Você está na página 1de 24

“SOBRE A TERRA HÁ DE VIVER SEMPRE O MAIS FORTE”: O DIREITO DE

ACESSO À TERRA COMO BEM COMUM E TORTO ARADO, DE ITAMAR VIEIRA

JUNIOR

“ON EARTH SHALL ALWAYS LIVE THE MOST STRONG”: THE RIGHT OF

ACCESS TO LAND AS A COMMON GOOD AND TORTO ARADO, BY ITAMAR

VIEIRA JUNIOR

Resumo: O presente artigo aborda a relação entre o ser humano e a terra por meio do método
Direito e Literatura tendo como eixo central a obra Torto Arado – do baiano Itamar Vieira
Junior – e partindo da concepção da pluralidade de formas de ser e de viver dos sujeitos na
construção de um Direito que vá além dos preceitos hegemônicos. Isto posto, tendo a
narrativa literária como referencial, inicialmente se discutirá as representações do paradigma
da questão agrária brasileira presentes na obra; num segundo momento, será analisado como
essa pauta tem sido tratada historicamente, ressaltando os desafios, lutas e enfrentamentos
vividos pelas populações rurais e como o Direito pode ser um obstáculo à concretização dos
direitos humanos fundamentais; por fim, trará à baila o debate sobre a pluralidade de
significados das relações ser humano-terra e a importância de contemplar tais possibilidades
na construção do bem comum, sem olvidar de refletir sobre um (novo) Direito, apto a
fortalecer os direitos humanos e contribuir genuinamente para a efetivação da justiça social no
campo. Trata-se de pesquisa exploratória desenvolvida por meio, principalmente, de consulta
e revisão bibliográfica e documental, cujos dados serão objeto de análise qualitativa.
Palavras-chave: Direito de acesso à terra; Bem comum; Direito; Literatura; Questão agrária.
Abstract: This article addresses the relationship between human beings and the land through
the method of Law and Literature, with the central axis of the work Torto Arado - by the
Bahian Itamar Vieira Junior - and starting from the conception of the plurality of ways of
being and living of the subjects in the construction of a Law that goes beyond the hegemonic
precepts. That said, taking the literary narrative as a reference, initially we will discuss the
representations of the paradigm of the Brazilian agrarian question present in the work; in a
second step, it will be analyzed how this agenda has been treated historically, highlighting the
challenges, struggles and confrontations experienced by rural populations and how the Law
can be an obstacle to the realization of fundamental human rights; finally, it will bring up the
debate on the plurality of meanings of human-land relations and the importance of
contemplating such possibilities in the construction of the common good, without forgetting
to reflect on a (new) Right, able to strengthen human rights and genuinely contribute to the
realization of social justice in the countryside. It is an exploratory research developed through,
mainly, consultation and bibliographic and documentary review, whose data will be the object
of qualitative analysis..
Keywords: Access to land; Agrarian issue; Common good; Law; Literature;

INTRODUÇÃO
Livre no meu ofício, eu gosto de cantar o Brasil caboclo,
tão longe de tudo aqui. E eu canto esse Brasil como quem
faz uma prece para que ele resista, apesar da mão do
progresso vazio que insiste em dizimá-lo; e para que suas
modas de viola, com seu encantamento, ainda por muito
tempo façam vibrar nossos corações...

(Maria Bethânia)1

Apropriar-se de elementos que através do tempo significaram ensejos de violência e

opressão tem se mostrado uma ferramenta eficaz na ressignificação e fortalecimento de lutas

travadas desde muito tempo por povos constantemente subjugados e violados nas suas

dignidades. De igual modo, a luta pela terra e pelo território sempre compôs a centralidade

destas relações de poder vivenciadas pelas parcelas da população historicamente

subalternizadas e atacadas nos seus modos de ser e viver enquanto sujeitos: tendo em conta o

histórico escravocrata da formação social brasileira aliado diretamente às políticas

econômicas e mecanismos jurídicos de garantia e consolidação da concentração de terra por

meio dos grandes latifúndios nas mãos de poucos proprietários, tudo o que fosse de encontro a

estas diretrizes era e é constantemente neutralizado e tratado a partir da alteridade e da

estranheza. Diante disso, o paradigma atual aparente é o de um presente mal resolvido com o

passado, seguido pelos grilhões das correntes, pela exploração e pela miséria.

No entanto, formas de luta pela reconfiguração destes espaços têm ganhado fôlego e

o que se percebe é que a arte, mais do que nunca, perpassa a política e – consequentemente –

a luta por direitos. Nesse sentido, Torto Arado2, por meio da construção – ainda que literária e

ficcional – de uma narrativa que retrata precisamente a herança escravocrata no Brasil, a

privação do acesso à terra pelas camadas mais pobres da população e a exploração do seu

trabalho para a acumulação de riquezas, traz ao público uma ferramenta eficaz de reflexão

capaz de colocar o seu leitor em situação de alerta e provocação diante da diversidade de

possibilidades, não só de problematização das diversas situações trazidas no decorrer da


1
Em epígrafe: BETHANIA, Maria. Amor, festa e devoção (show completo). 2010. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=_2vgExf3HNM&ab_channel=BiscoitoFino. Acesso em: 11 mai. 2021.
2
VIEIRA JUNIOR, 2019.
trama, mas, igualmente, de como muito do que é tratado como ficção pode estar

profundamente arraigado na estruturação da sociedade brasileira e nas suas formas de ver o

mundo.

Ademais, diante das relações e disputas sociais cada vez mais complexas, refletir o

Direito no seu papel mediador e administrador destes conflitos tem sido um grande desafio

aos juristas deste tempo, diante do qual o estudo do Direito através da Literatura tem se

mostrado bastante relevante no que vai muito além da interdisciplinaridade, no intuito de

construir um espaço crítico, onde seja possível o questionamento de axiomas, fundamentos,

efetividade, etc.: a aproximação do campo jurídico à narrativa literária permite também que

seus operadores assimilem a capacidade criadora, crítica e reflexiva que a literatura respira,

podendo superar alguns de seus limites intrínsecos, assim como aqueles impostos pelo senso

comum teórico pautado pelo tecnicismo, pelo positivismo engessado e pela dogmática

reducionista, que restringe a prática jurídica a um discurso lógico-pragmático e cerra os olhos

para toda a realidade material, desconsiderando a importância constitutiva da linguagem na

construção da intersubjetividade e intertextualidade que lhe são inerentes3.

Isto posto, o presente artigo propõe uma problematização da variedade de relações

entre o ser humano e a terra – especificamente no contexto do Brasil – tendo por base a obra

Torto Arado de Itamar Vieira Júnior4, por meio da qual se pretende explorar os limites do uso

da Literatura na construção do Direito e partindo da ideia do acesso pleno à terra enquanto

direito humano fundamental e imprescindível à efetivação do sentido de bem comum. Para

tal, primeiramente será analisada a obra literária como um todo, a fim de ressaltar quais as

indagações são apresentadas no que tange ao assunto no decorrer da trama; num segundo
3
É importante ressaltar a fala de Raquel Barradas de Freitas (1990, p. 22-23), sobre a diversidade axiológica do
Direito e sua importância no desenvolver de suas múltiplas faces, na medida em que “a relação entre o Direito e
a Literatura [...] é não só concebível como desejável, numa fase interparadigmática de busca, como a que se
nos apresenta neste momento. O Direito apresenta-nos, hoje, desafios cuja resolução se não basta já com os
modelos puramente legalistas, de concepção do jurídico e também da realidade social”.
4
VIEIRA JUNIOR, 2019.
momento, será urdida uma análise crítica acerca do papel Direito na construção destas

realidades possíveis e quais os entraves e dilemas recorrentes e as possibilidades para o seu

enfrentamento; ao final, será trazida à baila a variedade de concepções de bem comum e sua

relação com a luta e o acesso à terra e à territorialidade numa perspectiva não hegemônica,

contemplando também apontamentos sobre um direito que se disponha a construir novos

caminhos com vistas à concretização dos direitos humanos fundamentais e da justiça social.

1. UM BRASIL POÉTICO, PROFUNDO E DE LUTA

Itamar Vieira Junior abre Torto Arado com uma passagem de Lavoura arcaica de

Raduan Nassar em epígrafe – “A terra, o trigo, o pão, a mesa, a família (a terra); existe neste

ciclo, dizia o pai nos seus sermões, amor trabalho, tempo” 5– que traduz em poucas palavras a

complexidade que a relação entre o ser humano e o seu meio de vida pode tomar: muito além

da máxima dominante fortemente relacionada à exploração exacerbada dos recursos naturais e

do trabalho visando o lucro, a terra para outros sujeitos pode adquirir um valor muito mais

subjetivo e determinante nas suas próprias formas de existir e de se colocarem e se

compreenderem no mundo. E é justamente a partir desta concepção que o autor desenrola a

trama que, ainda que lançada tão recentemente no Brasil – em 2019 – já sugere a posição de

um clássico contemporâneo da nossa literatura6.

No entanto, é preciso considerar que, se por um lado a história do Brasil está

fortemente relacionada à ocupação do território, a exploração do trabalho escravo e a

concentração da propriedade da terra, por outro, tais questões ainda se mostram distantes de

solução. Apesar de não localizar seu romance em um espaço-tempo definido cronológica e

geograficamente7, o eixo central da narrativa se desenvolve num contexto de conflitos pela


5
NASSAR apud VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 07.
6
FEITOSA, 2021.
7
Há alguns elementos que sugerem que a fazenda Água Negra se localiza na região da Chapada da Diamantina,
no estado da Bahia (os hábitos dos moradores, a herança extrativista de diamantes, o Jarê e uma ou outra
indicação temporal imprecisa). Entretanto, como o autor não dá indícios muito objetivos sobre isso, torna-se uma
terra fortemente moldado pela herança escravocrata que, por mais que legalmente ilegítima,

deixara suas marcas de desumanização nas relações sociais daquele meio, desconsiderando

totalmente as vivências do povo que habitava àquele espaço, como num momento da trama

são descritas as pretensões de um novo senhor que acabara de adquirir a propriedade de Água

Negra: “Em nenhum dos seus planos o povo de Água Negra tinha lugar. Eram meros

trabalhadores que deveriam ser deslocados para dormitórios. Deveriam viver longe da fazenda

porque eram intrusos em propriedade alheia”8.

Acontece que a liberdade conferida aos povos outrora escravizados somente se

tratava de uma liberdade atrelada à possibilidade de venda da sua força de trabalho –

basicamente se vive o dilema entre ser livre para trabalhar ou trabalhar para ser livre – que

ademais é agravado pela condição de pobreza e miséria imposta a estes sujeitos socialmente

abandonados: “não havia lugar para o trabalhador que considerasse a liberdade como negação

do trabalho; mas apenas para o trabalhador que considerasse o trabalho como uma virtude de

liberdade”9. Por mais que os senhores de terras não tivessem autoridade formal sobre os

cativos, outros mecanismos de coerção acabaram sendo desenvolvidos, de modo que a

exploração do trabalho fosse de alguma maneira legitimada tanto pelo fazendeiro quanto

pelos lavradores, como conta Bibiana:

O gerente queria trazer gente que ‘trabalhe muito’ e que ‘não tenha medo de

trabalho’ [...]. Podia construir casa de barro, nada de alvenaria, nada que demarcasse

o tempo de presença das famílias na terra. Podia colocar roça pequena para ter

abobora, feijão, quiabo, nada que desviasse da necessidade de trabalhar para o dono

da fazenda, afinal, era para isso que se permitia a morada. Podia trazer mulher e

filhos, melhor assim, porque quando eles crescessem substituiriam os mais velhos.

[...] Vi meu pai dizer para o meu tio que no tempo de seus avós era pior, não podia

hipótese subjetiva e discutível.


8
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 211.
9
MARTINS, 1998, p. 18.
ter roça, não havia casa, todos se amontoavam no mesmo espaço, no mesmo

barracão10.

A partir disto, o que se percebe é que o vínculo existente entre os personagens – em

especial no círculo de vivência das protagonistas Belonísia e Bibiana – e a terra é bastante

paradoxal: a todo o momento é narrada a labuta daquela gente diante da aridez, da falta de

recursos, da violência e da exploração, em especial as mulheres, que também são suas

personagens e narradoras principais, “um tanto maltratadas pelo sol e pela seca. Pelo trabalho

árduo, pelas necessidades que passávamos” 11, mas também, e ao mesmo tempo, a terra é

sinônimo de fartura, de vida, de sentimento de pertencimento e de raízes profundas, “que ali

chovia, tinha terra boa, que, ‘olha’, abria os braços mostrando a roça e o quintal, mostrando a

mata ao redor deles, ‘aqui não nos falta nada’” 12, sem distanciar, contudo, a herança colonial

que ainda perdurava no modo de produção vigente na fazenda, como é constantemente

lembrado no decorrer da trama13.

É também Bibiana que entra em detalhes sobre as dificuldades vividas pelo seu povo

nas profundezas deste Brasil tão controverso, ora belo e poético, ora bastante e cruel com os

seus – “As crianças eram as que mais padeciam: paravam de crescer, ficavam frágeis e por

qualquer coisa caíam doentes. Perdi as contas de quantas não resistiram à má alimentação e

seguiram sem vida, em cortejo, para o cemitério da Viração” 14 – completamente desassistidos,

privados da sua menor dignidade e à mercê do próprio abandono, envoltos por uma paisagem

10
VIEIRA JÚNIOR, 2019, p. 41.
11
ibid., 2019, p. 119.
12
Ibid., 2019, p. 41.
13
A obra literária traz uma passagem emblemática que ilustra muito bem esta situação: “Quando deram a
liberdade aos negros, nosso abandono continuou. O povo vagou de terra em terra pedindo abrigo, passando
fome, se sujeitando a trabalhar por nada. A mesma escravidão de antes fantasiada de liberdade. Mas que
liberdade? Não podíamos construir casa de alvenaria, não podíamos botar a roça que queríamos. Levavam o que
podiam do nosso trabalho. Trabalhávamos de domingo a domingo sem receber um centavo. O tempo que
sobrava era para cuidar das nossas roças, porque senão não comíamos. Era homem na roça do senhor e mulher e
filhos na roça de casa, nos quintais, para não morrerem de fome” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 220).
14
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 69.
onde se ouvia muito falar que “da seca não brotava nem pasto, muito menos batata. E a secura

era tanta que nem as várzeas estavam sendo cultivadas. No leito do rio, onde não havia água,

era possível encontrar uma lama que apodrecia as sementes, de onde também não brotava

nada”15, aspectos que, apesar de serem delineados numa obra de ficção, ilustram muito bem a

realidade que uma parcela considerável de brasileiros ainda enfrenta nos dias de hoje.

Além do árduo cotidiano dos trabalhadores, Água Negra também é cenário de

contradições e disputas pela terra e pela verdadeira liberdade dos seus habitantes, que

acontece por meio de uma paulatina tomada de consciência – representada principalmente

pelas ações do personagem Severo – dos problemas que incidem principalmente sobre a

contradição de terem que trabalhar exaustivamente na fazenda – ainda que constantemente

fosse repetido que estavam somente de passagem – enquanto os proprietários quase nunca são

vistos pela região, “Um dia, meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai o que era viver de

morada. Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e

trabalhado desde sempre. Por que a família Peixoto, que não morava na fazenda, era dita

dona”16. A despeito de enfrentar certa resistência das gerações anteriores, os personagens

passam a desenvolver tanto o seu autorreconhecimento, enquanto negros e quilombolas, como

sua estreita relação com a terra e com o território.

E é neste diapasão que o debate em torno da propriedade, do território e do direito à

terra vai tomando cada vez mais espaço na narrativa de Itamar Vieira Junior, tal situação

começa a ganhar contornos mais evidentes – principalmente – após a venda da fazenda para

novos senhores: “Os herdeiros da família Peixoto envelheceram, e os seus filhos e netos não

queriam continuar com a propriedade. [...] A família Peixoto havia herdado terra das

sesmarias.”17. A partir de então, os trabalhadores passam a ter que enfrentar algumas

15
ibid., 2019, p. 85.
16
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 185.
17
ibid., 2019, p. 179.
mudanças bruscas, que interferiram significativamente no seu modo de vida, como, por

exemplo, a impossibilidade de enterrar os mortos na Viração, o cemitério que era de costume:

“se não pudéssemos deitar nossos mortos na Viração era porque, em breve, não poderíamos

estar sobre a mesma terra”18.

O fôlego da luta pelos direitos daquele povo pode ser percebido no ímpeto do

personagem Severo, um primo distante recém-chegado a Água Negra e com quem

posteriormente se casa Bibiana, engajado politicamente e bastante crítico à situação

enfrentada pelos seus companheiros tanto naquela fazenda quanto em outras da região,

“contando história de sindicato, de direitos, de lei. Estava levando essas conversas para os

campos de trabalho”19. Aos poucos, certas indagações vão provocando a tomada de

consciência por parte dos habitantes de Água Negra que passam a enxergar que nos

predicados outrora valorosos que compunham os qualitativos daqueles moradores nada mais

havia do que uma distorção dos seus significados reais, a gente que não tinha medo de

trabalho foi se percebendo como vítima da precarização das relações laborais e como forma

de dominação dos seus senhores diante de, além da sua necessidade de sobrevivência, sua

também falta de oportunidades e possibilidades além daquelas terras.

Os enfrentamentos se seguiram constantemente, cada vez mais acirrados, Severo se

organizava com os trabalhadores a reivindicar seus direitos e em contrapartida o novo

proprietário da fazenda praticava todo tipo de coação a fim de intimidar os lavradores, “certo

dia, fomos acordados no meio da madrugada por um incêndio em nosso galinheiro” 20, mas

não houve desistência, o lavrador propôs a fundação de uma associação dos trabalhadores e as

represálias por parte do patrão seguiam no mesmo ritmo, “com frequência, também passou a

aparecer um carro de política, de onde desciam para fazer perguntas [...] o medo era grande,

18
Ibid., 2019, p. 180.
19
ibid., 2019, p. 186.
20
ibid., 2019, p. 197.
uma casa avisava a outra quando surgiam, ou se alguém demorasse a retornar para casa ou se

fosse para lugar distante”21. Entretanto, logo mais a situação chegou ao seu estopim com a

morte de Severo: “a terra seca aos seus pés havia se tornado uma fenda aberta e nela corria

um rio de sangue”22.

Por mais que seja um enredo construído numa obra de ficção, fazendo um paralelo

com uma realidade que vai além das páginas de Torto Arado, conforme levantamento de

dados feito pela organização Repórter Brasil, em 2014 foram registradas 22 fazendas com

trabalhadores em situação análoga à escravidão no Brasil 23, onde os seus trabalhadores,

quando não trabalhavam somente pelo indispensável à sobrevivência, estavam atrelados a

dívidas insanáveis contraídas pelas suas próprias estadias nestas propriedades. Na mesma

toada, em 2019 a Comissão Pastoral da Terra registrou 1.833 ocorrências sobre conflitos por

terra em todo o país, envolvendo quase mil pessoas e contando com 32 assassinatos 24. Ambos

os exemplos estão intimamente relacionados às estruturas de poder vigentes no meio rural

brasileiro e realçam o paradigma de uma questão agrária cujas feridas continuam abertas, e

sobre as quais Itamar Vieira Junior lança um olhar sensível e simultaneamente crítico ao

construir a história dos habitantes da fictícia fazenda Água Negra.

Diante disso, o Brasil que Itamar Vieira Júnior desenha pelas linhas de Torto Arado é

um Brasil ficcional, mas não tão fictício quanto poderia ser. Ainda que a obra não possua

nenhum tipo de compromisso com o real, sua narrativa é capaz de lançar luz sobre problemas

cujas raízes estão profundamente atreladas às dinâmicas que ainda perduram nos dias de hoje

na sociedade. Ademais, muitos outros temas são pincelados pelo autor ao construir sua trama:

os papéis de gênero, a colonização religiosa pelo cristianismo e o apagamento das religiões

21
ibid., 2019, p. 198.
22
ibid., 2019, p. 199.
23
REPÓRTER BRASIL, 2014.
24
CPT, 2020.
originárias e de matriz africana, os paralelos entre a marginalização de certas populações

advindas do campo no meio rural, a violência policial presente na periferia dentre muitos

outros. Por meio de uma escrita extremamente sensível e precisa naquilo que quer contar, o

Brasil de Itamar é um Brasil sofrido e ora muito cruel, mas é, do mesmo modo, um Brasil

forte e que não hesita em continuar lutando dia após dia.

2. SOBRE A TERRA E OS OBSTÁCULOS PROMOVIDOS PELO DIREITO

TRADICIONAL EM – E PARA ALÉM DE – TORTO ARADO

Na sua obra Discurso sobre a origem e os fundamentos das desigualdades entre os

homens, publicado em 1755, Jean Jacques-Rousseau (1712-1778) afirma que a propriedade e

o Direito são as principais razões para as desigualdades entre os seres humanos. A primeira,

porque cria, sobretudo pelo seu acúmulo, desigualdades espaciais e econômicas entre as

pessoas; a segunda, porque garante, por intermédio de seus institutos e normativas, o esteio

formal para sua legitimação. Embora causticante e lastimosa, a reflexão levada a cabo pelo

genebrino segue deveras verdadeira – e atual, tal qual demonstrado em Torto Arado.

Na ordem do dever ser aprendemos que o Direito deveria se coadunar com a justiça,

sobretudo, a justiça social; na prática, ou seja, no mundo do ser, entretanto, especialmente no

que concerne às questões vinculadas à “terra” – e no Brasil –, o Direito, seguidas vezes,

findou por se tornar instrumental relevante, ou mesmo, o protagonista, de um sistema

cuidadosamente forjado para privilegiar alguns poucos, oprimir muitos e corroborar para a

permanência de suas desigualdades. Nessa toada, desde a invasão portuguesa, quase todas as

normativas que conjugaram os elementos “direito” e “terra”, logo, decorrentes ou pertinentes

ao Direito Agrário que por aqui tiveram vigência – curta ou longa –assumiram como

propósito – implícito ou explícito – garantir e/ou estabelecer possibilidades jurídicas para a

manutenção do status quo dos donos do poder, a saber: grandes proprietários rurais,
produtores agrícolas, seus representantes – legais e/ou políticos - ou apoiadores de todo

gênero25. Assim, partindo do modelo sesmarial, passando pela Lei de Terras (1850),

Regulamento da Lei de Terras (1854), Registro de Torrens (1890), Código Civil (1916),

alcançando quase todas as nossas Constituições, ou seja, Constituição Política do Império do

Brasil (1824), Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1891), Constituição

brasileira (1934), Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1937), Constituição dos Estados

Unidos do Brasil (1946) e Constituição da República Federativa do Brasil (1967), a lógica –

em maior ou menor medida – era a mesma: firmar os privilégios de poucos, mas grandes,

latifundiários, em detrimento da maioria dos trabalhadores do campo e dos povos tradicionais.

Nunca faltaram leis, mas delas poucos fizeram uso ou obtiveram justiça, especialmente no

contexto agrário. Tal fato só foi objeto de algum tênue rompimento normativo, com o advento

dos amplos debates levados a cabo durante a Assembleia Nacional Constituinte (1987/88) e

da consequente promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil (1988).

Em Torto Arado, Itamar Vieira, embora apartado de Rousseau e dos primórdios de

nosso Direito Agrário por quase 300 anos, conseguiu, por intermédio da literatura, organizar,

burilar e trazer à lume um conjunto de desafios seculares (postos e sobrepostos) relacionados

à terra no Brasil, bem como as projeções (sociais e políticas) do que deveria ser e do que é

consubstanciado no nosso contexto rural da atualidade, em grande parte, inalcançado pelo

Direito tradicional. Nesse sentido, tem-se por emblemática a reflexão da personagem Bibiana

sobre a ausência de um direito justo e dos seus reflexos em torno de si e de sua gente:

(...) Se algo acontecesse a eles, não teríamos direito à casa, nem mesmo à terra onde

plantavam sua roça. Não teríamos direito a nada, sairíamos da fazenda carregando

nossos poucos pertences. Se não pudéssemos trabalhar, seríamos convidados a

25
MACHADO, 2018, p. 114.
deixar Água Negra, terra onde toda uma geração de filhos de trabalhadores havia

nascido. Aquele sistema de exploração já estava claro para mim 26.

Observa-se, portanto, que Vieira não se exime de expor nas linhas e entrelinhas da sua

obra as injustiças, silenciamentos e subalternizações provocadas ou avalizadas pelo Direito

em face dos trabalhadores rurais. Por meio da personagem Bibiana, por exemplo, vocalizou

no trecho acima sobre o eventual destino de sua família, se porventura algo lhes acontecesse e

tivessem sua força de trabalho reduzida ou extirpada e, na citação abaixo, aclara a crueza

dessa teia de exploração a que estavam vinculados, com as “bênçãos do direito de

propriedade” e de onde não lhes restava quase nenhuma escolha ou rota de fuga, exceto a

resignação.

A família Peixoto queria apenas os frutos de Água Negra, não viviam a terra,

vinham da capital apenas para se apresentar como donos, para que não os

esquecêssemos, mas, tão logo cumpriam a sua missão, regressavam. Mas havia os

fazendeiros e sitiantes que cresceram em número e que exerciam com fascínio e

orgulho seus papeis de dominadores, descendentes longínquos dos colonizadores; ou

um subalterno que havia conquistado a sorte no garimpo e passava a exercer o poder

sobre os outros, que, se sem alternativa, se submetiam ao seu domínio (grifo

nosso)27.

Outro tópico deveras debatido por Vieira diz respeito à supressão de direitos em

desfavor dos trabalhadores rurais, inclusive dos direitos humanos mais comezinhos, como o

direito à alimentação, sem o qual simplesmente perecemos. Exposto na perspectiva de uma

constante ameaça, em verdade, secular, de caráter individual e coletiva, faz parte do cotidiano

de Bibiana e dos seus, guardando efeitos imediatos, mas também se apresenta como pavor

complementar – e sucedâneo - à falta de trabalho, para gerações de sobreviventes das

injustiças do/no campo, a saber:


26
VIEIRA JUNIOR, op.cit., 2019, p. 83.
27
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 54.
Com a seca, veio o medo de nos mandassem embora por falta de trabalho. Depois

veio o medo mais imediato da fome. Os grãos passaram a rarear, o feijão acabou

antes do arroz, e do arroz restava muito pouco. Havia um razoável suprimento de

farinha de mandioca que algumas famílias fabricavam e trocavam por outros

alimentos. Agora, mais que antes, seguíamos quase todos os dias para os rios para

pescar, e a cada pescaria só conseguíamos capturar peixes cada vez menores, que só

serviam para dar um gosto ao angu de farinha (VIEIRA JUNIOR, 2020, p. 67-68).

É importante ressaltar que os personagens apresentados por Vieira estavam longe de

ser alienados, alheios e/ou desconhecedores de sua situação em relação aos ditos donos do

poder. Pelo contrário: sabiam quão tensas e fortes eram amarras que lhes seguravam, bem

como das possibilidades ínfimas para suplantá-las. Reconheciam, contudo, que o melhor

caminho para a transformação daquela realidade, pelo menos, em perspectiva intergeracional,

era a luta, inclusive, por intermédio da defesa do direito à educação, razão pela qual o

personagem Zeca Chapéu Grande, líder local e pai de Bibiana e Belonísia, persistiu tanto na

reivindicação pela construção e funcionamento de uma escola na comunidade onde moravam.

Meu pai não sabia nem mesmo assinar o nome, e fez o que estava ao seu alcance

para trazer uma escola para a fazenda, para que aprendêssemos letra e matemática.

Muitas vezes o vi tentar convencer algum vizinho que não queria que o filho fosse à

escola; até concordava que o filho fosse, mas dizia que menina não precisava

aprender nada de estudo. Mesmo contrariando o compadre, conseguia que o seu

pedido fosse acatado, grande era a consideração e o prestígio que fluíam de sua

liderança28.

Por semelhante modo, é relevante destacar que Torto Arado expõe uma outra triste

realidade, ainda pouco explorada e debatida pelo Direito no contexto agrário, mas deveras

presente nas suas entranhas: as diversas espécies de violência doméstica e familiar contra a

28
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 96.
mulher29 no âmbito rural. Itamar Vieira pontua sobre o tamanho e a gravidade desse malogro

em diversas seções da obra, aclarando o quanto a violência contra a mulher está arraigada nas

relações e tem sido utilizada como instrumental potente para perpetuar as opressões no

campo30, inclusive, ao intentar estabelecê-las como cidadãs de segunda classe ou meras

reprodutoras dos latifúndios: “(...) Mas isso nada significava para nós mulheres da roça.

Éramos preparadas desde cedo para gerar novos trabalhadores para os senhores, fosse para as

nossas terras de morada ou qualquer outro lugar onde precisassem”31.

Ou, mais especificamente, quando o livro relata os abusos praticados por Tobias, em

face de sua companheira Belonísia, que de início, eram interpretados por ela como

expedientes plausíveis, mas que, posteriormente, ao tomar consciência da violência física e

moral a que estava sendo submetida, percebeu o quanto aquilo tudo lhe era prejudicial e como

seria injusto consigo - e com a sua história – não enfrentar esse contexto de opressões

sistemáticas protagonizadas pelo seu companheiro, senão vejamos:

Tobias retornava ao fim da tarde e a primeira coisa que fazia era dar uma talagada na

garrafa de cachaça que ficava em cima da mesa. Depois tomava banho ou ia direto

se sentar à mesa para refeição. Eu parava o que estivesse fazendo para servi-lo. No

começo, parecia apreciar minha comida, sempre repetia. Depois passou a reclamar

que tinha muito ou pouco sal. Que o peixe estava cru, e me mostrava pedaços em

que eu não conseguia enxergar a falta de cozimento, ou outros que se esbagaçavam

com as espinhas, dizendo que tinham cozido demais. Nessas horas eu ficava aflita, o

coração aos pulos, magoada comigo mesma, me sentindo uma tonta por ter sido

desleixada com o preparo32.

29
A título de exemplo, podem ser apontados os dados sobre a violência contra mulheres quilombolas constantes
em: TERRA DE DIREITOS. Racismo e violência contra Quilombos no Brasil. Disponível em:
https://terradedireitos.org.br/acervo/publicacoes/livros/42/racismo-e-violencia contra-
quilombos-no-brasil/22928. Acesso em: 10 jan. 2020.
30
SCHWARCZ, 2019, p.187.
31
Ibid., 2019, p. 129.

32
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 115.
[...]

Olhei para ao chão e vi a comida espalhada. Aquele chão onde havia curvado meu

corpo para varrer e assear com zelo. Senti raiva naquele instante, perguntei a mim

mesma quem aquele vaqueiro ordinário pensava que era. No início, encarava com

inquietação os acessos de fúria que passou a apresentar. Antes eram mais contidos.

Agora tinha perdido as estribeiras. Dali a pouco esse cavalo iria me bater igual ao

marido da Maria Cabocla. Mas eu já me sentia diferente, não tinha medo de homem,

era neta de Donana e filha de Salu, que fizeram homens dobrar a língua para se

dirigirem a elas33.

Ainda, é razoável comentar um outro aspecto desenvolvido no curso da obra

pertinente à tomada de consciência acerca das origens, das memórias e dos direitos da

comunidade enquanto quilombolas, que finda por trazer consigo uma disposição de e para o

caráter emancipatório de muitos dos seus membros. Ao entenderem-se como partes de uma

história de resistência mais ampla e com diversas ramificações, também se percebem como

sujeitos de – e para a – construção de um futuro quiçá menos injusto e excludente, a saber:

Não podemos mais viver assim. Temos direito à terra. Somos quilombolas. Era um

desejo de liberdade que crescia e ocupava quase tudo o que fazíamos. Com o passar

dos anos esse desejo começou a colocar em oposição pais e filhos numa mesma

casa. (...) Queremos ser donos de nosso próprio trabalho, queremos decidir sobre o

que plantar e colher além de nossos quintais. Queremos cuidar da terra onde

nascemos, da terra que cresceu com o trabalho de nossas famílias 34.

[...]

Muitos nunca estiveram conformados com os interditos, mas durante muito tempo

foi necessário permanecer quieto e submisso para garantir sobrevivência. Agora

falam em direito dos pretos, dos descendentes de escravos que viveram errantes de

um lugar para outro. Falam muito sobre isso. Que agora tem lei. Tem formas de
33
ibid., 2019, p. 121.
34
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 187.
garantir a terra. De não viverem à mercê do dono. Correndo daqui pra acolá, como

no passado35.

Por derradeiro, constata-se, a partir dos extratos de Torto Arado aqui compartilhados,

mas também da longa e conflituosa jornada entre o direito e a terra, que aquele, portanto, o

Direito, enquanto mero elemento da norma posta, pautado na interpretação tradicional e na

subsunção clássica muito pouco pode fazer pela concretização do justo, em sentido lato, seja

porque raramente se dispõe a compreender ou promover novos ( e críticos) olhares acerca das

questões sociais mais complexas, seja porque, historicamente, via de regra, compatibilizou-se

e firmou uma aproximação com as demandas e os segmentos mais privilegiados da sociedade.

Entende-se, todavia, que o que pode corroborar para alguma transformação social mais

efetiva, na vida dos trabalhadores rurais e das comunidades tradicionais, guarda raízes na

própria concepção de emancipação forjada com e por aqueles sujeitos que, cônscios dos seus

desafios, se dispõem, por meio de uma implicação genuína, a trilhar uma nova história, que

reconheça e garanta a voz do seu povo, da sua memória e do seu porvir.

3. O NASCER DO BEM VIVER COMO PROPOSTA ALTERNATIVA AO MODELO

DE DESENVOLVIMENTO HEGEMÔNICO E O ACESSO À TERRA COMO

DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL

As narrativas trazidas à baila nas páginas de Torto Arado - que contam a trajetória

tanto das famílias que chegaram em Água Negra, quanto dos indivíduos que já nasceram neste

território -, apesar de ficção, refletem bem sobre a história daqueles que seguem na luta pelo

acesso à terra, pelo direito de exercer a reprodução de seu modo de vida, de sua cultura, de

sua religiosidade e do seu povo sob o território que usam e ocupam. Fala-se, aqui, de povos

originários e povos tradicionais. São indígenas, quilombolas, caiçaras, ribeirinhos, pescadores

35
ibid., 2019, p. 212.
artesanais, camponeses, quebradeiras de coco-babaçu, comunidades de fundo e fecho de

pasto, faxinalenses, seringueiros, ciganos, entre outros.

Uma pluralidade de comunidades, espalhadas por todas as cinco regiões desse país,

com caraterísticas diversas e formas de ocupar o território próprias, que desafiam a ficção que

a terra só existe enquanto valor patrimonial, ou seja, desafiam, diretamente, a maneira como o

sistema do capitalismo dependente, em que o Brasil está inserido, se apropria da terra

enquanto capital. Ao mostrar que há outras formas possíveis de ocupar à terra, sem que isto

signifique um uso predatório e que se baseia exclusivamente no lucro que pode ser auferido

através dela, estes povos se colocam no front da resistência a vários setores que servem à

manutenção do sistema econômico vigente, como o agronegócio e a mineração, e buscam

deter o poder sobre o mundo rural negando não só o direito dos povos e comunidade, como

também a existência destes.

A frase derradeira da obra “sobre a terra há de se viver o mais forte” 36 se coloca como

uma proposta válida para se pensar que sob um território há várias dimensões que interagem

entre si: dimensão cultural, dimensão jurídico-política e dimensão econômica 37. E, envoltas

nestas dimensões, se estabelecem as expressões das relações de poder que existem e se põem

em disputa em determinado território, ou seja, assume-se aqui, que ao se falar em diferentes

formas de ocupar um território, se discorre, igualmente, acerca das diferentes relações de

poder que se estabelecem em cima de determinada terra. Pode-se dizer, então, que a questão

agrária no Brasil reflete também que a forma de ocupar a terra e de exercer uma

territorialidade ainda está em disputa. São disputas de projetos de se pensar a reprodução

cultural, econômica e social no meio rural e que afetam diretamente a vida no meio urbano.

36
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 262.
37
HAESBAERT, 2007.
Essas relações de poder e disputas de narrativas sobre a valoração da terra ficam

explícitas no encadeamento dos fatos tecidos por Itamar Vieira em Torto Arado. Ao longo do

romance, o autor demonstra como a família de Bibiana e Belonísia, assim como outras

famílias moradoras de Água Negra, se relacionavam com o espaço no qual viviam e com os

recursos naturais que lhes circundavam. A relação com os alimentos plantados na roça e no

quintal das casas, o trabalho coletivo na construção das taperas de barro, o respeito aos

encantados, a transmissão dos conhecimentos tradicionais, especialmente sobre as ervas

utilizadas para a cura, tudo isso caracterizava o modo de vida destes campesinos.

Em contrapartida ao supracitado, a outra narrativa demonstrada na obra é a visão da

terra enquanto capital, a relação predatória com a terra, em que esta era vista como

exclusivamente uma fonte de lucro e a relação de exploração da força de trabalho dos

campesinos negros que ali residiam. “A família Peixoto queria apenas os frutos de Água

Negra, não viviam a terra, vinham da capital apenas para se apresentar como donos, para que

não os esquecêssemos, mas, tão logo cumpriam sua missão, regressavam (...)”38.

A visão abstrata dos Direitos Humanos 39, centralizada na concepção ocidental de

direito, dotada de práticas universalistas e de neutralidade, e amplamente divulgada pelos

grupos dominantes detentores de poder, tende a universalizar o modo de produção capitalista

– e todo o sistema e as instituições que o sustenta – como único modo de relação humana e

social possível. Entretanto, há outros caminhos possíveis sendo trilhados, propostas

alternativas sendo forjadas no seio da América Latina, inclusive, aqui no Brasil.

38
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 55.
39
Explicada a partir da Teoria Crítica de Direitos Humanos de Joaquin Herrera Flores (2002).
Nesses termos, o Bem Viver40 é uma dessas propostas, tendo sua origem referenciada

na cosmovisão dos povos andinos41, que, nos últimos anos, foi base de propostas

revolucionárias e mobilizações populares e ganharam forma, principalmente, na Bolívia e no

Equador, onde o Bem Viver, inclusive, foi moldado nas constituições. No entanto, o que se

propõe com este não pode e nem deve ser cristalizado ao ser institucionalizado, e, sim,

entendido como uma filosofia em construção e um paradigma para se pensar coletivamente

uma nova forma de vida42.

Propõe-se este, então, como via alternativa as teorias de desenvolvimento, pensar o

Bem Viver, aliado a uma visão do Direitos Humanos de práticas interculturais 43, como uma

maneira de se alcançar o “bem comum” da humanidade, sem que seja aquele defendido pela

matriz dominante do nosso sistema econômico e político, o qual tenta materializar o “bem

comum” em ações individualistas e acumulações materiais.

Tem-se, com isto, que “o Bem Viver recupera esta sabedoria ancestral, rompendo

com o alienante processo de acumulação capitalista que transforma tudo e todos em coisa” 44.

Pelas lentes deste conceito, é possível entender que a forma de interação das comunidades

rurais, povos e comunidades tradicionais com a terra e o território está além da terra enquanto

acumulação. Isso fica visível nas letras de Torto Arado sempre que são narradas as falas e

pensamentos dos personagens sobre o chão que vivem e sobre o pertencimento ao local:

Esta terra mora em mim, bateu com força em seu peito, “brotou em mim e

enraizou.” “Aqui”, bateu novamente no peito, “é a morada da terra. Mora aqui em

40
“Bem Viver não é definitivamente ter uma vida folgada. O Bem Viver pode ser a difícil experiência de manter
um equilíbrio entre o que nós podemos obter da vida, da natureza, e o que nós podemos devolver. É um
equilíbrio, um balanço muito sensível e não é alguma coisa que a gente acessa por uma decisão pessoal”
(KRENAK, 2020, p. 8-9).
41
KRENAK, 2020.
42
ACOSTA, 2016.
43
Compreende-se Direitos Humanos, aqui, a partir da visão complexa cunhada por Joaquin Herrera Flores
(2002) em Direitos Humanos, Interculturalidade e Racionalidade de Resistencia.
44
ACOSTA, 2016, p. 15.
meu peito porque dela se fez minha vida, com meu povo todinho. No meu peito

mora Água Negra, não no documento da fazenda da senhora e de seu marido. Vocês

podem até me arrancar uma erva ruim, mas nunca irão arrancar a terra de mim 45.

Nessa toada, encaixa-se perfeitamente com a história do contexto agrário brasileiro, a

obra Torto Arado, do início ao fim, consegue traçar a conexão da questão racial com a

negativa de acesso à terra enfrentada pelos moradores da Fazenda Água Negra – e daqueles

que vinham de outras fazendas também. É necessário reafirmar que, como realidade

espelhada, uma das principais medidas do pós-abolição foi negar o direito de acesso à terra

aos negros alforriados, povos indígenas e trabalhadores imigrantes, assim foi possível manter

estes grupos à margem da sociedade, impedindo que tivessem qualquer igualdade material de

direitos46.

A indicação temporal da narrativa é imprecisa, mas é possível perceber alguns

detalhes importantes que ajudam a entender o eixo temporal pretendido pelo autor. Ainda à

época da infância de Bibiana e Belonísia não se percebe os campesinos reivindicando a

identidade quilombola para si, é comum que se referissem a si mesmos como ‘trabalhadores’.

Em contrapartida, a partir do momento que Severo e Belonísia retornam já adultos e com

família para Água Negra, há uma movimentação forte no que tange ao autorreconhecimento e

organização dos moradores. Isso se deve ao fato de que Severo começou a participar de

sindicatos, movimentos e congressos, levando as ideias discutidas nestes espaços para os

outros moradores do território, incentivava os moradores a recontar suas próprias histórias e

questionar a situação de exploração que viviam ali.

45
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 230.
46
O mercado de terras foi estruturado formalmente com a Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850, que
estabeleceu claros obstáculos ao acesso legal à terra por parte dos negros alforriados, povos indígenas e
trabalhadores imigrantes. “Coibindo a posse e instituindo a aquisição como forma de acesso à terra, tal
legislação instituiu a alienação de terras devolutas por meio de venda, vedando, entretanto a venda em hasta
pública, e favoreceu a fixação de preços suficientemente elevado das terras” (ALMEIDA, 2008, p.39).
Severo diz de uma forma que o povo fica atento, indo de casa em casa, da escola aos

caminhos para a roça. Depois o povo fica se perguntando, conversando entre si, e

vão recuperando as histórias das famílias antes da chegada. Eu tentava me

concentrar para aprender sobre o que Severo contava. Que chegou um branco

colonizador e recebeu a dádiva do reino. Chegou outro homem branco com nome e

sobrenome e foram dividindo tudo entre eles. Os índios foram sendo afastados,

mortos, ou obrigados a trabalhar para esses donos da terra. Depois chegaram os

negros, de muito longe para trabalhar no lugar dos índios. Nosso povo, que não

sabia o caminho de volta para a sua terra, foi ficando (...)47.

É válido lembrar, aqui, que as comunidades quilombolas passam a ter seu direito

humano fundamental definitivo ao território que ocupam apenas a partir da Constituição de

1988, a qual trouxe em seu bojo o Art. 68 da ADCT 48, resultado de muita luta e uma intensa

movimentação por parte do Movimento Negro. Pelo contexto narrado na obra, os locais de

militância que Severo frequentava, assim como sua movimentação em torno do direito que os

moradores tinham sobre aquele território, podem indicar que esses fatos se passaram à época

em que a discussão sobre quilombola como categoria jurídico-sociológica a ser inserida na

Constituição estava a todo fervor.

Nesse sentido, Severo e Belonísia, os mais jovens da comunidade começaram um

movimento significativo, tanto para conscientizar os mais velhos sobre a exploração na qual

viveram anos ali naquele território, como para reafirmar o direito que tinham por aquele local

em que não só trabalhavam, mas que reproduziam sua cultura, tradições e seu modo de vida.

Meu irmão insistiu no assunto, apesar de evitar falar na frente de nosso pai. Vivia

com Severo para cima e para baixo, entre um trabalho e outro, para ganhar a atenção

dos moradores. “Não podemos mais viver assim. Temos direito à terra. Somos

47
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 177.
48
BRASIL, 1988.
quilombolas.” Era um desejo de liberdade que crescia e ocupava quase tudo que

fazíamos49.

Diante do que fora analisado, é possível entender o Direito de acesso à terra como um

direito humano fundamental, entretanto, é essencial ressaltar que, conforme preconiza a

Teoria Crítica dos Direitos Humanos elaborada por Herrera Flores, os Direitos Humanos –

semelhantemente ao Bem Viver - não devem ser vistos apenas como reconhecimento jurídico,

afinal, precisam ser entendidos, também, como processos de lutas, com avanços e retrocessos,

forjados por sujeitos históricos, muitas vezes, debilitados por quem deveria contribuir para a

realização dos seus direitos, mas persistentes no intento e na resistência pela construção de

condições de vida digna. Tais lutas, repisa-se, jamais foram um dado, têm sido travadas a

muitos anos por comunidades rurais, povos e comunidades tradicionais, a exemplo do que

foram representadas em Torto Arado pela história – de vida e morte - dos moradores

quilombolas de Água Negra.

CONCLUSÃO

Parafraseando Eduardo Galeano50, as veias da América Latina continuam abertas e

sagram, junto e por intermédio de cada um de nós. Por mais que tentemos negar a nossa

história, o passado latino, de espoliação, violência, dependência, autoritarismo, persiste sendo

demasiadamente presente nos altos índices de violência, especialmente em face dos

subalternizados; nas significativas taxas de apartação social; na sistemática supressão de

direitos humanos fundamentais; e no autoritarismo fático, simbólico e normativo.

Por seu turno, o Brasil, como parte da América Latina, segue lidando, também, com

todos os desafios e ônus de um passado vil nunca efetivamente tratado, que se faz exposto,

com clareza e potência, por intermédio das linhas de Torto Arado. Ali temos a certeza de que

49
VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 187.
50
GALEANO,2010.
a história narrada não se passa muito distante dos nossos tempos e de enredos – mais ou

menos - conhecidos por cada um de nós, o que, quiçá, tem corroborado para aglutinar em

torno de si uma profusão qualitativa de leitores, comentários e reflexões.

Nesses termos, em Torto Arado, ratifica-se a magnitude – e a atualidade - da discussão

pertinente à promoção e à defesa do direito de acesso à terra e dos seus consectários, a

exemplo da igualdade, liberdade e vida, capazes de promover e estabelecer fundamentos

mínimos para a construção conjunta do Bem Viver latino, bem como de oportunizar um olhar

crítico – pessoal e coletivo - sobre os silenciamentos, as injustiças e as desigualdades

deliberadamente cristalizadas pela lógica colonial servil.

Ademais, constatou-se que, diferentemente do firmado pela ordem do dever ser do

Direito, na prática, ou seja, no mundo do ser, o Direito, seguidas vezes, tem sido utilizado

como instrumental de óbice à concretização da justiça (social), especialmente quando se

refere aos direitos dos mais vulneráveis e subalternizados pelo sistema capitalista, com

destaque para aqueles que – direta ou indiretamente – dizem respeito à terra, elemento secular

de constituição e manutenção do poder, o que se testifica pelas sucessivas graves violações

cometidas no curso de Torto Arado, a exemplo da privação de alimentos, da negação de

acesso à terra e aos direitos laborais do campo em face dos trabalhadores de Água Negra.

Destarte, a partir de uma leitura contextualizada de Torto Arado, observou-se como

essencial - e urgente - numa dimensão utópica-propositiva, refletir e urdir um novo Direito, na

contramão do vigente modelo hegemônico de desenvolvimento, disposto a pautar-se pela

inclusão e justiça social, capaz de enxergar, acolher e lançar luz sobre os mais diversos

sujeitos de direito, sobretudo os historicamente invisibilizados, com destaque para os

trabalhadores rurais, membros de comunidades tradicionais e mulheres, no afã de garantir, em

caráter amplo e irrestrito, os seus direitos humanos fundamentais e promover uma atuação -
efetiva e coletividade - rumo ao Bem Viver, o que passa inexoravelmente pela promoção e

defesa do direito de acesso à terra como bem comum.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, 1988. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/conadc/1988/constituicao.adct-1988-5-outubro-1988-
322234-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: 11 mai. 2021.t
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA - CPT. Conflitos no Campo: Brasil 2019. Goiânia:
Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno/CtfT Nacional, 2020.
FEITOSA, Sara. Torto Arado. Estamos diante de um novo clássico da literatura brasileira?
In: CiênciAção X I, ano 1, 15 de Abril de 2021.
FREITAS, Raquel Barradas de. Direito, linguagem e literatura: reflexões sobre o sentido e
alcance das inter-relações. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1990.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Trad. Sergio Faraco. Porto
Alegre: L&PM, 2014.
MACHADO, Roniery Rodrigues. Conflitos agrários e direito: a luta pela terra e a perspectiva
do pluralismo jurídico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 7 ed. São Paulo: HUCITEC, 1998.
MARTINS, José de Souza. A escravidão nos dias de hoje e as ciladas da interpretação:
(reflexões sobre riscos da intervenção subinformada). In: COMISSÃO PASTORAL DA
TERRA. Trabalho escravo no Brasil contemporâneo. São Paulo: CPT/ Loyola, 1999.
MARTINS, José de Souza. A reprodução do capital na frente pioneira e o renascimento da
escravidão no Brasil. In: Tempo Social; R. Sociol. USP, Volume 6 – N.º 1-2, 1994.
NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. 3. Ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
REPÓRTER BRASIL. Operações de fiscalização de trabalho escravo. Disponível em:
http://reporterbrasil.org.br/dados/trabalhoescravo/. Acesso em: 19 abr. 2021.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 12. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1978.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre
os homens. São Paulo: Penguin, 2017.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.
VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto Arado. São Paulo: Todavia, 2019.

Você também pode gostar