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Universidade

e sociedade
Visões de um Brasil em Gonstrução
Daysi Lange Albeche (orgJ

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Cidadania: concepÇÕes numa
sociedade de mercado
Cristine Fortes Lia.
Roberto Radünz--

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No tempo presente, está cada vez mais difícil dissociarmos
o cidadão do consurnidor. Nas duas Írltimas decadas' com a
globalizaçãoeaimplementaçãoaceleradadomodeloNeoliberal'
a sociedade de mercado tem sacralizado o consumidor' Esse
por
sujeito tem resguardo seus direitos desde que possa pagar
isso ou recofler a instâncias que garantam suas prerÍogativas'
As transformações que ocorreram nas últimas decadas não
só projetaram, mas já consolidaram um novo modelo de
orgànização social no mundo ocidental - a sociedade de mercado'
Nessecenáriodemudançasaceleradas,dequestionamentosaos
conceitos cristalizados e de realidades efêmeras, talvez seja
dentre
necessário reavaliarmos o significado de algumas palavras'
elas a que nos interessa neste texto - a cidadania'

Concepções de cidadania
O título deste texto sugere que não existe uma única
exige
concepção de cidadania. A pluralidade dessas concepções
umdiálogocomahistória.Pornraisobjetivoqlleocorrceitode
cidadania possa parecer, ele adquire conotações diferentes
de

UCS Doutora História pcla


Profcssora dc História c pcsquisadora na
clt.t

PUCRS.
'- Profcssor dc História c pcsquisador na UCS c na Unisc' Doutor em Histórta
pcla PUCRS.

Universidadeesmiedade:visÕsdeumBrasilemconstrução I 161 I
acordo com epocas ou povos. A irnagen'r do cidadão corresponde cidadania entre os gregos atttigos, já que o cidailão era Ltm
a um rnodelo de pátna qlle se qtrer alcançar. Muitas vezes, ser indivídLro privilegiado que vivia para atender às necessidades da
cidadão de urn determinado território significa obedecer aos cidade. Entre os rorlanos, um exemplo assemelhado existiu para
criterios que definem cidaciauia. o grupo que historicatnente conhecemos como patrícios.
Na história brasileira e comuln encontramos estereótipos Foi uma experiêucia que, praticamente, não deixou nenhum
do "cidadão brasileiro", ora visto coluo preguiçoso, couro vestígio maior nos mundos antigo e medieval. Na sequência dessa
malandro, ora como o born e drsciplinado trabalhador, ora cofiro conversa com a história, e necessário avançar mais de dois mil
o não-revolucionário. Essas imagens estão, de modo geral, ligadas anos e chegar à França da Revolução. Nesse hiato entre Grécia
a uma conjuntura polÍtica, que busca, na deÍinição clo ser antiga e a França revolucionária, o cidadão com direitos
brasileiro, uma explicação para as formas de exercício do poder. desapareceu. Nessa lacuna, várias sociedades com características
As tentativas de definição do qr.re e o "típico brasileiro" acabam aristocráticas dominaram as populações sr-rbaitemas. Escravos,
por encobrir, na l-ristória, o que, etn determinado momento, não servos e súditos são apenas alguns termos qLle ocupaln o lugar
se qller qr.re seja fonnador do povo brasileiro. desse sujeito histórico que, na modemidade, será chamado de
Gertz (apud MülLeR, 1994), em seu texto "Cidadania e
cidadão.
I
nacionalidade. história e conceitos de uma epoca", conta que o No período que antecedeu a Revolução Francesa, houve
apóstolo Paulo "ao ver-se constrangido em função de sua um grande movimento de questionamento da ordem social
identiÍicação sr,rbjetiva corl uma carisa puxou do bolso a sua vigente. Na Europa pessoas ilustradas ligados aos novos itrteresses
carteira de identrdade que atestava seu peftencimento forrnal à econômicos perguntavam-se sobre a legitimidade da ordem
entidade jurídica charnada 'Estado Romano"'. (p. l5) paulo, aristocrática. Uma organização social e política que é sintetizada,
então, demonstrou sua cidadania, seu vínculo com o Estado. na charge que segue, por Novaes e Rodrigues (1991, p. 3l):
Ter cidadania é peftencer fonnalmente a um Estado, tendo direitos
e deveres para colx esse. Esse Estado ao qual o cidadão perlence
e definido, juridican-rente, através de leis próprias e ulna posse
territorial. O Estado e algo concreto, que pode ser objetivamente i* j.à't#.'t $§*:;i'+f *.

definido. Perlencer a um Estado e estar ligado a um território


garantido pelas leis do mesmo.
A palavra cidadãct e, daí, como desdobramento, o exercício '",,.,:'"-
da cidaclania, aparece num prirneiro lnornento na cidade-estado
de Atenas, na Cjrecia antiga. Há 2.500 anos atrás, na Ílorescente ,tronla: Novacs; Rodrigucs (1991, p.3l).
cidade dos filósoÍbs antigos, uma parceia não superior a dez por
cento da populacão tinha direitos políticos e participava,
O rei e a nobreza recebiam tratamento especial diante da lei.
efetivarlente, das decisões. Havia entre os atenienses instâncias
Seus direitos e suas prerrogativas eram diferentes, por isso erarn
especiahnente Íbrmatatlas para o exercício da cidadania. Esse
tratados de modos distintos. Curioso e perceber que algo válido
modelo, qLle nos dias de hoje pode parecer restritivo, se
e aceito na sociedade aristocrática de antes das revoluções
enquadrava perfeitamente nas necessidades de exercício de
burguesas ainda não foi superado. Basta lembrar, por exemplo,

162 Daysi Lang: Allreche brg.) Univereidadee uiedade: visÕes dc um Br:isilem constrLrçã. I 1 63
que, hoje, quem tem dinheiro para pagar bons advogados consegue total faltu cle outorgar direitos aos escravos e às populações
protelar rnuito a execuÇão de suas penas ou, em alguns casos, miserabilizadas.
como de juízes e magistrados, cumprir suas penas em prisão É ,,"rr"
tempo de revoluções, de questionarnentos, de as
domiciliar. Nesses casos, "a lei não e igual perante o homem". monarquias absolutas, que se torna comum as nações limitarem
o poder do Executivo através das Cartas Constitucionais. A
primeira Constituição do Brasil Íbi escrita ainda no tempo do
Todo homem nasce igual
Imperio. Ilssa Cafla de 1824, outorgada pelo Imperador D. Pedro
É d"ssa Íbrma que começa um dos documentos mais I, restringiu a possibilidade de clar direitos à população cativa,
conhecidos do mundo conternporâneo a Declaração do.s DireiÍos
solenemente desconsiderada pelo documento. Nesse tempo,
do Homem e do Cidadão. Esse texto, de agosto de 1789, questiona
praticamente três quartos da população do Brasil imperial eram
o ordenamento social baseado no direito de nascimento. Essa
de escravos. Segundo a Constituição, "nenhum gênero de
igualdade, base para a cidadania, foi o estatuto que garantiu, em
trabalho, de cultura, de indÍrstria ou comércio pode ser proibido,
primeiro lugar, aquilo que se chamou direitos ciyis, ou seja, a
ulna vez que não se oponha aos costumes púrblicos, à segr.rrança
igualdade, a liberdade e a fi-atemidade tripé da revolução. Esse
e à saúrde dos cidadãos". (Constituição brasileira de 1824 - Das
grande avanço pouco mudou a vida da maioria da pessoas que
Disposições Gerais XXIV). Mesmo que o texto legal pareça não
continuavam privadas dos direitos sociais e políticos, além de
ser restritivo, a possibilidade de ser cidadão esconde o trabalho
manter a desigualdade social. Novaes e Lobo (2004, p. ru2)
escravo reconhecendo-o constitucionalmente, quando diz que
ilustram isso:
"nenhum gênero de trabalho [...] pode ser proibido" t...1 -
inclusive o escravo.
1j,.iç .,1
::i .j j 'i I :r : :: j.ç:.. :
:..: ;';r.:; t:, : : : i, .,i:: : ;: Anacronicamente, no Brasil escravista, os negros e outros
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irii scl Ê.!-ii .* +J:eÊiEi grupos nriserabilizados não nasciarn iguais perante a lei. Aliás,
,, ã.,;,ã t *i t:jü ?.à;".tj; *i,.#ÉL4i..q.,'rx l.S

essa invisibilidade social diante da lei e urra marca registrada de


quase todas as Constituições do Brasil. A1ém disso, os não-
incluídos na sociedade legal tiveram que viver e se organizar
paralelarlcntc ao E,stado. Essa é a gênese de uma realidade
amplarncntc conhecida no Brasil - as favelas e as periferias.
Retratantkr esse quadro na atualidade, a Rede Globo produziu
Fúrr?/e: Novacs; Lobo (2004, p. la2). urna seric na TV chamada a "Cidade dos Hornens". Ern dois
episódios cnr especial, da primeira fase, essa vida paralela ao
E,yÍado fu l)irciÍo, e retradada: O Cctrreio e o Cunhodo cJo Cora.
A desigualdade social não foi uma invenção do capitalismo nos quais c possível evidenciar a solidificação de poderes paralelos
moderno. Sempre existiu: uma semente sempre pronta para ser na ausêuciu cio Estado, bern como a ineficácia e a falta de atenção
semeada em terrenos novos da história da humanidade, aliás, dls políticas pÍrblicas para algumas populações, ou seja, a
uma erva daninha para as pessoas pobres. E,nquanto na Europa incxistêrrcirr clc exercício pleno de cidadania.
iniciava a discussão a respeito dos direitos do cidadão (seculo
XIX), o Brasil ainda vivia mergulhado na escravidão, ou seja, na

',64 | Daysi LangeAlbcche (org.) Universidrrh.r.v x itrlade: visoes dc unr Brasi I em construcão
| 165
Poucos cidadãos num país desigual A realidade socioeconôrnica precisa ser consideracla quando
O fim da esoravidão e o advento da Repúrblica não mudararn No que se refere a esse terna,
se discute a questào da cidadania.

muito esse quadro. Em tennos de direitos, eles continuaraln a e impodante que se lernbre qlle quase todas as Constituições,
ser prerrogativas de pessoas que tinham renda e uma maior nesses cem anos <1e República, proibiam a parlicipação política
inserção na sociedade. É importante que se considerem alguns das mulheres, dos analfabetos e dos miseráveis, crianclo uma
dados sobre a realidade do Brasil nos cem anos de República discriminação de gênero, de instrução e de status socioeconômico.
(l 900-2000). A Constituição de 1988 mudou legalmente esse quadro,
::r:::r :: :r::r:nr:::r:: garantindo a todos direitos civis. sociais e políticos. A respeito
::, co:[{i$RÀÁI!I!§ No FrM Do sÉcul,o )o(
17,4 mithões (1900) PoPI]LAÇÂo 169,8 iriithôes (2000)
dos direitos civis, como tambem são conhecidos os direitos
8,9 milhõB Homs ' t3,6 mllhõe, individuais e coletivos, o artigo 5" afirma: "Todos são iguais
8§ milhõs Mulheres 86,2 milhões ,

R$ sr6 (1901) PIB PER CÁPITÀ


perante a lei, sem distinção de qualquer naÍtÀÍeza, garantindo-se
0,50 Ítrutcs pr cn'tr 0,59 : aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviobilidade
oe60) (Mede â concmhação de rmda) (1e99)

65,1% (1900) TAXA DE ÁNALFABETISMO 8,6rÁ Q,Oht)


do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade".
162,4 por 1000 (1930) MORTALIDADE INFANITT, 29,6 por mit (2000) (CoNsrrrurçÃo DA REpúBLrca FeonR,r\lve oo Bnasrl, 1990, p. 5).
33,6 anos {1900) anor (2fi)0)
(1e40)
6E,6
(2000)
A Carta de 1988 avançolr consideravelmente, pois tarnbém
63A't% 53,74o/" transformou todas as pessoas em cidadãos com direitos políticos,
t4,64yo 6,2tyo
2t,2to/o : Puelo§ 38A60/0 sem nenhurn tipo de discrirninação todos podem votar e ser
0,s9./" Amàrelos 0, sy.
votados. Outro aspecto que merece destaque, no campo da
cidadania, é a garantia dos direitos sociais - pelo menos no
Fonte: Folha de São Paulo, Cadcmo Especial, 30 sct. 2003, p. I
aspecto legal.

Os dados acima apontam para um Brasil bastante desigual.


Art. 6o. São direitos sociais a educação, a saÍrde, o
trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a
O PIB per capittt, a taxa de analfabetismo e a expectativa de vida
proteção à rnatemidade e à inÍãncia, a assistência aos
apresentam números bastante discrepantes. Na última década, desamparados, na fomra ciesta Constituição.
segr-rndo o Censo de 2010, houve poucas mudanças significativas
Art.7o. São direitos dos trabalhadores urbanos e nrrais.
nesse quadro, com erceção do PIBper capita que aurnentou de
alem de outros que visem à melhoria de sua condição
R$ 6.056,00 em 2000 para R$ 16.414,00 em 2010. Isso significa social: I relação de emprego protegida contra
que o País Íjcor"r r.nais rico, porém, não houve igual distribuição despedida arbitrária oll sen justa carrsa, nos termos
de rencla, uma vez que o cálculo do PIB per capita é simples: da lei cornplementar, que preverá indenizaçào
total do Produto Interno Brúo (riqueza do País) dividido pelo compensatória, dentro outros direitos; II - seguro-
total da popr,rlação. Isso tarnbern conesponde à análise que a deserlrprego, er11 caso de desernprego invoiuntário; III
produção de riqr-reza econômica não corresponde, ern tennos de
Fundo de Garantia do Tempo de Serviço; lV salário
mínirno, fixado em lei, nacionaimente uniÍlcado , capaz
sociedade brasileira, ao crescimento do capital sooial. Ariqueza
de atender a suas necessidades vitais básicas e às de
ec:onômica insere-se na sociedade apenas aumentando o poder sua fan.rilia com moradia. alimentaçixr, educação, saúrde,
de consurno sem transÍbrlrar as estruturas sociais.

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higiene, transpofte e previdência social,
1azer, vestuário, I Os dados acirna forarn publicados na Revista IstoE, de 29
com reajustes periódicos que the preservem o poder de outubro de 1999. Interessante é perceber que, nessa
aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualqr-rer Íbrmatação socioeconômica da sociedade, desconsiderou-se
fim. (CoNsrrrurÇÀo DA Rnpúer-rca FpoERrurva oo Bnasrl, aquela definição rrais tradicional de classes pobres/mediabaixal
1990,p.11).
media/media alta/ricos - típica de uma visão que advogava a
possibilidade de ascensão social. Essa visão foi especialmente
No que se refere aos direitos civis e políticos, a equação patrocinada pelo regime militar no Brasil ( I 964- 1 985), que proibia
CONSTITUIÇÀO ver,su:i REALIDAD-E - não parece tão notícias e análises sobre declínio econômico. Segundo o gráfico
discrepante se comparada aos direitos sociais. No Brasil de hoje, acima, transparece urna visão diferente, que sinaliza um declínio
as pessoas, vict de regra, sáo consideradas iguais perante a lei e social às pessoas que estão na base dessa pirâmide: depois de
têm direitos poiíticos garantidos. O abismo nessa equação se quase pobre... pobre... miserável.
mostra quando a lei esbara na realidade de mercado - campo Além desses dados, o jornal Folha de S. Paulo, de 19 de
trilhado pelos direitos sociais. Apenas para problematizar. o salário- outubro de 1999, publicou matéria com o seguinte título: "Quantos
mínimo, segundo o arÍ.7o,IV "t.] capaz de atender a suas são os pobres e miseráveis no Brasil?"
necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia,
alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte
e previdência social." O salário-mínimo garante isso?
6*
Direito sociais e cidadania no Brasil 4ü
r Fobrʧ ' 35 %
No momento em que essa Constituição completava dez anos, 20 s Miseráueis = 14
levantou-se, no Brasil, um debate que repercutiu forte na grande
0
imprensa a respeito das limitações dos direitos sociais. Os dados
População ern mÍlhões de
a seguir ilustram essa discussão. hübitentq*

Flnte: Folhà dc S. Paulo, 19 out. 1999


A disrihuiçã0 d* rendã no Brâsil
E rd,s[HÀr!.,§ - ]"{ *rili:6rirl tr5 §;-i Os dados acima são da Comissão Econômica para aAmérica
3 P*BitE§ -;fl r)ii$hii*r / 2ü 9ü Latina (Cepal), ligada às Nações Unidas. Segundo essa comissão,
0Lr etl PC$R[ 5 . ;,Cr rn rlhr.x.: / 3 5. ,.
-r
eram consideradas pobres (55 milhões) as pessoas que viviam
r (LÀ§58 L4ÊÍ]tÀ - §ü milhdÊr I 2Í, :!i,
Bll*5.I rr:ithiieil ! !! coln uma renda inferior a R$ 100,00 por mês os miseráveis
(21,4 rnilhões) com menos de R$ 50,00. O Instituto de Pesquisa
Aplicada (Ipea), ligado ao governo federal, considerava pobres
.Farle. Rcvista IstoE (29 out. 1999).
aqueles que, à época, viviarn com menos de R$ 68,00 por mês.
Pessoas nessa condição teriam que sobreviver com dois a três
reais por dia. Lernbrando - 71 milhões de brasileiros, ou seja,

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49%o da população. A títLrlo de referência, nesse período, a problematiza a situação de pessoas que vivem do lixo. A
passagem de ônibus urbano em Caxias do Sul, importante cidade ficcionalidade do curla deixa uma mensagem: o capitalisrno produz
do SLrl do Brasil, custava R$ 1,2-5. Isso impiica dizer que pessoas duas realidades desagradáveis que se quer longe: o iixo e a miséria.
rniseráveis teriarn que sobreviver coln urn valor inferior a duas
passagens de ônibus por dia.
Direitos sociais numa sociedade de mercado
Passados dez anos e amparados no Censo de 20 I 0, o próprio
Nas duas úrltir-r-ras décadas, houve uma mudança gigantesca
governo confessa a extensão do problema:
com o fim da Guerra Fria, a globalização e a implementação do
modelo Neoliberal. Sinteticamente, Íàzem parte desse processo
Ao anr-rnciar ontem a linha de pobreza extrema que a sociedade de n-iercado, aprivatizaçáo e a emergência do chamado
adotará como criterio para delimitar o universo de cidadâo consumidor. Anclerson, referindo-se essa mudança ainda
miseráveis no Brasil - renda familiar de R$70 mensais inacabada, afinna que
por pessoa , o Ministerio do Desenvolvimento Social
divulgou um dado surpreendente: o nútmero de
brasileiros miseráveis chega a 16,2 milhões, de acordo economicamente, o neoliberalismo fracassou, nào
com a versão prelirninar do censo do IBGE, de 2010. conseguindo nenhuma revitalização básica do
Nada menos do que 8,5% da população. A surpresa capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o
está no Íàto de que, em 2009, o número estimado era neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos,
bem menor, na faixa de 10 milhões de pessoas ou cerca criando sociedades marcadamente mais desigtLais,
de 5% da população, conÍbtme a Pnad, do próprio embora não tão desestatizadas col11o queria. Política e
IBGE. (INmnxm,201l). ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou
êxito num grau com o qual seus fundadores
provavelmente jamais sonharam, disseminando a
O quadro de miséria extrerxa fez com que o govemo federal simples idéia de que não há alternativas para os seus
passasse a investir nas chamadas políticas de transferência de princípios, que todos, seja confessando ou negando,
renda. Desde o govemo de Femando Henrique Cardoso, passando têm de adaptar-se às suas normas. (ANoensoN apud
pelos dois mandatos de Luís lnácio "Lula" da Silva, houve um Sr»rn, 1995,p.23).
investimento nessas políticas com o objetivo de garantir
minimamente os direitos sociais. Medidas consideradas Essa avaliação, feita há quase duas décadas, continua válida.
eqr"rivocadas por Lrns, palhativas por outros, esse modelo tem Economicamente, nenhuma revitalização, senão a sacralização
sido ampliado pelo governo federal com o objetivo emergencial do mercado atendendo às populações qLre podem comprar.
de erradicar a miseria extrerna. Sociedades marcadamente desiguais são reflexos dessa
A condição de miséria e desconhecida por boa parte da concentração de renda de tun lado e, de outro, o E,stado agindo
população brasileira ou reÍ-erida apenas como Llm verbete de como erradioaclor da miséria extrema.
dicionário. A esse respeito, e in-rpofiante lembrar o impactante Nesse cenário, está posta, a desconstrução, ou a reconstrução
curta gaúcho produzido em fins de 1980, chamado llha das da cidadania rnoderna, ou seja, aquela pensada no período
Flores. Retratando uma faixa da periferia de Porto Alegre. anterior. O cidadão, desgastado como referência pela emergência

170 Daysi LanEc Albeche (org.) Univereidadee u-iedade: visirtl rle unr Brásilem construÇ.io 11711
do cor-rsumidor, melhor adequado a r-rma sociedade de mercado, Na esteira dessa ampliação dos direitos, debates inir-nagináveis
vai sendo ressignificado, surgindo daí uma figura que pode ser meio seculo atrás se tornant pauta comum na atualidade, ligados,
definida como cidadão-consumidor, sujeito que e muito mais por exemplo, às preocupações arnbientais. Veicula-se hoje
consumidor do que cidadão. A razão disso - os direitos do propagandas que chamarn a atenção para a necessidade de se
consumidor tem muito mais amparo hoje que os velhos direitos garantir os direitos das gerações futuras. A ampliação a respeito
do cidadão da modernidade. do entendimento e do debate a respeito da cidadania, seja ela
Associado às leis de mercado, instâncias como o Programa atual ou futura, ainda esbarra numa sociedade grosseiramente
Estadual de Defesa do Consurnidor (Procom), garantem que o desigr"ral sem projeção de mudança.
cidadão-consumidor terá onde reçlamar quando se sentir lesado. Se partinnos da lei, podemos ter como tese a viabilidade de
Aliás, em programas de rádio e TV abefta, hoje, é muito comum ser cidadão estendida a todos os indivíduos. No entanto, essa
ouvinnos falar em defesa dos direitos do consumidor do que do tese pode ser negada na prática do dia a dia.
cidadão. Alem disso, todo o crescimento supostamente social e
Segundo uma reflexão de Costa (1985), de que adianta o
pautado na ampliação do poder de compra. Quando uma pesquisa
direito de propriedade para quem não é e nem será proprietário,
evidencia qlle um grupo social ascendeu, como o famoso ingresso
ou a inviolabilidade do lar àqueles que moram em barracos que
na classe C (assunto recorrente na mídia do início do século
constantemente são invadidos por traficantes ou pela polícia, ou
XXI), tudo o que respalda essa mobilidade é poder comprar mais.
o direito de expressão àqueles que não possuem meios para se
Rarissimamente, um entrevistado, ingressante na classe C, por
expressar? Que significado tem a divisão democrática dos
exemplo, relata melhor acesso à educação, à saúrde, aos poderes àqueles que viram o Executivo intervir diversas vezes
transportes públicos de qualidade, etc., mas sernpre menciona
no Legislativo cassando, suspendendo, reformulando regras do
quantos eletrodomésticos e eletroeletrônicos comparou, a troca jogo a seu bel-prazer? Como é possível obedecer à lei se os que
do carro, enfim, a ampliação do poder de compra. Aliás, o têm como tarefa defendê-la são os prirneiros a desrespeitá-la?
discurso oficial do governo atual prefere referir-se aos grupos Se os crimes dos poderosos não são condenados enquanto os
sociais por classe A, B, C... ao invés da antiga nornenclatura: "ladrões de galinha" mofam nas prisões superlotadas? eue
pobres, miseráveis, ricos...
signiÍicado tem uma Constituição que a cada passo e reescrita
para de novo ser negada, uma Constitr,rição que e violada em
Cidadania como um processo em construção nome da defesa da ordem constitucional?
Se, por um lado, é latente essa tensão entre cidadão e Na atualidade, ainda existe uma organização social arcaica
consumidor, de outro, é conhecida a ampliação desse debate para (colonial) mal-resolvida. Marcos de urn passado de expropriação
alern dos clássicos direitos civis. sociais e políticos. Em fins do colonial, de mentalidade mcrndonlsla, interferem nas relações
seculo XX, vários grupos sociais se mobilizaram para assegurar trabalhistas, na ordem social competitiva, ou seja, reproduzern-
seus direitos. Nesse movimento, estão as minorias, as rnulheres, se essas relações no presente. Fernandes (1914, p. 35) afirma
os negros, os homossexuais e outros qLle, graças à sua luta, qLle essa realidade "lembra mais a simetria colonizador versus
conseguiram garantir aparatos legais de proteção que, em alguns colonizado que a empresário capitali sta versus assalariado".
casos, são letra morla. Asociedade brasileira e ulra sociedade de classes que só
funciona corno tal para os "mais iguais", ou seja, para as classes

,172 Daysi Langc Altrchc (o13.)


Universidade e miedade: visôrx cftr um Brasilem r:onstruc;lo 173 I
altas e medias o social continua sendo uma questão de polícia RADLTNZ, Roberto. Concepções de cidadania nr-im país desigual. In:
(greves, sindicatos, pobreza, analfabetisrno, sem-terra, etc.), BILHÃO, Isabel. Visões do Brasil: realidade e perspectivas. Caxias
do Sul: Educs,2003.
negando-se, com isso, a possibilidade de ser cidctdão à maioria
dos brasileiros.
O Estado de Direito, a prática da cidadania, é uma Sites:
possibilidade muito recente da Constituição de 1988. O povo <http://clippingrnp.planejamento.gov.br/cadastros/notlçiasl201l l5l4l
brasileiro, solapado por rnandos e desmandos em celx anos de miseraveis-sornarn- 1 6-2-milhoes-no-pais>. Acesso em: 30 jun. 20 I 1 .
República, precisa auradurecer em termos de defesa de seus
direitos e lutar, consciente, por uma realidade em que os direitos
sejam considerados direitos e não favores daqueles que ocupam Vídeos
cargos dirigenles. CIDADE DOS HOMENS O cunhado do cara. Rio de Janeiro: Rede
Globo,2005.

FURIADO, Jorge. Ilha das Flores. Brasil, 1989, 13min - Ctutas Gaúchos.

REFERÊNCIAS

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1985.

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uma época. In: MÜLLER, Telmo Lauro (Org.). Nacionalização e
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174 Da),si Lantse Alberte (org.) Universidade e «iedade: visôes cle um Brasil em construção
l17sl

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