Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
fábulas que a autora, no Epílogo da obra, denominou Esope (“Esopë apel’um cest livre”).2
Apesar de sua produção literária,3 pouco sabemos acerca desta que é considerada a
primeira poetisa francesa. 4 O célebre verso “Marie ai num, si sui de France”, contido no
* Bacharel e Licenciada em História pela Universidade Santa Úrsula, Mestre em História Medieval pela
UFRJ, ex-Professora Substituta de História Medieval da UFRJ e professora de História Medieval do Centro
Universitário Moacyr Sreder Bastos.
1
Das fábulas de Marie de France sobreviveram 23 manuscritos, produzidos entre os séculos XIII e XVI. O
original, contudo, se perdeu. Karl Warnke propôs, no final do século XIX, uma classificação desses
manuscritos em três grupos, alfa, beta e gama, dos quais o alfa corresponde aos mais próximos de Marie no
tempo, sendo composto pelos seguintes manuscritos: Y=York, Minster XVI, K.12, 1 a parte, fol.1-22, início
do século XIII (é o mais antigo, porém incompleto); M=Bibliothèque Nationale, fr.1822, fl.198a-217bis,
século XIII (incompleto); D=Bodleian Douce 132, fol.35-61b, metade do século XIII (falta a fábula 32);
A=British Library, Harley 978, fl.40a-67b, segunda metade do século XIII (completo). Este último é o mais
conhecido, sendo considerado como a melhor cópia. Juntamente com D e Y, é um dos raros manuscritos em
franco-normando, o idioma no qual Marie escreveu, além de estar completo, fato considerado igualmente
raro, motivo pelo qual tem sido utilizado nas edições das fábulas de Marie de France. Em nosso trabalho
estamos utilizando a seguinte edição bilíngüe: MARIE DE FRANCE. Les fables. Ed. e trad. Charles Brucker.
Louvain (Belgium): Peeters, 1991. Embora a primeira edição das fábulas tenha sido publicada no final do
século passado (WARNKE, Karl. Die Fabeln der Marie de France. Halle: Niemeyer, 1898), foi somente nos
últimos dez anos que as fábulas de Marie de France despertaram o interesse dos estudiosos, todos ligados às
áreas de literatura e lingüística, que vêm apresentando o resultado de suas investigações através de artigos
publicados, predominantemente, em revistas especializadas. Sobre a produção recente acerca das fábulas,
cf.: BURGESS, Glyn S. “The Fables of Marie de France: Some Recent Scholarship”. French Studies
Bulletin, 61(1996), pp. 8-13.
2
Na Idade Média, era costume entre os fabulistas atribuir suas fábulas a Esopo, considerado como o inventor
do gênero. O fabulista grego foi utilizado, inclusive, para nomear as coleções de fábulas medievais
francesas, que eram chamadas de ésopes ou, mais freqüentemente, de isopets, “petits ésopes”, talvez pelo fato
de que, desde a Antigüidade, a fábula era considerada como um gênero menor, devido tanto às suas origens
orais - fabula vem de fari, que em latim significa “falar” -, como pelas suas funções utilitárias, de
ensinamentos morais. Cf.: BOIVIN, Jeanne-Marie e HARF-LANCNER, Laurence. Fables françaises du
Moyen Âge: les Isopets. Paris: Flammarion, 1996, p. 11.
3
Além das fábulas, Marie de France escreveu os Lais - poemas ligados ao amor cortês e à chamada “matéria
da Bretanha”- e L’Espurgatoire Seint Patriz, baseado no texto latino do monge Henry de Saltrey. Sobre a
bibliografia completa das edições das obras de Marie de France, bem como dos estudos realizados sobre suas
obras no mundo inteiro, incluindo artigos, dissertações e teses, cf.: BURGESS, Glyn S. Marie de France: an
analytical bibliography. Londres: Grant and Cutler, 1977; Supplement n o1, 1986; Supplement n o2, 1997.
2
Epílogo do Esope, é o único dado que nos deixou a seu respeito. E foi a este verso que
Claude Fauchet, em seu Recueil de l’origine de la langue et poesie françoise (Paris, 1581),
estudiosos a tentar decifrá-lo.6 No entanto, toda tentativa feita até agora para descobrir sua
origem familiar foi em vão,7 e os estudiosos tiveram que recorrer à produção literária de
Marie para recolher os indícios que tornaram possível a delimitação de seu perfil social. 8
inglesa de Henrique II Plantageneta, para cujo público suas obras, escritas no idioma
arcaico - era o idioma utilizado pela população em geral; e o latim era a língua da Igreja.
escritas em latim eram destinadas ao saber erudito - pois era a língua da erudição e da
público não letrado ou não versado em latim, isto é, aos leigos. Desse modo, é possível
4
Marie de France foi a primeira mulher de seu tempo a escrever sucessivamente no vernáculo, no caso o
idioma franco-normando. Cf.: BURGESS, Glyn S. e BUSBY, Keith. The Lais of Marie de France. Londres:
Penguin, 1986, p. 17.
5
Id., p. 7.
6
Marie de France foi identificada como sendo Mary, abadessa de Shaftesbury, filha natural de Godofredo
Plantageneta e meia-irmã de Henrique II; como Marie de Champagne, filha de Eleonor de Aquitânia e Luís
VII de França; como uma abadessa de Reading, na Inglaterra; como Marie de Meulan, filha do conde
normando Galeran de Meulan e esposa de Hugues Talbott, barão de Cleauville; e como Marie de Boulogne.
Cf.: MÉNARD, Philippe. Les Lais de Marie de France. Paris: Presses Universitaires de France, 1979, pp. 16-
17; BURGESS, Glyn S. e BUSBY, Keith. Op.cit., p. 130.
7
Das diversas conjecturas a respeito, nada pode ser afirmado pois, como esclarece Philippe Ménard, a
própria multiplicação de suposições é um indício patente de fragilidade, e toda tentativa de identificação
resulta em fracasso quanto não sustentada através de provas concordantes e indiscutíveis. Cf.: MÉNARD,
Philippe. Op.cit., p. 17.
8
Cf., entre outros: BURGESS, Glyn S. e BUSBY, Keith. Op.cit.; MÉNARD, Philippe. Op.cit.; BRUCKER,
Charles (ed.). Op.cit.; HARF-LANCNER, Laurence. Lais de Marie de France. Paris: Librairie Générale
Française, 1990.
9
O nome de France , assim como Lallemand, Picard e Langlois, indica origem. Significa, ainda, que Marie
vivia longe do lugar onde nasceu. Cf.: MÉNARD, Philippe. Op.cit., p. 15.
3
afirmar que tanto o idioma quanto a produção literária possuíam um significado social.10
Além do idioma utilizado por Marie de France, sua ligação com o mundo da corte também
tem sido comprovada através das dedicatórias de suas obras: os Lais foram dedicados a um
corte plantageneta, bem como sua condição social nobre, costumam ser comprovados,
ainda, pelo relato de um escritor contemporâneo da corte inglesa, Denis Piramus, que se
refere à Dame Marie,12 a autora de lais em versos muito apreciados pelos freqüentadores
uma literatura profana nos séculos XI e XII ao desejo da pequena e média nobreza de
criarem para si uma cultura que fosse relativamente independente da cultura clerical. Essa
nova cultura, que o autor identifica como feudal e laica, era, no seu entender, “a única
cultura de reserva que os senhores podiam, se não opor, pelo menos impor, ao lado da
cultura clerical”. 14
10
Sobre a questão dos idiomas e sua função social, cf.: CLANCHY, M.T. From memory to written record,
England 1066-1307. 2.ed. Oxford: Blackwell, 1993, pp. 200-201; DUBY, Georges. Guilherme o Marechal.
Lisboa: Gradiva, 1986, p. 27; VIZIOLI, Paulo. A literatura inglesa medieval. São Paulo: Nova Alexandria,
1992, p. 27.
11
Sobre a identificação do “nobles reis ki tant estes pruz e curteis” como Henrique II Plantageneta, cf.:
BURGESS, Glyn S. e BUSBY, Keith. Op.cit., p. 12. Quanto ao “cunte Willame”, seu sobrenome é ignorado
e sua identidade controvertida. Várias hipóteses foram levantadas na tentativa de identificá-lo: Guilherme de
Mandeville, conde de Essex, e Guilherme de Gloucester, para o caso das fábulas terem sido escritas durante o
reinado de Henrique II; Guilherme Longue-Epée, conde de Salisbury, e Guilherme Marechal, conde de
Pembroke, para o caso das fábulas terem sido escritas após a morte de Henrique II. Cf.: BURGESS, Glyn S. e
BUSBY, Keith. Op.cit., p. 16.
12
Na Idade Média, a dama era a mulher nobre, casada e proprietária de terras. Cf.: POWER, Eileen. Les
femmes au Moyen Âge. Paris: Aubier-Montaigne, 1979, p. 39.
13
BURGESS, Glyn S. e BUSBY, Keith. Op.cit., p. 11.
14
LE GOFF, Jacques. “Cultura clerical e tradições folclóricas na civilização merovíngia”, em IDEM, Para
um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1979, pp. 207-219. A inserção das obras de Marie de
France na reação folclórica estão ligadas, a nosso ver, aos três idiomas falados na Inglaterra, todos do
conhecimento de Marie. Entendemos que foi através desses idiomas que Marie estabeleceu sua ligação com
a tradição e o saber, bem como com a divulgação de ambos em seu meio social. Nos Lais, ao afirmar que
reuniu e recontou os lais - baladas compostas pelos bretões e inspiradas nas aventuras que ouviam -, Marie
4
O Esope inclui fábulas de cunho político, protagonizadas pelo rei e pelos nobres,
representantes da classe dominante laica. Embora Marie de France tenha afirmado que
traduziu o livro de Esopo tal como o encontrou,15 suas fábulas políticas fazem referências
que são características da época feudal, tais como “rei”, “senhor”, “barão”, “visconde”,
relações entre ambas, as fábulas políticas de Marie de France deixam transparecer valores e
ideais da época e do meio social no qual foram escritas. Neste sentido, o presente artigo
tem como objetivo apresentar as fábulas políticas de Marie de France como fonte
privilegiada para o estudo das relações de poder no século XII,16 uma vez que são
portadoras dos valores políticos que habitavam o imaginário 17 da nobreza laica da época.
No reino da Inglaterra, a nobreza era formada pelos barões,18 homens que recebiam
terras do rei em troca da prestação de serviço militar. Conhecidas como honor, essas terras
demonstra a intenção de preservar uma tradição oral através da palavra escrita. No Esope, ao informar o
itinerário lingüístico - grego, latim e inglês - de suas fábulas em francês, Marie estabelece sua ligação com
um gênero de origem pagã, com a tradição greco-latina e com o saber antigo, bem como com a herança
saxônica. E no L’Espurgatoire Seint Patriz, ao afirmar que foi escrito em língua romance para conveniência
das pessoas leigas, Marie não apenas estabelece sua ligação com uma tradição irlandesa como também retira
do clero a exclusividade sobre o relato da vida do santo em questão.
15
“e jeo l’ai rimee en franceis, /si cum jeo poi plus proprement.” (Epílogo, vv. 18-19).
16
LOBATO, Maria de Nazareth C. A. Honra, lealdade e fé: lições de poder para a nobreza e a realeza no
Ysopet de Marie de France. Dissertação de mestrado inédita. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995. (mimeo). A
referida dissertação é o único trabalho que analisa as fábulas políticas de Marie de France sob um perspectiva
histórica, articulando as fábulas protagonizadas pelo rei e pelos nobres com a historiografia sobre o assunto.
17
O estudo do poder se inscreve na tendência atual da história política, considerada por Jacques Le Goff
como o mais importante retorno entre os objetos da história que, nos últimos anos, tiveram sua problemática
profundamente renovada, renovação esta que consiste na construção de uma história do poder sob todos os
seus aspectos, entre os quais o imaginário. Cf.: LE GOFF, Jacques. “Prefácio”, em IDEM (dir.), A história
nova. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 8. Sob esta perspectiva, estamos considerando como 'imaginário' o
conceito proposto por Hilário Franco Júnior, o qual consiste em “um conjunto de imagens visuais ou verbais
gerado por uma sociedade (ou parcela desta) na sua relação consigo mesma, com outros grupos humanos e
com o universo em geral. Todo imaginário é portanto coletivo, não podendo ser confundido com
imaginação, atividade psíquica individual.” FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha: a história de um país
imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 16-17.
18
STENTON, Frank M. The first century of English feudalism (1066-1166). Oxford: At the Clarendon Press,
1932, p. 83.
19
Id., pp. 55-56. Neste sentido, o termo “feudo” está sendo utilizado como sinônimo de grande propriedade
agrária. Contudo, convém observar que nem sempre o feudo era uma extensão de terra. O “feudo” era um
bem dado em troca de algo, e constituía o objeto de um contrato entre homens livres da classe dominante, ou
seja, entre um senhor , que concedia um bem , e seu vassalo, que recebia este bem em troca da prestação de
5
militar ao rei implicava, por parte dos barões, na necessidade de terem um grupo de
em direitos e deveres recíprocos, essa classe dominante laica era sustentada, segundo os
homens de reflexão do século XII, pela “amizade” e pela “fé”, palavras utilizadas pela
linguagem das cortes para evocar um misto de confiança e fidelidade. Nesta visão
idealizada, esse grupo social vivia junto em concórdia, servindo com lealdade aos seus
inferiores.20
perfil da nobreza no qual sugere que senhores e vassalos estavam longe de viverem juntos
em concórdia.
prometeu à cegonha uma boa recompensa caso ela, com seu longo pescoço, retirasse o osso
promessa. O lobo, embora sem negar o juramento que havia feito, alegou que a cegonha já
estava mais do que recompensada, pois ele poderia tê-la estrangulado, uma vez que sua
carne muito lhe apetecia. A analogia entre lobo e senhor é estabelecida na moral, onde
serviços militares. Na maioria das vezes esse bem era uma terra, mas não necessariamente, motivo pelo qual
o termo “senhorio” tem sido considerado mais apropriado para denominar a grande propriedade rural no
feudalismo. Sobre esta questão, cf.: BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa, Edições 70, 1979, pp. 270-
284; FOURQUIN, Guy. Senhorio e feudalidade na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1978, pp. 125-132.
20
DUBY, Georges. Op.cit., p. 117.
6
resistente e difícil de quebrar. Porém, quando o cabo do machado ficou pronto, cortou o
espinheiro em pedaços, recompensando muito mal o bem que havia recebido. Referindo-
Os nobres também eram ambiciosos, e para eles Marie acenou com o castigo de
perderem tudo o que possuíam, como pode ser exemplificado através da fábula “O corvo
que encontrou plumas de pavão”. Um corvo vinha caminhando quando avistou plumas de
pavão espalhadas pelo chão. Desolado, olhou-se de cima a baixo, se considerando a mais
desprezível das criaturas. Arrancou suas penas e se enfeitou com as plumas de pavão.
Aproximou-se dos pavões que, no entanto, o desprezaram, pois não o reconheceram como
21
Todas as traduções em português foram feitas pela autora deste artigo, com base na tradução em francês
moderno feita por Charles Brucker, e no original em franco-normando. Para este último idioma, utilizamos o
seguinte dicionário: D’HAUTERIVE, R. Grandsaignes. Dictionnaire d’Ancien Français: Moyen Âge et
Renaissance. Paris: Librairie Larousse, 1947. No original: “Autresi est del mal seignur: / si povres hum li fet
honur / e puis demant sun guerdun ,/ ja n’en avera si maugré nun; / pur ceo qu’il seit en sa baillie,/ mercïer li
deit de sa vie.” (vv.33-38).
22
“Tut autresi est des mauveis, / des tresfeluns e des engrés: / quant uns produm les met avant / e par lui sunt
riche e manant, / s’il surpüent meuz de lui ,/ tuz jurs li frunt hunte e ennui; / a celui funt il tut le pis / ki al
desus les ad mis.” (vv. 25-32).
7
riqueza. Na fábula “A mosca e a abelha”, por exemplo, a mosca se gabava de ser mais
importante do que a abelha pois, além de voar mais longe, podia até pousar sobre o rei.
Zombava da abelha, que trabalhava o ano inteiro, enquanto ela e suas companheiras
provavam do mel o quanto queriam. A abelha respondeu que a mosca era vil, sempre
incomodando os outros com seu mau procedimento, ao passo que ela era muito bem
estimada pelas suas boas ações. O castigo destinado aos nobres arrogantes é revelado por
Marie na moral:
Desse modo, Marie de France demonstra que senhores e vassalos não honravam
seus compromissos, uma vez que não respeitavam os direitos e deveres recíprocos aos
elementos essenciais para sua aceitação como soberano.25 Na cerimônia de coroação, o rei
prometia manter a paz, ser justo e misericordioso, assumindo, perante seus súditos, os
23
“Ceo peot veer de plusurs / ki aveir unt e granz honurs: / uncore vodreient plus cuillir / ceo qu’il ne pöent
retenir; / ceo qu’il coveitent n’unt il mie, / e le lur perdent par folie.” (vv. 19-24).
24
“Issi fet del natre felun: / quant il ad bien en bandun, / vers les meillurs trop se noblee / e de parole
s’enrichee, / par grant desdein les cuntralie. / Neis si nul est que bien li die / leauté de sun afeire / en plein
curt, les fera teire.” (vv. 21-28).
25
GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos séculos XIV e XV: os Estados. São Paulo: Pioneira/EDUSP, 1981, p.
112.
26
POOLE, Austin L. From Domesday Book to Magna Carta (1087-1216). Oxford: Oxford University Press,
1951, p. 5.
8
produzida pelo clero erudito ao longo de toda a Idade Média, os “Espelhos de Príncipes”.27
Sob a ótica dos eruditos, o soberano ideal deveria fazer reinar a paz através da justiça,
devendo, para tanto, praticar as três virtudes divinas: a força, a bondade e a sabedoria. Sua
força - ou poder - permitiria impor a todos sua justiça. Sua bondade - ou misericórdia -
Para além da visão dos eruditos, e bem diferente desta, a cavalaria também
construiu seu modelo de rei perfeito, o qual deveria ser belo, bom, ousado, valente,
valoroso, fiel, protetor dos vassalos e do povo através da prática de virtudes cavaleirescas
levadas à perfeição.29
dos pássaros porque é valente e cortês”,31 indicando duas virtudes cavaleirescas, a coragem
e a cortesia. E na fábula “O rei dos pássaros”, Marie afirma que o rei escolhido deve ser
Mas, nesta mesma fábula, Marie apresenta um atributo valorizado pela erudição, a
justiça. Segundo ela, “o rei deve ser justo, na justiça severo e cruel”.33 E o rei justo, capaz
27
Sobre os “Espelhos de Príncipes” e seu significado para a construção de uma ideologia do poder real na
Idade Média, cf., entre outros: LE GOFF, Jacques. São Luís. Rio de Janeiro: Record, 1999, pp. 357-381.
28
GUENÉE, Bernard. Op.cit., p. 116.
29
Id., p. 117.
30
A ligação de Marie de France com os ideais da cavalaria é sugerida através dos atributos pelos quais se
refere ao conde Guilherme. No Prólogo, Marie se refere ao conde como flor da cavalaria, do conhecimento e
da cortesia (“ki flurs est de chevalerie, / d’enseignement, de curteisie”) e, no Epílogo, como o mais valente
(“le plus vaillant”) de todos os reinos.
31
“Li egles est des oiseus reis, / pur ceo qu’il est pruz e curteis” (vv. 1-2)
32
“Eslisent tel ki seit vaillant, / pruz e sagë e enpernant” (vv. 51-52); “si est asez de grant valur” (v. 60).
33
“reis deit estre mut dreiturers, / en justise redz e fiers.” (vv. 53-54).
9
Para exercer sua justiça, o rei contava com o auxílio de seus juízes, itinerantes ou
não.36 No entanto, aos olhos de Marie de France, a justiça do soberano estava ameaçada
pelos que a aplicavam, uma vez que os juízes eram ambiciosos e se deixavam levar por
que
34
Sobre o leão como símbolo da realeza na Idade Média, cf., entre outros: NEUBECKER, Ottfried. Le grand
livre de l’héraldique. Bruxelas: Elseviet Sequota, 1977, p. 105; sobre a utilização do leão pela realeza
inglesa a partir do século XII, cf.: LONDON, H. Stanford. The Queen’s beasts. Londres: Newman Neame,
1953, p. 18.
35
“Issi deit fere li bom sire; / il ne deit pas juger ne dire, / si si hume, que de lui tienent, / ireement en sa curt
vienent; / ne deit si vers l’un parler / que a l’autre en deie mut peser, / mes adrescer a sun pöer / e le ire fere
remaner.” (vv. 19-26).
36
Sobre o sistema judiciário da Inglaterra no século XII, cf., entre outros: GUENÉE, Bernard. Op.cit., p.159;
BROOKE, Christopher. From Alfred to Henry III (871-1272). 2.ed. New York/Londres: Norton, 1969, pp.
182-185; BARLOW, Frank. The feudal kingdom of England (1042-1216). 4.ed. Londres: Longman, 1995,
pp. 306-320.
37
“Issi funt li riche seignur, / li vescunte e li jügeur / de ceus qu’il unt en lur justise; / faus’ acheisuns par
coveitise / treovent asez pur eus cunfundre: / suvent les funt a pleit somundre, / la char lur tolent e la pel, / si
cum li lus fist a l’aignel.” (vv. 31-38).
10
essencial, a sagração, pela qual o monarca se tornava Rex Dei Gratia.39 Contudo, a
despeito desse caráter sagrado da realeza, o perfil do rei delineado por Marie de France se
reveste de um caráter profano, confirmando sua ligação com um meio social laico. E, além
dos atributos do rei ideal, Marie revela, ainda, um outro perfil do monarca, ainda mais
profano do que o primeiro, e no qual não se furtou em apontar o abuso de poder cometido
escolheram o falcão “como rei, pois era ele quem menos mal lhes fazia e dos demais as
protegia”.40 Porém, tão logo se colocaram sob seu poder, foram devoradas uma a uma. E,
rei”. Um leão, que era “rei”, resolveu viver em outro país. Reuniu todos os animais,
pedindo que escolhessem outro soberano. Todos suplicaram que fosse outro leão, mas o
rei alegou que não havia educado nenhum para substituí-lo. Acabaram escolhendo ao lobo
pois, embora sabendo o quanto era traidor, não se atreveram a propor outro. O lobo jurou
38
“Pur ceo ne deit prince ne reis / ses cumandemenz ne ses leis / a coveitus mettre en bailie; / kar sa dreiture
en ert perie.” (vv. 31-34).
39
Sobre o caráter sagrado da realeza medieval, cf., entre outros: BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993, pp. 68-81.
40
“Colums demanderent seignur. / A rei choiserent un ostur, / pur ceo que meins mal lur fesist/ e vers autres
les guarantist.” (vv. 1-4).
41
“Cest essample dit as plusurs, ./ que choisissent les maus seignurs. / De grant folie s’entremet, / ki en
subjectïum se met / a crüel hume u a felun: / il n’en avera si hunte nun.” (vv. 21-26).
11
que não tocaria em nenhum animal, e que jamais voltaria a comer carne enquanto vivesse.
Porém, quando o leão partiu, o lobo sentiu vontade de comer carne novamente. Mas, como
havia jurado não fazê-lo, começou a pensar num ardil para conseguir o que desejava com o
consentimento dos animais. Então convocou um corço, ao qual perguntou sobre seu hálito.
O corço, ingênuo, respondeu que o hálito do lobo cheirava muito mal. Fingindo-se furioso,
o lobo mandou chamar seus “homens” que, consultados a respeito do castigo a ser aplicado
àquele “que ultraja, insulta e desonra” a “seu senhor”, condenaram o corço à morte. O
lobo, então, o matou, se apoderando da melhor parte e, “para encobrir sua traição”, repartiu
o restante entre os demais. Passado algum tempo, convocou outro animal que, com medo
de morrer, preferiu mentir, dizendo que o hálito do lobo era muito perfumado. Novamente
o lobo reuniu seus “barões” em “conselho”, o qual condenou o animal à morte por haver
mentido. Finalmente, o lobo tentou usar o mesmo ardil com um macaco. Mas este, de
sobreaviso, respondeu que o hálito do lobo não cheirava mal nem era perfumado.
Desapontado e sem poder condená-lo, pois não havia sido ultrajado, o lobo de tal modo se
fingiu de doente que seus “barões” acabaram consentindo que comesse carne outra vez. A
partir de então, o lobo não mais precisou manter seu juramento, e todos os animais
acabaram sendo condenados. E, na moralidade desta fábula, Marie ensina que não se deve
Traidor e malvado, esse rei apresentado por Marie de France era, portanto, um
tirano. E, na Idade Média, a tirania de um rei podia se manifestar de duas formas: como
42
“Pur ceo mustre li sage bien / que hum ne deüst pur nule rien / felun hume fere seignur / ne trere lë a nul
honur: / ja ne gardera leauté / plus a l’estrange que al privé; / si se demeine envers sa gent / cum fist li lus del
serment.” (vv. 115-122).
12
um usurpador ou como um mau soberano, cujo poder, embora legítimo, era utilizado de
maneira arbitrária.43
perfil, igualmente revelado pela fabulista: o das relações de poder entre nobreza e realeza.
Na Inglaterra, o rei ocupava sua posição não apenas como soberano, mas também
como senhor, a quem todos os nobres deveriam prestar obediência. 44 Assim, quando um
nobre jurava “nunca atentar contra a honra do seu senhor”, não o fazia como súdito, mas
como vassalo do rei. 45 Essa fusão rei-senhor é indicada, inclusive, pela própria Marie de
France, pois em algumas fábulas a palavra “senhor” também é empregada para designar o
soberano.46
rei. Órgão efetivo do governo central durante os séculos XI e XII, era formada,
Os barões eram, portanto, conselheiros do rei. Todavia, nem todos eram bons
conselheiros, como demonstra a fábula “O lobo e a cabra”. A cabra havia aconselhado seu
filho a não deixar nenhum animal entrar em casa enquanto estivesse ausente. Ao se
afastar, o lobo se aproximou da porta e, imitando a voz da cabra, pediu para entrar. O
cabrito, percebendo que a voz não era de sua mãe, mandou o “ladrão” embora, evitando,
desse modo, ser devorado pelo lobo. Nesta fábula, Marie aconselha:
43
GUENÉE, Bernard. Op.cit., pp. 130-131.
44
BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Op. cit., p. 215.
45
DUBY, Georges. Op.cit., p. 122.
46
Podemos citar, entre outras: “O leão enfermo”, “O rei dos pássaros”, “O rei das rãs”, “O rei das pombas”,
“O lobo rei”, e “O lobo e a raposa”.
47
STENTON, Frank M. Op.cit., p. 31.
13
exemplificada na fábula “O rei das rãs”. Em um lago vivia um grupo de rãs que desejavam
um rei. Depois de pedirem várias vezes um soberano ao Destino, este lhes enviou um
tronco. No início as rãs sentiram muito medo! Porém, vendo que ele não se movia, se
como “senhor” e, como tal, cercaram-no de “honra”. Todavia, vendo que o tronco
permanecia imóvel, subiram nele e, de tal modo fizeram porcarias, que o tronco acabou
afundando. Descontentes, retornaram ao Destino pedindo um outro rei, pois aquele não
havia sido bom para elas. Dessa vez o Destino enviou uma cobra, que devorou as rãs,
libertasse daquele inimigo. Mas o Destino negou-lhes o pedido, pois haviam tido um
senhor benevolente, a quem haviam desonrado, e que foi trocado pelo senhor que haviam
traição à honra, à lealdade e à fidelidade devidas ao rei. O leão e a águia 50 iam se enfrentar
48
“Pur ceo chastie le sené / que hum ne deie mal cunseil creire / ne mençunge tenir pur veire. / Tute gent
seivent cunseiller; / mes tuz cunseilz n’unt pas mester: / li feluns e li desleial / dunent tuz jurs cunseil de
mal.” (vv. 22-28).
49
“Issi avient plusurs le funt / de bon seignur, quant il l’lunt: / tuz jurs le veulent defuler / ne li seivent honur
garder; / s’il nes tient aukes en destreit, / ne ferunt pur lui tort ne dreit; / a tel se pernent quis destruit, / de lur
aveir meine sun bruit. / Lores regretent lur bom seignur / a ki il firent la deshonur.” (vv. 45-54).
50
Sobre a águia como símbolo imperial na Idade Média, cf., entre outros: NEUBECKER, Ottfried. Op.cit., p.
105.
14
em uma batalha. O leão convocou todos os animais que andavam com quatro patas; a
águia convocou todas as aves. O morcego não sabia qual lado escolher. Queria ficar entre
percebendo que o exército do leão era maior, juntou-se aos ratos. Contudo, quando a águia
cruzou os céus liderando seu exército, se arrependeu por não estar entre elas. Escondendo
suas patas, juntou-se às aves. Mas, ao abrir suas asas, suas patas apareceram diante de
serpente, que pronunciou a sentença que lançou a maldição ao traidor. Na moral desta
fábula, Marie de France apresenta os valores que deveriam nortear as relações entre
Assim é o traidor
que age mal com seu senhor
a quem deve honra
e guardar lealdade e fidelidade;
se o senhor dele necessita,
junta-se aos outros,
faltando com sua obrigação
e indo com os outros ficar;
mas quando o senhor está em vantagem,
não consegue abandonar seu mau costume;
quer retornar para junto dele,
de todos os lados comete faltas;
perde sua honra e seus bens
e seus herdeiros são condenados,
fica desonrado para sempre,
assim como o morcego,
que não pode mais voar de dia,
ele não pode mais falar na corte.51
Embora Marie de France tenha afirmado que se limitou a traduzir o livro de Esopo,
suas fábulas políticas denunciam a intervenção da autora na obra, uma vez que são
reveladoras das inquietações de sua época e de seu meio social. Escritas no contexto
51
“Autresi est del traïtur / que meseire vers sun signur / a ki il deit honur porter / e leauté e fei garder; / si sis
sires ad de li mestier, / as autres se vent dunc ajuster, / a sun besuin li veut faillir / e od autres se vent tenir; /
si sis sires vient el dusus, / ne peot lesser sun mauveis us; / dunc vodreit a lui returner, / de tutes pars veut
meserrer; / si honur en pert e sun aveir / e repruver en unt si heir, / a tuz jurs en est si huniz / cum fu dunc la
chalve suriz, / que ne deit mes par jur voler, / në il ne deit en curt parler.” (vv. 49-66).
15
cultural da ‘reação folclórica’, as fábulas políticas de Marie de France são expressivas das
Os valores do novo grupo em ascensão podem ser vislumbrados através das críticas
à alta nobreza, como foi exemplificado através das fábulas que utilizam a palavra “honra”
com um duplo sentido, isto é, como honra e como honor, esta última significando a grande
propriedade de um barão. E nas fábulas que descrevem as relações entre alta nobreza
e o rei, este é mostrado como vítima da ingratidão e das traições dos nobres. E, ao
substituição da antiga nobreza pela nova, pelo menos a valorização da nova nobreza. Por
outro lado, nas fábulas que apresentam um perfil do soberano ideal, este se reveste dos
folclórica, permitem concluir ter sido ela uma representante dos valores da pequena e
média nobreza em ascensão. A nosso ver, suas fábulas defendem a realeza, a despeito
daquelas nas quais apresenta o rei como um tirano. Entendemos que não são contrárias ao
poder do soberano, e sim contra o abuso do poder de uma maneira geral, seja por parte da
alta nobreza, seja por parte do rei. As fábulas defendem, portanto, o poder real como um
portadoras de valores políticos e morais que, tendo sido corrompidos pela alta nobreza,
precisavam ser resgatados. Neste sentido, suas fábulas se revelam conservadoras. Mas,
52
Sobre a ligação da literatura cortês com os interesses sociais e culturais desse grupo em ascensão, cf.: LE
GOFF, Jacques. “O maravilhoso no Ocidente medieval”, em IDEM, O maravilhoso e o quotidiano no
Ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1989, pp. 17-35.
16
considerado atípico de sua época: o mundo do poder masculino descrito por uma mulher 53.
Nesse mundo medieval, que se referia a ambos os sexos como “o lado da espada” e “o
pequena e média nobreza, se apresentou como um movimento cultural que tornou possível,
desta alternativa, Marie de France, revelou sua vocação para o saber. Não se resignou ao
destino reservado à maioria das mulheres de sua época, pois, ao invés da roca, escolheu a
53
A despeito do caráter alegórico do enredo de suas fábulas, as moralidades de Marie de France nada têm de
metafóricas, como foi exemplificado ao longo deste artigo. Sobre as mulheres na Idade Média, cf., entre
outros: POWER, Eileen. Op.cit.; LABARGE, Margaret W. La mujer en la Edad Media. Madri: Nerea, 1996;
DUBY, Georges e PERROT, Michelle (dir.). História das mulheres no Ocidente. Vol.2: A Idade Média.
Porto: Afrontamento, 1993.