jornal A Tarde, de 18 de agosto de 1917.
Era preciso livrar as ruas de práticas como as batucadas e sambas
de rodas que tanto lembravam os tempos coloniais, em que este
era um espaço destinado aos negros de ganho, aos mendigos, aos
moleques de recado. Desfazer-se "das chagas do passado
colonial" se apresentava como tarefa inadiável para os
republicanos baianos. Tarefa inadiável e difícil, em um estado
com dificuldades financeiras, alheio ao processo de
industrialização em curso no eixo centro-sul e que havia herdado
do sistema escravista uma significativa população negra, cuja
cultura apresentava-se diversa do modelo cultural urbano dos
europeus, tão em moda no período. (ALBUQUERQUE, 1996, p.
107)
Mas os intentos de apagamento e expulsão dessas práticas “africanas” da cidade
não foram de todo exitosos. Para além das comidas de tabuleiro, os jogos de rua, a
“vadiagem”, os “batuques”, as festas de largo, a presença negra não se dá nesta
constituição pelo simples viés de uma “contribuição” pontual. Ela é parte intrínseca desta
urbanidade, por mais estruturante que seja a branquitude na sociedade, a presença
criadora desse outro no urbano reinventa-se:
Apesar de constatar que realmente haviam reformas urbanísticas
em curso, como anunciavam "as noticias alviçareiras", os
visitantes e as elites locais notavam que a "picareta demolidora"
não aniquilara o que havia de "incivilizado" nos costumes dos
baianos. Persistiam práticas que para os reformadores serviam
para atestar que mesmo na nova ordem republicana a qual as
cidades brasileiras, apressadamente, tentavam adequar-se
demolindo antigas construções, construindo avenidas,
iluminando as ruas e também estabelecendo novas formas de
ocupação do espaço urbano a Bahia continuava "velha" e
"arcaica", como se ainda permanecesse no século passado,
adiando o seu ingresso na "era da civilização".
(ALBUQUERQUE, 1996, p. 109)

Do ponto de vista de uma análise da legislação urbanística incidente sobre as


cidades, Raquel Rolnik (1997) explicita como as leis de ocupação e uso do solo (que vinham
sendo elaborada em fins do século XIX, início do XX) foram concebida em desconexão com a
realidade construída da cidade: uma “unicidade da lei” em conflito com a “multiplicidade de
territórios”.
Na legislação urbanística que estava sendo criada na cidade de São Paulo, os
territórios populares ocupavam um espaço ambíguo. [...] A ambiguidade
consistia na criação, dentro da ordem legal, de uma possibilidade de escapar
da lei, definindo um espaço – área suburbana e mais tarde área rural – em que
isso poderia acontecer, sem ficar, entretanto, sob a responsabilidade do estado.
Embora a possibilidade de não obedecer à lei fosse parte da própria ordem, a
condição de morador de uma habitação coletiva ou de ocupante do espaço
público de um modo não previsto na lei era rejeitada essa mesma ordem.
(ROLNIK, 1999, p. 59)
Em sua maioria, estes espaços ocupados pelas camadas populares aparecem sob o signo
da “ilegalidade”: favelas, assentamentos “irregulares”, “precários”, “subnormais”, “informais”.
Tais alcunhas, que desqualificam urbanisticamente estes territórios, foram forjadas sob signos de
uma legalidade institucional que contemplava apenas as áreas abastadas das cidades, as áreas
construídas pelas elites, portanto lógicas alheias à realidade social da maior parte da população
urbana à época:
As formas espaciais tiveram diferentes significados e fizeram parte de distintas
estratégias de inserção no mercado de diferentes grupos sociais que habitavam
a cidade, estabelecendo diferentes territórios. No entanto, a legalidade urbana
foi construída a partir de um padrão único supostamente universal, que
genericamente correspondia ao modo de vida das elites paulistanas no
momento em que os instrumentos legais foram propostos. (ROLNIK, 1997, p.
61)

Atualmente, sob lógicas mais fluidas do capital neoliberal, em que a iniciativa


privada pauta mais a produção de cidade do que o Estado, a mão civilizadora urbana vem
atuando diferentemente sobre as cidades, mas mantendo as mesmas lógicas excludentes.
No âmbito do planejamento urbano contemporâneo, verifica-se uma forte tendência
mundial à adesão das cidades ao modelo de planejamento ligado ao capital neoliberal,
conhecido por “planejamento estratégico”. Este modelo de produção urbana, atua sobre
o espaço sob os cânones do neoliberalismo, considerando a cidade enquanto “empresa”
que deve ser competitiva e produtiva para inserir-se no mercado internacional das
“cidades globais” (VAINER, 2006).
Nos anos 80/90 surge o “projeto urbano“, paralelamente ao
“planejamento estratégico“, ao “marketing urbano“, e à atuação
ativa e agressiva dos governos locais em parcerias com agentes
privados. Nos projetos urbanos de intervenção pontual
concentrada, vultuosos recursos são investidos em algumas
estruturas ou edificações, dotados de visibilidade midiática, que
se consideram capazes de disseminar “contaminações positivas“
sobre o entorno e de contribuir para a constituição de uma nova
imagem urbana. (VAZ, 2004, p. 35)

Neste contexto, “cultura” passa a ter status de fator de desenvolvimento


econômico e ganham força as tendências de culturalização do planejamento urbano.
Dentre os defensores desse discurso, há uma corrente que:
radicaliza a preocupação pós-moderna com as culturas pré-
existentes, e preconiza a petrificação ou o pastiche do espaço
urbano, principalmente de centros históricos, provocando uma
museificação e patrimonialização e também o surgimento da
cidade parque temático, e de uma disneylandização urbana,
exemplos típicos da cidade-espetáculo. (JACQUES, 2004, p. 17)

Neste novo processo urbano do mundo globalizado, a cultura vem se destacando


como estratégia principal da “revitalização” urbana pois estes particularismos culturais
geram slogans que podem marcar um lugar singular no competitivo mercado
internacional, no qual cidades do mundo todo disputam turistas e investimentos
estrangeiros. (JACQUES, 2004)
Esse tipo de racionalização - que procura ocultar a destinação,
para apenas alguns, das condições materiais de vida trazidas pela
última modernidade - é responsável pela produção social da
escassez. Recorde-se, nessa direção, os enclaves sociais de luxo
da urbanização dispersa e a turistificação do território, quando
destróem, sem substituí-los, anteriores modos de vida.
(RIBEIRO, 2005, p. 421)

Aí o processo de gentrificação torna-se evidente a partir do momento que, na


maioria das vezes, a população local, antes nutridora das tradições culturais, acaba tendo
que sair do local por causa das drásticas mudanças de usos do lugar e dos processos de
ultra valorização das propriedades do entorno. O processo de globalização fomentou a
reconfiguração do espaço urbano, conferindo a várias cidades um caráter de lugar voltado
para o consumo cultural. Nessa lógica do consumo, valoriza-se a especificidade como
mercadoria, mas padroniza-se sua exibição, a sua “embalagem”.
Paralelamente, esse mesmo processo estimulou uma grande competitividade entre
as cidades, mais especificamente no âmbito da atividade turística, ponto aglutinador de
interesses. Para muitos desses centros urbanos, o desenvolvimento acaba por restringir-
se a uma economia setorial, uma vez que fica à mercê de uma atividade sazonal e seus
reflexos são quase que exclusivamente sentidos somente pelo setor de serviços.
Tal concorrência internacional está intimamente ligada ao fenômeno da
Globalização (SANTOS, 2008) que, como coloca o geógrafo Milton Santos, é
caracterizada por uma mundialização do espaço geográfico, forjando uma subsequente
eliminação de fronteiras. Ao contrário, tais fronteiras permanecem cada vez mais
estanques se pensarmos que são pautadas na criação de um meio técnico, científico e
informacional, parâmetros de uma racionalidade única que segrega ainda mais grupos
subalternizados, impedindo-lhes de acessar os espaços de poder.
O caso da reforma do centro histórico de Salvador, mais especificamente dos
bairros Maciel de Cima e Maciel de Baixo (atualmente Pelourinho), nos anos 90 é
emblemático desse processo de espetacularização urbana. Mais uma vez a expulsão da
população residente no local, majoritariamente negra, é preponderante da intervenção,
desta vez sob outros discursos: a “revitalização” de um centro histórico, a sua reforma
para fins turísticos.
O bairro que fora ocupado sob forma de encortiçamento desde os anos 1940,
quando da saída das elites tradicionais do centro e mudança no vetor de expansão da
cidade, sofrera forte injeção de capital por parte do governo coronelista de Antônio Carlos
Magalhães (ACM) nos anos 90, para que fosse transformado em um imenso cenário
turístico, e teve seu nome modificado para um dos signos da violência contra o negro
escravizado, o “pelourinho”: instrumento de tortura, tronco no qual os negros eram
amarrados e açoitados em praça pública sob os moldes do castigo exemplar. "Escravidão
e colonialismo devem ser vistos como coisas do passado, mas eles estão intimamente
atados ao presente” (KILOMBA, 2010, p 146 apud GUEDES, 2016, p. 01).
Mortes físicas do passado perpetuam-se através do apagamento de sua memória
na atualidade: "Nossa história nos persegue porque foi enterrada inapropriadamente.
Escrever é, neste sentido, uma maneira de ressuscitar um trauma coletivo e sepultá-lo
apropriadamente”. (KILOMBA, 2010, p. 146 apud GUEDES, 2016, p. 01)
Passados cerca de 20 anos do processo de reforma do Pelourinho, movimentos
sociais e antigos moradores, organizados ou não, permanecem em disputa pelo espaço. A
patrimonialização do bairro nunca se deu de forma homogênea e nem completamente,
apesar das duras lógicas de exclusão a que são sistematicamente submetidos e da expulsão
de boa parte de sua população.
O ideal civilizador, agora travestido de capital neoliberal, traduz-se nos processos
de gentrificação, termo que advém do inglês “gentry”, ou seja, aristocracia. O processo
significa literalmente o aburguesamento ou elitização de um bairro quando este, tendo
passado por uma situação prévia de falta de investimentos públicos (“esquecimento”
deliberado), vive um processo de revalorização do seu patrimônio imobiliário, implicando
na inviabilidade da permanência dos tradicionais moradores, que passam a não ter mais
condições de arcar com o valor da terra no local. Esse processo se dá através do lucro
especulativo obtido entre as fases de “degradação” planejada e posterior revalorização
pelo capital imobiliário.

Existências, resistências
Tendo sido o urbano forjado na instituição da branquitude seria o racismo uma instituição
do urbano na sua essência? Essa é uma questão chave levantada pelo apanhado histórico levantado
ao longo do corpo do texto deste artigo. A esta pergunta devemos responder aprofundando a
compreensão das diversas mortes simbólicas, físicas e epistemológicas impostas que se alternam
entre apagamentos, resistências e criação nas formas que os sujeitos negros encontram ao se
estabelecerem na cidade. A quem é concedido o direito de fazer cidade e sob que códigos se pode
construí-la?
Mas a cidade, como um todo, resiste à difusão dessa racionalidade triunfante
graças, exatamente, ao meio ambiente construído, que é um retrato da
diversidade de classes sociais, das diferenças de renda e dos modelos culturais
(SANTOS, 2008, p. 74)

É, portanto, importante considerar que a análise marxista da reprodução do espaço é


essencialmente lacunar, se considerarmos as relações sociais sob as quais se desenvolveram as
cidades coloniais, baseadas no regime escravista de produção. Como bem nos explicita Frantz
Fanon, no trecho abaixo, a relação classe social, servidão e raça estão completamente imbrincadas
na constituição da ideologia colonial, o que faz da segregação urbana uma condição inerente à
produção do espaço nas suas cidades:
Nas colônias a infraestrutura econômica é igualmente uma superestrutura. A
causa é conseqüência: o indivíduo é rico porque é branco, é branco porque é
rico. É por isso que as análises marxistas devem ser sempre ligeiramente
distendidas cada vez que abordamos o problema colonial. Não há nem mesmo
conceito de sociedade "pré-capitalista”, bem estudado por Marx, que não
exigisse ser repensado aqui. O servo é de essência diferente do cavaleiro, mas
uma referência ao direito divino é necessária para legitimar essa diferença
estatutária. (FANON, 1968, p. 29)

O presente texto visa a explicitar alguns discursos da produção urbana e do campo


disciplinar do urbanismo que resultam deliberadamente no apagamento, na exclusão das
populações negras da produção da cidade. Apesar de tais processos, é preponderante perceber
como a população negra se estabeleceu e recriou estes espaços de violência apropriando-se e
reinventando-se nas cidades.
Para reconhecermos os muitos modos de criação, concepção e percepção de
mundos das populações negras é essencial voltar os sentidos para as práticas que estão
fora da institucionalidade, das narrativas historiográficas oficiais, que estão nas lacunas,
no entre, nas encruzilhadas das esquinas da cidade.
Expressões da negritude no urbano frequentemente só são reconhecidas e
institucionalizadas quando pautadas pelo signo da identidade cultural, qual seja, como
uma “contribuição” específica e não enquanto práticas constituintes do urbano, do qual
fazem parte enquanto criadoras. Uma cidade de todos é uma cidade que pode ser
concebida por múltiplas epistemologias. O epistemicídio urbano que vem contribuindo
historicamente para a invisibilização e desvalorização das obras da população negra nas
cidades é um bloqueador fundamental da possibilidade de construção da cidade enquanto
obra de caráter coletivo, expressão máxima do Direito à Cidade (LEFEBVRE, 1991).

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