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e sociedade
Visões de um Brasil em Gonstrução
Daysi Lange Albeche (orgJ
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Cidadania: concepÇÕes numa
sociedade de mercado
Cristine Fortes Lia.
Roberto Radünz--
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No tempo presente, está cada vez mais difícil dissociarmos
o cidadão do consurnidor. Nas duas Írltimas decadas' com a
globalizaçãoeaimplementaçãoaceleradadomodeloNeoliberal'
a sociedade de mercado tem sacralizado o consumidor' Esse
por
sujeito tem resguardo seus direitos desde que possa pagar
isso ou recofler a instâncias que garantam suas prerÍogativas'
As transformações que ocorreram nas últimas decadas não
só projetaram, mas já consolidaram um novo modelo de
orgànização social no mundo ocidental - a sociedade de mercado'
Nessecenáriodemudançasaceleradas,dequestionamentosaos
conceitos cristalizados e de realidades efêmeras, talvez seja
dentre
necessário reavaliarmos o significado de algumas palavras'
elas a que nos interessa neste texto - a cidadania'
Concepções de cidadania
O título deste texto sugere que não existe uma única
exige
concepção de cidadania. A pluralidade dessas concepções
umdiálogocomahistória.Pornraisobjetivoqlleocorrceitode
cidadania possa parecer, ele adquire conotações diferentes
de
PUCRS.
'- Profcssor dc História c pcsquisador na UCS c na Unisc' Doutor em Histórta
pcla PUCRS.
Universidadeesmiedade:visÕsdeumBrasilemconstrução I 161 I
acordo com epocas ou povos. A irnagen'r do cidadão corresponde cidadania entre os gregos atttigos, já que o cidailão era Ltm
a um rnodelo de pátna qlle se qtrer alcançar. Muitas vezes, ser indivídLro privilegiado que vivia para atender às necessidades da
cidadão de urn determinado território significa obedecer aos cidade. Entre os rorlanos, um exemplo assemelhado existiu para
criterios que definem cidaciauia. o grupo que historicatnente conhecemos como patrícios.
Na história brasileira e comuln encontramos estereótipos Foi uma experiêucia que, praticamente, não deixou nenhum
do "cidadão brasileiro", ora visto coluo preguiçoso, couro vestígio maior nos mundos antigo e medieval. Na sequência dessa
malandro, ora como o born e drsciplinado trabalhador, ora cofiro conversa com a história, e necessário avançar mais de dois mil
o não-revolucionário. Essas imagens estão, de modo geral, ligadas anos e chegar à França da Revolução. Nesse hiato entre Grécia
a uma conjuntura polÍtica, que busca, na deÍinição clo ser antiga e a França revolucionária, o cidadão com direitos
brasileiro, uma explicação para as formas de exercício do poder. desapareceu. Nessa lacuna, várias sociedades com características
As tentativas de definição do qr.re e o "típico brasileiro" acabam aristocráticas dominaram as populações sr-rbaitemas. Escravos,
por encobrir, na l-ristória, o que, etn determinado momento, não servos e súditos são apenas alguns termos qLle ocupaln o lugar
se qller qr.re seja fonnador do povo brasileiro. desse sujeito histórico que, na modemidade, será chamado de
Gertz (apud MülLeR, 1994), em seu texto "Cidadania e
cidadão.
I
nacionalidade. história e conceitos de uma epoca", conta que o No período que antecedeu a Revolução Francesa, houve
apóstolo Paulo "ao ver-se constrangido em função de sua um grande movimento de questionamento da ordem social
identiÍicação sr,rbjetiva corl uma carisa puxou do bolso a sua vigente. Na Europa pessoas ilustradas ligados aos novos itrteresses
carteira de identrdade que atestava seu peftencimento forrnal à econômicos perguntavam-se sobre a legitimidade da ordem
entidade jurídica charnada 'Estado Romano"'. (p. l5) paulo, aristocrática. Uma organização social e política que é sintetizada,
então, demonstrou sua cidadania, seu vínculo com o Estado. na charge que segue, por Novaes e Rodrigues (1991, p. 3l):
Ter cidadania é peftencer fonnalmente a um Estado, tendo direitos
e deveres para colx esse. Esse Estado ao qual o cidadão perlence
e definido, juridican-rente, através de leis próprias e ulna posse
territorial. O Estado e algo concreto, que pode ser objetivamente i* j.à't#.'t $§*:;i'+f *.
162 Daysi Lang: Allreche brg.) Univereidadee uiedade: visÕes dc um Br:isilem constrLrçã. I 1 63
que, hoje, quem tem dinheiro para pagar bons advogados consegue total faltu cle outorgar direitos aos escravos e às populações
protelar rnuito a execuÇão de suas penas ou, em alguns casos, miserabilizadas.
como de juízes e magistrados, cumprir suas penas em prisão É ,,"rr"
tempo de revoluções, de questionarnentos, de as
domiciliar. Nesses casos, "a lei não e igual perante o homem". monarquias absolutas, que se torna comum as nações limitarem
o poder do Executivo através das Cartas Constitucionais. A
primeira Constituição do Brasil Íbi escrita ainda no tempo do
Todo homem nasce igual
Imperio. Ilssa Cafla de 1824, outorgada pelo Imperador D. Pedro
É d"ssa Íbrma que começa um dos documentos mais I, restringiu a possibilidade de clar direitos à população cativa,
conhecidos do mundo conternporâneo a Declaração do.s DireiÍos
solenemente desconsiderada pelo documento. Nesse tempo,
do Homem e do Cidadão. Esse texto, de agosto de 1789, questiona
praticamente três quartos da população do Brasil imperial eram
o ordenamento social baseado no direito de nascimento. Essa
de escravos. Segundo a Constituição, "nenhum gênero de
igualdade, base para a cidadania, foi o estatuto que garantiu, em
trabalho, de cultura, de indÍrstria ou comércio pode ser proibido,
primeiro lugar, aquilo que se chamou direitos ciyis, ou seja, a
ulna vez que não se oponha aos costumes púrblicos, à segr.rrança
igualdade, a liberdade e a fi-atemidade tripé da revolução. Esse
e à saúrde dos cidadãos". (Constituição brasileira de 1824 - Das
grande avanço pouco mudou a vida da maioria da pessoas que
Disposições Gerais XXIV). Mesmo que o texto legal pareça não
continuavam privadas dos direitos sociais e políticos, além de
ser restritivo, a possibilidade de ser cidadão esconde o trabalho
manter a desigualdade social. Novaes e Lobo (2004, p. ru2)
escravo reconhecendo-o constitucionalmente, quando diz que
ilustram isso:
"nenhum gênero de trabalho [...] pode ser proibido" t...1 -
inclusive o escravo.
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:..: ;';r.:; t:, : : : i, .,i:: : ;: Anacronicamente, no Brasil escravista, os negros e outros
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irii scl Ê.!-ii .* +J:eÊiEi grupos nriserabilizados não nasciarn iguais perante a lei. Aliás,
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',64 | Daysi LangeAlbcche (org.) Universidrrh.r.v x itrlade: visoes dc unr Brasi I em construcão
| 165
Poucos cidadãos num país desigual A realidade socioeconôrnica precisa ser consideracla quando
O fim da esoravidão e o advento da Repúrblica não mudararn No que se refere a esse terna,
se discute a questào da cidadania.
muito esse quadro. Em tennos de direitos, eles continuaraln a e impodante que se lernbre qlle quase todas as Constituições,
ser prerrogativas de pessoas que tinham renda e uma maior nesses cem anos <1e República, proibiam a parlicipação política
inserção na sociedade. É importante que se considerem alguns das mulheres, dos analfabetos e dos miseráveis, crianclo uma
dados sobre a realidade do Brasil nos cem anos de República discriminação de gênero, de instrução e de status socioeconômico.
(l 900-2000). A Constituição de 1988 mudou legalmente esse quadro,
::r:::r :: :r::r:nr:::r:: garantindo a todos direitos civis. sociais e políticos. A respeito
::, co:[{i$RÀÁI!I!§ No FrM Do sÉcul,o )o(
17,4 mithões (1900) PoPI]LAÇÂo 169,8 iriithôes (2000)
dos direitos civis, como tambem são conhecidos os direitos
8,9 milhõB Homs ' t3,6 mllhõe, individuais e coletivos, o artigo 5" afirma: "Todos são iguais
8§ milhõs Mulheres 86,2 milhões ,
| 1 66 | Daysi LangeAlbeche (ors.) Universidade e yriedade: visocs cb urr BrasiI em construç.to 167
higiene, transpofte e previdência social,
1azer, vestuário, I Os dados acirna forarn publicados na Revista IstoE, de 29
com reajustes periódicos que the preservem o poder de outubro de 1999. Interessante é perceber que, nessa
aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualqr-rer Íbrmatação socioeconômica da sociedade, desconsiderou-se
fim. (CoNsrrrurÇÀo DA Rnpúer-rca FpoERrurva oo Bnasrl, aquela definição rrais tradicional de classes pobres/mediabaixal
1990,p.11).
media/media alta/ricos - típica de uma visão que advogava a
possibilidade de ascensão social. Essa visão foi especialmente
No que se refere aos direitos civis e políticos, a equação patrocinada pelo regime militar no Brasil ( I 964- 1 985), que proibia
CONSTITUIÇÀO ver,su:i REALIDAD-E - não parece tão notícias e análises sobre declínio econômico. Segundo o gráfico
discrepante se comparada aos direitos sociais. No Brasil de hoje, acima, transparece urna visão diferente, que sinaliza um declínio
as pessoas, vict de regra, sáo consideradas iguais perante a lei e social às pessoas que estão na base dessa pirâmide: depois de
têm direitos poiíticos garantidos. O abismo nessa equação se quase pobre... pobre... miserável.
mostra quando a lei esbara na realidade de mercado - campo Além desses dados, o jornal Folha de S. Paulo, de 19 de
trilhado pelos direitos sociais. Apenas para problematizar. o salário- outubro de 1999, publicou matéria com o seguinte título: "Quantos
mínimo, segundo o arÍ.7o,IV "t.] capaz de atender a suas são os pobres e miseráveis no Brasil?"
necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia,
alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte
e previdência social." O salário-mínimo garante isso?
6*
Direito sociais e cidadania no Brasil 4ü
r Fobrʧ ' 35 %
No momento em que essa Constituição completava dez anos, 20 s Miseráueis = 14
levantou-se, no Brasil, um debate que repercutiu forte na grande
0
imprensa a respeito das limitações dos direitos sociais. Os dados
População ern mÍlhões de
a seguir ilustram essa discussão. hübitentq*
170 Daysi LanEc Albeche (org.) Univereidadee u-iedade: visirtl rle unr Brásilem construÇ.io 11711
do cor-rsumidor, melhor adequado a r-rma sociedade de mercado, Na esteira dessa ampliação dos direitos, debates inir-nagináveis
vai sendo ressignificado, surgindo daí uma figura que pode ser meio seculo atrás se tornant pauta comum na atualidade, ligados,
definida como cidadão-consumidor, sujeito que e muito mais por exemplo, às preocupações arnbientais. Veicula-se hoje
consumidor do que cidadão. A razão disso - os direitos do propagandas que chamarn a atenção para a necessidade de se
consumidor tem muito mais amparo hoje que os velhos direitos garantir os direitos das gerações futuras. A ampliação a respeito
do cidadão da modernidade. do entendimento e do debate a respeito da cidadania, seja ela
Associado às leis de mercado, instâncias como o Programa atual ou futura, ainda esbarra numa sociedade grosseiramente
Estadual de Defesa do Consurnidor (Procom), garantem que o desigr"ral sem projeção de mudança.
cidadão-consumidor terá onde reçlamar quando se sentir lesado. Se partinnos da lei, podemos ter como tese a viabilidade de
Aliás, em programas de rádio e TV abefta, hoje, é muito comum ser cidadão estendida a todos os indivíduos. No entanto, essa
ouvinnos falar em defesa dos direitos do consumidor do que do tese pode ser negada na prática do dia a dia.
cidadão. Alem disso, todo o crescimento supostamente social e
Segundo uma reflexão de Costa (1985), de que adianta o
pautado na ampliação do poder de compra. Quando uma pesquisa
direito de propriedade para quem não é e nem será proprietário,
evidencia qlle um grupo social ascendeu, como o famoso ingresso
ou a inviolabilidade do lar àqueles que moram em barracos que
na classe C (assunto recorrente na mídia do início do século
constantemente são invadidos por traficantes ou pela polícia, ou
XXI), tudo o que respalda essa mobilidade é poder comprar mais.
o direito de expressão àqueles que não possuem meios para se
Rarissimamente, um entrevistado, ingressante na classe C, por
expressar? Que significado tem a divisão democrática dos
exemplo, relata melhor acesso à educação, à saúrde, aos poderes àqueles que viram o Executivo intervir diversas vezes
transportes públicos de qualidade, etc., mas sernpre menciona
no Legislativo cassando, suspendendo, reformulando regras do
quantos eletrodomésticos e eletroeletrônicos comparou, a troca jogo a seu bel-prazer? Como é possível obedecer à lei se os que
do carro, enfim, a ampliação do poder de compra. Aliás, o têm como tarefa defendê-la são os prirneiros a desrespeitá-la?
discurso oficial do governo atual prefere referir-se aos grupos Se os crimes dos poderosos não são condenados enquanto os
sociais por classe A, B, C... ao invés da antiga nornenclatura: "ladrões de galinha" mofam nas prisões superlotadas? eue
pobres, miseráveis, ricos...
signiÍicado tem uma Constituição que a cada passo e reescrita
para de novo ser negada, uma Constitr,rição que e violada em
Cidadania como um processo em construção nome da defesa da ordem constitucional?
Se, por um lado, é latente essa tensão entre cidadão e Na atualidade, ainda existe uma organização social arcaica
consumidor, de outro, é conhecida a ampliação desse debate para (colonial) mal-resolvida. Marcos de urn passado de expropriação
alern dos clássicos direitos civis. sociais e políticos. Em fins do colonial, de mentalidade mcrndonlsla, interferem nas relações
seculo XX, vários grupos sociais se mobilizaram para assegurar trabalhistas, na ordem social competitiva, ou seja, reproduzern-
seus direitos. Nesse movimento, estão as minorias, as rnulheres, se essas relações no presente. Fernandes (1914, p. 35) afirma
os negros, os homossexuais e outros qLle, graças à sua luta, qLle essa realidade "lembra mais a simetria colonizador versus
conseguiram garantir aparatos legais de proteção que, em alguns colonizado que a empresário capitali sta versus assalariado".
casos, são letra morla. Asociedade brasileira e ulra sociedade de classes que só
funciona corno tal para os "mais iguais", ou seja, para as classes
FURIADO, Jorge. Ilha das Flores. Brasil, 1989, 13min - Ctutas Gaúchos.
REFERÊNCIAS
COSTA, Emília Viotti da. Folha de São Paulo, São Paulo, 13 jun.
1985.
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