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ENTRE A RUA E A LEI: OS MARCOS LEGAIS DA POPULAÇÃO EM

SITUAÇÃO DE RUA

Filipe Luna Jucá de Castro

“A Polícia acadêmica quando enquadra,


não sabe ou esqueceu,
que as ruas gritam livres
ainda que durma na calçada.
A Poesia é sem sobrenome
pede um real pra comprar pão
dois reais pra comprar pinga
e um cobertor para cobrir a fome.”
(Sérgio Vaz)

A situação de rua é uma realidade vivenciada diariamente por um número cada vez
maior de pessoas com diferentes perfis e diferentes trajetórias, que são, apesar disso,
enxergadas e categorizadas a partir de uma mesma ótica, fundada em estigmas e visões
distorcidas que permeiam um imaginário social consolidado há muito tempo com relação
ao tema.

Nesse sentido, como era possível prever, a pandemia de Covid-19 apenas agravou
a situação, sendo certo que os obstáculos já existentes para acesso dessa população à
direitos básicos, como alimentação e saúde, apenas se tornaram maiores, o que vai de
encontro aos questionamentos que serão abordados no presente ensaio, voltados a análise
dos marcos legais específicos ao fenômeno das pessoas em situação de rua, na busca pela
compreensão da evolução normativa que culminou no abismo existente hoje entre a
realidade da rua e os direitos humanos e fundamentais nunca garantidos.

Segundo Stoffels (1977), o fenômeno da situação de rua vincula-se ao surgimento


da propriedade privada, uma vez que nas sociedades arcaicas pré-literárias, os
necessitados recebiam assistência sem serem marginalizados. Assim, o fenômeno teria
origem na antiguidade, momento em que pessoas categorizadas como mendigos e
vagabundos passam a surgir na Grécia antiga. Sob este enfoque, a autora afirma que tal
processo estaria ligado às transformações sociais que culminaram na expropriação de
terrar comuns, na escravidão, na economia monetária, na divisão do trabalho e no advento
do fenômeno predominantemente urbano da situação de rua, referido à época como
mendicância.
Como expõe Frangella (2009), ao tomar como referência o contexto histórico a
partir da Idade Média – sobretudo no continente europeu -, nota-se que em cada período
histórico houve uma leitura diferente do movimento itinerante, a partir da organização
política e social estabelecida, sendo, a partir disso, criadas visões diferenciadas a respeito
dos sujeitos vistos como vagabundos, mendigos, migrantes, incapazes, sem domicílio
fixo, que eram com frequência classificados como perigosos, sem caráter, merecedores
ou não de caridade, etc. E assim, cada categoria possuía uma forma de (sobre)vivência
igualmente diferenciada, apresentando diversas maneiras de transitar ou estar nas ruas.
Com isso, conforme ressalta Magnani (2009) ressalta, os modos de vida que fogem
do modelo dominante estabelecido e organizado socialmente, passam a ser criminalizados
na medida em que surge o entendimento de que tais vidas careciam ser disciplinadas e
normalizadas. Assim, a partir das mudanças sociais ocorridas no século XIV, relativas à
ocupação de terra, crises monetárias, epidemias e guerras, tal entendimento serve como
força motriz para intervenção, a partir da produção normativa, voltada aos de corpos
perigosos que ofendem os costumes, percebidos como perigosos e fracassados.
No período denominado pré-industrial e, logo após, no próprio período industrial,
as transformações econômicas e na relação de trabalho, com as mudanças e alterações
profundas na ocupação urbana e no êxodo migratório, engendram mudanças relativas ao
modo de correção e regeneração sobre os grupos populacionais marginais em instituições
disciplinares.
Segundo aponta Stoffels (1977), o termo “vagabundo” aparece justamente no
século XIV, e a vadiagem é considerada um delito desde o ano de 1350, conforme se nota
em diversos códigos penais contemporâneos, sob a presunção de que o vagabundo pode
tornar-se uma ameaça à ordem social. E essa formação conceitual esbarra desde sempre
na ambiguidade relacionada às categorias do “mendigo”, do “vadio” e do “vagabundo”,
que não é resolvida pela própria legislação.
Muitos países, incluindo o Brasil, diferenciam os delitos de vadiagem e de
mendicância, sendo que, no caso brasileiro, essa herança europeia de aversão ao ócio vem
expressa desde as Ordenações Filipinas (1603), que disciplinava, em seu título LXVIII, a
sanções aos considerados “vadios”1.
Tais proibições, como demonstrado, possuem raízes históricas, tendo relação
também com o Código Penal do Império (1830), que previa a contravenção de vadiagem
em seu artigo 295 e da mendicância no artigo 296, em um capítulo denominado “Vadios
e Mendigos”. De igual forma, no Código Penal de 1890, em seus capítulos XII e XIII,
eram criminalizadas inúmeras condutas atribuídas aos “Mendigos e Ebrios” e “Vadios e
Capoeiras”.
No Brasil República, eram suprimidos os direitos políticos daqueles condenados
por vadiagem e/ou mendicância. Por sua vez, em 1893, o Decreto-Lei n. 145, previa a
criação de colônias correcionais voltadas disciplinarização, através do trabalho, de
vadios, vagabundos e capoeiras que fossem encontrados na capital federal, à época
localizada na cidade do Rio de Janeiro.
É diante desse contexto que Maringoni (2011) faz um recorte para situação dos
“indesejados dos novos tempos”, onde os ex-escravos, além de discriminados por sua cor,
passaram, após a abolição da escravidão, a compor as camadas mais pobres da população,
sendo considerados os deserdados da República. Nesse período, verificou-se, então, um
aumento do número de desocupados, dos trabalhadores temporários e dos mendigos.
O autor menciona um trecho do livro “O Rio de Janeiro do meu tempo”, escrito por
Luiz Edmundo, onde é descrita a vida nas vielas da então capital:

“Por elas vivem mendigos, os autênticos, quando não se vão instalar pelas hospedarias da
rua da Misericórdia, capoeiras, malandros, vagabundos de toda sorte: mulheres sem arrimo
de parentes, velhos que já não podem mais trabalhar, crianças, enjeitados em meio a gente
válida, porém o que é pior, sem ajuda de trabalho, verdadeiros desprezados da sorte,
esquecidos de Deus...(...) No morro, os sem-trabalho surgem a cada canto”.

E no mesmo período, diante da transição para o Brasil República, inúmeras


intervenções também urbanas foram implementadas, como a chamada “Reforma Pereira

1
“TÍTULO LXVII – Dos Vadios – Mandamos, que qualquer homem que não viver com senhor, ou com
amo, nem tiver Officio, nem outro mestér, em que trabalhe, ou ganhe sua vida, ou não andar negoceando
algum negocio seu, ou alhêo, passados vinte dias do dia que chegar a qualquer Cidade, Villa, ou lugar, não
tomando dentro nos ditos vinte dias amo, ou senhor, com que viva, ou mestér, em que trabalhe, e ganhe sua
vida, ou se o tomar, e depois o deixar, e não continuar, seja preso, e açoutado publicamente.”
Passos”, no Rio de Janeiro responsável por expulsar a população negra e pobre do centro
da cidade. Sobre ela, Tomazine (2016) explicita que:

“Sob o pretexto de modernizar a capital da nascente república, eliminar seus traços


coloniais que tanto envergonhavam nossas elites perante o mundo e ajudar o país a sair da
crise econômica, levaram-se a cabo intervenções que resultaram na expulsão dos negros e
imigrantes pobres da área central da cidade […] uma série de posturas e leis que tiveram o
efeito prático e interditar o direito ao espaço público àqueles elementos não ajustados à
normalidade burguesa e branca. Estavam proibidos, por exemplo, andar descalço na nova
Avenida Central (hoje Avenida Rio Branco), bem como o comércio ambulante. Práticas
religiosas que não fossem as católicas eram consideradas crime, do mesmo modo que outras
coisas aparentemente banais, a exemplo de carregar pela rua um violão, atitude enquadrada
no crime da vadiagem.”

Diante dessa perspectiva de segregação social, se insere a discussão do chamado


direito à cidade, isto é, o direito a fazer parte e gozar efetivamente dos espaços urbanos,
o direito à liberdade de pertencer e viver na cidade, usufruindo dos espaços e pertencendo
aos mesmos. Nas palavras de Lefebvre (2013), o direito à cidade:

“[...] se manifesta como a forma superior dos direitos: direito à liberdade, à


individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade
participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão
implicados no direito à cidade.”

Pensando na dimensão política da cidade enquanto espaço vivo, repleto de


contrariedades e alvo de disputas, assim como na necessidade de se construir cidades
mais justas, humanas, sustentáveis e democráticas, que foi construída a Carta Mundial
pelo Direito à Cidade (2005), que dispõe:

“Como o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade,


democracia e justiça social. É um direito coletivo dos habitantes das cidades, em especial
dos grupos vulneráveis e desfavorecidos, que lhes confere legitimidade de ação e
organização, baseado em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno
exercício do direito à livre autodeterminação e a um padrão de vida adequado. O Direito à
Cidade é interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos,
concebidos integralmente, e inclui, portanto, todos os direitos civis, políticos, econômicos,
sociais, culturais e ambientais que já estão regulamentados nos tratados internacionais de
direitos humanos. [...].”

E o higienismo social operado através da exclusão arquitetônica e da negação ao


direito à cidade, é só mais uma forma de violência sofrida por esse segmento social
(in)visível, que, como visto pelos relatos acima, era oprimido pelo simples caminhar nas
ruas.
Para demonstrar esse contexto de repressão ao crime de vadiagem, a reportagem do
portal jurídico Migalhas2, menciona que, em 1952, o jornal “O Globo” noticiou a prisão
por vadiagem de Maria das Dores, que trabalhava como empregada doméstica de um juiz
na época, como se vê:

“Há dias o comissário Deraldo Padilha prendeu e encaminhou ao depósito de presos a


doméstica Maria das Dores. Recolhida a essa dependência policial, foi ela espancada, tendo
sido instaurado processo contra a mesma por vadiagem [...]. Acontece que a jovem era
empregada na residência do juiz de direito criminal Emilio Pimentel de Oliveira, o qual,
ciente da arbitrariedade contra a mesma praticada, oficiou à Chefia de Polícia, esclarecendo
não se tratar de uma vadia e solicitando sua imediata liberdade.” (Jornal O Globo, 1952)

No mesmo sentido, como mencionado na reportagem do portal jurídico, o jornal “O


Globo” publicou, em 1975, um balanço das estatísticas policiais no Rio de Janeiro que
apontava que durante o governo militar, a “vadiagem” era a segunda infração mais
cometida, sendo apenas superada pelo crime de lesão corporal culposa.
A despeito disso, desde o início da década de 80, ainda na vigência da ditatura civil-
militar, juristas buscam excluir o delito do rol das contravenções penais, uma vez que a
normativa, diante dos reflexos da desigualdade no país, seria injusta, arbitrária e
frequentemente usada como veículo para enriquecer as estatísticas da Secretaria de
Segurança.
O último projeto que buscava essa revogação (4.668/04), de autoria do ex-ministro
José Eduardo Cardozo, foi aprovado pela câmara em 2012, mas acabou arquivado em
2018, conforme consta no site do Senado.3

2
https://www.migalhas.com.br/quentes/297910/mendigar-deixou-de-ser-contravencao-penal-ha-apenas-
dez-anos;
3
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/107050
À vista do mencionado, válido destacar que na atual legislação de contravenções
penais brasileira (Decreto-Lei nº 3.688, de 1941), ainda consta a infração por “vadiagem”,
definida no art. 59 como o “ato de habitualmente entregar-se à ociosidade, sendo válido
para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure a subsistência”.
Por sua vez, a contravenção de mendicância, que tornava infração o ato de mendigar
“por ociosidade ou cupidez”, foi revogada há apenas treze anos no Brasil, por intermédio
da Lei nº 11.983/09. Desse modo, atualmente, não é permitida a punição, ao menos com
base legal, pelo ato de mendigar, o que, em um país com milhões de desempregados 4 e
um contingente massivo de pessoas marginalizadas, diariamente punidas pela não
garantia de seus direitos fundamentais e humanos, mostra-se ainda como muito pouco ou
quase nada.
Nonato & Raiol (2016) destacam que, a partir da análise da jurisprudência5
brasileira, nota-se que a população em situação de rua é inserida quase que
exclusivamente na esfera do direito penal, chegando ao absurdo de, em alguns casos, ser
mantida encarcerada por não possuir residência fixa, ao passo que, de modo inverso,
mostra-se inexpressivo o número de casos cíveis voltados para proteção de direitos dessas
pessoas.
Tal realidade histórica somente evidencia que o aumento do controle e da repressão,
através de um Estado Penal6, decorre da adoção de uma ideologia de combate à pobreza
para conter as chamadas “classes perigosas”. Segundo Igor Fernandes (2016), essa
criação de monstros, do medo e do aumento da vigilância social sobre a população pobre
possui o objetivo de “exorcizar” os fantasmas que assombram as classes mais abastadas,
legitimando as opressões das autoridades com relação a esses indivíduos. Assim:

“Alguns grupos, então, são considerados causadores da desordem e do caos social,


principalmente usuários de crack, moradores de rua e pequenos delinquentes. [...] Em vez
de moradores de rua serem vistos como pessoas que estão em situação de risco, são
consideradas como grupo que oferece risco à população.”

4
De acordo com o IBGE, existem cerca de 13,9 milhões de desempregados no país, contingente que ficou
estável frente ao ano anterior. Visto em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/trabalho-e-
previdencia/2022/02/desemprego-no-pais-cai-para-11-1-no-quarto-trimestre-de-2021. Acesso:
25/03/2022.
5
Termo jurídico que designa o conjunto das decisões sobre interpretações das leis feitas pelos tribunais de
uma determinada jurisdição.
6
Para aprofundar o tema: WACQUANT, Loïc (2003);
Desse modo, o que se observa a partir desse recorte histórico, é que o discurso
jurídico-administrativo de criminalização das pessoas em situação de rua, além de seu
caráter predominantemente punitivista, assume o papel de moldar e sustentar o imaginário
social que liga esse grupo com as noções de improdutividade, perigo, ociosidade e falta
de valores, tornando por justificar e legitimar o controle e o descaso com relação a essa
população.
Neste ponto, cabe destacar tais pessoas, privadas do acesso à direitos sociais como
saúde, alimentação, moradia e trabalho são frequentemente reduzidas aos estigmas que
carregam em razão de sua situação de rua. Goffman (1988), ao tratar dos estigmas e dessa
redução de indivíduos “estranhos”, afirma que:

“Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um
atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que pudesse
ser - incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável - num caso extremo, uma pessoa
completamente má, perigosa ou fraca. Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e
total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma,
especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande - algumas vezes ele
também é considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem - e constitui uma
discrepância específica entre a identidade social virtual e a identidade social real.”

Tal definição, se amolda aos conceitos fascismo social, o direito para os não-
cidadãos e a chamada sociedade civil incivil que o sociólogo Boaventura de Souza Santos
trabalha em seu texto “Poderá o direito ser emancipatório”. Para o autor, a sociedade
civil incivil corresponde ao círculo exterior ocupado pelos totalmente excluídos,
socialmente quase por completo invisíveis, sendo este o círculo do fascismo social,
ocupado por pessoas segredadas e imersas num complexo processo de desumanização
que naturaliza sua ausência de direitos e de perspectivas, bem como as violências sofridas.
E podem ser listados incontáveis de casos de violência sofridos pela população em
situação de rua, que apesar da profunda vulnerabilidade, segue sendo alvo de ataques, a
exemplo dos casos notórios da Chacina da Candelária (1993), do assassinato do Índio
Galdino (1997) e do Massacre da Sé (2004) e tantos outros casos esquecidos como suas
vítimas.
Como se nota, a população em situação de rua, classificada na ótica do senso
comum e do Estado como “descartáveis urbanos” (ADORNO, 2004) ou “refugos
humanos” (BAUMAN, 2005), luta pela sobrevivência apesar das inúmeras violências
sofridas e dos inúmeros direitos negados. Hannah Arendt (1989), ao trabalhar a existência
de um direito a ter direitos, afirma que “só em uma humanidade completamente
organizada, a perda do lar e da condição política de um homem pode equivaler à sua
expulsão da humanidade.”
Na perspectiva histórica dos direitos humanos, cabe frisar que tanto o conceito de
“direitos” quanto o de “humano” são socialmente construídos e acabam por ditar quem é
“digno” de possuir quais direitos (Coimbra et al, 2008). Portanto, o caráter universal e
indivisível dos direitos humanos, pode, na realidade, implicar na garantia de direitos para
uns em detrimento de outros, enquanto tal afirmação pode representar a negação reiterada
de direitos para aqueles desconsiderados enquanto humanos ou sujeitos de direitos.
Coimbra (2000), ao abordar a temática dos direitos humanos na perspectiva dos
grupos excluídos, destaca que:

“Deleuze afirma que os direitos humanos - desde suas gêneses - têm servido para levar aos
subalternizados a ilusão de participação, de que as elites preocupam-se com o seu bem-
estar, de que o humanismo dentro do capitalismo é uma realidade e, com isso, confirma-se
o artigo primeiro da Declaração de 1948: "todos os homens nascem livres e iguais em
dignidade e direitos". Entretanto, sempre estiveram fora desses direitos à vida e à dignidade
os segmentos pauperizados e percebidos como 'marginais': os 'deficientes' de todos os tipos,
os 'desviantes', os miseráveis, dentre muitos outros. A esses, efetivamente, os direitos
humanos sempre foram - e continuam sendo - negados, pois tais parcelas foram produzidas
para serem vistas como 'subumanas', como não-pertencentes ao gênero humano.”

Assim, refletindo a partir do pensamento de Noberto Bobbio (2004)7, no sentido de


que os direitos do homem advêm de determinadas circunstâncias gradativamente, a partir
de lutas históricas, tem-se que a preocupação do Estado Brasileiro com a população em
situação de rua, em termos normativos, é recente e oriunda de violências e lutas.
Somente a partir de 1988, com a promulgação da chamada Constituição Cidadã,
aprovada no período de redemocratização pós-ditadura, que se reconhece os direitos
sociais enquanto fundamentais e que a assistência social é colocada na condição de
política pública efetiva.

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“[...] os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos
em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e
nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.”
Nela, significativos avanços ocorreram, a exemplo das definições da cidadania e da
dignidade humana como fundamentos da República Federativa do Brasil, e de objetivos
fundamentais como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação
da pobreza e da marginalização, e a redução das desigualdades sociais.
O texto legal diz que “Todo poder emana do povo”, sem, contudo, determinar qual
seria o povo a quem são destinados tais direitos. Apesar disso, tal legislação marca o
início de um caminho gradativo e tortuoso de garantias legais para a população em
situação de rua.
Sobre essa formação do povo brasileiro, merecido destacar o pensamento de Darcy
Ribeiro (2002), que vai de encontro ao que se discute acerca da população em situação
de rua e a inexistência da atribuição direitos para viver:

“Os interesses e as aspirações do seu povo jamais foram levados em conta, porque só se
tinha atenção e zelo no atendimento dos requisitos de prosperidade da feitoria exportadora.
O que se estimulava era o aliciamento de mais índios trazidos dos matos ou a importação
de mais negros trazidos da África, para aumentar a força de trabalho, que era a fonte de
produção dos lucros da metrópole. Nunca houve aqui um conceito de povo, englobando
todos os trabalhadores e atribuindo-lhes direitos. Nem mesmo o direito elementar de
trabalhar para nutrir-se, vestir-se e morar.”

Na linha de avanços e evoluções normativas, após a Constituição de 1988, temos a


Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS (1993) e a Política Nacional de Assistência
Social (2004), que especificam serviços voltados para atender à população em situação
de rua, direcionados a promover a organização de projetos de vida e a criação de
condições para participação social enquanto “sujeitos de direitos”.
Na perspectiva dos marcos legais, o mais importante ocorre com a instituição da
Política Nacional para População em Situação de Rua, através do Decreto-Lei nº
7.053/09, sendo essa legislação uma conquista importante que sinaliza um grande avanço
na busca pelo reconhecimento dos direitos individuais e sociais do grupo, apesar de até
hoje carecer de aplicabilidade ampla.
Tal política, é elaborada a partir de demandas históricas como a promoção de ações
integradas para promoção e defesa dos direitos de pessoas em situação de rua, articuladas
com políticas públicas multisetoriais e não disciplinantes. A partir de suas diretrizes, são
elencados importantes objetivos como (i) assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro
aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde, educação,
previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e
renda; (ii) garantir a formação e capacitação permanente de profissionais e gestores para
atuação no desenvolvimento de políticas públicas intersetoriais, transversais e
intergovernamentais direcionadas às pessoas em situação de rua; (iii) instituir a contagem
oficial da população em situação de rua; entre outros.
A política define a população em situação como sendo: “o grupo populacional
heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares
interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que
utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de
sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento
para pernoite temporário ou como moradia provisória”.
É através dela, também, que se cria o Centro Nacional de Defesa dos Direitos
Humanos para a População em Situação de Rua, voltado para recebimento de denúncias
e outras demandas, encaminhamentos e o monitoramento dos indicadores de violações de
direitos dessa população.
Em 2009 foi criado um Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento
(CIAMP-Rua), com intuito de verificar a implementação da Política Nacional. No
entanto, apesar de servir como instrumento norteador para ações governamentais frente à
complexidade da situação de rua e as violações frequentes e sistêmicas de direitos, o
comitê foi reestruturado e reduzido, em 2019, por intermédio do Decreto nº 9.849, sendo
definido como órgão consultivo do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos.
No âmbito do Ministério do Desenvolvimento Social, houve a inclusão desse grupo
populacional no Cadastro Único, voltado para programas sociais do Governo Federal, por
meio do Plano Brasil Sem Miséria8 (2011), tornando possível a indicação, como
referência, dos endereços de abrigos e demais serviços.
Recentemente, duas legislações importantes foram aprovadas: A Lei 13.714, de
2018, que proíbe expressamente assegura o atendimento no Sistema Único de Saúde
(SUS) de famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade ou risco social, mesmo
que eles não apresentem comprovante de residência. E a Resolução do Conselho Nacional
dos Direitos Humanos (CNDH) nº 40, de 2020, que dispõe sobre as diretrizes para

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https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/brasil_sem_miseria/wwp/BSM_introducao_PORT.pdf
promoção, proteção e defesa dos direitos humanos das pessoas em situação de rua, de
acordo com a Política Nacional para População em Situação de Rua.
Referida resolução se constitui enquanto mais um instrumento voltado para definir
prioridades e responsabilidades do Estado, na tentativa de garantir o acesso aos direitos
da “Pop Rua” previstos na Constituição e nas leis específicas mencionadas, além de fazer
um destaque acerca da importância dos Comitês de Acompanhamento em diferentes
níveis (municipal, estadual e distrital) e da participação ativa de pessoas com trajetória de
rua nos processos decisórios relacionados às políticas públicas.
Nesse cenário, em caderno temático elaborado na Faculdade de Direito da FGV
Rio, a partir de experiências do Laboratório de Direitos Fundamentais (LADIF), com
apoio do Núcleo de defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do
Rio de Janeiro (NUDEDH), foi realizada uma análise normativa comparativa, com
exposição de aprendizados e lacunas existentes no cenário nacional e internacional com
relação a realidade da população em situação de rua.
Relevante destacar que, segundo pesquisa realizada por Natalino (2020), cerca de
73% da população em situação de rua estaria concentrada nas regiões Sudeste (56,2%) e
Nordeste (17,2%). Diante disso, constatou-se a seguinte realidade:
“São Paulo
A Lei 12.316/97, promulgada pelo município de São Paulo, dispõe os deveres do Poder
Público Executivo Municipal com relação à população em situação de rua. Destacamos
aqui o dever de oferecer serviços e programas — abrigos emergenciais, albergues, centros
de serviços, restaurantes comunitários, casas de convivência, moradias provisórias, entre
outros — com garantia de padrões éticos de dignidade e não violência. Esses serviços e
programas deverão ser operados por meio da rede municipal e/ou por contratos e convênios.
Esta mesma lei determina que o orçamento municipal deverá manter atividade específica
com dotação orçamentária própria e compatível com a política de atendimento tratada pelo
documento e impõe ao Executivo que publique anualmente no “Diário Oficial” do
município o censo da população em situação de rua de modo a comparar as vagas ofertadas
devido às necessidades. No art. 5º, incisos I, II, VI e VII do Decreto nº 40.232 de 2001, que
regulamenta a Lei 12.316/97, é detalhado o funcionamento de alguns serviços específicos
sobre moradia das pessoas em situação de rua, os quais já estavam previstos na lei
mencionada, mas aguardavam a devida regulamentação.19 O art. 6º, IX, prevê
expressamente como padrões de qualidade dos serviços prestados às pessoas em situação
de rua: IX — o espaço físico e as acomodações para a população de rua deverão: ser
seguros, limpos, confortáveis e arejados, com janelas e iluminação adequadas; não servir
de passagem para outros dormitórios; dispor de camas ou beliches com colchões de
densidade adequada para crianças e adultos; garantir a privacidade das pessoas, abrigando
no máximo vinte pessoas por dormitório, com espaços demarcados por divisórias, com
espaçamento de pelo menos um metro entre as camas, que deverão ter largura mínima de
0,70 m, sendo vedado as cabeceiras das camas ficarem a menos de um metro de distância.
As acomodações devem respeitar, em sua distribuição, o perfil dos segmentos da população
de rua (mulheres, portadoras de necessidades especiais, famílias etc).
Rio de Janeiro
Na cidade do Rio de Janeiro, existe o Decreto n° 36.356, de outubro de 2012, que instituiu
o programa Rio Acolhedor. De acordo com o decreto, a Secretaria Municipal de Habitação
(SMH) deve reservar habitações populares do programa “Minha Casa, Minha Vida” para
quem está em acolhimento institucional pela Secretaria Municipal de Assistência Social
(SMAS), ou seja, pessoas que estão sendo apoiadas/acompanhadas pelos Centros de
Referência Especializados de Assistência Social —, CREAS/Centros POP e os que se
encontrem em condições de receber os benefícios do Programa Carioca de Apoio à Moradia
para População de Rua — que será descrito no tópico de políticas públicas cariocas. Existe
ainda um projeto de lei municipal de autoria do Vereador Reimont e em consonância com
o Decreto Federal nº 7.053 de 2009, o Projeto de Lei (PL) nº 1543 de 2015, que visa instituir
a política para a população em situação de rua no âmbito municipal. O PL define população
em situação de rua (art. 3)22 e estabelece os princípios que devem ser observados quando
da implantação da política para a população em situação de rua (art. 4).23 No artigo 6º do
PL, estão os objetivos da política municipal:24 (1) acesso a programas de assistência social
e capacitação profissional; (2) criação de indicadores e pesquisa; (3) criação de uma cultura
de respeito na sociedade civil;25 (3) implantação de centros de referência e ampliação da
rede de acolhimento atual; (4) criação e ampliação de canais para recebimento de
denúncias; (5) políticas de empregabilidade e encaminhamento para o mercado de trabalho;
e (6) alocação de recursos no Plano Plurianual e na Lei Orçamentária Anual para
implementação das políticas públicas para a população em situação de rua. Há ainda o
Projeto de Lei nº 411/2015, de autoria da deputada Tânia Rodrigues, que via a implantação
de uma política voltada para a população em situação de rua no âmbito estadual; projeto
este também pendente de aprovação.”

Por outro lado, a análise comparativa acerca dos avanços legislativos em âmbito
internacional, evidenciou que em Buenos Aires, na Argentina, a partir da Lei Municipal
nº 3.706/2010, regulamentada pelo Decreto nº 310/2013, são protegidos os direitos das
pessoas em situação de rua, elencando deveres atribuídos ao Estado, dentre os quais se
destaca a realização de acordos interjurisdicionais visando ações conjuntas, a capacitação
interdisciplinar dos executores de políticas públicas, a priorização de programas de
reabilitação, além da realização de levantamentos censitários anuais para pessoas em
efetiva ou potencial situação de rua.
Contudo, os levantamentos realizados pelo núcleo de pesquisas com relação a
realidade encontrada nas normas do município de São Francisco, nos Estados Unidos,
foram surpreendentes, uma vez que, apesar de ser considerado referência no tratamento
da “pop rua”, vem sendo considerada como “anti-homelessness”. Nos códigos
municipais, consta a criminalização de atividades como ficar em pé, sentado ou descansar
em espaços públicos (atividades diurnas); dormir, acampar e se alojar em espaços
públicos, incluindo em veículos. Desse modo, as críticas de atores da sociedade civil e
grupos voltados à defesa dos direitos dessa população, sustentam que, na prática, tais
infrações possuem o viés de punir a mera existência da população em situação de rua.
Por fim, o relatório do Conselho dos Direitos Humanos da Organização das Nações
Unidas – ONU, afirma que “a situação de rua é uma crise global de direitos humanos
que requer uma resposta global e urgente. Ao mesmo tempo, a situação de rua é uma
experiência individual de alguns dos membros mais vulneráveis da sociedade,
caracterizada pelo abandono, desespero, baixa autoestima e negação da dignidade, com
consequências graves para a saúde e para a vida. O termo ‘situação de rua’ não só
descreve a carência de moradia, como também identifica um grupo social. O estreito
vínculo entre a negação de direitos e uma identidade social distingue a falta de moradia
da privação de outros direitos socioeconômicos.”
É nesse contexto que a despeito do caminho evolutivo dos marcos legais da
população em situação de rua, tais legislações carecem de eficácia real e de
implementação dos direitos e deveres previstos, com a ampliação dos dados censitários,
expansão dos comitês de monitoramento e a diversificação, através da integração
multisetorial, dos instrumentos para consolidação das garantias estabelecidas. O que se
conclui, é que diante do aprofundamento das desigualdades socio-estruturais e do
aumento da precariedade vivida pelas pessoas em situação de rua, urge que o Estado
brasileiro busque não só a previsão de garantias em leis, mas a concretização de direitos
na prática.
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