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O REI E A NOBREZA NAS FÁBULAS DE MARIE DE FRANCE

Uma contribuição para o estudo do poder na Idade Média

Maria de Nazareth C. A. Lobato*

In: REDES, Rio de Janeiro, v. 3, no 8, p. 18-33, maio/ago. 1999.

O fabulário de Marie de France, 1 escrito em torno de 1170, é uma coletânea de 103

fábulas que a autora, no Epílogo da obra, denominou Esope (“Esopë apel’um cest livre”).2

Apesar de sua produção literária,3 pouco sabemos acerca desta que é considerada a

primeira poetisa francesa. 4 O célebre verso “Marie ai num, si sui de France”, contido no

* Bacharel e Licenciada em História pela Universidade Santa Úrsula, Mestre em História Medieval pela
UFRJ, ex-Professora Substituta de História Medieval da UFRJ e professora de História Medieval do Centro
Universitário Moacyr Sreder Bastos.
1
Das fábulas de Marie de France sobreviveram 23 manuscritos, produzidos entre os séculos XIII e XVI. O
original, contudo, se perdeu. Karl Warnke propôs, no final do século XIX, uma classificação desses
manuscritos em três grupos, alfa, beta e gama, dos quais o alfa corresponde aos mais próximos de Marie no
tempo, sendo composto pelos seguintes manuscritos: Y=York, Minster XVI, K.12, 1 a parte, fol.1-22, início
do século XIII (é o mais antigo, porém incompleto); M=Bibliothèque Nationale, fr.1822, fl.198a-217bis,
século XIII (incompleto); D=Bodleian Douce 132, fol.35-61b, metade do século XIII (falta a fábula 32);
A=British Library, Harley 978, fl.40a-67b, segunda metade do século XIII (completo). Este último é o mais
conhecido, sendo considerado como a melhor cópia. Juntamente com D e Y, é um dos raros manuscritos em
franco-normando, o idioma no qual Marie escreveu, além de estar completo, fato considerado igualmente
raro, motivo pelo qual tem sido utilizado nas edições das fábulas de Marie de France. Em nosso trabalho
estamos utilizando a seguinte edição bilíngüe: MARIE DE FRANCE. Les fables. Ed. e trad. Charles Brucker.
Louvain (Belgium): Peeters, 1991. Embora a primeira edição das fábulas tenha sido publicada no final do
século passado (WARNKE, Karl. Die Fabeln der Marie de France. Halle: Niemeyer, 1898), foi somente nos
últimos dez anos que as fábulas de Marie de France despertaram o interesse dos estudiosos, todos ligados às
áreas de literatura e lingüística, que vêm apresentando o resultado de suas investigações através de artigos
publicados, predominantemente, em revistas especializadas. Sobre a produção recente acerca das fábulas,
cf.: BURGESS, Glyn S. “The Fables of Marie de France: Some Recent Scholarship”. French Studies
Bulletin, 61(1996), pp. 8-13.
2
Na Idade Média, era costume entre os fabulistas atribuir suas fábulas a Esopo, considerado como o inventor
do gênero. O fabulista grego foi utilizado, inclusive, para nomear as coleções de fábulas medievais
francesas, que eram chamadas de ésopes ou, mais freqüentemente, de isopets, “petits ésopes”, talvez pelo fato
de que, desde a Antigüidade, a fábula era considerada como um gênero menor, devido tanto às suas origens
orais - fabula vem de fari, que em latim significa “falar” -, como pelas suas funções utilitárias, de
ensinamentos morais. Cf.: BOIVIN, Jeanne-Marie e HARF-LANCNER, Laurence. Fables françaises du
Moyen Âge: les Isopets. Paris: Flammarion, 1996, p. 11.
3
Além das fábulas, Marie de France escreveu os Lais - poemas ligados ao amor cortês e à chamada “matéria
da Bretanha”- e L’Espurgatoire Seint Patriz, baseado no texto latino do monge Henry de Saltrey. Sobre a
bibliografia completa das edições das obras de Marie de France, bem como dos estudos realizados sobre suas
obras no mundo inteiro, incluindo artigos, dissertações e teses, cf.: BURGESS, Glyn S. Marie de France: an
analytical bibliography. Londres: Grant and Cutler, 1977; Supplement n o1, 1986; Supplement n o2, 1997.
2

Epílogo do Esope, é o único dado que nos deixou a seu respeito. E foi a este verso que

Claude Fauchet, em seu Recueil de l’origine de la langue et poesie françoise (Paris, 1581),

recorreu para batizá-la com o nome pelo qual se tornou conhecida.5

O mistério que cerca a verdadeira identidade de Marie de France incitou vários

estudiosos a tentar decifrá-lo.6 No entanto, toda tentativa feita até agora para descobrir sua

origem familiar foi em vão,7 e os estudiosos tiveram que recorrer à produção literária de

Marie para recolher os indícios que tornaram possível a delimitação de seu perfil social. 8

Marie, nascida na Île-de-France,9 viveu na segunda metade do século XII, na corte

inglesa de Henrique II Plantageneta, para cujo público suas obras, escritas no idioma

franco-normando, se destinavam. Nessa época, eram três os idiomas falados no reino

inglês: o franco-normando, língua da nobreza, era o idioma da corte; o inglês - no caso, o

arcaico - era o idioma utilizado pela população em geral; e o latim era a língua da Igreja.

Essa diferenciação lingüística também se aplicava à produção literária. Enquanto as obras

escritas em latim eram destinadas ao saber erudito - pois era a língua da erudição e da

instrução -, a literatura escrita em franco-normando pretendia ser compreensível a um

público não letrado ou não versado em latim, isto é, aos leigos. Desse modo, é possível

4
Marie de France foi a primeira mulher de seu tempo a escrever sucessivamente no vernáculo, no caso o
idioma franco-normando. Cf.: BURGESS, Glyn S. e BUSBY, Keith. The Lais of Marie de France. Londres:
Penguin, 1986, p. 17.
5
Id., p. 7.
6
Marie de France foi identificada como sendo Mary, abadessa de Shaftesbury, filha natural de Godofredo
Plantageneta e meia-irmã de Henrique II; como Marie de Champagne, filha de Eleonor de Aquitânia e Luís
VII de França; como uma abadessa de Reading, na Inglaterra; como Marie de Meulan, filha do conde
normando Galeran de Meulan e esposa de Hugues Talbott, barão de Cleauville; e como Marie de Boulogne.
Cf.: MÉNARD, Philippe. Les Lais de Marie de France. Paris: Presses Universitaires de France, 1979, pp. 16-
17; BURGESS, Glyn S. e BUSBY, Keith. Op.cit., p. 130.
7
Das diversas conjecturas a respeito, nada pode ser afirmado pois, como esclarece Philippe Ménard, a
própria multiplicação de suposições é um indício patente de fragilidade, e toda tentativa de identificação
resulta em fracasso quanto não sustentada através de provas concordantes e indiscutíveis. Cf.: MÉNARD,
Philippe. Op.cit., p. 17.
8
Cf., entre outros: BURGESS, Glyn S. e BUSBY, Keith. Op.cit.; MÉNARD, Philippe. Op.cit.; BRUCKER,
Charles (ed.). Op.cit.; HARF-LANCNER, Laurence. Lais de Marie de France. Paris: Librairie Générale
Française, 1990.
9
O nome de France , assim como Lallemand, Picard e Langlois, indica origem. Significa, ainda, que Marie
vivia longe do lugar onde nasceu. Cf.: MÉNARD, Philippe. Op.cit., p. 15.
3

afirmar que tanto o idioma quanto a produção literária possuíam um significado social.10

Além do idioma utilizado por Marie de France, sua ligação com o mundo da corte também

tem sido comprovada através das dedicatórias de suas obras: os Lais foram dedicados a um

“nobre rei”, as fábulas ao “conde Guilherme”. 11 O papel desempenhado por Marie na

corte plantageneta, bem como sua condição social nobre, costumam ser comprovados,

ainda, pelo relato de um escritor contemporâneo da corte inglesa, Denis Piramus, que se

refere à Dame Marie,12 a autora de lais em versos muito apreciados pelos freqüentadores

da corte - condes, barões, cavaleiros e damas.13

O Esope de Marie de France, escrito a pedido do conde Guilherme, se inscreve no

movimento cultural que Jacques Le Goff denominou de ‘reação folclórica’. Considerada

como manifestação de todas as camadas laicas da sociedade, Le Goff atribui a irrupção de

uma literatura profana nos séculos XI e XII ao desejo da pequena e média nobreza de

criarem para si uma cultura que fosse relativamente independente da cultura clerical. Essa

nova cultura, que o autor identifica como feudal e laica, era, no seu entender, “a única

cultura de reserva que os senhores podiam, se não opor, pelo menos impor, ao lado da

cultura clerical”. 14

10
Sobre a questão dos idiomas e sua função social, cf.: CLANCHY, M.T. From memory to written record,
England 1066-1307. 2.ed. Oxford: Blackwell, 1993, pp. 200-201; DUBY, Georges. Guilherme o Marechal.
Lisboa: Gradiva, 1986, p. 27; VIZIOLI, Paulo. A literatura inglesa medieval. São Paulo: Nova Alexandria,
1992, p. 27.
11
Sobre a identificação do “nobles reis ki tant estes pruz e curteis” como Henrique II Plantageneta, cf.:
BURGESS, Glyn S. e BUSBY, Keith. Op.cit., p. 12. Quanto ao “cunte Willame”, seu sobrenome é ignorado
e sua identidade controvertida. Várias hipóteses foram levantadas na tentativa de identificá-lo: Guilherme de
Mandeville, conde de Essex, e Guilherme de Gloucester, para o caso das fábulas terem sido escritas durante o
reinado de Henrique II; Guilherme Longue-Epée, conde de Salisbury, e Guilherme Marechal, conde de
Pembroke, para o caso das fábulas terem sido escritas após a morte de Henrique II. Cf.: BURGESS, Glyn S. e
BUSBY, Keith. Op.cit., p. 16.
12
Na Idade Média, a dama era a mulher nobre, casada e proprietária de terras. Cf.: POWER, Eileen. Les
femmes au Moyen Âge. Paris: Aubier-Montaigne, 1979, p. 39.
13
BURGESS, Glyn S. e BUSBY, Keith. Op.cit., p. 11.
14
LE GOFF, Jacques. “Cultura clerical e tradições folclóricas na civilização merovíngia”, em IDEM, Para
um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1979, pp. 207-219. A inserção das obras de Marie de
France na reação folclórica estão ligadas, a nosso ver, aos três idiomas falados na Inglaterra, todos do
conhecimento de Marie. Entendemos que foi através desses idiomas que Marie estabeleceu sua ligação com
a tradição e o saber, bem como com a divulgação de ambos em seu meio social. Nos Lais, ao afirmar que
reuniu e recontou os lais - baladas compostas pelos bretões e inspiradas nas aventuras que ouviam -, Marie
4

O Esope inclui fábulas de cunho político, protagonizadas pelo rei e pelos nobres,

representantes da classe dominante laica. Embora Marie de France tenha afirmado que

traduziu o livro de Esopo tal como o encontrou,15 suas fábulas políticas fazem referências

que são características da época feudal, tais como “rei”, “senhor”, “barão”, “visconde”,

“honra”, “lealdade” e “fé”. E, ao delinearem um perfil da nobreza, da realeza e das

relações entre ambas, as fábulas políticas de Marie de France deixam transparecer valores e

ideais da época e do meio social no qual foram escritas. Neste sentido, o presente artigo

tem como objetivo apresentar as fábulas políticas de Marie de France como fonte

privilegiada para o estudo das relações de poder no século XII,16 uma vez que são

portadoras dos valores políticos que habitavam o imaginário 17 da nobreza laica da época.

No reino da Inglaterra, a nobreza era formada pelos barões,18 homens que recebiam

terras do rei em troca da prestação de serviço militar. Conhecidas como honor, essas terras

constituíam, essencialmente, o feudo de um grande senhor.19 A prestação de serviço

demonstra a intenção de preservar uma tradição oral através da palavra escrita. No Esope, ao informar o
itinerário lingüístico - grego, latim e inglês - de suas fábulas em francês, Marie estabelece sua ligação com
um gênero de origem pagã, com a tradição greco-latina e com o saber antigo, bem como com a herança
saxônica. E no L’Espurgatoire Seint Patriz, ao afirmar que foi escrito em língua romance para conveniência
das pessoas leigas, Marie não apenas estabelece sua ligação com uma tradição irlandesa como também retira
do clero a exclusividade sobre o relato da vida do santo em questão.
15
“e jeo l’ai rimee en franceis, /si cum jeo poi plus proprement.” (Epílogo, vv. 18-19).
16
LOBATO, Maria de Nazareth C. A. Honra, lealdade e fé: lições de poder para a nobreza e a realeza no
Ysopet de Marie de France. Dissertação de mestrado inédita. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995. (mimeo). A
referida dissertação é o único trabalho que analisa as fábulas políticas de Marie de France sob um perspectiva
histórica, articulando as fábulas protagonizadas pelo rei e pelos nobres com a historiografia sobre o assunto.
17
O estudo do poder se inscreve na tendência atual da história política, considerada por Jacques Le Goff
como o mais importante retorno entre os objetos da história que, nos últimos anos, tiveram sua problemática
profundamente renovada, renovação esta que consiste na construção de uma história do poder sob todos os
seus aspectos, entre os quais o imaginário. Cf.: LE GOFF, Jacques. “Prefácio”, em IDEM (dir.), A história
nova. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 8. Sob esta perspectiva, estamos considerando como 'imaginário' o
conceito proposto por Hilário Franco Júnior, o qual consiste em “um conjunto de imagens visuais ou verbais
gerado por uma sociedade (ou parcela desta) na sua relação consigo mesma, com outros grupos humanos e
com o universo em geral. Todo imaginário é portanto coletivo, não podendo ser confundido com
imaginação, atividade psíquica individual.” FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha: a história de um país
imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 16-17.
18
STENTON, Frank M. The first century of English feudalism (1066-1166). Oxford: At the Clarendon Press,
1932, p. 83.
19
Id., pp. 55-56. Neste sentido, o termo “feudo” está sendo utilizado como sinônimo de grande propriedade
agrária. Contudo, convém observar que nem sempre o feudo era uma extensão de terra. O “feudo” era um
bem dado em troca de algo, e constituía o objeto de um contrato entre homens livres da classe dominante, ou
seja, entre um senhor , que concedia um bem , e seu vassalo, que recebia este bem em troca da prestação de
5

militar ao rei implicava, por parte dos barões, na necessidade de terem um grupo de

homens especializados no ofício de guerrear, e que formavam o corpo de vassalos de um

senhor. Ligados através de laços de dependência pessoal e hierarquizada, que implicavam

em direitos e deveres recíprocos, essa classe dominante laica era sustentada, segundo os

homens de reflexão do século XII, pela “amizade” e pela “fé”, palavras utilizadas pela

linguagem das cortes para evocar um misto de confiança e fidelidade. Nesta visão

idealizada, esse grupo social vivia junto em concórdia, servindo com lealdade aos seus

superiores e recebendo o serviço adequado daqueles que lhes eram imediatamente

inferiores.20

Entretanto, na contramão dessa visão idealizada, Marie de France nos apresenta um

perfil da nobreza no qual sugere que senhores e vassalos estavam longe de viverem juntos

em concórdia.

Na fábula “O lobo e a cegonha”, por exemplo, o lobo, ao se engasgar com um osso,

prometeu à cegonha uma boa recompensa caso ela, com seu longo pescoço, retirasse o osso

de sua garganta. Ao atender o pedido do lobo, a cegonha cobrou o cumprimento de sua

promessa. O lobo, embora sem negar o juramento que havia feito, alegou que a cegonha já

estava mais do que recompensada, pois ele poderia tê-la estrangulado, uma vez que sua

carne muito lhe apetecia. A analogia entre lobo e senhor é estabelecida na moral, onde

Marie de France alerta:

O mesmo acontece com o mau senhor:


se um pobre homem lhe honra com seus serviços
e depois solicita sua recompensa,
não conseguirá mais do que ingratidão;
sob o pretexto de estar sob seu poder,

serviços militares. Na maioria das vezes esse bem era uma terra, mas não necessariamente, motivo pelo qual
o termo “senhorio” tem sido considerado mais apropriado para denominar a grande propriedade rural no
feudalismo. Sobre esta questão, cf.: BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa, Edições 70, 1979, pp. 270-
284; FOURQUIN, Guy. Senhorio e feudalidade na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1978, pp. 125-132.
20
DUBY, Georges. Op.cit., p. 117.
6

deve agradecer por estar vivo. 21

Igualmente ingrato foi o ferreiro da fábula “O ferreiro e o machado” que,

necessitando de um cabo para seu machado, serviu-se de um espinheiro negro, muito

resistente e difícil de quebrar. Porém, quando o cabo do machado ficou pronto, cortou o

espinheiro em pedaços, recompensando muito mal o bem que havia recebido. Referindo-

se aos maus vassalos, Marie aconselha:

O mesmo acontece com os malvados,


com aqueles que são muito traidores e cruéis,
quando um homem de bem os enaltece,
e através deles se tornam ricos e poderosos,
quando se tornam muito poderosos,
sempre o humilharão e prejudicarão
e, no final, irão tratar da pior maneira possível
a quem os colocou em posição mais elevada.22

Os nobres também eram ambiciosos, e para eles Marie acenou com o castigo de

perderem tudo o que possuíam, como pode ser exemplificado através da fábula “O corvo

que encontrou plumas de pavão”. Um corvo vinha caminhando quando avistou plumas de

pavão espalhadas pelo chão. Desolado, olhou-se de cima a baixo, se considerando a mais

desprezível das criaturas. Arrancou suas penas e se enfeitou com as plumas de pavão.

Aproximou-se dos pavões que, no entanto, o desprezaram, pois não o reconheceram como

sendo um deles, o mesmo acontecendo quando retornou ao convívio dos corvos. Na

moralidade, Marie sentencia:

O mesmo se pode ver em muitas pessoas


que possuem bens e grandes honras:
desejam acumular ainda mais,
tanto que nem conseguem manter;
não conseguem o que desejam,

21
Todas as traduções em português foram feitas pela autora deste artigo, com base na tradução em francês
moderno feita por Charles Brucker, e no original em franco-normando. Para este último idioma, utilizamos o
seguinte dicionário: D’HAUTERIVE, R. Grandsaignes. Dictionnaire d’Ancien Français: Moyen Âge et
Renaissance. Paris: Librairie Larousse, 1947. No original: “Autresi est del mal seignur: / si povres hum li fet
honur / e puis demant sun guerdun ,/ ja n’en avera si maugré nun; / pur ceo qu’il seit en sa baillie,/ mercïer li
deit de sa vie.” (vv.33-38).
22
“Tut autresi est des mauveis, / des tresfeluns e des engrés: / quant uns produm les met avant / e par lui sunt
riche e manant, / s’il surpüent meuz de lui ,/ tuz jurs li frunt hunte e ennui; / a celui funt il tut le pis / ki al
desus les ad mis.” (vv. 25-32).
7

perdendo, pela sua loucura, aquilo que possuem. 23

À ingratidão e à ambição da nobreza somava-se a arrogância decorrente de sua

riqueza. Na fábula “A mosca e a abelha”, por exemplo, a mosca se gabava de ser mais

importante do que a abelha pois, além de voar mais longe, podia até pousar sobre o rei.

Zombava da abelha, que trabalhava o ano inteiro, enquanto ela e suas companheiras

provavam do mel o quanto queriam. A abelha respondeu que a mosca era vil, sempre

incomodando os outros com seu mau procedimento, ao passo que ela era muito bem

estimada pelas suas boas ações. O castigo destinado aos nobres arrogantes é revelado por

Marie na moral:

Isso acontece com o traidor infame:


quando possui bens em abundância,
mostra-se arrogante com seus superiores,
altivo na palavra,
contestando a eles com grande desdém.
Mas se existe alguém que conheça
a verdade sobre sua condição
poderá fazê-lo se calar em plena corte.24

Desse modo, Marie de France demonstra que senhores e vassalos não honravam

seus compromissos, uma vez que não respeitavam os direitos e deveres recíprocos aos

quais deveriam obedecer.

No topo dessa hierarquia estava o rei, cuja legitimidade constituía um dos

elementos essenciais para sua aceitação como soberano.25 Na cerimônia de coroação, o rei

prometia manter a paz, ser justo e misericordioso, assumindo, perante seus súditos, os

deveres inerentes à sua função.26

23
“Ceo peot veer de plusurs / ki aveir unt e granz honurs: / uncore vodreient plus cuillir / ceo qu’il ne pöent
retenir; / ceo qu’il coveitent n’unt il mie, / e le lur perdent par folie.” (vv. 19-24).
24
“Issi fet del natre felun: / quant il ad bien en bandun, / vers les meillurs trop se noblee / e de parole
s’enrichee, / par grant desdein les cuntralie. / Neis si nul est que bien li die / leauté de sun afeire / en plein
curt, les fera teire.” (vv. 21-28).
25
GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos séculos XIV e XV: os Estados. São Paulo: Pioneira/EDUSP, 1981, p.
112.
26
POOLE, Austin L. From Domesday Book to Magna Carta (1087-1216). Oxford: Oxford University Press,
1951, p. 5.
8

As virtudes inerentes a um monarca têm sido conhecidas através de vasta literatura

produzida pelo clero erudito ao longo de toda a Idade Média, os “Espelhos de Príncipes”.27

Sob a ótica dos eruditos, o soberano ideal deveria fazer reinar a paz através da justiça,

devendo, para tanto, praticar as três virtudes divinas: a força, a bondade e a sabedoria. Sua

força - ou poder - permitiria impor a todos sua justiça. Sua bondade - ou misericórdia -

possibilitaria adequar a justiça às misérias e fraquezas humanas. Quanto à sabedoria, os

eruditos consideravam-na a maior de todas as virtudes reais.28

Para além da visão dos eruditos, e bem diferente desta, a cavalaria também

construiu seu modelo de rei perfeito, o qual deveria ser belo, bom, ousado, valente,

valoroso, fiel, protetor dos vassalos e do povo através da prática de virtudes cavaleirescas

levadas à perfeição.29

O perfil do rei apresentado por Marie de France deixa transparecer, no que

concerne aos atributos necessários a um soberano, alguns aspectos desse ideal

cavaleiresco.30 Na fábula “A águia, o falcão e as pombas”, por exemplo, a águia “é o rei

dos pássaros porque é valente e cortês”,31 indicando duas virtudes cavaleirescas, a coragem

e a cortesia. E na fábula “O rei dos pássaros”, Marie afirma que o rei escolhido deve ser

“valente, corajoso, sábio e ousado”, bem como possuir um “grande valor”.32

Mas, nesta mesma fábula, Marie apresenta um atributo valorizado pela erudição, a

justiça. Segundo ela, “o rei deve ser justo, na justiça severo e cruel”.33 E o rei justo, capaz

27
Sobre os “Espelhos de Príncipes” e seu significado para a construção de uma ideologia do poder real na
Idade Média, cf., entre outros: LE GOFF, Jacques. São Luís. Rio de Janeiro: Record, 1999, pp. 357-381.
28
GUENÉE, Bernard. Op.cit., p. 116.
29
Id., p. 117.
30
A ligação de Marie de France com os ideais da cavalaria é sugerida através dos atributos pelos quais se
refere ao conde Guilherme. No Prólogo, Marie se refere ao conde como flor da cavalaria, do conhecimento e
da cortesia (“ki flurs est de chevalerie, / d’enseignement, de curteisie”) e, no Epílogo, como o mais valente
(“le plus vaillant”) de todos os reinos.
31
“Li egles est des oiseus reis, / pur ceo qu’il est pruz e curteis” (vv. 1-2)
32
“Eslisent tel ki seit vaillant, / pruz e sagë e enpernant” (vv. 51-52); “si est asez de grant valur” (v. 60).
33
“reis deit estre mut dreiturers, / en justise redz e fiers.” (vv. 53-54).
9

de fazer reinar a paz e a concórdia através da sabedoria, é exemplificado pelo leão 34 da

fábula “O lobo e a raposa”, em cuja moralidade Marie ensina que

Assim deve fazer o bom senhor;


não deve sentenciar nem se pronunciar,
quando os homens que dele dependem,
se dirigem irados à sua corte;
não deve se pronunciar em favor de um
de forma a magoar muito ao outro,
antes bem orientar segundo seu juízo
e fazer com que a ira desapareça.35

Para exercer sua justiça, o rei contava com o auxílio de seus juízes, itinerantes ou

não.36 No entanto, aos olhos de Marie de France, a justiça do soberano estava ameaçada

pelos que a aplicavam, uma vez que os juízes eram ambiciosos e se deixavam levar por

falsos testemunhos. Na conhecida fábula “O lobo e o cordeiro”, por exemplo, Marie

denuncia em sua moral que

O mesmo fazem o rico senhor,


o visconde e o juiz
com aqueles que caem sob sua justiça;
por cobiça fazem falsas acusações
para confundi-los;
com freqüência os levam ao tribunal,
e tiram sua pele e sua carne,
como fez o lobo com o cordeiro. 37

Ou, ainda, na moralidade da fábula “O camponês e a gralha”, na qual ensina ao soberano

que

... não devem príncipes e reis


confiar seu comando nem suas leis

34
Sobre o leão como símbolo da realeza na Idade Média, cf., entre outros: NEUBECKER, Ottfried. Le grand
livre de l’héraldique. Bruxelas: Elseviet Sequota, 1977, p. 105; sobre a utilização do leão pela realeza
inglesa a partir do século XII, cf.: LONDON, H. Stanford. The Queen’s beasts. Londres: Newman Neame,
1953, p. 18.
35
“Issi deit fere li bom sire; / il ne deit pas juger ne dire, / si si hume, que de lui tienent, / ireement en sa curt
vienent; / ne deit si vers l’un parler / que a l’autre en deie mut peser, / mes adrescer a sun pöer / e le ire fere
remaner.” (vv. 19-26).
36
Sobre o sistema judiciário da Inglaterra no século XII, cf., entre outros: GUENÉE, Bernard. Op.cit., p.159;
BROOKE, Christopher. From Alfred to Henry III (871-1272). 2.ed. New York/Londres: Norton, 1969, pp.
182-185; BARLOW, Frank. The feudal kingdom of England (1042-1216). 4.ed. Londres: Longman, 1995,
pp. 306-320.
37
“Issi funt li riche seignur, / li vescunte e li jügeur / de ceus qu’il unt en lur justise; / faus’ acheisuns par
coveitise / treovent asez pur eus cunfundre: / suvent les funt a pleit somundre, / la char lur tolent e la pel, / si
cum li lus fist a l’aignel.” (vv. 31-38).
10

ao poder dos ambiciosos,


pois sua justiça estará em perigo. 38

A legitimidade do poder do soberano era conferida através de uma cerimônia

essencial, a sagração, pela qual o monarca se tornava Rex Dei Gratia.39 Contudo, a

despeito desse caráter sagrado da realeza, o perfil do rei delineado por Marie de France se

reveste de um caráter profano, confirmando sua ligação com um meio social laico. E, além

dos atributos do rei ideal, Marie revela, ainda, um outro perfil do monarca, ainda mais

profano do que o primeiro, e no qual não se furtou em apontar o abuso de poder cometido

pelo soberano no exercício de sua função.

Na fábula “O rei das pombas”, por exemplo, as pombas, querendo um “senhor”,

escolheram o falcão “como rei, pois era ele quem menos mal lhes fazia e dos demais as

protegia”.40 Porém, tão logo se colocaram sob seu poder, foram devoradas uma a uma. E,

na moral, Marie adverte:

Este exemplo é contado para as pessoas


que escolhem maus senhores.
Grande loucura comete,
quem se submete
a um homem cruel ou traidor:
não receberá nada além de ultraje. 41

A combinação entre traição e abuso de poder é exemplificada na fábula “O lobo

rei”. Um leão, que era “rei”, resolveu viver em outro país. Reuniu todos os animais,

pedindo que escolhessem outro soberano. Todos suplicaram que fosse outro leão, mas o

rei alegou que não havia educado nenhum para substituí-lo. Acabaram escolhendo ao lobo

pois, embora sabendo o quanto era traidor, não se atreveram a propor outro. O lobo jurou

38
“Pur ceo ne deit prince ne reis / ses cumandemenz ne ses leis / a coveitus mettre en bailie; / kar sa dreiture
en ert perie.” (vv. 31-34).
39
Sobre o caráter sagrado da realeza medieval, cf., entre outros: BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993, pp. 68-81.
40
“Colums demanderent seignur. / A rei choiserent un ostur, / pur ceo que meins mal lur fesist/ e vers autres
les guarantist.” (vv. 1-4).
41
“Cest essample dit as plusurs, ./ que choisissent les maus seignurs. / De grant folie s’entremet, / ki en
subjectïum se met / a crüel hume u a felun: / il n’en avera si hunte nun.” (vv. 21-26).
11

que não tocaria em nenhum animal, e que jamais voltaria a comer carne enquanto vivesse.

Porém, quando o leão partiu, o lobo sentiu vontade de comer carne novamente. Mas, como

havia jurado não fazê-lo, começou a pensar num ardil para conseguir o que desejava com o

consentimento dos animais. Então convocou um corço, ao qual perguntou sobre seu hálito.

O corço, ingênuo, respondeu que o hálito do lobo cheirava muito mal. Fingindo-se furioso,

o lobo mandou chamar seus “homens” que, consultados a respeito do castigo a ser aplicado

àquele “que ultraja, insulta e desonra” a “seu senhor”, condenaram o corço à morte. O

lobo, então, o matou, se apoderando da melhor parte e, “para encobrir sua traição”, repartiu

o restante entre os demais. Passado algum tempo, convocou outro animal que, com medo

de morrer, preferiu mentir, dizendo que o hálito do lobo era muito perfumado. Novamente

o lobo reuniu seus “barões” em “conselho”, o qual condenou o animal à morte por haver

mentido. Finalmente, o lobo tentou usar o mesmo ardil com um macaco. Mas este, de

sobreaviso, respondeu que o hálito do lobo não cheirava mal nem era perfumado.

Desapontado e sem poder condená-lo, pois não havia sido ultrajado, o lobo de tal modo se

fingiu de doente que seus “barões” acabaram consentindo que comesse carne outra vez. A

partir de então, o lobo não mais precisou manter seu juramento, e todos os animais

acabaram sendo condenados. E, na moralidade desta fábula, Marie ensina que não se deve

... de modo algum


fazer do homem traidor um senhor
nem conferir-lhe honra alguma:
não irá guardar mais lealdade
ao alheio do que ao particular;
irá se comportar com os seus
como fez o lobo do juramento.42

Traidor e malvado, esse rei apresentado por Marie de France era, portanto, um

tirano. E, na Idade Média, a tirania de um rei podia se manifestar de duas formas: como

42
“Pur ceo mustre li sage bien / que hum ne deüst pur nule rien / felun hume fere seignur / ne trere lë a nul
honur: / ja ne gardera leauté / plus a l’estrange que al privé; / si se demeine envers sa gent / cum fist li lus del
serment.” (vv. 115-122).
12

um usurpador ou como um mau soberano, cujo poder, embora legítimo, era utilizado de

maneira arbitrária.43

A caracterização da corte enquanto espaço político ficaria incompleta sem outro

perfil, igualmente revelado pela fabulista: o das relações de poder entre nobreza e realeza.

Na Inglaterra, o rei ocupava sua posição não apenas como soberano, mas também

como senhor, a quem todos os nobres deveriam prestar obediência. 44 Assim, quando um

nobre jurava “nunca atentar contra a honra do seu senhor”, não o fazia como súdito, mas

como vassalo do rei. 45 Essa fusão rei-senhor é indicada, inclusive, pela própria Marie de

France, pois em algumas fábulas a palavra “senhor” também é empregada para designar o

soberano.46

Em torno do rei gravitavam os nobres que formavam a Curia Regis, conselho do

rei. Órgão efetivo do governo central durante os séculos XI e XII, era formada,

essencialmente, pelos detentores de uma honor, os barões.47

Os barões eram, portanto, conselheiros do rei. Todavia, nem todos eram bons

conselheiros, como demonstra a fábula “O lobo e a cabra”. A cabra havia aconselhado seu

filho a não deixar nenhum animal entrar em casa enquanto estivesse ausente. Ao se

afastar, o lobo se aproximou da porta e, imitando a voz da cabra, pediu para entrar. O

cabrito, percebendo que a voz não era de sua mãe, mandou o “ladrão” embora, evitando,

desse modo, ser devorado pelo lobo. Nesta fábula, Marie aconselha:

Por este exemplo advertimos ao sensato


que não deve acreditar em mau conselho
nem tomar a mentira por verdade.
Todos sabem aconselhar;
mas nem todo conselho é proveitoso:
o traidor e o desleal

43
GUENÉE, Bernard. Op.cit., pp. 130-131.
44
BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Op. cit., p. 215.
45
DUBY, Georges. Op.cit., p. 122.
46
Podemos citar, entre outras: “O leão enfermo”, “O rei dos pássaros”, “O rei das rãs”, “O rei das pombas”,
“O lobo rei”, e “O lobo e a raposa”.
47
STENTON, Frank M. Op.cit., p. 31.
13

sempre dão maus conselhos. 48

Além de maus conselhos, o rei recebia a ingratidão dos maus vassalos,

exemplificada na fábula “O rei das rãs”. Em um lago vivia um grupo de rãs que desejavam

um rei. Depois de pedirem várias vezes um soberano ao Destino, este lhes enviou um

tronco. No início as rãs sentiram muito medo! Porém, vendo que ele não se movia, se

aproximaram. Saudaram-no como “rei”, cada uma prometendo “fidelidade”. Tomaram-no

como “senhor” e, como tal, cercaram-no de “honra”. Todavia, vendo que o tronco

permanecia imóvel, subiram nele e, de tal modo fizeram porcarias, que o tronco acabou

afundando. Descontentes, retornaram ao Destino pedindo um outro rei, pois aquele não

havia sido bom para elas. Dessa vez o Destino enviou uma cobra, que devorou as rãs,

condenando-as à morte. Muito aflitas, as rãs sobreviventes suplicaram ao Destino que as

libertasse daquele inimigo. Mas o Destino negou-lhes o pedido, pois haviam tido um

senhor benevolente, a quem haviam desonrado, e que foi trocado pelo senhor que haviam

desejado. E, na moral, Marie esclarece que

Assim fazem muitos


quando têm um bom senhor:
sempre o maltratam
e sua honra não sabem guardar;
se não são oprimidos,
não farão nada por ele;
ligam-se àquele que os oprime,
que ostenta às custas de seus bens.
Então retornam ao seu bom senhor
a quem haviam desonrado.49

Mas é na fábula “O morcego” que encontramos o mais completo exemplo de

traição à honra, à lealdade e à fidelidade devidas ao rei. O leão e a águia 50 iam se enfrentar

48
“Pur ceo chastie le sené / que hum ne deie mal cunseil creire / ne mençunge tenir pur veire. / Tute gent
seivent cunseiller; / mes tuz cunseilz n’unt pas mester: / li feluns e li desleial / dunent tuz jurs cunseil de
mal.” (vv. 22-28).
49
“Issi avient plusurs le funt / de bon seignur, quant il l’lunt: / tuz jurs le veulent defuler / ne li seivent honur
garder; / s’il nes tient aukes en destreit, / ne ferunt pur lui tort ne dreit; / a tel se pernent quis destruit, / de lur
aveir meine sun bruit. / Lores regretent lur bom seignur / a ki il firent la deshonur.” (vv. 45-54).
50
Sobre a águia como símbolo imperial na Idade Média, cf., entre outros: NEUBECKER, Ottfried. Op.cit., p.
105.
14

em uma batalha. O leão convocou todos os animais que andavam com quatro patas; a

águia convocou todas as aves. O morcego não sabia qual lado escolher. Queria ficar entre

os vencedores, pois estes seriam poderosos. Começou a observar os dois lados e,

percebendo que o exército do leão era maior, juntou-se aos ratos. Contudo, quando a águia

cruzou os céus liderando seu exército, se arrependeu por não estar entre elas. Escondendo

suas patas, juntou-se às aves. Mas, ao abrir suas asas, suas patas apareceram diante de

todos, revelando sua traição. Pássaros e animais denunciaram a traição do morcego à

serpente, que pronunciou a sentença que lançou a maldição ao traidor. Na moral desta

fábula, Marie de France apresenta os valores que deveriam nortear as relações entre

nobreza e realeza, ao ensinar que

Assim é o traidor
que age mal com seu senhor
a quem deve honra
e guardar lealdade e fidelidade;
se o senhor dele necessita,
junta-se aos outros,
faltando com sua obrigação
e indo com os outros ficar;
mas quando o senhor está em vantagem,
não consegue abandonar seu mau costume;
quer retornar para junto dele,
de todos os lados comete faltas;
perde sua honra e seus bens
e seus herdeiros são condenados,
fica desonrado para sempre,
assim como o morcego,
que não pode mais voar de dia,
ele não pode mais falar na corte.51

Embora Marie de France tenha afirmado que se limitou a traduzir o livro de Esopo,

suas fábulas políticas denunciam a intervenção da autora na obra, uma vez que são

reveladoras das inquietações de sua época e de seu meio social. Escritas no contexto

51
“Autresi est del traïtur / que meseire vers sun signur / a ki il deit honur porter / e leauté e fei garder; / si sis
sires ad de li mestier, / as autres se vent dunc ajuster, / a sun besuin li veut faillir / e od autres se vent tenir; /
si sis sires vient el dusus, / ne peot lesser sun mauveis us; / dunc vodreit a lui returner, / de tutes pars veut
meserrer; / si honur en pert e sun aveir / e repruver en unt si heir, / a tuz jurs en est si huniz / cum fu dunc la
chalve suriz, / que ne deit mes par jur voler, / në il ne deit en curt parler.” (vv. 49-66).
15

cultural da ‘reação folclórica’, as fábulas políticas de Marie de France são expressivas das

mudanças sociais e políticas ocorridas no século XII. A ascensão da pequena e média

nobreza, oriundas da cavalaria 52, e o processo de centralização monárquica constituem, a

nosso ver, o pano de fundo destas fábulas.

Os valores do novo grupo em ascensão podem ser vislumbrados através das críticas

à alta nobreza, como foi exemplificado através das fábulas que utilizam a palavra “honra”

com um duplo sentido, isto é, como honra e como honor, esta última significando a grande

propriedade de um barão. E nas fábulas que descrevem as relações entre alta nobreza

e o rei, este é mostrado como vítima da ingratidão e das traições dos nobres. E, ao

apontarem a insubordinação da alta nobreza, tais fábulas justificariam, se não a

substituição da antiga nobreza pela nova, pelo menos a valorização da nova nobreza. Por

outro lado, nas fábulas que apresentam um perfil do soberano ideal, este se reveste dos

atributos ligados aos ideais cavaleirescos.

As fábulas políticas de Marie de France, bem como sua inserção na reação

folclórica, permitem concluir ter sido ela uma representante dos valores da pequena e

média nobreza em ascensão. A nosso ver, suas fábulas defendem a realeza, a despeito

daquelas nas quais apresenta o rei como um tirano. Entendemos que não são contrárias ao

poder do soberano, e sim contra o abuso do poder de uma maneira geral, seja por parte da

alta nobreza, seja por parte do rei. As fábulas defendem, portanto, o poder real como um

poder justo e necessário à manutenção da ordem no seio da classe dominante laica.

Deste modo, as fábulas políticas de Marie de France se apresentam como

portadoras de valores políticos e morais que, tendo sido corrompidos pela alta nobreza,

precisavam ser resgatados. Neste sentido, suas fábulas se revelam conservadoras. Mas,

52
Sobre a ligação da literatura cortês com os interesses sociais e culturais desse grupo em ascensão, cf.: LE
GOFF, Jacques. “O maravilhoso no Ocidente medieval”, em IDEM, O maravilhoso e o quotidiano no
Ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1989, pp. 17-35.
16

ao apresentarem um perfil do soberano ideal moldado nos ideais cavaleirescos e, portanto,

desvinculado dos atributos valorizados pelo clero erudito, as fábulas de Marie se

apresentam como inovadoras.

As fábulas políticas de Marie de France são reveladoras, ainda, de um aspecto

considerado atípico de sua época: o mundo do poder masculino descrito por uma mulher 53.

Nesse mundo medieval, que se referia a ambos os sexos como “o lado da espada” e “o

lado da roca”, as mulheres estavam destinadas ao silêncio.

Mas a reação folclórica, ao produzir uma literatura voltada para os interesses da

pequena e média nobreza, se apresentou como um movimento cultural que tornou possível,

a uma mulher, o desempenho de um ofício ligado à propagação de valores laicos. Diante

desta alternativa, Marie de France, revelou sua vocação para o saber. Não se resignou ao

destino reservado à maioria das mulheres de sua época, pois, ao invés da roca, escolheu a

pena e o pergaminho. E as palavras que nos legou são um testemunho do imaginário

político de sua época.

53
A despeito do caráter alegórico do enredo de suas fábulas, as moralidades de Marie de France nada têm de
metafóricas, como foi exemplificado ao longo deste artigo. Sobre as mulheres na Idade Média, cf., entre
outros: POWER, Eileen. Op.cit.; LABARGE, Margaret W. La mujer en la Edad Media. Madri: Nerea, 1996;
DUBY, Georges e PERROT, Michelle (dir.). História das mulheres no Ocidente. Vol.2: A Idade Média.
Porto: Afrontamento, 1993.

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