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Advogada. Doutora e mestra Direito Constitucional pelo Programa de Pós-graduação em Direito da
Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Pós-doutoramento pelo Programa de Pós-graduação em Direito Agrário
da Universidade Federal de Goiás (PPGDA/UFG). Professora da ESUP/GO. Membro e Coordenadora do Núcleo
de Pesquisa em Gênero da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional
Goiás (CMA/OAB-GO). E-mail: ivchehab@gmail.com;
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Advogada. Mestra em Direito Agrário pelo Programa de Pós-graduação em Direito Agrário da Universidade
Federal de Goiás - UFG. Bolsista CAPES. E-mail: giovananobrec@gmail.com;
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Advogado. Mestre em Direito Agrário pelo Programa de Pós-graduação em Direito Agrário da Universidade
Federal de Goiás (PPGDA/UFG). Advogado. E-mail: victorklavier@hotmail.com.
relevant elements and the relationship with the dilemmas experienced by the traditional
populations and Brazilian peasants;in a second moment, it will analyze, based on the
reflections and criticisms brought by Torto Arado, how this agenda has been treated in the
course of our history, highlighting the challenges, struggles and confrontations experienced by
rural populations and how traditional law can be an obstacle to realization of fundamental
human rights; finally, it will bring up the debate about the plurality of meanings of human-
land relations and the importance of contemplating such possibilities in - and for - the
construction of the common good, without forgetting to reflect on a (new) right, apt to
strengthen human rights and genuinely contribute to the realization of social justice in the
field. This is an exploratory research developed through, mainly, consultation and
bibliographic and documentary review, given the abundant availability of material on the
subject, whose data will be the object of qualitative analysis.
Keywords: Access to land; Agrarian issue; Common good; Law; Literature;
INTRODUÇÃO
(Maria Bethânia)
No entanto, formas de luta pela reconfiguração destes espaços têm ganhado fôlego e
o que se tem percebido é que a arte, mais do que nunca, perpassa a política e –
consequentemente – a luta por direitos. Nesse sentido, Torto Arado (VIEIRA JUNIOR, 2019),
por meio da construção – ainda que literária e ficcional – de uma narrativa que retrata
precisamente a herança escravocrata no Brasil, a privação do acesso à terra pelas camadas
mais pobres da população e a exploração do seu trabalho para a acumulação de riquezas, traz
ao público uma ferramenta eficaz de reflexão capaz de colocar o seu leitor em situação de
alerta e provocação diante da diversidade de possibilidades não só de problematização das
diversas situações trazidas no decorrer da trama, mas, igualmente, de como muito do que é
tratado como ficção pode estar profundamente arraigado na estruturação da sociedade
brasileira e nas suas formas de ver o mundo.
Ademais, diante das relações e disputas sociais cada vez mais complexas, refletir o
Direito no seu papel mediador e administrador destes conflitos tem sido um grande desafio
aos juristas deste tempo, diante do qual o estudo do Direito através da Literatura tem se
mostrado bastante relevante no que vai muito além da interdisciplinaridade, no intuito de
construir um espaço crítico, onde seja possível o questionamento de axiomas, fundamentos,
efetividade, etc.: a aproximação do campo jurídico à narrativa literária permite também que
seus operadores assimilem a capacidade criadora, crítica e reflexiva que a literatura respira,
podendo superar alguns de seus limites intrínsecos, assim como aqueles impostos pelo senso
comum teórico pautado pelo tecnicismo, pelo positivismo engessado e pela dogmática
reducionista, que restringe a prática jurídica a um discurso lógico-pragmático e cerra os olhos
para toda a realidade material, desconsiderando a importância constitutiva da linguagem na
construção da intersubjetividade e intertextualidade que lhe são inerentes4.
Itamar Vieira Junior abre Torto Arado com uma passagem de Lavoura arcaica de
Raduan Nassar (1989) em epígrafe – “A terra, o trigo, o pão, a mesa, a família (a terra); existe
neste ciclo, dizia o pai nos seus sermões, amor trabalho, tempo” (NASSAR apud VIEIRA
JUNIOR, 2019) – que traduz em poucas palavras a complexidade que a relação entre o ser
humano o seu meio de vida pode tomar: muito além da máxima dominante fortemente
relacionada à exploração exacerbada dos recursos naturais e do trabalho visando o lucro, a
terra para outros sujeitos pode adquirir um valor muito mais subjetivo e determinante nas suas
próprias formas de existir e de se colocarem e se compreenderem no mundo. E é justamente a
partir desta concepção que o autor desenrola a trama que, ainda que lançada tão recentemente
no Brasil – em 2019 – já sugere a posição de um clássico contemporâneo da nossa literatura
(FEITOSA, 2021).
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Há alguns elementos que sugerem que a fazenda Água Negra se localiza na região da Chapada da Diamantina,
no estado da Bahia (os hábitos dos moradores, a herança extrativista de diamantes, o Jarê e uma ou outra
indicação temporal imprecisa). Entretanto, como o autor não dá indícios muito objetivos sobre isso, torna-se uma
hipótese subjetiva e discutível.
ademais é agravado pela condição de pobreza e miséria imposta a estes sujeitos socialmente
abandonados: “não havia lugar para o trabalhador que considerasse a liberdade como negação
do trabalho; mas apenas para o trabalhador que considerasse o trabalho como uma virtude de
liberdade” (MARTINS, 1998, p. 18). Por mais que os senhores de terras não tivessem
autoridade formal sobre os cativos, outros mecanismos de coerção acabaram sendo
desenvolvidos, de modo que a exploração do trabalho fosse de alguma maneira legitimada
tanto pelo fazendeiro quanto pelos lavradores, como conta Bibiana:
O gerente queria trazer gente que ‘trabalhe muito’ e que ‘não tenha medo de
trabalho’ [...]. Podia construir casa de barro, nada de alvenaria, nada que demarcasse
o tempo de presença das famílias na terra. Podia colocar roça pequena para ter
abobora, feijão, quiabo, nada que desviasse da necessidade de trabalhar para o dono
da fazenda, afinal, era para isso que se permitia a morada. Podia trazer mulher e
filhos, melhor assim, porque quando eles crescessem substituiriam os mais velhos.
[...] Vi meu pai dizer para o meu tio que no tempo de seus avós era pior, não podia
ter roça, não havia casa, todos se amontoavam no mesmo espaço, no mesmo
barracão (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p. 41).
É também Bibiana que entra em detalhes sobre as dificuldades vividas pelo seu povo
nas profundezas deste Brasil tão controverso, ora belo e poético, ora bastante e cruel com os
seus – “As crianças eram as que mais padeciam: paravam de crescer, ficavam frágeis e por
qualquer coisa caíam doentes. Perdi as contas de quantas não resistiram à má alimentação e
seguiram sem vida, em cortejo, para o cemitério da Viração” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 69)
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A obra literária traz uma passagem emblemática que ilustra muito bem esta situação: “Quando deram a
liberdade aos negros, nosso abandono continuou. O povo vagou de terra em terra pedindo abrigo, passando
fome, se sujeitando a trabalhar por nada. A mesma escravidão de antes fantasiada de liberdade. Mas que
liberdade? Não podíamos construir casa de alvenaria, não podíamos botar a roça que queríamos. Levavam o que
podiam do nosso trabalho. Trabalhávamos de domingo a domingo sem receber um centavo. O tempo que
sobrava era para cuidar das nossas roças, porque senão não comíamos. Era homem na roça do senhor e mulher e
filhos na roça de casa, nos quintais, para não morrerem de fome” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 220).
– completamente desassistidos, privados da sua menor dignidade e à mercê do próprio
abandono, envoltos por uma paisagem onde se ouvia muito falar que “da seca não brotava
nem pasto, muito menos batata. E a secura era tanta que nem as várzeas estavam sendo
cultivadas. No leito do rio, onde não havia água, era possível encontrar uma lama que
apodrecia as sementes, de onde também não brotava nada” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 85),
aspectos que, apesar de serem delineados numa obra de ficção, ilustram muito bem a
realidade que uma parcela considerável de brasileiros ainda enfrenta nos dias de hoje.
O fôlego da luta pelos direitos daquele povo pode ser percebido no ímpeto do
personagem Severo, um primo distante recém-chegado a Água Negra e com quem
posteriormente se casa Bibiana, engajado politicamente e bastante crítico à situação
enfrentada pelos seus companheiros tanto naquela fazenda quanto em outras da região,
“contando história de sindicato, de direitos, de lei. Estava levando essas conversas para os
campos de trabalho” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 186). Aos poucos, certas indagações vão
provocando a tomada de consciência por parte dos habitantes de água Negra que passam a
enxergar que nos predicados outrora valorosos que compunham os qualitativos daqueles
moradores nada mais havia do que uma distorção dos seus significados reais, a gente que não
tinha medo de trabalho foi se percebendo como vítima da precarização das relações laborais e
como forma de dominação dos seus senhores diante de, além da sua necessidade de
sobrevivência, sua também falta de oportunidades e possibilidades além daquelas terras.
Por mais que seja um enredo construído numa obra de ficção, fazendo um paralelo
com uma realidade que vai além das páginas de Torto Arado, conforme levantamento de
dados feito pela organização Repórter Brasil, em 2014 foram registradas 22 fazendas com
trabalhadores em situação análoga à escravidão no Brasil (REPÓRTER BRASIL, 2014), onde
os seus trabalhadores, quando não trabalhavam somente pelo indispensável à sobrevivência,
estavam atrelados a dívidas insanáveis contraídas pelas suas próprias estadias nestas
propriedades. Na mesma toada, em 2019 a Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2020) registrou
1.833 ocorrências sobre conflitos por terra em todo o país, envolvendo quase mil pessoas e
contando com 32 assassinatos. Ambos os exemplos estão intimamente relacionados às
estruturas de poder vigentes no meio rural brasileiro e realçam o paradigma de uma questão
agrária cujas feridas continuam abertas, e sobre as quais Itamar Vieira Junior lança um olhar
sensível e simultaneamente crítico ao construir a história dos habitantes da fictícia fazenda
Água Negra.
Diante disso, o Brasil que Itamar Vieira Júnior desenha pelas linhas de Torto Arado é
um Brasil ficcional, mas não tão fictício quanto poderia ser. Ainda que a obra não possua
nenhum tipo de compromisso com o real, sua narrativa é capaz de lançar luz sobre problemas
cujas raízes estão profundamente atreladas às dinâmicas que ainda perduram nos dias de hoje
na sociedade. Ademais, muitos outros temas são pincelados pelo autor ao construir sua trama:
os papéis de gênero, a colonização religiosa pelo cristianismo e o apagamento das religiões
originárias e de matriz africana, os paralelos entre a marginalização de certas populações
advindas do campo no meio rural, a violência policial presente na periferia dentre muitos
outros. Por meio de uma escrita extremamente sensível e precisa naquilo que quer contar, o
Brasil de Itamar é um Brasil sofrido e ora muito cruel, mas é, do mesmo modo, um Brasil
forte e que não hesita em continuar lutando dia após dia.
Na ordem do dever ser aprendemos que o Direito deveria se coadunar com a justiça,
sobretudo, a justiça social; na prática, ou seja, no mundo do ser, entretanto, especialmente no
que concerne às questões vinculadas à “terra” – e no Brasil –, o Direito, seguidas vezes,
findou por se tornar instrumental relevante, ou mesmo, o protagonista, de um sistema
cuidadosamente forjado para privilegiar alguns poucos, oprimir muitos e corroborar para a
permanência de suas desigualdades. Nessa toada, desde a invasão portuguesa, quase todas as
normativas que conjugaram os elementos “direito” e “terra”, logo, decorrentes ou pertinentes
ao Direito Agrário que por aqui tiveram vigência – curta ou longa –assumiram como
propósito – implícito ou explícito – garantir e/ou estabelecer possibilidades jurídicas para a
manutenção do status quo dos donos do poder, a saber: grandes proprietários rurais,
produtores agrícolas, seus representantes – legais e/ou políticos - ou apoiadores de todo
gênero.(MACHADO, 2018, p. 114) Assim, partindo do modelo sesmarial, passando pela Lei
de Terras (1850), Regulamento da Lei de Terras (1854), Registro de Torrens (1890), Código
Civil (1916), alcançando quase todas as nossas Constituições, ou seja, Constituição Política
do Império do Brasil (1824), Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1891),
Constituição brasileira (1934), Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1937),
Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1946) e Constituição da República Federativa do
Brasil (1967), a lógica – em maior ou menor medida – era a mesma: firmar os privilégios de
poucos, mas grandes, latifundiários, em detrimento da maioria dos trabalhadores do campo e
dos povos tradicionais. Nunca faltaram leis, mas delas poucos fizeram uso ou obtiveram
justiça, especialmente no contexto agrário. Fato que só foi objeto de algum tênue rompimento
normativo, com o advento dos amplos debates levados a cabo durante a Assembleia Nacional
Constituinte (1987/88) e da consequente promulgação da Constituição da República
Federativa do Brasil (1988).
(...) Se algo acontecesse a eles, não teríamos direito à casa, nem mesmo à terra onde
plantavam sua roça. Não teríamos direito a nada, sairíamos da fazenda carregando nossos
poucos pertences. Se não pudéssemos trabalhar, seríamos convidados a deixar Água Negra,
terra onde toda uma geração de filhos de trabalhadores havia nascido. Aquele sistema de
exploração já estava claro para mim. (VIEIRA JUNIOR, 2020, p. 83)
Observa-se, portanto, que Vieira não se exime de expor nas linhas e entrelinhas da sua
obra as injustiças, silenciamentos e subalternizações provocadas ou avalizadas pelo Direito
em face dos trabalhadores rurais. Por meio da personagem Bibiana, por exemplo, vocalizou
no trecho acima sobre o eventual destino de sua família, se porventura algo lhes acontecesse e
tivessem sua força de trabalho reduzida ou extirpada e, na citação abaixo, aclara a crueza
dessa teia de exploração a que estavam vinculados, com as “bênçãos do direito de
propriedade” e de onde não lhes restava quase nenhuma escolha ou rota de fuga, exceto a
resignação.
A família Peixoto queria apenas os frutos de Água Negra, não viviam a terra, vinham da
capital apenas para se apresentar como donos, para que não os esquecêssemos, mas, tão
logo cumpriam a sua missão, regressavam. Mas havia os fazendeiros e sitiantes que
cresceram em número e que exerciam com fascínio e orgulho seus papeis de dominadores,
descendentes longínquos dos colonizadores; ou um subalterno que havia conquistado a
sorte no garimpo e passava a exercer o poder sobre os outros, que, se sem alternativa, se
submetiam ao seu domínio. (VIEIRA JUNIOR, 2020, p. 54) (grifo nosso)
Outro tópico deveras debatido por Vieira diz respeito à supressão de direitos em
desfavor dos trabalhadores rurais, inclusive dos direitos humanos mais comezinhos, como o
direito à alimentação, sem o qual simplesmente perecemos. Exposto na perspectiva de uma
constante ameaça, em verdade, secular, de caráter individual e coletiva, faz parte do cotidiano
de Bibiana e dos seus, guardando efeitos imediatos, mas também se apresenta como pavor
complementar – e sucedâneo - à falta de trabalho, para gerações de sobreviventes das
injustiças do/no campo, a saber:
Com a seca, veio o medo de nos mandassem embora por falta de trabalho. Depois veio o
medo mais imediato da fome. Os grãos passaram a rarear, o feijão acabou antes do arroz, e
do arroz restava muito pouco. Havia um razoável suprimento de farinha de mandioca que
algumas famílias fabricavam e trocavam por outros alimentos. Agora, mais que antes,
seguíamos quase todos os dias para os rios para pescar, e a cada pescaria só conseguíamos
capturar peixes cada vez menores, que só serviam para dar um gosto ao angu de farinha
(VIEIRA JUNIOR, 2020, p. 67-68)
Meu pai não sabia nem mesmo assinar o nome, e fez o que estava ao seu alcance para trazer
uma escola para a fazenda, para que aprendêssemos letra e matemática. Muitas vezes o vi
tentar convencer algum vizinho que não queria que o filho fosse à escola; até concordava
que o filho fosse, mas dizia que menina não precisava aprender nada de estudo. Mesmo
contrariando o compadre, conseguia que o seu pedido fosse acatado, grande era a
consideração e o prestígio que fluíam de sua liderança. (VIEIRA JUNIOR, 2020, p. 96)
Por semelhante modo, é relevante destacar que Torto Arado expõe uma outra triste
realidade, ainda pouco explorada e debatida pelo Direito no contexto agrário, mas deveras
presente nas suas entranhas: as diversas espécies de violência doméstica e familiar contra a
mulher7 no âmbito rural. Itamar Vieira pontua sobre o tamanho e a gravidade desse malogro
7
A título de exemplo, podem ser apontados os dados sobre a violência contra mulheres quilombolas
constantes em: TERRA DE DIREITOS. Racismo e violência contra Quilombos no Brasil. Disponível em:
em diversas seções da obra, aclarando o quanto a violência contra a mulher está arraigada nas
relações e tem sido utilizada como instrumental potente para perpetuar as opressões no campo
(SCHWARCZ, 2019, p.187), inclusive, ao intentar estabelecê-las como cidadãs de segunda
classe ou meras reprodutoras dos latifúndios: “(...) Mas isso nada significava para nós
mulheres da roça. Éramos preparadas desde cedo para gerar novos trabalhadores para os
senhores, fosse para as nossas terras de morada ou qualquer outro lugar onde precisassem. ”
(VIEIRA JUNIOR, 2020, p. 129)
Ou, mais especificamente, quando o livro relata os abusos praticados por Tobias, em
face de sua companheira Belonísia, que de início, eram interpretados por ela como
expedientes plausíveis, mas que, posteriormente, ao tomar consciência da violência física e
moral a que estava sendo submetida, percebeu o quanto aquilo tudo lhe era prejudicial e como
seria injusto consigo - e com a sua história – não enfrentar esse contexto de opressões
sistemáticas protagonizadas pelo seu companheiro, senão vejamos:
Tobias retornava ao fim da tarde e a primeira coisa que fazia era dar uma talagada na
garrafa de cachaça que ficava em cima da mesa. Depois tomava banho ou ia direto se sentar
à mesa para refeição. Eu parava o que estivesse fazendo para servi-lo. No começo, parecia
apreciar minha comida, sempre repetia. Depois passou a reclamar que tinha muito ou pouco
sal. Que o peixe estava cru, e me mostrava pedaços em que eu não conseguia enxergar a
falta de cozimento, ou outros que se esbagaçavam com as espinhas, dizendo que tinham
cozido demais. Nessas horas eu ficava aflita, o coração aos pulos, magoada comigo mesma,
me sentindo uma tonta por ter sido desleixada com o preparo. (VIEIRA JUNIOR, 2020, p.
115)
Olhei para ao chão e vi a comida espalhada. Aquele chão onde havia curvado meu corpo
para varrer e assear com zelo. Senti raiva naquele instante, perguntei a mim mesma quem
aquele vaqueiro ordinário pensava que era. No início, encarava com inquietação os acessos
de fúria que passou a apresentar. Antes eram mais contidos. Agora tinha perdido as
estribeiras. Dali a pouco esse cavalo iria me bater igual ao marido da Maria Cabocla. Mas
eu já me sentia diferente, não tinha medo de homem, era neta de Donana e filha de Salu,
que fizeram homens dobrar a língua para se dirigirem a elas. (VIEIRA JUNIOR, 2020, p.
121)
Não podemos mais viver assim. Temos direito à terra. Somos quilombolas. Era um desejo
de liberdade que crescia e ocupava quase tudo o que fazíamos. Com o passar dos anos esse
https://terradedireitos.org.br/acervo/publicacoes/livros/42/racismo-e-violencia contra-
quilombos-no-brasil/22928. Acesso em: 10 jan. 2020.
desejo começou a colocar em oposição pais e filhos numa mesma casa. (...) Queremos ser
donos de nosso próprio trabalho, queremos decidir sobre o que plantar e colher além de
nossos quintais. Queremos cuidar da terra onde nascemos, da terra que cresceu com o
trabalho de nossas famílias. (VIEIRA JUNIOR, 2020, p. 187)
Muitos nunca estiveram conformados com os interditos, mas durante muito tempo foi
necessário permanecer quieto e submisso para garantir sobrevivência. Agora falam em
direito dos pretos, dos descendentes de escravos que viveram errantes de um lugar para
outro. Falam muito sobre isso. Que agora tem lei. Tem formas de garantir a terra. De não
viverem à mercê do dono. Correndo daqui pra acolá, como no passado. (VIEIRA JUNIOR,
2020, p. 212)
Por derradeiro, constata-se, a partir dos extratos de Torto Arado aqui compartilhados,
mas também da longa e conflituosa jornada entre o direito e a terra, que aquele, portanto, o
Direito, enquanto mero elemento da norma posta, pautado na interpretação tradicional e na
subsunção clássica muito pouco pode fazer pela concretização do justo, em sentido lato, seja
porque raramente se dispõe a compreender ou promover novos ( e críticos) olhares acerca das
questões sociais mais complexas, seja porque, historicamente, via de regra, compatibilizou-se
e firmou uma aproximação com as demandas e os segmentos mais privilegiados da
sociedade . Entende-se, todavia, que o que pode corroborar para alguma transformação social
mais efetiva, na vida dos trabalhadores rurais e das comunidades tradicionais, guarda raízes na
própria concepção de emancipação forjada com e por aqueles sujeitos que, cônscios dos seus
desafios, se dispõem, por meio de uma implicação genuína, a trilhar uma nova história, que
reconheça e garanta a voz do seu povo, da sua memória e do seu porvir.
As narrativas trazidas à baila nas páginas de Torto Arado - que contam a trajetória
tanto das famílias que chegaram em Água Negra, quanto dos indivíduos que já nasceram neste
território -, apesar de ficção, refletem bem sobre a história daqueles que seguem na luta pelo
acesso à terra, pelo direito de exercer a reprodução de seu modo de vida, de sua cultura, de
sua religiosidade e do seu povo sob o território que usam e ocupam. Fala-se, aqui, de povos
originários e povos tradicionais. São indígenas, quilombolas, caiçaras, ribeirinhos, pescadores
artesanais, camponeses, quebradeiras de coco-babaçu, comunidades de fundo e fecho de
pasto, faxinalenses, seringueiros, ciganos, entre outros.
Uma pluralidade de comunidades, espalhadas por todas as cinco regiões desse País,
com caraterísticas diversas e formas de ocupar o território próprias, que desafiam a ficção que
a terra só existe enquanto valor patrimonial, ou seja, desafiam, diretamente, a maneira como o
sistema do capitalismo dependente, em que o Brasil está inserido, se apropria da terra
enquanto capital. Ao mostrar que há outras formas possíveis de ocupar à terra, sem que isto
signifique um uso predatório e que se baseia exclusivamente no lucro que pode ser auferido
através dela, estes povos se colocam no front da resistência a vários setores que servem a
manutenção do sistema econômico vigente, como o agronegócio e a mineração, e buscam
deter o poder sobre o mundo rural negando não só o direito dos povos e comunidade, como,
também, a existência destes.
Nesses termos, o Bem Viver9 é uma dessas propostas, tendo sua origem referenciada
na cosmovisão dos povos andinos (KRENAK, 2020), que, nos últimos anos, foi base de
propostas revolucionárias e mobilizações populares que ganharam forma, principalmente, na
Bolívia e no Equador, países estes nos quais o Bem Viver, inclusive, foi moldado nas
constituições. No entanto, o que se propõe com este não pode e nem deve ser cristalizado ao
ser institucionalizado, e, sim, entendido como uma filosofia em construção e um paradigma
para se pensar coletivamente uma nova forma de vida (ACOSTA, 2016).
Tem-se, com isto, que “o Bem Viver recupera esta sabedoria ancestral, rompendo
com o alienante processo de acumulação capitalista que transforma tudo e todos em coisa”
(ACOSTA, 2016, p. 15). Pelas lentes deste conceito, é possível entender que a forma de
interação das comunidades rurais, povos e comunidades tradicionais com a terra e o território
está além da terra enquanto acumulação. Isso fica visível nas letras de Torto Arado sempre
que são narradas as falas e pensamentos dos personagens sobre o chão que vivem e sobre o
pertencimento ao local:
8
Explicada a partir da Teoria Crítica de Direitos Humanos de Joaquin Herrera Flores (2002).
9
“Bem Viver não é definitivamente ter uma vida folgada. O Bem Viver pode ser a difícil experiência de manter
um equilíbrio entre o que nós podemos obter da vida, da natureza, e o que nós podemos devolver. É um
equilíbrio, um balanço muito sensível e não é alguma coisa que a gente acessa por uma decisão pessoal”
(KRENAK, 2020, p. 8-9).
10
Compreende-se Direitos Humanos, aqui, a partir da visão complexa cunhada por Joaquin Herrera Flores
(2002) em Direitos Humanos, Interculturalidade e Racionalidade de Resistencia.
Esta terra mora em mim, bateu com força em seu peito, “brotou em mim e
enraizou.” “Aqui”, bateu novamente no peito, “é a morada da terra. Mora aqui em
meu peito porque dela se fez minha vida, com meu povo todinho. No meu peito
mora Água Negra, não no documento da fazenda da senhora e de seu marido. Vocês
podem até me arrancar uma erva ruim, mas nunca irão arrancar a terra de mim.
(VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 230).
Severo diz de uma forma que o povo fica atento, indo de casa em casa, da escola aos
caminhos para a roça. Depois o povo fica se perguntando, conversando entre si, e
vão recuperando as histórias das famílias antes da chegada. Eu tentava me
concentrar para aprender sobre o que Severo contava. Que chegou um branco
colonizador e recebeu a dádiva do reino. Chegou outro homem branco com nome e
sobrenome e foram dividindo tudo entre eles. Os índios foram sendo afastados,
mortos, ou obrigados a trabalhar para esses donos da terra. Depois chegaram os
negros, de muito longe para trabalhar no lugar dos índios. Nosso povo, que não
sabia o caminho de volta para a sua terra, foi ficando (...) (VIEIRA JUNIOR, 2019,
p. 177).
11
O mercado de terras foi estruturado formalmente com a Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850, que
estabeleceu claros obstáculos ao acesso legal à terra por parte dos negros alforriados, povos indígenas e
trabalhadores imigrantes. “Coibindo a posse e instituindo a aquisição como forma de acesso à terra, tal
legislação instituiu a alienação de terras devolutas por meio de venda, vedando, entretanto a venda em hasta
pública, e favoreceu a fixação de preços suficientemente elevado das terras” (ALMEIDA, 2008, p.39)
É válido lembrar, aqui, que as comunidades quilombolas passam a ter seu direito
humano fundamental definitivo ao território que ocupam apenas a partir da Constituição de
1988, a qual trouxe em seu bojo o Art. 68 da ADCT, instituto este que foi resultado de muita
luta e uma intensa movimentação por parte do Movimento Negro. Pelo contexto narrado na
obra, os locais de militância que Severo frequentava, assim como sua movimentação em torno
do direito que os moradores tinham sobre aquele território pode indicar que esses fatos se
passaram à época em que a discussão sobre quilombola como categoria jurídico-sociológica a
ser inserida na Constituição estava a todo fervor.
Meu irmão insistiu no assunto, apesar de evitar falar na frente de nosso pai. Vivia
com Severo para cima e para baixo, entre um trabalho e outro, para ganhar a atenção
dos moradores. “Não podemos mais viver assim. Temos direito à terra. Somos
quilombolas.” Era um desejo de liberdade que crescia e ocupava quase tudo que
fazíamos. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 187).
Diante do que fora analisado, é possível entender o Direito de acesso à terra como um
direito humano fundamental, entretanto, é essencial ressaltar que, assim como preconiza a
Teoria Crítica dos Direitos Humanos elaborada por Herrera Flores, os Direitos Humanos –
assim como o Bem Viver - não devem ser vistos apenas como reconhecimento jurídico,
afinal, precisam ser entendidos, também, como processos de lutas, com avanços e retrocessos,
forjados por sujeitos históricos, muitas vezes, debilitados por quem deveria contribuir para a
realização dos seus direitos, mas persistentes no intento e na resistência pela construção de
condições de vida digna. Tais lutas, repisa-se, jamais foram um dado, têm sido travadas a
muitos anos por comunidades rurais, povos e comunidades tradicionais, assim como foram
representadas em Torto Arado pela história – de vida e morte - dos moradores quilombolas de
Água Negra.
CONCLUSÃO
Por seu turno, o Brasil, como parte da América Latina, segue lidando, também, com
todos os desafios e ônus de um passado vil nunca efetivamente tratado, que se faz exposto,
com clareza e potência, por intermédio das linhas de Torto Arado. Ali temos a certeza de que
a história narrada não se passa muito distante dos nossos tempos e de enredos – mais ou
menos - conhecidos por cada um de nós, o que, quiçá, tem corroborado para aglutinar em
torno de si uma profusão qualitativa de leitores, comentários e reflexões.
REFERÊNCIAS
FREITAS, Raquel Barradas de. Direito, linguagem e literatura: reflexões sobre o sentido e
alcance das inter-relações. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1990.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Trad. Sergio Faraco. Porto
Alegre: L&PM, 2014.
MACHADO, Roniery Rodrigues. Conflitos agrários e direito: a luta pela terra e a perspectiva
do pluralismo jurídico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 7 ed. São Paulo: HUCITEC, 1998.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.