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UMA LEITURA DOS DIREITOS SOCIAIS EM CAPITÃES DE AREIA

A DISCUSSION OF SOCIAL RIGHTS IN CAPITÃES DE AREIA

Lusia Ribeiro Pereira


Débora Elisa Marinho de Oliveira

RESUMO

A produção do conhecimento no Direito não pode se restringir à regulação social, a um


ato de reprodução do conhecimento. É necessário que o aluno do curso de Direito deixe
de ser espectador do seu processo de construção de conhecimento e se torne sujeito, no
sentido de transformar e redefinir o Direito na sociedade. Nesta perspectiva, a
aproximação entre Direito e Literatura é apontada por muitos como possibilidade de
qualificar a visão dos acadêmicos de Direito. A literatura é produto cultural de seu
tempo e, portanto, instrumento de interpretação e reflexão do mundo, que possibilita
recriar a visão do homem sobre ele mesmo e pode oferecer algo além do senso comum
sobre a realidade. A relação entre Direito e literatura pode ser representada de três
modos: Direito da Literatura, Direito como Literatura e Direito na Literatura. O artigo
se propõe a uma leitura do direito social na obra “Capitães de areia”, de Jorge Amado.
O romance contrasta a sensibilidade e humanidade das crianças com a desonestidade
das classes dominantes, representada pela burguesia, pela Igreja e o próprio Estado.

PALAVRAS-CHAVES: DIREITO E LITERATURA. JORGE AMADO. CAPITÃES


DE AREIA. DIREITO SOCIAL

ABSTRACT

The production of knowledge in law can not restrict the social regulation, an act of
reproduction of knowledge. It is necessary that the student's course of law ceases to be a
spectator of his process of constructing knowledge and become subject, to transform
and reshape the law in society. From this perspective, the rapprochement between law
and literature is identified by many as able to qualify the view of scholars of law. The
literature is cultural product of its time and therefore tool of interpretation and reflection
of the world, which enables recreate the vision of man about himself and can offer
something beyond common sense about reality. The relationship between law and
literature can be represented in three ways: Right of Literature, Law and Literature and
Law in Literature. The article aims to a reading of the law in social work "Captains of


Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF
nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

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sand" by Jorge Amado. The novel contrasts the sensitivity and humanity of children
with the dishonesty of the dominant classes, represented by the bourgeoisie, the Church
and the state itself.

KEYWORDS: LAW AND LITERATURE. JORGE AMADO. CAPITÃES DE


AREIA. SOCIAL LAW

Direito e Literatura: a construção de um diálogo

Conhecer é o ato pelo qual um sujeito apreende um objeto de acordo com sua realidade,
esta entendida como o tempo social onde os sujeitos estão inseridos, e a partir da qual
são feitas as indagações que impulsionam a busca de novos conhecimentos e o
significado destes, portanto, o ponto de partida da produção do conhecimento é a ação
reflexiva sobre a realidade, utilizando de informações teóricas já produzidas, mas
questionando-as e desdogmatizando-as.

Compreender essa dimensão do sujeito humano talvez seja o maior desafio do mundo
contemporâneo. Produzir um conhecimento através da leitura e análise de outros sinais
e símbolos; de outros gestos e olhares; de outras histórias contadas e recontadas; de
outros pontos de vistas; de outros lugares do conhecimento; do dito e interdito; do
permitido e proibido. De outros arquivos que possam ser desvelado a partir de outras
perguntas, de uma outra maneira de reordenar as perguntas relativizando o campo da
objetividade do que se sabe e se conhece com a subjetividade do que se quer conhecer e
de quem se propõe a conhecer. A singularidade e a multiplicidade do objeto a ser
conhecido e do sujeito cognoscente.

A produção do conhecimento no Direito não pode se restringir à regulação social, a um


ato de reprodução do conhecimento. Deve ser antes a construção de novas formas
críticas de pensar o ordenamento jurídico, as relações de cidadania, os princípios ético-
jurídicos, num determinado tempo e espaço.

É necessário que o aluno do curso de Direito deixe de ser espectador do seu processo de
construção de conhecimento e se torne sujeito, no sentido de transformar e redefinir o
Direito na sociedade.

Nesta perspectiva, a aproximação entre Direito e Literatura é apontada por muitos como
possibilidade de qualificar a visão dos acadêmicos de Direito, já que a literatura é
produto cultural de seu tempo e, portanto, instrumento de interpretação do mundo, que
possibilita recriar a visão do homem sobre ele mesmo e pode oferecer algo além do
senso comum sobre a realidade. Um curso de Direito que se pretenda contemporâneo
não poderá ignorar esta nova face da interdisciplinaridade.

Além do apego aos dogmas, o Direito também tem um caráter dinâmico, que permite
que as significações sócio-históricas sejam reconstituídas. Enquanto algumas
percepções do social se tornam obsoletas, novas interpretações da lei são criadas. É o
imaginário social agindo diretamente no direito instituído.

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A literatura é uma forma de apreensão da realidade social. A partir da estrutura de
construção do texto literário que trabalha com a subjetividade do real, pode-se
apreender a produção de sentido colocado pelo autor, sujeito social de um determinado
tempo e lugar, e a trama de seus personagens também sujeitos sociais, geográfica e
temporalmente constituídos. Assim, na narrativa literária é possível depreender relações
político-sociais, representações jurídicas que vão para além do imediato proposto e
observável de forma objetiva. A narrativa literária trabalha com a dimensão subjetiva do
sujeito. E é certamente nesse aspecto que a mesma pode ser usada pelo Direito no
sentido de expandir a compreensão do que seja ético, valorativo, do que seja justo ou
injusto.

A relação entre Direito e literatura pode ser representada de três modos: Direito da
Literatura - estuda como a lei e a jurisprudência trata os fatos da escrita literária; Direito
na Literatura – objetiva analisar e teorizar questões relativas à justiça, à lei e ao poder
nas obras literárias; e Direito como Literatura - aborda conceitos da teoria literária,
como autor, narrador, descrição, narração e tempo ficcional e verifica-se em que medida
esses conceitos correspondem e contribuem na compreensão dos conceitos jurídicos.
(GALUPPO, 2008).

Uma das possibilidades de análise do Direito na Literatura está no tratamento que o


Direito e o Estado dispensam às minorias ou grupos oprimidos, como a mulher,
imigrantes, raças, religião. (SCHWARTZ). É nessa perspectiva que o ensaio sobre a
obra “Capitães de areia” de Jorge Amado procura aprender a relação entre o texto
literário e a ordem estabelecida e o princípio da liberdade social.

A obra e o autor

Quando em 1931 Jorge Amado publicou a sua primeira obra “O país do carnaval”, o
Brasil vivia tempos revolucionários. O Golpe de Estado de Getúlio Vargas (1937)
inaugurava um novo cenário político: a República Nova que veio substituir o poder
oligárquico, que defendia o interesse dos cafeicultores. Dessa transição, nada pacífica
nasce um governo autoritário: Getúlio Vargas, que concede, a si mesmo, maiores
poderes, nomeia interventores para os estado e cria a censura prévia.

Essas modificações no plano social e econômico refletem também na produção literária.


Surgiu na década de 30 uma tendência literária que retratava as condições miseráveis da
classe trabalhadora e a distância das classes sociais. Uma geração de escritores
(Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Érico Veríssimo)
comprometidos com um novo realismo que mostra o ser humano, não só integrado ao
espaço em que vive, mas por ele aprisionado:

A literatura brasileira vê surgir a arte de denúncia, o "romance proletário", a "poesia


social". Por seu caráter contestador e, mais que isto, por denunciar o conservadorismo
da literatura que idealizava as relações de classe no país, tais textos logo experimentam

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a face truculenta do poder. É lapidar nesse sentido a frase de Graciliano Ramos em
Memórias do cárcere: "começamos oprimidos pela gramática e terminamos às voltas
com a Delegacia de Ordem Política e Social". A partir da experiência da Aliança
Nacional Libertadora, em 1935, escritores, artistas, editores, jornalistas e intelectuais de
oposição passam a alvo prioritário dos órgãos de segurança.

Nunca em nossa história os intelectuais haviam se defrontado com o poder de forma tão
cabal. É sintomática a colocação de Walter Benjamin, em texto desta época, referindo-
se a uma situação que não era só européia: "a serviço de quem ficará o intelectual?"
Banida a neutralidade, restava-lhe o aconchego do poder ou o coro dos contrários.
(DUARTE).

No caso específico de Jorge Amado, a primeira fase da produção literária de 1931, ano
de lançamento de “O país do carnaval”, até “Os subterrâneos da liberdade” (1954),
temos o esquerdista, criador do romance de "formação" proletária, de uma ficção tida
como subversiva. Jorge Amado se propunha a escrever para o leitor humilde, estudante
ou trabalhador. As obras retratam as mazelas da sociedade baiana: os desmandos dos
coronéis, as relações arcaicas de trabalho, o drama dos operários e o mundo das greves.
Os heróis são oriundos das camadas populares, que adquirem consciência da opressão
que os vitimam e através da ação política sonham com uma sociedade mais justa. Os
opressores, por sua vez, são representados pelos latifundiários e burgueses.

A repressão a Amado não era gratuita. Desde o começo da década, o autor vinha se
notabilizando pela contestação em livros como Cacau, Suor, Jubiabá e Capitães da
areia, em 1937. Os dois primeiros, referências explícitas ao mundo do trabalho; os dois
últimos, à marginalidade social urbana. Em todos eles temos o avesso da literatura
"sorriso da sociedade" - expressão utilizada para definir a produção do tipo "água com
açúcar" que pontificara entre nós no período da Belle Époque. O romance amadiano
volta-se para a base do edifício social e joga luz sobre suas margens e desvãos, para ali
descobrir/construir o humano. O centro das narrativas é a representação do outro, seja
de uma perspectiva de classe, de gênero ou de etnia. O que nelas se vê tencionado é o
drama de seres a princípio incompletos, irrealizados enquanto cidadãos, mas que saem -
ousam sair - para enfrentar a adversidade provinda de uma estrutura econômica, política
e ideológica herdada do passado colonial. Mais que isto: seres que realizam nesse
enfrentamento a sua formação como agentes sociais. Indivíduos como o Sergipano de
Cacau, a Linda, de Suor, ou o Balduíno de Jubiabá: personagens cujos gestos e falas não
apenas se inserem nas lutas históricas de seu tempo, mas que pretendem, mais que isto,
propor uma pedagogia da indignação e do confronto, na linha do "herói positivo" da
literatura socialista da época. (DUARTE).

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É preso, perseguido e exilado. É do presídio que assiste à publicação de “Mar morto”
(1936). Detido novamente em 6 de novembro de 1937, é informado na prisão da queima
pública de seus livros, entre os quais “Capitães da areia”, apesar do sucesso de público e
de crítica, a obra foi proibida de circular e recolhida em escolas, bibliotecas e livrarias.

Na segunda fase Jorge Amado passa a escrever o que Gomes (1996) chama de “crônica
de costumes”: “Gabriela cravo e canela”, (1958); “Dona Flor e seus dois maridos”
(1967) dentre outras. Retira o foco das lutas pela posse de terras, de classes e passa a
registrar humoristicamente os hábitos e costumes do povo baiano.

Jorge Amado foi o romancista mais lido da história brasileira, assim como um dos mais
admirados e criticados:

Ele foi o primeiro grande escritor a fazer a opção preferencial pelo leitor, não pela
crítica; pelo povo, não pela elite. Nunca chegou a ser totalmente perdoado por isso.
Sempre houve quem torcesse o nariz para um certo cheiro que emanava de seus
romances: de mistura de raças, de miscigenação e sincretismo. (VENTURA).

Jorge Amado temperou seus romances com advogados corruptos, desenhando uma
justiça melindrosa, comprada pelos “caxixes”, termo que identifica o suborno na obra
Terras do sem fim (1943).

Em “Capitães de areia” o escritor retrata as diferenças de classes, a má distribuição de


renda e denuncia um sistema perverso que marginaliza e discrimina crianças e
adolescente na década de 30, no entanto, transcorridos 71 anos de sua primeira edição, a
repressão a qual os menores foram submetidos não conseguiu interromper o caminho
dessa história de marginais. Os meninos passaram de "dominados" a "excluídos”.
(DUARTE).

Mesmo com a promulgação da Constituição de 1988 e do Estatuto da Criança e do


Adolescente de 1990, que garantem às crianças e adolescentes direitos fundamentais
como saúde, alimentação, educação, dignidade, lazer dentre outros, a situação do menor
de rua ganhou nos últimos anos uma dimensão ainda mais grave, como por exemplo, o
envolvimento com o uso e tráfico de drogas e a prostituição infantil. Assim como,
ainda hoje é freqüente denuncias de abusos e maus-tratos nas casas da Fundação
Estadual do Bem-Estar do Menor.

Os problemas sociais persistem em função de ainda não se ter conseguido minimizar as


desigualdades econômicas, dificultando o cumprimento das garantias previstas na
Constituição, e um efetivo Estado Democrático de Direito.

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Os donos da cidade...

“Capitães de areia” narra o cotidiano de crianças pobres que vivem num velho trapiche
na cidade de Salvador. Os heróis são meninos de rua liderados por Pedro Bala (filho de
mãe desconhecida e pai morto em movimento grevista), pequenos bandidos que na
verdade são vítimas de uma sociedade que os oprime: “Havia, é verdade, a grande
liberdade das ruas. Mas havia também o abandono de qualquer carinho, a falta de todas
as palavras boas [...]. A alegria daquela liberdade era pouca para a desgraça daquela
vida.”. (AMADO, 1979, p. 34).

O romance contrasta a sensibilidade e humanidade das crianças com a desonestidade


das classes dominantes, representada pela burguesia, pela Igreja e o próprio Estado.

Apesar do retrato cruel de uma realidade que leva ao crime e à marginalização, há uma
utopia na obra: os personagens a princípio incompletos, irrealizados enquanto cidadãos
ousam sair da condição de humilhados e desfavorecidos para enfrentar a adversidade
provinda de uma estrutura econômica, política e ideológica:

Que adianta a vida da gente? Só pancada da polícia quando pegam a gente. Todo mundo
diz que um dia pode mudar [...] Agora vou mudar minha [...] Vou estudar com um
pintor no Rio. [...] Um dia vou mostrar como é a vida da gente...Faço o retrato de todo
mundo...[...]. (AMADO, 1978, p.200).

João José o “Professor” tornou-se um pintor famoso, sua arte representava a realidade
da sua infância. Através da superação reescreveu a sua história. Assim como Pedro
Bala: de líder de meninos de rua à líder sindical. Nega às classes dominantes, as
desigualdades e os abusos do Estado, e a partir dessa negação se constrói como sujeito
de seu tempo.

Do trapiche às mansões: o confronto das classes sociais

Os confrontos das classes sociais é pano de fundo da narrativa em “Capitães de areia”.


De um lado, os meninos de rua: “Vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados,
agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro,”. (AMADO, 1978, p.27).
Do outro, os burgueses aprisionados em suas mansões. Donos do dinheiro, de bens
materiais e das forças policiais.

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A miséria das crianças é representada pela pobreza do trapiche que “Durante anos foi
povoado exclusivamente pelos ratos [...] que o habitava como senhores exclusivos.”.
(AMADO, 1978, p.20), por ser um espaço aberto e receptivo, é símbolo de liberdade,
enquanto as mansões, geralmente cercadas por grades, são espaços desumanos que
confinam seus moradores.

Segundo Álvaro Cardoso Gomes, Jorge Amado altera o sentido de propriedade:

São os pobres, os deserdados da sorte que possuem a cidade mágica na Bahia, porque só
eles é que são capazes de admirar sua beleza secreta, seus mistérios e responder à sua
voz, ao passo que, para as classes elevadas, a cidade não passa de um espaço físico, frio
e desumanizado, onde exercem seu falso domínio. (GOMES, 1998, p.87).

Neste conflito de classe, a ideologia burguesa era legitimada pelos representantes do


Poder Judiciário, apoiada pelo clero e propagada pela mídia:

A polícia tem o papel de cão-de-guarda das classes dominantes e, por isso mesmo,
ostensivamente se presta a expurgar do sistema social todos aqueles que possam
representar ameaça à manutenção da ordem. Esse comportamento repressivo da polícia
pode ser visto na visão crítica que o narrador tem dela e, mais especificamente, em
certas cenas em que se mostra o autoritarismo, como a da prisão forjada de Pedro Bala e
a do reformatório. (GOMES, 1998, p.78).

A Igreja está a serviço dos poderosos, e por eles é mantida, despreza as classes
humildes, à exceção do padre José Pedro: “Era mesmo um dos mais humildes entre
aquela legião de padres da Bahia. Em verdade fora cinco anos operário numa fábrica de
tecidos, antes de entrar para o seminário.[...].” (AMADO, 1978, p.645). Padre José era
nobre por ter sido operário, por ser “homem do povo”, vive para defender o povo.

A imprensa, por sua vez, tendenciosa e maniqueísta exige ações contra os “pequenos
criminosos”, que tiram o sossego do cidadão honesto:

Já por várias vezes o nosso jornal, que é sem dúvida o órgão das mais legítimas
aspirações da população baiana, tem trazido noticias sobre a atividade criminosa dos
"Capitães da Areia", nome pelo qual é conhecido o grupo de meninos assaltantes e
ladrões que infestam a nossa urbe. Essas crianças que tão cedo se dedicaram à tenebrosa

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carreira do crime não têm moradia certa ou pelo menos a sua moradia ainda não foi
localizada. Como também ainda não foi localizado o local onde escondem o produto
dos seus assaltos, que se tornam diários, fazendo Jus a uma imediata providência do
Juiz de Menores e do Dr. Chefe de Polícia. (AMADO, 1979, p.10).

O “Jornal da Tarde” convoca ações enérgicas do chefe da polícia e do Juizado de


Menores para extinguir os que se dedicavam “à tenebrosa carreira do crime”. Aponta a
causa dessa vida de criminalidade: “naturalmente devido ao desprezo dado à sua
educação por pais pouco servidos de sentimentos cristãos”. (AMADO, 1978, p.10).
Assim como a solução: “o que se faz necessário é uma urgente providência da polícia e
do Juizado de Menores no sentido da extinção desse bando, e para que recolham esses
precoces criminosos [...], aos institutos de reforma de crianças ou às prisões.”.
(AMADO, 1978, p.10).

“Cartas à redação” continua com a compilação de cinco cartas em resposta à


repercussão da matéria. Nas cartas do chefe de polícia (em resposta redigida pelo
secretário) e do Juiz de menores, há uma discussão quanto a quem caberia a
responsabilidade da iniciativa com relação ao “bando de crianças delinqüentes”.
(AMADO, 1978, p.14). Mas as diferentes opiniões em grande parte são atenuadas com
os tributos feitos pelo juiz àquele que o mencionara; dessa forma, a saudação ao
“patrício” Dr. Chefe de Polícia do Estado, igualmente empregada ao “patrício” Sr.
Diretor do Jornal da Tarde, enfatiza o reconhecimento entre os que se aproximam não
por serem conterrâneos, e sim por sobressaírem como senhores distintos e cordiais, ao
menos aparentemente, entre si. (NAKAGAWA, 2005).

O “Jornal da Tarde” não poupa elogios a estes ilustres cidadãos. Por outro lado, são
transcritas as cartas “de uma mãe, costureira” (AMADO, 1978, p.17) e do padre José
Pedro (AMADO, 1978, p.18), além de apenas ocuparem os espaços internos do caderno
jornalístico, sem direito aos “clichês” ou comentários comuns nas páginas principais,
ambos têm suas denúncias aos maus tratos no reformatório questionadas. No texto da
“mãe costureira”, ao manter as incorreções na escrita da denunciante, o jornal reduz a
sua credibilidade, além de frisar a sua diferença social. (NAKAGAWA, 2005). Por
contrariar o ponto de vista do jornal sobre as possíveis causas da delinqüência infantil, a
carta do padre José Pedro recebeu um título pejorativo: “Será verdade?”.

A última carta decorre das críticas ao Reformatório Baiano de Menores Delinqüentes e


Abandonados. O diretor dirige-se ao “Exmo. Sr. Diretor”, retornando a conversa entre
os pares de um grupo, com o emprego de honrarias exageradas aos colegas como “rútila
inteligência” e pejorativas para os demais “mulherzinha do povo”, “padre do demônio”.
(NAKAGAWA, 2005). Nega as acusações e faz um convite à redação do Jornal para
uma visita “previamente agendada” ao reformatório.

O capítulo termina com uma reportagem elogiosa à instituição, destacando a


improcedência da acusação: “o reformatório baiano é uma grande família – onde
deviam estar os Capitães de areia”. (AMADO, 1978, p.21).

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Vítimas ou pequenos criminosos?

A violência que os “Capitães de areia”, praticam é inscrita no texto quase sempre como
justa e, mesmo, necessária - uma resposta à violência econômica sofrida e transformada
em agressão quando praticada pelo aparelho repressivo (Estado), violência que lhes
priva de experimentar a cidadania plena.

A concepção estatal de formar cidadão é sinônimo de reformar:

Certa vez, uma reportagem nossa desfez um círculo de calúnias jogadas contra aquele
estabelecimento de educação e seu diretor. Hoje, ele se achava na polícia esperando
poder levar consigo o menor Pedro Bala. A uma pergunta nossa, respondeu: -Ele se
regenerará. Veja o título da casa que dirijo; “Reformatório”. Ele se reformará.
(AMADO, 1978, p.173).

O Reformatório representa o próprio Estado. Pedro Bala durante a breve passagem


nessa instituição experimentou a grandeza dos métodos “educativos”: “Agora davam-
lhe de todos os lados. Chibatadas, socos e pontapés. O diretor do Reformatório
levantou-se, sentou-lhe o pé, Pedro Bala caiu do outro lado da sala”. (AMADO, 1978,
p.174).

O capítulo “Reformatório” é um retrato fiel e crítico da atuação dos Reformatórios


criados na década de 30-40. Com objetivo de proteção e assistência ao “menor”
pretendiam, respaldadas nas leis que as legitimaram, como o Código de Menores, de
1926, “recuperar os menores”. Sobre o real papel destas instituições descreve Irene
Rizzini citada por Cabral e Souza:

O que ocorria na prática era nada mais que o recolhimento de crianças nas ruas por meio
de um aparato policial repressivo e punitivo e o encaminhamento delas às inúmeras
instituições criadas nas décadas de 1930 e 1940. Em 1941, numa tentativa de centralizar
a assistência ao “menor”, o Governo Vargas criou o Serviço de Assistência ao Menor –
SAM –, que, rodeado por princípios e propostas modernas como educação e formação
profissional para atuar no “combate à criminalidade e na recuperação de delinqüente”,
na realidade revelou-se uma instituição na qual se praticavam abusos e corrupção tais
que lhe renderam a fama de “escola do crime”, “sucursal do inferno”, “sem amor ao
menor” entre outras denominações .

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No discurso de proteção à infância, no entanto, estava embutida a proposta de defesa da
sociedade: “defesa contra a proliferação de vagabundos e criminosos [...] que não
correspondiam ao avanço das relações capitalistas em curso” (RIZZINI apud
CABRAL;SOUZA, 2004, p. 81).

O Decreto n. 17.943-A de 1927 consolidava as leis de assistência e proteção aos


menores, buscando sistematizar a ação de tutela e coerção, que o Estado passou a
adotar, o que consolidou, na esfera legal, o olhar específico para o problema social
emergente da infância e da adolescência: os “menores” passaram a ser definidos, assim,
como “delinqüentes” (efeito do problema social) e “abandonados” (causa do problema
social). A uma nítida criminalização, da infância pobre, caracterizada como
“abandonada” e “delinqüente”. (CABRAL; SOUZA, 2004, p.80). Verifica-se ser o
mesmo conceito de infância pobre explicitado na reportagem “Crianças ladronas” do
Jornal da Tarde, em “Capitães de areia” citado no tópico anterior deste trabalho.

Jorge Amado encarna essa concepção do “menor infrator” na explicação do


comportamento criminoso de Pedro Bala pelo diretor do reformatório ao bedel,

É o chefe dos tais Capitães de areia. Veja... o tipo do criminoso nato. É verdade que
você não leu Lombroso... mas se lesse conheceria. Traz todos os estigmas do crime na
face. Com esta idade já tem uma cicatriz. Espie os olhos... Não pode ser tratado como
qualquer... vamos lhe dar honras especiais... (AMADO, 1978, p.175).

O Diretor apela à doutrina do criminologista italiano Cesare Lombroso[1] para explicar


a índole criminosa de Pedro Bala. O destino do chefe dos “Capitães de Areia” está
traçado desde sempre, e ao Estado resta usar o seu direito de coerção (moral e física)
para garantir a paz dos cidadãos de bem.

“Canção da Bahia, canção da liberdade” é a última parte do romance, e um de seus


capítulos, “Notícias de jornal”, traz o destino de quatro ex-integrantes do mais temido
grupo de menores baianos: Professor, Gato, Boa-Vida e Volta Sêca.

Professor tornou-se pintor famoso no Rio de Janeiro. Gato ‘O vigarista’ e Boa-Vida ‘o


malandro’ acabam se envolvendo com a polícia, “[...] como se Jorge Amado quisesse
com isso acentuar a marginalização final de algumas personagens, que jamais
conseguem se adaptar à vida em sociedade devido à falta de consciência. (GOMES,
1998, p.92).

No entanto, é o destino de Volta Seca que ganha destaque. Ele se uniu a um grupo
cangaceiro liderado por Lampião. As crueldades do ‘jovem cangaceiro’ são narradas em

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detalhes. A notícia de sua prisão esgotou a edição do “Jornal da Tarde” que descrevia
seu semblante como “rosto de criminoso nato”. (AMADO, 1979, p.276). No
julgamento, o promotor reforça a idéia de criminoso nato e desumano. Jorge Amado se
utiliza de superlativos típicos do discurso jurídico, para ironizar a fala do promotor e
quando se refere às lágrimas dos jurados e do juiz.

[...] belíssimo, vibrantíssimo e apaixonadíssimo [...], que fizera is jurados chorar, e até o
próprio juiz tinha limpado as lágrimas, ao descrever o Dr. Promotor com sublime força
oratória, o sofrimento das vítimas do feroz cangaceiro menino. O público ficou
indignado porque Volta Sêca não chorou durante o júri. Seu rosto sombrio estava cheio
de estranha calma. (AMADO, 1979, p.277).

Mas, a literatura de Jorge Amado não é uma distopia, muito pelo contrário, ele
acreditava no poder de superação do sujeito a partir de sua consciência como cidadão e
de seu papel na história. No entanto, como sair da condição de marginalizado à cidadão?

Uma questão de cidadania

Jorge Amado acreditava que para haver cidadãos conscientes nas camadas subalternas,
era necessário, em primeiro lugar, haver leitores. “O passo seguinte consiste em fazer do
texto um paradigma de inconformismo, uma espécie de escola de cidadania.”.
(DUARTE). É nessa perspectiva que se pode apreender o personagem João José, ele
figura como síntese da utopia amadiana da leitura na construção de um mundo novo a
partir do gesto de ler e narrar:

João José, o Professor, desde o dia em que furtara um livro de histórias numa estante de
uma casa da barra, se tornara perito nesses furtos. Nunca, porém, vendia os livros, que
ia empilhando no fundo do trapiche, sob tijolos, para que os ratos não os roessem. Lia-
os todos numa ânsia que era quase febre. Gostava de saber coisas e era ele quem, muitas
noites, contava aos outros histórias de aventureiros, de homens do mar, de personagens
heróicos e lendários. Era o único que lia corretamente entre eles e, no entanto, só
estivera na escola um ano e meio. Mas o treino diário da leitura despertara
completamente sua imaginação e talvez fosse ele o único que tivesse uma certa
consciência do heróico de suas vidas. (AMADO, 1978, p.29).

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Com ele, ler e narrar tornam-se atitudes políticas: “os volumes roubados e empilhados
entre tijolos metaforizam a construção da consciência e do edifício da cidadania entre os
pobres”. (DUARTE).

Mas é em Pedro Bala que Jorge Amado revela a sua crença na força do homem de
construir um mundo mais justo e humano, através da luta e da ação. O jovem ladrão
transforma-se um ativo líder proletário. O sofrimento, a vida em desamparado são
condições básicas para a formação do caráter do jovem herói que, no final do romance,
já conscientizado, se põe a contestar as estruturas do sistema social.

Anos depois os jornais de classe, pequenos jornais, dos quais vários não tinham
existência legal e se imprimiam em tipografias clandestinas, jornais que circulavam nas
fábricas, passados de mão em mão, e que eram lidos à luz de fifós, publicavam sempre
notícias sobre um militante proletário, o camarada Pedro Bala, que estava perseguido
pela policia de cinco estados como organizador de greves, como dirigente de partidos
ilegais, como perigoso inimigo da ordem estabelecida.

No ano em que todas as bocas foram impedidas de falar, no ano que foi todo ele uma
noite de terror, esses jornais (únicas bocas que ainda falavam) clamavam pela liberdade
de Pedro Bala, líder da sua classe, que se encontrava preso numa colônia.

E, no dia em que ele fugiu, em inúmeros lares, na hora pobre do jantar, rostos se
iluminaram ao saber da notícia. E, apesar de que fora era o terror, qualquer daqueles
lares era um lar que se abriria para Pedro Bala, fugitivo da polícia. Porque a revolução é
uma pátria e uma família. (AMADO, 1978, p.235).

Também podemos dizer que a bandeira do líder dos Capitães de areia é a síntese da
obra: uma luta contra a injustiça social e a opressão, que permita o pleno exercício dos
direitos individuais e sociais.

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REFERÊNCIAS

ABDLA JÚNIOR Benjamin. Movimentos e estilos literários. São Paulo: Scipione,


1995.

AMADO, Jorge. Capitães de areia. 44.ed. Rio de Janeiro: Record, 1978.

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[1] Adepto da Escola Positiva de Direito Penal, que relacionava certas características
físicas, tais como o tamanho da mandíbula à psicopatologia criminal, ou a tendência
inata de indivíduos sociopatas.

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