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JUNIOR
“ON EARTH SHALL ALWAYS LIVE THE MOST STRONG”: THE RIGHT OF
VIEIRA JUNIOR
Resumo: O presente artigo aborda a relação entre o ser humano e a terra por meio do método
Direito e Literatura tendo como eixo central a obra Torto Arado – do baiano Itamar Vieira
Junior – e partindo da concepção da pluralidade de formas de ser e de viver dos sujeitos na
construção de um Direito que vá além dos preceitos hegemônicos. Isto posto, tendo a
narrativa literária como referencial, inicialmente se discutirá as representações do paradigma
da questão agrária brasileira presentes na obra; num segundo momento, será analisado como
essa pauta tem sido tratada historicamente, ressaltando os desafios, lutas e enfrentamentos
vividos pelas populações rurais e como o Direito pode ser um obstáculo à concretização dos
direitos humanos fundamentais; por fim, trará à baila o debate sobre a pluralidade de
significados das relações ser humano-terra e a importância de contemplar tais possibilidades
na construção do bem comum, sem olvidar de refletir sobre um (novo) Direito, apto a
fortalecer os direitos humanos e contribuir genuinamente para a efetivação da justiça social no
campo. Trata-se de pesquisa exploratória desenvolvida por meio, principalmente, de consulta
e revisão bibliográfica e documental, cujos dados serão objeto de análise qualitativa.
Palavras-chave: Direito de acesso à terra; Bem comum; Direito; Literatura; Questão agrária.
Abstract: This article addresses the relationship between human beings and the land through
the method of Law and Literature, with the central axis of the work Torto Arado - by the
Bahian Itamar Vieira Junior - and starting from the conception of the plurality of ways of
being and living of the subjects in the construction of a Law that goes beyond the hegemonic
precepts. That said, taking the literary narrative as a reference, initially we will discuss the
representations of the paradigm of the Brazilian agrarian question present in the work; in a
second step, it will be analyzed how this agenda has been treated historically, highlighting the
challenges, struggles and confrontations experienced by rural populations and how the Law
can be an obstacle to the realization of fundamental human rights; finally, it will bring up the
debate on the plurality of meanings of human-land relations and the importance of
contemplating such possibilities in the construction of the common good, without forgetting
to reflect on a (new) Right, able to strengthen human rights and genuinely contribute to the
realization of social justice in the countryside. It is an exploratory research developed through,
mainly, consultation and bibliographic and documentary review, whose data will be the object
of qualitative analysis..
Keywords: Access to land; Agrarian issue; Common good; Law; Literature;
INTRODUÇÃO
Livre no meu ofício, eu gosto de cantar o Brasil caboclo,
tão longe de tudo aqui. E eu canto esse Brasil como quem
faz uma prece para que ele resista, apesar da mão do
progresso vazio que insiste em dizimá-lo; e para que suas
modas de viola, com seu encantamento, ainda por muito
tempo façam vibrar nossos corações...
(Maria Bethânia)1
travadas desde muito tempo por povos constantemente subjugados e violados nas suas
dignidades. De igual modo, a luta pela terra e pelo território sempre compôs a centralidade
subalternizadas e atacadas nos seus modos de ser e viver enquanto sujeitos: tendo em conta o
meio dos grandes latifúndios nas mãos de poucos proprietários, tudo o que fosse de encontro a
estranheza. Diante disso, o paradigma atual aparente é o de um presente mal resolvido com o
passado, seguido pelos grilhões das correntes, pela exploração e pela miséria.
No entanto, formas de luta pela reconfiguração destes espaços têm ganhado fôlego e
o que se percebe é que a arte, mais do que nunca, perpassa a política e – consequentemente –
a luta por direitos. Nesse sentido, Torto Arado2, por meio da construção – ainda que literária e
privação do acesso à terra pelas camadas mais pobres da população e a exploração do seu
trabalho para a acumulação de riquezas, traz ao público uma ferramenta eficaz de reflexão
mundo.
Ademais, diante das relações e disputas sociais cada vez mais complexas, refletir o
Direito no seu papel mediador e administrador destes conflitos tem sido um grande desafio
aos juristas deste tempo, diante do qual o estudo do Direito através da Literatura tem se
efetividade, etc.: a aproximação do campo jurídico à narrativa literária permite também que
seus operadores assimilem a capacidade criadora, crítica e reflexiva que a literatura respira,
podendo superar alguns de seus limites intrínsecos, assim como aqueles impostos pelo senso
comum teórico pautado pelo tecnicismo, pelo positivismo engessado e pela dogmática
entre o ser humano e a terra – especificamente no contexto do Brasil – tendo por base a obra
Torto Arado de Itamar Vieira Júnior4, por meio da qual se pretende explorar os limites do uso
tal, primeiramente será analisada a obra literária como um todo, a fim de ressaltar quais as
indagações são apresentadas no que tange ao assunto no decorrer da trama; num segundo
3
É importante ressaltar a fala de Raquel Barradas de Freitas (1990, p. 22-23), sobre a diversidade axiológica do
Direito e sua importância no desenvolver de suas múltiplas faces, na medida em que “a relação entre o Direito e
a Literatura [...] é não só concebível como desejável, numa fase interparadigmática de busca, como a que se
nos apresenta neste momento. O Direito apresenta-nos, hoje, desafios cuja resolução se não basta já com os
modelos puramente legalistas, de concepção do jurídico e também da realidade social”.
4
VIEIRA JUNIOR, 2019.
momento, será urdida uma análise crítica acerca do papel Direito na construção destas
enfrentamento; ao final, será trazida à baila a variedade de concepções de bem comum e sua
relação com a luta e o acesso à terra e à territorialidade numa perspectiva não hegemônica,
caminhos com vistas à concretização dos direitos humanos fundamentais e da justiça social.
Itamar Vieira Junior abre Torto Arado com uma passagem de Lavoura arcaica de
Raduan Nassar em epígrafe – “A terra, o trigo, o pão, a mesa, a família (a terra); existe neste
ciclo, dizia o pai nos seus sermões, amor trabalho, tempo” 5– que traduz em poucas palavras a
complexidade que a relação entre o ser humano e o seu meio de vida pode tomar: muito além
do trabalho visando o lucro, a terra para outros sujeitos pode adquirir um valor muito mais
trama que, ainda que lançada tão recentemente no Brasil – em 2019 – já sugere a posição de
concentração da propriedade da terra, por outro, tais questões ainda se mostram distantes de
deixara suas marcas de desumanização nas relações sociais daquele meio, desconsiderando
totalmente as vivências do povo que habitava àquele espaço, como num momento da trama
são descritas as pretensões de um novo senhor que acabara de adquirir a propriedade de Água
Negra: “Em nenhum dos seus planos o povo de Água Negra tinha lugar. Eram meros
trabalhadores que deveriam ser deslocados para dormitórios. Deveriam viver longe da fazenda
basicamente se vive o dilema entre ser livre para trabalhar ou trabalhar para ser livre – que
ademais é agravado pela condição de pobreza e miséria imposta a estes sujeitos socialmente
abandonados: “não havia lugar para o trabalhador que considerasse a liberdade como negação
do trabalho; mas apenas para o trabalhador que considerasse o trabalho como uma virtude de
liberdade”9. Por mais que os senhores de terras não tivessem autoridade formal sobre os
exploração do trabalho fosse de alguma maneira legitimada tanto pelo fazendeiro quanto
O gerente queria trazer gente que ‘trabalhe muito’ e que ‘não tenha medo de
trabalho’ [...]. Podia construir casa de barro, nada de alvenaria, nada que demarcasse
o tempo de presença das famílias na terra. Podia colocar roça pequena para ter
abobora, feijão, quiabo, nada que desviasse da necessidade de trabalhar para o dono
da fazenda, afinal, era para isso que se permitia a morada. Podia trazer mulher e
filhos, melhor assim, porque quando eles crescessem substituiriam os mais velhos.
[...] Vi meu pai dizer para o meu tio que no tempo de seus avós era pior, não podia
barracão10.
paradoxal: a todo o momento é narrada a labuta daquela gente diante da aridez, da falta de
personagens e narradoras principais, “um tanto maltratadas pelo sol e pela seca. Pelo trabalho
árduo, pelas necessidades que passávamos” 11, mas também, e ao mesmo tempo, a terra é
chovia, tinha terra boa, que, ‘olha’, abria os braços mostrando a roça e o quintal, mostrando a
mata ao redor deles, ‘aqui não nos falta nada’” 12, sem distanciar, contudo, a herança colonial
É também Bibiana que entra em detalhes sobre as dificuldades vividas pelo seu povo
nas profundezas deste Brasil tão controverso, ora belo e poético, ora bastante e cruel com os
seus – “As crianças eram as que mais padeciam: paravam de crescer, ficavam frágeis e por
qualquer coisa caíam doentes. Perdi as contas de quantas não resistiram à má alimentação e
privados da sua menor dignidade e à mercê do próprio abandono, envoltos por uma paisagem
10
VIEIRA JÚNIOR, 2019, p. 41.
11
ibid., 2019, p. 119.
12
Ibid., 2019, p. 41.
13
A obra literária traz uma passagem emblemática que ilustra muito bem esta situação: “Quando deram a
liberdade aos negros, nosso abandono continuou. O povo vagou de terra em terra pedindo abrigo, passando
fome, se sujeitando a trabalhar por nada. A mesma escravidão de antes fantasiada de liberdade. Mas que
liberdade? Não podíamos construir casa de alvenaria, não podíamos botar a roça que queríamos. Levavam o que
podiam do nosso trabalho. Trabalhávamos de domingo a domingo sem receber um centavo. O tempo que
sobrava era para cuidar das nossas roças, porque senão não comíamos. Era homem na roça do senhor e mulher e
filhos na roça de casa, nos quintais, para não morrerem de fome” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 220).
14
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 69.
onde se ouvia muito falar que “da seca não brotava nem pasto, muito menos batata. E a secura
era tanta que nem as várzeas estavam sendo cultivadas. No leito do rio, onde não havia água,
era possível encontrar uma lama que apodrecia as sementes, de onde também não brotava
nada”15, aspectos que, apesar de serem delineados numa obra de ficção, ilustram muito bem a
realidade que uma parcela considerável de brasileiros ainda enfrenta nos dias de hoje.
contradições e disputas pela terra e pela verdadeira liberdade dos seus habitantes, que
pelas ações do personagem Severo – dos problemas que incidem principalmente sobre a
fosse repetido que estavam somente de passagem – enquanto os proprietários quase nunca são
vistos pela região, “Um dia, meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai o que era viver de
morada. Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e
trabalhado desde sempre. Por que a família Peixoto, que não morava na fazenda, era dita
terra vai tomando cada vez mais espaço na narrativa de Itamar Vieira Junior, tal situação
começa a ganhar contornos mais evidentes – principalmente – após a venda da fazenda para
novos senhores: “Os herdeiros da família Peixoto envelheceram, e os seus filhos e netos não
queriam continuar com a propriedade. [...] A família Peixoto havia herdado terra das
15
ibid., 2019, p. 85.
16
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 185.
17
ibid., 2019, p. 179.
mudanças bruscas, que interferiram significativamente no seu modo de vida, como, por
“se não pudéssemos deitar nossos mortos na Viração era porque, em breve, não poderíamos
O fôlego da luta pelos direitos daquele povo pode ser percebido no ímpeto do
enfrentada pelos seus companheiros tanto naquela fazenda quanto em outras da região,
“contando história de sindicato, de direitos, de lei. Estava levando essas conversas para os
consciência por parte dos habitantes de Água Negra que passam a enxergar que nos
predicados outrora valorosos que compunham os qualitativos daqueles moradores nada mais
havia do que uma distorção dos seus significados reais, a gente que não tinha medo de
trabalho foi se percebendo como vítima da precarização das relações laborais e como forma
de dominação dos seus senhores diante de, além da sua necessidade de sobrevivência, sua
proprietário da fazenda praticava todo tipo de coação a fim de intimidar os lavradores, “certo
dia, fomos acordados no meio da madrugada por um incêndio em nosso galinheiro” 20, mas
não houve desistência, o lavrador propôs a fundação de uma associação dos trabalhadores e as
represálias por parte do patrão seguiam no mesmo ritmo, “com frequência, também passou a
aparecer um carro de política, de onde desciam para fazer perguntas [...] o medo era grande,
18
Ibid., 2019, p. 180.
19
ibid., 2019, p. 186.
20
ibid., 2019, p. 197.
uma casa avisava a outra quando surgiam, ou se alguém demorasse a retornar para casa ou se
fosse para lugar distante”21. Entretanto, logo mais a situação chegou ao seu estopim com a
morte de Severo: “a terra seca aos seus pés havia se tornado uma fenda aberta e nela corria
um rio de sangue”22.
Por mais que seja um enredo construído numa obra de ficção, fazendo um paralelo
com uma realidade que vai além das páginas de Torto Arado, conforme levantamento de
dados feito pela organização Repórter Brasil, em 2014 foram registradas 22 fazendas com
dívidas insanáveis contraídas pelas suas próprias estadias nestas propriedades. Na mesma
toada, em 2019 a Comissão Pastoral da Terra registrou 1.833 ocorrências sobre conflitos por
terra em todo o país, envolvendo quase mil pessoas e contando com 32 assassinatos 24. Ambos
brasileiro e realçam o paradigma de uma questão agrária cujas feridas continuam abertas, e
sobre as quais Itamar Vieira Junior lança um olhar sensível e simultaneamente crítico ao
Diante disso, o Brasil que Itamar Vieira Júnior desenha pelas linhas de Torto Arado é
um Brasil ficcional, mas não tão fictício quanto poderia ser. Ainda que a obra não possua
nenhum tipo de compromisso com o real, sua narrativa é capaz de lançar luz sobre problemas
cujas raízes estão profundamente atreladas às dinâmicas que ainda perduram nos dias de hoje
na sociedade. Ademais, muitos outros temas são pincelados pelo autor ao construir sua trama:
21
ibid., 2019, p. 198.
22
ibid., 2019, p. 199.
23
REPÓRTER BRASIL, 2014.
24
CPT, 2020.
originárias e de matriz africana, os paralelos entre a marginalização de certas populações
advindas do campo no meio rural, a violência policial presente na periferia dentre muitos
outros. Por meio de uma escrita extremamente sensível e precisa naquilo que quer contar, o
Brasil de Itamar é um Brasil sofrido e ora muito cruel, mas é, do mesmo modo, um Brasil
o Direito são as principais razões para as desigualdades entre os seres humanos. A primeira,
porque cria, sobretudo pelo seu acúmulo, desigualdades espaciais e econômicas entre as
pessoas; a segunda, porque garante, por intermédio de seus institutos e normativas, o esteio
formal para sua legitimação. Embora causticante e lastimosa, a reflexão levada a cabo pelo
genebrino segue deveras verdadeira – e atual, tal qual demonstrado em Torto Arado.
Na ordem do dever ser aprendemos que o Direito deveria se coadunar com a justiça,
cuidadosamente forjado para privilegiar alguns poucos, oprimir muitos e corroborar para a
permanência de suas desigualdades. Nessa toada, desde a invasão portuguesa, quase todas as
ao Direito Agrário que por aqui tiveram vigência – curta ou longa –assumiram como
manutenção do status quo dos donos do poder, a saber: grandes proprietários rurais,
produtores agrícolas, seus representantes – legais e/ou políticos - ou apoiadores de todo
gênero25. Assim, partindo do modelo sesmarial, passando pela Lei de Terras (1850),
Regulamento da Lei de Terras (1854), Registro de Torrens (1890), Código Civil (1916),
Brasil (1824), Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1891), Constituição
brasileira (1934), Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1937), Constituição dos Estados
em maior ou menor medida – era a mesma: firmar os privilégios de poucos, mas grandes,
Nunca faltaram leis, mas delas poucos fizeram uso ou obtiveram justiça, especialmente no
contexto agrário. Tal fato só foi objeto de algum tênue rompimento normativo, com o advento
dos amplos debates levados a cabo durante a Assembleia Nacional Constituinte (1987/88) e
nosso Direito Agrário por quase 300 anos, conseguiu, por intermédio da literatura, organizar,
à terra no Brasil, bem como as projeções (sociais e políticas) do que deveria ser e do que é
Direito tradicional. Nesse sentido, tem-se por emblemática a reflexão da personagem Bibiana
sobre a ausência de um direito justo e dos seus reflexos em torno de si e de sua gente:
(...) Se algo acontecesse a eles, não teríamos direito à casa, nem mesmo à terra onde
plantavam sua roça. Não teríamos direito a nada, sairíamos da fazenda carregando
25
MACHADO, 2018, p. 114.
deixar Água Negra, terra onde toda uma geração de filhos de trabalhadores havia
Observa-se, portanto, que Vieira não se exime de expor nas linhas e entrelinhas da sua
em face dos trabalhadores rurais. Por meio da personagem Bibiana, por exemplo, vocalizou
no trecho acima sobre o eventual destino de sua família, se porventura algo lhes acontecesse e
tivessem sua força de trabalho reduzida ou extirpada e, na citação abaixo, aclara a crueza
propriedade” e de onde não lhes restava quase nenhuma escolha ou rota de fuga, exceto a
resignação.
A família Peixoto queria apenas os frutos de Água Negra, não viviam a terra,
vinham da capital apenas para se apresentar como donos, para que não os
esquecêssemos, mas, tão logo cumpriam a sua missão, regressavam. Mas havia os
nosso)27.
Outro tópico deveras debatido por Vieira diz respeito à supressão de direitos em
desfavor dos trabalhadores rurais, inclusive dos direitos humanos mais comezinhos, como o
constante ameaça, em verdade, secular, de caráter individual e coletiva, faz parte do cotidiano
de Bibiana e dos seus, guardando efeitos imediatos, mas também se apresenta como pavor
veio o medo mais imediato da fome. Os grãos passaram a rarear, o feijão acabou
alimentos. Agora, mais que antes, seguíamos quase todos os dias para os rios para
pescar, e a cada pescaria só conseguíamos capturar peixes cada vez menores, que só
serviam para dar um gosto ao angu de farinha (VIEIRA JUNIOR, 2020, p. 67-68).
ser alienados, alheios e/ou desconhecedores de sua situação em relação aos ditos donos do
poder. Pelo contrário: sabiam quão tensas e fortes eram amarras que lhes seguravam, bem
como das possibilidades ínfimas para suplantá-las. Reconheciam, contudo, que o melhor
era a luta, inclusive, por intermédio da defesa do direito à educação, razão pela qual o
personagem Zeca Chapéu Grande, líder local e pai de Bibiana e Belonísia, persistiu tanto na
Meu pai não sabia nem mesmo assinar o nome, e fez o que estava ao seu alcance
para trazer uma escola para a fazenda, para que aprendêssemos letra e matemática.
Muitas vezes o vi tentar convencer algum vizinho que não queria que o filho fosse à
escola; até concordava que o filho fosse, mas dizia que menina não precisava
pedido fosse acatado, grande era a consideração e o prestígio que fluíam de sua
liderança28.
Por semelhante modo, é relevante destacar que Torto Arado expõe uma outra triste
realidade, ainda pouco explorada e debatida pelo Direito no contexto agrário, mas deveras
presente nas suas entranhas: as diversas espécies de violência doméstica e familiar contra a
28
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 96.
mulher29 no âmbito rural. Itamar Vieira pontua sobre o tamanho e a gravidade desse malogro
em diversas seções da obra, aclarando o quanto a violência contra a mulher está arraigada nas
relações e tem sido utilizada como instrumental potente para perpetuar as opressões no
reprodutoras dos latifúndios: “(...) Mas isso nada significava para nós mulheres da roça.
Éramos preparadas desde cedo para gerar novos trabalhadores para os senhores, fosse para as
Ou, mais especificamente, quando o livro relata os abusos praticados por Tobias, em
face de sua companheira Belonísia, que de início, eram interpretados por ela como
moral a que estava sendo submetida, percebeu o quanto aquilo tudo lhe era prejudicial e como
seria injusto consigo - e com a sua história – não enfrentar esse contexto de opressões
Tobias retornava ao fim da tarde e a primeira coisa que fazia era dar uma talagada na
garrafa de cachaça que ficava em cima da mesa. Depois tomava banho ou ia direto
se sentar à mesa para refeição. Eu parava o que estivesse fazendo para servi-lo. No
começo, parecia apreciar minha comida, sempre repetia. Depois passou a reclamar
que tinha muito ou pouco sal. Que o peixe estava cru, e me mostrava pedaços em
com as espinhas, dizendo que tinham cozido demais. Nessas horas eu ficava aflita, o
coração aos pulos, magoada comigo mesma, me sentindo uma tonta por ter sido
29
A título de exemplo, podem ser apontados os dados sobre a violência contra mulheres quilombolas constantes
em: TERRA DE DIREITOS. Racismo e violência contra Quilombos no Brasil. Disponível em:
https://terradedireitos.org.br/acervo/publicacoes/livros/42/racismo-e-violencia contra-
quilombos-no-brasil/22928. Acesso em: 10 jan. 2020.
30
SCHWARCZ, 2019, p.187.
31
Ibid., 2019, p. 129.
32
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 115.
[...]
Olhei para ao chão e vi a comida espalhada. Aquele chão onde havia curvado meu
corpo para varrer e assear com zelo. Senti raiva naquele instante, perguntei a mim
mesma quem aquele vaqueiro ordinário pensava que era. No início, encarava com
inquietação os acessos de fúria que passou a apresentar. Antes eram mais contidos.
Agora tinha perdido as estribeiras. Dali a pouco esse cavalo iria me bater igual ao
marido da Maria Cabocla. Mas eu já me sentia diferente, não tinha medo de homem,
era neta de Donana e filha de Salu, que fizeram homens dobrar a língua para se
dirigirem a elas33.
pertinente à tomada de consciência acerca das origens, das memórias e dos direitos da
comunidade enquanto quilombolas, que finda por trazer consigo uma disposição de e para o
caráter emancipatório de muitos dos seus membros. Ao entenderem-se como partes de uma
história de resistência mais ampla e com diversas ramificações, também se percebem como
Não podemos mais viver assim. Temos direito à terra. Somos quilombolas. Era um
desejo de liberdade que crescia e ocupava quase tudo o que fazíamos. Com o passar
dos anos esse desejo começou a colocar em oposição pais e filhos numa mesma
casa. (...) Queremos ser donos de nosso próprio trabalho, queremos decidir sobre o
que plantar e colher além de nossos quintais. Queremos cuidar da terra onde
[...]
Muitos nunca estiveram conformados com os interditos, mas durante muito tempo
falam em direito dos pretos, dos descendentes de escravos que viveram errantes de
um lugar para outro. Falam muito sobre isso. Que agora tem lei. Tem formas de
33
ibid., 2019, p. 121.
34
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 187.
garantir a terra. De não viverem à mercê do dono. Correndo daqui pra acolá, como
no passado35.
Por derradeiro, constata-se, a partir dos extratos de Torto Arado aqui compartilhados,
mas também da longa e conflituosa jornada entre o direito e a terra, que aquele, portanto, o
subsunção clássica muito pouco pode fazer pela concretização do justo, em sentido lato, seja
porque raramente se dispõe a compreender ou promover novos ( e críticos) olhares acerca das
questões sociais mais complexas, seja porque, historicamente, via de regra, compatibilizou-se
Entende-se, todavia, que o que pode corroborar para alguma transformação social mais
efetiva, na vida dos trabalhadores rurais e das comunidades tradicionais, guarda raízes na
própria concepção de emancipação forjada com e por aqueles sujeitos que, cônscios dos seus
desafios, se dispõem, por meio de uma implicação genuína, a trilhar uma nova história, que
As narrativas trazidas à baila nas páginas de Torto Arado - que contam a trajetória
tanto das famílias que chegaram em Água Negra, quanto dos indivíduos que já nasceram neste
território -, apesar de ficção, refletem bem sobre a história daqueles que seguem na luta pelo
acesso à terra, pelo direito de exercer a reprodução de seu modo de vida, de sua cultura, de
sua religiosidade e do seu povo sob o território que usam e ocupam. Fala-se, aqui, de povos
35
ibid., 2019, p. 212.
artesanais, camponeses, quebradeiras de coco-babaçu, comunidades de fundo e fecho de
Uma pluralidade de comunidades, espalhadas por todas as cinco regiões desse país,
com caraterísticas diversas e formas de ocupar o território próprias, que desafiam a ficção que
a terra só existe enquanto valor patrimonial, ou seja, desafiam, diretamente, a maneira como o
enquanto capital. Ao mostrar que há outras formas possíveis de ocupar à terra, sem que isto
signifique um uso predatório e que se baseia exclusivamente no lucro que pode ser auferido
através dela, estes povos se colocam no front da resistência a vários setores que servem à
deter o poder sobre o mundo rural negando não só o direito dos povos e comunidade, como
A frase derradeira da obra “sobre a terra há de se viver o mais forte” 36 se coloca como
uma proposta válida para se pensar que sob um território há várias dimensões que interagem
entre si: dimensão cultural, dimensão jurídico-política e dimensão econômica 37. E, envoltas
nestas dimensões, se estabelecem as expressões das relações de poder que existem e se põem
poder que se estabelecem em cima de determinada terra. Pode-se dizer, então, que a questão
agrária no Brasil reflete também que a forma de ocupar a terra e de exercer uma
cultural, econômica e social no meio rural e que afetam diretamente a vida no meio urbano.
36
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 262.
37
HAESBAERT, 2007.
Essas relações de poder e disputas de narrativas sobre a valoração da terra ficam
explícitas no encadeamento dos fatos tecidos por Itamar Vieira em Torto Arado. Ao longo do
romance, o autor demonstra como a família de Bibiana e Belonísia, assim como outras
famílias moradoras de Água Negra, se relacionavam com o espaço no qual viviam e com os
recursos naturais que lhes circundavam. A relação com os alimentos plantados na roça e no
quintal das casas, o trabalho coletivo na construção das taperas de barro, o respeito aos
utilizadas para a cura, tudo isso caracterizava o modo de vida destes campesinos.
terra enquanto capital, a relação predatória com a terra, em que esta era vista como
campesinos negros que ali residiam. “A família Peixoto queria apenas os frutos de Água
Negra, não viviam a terra, vinham da capital apenas para se apresentar como donos, para que
não os esquecêssemos, mas, tão logo cumpriam sua missão, regressavam (...)”38.
– e todo o sistema e as instituições que o sustenta – como único modo de relação humana e
38
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 55.
39
Explicada a partir da Teoria Crítica de Direitos Humanos de Joaquin Herrera Flores (2002).
Nesses termos, o Bem Viver40 é uma dessas propostas, tendo sua origem referenciada
na cosmovisão dos povos andinos41, que, nos últimos anos, foi base de propostas
Equador, onde o Bem Viver, inclusive, foi moldado nas constituições. No entanto, o que se
propõe com este não pode e nem deve ser cristalizado ao ser institucionalizado, e, sim,
Bem Viver, aliado a uma visão do Direitos Humanos de práticas interculturais 43, como uma
maneira de se alcançar o “bem comum” da humanidade, sem que seja aquele defendido pela
matriz dominante do nosso sistema econômico e político, o qual tenta materializar o “bem
Tem-se, com isto, que “o Bem Viver recupera esta sabedoria ancestral, rompendo
com o alienante processo de acumulação capitalista que transforma tudo e todos em coisa” 44.
Pelas lentes deste conceito, é possível entender que a forma de interação das comunidades
rurais, povos e comunidades tradicionais com a terra e o território está além da terra enquanto
acumulação. Isso fica visível nas letras de Torto Arado sempre que são narradas as falas e
pensamentos dos personagens sobre o chão que vivem e sobre o pertencimento ao local:
Esta terra mora em mim, bateu com força em seu peito, “brotou em mim e
40
“Bem Viver não é definitivamente ter uma vida folgada. O Bem Viver pode ser a difícil experiência de manter
um equilíbrio entre o que nós podemos obter da vida, da natureza, e o que nós podemos devolver. É um
equilíbrio, um balanço muito sensível e não é alguma coisa que a gente acessa por uma decisão pessoal”
(KRENAK, 2020, p. 8-9).
41
KRENAK, 2020.
42
ACOSTA, 2016.
43
Compreende-se Direitos Humanos, aqui, a partir da visão complexa cunhada por Joaquin Herrera Flores
(2002) em Direitos Humanos, Interculturalidade e Racionalidade de Resistencia.
44
ACOSTA, 2016, p. 15.
meu peito porque dela se fez minha vida, com meu povo todinho. No meu peito
mora Água Negra, não no documento da fazenda da senhora e de seu marido. Vocês
podem até me arrancar uma erva ruim, mas nunca irão arrancar a terra de mim 45.
obra Torto Arado, do início ao fim, consegue traçar a conexão da questão racial com a
negativa de acesso à terra enfrentada pelos moradores da Fazenda Água Negra – e daqueles
que vinham de outras fazendas também. É necessário reafirmar que, como realidade
espelhada, uma das principais medidas do pós-abolição foi negar o direito de acesso à terra
aos negros alforriados, povos indígenas e trabalhadores imigrantes, assim foi possível manter
estes grupos à margem da sociedade, impedindo que tivessem qualquer igualdade material de
direitos46.
detalhes importantes que ajudam a entender o eixo temporal pretendido pelo autor. Ainda à
identidade quilombola para si, é comum que se referissem a si mesmos como ‘trabalhadores’.
família para Água Negra, há uma movimentação forte no que tange ao autorreconhecimento e
organização dos moradores. Isso se deve ao fato de que Severo começou a participar de
45
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 230.
46
O mercado de terras foi estruturado formalmente com a Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850, que
estabeleceu claros obstáculos ao acesso legal à terra por parte dos negros alforriados, povos indígenas e
trabalhadores imigrantes. “Coibindo a posse e instituindo a aquisição como forma de acesso à terra, tal
legislação instituiu a alienação de terras devolutas por meio de venda, vedando, entretanto a venda em hasta
pública, e favoreceu a fixação de preços suficientemente elevado das terras” (ALMEIDA, 2008, p.39).
Severo diz de uma forma que o povo fica atento, indo de casa em casa, da escola aos
caminhos para a roça. Depois o povo fica se perguntando, conversando entre si, e
concentrar para aprender sobre o que Severo contava. Que chegou um branco
colonizador e recebeu a dádiva do reino. Chegou outro homem branco com nome e
sobrenome e foram dividindo tudo entre eles. Os índios foram sendo afastados,
negros, de muito longe para trabalhar no lugar dos índios. Nosso povo, que não
É válido lembrar, aqui, que as comunidades quilombolas passam a ter seu direito
1988, a qual trouxe em seu bojo o Art. 68 da ADCT 48, resultado de muita luta e uma intensa
movimentação por parte do Movimento Negro. Pelo contexto narrado na obra, os locais de
militância que Severo frequentava, assim como sua movimentação em torno do direito que os
moradores tinham sobre aquele território, podem indicar que esses fatos se passaram à época
movimento significativo, tanto para conscientizar os mais velhos sobre a exploração na qual
viveram anos ali naquele território, como para reafirmar o direito que tinham por aquele local
em que não só trabalhavam, mas que reproduziam sua cultura, tradições e seu modo de vida.
Meu irmão insistiu no assunto, apesar de evitar falar na frente de nosso pai. Vivia
com Severo para cima e para baixo, entre um trabalho e outro, para ganhar a atenção
dos moradores. “Não podemos mais viver assim. Temos direito à terra. Somos
47
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 177.
48
BRASIL, 1988.
quilombolas.” Era um desejo de liberdade que crescia e ocupava quase tudo que
fazíamos49.
Diante do que fora analisado, é possível entender o Direito de acesso à terra como um
Teoria Crítica dos Direitos Humanos elaborada por Herrera Flores, os Direitos Humanos –
semelhantemente ao Bem Viver - não devem ser vistos apenas como reconhecimento jurídico,
afinal, precisam ser entendidos, também, como processos de lutas, com avanços e retrocessos,
forjados por sujeitos históricos, muitas vezes, debilitados por quem deveria contribuir para a
realização dos seus direitos, mas persistentes no intento e na resistência pela construção de
condições de vida digna. Tais lutas, repisa-se, jamais foram um dado, têm sido travadas a
muitos anos por comunidades rurais, povos e comunidades tradicionais, a exemplo do que
foram representadas em Torto Arado pela história – de vida e morte - dos moradores
CONCLUSÃO
sagram, junto e por intermédio de cada um de nós. Por mais que tentemos negar a nossa
Por seu turno, o Brasil, como parte da América Latina, segue lidando, também, com
todos os desafios e ônus de um passado vil nunca efetivamente tratado, que se faz exposto,
com clareza e potência, por intermédio das linhas de Torto Arado. Ali temos a certeza de que
49
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 187.
50
GALEANO,2010.
a história narrada não se passa muito distante dos nossos tempos e de enredos – mais ou
menos - conhecidos por cada um de nós, o que, quiçá, tem corroborado para aglutinar em
mínimos para a construção conjunta do Bem Viver latino, bem como de oportunizar um olhar
Direito, na prática, ou seja, no mundo do ser, o Direito, seguidas vezes, tem sido utilizado
refere aos direitos dos mais vulneráveis e subalternizados pelo sistema capitalista, com
destaque para aqueles que – direta ou indiretamente – dizem respeito à terra, elemento secular
acesso à terra e aos direitos laborais do campo em face dos trabalhadores de Água Negra.
inclusão e justiça social, capaz de enxergar, acolher e lançar luz sobre os mais diversos
caráter amplo e irrestrito, os seus direitos humanos fundamentais e promover uma atuação -
efetiva e coletividade - rumo ao Bem Viver, o que passa inexoravelmente pela promoção e
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