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António Ferreira nasceu em Lisboa em 1528,

onde veio a morrer em 1569. Foi o único grande


poeta daquela época a ter estudado na Universi-
dade recentemente refundada em Coimbra, e a sua
obra está repleta das lições do humanismo e do
classicismo. Ao deixar a Universidade por volta de
1556 sofreu um grande abalo, mas as poesias an-
gustiadas que escreveu nos anos a seguir são entre
as melhores que produziu. Foi neste período que
encontrou Maria Pimentel, a sua primeira mulher,
provavelmente a inspiração da primeira sequência
de sonetos escrita em língua portuguesa. O seu fale-
cimento prematuro, pouco depois de casada, foi a
1
ocasião de uma série de poesias funerárias de alto
valor estético. Depois de 1560 Ferreira ocupava-se
na revisão da sua obra, a que se deu o título de
Poemas Lusitanos, livro cuidadosamente estrutu-
rado que tem toda a probabilidade de ter chegado
até nós na forma em que o poeta o deixou, sendo
assim um testemunho único de como um poeta
quinhentista quis apresentar-se ao seu público.
António Ferreira é melhor conhecido como autor
de Castro, tragédia senequiana que é uma obra
prima do Renascimento Português e uma das peças
mais bem conseguidas de toda a Europa quinhen-
tista. Mas a tragédia constitui só uma pequena parte
dos Poemas Lusitanos, vasta compilação poética que
abrange quase todos os géneros poéticos conhe-
cidos aos humanistas, com a excepção da epopeia.
Na edição presente o texto dos Poemas Lusitanos
é criticamente estabelecido, pela primeira vez em
mais de quatro séculos, e vem acompanhado por
um estudo introdutório e por um comentário.

O Doutor T. F. Earle é professor de estudos


portugueses na Universidade de Oxford desde 1968,
e professor catedrático desde 1996. É autor de vários
livros e outras publicações acerca da literatura por-
tuguesa, principalmente do século XVI.

1
POEMAS LUSITANOS
Reservados todos os direitos de harmonia com a lei

Edição da
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
Av. de Berna I Lisboa
2008
ISBN 978-972-31-1233-7
Folha de rosto dos Poemas Lusitanos de António Ferreira
POEMA S

L VSIT ANO S -
oo DOVT OR
ANTONIO FERRE.IR.A.
1JB1>ICADOS PO(J{_ SEP FILHO
Miguel Leite Ferreira, ao Principt V.
PHlLIPP E nojfo finhor.
-: ·~

--::~ ~---·.',.~; -#

EM LI S B O A.
Imprcfrocom licença, Por Pedro Cr~,becck.
M. D. X C V 111.
Com Priuilcsio, Aculb d~ E1leuáo LopezLiurciro.

Lisboa, 1598
ANTÓNIO FERREIRA

POEMAS LUSITANOS
EDIÇÃO CRÍTICA, INTRODUÇÃO E COMENTÁRIO DE

T. F. EARLE

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN


SERVIÇO DE EDUCAÇÃO E BOLSAS
À Gisêle
PREFÁCIO

Com esta edição crítica dos Poemas Lusitanos pretende-se recuperar um


clássico da literatura portuguesa. Uma edição que tem o fim modesto de permi-
tir ouvir-se a voz de um poeta falecido há muitos séculos não deve ser conside-
rada uma obra muito original; em vez disso é, em grande parte, uma compilação
dos trabalhos dos r,uitos estudiosos que, ao longo dos séculos, investigaram a
produção em verso do criador da primeira tragédia escrita em Portugal. O que o
livro tem de novo limita-se à sua própria organização crítica e a algumas
achegas que porventura vão modificar a imagem que temos do poeta.
Pode-se dizer, sem exagerar muito, que o estudo do texto dos Poemas Lusi-
tanos começou com a sua primeira edição, em 1598. Naquela altura fez-se uma
tentativa, em grande parte bem conseguida, de representar fielmente as palavras
do escritor que tinha morrido na grande peste de 1569, quase trinta anos antes.
A edição de 1598 teve várias reimpressões durante os séculos XVIII e XIX. mas os
trabalhos de Miguel Leite, filho da segunda mulher de Ferreira, e dos tipógrafos
de Pedro Crasbeeck só fo,;am ultrapassados, e mesmo assim apenas parcialmente,
em /875, data da edição incompleta de Júlio de Castilho. Júlio de Castilho, jun-
tamente com António Luís de Seabra e Carolina Michaelis de Vasconcelos, foi um
investigador oitocentista cujos trabalhos são muitas vezes ainda hoje de inques-
tionável utilidade. No presente livro são citados constantemente, mas evitou-se
referência a outros escritores da mesma época, como Teófilo Braga, cujas fan-
tasias acerca da história literária do século XVI nem merecem refutação.
No século XX multiplicaram-se os estudos sobre António Ferreira. É ver-
dade que a única edição completa dos Poemas Lusitanos feita neste século, a de
Marques Braga, é criticável a muitos títulos. Mas com respeito ao texto de Castro,
pelo menos, fizeram-se progressos consideráveis, graças ao trabalho rigoroso de
Sousa da Silveira e de Adrien Roig. Ao mesmo professor francês e, antes dele, a
Mário Brandão, devemos muitas informações relativas à biografia do poeta e à
sua passagem pela Universidade de Coimbra. As fontes clássicas e italianas da
sua obra têm sido o alvo de investigações exaustivas de Joseph G. Fucilla, de
Maria Helena da Rocha Pereira e, mais recentemente, de.Rita Marnoto. Mesmo
as teorias muito controversas de Roger Bismut acerca da autoria de Castro tive-
ram o seu valor, principalmente por causa do debate que suscitaram, em que
entraram críticos como Adrien Roig, Aníbal Pinto de Castro, Paul Teyssier e Nair
Castro Soares.

3
PREFÁCIO

A todos estes escritores, vivos e mortos, e aos muitos outros mencionados ao


longo das páginas que se seguem, este livro deve muito. Sobre a base que eles
criaram foi possível fa zei; pela primeira vez, uma edição dos Poemas Lusitanos
em que se considera o trabalho dos tipógrafos de 1598 não como um documento
sagrado a ser seguido cegamente, mas simplesmente como o testemunho mais
importante e mais completo das palavras e dos pensamentos de um poeta que já
tinha morrido quando o livro saiu. O facto de a primeira edição da obra poética
de Ferreira ser um livro cuidadosamente preparado não nos dispensa da obri-
gação de emendá-lo, sempre que necessário, nem a de comparar as versões con-
tidas nele com todas as variantes conhecidas.
O comentário que se encontra ao fim do livro serve diversos fins . Para o
especialista há, sempre que necessário, uma discussão dos problemas textuais e
de datação suscitados por uma determinada poesia. Desta forma foi possível
chegar a um conhecimento, mais completo que anteriormente, da data de com-
posição de grande parte da obra do autor. Reuniu-se toda a informação conheci-
da acerca das fontes das poesias e da tragédia. O leitor comum necessitará de
uma explicação de passos difíceis e da identificação dos indivíduos mencionados
nas dedicatórias e nos próprios textos poéticos. Além disso, as alusões clássicas
e históricas são explicadas e indica-se pontualmente a interpretação possível de
certas poesias. Pode ser que surja do comentário uma imagem diferente de Fer-
reira, que deixa de ser unicamente "o austero joalheiro dos Poemas Lusitanos",
na expressão de José Sebastião de Silva Dias, para se tornar uma figura empen-
hada nos conflitos da sua época, uma voz poética que se esforça por se fazer ou-
vida no meio de uma conjuntura política e social muitas vezes hostil à mensagem
do humanismo português.
São muitas as pessoas que prestaram a sua ajuda durante os longos anos
em que este livro se elaborou. Em primeiro lugar, queria exprimir os meus agra-
decimentos a Aníbal Pinto de Castro, que leu o manuscrito todo e cujas sugestões
e críticas são sempre estimulantes. Em Portugal tenho beneficiado também do
apoio, prático e moral, de José V. de Pina Martins, Maria Leonor Carvalhão
Buescu, José António de Segurado e Campos e Rita Marnoto. Entre os meus cole-
gas ingl~ses, ou radicados em Inglaterra, queria destacar lisa Jefferson, Helder
Macedo, Stephen Parkinson, Cláudia Pazas Afonso, Luís de Sousa Rebelo e Car-
los Rocha. Tanto em Oxford como em Lisboa e em Coimbra o pessoal das várias
bibliotecas que consultei tratou-me sempre com a maior eficácia e carinho. Fina-
lmente, uma palavra de agradecimento a lia Correia Raitt, que teve o trabalho
ingrato de ler o meu texto e de emendar os erros de português que continha. Os
erros que ficam , estilísticos e outros, são da minha inteira responsibilidade.

T. F. Earle

4
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO

Esta edição dos Poemas Lusitanos de António Ferreira saiu pela primeira
vez em 2000. Graças ao empenhamento do Serviço de Educação e Bolsas da
Fundação Calouste Gulbenkian surge agora a segunda impressão.

Aproveitei a oportunidade para corrigir alguns erros tipográficos. Cabe-me


também registar a publicação de três estudos importantes sobre a obra do
poeta que não constam da bibliografia da edição primitiva. Não vi a tempo o
artigo de António Cirurgião que é um valioso contributo para o debate acerca
da organização do Livro II dos sonetos. 1 O Epitalâmio ao casamento da Senhora
D. Maria com o Senhor Alexandre Farnês constitui a temática de dois estudos
que saíram mais tarde, de Luís F. de Sá Fardilha e de Vanda Anastácio. Ambos
os autores se debruçam sobre as fontes desta poesia, uma das mais extensas
que António Ferreira nos deixou, e sobre as composições de outros autores
dedicados ao mesmo evento. 2

1
António Cirurgião, 'António Ferreira diz não à morte e sim à vida' , in O Amor das letras
e das Gentes: ln Honor ofMaria de Lourdes Belchior Pontes, editado por João Camilo dos Santos
e Frederick G Williams (Santa Barbara: Center for Portuguese Studies, 1995), pp. 63-83 .
2
Luís F. de Sá Fardilha, 'A celebração poética em Portugal do casamento de Maria e
Alexandre ' , in D. Maria de Portugal Princesa de Parma (1565-15 77) e o seu tempo: as relações
culturais entre Portugal e Itália na segunda metade de Quinhentos (Porto . Instituto de Cultura
Portuguesa, 1999), pp. 29-48; Vanda Anastácio, ' Poetas e príncipes: algumas considerações acerca
de dois epitalâmios dedicados ao casamento de D. Maria de Bragança com Alessandro Farnese',
Revista Camoniana, 3." série, 17 (2005), pp. 233-52.

5
INTRODUÇÃO

1. Aspectos literários dos Poemas Lusitanos 1

i. O humanismo e a Universidade

É impossível pensar na obra de António Ferreira sem tomar o humanismo


em consideração. Graças, provavelmente, à protecção da família poderosa dos
Lencastre, o poeta, que nasceu em Lisboa em 1528, teve a sorte de fazer os seus
estudos em Coimbra durante o período de maior esplendor da universidade por-
tuguesa renascentista. Muito mais que qualquer outro poeta importante da época,
Ferreira foi o produto do novo programa de estudos humanísticos decretado por
D. João III, com ênfase na aquisição de um bom conhecimento da literatura greco-
romana e dos valores estéticos e espirituais associados à civilização clássica. É a
este conjunto de conhecimentos filológicos, literários e filosóficos que se dá hoje
em dia o nome de humanismo. Não é necessário dizer que foi um fenómeno com-
plexo, cujas ramificações serão estudadas na Introdução que se segue. Mas antes
de entrarmos nas consequências estéticas e intelectuais dos estudos de Ferreira, é
importante frisar também o enorme impacto afectivo que tiveram nele os anos
passados à beira do Mondego.
Ferreira entrou na Universidade talvez em 1543, com a idade de 15 anos
apenas 2, e saiu depois de se ter doutorado em 14 de Julho de 1555. Foi o período
mais feliz da sua vida, a que nos anos a seguir se referia sempre com saudade.
Numa carta de 1557 ou 1558, escrita de Lisboa ao amigo universitário Manuel de
Sampaio, que tinha ficado em Coimbra, revela esse sentimento desde o início:

Das brandas Musas dessa doce terra


pera sempre apartado, choro, e gemo,
em vãqs cuidados posto, em dura guerra.

1 Nas páginas que se seguem, apresentam-se, em forma abreviada, as conclusões do meu


livro Musa renascida: a poesia de António Ferreira (Lisboa: Caminho, 1990) e de alguns artigos
meus dedicados à obra do poeta.
2 Adrien Roig, António Ferreira : Études sur sa vie et son reuvre (Paris: Fundação
Calouste
Gulbenkian, 1970), p. 76.

7
INTRODUÇÃO

Ferreira, que parece ter feito uma óptima carreira ao serviço do rei, chegou
ao importante posto de desembargador da Casa do Cível em 1567. Morreu dois
escassos anos mais tarde, na grande peste de 1569. Contudo, os primeiros anos em
Lisboa foram para ele uma espécie de exílio, em que não havia vida intelectual,
nem as amizades nem o amor que tinham contribuído para as alegrias dos seus
anos de estudante. Perto do fim da carta ao amigo Sampaio imagina um idílio,
todo feito de amor e da poesia, passado nas margens do Mondego:

145 Ao som das águas, sombra dos ulmeiros,


no doce colo de sua mãe fermosa
fermosos visse eu inda os meus herdeiros;

não soberba, não seca, não pomposa,


mas branda, humilde, casta, sábia, e santa,
150 fermosa sempre a mim, nunca queixosa.

Já a vejo, já se assenta, já me canta


ao som da doce lira os doces cantos
que eu não compunha em esperança tanta.

Nota-se que com o amor e a poesia está misturado um componente filosófico-


-moralista, visível na fantasia da mulher amada, "casta, sábia, e santa". Na última
estrofe tenta resumir as esperanças que em Lisboa pareciam perdidas para sempre:

175 Visse eu do que desejo santo efeito,


com saúde, com livros, com meã vida,
com ter de mim em minh'alma bom conceito.
S' ela mais desejar, não seja ouvida.

É desta mistura do desejo de um amor santo, dos livros e do moralismo que


se constrói o mundo literário de Ferreira. O seu não era um credo inteiramente in-
telectual porque, como se depreende da carta a Sampaio, nas suas melhores poe-
sias há sempre uma forte carga de emotividade.

ii. O renascimento da literatura clássica

Mas em primeiro lugar vinham sempre os livros. Na Universidade Ferreira


aprendeu o latim e nessa língua leu a literatura romana e também a grega, que em
meados do século XVI tinha sido em grande parte traduzida para latim . Ferreira
tinha uma admiração sem limites pelos grandes mestres da literatura clássica, de
forma que, para ele, Horácio, Virgílio, Séneca e poucos mais constituíam a total-

8
INTRODUÇÃO

idade da poesia lírica e dramática. Havia, porém, uma excepção. Como se sabe, o
renascimento da literatura clássica começou na Itália no século XIV e só chegou
a Portugal relativamente tarde. Foi por isso que Ferreira também aceitou como
clássicos vários escritores italianos, principalmente Petrarca, e alguns outros que
viveram depois dele e que se exprimiam em latim, como Iacopo Sannazaro e
Girolamo Angeriano. Fora deste âmbito greco-romano e italiano não havia litera-
tura, porque Ferreira a concebia exclusivamente em termos livrescos. É notório, por
exemplo, o seu desprezo pela literatura popular, que condena na carta a D. Simão
da Silveira. Na sua opinião a literatura moderna, portuguesa, não podia ser mais
que uma recriação da literatura antiga porque, na sua concepção altamente huma-
nística, a Beleza era una e derivava de uma única fonte greco-romana. A tarefa
que ele assumiu, com toda a solenidade, era a de recriar essa beleza para o Por-
tugal de quinhentos.
A esta recriação, comum a muitos autores humanísticos, dá-se normalmente
o nome de imitação. Ferreira era, sem dúvida nenhuma, um poeta imitativo: todos
os géneros literários que tentou existiam já, ou na época greco-romana ou na Itália
de Petrarca, e quase não há poesia nos Poemas Lusitanos que não se reporte, por
minimamente que seja, a uma fonte clássica. Assim, os sonetos de Ferreira deri-
vam dos de Petrarca, e os epigramas das supostas odes do poeta grego Anacreonte
ou do poeta novilatino Angeriano. As odes são todas horacianas, com a excepção
de 1.2, inspirada num poema de Catulo. Não se associava a elegia, género mais
fluído, com um único escritor clássico, mas algumas das de Ferreira baseiam-se
nos Anacreóntica. Virgílio, inevitavelmente, é a divindade titular das éclogas, en-
quanto as duas longas poesias que as seguem nos Poemas Lusitanos, dedicadas a
Santa Comba dos Vales e ao casamento da Princesa D. Maria de Bragança com
Alessandro Farnese, são, respectivamente, um epyllion e um epitalâmio, ambos
eles géneros muito bem conhecidos dos antigos. Nos dois livros de cartas Ferreira
voltou ao exemplo de Horácio, e no pequeno grupo dos epitáfios ao de Ausónio,
poeta romano da época tardia. A fonte principal de Castro são as tragédias de
Séneca.
Contudo, na época, imitar não significava decalcar, embora haja entre as
poesias de Ferreira uma ou outra que não passem de traduções . Ele tinha um forte
sentido histórico e sabia muito bem a distância que o separava a ele, português e
cristão, dos gregos e romanos. Para recriar a beleza da poesia dos antigos numa
língua moderna era necessário ter "arte e ingenho", como ele muitas vezes dizia.
Mas às vezes é bem sucedido e consegue dar uma forma renovada, portuguesa, às
velhas concepções clássicas. Há certos momentos privilegiados nos versos de
Ferreira em que o mundo antigo parece ren ascer perante os olhos do leitor, como
por exemplo nestas linhas bem conhecidas em que exprime quanto admirava a
obra literária do seu mestre, Sá de Miranda:

9
INTRODUÇÃO

Novo mundo, bom Sá, nos foste abrindo


com tua vida, e com teu doce canto,
nova água, e novo fogo descobrindo.

Não resplandicia antes o sol tanto,


35 não era antes o céu tão lumioso,
nem nos erguia o esprito em seu espanto.

Contigo nos nasce o ano mais fermoso ,


mais rosada, e mais loura a Primavera,
c' o seio de alvas flores mais cheiroso.

40 Por toda a parte o louro abraça a hera,


por toda parte rios, e águas claras,
e outra mor natureza já da que era.

Tu as fontes abriste, os céus aclaras,


às estrelas dás luz. vida aos amores,
45 santos amores d·uas Ninfas raras. (Carta II. 9)

Aqui renasce uma paisagem ideal de um tipo muito caro aos poetas romanos,
o locus amoenus. Graças ao talento literário de António Ferreira, porque na realidade
as palavras citadas nada devem a Sá de Miranda, é concedida ao leitor a visão de
um mundo da imaginação, muito mais belo que o mundo físico que nos cerca. Fer-
reira insiste no poder transformativo da poesia: o mundo que imagina é um mundo
novo. A transformação está em íntima ligação com o renascimento ou a ressurreição,
como se vê nas linhas acerca da primavera, época da renovação da natureza. E tudo
isto aconteceu, segundo o poeta, porque alguns anos antes Sá de Miranda tinha
introduzido em Portugal o "doce canto" dos italianos e dos romanos. Eis aqui uma
prova muito clara da concepção humanística da força da palavra escrita.
É principalmente na poesia pastoril de Ferreira que se vê com mais clareza
o poder mágico da literatu:i:a para transformar o mundo e os homens. A écloga foi
outro género clássico introduzido por Sá de Miranda a que Ferreira deu uma
forma mais apurada. Logo no princípio de Arquigâmia, a primeira das doze que
escreveu, encontra-se uma oitava em louvor do Portugal renovado pela acção
benéfica de D. João III:

Nas derradeiras partes do Ocidente,


10 onde o sol de cansado se refaz
de nova luz, pera a tornar à gente
donde se parte, que às escuras jaz,
e, pola que ali deixa, outra excelente
leva, e muito mais clara da que traz,

10
INTRODUÇÃO

15 o pacífico João, e piadoso


reinava então, no mundo glorioso.

O sol que desaparece para renascer ainda mais belo não é unicamente uma
imagem patriótica. A mesma metáfora solar se aplica à écloga como um todo, em
que o pastor Serrano, que morrera de amores na serra perto de Coimbra, renasce
por um processo mágico nas margens do Tejo, onde presencia o espectáculo
magnífico da chegada da princesa D. Joana, noiva de D. João, herdeiro do trono
de Portugal. Como se sabe, o jovem príncipe morreu pouco depois do casamento,
desastre nacional lamentado na segunda écloga, Jânio. Mas no mundo literário da
écloga a morte não constitui o fim, e numa outra poesia da série D . João, disfar-
çado sob o pseudónimo de Dáfnis, anuncia dos céus o nascimento dum herdeiro,
o futuro rei D. Sebastião:

- Ficai, minhas ovelhas, meus cordeiros


- diz Dáfnis - , claras fontes, bons pascigos.
Tenhais de meu herdeiro mil herdeiros.
Vivei em paz, pastores meus amigos.
175 Mil Dezembros conteis e mil Janeiros,
num amor juntos contra os maus imigos.

Este é apenas um exemplo da imagística da morte e da ressurreição que


perpassa por toda a poesia pastoril de Ferreira. Até na própria écloga fúnebre ,
Jânio, é manifesto o poder da nova literatura para transformar a experiência
bruta em beleza. O pretexto para a poesia é a morte do Príncipe D . João, mas o
poeta não toca em pormenores históricos, concentrando-se em vez disso na
recriação de D . João como Jânio, espécie de divindade pastoril, depois de cujo
falecimento

O branco orvalho os campos já perderam,


65 as boninas as cores, e estes prados
de cardas, e de espinhos já se encheram.

Contudo, o classicismo de Ferreira tinha limites bem marcados. Era huma-


nista, mas um humanista cristão que nunca teria permitido que a filosofia pagã
maculasse a sua purez?. doutrinal. Ao contrário de Camões, e até do Sá de
Miranda das éclogas Fábula do Mondego e Encantamento, não narra histórias
derivadas da mitologia greco-romana, que muitas vezes rejeita como "fábulas
vãs". Nas cartas ao irmão, Gracia Fróis Ferreira, e ao amigo universitário Diogo
de Betancor falava até com um certo desprezo dos "escuros meios" com que os
filósofos antigos tentavam penetrar a verdade religiosa sem terem a ajuda neces-

11
INTRODUÇÃO

sária da revelação cristã.3 E é sobretudo hostil à concepção clássica da fortuna que,


segundo ele, os romanos consideravam erroneamente uma deusa poderosa. Ferreira,
como muitos outros da sua geração, estava fascinado pela astrologia e acreditava no
poder das estrelas para influenciar os acontecimentos terrestres. Mas, como bom
católico, sabia que a consciência humana é livre para escolher entre o bem e o mal.
Esta é a temática da ode a D. João de Lencastre, filho ilegítimo do Duque de Aveiro,
a quem afirma que a "consciência pura" nada podia temer da fortuna, "falsa deosa .. .,
falso poder, e falsa divindade". Idêntica mensagem é a da tragédia Castro, escrita,
como a ode, enquanto estudava em Coimbra. Apesar de o Infante D. Pedro, por
exemplo, falar muito no efeito determinante da fortuna, ele podia ter controlado os
seus impulsos, como lhe disse repetidas vezes o seu Secretário. Mas, em vez disso,
o Infante prefere deixar-se dominar pelos próprios desejos, como o pai D. Afonso
IV e outros membros da família real, assim criando uma situação de conflito que
nem a morte de Inês resolve, já que a ela se segue uma guerra civil.

iii. O estoicismo: um programa de reforma moral

Coexistem, portanto, na obra de Ferreira uma exuberância lírica, ·que se asso-


cia com o renascimento das literaturas clássicas, e um austero moralismo que às
vezes parece limitar a criatividade, por exemplo na tragédia, em que se evita qual-
quer contacto entre os amantes. Nada, porém, é mais típico do humanismo, que foi
beber a nova beleza e a ética nas mesmas fontes greco-romanas. Foi com Horácio
que Ferreira aprendeu a estruturar uma carta ou uma ode, e foi com ele também, e
nas obras filosóficas de Cícero, que adquiriu os seus conhecimentos do estoicismo.
O sistema ético dos estóicos, com ênfase na razão e na virtude, atraía os
humanistas porque era em grande medida compatível com a mensagem cristã.
Ferreira alude muitas vezes às quatro virtudes chamadas estóicas - fortaleza, jus-
tica, prudência e temperança - e estava altamente consciente da importância que
tinham na vida quotidiana de quinhentos. O mais famoso dos estóicos cristãos
portugueses do século XVI foi sem dúvida Sá de Miranda, que muitas vezes criti-
cava o materialismo e as injustiças da época em nome da virtude antiga. 4 Ferreira
seguia-o nisto, e utilizava o estoicismo também para outro fim de flagrante actua-
lidade no período da expansão portuguesa na África e na Ásia.
Assim, o poeta, muito mais dado às letras do que às armas, via com um certo
cepticismo a ideologia cavalheiresca tradicional de muitos que lutavam no ultramar.

3 Na Carta 11.5. dedicada a António de Sá


de Meneses, revela uma atitude mais tolerante ,
possi ve lmente para se conformar com as ideias do mecenas.
4 Ver Mari a Yitalina
Leal de Matos, 'Sá de Miranda : o estoicismo feito poesia'. in Ler e escr-
rve r (Lisboa: Imprensa Nacional: Casa da Moeda , 1987). pp. 145-68

12
INTRODUÇÃO

Para Ferreira, a glorificação da violência não era unicamente um perigo para a


alma; era também erro político e militar que podia prejudicar os verdadeiros inte-
resses de Portugal. Afonso Vaz Caminha, irmão mais novo do poeta Pero de An-
drade Caminha, foi para Goa em 1558 na armada chefiada pelo vice-rei D. Cons-
tantino de Bragança. No ano seguinte Ferreira enviou-lhe uma ode (11.4) em que
o avisa contra os excessos do ardor bélico:

Ajuda Deus a boa fortaleza


de conselho, e razão acompanhada.
A força sobre si alevantada
despreza irado, e toma em vil fraqueza. (li. 46-9)

A "boa fortaleza", como vimos, é uma das virtudes estóicas, e o poeta não
deixa de mencionar todas as outras, sempre com a ideia de criar no espírito de
Afonso uma atitude calma e reflectida perante os problemas que ia enfrentar. Os
conselhos que Ferreira dava ao próprio vice-rei ou ao Conde de Redondo, que
sucedia a D. Constantino no cargo, eram praticamente os mesmGS. Mas nestas
poesias, como sempre acontece, há uma conexão íntima entre a moral e a estética.
A estrutura e algumas das palavras da ode a Vaz Caminha derivam de uma ode de
Horácio (111.4) porque, para um humanista, todo o moralismo é ineficaz se não for
comunicado com a eloquência necessária.
Se a estética influencia a moral, a moral por seu turno influencia a estética.
Ferreira, preceptor de uma geração, dava aos poetas conselhos artísticos que eram
ao mesmo tempo lições de filosofia estóica. Vejam-se por exemplo estes versos
da carta a Diogo Bernardes:

A primeira lei minha é que de mim


primeiro me guarde eu, e a mim não creia,
nem os que levemente se me rim .

70 Conheça-me a mim mesmo, siga a veia


natural, não forçada: o juízo quero
de quem com juízo, e sem paixão me leia.

Na boa imitação, e uso, que o fero


ingenho abranda, ao inculto dá arte,
75 no conselho do amigo douto espero.

Muito, ó poeta, o ingenho pode dar-te,


mas, muito mais que o ingenho, o tempo e estudo.
Não queiras de ti logo contentar-te.

13
INTRODUÇÃO

É necessário ser um tempo mudo,


80 ouvir, e ler somente. Que aproveita
sem armas, com fervor cometer tudo?

É notável a semelhança dos últimos versos deste trecho com a ode a Afonso
Vaz Caminha citada há pouco. O poeta que se precipita para a composição sem
ter lido as obras dos grandes mestres é tão culpável como o soldado que ataca o
inimigo irreflectidamente. A ambos falta uma das virtudes estóicas, a prudência.
Ferreira não deixa de se referir, implicitamente, às outras: a justiça, no desejo do
poeta de ter a opinião de alguém que "com juízo, e sem paixão me leia" e a tem-
perança, no conselho de evitar todo o tipo de extremismo. Quanta à fortaleza, ela
é visível na serena indiferença do escritor perante os críticos que zombam dele,
"os que levemente se me rim (riem)", e no resto do poema sempre que Ferreira
insiste em como o poeta deve falar em público, apesar dos ataques a que possa
estar sujeito. A referência à "veia natural" também tem importantes conotações
estóicas, porque para autores como Cícero ou Horácio termos como "virtude",
"razão", "natureza" e "Deus" eram, se não propriamente sinónimos, pelo menos
aspectos de uma única verdade.5 Era em parte por 1s~o mesmo que Ferreira detes-
tava a vida citadina de Lisboa e ansiava por voltar às mai~ens do Mondego.

iv. Uma visão de renovação nacional

Ferreira tinha, portanto, uma concepção muito alta da sua vocação. Sabia
que, como humanista, tinha acesso privilegiado à sabedoria antiga e considerava
ser seu dever disseminar os seus conhecimentos da filosofia moral e política a um
público tão vasto quanto possível. O público em questão devia dominar o por-
tuguês porque, como se sabe, o poeta sempre se recusou a escrever em outra lín-
gua.6 Dele estavam automaticamente excluídos todos os que não sabiam apro-
veitar os ensinamentos do poeta, ou por falta de cultura ou por depravação moral.
Estes últimos, o "odioso profano vulgo", são muitas vezes criticados asperamente
pelo poeta. Mesmo assim, Ferreira não era o poeta dum círculo restrito de inicia-
dos. O próprio título das suas obras poéticas, os Poemas Lusitanos, revela o seu
desejo de se dirigir a todos os "bons ingenhos" da pátria, como ele se lhes referia.
Não é difícil saber quem eram os "bons ingenhos", já que quase todas as com-
posições do poeta têm uma dedicatória, através das quais se pode chegar a uma
5 Para um tratamento mais extenso deste tópico, ver T. F. Earle, "O estoicismo e o culto das

Musas na poesia de António Ferreira" em Actas do 4. • Congresso da Associação Internacional de


lusitanistas, ed. M. Fátima Viegas Brauer-Figueiredo (Lisboa: Lidei . 1995), 435-40.
6 É possível que a écloga Janiu s, que é em latim, seja da autoria de Ferreira. (Ver o

Comentário.) Porém, nunca escre veu em espanhol, nisto diferindo da maioria dos contemporâneos.

14
INTRODUÇÃO

concepção das dimensões verdadeiramente nacionais do seu projecto literário. As


pessoas a quem Ferreira se dirigia podem ser divididas, sem demasiado rigor, em
cinco ou seis grupos. Em termos de proeminência social vêm em primeiro lugar
figuras da vida pública de quinhentos, tais como reis, chefes militares, e altas
dignidades eclesiásticas, a quem se seguem os mecenas do poeta, que em certos
casos formavam parte também do primeiro grupo. O pai do poeta era membro da
casa de D. Jorge, duque de Coimbra, e o filho esteve intimamente ligado à família
de Lencastre durante toda a sua vida. Existem poesias dedicadas ao sucessor de
D. Jorge, o duque de Aveiro D. João, e aos filhos legítimos e ilegítimos. Os Sá de
Meneses constituiam outra família de eruditos e de literatos, de grande influência
política, a quem Ferreira se dirigia em verso.
A um nível social inferior havia outro grupo, o dos poetas Francisco de Sá
de Miranda, Pero de Andrade Caminha, Diogo Bernardes e D. Simão de Silveira,
com quem Ferreira se correspondia sobre assuntos estéticos e literários. Um outro
grupo ainda era constituído pelos amigos universitários António de Castilho,
Manuel de Sampaio e Diogo de Betancor. A emotividade das poesias que lhes
enviava é de um contraste surpreendente com a frieza distante com que tratava o
irmão, Garcia Fróis Ferreira. Finalmente há as amadas do poeta. Em primeiro
lugar vem a misteriosa dama a quem Ferreira se referia como Serra, nome sim-
bólico da aspereza e da dureza, mas que podia esconder um apelido real. Mais
tarde, presumivelmente em 1557, quando acabou o primeiro livro de sonetos, encon-
trou um "amor novo", como explica no soneto I, 33: a dama normalmente identi-
ficada com Maria Pimentel, sua primeira mulher.
Todos estes indivíduos formavam o grupo dos "bons ingenhos", unidos no
amor das boas letras e da sã moralidade. Há conotações moralistas mesmo na poe-
sia de amor, como veremos. Mas Ferreira não se interessava unicamente pela vida
íntima das pessoas com quem se correspondia. A mensagem humanista incluía
também a política.
É evidente que conceitos estóicos como a razão e a moderação podem ter
aplicação à escala nacional. O desprezo pela violência irreflectida, presente na
ode a Afonso Vaz Caminha, vê-se também em poesias enviadas a individuali-
dades cuja actuação pública podia ter um impacto profundo na vida nacional e na
gestão do império. AD. Constantino de Bragança, vice-rei da Índia, diz:

55 Quem primeiro consigo só peleja,


e com vitória sai, ponha seguro
à fortuna seu peito, rosto à inveja.

Cair-lhe-á ant'os pés o imigo duro,


vencido do grã nome. (Cartas II.8)

15
INTRODUÇÃO

Mais tarde, em versos em louvor dos heróis da história pátria, volta à ideia
da batalha ganha sem sangue :

100 d ' uns o conselho, d ' outros nos perigos


o ânimo invencível, d'outros a arte
de sem sangue vencer cem mil imigos.

O comandante moralmente perfeito e inteligente não precisa da violência


para atingir os seus objectivos. A noção não era tão idealista como podia parecer,
já que em 1559 o próprio D. Constantino capturou a cidade indiana de Damão sem
ter de combater por ela, e passou-se o mesmo com o pai, D. Jaime, em Azamor em
1513. Na realidade, a presença do comandante supremo no campo da batalha era
uma indicação das sérias intenções dos portugueses, que os inimigos nem sempre
queriam pôr à prova.
Ferreira não criticava a presença portuguesa no Oriente, embora num momento
passageiro de cinismo tivesse feito esta confidência na carta a Sampaio citada
anteriormente:

Quanto, Sampaio meu, quanto mais vai,


meu bom amigo, um ócio, livre, e honesto,
105 que as Índias guerrear de Portugal!

Índia, Guiné, Brasil, e todo resto


do mundo, a que nos chama, a que conv ida,
em mundo assi ambicioso, e desonesto?

Mas normalmente orgulhava-se da glória que os seus conterrâneos tinham


alcançado, apesar de reagir mal à ideia da violência que o império necessaria-
mente implicava. Um outro aspecto do culto estóico da razão teve consequências
importantes para o pensamento político de Ferreira. Se todos os seres humanos
participam da razão, como acreditavam os estóicos, é porque têm uma caracterís-
tica em comum. Daí para a concepção da irmandade da humanidade é um passo
pequeno, dado pelo próprio poeta quando diz, falando do amor da virtude, que era
para os estóicos identificável com a razão:

Não tem imi go: todos são parentes,


90 quantos veste ua mesma humanidade.

Estes versos vêm na carta ao Conde de Redondo, governador de Arzila e


mai s tarde vice-rei da Índia. São uma indicação de que a visão do poeta ia às vezes
muito além do círculo restrito dos "bons ingenhos". A necessidade de se confor-

16
INTRODUÇÃO

mar com a razão é para ele também uma limitação do poder dos reis, como diz ao
jovem D. Sebastião:

145 Somente em Deus razão é a vontade.


Absoluto poder não o há na terra,
qu ' antes será injustiça, e crueldade.

Que vontade mortal , Senhor, não erra,


s' a lei justa, e a razão a não enfreia? (Cartas 11. 1)

Considerações dessa natureza levavam Ferreira a uma concepção do poder


régio em que se vislumbra a ideia moderna do governo consensual. A necessidade
de tal forma de administração pública parece ser a lição a tirar de Castro, por exem-
plo do Acto I, em que o Infante se recusa a escutar os conselhos do seu Secretário,
deste modo prolongando o conflito entre ele e o rei D. Afonso IV. Numa atitude
oposta o rei, fraco e irresoluto, não sabe impor a sua própria opinião, deixando tudo
ao critério dos conselheiros Pacheco e Coelho. Assim, o monarca não cumpre o
dever, porque não contribui com a sua autoridade para a resolução justa do proble-
ma que divide o Estado. Ferreira aceitava a teoria da origem divina da monarquia,
mas opunha-se ao absolutismo e via o rei ou o vice-rei, seu substituto na Índia, não
como uma figura hierárquica, isolada, mas como membro principal dum grupo de
dirigentes. É flagrante neste respeito o contraste entre a carta de Ferreira a D. Cons-
tantino de Bragança e as oitavas dirigidas por Camões à mesma individualidade.7
Para Camões, o vice-rei devia ser um herói, orgulhosamente indiferente às opiniões
do "vil povo" que o cerca; para Ferreira, é muito mais o presidente de uma comis-
são, que não pode governar sem o apoio dos outros. Como diz o poeta:

20 Dos bons te ajuda. em Deus espera, e crê :


acenderás de amor üa viva chama.

Com efeito, Ferreira tinha pouco entusiasmo por heróis. Alexandre Magno,
que tipifica o ideal militar, era uma figura da antiguidade clássica por quem o
poeta sentia um fascínio misturado com horror. Referiu-se-lhe inúmeras vezes nos
Poemas Lusitanos, quase sempre para o criticar. Na carta ao padre jesuíta Luís
Gonçalves da Câmara, mestre ou preceptor de D. Sebastião, reporta-se três vezes
ao rei macedónio, indicando de cada vez a sua discordância com o ideal que repre-
sentav a. Numa ocasião diz dele:

7 Ver as o itav as "Como nos vossos ombros tão constantes", e m Luís de Ca mões, Lírica

Completa. ed. por Mari a de Lurdes Sarai va, 3 vo ls (Li sboa : Imprensa Nac ional-Casa da Moeda,
1980-81 ), vol. 3, pp. 219-26.

17
INTRODUÇÃO

Aquelas tão cantadas estranhezas


do soberbo Alexandre, não contente
dum mundo só, as pródigas larguezas,

40 não o fizeram grande a quem bem sente


da natural razão algüa parte,
que força, e tirania não consente.

Ferreira falava assim de Alexandre em parte porque acreditava que a época


da violência e da tirania tinha acabado. Tinha uma concepção muito viva da
história, em relação não só à antiguidade clássica, mas também ao passado de
Portugal. Como humanista cristão que era, sabia que através da revelação divina
os homens da sua geração podiam chegar a um estado de graça inconcebível na
época greco-romana. Mas em contrapartida, por um processo de raciocínio algo
paradoxal, muito típico do humanismo, acreditava também que o século de qui-
nhentos tinha atingido um grau mais alto de civilização, em relação à Idade Média,
porque tinha acesso à cultura literária dos antigos.
Ferreira sentia-se superior, portanto, a Alexandre Magno e aos heróis portu-
gueses da época medieval, tal como, por exemplo D. Afonso Henriques, figura bem
na moda nos anos 50, em que havia uma proposta séria de o canonizar. Ferreira
interessava-se pelo fundador da monarquia, mas não admirava incondicionalmente
nem o rei nem a sua época. Escrevendo para Pero d' Alcáçova Carneiro, diz dela:

O Portugal antigo, que louvamos


d'espritos rudes, de ânimos ousados:
qu' arte à sua guerra, à sua paz achamos? (11. 17-19)

E na carta a D. Simão da Silveira:

Deixaram boa matéria a altos escritos


nossos passados; não lhes tiro a fama,
mais dados a bons feitos, que a bons ditos. (li. 22-4)

Vista desta perspectiva, Castro é uma tragédia histórica, isto é, a morte


injusta de Inês é o produto de uma época remota, de violência e de paixões desen-
freadas. É certo que Ferreira também concebia a peça em termos universalistas,
mas talvez preferisse não acreditar que eventos tão sanguinolentos pudessem ter
acontecido na época em que vivia. Com efeito, para Ferreira o único grande
homem da Idade Média é D. Dinis, que sabia combinar a glória militar com o
amor das letras. A ele dedicou várias poesias, e até escreveu dois sonetos no que
julgava ser a linguagem do rei-poeta.

18
INTRODUÇÃO

Para Ferreira, poeta essencialmente optimista, o momento de regeneração


nacional tinha chegado com a sua própria geração, e ia encontrar a sua expressão
mais alta na composição de uma epopeia que celebrasse as grandezas de Portugal.
Como se sabe, tentava em muitas poesias persuadir os seus contemporâneos a
deitar mãos à obra, embora ele próprio não se sentisse capaz de um projecto tão
ambicioso. Costumava dizer, como Horácio, que era unicamente poeta do amor e
que não podia tentar os géneros literários mais nobres. Mas a incapacidade de Fer-
reira para fazer uma epopeia era mais que um topos humanista, já que na écloga
dos Segadores confessa ao Senhor D. Duarte, primo de D. Sebastião, que tinha
tentado os "versos maiores", mas em vão:

Alto senhor, se a teus altos ouvidos


50 chega o som baixo da samponha minha,
serão meus versos tão engrandecidos,
quanto pera os ouvires lhes convinha.
Outros maiores, que te são devidos,
já os tentei em vão.

A razão do fracasso não se encontra simplesmente na inabilidade técnica do


poeta. Sabia construir uma narrativa, como o prova a História de Santa Comba
dos Vales, verdadeiro epyllion, ou epopeia em miniatura. Mas na poesia religiosa
as orações da santa são mais fortes que a violência do concupiscente rei mouro.
Com efeito, o que falta em Ferreira é aquela fusão de ardor militar com a poesia
que constitui o âmago da epopeia clássica ou neo-clássica. Sempre que tenta ima-
ginar uma cena de violência nota-se nele uma falta de convicção. Dirigindo-se
mais uma vez ao Senhor D. Duarte, que acabara de ter sido nomeado condestável
de Portugal, diz:

Quem do sangue infiel a grã corrente


de que se já alagando
o largo campo está, quem dinamente
25 dirá o fogo, que alçando
se vai aos céus, deixando
em cinza, e pó desfeitos
muros, misquitas, armas, feros peitos? (Odes II.I)

É mais do que evidente que o poeta que "dirá" estas coisas sanguinolentas
não vai ser António Ferreira. Na verdade, será Pero de Andrade Caminha, um
grande amigo, para quem Ferreira prevê uma carreira de épico. Ao escrever para
João Lopes Leitão, soldado que militava na Índia, mais uma vez tenta combinar
armas e letras:

19
INTRODUÇÃO

Mas tu com Marte t' arma, com Amor canta:


50 inda juntos verás Vénu s, e Marte,
juntos Apolo, e Palas em paz santa.

Há aqui uma pobreza imaginativa, uma incapacidade de visualizar a união de


Vénus e Marte, ou de Apolo e Palas (deusa grega da guerra), que denota uma falta
de convicção nas palavras do poeta. Era um letrado, um homem da paz, e logica-
mente não podia haver lugar para a violência na sua visão humanista de um Portugal
justo e civilizado. Mas ansiava por uma epopeia, o que indica a existência de uma
contradição profunda no seu pensamento. A renovação nacional desejada pelo poeta
não podia realizar-se inteiramente, nem sequer na sua própria imagi nação.

v. O amor e a regeneração da personalidade

Não obstante a profundidade moral de muito da sua obra, Ferreira também


era poeta do amor. Foi como poeta do amor que quis apresentar-se ao público, na
primeira das odes, "o brando Amor só sigo, levado do costume", e o amor é a
temática de muitos sonetos e, inevitavelmente, de várias das éclogas. Mas mesmo
nestas poesias encontramos o desejo humanista de recriar a beleza literária antiga
e de tirar das experiências recontadas o possível proveito moral.
Como vimos, em Portugal o Canzoniere de Petrarca foi o modelo da poesia
humanística de amor. Ferreira inspirou-se na linguagem do mestre italiano, e também
impôs uma estrutura aparentemente autobiográfica aos sonetos, exactamente como
tinha feito Petrarca, dividindo-os em poemas escritos durante a vida da amada e
depois da morte dela. Os sonetos do livro primeiro formam·uma sequência narrativa,
em que se fala da desastrosa paixão juvenil do poeta pela dama chamada simples-
mente Serra, a que se segue a alegria dos poemas do "doce amor novo", normal-
mente identificado com a primeira mulher do poeta, Maria Pimentel. A ausência da
dama durante algum tempo causa ao poeta a maior das angústias, mas o período
de sofrimento acaba com o regresso da amada, celebrado no soneto fin al do li vro.
A sequência, a primeira escrita em Portugal, tem uma certa originalidade, espe-
cialmente nos poemas dedicados ao amor novo, que não têm paralelo em Petrarca,
embora haja uma série parecida entre os sonetos do espanhol Juan Boscán. Há nestes
sonetos uma nota estática de regeneração espiritual, mas neles persistem a estética
humanista e a nota moral. Uma das poesias mais belas de toda a seq uência é 1.38:

Quando eu vejo sair a menhã clara,


nos olhos dia, as faces neve, e rosas,
afugentando a sombra qu' as fermosas
cores do campo, e céu dantes roubara:

20
INTRODUÇÃO

5 e quando a branca Délia a noite aclara,


e traz nos brancos cornos as Iumiosas
estrelas, serenando as tempestosas
nuvens qu' o grosso humor nos céus juntara;

tal é, digo comigo, a clara estrela


10 que minh'alma me encheu doutra luz nova,
e meus olhos abriu ao que não viam.

Assi me leva a vida, e ma renova;


assi às vãs sombras, que antes me escondiam
o claro céu, fugindo vão ante ela.

Na primeira estrofe o poeta permite-se uma descrição da dama, "nos olhos


dia, as faces neve, e rosas," através de uma comparação com a aurora, que por sua
vez sugere a renovação de toda a natureza. Mas a nota física é temperada na
estrofe a seguir, em que surge "a branca Délia", referência erudita, humanista, a
Diana, deusa da lua e da castidade. Aqui surge também, embora discretamente, o
moralismo do poeta. Nos tercetos Ferreira foca ainda mais a regeneração espiri-
tual que o amor novo lhe fornece: a "luz nova" da alma, a visão do "claro céu" e
a renovação de toda a vida. Com efeito, tudo no soneto é novo, como literatura e
como depoimento humano: é novo relativo a Petrarca, que não podia conceber um
amor correspondido, e é novo também no contraste que faz com as poesias de tris-
teza e de desespero da primeira secção da sequência narrativa. Ao ler o soneto i.38
o leitor tem a sensação de presenciar um verdadeiro renascimento.
O livro II dos sonetos abre com uma série de onze poemas em que Ferreira
lamenta a morte prematura da dama amada. Desta maneira volta a conformar-se
com o modelo petrarquiano, mas o soneto 12, da autoria de D. Simão da Silveira,
introduz mais uma novidade. Pode parecer extraordinário, e pouco poético, que
Ferreira tenha incluído entre os sonetos fúnebres um poema escrito por um amigo
que o acusa de se lamentar excessivamente, e ainda mais extraordinário que esta
poesia seja seguida de outra em que o nosso poeta confessa que o amigo tem
razão. Mas os dois sonetos são exemplos de razão e de moderação, e por esta
razão fazem parte do programa estóico dos Poemas Lusitanos. Por isso Silveira
indica a Ferreira que o seu comportamento é irracional e timorato, e Ferreira
promete emendar-se. Os restantes sonetos do Livro II são uma prova de como o
poeta aprendeu a lição, porque neles não há sinal da dor desmedida de Sii 1-1 l.
Os Poemas Lusitanos formam uma colecção extremamente coerente. Por
toda ela se encontra o fascínio humanista pela eloquência e o desejo de imitar em
língua portuguesa as obras dos grandes mestres do passado. Contudo, não é per-
mitido ao entusiasmo puramente literário exceder os limites estabelecidos por um

21
INTRODUÇÃO

programa moralista que tem em vista não só a regeneração pessoal mas também
a construção de um Portugal novo, civilizado e racional. A coerência dos Poemas
Lusitanos alarga-se à própria organização do livro, como veremos oportunamente.
Vista como um todo, a obra de Ferreira, com a sua tonalidade optimista da rege-
neração e da renovação, constitui a expressão mais perfeita do Renascimento
literário português .

2. Características da edição presente dos Poemas Lusitanos

Esta edição dos Poemas Lusitanos nasce da convicção de que António


Ferreira é um poeta que vale a pena ler. É uma convicção que deve ter sido parti-
lhada pelo grande número de pessoas que compraram e leram as muitas edições de
Castro feitas neste século.8 Mas Ferreira não era unicamente poeta trágico, e Castro
representa só 15% da totalidade dos PL. A tragédia foi há muito tempo reconhe-
cida como uma obra prima do Renascimento português, mas a parte não dramática
da obra de Ferreira também tem inegável valor estético. Contudo, poucos reco-
nhecem tal valor, certamente por falta de uma edição fidedigna e atraente. A única
versão completa de PL editada neste século é a de Marques Braga, que apareceu
pela primeira vez em 1939. O livro tem erros tipográficos e não respeita a divisão
estrófica do original, deturpando assim a sua estrutura métrica. Além disso, as
notas de rodapé incluídas nos dois volumes só raramente ajudam a compreensão
do sentido das poesias e da sua posição na conjuntura sócio-cultural da época.
É por PL ser um texto clássico, em todos os sentidos, mas pouco lido, que
se optou por fazer uma edição modernizante dele. Se se considerar o "campo
bibliográfico" do livro, para nos servirmos de uma frase muito útil de Ivo Castro
e Maria Ana Ramos, a escolha parece quase inevitável. Segundo estes autores o
"campo bibliográfico" de um texto é "o grupo formado pelas edições existentes
desse texto". 9 No caso de PL o campo está praticamente vazio, se descontarmos
a bela edição de 1598 e nos restringirmos ao século XX, que só produziu o tra-
balho manifestamente inferior de Marques Braga e uma ou outra antologia didác-
tica baseada naquele trabalho. 10 Se se quiser "vender" a um público não iniciado
um texto de amplo interesse literário, para utilizar outra frase tirada do artigo de
Castro e Ramos, é necessário fazer todo o possível para tomar a leitura do texto

8 A maioria destas edições não passa de trabalhos de divulgação.


Para uma lista de algumas
delas, ver a Bibliografia.
9 Ivo Castro e Maria Ana Ramos, 'Estratégia
e táctica da transcrição', em Critique textuelle
portugaise, (Paris: Fondation Calouste Gulbenkian, 1986), pp. 99- 122 ( 1I 2-3).
10 Destas a melhor é de F. Costa Marques .

22
INTRODUÇÃO

fácil e agradável. 11 É verdade que o caso do campo bibliográfico de Castro é


diferente, porque existem boas edições da tragédia. Mas ela representa só uma
parte pequena de PL, e recebe aqui um tratamento modernizante, igual ao do resto
da colecção. Contudo, fez-se também uma tentativa de satisfazer as exigências do
erudito, que encontrará nesta Introdução e no aparato crítico a informação sufi-
ciente para restabelecer as leituras da edição de 1598, a qual, aliás, não é um livro
muito raro. Em 1971 Roig identificou 21 exemplares, espalhados por bibliotecas
em Portugal, Brasil, Espanha, Estados Unidos, e Inglaterra. Desde então vieram à
luz mais 6. 12 Quem quiser, portanto, pode ler a edição original.
Além disso, a edição que aqui se oferece é uma edição modernizante con-
servadora, em que se mantêm até onde é possível as características linguísticas da
época do autor. Respeita-se sempre a gramática do poeta, e por isso aparecem cer-
tas formas que podem parecer estranhas a um leitor de hoje, por exemplo:
i. O pronome lhe é indiferentemente singular e plural.
ii. A preposição com combina-se com o artigo definido segundo o paradigma
seguinte:

c'o co'a
c'os co'as

A combinação da preposição a com o artigo definido masculino resulta ou


em ao, como hoje, ou em o.
iii. A 3ª pessoa do presente do indicativo de certos verbos tem a mesma
forma no singular e no plural, facto que se depreende da maneira de grafar as
palavras de PL e também do estudo da métrica. São exemplos disso põe, que pode
ser põe ou põem, tem, que pode ser tem ou têm, e vem, que pode ser vem ou vêm
(de vir) ou vêem (de ver). No século XVI dizia-se também cremem vez de crêem
e rim em vez de riem.
iv. O mais-que-perfeito em -ara, -era, ou -ira tem quase sempre valor con-
dicional.

11 Ivo Castro e Maria Ana Ramos, p. 101.


12 Ver La Tragédie "Castro" d'António Ferreira, ed. e com tradução para francês por
Adrien Roig (Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 1971), pp. 67-9. Além dos exemplares identi-
ficados por Roig, há o exemplar da Biblioteca de Estudos Humanísticos de Lisboa, mais um exem-
plar, muito importante, da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (ver notas a Si43). o 4:
exemplar da Biblioteca Nacional de Madrid (com a cota R I 2.800), e mais 3 exemplares em Espa-
nha (Biblioteca dei Palacio Real, Madrid, Biblioteca Pública de Granada, Biblioteca da Univer-
sidade de Santiago). O exemplar do "Mundo do Livro" foi adquirido pela Taylor Jnstitution Library
da Universidade de Oxford.

23
INTROD UÇÃO

Além disso, conservam-se formas como podesse, poseram, molher, sogeita,


sospira, roim, riguroso, ingenho, minino, mintira, impíreo, promiti, /iões, empera-
dor, devisar (por divisar), piadade, menhã. No século XVI, período de transição
linguística, a pronúncia do português não era fixa, de forma que aparecem em PL
formas alternativas como, por exemplo,fuge e foge , sujeito e sojeito. Em tais casos
de hesitação segue-se sempre a leitura da primeira edição. Mantém-se também u
em 11a. alg 1ia, etc.
A pontuação de PL também merece normalmente a confiança e reproduz-se,
sempre que possível, na edição presente. Contudo, certas convenções da pontua-
ção quinhentista podem desorientar o leitor, tais como o uso da vírgula em orações
relativas restritivas, o que contraria a convenção moderna. Os tipógrafos de 1598
também colocavam invariavelmente uma vírgula antes de e e ou, hábito que pode
também causar confusão, se resultar na separação de um verbo do complemento
directo. Em casos como estes a pontuação foi modificada, sem avisar o leitor.
Outro sinal gráfico muito ao gosto da tipografia quinhentista era o apóstrofo, que
se empregava em casos de elisão ou crase. Mantém-se aqui, por ser de utilidade
para a compreensão da métrica da poesia de Ferreira, além de possuir um certo
encanto próprio da época. Porém, é importante avisar o leitor que o uso do após-
trofo é inconsistente, porque há instâncias inumeráveis de elisão ou de crase nos
versos de Ferreira que não são marcadas desta forma.
Mas, mesmo assim, o leitor encontrará normalmente a ortografia e a acen-
tuação actuais. Eliminam-se as consoantes duplas -ll-, -mm-, -tt- . O ditongo -ao-
é substituído por -au- . Água e mágoa, que rimam muitas vezes em PL, grafam-se
como modernamente. O -e- inicial de palavras como esprito (espírito) ou espera,
que às vezes falta em PL, é restaurado. Seguem-se as normas correntes na divisão
de palavras e no emprego de maiúsculas, sendo feita uma excepção no caso da
palavra Musa, de tanta importância no imaginário de Ferreira.
Nenhuma edição de um texto antigo se pode considerar definitiva, e a deci-
são de modernizar o texto de PL tem desvantagens além de vantagens. As formas
arcaicas têm a função muto importante de lembrar ao leitor que o texto pertence
a uma época remota. Contudo, podem dar uma ideia errada das estruturas gra-
maticais usadas por Ferreira e até da maneira como ele pronunciava a língua por-
tuguesa. Seguem-se alguns exemplos:

Supressão de monossílabos

Há uma tendência em PL, como em outros textos da época, para suprimir o


artigo definido se a palavra que se segue começa com a- ou o- . Na edição de PL
de 1598 verifica-se frequentemente a supressão do artigo antes de alma, e também

24
INTRODUÇÃO

antes de outros substantivos. O tratamento dado ao artigo em 1598 foi bastante


inconsistente, e as instâncias de conservação do artigo antes de alma excedem a
sua supressão na proporção de duas para uma. Há, portanto, evidência suficiente
para concluir que, a este respeito, o uso do artigo definido variou pouco desde o
tempo de Ferreira até ao nosso. O artigo é introduzido na edição presente sempre
que a sua presença se pode justificar por razões gramaticais. 13 No texto, indica-se
a intervenção editorial pelo uso de itálicos e conserva-se a leitura original no
aparato.
Segue-se o mesmo processo no caso de outros monossílabos. Nota-se fre-
quentemente a supressão dos pronomes átonos o e a quando precedidos por uma
palavra que acaba em -a ou -o, e, em um ou outro caso, até monossílabos tónicos
desaparecem, como em 'Que de que vem perderense, ou cansarem/Os bons inge-
nhos?' (Ci4 11.58-9). Aqui é está presente, mas não escrito. Em todos estes casos
a palavra que falta é restaurada, em itálicos.

As grafias -eo e -ee-

É sabido que, nos fins da Idade Média, se desenvolveu na língua portuguesa


uma série de ditongos novos, resultantes da contracção de vogais em hiato, entre
os quais os ditongos hoje grafados -eu e -éu. Algum tempo mais tarde, já no século
XVI, começou a aparecer outro ditongo, hoje grafado -ei- em palavras como meio,
veio, seio etc. 14 O estudo das rimas de PL indica que, na linguagem do nosso
poeta, estes processos fonológicos já estavam completos. Palavras como céu, véu
rimam entre si mas não com meu, teu, nem com meio, veio. 15 Também os pretéritos
em -eu, excepto deu, rimam unicamente entre si. Porém, a ortografia não acom-
panhou a evolução da língua falada, e em 1598 -eo continuou a representar os três
ditongos referidos. Só os monossílabos meu, teu, seu, deu, eu, e as suas formas
plurais se grafavam como modernamente. Já que a ortografia quinhentista dá uma
ideia bastante imprecisa da pronúncia de Ferreira, parece legítimo suprimir -eo,

13 O mesmo fenómeno manifesta-se num trecho conhecido d ' Os Lusíadas, Canto III, est.

120, na edição de 1572: "Estauas, linda Ines, posta em socego/De teus annos colhendo doce frui to".
Depois de colhendo há o artigo o, não escrito mas presente. Ver Paul Teyssier, recensão crítica de
Roger Bismut, António Ferreira, /e plagiaire malgré /ui, em Arquivos do Centro Cultural Por-
tuguês, 32 (1993), 417-76 (465-6). Há muitos exemplos em PL. Teyssier (ibid) chama a atenção
para Castro 1.755.
14 Ver Paul Teyssier História da língua portuguesa,
trad . por Celso Cunha (Lisboa. 1984)
pp. 54-6.
15 Deus constitui excepção, porque no séc. XVI o e tónico ainda não se tinha
fechado . Ver
Edwin B. Williams, From Latin to Portuguese, 2• ed. (Philadelphia: University of Pennsylvania
Press, 1962) § 34.7.

25
INTR ODUÇÃO

colocando no seu lugar as grafias actuais. Segue-se a mesma regra no caso de -ee ,
que aparece em palavras como recees e prantees (Ecl 1 11.346- 7). Na edição pre-
sente substituem-se por receies e pranteies.
Pode-se argumentar que as rimas de um poeta não são um guia infalível à
pronúncia, porque há sempre a possibilidade de uma má rima. Edwin B. Williams
julgava que o número de rimas falsas cresceu nos séculos XVI e XVII, porque os
poetas, acostumados à leitura de livros impressos, eram cada vez mais influencia-
dos pelo aspecto visual das palavras e não pelas suas características auditivas,
como anteriormente.16 Contudo, Ferreira costumava rimar bem. Entre as centenas
de palavras rimadas de PL, há muito poucas a que se podiam levantar objecções.
Um exemplo é dê-os, que em Ci2 ll.1-15 rima com meios e esteios. 11 A variação
quanto à forma do conjunctivo do verbo estar, que é normalmente estê mas que
pode às vezes ser esté (ver Ell 1.1 13-7, onde rima com é e fé) , não é necessaria-
mente uma indicação de falta de capacidade da parte do poeta, que podia ter pro-
nunciado a palavra de duas maneiras.

Ortografia etimológica

Em PL, como em muitas outras edições quinhentistas, são visíveis sinais do


gosto pela ortografia etimológica que mais tarde veio a dominar a maneira como
se escrevia a língua portuguesa. Na edição presente, simplificaram-se os grupos
consonânticos eruditos que se encontram em palavras como sciencia, triumphar,
prompto, esculptura, victoria, sceptro, theatro. O y etimológico de hymno etc
também foi eliminado.
Algumas destas formas causam dificuldade ao editor que quer conservar as
características fonológicas de um texto do século XVI, porque, sobretudo no
século XX, influenciaram a pronúncia do português. As formas em questão são o
-gn- de palavras como digno, benigno e o -se- de crescer, descer etc. No caso da
oposição digno-dino a escolha é fácil, porque a rima indica que Ferreira não pro-
nunciava o g intruso. Por esta razão, na edição presente aparecem unicamente as
formas arcaicas dino, benino. A evidência é menos concludente quando se trata
do grupo -se-, porque só as formas do tempo presente (indicativo e conjuntivo)
dos verbos referidos são rimadas. Daí se pode inferir que Ferreira pronunciava
crece, floreça etc., facto que nos levou a optar por estas formas sempre que apare-

16 Williams§ 100.2.
17 Castilho criticou algumas das rimas de Écll : 11.173-7 vivo-sirvo-cativo e 191 -5 palavra-
/avra-abra e de Ci3 , II. 122-6 sirva-viva-altiva. Rimas deste tipo encontram-se unicamente empoe-
sias da primeira fase da carreira do poeta.

26
INTRODUÇÃO

cem como rima. Em outras circunstâncias mantém-se a ortografia de 1598, que


oscila entre -e- e -se-, talvez como na própria fala do poeta. 18

3. A edição dos Poemas Lusitanos de 1598 e o seu valor como texto-base

i. Os problemas suscitados por uma edição póstuma

Ferreira morreu em 1569. 29 anos mais tarde, em 1598, apareceu a primeira


edição de PL. Para o poeta, o número 29 tinha uma significação especial, mas
neste caso a extensão do lapso de tempo não passou de uma coincidência. Con-
tudo, ele teria querido exercer algum controle sobre o seu livro, mesmo depois de
morto. Até que ponto teve êxito nisto? Eis a questão principal que se coloca nesta
secção da Introdução. Existe a possibilidade de o filho do poeta, Miguel Leite
Ferreira, ter alterado.o livro do pai quando o enviou ao editor, Pedro Craesbeeck,
e de a sua intervenção não se ter limitado unicamente à composição da dedicatória
a Filipe II. O próprio Craesbeeck podia ter tido alguma influência, ou no texto das
poesias, ou na ordem em que foram impressas. Por outras palavras, pergunta-se
até que ponto é necessário ver a primeira edição não como o produto do génio de
um único escritor, mas como um trabalho colectivo, produto da colaboração dos
vários indivíduos que se esforçaram por levar as poesias de Ferreira à atenção do
público. 19 Com efeito, seria arriscado afirmar que tudo em PL é da pena do poeta.
No século XVI os pormenores da impressão, a maneira de grafar as palavras e a
pontuação eram normalmente da responsabilidade do impressor. Mesmo assim,
parece-me muito provável que PL, tal como o conhecemos, tenha a forma que o
poeta lhe dera quando morreu, prematura e inesperadamente, na grande peste de
1569. Para chegar a esta conclusão, é necessário considerar vários tipos de infor-
mação: a dedicatória do filho do poeta, o estado do texto da edição de 1598, a
ordem em que as poesias foram impressas e as poesias de autoria errada.

ii. A dedicatória de Miguel Leite Ferreira

O leitor moderno ficará necessariamente perplexo perante as afirmações do


filho a respeito do livro do pai, como perante muitos dos prefácios ou dedicatórias

18 Mantém-se o -se- de nasce e palavras afins, porque a rima não fornece evidência conclu-

dente a respeito destas formas .


19 Para uma discussão deste aspecto da crítica textual, ver G. Thomas Tanselle, 'The Varie-

ties of Scholarly Editing' , in Scholarly Editing: A Guide to Research. ed . D. C. Greetham (Nova


Iorque: Modem Language Association of America, 1995) pp. 9-32 (24).

27
INTRODUÇÃO

apensos a livros quintentistas. Nem tudo o que lá se diz será verdade mas, de igual
forma, nem tudo é falso. Depois de se referir ao exemplo importante constituído
por Sá de Miranda, Miguel Leite escreve acerca da carreira literária de António
Ferreira nestes termos: " ...meu pai, que então estava nos estudos, pretendeu com
a variedade destes seus manifestar como a língua portuguesa, assi em cópia de
palavras, como em gravidade de estilo, a nenhua é inferior. E com mor honra desta
nação mostrara esta verdade, se não fora impedido com o serviço dei-rei no
desembargo, e a morte tão anticipada lhe não cortara o fio a mores esperanças,
deixando-me em tal idade que o não conheci. Esteve este livro por espaço de
quarenta anos, assi em vida de meu pai, como despois do seu falecimento, ofere-
cido por vezes a se imprimir, e, sem se entender a causa que o impedisse, não
houve efeito".
Miguel Leite Ferreira não errou em dizer que o pai tinha começado a escre-
ver versos enquanto estudava em Coimbra, já que muitas das suas poesias datam
de antes de 1555/56, quando se fixou em Lisboa. Mas as suas palavras levantam
várias dificuldades, a começar pelo período de tempo que, segundo o filho do
poeta, medeou entre a composição de PL e a sua publicação. A dedicatória traz a
data de 15 de Maio de 1598. Porém, podia ter sido composta no ano anterior,
como as licenças e o alvará régio que a acompanham. Se assim fosse, regressando
40 anos chegaríamos a 1557, momento muito significativo na vida do poeta, em
que chegou a amar Maria Pimentel e ser amado por ela, e a planear a edição do
seu primeiro livro de poesias . Foi também em 1557 que ele fez 29 anos, como nos
explica na parte final do primeiro dos sonetos:

reinando Sebastião, rei de quatro anos ;


ano cinquenta e sete; eu vinte e nove.

Ferreira dedicou o soneto ao seu próprio livro que, mau grado o seu autor,
ia ser lançado ao mundo. Mas quantas poesias teria incluído neste livro que fin-
gia não querer editar? Certamente não os poemas lusitanos todos, nem mesmo os
dois livros de sonetos, porque muitas das poesias do segundo livro foram escritas
depois de 1557. Dos muitos "livros" de que PL se compõe só estariam prontos em
1557 o primeiro livro dos sonetos e, possivelmente, o primeiro livro das odes.
Ferreira podia ter escrito a poesia liminar "Aos bons ingenhos" para acompanhar
os sonetos, já que naquela poesia, como também em Oi 1, fala de si próprio unica-
mente como poeta de amor.
O filho do poeta diz-nos outra meia verdade ao afirmar que o trabalho
literário do pai foi "impedido com o serviço dei-rei no desembargo". Ferreira foi
nomeado desembargador da Casa do Cível em 14 de Outubro de 1567, mas é de
presumir que tenha desempenhado alguma outra função inferior antes daquela

28
INTRODUÇÃO

data, talvez a partir de 1560, porque desde então a sua produção poética diminuiu
muito. Contudo, não acabou por completo: duas das suas composições mais
extensas, o Epitalâmio e a História de Santa Comba, são da década de 1560, como
também Cii2 e 12-13, El4 e várias poesias curtas. A actividade literária de
Ferreira durante este período não se limitou à escrita de algumas poesias novas,
porque é muito provável que ele tenha revisto as obras compostas na década ante-
rior. Talvez a afirmação de Barbosa Machado com respeito aos anos passados na
Casa do Cível seja mais correcta do que a de Miguel Leite : "Entre o laborioso
ministério de desembargador nunca interrompeu o comércio das Musas, antes
suavizava grande parte do contínuo trabalho e aplicação daquele estudo com as
delícias poéticas, reformando as obras que compusera em idade muito verde, ou
produzindo outras ... ".20
É evidente que Miguel Leite Ferreira admirava a obra do pai. Chamou a si
o encargo de encontrar um editor de PL e escreveu a dedicatória a Filipe II . Tinha
pelo menos algum interesse nos aspectos técnicos da tipografia. Isto verifica-se no
parágrafo, aparentemente anónimo, que, em PL, se segue à lista de errata. Co-
meça por dizer que a maioria dos erros tipográficos foi eliminada no decurso úa
impressão e passa logo depois a discutir os sonetos que "meu pai" escreveu na lin-
guagem medieval do tempo de D. Dinis. Isto prova que o parágrafo é da autoria
de Miguel Leite e que ele se deve ter ocupado, talvez pessoalmente, da correcção
do texto. Sabe o número do fólio em que aparecem Sii33-4, e é provável que tenha
escrito o seu comentário sobre eles para avisar o leitor que a linguagem pouco
ortodoxa das poesias é da responsabilidade do poeta que as escreveu, e não do
revisor. Mas dos progenitores só conhecia a mãe e quando comenta outro soneto,
Si43, é para enaltecer Maria Leite, mesmo à custa de uma má interpretação do
texto. 21 Além disso, os erros ou meias verdades da dedicatória dão a impressão de
alguém que se sentia bastante afastado das circunstâncias da vida do pai. O teste-
munho de Miguel Leite é, portanto, ambíguo e por si só não indica se ele inter-
feriu ou não no texto de PL.

iii . O texto dos Poemas Lusitanos

Contudo, é certo que Miguel Leite se esforçou por nos legar um texto bem
corrigido. PL é notável pelo seu elegante aspecto tipográfico e ainda mais pela sua
falta de erros . Não é fácil contar gralhas porque, como sabemos, algumas delas
foram eliminadas durante a impressão. Como consequência, não há exemplares de

20 Citado por Adrien Roi g. António Ferreira: Études sur sa vie e/ s011 oeuvre (Paris :
Fundação Calouste Gulbenkian. 1970) ( 1970) p. 136.
21 Ver a di scussão desta poesia no Comentári o.

29
INTRODUÇÃO

PL idênticos, e alguns deles são mais apurados do que outros. 22 Mesmo assim, e se
eliminarmos os erros mencionados na errata, ficamos com cerca de 50 gralhas que
passaram despercebidas pelos tipógrafos de Pedro Craesbeeck nos exemplares que
chegaram até nós. No caso de quase todas elas, o leitor não tem a mínima dificul-
dade em chegar à leitura certa. Só em Ecl2 1.46 foi necessário recorrer a uma
emenda drástica. Num volume de 235 fólios, isso é uma estatística impressionante.
PL não impressiona só pela sua falta relativa de lapsos tipográficos. Não
existe nenhum autógrafo da obra poética de Ferreira mas, mesmo assim, o leitor
sente-se na presença de um livro com base num manuscrito cuidadosamente
preparado e, é de presumir, pelo próprio poeta. Para além da ausência de gralhas,
há muito poucos daqueles erros de sintaxe ou de métrica, passos obscuros e rimas
estropiadas tão frequentes em outras colectâneas poéticas do período. Isto é ver-
dade mesmo se admitirmos que a sintaxe de Ferreira nem sempre é fácil de des-
trinçar. Às vezes parece ceder em face de uma emoção poética muito forte, como
em Si33 e Ci 13 11.25-42, ou, com menos justificação, perante a necessidade de
encontrar uma rima, como em Cii2 1.132. O gosto latinizante do poeta (inversão
de frases, imitação do ablativo absoluto) também torna difícil a compreensão ime-
diata de certos trechos. Mas passos confusos ou realmente obscuros são muito
raros, se não inexistentes. 23 Encontra-se outra evidência da mão do próprio cria-
dor dos Poemas Lusitanos nas estâncias longas e complexas de algumas das odes.
Alguém - e porque não António Ferreira? - se assegurou de que os diferentes
esquemas métricos destas poesias tinham sido seguidos com rigor desde o princí-
pio até ao fim de cada ode. É um trabalho que vai muito além do que se podia
esperar de um simples revisor e sugere, uma vez mais, que antes de morrer o poeta
tinha preparado uma versão emendada das suas obras . A plausibilidade da hipó-
tese mantém-se mesmo em face das muitas confusões e incertezas de PL em tudo
o que se relaciona com a história e a mitologia greco-romanas. Quem não sabia,
ou fingia não saber os pormenores da vida das personagens da literatura clássica
não era o impressor, incapaz de compreender o texto que tinha em mãos, mas o
poeta, cujas convicções católicas não lhe permitiam penetrar muito fundo nas "fá-
bulas vãs" dos antigos.2 4
Torna-se ainda mais evidente que PL está baseado numa cópia fidedigna das
obras de Ferreira quando se comparam as composições incluídas no livro de 1598
com as variantes manuscritas e impressas que chegaram até nós. Destas há 14:

22 Em Ecl3 1. 7 I encontra-se um erro grave, que não aparece na erra/a mas que os tipógrafos

notaram e corrigiram em certos exemplares . Onde o exemplar de Oxford tem "fortua··. palavra sem
sentido, os exemplares da BNL, mais apurados, têm " furtava" .
V Uma excepção deve ser feita no caso de C ii 1011.4-6, que Castilho confessou não entender.
24 Por "fábulas", ver Santa Comba 11.13. 293 e Cii 1 1.81 . Pela atitude profundamente ambí-

gua de Ferreira perante a Antiguidade em geral. ver Ci7 11.31-6. Ci 1 1 11.124-6 etc.

30
INTRODUÇÃO

Castro, 8 poesias pequenas (principalmente sonetos) e 5 poesias grandes (Ecl 4,


SC, Ci 12 e Cii 1-2). No caso de todas estas obras, a versão de PL é nitidamente
superior, não em termos estéticos, mas no sentido rigorosamente técnico de ter
menos erros de vocabulário, de sintaxe ou de métrica. Seria fastidioso tentar com-
provar esta afirmação analisando aqui todas as variantes, uma por uma, tanto mais
que o apparatus existe para que o leitor interessado possa fazer esta tarefa por si
próprio. Mas vale a pena considerar brevemente o caso de Cii 1, como exemplo.
A carta a D. Sebastião existe em três variantes além da de Pl. Destas a mais
correcta é o MS da BNL (no aparato com a abreviatura L) , mas tem pelo menos
quatro erros de métrica (11.30, 92, 134, e 147 ). Além disso, há erros de sintaxe em
11.48, 66 e 150, enquanto que 11.1 17, 152 e 186 simplesmente não fazem sentido.
Tais incorrecções não implicam que não haja no MS leituras distintas das de PL
mas aceitáveis, como por exemplo em 11.93 e 122. PL constitui o melhor teste-
munho que temos das obras poéticas de Ferreira, mas não é perfeito, e às vezes
nas variantes surgem leituras que são preferíveis às dele. Não há exemplos disso
em Cii 1, mas a versão de Ci 12, a Diogo Bernardes, impressa n' O Lima de 1595,
tem uma linha (148) que parece exprimir o pensamento do poeta melhor que o
verso equivalente de Pl. Na edição presente, que pretende ser crítica, julgamos
ser do nosso dever emendar o texto-base quando necessário, mesmo admitindo
que o alto nível do texto de PL torna tais emendas muito raras.

1v. A estrutura dos Poemas Lusitanos

PL apresenta-se-nos como um livro bem estruturado e em conformidade


com um plano previamente estabelecido. É difícil imaginar quem, senão o próprio
poeta, se teria dado ao trabalho de ordenar as poesias nos dez "livros" de que PL
se compõe, mesmo admitindo que a ordenação em certos respeitas não está per-
feita, devido talvez à morte prematura de Ferreira. A colecção como um todo repre-
senta, muito melhor que as edições camonianas de 1595 e 1598, a forma como um
poeta quinhentista se queria apresentar ao seu público.
Em PL temos dois livros de sonetos, de odes e de cartas, e um livro para
cada um dos outros géneros que Ferreira praticou: éclogas, elegias, epigramas e
epitáfios. Para além destes agrupamentos há a tragédia, Castro, e duas poesia~ o
Epitalâmio e a História de Santa Comba, que foram escritas na década de 1560,
possivelmente depois da estrutura básica de PL ter sido planeada. Cada um dos
dez livros tem uma estrutura própria, com uma complexidade maior ou menor
segundo o género em questão.
Si 1, cuja organização interna obedece a critérios estéticos, é o livro mais
complexo de PL. Nos outros livros Ferreira parece ter sido influenciado por con-

31
INTRODUÇÃO

siderações de natureza política e cronológica, mas em Si 1, colecção mais pessoal,


podia seguir simplesmente o seu próprio gosto. A estrutura narrativa de Si 1 tem
sido já alvo de análises pormenorizadas; 25 resumindo, podemos dizer que os 58
sonetos do livro traçam a história dos amores do poeta com a misteriosa e altiva
dama chamada Serra, e depois a mudança para um amor "mais alto", provavelmente
Maria Pimentel, que veio a ser a primeira mulher do poeta. A este momento tri-
unfante seguem-se a ausência da amada, o sofrimento do poeta por esta razão, as
expectativas de um eventual reencontro e, finalmente, a reunião dos amantes, evo-
cada no último soneto do livro. No livro nota-se a presença de outros tipos de
estrutura além da puramente narrativa: há muitos pares de sonetos, unidos tema-
tica ou imagisticamente, e a colecção obedece também a um plano numerológico.
Se dividirmos 58 por dois temos 29, a idade do poeta ao reunir o livro, como nos
diz em Si 1.26 É até passivei que tenha introduzido no livro um soneto adicional,
Si52, que não parece ser um soneto de amor, puramente por razões aritméticas,
para chegar a um total para ele significante.
A estrutura de Sii2 difere da de Si 1, mas não deixa de manifestar também a
influência de uma mão dirigente que só podia ser a do poeta. Ao organizar os
sonetos contidos neste livro, Ferreira deve ter estado consciente do princípio que
Faria e Sousa havia de enunciar no século XVII: "primero los amorosos, despues
los heroicos, luego los morales, y sacros". 27 Com efeito, Sii2 abre com uma série
de 13 sonetos (dos quais um é da autoria de um amigo do poeta, D. Simão da
Silveira), cuja temática é a morte da mulher amada. Sii 14-32 não são poesias herói-
cas no sentido rigoroso da palavra, mas em nenhuma delas Ferreira fala directa-
mente da sua paixão e do seu luto. Em vez disso, escreve a pessoas influentes na
vida política portuguesa ou a amigos, às vezes aludindo aos seus desgostos amo-
rosos, mas de uma forma disfarçada. Na ordenação deste grupo de sonetos o poeta
obedece a um critério hierárquico: vêm em primeiro lugar quatro poesias dedi-
cadas à família real, e depois três cujos destinatários pertenciam à casa ducal de
Aveiro. Destes últimos, dois, que celebram o casamento de D. Jorge de Lencastre
com a irmã do duque de Osuna, foram escritos provavelmente em 1568 ou 1569,
quase no fim da vida do poeta. O facto de ele ter incluído estas poesias no meio
da sequência - e não no fim - indica o seu cuidado em dar à colecção uma
estrutura coerente, em vez de seguir simplesmente a ordem cronológica da sua
composição.

25 T. F. Earle, 'A Portuguese Sonnet Sequence of the Sixteenth Century ' , Bulletin of His
-
panic Studies, 53 (1986), pp. 225-34, e Rita Marnoto, O petrarquismo português do renascimento
e do maneirismo (Coimbra: Universidade de Coimbra, I 997 ) pp. 385-429.
26 Sii36 é outro soneto em que o número 29 assume grande importância.
27 Citado por Berardinelli in Luís de Camões, Sonetos,
ed. por Cleonice Serôa da Motta
Berardinelli (Paris: Jean Touzout, 1980) p. 15 .

32
INTRODUÇÃO

Após as poesias dirigidas às personagens de camada elevada vêm os sone-


tos que Ferreira dedicou aos amigos (Sii2 l -32), a que se seguem as duas poesias
famosas "na antiga língua portuguesa". A função estrutural destes sonetos, que
tanta tinta fizeram correr, é de separar do resto do livro os 10 sonetos religiosos
com que a colecção acaba. A série de sonetos religiosos está, ela própria, riguro-
samente estruturada, porque começa com algumas poesias nitidamente pessoais,
que parecem exprimir as ansiedades do período da crise de 1556-58, e acaba com
três sonetos em louvor dos santos em que o poeta emprega, não a primeira pessoa
do singular, mas a do plural. Assim, Ferreira consegue deixar de lado os seus
problemas pessoais para se tomar a voz da colectividade portuguesa.
Ferreira não repetiu a estrutura complexa de Si e ii nos restantes livros de
PL, que são mais simples mas que, mesmo assim, revelam um plano de organiza-
ção. As 13 odes estão divididas em dois livros de extensão irregular, de oito e
cinco poesias respectivamente. Mas se descontarmos Oi l, de carácter nitidamente
introdutório, vemos que cada livro começa com uma poesia dedicada a um mem-
bro da família real. O mesmo esquema hierárquico é visível no livro das éclogas
e no das elegias. Por isso o casamento do príncipe D. João constitui a temática de
Écl l , e a sua morte a de E! 1. Ambas estas colecções, como também vimos no caso
de Sii, acabam numa nota religiosa, com a écloga Natal e a elegia a Santa Maria
Madalena, mas a outros respeitas a estrutura dos dois livros é muito diferente.
Como acabamos de ver, o começo e o fim do livro das elegias obedecem ao
critério hierárquico que é o princípio estruturante de grande parte de PL. Mas de
resto o livro é uma mistura, aparentemente desordenada, de poesias de temática
muito variada: fúnebre, amorosa, heróica e religiosa. A confusão explica-se se
admitirmos a possibilidade de o poeta ter tido acesso às teorias acerca da natureza
e da origem da elegia adumbradas por Francisco Robortello, cuja Explicatio da
Poética de Aristóteles foi editada em Florença em 1548. Robortello acreditava
que para os gregos o termo elegia não tinha implicações genéricas, mas significava
uma composição poética escrita em conformidade com um determinado esquema
métrico. Segundo ele, portanto, o termo grego elege ia podia designar poesias com
os mais variados assuntos: não só o amor e a morte, como na tradição latina, mas
também a guerra e o comportamento moral e religioso. É de admitir que Ferreira
tenha seguido Robortello ao pensar que "nullum poema plures mutationes recepit
quam Elegia",28 porque entre as suas nove elegias encontramos três fúnebres (l ,2
e 5), três amorosas (3, 7 e 8), duas heróicas (4 e 6) e uma dedicada a Sta. Maria
Madalena (9). Ferreira, grande admirador da literatura latina, nunca tentou imitar
as elegias amorosas romanas de Ovídio, Ti bulo e Propércio. Para ele a palavra ele-

28 Francisco Robortello, Explicaria eorum quae ad elegiae antiquitarem et artificium spectant,


in ln librum Aristotelis de arte pÕetica explicationes (Florença: Laurentino Torrentini, I548), p. 59.

33
INTRODUÇ ÃO

gia parece ter tido conotações exclusivamente gregas, e as elegias eróticas 7 e 8


não passam de traduções de Mosco e do pseudo-Anacreonte. Não é de admirar,
portanto, que ele tenha seguido um teorizador literário grego, neste caso, Aristó-
teles interpretado por Robortello, ao estruturar o livro das elegias .
No livro das éclogas há uma tentativa, algo desajeitada, de combinar dois
princípios de organização. Um deles é o esquema hierárquico já descrito, pelo
qual um livro abre com um ou mais poemas em louvor da família real e fecha com
uma composição devota. Mas Ferreira queria também estruturar o livro alternando
poesias eróticas e fúnebres . É o caso de Ecll-2, Arquigâmia e Jânio , em que as
núpcias e a morte do príncipe D. João são referidas, e também de Écl6-7, 8-9, e
10-11 . Porém, aqui surgem dificuldades de vária ordem. Em primeiro lugar, vêm
a seguir a Jânio três poesias (Écl3-5), todas de natureza frívola e amorosa, que
destoam do esquema que acabamos de descrever. Além disso, parece que o poeta
não conseguiu decidir qual devia ser a última poesia da série. Écl.11 , Andrógeu,
começa "Este último favor só me concede,/rústica Musa ... ", palavras que lem-
bram a abertura da última bucólica de Virgílio: "Extremum hunc, Arethusa, mihi
concede laborem". Mas em PL não é Andrógeu que acaba o livro das éclogas, mas
sim Natal, que foi escrita provavelmente muito antes mas que, pela sua temática
religiosa, devia vir no fim, segundo o esquema convencional. São problemas que
o poeta teria talvez resolvido, se tivesse vivido mais tempo.
No caso das cartas formou dois livros, de 13 composições cada um, colo-
cando poesias dirigidas a reis e figuras mais destacadas da corte em primeiro lugar
(é o caso de Cil-2 e Ciil-3) e depois seguindo uma ordem aproximadamente
cronológica. Assim, as cartas 1-8 do primeiro livro foram todas escritas enquan-
to o poeta estudava em Coimbra. As restantes composições do primeiro livro e
todas as do segundo pertencem ao período em que ele residia em Lisboa, muitas
delas aos anos da crise pessoal de 1557-9. Mesmo assim, há algumas ligeiras
incoerências na ordenação das cartas. É claro que Ci 12, em que se menciona a
morte de Sá de Miranda, ocorrida em 1558, foi escrita pelo menos algum tempo
depois de Cii9, dedicada ao poeta enquanto ainda estava vivo. Duas cartas cuja
temática é a Índia, Cii7-8, aparecem juntas, apesar de a primeira ser provavelmente
de 1560 e a segunda só de 1558. Mas, de uma forma geral, os dois livros acom-
panham a evolução psíquica e artística de quem os compôs. Cii 12, por exemplo,
a penúltima do segundo livro, pertence com toda a probabilidade a 1567, quase o
fim da vida do poeta.
Os d.ez livros de PL têm, portanto, uma coerência interna, que não falta tam-
bém à colecção como um todo.29 O volume é constituído por du as partes, com

29 Os doi s li vros mais pequenos. dos epigramas e dos epitáfios. também poss uem uma estru-

tura coerente (ver Comentário). A dos epitáfios, bastante complexa. é parec ·da com a de Sii 14-44 .

34
INTRODUÇÃO

divisão a fól.126. A primeira parte contém sonetos, epigramas, odes, elegias,


éclogas, o epitalâmio e a História de Santa Comba. Assim, começa com poesia
amorosa, e acaba numa nota religiosa. A segunda parte começa com as cartas -
o equivalente da poesia heróica de Faria e Sousa - e acaba com os epitáfios e a
tragédia, que versam os temas religiosos da morte e da resurreição. Apesar da
divisão formal de PL em duas partes, é visível também a estrutura tripartida de
Sii: poesia amorosa no começo da primeira parte, poesia heróica no começo da
segunda parte, resignação religiosa no último dos epitáfios e nas últimas palavras
de D. Pedro: "lá vá est'alma/desca nsar com a tua pera sempre". Tudo nos Poemas
Lusitanos revela o poder de organização de quem os escreveu.

v. Poesias com atribuição incorrecta

É já demais evidente que Ferreira não era, como Camões ou Bernardes, um


escritor cujas poesias andam espalhadas por muitos cancioneiros e que são atri-
buídas a vários autores. Quase toda a obra poética de Ferreira está incluída em PL
e muito poucas composições suas aparecem sob o nome de outros autores. Este
facto é uma indicação da própria natureza da poesia de Ferreira: o que ele escre-
veu tem uma tonalidade distinta que não se confunde facilmente com os escritos
dos seus contemporâneo s. É também mais uma prova do cuidado do poeta ao
compilar a sua obra poética.
Das poesias editadas em PL como sendo de Ferreira, seis foram atribuídas
nos séculos XVI ou XVII a outros autores . São: Si3 (Camões), Si5 (António de
Siqueira), Si20 (Diogo Bernardes), Si36 (Sá de Miranda), Sii33 (Infante D. Pedro)
e Cii l (Camões). Parece altamente provável que todas estas poesias sejam da auto-
ria de Ferreira: há uma discussão da atribuição de cada poesia na nota respectiva.
Há só três composições que são seguramente do nosso poeta mas que foram
omitidas de PL: a elegia a Sá de Miranda, obra importante da primeira fase da car-
reira literária de Ferreira, um epigrama e um soneto.3° Há mais quatro poemas que
lhe foram atribuídos mas que não lhe pertencem. Dois deles, um soneto e uma
carta, já foram rejeitados por Roig por razões bem fundamentadas. 31 Ficam um
epigrama em latim e uma composição mais extensa, a chamada "Elegia a Sílvia",
que também nos parecem suspeitos.
Entre as poesias liminares impressas na edição de 1574 da epopeia de Jeró-
nimo Corte-Real, Sucesso do segundo cerco de Diu, aparece um epigrama anó-
nimo em latim "Ad Lectorem". Esta pequena composição segue-se imediatamente
a um epigrama em português, certamente de Ferreira, que foi incluído também em
30 Ver Apêndice I e as notas respectivas.
31 Roig (1970) pp. 24-7.

35
INTRODUÇÃO

PL como Epig2. Na opinião de Roig,3 2 a poesia latina também deve ser de Fer-
reira, mas a evidência torna a hipótese duvidosa. Sempre que podia, o organizador
da edição de 1574 identificava os autores das muitas poesias liminares e, quando
eles escreveram duas , como no caso de Pedro Landim, Luís Álvares Pereira e
D. Jorge de Meneses, a autoria da segunda composição é indicada por uma fór-
mula como "do mesmo" . O facto de o epigrama em latim não possuir uma fór-
mula equivalente sugere que o organizador não sabia quem o escreveu. 33 Já que
não dispomos de outra informação acerca da poesia, parece prudente continuar a
considerá-la como anónima.
A "Elegia a Sílvia" é uma poesia em tercetos de 142 linhas. 34 Veio até nós
numa única cópia manuscrita conservada no Cancioneiro Fernandes Tomás (CFT),
onde é atribuída a Ferreira. Carolina Michaelis de Vasconcelos aceitou a atri-
buição, depois de uma certa hesitação inicial , mas sem justificar a sua opinião.35
A elegia é tema de um importante estudo de Maria Helena da Rocha Pereira, que
encontra semelhanças inquestionáveis entre a elegia e várias poesias de Bernar-
des, principalmente as éclogas 14 e 18. 36 Deste facto ela tira a conclusão de que
a "Elegia a Sílvia" deve ser uma imitação feita por Ferreira das composições do
seu amigo. Parece, porém, mais provável que seja mesmo de Bernardes, por
várias razões.
Como afirma a Prof. Rocha Pereira,37 a imitaria foi um aspecto essencial da
teoria literária quinhentista, e especialmente de Ferreira. Mas para ele a imitaria
significava a imitação de obras clássicas ou italianas, não das dos seus contem-
porâneos. Em PL não há uma única imitação de uma poesia portuguesa, se excep-
tuarmos sonetos como Sii 13, feito "pelas mesmas consoantes" de um outro soneto
de D. Simão de Silveira. É claro que a elegia não é uma poesia deste tipo. De vez
em quando aparece em PL uma ou outra frase tirada de Sá de Miranda, mas
Ferreira nunca imitou uma poesia inteira dele, apesar de o venerar como mestre.38
Além disso, na elegia há muitas palavras que não se encontram em outra obra de
Ferreira, por exemplo: aljôfar, caramelo, empenhado, rouxinol, laçaria, lenha,

32 Roig ( 1970) pp. 33-4.


33 É possível que Sii29 sej a dedicado a Corte-Real e que tenha sido de stinado a ser impres-
so na ed . de 1574 como a segunda poesia liminar de Ferreira.
34 O título parece ser da responsabilidade de Maria Helena de Rocha Pereira. No CFT chama-

se simplesmente " Elegia".


35 Carolina Michaelis de Vasconcelos O cancioneiro Fernandes Tomás (Coimbra: Imprensa

da Universidade, 1922) pp. 89 e 171.


36 Maria Helena da Rocha Pereira , ·A «Elegia a Sílvia» de António Ferre ira»', em No vos
ensaios sobre temas clássicos na poesia portuguesa (Lisboa: Imprensa Naciona l-Casa da Moed a.
1988) pp. 9-26 (12-15 e 24-5).
3 7 Rocha Pereira ( 1988) p. 26.
38 Ferreira cita unicamente frase s muito curtas. Ver Écl 12 1.118. Ci2 11.77 -9 e Ci9 11.45 e 149.

36
INTRODUÇÃO

sobegidão, afogado, freixo, viola, Loba, grã (no sentido de escarlate). Muitos des-
tes vocábulos são utilizados na descrição do mundo natural, área temática muito
mais significante na obra de Bernardes do que na de Ferreira. Em contrapartida,
falta inteiramente à elegia aquele interesse pela poesia como tal, aquele louvor das
Musas e da vida literária, que parece um aspecto indispensável de quase todas as
composições extensas de PL. Finalmente, a fonte da atribuição da elegia a Fer-
reira é suspeita. O CFT, que contém a única cópia da elegia que conhecemos, não
é isento de erros relativos à identidade de autores. Atribui dois sonetos, que são
com toda a probabilidade de Ferreira (Si3 e 5), a outros poetas, e a própria Carolina
Michaelis de Vasconcelos criticou o organizador do cancioneiro por se ter enga-
nado no caso de poesias de Bernardes, Andrade Caminha e outros. 39 A "Elegia a
Sílvia" pode muito bem ser uma bela poesia, como afirmam os críticos, mas não
é de Ferreira.

4. Os problemas textuais da tragédia Castro

Os problemas textuais que a tragédia de Ferreira suscita são de ordem dife-


rente dos do resto de PL. Enquanto que a parte lírica da obra do poeta sofre da
falta de uma boa edição, pode-se ler Castro numa variedade de versões mais ou
menos fidedignas. A maioria delas é de natureza didáctica ou divulgativa, 40 mas
há pelo menos duas, de Sousa da Silveira e de Adrien Roig, em que há uma con-
tribuição valiosa para o estabelecimento do texto do drama.
Sem dúvida alguma, o acontecimento mais importante na história do texto de
Castro neste século foi a redescoberta da primeira edição da tragédia, adquirida
pela British Library (na época chamada British Museum Library) nos anos 50. 41
O trabalho de Sousa da Silveira fez-se antes dessa data e ele, portanto, ao preparar
o texto da Castro de 1598, não podia servir-se das leituras da edição de 1587.
Mesmo assim, muitas das sugestões que fez, com o fim de melhorar o texto de PL,
foram justificadas mais tarde pelo aparecimento da edição anterior. Foi Adrien
Roig que, em 1971, publicou, pela primeira vez desde o século XVI, o texto da
Tragédia mui sentida e elegante de Dona Inês de Castro, que tinha aparecido
anonimamente em 1587. Assim vieram à luz uma multiplicidade de novas leituras
e acerca de 194 versos desconhecidos. Roig fez imprimir separadamente as duas
versões da tragédia, como se fossem obras distintas. A sua decisão é compreen-

39 Vasconcelos, O cancioneiro Fernandes Tomás pp. 114-5, 118.


40 Ver a lista na Bibliografia.
41 Ver H. G. Whitehead, 'An Early Portuguese Tragedy', British Museum Quarterl_v. 18

(1953), pp. 95-7 .

37
INTRODUÇÃO

sível, dada a novidade da edição da 1587, que no século XX tinha sido vista ape-
nas por um punhado de especialistas. Porém, mais de um quarto de século decor-
reu desde o aparecimento da edição de Roig, e já é possível encarar a Castro de
1587 de outra forma, como a primeira versão de uma obra que só chegou à sua
forma definitiva na edição de 1598. Esta opinião é partilhada, em parte, pelo
próprio Roig, que confessa que a edição de 1587 "paraft bien infé rieure au point
de vue technique de l'impression ". 42 Os estudos de Nair de Nazaré Castro Soares
mostram que as revisões de PL não são unicamente tipográficas: Ferreira melho-
rou a tragédia, tal como melhorou as outras composições de que possuímos mais
de uma versão. 43 Por esta razão, parece legítimo tratar a primeira versão da Castro
exactamente como as primeiras versões de Cii 1, Cii2 etc., em notas de rodapé,
que revelam como a edição de 1587 é muitas vezes inferior à de PL em termos de
métrica, de sintaxe e de vocabulário. Mesmo assim, PL não é um texto sagrado, e
não hesitamos em emendar a versão da Castro contida nele, às vezes utilizando
leituras tiradas da edição de 1587.
Uma consequência menos feliz do trabalho de Roig foi o renascer da velha
crença segundo a qual o verdadeiro autor da Castro seria não Ferreira, mas o dra-
maturgo galego Jerónimo Bermúdez que editou uma peça, Nise Lastimosa, baseada
na história de Inês, em 1577, isto é, dez anos antes da primeira edição portuguesa
da tragédia. Na verdade, há um parentesco muito estreito entre Nise Lastimosa e
a Castro de 1587, e é certo que uma das tragédias é uma tradução da outra. Em
tempos modernos é o professor francês Roger Bismut que mantém a hipótese de
que o autor original tenha sido Bermúdez. Segundo Bismut, a Castrq de 1587, que
apareceu sem indicação de autor, será uma tradução de Nise Lastimosa e a versão
de PL nada menos que um plágio feito por Miguel Leite Ferreira que, para escon-
der a sua falta de inspiração, se terá servido de palavras e de frases tiradas das
poesias de Camões para compor uma obra que resultou muito inferior à tragédia
primitiva. Bismut defende a sua tese numa série de artigos e num livro inteiro. 44
Ninguém, porém, ficou convencido e vários autores têm criticado duramente as
posições que ele assumiu, principalmente Adrien Roig, Aníbal Pinto de Castro e
Paul Teyssier. Este último dedicou ao livro de Bismut uma recensão crítica, muito
extensa, em que examina os seus argumentos, um por um, para chegar à conclusão
de que 'M. Bismut s 'est efforcé de justifi.er ce qu 'il faut bien appeler une erreure

42 Roig La Tragédie " Castro" d'António Ferreira, p. 89.


43 Nair de Nazaré Castro Soares, Introdução à leitura da Castro de António Ferreira (Coim-
bra: Almedina, 1996) pp. 28-40. Ver também, da mesma autora, 'A Castro à luz das suas fontes',
Humanitas, 35-6 (1983-4), pp. 271-348.
44 A restante bibliografia acerca da questão da autoria da tragédia encontra-se na recensão

crítica feita por Paul Teyssier do livro de Bismut, Arquivos do centro cultural português, 32 ( 1993 ),
pp. 417-76 (419-20).

38
INTRODUÇÃO

initiale par des arguments ultérieurs qui, quand on les analyse attentivement, ne
menent à rien '. 45 Na verdade, não há nenhuma razão para duvidar da autoria da
Castro de Ferreira.
Um dos aspectos mais curiosos da teorização de Bismut é que ele se recusa
a acreditar que Ferreira podia ter revisto a sua própria obra. Diz: 'l'auteur de
Castro [a versão de 1598] s'est comporté en lecteur critique du texte de Tragédia
[a versão de I 587], et dane en était distinct '.46 Contudo, a revisão constitui um
elemento importante na teoria estética de Ferreira, e na parte lírica de PL, cuja .
autoria ninguém contesta, há muitos textos que o poeta leu criticamente para
depois os alterar. No fim da secção seguinte desta Introdução encontra-se uma
outra observação relativa aos argumentos do Prof. Bi smut.

5. A métrica de PL

É impossível estabelecer criticamente o texto da obra de um poeta sem tomar


em conta questões de versificação, mesmo pela simples razão de que, em princípio,
um verso com erros de métrica vai precisar de emenda. Até agora, muito pouco
de valor se publicou acerca deste aspecto de PL, se excluirmos as páginas que
Paul Teyssier dedicou aos versos sáficos de Castro. 47 Os versos sáficos, porém,
em que Ferreira se esforçou por imitar uma técnica da poesia romana, formam um
caso algo aparte em PL, em que encontramos normalmente o chamado "decassí-
labo heróico", com acentuação na 6ª e na Iܪ sílaba, com a possibilidade também
de uma acentuação secundária em algumas outras sílabas. Um segundo esquema
métrico, menos frequente, é o decassílabo com acentuação na 4ª e na 8ª sílaba.48
Existem também, principalmente nas odes, hexassílabos, que podem ser conside-
rados como meios decassílabos . Têm acentuação na 6ª sílaba e um outro acento
que pode cair sobre qualquer uma das cinco sílabas anteriores.
A característica principal da versificação de Ferreira é a sua flexibilidade . Se
considerarmos o decassílabo heróico, de longe o esquema mais frequente , verifi-
camos que o único princípio consistente é a acentuação na 6ª e na l ܪ sílaba. Há

45 Teyssier, p. 476.
46 Roger Bismut, António Ferreira, /e plagiaire malgré fui (Louva in-la- Neuve: Uni ve rsité de
Louvain, 1989), p. 483 .
47 Paul Teyssier, ·La Castro est bien d' Antóni o Ferreira' , Arquivos do centro rnltural portu-

guês, 10 ( 1976), pp. 695-733 (71 6-27).


48 Segundo Celso Cunha e Lindley Cintra. Breve gramática do português co11temporâ11eo

(Lisboa: João Sá da Costa, 1985). p. 456, es te esquema chama-se '"decass íl abo sáfi co". Porém, não
de ve confundir-se coin os ve rsos sáfi cos dos coros de Castro, em que há um a ace ntu ação adi cional.
na 1.' sílaba, e um a cesura depois da 5• síl aba.

39
INTRODUÇÃO

outras sílabas acentuadas, mas não há regra que determine a sua posição. Pode-
mos tomar como exemplo a primeira poesia de PL, "Aos bons ingenhos", em que
as sílabas tónicas são marcadas com negrita:

A vós só canto, espritos bem nascidos,


a vós, e às Musas ofereço a lira,
ao Amor meus ais, e meus gemidos,
compostos do seu fogo, e da sua ira.
5 Em vossos peitos sãos, limpos ouvidos,
caiam meus versos, quais me Febo inspira.
Eu desta glória só fico contente,
que a minha terra amei, e a minha gente .

Nesta estrofe há sete decassílabos heróicos e um com acentuação principal


na 4ª e na 8ª sílaba (l.2) . Todos os heróicos têm acentuação na 6ª e na 1ܪ sílaba,
mas noutros aspectos são muito diferentes. O primeiro verso tem acentuação
secundária na 2ª, 3ª, 4ª e 8ª sílaba, o terceiro unicamente na 3ª, o quarto unica-
mente na 2ª, o sétimo na 1ª, 4ª e 7ª, etc. Portanto, todas as variações possíveis
estão presentes.
Nota-se também muita variação no tratamento dos ditongos e dos encontros
vocálicos. No terceiro verso de "Aos bons ingenhos", a palavra meus aparece duas
vezes, a primeira vez com duas sílabas, e a segunda vez com uma só, a não lermos
ais como dissílaba. O mesmo fenómeno ocorre em Ec13, l.30: " na lveilal d'álgua
esltalval meial meltilda". Aqui veia é dissilábica, enquanto meia tem uma única
sílaba. O tratamento variável que se dá à palavra real (uma sílaba em El6, l. 6;
duas em Ci2 l.2) constitui outro exemplo da mesma tendência, e até üa pode ser
considerada monossilábica (El2, l.6) ou dissilábica, como acontece com mais fre-
quência.
A prática de Ferreira no que se refere à elisão ou à crase e ao hiato também
apresenta muita variedade. Seria arriscado, por exemplo, rejeitar a linha "eu ldilgo
a allta ILislboa, Ido olcildenlte" (Ecl 1, l.381 ), por ter uma sílaba a mais, porque, por
uma espécie de crase drástica, "-go a ai-" podia ser considerado como uma única
sílaba. A linha citada está muito longe de ser um exemplo isolado. Há um caso
parecido em "quel tel dosl céus! esltá;I enlche a allta hilstólria" (Ci 13, l.71 ). Mas
usa-se o hiato, sempre que necessário. Em "Aos bons ingenhos", 1.3, há hiato de
"ao" e "Amor", porque de outra forma o verso não teria dez sílabas e não haveria
acento tónico na 6ª. Contudo, há versos com um encontro vocálico parecido onde
o hiato não acontece, por exemplo, Cii5, 1.16, que é forçoso ler: "posltosl ao arldorl
dol soll, posltosl aos lfrilos" . O que é certo é que não há regras fixas.
Este facto verifica-se no caso das vogais nasais, que muitas vezes, mesmo
sendo tónicas, se fundem com a vogal seguinte, o que contraria a prática mo-

40
INTRODUÇÃO

derna. 49 Neste respeito, Si42, 1.3 é interessante, porque no verso há necessaria-


mente uma vogal nasal tónica em hiato com a vogal seguinte, e uma outra que se
funde com ela. Isto é verdade se optamos por "neml ol doulraldol soll nem ol céu
esltrellaldo", ou se preferimos "nem ol doulraldol soll neml ol céu esltrellaldo".
Nota-se que em ambos os casos há um acento tónico na 6ª sílaba.
Torna-se evidente, portanto, que, no caso de Ferreira, a versificação fornece
muito pouca informação útil ao crítico textual. Não é prudente pretender emendar
um verso por apresentar irregularidades métricas quando os critérios para estab-
°
elecer a regularidade são de tal maneira imprecisos. 5 Contudo, o Prof. Bismut,
no livro citado acima, tenta distinguir a Castro de 1598 da produção lírica de
Ferreira precisamente porque, segundo ele, a tragédia apresenta muito mais vers
faux do que, por exemplo, os sonetos. 51 Esta afirmação é mais uma razão para
duvidar da hipótese de Bismut acerca da autoria da tragédia, já que os vers faux
apontados por ele na Castro se repetem na obra lírica. Nada mais são do que
instâncias daquela flexibilidade métrica tão típica do nosso poeta. Seria enfadon-
ho considerar todos os vers Jaux que Bismut encontra, mas a título de exemplifi-
cação vêm a seguir os três primeiros do Acto I da Castro de 1598.

Almalnalcrilalção almal, no almorl mãe (1.13)

Bismut não nos explica em que consiste a falsidade deste verso. Se é na


fusão -ção a-, há um paralelo em Ci 11, 1.9: "quanldol jál não alprolveiltal cholro
oul rolgo". Se é a fusão no a- que está em causa, esta encontra-se na mesma carta,
1.152: "dol psallteilrol dilvilno asl alltasl corldas".

entlre arlmasl, anlt' ilmilgosl ol reall cepltro (1.38)

Bismut talvez considere que o verso é irregular devido ao real monossilá-


bico. Porém, já vimos que na obra lírica real pode ter uma ou duas sílabas.

Porl miml lhe alborlrelcilam alltosl esltaldos (1.57)

O verso pode ser lido de duas maneiras. Se estados tem só duas sílabas 'sta-
dos, o verso não apresenta nenhuma dificuldade. Se tem três, o que é mais prová-

49 Celso Cunha e Lindley Cintra, Breve gramática, p. 445.


50 Há excepções em Si9 1.2 e em Écl 1 1.148. Ver as notas respectivas .
si Alguns dos vers faux nem são da responsabilidade do poeta, mas da edição Sá da Costa.
Ver, por exemplo, Si3, 1.4, em que se deve ler ir-me e não vir-me, Si26, U. em que a ed. Sá da Costa
omite estranha, Si56, 1.2. em que a ed . Sá da Costa tem uma em vez de ,-ll,. que aqui deve ser con-
siderada monossilábica. etc .

41
INTRODUÇ.Ã.O

vel, temos a fusão de uma vogal nasal átona com a vogal seguinte. O poeta trata
a vogal idêntica da mesma forma em Ecl 1, 1.400: "el aol Teljo ol tralzilam ai sei
bainhar".
Seria possível aduzir muitos exemplos mais. Mas não seria necessário, por-
que não há nada na versificação de Castro que não seja típico do seu autor,
António Ferreira.

6. Nota ao leitor

No aparato registam-se todas as leituras da edição de 1598 que, no nosso


texto, foram modificadas ou rejeitadas . Contudo, pelas razões acima expostas, a
ortografia e a acentuação do original foram modernizadas sem chamar a atenção
do leitor, excepto em casos onde a acentuação de uma palavra resulta de uma
decisão da parte do editor quanto ao sentido do original. Nesses casos, a leitura de
PL é conservada no aparato. Além disso, o leitor achará todas as variantes signi-
ficativas conservadas nos outros testemunhos das composições de Ferreira. Para
evitar a compilação de variantes meramente triviais, empregou-se no aparato e no
texto o mesmo sistema ortográfico. Em conformidade com a prática corrente,
corrigiram-se silenciosamente os erros tipográficos alistados na errata da
primeira edição.
No comentário que se segue ao texto reúnem-se informações de vária ordem
acerca da obra de Ferreira, conforme a explicação dada no Prefácio. O estudo de
um autor que morreu há quase 450 anos não pode ser feito por uma pessoa só; é
antes um processo, constituído pela acumulação de centenas de factos e de ideias
por parte de vários investigadores. No comentário fez-se um esforço para dar o
seu ao dono, mas é inevitável que muitas observações acerca dos Poemas Lusi-
tanos se tenham repetido de autor para autor. Por esta razão se cita unicamente nas
notas quem pela primeira vez fez uma descoberta acerca de um determinado
aspecto da obra de Ferreira. Muitas destas descobertas são da responsabilidade do
primeiro comentador das poesias, Júlio de Castilho. No comentário, quando uma
referência ao seu nome não é seguido por um número de página, o leitor é reme-
tido sempre às notas ao texto contidas no 2. º volume da sua obra. Segue-se o
mesmo sistema em relação à edição de Castro de Sousa da Silveira.
As referências incluídas no Comentário remetem para a bibliografia.

42
ABREVIATURAS

abi Aos bons ingenhos


AC Andrade Caminha, Poezias
ANIT Torre do Tombo, MS da Livraria 2209
ap Apêndice
Blib Castro de 1587
BNL Códice 2 da Biblioteca Nacional de Lisboa
c Camões, Terceira parte das rimas ( 1668)
CFT Cancioneiro Fernandes Tomás
ci Cartas, Livro I
cii Cartas, Livro II
E MS. CXIV/2 da Biblioteca Pública de Évora (Cancioneiro de corte
e de magnates)
ecl Écloga
el Elegia
ep Epitalâmio
epig Epigrama
epit Epitáfio
L Códice 8920 da Biblioteca Nacional de Lisboa
MdeV Sá de Miranda, Poesias, ed. de Carolina Michaelis de Vasconcelos
oi Odes, Livro I
oii Odes, Livro II
OL Diogo Bernardes, O Lima
PL Poemas Lusitanos
PPR Índice do cancioneiro do Pe. Pedro Ribeiro
RV Diogo Bernardes, Rimas Várias
se História de Santa Comba
SCD Jerónimo Corte-Real, Sucesso do segundo cerco de Diu
SdeM Sá de Miranda, Obras ( 1595)
si Sonetos, Livro I
sii Sonetos, Livro II
T Diogo de Teive, Epodon sive iambicorum carminum libri tres
(1565 e 1786)

43
POEMAS LUSITANOS
Aos bons ingenhos

A vós só canto, espritos bem nascidos,


a vós, e às Musas ofereço a lira,
ao Amor meus ais, e meus gemidos,
compostos do seu fogo, e da sua ira.
5 Em vossos peitos sãos, limpos ouvidos,
caiam meus versos, quais me Febo inspira.
Eu desta glória só fico contente,
que a minha terra amei, e a minha gente. (f. l)
LIVRO I DOS SONETOS

Livro, se luz desejas, mal t'enganas.


Quanto melhor será dentro em teu muro
quieto, e humilde estar, inda que escuro,
onde ninguém t'empece, a ninguém danas!
5 Sujeitas sempre ao tempo, obras humanas
co'a novidade aprazem, logo em duro
ódio, e desprezo ficam: ama o seguro
silêncio, fuge o povo, e mãos profanas.
Ah, não te posso ter! Deixa ir comprindo
10 primeiro tua idade. Quem te move
te defenda do tempo, e de seus danos .

Dirás que a pesar meu foste fugindo,


reinando Sebastião, rei de quatro anos;
ano cinquenta e sete; eu vinte e nove.

2
Aquela, cujo nome a meus escritos,
que a meu amor dará melhor ventura,
toda virtude, toda formosura,
qu' após si leva os olhos, e os espritos;

5 aquela, branda em tudo, só aos gritos


meus surda, áspera às rogos, a Amor dura,
podia c'um surriso, ua brandura
d'olhos, curar meu mal, ornar meus ditos.
Mas que dará de si üa estéril veia,
1O um desprezado amor. üa cruel chama,
senão desconcertado, e triste pranto?
Quem de tristezas vive só me leia,
cante a quem inspira Amor mais doce canto:
busco piedade só, não glória, ou fama. (f. lvº)

49
LIVRO I DOS SONETOS

Eu não canto, mas choro, e vai chorando


comigo Amor de ter-me assi obrigado
em parte tal, que nem a ele é dado
valer-m' em mais que de ir-me consolando.

5 Vai-me sempre ante os olhos figurando


aquela fermosura, em que enlevado
há tanto que ando, e assi com meu cuidado
me vou trás ela, enfim triste, enganando.

Mas não pode sofrer tamanho engano


10 Amor, que nos conhece, e de tal ver-me
foge, e me deixa só, de pura mágoa .

Olho-me então e vejo o desengano .


Afronta a alma cansada, e por valer-me,
desabafo desfeito em fogo, e em água.

CFT foi. 149r. Título : De Luís de Camões Soneto 2: assi entregado 4: omite de 7: e tal me é
forçado 8: ir-me trás ela em vão. triste 14: e água

Se eu podesse igualmente mostrar fora


ao menos do meu fogo um raio claro
naquele esprito aceso, puro, e raro,
que a escura terra aclara, os céus namora ;

5 se as saudosas lágrimas que chora


minh 'alma após um bem seu, que tão caro
a fortuna lhe faz, e o tempo avaro,
em que já bem nenhum, nem razão mora;

sofreria, ó Amor, mais brandamente


1O a força do teu vivo, e doce fogo,
que novamente em mim s'esconde, e cria.

Choraria meu mal comigo a gente,


e de pura piedade esperaria
ouvirem-me inda os céus meu santo rogo. (f. 2)

50
LIVRO I DOS SONETOS

Dos mais fermosos olhos, mais fermoso


rosto qu' entre nós há, do mais divino
lume, mais branca neve, ouro mais fino ,
mais doce fala, riso mais gracioso;

5 dum angélico ar, de um amoroso


meneio, de um esprito peregrino,
s'acendeu em mim o fogo, de qu' indino
me sinto, e tanto mais assi ditoso.

Não cabe em mim tal bemaventurança.


10 É pouco üa alma só, pouco iia vida:
quem tivesse que dar mais a tal fogo!

Contente, a alma dos olhos água lança


polo em si mais deter, mas é vencida
do doce ardor, que não obedece a rogo.

CFf foi. l 34r. Título: De Antonio de Siqueira Soneto 11 : tivera

Não é minha tenção louvar aquela


que entre todas na terra tal parece,
qual a fermosa lua resplandece
junto da mais escura, e baixa estrela.

5 Estes meus olhos, que poderam vê-la


guiados só do Amor, que a só conhece
(que sem Amor ninguém vê-la merece),
dão verdadeira fé de quanto há nela.

Outro alto estado, outr'honra, outras riquezas,


1O outras graças em tudo diferentes
das que vemos lhe deu quem tudo cria.

Esta venham correndo ver as gentes :


nela verão dos céus novas grandezas
e nela pera os céus caminho, e guia. (f. 2vº)

51
LIVRO I DOS SONETOS

Lágrimas costumadas a correr-me,


quem vos pode deter? Saí correndo
doces, e tristes; vão-vos todos vendo,
uns riam, outros chorem de tal ver-me.

5 Onde poderei eu de mim esconder-me?


Se quanto mais resisto, e me defendo,
então me venço mais, e vai crescendo
a força, como posso defender-me?

Quem meus olhos olhar, rindo, ou chorando,


1O sentirá neles logo um movimento
d'algum esprito que os lá rege, e manda.

Este chorar me faz, este cantando


me leva após meu mal, sem um momento
esta alma livre ter do estado em que anda.

S'erra minh' alma em contemplar-vos tanto-,


e estes meus olhos tristes em vos ver;
s'erra meu amor grande em não querer
crer que outra cousa há i de mor espanto;

5 s'erra meu esprito em levantar seu canto


em vós e em vosso nome só escrever;
s'erra minha vida em assi viver
por vós continuamente em dor, e pranto;

s' erra minha esperança em se enganar


1O já tantas vezes e, assi enganada,
tomar-se a seus enganos conhecidos;

s'erra meu bom desejo em confiar


que algir hora serão meus males cridos: -
vós em meus erros só sereis culpada. (f. 3)

52
LIVRO I DOS SONETOS

Não Tejo, Douro, Zêzer, Minho, Odiana,


Mondego, Tua, Ave, Vouga, Neiva, e Lima,
nem os que correm lá no oriental clima,
Nilo, Indo, Gange, Eufrate, Hidaspe, e Tana;

5 não pinho, faia, enzinho, ulmo, hera, ou cana,


nem doce suspirar em prosa, ou rima,
o fogo apagarão qu' em mim de cima
do terceiro céu cai, e dos olhos mana.

Qu' o céu outra vez s'abra e o mundo alague,


1O sopre de toda parte bravo vento,
ardendo m 'estará meu fogo em meio.

E eu morrerei, por que se não apague,


então de mor prazer, mor glória cheio,
quanto mor parecer o meu tormento.

2: Pl Avia,

10

Parecerá, senhora, em outra idade


milagre grande o que hoje todos vemos.
Quem haverá que creia tais extremos
d'amor, de fermosura, e crueldade?

5 Alguns dirão: - Se não fora verdade,


quem podera inventar isto que lemos?
E se tal foi, já agora não teremos
pagar-se bom amor mal, por novidade.

Cada um dará juízo sobre mim.


10 Todos condenarão vossa aspereza
chorando minhas mágoas, quando as lerem.

Mas esta glória só terei enfim,


que juntos nos lerão, e os que as crerem
dirão: - Igual ao amor foi a dureza. (f. 3vº)

53
LIVRO I DOS SONETOS

11

Mondego, tão soberbo vás da vista


da tua fermosa Ninfa, que parece
que quanto achas diante se oferece
recolher-te, sem haver quem te resista;

5 que té o oceano grande (que a conquista


nossa tem feito humilde) te obedece,
dali te leva ao Indo e s' engrandece
o Gange e Nilo, de que tua água é vista.

Tétis com suas Ninfas t' acompanham,


1O por honra desta Ninfa em ti criada,
e por todo seu reino a vão cantando.

Estas tuas águas rogo, em que se banham


os seus cabelos d'ouro, que cantada
seja por lá também a pena em que ando.

12

Quando entoar começo com voz branda


vosso nome d 'amor, doce, e suave,
a terra, o mar, vento, água, flor, folha, ave,
ao brando som s' alegra, move, e abranda.

5 Nem nuvem cobre o céu, nem na gente anda


trabalhoso cuidado, ou peso grave.
Nova cor toma o sol, ou se erga, ou lave
no claro Tejo, e nova luz nos manda.

Tudo se ri , se alegra, e reverdece;


10 todo mundo parece que renova,
nem há triste planeta, ou dura sorte.

A minh'alma só chora, e se entristece.


Maravilha d' Amor cruel, e nova'
O que a todos traz vida, a mim traz morte. (f. 4)

54
LIVRO I DOS SONETOS

13

Não aparece o sol, triste está a terra.


as nuvens carregadas, os céus tristes .
Estes sinais, que vós, meus olhos, vistes,
ó que mal vos prometem. ó que guerra!

5 Aquele sol fermoso que na Serra


nos sói amanhecer, vós o encobristes:
parece-que sentiu que não dormistes ,
esperando sua luz quem vo-la encerra.

E por fazer-nos mal , o fez ao dia,


10 que queixando-se está deste mal nosso
em tempo que tão mal lho merecia.

Eu não me queixarei, porque não posso,


nem doutro maior mal me queixaria .
Mas vós, olhos, chorai, que isto é mais vosso.

14

Ó olhos, donde Amor suas frechas tira


contra mim, cuja luz m'espanta e cega;
ó olhos, onde Amor s'esconde, e prega
as almas e, em pregando-as, se retira'

5 Ó olhos, onde Amor amor inspira,


e amor promete a todos, e amor nega ;
ó olhos, onde Amor tão bem s'emprega
por quem tão bem se chora, e se suspira!

Ó olhos, cujo fogo a neve fria


1O acende e queima; ó olhos poderosos
de dar à noite luz, e vida à morte!

Olhos por quem mais claro nasce o dia,


por quem são os meus olhos tão ditosos,
que de chorar por vós lhes coube e m sorte.

55
LIVRO I DOS SONETOS

15

Onde está aquela imagem pura, e bela,


artifício divino entre nós raro?
Onde aquele olhar brando, que tão caro
me foi? E o resplandor de ua. e outra estrela?

5 Quem a doce voz ouve? Ah, quem aquela


divina graça vê? Onde o tão claro
fogo que cá m'inflama, onde o seu caro
tesouro esconde Amor, que só tem nela?

Fazer poderá ausência que eu não veja


10 aquela viva imagem; não fará
que d'alma, onde anda escrita, se m'aparte.

Mas qual estrela ou sorte me dará


que, pois em vão dali sair deseja,
abrande da dureza já algiia parte?

16

Bem podeis vós, senhora, ajuntar fogo


a este que n'alma ardendo, aos olhos corre;
bem me podeis trazer em riso, e em jogo,
pois Amor contra vós ninguém socorre;

5 bem vos podeis fazer surda a meu rogo


e a esta alma, que ante vós de si se corre,
bem me podeis tomar em cinza logo;
mas ficará o esprito que não morre.

Este vos chama, e vê, e suspira, e chora,


1O este irá dando a vosso nome fama,
qu' Amor me ajudará, que eu só não posso.

Não apagueis a luz da clara chama


que de vós nasce, que virá algii'hora
qu' em minha morte choreis dano vosso. (f. 5)

56
LIVRO I DOS SONETOS

17

Se vós podésseis com desprezo, ou ira,


com abaixar os olhos, volver rosto
(crendo danar a glória, e doce gosto
dest'alma que vos vê, e em vão suspira),

5 quebrar aquela força, que me tira


de mim mesmo e me faz estar lá posto
onde vos vejo sempre, já desposto
sofrer Amor, que em vão contra mim se ira,

desculparia eu vossa crueldade,


10 s'algiia dura estrela, ou triste sorte
mudar podesse minha grã firmeza;

mas já que em vão, senhora, é tal dureza,


e qu' em mim estareis sempr' em vida, e em morte,
ao menos não estejais contra vontade.

18

Uns olhos que ao sol claro, à lua, ao norte


seu lume tiram, e onde resplandece
iia divina luz que os qu' aparece
faz no perigo não temer a morte;

5 uns crespos laços de ouro que o mais forte


atam, e prendem, de que se enriquece
Amor, e foge, por que não empece
neles, temendo algiia dura sorte;

riso que em riso converte meu pranto;


1O esprito que em mim todo bem inspira;
formosura no mundo nunca achada;

são a só causa porque assi suspira


minha alma em vão e porque em doce canto
antes será desfeita, que cansada. (f. 5v 0 )

57
LIVRO I DOS SONETOS

19

Donde tomou Amor, e de qual veia.


o ouro tão fino, e puro para aquelas
tranças louras? De que esfera ou estrelas
a luz, e o fogo que assi em mim se ateia?

5 Donde as perlas? A voz de que sereia?


Os brancos lírios donde, e as rosas belas.
aquele vivo esprito pondo nelas
de que formou iia nova ao mundo Ideia?

Antes a neve a alvura, a cor as rosas ,


1O do seu rosto tomaram , e a harmonia
as aves da voz doce, suave, e branda.

Não são ante ela as estrelas mais fermosas;


nem mais sereno o céu, ou claro dia;
nem mais fermoso o sol na sua esfera anda.

20

Sai minha alma às vezes a buscar-vos


tão apressadamente, que aparece
que algiia estrela a força, e se oferece
encaminhá-la lá, onde possa achar-vos .

5 Mas quando vos não vê, e vê que deixar-vos


de buscar lhe é forçado, assi esmorece,
que quando Amor já acode, a não conhece
senão pelos sinais que traz de amar-vos .

E no tempo em que está mais descuidada,


10 no perigo inda, em que se viu, cuidando,
então subitamente a salteais.

Querei-la andar, senhora, assi enganando,


para que viva, e assi vive enganada:
assi entre morte, e vida a sustentais. (f. 6 (PL 11))

1: PRR sai a minha

58
LIVRO I DOS SONETOS

21

Quem viu neve queimar? Quem viu tão frio


um fogo, de que eu arço? Quem, chegando
à morte, vivo, e ledo estar cantando?
Parece quanto digo desvario.

5 Dize-o tu, Mondego, manso rio,


que m'ouves, qu' o vês, e o vás chorando;
digam-no tuas Ninfas, qu' escuitando
meus segredos estão, qu' eu delas fio .

E Amor, que aqui está, sabe a verdade,


10 que nesta água tão fria está acendendo
o fogo de meus olhos distilado.

Tristes lágrimas minhas, que correndo,


mais o peito arde, quando piedade
terão uns olhos deste triste estado?

22

Sol, que já tantas voltas aos céus deste,


e de todas me viste estar chorando,
faze que este teu lume, que tomando
vás doutra luz qual nunca cá tiveste,

5 minhas lágrimas seque, se soubeste


algu'hora ser triste, e chorar, quando
aquele amado teu louro abraçando
tornar-lhe sua forma não podeste.

Ah Febo, qu' inda tu da dura terra


10 abrandar tua planta a ti podias,
inda com doces lágrimas regala.

Eu como abrandarei ua dura Serra,


por quem as noites choro, choro os dias,
e não m'ouve, nem vê, nem crê, nem fala? (f 6v0 )

59
LIVRO I DOS SONETOS

23

Quantas vezes Amor comigo, cheio


de nova maravilha, já de um posto
se põe a olhar aquela em cujo rosto,
em cujos olhos, o que escrevo leio.

5 - Vês - diz - que fermosura, que meneio,


que doce riso, que estar tão composto,
qu' ouro, que neve, e lume, ante quem posto
do sol o raio fica escuro, e feio?

Olha com que brandura os olhos vira!


1O Com que graça os abaixa, e os levanta,
ricos de mil despojos, mil vitórias!

Que afeitos faz! Que esprito não aspira


a deixar cá de si claras histórias,
movido só de fermosura tanta?

PL dá a este soneto o número XXII

24

Enquanto solto ao sol brando ar movia


o ouro, que Amor de sua mão fia, e tece,
d'amorosos espritos o ar se enchia,
de que amor doce em toda a parte crece.

5 Um lhe dava o nó crespo, outro tecia


laços, em que toda alma livre empece,
outro o soltava ao vento, e parecia
decer então o sol mais do que dece .

Namorava-se o claro sol da terra;


1O ia crescendo o dia mais fermoso;
minh'alma de si mesma estava fora.

Mas, recolhendo o Amor, eis que se cerra


triste o céu, escuro o dia, o sol queixoso,
e minh'alma dali sempre em vão chora. (f. 7)

60
LIVRO I DOS SONETOS

25

Ó cabelos, d' Amor rico tesouro,


de que s'arma, guerreia, vence, e mata;
cabelos com que Amor os que vence ata,
e triunfando vai com palma, e louro;

5 ó cabelos, com que seu arco d' ouro


o Amor encordoa, e desbarata
quanto acha diante, e se o vento os desata
dá nova vida ao mundo, e eu arço, e mouro;

cabelos em que Amor nasceu e se cria,


1O de que mil redes tece, laços mil,
e almas mil em cada laço prende;

cabelos que o ouro fazem baixo, e vil,


com que inda o sol mais clara luz daria:
de cada um de vós minha alma pende.

26

Ah, porque não posso eu em prosa, ou rima


tão alto levantar o brando nome,
que em toda praia estranha, estranho clima,
brandura a fera gente dele tome;

5 com que eu batendo as asas vá por cima


da baixa inveja, e assi a vença, e dome,
que em vão seus dentes quebre e dura lima,
em vão louvor esconda, erros assome?

Mas, pois não basta o esprito a empresa tanta,


1O bastar devia ao menos aqueixar-se
esta língua em meu mal só fria, e muda.

Assi a clara vista me ata, e espanta,


que quando dela espero mor ajuda,
então a vejo em dano meu calar-se.

61
LIVRO I DOS SONETOS

27

Muitas vezes quisera (tal me vejo)


não ser nascido, ou não ter visto aquela,
por que assi mouro, quando espero vê-la,
como de a não ver, quando desejo.

5 Mas logo tomo, e m'envergonho, e pejo


do meu mesmo erro: a culpa é tua, ou dela,
Amor cruel, que em amá-la, e temê-la
se converte enfim sempre alma, e desejo.

Mais quero assi viver que qual vivera


10 sem ter visto o que vi. Ditosa sorte,
quando, olhos meus, tão altamente olhastes!

Perdido fora, se me não perdera,


que inda que mouro, bem comprada morte,
por esta glória, que me vós mostrastes.

28

O fogo qu' em meu seio guardo, e crio


ora tão docemente a alma m'inflama,
que co'a brandura da sua doce chama
o seu mais vivo ardor se me faz frio;

5 ora de tristes lágrimas um rio


dos olhos, por que entrou o Amor, derrama,
ao som das quais a língua canta, e chama
aquela por quem choro, e por quem rio.

Cresce o fogo no peito, cresce-m' água


10 nos olhos; a voz cansa, o esprito voa
após quem traz em só fugir-me o tento.

Ela me vê; eu, de fogo üa viva frágua .


Chora Amor e fortuna meu tormento,
e em vão meu grito em seus ouvidos soa. (f. 8)

62
LIVRO I DOS SONETOS

29 ·

Onde quer qu' eu esteja, onde me vire,


ou dia, ou noite, ou só, ou entre a gente,
aquela formosura me é presente,
por quem me manda Amor qu' em vão suspire.

5 Ou corra água, bula erva, ar brando espire;


na flor, no céu, na lua, no oriente;
sol roxo, na alva aurora, e na luzente,
branda estrela de Amor, qu' amor lh'inspire;

ali a vejo, ali se me afigura -


10 mas mais em neve , ou fogo, ou na aspereza
de Ua rocha, ou nUa onda furiosa.

No rosto amor, no peito traz dureza.


Não sei se mais fermosa, se mais dura.
Ah, bem dura é; porém, bem é fermosa.

30

Este peito, que está de fogo cheio,


como aos olhos me vai tanta água dando?
Ou como o não pode ela ir apagando?
Que segredo d' Amor, que novo enleio!

5 Eu, que o padeço só, o entendo, e creio.


Está Amor com água o fogo temperando,
um contrário com outro sustentando,
e entre duas mortes iia vida em meio.

Desta arte usa Amor com quem está quedo,


10 vendo o bem que deseja; mas quem parte
a alma, partindo donde deixa a vida,

ou em cinza o fará o fogo cedo


ou, em lágrimas a alma derretida,
vencerá sua pena, e do Amor arte. (f. 8v 0 )

3 Pl: a

63
LIVRO I DOS SONETOS

31

Em dia escuro e triste fui lançado


dos céus na terra tão pesadamente
que, vendo ao longe o esprito o mal presente,
eu logo de mim mesmo fui chorado.

5 Em lágrimas nasci, a elas fui dado,


nelas passei minha idade inocente.
Tanto há que história triste sou à gente!
Tanto há qu' o céu espero ver mudado!

Um grande bem a quem não custou muito?


10 A quem foi dada tão ditosa sorte
a que o mal não coubesse por medida?

Não eram minhas lágrimas sem fruito,


pois por vós eram, nem o será a morte,
que mais doce é por vós, que sem vós vida.

7: PL a gente

32

Se meu desejo só é sempre ver-vos,


que causará, senhora, qu' em vos vendo
assi me encolho logo, e arrependo,
que folgaria então poder esquecer-vos?

5 Se minha glória só é sempre ter-vos


no pensamento meu, porque em querendo
cuidar em vós, se vai entristecendo,
nem ousa meu esprito em si deter-vos?

Se por vós só a vida estimo, e quero,


10 como por vós a morte só desejo?
Quem achará em tais contrários meio?

Não sei entender o que em mim mesmo vejo.


Mas que tudo é amor entendo e creio,
e no qu' entendo e creio, nisso espero. (f.9)

64
LIVRO I DOS SONETOS

33

Eu vi em vossos olhos novo lume,


qu' apartando dos meus a névoa escura,
viram outra escondida fermosura,
fora da sorte, e do geral costume.

5 Em vão seu arco Amor armar presume,


que esse alto esprito, essa constância dura,
a outro mais alto Amor guarda a fé pura,
em mais divino fogo se consume.

Nesta desconfiança inda s'acende


IO em mim um vão desejo de aprazer-vos,
e pera isso só busco ingenho, e arte.

Senhora, que ai fará quem chega a ver-vos,


(já que o desejo a mais se não estende)
que dar-vos de su' alma toda parte?

34

Doce amor novo meu tão bem tomado,


quando será o tão ditoso dia
que, dos enganos livre em que vivia,
me veja em ti de todo sossegado?

5 Quando será que, tendo triunfado


do que tão cegamente me vencia,
o mal que tanto dantes me aprazia
em verdadeiro bem veja mudado?

Amor doce, qu' em mim de novo crias


1O novo desejo, novo esprito e santo,
ilustrado de um novo lume raro,

guia-me àquele fim que m' escondias,


muda esta minha noite em dia claro.
Levantarei em teu nome alegre canto. (f. 9v 0 )

65
LIVRO I DOS SONETOS

35

Não lágrimas fingidas, não de cores


falsas o rosto tinto, não cortadas
as palavras por arte, nem pintadas
em versos ingenhosos falsas dores;

5 nem nomes vãos do Amor, e dos Amores,


nem mágoas da só boca bem choradas,
nem leves esperanças mal tomadas,
nem após fogos vãos mil vãos tremores;

mas verdadeiro, puro, casto, e santo


to amor cantando vou, qual n'alma escondo,
qual o mundo terá por seu exemplo.

E aquele raro esprito qu' eu contemplo


levantando me irá meu baixo canto,
limando o rude, e no que falta, pondo.

36

Quando vos vi, senhora, vi tão alto


estar meu bem, que logo ali em vos vendo
o achei juntamente, e fui perdendo,
ficando num momento rico, e falto .

5 E tal foi de vos ver o sobressalto


qu' , os olhos outra vez a vós erguendo,
senti a vista e esprito ir falecendo,
quando me olhei, e vi posto tão alto.

Ficou de sua prisão a alma tão leda,


1O e os olhos de vos verem tão soberbos,
que toda outra cousa desprezaram.

Não os tenho já mais que pera ver-vos;


tudo mais lhes defende Amor, e veda;
e eles que ai verão, pois vos olharam? (f. 10)

MdeV, p. 596 2: e logo em vos 3: e o fui 7: Foi-se-me a vista e o spir' to falecendo 8: e me vi


12: Já os não quero p'ra mais 13: Tudo ai lhe defende o amor 14: E vos não os culpeis, pois vos
olharam

66
LIVRO I DOS SONETOS

37

Vales, serras, e montes, bosques, prados,


árvores, ervas, sombras, folhas, flores,
aves, águas, e ninfas, e pastores
que do meu claro sol sois ilustrados,

5 em meus versos sereis sempre cantados,


sempre das Musas, sempre dos Amores
ouvireis o som doce nos louvores
daquela que venceu estrelas, e fados .

Eu digo aquela ao mundo dos céus dada,


10 exemplo de santíssimos costumes,
rara em saber, e rara em formosura,

que com a luz dos seus dous claros lumes


minh' alma me ilustrou, dantes escura,
dina de em toda língua ser cantada.

38

Quando eu vejo sair a menhã clara,


nos olhos dia, as faces neve, e rosas,
afugentando a sombra qu' as fermosas
cores do campo, e céu dantes roubara;

5 e quando a branca Délia a noite aclara,


e traz nos brancos cornos as lumiosas
estrelas, serenando as tempestosas
nuvens qu' o grosso humor nos céus juntara;

tal é, digo comigo, a clara estrela


10 que minh'alma me encheu doutra luz nova,
e meus olhos abriu ao que não viam.

Assi me leva a vida, e ma renova;


assi as vãs sombras, que antes m' escondiam
o claro céu, fugindo vão ante ela. (f. 1Ov 0 )

67
LIVRO I DOS SONETOS

39

Vai minh'alma cansada a vós, buscando,


como de tempestade, um porto manso,
e acha em vossos olhos seu descanso,
onde está ardendo em fogo doce, e brando.

5 Ali todo meu bem se me está dando,


ali vivo, me estendo, ali descanso,
nem me dói dor, nem no trabalho canso,
ali meus dias ledo estou contando.

Cantada seja sempre a ditosa hora


1O que se acendeu em mim tão doce fogo,
que então deleita mais, quando mais arde.

Ouvido foi dos céus meu santo rogo:


mais, pois mais piedade inda lá mora,
dure est' amor, e junto acabe tarde.

40

Tem-m' Amor preso em üas redes d' ouro


mais que as de Vulcano artificiosas,
que quanto mais estreitas, mais forçosas,
mais docemente nelas vivo, e mouro.

5 Achei, onde perdi-me, o meu tesouro,


e vi minhas cadeias tão fermosas,
que inveja estão fazendo às gloriosas
coroas triunfais de palma, e louro.

Triunfem lá os grandes vencedores,


10 mostrem imigos mortos, outros vivos,
cheios soberbamente de sua fama .

Eu os meus olhos de vós só cativos,


eu as minhas prisões, e a minha chama,
eu mostrarei ao mundo os meus amores. (f. 11)

68
LIVRO I DOS SONETOS

41

Despois qu' o meu esprito, então só claro


quando enxergou em vós o fogo puro
em que docemente arde, em tanto escuro
soube assi descobrir dos céus um faro;

5 despois que nesse esprito ao mundo raro


o meu se transformou, e o cego e duro
tirano, que me viu posto em seguro,
deixou armas, e reino em desemparo,

eu fiquei tão soberbo triunfando


10 que, sacodido o jugo, as prisões rotas,
gritei a grandes vozes: - Liberdade!

Aqui de vontade arço em fogo brando;


aqui está bom amor, aqui verdade;
aqui ficam do imigo as armas botas.

42

Daquela vista, de que se mantinham


meus olhos, e minh'alma, assi apartado,
nem o dourado sol, nem o céu estrelado,
tem para mim a graça qu' antes tinham.

5 Aqueles meus amores que iam e vinham


repartindo seu fogo em cada lado,
de qu' o meu novo amor, doce cuidado
em prazer amoroso se sostinham,

e aquela tão viva formosura


10 de que os meus olhos lá se não fartavam
e a alma enchia d' amor, e de brandura,

e quanto de meus bens cá me figura


minha doce lembrança, e me lá davam
vida contente, me dão morte dura. (f. 11 vº)

11 : PL E alma

69
LIVRO I DOS SONETOS

43

Tejo triunfador do claro Oriente,


que Nilo, e Ganges por senhor conhecem,
Tejo de areias d'ouro, onde florecem
Pales, Pomona, e Flora eternamente,

5 tu levas, onde eu fico, tua corrente.


Se saudosas lágrimas merecem
(pois tanto com elas tuas águas crecem)
piedade, em ti as recolhe brandamente.

E antes qu' ao mar pagues seu direito,


1O à destra mão da tua praia um monte
com graciosa soberba se levanta:

ali fiquei ao meu amor sujeito.


Ali tuas águas parte, e mostra tanta
destes meus olhos, quanta da tua fonte .

44

Os dias conto, e cada hora, e momento


qu' alongando-me vou dos meus amores.
Nas árvores, nas pedras, ervas, flores,
parece que acho mágoa, e sentimento.

5 As aves que no ar voam, o sol, e o vento,


montes, rios, e gados, e pastores,
as estradas, e os campos, mostram as dores
da minha saudade, e apartamento.

E quanto m'era lá doce, e suave,


1O mais triste, e duro Amor cá mo apresenta,
a que entreguei da minha vida a chave.

Em lágrimas força é qu ' as faces lave,


ou que não sinta a dor que na tormenta
memória da bonança faz mais grave. (f. 12)

70
LIVRO I DOS SONETOS

45

Aqueles olhos qu' eu deixei chorando,


cujas fermosas lágrimas bebia
Amor, com as suas tendo companhia,
ante os meus se me vão representando.

5 Os saudosos suspiros qu' arrancando


duas almas, em qu · iia troca Amor fazia,
qu' a que ficava era a 4ue partia
e a que ia a ficava acompanhando;

aquelas brandas, mal pronunciadas


lO palavras da saudosa despedida,
entre lágrimas rotas, e quebradas;

e aquelas alegrias esperadas


da boa tomada já antes da partida;
vivas as trago, não representadas.

46

A ti tomo, Mondego, claro rio,


com outr'alma, outros olhos, e outra vida.
Que foi de tanta lágrima perdida,
quanta em ti me levou um desvario,

5 quando eu, c'o rosto descorado, e frio,


soltava a voz chorosa, e nunca ouvida
daquela mais que Serra endurecida,
a cuja lembrança inda tremo, e esfrio?

Doe' engano d'Amor, que m'escondia


10 debaixo de vãs sombras que passaram
outro ditoso fim qu' a alma já via!

Já à minha noite amanheceu um dia;


já rim os olhos que tanto choraram;
já repouso em boa paz, boa alegria. (f. 12vº)

11: PL qu· alma

71
LIVRO I DOS SONETOS

47

Eu vejo inda aqui os sinais das águas


que minh'alma estilou em vivo fogo,
quando eu, trazido, ao vento em leve jogo
fazia soar ao longe minhas mágoas.

5 Inda o ardor daquelas vivas fráguas,


inda a dureza ao piadoso rogo
se me figura, e vejo do meu fogo
acesas ir correndo as mansas águas.

Inda daqueles tristes meus gemidos


10 üa voz ficou de todo não desfeita,
sendo a cinza do fogo já apagada.

Mercê de Deus, que ü'alma tão sojeita


a vãos cuidados, dias tão perdidos,
refez nüa hora bemaventurada!

48

Quando se envolve o céu, o dia escurece,


assopra o bravo vento, o alto mar geme,
o sol se nos esconde, a terra treme,
trovoa a noite, o raio resplandece,

5 eu olho aquela parte, onde esclarece


um sol qu' eu vejo só, e ele só vê-me,
e com sua luz, enquanto o mundo teme,
de lá m'alegra o esprito, e fortalece.

Meu perpétuo verão, meu claro Oriente,


10 donde o dia me vem, donde douradas
vejo as nuvens correr, os céus fermosos!

Ditosas aves, a que foram dadas


penas, ditosa a terra, a que é presente
a luz destes meus olhos saudosos' (f. 13)

72
LIVRO I DOS SONETOS

49

Vou de suspiros todo est' ar enchendo,


vou a terra de lágrimas regando,
mais água aos rios, mais às fontes dando,
e com meu fogo em tudo fogo acendo.

5 E quando os olhos meus, senhora, estendo


para onde o Amor e vós m' estais chamando,
as altas serras em qu' os vou quebrando
da vista me tolher s' estão doendo.

Mas nisto acode Amor, que sempre voa;


IO eu pelas asas, eu pelo arco o tenho,
té me levar consigo onde desejo.

E jurarei, senhora, que vos vejo,


jurarei qu' essa doce voz me soa.
Nesta imaginação só me sostenho.

50

Assi da fonte cristalina, e pura,


meu rio, a tua clara água a veia enchendo,
sempre igual, sempre doce, e sem mistura
que a turve, té o mar largo vá correndo;

5 assi canto de amor, e de brandura


sempre aqui o caminhante estê detendo,
em ti se banhe, e pise tua verdura
Man1ia, e as brancas flores vá colhendo:

que as lágrimas saudosas que derramo,


10 num vidro de cristal, contr' a corrente
que trazes mandes lá à tua fresca praia,

e à mais branca tua ninfa as apresente


nas brancas mãos de quem me ama e amo.
(Isto cortava Alcipo nua alta faia). (f. l 3vº)

73
LIVRO I DOS SONETOS

51

Quantos suspiros, triste, e quão compridos


ardendo vejo vir dentro a meu peito
daquela doce parte, onde eu desfeito
em lágrimas fiquei todo, e em gemidos!

5 Vereis em água uns olhos consumidos,


messageiros de Amor não contrafeito;
a alma achareis lá, se do direito
caminho não viestes mal perdidos.

Tomai-vos, pois, àquele doce abrigo


10 do meu amor, donde assi em vão partistes,
ficando eu escondido lá em seu seio,

e dizei-lhe: - Senhora, uns olhos tristes


vimos lá só chorar, sem fim, sem meio.
Cá o tendes, cá buscai o vosso amigo.

52

Alegra-me, e entristece a real cidade


qu' o Douro rega, e meus Sás enobrecem
com as armas, e troféus que resplandecem
e resplandecerão em toda idade.

5 Isto me alegra. E faz-me saudade


ver a ditosa terra em que aparecem
as raízes de üa planta, em que florecem
fermosura, saber, e alta bondade.

Aqui o tronco nasceu, que em toda parte


10 deu gloriosos ramos de honra, e glória
nas armas, e esquadrões do fero Marte.

E por mais se ilustrar sua clara história,


daqui nasceu üa dama em que tod' arte
o céu pôs, eu vontade, alma, e memória. (f. 14)

74
LIVRO I DOS SONETOS

53

Quando será que eu tome a ter diante


destes meus olhos o seu doce objeito,
a quem um honesto amor me fez sojeito,
e qu' eu ante ela escreva, ant' ela cante?

5 Nem tu, Amor, és composto de diamante,


nem eu de pedra tenho este meu peito,
que perto está d'em água ser desfeito,
se esprito algum não há que mo levante.

Representas-me, Amor, as mais fermosas


10 lágrimas, antes perlas, que tu viste
sair de uns olhos de chorar indinos.

Qu' armas me dás tu, com que as forçosas


lembranças vencer possa. e os tão continos
golpes mortais que ferem ü' alma triste?

54

Se com vos ver, senhora, assi lá ardia


que, conquanto essa vista m'abrandava
meu fogo, as mais das vezes esperava
a morte, qu' ante vós de mim fugia,

5 quanto, pois, contra vós cá erraria,


se a vida, qu' eu pera vos ver guardava
e nesse doe' engano sustentava,
podesse, sem vos ver, soster um dia!

Tormento aos olhos é ver outra cousa;


10 baixeza ao esprito ter outro cuidado,
nem mais desejar sabe, nem deseja.

Faça a fortuna bemaventurado


o cobiçoso qu' em nada repousa.
Eu, se vos não vir, moura, ou logo veja.

75
LIVRO I DOS SONETOS

55

A que alçarei os olhos, pois não vejo


aqueles olhos, de que eu só vivia,
onde leda minh' alma se estendia
e onde repousava o meu desejo?

5 Lá vai meu esprito ardendo, águas do Tejo,


o triste corpo fica pedra fria
(quanta tristeza custa üa alegria!),
té me tomar o dia que eu desejo.

Entanto, nestes vales, nestes montes,


10 tão longas noites, e tão tristes dias,
crescerão com meu choro ervas, e flores .

Quando, olhos meus, olhos não já, mas fontes ,


tomareis ver as vossas alegrias?
Quando est'alma enchereis de seus amores?

56

Do que em vós vi, senhora, me presenta


Amor ü.a imagem nova, e peregrina,
de cuja luz guiado o esprito atina
saber-se cá salvar na sua tormenta,

5 e os perigos vencer com que me tenta


a ausência dessa vista e voz divina,
claros sinais de ü' alma dos céus dina,
que tanto deles cá nos representa!

Escureceu-me o sol, fugiu-me o dia,


1O vencia já o espanto ao fraco esprito,
vendo os perigos qu' eu já lá temia.

Alcei a Amor um piadoso grito:


ele me pôs em salvo, e deu por guia
quanto de vós deixou nest'alma escrito. (f. I 5)

76
LIVRO I DOS SONETOS

57

Quando eu os olhos ergo àquela parte,


onde o meu novo sol o dia aclara,
e me vejo tão longe da luz clara,
que resplandece em mais ditosa parte,

S a alma saudosa se m' arranca e parte


lá onde a terra mais fermosa, e clara,
mais sereno o céu faz a vista clara,
de que meu fado triste, e cruel me parte.

Cansam os olhos, fica só o desejo


IO entre altas serras, onde deixo escrito
em cada pedra, ou tronco o vosso nome.

Ali ou ver-vos, ou morrer desejo;


isto canta meu verso, e meu escrito;
nem quero outra memória, ou outro nome.

58

Quando eu os olhos ergo àquele rosto,


que faz à minha dor alegr' engano,
ditosa chamo a hora, o dia, e o ano,
que como cera estou ao fogo posto.

S Não mortal, não de humana arte composto,


nem é humana voz, nem esprito humano,
isto que eu ouço, e vejo; e do seu dano
fica a alma namorada à dor do gosto.

Aquele só momento, aquele ponto


10 que mais mouro, mais vivo; e aquele dia
da minha morte só na vida conto.

Ó meu só bem, ó minha só alegria,


se assi durasses! Tudo tem seu conto;
a vida foge , a morte está em espia.

77
LIVRO II DOS SONETOS

Ninfas do claro Almonda, em cujo seio


nasceu e se criou a alma divina,
qu' um tempo andou dos céus cá peregrina,
já lá tomou mais rica do que veio.
5 Maria, da virtude firme esteio,
alma santa, real, de império dina,
a baixeza deixou, de qu' era indina.
Ficou sem ela o mundo escuro, e feio .
Ninfas, que tão pouco há qu' os bons amores
10 nossos cantastes, cheias de alegria,
chorai a vossa perda, e minha mágoa.
Não se cante entre vós já, nem se ria,
nem dê o monte erva, nem o prado flores,
nem dessa fonte mais corra clara água.

2
Ó alma pura enquanto cá vivias,
alma lá onde vives já mais pura,
porque me desprezaste? Quem tão dura
te tomou ao amor que me devias?
5 Isto era o que mil vezes prometias,
em que minh'alma estava tão segura:
que ambos juntos üa hora desta escura
noite nos soberia aos claros dias?
Como em tão triste cárcer me deixaste?
10 Como pude eu sem mim deixar partir-te?
Como vive este corpo sem sua alma?
Ah, que o caminho tu bem mo mostraste
por que correste à gloriosa palma!
Triste de quem não mereceu seguir-te. (f. 16)
PL 13: a gloriosa

79
LIVRO II DOS SONETOS

Despojo triste, corpo mal nascido,


escura prisão minha, e peso grave,
quando, rota a cadeia, e volta a chave,
me verei de ti solto, e bem remido?

5 Quando, c'o esprito pronto, aos céus erguido,


(despois que est'alma em lágrimas bem lave)
batendo as asas, como ligeira ave,
irei aos céus buscar meu bem perdido?

Triste sombra mortal, e vã figura


10 do que já fui, uns dias só sostida
daquele esprito por quem cá vivia,

quem te detém nesta prisão tão dura?


Não viste a clara luz, a santa guia,
que te lá chama à verdadeira vida?

Com que mágoa, ó Amor, com que tristeza


viste cerrar aqueles tão fermosos
olhos, onde vivias, poderosos
d'abrandar com sua vista a mor dureza!

5 Roubada nos é já nossa riqueza,


nossos cantos serão versos chorosos
e suspiros tristíssimos, queixosos
da morte, que nos pôs em tal pobreza.

Eu perdi o meu bem; tu, Amor, tua glória.


10 Eu o meu sol; e tu teu doce fogo
honesto, e santo, ao mundo raro exemplo.

Mas viva será sempre a alta memória


daquela que nos céus viva contemplo,
a quem humilde peço ouça meu rogo. (f. l 6v 0 )

80
LIVRO II DOS SONETOS

Aquele claro sol, que me mostrava


o caminho do céu mais chão, mais certo,
e com seu novo raio, ao longe, e ao perto,
toda a sombra mortal m'afugentava,

5 deixou a prisão triste, em que cá estava.


Eu fiquei cego, e só, c' o passo incerto,
perdido peregrino no deserto
a que faltou a guia que o levava.

Assi c'o esprito triste, o juízo escuro,


1O suas santas pisadas vou buscando
por vales, e por campos, e por montes.

Em toda parte a vejo, e a figuro .


Ela me toma a mão e vai guiando,
e meus olhos a seguem, feitos fontes .

PL 13 : ma

Aquela nunca vista fermosura,


aquela viva graça, e doce riso,
humilde gravidade, alto aviso,
mais divina qu' humana real brandura,

5 aquela alma inocente, e sábia, e pura,


qu ' entre nós cá fazia um paraíso;
ante os olhos a trago, e lá a devi so
no céu triunfar da morte, e sepultura.

Pois por quem choro, triste? Por quem chamo


1O sobre esta pedra, dura a meus gemidos,
que nem me pode ouvir, nem me responde?

Meus suspiros nos céus sejam ouvidos,


e, enquanto a clara vista se m'esconde,
seu despojo amarei , amei , e amo. (f. 17)

81
LIVRO li DOS SONETOS

Um tempo chorei, ledo co'a esperança


doce qu ' o brando Amor de si me dava,
e quanto mais gemia, e suspirava,
mor era a minha bemaventurança.

5 Agora neste triste, e cruel mudança


com que a morte de longe m' ameaçava,
o meu prazer perdi, que bem lograva.
Suspiro em vão polo que não s'alcança.

Lágrimas bem choradas, bem devidas


10 ao desejo do bem, qu' inda que tarde
sostenta o esprito com seu doe ' engano!

Mas tristíssimas lágrimas, perdidas


trás um bem, que fugiu , e trás um dano,
que remédio não deixa ou cedo, ou tarde!

Quem pode ver um coração tão triste,


quem üa vida, que há inveja à morte,
que se não doa, por mais duro, e forte,
do que tu, Morte, em mim fizeste, e viste?

5 Se nunca o Amor t'ofende, nem resiste


(antes desejam sempre üa igual sorte
os que bem se amam , e 4u ' um golpe os corte),
porque um tão doce amor, cruel, partiste?

Mas tu não poderás, por mais que possas,


1O partir as almas e os pensamentos,
qu ' onde querem, se vem, s'amam, s' entendem .

Triunfa agora destas cinzas nossas,


qu ' inda juntas ao esprito altos assentos
terão, onde tuas forças não s' estendem. (f. l 7v 0 )

82
LIVRO II DOS SONETOS

Co 'a alma nos céus pronta, o esprito inteiro,


leve o sembrante, a vista graciosa,
aquela, antes da morte já gloriosa,
esperava o combate derradeiro.

5 De santa fé armada e verdadeiro


amor divino, venceu a espantosa
morte, que nela pareceu fermosa,
e nova estrela a fez no céu terceiro.

E tomando-me a mão leda, e risonha


1O - Meu doce amigo - diz - vinda é minh' hora.
Quem nos assi cá atou soltou o nó.

Quem mais cuida que vive, esse mais sonha.


Lá onde se não geme, nem se chora,
t' amará mais est'alma, o corpo é pó.

Pl I: Co alma

10

Qual bom planeta, qual boa estrela ou sino


invocarei? Qual esprito piadoso,
que incurte este desterro saudoso,
que me faz ser no mundo peregrino?

5 Onde eu os olhos claros, e o divino


rosto via, onde ouvia o deleitoso
som da voz branda, qu ' em tão amoroso
fogo m'inflama, de qu ' eu só fui dino:

ali é minha vida, e a minha terra,


1O ali se satisfaz alma, e desejo,
ali todo meu bem se m' oferece.

Em toda outra parte acho ódio, e guerra,


em toda a parte o sol se m' escurece,
e fogo, e morte vejo em quanto vejo. (f. 18)

83
LIVRO II DOS SONETOS

11

Estas cinzas aqui chorando encerra


Amor. d'üa chama que cá ardeu mais pura
num peito humano, a que foi tão dura
a morte, qu' ante tempo lhe fez guerra.

5 Cega, e cruel, que contra si mesma erra'


Quando apagar cuidou a fermosura
do mundo, então a parte mais segura
a subiu, donde mais aclara a terra.

Quem vir estes despojos saudosos


1O do triste Alcipo, pera sempre triste,
lágrimas, e suspiros daqui leve.

E sejam, diga, a Alcipo os céus piadosos,


seja ao fermoso corpo a terra leve.
Tu dá do esprito ao mundo a fé, que viste.

12

De D. Simão da Silveira

Sepultado em tristeza, em dor, em pranto,


esquecido das Musas, e de ti,
te vejo sem alegria estar assi,
como aquele a que deu pasmo, e espanto.

5 Vejo a casa, em que estás, de cada canto


tremer, vejo-a chorar, vejo daqui
esse rio, esse monte, o céu por ti
cuberto estar de negro, e ·escuro manto.

Não reine, António, em ti tal desatino .


10 Deixa lágrimas vãs, põe fim às dores,
asserena o sembrante triste, e escuro.

Enche teu peito suave, e peregrino


doutro desejo mais são, doutros amores,
com que em ti, sem temer, vivas seguro. (f. l 8v 0 )

84
LIVRO li DOS SONETOS

13

A D. Simão da Silveira

Desfeito o esprito em vento, o corpo em pranto,


tão poderosamente fui de ti
chamado, que tomei, Simão, assi
como da morte à vida, em novo espanto.

5 Ergueste, doce Orfeu, c' o teu bom canto


um esprito morto, a cujo som daqui
s' alçou todo ar escuro, e só por ti
rompi d'alta tristeza o grosso manto.

Foi remédio a meu mal meu desatino.


10 Fugiu o juízo, deu lugar às dores
que já me tinham junto ao reino escuro.

Andou o esprito um tempo peregrino,


buscando entre vãs sombras seus amores.
Tu mo tomaste agora em bom seguro.

PL 10: as

14

Vai novo sol esclarecer o dia


lá onde ele s' esconde, e s' escurece.
Vai nova lua lá, onde anoitece,
dar luz à terra, e aos olhos alegria.

5 Vai branca Diana com tua companhia,


a cuja vista o campo reverdece,
dar novo preço à terra, qu' enriquece
contigo, e pera ti suas flores cria.

Esperando t' está o dourado Tejo,


10 e suas fermosas Ninfas, que temperam
nos teus louvores os seus instrumentos.

Vai alegrar as almas, que t'esperam


e todo seu amor, e seu desejo
tem posto só nos teus contentamentos. (j. 19 (PL 23)

PL 4: a 7: a

85
LIVRO li DOS SONETOS

15

Rei bemaventurado, este é o dia


que quatorze anos há que o mundo espera,
desd'o teu Tejo à oriental esfera,
e da zona torrada à zona fria,

5 quando outra nova luz, nova alegria,


qual no teu nascimento o sol já dera,
veremos na dourada, e ditosa era
da tua tão esperada monarquia.

Benigno o céu t' está, obediente a terra.


10 Abraçam-se entre si Justiça e Paz,
qu ' a ti, buscando abrigo, vem fugindo .

Erguendo a cristã fé, que fraca jaz,


aos teus igual justiça repartindo,
terás sempre paz santa, ou santa guerra.

PL3: a

16

Se saber, fermosura, e real estado,


pureza d'alma, e limpa castidade,
s'um desprezo da glória, e vaidade
do mundo assi esquecido, e sopeado,

5 s'um viver contente, e descansado


fundado em fé, esperança, e caridade,
s'em tão alto lugar baixa humildade,
se um esprito nos céus todo enlevado,

poderam fazer bemaventurada


1O neste mundo e no outro üa creatura,
nós na terra, e nos céus 11.: coroamos .

De Deus será tua alma festejada,


de nós honrada tua sepultura,
de que grandes milagres esperamos. (j. 19v°)

86
LIVRO li DOS SONETOS

17

Que Apeles, que Lisipos poderiam


pintar ou esculpir estas figuras,
ó príncipes divinos? Que pinturas
a tanto dom de Deus responderiam?

5 Que ingenhos dos antigos bastariam


(já que não bastam cores, nem esculturas)
escrever-vos? Que pedras, por mais duras,
a vossos nomes não se abrandariam?

As árvores, as pedras, os metais,


10 as cores, e as tintas vos desejam,
os livros, todo mundo, e os céus mais.

Vós os olhos, e engenhos nos cegais


com esse resplandor. Os céus vos vejam;
eles vos louvem, e façam imortais.

18

A Júpiter três deusas se queixaram,


vendo de Urenha a tão fermosa planta:
- Não é minha honra, nem riqueza tanta
- diz Juno - , pois no mundo igual me acharam.

5 - Nem eu sou só a que tanto celebraram


- se queixa Palas casta, sábia, e santa - ,
pois üa Madalena se levanta
em qL11:m todos meus dões os céus juntaram.

- Eu fora - dizia Vénus - mais queixosa,


10 se quem venceu a minha fermosura
não vira de meu filho tão vencida.

- Sofrei - Júpiter diz - sua ventura,


pois eu sofro a ventura mais ditosa
de Jorge, a quem dos céus foi concedida. (f. 20)

87
LIVRO li DOS SONETOS

19

Claríssimo Marquês, em cujo esprito


novo lume de glória resplandece,
s' à viva chama que já em ti parece
igual fosse meu verso, e meu escrito,

5 tu serias, senhor, cantado, e dito


grande entre aqueles a que Apolo tece
gloriosa coroa, e a que oferece
de seus nomes a fama um alto grito.

Mas enquanto eu desejo mor alteza


1O a meu ingenho desigual ao peso,
tu conserva tua vida, e tua saúde,

e levanta esse peito à alta grandeza


da viva glória, da viva virtude,
qu' o templo te abrirá a outros defeso.

PL3 : a 12: a

20

Eu vejo arder teu peito em nova glória,


claríssimo Dom Pedro, mal contente
de não largar já as penas altamente
onde te chama a tua clara história.

5 Por ti florecerá a alta memória


de teus grandes avós, e o raio ardente,
que em ti s'esconde, nova luz à gente
trará na paz, na guerra, e na vitória.

Sossega teu esprito entanto, e espera


10 tempo, senhor, que não tardará muito
em que mostres ao mundo o que eu já vejo.

Tu verás das tuas obras o alto fruito,


eu cingirei por ti as fontes d'hcra,
se igual nascer meu verso a meu desejo. (f. 20vº)

88
LIVRO II DOS SONETOS

21

Escreve, Dom Diogo, escreve, e canta


no meio dos trabalhos mais constante.
Ousado vai contra a fortuna avante,
qu' ela te prova, e ela te levanta.

5 Que poder haverá, que força tanta


contra esse peito armado de diamante,
que nele se não rompa, e não quebrante
a fortuna, que já de ti s'espanta?

Canta, pois tu cantando és tão cantado.


10 Apolo se te inclina, Amor s'abranda,
e teu nome mais cresce cada dia.

Seguro pelo mundo corre, e anda,


que não podes ser nele desterrado;
antes sem ti desterro ele seria.

22

Choras, António, e levam Lima, e Douro,


com as suas, as tuas lágrimas vãmente
chamando aquela, que resplandecente
mostrando está dos céus o seu tesouro.

5 Doutra neve vestida já, e doutro ouro,


qual não vê nem comprende a cega gente,
despreza essas vãs lágrimas, contente
co'a gloriosa palma, e imortal louro.

Ó alma bem nascida, que mostrada


10 ao mundo foste só por nosso espanto,
inda esses breves dias te devemos.

Andaste cá esse tempo aos céus roubada.


Devem-se a mortos lágrimas, e pranto;
nós viva entre anjos Ângela cantemos. (f. 2 I)

89
LIVRO li DOS SONETOS

23

Enquanto tu lá, Andrade, os votos santos


pagas pola saúde da irmã santa,
e ela à Mãe de Deus mil hinos canta,
e tu ao Filho e à Mãe compões mil cantos;

5 e quantos passos lá c' os pés dais, tantos


degraus ergueis a casa, onde luz tanta
resplandece, que cega, ofende, e espanta
os que de lá caíram em fogo, e em prantos;

eu, c'o esprito inquieto, aos céus suspiro,


10 dum sol ao outro. düa a outra sombra,
em saudoso pranto. em brando rogo,

que deste duro jugo que ora tiro


livre u· hora ao sol claro, à doce sombra,
me v~ja arder quieto em santo fogo.

24

Em duas partes deixei lá partida


minh'alma saudosa. Amor o sabe
e vós, senhor, a qu' igual parte cabe
e sempre caberá dest'alma, e vida.

5 Nem viva eu mais qu' enquanto conhecida


esta verdade faça. Então acabe,
e se mais quer, ou desejar mais sabe
minha vontade, nunca seja crida.

Por vós suspiro, e polo claro lume


1O dum novo sol, que lá dá luz ao dia,
e por norte tomei do meu bom porto.

Já lá cuidava quando tomaria,


pois entre nós por força, e por costume
il nostro esser insieme e raro, e corto. (f. 2 I vº)

90
LIVRO li DOS SONETOS

25

Bernardes, cujo esprito Apolo inspira,


volve teu doce canto, a mim mal dado,
ao grande objecto teu, que levantado
por ti será a alta glória, a que já aspira.

5 Inda onde quer qu' está, chora, e suspira


o triste Ifante, em ver tão mal chorado
seu doce amor, de que cá tão magoado
não fartou d'água os olhos, peito de ira.

Isto só pede aos céus, qu' inda da terra,


1O qu' a sua cinza esconde, um raio claro
nova luz traga à sua sepultura;

e aclare a nuvem que nos cobre, e cerra


aquela mal chorada ferrnosura,
tão dina do amor seu no mundo raro.

RV 1: Bemaldez ... spira 2: doce verso 4: será à glória 10-14: em vez destes versos, RV tem os
seguintes:
que esconde suas cinzas, um lumioso
raio saia, de luz nova, luz tal
que aclare a nuve que nos cobre e cerra
aquela vida, que inda que mortal
de doce amor, despoja (sic) saudoso.

26

Limiano, tu ao som do claro Lima,


inda por ti mais claro, à sombra fria,
a branca Ninfa, que te deu por guia
Amor, fazes soar na doce rima.

5 E enquanto cantas, flores mil de cima


derrama Citereia, e um louro cria
para as tuas frontes Febo, e em companhia
doutros teu nome leva já a outro clima.

RV 1: Bemardez 5: a cantas 6: omite e 7: fontes 8: omite já

91
LIVRO li DOS SONETOS

Eu mudo e triste, em lágrimas banhado.


10 vou gastando a alma em esperar ua hora
que minha cruel sorte está detendo .

Então solto, então livre, e a mim tornado,


teu brando som iria o meu regendo.
Entanto, teu bem canta, e meu mal chora. (f. 22)

10: a vida gasto em esperar 11 : meu fado cruel me está 13: teu doce som iria ao meu

27

Víncio, eu vejo do Oriente a clara


Vénus lançar em ti seus mais fermosos
raios, e ledo o pai os amorosos
olhos tem postos em sua filha cara.

5 Vejo que minha estrela o ar aclara,


o céu serena, ao sol dá mais lustrosos
raios de luz; a mim os piadosos
olhos só cerra, de sua luz avara.

Ditoso tu, ditosa a dourada hora


10 que te viu cá nascer e assi t'encheu
de todo bem, que se do céu deseja!

Eu que direi de mim? Ditoso seja


quem a tão alta luz olhos ergueu,
e ditosa a alma qu' a suspira e chora.

28

Num côncavo penedo, onde quebravam


sua mor força as ondas furiosas,
dous brandos nomes de duas mais fermosas
ninfas, Lília, e Célia, se cortavam.

5 Abrindo a pedra as letras, aclaravam


as nuvens ; brandos ares amorosas
virações espirando, as mais irosas
ondas naquela parte assossegavam .

92
LIVRO II DOS SONETOS

Ao pé dos doces nomes, que cortaram


10 Aónio, e Víncio em imortal memória,
seus nomes, e estes versos escreveram :

Em duas aqui quatro almas se juntaram.


Aqui porto quieto as ondas deram ,
Lília, e Célia a Amor honra, ao mundo glória. (f. 22vº)

29
Gloriosos espritos, coroados
dos louros imortais, que cá ganhastes,
quando c' o claro sangue bem comprastes
esses assentos que vos lá são dados

5 (tão dinos d'entre nós serdes cantados!),


enquanto a clara fama, que deixastes ,
igual trombeta, e voz cá não achastes,
estáveis como em Lete sepultados.

Eis que já vos nasceu um novo esprito


10 de cuja voz sereis no mundo ouvidos,
por cuja mão saireis da sepultura.

Duas vidas, dous lumes concedidos


vos são, de que alça a fama imortal grito:
vida no verso, vida na pintura.

PLXXX

30

Os qu' a fortuna deusa sua faziam,


e por mor deusa nos céus a assentavam,
est'honra, este vão título lhe davam,
porque de suas mudanças se temiam.

5 Mas aqueles que dela não pendiam


em vez de a adorarem, lhe pisavam
c'os pés sua fraca roda, e desprezavam
a falsa divindade, em que não criam.

?LXXXI

93
LIVRO li DOS SONETOS

Quanto será de ti mais desprezada,


10 felicíssimo João, que dos céus certo
tens prémio igual aos dotes que te deram!

Seguro prémio, não vário, ou incerto,


como os que da fortuna outros tiveram,
qu' a ti não pode dar nem tirar nada. (f. 23)

31

Quanto d ' amor se pode humanamente


sentir, tu o sentes, ou cantar, tu o cantas,
Salício; e, enquanto a doce voz levantas,
tudo arde em fogo , em tudo amor se sente.

5 Só Aérida, e Amor, a ela obediente,


ao vivo fogo teu, lágrimas tantas ,
aos grandes versos com qu' o mundo espantas,
olhos, e ouvidos cerram cruelmente.

Porventura qu ' enquanto à estrangeira


10 língua entregas teus doces acentos,
não é tua voz com tanto efeito ouvida.

Dá, pois, à dor sua língua verdadeira,


dá os naturais suspiros teus aos ventos,
porventura será tua dor mais crida.

PL XXXII

32

Alma inocente, que, teu voo despindo,


solta desta prisão estreita, e escura,
vestida já da eterna fermosura,
esse espaçoso céu andas medindo;

5 ditosa, que também foste fugindo


do que mais nos engana, e menos dura,
e vives já sem fim leda, e segura,
de nossas sombras vãs piadosa rindo:

94
LIVRO li DOS SONETOS

quão bem atalhaste à tua verde idade


10 meu Betancor! Assi o merecia
esse divino esprito aos céus nascido.

Meu amor chorará tua saudade,


mas ditoso em meus versos será lido
o teu primeiro, e derradeiro dia.

PL XXXIII

33

Na antiga língua portuguesa

Bom Vasco de Lobeira, e de grã sem,


de prão que vós avedes bem contado
o feito d' Amadis o namorado,
sem quedar ende por contar i rem.

5 E tanto nos aprougue, e a tão bem,


que vós seredes sempre ende loado,
e entre os homes bons por bom mentado,
que vos lerão adeante e que ora lem.

Mais porque vós fizestes a fremosa


10 Brioranja amar endoado u nom amarom,
esto cambade, e compra sa vontade.

Cá eu hei grã dó de a ver queixosa,


por sa grã fremosura , e sa bondade,
e er porque õ fim amor nom lho pagarom.

PL XXXIII! Título: E Soneto Do Infante Dom . P.º a Vasco do Libeira do que fez PPR Do
mesmo (livro). Infante D. Pedro I: E Bom Basco bom Bas PPR D. Basco de Lobeira e do grão sem
2: E do prão que nos PPR do prão 3: E Amadis enamorado 4: E ende de quedar item PPR de con-
tar item 5: E porém tanto PPR Pero tanto 6: E que vos sereis PPR sempre seres 7: E e PPR omitem
e PPR homens E bom contado 8: E e ora !em PPR odiante 9: E Mas PPR Mas pero nos figuestes
(sic) 10: E entoado no na amarom PPR amar hu a nom amaron 11 : E cambrai PPR cambai E e PPR
omitem e 12: E porque eu PPR perque eu ei her 13 : E e sagram bondade 14: E e porque ao fim não
lho pagaram PPR e porque her enfim non lho pagaron

95
LIVRO li DOS SONETOS

34

Vinha Amor pelo campo trebelhando


com sa fremosa madre, e sas donzelas,
el rindo, e cheo de ledice entre elas,
já de arco, e de sas setas non curando.

5 Brioranja i a sazom sia pensando


na grã coita, que ela há, e vendo aquelas
setas de Amor filha em sa müo üa delas,
e mete-a no arco, e vai-se andanuo.

Des i volveu o rostro u Amor sia,


10 er disse: - Ai traidor, que me hás falido,
eu prenderei de ti crua vendita.

Largou a mão, quedou Amor ferido


e, catando a sa sestra, endoado grita:
- Ai, mercê, a Brioranja, que fugia. (f. 24)

PL XXXV

35

Solitário, que segues tão contente


o caminho mais árduo, que nos guia
da nossa escura noite àquele dia,
em que vive tão clara a imortal gente,

5 esperta este meu sono, em que dormente


tive té'gora est'alma, sê-me guia,
por onde eu suba aos céus, qu' antes não via,
de mim mesmo enganado cegamente.

Escuro, triste, morto, e mal vivido


10 tempo, de mágoa, e de arrependimento,
gastado em vãos desejos, vãos cuidados!

Já achou meu vago esprito seu assento.


Sejam ou esquecidos, ou chorados
os tristes dias, em que andei perdido.

PL XXXVI

96
LIVRO li DOS SONETOS

36

Despois de cinco lustros, já aquela hora,


qu' ao mundo me mostrou em noite escura,
me toma a quarta vez, e com brandura
do mau planeta me defende agora.

5 Tempo é que ti"alma que já há tanto chora


vos mova a mágoa, ó clara formosura,
qu' os céus ornais, e tendes a escritura
de quanto cá s' espera e quanto mora.

Tu, do mundo grã pai, tu, poderoso


10 rei d'estrelas e céus, est'alma guia
a ti, seu alto fim, por ti criada.

Por ti se movem os céus, por ti o dia


nos nasce. Aquele só será ditoso,
que sem ti não espera, nem crê nada. (f. 24vº)

PL XXXVII

37

Eis o mar, eis o vento, espanto, e medo


aos tristes navegantes, cruel morte
em tod' a parte mostram; ali o mais forte
quer, por não ver mais mal, morrer mais cedo.

5 Quando aquele poder, que firme, e quedo


tem seu eterno império, a triste sorte
num ponto muda, e guia a nau, qu' aporte
em salvo pelo mar, que abre c'o dedo,

vence o prazer ao medo, toma a vida


1O como furtada à morte, novo céu
parece, e novo sol. e novo dia;

assi ua alma enganada, que perdida


anda em tão alto mar, de escuro véu
cuberta, tu, alto Deus, me aclara, e guia.

PL XXXVIII 10: a morte

97
LIVRO 11 DOS SONETOS

38

Onde me esconderei, Senhor, de ti?


Teme-t' est'alma recebida em vão.
Estes meus olhos como te verão,
pois meu triste pecado te pôs i?

5 Ó Senhor piadoso que não vi


nem vejo ind' até 'gora, estend' a mão,
dá-m' a estes olhos luz e um coração
de carne, que de pedra foi té'qui.

Ovelha sou, Senhor, qu' ando perdida;


1O ingrato filho fui, que mal gastei
os talentos da graça, que me deste,

mas, se me tu buscares, tomarei .


Busca-me com tua graça, pois quiseste
morrer assi na cruz por dar-me vida. (f. 25)

PL XXIX

39

A esta lapa vimos, Virgem Santa,


humildes, e devotos peregrinos.
Que os olhos sejam de te ver indinos,
ver o que o mundo todo alegra, e espanta,

5 e que a pureza em nós não seja tanta,


tua graça_ nos fará, Senhora, dinos
de ouvires nossos versos, nossos hinos,
que cada alma fiel te ofrece, e canta.

Grandes são teus poderes, tuas grandezas.


1O Novos sinais, Senhora, não esperamos:
despois de Deus, de ti tudo mais cremos.

Alimpa em nossas almas suas torpezas ;


desfaze as névoas, com que nos cegamos ;
e estes grandes milagres cantaremos .

PLXL

98
LIVRO II DOS SONETOS

40

Anjo enviado a aparelhar as vias


do Cordeiro de Deus por ti mostrado,
que no ventre da Mãe santificado
no ventre de sua Mãe já conhecias;

5 declarador d'antigas profecias,


mais que profeta de Deus tão louvado,
de quem o mesmo Deus foi bautizado,
luz clara, que todo homem alumias;

aquela tua voz santa, que soava


10 no deserto, grã João, a penitência
de tua vida inocente, o sangue, e a morte

criem em minh'alma iia nova inocência,


santo zelo, amor firme, ânimo forte ,
com que siga tua luz, que aos céus guiava.

PLXLI

41

Águia divina, que tão altamente


de Deus guiada além dos céus voaste,
donde os mores segredos nos mostraste,
qu' escondidos estavam à cega gente,

5 com teu raio de luz resplandecente


o mundo escuro, e triste alumiaste,
e quanto lá de Deus, em Deus achaste,
por ti o mundo o confessa, o crê, e o sente.

Tu no peito de Deus adormeceste;


10 tu só foste por filho a sua Mãe dado;
mil coroas de glória mereceste.

Discípulo de Deus o mais amado,


desse divino fogo, em que tu ardeste,
seja este esprito meu sempre inflamado.

PL XLII

99
LIVRO li DOS SONETOS

42

Diante do cutelo riguroso


do tirano cruel, esperando a morte
c'o ânimo cad'um tão firme , e forte ,
quanto era o do algoz mais bravo, e iroso,
5 estavam os santos frades, desejoso

tanto cad'um de cair nele a sorte,


que, por mais depressa que o aço corte,
remisso lhes parece, e vagaroso.

Ó xarife cruel, que essa crueza


1O a ti o é só; a eles glória, e vida,
a nós esse seu sangue, grã tesouro!

Com que esforço, e vigor, e fortaleza


nos ensinam correr à prometida
grã coroa de glória, não de louro! (f. 26)

PL XLIII

43

Rainha Santa, aos Reis exemplo raro,


ao mundo espanto, luz à névoa escura
por onde já rompendo dess' altura
lançando estás em nós teu raio claro;

5 desse rico tesouro, que tão caro


te foi cá, e possues já segura
de to roubarem, parte nos procura
de quem para nós só o comprou tão caro.

Rainha Santa, que na mor alteza


10 da terra mais humilde aos céus voaste,
com o mundo fazendo força ao céu ;

esta tua terra, ó Santa, que pisaste,


rompendo com tua luz seu escuro véu,
de tua humildade enche, e fortaleza .

PL XLIIII 2: a névoa

100
LIVRO li DOS SONETOS

44

Espritos coroados da vitória,


com que triunfando estais nos céus da terra ;
almas santas, e puras, que da guerra
nossa livres viveis em paz e em glória,

5 ou denunciando às gentes a alta história


qu' a pura fé nos mostra, o céu nos cerra,
ou do mundo enganoso, que sempr' erra,
fugindo, nos deixásseis tal memória:

vossos despojos santos, milagrosos,


10 corpos, e sangue, e lágrimas, e mortes,
qu ' a essa vida imortal já vos subiram,

presentai lá por nós com piadosos


olhos deste desterro, onde os mais fortes
por um engano vão do céu caíram. (f. 26v 0 )

Pl XLV 5: as 11 : qu' essa

10 1
LIVRO DOS EPIGRAMAS

A um retrato de Dona Caterina de Sousa

Mostrou o que pode a mão, a tinta, e arte,


mas só o que se não vê é Caterina.
Onde ela não está toda, não está parte.
Divina fermosura, alma divina:
5 tais graças raramente o céu reparte.
Mas inda d'outras foi mais altas dina.
A quem tal a criou deu vida, e alma;
triunfou do mundo; tem nos céus a palma.

A Jerónimo Corte-Real

Quem pode, grã Jerónimo, louvar-te


dos raros dões que em ti os céus juntaram?
No pincel vences natureza, e arte,
na lira quantos a melhor tocaram,
5 na forte espada representas Marte,
nos brandos versos poucos te igualaram.
Até no claro sangue, e gentileza
fortuna e céus roubaste e natureza. (f. 27)

1: SCD ó grão

3
De Anacreonte

Prenderam as Musas, por nova aventura,


o Amor em laços, e prisões de flores.
Entregaram-no em guarda à fermosura,
que atado o tenha bem, porém, sem dores.

103
EPIGRAMAS

5 Ajunta Vénus dões, e com brandura


que soltem, roga, o filho seus Amores.
Mas inda que já seja resgatado,
dali fica a servir acostumado.

De grego

Cante quem quer do furioso Marte


as armas, cante Tróia já abrasada:
a minha cruel guerra, a força, e arte
que me venceu, será de mim cantada.
5 Nem arma, nem soldado teve parte
no vencimento meu, nem frota armada,
mas um belo esquadrão que d'improviso
saiu duns olhos, e dum brando riso. (f. 27vº)

Traduzido. Colltra o maldizente

Tu que com a língua feres. monstro és,


não animal. C' os dentes fere o cão,
co'a ponta o cervo: tu cervo não és.
O !ião co'as unhas: tu não és !ião.
5 E se !ião, ou cão. ou cervo és:
se !ião, vai-te onde os liões estão,
se cão, o mesmo !ião te despadace,
se cervo, o mesmo cão te corra, e cace.

A Lésbia

Furtou a aljaba a Amor, quando dormia,


Lésbia. Acorda Amor, põe-se a chorar.
- Não chores, filho meu -Vénus dizia -
Lésbia fermosa a tem, tomar-t' -á dar.
5 Nada há mister de ti: do que nela ia
teu fogo, e setas pode-as escusar.
C' os olhos, fronte, riso fere, inflama
de mor ferida, mais ardente chama. (f. 28)

104
EPIGRAMAS

A um retrato de Dido

À mão do pintor devo nova vida.


Maro me deve a honra difamada.
Nem Dido foi de Aeneas conhecida,
nem viu Cartago sua frota errada.
5 Eu mesma me matei, porque sostida
fosse a fé casta a meu Siqueu só dada.
Vinguei sua morte, ergui nova cidade.
Valha mais que os poetas a verdade.

l : PLA

A Vénus e Cupido

Dizem que antigamente o céu caía


com cruel guerra armada entre sua gente.
Marte d'espada armado embravecia,
Neptuno armado de seu grã tridente.
5 C' o corisco de Jove o céu tremia,
todos s'ameaçavam cruelmente.
Tanto qu ' Amor com a mãe foi visto armado,
cad'um dá as armas, tudo é paziguado. (f. 28v 0 )

Fermosura

Ao touro cornos, unhas ao !ião,


voar à águia, ao cervo ligeireza,
e a todas as mais feras quantas são
deu su' arma, e sua força a natureza.
5 Ao homem deu esforço, e boa razão:
não tem que dar à feminil fraqueza.
Pois que lhe deu? Ah, deu-lhe fermosura,
arma que ferro, e fogo inda mais dura.

105
EPIGRAMAS

10

Marte namorado

Forjava em Lemno com destreza, e arte


setas a Amor de Vénus o marido.
A branda Vénus lhe põe mel dT1a parte,
mas d'outra parte lhe põe fel Cupido.
5 Entrou brandindo a grossa lança Marte,
riu-se das setas. - Queres ser ferido
d"ua' 1 - Amor diz. - Prova ora, se te praz.
Feriu-o, riu-se Vénus, Marte jaz. (f. 29)

106
LIVRO I DAS ODES

Fuja daqui o odioso


profano vulgo! Eu canto
a brandas Musas, a uns espritos dados
dos céus ao novo canto
5 heróico, e generoso,
nunca ouvido dos nossos bons passados.

Neste sejam cantados


altos reis, altos feitos ;
costume-se este ar nosso à lira nova.
10 Acendei vossos peitos,
ingenhos bem criados,
do fogo qu' o mundo outra vez renova.

Cad'um faça alta prova


de seu esprito em tantas
15 portuguesas conquistas, e vitórias,
de que ledo t'espantas,
oceano, e dás por nova
do mundo ao mesmo mundo altas histórias . (f. 29v 0 )

Renova mil memórias,


20 língua aos teus esquecida,
ou por falta d'amor ou falta d'arte ;
sê para sempre lida
nas portuguesas glórias,
qu' em ti a Apolo honra darão, e a Marte.

25 A mim pequena parte


cabe inda do alto lume
igual ao canto: o brando Amor só sigo,
levado do costume.
Mas inda em algüa rarte
30 - Ah, Ferreira - dirão-, da língua amigo!

107
LIVRO I DAS ODES

Aos Príncipes D. João e D. Joana

Príncipes nossos, nosso bem, e glória,


esperança dos céus, prazer do mundo,
nascidos um para outro, por Deus dados
ao ceptro ocidental, e do Oriente:
5 vivei feiices, pios, vencedores
de novos mundos. Novos mares se abram,
novas minas pareçam, novas terras . (f. 30)
De troféus, e despojos carregados,
de vitórias famosas , e bandeiras,
10 a bárbaros tomadas e sujeitas
à vossa, qu' é de Cristo, tomem sempre
os vossos capitães, que o mundo teme,
coroados de louro, com colares,
com ceptros, ricas púrpuras, e trunfas
15 dadas a vossos nomes em tributo.

Vivei feiices, pios, vencedores,


em ouro escritos sejam vossos nomes,
em cedro, em diamante, em todo mundo.
Novas estátuas se ergam com letreiros
20 dinos de vós, e vós tão dinos deles,
que igual espanto sempre, e crédito achem,
que suspirem, em os vendo, os mais famosos
Reis e Emperadores que vierem;
como fez Alexandre c'o de Aquiles,
25 como César também c' o de Alexandre,
como vós suspirais polos que vedes
erguer com tanto espanto a vossos pais.

Vivei feiices, pios, vencedores,


mais que o grande Alexandre, Júlio, Augusto,
30 mais que os passados Reis, vossos avós,
mais que os presentes Reis, de que sois filhos,
que o mundo tanto teme, e honra, e ama, (f. 30vº)
como cousas divinas por Deus dadas .
Conservai vós seus nomes, e estendei-os,
35 se mais há qu' estender do que eles fazem;
conservai-os, que nisso fareis muito.

108
LIVRO I DAS ODES

Vivei feiices, pios, vencedores ,


creça a terra, e s' estenda, que pisardes .
Creçam, quanto mais derdes, os tesouros .
40 A vós se venham todos, em vós achem
remédio a suas vidas, e suas honras.
A vós se venham partos, venham citas
de sua vontade própria sojeitar-se
a vosso jugo; a vós mais servir queiram
45 que ser servidos d'outros, e adorados.

Vivei feiices, pios, vencedores,


deixai-nos de vós vossas semelhanças
nos rostos, nos espritos, nas grandezas,
por que neles vejamos a vós mesmos,
50 assi como em vós vemos vossos pais,
que, despois d'enfadados cá da terra
(que deles ficará tão saudosa),
sobindo para os céus vos deixarão
o mundo governando, e triunfando.

55 Vivei feiices, pios, vencedores.


estrelas sejais ambos lá no céu,
estrelas das mais lúcidas, e claras, (f. 31)
despois que cá deixardes este mundo.
em que não cabereis, por mor que seja.
60 Mas não vos pese de entre nós viverdes
muitos anos e muitos por nossa honra,
pois tendes lá tão certos os assentos
nos altos céus, como estes cá da terra,
Príncipes nossos, nosso bem e glória.

AD. João d'Lancastro, filho do Duque de Aveiro

Porque tão cruelmente,


meu João humaníssimo, sem culpa
tua te afliges tanto?
E porque esse inocente
5 peito, que de nenhum vício te culpa,
tão puro, casto, e santo,

109
LIVRO I DAS ODES

com tristes pensamentos,


que essa tu'alma branda estão roendo,
em tanto dano meu
10 mal tratas? Tais tormentos
deixa a quem com razão está temendo
algum grande erro seu. (f. 3lvº)

Não teme, não espera,


não pende da fortuna ou vãos cuidados
15 a consciência pura,
e assi não desespera
de chegar aos bons dias esperados
tão leda, e tão segura,

que, o mundo desprezando,


20 consigo se enriquece, e mais descansa,
de si tão satisfeita,
que em si se está prezando,
de desprezar o por que o mundo cansa,
de ver que ela a direita

25 via seguindo vai,


a virtude levando só por guia.
Não torce, não duvida,
jamais dela se sai,
por mais qu' o mundo dela se desvia.
30 À coroa devida

voando, que guardada


nos céus lhe está, da terra se levanta.
Tem sempre o que deseja
com não ter nunca nada.
35 Pisa a fortuna, nada a vence, e espanta,
que por forte que seja,

falsa deosa, e tirana (f. 32)


(segundo a fez a cega Antiguidade),
que vai contra a prudência,
40 em que lhe empece, ou dana?
Falso poder, e falsa divindade
nascida da imprudência

daquele povo errado


que a qualquer apetito mau, injusto

110
LIVRO I DAS ODES

45 logo um deus levantavam,


só pera seu pecado
ficar honesto, desculpado, e justo.
Aqueles adoravam

os apetites seus.
50 Ditosos nós, que tão alto subimos,
que nos céus um tesouro
temos, qual esses teus
olhos, bom João, vem. Após este imos,
tu de palma, e de louro

55 com razão coroado,


eu da humilde e sempre verde hera.
Seguindo tuas pisadas
nas nuvens levantado
assi serei, senhor. Descansa, e espera.
60 Já chegam as douradas

horas, que te esperando


estiveram tégora; e vem correndo (f. 32v 0 )
para teu bem, e glória.
Por ti só vem chamando,
65 aqueles claros títulos trazendo
por que tua memória
no mundo eternamente irá vivendo.

Aos Reis cristãos

Onde, onde assi cruéis


correis tão furiosos,
não contra os infiéis
bárbaros poderosos,
5 turcos de nossos roubos gloriosos?

Não pera a mal perdida


cabeça do Oriente
nos ser restituída
tão pia e cristãmente,
10 roubo a vós feio, e rico à turca gente;

111
LIVRO I DAS ODES

não pera a Casa Santa,


Santa Terra pisada
dos infiéis com tanta
afronta vossa, armada
15 a mão vos vejo, nem bandeira alçada; (f. 33)

nem pera em fogo arder


desd'o chão té as ameias
Meca, e Cairo, e se ver
trazido em mil cadeias
20 em triunfo o seu Rei com nossas preias.

Ah, cegos, contra vós


vos leva cruel furor!
Ah, que fartando em nós
e em vosso sangue o ardor
25 que o imigo tem, fazei-lo vencedor.

Vós armas, vós lhe dais


ao covarde ousadia.
Enquanto vos matais,
eis Rodes, eis Hungria
30 em sangue, em fogo, em nova tirania.

Paz santa, dos céus dada


por vida só, e bem nosso,
como tão desprezada
desse injusto ódio vosso,
35 Reis cristãos, é? Cruéis chamar-vos posso.

Nunca se viu fereza


a esta que usais igual,
armados de crueza. (f. 33v 0 )
Um ao outro animal
40 da mesma natureza não faz mal.

Tomai, tomai, ó Reis,


à paz; tende-vos ora;
olhai-vos, e vereis
com quanta razão chora
45 a Cristandade a paz, que lançais fora.

112
LIVRO I DAS ODES

A D. Afonso de Castel Branco

Fuge o vulgo profano,


vai com descustumada
e leve pena, Afonso, pelo ar claro,
deixando desprezada
5 a inveja, que em seu dano
perseguir o melhor tenta, e mais raro.

Esprito às Musas caro,


já te vejo ir voando,
em nova forma muito mor que humana
1O novas penas criando,
livre do baixo, e caro
peso da terra, qu' o esprito dana.

Quão baixamente engana (f. 34)


a ignorância cega!
15 Como por cima dela o esprito voa
que àquilo só se emprega
a que a gente profana
não chega, e sempre vive, e sempre soa!

A soberba coroa
20 dos Reis, que medo e espanto
põe ao sogeito povo, que os adora!
Mas quanto império, tanto
em má fortuna, ou boa,
mal seguro tremendo está cada hora.

25 Não descansa, não mora


santa felicidade
em torres, em tesouros, em grandezas.
Errada vaidade!
Isso bens são de fora ;
30 nosso só é o saber, que tanto prezas.

Tudo ai são pobrezas


num ânimo contente,
que mil mundos despreza, e só deseja
deixar à sua gente,

113
LIVRO I DAS ODES

35 por honra e por riquezas,


saber, e vida livre de ódio, e inveja. (f. 34v 0 )

Est ' ama, este só seja


teu fim, teu só cuidado,
Afonso meu, que novo esprito guia
40 de Apolo ao seu sagrado
monte, donde inda eu veja
correr por ti o licor qu' antes corria.

,\ ,ia nau d'armada em que ia seu irmão Garcia Fróis

Assi a poderosa
deosa de Chipre, e os dous irmãos de Helena,
claras estrelas, e o grã rei dos ventos,
segura nau, e ditosa,
5 te levem, e te tragam sempre com pequena
tardança aos olhos que te esperam atentos;

que meu irmão, metade


da minha alma, que como encomendado
a ti deves, nos tomes vivo, e são
1O do fogo, e tempestade
a que se aventurou c'o esprito ousado.
Vença à dura fortuna a boa tenção.

Quem cometeu primeiro (f. 35)


ao bravo mar num fraco pau a vida
15 de duro enzinho, ou tresdobrado ferro
tinha o peito, ou ligeiro
juízo, ou sua alma lh'era aborrecida,
dino de morte cruel no seu mesmo erro.

Esprito furioso
20 que não temeu o pego alto revolvido
(entregue aos ventos, posto todo em sorte)
do sempre tempestoso
Áfrico, nem os vaus cegos, e o temido
Cita infamado já com tanta morte!

114
LIVRO I DAS ODES

25 A que mal houve medo


quem os monstros no mar, que vão nadando,
com secos olhos viu? Quem o céu cuberto
de triste noite, e quedo
sem defensão, c' o corpo só esperando
30 está a morte cruel, que tem tão perto?

Se Deus assi apartou


com suma providência o mar da terra,
que a nós, os homens, deu por natureza,
como houve homem que ousou
35 abrir por mar caminho mais a guerra
qu' a paz, e a morte mais, roubo, e crueza? (f. 35v0 )

Que cousas não cometes,


ousado esprito humano, em mar, e em fogo
contra ti só diligente, e ingenhoso?
40 Que já te não prometes,
des qu' o medo perdeste à morte, e em jogo
tens o que de si foi sempre espantoso?

Um o céu cometeu;
outro o ar vão exprimentou com penas
45 não dadas a homem; outro o mar reparte
que por força rompeu.
Senhor, que tudo vês, que tudo ordenas,
pera a Ti só chegarmos dá-nos arte.

A Manuel de Sampaio

Sampaio, tu lá só
de mim estás, não das Musas, não do santo,
fresco, são, e brando ar que as Graças criam,
nessa feiice terra
5 regada da torrente graciosa
dum novo Tibre, ou Pó,
que nova glória e espanto
ao grande oceano leva: claro rio,
manso Mondego meu, onde soíam (f. 36)

115
LIVRO I DAS ODES

10 meus olhos d1: ua Serra


ver com desprezo o mundo ; saudosa
água, que tão soberba vai correndo,
tomando senhorio
dos campos, e das águas, e dos mares,
15 que ledos dentro em si a vão recolhendo.

Doces, sacros lugares


de brancas ninfas, músicos pastores
habitas; verdes heras, verdes louros,
vales sombrios, e fontes
20 doces, puras, e frias, que manando
estão lágrimas tristes
dos doces meus amores .
Isto tens lá, Sampaio. Eu cá que tenho?
Lá, amigo, te deixei; lá, meus tesouros .
25 Ah, secos, e altos montes,
negros fumos, maus ventos, que turvando
meus bons intentos andam! Se sentistes,
imigos meus (lhes digo), porque a vida
desejo, em qu' a sostenho,
30 deixai-me o pensamento, que descanse
no que deseja, qu' em ai é perdida.

Que vejo em que não canse?


Afronta esta alma triste em tanto aperto. (f. 36v 0 )
Soberbas portas, pródigas larguezas,
35 vãos faustos, vãs palavras,
i-vos longe de mim, i tristes ventos.
Fique eu de vós seguro.
O qu' em desastre e acerto
(ah, olhos cegos, corações errados!)
40 anda, seguis? Isto chamais riquezas?
Ditoso tu, que lavras
tua terra c'os teus bois e os pensamentos
de boa esperança enches. Peito puro,
santa alma, língua sã, mãos inocentes
45 desejo; os mais estados,
Fortuna, dá a quem queres. Eu só quero
viver seguro e livre entre os contentes.

36: PL y tristes

116
LIVRO I DAS ODES

Isto desejo, e espero.


Quem me desta riqueza enriquecesse!
50 Quem visse já o tão claro, e alvo dia
em que assi repousasse
este esprito inquieto, que pendendo
está de seu perigo!
Ó céus, quem merecesse
55 pender sempre de vós, sem mais do mundo
querer que vida honesta! Esta queria,
meu Sampaio, esta achasse. (f. 37)
Santá, rústica vida, aborrecendo
t'estão. Pois eu te busco, pois te sigo,
60 deixa os que te desprezam, vem-te a mim .
Contigo lá num fundo
vale vivirei eu livre, e contente.
Leda a vida terei, seguro o fim .

A D. António de Vasconcelos

Té quando assi, cruel, o peito duro,


das nove irmãs morada,
cerrarás, como ingrato ao dom divino?
Té quando assi negada
5 do Iiquor doce, e puro
nos será a cópia, e parte igual devida
do lume, de que tu foste assi dino?
Não te foi dada a vida,
não esse esprito aceso em alto fogo,
10 para ti só; nosso é, o nosso queremos.
Vença já o justo rogo
à dura força, António, e restituída
nos seja parte já do que em ti temos.

Eu digo o canto teu. eu digo a lira (f. 37v 0 )


15 que te dá o louro Apolo
para honra sua, e para glória nossa,
que dum ao outro pólo
soará. Já te inspira
novo furor: ah, solta o doce canto.

11 7
LIVRO I DAS ODES

20 contra o qual nunca inveja, ou tempo possa.


Tardas, cruel, e entanto
altos Reis, altas armas perdem nome.
Encruece-se o Amor; quem há qu' o abrande?
Quem há qu' a cargo tome
25 as vitórias de fama, e eterno espanto
dos Reis passados, quais Deus sempre mande?

Altas vitórias, em que tanta parte


tem inda os tão chegados
teus avós ao real sangue, às altas Quinas,
30 de louro coroados
por mão do bravo Marte;
ah, porque lhes serão por ti negadas
as altas rimas de seus nomes dinas?
As bandeiras tomadas
35 a Reis vencidos em tão justas guerras,
aquelas fortes mãos que coroavam
Reis grandes em suas terras
por ferro, e fogo de tão longe entradas, (f. 38)
a ti, seu sangue, já s'encomendavam.

40 Mas enquanto tua sorte te não chama


das armas à dureza
(inda tempo virá), com as Musas paga
à antiga fortaleza
dos teus, à imortal fama
45 que por exemplo ao mundo sempre viva
contra a morte cruel, que tudo apaga.
Outr'hora a chama viva
qu' o cego moço, onde quer, acende,
com teus suaves versos nos abranda,
50 e a que nos tanto ofende
cruel aljaba sua lhe cativa.
Isto te pede Apolo, isto te manda.

Enquanto a leda, e branda idade dura,


com seus lírios, e flores,
55 com a cor viva, com o fogo inteiro;
e enquanto dos amores
reina doce brandura,
livre da neve que seu fogo esfria
e toma o ledo Abril triste Janeiro,

118
LIVRO I DAS ODES

60 ao som da fonte fria,


à doce sombra do alto pinho, ou faia, (f. 38v 0 )
soe na branca cana a branda Flora.
Ponha-se o sol ou saia,
não cesse o canto que já mágoa cria
65 no duro Amor, que já de brando chora.

11 9
LIVRO II DAS ODES

Ao Senhor D. Duarte, filho do !Jante D. Duarte

Serás escrito, e em alto som cantado


da grave, e doce lira
d' Andrade, pera ti só dos céus dado,
que à glória, a que já aspira,
5 igual favor lhe inspira
teu ânimo, Duarte,
planta real, honra de Apolo, e Marte.

Aos teus altos troféus, que levantados


com tanto espanto, e glória
10 já vejo, aos triunfais arcos ornados
das presas da vitória,
alta e imortal memória (f. 39)
dará, vivo na terra
deixando teu grã nome em paz, e em guerra.

15 Não voa meu esprito a tanta alteza,


não ousa vergonhosa
a baixa lira minha ante a grandeza
daquela tão famosa
trombeta gloriosa,
20 que já ouço soar,
ou na africana terra, ou no seu mar.

Quem do sangue infiel a grã corrente


de que se já alagando
o largo campo está, quem dinamente
25 dirá o fogo, que alçando
se vai aos céus, deixando
em cinza, e pó desfeitos
muros, misquitas, armas, feros peitos?

121
LIVRO li DAS ODES

Enquanto não tento, e veda Apolo


30 que os tão altos louvores
do grande Rei, senhor de pólo a pólo,
teu tio, dos maiores
o mor, e os teus, menores
não faça, escurecendo
35 com baixo canto o qu ' outro irá erguendo; (f. 39v 0 )

vai tu (isto ousarei pedir-te) dando


novo favor, e vida
às altas Musas, que te estão chamando.
Comece ser sentida
40 de ti a voz, em que erguida
será tua clara fama,
que todo esprito já d'amor inflama.

A Pero d'Andrade Caminha

Fogem, fogem ligeiros


nossos dias, e anos,
Andrade. Que bem vive, que mal dura?
O que foi dos primeiros,
5 será dos derradeiros.
Iguais aos bens os danos,
todos vão dar em triste sepultura.

Toma nova verdura,


toma verão, e inverno;
10 claro após chuva o sol, pós noite o dia.
Ah, nossa lei tão dura!
Despois da noite escura
do mortal sono eterno,
jamais toma esta luz qu' a vida via. (f. 40)

15 Triste quem se confia


em cegas esperanças
que no mor nosso bem nos desenganam.
Quem nome de alegria
cá achou, como sabia

PL 13: mortal 18: alegrias

122
LIVRO li DAS ODES

20 haver medo às mudanças


cruéis que tanto podem, tanto danam?

A fonte donde manam


de nosso erro os perigos
qu' é, senão próprio amor mal conselhado?
25 Desejos vãos, que enganam,
e a pura alma profanam,
e entregam a seus imigos,
donde tarde vem ser seu mal chorado.

Quanto mundo é passado!


30 Soberbas monarquias
de Ásia, de Grécia, e Roma, impérios tantos
que o mundo sogigado
tinham, como forçado,
vês em quão poucos dias
35 caíram suas grandezas, seus espantos?

Que ficam, senão prantos,


e saudades tristes (f. 40v 0 )
daquelas cousas grandes que acabaram?
Quantos triunfos, quantos
40 ledos, e doces cantos,
passados tempos, vistes!
Que, senão mágoa, e espanto nos deixaram?

Ai, quanto em vão choraram,


após a dura morte,
45 tão pouco há, nossos olhos saudosos!
Quanto bem nos roubaram,
mas que choros bastaram
mudar a dura sorte
dos cruéis fados, tristes, invejosos?

50 Espritos gloriosos
que desta baixa terra
fostes morar aos céus, em clara alteza,
ditosos vós, ditosos,
que já vitoriosos
55 de tão mísera guerra,
despistes esta nossa vil baixeza.

123
LIVRO li DAS ODES

Cesse, pois, a tri steza,


cesse já a saudade
baixa; alça o esprito aos céus, pera que vejas (f. 41)
60 com que nova grandeza
vestida a fortaleza
já d'imortalidade
de teu irmão está qu' em vão desejas .

A Francisco de Sá de Meneses

Não mostra em toda parte


igualmente o dourado
raio o sol; nem igual verão, e inverno,
nem lume igual reparte
5 daquele fogo eterno
Deus do céu cá nas almas inspirado.

Ora um à primeira hora


triste Saturno viu,
ora outro brando Jove, ou Febo claro.
10 Neste a vã lua mora;
destoutro o esprito raro
só glória, outro brando ócio só seguiu.

Eis um à pátria chama


triste e cruel, chorada
15 no mais alto latino, e grego canto;
eis outro glória, e fama (f. 4lv 0 )
deixou, e eterno espanto
ao mundo em sua memória tão cantada.

Eu tomo só o intento
20 da piadosa gente,
que honra justa quis dar ao claro esprito.
Não fazem anos cento,
mas o alto feito, ou dito,
um homem de mil homens diferente.

25 O raio, que correndo


foi sempre com vitória,

124
LIVRO li DAS ODES

enquanto gente achou, ou achou terra,


começava ir vivendo,
e já fim dado à guerra
30 do mundo tinha, e cheia a clara história.

Olha em quão verdes anos,


em que tempo, a que imigo
foi, e tomou tão famoso o Africano,
só fim dos cruéis danos,
35 qu' o grã povo romano
padecia do ódio cruel, e antigo.

O sucessor de Júlio,
que três vezes fechou (f. 42)
de Jano o templo, em paz de todo o mundo,
40 em que idade o grã Túlio,
com seu saber profundo,
por príncipe do mundo o nomeou ?

Ah tu, Francisco, viste


a luz, que s'acendia
45 naquele real esprito, que criaste,
por que inda tua alma triste
suspira. Ali provaste
quão cedo o fogo a escuridão vencia.

E tu quanto há que mostras


50 (vencendo o esprito a idade)
tão altas diferenças entre tantos!
Onde às tão claras mostras
se acharão novos cantos,
qu' em parte igualar possam a verdade?

55 Quantos outros gastaram


no mundo escurecidos
mais anos, sem saber, sem fortaleza!
Em vivos s'enterraram
em infâmia, e baixeza,
60 nem dos qu' então viviam conhecidos. (f. 42v 0 )

Té quando a injusta lei ,


té quando o mau costume
julgará pelas folhas, não no, fruitos?
fmite a Deus o Rei .

125
LIVRO II DAS ODES

65 Já de cem anos muitos


moços foram, e mil moços deram lume.

A Afonso Vaz Caminha, na Índia

Já, generoso Afonso, já chegaste


àquela parte, a que de cá fugia
teu alto esprito, após a luz que via
de alta virtude, que tu tanto amaste.
5 Favorável o céu, mar, vento achaste.
Teu peito sempre igual, e sempre inteiro,
posto no verdadeiro
caminho d'alta glória e d'alta fama
vejo arder todo em gloriosa chama.

10 Vai ao esprito, vai c'o esprito ousado


onde te chama a duvidosa sorte.
Triunfa da fortuna, e rouba à morte
o nome que dos céus te será dado.
De santo zelo, e santa força armado,
15 pondo os olhos no céu, mãos nos imigos, (f. 43)
que medos, que perigos
contra ti poderão? Olha o bom pai,
que teu braço e teu pé guiando vai .

Onde os olhos porás, que os gloriosos


20 sinais do seu sangue inda não vás vendo?
Que terra irás pisando, ou mar correndo,
que os fortes braços vissem ociosos?
Entre os feitos, e nomes lá famosos
o animoso João verás escrito
25 com aquele vivo esprito,
com qu' o teu t'arma e anima, e co'a luz clara
do céu, ond' está, teu bom caminho aclara.

- Aprende - diz - de mim, filho, a virtude,


e os honrosos trabalhos d' alta glória,

PL 5:Fouorauel

126
LIVRO II DAS ODES

30 e do teu claro sangue assi a memória


conserva, que a não gaste o tempo, ou mude.
A poderosa mão de Deus ajude
a tua, corno a minha nessa idade,
com que pola verdade
35 da santa fé , de sangue e pó cuberto,
sejas medo ao irnigo ao longe, e ao perto.

Isto te diz teu pai. Tu, ouve, e guarda


ness'ânirno constante, ó bem nascido!
Mas eis te vejo arder c' o esprito erguido
40 assi ao trabalho, que já crês que tarda.
Ah, vence esse alvoroço, e o tempo aguarda
da boa ocasião: às vezes dana
o muito esforço, e engana
confiado nas forças a esperança,
45 que seguida se quer com temperança.

Ajuda Deus a boa fortaleza


de conselho, e razão acompanhada.
A força sobre si alevantada
despreza irado, e toma em vil fraqueza .
50 Ousou tentar a baixa natureza
os altos céus: eis torres, eis gigantes,
tão espantosos dantes,
sorvidos num momento, e a mesma terra,
sobre quem assi se alçavam, em si os enterra.

55 Do espantoso tigre, e do !ião


as grandes forças vence a manha, e arte.
Não davam sempre as forças ao grã Marte
vitórias, nem o ardor do coração;
próprias armas dos homens são razão.
60 Sirvam os membros ao corpo, ele à prudência; (f. 44 ( PL 42))
a santa obediência,
assi fundada, e ao capitão devida,
será do alto céu favorecida.

Vença o conselho à força, e o bom desejo


65 da doce fama obedeça à justiça,
e ant'a lustrosa honra a vil cobiça
fuja, de todo bem desvio, e pejo.

PL 64: bem

127
LIVRO li DAS ODES

Mas em que me detenho? Eu não te vejo,


ó meu Caminha, firme em tua carreira
70 correr à verdadeira
estrada, que te vai teu esprito abrindo,
teus bons avós, e teu bom pai seguindo?

A António de Sá de Meneses

Eis nos toma a nascer o ano fermoso,


Zéfiro brando, e doce primavera,
eis o campo cheiroso,
eis cinge o verde louro já a nova hera.
5 Já do ar caído gera
o cristalino orvalho ervas, e flores;
as Graças, e os Amores
coroados de alegria, (f. 44v0)
em doce companhia
10 de ninfas e pastores, ao som brando
doces versos de amor vão revezando.

Após, a branda deosa do terceiro


céu, que triunfando vai de Apolo, e Marte,
e entre eles o frecheiro
15 o seu doce fogo, onde quer, reparte.
Fogem de toda parte
nuvens; a neve ao sol té então dura
se converte em brandura,
e d'alta e fria serra
20 caindo, rega a terra
água já clara, a cujo som adormece
toda fera serpente, e o mirto crece.

Renasce o mundo, e toma à forma nova


do seu dia primeiro. O sol mais puro
25 sua luz nos renova,
e afugentando vai o inverno escuro.
O monte calvo, e duro,
o vale dantes triste, e turvo rio,
ar tempestoso, e frio,

72: bens

128
LIVRO li DAS ODES

30 os tornam graciosos
aqueles amorosos (f. 45)
olhos de Vénus, faces de Cupido,
criando em toda parte um Ch ipre, um Gnido.

Já deixa o fogo o lavrador, já o gado


-35 da longa prisão solto corre, e salta,
roendo o verde prado,
nem água clara, nem verdura falta.
Eis tira da árvore alta
ou Progne com seu ninho, ou Filomena
40 Títiro, e inda sem pena
cria a tenra ave, ledo,
por esperar que cedo,
do seu fermoso dom Clóris vencida,
não sofrerá ser dele em vão seguida.

45 Agora n!s também nos coroemos,


ó claro António, de hera, e mirto, e louro,
e mil odes cantemos
à branda Vénus, mil a Apolo louro,
que com seu raio de ouro
50 a escura nuvem do teu peito aclara.
Ah, quanto suspirara!
Ah, como desfazendo
em tenro pranto, e erguendo
os olhos a ti, Febo, Nise triste (f. 45v 0 )
55 chamar "ó sol, ó sol" com mágoa ouviste!

Olho claro do céu, vida do mundo,


luz que a lua. e estrelas alumias,
ó mm .:dor segundo
de quantas cousas cá na terra crias,
60 crespo Apolo, que os dias
t:-azes formosos, e as douradas horas:
lá dess' alto, onde moras,
com tua luz clara, e santa,
que o mau Saturno espanta,
65 torna a António, e conserva a luz primeira,
do puro sangue a cor, e a força inteira.

Os mais brandos liquores, suaves sumos


das mais saudáveis plantas busca, e col he
os mais cheirosos fumos,

129
LIVRO li DAS ODES

70 que Arábia em si, em si Sabá, recolhe;


faze que, onde quer que olhe
o teu bom Sá, prazer, e riso, e canto
veja. Ah, Febo, a quem tanto
teu claro lume adora,
75 e ao Douro, que inda chora
do seu passado medo a viva mágoa,
não negues a um sã vida, a outro clara água. (f. 46)

A vida foge como ao sol a sombra.


Quem poder viva, enquanto üa hora tarda,
80 hora que espanta, e assomhra.
nem escusa recebe, ou ponto aguarda.
Quem sua vida guarda
para outro dia? Quem no leve vento
faz firme fundamento?
85 Anda o céu, volve o ano,
mostrando o desengano
desta vida inconstante, e enfim mortal,
de bens escassa, pródiga do mal.

Ó meu bom Sá, enquanto nos defende


90 a vida breve longas esperanças,
tu ledo o esprito estende
por honestos prazeres, sãs lembranças,
livre das vãs mudanças
em que andam os mais em sorte ao vento postos,
95 c' os inconstantes rostos.
Lá sempre um, sempre inteiro,
seguindo o verdadeiro
caminho, que o alto céu te chama, e guia,
contente vive o ano, o mês, e o dia. (f. 46vº)

PL 72: bem

130
LIVRO DAS ELEGIAS

A Francisco de Sá de Meneses, na morte do Príncipe D. João,


a quem serviu de aio, e camareiro-mor

Tristíssimo Francisco, quem podesse


por arte, ou por ingenho alcançar tanto,
que meio a tuas lágrimas posesse !

Quem já fim a teu justo, e triste pranto


5 pedisse, cru seria. Chora, triste,
justo é teu choro, e meu desejo santo.

Acende mais o fogo, quem resiste


na mor chama. De cá te vejo arder,
despois qu' o nosso lume morto viste.

1O Aquela real planta, que crescer


com tanta fermosura começava,
prometendo da terra aos céus s'erguer,

aquela flor fermosa, qu' alegrava


tantos olhos, e almas, que tua mão
15 com tanta diligência nos criava,

colheram-ta ante tempo. Já no chão


cortada, e seca jaz; vá-la seguindo
co 'a alma e c'o dese_io, triste, em vão.

Vejo-te ir em suspiros consumindo, (f. 47)


20 aos céus queixoso, porque te apagaram
a clara luz, que se ia descubrindo,

18: PL co alma

131
ELEGIAS

porque tão cruelmente te cortaram


teu bem, tua honra, e tantas esperanças,
quantas já para sempre nos faltaram .

25 - Como houve tempo para tais mudanças


- dizes - ó céu, tal foi? E assi pasmado
com lágrimas acordas, e te lanças.

Ah quão triste te é tudo, quão pesado!


Tu mesmo a ti te trazes bem assi,
30 como por força um grã peso arrastado.
Deixa o pranto, Francisco, toma a ti,
fala contigo só, vai-te buscando,
tu a ti mesmo és necessário aqui .
Olha quantos teu mal estão chorando,
35 olha o mundo quão triste e saudoso
fica do com que tanto se ia honrando.
Quanto vemos, quão triste, e quão queixoso
da morte está! Mas ah, que inda que seja
choroso a todos, é a ti mais choroso.
40 Por mais que o mar, a terra, o céu se veja
chorar aquele Príncipe, tu mais
choras, mais o ama tua alma, mais deseja.

Esses suspiros teus, esses teus ais,


tão justos, tão devidos, cá me soam (f. 47vº)
45 c'o som das tristes lágrimas iguais.

As Musas de acipreste se coroam


e toda árvore triste; deixam louro
e, ao som desse teu pranto, o seu entoam.
Suas capelas, seu cabelo d'ouro
50 arrancam, e desfazem; tu as guias,
dizendo: - Perdeu o mundo o 'Seu tesouro.

Ah, que tu mais que todos conhecias


aquele grã João de ti criado;
novo lume, nova alma nele vias.

55 Pois tanto com razão será chorado


mais de ti , quanto ao mundo prometendo
dele mais ias, a que foi roubado.

132
ELEGIAS

Que grandezas não estávamos já crendo


de seu esprito, e teu, qu ' o informavas?
60 Que fortuna, que guerra ou mal temendo?

Polo público bem te desvelavas,


grã Francisco; tuas horas, e tua vida
em nossa vida, e honra só gastavas.

Ai , tanta diligência tão perdida


65 de nós, que tu lá levas, real esprito,
aos céus, onde melhor é conhecida!

Igual ao pensamento era teu dito,


igual ao dito a obra; se viveras,
quanto nos cá de ti ficara escrito! (f. 48)

70 Ao menos, Reino triste, conheceras


a indústria de Francisco em te criar
príncipe, com que mal nenhum temeras.

Francisco, eleito só para ensinar


um príncipe a ser príncipe, tão bem
75 o deixaram saber por ti reinar.

Dum bem fora pendendo outro mor bem.


que já s'ia mostrando, mas a morte
atalhou : sempre armada ao melhor vem.

Isto teu peito generoso, e forte


80 sente só, e chora: o que de ti sabias
te faz mais dura a dor da triste sorte.

Conheceste a ti bem e conhecias


a nova ideia de Rei, por que esperavas
conforme a teu esprito, a que a fazias .

85 Claros sinais de tanto bem nos davas,


Príncipe santo, todos em ti víamos
quão bem aquele esprito em ti passavas.

Os olhos, de que nós todos pendíamos,


pendiam de Francisco que, guiando-
90 -tos, ia sempre ao bem que nós queríamos,

133
ELEGIAS

esse teu alto esprito levantando


da terra tanto aos céus, té que subiu
lá pera sempre, a terra desprezando.

Quem em tão breve vida tanta viu? (f. 48v 0 )


95 Quem em tão poucos dias tantos anos?
Que esprito igual de um corpo tal saiu?

Ditoso tu, que livre dos enganos


do mundo, e da fortuna, limpo, e puro
aos céus voaste, sem provar seus danos.

100 Deixaste, clara estrela, o triste, e escuro


ar de que cá vivias. Quão luzente
entre os coros dos anjos te figuro!

Que baixa cousa te parece a gente!


Que pouquidade o mundo! Vês o rei
105 quão pouco é doutros homens diferente.

Qual jamais se livrou da geral lei?


Veja, quem o não crer, tua morte agora.
De que outra morte já m'espantarei?

Príncipe glorioso, não te chora


110 a terra, não, Francisco. Só choramos
quanto em ti nos roubou üa triste hora.

Se contr' essa tua glória desejamos


ver-te outra vez na terra, erro grande é.
Perdoa-nos, Senhor: com amor erramos.

115 E tu, Francisco, em quem mais certa fé


ficou do que sabias, nos desculpa.
Nos céus, a qu ' o guiaste, reine e esté.

Tua é sua glória; nossa será a culpa


se lha invejarmos. D'amor é o desejo, (f. 49)
120 mas tal amor não quer, dos céus o culpa.

Vive tu, grã Francisco, qu' eu o vejo


dos céus encomendar-te o seu tesouro,
que cá deixou, e eu em tuas mãos desejo.

134
ELEGIAS

Não de pedras vãs é, não de baixo ouro,


125 mas outro esprito seu, de que tremendo
já está o bárbaro turco, o índio, o mouro:

felicíssimo parto, em que vivendo


estamos, vida nossa, que t'está
o reino todo já em tuas mãos metendo.

130 Por tua mão, Francisco, crescerá


felicemente. Deus, que no-lo deu,
igual ao santo pai por ti o fará.

Aqui repousará o esprito teu;


quanto viste em sinais, e em figura
135 no pai, Deus quis guardar a este dom seu,

augusto Sebastião, qu' alta escritura


encherá, começando por tua guia
obedecer aos céus, a ele a ventura.

Enxuguem-se teus olhos; já se cria


140 a quem tu serás Néstor, quem da terra
tarde aos céus subirá, luz e alegria
do mundo, grande em paz, e grande em guerra. (f. 49v 0 )

2
Na morte de Diogo de Betancor

Darei choros, ou cantos à tua morte,


meu Betancor? À tua verde idade
direi ditosa, ou triste a dura sorte?

Lágrimas pede minha saudade,


5 e aquele amor tão vivo, inteiro, e puro,
que fez de ti, e de mim üa só vontade.

Como será meu coração tão duro


que te não chame, que te não suspire,
pois sem ti acho todo este ar escuro?

IO Que cousa pode vir, que mude, ou tire


a lembrança de ti, meu doce amigo?
Que cousa a que já ledo os olhos vire ?

10: PL pôde

135
ELEGIAS

Chorarei eu, e chorarão comigo


Musas, Graças, brandura, e cortesia,
15 e tudo o mais que se nos foi contigo.

Aquela alta esperança, que crescia


cada vez mais do teu divino esprito,
como nos enganou nossa alegria!

Tu alçaras ao longe um alto grito


20 de gloriosa fama ; em toda a parte
se cantara teu nome, e teu escrito. (f. 50)

Aquele raro ingenho, de tanta arte,


tanto estudo, e doutrina culto, e ornado,
que versos dera a Amor, que canto a Marte!

25 Aquele raro ingenho tão criado


no vosso seio dos primeiros dias
por vós, ó Musas, fora coroado.

Já crescias, nova hera. já crescias,


novo laureiro, pera dar coroa
30 a quem tão justamente te devias,

quem a Mântua fizera igual Lisboa,


quem a corrente de Arno dera ao Tejo,
e a doce frauta qu' em Arcádia soa!

Com que doce facúndia, e bom despejo


35 soara a viva voz na verdadeira
doutrina, a que aspirava seu desejo!

Que caminho tão chão, que tal carreira


ias, meu Betancor, ledo correndo,
s'a morte não correra mais ligeira!

40 Foi sempre a clara luz resplandecendo


do fogo em ti aceso, alto, e divino,
que tantos bens nos ia prometendo.

Esprito raro, de mil anos dino,


todo de Deus e de saber composto,
45 julgaste o meu amor do teu indino?

136
ELEGIAS

Levaste-me da vida o doce gosto (f. 50v 0 )


que teu tão brando amor de si me dava.
Fico eu, sem ti, como em deserto posto.

Quanta parte dess'alma tua tomava


50 esta minh ' alma, tanta me falece
da vida que contigo m'alegrava.

Agora em mágoa minha reverdece


o alegre tempo já tão bem vivido,
que tão doces memórias me oferece,

55 quando tão bem cantado, e bem ouvido


era de nós teu verso culto, e brando,
dino de ser em toda parte lido.

Estavam as brandas Ninfas escuitando


do Mondego então ledo, ora saudoso,
60 qu' o seu bom Betancor estão chamando.

Toma, ah toma, bom sprito, ao amoroso


seio das Ninfas, que te tal criaram,
das suas flores, e águas tão mimoso .

Como cruel? Assi em vão t' ornaram


65 dos melhores dões seus? Assi t' alçaste
ingrato c'o qu' em ti entesouraram?

- Ah toma - dizem - qu ' inda não levaste


a coroa devida a essas tuas frontes .
Assi nossos amores desprezaste?

70 Quantos vales pisámos, quantos montes,


meu Betancor, colhendo ervas, e flores! (f. 51)
Quantos rios bebemos, quantas fontes,

ora cantando a vida dos pastores,


que tu amavas tanto, ora escrevendo
75 nos tenros troncos nossos bons amores!

Outr'hora um ouvindo, outro dizendo


aqueles sãos conselhos, bons segredos
com que ií' alma a outra alma estava vendo,

68: PL éssas

137
ELEGIAS

ouvidos só dos céus, e dos penedos,


80 das mansas aves, e das águas claras
que nos ambos banhavam, estando quedos.

Quantas verdades, e simprezas claras


guardareis sempre em vós, bosques sombrios.
Ditoso tempo, se me mais duraras!

85 Enfim ao rio a fonte, ao mar os rios


correm; mas mais ligeiras nossas vidas,
que assi nos pendem de tão fracos fios!

Mas não se dirá nunca que perdidas


foram no mundo tuas breves horas,
90 antes em melhor vida convertidas.

Ditoso tu, meu Betancor, que moras


na eterna vida, na luz sempre clara,
onde o sumo bem sempre vês, adoras!

Quem fora tão ditoso que cortara


95 contigo est'alto mar, fugindo o pego,
e, contigo batendo asas, voara! (f. 5lvº)

Ah que duro deserto e cárcer cego


fugiste, alma ditosa e bem levada
à glória, que eu, chorando, mal te nego.

100 Antes será de mi sempre cantada


a ditosa hora que tão levemente
te passou a essa eterna, alta morada.

De boca em boca irá, de gente em gente


sempre vivo teu nome. E aquele dia
I05 que aos altos céus voaste eternamente
m' encherá de saudade, e de alegria.

A Maio

Vem, Maio de mil ervas, de mil flores


as frontes coroado, e riso, e canto,
com Vénus, com Cupido, c'os Amores.

138
ELEGIAS

Vença o prazer à dor, o riso ao pranto,


5 vá-se longe daqui cuidado duro,
enquanto o ledo mês de Vénus canto.

Eis mais alva a menhã, mais claro, e puro


do sol o raio; eis correm mais fermosas
nuvens, afugentando o ar grosso, e escuro.

10 Sai a branda Diana entre as lumiosas


estrelas tal, qual já ao pastor fermoso
veio pagar mil horas saudosas. (f. 52)

Mar brando, sereno ar, campo cheiroso.


Foge a Tristeza; o Prazer solto voa,
15 o dia mais dourado e vagaroso.

Tecendo as Graças vão nova coroa


de mirto à mãe; ao filho mil espritos,
o fogo resplandece, a aljaba soa.

Mil versos, e mil vozes, e mil gritos,


20 todos de doce amor, e de brandura,
uns s'ouvem, uns nos troncos ficam escritos.

Ali soberba vem a Fermosura,


após ela a Afeição cega, e cativa,
quanto üa mais chorosa, outra mais dura.

25 Ah, manda Amor assi, assi quer que viva


contente a triste do que seu Deus manda:
deseja inda mais dor, pena mais viva.

Mas quanto o moço encruece, a mãe abranda.


Ela a peçonha, e o fogo lhe tempera;
30 assi senhora de mil almas anda.

Ali o Engano em seu mal cego espera


üa hora doce; ali o Encolhimento
sem causa de si mesmo desespera.

Aos olhos vem atado o Pensamento;


35 não voa a mais qu' ao qu' ali tem presente,
e em tanto mal tudo é contentamento.

4: PL a riso

139
ELEGIAS

Em riso, em festa corre a leda gente (f. 52vº )


trás o fermoso fogo em que sempr' arde ;
cada um, quanto mais arde, mais contente.

40 Manda Vénus ao Sol menhã, e tarde


que seus crespos cabelos loure, e estenda,
qu' em vir s'apresse, qu' em se tornar tarde;

ao brando Norte que assopre, e defenda


do ardor da sesta a branda companhia,
45 enquanto alçam de mirto fresca tenda.

Corre por toda parte clara, e fria


água; cai doce sombra do alto louro;
canta toda ave canto d'alegria.

Ela a neve descobre, e solta o ouro;


50 banham-na as Graças na mais clara fonte;
aparece d' Amor rico tesouro.

Caem mil flores da dourada fronte;


arde d' Amor o bosque, arde a alta serra;
aos olhos reverdece o campo, e o monte.

55 Despende Amor seus tiros , nenhum erra,


mil de baixo metal, algum do fino.
Fica de seus despojos cheia a terra,
vencida d' üa molher e d'um minino.

AD. Luís Fernandes de Vasconcelos, vindo da Índia (f. 53)

Claríssimo Luís, a nova vida


por comuns rogos bons cá bem tornado,
fique a fortuna má sempre vencida.

De todos igualmente desejado,


5 alegre a todos vês, e às Musas brandas,
que tu cantas também, de que és cantado.

Enquanto dum naufrágio em outro andas,


das ondas, e dos ventos revolvido,
e lentas esperanças de ti mandas,

140
ELEGIAS

1O outro grego, ou troiano não vencido


dos seus duros trabalhos nos tornaste,
assi inda mais claro, e conhecido.

Da fortuna, e dos ventos triunfaste,


igual àqueles animosos peitos,
15 e, como ouro no fogo, o teu provaste.

Não frias sombras, não os brandos leitos


altos espritos provam; que ociosos
se gastam, e como em cinza estão desfeitos.

Melhor comprados foram, mais custosos.


20 aqueles nomes altos, que inda soam,
dos que virtude, e esforço fez famosos .

Inda entre nós de boca em boca voam


de tanto tempo já os espritos puros;
inda de verdes folhas se coroam.

25 Por duras armas, por trabalhos duros, (f. 53vº)


vários costumes, várias gentes vendo,
tornaram inda erguer fermosos muros.

Ora a fúria do bravo mar rompendo,


ora os lançava a sorte à praia imiga,
30 quanto mores perigos, mais vencendo.

Podes entrar, Luís, na história antiga


de tantos da fortuna vencedores,
que já ao teu alto esprito se sogiga.

Rico vens de trabalhos, e louvores


35 dinos dessa constância inteira, e forte,
rara nos grandes reis, e emperadores.

Mil vezes posto em duvidosa sorte


fizeste, só ajudado do teu esprito,
enganos ilustríssimos à morte.

141
ELEGIAS

40 Serás cantado, pois, serás escrito


entre os claros espritos d'alta fama,
de que inda tanto ouvimos, tanto é dito.

Nova luz deste à gloriosa chama


em que os claros avós teus sempre arderam,
45 que já a teus filhos altamente chama.

Tu, pois os justos fados te volveram


a tantos olhos de ti saudosos
e os honrosos trabalhos fim poseram,

descansa já nos braços amorosos


50 de quantos com amor te suspiravam, (f. 54)
e vive doces dias ociosos.

Por ti as Musas tristes não cantavam.


Novos cantos entoam, novas liras
para a tua leda vinda te guardavam.

55 Deixa as iras de Marte, deixa as iras


do furioso mar, e bravos ventos,
em que mais males viste dos que ouviras.

Quieta agora os altos pensamentos.


Tuas armas pendura. Enxuga as roupas.
60 Logra com paz teus bons contentamentos.
Bem deves à tua vida, se a bem poupas.

A Pero de Andrade Caminha, em resposta doutra sua

Não tinha visto o sol daquele dia


qu' o meu se me eclipsou, deixando escuro
quanto dantes alegre, e claro via,

nem meu esprito, que no golpe duro


5 de todo me caiu, podia alçar-se,
nem achava à sua dor lugar seguro.

I: PL visto sol

142
ELEGIAS

E esta alma, desejosa de soltar-se


deste cárcer cruel, qu ' a tem forçada,
tentava por si mesma desatar-se, (f. 54v 0 )

10 assi lhe ficou viva, assi entalhada,


mais qu' em duro metal, ou em diamante ,
aquela de mim nunca assaz chorada,

quando üa nova luz se pôs diante


dos meus olhos, qual vem a menhã cl ara
15 rompendo as grossas nuvens de levante.

Eu digo aquela doce, aquela rara


melodia do teu verso tão brando,
cujo suave som todo ar aclara.

Àquela luz fermosa olhos alçando,


20 vi novo dia, e sol que com seu raio
a triste noite m' ia afugentando.

E inda provando erguer-me, Andrade, caio;


combate ao fraco esprito a dor antiga.
e como a desafio em campo saio.

25 Mostraste à alma estrada chã, que siga.


Conheço, amigo, minha grã fraqueza,
de todo seu remédio cruel imiga.

Armado tinha o peito de dureza


contra mim mesmo, e contra a poderosa
30 e comum lei da humana natureza,

áspera sempre, e então mais rigurosa


quando um amor de duas almas parte,
contra a que fica menos piadosa.

Andrade, que farei , qu ' a melhor parte (f. 55)


35 de mim perdi? Ai, pera sempre triste,
que cobrá-la não vai já força, ou arte .

Aquele doce fogo em que me viste


contente arder, soberbo do meu fado ,
a que já cantos mil alçar me ouviste;

143
ELEGIAS

40 aquele nó que docemente atado


me tinha em suave jugo, em prisão leda,
tão cruelmente assi me foi cortado'

Quem de tão alto deu tão triste queda,


ficando só por seu remédio a morte?
45 Quem suas justas lágrimas lhe veda,

e qual será um coração tão forte,


antes bárbaro, cru, e adamantino,
que golpe tão cruel não quebre, ou corte?

E pude eu ver, Marília, o teu divino


50 esprito, d'amor todo, e de brandura,
desemparar teu peito dele dino?

E pude eu ver aquela fermosura


dos teus olhos, qu' os ares serenava,
ficar-me assi ante os olhos cega, e escura?

55 E aquela doce voz, que m'encantava,


entre rubis formada, e perlas finas,
qu' os mais furiosos ventos abrandava.

e mil outras, não humanas, mas divinas


graças, assi enterradas num momento,
60 que de mil anos pareciam dinas?

Ah, falsos bens! Quem crera qu' eram vento


tantas verdades, tantos bons amores,
inda d'outros maiores fundamento?

Crescei, mágoas cruéis, e crescei, dores,


65 quebrai o vagaroso e triste fio
qu' alonga a cruel Parca em seus lavores!

Levou-me a dor, Andrade, mas confio


que perdoarás à força do costume,
mais poderosa quando a contrario.

70 Vi com tua claridade novo lume,


abriu-se-me o céu todo, e ali vi escrito
quanto teu douto verso me resume.

65: PL vagaroso

144
ELEGIAS

Alcei os olhos c' um piadoso grito:


- Pequei - disse - Senhor. Usai piedade,
75 e deça novo esforço ao fraco esprito.

Vença a razão à tão cega vontade,


levante um alto muro de paciência,
deixe já as sombras vãs pola verdade.

O qu' o tempo obra ao longe, obre a prudência


80 com cedo (assi me dizes). Nisso posto,
faço já à minha dor mais resistência.

Enxugo os olhos, contrafaço o rosto;


o fogo, porém, dentro lavra, e arde.
Est' é da minha vida o só meu gosto. (J. 56 (PL 65))

85 Foge-me a morte, mas por mais que tarde,


esta alma em sua prisão sua hora espera,
que, pois não veio então, já me vem tarde.

Quem m'aquela ditosa estrela dera


dos teus tão santos pais, qu ' ambos ü · hora
90 juntou nos céus em mor amor do qu ·era!

Quem se já visse onde Man1ia mora,


lá nos céus, mais amiga, e mais fermosa!
Qu' outra cousa suspira est'alma, ou chora?

Inda a vejo de mim lá saudosa;


95 o caminho me mostra, a mão m' estende,
toda risonha e toda graciosa,

e o raio aparta, que me a vista ofende,


daquela claridade impírea e nova,
qu' olho mortal não vê cá, nem comprende.

100 - São - me diz - santas obras certa prova


d'alma qu' este lugar alto deseja.
Deixa lágrimas vãs, a alma renova.

Se m'amas, amigo, o amor seja


conservares lá bem tua vida pura,
105 té qu' o Senhor te chame, e eu cá te veja.

145
ELEGIAS

Aquela, que chamavas fermosura,


foi sombra vã; tomou-se o que era, em terra.
Outros mais altos bens de cá procura;
aos falsos bens do mundo os olhos cerra. (f. 56v 0 )

A Afonso d'Alboquerque, em louvor dos Comentários


que compôs dos grandes feitos de seu pai

Afonso d' Alboquerque, por ti escrito


teu claríssimo pai vive e florece,
de quem c' o nome herdaste ess' alto esprito,

e o teu branco carvalho reverdece


5 de mais fermosas folhas, novas flores,
de que inda seu real tronco se guarnece.

Fizeste teus os seus claros louvores,


dando-lhe eterno assento entre a memória
dos grandes capitães, e emperadores,

1O e renovaste nele a antiga história


do grande Macedónio, que parece
mostrar inveja desta nova glória,

conquanto já de longe resplandece


seu raio, e a tua nua, e chã pintura
15 nova aos olhos do mundo se oferece.

Vestida de sua própria fermosura,


não de outras cores vãs, e lisongeiras,
aparece a verdade clara, e pura.

Testemunhas serão as reais bandeiras,


20 que vencedoras viu o sol oriente (f. 57)
lá nas praias do mar mais derradeiras.

De Pérsia, e Arábia a tributária gente


viram de seu despojo as praias cheias
e do bárbaro sangue a grã corrente.

146
ELEGIAS

25 Turvaram o Nilo, o Gange, o Hidaspe as veias,


vendo altas fortalezas levantadas
e o vencedor pendão entr' as ameias.

De Meca as portas té então cerradas


tremeram ver-se, não somente abertas,
30 mas do grande Alboquerque conquistadas.

Quantas ilhas, e terras descubertas


foram por ele ao mundo, quantas minas
d' ouro té li a todos encubertas!

Quem mais gloriosas fez as Reais Quinas,


35 quem o português nome mais famoso,
com mais vitórias de triunfo dinas?

Ousado capitão, e venturoso,


s' a morte não cortara teus intentos,
que frui to inda nos deras tão fermoso !

40 A ti se devem os altos fundamentos


do oriental império, qu' inda dura
firme entre tanto mar, e tantos ventos.

Não pode a inveja a clara fermosura


escurecer da tua viva fama,
45 por mais que contra ti s'armasse dura.

Rompeu o raio da tua alta chama


as vãs névoas; venceste, e vê-se agora
o teu tão alto esprito, qu' o mundo ama.

Inda hoje Roma, inda hoje Grécia chora


50 dos seus bons capitães prémios escuros,
e mortos os suspira, honra, e adora.

Quantos troféus alçados, quantos muros


rotos a suas vitórias se trocaram
despois a muitos em desterros duros!

55 Nunca igualmente se galardoaram


em vida os altos feitos ; só na morte
seu verdadeiro prémio, e honra acharam.

147
ELEGIAS

Louvou-se; agora espanta o peito forte


do teu ilustre pai, a alta paciência,
60 qu' em tudo lhe deu tão ditosa sorte.

Espanta a ousadia com a prudência,


que juntas nele igualmente venciam,
a constância, a justiça, a continência.

Desprezando as vãs vozes, que impediam


65 o nosso bem, tudo venceu sofrendo.
Que prémios a este Fábio se deviam?

Quanto suou, quanto sofreu vivendo,


tu lho pagaste agora, filho dino
de tal pai, que imortal foste fazendo.

70 Não falo no alto prémio que ao divino (f. 58)


esprito seu nos céus lhe será dado,
de que por obras não parece indino.

Falo na terra, em que nenhum estado.


nenhum título ilustre igual seria
75 à honra de o ter também ganhado.

Toda piedade, e amor, que se devia


de tal filho a tal pai, tens bem comprido,
tomando-lhe a sua noite em claro dia.

Não está toda honra no sepulcro erguido.


80 Mausoléus aos mortos não dão vida,
que enfim tudo por tempo é consumido.

Mais é vencer o tempo, e ter erguida


ua viva estátua contra a morte, e dela
triunfar. D'ambos já fica vencida,
85 d'ambos direi ditosa a clara estrela.

Amor Fugido de Masco

Correndo os prados vai , correndo os montes,


cabelo solto ao vento, dos pés nua,
deixados os seus banhos, e suas fontes.

148
ELEGIAS

em busca de Cupido a triste sua


5 i mãe e cativa Vénus, voz em grito,
suspira, e chora, e cansa, e geme , e sua. (f. 58v 0 )

- Ó filho, minhas forças, meu esprito


- grita - meu só poder, minha alegria,
por quem meu nome é tão cantado, e escrito,

10 onde te foste assi cego, e sem guia?


Onde, ~inino, e só, por mil desertos,
meu só prazer, e doce companhia?

Em toda parte tens imigos certos,


e tu voando vás com as leves penas;
15 não deixam rasto teus passos incertos.

Assi deixaste Ninfas e Camenas,


assi meus doces cantos, e instrumentos?
As fontes frias, ribeiras amenas?

Tomai-me meu Amor, se o levais, ventos!


20 Tomai-me meu Amor, se o banhais, águas!
Soltai-mo, se o lá tendes, pensamentos!

As frias neves, as ardentes fráguas


em que tremeis, e ardeis, temperarei;
doam-vos os que ouvis as minhas mágoas.

25 Ninfas, por um prazer mil vos darei.


Faunos, eu pagarei vossos amores .
Tomai-me o Amor, que eu vo-lo tomarei.

Abri vossas choupanas, meus pastores,


descobri-me, se o tendes, meu tesouro:
30 eu o farei piadoso a vossas dores.

Bons sinais tem meu filho: crespo, e louro, (f. 59)


não muito alvo do corpo, a cor parece
de vivo fogo, e leva aljaba d'ouro.

Quem inda o não viu bem, nem o conhece.


35 não creia à sua idade, à sua brandura:
quando mais manso está, mais s'encruece.

149
ELEGIAS

Velho na idade, moço na figura,


joga, graceja, e ri ; e entre riso, e graça
almas fere. As feridas são sem cura.

40 Não há virtude que não contrafaça,


e nele não há virtude, nem vergonha,
e sempre busca onde mor mal vos faça .

Pequeno corpo, grande e má peçonha;


braço pequeno, a força de gigante;
45 cego, e não erra onde sua seta ponha.

Quem há a quem sua mão destra não espante?


De que treme inda lá o reino escuro?
Tu, Prosérpina, o dize; Orfeu o cante.

Tem asas, com que voa pelo ar puro.


50 Assi voando vai , e vai ferindo,
não vai defensa, ou arma, ou forte muro.

D"üa parte e doutra vão caindo


mil mortos, mil feridos ; cheia a terra,
os clamores em vão aos céus sobindo.

55 É nu e pobre, vive da sua guerra;


e sendo a todos tão claro perigo, (f. 59v 0 )
quem menos o ama, e honra, cuida que erra.

Também da própria mãe sua é imigo.


Como? E não me feriu? Pois entregai-mo,
60 que nunca fareis dele bom amigo.

S'acertades de o haver à mão, atai-mo,


não hajais de suas lágrimas piedade,
que chora quando quer. Chorando dai-mo.

Nem com branduras vos mude a vontade;


65 então lhe lançai mais fortes cadeias.
Olhai, qu'essa brandura é crueldade.

Que vos prometa os mares, e as areias,


não lho creais. Não lhe queirais seu bejo,
que i tem o fogo qu ' arde em sangue, e veias,
70 e cega os olhos, engana o desejo .

150
ELEGIAS

Amor Perdido
de Anacreonte

Era alta noite, quando descansava


dos trabalhos do dia a humana gente,
e já à mão de Boote Ursa virava .

Amor me bate à porta. Eu, impaciente:


5 - Quem é - digo - o que bate a tão más horas,
e meu sono me quebra cruelmente?

- Abre-me - diz - quem quer qu' és, qu ' aqui moras, (f. 60)
qu' eu sou Cupido, que perdido ando
por esta escura noite assi a desoras.

1O Quem me recolha, e aquente ando buscando,


morto de frio, da chuva orvalhado;
não te temas de mim, minino brando.

Ergo-me à pressa, e de mágoa cortado


lume acendo. Abro a porta, entra tremendo
15 o moço todo frio, e enregelado.

Vejo que de seus ombros vem pendendo


iia aljaba. Vejo arco, e asas vejo;
de nada disto então me estou temendo.

Ao fogo o ponho, o enxugo, o abraço, e bejo.


20 Aquento-lhe entre as minhas as mãos suas.
Sirvo-o com todo amor e bom desejo.

Alimpo-lhe a água que das carnes nuas,


dos seus louros cabelos corre em fio .
- E sofres - digo - Amor, noites tão cruas?

25 Enquanto o animo, enquanto dele fio,


está calado, e quedo, e enquanto o fogo
lhe aquenta o brando corpo, e vence o frio .

21: PL Sirvo

151
ELEGIAS

Tanto que aquece, toma o arco logo.


- E provar quero - diz - se danou a água
30 meu arco. E arma-o, como em riso. e jogo.

Em mim o desarma; em mim üa viva frágua


se acende. E, rindo, prestesmenti: voa, (f. 60v 0 )
e inda o cruel dá mágoa sobre mágoa.

- Folga, ó hóspede - diz - com a nova boa,


35 que bom levo meu arco. Fica embora.
Mais duro sou do que meu nome soa.
O bem, que me fizeste, em ti o chora.

A Santa Maria Magda/ena

Aquela, a quem foi muito perdoado,


porque amou muito, o peito em fogo, em água
os olhos, a alma toda num cuidado,

àquela santa pedra e viva frágua


5 do seu amor se vai, os céus, e terra
enchendo de suspiros, e de mágoa.

Mas no piadoso zelo a tenção erra


d'ungir o morto, não de esperar vivo
quem fez com a sua à nossa morte guerra,

10 quem com sua prisão o mundo cativo


libertou do poder e tirania
do escuro reino, e fogo sempre vivo.

O véu do templo roto, em noite o dia,


as pedras, o tremor, geral tristeza,
15 mais que homem o confessava e descobria.

Na morte a vida estava, a honra, e riqueza (f. 61)


em pobreza, e infâmia; a certa glória
no mor desprezo posta, mor baixeza.

Mas já os ricos despojos da vitória


20 aos céus levara, e abrindo a imortal vida,
glorioso fim dera à sua história;

152
ELEGIAS

já daquela luz clara, que escondida


andava, os claros raios seus soltando,
a santa humanidade era vestida.

25 Madalena, que a estrada vai pisando


por onde à morte foi por quem suspira,
a alma ao qu' os olhos vem está só dando.

De saudade cheia, e cheia de ira,


do seu amor, da cruel gente fera,
30 daquela terra alma nem boca tira.

Se por homem só o chora, que fizera


alumiada d'outro novo esprito,
se quem lho deu despois, então lho dera?

Falece já água aos olhos, voz ao grito,


35 arde toda em amor, arde em lembrança
daquele que em sua alma traz escrito.

Leva pintada a viva semelhança


ante os olhos, do seu rosto fermoso,
em que a ira despois fez cruel mudança.

40 - Aqui descabelado, aqui choroso


- diz - ia meu Senhor. Aqui despido (f. 61vº)
pareceu ante todos lastimoso;

c'o peso da grã cruz aqui caído,


de seu sangue, suor, e pó cuberto,
45 aqui entre dous ladrões nela estendido.

C'o esprito quebrado, o peito aberto,


ora cai Madalena, ora esmorece.
Chega ao sepulcro, sol já descuberto,

busca o lugar, a pedra reconhece.


50 Quem a revolverá? Eis toma ao pranto,
mas à santa tenção Deus não falece .

Eis a pedra revolta, eis novo espanto:


de neve , e sol vestido um anjo claro
está sentado no sepulcro santo.

153
ELEGIAS

55 Diz-lhe que ressurgiu seu doce e caro


Senhor, e co 'a alma leda vai correndo
consolar do bom Pedro o desemparo .

Ei-la torna com ele, e inda não crendo


tamanho bem, só fica no moimento,
60 em vivo fogo os olhos desfazendo.

Ah Maria, levanta o pensamento!


Porque entre os mortos buscas quem a vida
à terra trouxe, e tem no céu o assento?

Aquela piedade concedida


70 tão larga a teus errores, como agora
parece que é de ti mal entendida? (f. 62)

Quem teu Lázaro morto chamou fora


da sepultura, já de quatro dias,
como tua pouca fé por só homem chora?

75 A quantos olhos luz, a quantos vias


dar mãos, e pés, e línguas, que cantando
dele iam altas grandezas, que tu crias?

O unguento que estavas derramando


sobr' a sua cabeça não mostrava
80 que em vivo já o estava sepultando?

Já aquela grã carreira, que esperava,


correu com grã vitória o grã gigante,
já o templo restaurou que derribava.

Vencedor glorioso, e triunfante,


85 a túnica deixando dada em sorte,
se vestiu d'outra nova de diamante.

Já o vendido Joseph, já o Sansão forte


preso, o grã Jonas na baleia metido,
é livre; as portas quebra, mata a morte.

90 Como manso cordeiro oferecido


por si à morte, como grã lião,
vence o tribo de Judá prometido.

PL 56: co alma

154
ELEGIAS

O sudário, e despojos, que i vês, dão


claro sinal que como verdadeiro
95 Deus se ergueu Deus. O teu temor é vão.

E a Galileia disse que primeiro


iria ter que os seus; da mão dereita
do Pai virá no dia derradeiro.

Piadoso Senhor, de amor sogeita


100 (inda que baixo amor) s' engana e cega
Maria; mais não vê, mais não sospeita.

Inda c'os cravos teus sua alma prega.


Representa-lhe a dor, e saudade
a humana vista; a mais alta lhe nega.

I05 Mas tu, também movido de piedade


das lágrimas, qu' em ti não são perdidas,
lhe enche do que deseja sua vontade.

Não podem, grã Senhor, ser comprendidas


tuas grandezas. Entendê-las-á
110 por ti, Deus; logo dela serão cridas.

Chorando no moimento por ti está;


mandas teus anjos, tu também pareces.
Quanto alcança de ti quem se te dá!

Ah Maria, quem amas não conheces?


115 Esse é o grande hortelão, o que planta a vinha
em que tu teu jornal também mereces.

Tal forma à tua fraca fé convinha:


à vista se t'encobre, à voz s' aclara,
à voz qu ' em ti tão branda força tinha.

120 Aquela fermosura aos céus tão cara


não a podes tocar, té de luz nova (f. 63)
teres a vista e a alma inda mais clara.

Em teu esprito a antiga fé renova.


Este é o qu ' antes saías Deus chamar:
125 toma a seus irmãos já co ' alegre nova.

122: PL e alma

155
ELEGIAS

Ditosa, que primeiro a podes dar;


por ti sua divindade s'apregoa,
a eles a humanidade quis mostrar.

Ditosa, que tão alta e grã coroa


130 de glória mereceste! Ah, grande amor,
qu' a tanto chega, a tanto sobe, e voa.

Gloriosa Maria, esse fervor


em que tua alma ardia, a grã corrente
em que a lavaste pera o grã Senhor,
135 inflame, e abrande a fria, e dura gente.

156
LIVRO DAS ÉCLOGAS

1
ARQUIGÂMIA
Casti1io, Serrano (f. 63v 0 )

No tempo qu' o cruel e furioso


imigo dos pastores, e dos gados.
da terra, e das sementes, belicoso
Marte, segundo contam. por pecados
5 do mundo, contra o mundo tão iroso
desceu, que té os lugares mais sagrados
assi com ferro, e fogo cometeu.
que tudo de ira. cinza. e sangue encheu:

nas derradeiras partes do Ocidente,


10 onde o sol de cansado se refaz
de nova luz. pera a tornar à gente
donde se parte. que às escuras jaz,
e. pola que ali deixa, outra excelente
leva, e muito mais clara da que traz,
15 o pacífico João, e piadoso
reinava então, no mundo glorioso.

Eu digo aquele Rei de grandes reis.


que desdo Tejo muito além do Nilo
com suas armas obrigou, e leis
20 tomá-lo todos por seu rei, e servi-lo,
filho daquele, que no mar vereis
em baleia sentado ou crocodilo
em lugar de Neptuno, e seu tridente
na mão, como seu rei. e de sua gente. (f. 64)

25 Foi este Rei dos céus à terra dado


para remédio da que se perdia
paz já no mundo. Nunca tão cerrado
esteve Jano, que dantes soía
abrir-se a cada passo, no passado

157
ÉCLOGAS

30 tempo, que em ira e ódio todo ardia.


Assi presa em cadeias teve a guerra,
que só paz reinou sempre em sua terra.
Cantavam os pastores descansados
pelos vales e campos tão seguros
35 de si, e de seus rebanhos descuidados,
como quem não temia os maus, e duros
imigos, de que fossem salteados.
Suas choupanas eram fortes muros;
seus versos, e cantigas todas eram
40 louvar o seu bom Rei, que os céus lhes deram.

Crescia a grossa espiga, e se segava,


despois que já quebrava de madura,
daquela mesma mão, que a semeava;
pascia o gado gordo da verdura
45 da serra, que roída se queimava
para lhe renovar sua pastura.
As águas claras tão livres corriam,
quão livres caminhantes as bebiam. (f. 64v 0 )

O claro Tejo, Douro, Minho, Odiana


50 o mar seguramente vão buscando.
Não os seca o imigo, não os dana,
ledos vão docemente murmurando,
o som dos quais também segue Diana,
que ao longo com suas Ninfas vai caçando.
55 Soía ali fazê-lo, mas agora
em outra parte já com Palas mora,

em outra melhor parte, que parece


que mais qu' as outras todas lhes convinha,
onde o claro Mondego, quando crece,
60 inveja faz ao mar; onde a Rainha
seu templo sacrossanto, que i parece,
com seus milagres honra; onde se vinha
tomar antigamente a alta coroa
daquele que daqui tomou Lisboa.
65 Aqui Palas, e Febo se sentaram
e, escolhendo na terra seus assentos,
os mais doces, e frescos, começaram
aos homt ns levantar os pensamentos
a cousas que té li nunca cuidaram,

158
ÉCLOGAS

70 cegos só de seus cegos movimentos.


Os céus, e as estrelas, que não viam,
já agora as sabem ver; d' antes as criam. (f. 65)

Mas Vénus, que também d'antigamente


tinha tomado posse dessa terra
75 (que inda hoje se vê nela o inocente
sangue da branda Ninfa, ódio, e guerra
do pai c'o filho) , triste e descontente,
temendo as mores deosas, a íia Serra
se foi c' o seu minino, e ali esperou
80 té que íia, e outra deosa a visitou.

- Não é nossa tenção tomar-te o teu


- lhe diz Diana - nem Minerva vem
para isso, mas, se queres, tu e eu
com ela aqui vivamos. Não convém
85 que ua queira roubar à outra o seu.
Quanto cada íia de nós todas tem,
juntemo-lo aqui nesta tua Serra:
daqui só mandaremos toda a terra.

E Febo com seu canto ajudará


90 amar-nos mais a gente, e mais temer-nos ;
com sua doce lira forçará
os tigres, e liões obedecer-nos,
té que aquela Joana, que virá,
nos force irmo-la ver, em vez de ver-nos.
95 Iremos mais seguras, mais honradas,
todas três indo juntas, qu ' apartadas. (f. 65v 0 )

Não pode já tardar. Teu filho o sabe,


que nunca a deixa; nunca mor façanha
fez que feri-la. Razão é qu ' acabe
100 de mostrar um tamanho bem a Espanha:
a todo mundo, ao mundo todo cabe
parte, não é somente ela, e Alemanha.
O grande Oceano o diga, diga o Nilo;
não podem Eufrates, Gange, e Indo encubri-lo.

105 Pera vodas tão grandes bem parece


que, Vénus, já daqui nos percebamos:
um tão alto himineu não merece
que da maneira d'outros a ele vamos.

159
ÉCLOGAS

Já Febo se exercita, já guarnece


110 a curva lira, à qual sempre cantamos.
Irão as nossas Ninfas; vão as tuas
cantando ao som da lira as graças suas.

Todas desta maneira concertadas,


vão-se logo as três deosas, polas mãos,
115 a qual mais alva, e loura, assi travadas,
com seus rostos alegres, peitos sãos:
mui diferentes daquelas passadas
iras nascidas de apetites vãos.
Por onde quer que passam, vão caindo
120 mil flores de qu' o chão se vai cobrindo, (f. 66)

àquela fonte antiga, que um serrano


fez de lágrimas suas (que antes era
um grã penedo duro), lusitano
pastor, que nüa Serra se perdera.
125 Segundo contam, fez-lhe tal engano
Amor, que nesta fonte o convertera.
O corpo em água ali ficou desfeito;
do esprito não se sabe bem qu' é feito.

A água desta fonte vai chorando:


130 a quem deixa esquecer o esprito nela
parece que por Lésbia vai chamando.
A quantos acontece ir ter com ela
não sei de que se ali vão namorando,
não sei que se lhes nasce só de vê-la.
135 Os olhos postos n'água, aos pensamentos
vem logo uns amorosos movimentos.

As ervas ali mais que em outra parte


parece que enverdecem; ali mais cores
parece a Natureza que reparte
140 pelas frescas boninas, pelas flores;
ali nunca parece que se farte
de chorar Filomela os cruéis amores.
Ali juntas as deosas se sentaram
e a tudo nova graça acrecentaram. (f. 66v 0 )

PL 124: serra

160
ÉCLOGAS

145 Pondo seus ricos arcos, e vestidos,


aqueles brancos corpos nus mostraram
ao troiano Paris já despidos.
Os seus cabelos soltos espiraram
um odor qu' a nenhuns mortais sentidos
150 nunca chegou, e assi na fonte entraram,
qu' é d'então pera cá delas morada:
mas <l'üa só, das outras emprestada.

Como à sagrada fonte ali cada hora


os pastores vão ter, este suspira,
155 este tange, outro canta, o outro chora.
Todos ali Amor leva, e Amor inspira.
Ali doce brandura d'almas mora
que todo pensamento baixo tira.
Doces são os queixumes, doce a dor,
160 doce água, doce fogo, e doce amor.

Serrano aconteceu que todo um dia


se achou ali como ele costumava.
O pranto qu' então fez derreteria
de pedra um coração: bem s'enxergava
165 na terra qu' ao redor humedecia
das águas que dos seus olhos lançava.
Quando o amigo Castílio ali chegou,
e vendo-o tal, com mágoa assi falou . (f. 67)

CASTÍLIO

Amor cruel, que já nunca te fartas


170 de nossa morte, dize porque assi
um triste coração dum corpo apartas?

Este corpo que tens lançado aí


menos te há-de servir morto que vivo:
dá-lhe alma, e vida ao menos para ti.

175 Mas ah que digo eu, tri ste? Também sirvo


a quem tais pagas dá; também mas dão.
Ai, dói-se dum cativo outro cati vo.

PL 148: spiráram

161
ÉCLOGAS

Serrano amigo, tu não vês o chão,


onde estás, que de seco qu' antes era
180 tão húmido tens feito? Dá cá a mão,

levanta-te, levanta-te! Quisera


que te vira tua Lésbia qual estás,
a ver se a morte, ou sua mão te dera.

SERRANO

Ai, ai, Castílio amigo, ai!

CASTÍLIO

Que hás?

SERRANO

185 Não sei. Parece como que me trazem


de dentro desta fonte.

CASTÍLIO

Onde te vás?

SERRANO

Mas eu estava sonhando.

CASTÍLIO

Olhai que fazem


estes doudos amores. Eu diria
que alguns encantamentos neles jazem.

SERRANO

190 Não sei que ora isto foi , que bem te ouvia,
mas não saberei dar fé de palavra.
Em outro mundo estava, outro céu via. (f. 67v 0 )

162
ÉCLOGAS

Que meio me darás pera que eu abra


este meu peito, e lance dele fora
195 esta peçonha que assi nele lavra?

Vês-me aqui vivo, e são. Daqui a üa hora


não sei se me verás: vai-se-me a vida
em fogo, em vento, em água que a alma chora.

A memória de mim trago perdida;


200 muitas vezes me busco, não me vejo;
minh'alma de mim mesmo anda fugida.

Ora aborreço o campo, ora o desejo;


a frauta, que me alegra, m'entristece;
eu a mim mesmo às vezes me sou pejo.

205 Vês tu essa erva como reverdece


c' o orvalho fresco, e quanto mais à fonte
se chega, tanto mais verde parece?

Vês o rio, que vai de monte a monte


carregado de roubos, e queixumes,
210 que ora ameaça, ora não sofre a ponte?

Vês agora n'aldeia bons costumes,


uns rostos brandos, riso, e bom amor
fora de más sospeitas de ciúmes?

Verás daqui a pouco vir o ardor


215 do sol queimar as ervas, e secar-se
o rio, o campo, a erva, a folha, a flor.

Verás na nossa aldeia vir mudar-se (f. 68)


aquela livre, aquela boa soltura
de vida, em um d'outro não fiar-se.

220 Que poderás já ver, que tenha dura?


Muda-se o tempo, e o céu. O gado ora anda
morrendo-te de fome, ora em fartura .

PL: 198 que alma

163
ÉCLOGAS

A que dizes ora isso? me demanda.


Digo, Castílio, que eu só vivo firme
225 em minha dura estrela, que me manda;

que já cuidei daqui por vezes ir-me,


em o cuidar somente me tornava.
Morria já, sem me partir, por vir-me.

O corpo como iria, onde ficava


230 presa, e cativa est'almajá de tanto?
Ria-me então de como m'enganava.

Esta fonte ouviu hoje aqui meu pranto


e, como se o sentisse, parecia
qu' ajudava entoar tão triste canto.

235 Ora fazia pausa, ora corria


com murmúrio ora grave, e ora agudo:
disseras qu' algum sprito ali havia.

Enfim cansei. Estive um espaço mudo.


Tornei a cometer ir mais avante.
240 Não pude: antes perdi o tento a tudo.

CASTÍLIO

Agora creio que nada há qu' espante


a quem muito ouve, ou vê. Já ouvi dizer (f. 68v 0 )
d' üa ave que não morre, sem que cante;

d'outra também que, quando quer morrer,


245 ajunta os paus, com as asas fere o fogo,
queima-se ali, e dali torna a nascer.

Tomava eu isto, quando o ouvia, logo


por fábula, e por graça, senão quando
eu mesmo um dia vim cair no jogo.

250 Este meu fogo (dizia eu) em que ando,


quem mo faz ora? Eu mesmo. Quem me inflama?
Eu. Eu o atiço, eu me vou queimando.

Dos olhos de Crinaura nasce a chama


em qu ' eu ardendo estou nas prisões d'ouro,
255 qu' Amor cabelos falsamente chama.

164
ÉCLOGAS

Nunca já de mim foi o bravo touro


apartado das vacas tão temido
em campo raso, sem carvalho, ou louro;

nunca o espantoso lobo perseguido


260 dos importunos cães, o porco fero
que escumando vem sangue, embravecido,

como me é seu rosto. Às vezes quero


esperá-lo; não posso; logo caio.
Ali então da vida desespero.

265 Vejo tornar cad'ano o alegre Maio


vestido de mil flores de alegria;
uns se alegram d' o ver, mas eu desmaio. (f. 69)

Leva-me a morte logo à fonte fria.


Ali em meu canto triste me desfaço,
270 que inveja àquela triste ave faria.

Mas não sei como, daí a pouco, naço


de novo tal, que eu mesmo me pergunto
quem sou, que busco, ou quero aqui, que faço.

Ditoso aquele a que algü'hora junto


275 veio todo seu mal, e já acabou .
Mas eu nem vivo sou, nem sou defunto.

SERRANO

E nunca ouviste tu que o mar gerou


d'Amor a cruel mãe? Porque t'espantas,
se a cruel condição do mar tomou?

280 Quando tu na bonança alegre cantas


(se algü'hora a tiveste) eis vem as ondas
mais altas do que tu tua voz levantas.

Vai ora então buscar onde te escondas


daquela furiosa tempestade:
285 nem com quem fales há, nem a quem respondas.

165
ÉCLOGAS

CASTÍLIO

Quando de dentro d'água, ó crueldade,


nasceu o fogo, que nos vai queimando,
que remédio esperamos? Que piedade?

Mas conta-me o teu sonho. Assi, enganando


290 a dor desta cruel chama estaremos,
o pensamento ao duro Amor furtando .

SERRANO

Pera mor nosso mal lho furtaremos, (f. 69vº)


porque acode despois tão furioso,
que quer que todo tempo lhe paguemos.
295 Mas este sonho, amigo, milagroso

dirás que é. Parecia que no centro


dessa fonte lá dentro me levavam,
como que m' enganavam, mas diziam
duas Ninfas que me iam companhando:
300 - Serrano, não chorando, mas contente
e rindo hás-de ir à gente que te chama,
pera dares cá fama do que vires.
D'em tanto prazer rires não tens culpa,
que o tempo te desculpa. Eu me calava,
305 porque assi me espantava do que via,
que quási o não cria. Ao pé do monte
debaixo desta fonte solapado,
não sei como levado fui das duas
Ninfas que pelas suas mãos me tinham.
310 Elas sós me sostinham, e me guiaràm,
até que me deixaram onde, estendendo
minha vista, tremendo, a todas partes,
vi cousas d'outras artes, e maneiras
tão novas, e estrangeiras, como era
315 estar a primavera ali metida
assi como escondida. Tal verdura
em campo, nem pintura não parece, (f. 70)
qual dentro ali florece. Um campo chão,
morada do verão, das mais formosas

166
ÉCLOGAS

320 ervas, e mais cheirosas flores cheio,


se faz ali; e no meio está esta fonte,
cercada do alto monte, que à redor
parece muito mor do que cá agora
a vista vê por fora. Ali nascia
325 esta água nüa pia de cristal
lavrada de um metal mais fino que ouro,
de palma, mirto, e louro rodeada;
e üa ave namorada em cada ram·o
(eu sonho a isto não chamo) assi cantavam,
330 que todo ar serenavam. Ao doce canto
floreciam, entretanto, novas flores
pintadas de mil cores, e uns espritos,
amorosos espritos, que inspiravam
por todo ar, que voavam, doce amor.
335 Ali gado, ou pastor nunca chegara,
que logo s'enxergara nas pegadas.
Nunca foram pisadas nem colhidas
aquelas bem nascidas ervas, plantas
de diferenças tantas, nem geada,
340 nem do sol tinha entrada ali o raio.
Perpétuo Abril e Maio pareciam
que sempre ali viviam . Üa daquelas (f. 70v 0 )
ou Ninfas ou donzelas: - Vê, pastor
- dizia - sem temor o que quiseres,
345 que aqui só há molheres. Não receies.
Ri, folga; não pranteies, como fazes .
Aqui amor, e pazes, e prazeres
vivem. Vês os tangeres que lá soam
quão docemente toam? Ninfas são
350 das deosas, que aqui estão, Palas, Diana,
e Vénus, que a Joana, que já vem,
fazem festa. Porém, tu estás cansado:
daqui ledo, e deitado ouvirás tudo.
Ficava eu como mudo. Ela então se ia
355 àquela companhia, que chegava
à fonte onde eu estava. Vinham todas,
como a celebrar vodas, com capelas
de mil to as Ninfas belas; porém mais
as três deosas, sós tais, que quem as vira
360 nos rostos presumira que eles eram.
A mim, porém, me deram sobressalto,
que, do juízo falto assi à primeira,

167
ÉCLOGAS

no rosto, e na maneira Vénus tive


por Lésbia. Mas retive-me, e entretanto
365 c'o doce som e c'o canto se sentaram
todas, como chegaram ao redor d' água.
Que dor, que mal, que mágoa sentiria (f. 71)
quem visse que tangia num psalteiro
Minerva, e c'um pandeiro concertava,
370 que ora Vénus tocava, ora acodia
com sua voz? Corria a fonte clara,
em qu' a deosa inspirara ao mesmo ponto,
tão certa no seu conto, que já mais
deixaram de ir iguais. Então aquelas
375 Ninfas louras, e belas começaram,
qu' as deosas lho mandaram, um novo canto
de qu' eu, de puro espanto arrebatado,
fiquei como encantado. E só m'achava,
lá onde o Tejo lava a grã cidade
380 qu' em toda a Cristandade espanta, e soa
(eu digo a alta Lisboa, do Ocidente
rainha, e do Oriente); e parecia
qu' entrar no mar o via, e o mar batendo
co as ondas, qu' encolhendo ora se vão,
385 ora, tornando, dão naquela praia,
sem que nunca se saia já dum certo
ponto. Cheguei-me perto mas, não sei
como, d'água m'achei em um momento
cercado. Quando atento, fiquei tal,
390 que c'o rosto mortal torno fugindo
atrás, e inda seguindo as ondas me iam.
Não sei que me queriam; então tornavam (f.7lvº)
recolher-se, e deixavam descuberto
quanto tinham cuberto. Amanheceu.
395 Claro o sol pareceu e d'outra cor,
de novo resplandor, e claridade,
em qu' üa divindade conheceras,
se teus olhos poseras nele fitos,
d'alguns santos espritos, qu' o moviam
400 e ao Tejo o traziam a se banhar;
de qu ' o Tejo, e grã mar ficavam tais,
tão claros, tão iguai s, que não se viam
as que dantes se erguiam, ondas bravas.
Pera onde quer que olhavas , prata vias;
-------
367: PL senteria

168
ÉCLOGAS

405 tais as águas dirias. Eis que sai


d' água, e soberbo vai em todo estado
o grã Tejo dourado, em cristalino
carro d'ouro mais fino guarnecido.
De neve seu vestido era, e a partes
410 pedras de novas artes reluziam
tanto, qu' os que as viam, assi cegavam,
que não determinavam bem o qu' era.
No carro üa alta esfera se mostrava,
na mão Tejo levava o grã tridente
415 que de lá do Oriente lhe mandou,
quando se sojeitou Neptuno a ele.
Vinham derredor dele alguns tritões (f. 72)
que com seus ricos dões sempre o vem ver.
Seu rosto, e parecer logo mostrava
420 qu' este era o que mandava o grande mar.
Ali se vem juntar a alta rainha
Tétis, que também vinha à real festa,
como ua dona honesta, antiga, e grave.
Vinha entregar a chave do tesouro
425 das ricas perlas, e ouro do Oriente
à clara, e excelente, e alta Joana,
que como üa Diana reluzia,
com sua companhia além do Tejo.
Cega-me a luz que vejo. Eis aparece
430 Joana; o céu esclarece. Viras ir
o Tejo a mais partir, mas mansamente,
com Tétis obediente a presentar-se
àquela que chamar-se já começa
do grande mar cabeça, a cujo lado
435 vinha o tão nomeado Duque eleito
com razão a tal feito, alto João,
de cuja fé, e mão de Cario a filha,
do mundo maravilha, se fiava.
E assi autorizava a majestade
440 real, e a gravidade do alto ofício,
qu' a quem o via indício dava claro
de ser no mundo raro seu esprito, (f. 72vº)
ao qual nenhum escrito igual seria.
Neto bem parecia do Rei santo,
445 do mundo amor, e espanto, João segundo;
do grã mestre, que o mundo saudoso
deixou de si, ditoso filho, e dino.
Eis já no cristalino carro entrava
o grã Rei e passava da outra parte,

169
ÉCLOGAS

450 de que Vulcano, e Marte sinais davam


c'os fogos que tiravam temerosos,
mas então deleitosos. Tejo, viste,
ó Tejo, em ti , e sentiste o teu grã Rei,
por cuja regra, e lei vives, triunfas
455 e tiras ricas trunfas, e coroas
a reis por onde soas com grã medo.
O mar quieto, e quedo num momento,
mostrando acatamento a seu senhor,
com toda honra, e amor o recolhia.
460 Ele, d'alta alegria o peito cheio,
d'alma, lá bem no meio, agasalhava
a filha, que lhe dava o valeroso
Duque tão glorioso. Logo o Tejo
(inda cuido que o vejo) às Ninfas manda
465 que em voz suave, e branda, derramando
mil flores, vão cantando a grã Joana,
mais divina que humana. Parecia (f. 73)
que a terra, e o céu se ria, o sol dourava,
e seus raios mostrava de luz pura.
470 A voz, e a fermosura amansando iam
das Ninfas a água; viam os que olhavam
o ouro que mostravam lá nas veias
das douradas areias.

CASTÍLIO

Dize, amigo
(assi nunca em perigo ver te queira
475 tua Lésbia), que maneira, que arte tinha
esse canto?

SERRANO

Convinha que eu tivesse


ou que Apolo me desse um tal esprito,
para que fosse dito com tal graça
que nele não desfaça. Ora cantavam
480 uas. ora ajudavam, e respondiam
outras. Se bem me lembra assi diziam:

170
ÉCLOGAS

Vem, claro Febo, a tão ditoso dia


dar nova luz das outras diferente;
vem, claro Febo, c'o resplandecente
485 raio teu, aquentar a terra fria;
vem dar sinal, ó Febo, d'alegria
que o céu tem de tão santo ajuntamento.
Mil anos, mil e cento,
vivam em paz João com sua Joana.
490 Assi seja e será; assi o quer Diana.

Já vem aquela luz tão desejada (f. 73v0 )


dar nova luz à terra, glória, e honra;
já vem aquela Ninfa de quem se honra
até a praia do mar mais apartada;
495 já vem Joana tal, qual foi julgada
no monte d'Ida Vénus do pastor,
pagar aquele amor
de que arde quem a espera. Venha, venha!
Não chuva, vento, mar, nada a detenha.

500 Não vedes como logo conformaram,


nos rostos, e nos nomes, nos amores?
Não vedes como em tão iguais ardores
de tão longe um polo outro se inflamaram?
Não vedes como os céus logo os criaram
505 um para outro? Üa só estrela, um fado
a ambos está guardado.
Já vem Joana. Toma a idade d'ouro.
Nestes ambos tens, mundo, teu tesouro.

Qual no cerrado horto é a branca rosa


510 que nunca foi cheirada, nem colhida,
e qual a branca neve, que sobida
na serra está tão alva e tão fermosa,
tal vem Joana. Tal vem que invejosa
lhe pode ser com suas Ninfas belas, (f. 74)
515 quando no meio delas
Diana sai. Diana assi 1., .::onfessa.
Depressa vem, mas venha mais depressa.

Por onde quer que vem, se ri a terra,


por senhora a festeja, e reconhece.

171
ÉCLOGAS

520 Todo campo que pisa reverdece;


florido fica o monte, o vale, e a serra.
Tudo é prazer, e amor. Há só grã guerra
sobre quem mais festejará sua vinda.
E pera mor bem inda,
525 assi também o céu vem festejando,
que Dezembro em Abril fez ir mudando.

Que príncipe e que rei tão glorioso


vos nascerá, a seus pais tão semelhante,
dos quais, por muito que já a fama cante,
530 maior será seu nome, e mais famoso!
Um príncipe fortíssimo, e espantoso
aos bárbaros, que dele estão tremendo,
já os altos feitos vendo,
a que não chegam Júlios, Paulos, Drusos.
535 Assi o fiam as Parcas nos seus fusos. (f. 74v 0 )

JÂN/0

Piério, Aónio

PIÉRIO

Vês o sepulcro triste do fermoso


pastor roubado ao campo, aos céus levado
do fado bom para ele, a nós danoso.

Enquanto ao mar tuas redes, eu o gado


5 à verd' erva deixamos, c'o estas flores
honremos o chão já dele pisado.

Jânio, saudade dos pastores,


da ribeira do Tejo saudade,
das Ninfas, dos prazeres, dos Amores,

10 honra do campo, glória desta idade,


gracioso nos olhos, branco, e louro:
recebe os pobres dões da sã vontade.

172
ÉCLOGAS

Este cedro, esta faia, este alto louro


a teu nome levanto: escrito seja
15 teu nome, Jânio, inda em letras d'ouro.

Com lágrimas de dor e mágoa veja


o caminhante a pedra, que escondendo
teu brando corpo está, que o céu deseja.

Aónio, assi te estêm no mar enchendo


20 as Ninfas tua rede, e .do perigo
das ondas, e do vento a vão sostendo, (f. 75)

assi na tempestade bom abrigo


dem ao teu barco, assi se mostre iia hora
branda a ti Galateia, Amor amigo.

25 que aqueles tristes versos com que chora


nosso Sázio sua dor (se na memória
os tens, como ele n'alma), os cantes ora.

AÓNIO

Renovaste-m e a dor da triste história.


Chovem-me tristes lágrimas dos olhos
30 co'a dor da perda da passada glória.

De cássia, mirra, incenso, três, três molhos


queima aqui o triste Sázio cada dia;
o gado cardos pasce, pasce abrolhos.

Em triste voz que a alma após si trazia,


35 ao som das ondas, qu' iam murmurando ,
metido nüa lapa assi dizia:

- Pastor formoso, doce, branco, e brando,


de Fílis triste, que tão só deixaste,
ouve sua voz que os ventos vão levando.

40 Toma à saudosa praia, que pisaste;


toma a este campo, que tão verde, e ledo
contigo era, e tão triste já tomaste.

PL 23: hü hora 34: que alma

173
ÉCLOGAS

Aqui a menhã rosada, o vento quedo,


aqui claras, e brandas sempre as águas,
45 a noite trazias tarde, o dia cedo.

Pastor fermoso, agora as altas fráguas (f. 75vº)


da dura rocha turvam o claro rio,
mostrando em suas quedas tristes mágoas.

Quantas vezes aqui o dourado fio


50 tiravam as brandas Ninfas, ao sol alto
no frio inverno, à sombra no estio!
I
Escondeu-as no mar o sobressalto
da tua morte; deixas d'erva o monte,
e d·'água o rio, e d'aves já o ar falto.

55 Nem árvore dá sombra, nem dá fonte


água, nem dia o sol, nem a noite estrelas,
nem há quem ledo cante, ou de amor conte.

Quem pode ouvir as aves? Quem já vê-las?


Quem as frautas, que em choro o som mudaram,
60 pois tu eras a graça, e o som delas?

Nunca despois a verde erva provaram


os tristes gados; nunca mais beberam
em água clara, des que te choraram.

O branco orvalho os campos já perderam,


65 as bonirias as cores, e estes prados
de cardos, e de espinhos já s' encheram.

Reverdeciam dantes só olhados


dos teus olhos fennosos, que os qu' os viam
levavam de ti, Jânio, pendurados.

70 Com teus olhos fennosos floreciam


os campos, nascia erva; as sementeiras (f. 76)
a ti só parecia que cresciam.

Jânio, soavam os bosques, e as ribeiras,


de pastores e Ninfas tão cantado,
75 de tua Fílis tristes companheiras.

46: PL taboas 74: PL Nimpas

174
ÉCLOGAS

Jânio, de todos, de mim mais chorado,


quem lembrará sem mágoa as breves horas
que com Fílis te via o verde prado?

Em vão, Fílis, suspiras, em vão choras;


80 em vão choramos, chora o mar, e a terra;
Tu, Jânio nosso, ledo nos céus moras.

Em luz, em paz, em glória, já da guerra


dos bárbaros pastores, já do dano
dos tempos livre, em si o céu te encerra.

85 Não temes lá as espreitas, mau engano


do lobo ao simpres gado; em bom descanso
vives, em melhor dia, em melhor ano.

Assi cantava Sázio. Manso, e manso


as lágrimas corriam; o som, e o canto
90 o ar calado, o mar tornava manso.

PIÉRIO

Igual à triste dor, o triste pranto


de Sázio a Jânio; e de sua voz ouvido,
a quem não fará mágoa, não espanto?

Olha o meu gado, Aónio, que esquecido


95 da verde erva, tão murcho inda parece,
que é dele o brando nome conhecido. (f. 76v 0 )

Inda o céu se revolve e s'escurece;


inda o mar se levanta; vês o vento
como lá nessas ondas se embravece?

100 Enquanto tu cantavas, tudo atento


calava: o campo, e o mar. Como calaste,
em tudo a triste dor fez movimento.

Com esse ora outro pranto me lembraste


que iia voz triste ao longo desta praia
105 fazia igual, Aónio, ao que cantaste.

175
ÉCLOGAS

Era então noite escura (inda desmaia


a alma à lembrança); a voz era cansada,
os versos vi cortados nesta faia.

- Alma - dizia - ó alma bem levada


11 O à clara vida da prisão escura,
do teu despojo nua, e desatada;

alma, toda inocente, toda pura,


que debaixo dos céus tens sol, e lua,
olhos noutra mais alta fermosura ;

115 esta praia em que já, por honra tua,


e de Fílis, mil Ninfas coroadas
de flores vos cantaram à lira sua,

este limo, esta areia, em que assinadas


com Fílis nos deixaste as tenras plantas,
120 vistas serão com dor, com amor lembradas.

AÓNIO

Doce tanges, Piério, doce cantas, (f. 77)


brando na voz, em tua frauta brando.
C'o som deleitas, com a dor espantas.

PIÉRIO

Vai-te à tua rede, Aónio. Eu vou levando


125 com lágrimas o gado.

AÓNIO

Deus renove
outro tempo mais ledo; mas oh, quando?
A noite vem-se escura, e neva, e chove.

PL 127: A.A

176
ÉCLOGAS

TÍTIRO

Títiro, Serrano, Castálio

TÍT/RO

Ü a fresca menhã, fria, orvalhosa,


ao longo do Mondego, que corria
com a água clara, mansa, e graciosa,

quando já o claro raio reluzia


5 do louro Febo n'água e começava
o orvalho derreter, dourar o dia,

ao pé de um grã ceiceiro rodeava


o gado de Castálio, e de Serrano,
que ambos um bom amor sempre juntava;

10 mas outro Amor cruel, Amor tirano,


os trazia ambos tais, que pareciam
dous espritos perdidos trás seu dano.

Ambos mancebos, ambos se perdiam,


um por uns olhos verdes, outro brancos; (f. 77v0 )
15 ambos cantavam sempre, ambos tangiam.

Diziam que aprenderam de dous Francos,


pastores que com as Musas se criaram,
dous Linos, dous Orfeus. Os nossos Francos

bem conhecidos são: Sás se chamaram,


20 um de Meneses, outro de Miranda,
de que as Irmãs e Febo s' espantaram.

E inda hoje entre nós soa a voz tão branda


do seu divino canto, que lhe ouvimos,
que lodo o céu aclara, e o ar abranda.

25 Ditosos nós , qu' em nosso tempo vimos


a nomeada Arcádia tão vencida
destes nossos pastores, que segu imos.

!77
ÉCLOGAS

Aconteceu qu' enquanto era ouvida


de mim üa hela Ninfa, que cantando
30 na veia d ·água estava meia metida,

um cordeiro dos meus se foi lançando


para onde ambos estavam; o qu ' eu segui ndo,
ouvi Castálio estar-me já chamando.

- Títiro amigo, sejas tam bém vindo,


35 como este claro sol que nos aquenta.
Aqui - diz - teu cordeiro veio fugindo.

Deixa o mais gado ao moço. Aqui t'assenta.


Não vês esta clara água que nos chama,
esta erva verde, que se nos presenta? (f. 78)

40 Aqui se esfria aquela doce chama


que arde em nós sempre; aqui Amor s'engana;
aqui queres amar quem te desama.

Se o sol muito apertar, temos choupana


de canas, e ramada bem cuberta,
45 onde nem entra sol, nem chuva a dana.

Sentei-me. Eis s'ergue entre eles grã referta


de quem tange melhor, ou melhor canta.
A contenda então mais a voz esperta:
assi ora um, ora outro a voz levanta.

SERRANO

50 Musas, ou vós me dai um verso brando,


qual a meu Sá, que a Febo, bem se iguala,
ou, s'eu em vão trabalho ir-lhe chegando,
o som me fuja à lira, a voz à fala .

CASTÁLIO

Pastores, coroai, que vai crescendo,


55 este novo poeta de hera, e flores;
e Magálio de inveja estê morrendo,
que a todos para si rouba os louvores.

178
ÉCLOGAS

SERRANO

Meus versos lê meu Sá, minha Musa ama:


e meu Sá versos faz que Apolo espantam.
60 A ti, Sá, sempre minha Musa chama,
a ti meus versos rústicos se cantam. (f. 78v0 )

CASTÁLIO

A quem, Sá, te ama, nunca Apolo negue


seu divino furor, com que te cante;
e rompa-se Magálio, rompa, e cegue,
65 e de meus versos lá entre si se espante.

SERRANO

Ó rústico Magálio sem brandura,


nunca som doce em teus ouvidos soe;
Magálio, peito de cortiça dura,
todo o bom sprito atrás te deixe, e voe.

CASTÁLIO

70 Crinaura entre uns salgueiros verdes via,


e sem me ver a vista lhe furtava.
Ela em me vendo ria-se, e fugia,
e não sei qu' entre dentes me falava.

SERRANO

Que me aproveita, Lésbia, ver-te e amar-te,


75 e que nem me desprezas, nem desamas,
se quando a língua solto por falar-te,
volves o rosto, e rústico me chamas?

CASTÁLIO

Triste a vista é do lobo ao manso gado,


o chuveiro à seara já madura,
80 às árvores o vento; a mim o irado
rosto de Fílis, tão fermosa, e dura. (f. 79)

179
ÉCLOGAS

SERRANO

Doce é a chuva à terra desejosa,


aos cordeiros o prado d'erva cheio,
à abelha o orvalho; a mim Fílis fermosa,
85 por quem hoje mais claro o dia veio.

CASTÁLIO

De duas pombas achei hoje um ninho.


Tuas, Crinaura, são, se as tu quiseres,
e teu será, se o tomo, o branco arminho.
Clóris mo pediu já, se o tu não queres.

SERRANO

90 Dez maçãs de cor d'ouro, ontem colhidas


a furto num cerrado, aqui te tenho.
Para ti, Lésbia, foram escolhidas;
Lésbia, só por te ver trazer-tas venho.

CASTÁLIO

Dos teus olhos, Crinaura, sai um raio


95 de fogo, que a fria neve acenderá.
Em te vendo arço, sem te ver desmaio;
mais doce a morte, vendo-te, será.

SERRANO

Lésbia cruel, e quanto já haverá


que esta minh' alma ard_endo
100 anda após ti, e esse teu peito frio
me converteu num rio?
Olha como este rio vou enchendo.

CASTÁLIO

Olha como este rio vou enchendo


de lágrimas, e mágoas. (f. 79v 0 )

180
ÉCLOGAS

105 Das lágrimas se vai todo turvando


e das mágoas chorando:
ah, de meu fogo vão ardendo as águas!

SERRANO

Ah, de meu fogo vão ardendo as águas!


E tu estás mais fria
110 que a fria neve, e mais que pedra dura,
e~ quem água acha brandura.
Um mármore meu pranto desfaria.

CASTÁLIO

Um mármore meu pranto desfaria;


e teu peito parece
115 que quanto mais, Crinaura cruel, te chamo,
quanto mais te sigo, e amo,
tanto em ti mais essa dureza crece.

SERRANO

Lésbia minha, mais que o sol fennosa,


mais alva que alva lua, e mais corada
120 que as ardentes estrelas,
e luz de todas elas,
mais que as flores de Maio graciosa;
estes versos, em que és de mim cantada,
cortem neste ceiceiro os bons pastores,
125 crescerá ele, crescereis, amores.

CASTÁLIO

Crinaura minha, mais que o lírio branca,


mais vermelha que rosa, e mais ligeira (f. 80)
pera fugir que o vento:
de quem seu pensamento
130 tirar de ti não pôde, vem, arranca
est' alma triste, que inda esta é a primeira
piedade que usarás com quem a vida
sempre guardou por ser por ti perdida.

181
ÉCLOGAS

TÍTIRO

Isto só me lembrou do que cantaram;


135 e dali pera cá sempre nos montes
os pastores Castálio nomearam,
faunos nos bosques, Ninfas em suas fontes .

4
LÍLIA

Por Lília em vivo fogo Aónio ardia,


Lília prazer do amor; e nada tinha
o triste que esperar, e o amor crescia.

Entr'uns bastos ulmeiros só se vinha


5 de tristes sombras; a alma ali forçada
com só chorar, com suspirar detinha.

Ora em som triste, em voz desconcertada,


Lília, que inda que viva, inda que moura,
o nome ouve, assi dele era chamada:

10 - Lília, Ninfa branca, Ninfa loura,


o dia nos teus olhos amanhece; (f. 80v 0 )
dos teus cabelos, Ninfa, o sol se doura.

Com tua vista um novo Abril florece


em toda parte; à tua voz se abranda
15 o Amor na mor ira, e se adormece.

Lília, fermosa em tudo, em tudo branda,


a mim só dura: eu em que errei em amar-te?
Amor te me mostrou, e amar me manda.

Meu descanso só é, Ninfa, cantar-te


20 ao sol, à sombra, em campo, em bosque, em rio,
e meu prémio, ah cruel, em vão chamar-te!

Ora c' o rosto descorado, e frio


no ardor do sol, ora no inverno ardendo,
ou todo chama, e fogo , ou neve, e frio!

antes de 134: PlomiteTítíro. CFTfol. 173v.-l74v. 5: e alma 9: o não ouve 11 : com teus 14:
toda a parte 15 : e na mor ira se adormece 16: em tudo fermosa 17 : omite eu 18: Se Amor 19: é só
20: ou sol 24: tudo

182
ÉCLOGAS

25 Ó cruel Lília! E não te irá movendo,


já que a amor não, a piedade um tanto,
o fogo que em meus olhos estás vendo?

Ouve-me, Lília. Por ti só meu canto


renovarei; por ti, cruel, meu fogo
30 tenho por doce, e por prazer o pranto.

Por ti toda outra festa, e riso, e jogo


desprezo; por ti sombras, e águas quero.
Aprazer-te é só, Lília, aos céus meu rogo.

Não desprezes meus versos, que inda espero


35 com teu nome aos pastores ensinado
dos bosques amansar-se o Amor fero. (f. 81)

Também eu canto, também sou chamado


dos pastores poeta, e eu não os creio,
enquanto de ti sou tão desprezado.

40 Pois tão rústico sou, Lília, ou tão feio?


Pouco há que me vi n' água: a cor mortal,
des que te vi, e te chamo em vão, me veio.

Quanto melhor me fora, pois não vai


contigo Amor, não deixar nunca a triste
45 Fílis, inda que a ti em nada igual!

Choraste, Fílis, ah, quando me viste


partir de ti e d'alma saudosa,
suspirando, c'os olhos me seguiste.

Alva Fílis também; não tão fermosa,


50 ó Lília, não tão loura! Porém, era,
inda que de amor livre, piadosa.

As capelas de mirto, louro e hera


feitas da minha mão não desprezava,
nem os rústicos dões da primavera.

31: festa, riso 39: for tão desprezado 40: rústico sou eu 47: de ti partir 48: sospirando ... si-
guiste 49: Branca Philis 50: omite ó 52: de hera 53: por minha 54: não os rústicos dons

183
ÉCLOGAS

55 Já eu um' hora para ti juntava


diversas ervas, flores e boninas
em que o cheiro melhor se misturava,

ervas tratadas só das mãos divinas


das Musas, e das Graças, dos Amores,
60 das tuas mãos, e olhos, Lília, dinas.

Mas não tas ousei dar, em tais tremores (f. 8lvº)


me trazes! E chorando as espalhei,
com mágoa (quando as viram) dos pastores.

Quantas vezes quisera, e comecei


65 cantar teu nome, donde tu podesses
ouvir-me, e em começando, me calei!

Quantas vezes dizia em mim: quisesses,


Lília, espreitar-me ü'hora, tu verias
sinais do meu amor, a que fé desses;

70 se virão tão ditosos alguns dias,


que pisando contigo esta verdura
traga o coração cheio de alegrias!

Olha, Ninfa fermosa, que pintura


de campos, e de céus, menhãs, e tardes:
75 vem tu acrecentar sua fermosura .

Solta ao vento os cabelos, não os guardes


em vão; estende os olhos pelos prados.
Vem, Ninfa, foge o dia; vem, não tardes.

Aqui ao tirar, e recolher dos gados


80 soam as rústicas frautas namoradas
dos rústicos pastores namorados.

Aqui seguindo eu, Lília, tuas pisadas,


vivendo dos teus olhos, te traria
as maçãs brancas, e uvas orvalhadas.

85 Das Ninfa s üa te ofereceri a


os cestinhos de lírios escol hidos, (f. 82)
e leda com tos dar se tomaria.
55: um hora 57 : milhor 67: se viesses 68: um hora 73: Lília fe rmosa 74: manhãs 75 : vem-lhe
87: pera ti ; e com tos dar leda se iria

184
ÉCLOGAS

Outra os louros cabelos esparzidos


te cingeria de hera, ou verde louro,
90 com versos bem cantados, bem tangidos.

Este seria, ó Lília, o meu tesouro.


Mas, ah, triste, que cuido? Estou sonhando
no que desejo, e em vão desejo, e mouro.

Aónio, Aónio, quem te está enganando?


95 Lília não te ouve; ao vento te desfazes.
Se se ela não mudar, vai-te mudando:
outra acharás, se a Lília não aprazes.

5
TÉV/0
Aónio, Víncio, Tévio
AÓNIO

Porque, já que aqui ambos nos juntámos,


meu Víncio, ao pé desta árvore sombria,
dos nossos bons amores não cantamos?

Serena a menhã veio, alegre o dia,


5 verdeja o campo, o vento a fúria abranda:
cantemos de amor só, que Amor nos guia.

Eu, ah, da dura Lília, tu da branda


Célia; ouçam-no os céus, ouçam-no os montes,
ouça-o, se aqui voando o Amor anda.

Verás ao doce nome logo as fontes (f. 82v 0 )


correr mais claras, o céu mais sereno.
Lília, tu de meu canto não te afrontes.

VÍNCIO

Para cantar de Célia o dia é pequeno,


minha voz baixa, baixo Apolo, e Lino,
15 e em vão cantarei, pois em vão peno.

89: cingira 91: omite o 93: em vãos desejos mouro 95 : aos ventos 96: se se. TÉV/O 4 PL:
Serana a menhã veio, alegre dia

185
ÉCLOGAS

Que voz, que som, ó Célia, ao teu divino


nome se igualará? Tu Lília canta;
de Célia nomear ninguém é dino.

AÓNIO

Como? A tanta ousadia és vindo? A tanta


20 cegueira, que Célia ante Lília ponhas?
Lília, que Amor co'a vista incende e espanta?

Antes que a mor perigo te desponhas,


toca tua frauta, Víncio, alça teu canto.
Tudo t'apostarei, por mais que ponhas.

VÍNCIO

25 Inda que não cuidei nunca ousar tanto,


força-me Amor, e força-me a verdade.
Canto o meu não será, mas será pranto.

Roubar-te o teu, Aónio, é crueldade:


baste a vergonha, baste o gosto, e glória
30 de mostrar um do outro a falsidade.

AÓNIO

Eis vem o nosso Tévio, que a vitória


julgará justamente, Tévio às Musas
novo Apolo, nova honra à sua memória.

Já te vejo mudado, já as escusas


35 não te aproveitarão. Tévio, a contenda (f. 83)
ouve, e julga entre nós, como bem usas.

V{NCIO

Ouve-me, Tévio, e dá-me deste a emenda


de sua vã ousadia, que eu espero
que a voz lhe fuja, e Palas o reprenda.

186
ÉCLOGAS

TÉVIO

40 Começai, mas ou Títiro, ou Sincero


por juiz vos quisera. Aqui deitado
ao som desta água clara ouvir-vos quero.

Calado o campo está, e o manso gado


quietamente pasce. Apolo queira
45 vir vosso canto ouvir, dele inspirado.

AÓNIO

Lília, porque tua vista, que a primeira


vez me levou trás si, me estás negando?
Vem, Lília, ver-te-ei eu, e irei cantando
teu nome a som da frauta, e da ribeira.

VÍNCJO

50 Célia, porque minh'alma, pura, inteira,


que de mim foge, e a ti se vai voando,
não recebes? Cruel, teu nome brando
nesta voz soará, e na derradeira.

AÓNIO

Quem não viu Lília não viu formosura


55 e quem não viu Aónio não viu fogo .
Mostrou-lha Amor, e fez-se surdo ao rogo,
e Lília branda aos olhos, à alma dura.

VfNCIO

Quem a Célia não viu, não viu figura


da menhã clara. Ah, viu-a Víncio, e logo (f. 83v 0 )
60 por Célia sospirou: por riso, e jogo
julgou do prado a flor, do céu a pintura.

AÓNJO

Sobre esta clara fonte, que vestida


de verde musgo está, dest'alta faia,
enquanto Lília canto, sombra caia,
65 com que estê do sol sempre defendida.

187
ÉCLOGAS

VÍNCIO

A água desta ribeira, onde ora ouvida


a branca Célia é, nunca se saia
de sua areia, e seixos; mas levai-a,
Ninfas, ao doce som desempedida.

AÓNIO

70 Andava üa menhã colhendo rosas


Lília, e estava Amor nüa escondido.
Tocando-a Lília, foi Amor ferido
das alvas mãos, e faces vergonhosas.

VÍNCIO

Quando a fermosa Célia entre as fermosas


75 Ninfas parece, Amor fraco, e rendido
deixa arco, deixa frechas, e corrido
se vai batendo as asas furiosas.

AÓNIO

Três foram sempre as Graças nomeadas,


enquanto a minha Lília não nasceu;
80 tanto que Lília ao mundo apareceu,
por quatro são as Graças já contadas.

VÍNCIO

Nove do claro sol foram chamadas (f. 84)


sempre as Irmãs, que o mundo conheceu;
tanto que Célia nos resplandeceu,
85 por dez são já as Irmãs do sol cantadas.

AÓNIO

Vem, Lília branca, e loura: aqui te chama


o rosado verão, aqui te cria
flores o verde prado, e em companhia
d' Aónio as pisarás, que tanto t'ama.

188
ÉCLOGAS

VíNCIO

90 Por Célia sou todo água, todo chama.


O monte o sabe, o rio, a noite, o dia.
Célia a meu pranto é dura, ao fogo fria :
em mim o apaga, Amor, ou Célia inflama.

TÉVIO

Cesse já dos pastores de Arno a fama.


95 Doce me é vosso canto, e doce seja,
meus pastores, a quem mal vos desama.

Ambos iguais no canto, inda ambos veja


muitos anos cantar; e vejais cedo
a alma cheia cada um do que deseja,
100 sem pender d'esperança, nem de medo.

MÁGICA

Lícidas, Ménalo

De Lícidas, e Ménalo pastores


o novo canto, que de Amor ouvido
indo pelo ar voando c'os Amores,
ao brando som se diz que foi detido,
5 e, escondido com eles entre as flores,
cada um a mágoa, e lágrimas movido,
ao mundo perdoaram entretanto
de Lícidas, e Ménalo o som canto.

Tu, Mari1ia, tu só ingenho, e arte,


10 tu esprito me dás, que, inda algü' hora
levantado por ti, por toda a parte
ao mundo mostrará que o que em ti ora
tamanho espanto faz, à menor parte
d'outras tuas não chega: ouve-me agora
15 e esse teu alto esprito um pouco engana
c' o som da pastoril, e baixa cana.

189
ÉCLOGAS

Já a grossa, e escura sombra da cuberta


terra c' o cego raio começava
a alva lua entre as nuvens encuberta
20 apartar pouco, e pouco, e eis se mostrava,
ora meia, ora toda descuberta.
Ü a nuvem rompia, outra a cerrava,
quando cheio de dor, que a alma sentia
ao pé de ua faia Lícidas dizia: (f. 85)

LÍCIDAS

25 Sai clara, branca lua, os céus serena,


o ar abranda, enquanto aqui vãmente
a ti, e aos céus me queixo; e a minha pena
mova às estrelas mágoa, dor à gente.
E tu, meu cruel génio, esta pequena
30 tardança da triste alma me consente.
Dai, montes, sempre fé do que me ouvistes;
ajuda, frauta triste, os versos tristes.

Aqui os vales ouvem, aqui os montes,


aqui os pinheiros, e altas faias falam,
35 as mágoas dos pastores choram as fontes ,
ao som das frautas aves, feras, calam.
Os rios se detém nas suas pontes,
as árvores c'o vento não se abalam:
e vós, Ninfas, ouvi, se amor sentistes.
40 Ajuda, fráuta triste, os versos tristes.

Ao rústico Serpilo se dá Flora,


Flora de tantas mães tão desejada,
ao rústico Serpilo; quem não chora
Lícidas, a quem fora também dada?
45 Onde justiça, onde igualdade mora?
Quem esta roda traz assi forçada?
Como, lumes do céu, tal consentistes? (f. 85v0 )
Ajuda, frauta triste, os versos tristes.

Que se não poderá já ver no mundo?


50 Que não esperaremos os que amamos?
Revolvam-se as areias lá no fundo,
o rio se semeie onde pescamos,
as estrelas ao centro mais profundo

190
ÉCLOGAS

deçam, c'o sol o dia não vejamos:


55 a tudo causa, ó céus, já nos abristes.
Ajuda, frauta triste, os versos tristes.

Ó bem igual amor e bem devido,


frios te eram meus versos, rouca a lira.
Todo som, todo canto aborrecido,
60 com desprezo me olhavas, e com ira.
Já achaste um, entre todos escolhido,
Serpilo: ah, cega moça! (em vão suspira).
Vingai, estrelas, o roubo, que encobristes;
ajuda, frauta triste, os versos tristes.

65 Flora enganada, quem tão mal te cega?


Serpilo rústico é, não tange ou canta.
Que engano, ah moça, ao ódio teu te entrega,
e o teu amor te tira, e assi te encanta:
-Ama Serpilo; o teu Lícidas nega! (f. 86)
70 Quanta vingança dás de ti! Oh quanta
ira moves ao céu, a que em vão resistes!
Ajuda, frauta triste, os versos tristes.

Muitas vezes te vi em moça, e um dia


(já eu aos tenros ramos bem chegava)
75 as sanguinhas amoras te colhia,
as maçãs no regaço te lançava.
Inda eu então d' Amor livre vivia,
mas sentia-me arder, quando t'olhava.
Pagai, olhos, agora o que então vistes,
80 ajuda, frauta triste, os versos tristes.

Ah, já sei qu' é Amor: não de brandura


filho, mas d'ódio só, e d'aspereza,
gerado de diamante, e rocha dura,
imigo a nosso sangue, e natureza.
85 Onde virdes, pastores, formosura,
fugi, que ali está Amor, ali dureza.
Ditosos, que de suas mãos saístes.
Ajuda, frauta triste, os versos tristes.

Pastores (se algum está a meu canto atento),


90 que por amor em vão a alma partistes,
pastores, que perdeis vozes ao vento (f. 86v0 )

191
ÉCLOGAS

e a cruel Flora em vão, como eu, seguistes:


não façais de vãs sombras fundamento.
Deixa já, frauta triste, os versos tristes.

95 Isto Lícidas disse; o que cantava


Ménalo, Apolo o diga, que o escutava.

MÉNALO

Traze a água que cavei na branca areia,


Lícia, com minha mão, em o sol nascendo;
acende e apaga nela esta candeia
100 de três lumes três vezes, e acendendo,
a meia dela gasta; na outra meia
o meu encantamento irei fazendo .
Tu, santo Amor, minhas palavras guia.
Trazei-me, versos meus, o meu bom dia.

105 Arde o sagrado incenso. Só falecem


versos; versos a mortos tomam vida.
Com versos secos campos reverdecem,
com versos a lua é nos céus detida.
Aos versos as serpentes obedecem,
110 deles foi já Prosérpina vencida.
Cantando Orfeu Eurídice trazia;
trazei-me, versos meus, o meu bom dia.

Este sagrado mirto a ti, fermosa (f. 87)


Vénus, a ti também o teu sagrado
115 loureiro, louro Apolo, a branca rosa,
o lírio de ninguém jamais tocado
ao casto Amor, consagro. Piadosa
me sê mãe, me sê filho; e tu, cantado,
Febo, sempre em tristeza e alegria.
120 Trazei-me, versos meus, o meu bom dia.

Ata, Lícia, ata o laço de três cores


com três nós, e em atando dize: - Eu ato
de Man1ia, e Alcipo os bons amores.
Diga Amor, diga Vénus, e eu os ato.
125 Estas duas capelas de alvas flores

97: PL Traze agoa

192
ÉCLOGAS

que aqui a Apolo pus, eu as desato:


esta a mim, esta a Alcipo meu tecia.
Trazei-me, versos meus, o meu bom dia.

Enquanto Alcipo tarda, é o dia escuro,


130 encobrem-mo mil nuvens: eis derramo
da Fénix casta a cinza, em que o seu puro
corpo se queima, e nasce, e Alcipo chamo.
Vem, Alcipo, vem já! Porque tão duro
és a Man1ia? Ah, meu Alcipo, eu te amo:
135 contigo o céu se me esclareceria.
Trazei-me, versos meus, o meu bom dia.

Qual por montes, e bosques a cansada


novilha, o branco touro em vão buscando,
junto d'água em verde erva só deitada,
140 da noite que já vem não se lembrando,
ali de saudade traspassada
toda em seu brando amor se está gastando,
tal por mim meu Alcipo ver queria.
Trazei-me, versos meus, o meu bom dia.

145 Este limo, trazido lá do Nilo,


me deu Méris, e esta erva que lá nasce
tinta no sangue do espantoso Horilo,
que mil vezes é morto, e mil renasce,
e esta espinha de um manso crocodilo
150 que n'água vive, e na ribeira pasce.
Com isto em mil formas Méris se fazia.
Trazei-me, versos meus, o meu bom dia.

Aqui d' Alcipo tenho inda guardados


os seus doces despojos; inda leio
155 mil versos em meu nome aqui cortados
nesta faia. Esta faia, Alcipo, creio.
Dos prazeres por ti profetizados,
Alcipo, inda o primeiro me não veio.
Mostra a verdade, Alcipo, a quem te cria. (f. 88)
160 Trazei-me, versos meus, o meu bom dia.

Eis as folhas baliram do loureiro;


eis o mirto com flores se levanta;
ouço asas, ouço a aljaba do frecheiro;

PL 163: ouço aljaba

193
ÉCLOGAS

à mão direita Filomela canta.


165 Alcipo vem, Alcipo verdadeiro
no casto amor, e na firmeza santa.
É Alcipo, ou m' engana a fantesia.
Cessai, versos: já chega o meu bom dia.

DÁFNIS
Eurilo, Lícidas

EURILO

Aqui, Lícidas, canta: olha quão branda


por entre as verdes canas vem balindo
a fresca viração, qu' este ar nos manda.

Olha quão enlaçada vai sobindo


5 pelos altos ulmeiros a verde hera,
de que tão doce sombra está caindo.

Se ora cantasses, Lícida, eu te dera


bom prémio; ah, pastor, canta; eu quero dar-te
um prémio que inveja a Títiro fizera. . (f. 88v0 )

LÍCIDAS

10 E a qual bom cantor, ou em que parte


viste, Eurilo, vender nunca seu canto,
que Apolo gracioso nos reparte?

EURILO

E qual preço será tão rico, e tanto,


Lícida, que igualar possa a brandura
15 do teu som, que desfaz o Amor em pranto?

LfCIDAS

Só da branca Man1ia a fermosura,


negra nos olhos, negra nas pestanas,
meu canto paga, minha voz apura.

194
ÉCLOGAS

Rústico Mévio, ah, porque mal profanas


20 o som devido às Musas, e os Amores?
Porque infamas, mau Bávio, as doces canas?

EURILO

Mévio e Bávio são rústicos pastores.


Tu, meu Lícidas, só, tu só nos cantas.
Mévio e Bávio são rãs, não são cantores.

25 A quem tu não deleitas, não espantas,


pareça Mévio bem, Bávio deleite.
Tu a mim canta e tange às Musas santas.

Um vaso tenho ali de puro leite,


daquela branca cabra hoje mungido:
30 dar-to-ei, e um tarro d'hera, em que to deite,

um novo tarro, Lícidas, trazido


d 'estranhas terras, dum grã mestre obrado,
por onde licor nunca foi bebido.

Nunca o cheguei os beiços, mas comprado (f. 89)


35 por um tenro cabrito, assi tégora
inteiro o tive sempre, e bem guardado.

Cada vez que as figuras vejo, chora


a minh'alma de mágoa. Está a ribeira
do rico Tejo, onde Neptuno mora.

40 Ali tristes pastores, e primeira


chorosa Vénus, sátiros, silvanos,
de toda flor que em Pafo, e Gnido cheira

um pastor cobrem, a que os leves anos


fugindo vão. Amor ali esmorece,
45 então só piadoso de seus danos .

C'o brando Adónis todo se parece


o moço branco e louro (ah, crueldade,
os olhos cerra, como que adormece!),

195
ÉCLOGAS

cruelmente cortado em mocidade,


50 como do duro arado a branca rosa
que o duro lavrador move a piedade.

Em outra parte está como queixosa


contr' os céus üa Ninfa mansamente
chorando, e assi chorando, mais formosa.

55 Lucina, mais que nunca diligente,


um minino à luz clara então mostrando,
da triste Ninfa parto seu recente,

o dá às douradas Horas, que criando


o vão mimosamente; e eis que as três Fadas (f. 89v0 )
60 já na mão tenra um cetro lhe estão dando.

Logo após, às Ninfas que espantadas


saem do fundo pego, dum alto monte
as estrelas por Proteu são mostradas.

E como que c'um dedo aos céus aponte,


65 com outro no minino: - Por escrito
teus dias - diz - ledos o mundo conte.

A mão do mestre igual ao grande esprito,


Lícida, esta viva obra aqui cortou.
Lá na Arcádia se fez ; vendeu-ma Eucrito.

70 Mas se a tua voz, que sempre me soou


branda, enquanto aqui o sol o pasto tolhe,
soltar quiseres, Lícida, eu to dou.

Lícida, canta: assi amorosa te olhe


aquela a quem tu cantas, e te teça
75 fresca capela, quando as flores colhe.

Sempre às tuas ovelhas reverdeça


o prado, e o triste inverno, que tememos,
aos olhos da tua Ninfa nos floreça .

51: PL omite a 57: resente 61 : as Ninfas

196
ÉCLOGAS

O nosso Dáfnis, que já aqui não vemos,


80 o brando Dáfnis com teus versos chama.
Versos a Dáfnis, doces versos demos.
Voz de Lícidas é, que Man1ia ama. (f. 90)

LICIDAS

Que fontes, ou que bosques lá forçadas


vos tinham, de Apolo Irmãs fermosas,
85 quando a Dáfnis as cores demudadas
vos não tornavam dele piadosas?
Como alvas flores do sol são cortadas,
como murchas do frio as brancas rosas,
se cortou Dáfnis: nós que esperaremos?
90 Versos a Dáfnis, doces versos demos.

Tinha-vos por ventura o vosso monte


ou as alturas lá do fresco Pindo?
Porque eu não creio que em sua branda fonte
vos estivesse o Mondego encobrindo.
95 Não creio que, por mais que se nos conte
da fresca Tempe, ali fôsseis fugindo
o amor de Dáfnis, por quem cá vos temos.
Versos a Dáfnis, doces versos demos.

Dáfnis choraram na montanha as feras,


100 choraram os lobos, os liões choraram.
Despiram-se os ulmeiros de suas heras,
os rios às suas fontes se tornaram.
As Ninfas contra si cruéis, e feras
pelas praias em vão Dáfnis chamaram:
105 - Dáfnis, ah Dáfnis, onde te acharemos?
Versos a Dáfnis, doces versos demos. (f. 90vO)

Chorou o bárbaro cita, o duro geta,


em quantos campos rega o Gange, e o Nilo.
Chorou o árabe, o índio, o destro em seta
110 parto, o grande alifante, o crocodilo.
Bem prometeu tua morte o cruel cometa
que vimos; ninguém soube então senti-lo.
Ah, rústicos, que os céus nunca entendemos!
Versos a Dáfnis, doces versos demos.

antes de 83: omite o nome do interlocutor

197
ÉCLOGAS

115 Veio Ovílio pastor, que na ribeira


do Tibre suas manadas apascenta:
- Quem levará - diz - já por chã carreira
o gado? Quem da cheia, e da tormenta
o recolherá são? Quem verdadeira
120 semente à terra lança, e acrescenta?
Quanto em ti, bom pastor, todos perdemos!
Versos a Dáfnis, doces versos demos.

Vinham outros pastores lá das serras


da ne11e frias, outros das campinas:
125 - Ditoso Dáfnis, nós em sangue, e guerras
ficamos - dizem-; tu melhor atinas.
Outros pastos terás lá, outras terras,
fontes que sempre lá manam continas.
Tu vás viver; nós cá nos mataremos.
130 Versos a Dáfnis, doces versos demos. (f. 91)

Não tanto o delfim lá no mar chorava,


não tanto Filomela lamentou,
não tanto Ariadne aos ventos se queixava,
nem tanto cisne em morte pranteou,
135 nem tantas vezes Eco a voz tomava
do fermoso pastor, que em vão chamou,
quanto Dáfnis choraram; e nós choremos,
versos a Dáfnis, doces versos demos.

Dáfnis, tu aos pastores ensinavas


140 como ao curral viria o bravo gado.
Tu as surdas serpentes encantavas,
e os duros touros punhas ao arado.
Aqui d'ua sebe, aqui d'outra cercavas
teu rebanho dos lobos bem guardado.
145 Se são nos fica o gado, a ti o devemos.
Versos a Dáfnis, doces versos demos.

Dáfnis, tu sacrifícios ordenaste


aos pastores, tão santos; tu lhe ergueste
pera os céus novo esprito, e levantaste
150 altar à santa paz em que viveste.
Com quanto amor, bom Dáfnis, já pisaste
estes campos, e esta água aqui bebeste!
Brando Dáfnis, sem ti como a bebemos?
Versos a Dáfnis, doces versos demos. (f. 91 v0 )

198
ÉCLOGAS

155 Ah, Dáfnis, chama, Dáfnis, ah, suspira


o teu mimoso gado, pastor brando.
Quem inda esse teu rosto um tempo vira,
que sempre ledo nos estava olhando!
No manso peito teu nunca entrou ira.
160 Amaste em vida, ah, e morreste amando.
Quando outro amor, ó bom pastor, teremos?
Versos a Dáfnis, doces versos demos.

Ah, que a malva, e a ortiga reverdece;


dum dia noutro toma outra erva nova;
165 seca-se o campo, com Abril florece,
Maio cad'ano a pintura renova ;
desaparece o dia, eis aparece;
acaba o ano o sol, o sol o enova;
nós pera sempre desaparecemos.
170 Versos a Dáfnis, doces versos demos .

- Ficai, minhas ovelhas, meus cordeiros


- diz Dáfnis - , claras fontes , bons pascigos.
Tenhais de meu herdeiro mil herdeiros.
Vivei em paz, pastores meus amigos.
175 Mil Dezembros conteis e mil Janeiros,
num amor juntos contra os maus imigos.
Dáfnis, dizei, que nos amou, amemos.
Versos e flores a seus ossos demos. (f. 92)

EURILO

Mel puro da tua doce boca mana,


180 meu Lícidas, teus versos favos são.
Febo tempera a tua suave cana.

Nunca a voz te enfraqueça, nunca a mão


te canse, nunca este ar deixe de ouvir-te
ao sol, à sombra, em inverno, e verão.
185 Fresco leite no tarro vou mungir-te.

8
FLÓRIS

Lá onde o claro Tejo a praia lava


rica das brancas conchas d'Oriente,
já seus cabelos n' água o sol molhava,

199
ÉCLOGAS

quando, seguindo Amor, fugindo a gente,


5 dum alto, que o mar longe descobria,
té onde o Tejo perde sua corrente,

Lídia c'os olhos, triste, em vão seguia,


quanto a vista alcançava, a nau ligeira
que c'o seu Flóris desaparecia.

10 Como se fosse aquela a derradeira


vista de Flóris, Lídia assi chorosa
o chamava em voz alta na ribeira:

- Flóris cruel, e dás-te à furiosa


força do mar, e vento, e a mim, que te amo,
15 deixas assi morrer de ti saudosa?

Se lá te soa a voz, com que te chamo,


torna, Flóris, ah torna; e não te abrandas,
ah duro, a quantas lágrimas derramo?

Ninfas do doce Tejo, Ninfas brandas,


20 e tu, das doces águas brando Tejo,
que o grande mar já c'o tridente mandas,

ali vai meu amor, e meu desejo.


Se amor sentis, fazei que tornar veja
aquela cruel nau, que fugir vejo,

25 ou ponde-mo já vivo onde deseja


Flóris, se tanto folga assi fugir-me .
Bom vento, imiga nau minha, te reja.

Porque assi, Flóris meu, folgas partir-me


esta minh'alma? Antes ma levas lá:
30 assi podesse eu toda após ti ir-me!

Se o meu amor em prémio meu me dá


ódio, e por me fugires, pões em sorte
a vida aos ventos, Flóris, torna cá.

Torna, e vive tu, Flóris: quem tão forte


35 em te amar é, será em deíxar a vida.
Cessará o meu amor, e a tua morte.

PL 13: a furiosa 15: ossi

200
ÉCLOGAS

Ah, duro! É na montanha alta seguida


do lião a que o foge, é do carneiro (f. 93)
no campo a ovelha, e eu sou de ti fugida?

40 Não o creio, meu Flóris, não. Primeiro


o Amor deixará os doces Amores,
seu rnirto Vénus, Febo o seu loureiro,

o verde Abril secará as tenras flores,


reverdecerá o campo em seco Agosto,
45 que tal creiam de Flóris os pastores.

Já t'eu vi algum'hora o branco rosto


por Lídia em doces lágrimas banhado,
outr' hora em doce riso, e brando gosto.

S'a algum vento inconstante tens já dado,


50 como te deste a ti, minhas lembranças,
tu só deves de ser nisto culpado.

Branca lua, senhora das mudanças,


dos tempos, e dos mares, s' algum'hora
em desejos viveste, em esperanças

55 (inda o látmio penedo inda lá chora


tuas doces mágoas, inda se deleita
do teu amor, onde teu Endírnion mora),

leva cos brancos raios teus direita


aquela nau, e tem firme a vontade
60 de Flóris, a quem eu seja sempre aceita.

Aves , que serenais a tempestade,


aves, que saudosas já chorastes
das ondas, e do vento a crueldade, (f. 93v0 )

s' algü' horajá as ondas desejastes


65 brandas a vosso amor, entregue aos ventos,
doa-vos meu amor, aves que amastes.

Sete dias podeis os movimentos


dos ventos abrandar, mas sete setes
os detende ora lá nos seus assentos.

201
ÉCLOGAS

70 Se me isto, ó branca Alcíone, prometes,


inda lá te pareça em sua figura
teu Ceice, por quem n' água inda te metes.

Eu entanto das flores, e verdura


tecerei mil capelas ao teu brando
75 filho, ó deosa d'amor, e de brandura.

E assi colhendo as flores, vigiando


estará o mar minh' alma, e à doce lira
Alcipo os doces versos seus cantando.

Cantará como em vão chora, e suspira,


80 à vista da cruel nau que inda aparece,
aquela que Teseu por seu mal vira;

como se queixa ao mar, como esmorece


a moça ali deixada em tanto medo;
entretanto o cruel desaparece.

85 Estava a triste Ariadne no penedo,


dua parte mar bravo, d'outra feras :
ditosa morte, se vieras cedo!

- Cruel Teseu, cruel - diz - , que fizeras (f. 94)


a um teu cruel irnigo, se a quem t' ama
90 assi deixas ao mar e às bestas feras?

Despois me cantará da que inda chama


d'alta fogueira, já com a espada nua,
o cruel, que do mar enxerga a chama.

- A causa - diz - da morte e a espada é tua,


95 falso troiano; só a mão é minha.
Vingue em si, quem mal ama, a culpa sua.

Também do nadador que ia, e que vinha,


ondas ao rosto, o peito às ondas duro,
a luz que o lá chamava, e o cá detinha.

100 Enfim, mar, cruel és, pouco seguro


aos bons amores: lanças morto à praia
o triste moço, Hero do alto muro.

90: PL as bestas feras 98: as ondas

202
ÉCLOGAS

Agora, brando mar, a fúria caia,


enquanto Flóris vem; clara, e serena
105 sobre estas ondas tua fronte saia.

Vós, Amores, voai, e üa doce pena


dessas pregai a Flóris, com que ardendo
sinta do fogo meu parte pequena.

Outros as bravas ondas vão rompendo;


110 outros postos estêm ao ferro e fogo;
meu Flóris a sua Lídia estê cá vendo,
saudoso d' Amor, brando a meu rogo.

MIRANDA

Alcipo, Andrógeu

ALCIPO

Quanto tempo, ó Andrógeu, não cantamos?

ANDRÓGEU

Fugiu-nos o prazer, e torna tarde,


saudosos por ele suspiramos.

Vês o mundo que vai? Vês que fogo arde


5 por tanto campo lá, por tanta serra,
que a nossa cá ameaça?

ALCIPO

Deus a guarde.

ANDRÓGEU

Mal nascidos pastores, triste terra


tanto tempo queimada, cruéis mãos,
contra vossas entranhas moveis guerra?

203
ÉCLOGAS

10 Tomai, pastores, conselhos mais sãos:


olhai o lobo, que lá está em espreita,
e o melhor leva sempre dentr'as mãos.

Junto num corpo o gado por direita


estrada, em sangue tinto um só seguindo,
15 que jornada fareis aos céus aceita!

Ir-se-vos-ia (eu o vejo) o mar abrindo,


abaixando-se serras; que ervas e águas
iríeis e que campos descobrindo!

ALCIPO

Não lembremos, Andrógeu, tantas mágoas.


20 Corre o mundo já assi "°ás seu mal cego; (f. 95)
ardem no peito d'ira vivas fráguas.

Mores rios lá vejo, não to nego,


mais espaçosos campos; mas ditoso
quem seu gado apascenta em bom sossego.

25 Enquanto o nosso gado aqui mimoso


bebe do doce Tejo a água corrente,
não lhe queiramos bem mais deleitoso.

Vivamos e cantemos ledamente,


e aquela divindade celebremos
30 que à fonte água nos dá, fruito à semente.

ANDRÓGEU

E a que ouvidos me mandas que cantemos?

ALCIPO

De Man1ia, de Délia, e dos Amores.


Nem o povo nos ame, nem o amemos.

ANDRÓGEU

Surdos ouvidos, bárbaros pastores,


35 quão mal bebeis do Tejo as águas claras!
Quão mal pisais as bem nascidas flores!

204
ÉCLOGAS

ALCIPO

Quantos tu, claro Febo, desemparas,


venham buscar o teu divino lume
nos brandos olhos de duas Ninfas raras.

ANDRÓGEU

40 Quem de Pindo subir ao alto cume ...


Não posso erguer a voz, e a noite ao dia
cantando ajuntei já. Tudo é costume.

ALCIPO

Arde em chamas o peito, a língua é fria.


As lágrimas são fogo, o rosto neve.
45 Quem juntamente assi me queima, e esfria? (f. 95v 0 )

ANDRÓOEU

Algum vento amoroso, brando, e leve


ajude minha voz, e ma levante,
e parte dela à branda Délia leve.

Alcipo, eu não posso ir mais por diante.


50 Foge-me a voz, carrega-se-me o esprito,
e não sei quem me manda que não cante.

ALCIPO

Eu vejo aquele alto ulmo, Andrógeu, escrito.


De fresco ferro está (vem ver) talhado.
Eis que todo tremeu, e soou um grito.

ANDRÓGEU

55 Algum segredo, Alcipo, aqui guardado


está de fauno ou Ninfa: lê.

205
ÉCLOGAS

ALCIPO

Divino
verso é, e não de humana mão cortado.

ANDRÓGEU

Ninfas sagradas, Ninfas, não sou dino


de ver vossos segredos. Tu me ajuda,
60 tu me sê, brando Apolo, ora benino.

«Aquela lira, a cujo som se veio


do Tibre e d' Arno Apolo, a Neiva, e Lima,
por quem verde era o campo (o rio cheio
corria à voz da nova tosca rima),
65 despois que o bom Miranda, em cujo seio
o santo fogo ardeu, se foi acima,
pendurou aqui Febo. Aqui guardada
manda ser, dos pastores sempre honrada.»

ALCIPO

Feriste-me a alma de üa ponta aguda,


70 Andrógeu: é morto o nosso bom Miranda. (f. 96)

ANDRÓGEU

Isto fazia a minha língua muda.

ALCIPO

Ó bom poeta, e já a tua doce, e branda


voz se calou, já por aqui não soa,
nem os ventos serena, o mar abranda?

ANDRÓGEU

75 Ah, já aquela inocência santa, e boa


do bom velho, aquela alta e sã doutrina
nos deixou. Quão depressa o melhor voa!

206
ÉCLOGAS

ALCIPO

Ah, santo velho, de mil anos dina


era tua vida, e inda mil anos cedo.
80 Quem honra o campo? Quem virtude ensina?

Já não, do pé da faia, ou do penedo


muscoso, te ouvirá o campo, e o vale
cantar da terra, e céus o alto segredo.

O rio seque, e o campo; Apolo cale.


85 Chorem as tristes Irmãs, nem já aqui soe
frauta, pois nenhüa há que a tua iguale;

nem pastor cante nem touros coroe;


nem tenha hera, ou loureiro já verdura;
nem Ninfa d'água saia, ou ave voe.

90 Perdeste, Apolo, já tua fermosura


do teu poeta sempre tão cantada;
perdeste, Amor, teu fogo, e tua brandura.

Ó doce, e grave lira temperada


daquela mão que assi te fez famosa,
95 não consintas ser de outra mão tocada.

A nossa idade, que tu tão ditosa


fizeste, te honre sempre, e louve, e ame,
pois por ti será sempre gloriosa.

E quem hájá que c'o som brando chame


100 as belas Ninfas a lugar sombrio,
e pelo verde chão flores derrame?

Quem vestirá dos ulmos já o rio?


Quem cobrirá de sombra as claras fontes,
e os tenros mirtos guardará do frio?

105 Aquele som, que enchia d'erva os montes,


que o gado derramado a si juntava,
e que os rios detinha nas suas pontes;

aquele som, que tão doce soava


por toda a parte; ah, já morreu contigo.
110 Que fará quem ouvir-te desejava?

207
ÉCLOGAS

Ah meu bom mestre, ah pastor meu amigo,


como minh ' alma, e olhos se estendiam
por ver-te, e o duro tempo foi-me imigo!

Mas, inda que os meus olhos te não viam,


115 cá te tinha minh'alma, e os teus bons cantos
lá me levavam, e de ti todo enchiam.

Dai ao vosso poeta tristes prantos,


Tejo, Mondego, Douro, Lima, Odiana!
Ó Nilo, ó Gange, dai-lhe lá outros tantos!

ANDRÓGEU

120 Não pode a obrigação, Alcipo, humana (f. 97)


fugir o bom Miranda, aos céus é ido.
Nunca do campo aos céus o passo engana.

Mas quando poderás ser esquecido?


Estar-te-ão tigres, e liões chamando;
125 será de tigres teu bom canto ouvido.

ALCIPO

Vejo vir nosso Sázio lá chorando,


Sázio, que docemente assi pendias
daquela boca, e som suave, e brando.

Vive tu lá, Miranda, imortais dias,


130 da coroa de louro ido à da glória,
e enquanto com tua luz de lá nos guias,
recebe isto que canto em tua memória.

Aqui Neiva, aqui Lima, triste chora,


quebra seu arco Amor, Apolo a lira,
135 seca a fonte Hipocrene, os louros Flora,
o bom canto emudece, Eco suspira.
Mas, no céu, leda a inocente alma mora
do bom Miranda, que de lá inspira
santo fogo de amor, e santa paz.
140 Lá estás, Miranda; aqui só terra jaz.

208
ÉCLOGAS

10

SEGADORES

Ao senhor D. Duarte (f. 97v")

Silvano, Falcino

No campo do Mondego, ao meio-dia,


dous segadores, Falcino, e Silvano:
enquanto os outros jazem à sombra fria
no mais ardente sol de todo ano,
5 eles sós segam e cantam a porfia
d' Amor. Um seus bens canta, outro seu dano;
arde o mundo, a cigarra só responde.
Amor ora aparece, ora se esconde,

inda daquela Ninfa saudoso


10 que no claro Mondego se banhava,
e tanto tempo trouxe em vão queixoso
o pastor, que Serrano se chamava,
que, convertido em cisne, no amoroso
seu fogo ardendo, o seu fim cantava.
15 Inda a busca o Amor menhã, e tarde;
ela o despreza, e em outro fogo arde.

Namorou-se o Amor dos seus amores


daquele pastor triste, e fez-lhe guerra.
Quem viu tão desiguais competidores,
20 Amor contr'um pastor, fogo co'a terra?
Enfim choraram Ninfas e pastores
Serrano morto naquel' alta serra.
Ela o Amor fugiu, que em vão a chama,
s' em vão Serrano amou, e ele em vão ama. (f. 98)

25 Dali o cruel ficou, segundo soa,


afrontado de si mesmo, e corrido.
Menos dizem que fere, e menos voa,
e assi do mundo é já menos temido.
Fez de seu fogo em si üa prova boa,
30 sospirou de sua frecha em vão ferido.
Da sua divina força perdeu parte,
com que vencia a Júpiter, e Marte.

209
ÉCLOGAS

Forçado da desonra, e da vergonha


ao bosque, ao campo, ao rio vai fugindo .
35 Ali vãmente em seus amores sonha,
ali em seu fogo s'está consumindo:
contra a rústica gente sua peçonha
mostra, e seu fraco arco está brandindo.
Outros dizem que agora é mais cruel,
40 mais armado de fogo , mais de fel.

E por fazer üa áspera vingança


em castigo daquela ofensa sua,
faz quem mais ama amar sem esperança,
e a mais fermosa Ninfa faz mais crua.
45 Cresce o amor, no mal não há mudança.
Castiga em ti , cruel, a culpa tua
ou, se ser desprezado te dói tanto,
põe do teu fogo nelas outro tanto. (f. 98v 0 )

Alto senhor, se a teus altos ouvidos


50 chega o som baixo da samponha minha,
serão meus versos tão engrandecidos,
quanto pera os ouvires lhes convinha.
Outros maiores, que te são devidos,
já os tentei em vão, que não sostinha
55 o peso do teu nome alto, e real
tão fraco ingenho, e voz tão desigual.

Já, senhor, teu Andrade se aparelha


ao alto canto desta empresa dino;
já com todas as Musas se aconselha
60 em que modo, em que som mais peregrino
cante teu nome; e como colhe a abelha
da melhor flor o seu liquor divino,
assi escolhe o melhor de Apolo, e Marte,
para mostrar ao mundo o grã Duarte.

65 Tu, por honra das Ninfas tão fermosas,


Lília, e Célia, que aqui são cantadas,
de Falcino ouve as queixas amorosas,
de Silvano ouve as rimas namoradas.
E de Lília, e de Célia desejosas
70 de cantar sempre, e sempre aparelhadas
estão as Musas; e elas inspiravam
a Falcino, e Silvano o que cantavam. (f. 99)

210
ÉCLOGAS

SILVANO

Quem te não ama, Amor, não te conhece.


Quem se queixa de ti de todo é cego.
75 Com amor se semeia, e madurece
o branco trigo, que eu cantando sego.
Com amor a água do Mondego crece,
com amor cantam Ninfas no alto pego.
Com amor cantarei os meus amores,
80 e vencerei cantando os segadores.

FALCINO

Quem a Amor chama amor, o nome lhe erra,


e é mais cego, quem lhe cego chama.
Frechas, e fogo que são senão guerra?
Donde senão dos olhos lança a chama?
85 Não embebe tanta água a grossa terra,
nem tanto a loura espiga a fouce chama,
que eu mais água dos olhos não derrame,
e que mais polo Amor em vão não chame.

SILVANO

Se tu, ó Célia, aqui chegasses ora,


90 logo eu, desses teus olhos esforçado,
mais feixes destes segarei numa hora
dos que Falcino tem hoje segado.
Não venhas, Célia, ah, não saias fora,
que arde o sol muito, está o campo abrasado,
95 e inda o sol arderá mais, em te vendo,
que por te ver se vai assi detendo. (f. 99v 0 )

FALCINO

Se a minha Lília aqui ora viesse,


não arderia o sol quanto agora arde,
que eu sei que antes os raios encolhesse,

PL 91: num hora

211
ÉCLOGAS

100 mudando a sesta nüa fresca tarde,


e que ant'ela a sua luz escuresse.
Roga, Silvano, ao sol que um pouco aguarde.
Verás, se Lília vem, a diferença,
verás quem em amar, e em segar vença.

SILVANO

105 Pus-me a olhar a menhã como saía


alva, e rosada, e tão resplandecente;
eis que por outra parte aparecia
Célia, abrindo ao mundo outro oriente.
Enquanto üa fermosura, e outra via,
110 conheci a diferença claramente.
Perdoai, disse, estrelas radiosas:
inda as cousas mortais são mais formosas.

FALCINO

Fugiu-me a alma, já o sei, pera a formosa


Lília; ali a acolheita tem segura.
115 Que fizera se branda, e se amorosa
Lília lhe fora, assi como lhe é dura?
Ou se a não avisara que enganosa
de Lília era aquela formosura?
1-la-ei buscar, e hei medo que fiquemos
120 lá ambos. Dize, Amor, que aqui faremos? (f. 100)

SILVANO

Quem seu trigo semeia em terra boa


recolhe sempre o desejado fruito,
quando Abril sua água branda coa,
e quando Maio vem ventoso, e enxuito.
125 Não venha o mau suão, que a espiga moa,
nem muito frio o sol, nem quente muito.
Assi a Amor também seus tempos vem,
e quem seus tempos lhe erra, não o tem.

PL 113: Fugiu-me Alma 124: enxuto

212
ÉCLOGAS

FALCINO

Eu semeei, Silvano, em hora escura,


130 em parte onde não chove, nem orvalha.
Enganou-me da terra a fermosura,
nem semente colhi, nem grão, nem palha.
A Aristo nasce o trigo em pedra dura,
que parece que ao vento o lança, e espalha.
135 Assi c'o Amor mais a ventura val:
o mal paga c'o bem, o bem c'o mal.

SILVANO

Lília fala, Amor está falando.


Lília ri, Amor também está rindo.
Lília chora, Amor está chorando.
140 Lília abre os olhos, está-os Amor abrindo.
Lília canta, Amor está cantando.
Lília vai-se, vai-se o Amor indo.
Nisto só desconformam: Lília é dura,
o Amor dizem que todo é brandura. (f. IOOvº)

FALCINO

145 Nos cabelos de Célia o Amor se tece,


nos seus olhos Amor seu fogo acende.
Amor na boca, e testa resplandece,
n' alva e rosada face Amor se estende,
Amor nos brancos peitos lhe adormece.
150 Em tudo nela Amor se vê, e entende.
Mil amores consigo Célia traz.
Quem, Célia ouvindo, ou vendo, terá paz?

SILVANO

A Ceres é devida a sementeira,


as rosas ao verão, a Flora as flores,

PL 151 : censigo

213
ÉCLOGAS

155 a Baco a vide, a Palas a oliveira,


a Abril o verde prado, a Maio as cores.
A Lília a fermosura verdadeira,
a Lília as graças, a Lília os amores .
Os sospiros, e as lágrimas em sorte
160 a Amor couberam; a mim, por Lília, a morte.

FALCINO

O sol o inverno, o sol o verão traz,


o mesmo sol a noite, o sol o dia;
assi Amor faz guerra, Amor faz paz,
o mesmo Amor tristeza, e prazer cria.
165 O sol a calma, o sol a chuva faz,
o mesmo sol a terra aquenta e esfria;
assi água c' o fogo ajunta Amor
e lágrimas mistura, riso, e dor. (f. 101)

SILVANO

Se lágrimas não foram, todo ardera,


170 e se não fora o fogo, todo em água
por ti, ó Lília, já me desfizera,
assi por ti sou, Lília, viva frágua .
S 'Amor a um contrário outro não dera,
quem tanto ardor sofrera? Quem tanta água?
175 Assi co'a água e c'o fogo sou mais forte;
assi passo por ti dobrada morte.

FALCINO

Tu passas, ó cigarra, a sesta ardente


cantando à sombra dessas verdes ramas.
A noite fria dormes docemente:
180 não te queixas d' Amor, nem seu bem amas.
Vives cantando, e como quem não sente;
cantando morres, e tua morte chamas.
Ó ditosa cigarra, se tu amasses,
eu sei que nem dormisses, nem cantasses.

175 PL: co água

214
ÉCLOGAS

SILVANO

185 Quando mostrar-te quero o pensamento,


Lília, que n'alma escondo, e o que queria,
as palavras se vão da boca em vento,
e de um mortal suor a alma se esfria.
Arço por ti, e em vão mostrá-lo tento,
190 mas bem to mostra a minha covardia.
Se me calo, os meus fogos são mais fortes :
assi mouro por ti, Lília, duas mortes. (f. 101 vº)

FALCINO

Pastores, buscais fogo? Vinde aqui.


Que mais fogo quereis que o que estais vendo?
195 Fogo sou, des que a branda Célia vi,
e tudo quanto toco em fogo acendo.
Acendei vossas iscas, e fugi:
não vos chegueis a mim, que ireis ardendo.
Arderá, se o tocar, o bosque logo.
200 Fugi, que quanto vejo é calma, e fogo.

SJLVANO

Falcino, a voz, e a fouce te enfraquece,


a ordem de segar levas errada.
A espiga, que ante os pés se te oferece
deixas, e segas a que está arredada.
205 A mão te treme, o rosto amarelece.
Um rego mal segaste, do outro nada.
Vai-te à sombra, Falcino, vai-te ao rio,
que eu segarei cantando ao sol, e õ frio.

FALCJNO

Bem podes tu vencer na fouce, e braço,


210 mas serás no amor de mim vencido.
Esses erros, Silvano, eu não os faço,
que não trago na fouce o meu sentido.
Mas tu, a quem Amor dá tanto espaço,
não tens jornal tão grande merecido.

215
ÉCLOGAS

215 S 'eu hoje Lília vira, eu só segara,


sem descansar, outra maior seara. (f. 102)

Erguei-vos já, ó fracos segadores,


que jazeis atégora à sombra fria.
Vinde ver como segam os amores
220 na mor força da calma ao meio-dia.
Ó doce Amor! Quem sofre teus ardores,
como do sol o ardor não sofreria?
Amai, amigos, ser-vos-á proveito.
Tereis o corpo ao sol, e à neve afeito.

11

ANDRÓGEU

Este último favor só me concede,


rústica Musa, e dá-me um novo canto,
qual meu amor a meu Andrógeu pede.

A Andrógeu meu, que eu amo, e me ama tanto,


5 meus versos dou. Fílis fermosa os leia;
Fílis de Andrógeu abrande o fogo e o pranto.

Leve ao mar clara, e doce sempre a veia


o Tejo, enquanto eu canto, e onda salgada
não toque em sua dourada, e branca areia.

10 Fílis cruel, de Andrógeu tão cantada,


Fílis cruel, de Andrógeu viva morte,
té quando queres ser em vão chamada? (f. 102vº)

Amor nesses teus olhos se fez forte,


no brando peito teu pôs sua dureza:
15 qual pôde ser do triste Andrógeu a sorte?

Em outro mundo, em outra natureza


vives, outro céu vês, outras estrelas,
s' essa ingratidão chamas fortaleza.

Olha, Fílis fermosa, as Ninfas belas,


20 que não desprezam sempre os seus pastores,
que lhes tecem, e lhes dão frescas capelas.
217 PL: segadoros

216
ÉCLOGAS

Porque cria Abril ervas, Maio flores,


porque correm, ó Fílis, águas claras,
se tu tens por vãos sonhos bons amores?

25 Tu desprezas Amor, tu desemparas.


Assi, cruel, quem te ama? Ah, Fílis dura,
quanto outra foras, se tu em vão amaras!

Não basta, ó Fílis, essa fermosura?


Não desses olhos teus o raio claro?
30 Não dessa neve a tão rara brancura?

Inda a quem te vê queres que mais caro


custe sua morte? E porque o desesperes,
que em ti, nem no Amor mesmo, ache emparo?

Fílis, ou tu com as frechas do Amor feres,


35 ou fere o Amor c'os teus olhos fermosos:
porque inda mais dureza ajuntar queres?

Ah, movam-te, cruel, os saudosos (f. 103)


gritos, ah, movam-te os suspiros tristes,
que não ousam mostrar-se inda queixosos.

40 Dizei, montes e vales, o que ouvistes


(inda o som doce pelos ares voa),
dizei qual aqui o triste Andrógeu vistes.

Teu nome, que tão alto ao longe soa


na doce voz de Andrógeu, e doce cana,
45 por quem tua fermosura se pregoa,

teu raro esprito, alçado em mais que humana


voz, que amor cria, e espanto em toda parte,
porque a quem tão bem o canta tanto dana?

Fílis, do meu Andrógeu a melhor parte


50 me tens roubado, e tu, desconhecida,
vences inda em dureza o bravo Marte.

S' algü'hora acertou de ser ouvida


de ti sua voz tão branda, ou se algü'hora
viste do mortal rosto a cor perdida,

217
ÉCLOGAS

55 verias bem, ó Fílis, que não chora


a sua morte Andrógeu, pois que te ama,
mas a dor de deixar de ver-te ü'hora.

Ditosa a morte por ti, Fílis, chama;


os pastores lhe chamam desditoso,
60 Fílis cruel, que tal amor desama.

Vem o agreste Pan triste, e choroso,


as frontes de pampilhos coroado, (f. l03v 0 )
-Andrógeu, de quem andas - diz - queixoso?

De ti te queixa só, ou do teu fado:


65 Amor essas tuas lágrimas não sente
que nos olhos de Fílis vês armado.

Nem lágrimas a Amor, nem a corrente


ribeira farta o prado, nem à abelha
o alecrim, nem sol, e água à semente.

70 Vem outro, chora; vem outro, aconselha:


- E tu, Andrógeu, estás em teu perigo,
qual ante o lobo a paciente ovelha.

Veio Vénus, sorrindo-se consigo.


O riso é falso, esconde a dor no peito:
75 - Andrógeu - diz - , consola-te comigo.

A quem devia Amor ser mais sojeito,


Andrógeu, que à mãe sua, pois tu sabes
quanto mal o seu arco me tem feito?

Bem é que com tuas Musas não te gabes


80 que resististe a Amor, a quem devendo
ficas que em tal amor, Andrógeu, acabes.

A Vénus o pastor olhos erguendo:


- Mãe cruel - diz-, de filho tão cruel,
quão leda estás a minha morte vendo!

85 Nem para si a abelha faz o mel,


nem para si a ovelha sua lã cria,
nem para si Amor é amor, mas fel. (f. 104)

218
ÉCLOGAS

Mas, pois est' alma a Fílis se devia,


Fílis a guarde: Fílis em si a tenha,
90 que essa é na morte a só minha alegria.

Venham aqui pastores sempre, venha


o meu Alcipo: a fermosura cantem
de Fílis, porque a vida inda sostenha.

E cortem versos que soem, e espantem


95 quantos despois vierem, vendo a crua
morte de Andrógeu, e quem os ler encantem.

Fílis, eu morrerei. Será essa tua


vontade feita, verá o que deseja.
Se mal o Amor me mata, a culpa é sua.

100 A todos encuberta, e que se veja


do triste Andrógeu a triste sepultura
nesta terra que pisas, Fílis, seja.
Fílis, tu a pisas, não me será dura.

12

NATAL

Ao duque de Aveiro, D. João

Cash1io, Serrano, João

Se pastores de Deus foram ouvidos,


de quem poderão já ser desprezados,
claríssimo senhor? Bem recebidos
sejam estes de ti, de quem cantados (f. 104v0 )
5 teus feitos virão ser, que engrandecidos
deixarão nossos tempos, se seus fados
chegarem a tanto bem; tu lhes darás
novo esprito, voz nova, em que soarás.

A Deus cantam seus versos, em memória


10 da honra que hoje lhes fez . Honram seu dia,
ditoso dia, em que se viu a glória
dos céus na terra, e em ambos alegria.
Devia-se outro verso a tal história,
mas quem igual no mundo lho daria?

219
ÉCLOGAS

15 Não bastarão cantar poetas mil,


e Deus ouve hoje a frauta pastoril.

JOÃO

Pastores, a quem hoje o grã Minino,


Deus e homem, Jesu, se descobriu,
cantai com novo esprito, e som divino.

20 Em vós, ó felicíssimos, se viu


quão baixas são a Deus as cousas altas,
quão alta a humildade, e onde a subiu.

Senhor, que por perdão de nossas faltas


deceste hoje dos céus, e a baixa terra
25 sobre todos os céus pões, e exaltas;

Senhor, que por só paz de nossa guerra


vens alegre morrer; amor, e paz (f. 105)
nos inspira, e perdoa ao mundo que erra.

Cantai, pastores, cujo canto apraz


30 àquele grã Minino eterno, e santo
que hoje em presepe entre dous brutos jaz.

Tu, Castílio, primeiro; siga o canto


Serrano. Eia, pastores, começai!
Cantai a Deus tal glória, ao mundo espanto.

CASTÍLIO

35 Vem, grã Minino, Deus e homem; sai


nova, e divina luz alumiar
o cego mundo que perdido vai.

SERRANO

Vem, cordeiro de Deus, vem nos lavar


com teu sangue inocente, e os maus enganos
40 do falso mundo vem desenganar.

JOÃO. Ver, no Comentário, a nota respectiva.

220
ÉCLOGAS

CASTÍLIO

Vem, profecia já de tantos anos,


esperança de justos, que te creram
sem te ver, a curá-los de seus danos.

SERRANO

Ditosas almas que te conheceram,


45 ditosas bocas que de ti falaram,
ditosos livros que de ti se encheram!

CASTÍLIO

Ditosos são, mas mais os que adoraram


um Minino por Deus, só, nu, chorando,
que entre animais em palha envolto acharam.

SERRANO

50 Ó santas mãos aquelas, que tocando


estão a Deus! Ó claros olhos santos,
que em tais trevas tal luz estão olhando! (f. 105v0 )

CASTÍLIO

Haja nos altos céus, na terra, cantos


de glória, e paz; alegra-te, ó infer:10,
55 não haja agora em ti dores nem prantos.

SERRANO

Já se mostrou ao mundo o Verbo Eterno,


Filho de Deus; já nos nasceu, já chora,
Minino descuberto ao frio inverno.

CASTÍLIO

Não em leito real nasceu, não mora


60 em paços de soberba, e de vã glória;
em feno jaz, ali o bruto o adora.

221
ÉCLOGAS

SERRANO

Ó gloriosa nova, ó alta história!


Ditoso o tempo em que à terra o céu veio,
e ditosos os que honram tal memória.

CASTÍLIO

65 Este a terra fundou, e pôs no meio


dos céus, criou o sol, a lua, e estrelas;
este é de quem o mundo todo é cheio.

SERRANO

Este o homem formou de nada, e as belas


cousas todas que vemos sojeitou
70 a seus pés, como próprio senhor delas.

CASTÍLIO

Por ele reinam reis, ele criou


a mesma Mãe, que o cria. Ó maravilha
grande! Era virgem, virgem e mãe ficou.

SERRANO

Ó Maria ditosa, mãe e filha


75 de Deus, esposa, e serva, hoje pariste
Deus, teu Pai, teu Senhor, que a ti se humilha.

CASTÍLIO

Ó Maria ditosa, pois já viste (f. 106)


o fruito do teu ventre prometido,
o que Eva nos tirou, restituíste.

70 PL: seu

222
ÉCLOGAS

SERRANO

80 Onde quer que teu nome for ouvido,


tudo se alegre, todos ledos cantem,
seja nos céus, e terra engrandecido.

CASTÍLIO

Teus segredos se creiam, inda que espantem


a quem os não entende. Deus os faz:
85 a Deus por ti as almas se levantem.

SERRANO

Mor milagre, mor prova i, onde jaz,


faz teu Filho, e de Deus, que se pomposo
viera: ali pastores, e reis traz.

CASTÍLIO

Rei, que sentado estás no precioso


90 estrado d'ouro, e prata, olha a pobreza
do teu Rei, do teu Deus tão poderoso.

SERRANO

Hoje se desprezou tua riqueza,


hoje só se abateu teu alto estado.
Todo mundo ante Deus é grã baixeza.

CASTÍLIO

95 Quem viu hoje um pastor tão levantado,


que vê e fala com Deus, porque confia
no que tanto dos céus foi desprezado?

SERRANO

Ó rico estado aquele, em que se fia


seguramente iía alma! Aquele é rei
100 que livre bebe o leite, e água fria.

223
ÉCLOGAS

CASTÍLIO

Só alto, só ditoso chamarei


quem, desprezando a baixa, e pobre terra, (f. 106v0 )
aos céus seus olhos ergue. Este honrarei.

SERRANO

Ó pastores ditosos, que da guerra


105 do mundo estais tão livres, e dormis
seguramente em vale, em campo, em serra.

CASTÍLIO

Ó pastores ditosos, qut\fugis


da fortuna, de irnigos, e seguros,
pisando esta erva verde, aos céus vos is.

SERRANO

110 Em choupanas vivei, os altos muros


deixai a quem se teme. Deus vos ama,
dá-vos fruitos gostosos, sãos, maduros.

CASTÍLIO

Hoje quis Deus tomar a vossa cama


de palha, e feno . Dormi, meus pastores,
115 seguros nela: a vós primeiro chama.

SERRANO

Ajuntai-vos aqui, vós lavradores,


que a terra revolveis c'o arado duro,
chamai-vos hoje reis, e emperadores.

CASTÍLIO

O rico desprezai, se o peito puro


120 não tem, se mais seu ouro que a Deus vê.
Humilde é vosso estado, mas seguro.

224
ÉCLOGAS

SERRANO

às que i por Deus te adoram, Deus lhes dê,


Minino, grossos campos, bons pascigos;
sequem-se à gente má, que te não crê.

CASTÍLIO

125 Aos teus pastores entre si amigos


corram as águas claras, corram rios
de puro leite; sequem-se õs imigos. (f. 107)

SERRANO

Pastores, cristãos sois, não sois gentios.


Filhos de Deus, irmãos de Deus, poupai
130 vosso sangue, de que já andais vazios.

CASTÍLIO

Pastores, que chamais ao grã Deus pai,


hoje irmão se vos fez, paz, e irmandade
vos trouxe, e vos deixou. Tal dom guardai.

SERRANO

Torne este nosso tempo àquela idade,


135 que tudo era sã paz, e puro amor,
sem meu, sem teu, sem muros, sem cidade.

CASTÍLIO

Tu, nosso bom João, merecedor


eras daquele tempo, e de outro estado
dino também de ti, tempo melhor.

122 PL: Os

225
ÉCLOGAS

SERRANO

140 Tu, nosso bom João, serás alçado


onde o esprito te leva, que conhece
o bem do campo, e foge o povoado.

JOÃO

Amigos meus, tal canto não merece


meu nome. A Deus cantai, e assi cantando
145 vamos, enquanto o sol desaparece.

Olhai como esta voz que imos soltando


é doce e alegre! Olhai como responde
tão clara a este verso Eco, e o vai entoando!

Novos versos cantai, novos componde,


150 temperai vossas canas docemente.
Deus vo-las ouve, a Deus nada se esconde:
glória nos céus Lhe seja e paz à gente. (f. l07v 0 )

226
Aos Príncipes de Parma

EPITALÂM/0

ao casamento da senhora D. Maria com o senhor Alexandre Farnês, Príncipe de Parma

Estava Amor seu arco guarnecendo,


em novo fogo as setas temperando,
cercado dos Amores, uns tecendo
a corda, outros a aljaba cruel dourando.
5 Pelos floridos prados vão colhendo
outros mil flores, só de Amor cantando,
mil flores, que todo ano ali florecem,
das quais o filho, e à mãe capelas tecem.

Nunca vistas no mundo nem cheiradas


as flores são, que Amor pera si cria.
D'üas o Iiquor faz em que apuradas
as setas ficam, quando as ele afia;
d'üas o liquor frio em que banhadas
as outras são, quando as do fogo esfria.
15 Em todas cruel, em todas espantoso,
inda mais nas segundas temeroso. (f. 108)

Ardem duas forjas ; duas bigornas batem -


não os feios ministros de Vulcano -
uns fermosos Amores, que debatem
20 sobre quem fará mais ao mundo dano.
Ali os tiros, com que se combatem
os duros peitos, ali a arte e engano,
ali os desejos, e temores suam.
Uns corações abrandam, outros encruam.

25 Tempera üa água o chumbo, outra água o ouro.


Escolhe Amor dos tiros quais lhe aprazem.
Aqui está o seu poder, e seu tesouro,
aqui os vencidos seus despojos trazem.
Uns coroados vem de mirto, e louro,

227
EPITALÂMI O

30 outros miseramente mortos jazem:


segundo a cada um lhe coube em sorte,
assi ou vive em glória, ou vive em morte.

Entrou a mãe, e vendo assi ocupado


o filho em novas setas, novo fogo,
35 despois de o beijar, tendo-o abraçado,
- Porque és, meu filho - diz-, duro a meu rogo?
Té quando sofrerás tão desprezado
andar teu nome, e eu trazida em jogo?
Para quem tomas arco, ou a quem te armas,
40 s'os teus mores imigos dás as armas? (f. 108v 0 )

Não vês qu ' üa Maria mais que humana


s'estima, e quebra as setas que apontaste?
Outra Palas ao mundo, outra Diana,
que nunca a amor nenhum a sogigaste?
45 Ou tu mesmo a temeste, ou se ela engana
c' o favor que tégora lhe mostraste,
assi soberba vive em meu despeito,
e só Diana, e Palas traz no peito.

Eu digo das duas filhas a primeira


50 do ifante claríssimo, excelente,
da clara mãe imagem verdadeira,
neta do Rei primeiro do Oriente.
Porque não farás tu que também queira
acrescentar a luz resplandecente
55 com que o mundo se faz mais rico, e claro
c'o fruito de tal tronco ao mundo raro?

Também te defendiam Caterina,


claríssima princesa, as castas Musas,
em cujo coro d'alto assento, dina
60 de Minerva, te dava mil escusas.
Venceste enfim aguei' alma peregrina
com a força de que tu, se queres, usas.
Já ao seu sangue o seu amor juntaste,
e daquele alto esprito triunfaste. (f. 109)

65 Porque consentirás que assi te ofenda


soberbamente a irmã? Meu filho, estende
pelo mundo teu mando; não se entenda
que, quando alguém quiser, se te defende.

228
EPITALÂMIO

Porque tal falta em ti se não comprenda,


70 afia a seta, um novo fogo acende:
um novo fogo, que aquela alma inflame,
e quanto ela é d'amar, tanto e mais ame.

Não negue ao mundo üa esperança certa


que já concebem do alto ajuntamento,
75 quando Sebastião a porta aberta
mostrar das altas obras, alto intento.
Não só com ajuda da fortuna incerta,
mas do grande Duarte, e d'outros cento
do real sangue, e das irmãs, se espera
80 descobrir ind' ao mundo üa nova esfera.

Que veja os altos reis, e emperadores,


seu claro sangue, tão ditosas plantas,
que a terra encheram de seu fruito, e flores,
d'altas vitórias, e os céus d'almas santas.
85 E que seria o mundo sem amores?
Donde tantos heróis, e donde tantas
claríssimas princesas nasceriam,
quantas do real tronco floreciam? (f. 109v0 )

Assi Vénus falou. - Se tardei tanto


90 - responde o filho - , ó mãe, foi por ter pejo
d'inda não descobrir no mundo quanto
convém para a alta empresa, que eu desejo.
Sempre me fez temor, e fez espanto
aquele real esprito, que inda vejo
95 fora da geral sorte, altivo, e puro,
frio a meu fogo, às minhas setas duro.

Mas já tenho buscado, já sei onde


entregue seu amor devidamente.
Um alto esprito achei, que bem responde
100 em tudo ao seu, em nada diferente.
Em quanto o sol descobre, e a noite esconde,
dum pólo ao outro, do Tejo ao Oriente,
não pode haver de amor tal igualdade,
s' eu de duas fizer üa vontade.

PL 80: sphera PL 92: para alta

229
EPITALÂMIO

105 Lá onde os raios seus Apolo esfria,


e da sua formosura mais reparte,
um formoso, e real póncipe se cria,
em quem juntos se vem Apolo, e Marte.
Seu alto estado tem na Lombardia,
110 d' Alemanha governa a melhor parte,
do altíssimo sangue dirivado
do sumo Império e mor Pontificado . (f. 110)

Carolo quinto a mãe, Paulo terceiro


o pai, lhe dão, por seus progenitores,
115 dous monarcas do mundo: um verdadeiro
padre da igreja, exemplo õs socessores,
outro máximo César, derradeiro
dos que bem pareceram emperadores,
d'Octávio herdeiro, a quem Parma, e Plasência
120 em real trono dão obediência.

Est'é o novo Alexandre, real planta


e da casa Farnês alta esperança,
qu' inda tem com Maria parte tanta
do seu sangue, que os pais, e avôs alcança.
125 Deu ao mundo Duarte a rainha santa
Maria, e o nome à neta por herança.
Maria e Joana, irmãs, os reis d'Espanha
nos deram, de Panónia e d' Alemanha.

Filhos das duas irmãs, Cario, e Duarte,


130 um Margarita deu, outro Maria,
Margarita Alexandre. Assi se parte
o sangue entr' eles e genealogia .
Assi no mundo todo tem igual parte:
ambos netos de reis, sobrinho, e tia,
135 ambos dos reis d'Espanha os mais chegados
e d'outros reinos, d'outros principados. (f. 1 lüvº)

Quando em moço as três Graças o criavam,


disseras ele um ser destes Amores.
Somente as leves penas lhe faltavam:
140 arco, e coldre trazia, e passadores .
Já com seu medo as aves não voavam,
cansa os monteiros, cansa os caçadores.
Per bravas matas, pelos bosque : altos,
voar faz o ginete, e dar mil salto~.

230
EPITALÂMIO

145 Igual ao teu Adónis o fermoso,


quando, mãe, o seguias na montanha,
ora derriba o porco temeroso,
ora do !ião vence a força, e manha.
Tal Alexandre, a todos espantoso,
150 já alegra Itália, e Áustria, e Alemanha,
esprito generoso, invicto, e grande,
que nem perigo, ou medo há que o abrande.

Viveu sempre téqui livre, e seguro,


sem nunca conhecer meu senhorio.
155 Escolhi do meu coldre um aço duro.
Inda o peito achei duro, e o achei frio .
Apontei outro de metal mais puro
em nome de Maria, e eis que um rio
já d'amorosas lágrimas derrama
160 dos olhos, que não vem inda quem ama. (f. 111)

Espantado entre si da força nova,


espantado do fogo em que a alma ardia,
ora já um exercício, ora outro prova,
por enganar, se pode, a fantesia.
165 Ele se engana, a chaga mais renova,
a chaga que abriu o nome de Maria.
Maria chama, Maria, ah, sospira,
e para onde o sol dece os olhos vira.

- Quem fez üa ferida tão secreta


170 neste meu peito? - diz o moço ardendo -
em que esfera, em que céu, em que planeta
está este fogo novo em que me acendo?
Senti o golpe duro, não vi a seta.
Nunca amor entendi, agora o entendo.
175 Chegou-me a suavíssima peçonha
em que a alma vive morta, e esperta sonha.

Ditosa vida, Amor, ditosa morte,


ditoso este meu fogo, e meu cuidado;
mais ditoso meu fado, e minha sorte,
180 s' em ti me tinha tanto bem guardado.
Empresta-me essas asas, com que corte
este ar, que me tem cá eclipsado

PL 176: em qu alma

231
EPITALÂMIO

o meu dia, e meu sol, que do ocidente


me abre um novo, e lúcido oriente. (f. lllvº)

185 Ah, triste! Quanto mar se mete em meio!


Quanto céu entre mim, e o meu desejo!
Quanto mais crece o amor, crece o receio
de nunca ver um bem, que eu mais desejo.
Por que arte poderia, ou por que meio,
190 assi como arço cá por quem não vejo,
a meus olhos fazer caminho aberto,
que de tão longe me posessem perto?

Nestas imaginações se consumia


aquele esprito, e todo em amor brando
195 nos retratos ocupa noite, e dia.
Mas mais viva em sua alma a está pintando,
tanto pode a alta fama de Maria!
Tanto as Graças, e as Musas vão cantando
dos dões, que nela o céu largo reparte,
200 que eu cuido que fui nisto a menos parte.

Ajuntar quero, mãe, estes amores.


Tu ajuda também; assi o céu manda.
Cá os suspiros ouço, e sinto as dores
de quem tão longe lá a sua alma manda.
205 De mirto coroada, e de alvas flores
Vénus o céu serena, o vento abranda.
Ambrósia os seus cabelos espiravam,
e quanto os olhos viam, namoravam. (f. 112)

Ajunta ao carro os brancos cisnes logo,


210 as ondas de Neptuno vai cortando.
Ardem as águas em amoroso fogo,
d'amor brandas sereias vão cantando.
Os Amores em riso, em festa, em jogo,
as Nereidas de flores coroando,
215 mandam que no mar façam nova estrada,
e as ondas amansem à tomada.

Chegara já a Maria a clara fama


daquele real príncipe devido
em tudo a seu amor. Inda o não ama,

193: amiginações

232
EPITALÂMIO

220 mas já seu nome é dela bem ouvido.


Assi d' ambos a estrela os leva, e chama
ao bem, que a ambos lhes tem Deus prometido.
A branda deosa, que ela não conhece,
o peito brandamente lhe amolece.

225 Quantas vezes aos olhos lho presenta!


E quantas vezes suas grandezas canta!
Ora por üa via, ora outra atenta,
e já a novos cuidados a levanta.
O pensamento engana, a alma contenta,
230 e ela do que em si vê se peja, e espanta.
E quando mais duvida, e mais se enleia,
então Amor espia, então salteia. (f. 112v 0 )

Forjava entanto üa seta venenosa


Amor, e por sua mão lhe pôs a erva.
235 Três vezes a banhou n' água amorosa,
três vezes por sua mão lhe pôs a erva.
Ali s'esconde a chama deleitosa,
que cria amor, do desamor preserva.
Todo inflamado em fogo se arma, e voa,
240 ardendo fica o ar, e o coldre soa.

Claríssima Maria, olha que se arma


o Amor contra ti, a ti vai voando.
-Alexandre, Alexandre, Parma, Parma!
os Amores com ele vão gritando.
245 Aqui não há defensa, aqui não há arma:
obedece a quem vai já triunfando
desse teu puro peito tão benino
de que Alexandre só pode ser dino.

Pôs toda a força Amor no arco, e tiro.


250 Soou o golpe, e ao desarmar o estalo,
ele ouviu um brandíssimo sospiro,
que declarou o mais, que eu ora calo.
Venceu, e retirou-se; e eu:.ine retiro,
que não sei o que escrevo, nem que falo.
255 Diga-o Amor, que a tudo foi presente,
e diga-o quem o encobre, e quem o sente. (f. 113)

Vem o Himineu, nüa mão a facha acesa,


n'outra o anel do santo ajuntamento.

233
EPITALÂMIO

Vergonhosa, e contente está a princesa,


260 contente, e honesta dá o consentimento.
Ei-la em nova prisão, mas doce presa:
vê-se em seu rosto seu contentamento.
E então mais resplandece a fermosura,
que tão longe acendeu iia chama pura.

265 Batendo vai as asas a Alegria,


a real casa de prazer enchendo.
Naquela grã cidade não cabia
o alvoroço do bem que estão vendo.
- Viva Alexandre - diz-, viva Maria!
270 Assi do Tejo ao Nilo vai correndo.
Recebe todo o mundo a alegre nova;
alegre o mundo o louva, o céu o aprova.

Festeja o grande Rei sua tão amada


tia, e mostra de amor aberto o peito,
275 d' altíssima Rainha acompanhada
que por filha a estima em seu conceito.
Por quem podia ser feita, e tratada
obra tão santa, tão ilustre feito,
senão por ti, Henrique, ifante santo,
280 honra, e ornamento do purpúreo manto? (f. 113v0 )

Vem as Ninfas do Tejo tomar parte


da alegre festa, e suas danças guiam.
Com sua fermosura, graça, e arte,
'( énus, Graças, e Amores desafiam.
285 As Ninfas favorece o grã Duarte,
e as Ninfas parecia que venciam.
Nascem bandos de Amor, e do seu fogo,
mas todos são de amor, de festa, e jogo.

Ali os dous claríssimos senhores,


290 luz, e esperança à casa real d' Aveiro,
levam d'alegre festa mil louvores,
por juízo das Ninfas verdadeiro.
Ali amores se trocam por amores.
Diga-o Amor, que estava no terreiro,
295 quantos fogos ali então se esfriaram,
e quantos outros novos se criaram.

Neste geral prazer já vejo mágoas,


já mil lágrimas vejo saudosas.

234
EPITALÂMIO

Eis que cortando vem salgadas águas


300 armada frota, velas amorosas.
Ardem d'üa parte e d'outra em vivas fráguas
duas almas. üa d'outra desejosas .
Triste de quem sua alma parte, e arranca,
e dos olhos as fontes não estanca! (f. 114)

305 Claríssima Isabel, Princesa santa,


de divinas virtudes raro exemplo,
ditosa mãe de tão ditosa planta,
a quem a antiga Roma erguera um templo,
quanta alegria, e saudade quanta
310 igualmente ora em ti juntas contemplo!
Mas alegra-te mais, pois que já viste,
e inda vêrás mais bens, que os céus pediste.

Vénus com aquela alegre companhia


já prestes tem o seu carro fermoso.
315 Consigo em seu assento põe Maria,
saudosa da mãe a leva ao esposo.
Ao Rei, à mãe, à pátria se devia
aquele sentimento piadoso;
mas, entretanto, os cisnes vão nadando,
320 e as lágrimas o Amor vai enxugando.

Sai sobre a água Neptuno; honra, e obedece


à neta do grã Rei, que o mar abrindo
lhe mostrou novo mundo, e lhe oferece
manso todo seu reino, e a vai seguindo.
325 De dia o sol, de noite resplandece
a clara lua, a noite descobrindo.
Quantos Maria vem, se alegram, e espantam
Nereidas, e Tritões; e assi lhe cantam: (f. l l4v 0 )

NEREIDAS

Amor, e que cousa há tão fera, ou crua,


330 que a filha à mãe arranques do seu seio,
e faças que já mais não seja sua,
e assi a entregues em poder alheio?
Como és Amor, s' esta crueza é tua?
Que mais faz o inimigo de ira cheio

PL 321 : sobre água

235
EPITALÂMIO

335 na entrada cidade a saco dada?


Boa estrela te leve, hora dourada.

TRITÕES

Amor, e que cousa há mais piadosa


que o puro amor, com outro puro pagas,
e o doce fogo da chama amorosa
340 com outro fogo, e doce chama apagas?
E que força é que a esposa vergonhosa
à mãe a tomes, e ao esposo a tragas?
Que mor bem há que iía hora desejada?
Boa estrela te leve, hora dourada.

NEREIDAS

345 Como o lírio fermoso no cerrado


horto, c'o brando sol, c'o orvalho crece
(nunca o gado o tocou, pastor, arado;
sombra, ou geada, ou vento não lhe empece),
das moças é, e dos moços desejado,
350 mas se o mão toca, seca, ou s' emurchece;
tal é a dama antes que é casada.
Boa estrela te leve, hora dourada. ·tf. 115)

TRITÕES

Como a vide que só nasce em deserto


nunca já s' ergue, nunca frui to cria,
355 cortada cai do frio, e céu aberto,
nem lavrador a lavra nem queria,
mas, se for junta a ulmo, que está perto,
já o lavrador a quer, já a lavraria;
tal é a dama, despois que é casada.
360 Boa estrela te leve, hora dourada.

NEREIDAS

Leve o esposo a esposa prometida.


Quem lha pode negar? Quem tal consente?
Quem pode, a prometeu: é-lhe devida

236
EPITALÂMIO

a filha à mãe, e a Amor obediente.


365 Ajuntem-se duas almas niia vida:
este o princípio foi da humana gente.
A cada um sua estrela está guardada.
Boa estrela te leve, hora dourada.

TRITÕES

Vivei, príncipes altos. Cedo vejam


370 os olhos, que vos amam, o que esperam.
Dai príncipes ao mundo, que o bem rejam,
quais já vossos avós e pais lhe deram.
Outros Manuéis, e outros Carlos sejam,
honra do mundo, quais aqueles eram.
375 Será de vós sua alta estrela herdada.
Boa estrela vos leve, hora dourada. (f. l l5v 0 )

Lá te levam, senhora, forças grandes.


Não valem contra Amor nenhuns reparos,
mas mores foram as forças que de Frandes
380 acenderam em ti fogos tão claros.
Sempre de ti alegres novas mandes.
Sempre conformes sede, espritos raros.
Almas ditosas, almas bem trocadas,
em versos imortais sejais cantadas.

PL 364: e Amor

237
História de Santa Comba dos Vales

A D. Jorge, Marquês de Torres Novas, e a D. Pedro Dinis, seu irmão

Do bárbaro tirano os cruéis amores,


a alta constância da pastora santa,
honra da serra, glória dos pastores,
humilde, e alegre minha Musa canta:
5 altos heroas, reis, emperadores,
cuja soberba fama o mundo espanta,
confessem quanto menos é sua glória
da que Comba ganhou em tal vitória. (f. 116)

Vós, castíssimas ninfas de Diana,


10 de louro, palma, e flores coroadas,
enquanto de Hipocrene a fonte mana,
e de Comba as vitórias são cantadas
(não vos invoco a fábula profana),
co' as Musas em coreias concertadas
15 cantai comigo, e dai-me üa voz, que soe
por todo mundo onde Colomba voe.

Claríssimos senhores, verdadeiro


ramo do real tronco, e lume novo
dessa casa ilustríssima d' Aveiro,
20 irmãos iguais àqueles de um mesmo ovo
(qu' inda estrelas sereis no derradeiro
céu impírio ), a quem de amor me movo,
posto que inclino de chegar a tanto,
oferecer meu baixo, e humilde canto:

25 quando üa hora virá, que algüa parte


do muito, que de vós o mundo espera
(que a tudo nenhum ingenho basta, ou arte)

BNL Título: História de Sta Comba de Lamas de Orelhão. Autor António Ferreira. Omite a
dedicatória. 6: de cujos nomes o mundo se espanta 12: Columba ... contadas 13: fábulas profanas 14:
em choros 18: omite e 22: a quem eu 27: omite basta

239
HISTÓRIA DE SANTA COMBA

cante, que se ouça desta à outra esfera,


quando vos coroará por sua mão Marte,
30 e que eu, de Febo coroado de hera,
faça que mais que em ouro, mármor, cedro
vivam o grande Jorge, e o grande Pedro? (f. l l 6v 0 )

Ouvi da virgem santa o claro feito,


vede d' Amor os tiros desprezados,
35 sua aljaba quebrada, arco desfeito,
seus temerosos fogos apagados.
Dum brando, virginal, pastoril peito
foram dous maus tiranos triunfados:
um Cupido perverso, outro um rei mouro
40 que seu intento punha em força, e em ouro.

Não tem forças Amor, que nós lhas damos,


temer-se faz de nossa covardia.
Nós do seu fogo e setas o armamos,
nós lhe damos do mundo a monarquia.
45 Ah, quão mal a vontade cativamos
a quem de si não tem força, e valia!
S' a experiência pode fazer prova,
nem derradeira esta é, nem será nova.

No tempo em que a infiel bárbara gente


50 da mísera Espanha ocupava a terra,
e o sangue derramava cruelmente
dos poucos que escaparam da ímpia guerra,
üa moça belíssima, e inocente
passava a vida na mais alta serra
55 que entre Tâmaga, e Tua hoje parece,
onde o sol, em nascendo, resplandece. (f. 117)

Em brava fraga, e penedia dura


andava a moça o gado pastorando;
nada do mundo sabe, e nada cura,
60 aos céus o esprito, e olhos levantando.
Maior que humana é sua ferrnosura
que os tigres, e !iões vai amansando,
e para onde quer que olha, o tojo, e ca:do
em flores se convertem, em lírio, e nardo.

28: PL sphera 32: BNL viva 35: o arco 39-40: um Copido o grão deus, outro o rei mouro/ que
roubar lhe não pode seu tesouro 46: nem valia 47: PL pôde 49: PL omite em BNL em que 50: da triste
Espanha ainda 52: dos povos 53: omite e 55 : antre 57: em penedia 63: e o cardo 64: se converte

240
HISTÓRIA DE SANTA COMBA

65 Em seus olhos se vi a üa gravidade,


que até as feras movia a acatamento,
e no fermoso rosto üa majestade,
que indício dava d' alto nascimento.
Cabelos d'ouro, na florida idade
70 (nem sol a queima, nem a corta o vento),
prudência de serpente, e o dom da pomba
lhe deu entre todos nome de Colomba.

Nem tal Diana foi , nem tal Minerva,


nem tal pareceu Vénus a fermosa .
75 Ond'ela quer, ali a fresca erva
nace, e üa fonte clara e graciosa.
Qual na montanha a fugitiva cerva,
dos cruéis caçadores temerosa,
a cada sombra, a cada vento treme,
80 tal a pastora o mundo foge, e teme. (f. l l 7v 0 )

Quantos cuidados vãos, quantas vãs dores,


a que sempre mostrou surdos ouvidos,
criava entre pastoras, e pastores,
de ciúmes, d'inveja e amor nascidos!
85 Cheia era a serra de competidores,
cheio todo ar de queixas, e gemidos,
cheio das frautas, que só Comba soam.
Ouve-as o vento, e assim c' o vento voam.

Ah, qu' outro pensamento, outro cuidado,


90 outros amores guarda Comba n' alma.
I, pastores, curar do vosso gado,
fugi da noite o frio, e do sol a calma.
Outrem lhe tem o seu amor roubado,
que üa coroa lhe dará de palma:
95 sois rústicos, sois baixos, sois indinos
d' olhados serdes d'olhos tão divinos.

Não se temia a moça das requestas


vãs dos pastores, que passava em graça.

65: se via ua di vindade 69: Cabelo de ouro, ela na flor da idade 70: nem o sol a queima nem
corta o vento 71: de pomba 72 dem ... ô nome 75 : ali nasce a erva 76: nace ua fo nte 77 : omite a 80:
ao mundo 83: nas pastoras, e nos pastores 84: os ciúmes ... de amor 88: omite e 89: que outro cuida-
do 91 : de vosso 92: omite e ... da calma

241
HISTÓRIA DE SANTA COMBA

Via seus bailes, via suas festas,


100 mas nada qu' em seu peito assento faça.
Temia mais os montes, e as florestas
onde o rei mouro sempre andava à caça,
que só, sem sua vista, da sua fama,
por ela ardia em amorosa chama. (f. 118)

105 Conta-se que reinava um grã rei mouro


entre Târnaga, e Tua, e que ocupava
toda a terra de Lamas, rico d' ouro,
rico do grosso gado que criava.
Em cada serra tinha um grã tesouro
110 junto do muito que os cristãos roubava;
eram os lavradores seus cativos,
só por este tirano os deixar vivos.

Foi o cruel pagão, e monstruoso


(segundo aquelas gentes fama dão)
115 grande, membrudo, e como usso veloso,
e üa orelha d'asno, outra de cão.
A todos feio, a todos espantoso,
chamado era de todos "Orelhão".
Pôde, contudo, Amor por sua brandura
120 naquela fera monstruosa, e dura.

O que de gado tinha, e de riqueza


mandara prometer à virgem santa,
que rainha a fará, e em grand'alteza
a porá, qual nunca outra teve tanta;
125 tanto mais crece a ira e a pureza
no peito constantíssimo, e o levanta
mais firme ao céu, temendo em toda a parte
que ou por força lha levem, ou por arte. (f. 118v0 )

Chora a pastora, chora seu perigo,


130 mal passa a noite, pior passa o dia.
Não sabe onde terá seguro abrigo,
mais que o seu gado, sobre si vigia.

103: de sua fama 106: Tua que ocupava 108: de grosso 113: um cruel 115: grande e mem-
brudo como usso 116: e iia orelha de Mida 119 PL: Pode 121: BNL Todo o que tinha de gado e
riqueza 123: omite e 124: a porá a qual outra nunca 125: a ira e pureza 127: mais firme aos céus,
tímida em toda parte 129: Teme a pastora, teme seu perigo 132: de seu gado

242
HISTÓRIA DE SANTA COMBA

A cada tronco, ou pedra vê o imigo,


das sombras, e dos ventos se temia,
135 não que temor da morte a tente, ou torça,
mas porque teme do tirano a força .

No mais alto da serra, no mais duro,


d'um moço, seu irmão, acompanhada,
fazendo da montanha forte muro,
140 toda anda em seus amores enlevada.
- Levai-me, meu Esposo, deste escuro
bosque - cantava - , ond'ando salteada.
Chamai a vossa esposa, que vos ama,
por vós suspira, a vós só chora, e chama.

145 Ai, amor meu, ai, saudade minha,


ó minha desejada fermosura!
Se pera vos eu ver, Senhor, convinha
passar perseguição tão forte, e dura,
inda me sosterá quem me sostinha:
150 Vosso amor só me esforça, e me assegura.
Doce por vós me é a aspereza, e a serra,
té que me deis vitória desta guerra. (f. 119)

Qu' hinos vos cantarei, ou que louvores


novos, meu alto Esposo e meu Senhor,
155 que iía moça criada entre pastores
quisestes cativar ao .Vosso amor?
Ah, dita minha grande! Ah, meus amores,
prometido vos tenho fruito, e flor!
Não sou minha, meu Deus, toda sou Vossa;
160 fazei que pera Vós guardar-me possa.

Isto Comba cantava, o irmão tangia.


Em ambos iía alma há, pura, e singela.
Ora um começa, ora outro respondia;
divinas vozes eram dele, e dela.
165 Ditoso gado, que a tal som pascia!
Ditosos olhos, que poderam vê-la!
Lionardo as mais das vezes guia o gado;
ela enlevada fica em seu cuidado.

133: A cada pedra ou tronco vê um imigo 142: donde 144: a vós só chora, a vós sospira e
clama 149: sostentará 150: me segura 151: Por vós me é doce a aspereza e serra 155: üa pastora 157:
omite grande 159: são ... são 164: Divinas rezões 168: ela ficava em seu doce cudado

243
HISTÓRIA DE SANTA COMBA

Crece entanto o fogo, em que o mouro arde,


170 quanto mais se vê dela desprezado.
Não há passo, nem fonte, que não guarde;
noite, e dia vigia, e anda emboscado.
Um só momento lhe parece tarde
de a ter consigo, ou de se ver vingado,
175 que tal o seu desejo, e seu amor era,
qual entrar pôde em üa besta fera. (f. l l 9v 0 )

Cansado de cercar o vale, e o monte,


em fogo igual d'amor, e d'ira ardendo,
ao longo da clara água, que de üa fonte
180 por entre altos penedos vai rompendo,
apeou-se; e lavando mãos, e fronte,
de cá e de lá o corpo revolvendo,
contra si, contra amor, contr'os céus se ira,
ora Comba ameaça, ora a sospira.

185 - Ah, pastora cruel - diz-, quem cuidara


que tanto em mim podesse cousa algüa,
que por força, ou por manha me escapara,
de quanto cá se vê abaixo da lua!
Inda nos céus, inda no inferno entrara,
190 que não há contra mim força nenhüa.
E tu me foges só? Tu te me escondes?
Não m'ouves? Nem me vês? Nem me respondes?

Mostra-me ü'hora esse formoso rosto,


e veja eu o que vem serras e montes.
195 Não quero, ou peço mais que este só gosto,
nem de t'eu ver há por que assi te afrontes.
Olha, pastora, no que me tens posto:
o peito é üa frágua, os olhos fontes .
Isto te peço só, isto só desejo,
200 que veja o fogo, em que arder me vejo. (f. 120)

Que dano temes só da minha vista?


Nunca a ninguém reais olhos empecem.

169: Crece entretanto 175: que tal o seu desejo é: o seu amor era 180: que per antre altos 183:
contra os céus, contra Amor 184: omite a 187: que ou po1 força 188: de baxo 195: Nem peço nem
quero 196: omite assi 198: numa frágua 199: isto só peço 202: Os olhos de rei nunca a ninguem
empecem

244
HISTÓRIA DE SANTA COMBA

Não vês qu' enfim nada há que me resista?


E não vês quantos ante mim estremecem?
205 Deixa-te, Comba, deixa-te ser vista:
poderei com estes fogos , que em mim crecem.
Mas se tanto arço só polo que ouvi,
que será, triste, vendo o que não vi?

Se tu me vês, se, o que mais quero, m'amas,


210 todas minhas riquezas, e manadas
serão teu dote, e estes campos de Lamas,
ovelhas, que não podem ser contadas.
Mas, s' inda mais desprezas minhas chamas,
que tu acendeste, em ti serão apagadas.
215 Não poderás tu ser tão dura, ou forte,
que em ti não ache vida, ou ache morte.

Se tanto esta alta serra te deleita,


aqui levantarei uns paços de ouro,
e quanta terra em roda vês, sojeita
220 te será, e mais sojeito este rei mouro.
Aceita meu amor, pastora, aceita
tão rico reino, tão rico tesouro.
Tu viverás isenta na tua lei,
e eu em teu nome me chamarei rei. (f. 120v0 )

225 E se tão dura fores a meu rogo,


desprezadora de meus ricos dões,
vingarei tua soberba com tal jogo,
que antes me queiras dar mil corações.
Arderás, como eu arço, em bravo fogo;
230 essas tuas carnes comerão liões.
Ah, néscia moça, pois não amas, teme!
E s' a ti mesma não tens ódio, vê-me.

Eu sou teu rei, tu és minha cativa;


sê tu senhora, que eu serei cativo.
235 Não t'é melhor seres rainha, e viva
que arderes cruelmente em fogo vivo?
Que proveito te traz ser assi esquiva?
Tão feio te pareço, ou tão esquivo?
Inda não há tal dama, ou tal rainha
240 que não s'honrasse muito de ser minha.

203: nada há enfim 204: omite não vês 210: estas riquezas 211 : omite e 214: que em ti 217:
Pois tanto esta terra 219: a roda 225: Mas se 233: são ... omite és 235: ser 238: pareço eu

245
HISTÓRIA DE SANTA COMBA

Tu rústica, tu pobre, e tu perdida;


eu grande rei de antiga geração.
D'iia parte é meu sangue del-rei Mida,
de outra parte de Arménia do grã Cão.
245 Olha os sinais de que é enobrecida
minha cabeça, quão soberbos são!
E tu, minha cativa, e vil pastora,
de teu rei te desdenhas ser senhora? (f. 121)

Ouvia acaso Comba dentr'as matas


250 os rogos, e ameaças de Orelhão,
escondida, e quieta entre iias latas,
onde passava as sestas do verão.
Se tu, grã Deus, as forças cruéis não atas,
fracas as forças de ua moça são.
255 Ela treme, e s'encolhe, e aos céus sospira,
e inda até então a el-rei não vira.

Chegara ali a moça na alta sesta


banhar-se, como sói. nua fonte clara,
despois de vigiar serra, e floresta,
260 que pisada de gente não topara.
Ali, mais que Diana, mais que Vesta,
seu castíssimo corpo refrescara,
a cuja vista o sol, que antes ardia,
tempera o fogo, e faz mais claro o dia.

265 Parece-lhe estar queda mais seguro:


força o alento quanto ela mais pode.
Fazem as matas o lugar escuro,
nem vento as abre, por mais que as sacode.
- Vós, meu Deus - dizia ela-, sois meu muro,
270 Vossa grandeza aos míseros acode.
Escondei-me, Senhor, que me não veja
quem Vossa honra profanar deseja. (f. 121 vº)

E se Vós sois, meu bom Senhor, servido


que aqui o meu amor com sangue apure,
275 muito há que vo-lo tenho oferecido,
nem este meu desterro mais não dure.
245: omite é 24(í: soberbo 248: de teu ... desprezas 249: o caso ... dantre 250: ameaços do ore-
lhão 251 : antre 255 : Ela teme e se encolhe e em si suspira 256: el-rei a não vira 257 : Viera ali 260:
da gente 261: mais Vesta 263: a cuja sombra 264: claro dia 266: omite ela PL: ao lento 267: BNL
o lugar mais obscuro 269: omite ela 272: a vossa honra 273: meu bem 274: omite o ... sangue meu

246
HISTÓRIA DE SANTA COMBA

Meu peito, de Vós só fortalecido,


que perigo há, de que se não segure?
Em Vosso nome, em Vosso esforço armada,
280 quebrarei do rei mouro a lança, e espada.
Ouviu o céu o humilde, e santo rogo:
abriu-se c' o um som doce, e raio claro.
Eis já Comba esforçada, ei-la arde em fogo,
em fogo d' alto esprito ao mundo raro.
285 Já o seu medo tem por riso, e jogo,
já tem certo o remédio, certo o emparo.
Sai dentr' as matas contra o mouro irosa,
e assi mais divina, e mais fermosa.

Qual a casta Diana de sua fonte


290 afrontada saiu contra Acteão,
quando ele acaso a viu, andando a monte,
e cervo o fez corrido do seu cão
(e inda, por mais que a fábula vã conte,
mores os fogos de Colomba são:
295 nem tanto a honra própria ela estimava,
quanto a de Deus, que o mouro blasfemava), (f. 122)

tal se lhe mostra, tal se põe diante.


- Mouro bárbaro - diz - , e donde tanta
vã soberba te vem, que te levante
300 contra Deus, que os soberbos vence, e espanta?
Não vás por tua vã porfia avante.
Ajunta à tua crueza inda outra tanta,
busca géneros mil de cruel morte:
que mais do que és cruel, é Comba forte .

305 Ah, cego! Que não vês a fermosura


do meu Esposo, nem a sua grandeza,
qu' é eterna, imortal, e sempre dura;
e o mundo todo ant' ele é vil baixeza.
Tu és a mim a mais baixa criatura
310 qu' eu hoje sei em toda a redondeza.
Vê, pois, se serei eu tão enganada
que o bom, e o tudo deixe polo nada.

278: me não asegure 281 : Ouvido foi dos céus o santo rogo 282: em um som doce 288: mas
assim 289: da sua fonte 290: Anteão 294: Comba 295: nem tanto sua honra ela própria estimava
297 : mostrou 301 : Não vás por tua profia mais avante 308: e todo mundo ante ele 309: a mim mais
baixa 310: omite hoje 312: e todo

247
HISTÓRIA DE SANTA COMBA

Qual fica o lavrador, que andava perto


donde caiu o raio temoroso,
315 qu' o antigo carvalho deixa aberto,
queimado, e negro, e a todos espantoso
(ele esmorece, e cai, e tem por certo
qu' abrasado é do fogo riguroso,
e quando acorda, e se ergue, inda mal foge,
320 e nos ouvidos inda o som lhe roge), (f. 122vº)

de tal maneira o bárbaro tirano


vendo da santa virgem o claro raio,
que reluzia do seu mais que humano
rosto, atónito esteve, e co um desmaio.
325 De coração vencido ouviu seu dano;
aos peitos lança as mãos, e rasga o saio
e - Ó céus cruelíssimos - exclama - ,
vi o meu fogo, e a minha cruel chama.

Não pode mais dizer, e vai-se a ela


330 confiado nas forças de seus braços.
Mas tempo lhe não dá a casta donzela:
c'os pés rompe da serra os embaraços.
Mouta a não trova, nada trava dela;
e ele cuida que fica preso em laços.
335 Salta a cavalo, a grossa lança aferra,
e assi gritando vai pela alta serra:

- Tem-te, fermosa Comba, tem-te, e espera,


que não com ira, com amor te sigo.
Por mais que digas, homem sou, não fera,
340 e por meu mesmo tenho o teu perigo.
Estar-te vendo, e ouvindo só quisera,
que não podes fazer-me teu inimigo.
Lá me levas nos olhos alma, e vida,
qu' ao mesmo risco vai oferecida. (f. 123)

345 Ah, tu só és a fera, tu só és a dura,


mais que os rochedos desta brava serra!
Mais que morte, cruel tua fermosura,

313: omite fica 314: o raio furioso 316: negro a todos 317: esmorece cai 318: que queimado
é do fogo temeroso 319: e quando torna em si 322: santa moça 324: omite e 325: do coração 327: os
céus 328: omite e 330: e fiado 336: omite e 337: omite e 339: são 342: não me podes fazer teu imigo
345: tu és a dura

248
HISTÓRIA DE SANTA COMB A

que o meu amor pagas com ódio, e guerra.


Ah, não corras, cruel, que a tua brandura
350 não é pera sofrer tão agra terra.
Não faças tal estrago de uns cabelos
que nunca mereceu o sol de vê-los.

Em que perigo levas esses olhos,


em que eu da vida só tenho a esperança!
355 Como rompem tuas plantas mil abrolhos,
que cad'um da minh'alma sangue lança!
Espera um pouco, e volve-me os teus olhos:
de ti, e de mim não faças tal vingança.
Espera um pouco, e vê-me de mais perto,
360 que se estiveres queda, eu estarei certo.

Comba pela alta fraga vai voando,


nada acha que lhe faça impedimento,
das palavras do mouro não curando,
olhos no céu, cabelo solto ao vento.
365 Algum esprito a vai encaminhando,'
algum esprito lhe dá força, e alento.
Muda-se-lhe a aspereza em chã planura,
e abranda-se a seus pés a pedra dura. (f. 123v0 )

Não com tanto fervor, e pressa tanta


370 Dafne fugia o pastor mais formoso,
até se converter na verde planta,
de qu' ele inda se mostra saudoso,
nem tão ligeira corria Atalanta
no seu páreo cruel, e perigoso;
375 nem trás elas ardendo em mor fogo iam
Hipómanes, e Apolo, que as seguiam.

O mouro a cada passo a rédea volta,


a cada passo acha ante si um penedo.
Ora trota, ora vai de volta em v~lta,
380 rodeando ora o mato, ora o rochedo.
Aceso todo em ira a rédea solta,
fere o cavalo, à morte perde o medo.
Mudado o amor em ódio, enresta a lança
pera a banhar em Comba, que já alcança.

348: paga 351 : Não faças estrago duns tais cabelos 354: eu só da vida ... omite a 357: Espera-
-me ... omite os 359: Espera-me 361 : pola alta serra 364: cabelos soltos 366: forças 369: Nem com
tanto furor, nem pressa tanta 370: ao pastor 371 : pranta 383: mudando ... omite a 384: já a alcança

249
HISTÓRIA DE SANTA COMBA

385 Tu, virgem santa, tu, pomba divina,


por quem Deus cousa fez de tanto espanto,
tu mesma o inspira, e canta, que não é dina
a minha Musa de subir a tanto.
A ti o ingenho, a ti o esprito se inclina.
390 De lá dos céus me venha um novo canto,
com que eu o alto milagre teu não dane,
nem do teu nome a honra mal profane. (f. 124)

Já a pastora chegava ao alto cume


da serra, onde é mais alta a penedia,
395 dond' o olho abaixo olhando, perde o lume,
e entr'ela e el-rei só a lança se metia.
Já lhe chega o tirano, e já presume
que nem em terra, ou céu lhe escaparia,
quando Comba gritou: - Ó rocha alta, onde
400 venho buscar abrigo, em ti me esconde!

Ó maravilha grande! Abriu-se a pedra,


obedeceu à santa a rocha dura,
obedeceu à santa, e abriu-se a pedra,
e defendeu-a da cruel ventura.
405 Também a lança do mouro abriu a pedra:
ao pé fica assinada a ferradura,
ao pé da rocha, onde hoje inda parece,
e na pedra a lançada se conhece.

Tanto que em si a recolheu, cerrou-se


410 a dura rocha, assi de Deus mandada.
Blasfemou o tirano, e assi indinou-se,
que foi pera meter por si a espada.
Mas viu Lionardo o bárbaro, e vingou-se
no inocente sangue, em que banhada
415 foi a lança cruel, e o santo moço
estripado lançou ali num poço. (f. 124v0 )

Estava uma cova ali d' água encharcada,


que do inverno só se recolhia.
Nunca despois secou, nem foi minguada,
420 e claríssima, e pura é hoje em dia.

386: fez cousa 394: donde 395: donde olho 397: chegava 399: Colomba 403 : omite e 404:
omite a 406: o pé 416: PL stripado BNL deitou 420: e é castíssima e pura hoje em dia

250
HISTÓRIA DE SANTA COMBA

Por muitas experiências aprovada,


água fresca em tão alta penedia,
sempre igual, sempre clara, inverno e estio,
nunca tal fonte deu, nem tal deu rio.

425 Senhores, conto o que meus olhos viram.


Vi os sinais da pedra milagrosa.
Bebi a santa água, e outros que a sentiram
água santa lhe chamam, e preciosa.
Isto os vivos os pais, e avós ouviram:
430 história divina é, não fabulosa.
Os templos, e os altares dão boa prova,
e com milagres mil o céu o aprova.

Ali vem mil cruzes, ali vem mil votos;


chuva ora levam, ora o céu sereno.
435 Não espanta a alta serra os seus devotos,
nem cansa o velho, nem o moço pequeno.
Dos vezinhos lugares, e remotos
vem os pastores pedir água, e feno .
Ali oferecer vem brancas pombas
440 os moços Lionardos, moças Combas. (f. 125)

E a fértil, e chã terra, que ocupava


aquele monstruoso, e cruel pagão,
que outros claros senhores esperava,
inda se chama Lamas de Orelhão.
445 Ditosa terra, que santos criava,
e ditosos também seus povos são
que os ínclitos marqueses obedecem,
de cujo tronco plantas tais florecem.

Santíssima pastora, mal cantada


450 nestes meus versos do teu nome indinos,
seja minha ousadia perdoada:
não podem mortais dar versos divinos.
Tu lá estás n'alta glória coroada;
nós cá na terra te cantemos !linos.
455 Recebe o que de ti ao sol, e à lua
saudoso cantava ao som de Tua. (f. 125v0 )

423: omite e 427: que a sentiram PL que o sentiram 431 : BNL dão bem prova 433: Ali mil
cruzes 434: Chova ora neve 435: aos seus devotos 438: omite pedir 440: PL omite os BNL os
moços ... as moças 448: tais plantas 454: cantamos 455 : o sol e a lua 456: da Tua

251
CARTAS

LIVRO I

Congratulação de todo Reino a el-Rei D. João III na morte do Príncipe D. João,


seu filho, que sofreu pacientissimamente

Grã rei, senhor das casas do sol ambas,


boníssimo João, mais pai da pátria
que Brutos, ou que Augustos, ou Trajanos,
por grã mercê de Deus, e glória nossa
5 dado a estes Reinos teus do rico Tejo
até Eufrates, Nilo, Tigris, Gange,
vencedor da braveza de Neptuno,
senhor de seu tridente, e ricas conchas,
de bárbaros espanto, amor, e medo,
10 luz clara de infiéis, coluna firme
da católica fé, de idolatrias (f. 126)
falsas destruidor, paz do teu Reino,
fortíssimo João, graças te damos.
Não por tuas vitórias com que espantas
15 o mundo todo; não por teus tesouros,
com que esta tua terra enriquiceste,
justamente ganhados; não por letras
com qu' as armas ornaste, honrado Febo
igualmente com Marte, que florecem
20 agora mais que nunca; não por leis
santas, iguais, e justas, com que os vícios
castigas nos maiores e menores.
Não te louvamos, Rei, não te louvamos
d'espectáculos vãos dados ao povo,
25 de prodigalidade de moedas
lançadas pelas ruas; não de mares
apetitosamente atravessados
de trabalhosas pontes semeadas
de peças de ouro, e prata, e ricas pedras,

253
LIVRO I DAS CARTAS

30 de montes arrasados, rios secos,


de, sem necessidade, águas trazidas
de longe por mil canos, mil rodeios ;
não de popas douradas, velas ricas
de púrpuras, e remos de ouro, e prata,
35 de tanques, de piscinas, de arcos, termas,
bosques, parques, teatros, capitólios,
carros, !iteras, tigres, liões, ussos, (f. 126v 0 )
de feras monstruosas, nunca vistas,
e de outras não grandezas, mas solturas,
40 que reis tiranos livres costumavam
em tempos infelices, e costumam
pelo mundo ind'agora, em si somente
os públicos tesouros consumindo,
tirados do suor, do sangue, e vida
45 de seus cativos povos. Nós, bom Rei,
de ti só te louvamos; de ti só
damos graças os céus, que te nos deram
Rei justo, Rei clemente, Rei pacífico,
Rei homem, Rei e pai, senhor, e amigo.
50 A fortaleza grande, e gloriosa
pera sempre a teu nome, a este teu Reino,
que exemplo imortal fica d' outros reinos;
aquela fortaleza nunca vista,
grã Rei, que contra a morte de um teu filho,
55 único socessor do teu estado,
mostraste, quem a entende? Quem não espanta?
Como se pode crer dos que vierem?
Ou em qual dos passados se viu nunca?
Cristianíssimo Rei, crer-se-á de ti.
60 De João, o terceiro, que constância,
que espantos, que grandezas, que milagres
se não crerão no mundo! Teu bom nome,
por onde quer que soa, ama-se, e espanta (f. 127)
e soa desd'um pólo ao outro pólo;
65 fere novas estrelas, novos céus
de ti só descubertos, e mostrados.
Espantem outros, sejam mais temidos
que tigres, que !iões, e trema ant'eles,
como ant'a mesma morte, o triste povo.
70 Não ousem levantar os olhos nunca
a seus irosos rostos; adorados
se façam ser por forças, e por medos.

254
LIVRO I DAS CARTAS

Novas cruezas usem, com que tenham


seguros os estados de seus ódios.
75 Tu rege mansamente, e com justiça.
Estas sejam tuas artes: a paz ama,
a vencidos perdoa, que se entregam,
a soberbos destruí, desfaze, e apaga.
Amemos-te nós sempre, e te chamemos
80 clemente, bom, cristão, pai do teu Reino.
Filhos teus nos chamemos; como pai
nos ama, nos castiga, e nos perdoa.
Pendamos de teus olhos; mostra-os sempre
seguramente rindo. Essa tua graça
85 mais força tem que ferro, ou fogo de outros.
Nossas almas nos levas após ti,
onde quer que te viras: tu só Rei
és verdadeiro nosso. Em seu lugar
Deus na terra te pôs de Sua mão. (f. 127v0 )
90 Amor faz os bons reis, não medo ; amor
estados dá, e conserva. O que é temido
de muitos, muitos teme. Nós te amamos.
O nome, e a honra, que os bons reis passados
com amor damos, vivo já ta damos .
95 Esses heróis antigos, e monarcas,
vencendo,edificando, acrescentando
impérios, repartindo grossos campos,
julgando jl.!stamente, e defendendo
seus povos com amor, com leis, e armas,
100 choraram de não ver os iguais prémios
a seus merecimentos em suas vidas.
Rómulo, Baco, Castor, Pólux, Brutos,
Décios, Cipiões, Fábios, e Júlios,
despois de suas façanhas increíveis,
105 uns foram recebidos nos vãos templos
de sua idolatria, outros honrados
como heróis ilustres. Até aquele
que a grande, e cruel Hidra matar pôde,
de tantos seus trabalhos rodeado
110 veio a crer que com a morte se vencia
a inveja, qu ' espanta e queima sempre
aqueles que, vencidos, cegos ficam

81 : PL chememos

255
LIVRO I DAS CARTAS

c'o resplandor de quem os cega, e vence.


Mas morto s' ama mais, mais se deseja.
115 Alcança tu só, Rei, o que nunca outro (f. 128)
em vida mereceu: crê que assi já
nos é grande teu nome, brando, e doce,
como o poderá ser em toda idade.

A Pero d'Alcáçova Carneiro, secretário

Dos segredos reais segura guarda,


a cujos olhos s'abre o real peito,
em cujo peito seus intentos guarda,

seja teu bom conselho sempre aceito


5 ao melhor e mor Rei, que te escolheu
conforme em tudo a seu real conceito.

Quão ditoso aquele é, que mereceu


aprazer a tal Rei! Quão alvo dia
em que tão claro ao mundo um sol nasceu!

10 Santa alma, real zelo, a quem só guia


amor, justiça, e paz, cujos bons meios
em ti busca, em ti acha, em ti confia.

Sãs letras, justas armas: dous esteios


firmíssimos do império só tenhamos.
15 Mais bens, se o mundo os tem, a outros reis dê-os.

O Portugal antigo, que louvamos


d'espritos rudes, de ânimos ousados:
qu' arte à sua guerra, à sua paz achamos? (f. 128v0 )

Não escureço os feitos tão lembrados


20 de tantos capitães, tantos reis fortes,
que por divino esprito eram guiados:

as vidas desprezar, não temer mortes,


a mais imigos, rostos mais seguros,
ousados votos, e ditosas sortes,

256
LIVRO I DAS CARTAS

25 alvos cavalos, arcos mil em muros.


Mil palmas, e mil louros mereciam,
mas não se honravam disso espritos puros.

Venciam os santos reis; porém, venciam


mais por ousado esforço, que por arte,
30 sem nenhum medo a tudo ousados iam.

O grã poder de Deus deixado à parte,


que espantos hoje soam, que façanhas
do grande Portugal em toda a parte!

De tantos capitães que artes, que manhas!


35 De tantos cavaleiros que ousadias!
Que vitórias em terras tão estranhas!

Já outros tempos, outros claros dias


nos nasceram. Entrou arte, e ciência,
de nosso esprito mais seguras guias.

40 Cresce c'o tempo mais a experiência.


Não louvamos já bons socedimentos;
louvamos bom conselho, boa prudência.

Enquanto tristes fins de bons intentos


Roma sofria, enquanto castigava (f. 129)
45 ditosos fins de maus cometimentos,

que mundos não vencia? Que receava?


Como tão grande império e paz só tinha!
Quanto da má fortuna triunfava!

D' annas em justa guerra armada vinha,


50 de letras em boa paz; e assi, igualmente
d'ambas sempre ajudada, se sostinha.

Ditosa idade, bem lembrada gente!


Que exemplos cá deixastes, que memória
que do Ocidente soa até o Oriente!

55 Mas quanto mor, quanto melhor história


de Portugal já nasce; que escritura
nova, que nova fama, que alta glória!

PL 31 : a 54: até Oriente

257
LIVRO I DAS CARTAS

Ah, deve-se àquela alma santa, e pura


do nosso grande Augusto, bom Trajano,
60 que aquela clara idade toma escura.

Seu santo fim todo é desviar o dano


que mal nos ameaça, destruindo
mau desejo, mau zelo, e mau engano.

A nova luz das letras foi seguindo,


65 as fortes armas co'elas governando,
de que tamanho bem ao mundo é vindo.

Entraram maus intentos, que danando


vão o conselho santo, e já em mal
aquele tanto bem se vai mudando.

70 Inclinações danadas que o que vai (f. 129v0 )


pera conservar paz, destruir guerra,
pera honra e bem comum, e não pera ai,

seguem só polo seu. Aqui se encerra


todo estudo, tod'arte: que fins santos
75 se esperarão de quem no intento erra?

De tantos livros, tanto estudo, e tantos


anos que sai já agora? Má cobiça,
riso de maus, e de inocentes prantos.

Aquela santa, aquela igual justiça


80 no bom zelo só está, não em livros mudos,
que zelos maus a tomam injustiça.

Não culpo os livros bons, os bons estudos,


como não culparia a boa espada,
bons elmos, bons ameses, bons escudos.

85 Culpo, e praguejo aquela tão danada


alma, que pera mal usa do bem,
de seu cruel proveito conselhada.

Prudência, e lealdade só sostém


os bons impérios; daqui nasce o amor
90 que ao povo o rei , ao rei seu povo tem.

258
LIVRO I DAS CARTAS

Nunca os estados segurou temor.


Nunca foi o bom zelo desprezado:
danou os bons desprezo, os maus favor.

O nosso bom João, tão bem guiado


95 de seu esprito, viva em ti seguro,
e nos mais de quem é bem conselhado. (f. 130)

Abrasam-se castelos, cai o muro,


cansam forças, e braços, e ardidezas:
no bom conselho só está o bom seguro,

100 do saber são as boas fortalezas.


Escolham-se bons zelos, bons espritos,
mais no mundo soarão nossas grandezas.

Aqueles claros feitos, altos ditos


de que os livros são cheios, desprezemos.
105 Mores feitos há cá, não tão bem escritos.
Vençamos no melhor, o outro imitemos.

3
A Pero de Andrade Caminha

Teu nome, Andrade, de qu' é bem qu' esperem


o de que se já sempre espantarão
quantos te vem, quantos despois vierem;

teu raro esprito, de que se honrarão


5 as Musas, que de si tanto deram
e que tarde outro como a ti darão;

os bons escritos teus, que mereceram


ou ouro, ou cedro, pois já nessa idade
nos mostras neles quanto em ti quiseram

10 as Musas renovar a Antiguidade;


em teu amor aceso me levaram
a esta sã, e confiada liberdade. (f. 130v 0 )

Do que se antigamente mais prezaram


todos os que escreveram, foi honrar
15 a própria língua, e nisso trabalharam.

10: PL â antiguidade

259
LIVRO I DAS CARTAS

Cada um andava pola mais ornar


com cópia, com sentenças, e com arte,
com que podesse d'outras triunfar.

Daquela alta elegância quanta parte


20 deves tu, Grécia, àquele tão louvado
poeta que assi soa em toda a parte!

E tu, grã Tibre, de que estás honrado,


senão com a pureza dos escritos
daquele Mantuano celebrado?

25 Garcilasso, e Boscão, que graça e espritos


destes à vossa língua, que princesa
parece já de todas na arte, e ditos!

E quem limou assi a língua francesa,


senão os seus franceses curiosos,
30 com diligência de honra, e amor acesa?

E vós, ó namorados e ingenhosos


italianos, quanto trabalhastes
por serdes entre nós nisto famosos!

Assi enriquecestes, e apurastes


35 vosso toscano, que será já tido
por tal, qual pera sempre o vós deixastes.

Qual será aquele povo tão perdido,


qu' a si não seja mais afeiçoado (f. 131)
qu' a outro estranho, e pouco conhecido?

40 Que bárbaro não diz: - Mais obrigado


sou eu a aproveitar a mim, e aos meus,
que àquele, que de mim está arredado?

Getas, arábios, persas, e caldeus,


gregos, romãos, e toda a outra gente,
45 nascem, vivem, e morrem pera os seus.

Havermos nós agora um excelente


capitão português de quantos temos,
de que se espanta, e treme o Oriente,

24: celebarado 38: assi

260
LIVRO I DAS CARTAS

querer mostrar a ordem que devemos


50 guardar na guerra em língua estrangeira,
quão certo, Andrade, é que nos riremos .

Este, dirias, em vez da maneira


nos querer ensinar como vençamos,
faz outra gente contra nós guerreira,

55 e tanto é mais razão que o nós sintamos


quanto maior proveito nos cabia,
e quanto mor o dano, que esperamos.

O que entre a Antiguidade mais se havia


por infâmia, era desprezar a terra
60 de que um era filho, e em que vivia,

contra a qual não somente se diz que erra


o que desemparar, trair, vender,
ou lhe mudar a boa paz em guerra,

mas quem com quanto dizer, e fazer (f. 131 vº)


65 em seu proveito pode, o não fizer,
ou seja com bom braço, ou bom saber.

Duas cousas somente se hão mister


na república boa: corpo, e alma.
Ditosa aquela, que ambos bons tiver.

70 O corpo, que por ferro, frio, e calma


rompa, e passe sem temor avante,
porque o imigo lhe não leve a palma;

a alma, que seja tão pura, e constante


em seu proveito, e honra, que pareça
75 ter sua glória, e bem sempre diante,

e que na paz, e guerra se ofereça


a com prudência, e conselho a ajudar,
porque chamar-se filho seu mereça.

Por isso o grande Deus nos quis formar,


80 por Suas santas mãos, de carne, e esprito,
porque de ambos havíamos de usar.

261
LIVRO I DAS CARTAS

Quem com armas não pode, com escrito


poderá fazer tanto, que se ria
do qu' os·escadrões rompe, e inda c'um dito.

85 E não se honrava mais, e mais temia


aquela vencedora Esparta antiga
c' os ditos de Licurgo, que a regia,

que des que ela, das armas, e ouro amiga,


os olhos lhe quebrou, e o desterraram?
90 Pátria contra si mesma ingrata, e imiga. (f 132)

Ó quantos quanto mor fama ganharam


co'a boa pena que outros com a espada!
Quanto mais ricas estátuas cá deixaram!

Quanto foi mais sentida, e mais chorada


95 a morte do alto Homero por seu canto,
que a tua, Aquiles, que ele fez honrada!

Pois com quanta razão m' eu mais espanto


do que em ti vejo, tanto ver perdido
sinto, o que me assi move a mágoa, e e[panto.

100 Mostraste-te tégora tão esquecido,


meu Andrade, da terra em que nasceste,
como se nela não foras nascido.

Esses teus doces versos com que ergueste


teu claro nome tanto, e que inda erguer
105 mais se verá, a estranha gente os deste.

Porque o com que podias nobrecer


tua terra, e tua língua lho roubaste,
por ires outra língua enriquecer?

Cuida melhor que quanto mais honraste,


110 e em mais tiveste essa língua estrangeira,
tanto a esta tua ingrato te mostraste.

Volve pois, volve, Andrade, da carreira


que errada levas (com tua paz o digo),
alcançarás tua glória verdadeira.

97: PL quanto

262
LIVRO I DAS CARTAS

l 15 Té quando contra nós, contra ti imigo


te mostrarás? Obrigue-te a razão, (f. l 32v0 )
que eu, como posso, a tua sombra sigo.

As mesmas Musas mal te julgarão.


Serás em ódio a nós, teus naturais,
120 pois, cruel, nos roubas o que em ti nos dão.

Sejam à boa tenção obras iguais,


e a boa tenção, e obra à pátria sirva.
Demos a quem nos deu, e devemos mais.

Aoreça, fale, cante, ouça-se, e viva


125 a portuguesa língua, e já, onde for,
senhora vá de si soberba, e altiva.

Se téqui esteve baixa, e sem louvor,


culpa é dos que a mal exercitaram:
esquecimento nosso, e desamor.

130 Mas tu farás que os que a mal julgaram,


e inda as estranhas línguas mais desejam,
confessem cedo ant' ela quanto erraram,

e os que depois de nós vierem, vejam


quanto se trabalhou por seu proveito,
135 porque eles pera os outros assi sejam.

Se me enganei, se tive mau respeito,


Andrade, tu o julga, mas espero
de ti ser este meu desejo aceito.
E enquanto mais não peço, isto só quero.

A António de Sá de Meneses (f. 133)

Minha Musa, que baixa estava tanto,


que do chão não se erguia, já levanta
em teu grã nome diferente canto.

Tu tão alta a poseste, que se espanta


5 de como pôde e ousou subir tão alto,
que em ti s'ergue, em ti fala, a ti j á canta.

263
LIVRO I DAS CARTAS

E, conquanto é tão perigoso o salto,


em ti, António, está tão confiada,
que não lhe chega medo, ou sobressalto.

IO Alta nobreza em ti tão bem empregada


e de tanta nobreza esprito dino,
ó alma bem nascida, e tão bem dada!

Tal esprito direi eu claro e dino


d'imortal canto, e gloriosa fama,
15 que faz de um mortal homem ser divino.

Não é aquela nobreza, nem se chama,


que s' enobrece só de prata, e d'ouro
e nele põe seu estado, glória, e fama.

Eu vejo aqui, e ali um grã tesouro,


20 eu vejo armas antigas cá deixadas
deste, e daquele que matou rei mouro,

mas que aproveita àquele, de que olhadas


somente são, mostrá-las por vã glória,
pois que por ele as vemos desonradas?

25 Que lhe aproveita o repetir da história ([ 133v 0 )


tantas vezes, e como foi tomada
a antiga sua bandeira na vitória,

pois, assi como foi do avô ganhada,


por ele só tomou ser tão perdida,
30 que quási ela se mostra envergonhada?

A glória, e honra à virtude é devida,


dela nasce, e se cria, e se sostém.
Não se herda, não se compra, é como a vida.

O ouro a terra o cria, a terra o tem.


35 Se algiia;cousa val, é só por ser
um in~trumento bom pera usar bem.

Mas ah, vemos que agora tal poder


lhe tem o mundo dado, que ele manda,
ele a virtude julga, ele o saber.

264
LIVRO I DAS CARTAS

40 Por cima das estrelas já tal anda,


tão soberbo, e tirano, que c'os céus
pouco, e pouco, o que pode, se desmanda.

Lança aos olhos d'alma uns negros véus


com qu ' assi a cega, e encanta, que não veja
45 senão suas ricas veias, nunca a Deus.

Então não lhe falece quem peleja


por ele fortemente, em toda parte,
e tê-lo por seu ídolo deseja.

Por suas mãos a vida se reparte,


50 por suas mãos a vida, a glória, a honra,
e do qu' a melhor espera é a pior parte. (f. 134)

O justo, e sábio jaz; e assi os desonra,


qu' é necessário aos tristes contentar-se
do que em si tem e saber que isso os honra.

55 Esperam quem os erga; mas passar-se


vejo dias, e anos sem o acharem,
té que de todo vem desesperar-se.

Que é, de que vem perderem-se, ou cansarem


os bons ingenhos? De que vem a virtude
60 encolher-se? De a rirem assi, e pisarem.

Em tão rijos combates, tão amiúde,


que ânimo bastará, que fortaleza,
s'em parte algiia se não vê saúde?

Tu vês em que consiste já a grandeza:


65 em abater o que merece erguido,
e em levantar aos céus toda a baixeza.

Mas a este grande mal tem socorrido'


de pouco pera cá algum tanto as Musas,
mercê de quem nos foi tal dom trazido.

70 Já agora vão sofrendo mais escusas,


vão confessando que foi bom o saber
ao tirano cruel de Siracusas.

PL 58: omite é

265
LIVRO I DAS CARTAS

Uns por dessimular, outros por ver


a que sabe isto de que tanto riam,
75 vejo já começar, e proceder.

Ó bom rei piadoso ! Estes não viam;


tu lhes deste olhos novos com que vem. (f. l 34vº )
Por dom tão grande as almas te deviam.

Já esta nossa terra ingenhos tem


80 das Musas bem criados, mas mal cridos,
que sempre o mal anda abatendo o bem.

Ingenhos nascem já, que a ser erguidos,


d'honrosos louros foram coroados,
mas téqui de quem são favorecidos ?

85 Os prémios que os que correm são mostrados,


porque os ingenhos bons se negarão?
Sejam-nos bons juízes nisto dados.

Em tua grã prosápia s' acharão


insígnias triunfais de Apolo, e Marte,
90 que os olhos dos que as virem espantarão.·

De quem se não conhece, ou em que parte


dos Sás o nome? Onde se não fingem
as proezas que a fama em mil reparte,

onde tantos as Musas d'hera cingem,


95 onde armas vitoriosas dão sinal
do claro sangue, de que os campos tingem.

S 'estas sós duas cousas imortal


podem fazer um nome, que letreiro
se pode a este teu nome achar igual?

100 De palma coroado, e de loureiro


por mão d' Apolo, e Palas, achará
no céu, e na terra o prémio verdadeiro.

Mas eu não louvo, António, isto que já (f. 135)


de longe herdaste. Louvo o que em ti vejo
105 que em só teu nome sempre vivirá:

266
LIVRO I DAS CARTAS

esse bom zelo teu, esse desejo


d'honrar as Musas, esse amor tão bom,
que eu tanto em nossos príncipes desejo.

Dom dos céus dado à terra, ó raro dom,


110 que sempre aqueles que o favoreciam
honraram as Musas com seu alto som.

As leis se violavam, e se rompiam


por dar vida aos bons versos mantuanos.
Cidades sobre o Grego contendiam.

115 Os bons ingenhos gregos, e romanos


d'homens como nós foram, mas eram
entr' homens bons, e príncipes humanos.

As honras que lhes davam só lhes deram


esprito, com que assi tão altamente
120 seus nomes pelas terras estenderam;
a honra cria, e faz a arte excelente.

AD. João d'Lancastro, filho do duque d'Aveiro

Que dizes, meu Lancastro, destes sábios,


destes cachopos velhos, que desprezam
quantos bons Catões houve, quantos Fábios?

Que dizes destes graves, que se prezam (f. 135v0 )


5 d'autorizar com seu juízo o mau?
Por grandes contas entoado rezam!

Que julgas d'outro louro Menelau


que com seu corpo e rosto, capitão
se faz famoso mais que Agesilau?

10 Que da carranca deste? Da tenção


daquele? Dos espritos, do desejo,
dos fumos d'aqueloutro, e opinião?

Estas são as diferenças, de que eu vejo


entre nós hoje tantas novidades,
15 que de nelas cuidar me corro, e pejo.

267
LIVRO I DAS CARTAS

Aquele que entre tantas vaidades


não é vão, e não vendo üa só verdade
conhece, e segue todas as verdades,

e entre tantas soberbas a humildade


20 ama só, e quer, e onde se rim do casto
louva e se abraça com a castidade;

que chamarás a este? que eu não basto


a título lhe dar, dele tão dino.
Só me contento de seguir seu rasto.

25 Ditoso tu, que és este, a que um divino


esprito rege, e guia, e aos céus direito
pisando a terra vás seguindo o tino.

Riste deste viver tão contrafeito,


que vês nos homens, e dos seus preceitos
30 novos, em que não há um só bom preceito; (f. 136)

e quando vês uns feitos, e desfeitos


outros, já não te espantas, como quem
a toda a inconstância os vê sojeitos.

O bem sempre por mal, o mal por bem,


35 por virtude o mor vício, e por prudência
o que menos o é, seguem, e crem.

Ao vão pródigo dão magnificência,


chamam o desonesto, homem de damas,
e louvam e hão inveja à incontinência.

40 Aquele, que tu bom, e prudente chamas,


que lança suas contas bem lançadas,
e seu pouco falar, bom e raro, amas,

frio e malecioso; e o de danadas


entranhas, que c'um riso prazenteiro
45 encobre suas peçonhas simuladas,

é só prudente, e cauto; falso arteiro


o que conhece bem, e sabe fazer
diferença do amigo ao lisonjeiro.

268
LIVRO I DAS CARTAS

O cego povo, que não sabe crer,


50 nem estimar senão o que é pior,
como te saberá nunca entender?

Do mais inchado título, e maior


soberba e fausto mais se espanta, e honra
o mais sem honra, e ri-se do melhor.

55 À fama serve sempre; e a cega honra


com' ao indino a dá, sem mais certeza, (f. l36v 0 )
assi lha tira, e deixa em vil desonra.

Mas esse real esprito, essa grandeza


d'ânimo, esse fugir do vulgo cego,
60 de seus enganos, erros, e baixeza,

por onde quer, senhor, que o eu digo, e prego,


em sãos juízos acha amor, e espanto;
e que os mais o não entendam, não o nego.

Porém, seja cad' um prudente e santo,


65 s' em vida não, em morte; os que o não crerem,
o virão crer com lágrimas e pranto.

Dos outros (porventura se morrerem


antes dele) verá todos seus ventos
com eles juntamente perecerem.

70 Quem, como tu, na vida traz tais tentos,


quando morrer começará sua vida;
dos outros ficarão os vãos muimentos.

Vive, bom João, e seja conhecida


essa alma santa, sábia, e generosa,
75 dos céus, por nosso exemplo, em ti influída.

Despreza a cega gente, só ingenhosa


em seguirem seu mal, e a quem imigo
sempre foi o saber, virtude odiosa.

Ouvi sempre dizer que o mor perigo


80 para o homem era o homem. Mas tenha eu
crédito com Deus n'alma e só comigo
paz boa; e seja o mundo imigo meu. (f. l 37)

269
LIVRO I DAS CARTAS

A João Ruiz de Sá de Meneses, no Porto

Antigo pai das Musas desta terra,


ilustre geração forte, e prudente,
igual sempre na paz, igual na guerra,

viste-te já louvar da tua gente,


5 viste-te dos estranhos invejado,
e vês-te ora viver tão longamente.

Viste o bom socessor desse morgado,


claro António, com netos, que serão
herdeiros teus, de teu esprito, e estado,

lO e vês o grã Francisco, a quem se dão


as graças de tal príncipe, qual vemos,
que Deus nos quis formar de sua mão.

Dos outros que direi? Ou que diremos


de ti, senão ditosos tu, e eles,
15 ditosos nós, pois entre nós vos temos?

Em ti os vemos, e a ti vemos neles.


Qual foi aquela estrela que influiu
tal pai, tais filhos? Chamá-la-emos deles?

Mas minha ousada Musa mais subiu


20 do que pode, e não pode ir mais avante;
querendo-te louvar, logo caiu.

Necessária é tua mão, que a levante, (f. l37v 0 )


necessário esse esprito, que lh'inspire
esprito novo, com que s'erga e cante.

25 Dá-lhe tu só favor, com que respire,


form' -a a tua douta mão, verás grandezas
tuas, que o tempo, nem a inveja tire.

A ti, grã Sá, que havendo por baixezas,


por sombras, por enganos, e por ventos,
30 as que a cega opinião chama riquezas;

270
LIVRO I DAS CARTAS

a ti que, nos céus pondo os pensamentos,


dali olhando o vão povo, lhe fugiste
(eu chamo povo onde há baixos intentos),

pergunto se essa estrela, que seguiste,


35 t'amostrou a baixa terra, ou onde a achaste?
Ou por que meios, com que olhos a viste

que vendo-a, logo assi lá te apartaste


do que se tanto estima? E se na terra,
e entr'homens vives vãos, como os deixaste?

40 Como vives em paz em tanta guerra?


Como assi estás seguro em tais perigos?
Como acertas enquanto cá o mundo erra?

Eu, por onde quer qu' olho, vejo imigos


nos homens, nas riquezas, nos estados;
45 tu deles usas só como de amigos.

Outros olhos, grã João, te foram dados,


outro esprito dos outros diferente,
outro alto pensamento, outros cuidados. (f. 138)

Levou-te Febo d'entre a cega gente


50 àquele coro dos segredos seus;
o mundo dali viste claramente.

Dali saíste tal, que já dos teus


serás chamado em vida só ditoso ...
Ah, se mais alto voassem os versos meus!

55 Ó como esse teu nome glorioso


vejo! Quão altamente soará
sempre o teu epitáfio tão famoso!

Já a ti em vivo te leva, e levará


por ti aos céus teus filhos o alto exemplo,
60 que em guerra, e em paz ao mundo ficará.

Quando tal vida, tal saber contemplo,


lembra-me, se tu foras n' outra idade,
que estátuas já te ergueram, que alto templo.

PL 35: onde achaste 50: choro

271
LIVRO I DAS CARTAS

Mas aquela honra dava a Antiguidade


65 às vezes cegamente, outras forçada,
as mais vezes, porém, por vaidade.

A muitos foi injustamente dada;


a ti só fora dada justamente,
e tanto, quanto menos desejada.

70 Tu segues o saber por si somente.


A virtude amas só polo que val,
sem outra cor, e sem outro acidente.

Aos mais dos homens parecerás mal


(eu digo destes homens, que cá vemos (f. 138v 0 )
75 feitos todos de terra, e de metal),

que julgam as virtudes por estremas


e os seus estremas sós não chamam vícios;
mas eles são-no, e nós os conhecemos.

Repreenderão teus santos exercícios


80 de ler, e d' escrever, em que chorando
estás seus vãos desejos, seus ofícios.

Mas então te vejo ir já levantando


mais forte, e mais constante, pois pareces
tão diferente dos que vás deixando.

85 Igual prémio, bom João, ao que mereces


é poderes dizer tu: eu sou só
quem tu, profano vulgo, não conheces,

Ó que mágoa tamanha, ó que grã dó


se deve ter de tão cegos enganos,
90 confiados em vento, em ar, em pó!

Como se os mores bens fossem seus danos,


assi os aborrecem, e o mal por bem
seguem. Quando crerão seus desenganas?

Cegos, que não entendem, que não crem


95 que o homem no corpo é bruto, e semelhante
a Deus só no saber, que d'Ele vem.

272
LIVRO I DAS CARTAS

Oa ave se achará, que melhor cante,


um bruto mais ligeiro, bravo, e forte,
outro que da só vista mate, e espante.

100 Também verás que algum devinha a morte, (f. 139)


outro sabe, ferido, a erva buscar;
em morrer tens com eles igual sorte.

De que te podes, homem, gloriar


senão só da razão? Se a mal empregas,
105 que nome com razão te podes dar?

Que as feras com ser brutas, com ser cegas


seguem o bem, e guardam suas leis;
e tu quebras as tuas, ou as negas.

Não são os reis mais homens por ser reis;


110 nem vós, ó homens fortes, e ligeiros,
maior alma que os mais fracos tereis.

Aqueles são sós homens verdadeiros


que somente o que é seu seguem, e amam,
e quanto mais o seguem, mais inteiros.

115 Aqueles são sós homens que se afamam


com letras, com saber, com que alumiam
o mundo, e tudo o mais fortuna chamam.

Deste lume alumiados, quanto viam


desprezavam os sábios; neste está
120 aquele sumo bem, a que subiam;

com este viste a diferença que há


d'um homem a outro homem, e que baixeza
é quanto fora disto o mundo dá.

Em mancebo mostraste fortaleza,


125 mas despois no que leste, então soubeste
quando esforço se diz, quando fraqueza. (f. 139v0 )

Com isso o mundo, e a ti mesmo venceste,


daí só tomando os preceitos seguros;
seguro assi entr'os homens bem viveste.

273
LIVRO I DAS CARTAS

130 Agora afirmarás que cavas, muros,


baluartes, bombardas, armaduras,
petrechos, valos, minas, contramuros,

nem por piques trepar, nem aventuras


vãs de desprezar morte, dão vitória,
135 mas prudentes conselhos, e almas puras.

Enriqueceste o peito, e a memória


d'altos exemplos dos antigos feitos
que no mundo deixaram clara história.

Enchendo a alma sã de sãos conceitos,


140 a razão segues, que te leve, e guie
pelos caminhos qu' ao céu vão dereitos.

Dirás que não é bem que se homem fie


nos homens, na fortuna; estarás rindo
do vão mundo, por mais que o contrarie.

145 Quando mais ocioso, então abrindo


os bons livros, regendo estás tua terra,
em ti as próprias leis tuas cumprindo.

Sempre prestes, e pronto a paz, e guerra,


no mor descanso mais te temerás,
150 crendo quanto a confiança às vezes erra.

Assi esse nobre assento, onde lá estás,


já de tão longe de teu sangue herdado, (f. 140)
c'os meios por que se houve o sosterás.

De quem, grã Sá, não serás invejado


155 em claro sangue, em feitos, em saber,
em que esse antigo nome é celebrado?

Ditoso tu, pois soubeste assi viver,


ou maior, ou igual aos teus passados;
ditoso, que não podes já temer
160 príncipes, ou fortuna, ou morte, ou fados .

274
LIVRO I DAS CARTAS

A Garcia Fróis Ferreira, seu irmão

Quão diferentemente Deus reparte,


irmão, c'os homens as inclinações!
Ditoso, ao que coube a melhor parte.

Quantas cabeças, tantas condições,


5 quantas condições, tantos apetitas,
e quais os apetitas, tais tenções.

Irás achar num homem tais espritos,


que outra cousa mor qu' homem te pareça
nas obras, nos intentos, e nos ditos.

10 Com outro irás topar, que nem mereça


o nome de homem; antes ele só
dirás qu' os outros homens escureça. (f. 140v0 )

E de quais sobre todos eu hei dó


são destes que não crem, nem lhes parece,
15 que foram, como nós, feitos de pó.

Homem há i, que cuida que merece


a Deus ser imortal, e um só no mundo.
Este dirás que a si, e a Deus conhece?

O outro, de vil e baixo, no mais fundo


20 da terra anda metido; então dirá
que nem quer ser primeiro, nem segundo.

Quem tanto engano desenganará?


Quem, por exemplo claro, ou por figura,
a luz a olhos tão cegos mostrará?

25 Pareceu já a alguns homens só ventura


fortuna, e caso incerto, o que nos traz
e volve de üa em outra desventura.

Mas longe vá de nós a quem apraz,


a quem aprouve dar tal nome errado
30 à suma Providência, que isto faz.

275
LIVRO I DAS CARTAS

Muito bem conheceu isto o enganado


gentio, que o alcançou naturalmente
pelo lume de Deus, que lhe foi dado.

Mas, temendo ele mais qu' a Deus, a gente,


35 não quis crer o que via, e assi enganou
dobrado a si, e o povo simpresmente.

Aquele Deus eterno, que criou


este mundo, com quanto nele vemos, (f. 141)
aquele o regeu sempre, e conservou.

40 Nós, que isto confessamos, e entendemos,


quando mais nos combatem vãs mudanças,
então devemos crer mais do que cremos.

Como nossos cuidados, e esperanças,


todo nosso propor, e proseguir,
45 todos nossos desejos, confianças,

mais certas sempre estão em nos mentir,


que àquele fim chegar que lhe esperamos,
que lá de cima só lhes pode vir!

Estas sombras, irmão, trás que assi andamos,


50 como sombras se vão de nós fugindo,
e nós também trás elas caminhamos.

Quem inveja haverá ao que vai rindo,


se no meio do riso o vê chorando?
Quem o vento, que passa, irá seguindo?

55 Per' outro fim mais alto caminhando


vamos, que tu, grão Deus, de lá nos guias,
e tinto de seu sangue o estás mostrando.

As vãs mudanças nossas são as guias


que nos pera lá levam, e tu nos deste,
60 mas nós seguimos nelas outras vias.

Por isso, em quanto vemos nos quiseste


mostrar pouca firmeza, e fundamento;
por isso, inclinações várias nos deste.

276
LIVRO I DAS CARTAS

Deste-nos ligeireza ao pensamento, (f. 141 vº)


65 por que da terra aos céus subindo visse
que tinhamos nós lá outro firme assento;

e daquele alto olhando abaixo risse


dos jogos em que andamos todos vãos,
e logo, eles deixados, te seguisse.

70 Cansamos os espritos, pés, e mãos


trás cousas cujo fim sempre é mais certo
as almàs corromper, e peitos sãos.

Por estas não tememos o deserto


medonho, o mar inchado, a terra crua.
75 Ah, que despois de havido, é mais incerto.

Ó quantos vão voando sem a sua


mina d'ouro deixada ao ingrato herdeiro!
Como podes dizer üa cousa tua?

Eu vejo que as mais vezes o primeiro,


80 que quis ser diligente, fica aquém,
e passa então por ele o derradeiro.

Quem confia, pois, já no que vê? Quem


no mor seguro não se está temendo?
Quem debaixo do céu pode estar bem?

85 De quantas cousas há se está bem vendo


üa roda contínua sucessiva,
em que uns estão morrendo, outros nascendo.

Aquela parte só, que em nós é viva,


aquela vive sempre; esta segura,
90 esta livre nos é, nunca cativa. (f. 142)

Esta zomba de acertos, e ventura,


ri-se de quanto há cá pela terra,
por nada cegamente s'aventura.

Tu, enquanto o vão mundo enganado erra


95 e as cousas de mor preço desestima,
com estas armas vence sua má guerra.

277
LIVRO I DAS CARTAS

Não há signo, não estrela, ou pólo, ou clima,


que mudar possa a boa tenção constante
qu' os olhos da terra alça, e os ergue acima.

100 Em nossas mãos nos temos: e diante


bem, e mal; honra, infâmia; pena, e glória.
Sigamos o melhor, por mais qu' espante.

De nós nos nasce ou triste, ou clara história:


vençamos c' os bons fins princípios duros,
105 o mor perigo com a mor vitória.

Há dous caminhos: um leva seguros,


inda que estreito, aos céus espritos claros;
outro largo, e mais livre os deixa escuros.

Figura antiga, e triste! Quem tão caros


110 nos fingiu nossos bens? Porque parecem
tantos maus caminhantes, bons tão raros?

Os homens que por homens se conhecem


não vem sua natureza alta, a que os chama?
O que lhe não convém, e o que merecem?

115 Como do nosso fogo a viva chama


não levantamos, que vá clara abrindo (f. 142v0 )
a larga estrada da virtude, e fama?

Larga estrada, não estreita, a quem seguindo


com claros olhos for a clara estrela,
120 que nós com névoas vãs estamos cobrindo.

Apareça a Razão fermosa, e bela,


criada em nossos peitos. Ah, que amores
nos nascerão tão vivos logo dela!

Cairão os perigos, e os temores;


125 o campo livre, o céu claro, e sereno
veremos, sem trabalhos, e sem dores.

Vida tão larga por um tão pequeno


momento de miséria, não de vida,
onde m'engana o que mais fundo, e ordeno;

278
LIVRO I DAS CARTAS

130 memória gloriosa, tão devida


à virtude, honra, e glória, por üa morte
que as mais das vezes vem não conhecida;

quem tão enganado é, tão pouco forte ,


que não troque por bens üas sombras vãs?
135 Por tudo o nada? O certo pola sorte?

Passam os anos ledos, vem as cãs;


morreram os prazeres, vem tristezas;
contentes estão sempre as almas sãs.

Acham bem no trabalho, e nas durezas


140 descanso. Vencem tudo; e a derradeira
hora hão por mor bem seu, mores riquezas.

Fortíssimos espritos, que a carreira (f. 143)


de suas coroas ledas, e ousados
correram desd'a sua hora premeira,
145 sós ricos, sábios, bemaventurados.

A Pero de Andrade Caminha

Deste meu peito são, em teu são peito,


candidíssimo Andrade, vão seguras
minhas palavras chãs, meu nu conceito.

1-vos daqui fingidas, i-vos duras


5 línguas, e condições; pura clareza
saia de claros peitos, e almas puras.

Rio-me, bom amigo, da estreiteza


dalguns curtos amigos, e da ousada
d'outros livres errada, e vã largueza.

10 Seja a amizade fácil, confiada,


doce, aprazível, branda; mas honesta,
mas de sã liberdade acompanhada.

279
LIVRO I DAS CARTAS

Pague-se amor fingido a quem o empresta,


mas quem bom amor dá, receba-o bom,
15 livre da tenção baixa, e desonesta.

Ó que doce harmonia, que igual som


faz a virtude em dous peitos, que dela
se ajuntam, se compõem! Divino dom!

Eu honro, e honrarei sempre a boa estrela (f. 143v0 )


20 que tal te me mostrou, e a mim te deu,
de Apolo amor, fama de Fílis bela.

Ditosa, e ingrata Fílis, deste teu


gentilíssimo esprito tomo a parte
que os céus me deram nele por bem meu.

25 Antes deste mortal meu véu se aparte


est' alma, meu Andrade, que um só dia
deixe, como a si mesma, já de amar-te.

Tu e_m meus cegos passos foste a guia,


qu' ao Museu escondido me guiaste;
30 devo-te quanto sem te ver perdia.

Cresceu sempre este amor com que m'amaste;


cresceria tua fama, s' eu podesse
cantar-te igual ao nome que ganhaste.

Dar-te-ia metais ricos, se os tivesse;


35 em mármor deixaria, em vivas cores,
vivo esse esprito teu, s' arte soubesse

igual à dos antigos, uns pintores,


outros em pedras tais, que com suas mãos
roubavam à natureza seus louvores.

40 Mas o céu negou-me isto, e esses tão sãos,


tão modestos desejos se contentam
também dos meus desejos todos sãos.

Folgas com versos. Versos se presentam


meus, quais são, ante ti; versos dão vida
45 ao dino de memória e o acrescentam. (f. 144)

13: PL emprsta

280
LIVRO I DAS CARTAS

As Musas cantam; delas é sabida,


não de metais, de cedros, de esculturas,
a fama aos claros feitos concedida.

Caem as estátuas, gastam-se as pinturas;


50 aquele brando canto é, só, mais forte
contr' o tempo, que ferro, ou pedras duras.

Contra fogo, contra água, e contra a morte


fica soando sempre; ó tu ditoso,
a quem tão grande esprito coube em sorte.

55 Teu bom verso te canta; glorioso


faça teu nome, em todo mundo saia
tal som, que seja amado do invejoso.

Qu' em tão ingratos tempos ora caia,


em tão duros ouvidos, outra idade
60 o cantará daqui à oriental praia.

Se tão usada fosse a liberdade,


como é o engano falso, eu ousaria
mostrar contra mil erros a verdade.

Em vão o desejo, em vão me queixaria


65 d'estes juízos cegos que igualmente
gostam da Musa doce e Musa fria.

Louvem-se os bons intentos, cega gente,


louvem-se as boas obras, bons espritos;
não seja o mau c' o bom indiferente.

70 Uns ditos serão graves, outros ditos


baixos, e despejados; dum louvor
quereis pagar os bons e os maus escritos?

Que gosto, que esperança, que fervor


acenderá um peito, que s'inflame
75 a cantar, ou chorar o fero amor,

qu' os claros feitos erga, heróis afame,


armas de pó vitorioso ornadas,
que milagres despois o mundo chame,

PL 49: a estátuas 57: de invejoso

281
LIVRO I DAS CARTAS

se tão rudes estão, se tão cerradas


80 as orelhas ao som, que de Énio a Maro
não fazem as diferenças aprovadas ?

Não sabem o escuro conhecer do claro,


próprio do impróprio; não do brando o duro,
o vulgar baixo do bom, grave, e raro.

85 Isto está leve, e frio; isto maduro,


e doce; o estilo aqui vence o conceito;
aqui o conceito é bom, o estilo escuro.

Como os sem arte, como os sem preceito,


tal estreiteza de arte, e de preceitos
90 notarão? Quem não tem mais alto objeito

que seguir seu juízo nu, que aceitas


versos fará a Horatio, digo às Musas?
Que os que desfaz, das Musas são desfeitos.

O bom louvas, Horatio, o mau acusas.


95 De"bons ingenhos mestre artificioso,
não sofres falsas cores, vãs escusas.

Grave censor das Musas, quão iroso (f. 145)


te mostras contr' aqueles maus profanos
que se ousam coroar de louro honroso!

100 Suem e tremem, gastem bem seus anos


em teus preceitos, virão mais seguros
em ti, menos confiados em enganos.

Aqueles versos teus, doces e puros,


entenda eu sempre, e siga; eles abrandem,
105 eles dem graça aos meus, frios e duros.

A ti leiam, grã Flaco, após ti andem


meus olhos, trás os que também te seguem,
como o bom Sá Miranda, a que os céus mandem

cantar mil anos cá, e então se entreguem


110 daquele raro esprito. A estes contente
meu verso, minha prosa; os cegos ceguem.

282
LIVRO I DAS CARTAS

Não sofrem as altas Musas meãmente


serem tratadas; tanto que do estremo
um pouco deço, caio baixamente.

115 Quem esprito me dá? Como não tremo?


Como ouso tentar tanto? Vós sabeis,
Musas, quanto vos amo, quanto temo.

Soberbas confianças não sofreis,


humilde imitação is levantando,
120 de juízos vãos, leves, não pendeis.

Andrade, eu vou seguro desprezando


ingenhos mal criados, a um só certo
juízo bom, fiel, sempre me atando, (f. 145v 0 )

juízo, que conheça ao longe e ao perto,


125 que saiba comparar à boa pintura
o bom poema, em tudo vivo, e esperto.

A fria alegoria, a má figura,


a história ou mal tocada, ou mal seguida,
a feia afeitação, sentença dura;

130 sentença boa, porém mal trazida,


palavras muito novas, muito antigas,
arte ou demasiada, ou esquecida;

o decoro, que quer que üa cousa digas,


outra cales, em outras vás detendo
135 o leitor, isto fujas, isto sigas;

de quem m'isto apontar irei pendendo.


Ou me louve, ou reprenda gente cega,
nem os estimo, nem me vão movendo.

Negue-me louro Apolo; Palas, nega


140 teu bom fervor, e esprito, se eu mal quero
àquele ingenho bom, que bem se emprega.

Amo-o, honro-o e sigo-o; o inculto, e fero,


em si só confiado, não me apraz.
Eu, Musas, a vós sigo, em vós espero.

283
LIVRO I DAS CARTAS

145 Jaz vosso nome baixo, e escuro, jaz


mal entendido; vinde, desfazei
tal guerra contra vós, deixai-nos paz.

Vinde, Musas armadas, socorrei


a vossos louros, e heras, que forçadas (f. 146)
150 vos levam os que não guardam vossa lei.

Sejam as boas cabeças coroadas


das sempre verdes folhas; outras sejam
de vossos sacros bosques desterradas.

Trazei-nos vossa luz, pera que vejam


155 quão longe estais, quão altas, quanto acima
dos que em vão a chegar-vos se despejam.

Doutrina, arte, trabalho, tempo, e lima


fizeram aqueles nomes tão famosos
por quem a Antiguidade se honra, e estima.

160 Ah, quem sofre uns Cherilos tão pomposos


aqueles altos nomes ir tomando,
que foram aos que os ganharam tão custosos?

Magoa-s' o bom esprito, se roubando


lhe vão seu preço e a quem não é devido
165 juízos enganados o estão dando.

Um bom ingenho quer ser entendido.


Não quer tesouros; pede ouvidos puros
em que seu verso caia bem sentido.

Levavam pedras, levantavam muros,


170 amansavam liões os doces cantos.
Agora os homens sós lhes são mais duros.

Quem me desse a tal mágoa assi iguais prantos,


que aqueles duros peitos desfizesse
de quem socorrer pode a males tantos!

175 Quem vida livre, quem já tal tivesse (f. 146v0 )


autoridade, ó príncipes, que à honra
do verso, antiga e grande, vos movesse!

284
LIVRO I DAS CARTAS

Não vos honram tesouros, não vos honra


rico cetro, alto estado, o mar, e a terra.
180 Quantos isso danou! Quantos desonra!

Por escritos viveis muitos em guerra,


muitos em paz já ganharíeis glória;
mas sabe-o a morte só, que tudo enterra.

Quanto mais cá soara a alta memória


185 que nos deixou o grã Grego que o mundo
correndo foi com guerra, e com vitória,

se daquele alto, heróico, e facundo


cantor de Esmirna só fora entoado
seu nome dos Antigos sem segundo!

190 De Lisipo esculpido, e só pintado


d' Apeles távoas duras pereceram;
os papéis cremos só, de que é contado.

Neles se vê com quanta glória arderam


de Grécia os frígios muros; da alta Roma
195 como da terra aos céus outros s' ergueram.

O português império, que assi toma


senhorio por mar de tanta gente,
tanto bárbaro ensina, vence, e doma,

porque assi ficará tão baixamente


200 sem Musas, sem esprito, que cantando
o vá do Tejo seu, ao seu Oriente? (f. 147)

Príncipe (mágoa nossa, que chorando


sempr'estarei), tu cedo levantaras
algum desses espritos qu' ias criando.

205 Quão docemente, grã João, soaras


em todo mundo vivo! Morto soa;
honrem-te as Musas, que tu tanto honraras.

Quantos de tua mão justa coroa


de louro receberam! Quantos de heras!
210 Herde teu filho tua tenção tão boa.

285
LIVRO I DAS CARTAS

Já há muito, meu Andrade, que me esperas :


levou-me mágoa grande do mal nosso,
iram-me condições de gentes feras.

Não posso o que desejo. O que só posso


215 te digo: está este tempo todo em preço.
Não pode um ingenho já, Musas, ser vosso.

Do que esperei algü'hora em vão me deço.


Cante quem canta ao som dos seus louvores,
qu' eu nem os acharei, nem os mereço.

220 Esfriassem-se em mim meus vãos ardores,


tivesse boa paz sempre comigo,
outros cantassem reis, e emperadores.

Sempre aos mais dos ingenhos foi perigo


escrever. Os bons temem; escrevam ousados
225 esses, que tem grã crédito consigo.

Ditosos os que vivem bem calados,


metidos em si mesmos, e contentes (f. 147v0 )
de não serem ouvidos nem julgados.

S' em mim algum juízo, ou amor sentes,


230 ou não escrevas, ou, s'escreves, pende
dum só juízo certo a que contentes.

Daqui nasce o louvor, daqui se estende


por todo mundo, em toda parte vai.
O que üa vez é bom, nada o ofende.

235 Às vezes se diz bem, melhor, e mal;


assi se faz o livro. O bom prudente
louva o bom, risca o mal, em tudo igual.

Não dissimula vício; se o consente


no amigo, fá-lo seu. O amigo puro
240 em ti, como em si mesmo, é diligente.

C' um olho só que vejas, mais seguro


irás que com mil cegos. Põe diante
outra idade, outro tempo menos duro.

286
LIVRO I DAS CARTAS

Dos mais claros heroas um, que cante


245 escolha teu esprito: real sujeito
tens na alta geração do grande Ifante.

Ergue-te, meu Andrade, arça esse peito


inflamado d' Apolo; cante e soe
igual tua voz ao teu tão alto objeito.

250 Ouça-se o grã Duarte, por ú voe


pelas bocas dos homens; de sua mão
inda Palas, ou Febo te coroe.

Em mim, amigo, tens um peito são; (f. 148)


o mor preço te dou, tal mo tens dado.
255 Ensina-me no qu' erro; à tua razão,
como a teu bom amor, fico obrigado.

AD. João de Lancastro,filho do Duque d'Aveiro, em Coimbra

Se te conheço bem, dessas Atenas,


s' lá achasses, senhor, me mandarias
pera fugir de cá ligeiras penas.

Que tristes horas cá, que tristes dias


5 vejo passar em duvidosa sorte,
imiga de descanso, e de alegrias!

Não conheço eu um coração tão forte,


que não tremesse, vendo só pintada
tal figura de vida, antes de morte.

10 De que fio tão fraco pendurada


vejo tanta honra, tantas esperanças,
de que tanta soberba confiada!

Viu já o mundo, já chorou mudanças


de tempos, e fortunas ; nós choremos
15 nossas tão mal seguras confianças.

PL 249: abjeito

287
LIVRO I DAS CARTAS

Inda as almas magoadas, inda temos


os olhos moles da dor nossa, e o esprito (f. 148v0 )
já ao qu' antes andava sometemos.

Quem sabe o que nos céus estará escrito?


20 Esperemos bem sempre, mas temamos;
enquanto tarda, a Deus suspiro, e grito.

Com dores, e com lágrimas compramos


nosso remédio; com cuidados vãos,
com risos livres mal o seguramos.

25 Eis os arrependidos, eis os sãos


peitos já outra vez, quais d'antes eram,
eis as línguas primeiras, eis as mãos.

Aquelas imortais graças, que deram


com tamanho fervor a Deus, quão cedo
30 s' esfriaram nas bocas, e morreram!

Passou a onda já, passou o medo.


Aparecido o norte, nós seguros.
Mas quem no-lo terá, senão Deus, quedo?

Tesouros soterrados, altos muros,


35 diligências humanas: ah, que valem,
mais que inocentes mãos, e peitos puros?

Aos bons nunca falta que bem falem.


Mas quantos ousam? De quem são ouvidos?
Dá-se cá grande preço a homens, que calem.

40 Outros em comum dano só são cridos;


falsos censores de inocentes, quantos
são dessas livres línguas destruídos!

Destruidores de conselhos santos, (f. 149)


conselheiros cruéis de vosso bem,
45 custe alheios suores, sangue, e prantos.

Um peito livre, que tiranos tem!


Quem se levantará contra uns imigos
em que tantos adoram, tantos crem?

288
LIVRO I DAS CARTAS

Em toda a parte enganos e perigos!


50 Como se salvará um perseguido
d'irmãos, e de parentes, e de amigos?

O triste, que suspira, como ouvido


será entre tantos risos? Mas, s' em vão
aqui suspira, aos céus sobe o gemido.

55 Destes suspiros baixos quantos vão


buscar vingança! Tarda ela, mas quando
chega, que altas grandezas põe por chão!

Tantas mortes sobre outras, que espantando


sempre estarão, suspiros as trouxeram,
60 que aos céus caladamente iam bradando.

Nunca sem grandes culpas cá vieram


castigos grandes. Grande foi o nosso;
quais as culpas serão que o mereceram?

Desejo falar livre, mas não posso.


65 Nunca se veja o que eu daqui já vejo,
s' ao longe, Musas, vê um esprito vosso.

Humaníssimo João, eu não desejo


viver dependurado de vaidades,
onde o bem é nenhum, e o mal sobejo. (f. 149v0 )

70 Não queria adorar üas vontades


divinas, que cá fazem cega gente
tomada a outras vãs gentilidades.

Não me sofre o esprito, não consente


que o qu' eu por mais vil tenho, estime, e adore
75 polo mais precioso, e excelente.

Não me poderei ter que ao menos chore


baixíssimos espritos levantados,
em que, como forçada, a honra more;

merecimentos mal galardoados;


80 almas claras, sãs línguas, peitos fortes,
esquecidos de todo, e desprezados;

289
LIVRO I DAS CARTAS

ânimo e fé leal, por tantas mortes,


por tantos fogos , e ondas já apurada,
igual, como outra baixa, às comuns sortes.

85 Que me aproveita a lança ensanguentada


no peito do rei mouro, se aventuro
perder a vida, e não ganhar cá nada?

Não há triunfos já, não quebrar muro,


não coroas de palma, não de louro.
90 Ah, tempo a todo bem ingrato, e duro!

Esta é a idade que chamaram d' ouro:


tudo obedece só a este tirano.
Tanto valho, senhor, quanto entesouro.

Mas eu queria, só livre de engano


95 de mim mesmo, e dos homens, viver tal, (f. 150)
que sempre um, esperasse o dia, e o ano.

Queria um bom estado meão, igual


em todo tempo, üa fortuna honesta,
que bastasse livrar-me de obrar mal.

100 O que convém à vida é o que presta.


Mau sempre, ou perigoso, o que sobeja,
que logo torce à via desonesta.

Fujo daquilo, que se mais deseja.


Não quero eu amar tanto meus herdeiros,
105 que minha morte desejada seja.

Não quero ser contado entre os primeiros.


Disto só me contento, a isto chegasse:
que o primeiro fosse eu dos derradeiros,

nem invejado fosse, nem invejasse.


110 Assi com meu esprito sossegado,
em tudo a meu estado m' igualasse.

Ah, meu Lancastro, se me fosse dado


remédio de fugir das tempestades,
em que anda todo mundo levantado,

290
LIVRO I DAS CARTAS

115 em que por mim passassem mil idades,


por todas ledo, e rico passaria,
com só fugir vãs cortes, vãs cidades.

No verde campo me amanheceria,


veria o sol, saindo roxo, e claro,
120 a grossa névoa alçar, dourando o dia.

O que hão no mundo por melhor, mais raro, (f. 150v 0 )


desprezaria; um só murmúrio brando
d'água corrente me seria caro.

Não às soberbas portas esperando


125 d'alta casa acharia a triste gente
que tão contínua em vão anda velando;

não de mármores altos, e esplendente


pedra estranha, lavrada por nova arte
de finas tintas, e ouro reluzente,

130 ergueria colunas; não, por parte


qualquer que fosse, levaria forçados
quantos achasse; não do foro Marte

a funesta trombeta, os tristes brados,


me soariam, não os golpes duros,
135 nem as quedas dos muros arrasados.

As minhas torres, os meus altos muros,


sejam quieto esprito, e vida pura,
em que meus pobres bens estêm seguros.

Meus pensamentos sejam na pintura


140 do céu vário, e formoso, que me está
mostrando outra mais alta formosura,

outra alta formosura, que eu de cá


vendo, quanto se vê na baixa terra
fastio õs olhos, pejo ao esprito dá.

145 Ó doce campo, ó deleitosa serra,


vales sombrios, claras, e correntes
fontes, que bem secreto em vós s'encerra! (f. 151)

291
LIVRO I DAS CARTAS

Em vós viveram as primeiras gentes,


antigos padres nossos; santa idade,
150 toda de mãos, e peitos inocentes.

Em vós a alva inocência, a sã verdade,


igual justiça, andavam companheiras
da boa fé, da limpa castidade.

Por vós, passando em vós, as derradeiras


155 pegadas cá deixaram, aos céus subindo
da terra, às suas moradas verdadeiras.

Ali as brandas Musas, que seguindo


· vou com tanto desejo, de hera, e louro
algü'hora me estêm a fronte cingindo.
160 Partam outros o mar, soterrem ouro.

10

A Manuel de Sampaio, em Coimbra

Das brandas Musas dessa doce terra


pera sempre apartado, choro, e gemo,
em vãos cuidados posto, em dura guerra.

Sampaio, ah, que não vivo, ah, que arço e tremo


5 com medo dos perigos, que cá vejo
tais, que do só seu rosto pasmo, e temo.

Aristipo por mestre aqui desejo,


que com seu livre desvergonharnento (f. 15lvº)
soltasse minha língua, e inútil pejo.

10 Tudo se vence cá com atrevimento,


com língua ousada, e mãos, com não temer,
com pôr a proa a todo mar, e vento.

Mas eu vou-me, com Diógenes, meter


dentro em mim mesmo, e aquele doce espaço
15 me não lembra mais mundo, ou mais viver.

Quanto mundo ali rio, ali desfaço!


Que novos mundos crio! Quantas vezes
mouro comigo ali, quantas renaço !

292
LIVRO I DAS CARTAS

Ditoso aquele que contando os meses


20 de sua idade vai alegremente,
sem ouvir de espanhóis, nem de franceses.

Ditosa, ó quão ditosa aquela gente


que em sua simpres, sã rusticidade,
a noite trás o dia vê contente!

25 Quão triste, e dura vida a da cidade


cheia de povo vão! Quão perigosa
a da corte a toda alma, a toda idade!

Esta cidade em que nasci, fermosa,


esta nobre, esta cheia, esta Lisboa,
30 em África, Ásia, Europa tão famosa,

quão diferente em meus ouvidos soa,


quão diferente a vejo, do que a vê
o esprito enganado, que no ar voa!

Este idólatra povo, que só crê (f. 152)


35 no tesouro, seu Deus, assi se cega,
qu' em al não cuida, ou escreve, o~ fala, ou lê.

Que fé, que sangue já, que amor não nega


polo seu amor próprio? Que alma, ou vida
lhe não dá, lhe não vende, ou não entrega?

40 Aquela grã Rua Nova conhecida


por todo mundo, que outra cousa conta
senão da nau ganhada, ou nau perdida?

Ah, que triste miséria, ah, grande afronta,


não ousar levantar-se um bom esprito
45 a outro cuidado, outra mais alta conta!

Quão claro aquele, que ou por feito, ou dito,


deixou nome imortal, e glorioso
exemplo aos seus em proveitoso escrito.

Igualmente direi sempre ditoso


50 ou quem fez cousas dinas de memória,
ou quem pôs em memória o proveitoso.

293
LIVRO I DAS CARTAS

Esta é a vida, esta honra, esta é glória


tão amada daqueles que deixaram
em guerra, e em paz, ao mundo clara história.

55 Quão pródigos das vidas derramaram


seu generoso sangue! Quão contentes
por boa morte as vidas venturaram !

Roma, a grã Roma emperatriz das gentes,


com que a soberba Grécia escureceu?
60 Com que tornou suas terras obedientes? (f. 152v0 )

Com gloriosa inveja se moveu


usar das gregas leis; com sua doutrina,
com suas próprias armas a venceu.

Com elas todo mar, e terra inclina


65 às vencedoras águias, que voando
levam por todo mundo a honra latina.

Àquilo, a que se vão afeiçoando


nossos olhos, e esprito, ou tarde, ou cedo
nos levam, se os deixamos ir levando.

70 Também tem seu começo o esforço, ou medo,


seu começo o desejo, ou ódio d'honra.
Vem azos, passa o tempo, não está quedo.

Quem seus olhos alçou àquilo que honra,


e aceso de sua glória, o foi seguindo
75 té fim, tudo o mais baixo há por desonra.

Quem a vontade, assi zombando e rindo,


deixou levar após seu cego gosto,
de todo mais saber s'está sorrindo.

Vês aquele tornar com ledo rosto,


80 do sangue, e suor das armas bem corado,
defendendo o lugar em que foi posto,

quão confiado chega, quão olhado


por onde quer que vai, quão recebido
d'homens, quanto de damas festejado?

294
LIVRO I DAS CARTAS

85 Vês d'outra parte estoutro, que perdido


seu tempo, seu desejo, baixo, e vil, (f. 153)
não é entr'aquela gente conhecido?

Tantos dobrões antigos num ceitil


infame, e vergonhoso se tornaram,
90 qu' às vezes anda em vão pedindo a mil.

Ambos suas estrelas os levaram.


Mas um seguiu sua boa; outro da má
não quis fugir, que elas nenhum forçaram.

Quão caro custa o bem, que o mundo dá!


95 Sempre em dor, ah, sempre em rependimento
o mor seu gosto acaba, e acabará.

Espritos vagos, vãos, como do vento


viveis? Como seguis quem tanto dana?
Em que assi descansais o pensamento?

100 Ah, que um só doce canto nos engana


de sereias cruéis, que no mor mal,
no mor perigo em vão nos desengana!

Quanto, Sampaio meu, quanto mais vai,


meu bom amigo, um ócio, livre, e honesto,
105 que as Índias guerrear de Portugal!

Índia, Guiné, Brasil, e todo resto


do mundo, a que nos chama, a que convida,
em mundo assi ambicioso, e desonesto?

Que bem, que alegria há, que destruída


110 não seja de mil males, que em espreita
parece que tem sempre nossa vida?

Busquemos üa estrada mais direita, (f. l53v 0 )


amigo, com saúde, e com descanso
de vida, inda que humilde, aos céus aceita.

PL 87: Não entr'

295
LIVRO I DAS CARTAS

115 Do fresco prado pelo rio manso,


em leve barco verde de mil ramos,
de mil flores, rememos manso, e manso.

Mais ondas, mores mares não queiramos;


com nossa baixa vela, mas segura,
120 cheguemos ao bom porto, a que guiamos.

Tu em castos desejos a alma pura


sãmente contemplando, já mais que homem
no que te deu teu esprito, não ventura,

eu, enquanto uns cuidados cruéis me comem,


125 no que me representam enlevado,
iremos, té que os veja, ou que mos tomem.

Esprito meu, esprito tão cansado,


descansarias ora, se chegasses
àquele teu bom fim tão desejado.

130 S' esta minh' alma triste perguntasses ,


Sampaio, de que vive, ou em que espera,
sei que de seus desejos só chorasses.

Quem me dera no mundo, ah, quem podera,


ter contigo üa vida, qual desejo,
135 qu' a ambos prazer, e ofensa a ninguém dera!

Pendurado ando todo dum desejo:


s' eu algüa hora o visse, tu verias
o claro fogo em que arder me vejo. (f. 154)

Ó doces, ó ditosos os meus dias,


140 s' a tal estado chegam, qu' igualmente
os passássemos inda em alegrias!

Não alegrias, quais as quer a gente,


d'alvoroços, de festas , de pandeiros,
mas d'amor, de prazer, qu '_a alma só sente.

121 : desejos alma 125: enlavado 144: qu' alma

296
LIVRO I DAS CARTAS

145 Ao som das águas, sombra dos ulmeiros,


no doce colo de sua mãe formosa
formosos visse eu inda os meus herdeiros;

não soberba, não seca, não pomposa,


mas branda, humilde, casta, sábia, e santa,
150 formosa sempre a mim, nunca queixosa.

Já a vejo, já se assenta, já me canta


ao som da doce lira os doces cantos
que eu não compunha em esperança tanta.

Ali vejo acabar meus tristes prantos;


155 ali novos prazeres, novas festas
nascem d'amor e de deleites santos.

Tu chegas, meu Sampaio, e ali me emprestas


toda tu'alma, todo teu bom siso,
com que esta minha vida mais honestas.

160 Temperas gravemente o solto riso


de meu contentamento, e então m' ensinas
subir por este ao outro paraíso,

pisando ora a erva verde, ora as boninas


roxas, azuis, e brancas desfolhando, (f. 154v0 )
165 com histórias humanas, e divinas.

Vejo-me estar ouvindo a ti contando,


pendendo da tua boca, té que as horas
de mudar o lugar nos vem chamando.

Ajunta o precioso ouro, que adoras,


170 avaro cobiçoso, tais riquezas
que havidas temes, que perdidas choras.

Procura honras, estados, e altezas,


ambicioso vão; farta esse peito,
que enfim contigo acabam essas grandezas.

175 Visse eu do que desejo santo efeito,


com saúde, com livros, com meã vida,
com ter de mim em minh'alma bom conceito.
S' ela mais desejar, não seja ouvida.

297
LIVRO I DAS CARTAS

11

A Diogo de Betancor

Que poderosas ervas nessa Beira,


que águas tão esquecido te tomaram,
tão cru, meu Betancor, ao teu Ferreira?

Se novas Ninfas novo amor criaram


5 nesse teu brando peito, doce fogo,
nas minhas tuas chamas se esfriaram.

Entra zombando, entra entre riso, e jogo (f. 155)


brandamente o Amor, e então se mostra,
quando já não aproveita choro, ou rogo.

10 Qu' arte, que graça põe nua só mostra!


Que viveza, que força, quando a esconde!
Quão sabiamente finge o que demostra!

Minino que não fala, nem responde,


mas com aquele silêncio pode tanto,
15 que sentimos a força, sem ver donde.

Eu em suas cousas já perdi o espanto.


Conhecido me fez em toda parte
com tristes vozes, com saudoso canto.

Já provou toda a força, já toda arte,


20 nesta alma em que só quis fazer vingança
d'ofensas em que a triste não tem parte.

Moço cruel, que à minha conta lança


as ofensas, e as iras, de quem sabe
ter, só pera meu mal, de mim lembrança!

25 Não permitam meus fados que eu acabe


em tanto dano meu, tão grã perigo,
em que nem força val, nem razão cabe.

Inda que assaz conselho tens contigo,


ouve, porém, enquanto sofre a idade,
30 o que te lembra, amigo, um teu amigo.

10: PL nua

298
LIVRO I DAS CARTAS

Quanto vai do engano à sã verdade,


tanto vai dum amigo ao lisonjeiro.
Um te fala à razão, outro à vontade. (f. 155v 0 )

Esse esprito tão puro, tão inteiro,


35 nascido pera honra, e pera glória,
não o deças em baixo cativeiro.

Não to levem em triunfo, em vã vitória,


mas vergonhosa a ti, baixos afeitos,
que à vida, e alma deixam baixa história.

40 Enche de tenções altas teus conceitos,


iguais àquela santa, alta doutrina,
que entra de livros santos em sãos peitos.

Sogiga teu juízo, e todo o inclina


à firme , e verdadeira fé, sem que
45 nenhüa alma criada é dos céus dina.

Engana-se o olho fraco no que vê,


engana-se o juízo confiado;
só a humildade entende, adora, e crê.

Ditoso esprito bem aventurado


50 que aprende só de Deus, que de Deus fala,
já em corpo mortal aos céus levado!

Começas; ouve agora; crê; e cala.


Vai seguro na fé dos que te guiam,
té que Deus pera os outros te dê fala.

55 S' alguns maus movimentos te desviam


(porventura d' Amor) do santo estudo,
teme em ti o que em mim todos temiam.

Quão pouco há que me vias surdo, e mudo


pera ouvir, e pedir cura a meu mal. (f. 156)
60 Entrou conselho bom, curou já tudo.

Mudou-se aquele amor em outro igual,


mas d'outro novo fogo, casto, e puro,
que quanto mais vivo é, tanto mais vai.

299
LIVRO I DAS CARTAS

Não quero ser tão largo nem tão duro,


65 que t'ate todo, ou solte livremente.
Faze-t' aqui somente forte muro.

Cousa santa, mas rara, alma inocente


em poucos se acha. Cairás ü' hora.
logo em te levantar sê diligente.

70 Já que a mor perfeição não chega agora


o mundo fraco, aquele é melhor
que menos mal dentro é, menos de fora.

O pequeno erro público é maior


que os maiores secretos. O segredo
75 o mor dos erros grandes faz menor.

Tanto pode a vergonha, tanto o medo,


que ou esconde, ou encolhe. Onde falecem
estes, trás o mal vem castigo cedo.

Mas os espritos bons não obedecem


80 por força; só a razão, só a virtude,
os leva trás o bem, que ali conhecem.

Ama tu'alma, ama tua saúde.


Não empeça üa à outra, andem conformes,
irmãmente iia ü outra sempre ajude.

85 Se ris, s' estudas, velas, andas, dormes, (f. 156v0 )


não receba do corpo o esprito dano,
nem todo em puro esprito te transformes.

C'os homens, c'os amigos sê humano.


Fuge de pesadumes, de tristezas,
90 que te farão soberbo, ou desumano.

Quem se põe logo em duras estreitezas


que a idade não sofre, esfria, e cansa;
vem-se despois soltar em mil larguezas.

Sã alma em corpo são, condição mansa,


95 boas falas , boas graças, brando riso,
alegra a vida, e sua dureza amansa.

76: PL pôde

300
LIVRO I DAS CARTAS

Convém viver assi entre jogo, e siso,


com nossas horas sempre revezadas,
não perdendo das almas bom aviso .

100 No mor seguro são mais salteadas


d'honras vãs, d'esperanças, cruéis imigos,
de que nos bons espritos são tentadas.

Trazem dissimulados seus perigos.


Não te cansem inda agora esses cuidados,
105 repousa o pensamento c'os amigos .

Nunca os santos desejos desprezados


foram dos céus. Quem de lá os vê nas almas,
os faz claros aqui, nos céus honrados.

Despreza os louros vãos, soberbas palmas,


110 dos que vencem os homens, não a si.
Se te vences, ao céu levanta as palmas. (f. 157)

O que sempre em teu esprito conheci


te levantará cedo ao que mereces.
Claros sinais desta verdade vi.

115 Ditoso tu, que já por ti conheces


o que deves seguir, o que deixar;
mais ditoso, se já bem te obedeces.

Quando dos livros santos te cansar


o grave estudo, vai-te à natureza,
120 em que aprendeste bem filosofar.

Medirás com desprezo a redondeza


baixa da terra, quando os olhos cheios
trouxeres do alto céu, da clara alteza.

Rir-te-ás das cegas sombras, dos rodeios,


125 com que aqueles gentios foram dando
com a verdade por escuros meios.

Outra mais clara luz alumiando


nossa cegueira foi, luz que alumia
todo o que com bom zelo a vai buscando.

301
LIVRO I DAS CARTAS

130 Acharás na moral filosofia


bons preceitos, a fim de amor e paz,
aos céus da terra necessária guia.

E que sem bom amor a Deus apraz?


Em vão vive, em vão obra, em vão deseja,
135 quem o bem, que deseja, a outro não faz.

Nem de ti desprezada também seja


das nove Irmãs a grave, e doce lira, (f. 157v0 )
que teu peito inquieto assente e reja.

Deleita suavemente, amansa a ira,


140 compõe nossos afeitos; move, abranda;
inspira altos conceitos, baixos tira.

Dom divino, dom raro, quão baixo anda!


Mas tu o levantarás cedo, se queres
soltar ao doce som tua voz tão branda.

145 Se todo tempo ao grave estudo deres,


como arco sempre armado ficarás
com menos força, quando a mais quiseres.

Porque, meu Betancor, não cantarás,


s' ao som da harpa o santo rei cantava?
150 Porque o divino dom desprezarás?

Ora triste, ora alegre temperava


do psalteiro divino as altas cordas;
em público, em secreto, a voz alçava.

Quão docemente dormes, como acordas


155 c'o peito sossegado, que adormece
ao doce som, que tu também concordas!

Não te falece lira, não falece


esprito; Grécia, Roma, Itália, Espanha,
sua lira ao teu canto te oferece.

160 Ora entoarás o triste engano, e manha


do incêndio troiano ao som mais grave
de quem lhe deu, cantando-o, honra tamanha;

302
LIVRO I DAS CARTAS

ora daquele moço, que como ave (f. 158)


voando entre nós anda, e despejando
165 seu coldre a ele leve, às almas grave.

Meu Betancor, assi se vai passando


este desterro nosso. Tu procura
por contente viver, té que voando
vamos desta baixeza à clara altura.

12

A Diogo Bernardes

Fez força ao meu intento a doce, e branda


Musa tua, Bernardes, que a meu peito
dá novo esprito, novo fogo manda.

Como um juízo queres, que sojeito


5 vive a tantos juízos, se não guarde
de tanto riso, e rosto contrafeito?

Quanto em mim mais das Musas o fogo arde,


tanto trabalho mais por apagá-lo.
Quanto o silêncio vai, sabe-se tarde.

10 A medo vivo, a medo escrevo, e falo;


hei medo do que falo só comigo;
mas inda a medo cuido, a medo calo.

Encontro a cada passo c'um imigo


de todo bom esprito; este me faz
15 temer-me de mim mesmo, e do amigo. (f. 158v0 )

Tais novidades este tempo traz,


qu' é necessário fingir pouco siso,
se queres vida ter, se queres paz.

Vida em tanta cautela, tanto aviso,


20 quando me deixarás? Quando verei
um verdadeiro rosto, um simpres riso?

OL Resposta do Doutor António Ferreira 1: o meu ...á doce 2: o meu 3: no fogo 17: fengir
19: em tanto aviso

303
LIVRO I DAS CARTAS

Quando a mim me crerão, todos crerei


sem dúvidas, sem cores, sem enganos,
e eu, que de mim mesmo seja rei!

25 Ah, tantos dias tristes, tantos anos


levados pelos ares em desejos
de falsos bens, e nossos tristes danos!

A quem os deixa, e foge, quão sobejos


lhe parecem mais bens que os que só bastam
30 desviar da virtude os cegos pejos.

Quantos as vidas, quantos almas gastam


em buscar seu perigo, e sua morte,
e trás ela seus jugos cruéis arrastam!

Aqueles. vivem só, a que coube em sorte,


35 ao som da frauta, que dos ombros pende,
o mundo desprezar com esprito forte.

Toda minh'alma em desejar se estende


à doce vida que tão doce cantas,
que quási a força quebra que me prende.

40 Mas ajunta a estas forças outras tantas:


todas quebraria eu, s' asas tivesse, (f. 159)
com que chegasse onde me tu levantas.

S' eu podesse, Bernardes, se eu podesse


ser senhor só de mim, eu voaria
45 onde do vulgo mais longe estivesse.

Ali quão livremente me riria


de quanto agora choro! Ali meu canto
livre por ares livres soltaria.

Enquanto me vês preso, amigo, enquanto


50 sem esprito, sem forças, não me chames
com teus versos, que a ti só honram tanto.

24: e eu de quem 27 : nossos mores danos 33: traz ele 34: Aquele vive só a quem 35: o som
da frauta 38: PL e OLA doce vida 39: OL quebra a força 40: a mil forças 41 : quebrarieu 43: ó
Bernardes 44: ser de mim só senhor 46: quão docemente 50: OL e sem força

304
LIVRO I DAS CARTAS

Por mais que me desejes, mais que me ames,


não empregues em mim tão cegamente
teu canto, com que é bem que heróis afames.

55 Mas tratarei contigo amigamente


do conselho que pedes: juízo, e lima
tem em si todo humilde, e diligente.

Quem tanto a si mesmo ama, tanto amima,


que a si se favorece, e se perdoa,
60 que esprito mostrará em prosa, ou rima?

Tais são alguns, a que triste a hera coroa,


roubada do vão povo ao claro esprito,
que esconder-se trabalha, e então mais soa.

Aquele dá de si público grito;


65 este cala, e s' encolhe. O tempo enfim
um apaga, imortal faz doutro o escrito.

A primeira lei minha é que de mim (f. 159v0 )


primeiro me guarde eu, e a mim não creia,
nem os que levemente se me rim.

70 Conheça-me a mim mesmo, siga a veia


natural, não forçada: o juízo quero
de quem com juízo, e sem paixão me leia.

Na boa imitação, e uso, que o fero


ingenho abranda, ao inculto dá arte,
75 no conselho do amigo douto espero.

Muito, ó poeta, o ingenho pode dar-te,


mas, muito mais que o ingenho, o tempo e estudo.
Não queiras de ti logo contentar-te.

É necessário ser um tempo mudo,


80 ouvir, e ler somente. Que aproveita
sem armas, com fervor cometer tudo?

54: teus versos ... heroas 57: todo o humilde 61 : que triste 66: de um morto, imortal de outro
faz o escrito 68: omite e 74: o inculto 77: mais muito mais co ingenho

305
LIVRO I DAS CARTAS

Caminha por aqui. Esta é a direita


estrada dos que sobem ao alto monte,
ao brando Apolo, às nove Irmãs, aceita.

85 Do bom escrever, saber primeiro é fonte.


Enriquece a memória de doutrina,
do que um cante, outro ensine, outro te conte.

Isto me disse sempre üa divina


voz à orelha, isto entendo, e creio,
90 isto ora me castiga, ora m'ensina.

Cad'um pera seu fim busca seu meio.


Quem não sabe do ofício, não o trata:
dos que sem saber escrevem o mundo é cheio. (f. 160)

S' ornares de fino ouro a branca prata,


95 quanto mais, e melhor já resplandece.
Tanto mais val o ingenho, s' à arte se ata.

Não prende logo a planta, não florece,


sem ser da destra mão limpa, e regada.
C'o tempo, e arte flor, fruito parece.

100 Questão foi já de muitos disputada,


s' obra em verso a arte mais, se a natureza:
üa sem outra vai ou pouco, ou nada.

Mas eu tomaria antes a dureza


daquele que o trabalho, e arte abrandou,
105 que destoutro a corrente, e vã presteza.

Vence o trabalho tudo. O que cansou


seu esprito, e seus olhos. algü'ora
mostrará parte algüa do 4uc achou.

A palavra, que sai üa vez fora,


110 mal se sabe tornar. É mais seguro
não tê-la, que escusar a culpa agora.

85: De bem escrever 87: de que 99: aparece 101 : PL verso arte OL a arte

306
LIVRO I DAS CARTAS

Vejo teu verso brando, estilo puro,


ingenho, arte, doutrina; só queria
tempo, e lima, d' inveja forte muro.

115 Ensina muito, e muda um ano, e um dia,


como em pintura os erros vai mostrando
despois o tempo, que o olho antes não via.

Corta o sobejo, vai acrescentando


o que falta, o baixo ergue, o alto modera, (f. 160v0 )
120 tudo a üa igual regra conformando.

Ao escuro dá luz, e ao que podera


fazer dúvida, aclara. Do ornamento
ou tira, ou põe; c'o decoro o tempera.

Sirva a própria palavra ao bom intento:


125 haja juízo, e regra, e diferença
da prática comum ao pensamento.

Dana ao estilo às vezes a sentença:


tão igual venha tudo, e tão conforme,
que em dúvida estê ver qual deles vença.

130 Mas diligente assi a lima reforme


teu verso, que não entre pelo são,
tornando-o, em vez de orná-lo, então disforme.

O vício, que se dá ao pintor, que a mão


não sabe erguer da tábua, fuge : a graça
135 tiram, quando alguns cuidam que a mais dão.

Roendo o triste verso, como traça,


sem sangue o deixam, sem esprito, e vida.
Outro o parto sem forma traz à praça.

Há nas cousas um fim, há tal medida,


140 que quanto passa, ou falta dela, é vício:
é necessária a emenda bem regida.

11 3: ingenho e arte e doutrina 114: da inveja 115: ano, um 117: o tempo, despois 121: o que
124: PL Sirva própria OL Sirva própria palavra o bom intento 126: Da prática apressada, o pensa-
mento 127: o estilo 128: venha tudo tão igual 132: em tão

307
LIVRO I DAS CARTAS

Necessário é, confesso, o artifício,


não afeitado: empece à tenra planta
o muito mimo, o muito benefício.

145 Às vezes o que vem primeiro tanta (f. 161)


natural graça traz, que üa lias nove
deosas parece que o inspira, e canta.

Qual é a lima cruel que inda use e prove


em vão ali seus fios? Deixe inteiro
150 o bem nascido verso, o mau renove.

Não mude, ou tire, ou ponha, sem primeiro


vir aos ouvidos do prudente, experto
amigo, não invejoso, ou lisonjeiro.

Engana-se o amor próprio, falso, e incerto;


155 também s'engana o medo de aprazer-se.
Em ambos erro há quási igual, e certo.

Per'isto é bom remédio às vezes ler-se


a dous ou três amigos: o bom pejo
honesto ajuda então melhor a ver-se.

160 Ali como juiz então me vejo;


sinto quando igual vou, quando descaio,
quanto doutra maneira me desejo.

Quando eu meus versos lia ao meu Sampaio,


- Muda - dizia - e tira. Ia, e tornava:
165 - Inda - diz - na sentença bem não caio.

O que mais docemente me soava,


o que m'enchia o esprito, por mau tinha;
o que me desprazia me louvava.

Então conheci eu a dita minha


170 em tal amigo, tão desenganado
juízo, e certo, em que eu confiado vinha. (f. 16lvº)

143: OL mas afeitado? 148: a lima cruel que inda use PL língua ... ouse 152: OL vir às ore-
lhas ... e esperto 154: omite e 155: da prazer-se 157: por isso 168: e o que ... desaprazia 171 : omite eu

308
LIVRO I DAS CARTAS

Quem d'olhos tantos lido, quem julgado


de tanto imigo às vezes há-de ser,
convém tempo esperar, e ir bem armado.

175 Isto me faz, Bernardes meu, temer


no teu, como no meu. Não vai escusa.
Dói muito ver meu erro, e arrepender.

Quem louva o bom? Quem bom, e mau não acusa?


Mas tu não tens razão de temer muito,
180 assi te alça, e te leva a branda Musa.

Deixa só madurar o doce fruito


um pouco, deixa a lima contentar-se;
inventa, e escolhe então o melhor do muito.

Eu vejo cada dia acrescentar-se


185 em ti fogo mais claro, e o ingenho teu
cada dia mais vivo levantar-se.

Então darás com glória tua o seu


grã prémio às Musas, que te tal criaram,
vida a teu nome, qual a fama deu
190 a muitos que da morte triunfaram.

13

Ao senhor D. Duarte

Quem tão igual esprito a meu desejo


criasse agora em mim, grande Duarte, (f. 162)
quem canto novo igual ao qu' em ti vejo,

com que daqui soasse em toda parte


5 o teu real esprito, em que se cria
nova luz, nova glória a Apolo, e Marte!

Vejo Febo coroado de alegria


teu nome estar cantando ao som divino
das nove Irmãs, divina companhia.

183: enventa 185: omite e

309
LIVRO I DAS CARTAS

10 Novo som, novo canto em peregrino


instrumento me soa, em novo nome
indino desta terra, dos céus dino.

Mas vive-nos tu nela, e em tanto tome


nossa idade essa glória, a nós mostrada,
15 que a dos antigos vença, a inveja dome.

Ditoso, e alvo dia, hora dourada,


estrela liberal, luz bem nascida,
em que tanta esperança nos foi dada!

Por ti vejo já ser restituída


20 à honra, e glória antiga novamente
Minerva, a novo estado, nova vida.

Das mãos a livrarás da baixa gente,


gente cruel, e cega, e indouta, e indina
de tal dom, só devido a quem o sente;

25 dom por nosso bem dado da divina


mão aos mortais, que com doces acentos
passar a dura vida nos ensina.

Serena o ar escuro, abranda os ventos, ·(f. l 62vº)


faz o dia mais claro, o sol fermoso,
30 levanta aos céus da terra os pensamentos.

O turvo rio faz correr gracioso,


enche o campo d'outra erva, d'outras flores,
com que o toma mais verde, e mais cheiroso.

Dá nova folha às árvores, dá cores


35 às boninas, e às aves, que ou cantando,
ou chorando, andam nelas seus amores.

Ou as rústicas frautas imitando


de Títiro, e Menalca, Galateia
com triste voz na praia em vão chamando,

40 ou do rústico Sátiro a Napeia


cantam, que foge ao bosque, descorada,
c'o tenro pé pisando a grossa areia.

310
LIVRO I DAS CARTAS

Ou de mais alto fogo outra inflamada


chama, qual vemos inda clara, e pura
45 nas cinzas de Petrarca renovada,

ora nos mostra viva a má figura


da fortuna cruel, cega, enganosa,
no bem sempre mudável, no mal dura.

Ora em mais alta voz, mais sonorosa


50 trombeta, em armas a custosa fama
renova com memória gloriosa.

Quem a glória não move, nem inflama


a generosa inveja dos heroas
qu' aquele grave som tanto alça, e afama? (f. 163)

55 Quão doces são, quão altas as coroas


dos verdes louros, e heras concedidas
não a obras somente, a tenções boas!

Mas quais serão iguais, quais as devidas,


à real geração do Ifante claro,
60 a três espritos tais, a tais três vidas?

Em que voz caberás? Ond' ao teu raro


esprito, Duarte, que aos céus vai sobindo,
s'achará novo Homero, ou novo Maro?

Já te chega, senhor, já quási é vindo,


65 o tempo de tua idade desejado
que teu glorioso esprito vás seguindo.

Ditosa mãe, a dor do mal passado


abranda já. Verás engrandecido
de tuas reais plantas o alto estado.

70 Cresce e cumpre, Duarte, o prometido


que te dos céus está; enche a alta história
que as três Irmãs te tem de ouro tecido.

Que triunfos já vejo da vitória


do sogigado mauritano povo,
75 a que Andrade dará clara memória!

311
LIVRO I DAS CARTAS

Com prazer a esperá-lo já me movo,


com prazer à alta empresa vivo, e pronto
vejo Andrade, inflamado em furor novo.

Que peregrino canto, ó que alto conto


80 ouço, não de estranhezas fabulosas ,
qu' em nomeá-las só me pejo, e afronto!

Verdades s' ouvirão maravilhosas,


em verdadeiro, e grave, e doce estilo,
d'empresas santas, de armas gloriosas.

85 Soará aquele canto além do Nilo;


achará amor, e fé em todo peito;
todo mundo trará após si a ouvi-lo.

Ver-se-á a fortuna igual sempr' ao conceito,


ousadia, e prudência tão conjuntas,
90 que parte igual terão no alto efeito.

Graves respostas às graves perguntas,


conselho, e esforço, ardis, e boa presteza,
em paz, e guerra as boas artes juntas.

A tal glória te chama, a tal alteza,


95 a deosa que já honras; leva avante
tal ânimo, tal zelo, real grandeza.

Por ti vivam as Musas, por ti espante


seu canto, Príncipe alto, e os baixos peitos
que co'a terra se roçam aos céus levante.

100 A ti devam memória os altos feitos


em poético canto levantados,
gloriosos no mundo, e sempre aceitos.

Os louros, e heras, de que coroados


serão os bons poetas, já crescendo
105 soberbamente vão, por ti honrados.

Nascei, claros espritos, i enchendo (f. 164)


de vosso som divino este ar, cantando
o grã Duarte, em que o mundo vá vendo
quant'honra, quanta glória lhe irá dando.
PL 77: a alta 106: y enchendo

312
CARTAS

LIVRO II

A el-Rei D. Sebastião

Rei bem-aventurado, em quem parece


aquela alta esperança já comprida
de qµanto o céu, e a terra te oferece,

formosa planta de Deus concedida


5 a lágrimas d'amor, e lealdade,
só nosso bem, vida da nossa vida:

enquanto essa inocente, e branda idade


por Deus crescendo vai felicemente
té o mundo encher de nova claridade,

10 enquanto este teu povo e o d' Oriente


novo acrescentamento por ti esperam
d'outros reis, d'outra terra, d'outra gente,

(tais promessas os céus de ti nos deram,


no teu tão milagroso nascimento,
15 e esprito igual em ti nelas poseram),

eu, levado d'amor, de santo intento


(quem ant'essa brandura temeria?),
deter-te com meu verso um pouco tento.

Despois virá um tão ditoso dia


20 que as tuas reais Quinas despregadas
na multidão de toda a barbaria,

Título: L A el-rei Dom Sebastião nosso senhor E Elegia a el-rei Dom Sebastião nosso senhor.
1: E que 4: C de Deus formosa planta 6: LE de nossa C bem nosso só, de nossa vida vida 7: Cesta
11: E crecentamento 12: LEC de outras terras 15: LEC a elas 16: E enlevado 17: Etemeraria 18: E tanto
C espero 21 : E toda Berberia LC berberia

313
LIVRO li DAS CARTAS

as vitoriosas frotas carregadas


das cativas coroas, e bandeiras,
d' outro esprito maior sejam cantadas.

25 Agora ouve, Senhor, as verdadeiras


guias, que levam os reis a essa alta glória:
não duras armas só, velas ligeiras.

Quantas armadas conta a antiga história,


quantos grandes exércitos, perdidos,
30 a mais poucos deixaram já vitória!

Esses tanto no mundo conhecidos,


cujos nomes venceram tantos anos,
não foram só por força obedecidos.

Não se sogigam corações humanos


35 de boa vontade à força . Um peito aberto
os vence de bom amor, sem arte, e enganos.

Nesta sombra, onde tudo anda encuberto,


quem da verdade vê mais que a figura?
Quem seu passo direito leva, e certo?

40 Uns falsos longes de fia vã pintura,


com sua cor ao parecer lustrosa,
quantos detém co'a falsa fermosura!

Não tem cores, não dobras a fermosa (f. 165)


verdade. Que buscais, ó gente cega?
45 Humilde, e nua está, não tão custosa.

Não é um só Cupido, que almas cega;


mais há no mundo qu' uns sós vãos amores,
que é tudo o em qu' a vontade mal se emprega.

26-7 : C Musas, que levam os Reis a esta alta glória / tendo por armas só velas ligeiras
28: E contra 30: LE aos mais pequenos deixaram já a vitória C Deixaram aos mais pequenos a
vitória 34: C subjigam 35: PLEL a força 38: L que da 43: E formosura C nem dobras 44: E de que
45 : L humilde nüa E humilde nua 46: E não em L não há 48: L tudo o que E que en tudo o que a
vontade mal se entrega C que é tudo o que à vontade mal se entrega

314
LIVRO II DAS CARTAS

Aqueles, que do Amor foram pintores,


50 que os olhos lhe tiraram, e o descobriram,
pintaram pera reis, e emperadores.

Altos ingenhos, que em figura viram


as forças deste próprio amor imigo,
que moço, e cego, e nu, e cruel fingiram!

55 Cada um traz em si mesmo seu perigo,


herdado desta natural fraqueza,
que tanto faz um homem de si amigo!

Iguais somos, Senhor, na natureza:


assi entramos na vida, assi saímos.
60 O entendimento é nossa fortaleza.

Igualmente de um só princípio vimos,


igualmente a um fim todos corremos,
e üa estrada comum, e igual seguimos.

Na terra a morte, a vida nos céus temos.


65 Quanto esta terra mais que os céus olhamos,
tanto o caminho do bom fim perdemos.

Cegos de nós, que nos tão mal trocamos,


que a parte vil, e baixa senhoreia,
e o mais alto ao mais baixo cativamos! (f. 165vº)

70 Força cruel, que dentro em nós guerreia!


Vence a cega vontade à razão clara,
e leva assi de nós vitória feia.

Aquele lume, qu' a alma ilustra, e aclara,


apagado por nós nela, e perdido,
75 como mortos nos deixa, e desempara.

Deu o remédio Deus: eis um erguido


por Ele em poder alto, de que o povo
seja ou por bem levado, ou constrangido.

52: E enganos que in La figura 54: E nu cruel 55: La si mesmo 57: C fazem homem 63 : E
saimos C comum igual 65 : E o céus 66: LEC tanto caminho 71 : C vemos a cega 72 L omite e 74: E
apago C nele é perdido 75: C e a 77 : La poder alto logo C do que 78: C é já por bem

315
LIVRO II DAS CARTAS

Não é nome de rei título novo:


80 com ele começou o mundo, e dura.
Por fábulas antigas não me movo.

Despois que daquela alta fermosura


caiu o primeiro homem, e a triste sorte
o envolveu nesta sombra grossa, e escura,

85 fugiu a luz, entrou armada a morte,


cumpriu nova vigia, guarda, e lei
qu' ao cego mostre a luz, e obrigue o forte.

Elegeu Deus pastor à sua grei.


Viu também a razão necessidade:
90 eis aqui eleito um rei, eis outro rei.

Conforme, e junto o povo nüa vontade,


num só, por bem comum, pôs seus poderes,
prometendo obediência, e lealdade.

Obrigaram suas vidas, seus haveres; (f. 166)


95 prometeu o bom rei justiça, e paz,
e remédio, e socorro a seus misteres.

Dali sojeito ao rei o povo jaz,


dali sojeito o rei à boa razão
da mesma lei, que em si esta força traz.

100 A quem todos seus bens, e vidas dão,


polos livrar d'injúria e de violência,
se lhas ele fizer, a quem s'irão?

Seja juiz a justa consciência


e aquele santo,e natural preceito:
105 deve à lei, o que a fez, obediência.

Quem o caminho há-de mostrar direito,


se torce dele, e segue a falsa estrada,
como terá seu povo à lei sojeito?

81 : LE per 83: C veio 84: E obscura 86: LEC e guarda 87: LEC o cego 92: LE todos seus
poderes C comum todos poderes 93: LEC obediência e fieldade 98: E a boa 99: C da mesma luz
101 : LE por os E e violência C da injúria e violência 103 C será juiz 104 C preceite 105: LE faz 107:
E troce a falsa

316
LIVRO II DAS CARTAS

Pôs Deus na mão do rei a vara alçada


11 O pera guia do povo errado, e cego,
mas não foi só à sua vontade dada.

Como destro piloto no alto pego


c'o leme guia a nau, ora a fia parte,
ora a outra a desvia do vau cego,

115 ali não valem forças, vai só arte.


A arte vence do mar a ira espantosa;
a arte vence, e encadeia o bravo Marte.

Hidra de mil cabeças enganosa,


pego de tantos ventos revolvido,
120 não se vence, Senhor, com mão forçosa.

Em duas iguais partes repartido


te deu Deus Seu poder: em prémio, em pena.
Dê-se a cada um o que lhe for dP.' ·ido.

Aquele, que suavemente orde .. a


125 todas as cousas, olha com que amor
paga o bem logo, e devagar condena.

Não se acha ali respeito, não favor;


tanto vai cada um quanto merece;
iguais ant'ele são servo e senhor.

130 Olha-te bem, grã rei, e a ti conhece,


nascido só pera reger a tantos,
e dessa grande alteza ao teu fim dece.

Ver-te-ás igual na humanidade a quantos


mandas. Verás o fim tão duvidoso,
135 como quem também morre, e nasce em prantos.

Que presta ser na terra poderoso,


s' o alto fim do céu se põe em sorte,
que té ao filho de Deus foi tão custoso?

111 : C ao seu desejo 114: PL vaõ LE vau 115: LEC não valem ali 116-7: Pl e LEC omitem
a antes de arte 117: LE arte vence sem cadeia o fero Marte C arte sem ferro vence o fero Marte
118: E espantosa 120: E vencem 122: LEC teu poder 124: C à sua vontade ordena 127: C nem favor
128: E tanto mal 132: EC o teu fim 134: L e verás

317
LIVRO II DAS CARTAS

Corte o bom rei primeiro por si, corte;


140 mais vence o exemplo bom que o ferro, e fogo;
não pode errar quem contra si é forte .

Nem a própria afeição, nem brando rogo


tire a força à razão, e à igualdade;
não se lhe faça sempre falso jogo.

145 Somente em Deus razão é a vontade.


Absoluto poder não o há na terra, (f. 167)
qu' antes será injustiça, e crueldade.

Que vontade mortal, Senhor, não erra,


s' a lei justa, e a razão a não enfreia?
150 De que nasce a injusta, e cruel guerra?

Em seu peito cada um pinta üa ideia,


à qual ou mal, ou bem se s' afeiçoa,
assi lhe sai fermosa, ou lhe sai feia.

A boa guia é a inclinação boa,


155 a qual nasce do claro entendimento
e com fácil discurso ao melhor voa.

Tanto val, tanto pode o santo intento,


que só por si honra, e louvor merece,
e a obra, que val dez, faz valer cento.

160 E quando humanamente erro acontece


(quem pode acertar sempre?), a culpa é leve,
e todo bom juízo a compadece.

Que justiça será que não releve


não sair à vontade a obra igual,
165 pois pelo intento só julgar se deve?

No livre peito, e coração real


estê o bem comum sempre fundado.
Não pode de tal fonte manar mal.

140: LEC e o fogo 142: E brando fogo 143: LEC ou à igualdade 144: C nem se 146: E não
há 147: LE seria C omite que C fora 149: LEC se a justa lei e rezão 150: L naça a injustiça E nace
a injustiça 151 : LE Cada um pinta em seu peito C Cada um pinta em seu peito aquela 152: LE a qual
mal ou bem 157: PL pôde 158: E o louvor C a honra e louvor crece 161 : PL pôde L e quem 162: E
todo o bom 163: LEC Que injustiça 165: LE polo 167: C está o bem

318
LIVRO II DAS CARTAS

Ama o povo o bom rei, e é dele amado,


170 ledo e fácil em crer, e em julgar bem,
imigo de todo ânimo dobrado.

Sempre a mão larga, sempre aberto tem (f. 167v 0 )


o generoso peito ao prémio justo,
e triste, e vagaroso à pena vem.

175 Este é chamado bom, e grande, e Augusto,


da pátria pai, prazer, e amor do mundo,
mortal imigo do tirano injusto.

Este logo d'um alto, e d'um facundo


ingenho té as estrelas bem cantado,
180 voando vai na terra sem segundo.

Tal nos cresce, grã rei, por Deus cá dado,


inda maior que as nossas esperanças,
maior que tua estrela, e alto fado .

Cedo teu esprito vencerá as tardanças


185 da tenra idade, e cedo renovando
irás dos altos reis altas lembranças.

Começa-te já agora ir costumando


a pôr em nós teus olhos reais serenos,
o mansíssimo avô teu imitando,
190 inteiro aos grandes, humano às pequenos.

Ao Cardeal lfante D. Anrique, regente

Entre tantos negócios, e tão graves,


ora da fé, que tu tão bem sustentas
c' o grã poder que tens das santas chaves, (f. 168)

ora do reino, em que nos representas


5 em tudo o santo irmão, enquanto a idade
do tenro rei não sofre tais tormentas,

170: LEC e julgar 171: C todo o ânimo 175: LEC grande Augusto 179: E engenho tem as estre-
las bem cantando 183: C sua estrela 185: C Do tempo e idade 186: LEC trás dos santos reis Depois de
186: LE fim 187: E de ir acostumando 190: C inteiro e humano aos grandes e aos pequenos

319
LIVRO II DAS CARTAS

com teu santo exemplo a Cristandade


reformando, e este povo, e o d' Oriente
conservando em justiça, e em liberdade,

10 contrário ao bem comum serei, se tente


com meus versos, Senhor, pejar-te ü' hora
de tempo, de que pende tanta gente.

Ouve antes a viúva que te chora,


ouve o que pede o órfão deserdado;
15 s' lhe hás-de dar despois, antes dá agora.

Ouve o que vem de tão longe arrastado,


que tremendo se chega, e não se atreve
queixar-se de quem é tiranizado.

Lê o que África, Arábia, Índia te escreve;


20 nisto a menhã comece, a tarde acabe,
o tempo repartindo a quem se deve.

Ama, e rege este povo, que bem sabe,


e assi o afirma e crê, e só nisto acerta,
qu' outro assento maior t'espera, e cabe.

25 No mais não tem a opinião tão certa,


nem das letras recebe mais que aquelas
que ao doce ganho tem a porta aberta.

Boas são leis: melhor o uso bom delas .


Boa é sua ciência, quando pura (f. 168v0 )
30 vem das espinhas que nascem entr' elas,

quando o seu fim só guia à formosura


da justiça, que tão viva, e formosa
Crisipo nos deixou, mais qu' em pintura,

virgem no aspeito, grave, e temerosa,


35 de vivos olhos, não de cruel nem brando
vulto, mas quási de üa tristeza honrosa.

Haverá alguns, que o povo estê mostrando


c'o dedo, dados por um dom divino,
que a esta imagem só se vão formando .

7: L teu tão santo 25: openião 26: percebe 28: milhor

320
LIVRO II DAS CARTAS

40 Cada um deles de grande honra é dino,


que se assenta severo, inteiro, igual
ao rico, ao pobre, ao seu, ao peregrino.

As obras dão de tudo bom sinal.


Qual o fim se pretende, tal é o fruito.
45 Cada um corre, Senhor, ao que mais val.

Nisto o costume, e o tempo pode muito,


que ao mal, e ao bem dá, como quer, valia.
Das letras assi o preço é pouco, ou muito.

Quando o outro mudava a noite em dia,


50 e o dia em noite, e a menhã na tarde,
quem na grã Roma então o não seguia?

E quando o outro canta, que Roma arde,


quem vai então lançar água no fogo,
quem há que em tão grã força ali leis guarde?

55 Passava tal crueza em festa, e em jogo. (f. 169)


Já o tempo passou dos maus tiranos.
Senhor, inda ficaram preço, e rogo.

Inda cá nos ficaram os maus enganos


que o proveito ensinou: a mostra é boa,
60 em bens se vestem todos nossos danos.

Tudo aparece, tudo logo soa:


ficou esta vingança aos inocentes,
que o mesmo mal a seu autor pregoa.

Cruéis, no mal alheio diligentes,


65 que obedeceis à força, ao rogo, ao preço,
m01Tereis tristes, se viveis contentes.

Santa justiça, a que eu mal reconheço


tua alta majestade, tu nos julga,
que vês o nosso fim, nosso começo.

70 Qual respeito o rei tem, quando promulga


a lei igual em público proveito,
que com prazer do povo se divulga,

42: Lo rico o pobre o seu o peregrino 47: que ao bem e ao mal '49: L: quando Elio 52: L E
quando Nero .. , e essa Roma 55 : em festas, em jogo 58: omite maus 61 : parece

321
LIVRO II DAS CARTAS

tal a tenha o juiz, dentro em seu peito,


na justa execução constante, e forte .
75 Nisto consiste a lei, nisto o dereito.

A quem tão alto esprito coube em sorte


bem é que o rei o estime, o povo o ame,
e honrado seja sempre em vida, e em morte.

Mas nem por isso logo o povo chame


80 vãs outras letras, e o honesto exercício
das brandas Musas tão mal julgue, e infame. (f. 169v0 )

Em nenhum estudo bom pode haver vício.


As artes entre si se comunicam:
cada üa ajuda à outra em seu ofício.

85 De areia, e cal, e pedra, os que edificam


(baixas, mas necessárias miudezas)
as torres erguem, que tão altas ficam.

Tem também seus princípios as grandezas,


e às cousas grandes pequenas ajudam.
90 Boas letras, Senhor, não são baixezas.

Pera o público bem também estudam


e cantam os bons poetas, deleitando
ensinam, e os maus afeitos em bons mudam.

E às vezes aos reis vão declarando


95 mil segredos, que então só vem e sabem,
mil rostos falsos, línguas más mostrando.

Em poucas bocas as verdades cabem.


(Terão às vezes a culpa os ouvidos.)
Os versos ousam, e em toda parte cabem,

100 dos bons amados, e dos maus temidos.


Assi é a justiça, assi a verdade:
assi sejam também favorecidos.

75: direito 78: e morte 83: antre 89: se às 94: as rezoõs 95: se vem 96: línguas mil

322
LIVRO II DAS CARTAS

Usem de sua honesta liberdade,


rindo do povo chamar só letrados
105 os que conselham roubo, e crueldade,

ou outros que se fazem afamados


julgando, e interpretando duramente, (f. 170)
dos inocentes fazendo culpados.

Outro se vende por piadoso à gente,


110 deixa o delito passar sem castigo,
da vã piadade usando cruelmente.

Também, Senhor, contra mi falo, e digo


qu' em nossas letras não está a justiça:
está num peito da justiça amigo.

115 Não tiram a.ambição, não a cobiça.


Se acrecentam, duvido. Cada um veja
quem lhe vence o trabalho, e ingenho atiça.

Seja mais riguroso o exame, e seja


grande das letras, maior do letrado.
120 Saiba-se o fim que o leva, e o que deseja.

Da pátria pai será o rei chamado


que a justiça começa dos que a tratam,
antes de ser do povo provocado.

Onde todos se roubam, e se matam,


125 defende-se cada um da força injusta,
e os que mais podem seus imigos atam.

Nós, que vivemos por regra tão justa,


que os mesmos reis às suas leis s'obrigam,
remédio temos certo, e a pouca custa.

130 Que mal é, que os poetas isto digam?


Se o mal reprendem, à virtude inclinam,
porque assi injustamente os mal persigam?

105: aconselham 109: na gente 112: contra nós 114: de justiça 116: se a 117: engenho 129: PL
â 132: L omite mal

323
LIVRO II DAS CARTAS

Almas indoutas, que cá peregrinam (f. l 70v 0 )


cativas em seus corpos, e forçadas,
135 a nenhum bem, nenhum saber atinam.

Deixemos estas, já em vida enterradas,


que os olhos abrem somente ao proveito,
como s' à terra só fossem criadas.

O bem nascido esprito, e culto peito


140 · mais deseja, mais quer, mais alto voa,
mais glorioso propõe seu objeito.

À glória, à fama, à triunfal coroa


aspira; à alta trombeta, e vivo canto
em que no mundo o grande Aquiles soa.

145 Não há tão humilde esprito, não tão santo,


que não ame sua glória; e quem não pede
o louvor de suas obras tanto ou quanto?

Desejo é natural, que não impede


mas acrecenta a virtude louvada,
150 e a torpeza, e preguiça d' alma espede.

De que vem tanta insígnia em armas dada,


tantas capelas cheias de letreiros,
e a triste sepultura tão dourada?

Mais gerais, mais constantes pregoeiros


155 são os bons versos, que contino falam,
e duram té os dias derradeiros.

Nem as vitórias, nem as grandezas calam


dos claríssimos reis de glória dinos,
e o passado ao presente tempo igualam. (f. 171)

160 Chamados foram os poetas divinos


(quem tal, que tal furor não mova, e espante?),
mas quantos_foram de tal sorte indinos !

135: a nenhum saber 141: põe 144: Archilles 145: nem tão santo 146: omite e ... pende 158: cris-
tianíssimos 159: ao passado o presente 161: quem há 162: de tal glória

324
LIVRO II DAS CARTAS

A quem esprito, e boca, com que cante


altas grandezas os céus concederam,
165 e que em mor voz que humana se levante,

a este Apolo, e as Musas só teceram


verde coroa; a este justamente
a honra, e nome de poeta deram.

Pois entre tanta confusão de gente,


170 que a república cria, quem mal nega
lugar honesto a esprito assi excelente?

Quando se romperá esta nuvem cega,


que o cobiçoso vulgo veja e entenda
qu' outro saber há mais, que o em que se emprega?

175 Determine a razão esta contenda:


o mau juiz rouba, o mau médico mata,
o mau poeta enfade, antes que ofenda.

Demos bons todos: a razão não ata.


Mais a justiça vai, mais a saúde,
180 mas nem por ouro se despreza a prata,

nem tira à mor virtude a outra virtude


seu preço; antes s'abraçam, e entre si s' amam,
por que üa irmãmente à outra ajude.

As artes que mecânicas se chamam


185 baixas parecem, mas dão ornamento (f. 17lvº)
às ilustres cidades, e as afamam.

175: Detremine .. . rezão 178: inda a rezão ata 180: mais vai o ouro e não se deixa a prata
181-201 : em vez destas 21 linhas, L tem as 9 linhas seguintes:
Nem tira a mor virtude outra virtude
seu preço, e mais deleita o entendimento
iia cousa. Para que a que vem amiúde?
Fazem-se ali e aqui doutores cento,
nace o poeta que o céu tarde dá.
Assi se apagará em seu nacimento?
Cesse, senhor, openião tão má.
Renaça um novo Homero, um novo Maro,
que só honra e favor o criará.

325
LIVRO II DAS CARTAS

O raro esprito, que de cento em cento


anos, e inda mais tarde o céu nos cria,
em desprezo estará, e esquecimento?

190 Perdão ao condenado concedia


a lei (assi os intérpretes o entendem),
se nalgüa arte aos outros excedia.

Entendam mal, ou bem, certo comprendem


por boa razão quanto favor merece
195 a rara arte, que assi tão bem defendem.

Quem isto afirma, e julga, ind' escurece


das castas Musas os santos estudos,
inda seus louros lhes não oferece?

Destes espritos nesta parte rudos


200 as devem defender, Príncipe raro,
os que lhes podem ser firmes escudos.

Inda o sol resplandece hoje tão claro,


inda as estrelas não perderam lume:
não falta ingenho, não faleça emparo.

205 Vence tu novamente o mau costume;


vivam por ti, e floreçam as boas artes,
que o tempo vencem, que tudo consume.

Reforma, grã senhor, em todas partes


este reino, que em ti espera, e confia,
210 porque igualmente todo te repartes.

Às Musas se perdoe esta ousadia (f. 172)


acostumadas a reais favores;
não percam em ti a antiga sua valia.

212: tão acostumadas depois de 213: em vez destas 4 linhas, L tem as seguintes:
Também caçam e jogam os doutores,
melhor jogo é o que as mesmas letras dão.
Dem-se aos bons exercícios seus louvores,
que engenhos há que pera tudo são.

326
LIVRO II DAS CARTAS

Não fazem dano as Musas às doutores,


215 antes ajuda a suas letras dão
e com elas merecem mais favores,
que em tudo cabem, pera tudo são.

A Luís Gonçalves de Câmara, mestre dei-Rei D. Sebastião

Porque não ousarei livre contigo,


claríssimo Luís, esprito puro
só da virtude, e da verdade amigo,

porque não ousarei em tanto escuro


5 mostrar a clara luz que tu descobres,
tomando-te por guia, e por meu muro?

São da terra os tesouros assaz pobres:


estes desprezas, mostras os divinos
dões do céu, quanto em ti mais os encobres.

10 Foram por ti os nossos tempos dinos


de ver àquela ideia um rei formado,
de que tantos atrás foram indinos.

Porque foi de Filipe festejado


do seu grande Alexandre o nascimento,
15 senão só polo mestre, a que foi dado? (f. 172v0 )

Quem não vê o geral contentamento


das altas esperanças em que crias
ao mundo üa nova luz, novo ornamento?

Chegue Sebastião onde o tu guias


20 igualmente entr' as armas e entr' as artes,
nascer-nos-ão outros mais claros dias.

Assi o real esprito lhe repartes


por todas as virtudes, e exercícios,
que inteiro, e todo está em todas as partes.

25 Seus tempos, seus lugares, seus ofícios


conhecendo, usará de cada cousa
sãmente, sem estremos, e sem vícios.

327
LIVRO II DAS CARTAS

Aquele heróico ardor, que não repousa,


naturalmente à fama, e glória erguido,
30 sem Deus diante, a nada passar ousa.

Dos ardentes afeitos seus movido,


tu lhe pões logo diante o santo objeito
a que o intento são vá dirigido.

Não se pode forçar o altivo peito,


35 que arde em desejos de reais grandezas,
mas pode-se à razão fazer sojeito.

Aquelas tão cantadas estranhezas


do soberbo Alexandre, não contente
dum mundo só, as pródigas larguezas,

40 não o fizeram grande a quem bem sente


da natural razão algüa parte, (f. 173)
que força, e tirania não consente.

Por o~!_ra >vja levas, por outra arte


encaminhas, I:uís, o real esprito,
45 com Febo temperando a ira a Marte.

Aquele alto preceito, e grave dito,


"o reino do Senhor buscai primeiro",
lhe tens lá dentro na su'alma escrito.

Fazes um rei cristão, rei verdadeiro,


50 que a si reja primeiro, a si obedeça,
por que dos outros seja rei inteiro,

no qual o mundo veja, e reconheça


que üa cousa é espantoso, outra é ser grande,
e dê a cad'um o nome que mereça.

55 Mostras-lhe quão errada cá a fama ande


que honra o que o alto Deus culpa, e reprova,
por que outro esprito mor dos céus lhe mande.

Quem a Alexandre deu mais certa prova


desta verdade clara que um pirata,
60 com sua reposta tão livre, e tão nova?

34: PL pôde 36: PL pôdese

328
LIVRO II DAS CARTAS

- Se por roubar com ua vela a prisão me ata,


tu, que com tantas roubas, que justiça
doutras mores cadeias te desata?

Ah, que não ambição, força, e cobiça


65 dão ao rei nome de grande, e augusto,
nem tudo o mais que a tirania atiça.

Então será o rei grande, se for justo, (f. 173v0 )


ou defendendo bem o bem ganhado,
ou despojando o ocupador injusto.

70 Não há outra boa estrela, ou outro fado,


senão com as partes, que um rei grande fazem,
com essas ter seu nome conservado.

A quem as reais virtudes não aprazem?


Digo a clemência, a liberalidade,
75 que entre os tiranos tão escuras jazem!

Aquela graciosa humanidade


de não deixar ninguém ir de si triste,
aquela fé real, firme verdade:

a que príncipe nunca estes dões viste,


80 que de troféus não enchesse a terra?
Que rei assi à fortuna não resiste,

sempre feiice em paz, feiice em guerra,


amado do seu povo, e obedecido
por amor, e ninguém por temor lhe erra?

85 Também lhe mostras como é mais seguido


o exemplo do príncipe, que a dura
força de lei, ou prémio prometido.

Boníssimo Luís, a tua brandura


me leva a tanto. Eu vejo um grã perigo,
90 que todo império põe em aventura;

por proveito comum, senhor, o digo.


Acuda o rei com seu real exemplo,
acuda c' o severo seu castigo. (f. 174)

329
LIVRO II DAS CARTAS

Aquela antiga idade, que contemplo,


95 dos nossos afamados portugueses,
dos quais erguido vês um, e outro templo,

suas lanças, seus cavalos, seus arneses


por só seus jogos, e delícias tinham;
as couraças, adargas, e padeses -

100 trajos limpos e honestos - quais convinham


à boa temperança, e fortaleza
com que mais duros os trabalhos vinham.

Tendo a mediocridade por riqueza,


todo o sobejo fausto aborreciam.
105 Quão limpa, e fermosa era a sua pobreza!

Nem ouro, nem vãs púrpuras cobriam


seus leitos, nem seus corpos tão mimosos;
a fome, e sede pouco lhes pediam.

Não eram seus banquetes tão custosos,


110 nem a vida tão larga, e tão profana,
nem sabiam viver tão ociosos.

Era no mundo a gente lusitana


outra Lacedemónia, e Esparta antiga,
livre de todo vício, que os bons dana.

115 Toda entre si conforme, quieta, e amiga,


a Deus honrava, ao rei obedecia,
d'engano, e traição cruel imiga.

Contente cada um do seu vivia,


iguais de todos quási as mesas eram, (f. 174vº)
120 igual em todos quási a cortesia.

Os despojos que os bárbaros lhes deram


àqueles santos reis, em que os gastavam,
senão nos templos, e torres, que ergueram?

Por Deus, e pera Deus só pelejavam.


125 Ó tempo santo, idade tão ditosa,
que uns reis pera outros reis entesouravam!

330
LIVRO II DAS CARTAS

Em toda parte então vitoriosa


a bandeira real se despregava,
rodeada da gente belicosa.

130 Que perigos, ou medos receava,


assi ao trabalho dura a forte gente?
Que imigos campos não desbaratava,

incansável, constante, e obediente,


de duras armas, corações mais duros,
135 sofredores da neve, e sol ardente?

Quando esquecidos, posto que assi escuros,


serão do grande Afonso os grandes feitos,
destruidor de reis, e fortes muros,

de cujo invicto esforço, e fortes peitos


140 dos poucos do trabalho endurecidos,
tendo à verdadeira honra olhos direitos,

mil exércitos foram destruídos,


Tejo, e Guadalquibir sangue correndo,
nós à cativa pátria restituídos?

145 C' os altos socessores estendendo (f. 175)


foram o império, foram os tesouros,
claros troféus em toda parte erguendo.

Lançados além mar de todo os mouros,


a África os nossos Cipiões passando,
150 tornaram coroados de altos louros,

uns após outros, todos triunfando.


Viu o atlântico mar vitoriosas ·
sempre as frotas reais, indo e tornando.

Despois, d'oceano grande as espantosas


155 ondas vencendo, com espanto a Fama
mil vitórias cantava milagrosas.

Ah, não se apague üa tão clara chama,


que apagar quer a ociosa vida,
se nisto o real esprito não s'inflama.

PL 159: s'nflãma

331
LIVRO II DAS CARTAS

160 Aqui, senhor, aqui é bem devida


tua lembrança; mais devida a emenda,
primeiro da esperança ser perdida.

Conheça o rei prudente, saiba, entenda


que na boa paz a guerra s'exercita,
165 por qu' os vícios da longa paz reprenda.

Por Deus, e polo povo, o que milita


justíssimo rei é, capitão santo,
a que honra, e glória se deve infinita.

Quanto é sempre a paz boa, a tempos tanto


170 também a guerra é necessária, e boa,
dos imigos defensa, medo, e espanto. (f. 175v 0 )

Soe Portugal sempre como soa.


Tomem os jogos da cavalaria;
não se nos tome Cápua Lisboa.

175 Assi o bom rei, que em tuas mãos se cria


(s' aprovas do filósofo o desejo,
que desejava ao rei filosofia),
grande, prudente, e justo por ti o vejo.

A Diogo de Teive

Promiti-te, meu Teive, à tua partida


mil prosas, e mil versos; e em mil meses
iia carta té outra terás lida.

Não soíam mentir os portugueses;


5 entrou novo costume, e é lei antiga
romano em Roma, francês c'os franceses.

Quem queres que por força cá não siga


a lei da terra, e mais tão bem guardada
dos que em mal nosso tem a fortuna amiga?

10 Seja com tanto honrado desculpada


minha mentira; a sã nossa amizade
nunca esquecida foi, nunca mudada.

332
LIVRO li DAS CARTAS

Mas em tão cheia, em tão grã cidade,


onde o esprito, e a vista leva a gente,
15 quem pode ser senhor da sua vontade? (f. 176)

Mora um lá fora, além do grã Vicente,


outro cá na Esperança; e hei-de ver ambos.
Foge inda o dia ao muito diligente.

Pelas ruas mil cambos, mil recambos;


20 cargas vem, cargas vão; mil mós, mil traves;
um arranca, outro foge, e encontro entrambos.

Vai ora então compondo versos graves,


versos doces, e brandos, quais mereçam
parecer ao meu Teive, lá, suaves!

25 Onde os loureiros, onde as heras creçam,


lá nos cerrados bosques, brandas fontes,
as Musas co'as capelas versos teçam.

Amam as castas deosas altos montes,


vales sombrios; não cidades cheias
30 d'homens, em que tão poucos há que apontes.

Lá livres abrem suas ricas veias,


lá suas doces liras encordoam,
ao brando som tecendo imortais teias.

Contudo alguns há cá, que se coroam


35 d'outras heras; contentes de si s'. amam,
a si tangem, a si cantam, a si bem soam.

Também Musas invocam, Apoios chamam,


outra Mântua povoam, outras Atenas,
outros novos Pamasos por cá afamam.

40 Voam cobertos de mil novas penas


d'aves nunca cá vistas, e fermosos (f. 176v 0 )
a si mesmos, se vão entr' as Camenas.

A todo tempo entoam os seus mimosos


versos; a toda hora à voz, e à lira,
45 concordam seus acentos sonorosos.

333
LIVRO II DAS CARTAS

Ditoso esprito, a quem toda hora inspira


outro Apolo outro ardor, que não se apaga,
mas sempre do seu fogo, fogo tira!

Eu, meu Teive, não sei que estrela, ou maga


50 a língua me ata; não sou de toda hora.
Enfim esta é a desculpa da má paga.

Por um momento, que em mim Febo mora,


mil dias se me esconde, e desempara,
e inda bem me não chega, já vai fora.

55 Vejo esse peito aberto, essa alma clara,


onde me tens, bom Teive; ouso contigo
o que com outro eu somente ousara.

Temeria com outros o perigo


de meus tão soltos versos, mas eu t' amo,
60 eu te honro, douto mestre, doce amigo.

Quantas vezes, saudoso, cá te chamo,


quantas vezes contigo me desejo,
lá à doce sombra dalgum verde ramo!

Ora de cá teu santo ócio lá vejo,


65 ora por só meu bem cá te queria,
onde meu amor te chama, e bom desejo.

Mais vai, amigo, lá um quieto dia (f. 177)


que mil anos, e mil cá inquietos,
donde eu, se tivesse asas, fugeria.

70 Não te são meus intentos lá secretos.


Pus-te nas mãos minh'alma; à minha vida
sabes que desejei portos quietos.

Se vida temos pera ser vivida,


se chão se há-de escolher pera morada,
75 onde melhor que em campo é escolhida?

Vida dos sábios sempre desejada,


vida de paz, d' amor, e de brandura,
em meus versos serás sempre cantada.

334
LIVRO II DAS CARTAS

Onde estará mais sã, e mais segura


80 a alma inocente? Onde mais sem cuidado
de medos, de perigos, de ventura?

Pera a saúde, onde mais temperado


o frio inverno? Onde é do brando norte
ou o Cão ou o Lião mais amansado?

85 Mais larga vida, menos triste morte;


sono doce, seguro, brando, inteiro,
sem sobressalto que to quebre, ou corte.

O verdadeiro gosto, o verdadeiro


deleite, é quieto ócio entr' ervas, e águas
90 em Julho frias, quentes em Janeiro.

Não vês choros alheios, não vês mágoas,


ou tuas, ou dos teus; livre de invejas,
em que cá ardem, como em vivas fráguas . (f. 177v0 )

S' o que convém à vida só desejas,


95 estimarás mais doce liberdade
que quantas minas d'ouro a outros vejas.

Mais vai a curta jeira, a pobre herdade


que, ó rica Arábia, ó Índia, o teu tesouro,
se à justiça se rouba, se à verdade.

100 Mais vai no campo coroar o touro


no fresco Maio de ervas de mil cores,
que altos teitos pintar de azul, e ouro.

Ó bem-aventurados os pastores,
se seus bens conhecessem! A quem dá a terra
105 à vida mantimento, aos olhos flores!

Que é este formoso ouro senão guerra,


muito melhor quando de nós se esconde,
ou na encuberta areia, ou n'alta serra?

Onde assi cheiram em Líbia as pedras? Onde


110 resplandecem assi, como as cheirosas
ervas, qu' o campo aberto a ninguém esconde?

335
LIVRO II DAS CARTAS

Porventura serão mais graciosas


as águas que cá os canos vão rompendo,
qu' as que entre seixos correm saudosas?

115 Mas atadas aos mármores crescendo


vão rrúl heras, jardins dependurados,
que das altas janelas s'estão vendo.

Artifícios são, como roubados


à natureza, que por mais que os forcem, (f. 178)
120 não podem longo tempo ser forçados.

Invejosos do campo, assi em vão torcem


as vergas, e os arames; mas c'um vento
ou quebram, ou se secam, ou se destorcem.

Leva já a natureza um movimento


125 a seus tempos contino sempre, e certo,
que arte imitar não pode, ou instrumento.

Que gosto é ver do campo o céu aberto!


Tantos lumes: um corre, outro está quedo,
um tão longe apartado, outro tão perto!

130 Quanto milagre ali, quanto segredo


contemplarás naquele livro escrito
de quanto cá acontece, ou tarde, ou cedo!

E rompend' os céus todos com o esprito,


que já a mores grandezas vai voando,
135 suspiras alto a Deus com baixo grito.

Ali aprendendo estás como guiando


vás as simpres ovelhas ao seguro
curral, que anda o mau lobo salteando.

Outra cerca farás, outro alto muro,


140 de doutrina, de exemplo, e sãos costumes,
quais eu conheço do teu peito puro.

Do teu lume acendendo outros mil lumes,


ricos ganhos darás dos teus talentos,
não de águas, não de cheiros, nem perfumes.

336
LIVRO II DAS CARTAS

145 Despois receberás por um dozentos (f. 178v 0 )


do justo pagador, que i te alugou,
e as obras vê de cima, e os pensamentos.

Quem pera esse santo ócio te chamou,


te chamará mais alto. Vive, e espera;
150 olha como este mundo se mudou.

Quem cuidou que tão cedo volta dera


esta roda inconstante? Ah, reis que são?
Também aquele rei pó, e sombra era.

Rei manso, rei benigno, rei cristão,


155 ah, quão depressa desapareceu!
Quantas altezas caem abrindo a mão!

Enfim ditoso, quem se bem regeu.


Mais anos são mais cárcer, e mais carga.
Assaz viveu, quem sempre bem viveu.

160 Devemo-nos à morte. Dói e amarga


o só seu nome; üa hora chega enfim,
triste, espantosa, feia, dura, amarga.

Pareça bem a púrpura, e o marfim,


os luzidos metais, a prata fina.
165 Mas eu vou; eles cá ficam sem mim.

Quanto melhor, meu Teive, aquele atina


que quanto cá dos céus por fé nos soa
dos secretários seus, a outros ensina!

Guardando em si aquela ordem tão boa


170 de quem fazia, despois ensinava,
ah, que honrada vitória; que coroa! (f. 179)

O que entendeu Jerónimo, ao que voava


Agostinho, Bernardo o que dizia
quando da Mãe de Deus se namorava,

175 o que aquela divina companhia


dos santos gregos na alta sua escritura
deixaram: lume é nosso, e nossa guia.

337
LIVRO II DAS CARTAS

Ali, como dos céus, viva pintura


se mostra. Ó tu ditoso, pois podeste
180 ir lá só contemplar tal fermosura!

Mas conquanto tão alto te poseste


das brandas Musas, desce, e outra vez prova
a doce lira, a que tal som já deste.

No teu verso latino nos renova


185 ora outro Horácio, ora outro grande Maro;
na grave prosa Pádua, Arpino enova.

Por ti começou já ser grande, e claro


o português império; igual aos feitos
no mundo raros teu estilo raro.

190 Encheste d' esperanças nossos peitos.


Não nos detenhas encubertos tanto
altos exemplos de obras, e conceitos.

Enquanto assi estás livre, Teive, enquanto


te não chama tua sorte ao que mereces,
195 cria ao português nome amor, e espanto,
ledo, e confiado do que em ti conheces. (f. 179v 0 )

A António de Sá de Meneses

Aquela proveitosa liberdade


aos antigos poetas concedida
de mostrar de mil erros a verdade,

e do mais livre povo então sofrida,


5 e do mais poderoso receada,
porque entre nós será mal recebida?

Ó claro António, que segues a estrada


da virtude mais chã, mais descuberta,
dos teus grandes avós, grã pai herdada,

186: PL em nova

338
LIVRO II DAS CARTAS

10 s' uns cegos nos deixaram a porta aberta


pera o céu, pera honra, e pera glória,
porque em tão clara luz ninguém acerta?

Que espantos nos renova a alta memória


de tantos gregos, e romãos gentios,
15 senhores do saber, paz, e vitória!

Postos ao ardor do sol, postos aos frios,


olhos nos céus, o esprito nas estrelas,
nas ervas, e nas pedras, e nos rios,

quantos segredos nestas cousas belas,


20 que o mundo tão fermoso fazem, viram,
erguendo todavia o homem sobre elas!

Tanto cuidaram, tanto aos céus sobiram,


por causas, por razões, por natureza, (f. 180)
que um alto Deus, fim do homem, descobriram.

25 À virtude chamaram só nobreza,


ao honesto, e bom, só doce, e proveitoso,
ao alto saber do espírito, alta riqueza.

Cada um, ao parecer mais ocioso,


então mores segredos descobria,
30 com que inda o mundo ficou mais fermoso.

Ora um a terra, ora outro o céu media,


sem se mover o oceano navegava,
deixando pontos certos por onde ia.

Outro após o sol claro caminhava,


35 e despois da ligeira volta dada,
co'a lua, e com as estrelas se tornava.

Ali a altura, e a linha foi achada,


o movimento, os pólos, a figura
redonda, a de três cantos, e a quadrada.

Pl 25 : A virtude

339
LIVRO II DAS CARTAS

40 Outro na trabalhosa quadratura,


possível de saber-se, e não sabida,
a alma cansava, em vão trabalho dura.

Daqui nasceu a fábula mal crida


que toda est'alma máquina já ü' hora
45 dos ombros do grande Atlas foi sostida.

Se não somos ingratos, quanto agora


sabem os que mais sabem, àquela idade
o devem, que o achou, e o deixou fora.

Eu não falo na nova claridade (f. l 80v 0 )


50 que dos céus milagrosamente veio
do saber, do poder, e da bondade;

falo daqueles, que por certo meio


das cousas que cá viram, conheceram
outras que o céu encerra lá em seu seio.

55 Mas ah, s' eles fizeram o que entenderam!


Todos erramos, mas quais mais culpados?
Uns de dia, uns de noite se perderam.

Bem poderam os espritos ir guiados


por sua escura luz ao que a fé mostra,
60 s' em Deus poseram todos seus cuidados.

Mas inda hoje pera honra é a vã mostra


d'alta virtude, que o alto céu só pede,
então maior, quando se menos mostra.

Quão enganadamente inda concede


65 louvor o mundo a muitos! Clara é a obra,
mas Deus só pelo intento a pesa, e mede.

- Seguro vive quem boa fama cobra - ,


diz o vão povo. O sábio está dizendo:
- Quem Deus cuida enganar, contra si obra.

70 Quantos há agora de que estamos crendo


que igual seja às boas mostras o conceito,
quantos em que o contrário estamos vendo!

340
LIVRO II DAS CARTAS

Não deixava, porém, de ser aceito


a Deus o zelo da justiça igual
75 daquele povo à fama só sogeito. (f. 181 )

Tanto a virtude, tanto o honesto vai,


que, inda que o próprio fim, e dereito s' erre,
aproveita o exemplo, e atalha o mal.

Cada um lá em si o secreto intento encerre;


80 mas faça bem verdadeiro, ou corado,
antes que a Deus, e ao mundo os olhos cerre.

Com quanta razão deve ser chorado·


um tempo, em que por Deus, nem polo mundo,
vemos um do outro ser bem conselhado!

85 Por não sofrer igual, não ver segundo,


à custa de mil honras destruídas
sobe o mais vil, mil bons mete no fundo.

Ah, que hoje custa üa vida dez mil vidas!


Vence a cega vontade a razão forte,
90 as leis ora cruéis, ora torcidas ..

Esprito bom, fora da geral sorte,


pera público bem dado, e nascido,
pronto pola verdade a sofrer morte,

inda bem não parece, eis perseguido


95 de mil maus olhos, de mil línguas más,
s' encolhe dentro em si, como vencido.

Ah, santa liberdade, onde ora estás?


Porque não soltas minha língua muda,
pois aqueles se calam, a quem a dás?

100 Tenham versos licença. Quem não muda


a vergonha de si, mude o castigo: (f. 18lvº)
nomeie-se na praça, o povo acuda.

Vingue-se ali cada um do cruel imigo


do comum bem, apontem-no c' o dedo,
105 haja sã liberdade sem perigo.

341
LIVRO II DAS CARTAS

Venha um Horácio livre, a que haja medo


não o pobre, ou triste, ou inocente,
cuja voz ouve Deus, ou tarde, ou cedo.

Mas pois o triste tempo não consente


110 verdade boa, e clara, corra e vá
trás sua perdição a cega gente,

despreze-se o saber, e viva a má


ignorância soberba; e honra, e fama
só seja o que a fortuna, e engano dá.

115 Seja sábio o que sábio o povo chama,


e rido, e desprezado o que de louro,
ou palma se coroa, e outro fim ama.

Tenham por Deus o ventre; e o vil tesouro


que a si mesmo roubou o triste avaro
120 consuma o ingrato herdeiro amigo de ouro.

Tu nas antigas armas, sangue claro


dos ilustres avós, de parte a parte
constante, lá ocupa o esprito raro.

O nome grande a Apolo, grande a Marte


125 conserva, e acrecenta, antigo nome
que por outros tão grandes se reparte.

Igualmente te dê sempre honra, e a tome (f. 182)


Apolo, no devido a ti seu canto,
e contigo, meu Sá, a inveja dome.
130 Eu tenha um quieto ócio, honesto, e santo.

A António de Castilho

Castilho, de meus versos douta lima,


que cuidarei que fazes lá escondido,
donde me não vem prosa, nem vem rima?

PL 120: imigo Título: A António de Castilho, guarda-mor da Torre do Tombo

342
LIVRO II DAS CARTAS

Trabalhas porventura que vencido


5 fique o grãferrarês no doce canto
téqui com tanto gosto, e fama lido?

Ou num alto sagrado bosque, e santo,


andas quieto, enchendo o peito puro
do que sossega o esprito, e vence o espanto,

10 colhendo de mil flores o maduro


fruito que a alma sustenta, e no perigo
te ensina poder sempre estar seguro?

Eu te conheço, bom esprito, irnigo


naturalmente de ócio, só de glória,
15 só de virtude, e de saber amigo.

Quando será que eu veja a clara história


do nome português por ti entoada,
que vença da alta Roma a grã memória? (f. 182v0 )

Não me foi dado esprito, não foi dada


20 igual boca ao grã canto. Bom desejo
não basta: a ti a alta empresa está guardada.

Desse santo sossego, em que te vejo,


desse tão raro esprito olha as grandezas
qu' o mundo espera, e eu já ver desejo.

25 Abre já, meu Castilho, essas riquezas


que tanto há já que em ti Febo entesoura,
solta o grã rio, farta mil pobrezas.

Assi consentirás, cruel, que moura


teu nome, e desse esprito o claro lume?
30 Assi a coroa que te Febo enloura?

Quanta arma, quanto sangue nos consume


o silêncio cruel! Terror, e medo
n' África ao mouro, n' Ásia ao bravo rume.

Tu, Castilho, tu lá ocioso, e quedo


35 vencerás de mil mundos os espaços,
por onde voarás, se queres, cedo.

PL 5: Ferrares 11 : que alma

343
LIVRO II DAS CARTAS

Solto de vãos desejos, de vãos laços,


o bom esprito, dentro em si só posto,
mais largo vivirá, que em largos paços.

40 A todo tempo terá sempre um rosto.


Não turvará sua paz nenhüa guerra,
nenhüa mudança danará seu gosto.

Ditoso aquele que em si só se encerra,


e estimando o tesouro que em si tem, (f. 183)
45 pisa soberbamente toda a terra.

Sempre o dia pior é o que vem.


Comece de viver à primeira hora
quem poder, e a quem Deus quis tanto bem.

Enquanto um ri, enquanto cá outro chora,


50 passa a vida. Lá o tempo todo é teu.
Logra-o, e tua sorte ama, e a Deus adora,
que tantos, e tais dões te concedeu.

A João Lopes Leitão, na Índia

Do antigo Portugal, da grã Lisboa,


por novos mares, novos céus, e climas,
ao novo Portugal, à clara Goa

te vai saudar, João Lopes, s' inda estimas,


5 s' inda as nove Irmãs honras, minha Musa.
Dem lugar duros trões às brandas rimas.

Ou teu armado braço estê no que usa,


com Marte contendendo em fortaleza,
sem ao rume aceitar ouro, ou escusa,

10 ou rompendo com fúria, e com braveza


as escumosas ondas, vás levando
socorro à quási entrada fortaleza,

não deixes de ir c'os olhos só passando (f. 183v0 )


estes versos: verás quanto às trombetas
15 mais animoso som estarão dando.

344
LIVRO II DAS CARTAS

Antes que com forte ânimo cometas


a feroz multidão, e com honroso
despojo, humilde o imigo a ti sometas,

ou do triste sucesso temeroso


20 (como a fortuna quer) com arte, e rogo
tornes o teu soldado furioso,

as Musas ouve sempre: acendem fogo


nos altos corações, e o mor perigo
te fazem parecer prazer, e jogo.

25 Tanto mais forte irás contra o imigo,


c' o esprito aceso em doce som de glória,
quanto das Musas mais fores amigo.

Ao som da alta trombeta, que a memória


de Aquiles fero ao mundo renovava,
30 encheu o grã Macedónio su' alta história.

Quantas vezes gemia, e suspirava


com generosa inveja do alto canto,
que a nova glória, e fama o levantava!

Aquele esprito aceso, aquele santo


35 furor do rei profeta, ao som da lira
ora era fogo todo, ora era pranto.

Sobre si posto, já mais que homem aspira


aos céus, e altos segredos que lá via,
Deus chama, de Deus canta, a Deus suspira. (f. 184)

40 Já aquele fogo claro, que assi ardia


antigamente nuns espritos raros,
torna inflamar a nossa idade fria.

Já os dias nascer vemos mais claros,


o mundo mais fermoso, e já das nove
45 Musas os nomes mais ao mundo caros.

Também algüa esse teu peito move,


e todo a honra, e glória to levanta,
por mais que em ti o Amor suas frechas prove.

345
LIVRO II DAS CARTAS

Mas tu com Marte t'arma, com Amor canta:


50 inda juntos verás Vénus, e Marte,
juntos Apolo, e Palas em paz santa.

Ah quanto céu, quanta água, João, nos parte!


Os espritos, porém, de lá se chamam;
lá de mim tens, amigo, a melhor parte.

55 Não são os olhos, não os corpos, que amam:


outra força secreta nos convida.
Naturalmente uns s'amam, uns se desamam.

Pode üa voz. üa fama ao longe ouvida,


juntar duas almas em amor igual,
60 fazendo em dous üa vontade, e vida.

Esta é a santa amizade, esta a que vai.


Dos corpos, e olhos são baixos amores,
que ao bem se chegam, apartam-se c'o mal.

Dous em bom amor juntos são senhores


65 de duas almas; nisto, João, vencemos (f. l 84v0 )
mil grandes reis, e mil emperadores.

Eles tem seus impérios, mas nós temos


nossas vontades, boa segurança.
Reinem temidos lá, nós nos amemos.

70 A estrada chã da bem-aventurança,


que desta vida à eterna vai sobindo,
que é, senão deste amor sã confiança?

Enquanto tu teu braço estás tingindo


nesse bárbaro sangue, e das honrosas
75 folhas essa tua fronte vás cingindo,

e inda às armas antigas, e fermosas


nova, e mor fermosura vão ganhando
teu forte peito, e mãos vitoriosas,

eu estou tua doce vista desejando


80 com toda est'alma, com toda a vontade
"Ah, vive, e vem, João," de cá gritando.

56: PL farça 58: PL Pôde

346
LIVRO II DAS CARTAS

Devemos este amor ao nosso Andrade,


de nosso amor seguro fundamento.
Amigo tens em mim, tens sã verdade,
85 que servidor nome é de comprimento.

A D. Constantino, filho do Duque de Bragança, indo governar a Índia (f. 185)

Constantino, tu vás provar tua sorte,


e descobrir-te ao mundo: olha o perigo
mor inda da fortuna, que da morte.

Fuge de ti, que em ti tens mor imigo,


5 se muito te amas; se te vence, e manda
teu bom conselho, em ti tens mor amigo.

Livre a fortuna pelos ares anda,


de mil, e mil despojos carregada,
a muitos dura, a muito poucos branda.

10 Não se vence a cruel com mão armada;


não obedece a rogos, ou branduras,
então mais falsa, quando mais amada.

Se a tu vencida em tudo ver procuras,


confia de ti pouco, menos dela:
15 terás a vida, e honra mais seguras.

O esprito, e olhos postos na alta estrela


da nova glória que te leva, e chama,
ousado a sorte lança, e solta a vela.

Tua fé, teu rei, tua terra, teu nome ama.


20 Oos bons te ajuda. em Deus espera, e crê:
acenderás de amor üa viva chama.

Nenhum olho direito no sol vê,


mas finge que com üa noda hoje amanheça:
todos a enxergarão onde quer que estê.

25 Qualquer pequena culpa, que pareça (f. 185v0 )


em ti, logo se vê, logo se sente._
As obras vem-se, o peito Deus·conheça.

347
LIVRO II DAS CARTAS

Aos olhos posto estás de toda a gente.


Num descuido vê quanto s' aventura
30 teu nome, e o alto império do Oriente.

O que as estrelas vence, o que assegura


altos estados é seguir razão,
de nossas almas própria fermosura.

Mil razões uns, mil outros te darão.


35 Estê teu juízo firme, livre, e isento;
logo as boas das más se apartarão.

S' a vontade obedece ao entendimento,


ele na~uralmente o melhor mostra,
e com iia só razão responde a cento.

40 Mas quem conhecerá a fingida mostra


do que o conselho funda em comum bem,
contrário dentro do que fora mostra?

Logo a virtude, logo a razão tem


iia divina luz, com que esclarece
45 a alma daquele que buscar a vem.

Aquele estátuas d'ouro só merece


que firme tem o generoso peito
té o fim bom chegar do que conhece.

• Constante, e forte, a medo não sojeito,


50 nem o ardor do povo cego o move,
nem o espanta o trabalho do alto feito . (f. 186)

Ora o fogo, ora o vento, e a onda prove


o grande capitão, que em si deseja
que o mais famoso nome se renove.

55 Quem primeiro consigo só peleja,


e com vitória sai, ponha seguro
à fortuna seu peito, rosto à inveja.

PL 36: partaraõ

348
LIVRO II DAS CA RTA S

Cair-lhe-á ant'os pés o imigo duro,


vencido do grã nome, e acender-se-á
60 em mais fermoso fogo o forte muro.

Quem de tantos mil anos vida dá


a tantos mortos? Quem tão altos cantos
e a viva voz que sempre soará?

Porque d'homens mortais em templos santos


65 se guardavçlill as cinzas, e adoradas
eram de emperadores, e reis tantos?

Tantas ricas estátuas levantadas,


tantos mil arcos, mil troféus, mil aras,
à constante virtude eram só dadas.

70 Vivem, e viverão as obras raras


eternamente, e em outra luz, que temos,
parecerão um dia inda mais claras.

Os antigos exemplos já deixemos.


Vencem os nossos; vencem, ou certo igualam.
75 (Té quando contra nós cruéis seremos?)

Não espantam, não soam hoje, não falam


pelo mundo, o grã Conde, e o Rei primeiro, (f. 186v0 )
por mais que os tempos d'outros muitos calam?

Um Sancho, um só Dinis, um Afonso inteiro


80 no alto esprito, e zelo da fé santa,
d'Espanha outro Camilo verdadeiro?

Ah, olha, Constantino, e verás quanta


luz clara, que alta estrada vão mostrando
dous, de que tem teu sangue parte tanta,

85 dous raios, João, e Nuno, como ousando


com ânimos constantes, a coroa
real com grã vigor vão conservando,

contra tantos, dous sós co'a tenção boa.


Olha o rico despojo, reais bandeiras,
90 olha a vitória, que no mundo soa.

349
LIVRO II DAS CARTAS

Não fábulas fingidas, verdadeiras


histórias vês de reis; pois tu, seu sangue,
corre com ledo esprito tais carreiras,

faze inda mais temido ao rume o frangue,


95 leva diante os capitães passados
que esse império ganharam com seu sangue.

Tantos varões ilustres, que igualados


com razão devem ser aos mais antigos,
tantos a nenhuns outros comparados,

100 d'uns o conselho, d'outros nos perigos


o ânimo invencível, d'outros a arte
de sem sangue vencer cem mil imigos,

a que Baco, a que Rómulo, a que Marte (f. 187)


concederam vantagem? Mil Cipiões,
105 Fábios mil, Paulos mil, em toda parte.

Ajunta os portugueses corações


naturalmente à glória, e fama erguidos:
que mares temerão ou que regiões?

Poucos, mas bem conformes, bem regidos:


110 de que ondas, de que fogo, ou fortalezas
poderam n'alta empresa ser detidos?

Vencem o crédito já tantas grandezas,


tantas vitórias em tão nova terra,
ganhadas pola fé, não por riquezas.

115 Às inocentes armas, santa guerra


dá Deus altas vitórias. Quem outro fim
leva diante, à glória, e à fama erra.

Nunca as pedras, as conchas, e o marfim


deixaram ao que as amou nome famoso:
120 vê de Fabrício, e Crasso o nome, e o fim .

Dário com seus tesouros poderoso


rico despojo foi ao grego pobre,
só d'honra, só de fama cobiçoso.

350
LIVRO II DAS CARTAS

Ah, quem o alto esprito livre, e nobre


125 tão vilmente cativa no baixo ouro,
que pera mal da honra se descobre!

Tu, real sangue, tu outro tesouro


trarás, desse teu nome grande dino,
de nova palma, de fermoso louro. (f. l87v 0 )

130 Suprir a idade vás de um rei minino,


que rei te faz, por si, de tantos reis .
Vence, triunfa, e deixa, Constantino,
novos impérios postos às suas leis.

A Francisco de Sá de Miranda

Antes que minha sorte impida, ou mude


a ocasião de praticar contigo,
mestre das Musas, mestre da virtude;

antes que o tempo, a todo bem imigo,


5 me desvie forçado, onde eu já vejo
minha vida sem gosto, alma em perigo;

consente-me fartar este desejo,


ó Francisco só livre, e só ditoso,
enquanto a carta ao longe não tem pejo.

10 O tempo escuro, e triste, e tempestoso


mal ameaça; assi viste o passado,
e vês inda o porvir mais perigoso.

Chamar-t' -ei sempre bem-aventurado,


que tanto há que em bom riorto com essas santas
15 Musas te estás em santo ócio apartado.

Não esperas, nem temes, nem te espantas.


Sempre em bom ócio, sempre em sãos cuidados, (f. 188)
a ti só vives lá, e a ti só cantas.

Os olhos soltos pelos verdes prados,


20 o pensamento livre, e nos céus posto,
seguros passos dás, e bem contados.

351
LIVRO II DAS CARTAS

Trazes i:ia alma sempre num só rosto.


Nem o ano te muda, nem o dia:
um te deixa Dezembro, um te acha Agosto.

25 Quão alta, quão cristã filosofia


de poucos entendida nos mostraste,
que caminho do céu, que certa guia!

De ti fugiste , e lá de ti voaste,
lá longe, onde teu esprito, alto sobindo,
30 achou esse alto bem que tanto amaste.

Novo mundo, bom Sá, nos foste abrindo


com tua vida, e com teu doce canto,
nova água, e novo fogo descobrindo.

Não resplandicia antes o sol tanto,


35 não era antes o céu tão lurnioso,
nem nos erguia o esprito em seu espanto.

Contigo nos nasce o ano mais fermoso,


mais rosada, e mais loura a Primavera,
c'o seio de alvas flores mais cheiroso.

40 Por toda a parte o louro abraça a hera,


por toda parte rios, e águas claras,
e outra mor natureza já da que era.

Tu as fontes abriste, os céus aclaras, (f. l 88v0 )


às estrelas dás luz. vida aos amores,
45 santos amores d'üas Ninfas raras.

Levantas sobre reis, e emperadores,


ao som da lira doce, e grave, e branda,
a humildade inocente cios pastores.

Por onde vai teu esprito, por i anda


50 sempre firme teu pé, e o peito inteiro
(obedece a vontade; a razão manda),

nem ao rei, nem ao povo lisonjeiro,


nem odioso ao rei, nem leve ao povo,
nem contigo inconstante, ou tençoeiro.

352
LIVRO II DAS CARTAS

55 Neste mundo por ti já claro, e novo


já uns espritos s'erguem no teu lume,
por quem eu, meu Sá, vejo, e meus pés movo.

Já contra a tirania do costume,


que téqui como escravos em cadeias
60 os tinha, subir tentam ao alto cume

do teu sagrado monte, donde as veias


desse liquor riquíssimas abriste
de que já correm mil ribeiras cheias.

Ali teus passos, por onde subiste


65 a tão alta virtude, e tanta glória,
medindo iriam, como os tu mediste.

Inda seguindo a tua clara história,


que em vida de ti lemos, algum sprito
com teu nome honraria sua memória. (f. 189)

70 Mas ah, tempos cruéis (soe meu grito


por todo mundo), mas ah, tempos duros,
em que não soa bem o bom escrito!

Eu vejo um vale, e um monte, onde seguros,


onde sãos, e quietos, os meus dias
75 teria em ócio bom, cuidados puros,

mas chama o mundo vãs filosofias


a virtude, o repouso, a liberdade;
e as santas Musas são fábulas frias .

- É fraqueza do esprito a humildade.


80 O ser do homem são honras, são riquezas,
e subir onde mais voa a vontade:

levantar os espritos a grandezas,


entrar cidades, e mostrar vencidos
imigos mil, queimando as fortalezas,

85 ser de príncipes grandes conhecidos,


ao rei aceitos, à gente espantosos,
ou por temor, ou por amor seguidos.

353
LIVRO II DAS CARTAS

Duros trabalhos fizeram famosos


Alexandres, e Júlios, Cipiões,
90 não os bosques sombrios, saudosos.

Aos que não bastaram os corações


a subir alto, té os nomes perderam.
Alevanta a fortuna altas tenções.

Outros suas terras em boa paz regeram,


95 armando-as com boas leis, e bons preceitos, (f. 189v0 )
com que igual honra às armas mereceram.

Como? E é pouca glória a dos direitos


juízes, que guardando as iguais leis,
tem té os que podem mais a si sojeitos,

100 em quem os seus poderes põe os reis,


por quem se rege o mundo, e se sostenta?
Assi ociosos à honra fugereis ?

Nem com dita cad'um sua sorte tenta. ·


Sentou-se o que temeu; mas quem ousou
105 o rosto, e peito ter firme à tormenta,

c'o generoso esprito ao fim chegou.


Isto me diz o povo. Eu lhe respondo:
- Vá, quem sua leda sorte alto chamou.

Besta de mil cabeças, eu me escondo,


110 não dos trabalhos d'honra, mas de ti,
que cegamente estás pondo, e despondo.

Já eu os olhos à virtude ergui,


já levantei o esprito à glória, e fama,
mas dentro inda de mim logo caí.

115 Este bom povo, que a honra cá assi ama,


que assi de honra enche a boca, só proveito,
só doce ganho estima: este honra chama.

PL 113: a glória

354
LIVRO II DAS CARTAS

Ouro primeiro (este é seu preceito),


ouro, despois virtude. Ouro honra dá,
120 ouro ao rei faz e aos homens ser aceito.

Logo, quem nada tem, nada terá: (f. 190)


essa é cá a ordem, essa a regra, e meio.
Logo, a quem muito tem, mais se dará?

Logo, em vão um esprito ao mundo veio


125 simples, nu, puro, aceso em fogo vivo
d'virtude, e de amor de glória cheio?

Ó cega multidão! E assi cativo


quereis fazer à baixa fex da terra
um alto ingenho? Assi enterrá-lo vivo?

130 Quem à glória, e à honra assi o nome erra,


que honras dará? E quem tão ociosa
acha a virtude pera paz, e guerra?

Onde a livre verdade, a tão fermosa,


se vende por vil ganho, e mau engano,
135 e a quem a segue, e ama é mais danosa?

Onde mais justo chamam o mor tirano,


e a cega afeição, juízo certo,
e o teu entendimento te é mor dano?

Tenhas fé, tenhas língua, e peito aberto;


140 se te falta o mais baixo, e que mais val,
como na cinza o fogo estás cuberto.

Quanto é mais justo, quanto mais igual


dos rnininos o jogo: será rei
quem o melhor fizer; preso, quem mal!

145 Pois, 6 porque de ti não fugirei,


povo, e cruel, e cego? Que esperança
me dás, que nem rnintir nem servir sei? (f. 190v0 )

Quem dos céus um sossego bom alcança


mais não deseje. É livre, é rei, é rico,
150 e tem da vida a bem-aventurança.

355
LIVRO II DAS CARTAS

Que aproveita o que ajunto, o que edifico,


por água, e fogo pondo a vida a preço,
se, quanto ajunto mais, mais pobre fico?

Porque a alma, tão custosa a Deus, ofereço


155 ao baixo ganho, se um momento d'hora
como iia sombra ao sol desapareço?

Quanto vivem melhor os que estão fora,


contentes do que s:fo' M;:i.is não desejam;
vivem dia por dia, hora por hora.

160 Sejam chamados ociosos, sejam.


Bom é o ócio que do mal aparta,
inda qu' outros mais bens nele não vejam.

Este desejo, que se nunca farta,


ali mais obedece à natureza,
165 que quer que o bem por todos se reparta.

Mais magnífica às vezes é a pobreza


dum que os tesouros d'outro. A alta tenção
estima Deus; as obras vãs despreza.

Tudo se toma em bem no que está são.


170 O doce, e aproveitoso amarga ao doente,
erra com cor de bem o povo vão.

Só andava Cipião, fugindo à gente,


então mais ocupado quando menos. (f. 191)
Fabrício pobre só, Fábio paciente.

175 O campo ensina ser justo os pequenos,


desprezador dos maus, só no bem forte,
de si contente, e a si só somenos.

Não acha, quando vem armada a morte


mais que o seu vil despojo. Ó serra, ó monte,
180 ditoso aquele, a que caíste em sorte!

Lá me escondas, lá onde ninguém conte


minhas ditosas horas; lá sem nome
no mundo coma o fruito, e beba a fonte.

356
LIVRO li DAS CARTAS

Antes c' o duro arado a terra dome,


I85 e dela as más espinhas arrancando,
do meu trabalho santo exemplo tome.

A alma de maus desejos apartando,


nela, e na terra sãs raízes plante,
que vão fermoso fruito levantando.

190 A ti, Manlia, a ti, e às Musas cante.


Ali, meu todo, e teu; livre e seguro,
nada me ofenda, nada turve, ou espante.

Em mim metido, e forte em meu bom muro,


nem o exemplo do mau me mude ou dane,
195 nem me seja do povo o riso duro.

Antes que eu erre, antes que m' engane,


a ti, Sá, siga, que me estás dizendo:
- Fuge, antes que o mau vulgo te profane.

A vós, ó castas deosas, me encomendo. (f. 19lv 0 )


200 Vós me livrai em paz, vós me apartai
onde convosco ledo estê vivendo,
e o vosso bom Francisco me mostrai.

10

A D. Simão da Silveira

Dom Simão da Silveira (este só nome


passe por claro título, em quem Marte
sempre igual honra, igual Apolo tome),

as vitoriosas armas a de parte


5 do ilustre sangue teu sempre esparzido
c'o esprito, e fim só posto em melhor parte:

enquanto aos claros feitos mais devido


é o teu raro, e grave, e doce canto,
enquanto do alto lume o meu vencido,

187: PL Al ma 201 : este

357
LIVRO II DAS CARTAS

10 nas brandas Musas, que tu honras tanto,


mal o humilde meu verso se despeja,
furtado ora a suspiros, ora à pranto.

Quem poderia ser qual se deseja?


Boa parte, porém, dá quem dá a vontade,
15 inda que a alguns de pouco fruito seja.

Porque, pois arde esta ditosa idade


em outro novo fogo, em melhor lume,
que já o mundo encheu de claridade,

terá tão dura força o mau costume (f. 192)


20 que té às suas leis os bons espritos,
que o céu livre nos dá, força, e consume?

Deixaram boa matéria a altos escritos


nossos passados; não lhes tiro a fama,
mais dados a bons feitos, que a bons ditos.

25 Mas se nos nasce agora üa nova chama,


que a sua sombra alumia, quem acusa
a clara luz, e a sombra antiga inda ama?

Vê-se já Marte junto à branda Musa,


dantes todo diamante, e malha, e aceiro,
30 sem esperar tempo, ou receber escusa.

Posto à fortuna todo aventureiro,


imigo de piadade, e de brandura,
tal era o capitão e o cavaleiro.

Eis já aquela brutal fereza dura


35 da branda humanidade temperada,
que às armas deu sua própria formosura.

Eis Minerva de Marte namorada:


ele os seus brandos olhos mil perigos
rompe co' a forte lança, e aguda espada.

40 A deosa canta, ele arde (entanto imigos


mil, e mil deixam armas e bandeiras),
a soberbos feroz, brando os amigos .

11 : PL a humilde 12: o pranto

358
LIVRO II DAS CARTAS

As fábulas antigas lisonjeiras


ao pio Troiano, ao Grego forte
45 brandas deosas não dão por companheiras? (f. 192v0 )

Nem tudo há-de ser ferro, e fogo, e morte.


Ociosa nos foi logo esta vida,
se toda há-de pender de fúria, e sorte.

Haja a razão lugar, seja entendida.


50 Fiquem aos !iões a força, e a braveza,
que enfim d'arte a grande Hidra foi vencida.

Mansos nos criou a mansa natureza.


Ira a guerra pariu, ira armas gera,
ira chamou à boa razão fraqueza.

55 Inda naquela idade inculta, e fera,


às forças toda dada, um esprito raro
piadoso templo ao brando Apolo erguera:

santo Dinis, na fé, nas armas claro,


da pátria pai, da sua língua amigo,
60 daquelas Musas rústicas empar<?.

Com mágoa o cuido, ah, com mágoa o digo:


como um povo em seu bem sempre constante
veio assi ser da sua língua irnigo?

Quem ao grego deu voz, que soe, e cante


65 tão altamente, quem ao bom latino
com que já Grécia iguale, e o mundo espante?

Quem, senão arte, e uso, um só divino


ingenho, que inflamado em novo fogo
ousou roubar o canto peregrino?

70 Os pastores primeiro, em festa, e em jogo,


d'espigas coroados em suas canas (f. 193)
seus deuses invocavam a seu vão rogo.

Dali vem Ninfas, Faunas, e Dianas,


Musas, Graças, e Vénus, e os Amores.
75 Crescem c'o tempo as invenções humanas :

359
LIVRO II DAS CARTAS

eis despois capitães, e emperadores


entr' armas, e estandartes tão cantados,
eis públicos teatros os cantores.

Não correm sempre os céus iguais. Seus fados


80 teve já Grécia, e Roma: acabou tudo.
Perderam-se os bons cantos c'os estados.

Ficou o mundo um tempo frio, e mudo .


Veio outra gente, trouxe outra arte nova,
em que alçou ora som grave, ora agudo.

85 Chamou o povo à sua invenção trova,


por ser achado consoante novo,
em que Espanha téqui deu alta prova.

Eu por cego costume não me movo.


Vejo vir claro lume de Toscana,
90 neste arço; a antiga Espanha deixo ao povo.

Ó doce rima! Mas inda ata, e dana,


inda do verso a liberdade estreita,
enquanto c'o som leve o juízo engana.

Não foi a consonância sempre aceita


95 tão repetida, assi como a doçura
contínua o apetite cheio enjeita.

Mas soframo-la, enquanto iia figura (f. l 93vº)


não vemos que mais viva represente
daquela Musa antiga a boa soltura.

100 Esta deu glória à italiana gente,


nesta primeiro ardeu cá o bom Miranda:
vivam Lasso, e Boscão eternamente!

Já com suas ninfas Febo entre nós anda,


já a lira a no::,sas sombras encordoa.
105 Responde o vale, e o bosque à sua voz branda.

Porque mais Mântua, e Esmirna que Lisboa,


se o claro sol seu lume nos não nega,
terá, se s' arte usar, maior coroa?

360
LIVRO II DAS CARTAS

Haja estudo, haja uso, não haja cega


11 O ousadia; na fonte beberemos
donde o doce liquor mil campos rega.

Porque, ó Simão, porque não ousaremos


o que tantos ousaram? Em tanta míngua
té quando, descuidados, viviremos ?

115 Deu-nos o céu espritos; não nos míngua


mais que mestre, e uso. Ferrara, ou Florença
quão rica teve em seu começo a língua?

Geralmente foi dada boa licença


às línguas. Üas às outras se roubaram;
120 só o bom sprito faz a diferença.

Quantos antes de Homero mal cantaram!


Quanto tempo Sicília, quanto Atenas,
que despois tal som deram, se calaram! (f. 194)

Não criou logo Roma as altas penas,


125 com que de boca em boca foi voando,
iguais fazendo às armas as Camenas.

E nós inda estaremos duvidando?


E o vivo fogo que se em nós levanta
a outra língua, ah cruéis, iremos dando?

130 Docemente suspira, doce canta


a portuguesa Musa, filha, herdeira
da grega, e da latina, que assi espanta.

Vá sempre vitoriosa a alta bandeira


ao som da nova lira, em paz, e em guerra,
135 vá Lusitânia, se poder, primeira.

Ó raro esprito, que da baixa terra


ao céu voando vás, aceso em glória,
longe do cego vulgo, que sempre erra,

acrecenta dos teus à clara história


140 brandas Musas. Eu vejo o glorioso
grã Conde encomendar-te sua memória,

361
LIVRO II DAS CARTAS

claóssimo Luís, raio lumioso,


Marte nas armas, Apolo entr'as Musas,
mas por ti, Simão, inda mais ditoso .

145 Ao som da lira de que tão bem usas,


vai a verde hera entretecendo o louro
que já honrou Mântua, Esmirna, e Siracusas.
Em ti nos mostra Apolo o seu tesouro. (f. l 94v 0 )

11

Ao Conde do Redondo, D. Francisco Coutinho, Regedor

Ilustre conde, d'entre mil eleito


pera a santa justiça ter inteira,
igual a todos, no constante peito:

despois que de infiéis a alta bandeira


5 mil vezes vitoriosa recolheste
na boa estrela, do teu sangue herdeira,

despois que a inveja com a fama venceste


e os claros nomes dos famosos condes
não sei como inda mais esclareceste,

10 e quanto foges mais tua glória, e a escondes,


mais aos olhos se mostra, e inda à tua fama
com mais verdade da que diz respondes,

perdoa este furor meu, que me chama


e me leva após ti, como forçado
15 a louvar o que o mundo louva, e ama.

Não foste sem divino esprito dado


a este regimento: no céu escrito
está todo conselho bem fundado.

Fortaleza, e justiça estão no esprito;


20 serve o corpo somente de instrumento,
quando obedece ao bom conceito, ou dito.

Primeiro julga, e escolhe o entendimento


o que fugir, o que seguir se deve; (f. 195)
nasce a obra conforme ao pensamento.

362
LIVRO II DAS CARTAS

25 Nem todo aquele que romper se atreve


pelo annado esquadrão, e agudas pontas,
da boa fortaleza o nome teve.

Quantos mortos vãmente às suas mãos contas


mal pródigos das vidas, cegos de ira!
30 Dá vagar à razão, e lança contas.

Aquele, que a mor glória, e fama aspira,


cuida o perigo, e o fim tão duvidoso
da ventura, que a tantos a honra tira.

Tu vencedor Francisco, o animoso


35 não julgas polas forças, e ousadia,
mas polo esprito de erro arreceoso.

Quem àquele fennoso fim só guia


que as claras obras dão, o corpo ofrece,
ousado, onde perdê-lo é mor valia.

40 Manda a razão morrer, ledo obedece;


veda a razão morrer, conserva a vida
donde o perigo à alma, e honra empece.

Está toda virtude em boa medida.


Entanto é justiça, e fortaleza,
45 enquanto a razão é obedecida.

O contrário é injúria, e é fraqueza.


Só no vencer o vício está a vitória,
que o mundo mal conhece, e só Deus preza.

Mas despois nasce a tão fennosa história, (f. 195v0 )


50 que pera exemplo eterno ao mundo dura,
dos que, fazendo bem, deixam memória.

Aquela tão escondida fennosura


da verdadeira glória à só virtude
se mostra e dá, na própria sua figura.

55 Não há falsa opinião que a turve, ou mude


do cego vulgo; sempre em si constante,
serve-se da doença, e da saúde.

363
LIVRO II DAS CA RTAS

É fraca ant'ela a força do alifante,


e do bravo !ião a ira espantosa,
60 e a ligeireza da águia mais voante.

Só lia firme vontade. üa animosa


tenção de bem fazer a vence, e abraça.
Esta é sua prisão rica, e fermosa .

Nesta só acha paz, amor, e graça.


65 Esta ama, e louva, e honra, adora, e estima,
não vozes vãs da ociosa praça.

Ah , quem me desse tão suave rima,


que podesse cantar a viva força
da vi rtude, que em toda alma s'imprima!

70 Que perigo, ou medo há, que a vença, ou torça?


Que espantos que a espantem? Que cadeias
que não quebre? Que nós que não destorça?

As claras águas, que das limpas veias


correm, campos regando, enchendo rios,
75 flores aos prados dando, ouro às areias, (f. 196)

correndo vão seu curso por seus fios


direitos té o mar; ali descansam,
vencendo no caminho mil desvios .

Üas seguindo as outras nunca cansam,


80 a fonte sempre viva, sempre mana,
e ao caminhante a ardente sede amansam.

Que exemplo dão à natureza humana,


que exemplo a terra, o mar, o ar, e o fogo ,
que tudo ao mundo serve, e a ninguém dana!

85 Comunica-se o bem, não espera rogo.


Não há onde ele está necessidade.
Amor é seu prazer, amor seu jogo.

Aborrece a mintira, ama a verdade.


Não tem imigo: todos são parentes,
90 quantos veste iia mesma humanidade.

364
LIVRO li DAS CARTAS

Não tem unhas, nem pontas, nem maus dentes .


Todo é simpreza sã, e bom desejo,
todo mãos liberais, e diligentes.

Tal te temos, bom Conde, tal te vejo,


95 esprito generoso, inteiro, e forte,
livre de ódio, d'amor, de medo, e pejo.

Pois te chamou nossa ditosa sorte


das armas à justiça, outra coroa
espera, qual não gaste inveja, ou morte.

Favorecem os céus a tenção boa,


dos homens mal, mas de Deus bem julgada. (f. l 96v 0 )
Vence a verdade, vence, e fala, e soa,
e vem té dos imigos ser louvada.

12

A Vasco da Silveira

- Poeta queres ser, e ser letrado?


(diz um roim, e às vezes dous, e três)
poeta, e senador grave chamado?

Que mor quimera, que novo entremês!


5 Como s'entende o texto c'o soneto?
Como, enquanto tercetas, as leis vês?

Nesta contenda, neste duro reto


que farei, ó bom Vasco da Silveira?
A teu grave juízo me someto.

10 Não é esta, não temas, a primeira


guerra, que padeceu um esprito raro.
Vai, rompe, vence, alçada tua bandeira.

Nas mesmas Musas acharás emparo;


achá-lo-ás em espritos generosos,
15 a quem o bom saber sempre foi caro.

Largos sejam teus dias, gloriosos,


claro Silveira; eu em mim não conheço
tão raros dões, nem fados tão ditosos.

365
LIVRO II DAS CARTAS

Ser chamado poeta não mereço.


20 Poeta seja Maro, e seja Homero,
e seja o meu Horácio, a quem obedeço. (f. 197)

Mas haja um bárbaro, um inculto, e fero


merecida resposta, haja vergonha,
enquanto eu suas cores dar-lhe quero.

25 A aranha da boa flor faz má peçonha;


o estâmago danado em mal converte
qualquer que nele bom liquor se ponha.

Quem nega que a malícia não soverte


o bom juízo? E que a ignorância cega
30 faz que nunca a verdade bem se acerte?

Tal é o baixo esprito, e mau, que nega


ajudar o bom ingenho à boa doutrina,
quanto ele em mais estudos bons s'emprega.

Esta alma, que é dos céus cá peregrina,


35 que dom mor recebeu, que a razão clara,
por quem se faz tão alta, e tão divina?

À qual razão, se Deus não inspirara


outra mor luz em nós, do céu influída,
por quem sua escuridão se alumiara,

40 quão cega, e escura fora nossa vida,


quão incertos passos, os que cá andamos,
e a estrada do céu quão mal seguida!

Nós dos antigos troncos somos ramos


que secaram, perdendo sua virtude,
45 que de um divino tronco já cobramos.

Perdeu-se a vida, perdeu-se a saúde


com a luz natural. Veio outra nova (f. 197vº)
luz do alto céu, que nunca em nós se mude.

Esta, como mais clara, fez mor prova


50 no natural ingenho, e rudes artes,
em que outro mor mistério se renova.

366
LIVRO II DAS CARTAS

Cessaram Joves, e cessaram Martes;


apareceu o céu claro, e fermoso,
fermoso o mundo em todas suas partes.

55 Pois se naquele tempo perigoso,


assi escuro, assi triste, assi confuso,
não era o bom saber tão desditoso

(louvava-se o bom ócio, e o bom uso,


louvavam-se as boas artes, e o tirano
ó0 avaro a um bom ingenho era profuso),

donde nos veio tal perigo, e engano


em tempo em que maior luz esclarece?
Donde tanta malícia? Tanto dano?

Como? O saber o ingenho assi escurece,


65 que, por saber mais artes, menos sabe?
Como? O saber tanto a si mesmo empece?

Tão bárbara razão não coube, ou cabe,


senão em rude esprito, ao bem irnigo,
a quem o saber mesmo tão mal sabe.

70 Olha o medo, senhor, olha o perigo,


em que um esprito raro, e bom se cria,
que nem louvor lhe dão, nem acha abrigo!

Escuro, e triste foi aquele dia (f. 198)


que ao saber, e ingenho um juiz foi dado
75 que nunca ao claro sol olhos abria.

Não obrigam estrelas, não há fado,


mas quem negará as claras influências
de que o inferior mundo é governado?

A vontade governa as consciências.


80 Eu assi o digo: em minhas mãos minh'alma.
Deixemos sombras vãs, vãs aparências.

Mas ora o mundo é todo fogo, e calma,


ora regelo, e frio, e tem mudanças
certas; mas dele terá certa a palma
85 quem só no céu tiver suas esperanças.

367
LIVRO II DAS CARTAS

13

A Francisco de Sá de Meneses

Sofrera-se melhor üa elegia


branda d' amor de ti tão bem cantado,
quando Fílis tua doce frauta ouvia,

mas fuja-se de amor o vão cuidado.


5 Cantem de Amor, Francisco, os ociosos
que inda o esprito não tem mais levantado.

Ah, que esses fogos todos espantosos


que pintais, gente a vosso prazer dada,
vós mesmos mostrais bem ser fabulosos.

10 Outro fogo é o em que arde üa magoada (f. 198v 0 )


alma, que s'acha só, onde se reparte
a honra com balança, e mão errada.

Quem sofrerá que leve a melhor parte,


que se deve à razão, a diligência?
15 E que Mercúrio vença a Apolo, e Marte?

Tantas vezes provada a paciência,


não desesperará desta justiça?
E não trará mal quieta a sã consciência?

Aquele alto furor, que move, e atiça


20 um grande esprito, e o ergue a claros feitos,
quem o derriba mais, que iia injustiça?

Fez-nos nossa fraqueza enfim sojeitos


às esperanças de honra, e prémio justo:
tenha a honra, senhor, juízes direitos.

25 O título de Magno, Pio, Augusto,


nem a todos se dava, nem o herdou
no mundo algum tirano cruel, e injusto.

Cada um teve o nome que ganhou


por sua morte; a vida é lisonjeira,
30 mas nunca o vulgo nisto s'enganou.

368
LIVRO II DAS CARTAS

Dá-se a coroa no fim da carreira,


e há inda de vir público um dia
de pública justiça, e verdadeira.

Ali o repartidor, que repartia


35 custosas honras, e vidas de tantos,
medido será, assi como media. (f. 199)

Ali dos mal roubados, justos prantos,


ali dos bons espritos mal julgados,
a juízes cruéis farão espantos.

40 Porque não julgam letras os letrados?


Bons a bondade? E porque os cavaleiros
de cavaleiros não serão julgados?

Conselhem no que entendem os conselheiros,


e dos que entendem quem melhor entende.
45 Julgue cad' um em su'arte os companheiros.

Esta é a justa ordem, que comprende


a boa parte da filosofia
de que o bom regimento inda depende.

Assi fica vencida a tirania


50 (não s'erre a cada um seu próprio nome);
assi florece a santa monarquia.

Não se cegue o bom rei, não escolha, ou tome


acaso, ou a montão; vença a verdade,
sogigue a inveja, e a malícia dome.

55 Ó santa paz, ó santa liberdade!


Ó doce jugo do bom rei prudente,
que guarda esta justiça, esta igualdade !

Menos se escandaliza, e menos sente


negarem-lhe o que é seu um raro esprito,
60 que vê-lo dar a outrem cegamente.

Sobe aos céus logo um lastimoso grito,


que al ta justiça pede, alta vingança, (f. l 99v 0 )
e fica logo lá o casti go escrito.

PL 52: segue

369
LIVRO II DAS CARTAS

Não haja erro, ou engano na balança:


65 dar-se-ão seus nomes a cad'um devidos,
seu prémio aos bons livros, e à boa lança.

Descobrir-se-ão por si rostos fingidos,


e mil títulos falsos, que roubando
estão os prémios d'outros merecidos.

70 S' o fim do bom governo é ir conservando


na república paz, e paz nos vem
de ir a justiça a todos igualando,

a todos o sol nasce, todos tem


nele sua parte igual; porque no rei
75 não terão sua parte igual também?

Porque, pois comum é a todos a lei,


há na justiça tanta diferença,
que inda prémio me dão polo que errei?

Tenha, senhor, a justa dor licença.


80 Que queres tu que faça um livre peito,
que não sabe fazer c'o tempo avença?

Assi estará cativo, assi sojeito,


que té do entendimento seu se guarde,
que não julgue quem vai torto, ou dereito?

85 Quem não diz: - Fogo, fogo - se a casa arde?


Mas fique tudo a Deus, que vê bem tudo,
e sempre dá o remédio ou cedo, ou tarde.
Entretanto é melhor ser cego e mudo. (f. 200)

370
LIVRO DOS EPITÁFIOS

A el-Rei D. Afonso Anrique

Primeiro Afonso sou, filho de Anrique,


entr' armas, ante imigos, rei alçado.
Testemunha será o campo d'Ourique,
onde vi a Jesu crucificado.
5 Esta alta glória a meus herdeiros fique
por mor que o reino por mi só ganhado,
que a cruz, e as armas lhes deixei divinas,
pera vencerem sempre em cinco Quinas.

A el-Rei D. Dinis

Quem é este de insígnias diferentes,


cetro, e picão, e livro, e espada, e arado?
Este foi paz de reis, e amor das gerites, .
grande Dinis, rei nunca assaz louvado. !
5 Outros foram nüa só cousa excelentes,
este com todas nobreceu seu estado:
regeu, edificou, lavrou, venceu,
honrou as Musas, poetou, e leu. (f. 200v0 )

A el-Rei D. João l

Soberba sepultura, alta grandeza


vês com espanto. Lê a grande história.
Lido seu nome, dirás que é baixeza
o que antes tinhas por heróica glória.

371
EPITÁFI OS

5 Este é o rei , que com sua fortaleza


estes reinos ganhou, e a boa memória.
Foi glória imortal dos lusitanos,
pranto, e terror fatal dos africanos.

Ao !Jante D. Pedro, regente

Filho segundo dei-Rei João primeiro,


tio, e sogro dei-Rei Afonso quinto,
vês-me, em prémio do amor tão verdadeiro,
de pó cuberto, do meu sangue tinto.
5 D'ingratos morto, e em morte prisioneiro,
lê minha triste história, que não minto.
A fama dá de mim fé verdadeira;
do injusto e cruel ódio, Alferrobeira. (f. 201)

Ao mesmo

Passa, amigo, não saibas a ventura


cruel que a um triste ifante aconteceu,
a quem inda a piadosa sepultura
por lágrimas de tantos se vendeu.
5 Meus ossos estiveram em prisão dura,
té que meu neto, e vingador nasceu.
Contra mim se quebraram sangue, e leis.
Aqui estou, filho, sogro, e pai de reis.

A el-Rei D. João li

Aqui está o corpo santo do rei santo,


cujo esprito no mundo não cabia,
amor dos bons, dos maus terror, e espanto,
a cujo nome África tremia.
5 Não lhe deixou a morte cruel ver quanto
novamente do mundo descobria.
Ora que já nos céus reina, e repousa,
confessa o mundo ser-lhe pouca cousa. (f. 20 I vº)

372
EPITÁFIOS

A el-Rei D. Manoel

Quem não sabe a ventura, e sorte estranha


de Manoel, em tudo tão ditoso,
que príncipe jurado foi d'Espanha,
d'ambas casas do sol rei glorioso?
5 Aqui, em conhecimento de tamanha
fortuna, alçou a Deus troféu famoso,
do sahto Rei João, seu primo, herdeiro
e pai do pio Rei Dom João terceiro.

Ao Príncipe D. João

Em paz, e em guerra üa esperança grande,


Príncipe João, filho de João terceiro,
de Carlos genro, a que outro igual Deus mande,
despojo de Joana, e amor primeiro,
5 dor, que o tempo, nem ela, quer que abrande,
dos tristes pais, e reino único herdeiro,
cobre esta pedra moço em flor cortado.
Que mais podera dar do que tem dado? (f. 202)

A el-Rei D. João Ill

A paz, a mansidão, a alta bondade,


em que o reino viveu tão docemente,
enquanto em guerra, enquanto em crueldade,
a santa Igreja ardia, e cristã gente;
5 a piadosa liberalidade
que todo mundo enchia até o Oriente;
aqui estão c' o bom rei , pai verdadeiro
da religião e letras, João terceiro.

6: PL a te Oriente

373
EPITÁFIOS

10

AD. Vasco Coutinho, Conde de Borba

Aqui o grã capitão, e ilustre Conde


de Borba, leal Dom Vasco, os pós enterra.
O valeroso esprito lá está, onde
ganhou seu alto assento em santa guerra.
5 A fama ao claro nome não responde
igual, nem ao serviço os reis da terra.
Leal contra seu sangue, em armas forte,
nunca vencido, e vencedor da morte. (f. 202v 0 )

11

Ao grande Afonso d'Alboquerque

Vejo Alexandre, César, Cipião:


quem é o que em meio deles resplandece?
Afonso d' Alboquerque, a quem eles dão
cada um seu lugar, que bem merece.
5 As grandezas de todos nele estão:
quem os três nunca viu, nele os conhece,
tão liberal, tão casto, tão clemente,
triunfador glorioso do Oriente.

12

A António de Sá de Meneses

- Donas, quem sois? - Ciência, Honra, Bondade.


- E que fazeis? - Aqui nos enterramos.
- Quem vos enterra?-Amor, e saudade.
- De quem? - D' António, com que nos criamos.
5 - Té quando? - Té que o Douro, e sua cidade
tenha outro abrigo onde nos metamos.
Inda o pai vive, e vivirá o irmão.
Ai, nós choramos, porque mortais são. (f. 203)

374
EPITÁFIOS

13

A João Caminha, e D. Filipa de Sousa, sua molher,


ambos mortos e enterrados num dia

Não passes, caminhante, um pouco espera:


duas almas, que em nó santo Deus juntou,
das quais o amor ua alma só fizera,
juntas no mesmo amor Deus as chamou.
5 Cada um sua vida pola d'outro dera.
Um d'outro a morte não viu, nem chorou.
Ó almas santas, bem-aventuradas,
nunca na vida, nem morte apartadas!

14

A Diogo de Betancor

Aqui jaz Betancor; chorou-o a morte.


Chorou-o a morte, e suspirou-o a vida.
Antes lhe deu eterna vida a morte;
antes s' ele devia a eterna vida.
5 Começo de sua vida foi a morte,
e nunca morte foi sua santa vida.
À morte deixa a terra, a vida à fama,
o esprito ao céu, que tais espritos chama. (f. 203v 0 )

15

A D. Ângela de Noronha

Aqui d'ua part' o Douro, d'outra o Lima,


Ângela choram, seu prazer, e glória.
Ela nos céus triunfa, e lá de cima
mostrando a palma está de sua vitória.
5 Seja cantado sempre em prosa, e em rima
seu nome, seu esprito, sua memória.
Não choreis, Ninfas, não choreis, Amores:
oferecei-lhe aqui versos, e flores .

375
EPITÁFIOS

16

À mesma

Aqui as graças, virtude, e fennosura,


arte, saber, grandeza, e cortesia,
Ângela choram, que de sombra escura
morte cobriu tanto antes de seu dia.
5 Ai, falsas esperanças da ventura!
Quanto àquele alto esprito se devia!
Mas não lhe era igual paga a baixa terra,
que indinamente em si seu corpo encerra. (f. 204)

17

AD. Ana de Toar

Aquela em vida morta na vontade,


no ponto que a santa alma desatou,
vestida já de nova claridade,
pondo aqui o mortal véu, aos céus voou.
5 Inocente Dona Ana, irmã d' Andrade,
filha dos pais que juntos Deus chamou,
santos pais, santa filha, sangue santo!
Louva a Deus, caminhante, deixa o pranto.

18

A Maria Pimentel

- Quem jaz aqui? - Um corpo em que vivia


fia alma sempre dele saudosa.
- Que nome? E de que sangue? - Era Maria,
dos claros Pimentéis planta ditosa.
5 - Que bens possuiu cá? - Nela se via
igual corpo fennoso à alma fennosa.
- Quem perdeu tanto bem? - O mundo, e um triste
que em vão suspira, _em vão aos céus resiste. (f. 204v 0 )

376
EPITÁFIOS

19

À mesma•

Que choras? Crês que é isso sepultura?


É tesouro de amor, e santidade.
Revolve a pedra: vês que fermosura?
Vês que novos sinais de claridade?
5 Esta é inda de fora a vã pintura
do esprito nunca visto em outra idade.
Julga, pois, caminhante, qual seria
em tal corpo a santa alma de Maria. (f. 205)

377
CASTRO

TRAGÉDIA

Pessoas da tragédia

Castro
Ama
Coro das moças de Coimbra
Ifante D. Pedro
Secretário seu
El-rei D. Afonso IV
Pero Coelho
Diogo Lopez Pacheco
[Filhos de Castro]
Messageiro

BLib Intrelocutores

379
..
ACTO I

[Cena 1]

Castro Ama Coro

CASTRO

Colhei, colhei alegres,


donzelas minhas, mil cheirosas flores .
Tecei frescas capelas
de lírios, e de rosas; coroai todas
5 as douradas cabeças.
Espirem suaves cheiros,
de que s'encha este ar todo.
Soem doces tangeres, doces cantos.
Honrai o claro dia,
10 meu dia tão ditoso, a minha glória,
com brandas liras, com suaves vozes!

AMA

Que novas festas , novos cantos pedes?

CASTRO

Ama, na criação ama, no amor mãe,


ajuda-m'ao prazer. (f. 205v 0 )

AMA

15 Novos estremos vejo.


Nas palavras prazer, água nos olhos.
Quem te faz juntamente leda, e triste?

Toda a Cena I é um acréscimo de Pl.

381
CASTRO ACTO I

CASTRO

Triste não pode estar, quem vês alegre.

AMA

Mistura às vezes a fortuna tudo.

CASTRO

20 Riso, prazer, brandura n'alma tenho.

AMA

Lágrimas sinais são da má fortuna .

CASTRO

Também da boa fortuna companheiras.

AMA

À dor são naturais.

CASTRO

E ao prazer doces.

AMA

Que força de prazer tas traz aos olhos?

CASTRO

25 Vejo meu bem seguro, que receava.

AMA

Que novo caso foi? Que bem te veio?


Porque me tens suspensa?
Abre-me já, senhora, essa alma tua.
O mal s'abranda, o bem, contando-o, cresce.

382
CASTRO ACTO I

CASTRO

30 Ó ama, amanheceu-me um alvo dia,


dia de meu descanso. Sofre um pouco
repetir de mais alto a minha história,
enquanto o esprito, ledo co'a lembrança
de seu temor, de que já está seguro,
35 ajunta ao mal passado o bem presente.
Daquele grande Afonso forte, e santo,
por poderosa mão de Deus alçado
entre armas, ant'imigos o real ceptro
do grande Portugal, que inda está tinto
40 do sangue de infiéis por seu bom braço,
por legítima herança rege, e manda
o bom velho glorioso da vitória
e nome do Salado, Afonso quarto,
dos reis de Portugal sétimo em ordem,
45 filho do grã Dinis, de Isabel santa,
ambos já no alto céu claras estrelas: (f. 206)
cuja alta casa e acrecentado império,
pelos grandes avós, espera alegre
seu desejado herdeiro o lfante Pedro,
50 meu doce amor, minha esperança, e honra.
Sabes como, em saindo dos teus braços,
Ama, na viva flor da minha idade,
(ou fosse fado seu, ou estrela minha)
c'os olhos lhe acendi no peito fogo,
55 fogo, que sempre ardeu, e inda arde agora,
na primeira viveza inteiro, e puro.
Por mim lhe aborreciam altos estados,
por mim os nomes de princesas grandes,
por tão grande me havia nos seus olhos.
60 Um tempo duro, mas em fim forçado,
deu a Costança a mão, Costança aquela
por tantas armas, e furor trazida,
já quasi do seu fado triste agouro:
deu a Costança a mão, mas a alma livre,
65 amor, desejo, e fé me guardou sempre.
Quantas vezes quisera honestamente
podê-la dar a mim! Quantas mais vezes
s' arrependeu despois de se ver preso!
Não lhe apagou o amor a nova esposa;

PL 45 : grande

383
CASTRO ACT0 1

70 não o tão festejado nascimento


do desejado parto; antes mais vivo
c'o tempo, e c'o desejo ardia o fogo.
Que fará? Se o encobre, então mais queima.
Descobri-lo não quer, nem lhe é honesto.
75 Mas quem o fogo guardará no seio?
Quem esconderá amor, que em seus sinais
apesar da vontade se descobre?
Nos olhos, e no rosto chamejava. (f. 206v 0 )
Nos meus olhos os seus o descobriam.
80 Suspira, e geme, e chora a alma cativa,
forçada da brandura, e doce força,
sojeita ao cruel jugo, que pesado
a seu desejo sacodir deseja.
Não pode, não convém: a fúria cresce.
85 Lavra a doce peçonha nas entranhas.
Os homens foge, foge a luz, e o dia.
Só passeia, só fala, triste cuida.
Castro na boca, Castro n'alma, Castro
em toda parte tem ante si presente.
90 Ele à molher cuidado, eu ódio, e ira.
Arde o peito a Costança em furor novo,
nem me ousam descobrir, nem vedar nada.
D'antiga casa Castro em toda Espanha,
já dantes do real cetro deste reino
95 por grande conhecida, inda meu sangue
do real sangue seu tinha grã parte.
Mas inda à natureza dobram força,
arte ajuntando, e manha: el-rei ao neto
por madrinha me dá, comadre ao filho.

AMA

100 Cegos, que quanto mais vedam, mais chamam.


Cresce co' a força amor: e o que à vontade
se faz mais impossível, mais deseja.

CASTRO

Enfim, fortuna, que me já chamava


esta glória tão grande, quebra o nó
105 daquele jugo ao meu amor contrário.
Leva ante tempo a morte a ifante triste.

384
CASTRO ACTO 1

Herdo eu mais livremente o amor constante,


que a mim se entregou todo, e todo vive
na minh'alma, onde está seguro, e firme,
110 já com doces penhores confirmado. (f. 207)
Mas o esprito inquieto c'os clamores
do povo, e rogos graves, que trabalham
apartar est'amor, quebrar sua força,
me traziam medrosa, receando
115 a volta da fortuna, que ora amiga
ora imiga cruel alça, e derriba:
que sempre do mor bem, mor mal promete,
falsa, inconstante, cega, vária, e forte .
Lograva como a medo os meus amores,
120 criava o grande amor desconfiança;
e a consciência errada sempre teme.

AMA

Quem te segurou já? Quem novo esprito


te deu aos temores?

CASTRO

O meu medo.

AMA

Contrárias cousas falas.

CASTRO

O medo ousa
125 às vezes mais que o esforço. Tomo os filhos
co' as lágrimas nos olhos, rosto branco,
a língua quasi muda, em choro solta
ant' ele assi começo: - Meu senhor,
soam-me as cruéis vozes deste povo,
130 vejo dei-rei a força, e império grave
armado contra mim, contra a constânci a
que em meu amor tégora tens mostrado.
Não receio, senhor, que a fé tão firme
queiras quebrar a quem tua alma deste;

385
CASTRO ACTO 1

135 mas receio a fortuna que mais possa


com seu furor, que tu com teu amor brando.
Por estas minhas lágrimas, por esta
mão tua, que em sinal de fé me deste,
pelos doces amores, doce fruito,
140 que deles tens diante: se me deves
amor igual ao meu, ou se algii' hora
fui a teus olhos vista alegre, e doce, (f. 207v 0 )
me segures, me guardes, me conserves
contra os duros mandados de teu pai,
145 contra importunas vozes dos que podem
mudar acaso teu constante peito.
Ou quando minha estrela, e cruel génio
te poder arrancar dest' alma minha,
com teu armado braço envolta em sangue
150 m'arranques deste corpo, que não veja
tão triste dia, tão cruel mudança:
eu tomarei por doce a minha morte,
por piadoso amor tal crueldade.

AMA

Moveste-me a alma, e os olhos.

CASTRO

155 Assi disse. Ele então lançando os braços


estreitamente em mim, mudado todo
em vão trabalha de encobrir a mágoa
de meu temor, e lágrimas. - E pode,
ó dona Inês .- me diz - pode teu peito
160 conceber tal receio? Aquele dia
primeiro, que te vi, não mostrou logo
que esta minh'alma à, tua só se deve?
Por ti a vida me é doce, por ti espero
acrecentar impérios: sem ti o mundo
165 duro deserto me pareceria.
Não poderá fortuna, não os homens,
não estrelas, não fados, não planetas,
apartar-me de ti por arte ou força.
Nesta tua mão te ponho firme, e fixa

148: PL arancar

386
CASTRO ACTO I

170 minh' alma; por ifante te nomeio,


do meu amor senhora, e do alto estado
que me espera, e teu nome me faz doce.
O grande movedor dos céus, e terras
invoco, e chamo aqui : o alto céu m'ouça (f. 208)
175 e meu intento santo aprove e cumpra.

AMA

Entendo o teu prazer, as tuas lágrimas.


Também de prazer choro: tão contrária
nos é sempre a alegria, que inda toma
lágrimas emprestadas à tristeza.

CASTRO

180 Já não temo fortuna, já segura


e leda vivirei.

AMA

No real esprito
não se deve esperar leve mudança.
Ajuda tua estrela c'o bom siso.
Muitas vezes a culpa empece ao fado .
185 Prudência, e bom conselho o bem conserva;
a soberba o destruí, e em grã mal muda.

CASTRO

Rege tu, ama minha, este meu peito.


O súbito prazer engana, e erra.

AMA

Encobre teu segredo.

CASTRO

N'alma o tenho.

387
CASTRO ACTO I

AMA

190 Deus to conserve.

CASTRO

Humilde aos céus o peço.

[Cena 2]

!Jante Coro

IFANTE

Poderoso Senhor, grã pai do mundo,


cujo poder imenso, altas grandezas
cantam os céus, a terra, os elementos,
a cujo aceno treme a redondeza,
195 a cujo querer nada é impossível,
fortalece meu peito, arma-me todo
de paciência igual à dura afronta.
Sossega os alvoroços deste povo,
a fúria de meu pai, que em vão trabalha
200 arrancar-me minh'alma donde vive.
Sou humano, Senhor: tentações grandes
vencem ânimos fortes .
Ferve o sangue, arde o peito, cresce-me ira
contra quem me persegue: tu me amansa. (f. 208v 0 )
205 Não poderei. sofrer, não poderei
a dura pertinácia, o cruel ódio
que ao meu doce amor mostram.
Vence a dor a razão, vence amor força.
Tu conserva, alto Deus, a prometida
210 fé a quem já de lá dar-ma mandaste.
Tudo de ti procede: sem ti nada
se move cá na terra. Quem entende
teus meios, e teus fins, e teus segredos?
Quantas vezes mal é, o que bem parece!

Cena 2. Não aparece em BLib. Na versão primitiva, a tragédia abre com um monólogo do
infante. Ver Ap2(ii).

388
CASTRO ACTO I

215 Quantas vezes o mal causa bens grandes!


Quanto tempo sofreste o grande Afonso,
no nome de Bolonha celebrado,
que novas torres ajuntou às Quinas,
dura força fazendo ao matrimónio,
220 contr' as divinas leis, contra as humanas 1
Quem então não chorava a crueldade
contra o primeiro amor? E quem calava
a dura pertinácia do segundo?
Mas tu querias dar ao mundo o grande,
225 forte, prudente, e santo, um só Dinis,
paz e concórdia entre altos reis, que reinos
deu e tirou, em armas claro e em letras.
Eu de seu sangue, de seu estado herdeiro,
porque do meu amor tão mal julgado
230 não esperarei grandezas? Vê-las-ei,
vê-las-ei de ti, Castro; vive leda,
vive segura, lança os medos fora,
que antes morte, que vida sem ti quero.

CORO

Não é desculpa ao mal, outro mal grande.


235 Quão danoso é no mundo um mau .exemplo!
Mas não pode assi ser a razão cega (f. 209)
que o que reprende em outro, em si o aprove.
Cada um levar-se deixa da vontade.

[Cena 3]

Secretário !Jante Coro

SECRETÁRIO

Quem ajuntar poder com a água o fogo,


240 quem misturar c'o dia a noite escura,
e quem o mau pecado com a virtude,
este no amor ajuntará razão,

BLib 239: pnder (sic) PL e BLib com água 240: mesturar 242: rezão

389
CASTRO ACTO 1

este em falsa lisonja a lealdade.


Um o amor não sofre, outro a virtude,
245 e eu destes ambos venho agora armado.
Não sei se poderei vencer com eles.
S' algum esprito bom me quisesse ora
ajudar lá dos céus, e aqui acabasse
esta vida, que fim mais glorioso
250 que polos céus deixar a baixa terra,
antes que por temor honra, e verdade?
Aquele é que lá vejo pensativo:
Deus m' inspire que diga sem temor.
Confiança há mister, e ânimo livre
255 quem quiser resistir ao mau propósito
do príncipe, em que está determinado.
Mas deixar de o fazer é vil fraqueza .

IFANTE

Que dirás, secretário, a tão grã força


como querem fazer a esta minh'alma?

SECRETÁRIO

260 Senhor, mas antes querem dar-ta livre


donde está tão forçada, e tão cativa.

lFANTE

Arrancam-me as entranhas. Que me querem?


Esta gente que quer, que assi me mata?

SECRETÁRIO

Querem-te só, e procuram-te tua honra,


265 e quebrar daqui as asas à fortuna,
que contra ti não tenha nunca forças . (f. 209vº)

lFANTE

Mas antes lhas vão dando quanto podem,


procurando apartar-me donde vivo.

BLib 243 : este lijongeria a lealdade 244: Um amor 248: do céu 250: pelos 251 : honra e vir-
tude 255: resistir quiser o mau 258: secretairo 260: PL dar-te BLib dar-ta 265: PL e BLib a fortuna

390
CASTRO ACTO 1

SECRETÁRIO

Se te visses, senhor, ver-te-ias morto,


270 ver-te-ias cego. Enquanto homem não vive
com su'alma própria, pode a tal ser vida?

lFANTE

Também tu me persegues? Também vens


afiado cortar-me estas raízes,
que no meu peito já tão firmes tenho?

SECRETÁRIO

275 Piadosa obra faz ao que está preso


quem as prisões lhe corta, e as más cadeias?
Ó claríssimo ifante meu senhor,
muito há que me conheces. Teus segredos
de mim com razão sempre confiaste:
280 nunca te descobri as zombarias,
nunca descobrirei o menor deles.
Düa parte me tens por secretário,
mas d'outra me hás-de ter por conselheiro.
Comprirei eu contigo, e com que devo:
285 então venha tua ira, que eu não quero
melhor morte que aquela que de infâmia
livrar a vida, e a alma de perigo.
Não vês, senhor, que o sol, se escurecesse,
quanto cobre, e descobre ficaria
290 tão triste, e escuro, como agora claro?
Pois tal é o bom príncipe: sol nosso,
com cuja luz nos vemos, e seguimos
a justiça que aos céus nos vai levando.
Se s'esta em ti perder, onde a acharemos?
295 Quem a virtude seguirá, quem honra?
Abateres-te assi de príncipe alto
a pensamentos baixos, que s'estranham
nos homens baixos, parecer te pode (f.210)
grandeza de ti dina, e do que deves
300 a este estado tão alto que te espera?
-------
273: afiado a cortar-me 274: que no meu coração estão tão presas 276: omite más 277: Ó ifante
Dom Pedro 279: rezam 280: descubri 281: nunca te descubrirei 282: secretairo 283 : de outras 284:
como devo 286-7: milhor... que livrar/ de infâmia a vida 289: ficari a tão triste 290: tão triste e negro
294: Se se este (sic) em ti perder. nós que faremos

391
CASTRO ACTO I

IFANTE

Quem tão livre te faz, e tão ousado?

SECRETÁRIO

Amor e lealdade esta ousadia


me dão : dá-ma a razão, que tem tal força,
que inda que se não siga, não se nega.
305 Lá dentro em ti te vejo estar sentindo,
em teu ânimo real, e generoso,
quasi iia reverência, a que te move,
inda que com desgosto, a sã verdade.
Não me queres ouvir, mas bem me julgas.
31 O Move-te o zelo honesto, a fé tão pura.
Deixa-te reprender de quem bem t'ama,
que ou te aproveita, ou quer aproveitar-te.
Não recebas enganos de quem teme,
ou deseja, ou espera, à custa tua,
315 de tua honra, e dos teus, que a tantos mata.
Louvas tu, ou alguém louvará aquele,
que podendo ilustrar a glória antiga
de seus passados com mor honra, e fama,
não somente o não faz, mas escurece
320 daquela luz antiga o claro raio?

IFANTE

Mas antes não viver merecia esse,


antes não ser nascido: que a águia vemos
os filhos engeitar que ao sol não olham.

301 : em vez deste verso, Blib tem os 4 versos seguintes:


Perdoo-te esse amor e confiança
ousada com que falas . Vai avante,
que eu te seguro que, inda que não queira
ouvir-te, ouço esta fé com que me acusas.
302-3 : em vez destes 2 versos, Blib tem os 3 seguintes:
Secret. Mercê mui grande, dina desse nome
tão alto e esclarecido. Esta ousadia
me dá a virtude, porque tem tal força
305: sentido 306: ânimo nobre 308: inda que com desgosto, o que te digo 309-10: omitidos
312: porque ou aproveita, ou quis aproveitar-te 316: ninguém louvará; depois de 318 Blib acres-
centa: do que lhe eles deixaram não somente 319: o não faz mas trabalha escurecer 320: aquele claro
raio de sua honra 323: o sol

392
CASTRO ACTO 1

SECRETÁRIO

E que dirás, que julgarás daquele


325 que em vez de se armar bem contra a fortuna,
causas anda buscando de a ter sempre
contrária a sua vida, e seu estado?

IFANTE

Quem não teme a fortuna, e não procura


de contr'ela se armar, tê-la-á imiga,
330 que aos que se lhe mais dão sempre persegue.

SECRETÁRIO

Julgaste-te a ti mesmo.

IFANTE

Em que, ou como?

SECRETÁRIO

Aquele claro sangue, aquele nome


heróico, tão alto, e em todo o mundo
honrado, e conhecido dos reis grandes,
335 de cujo tronco vens, não fica escuro
misturado com outro diferente
dos que foram nascidos e criados
pera humildes sofrerem teu real jugo,
obedecendo ao império, e aos acenos?

324: e julgarás 325: omite bem 327: contraira 330: c'os que ... presegue 331 : Inf A mi? E
como? 333: heróico e divino e em todo mundo 334: honrado e milagroso dos reis altos 336-9: em
vez destes 4 versos, Blib tem os 5 seguintes:
juntando-se com outro diferente
tanto dele como é o baixo e bastardo
de Inês Pires de Castro, que vem de outros
vassalos teus. nascidos e criados
pera só te servirem e obedescerem

393
CASTRO ACTO 1

340 Despois disto não vês o grã desprezo


em que serás aos teus? O grã perigo
em que pões este reino, c'o a soberba
de poucos, que ergues tanto, e tanto podem
com teu favor, que mostram já desprezo
345 a quem devem mostrar acatamento?
Que cousa mais destrui o rei, e reino,
que cousa cria mor desprezo, e ódio,
que vê-lo sojeitar-se a cousas baixas,
que vê-lo ser mandado de seus vícios?
350 Com que rosto, senhor, darás castigo
aos que assi cometerem o que cometes?
Como conservarás a obediência
santa devida aos pais, pois tu a negas
aos teus no que te pedem justamente?
355 Memória deixarás de mau exemplo
a teus filhos ; darás licença larga
a reis que isto souberem, ao mundo causa
d ' escurecer teu nome pera sempre.
Dum mal vê quantos males nascem logo;
360 todos sobre ti caem. Senhor, vê-te,
conhece-te melhor, entra em ti mesmo.
Verás então o por que te importunam, (f.211)
o que te pede el-rei, o que teu povo.

CORO

Conselheiro fiel, ousado, e forte,


365 feriste co'a razão a alma, que dura
os olhos em vão cerra.

IFANTE

Eu não sou, nem fui nunca qual me julgas,


ou qual me julgais todos. Outros olhos
diferentes dos vossos são os meus,
341 : e o grã perigo 342-3: ... com a privança / desses parentes seus, que tanto podem 347 : que
cousa ódio mor cria e mor desprezo 349: dos seus vícios 350: rostro 351 : aos que cometerem o que
cometestes 352: Com que conservarás 353: divida ... pois tu negas 357-8: .. . a outros causa/ de repren-
der 362: emportunam 364-6: em ve;: desta fala do Coro. BLib tem o diálogo seguinte:
Inf Falaste confiado na privança
em que te tenho posto. Sec. Confiado
antes em ti, que lá estás bem julgando
este zelo, este ardor de teu serviço.

394
CASTRO ACTO I

370 com que me vejo, e vejo que o que faço


não é tamanho mal como vós vedes.
Eu não faço erro algum : sigo o que o esprito
me diz, e me revela, a quem eu creio.
C'os príncipes tem Deus outros segredos,
375 que vós não alcançais, e como cegos
nos juízos errais de seus mistérios.
Olhai esta molher, vede o que há nela.
Dum sangue nos formou a natureza:
real é, de reis vem, de reis é dina.
380 Do mundo quisera eu ser só monarca,
monarca de mil mundos, pera todos
debaixo dos pés pôr de quem tanto amo.
Mui baixa me parece esta coroa
para aquela cabeça. Olha o que mando:
385 tu jamais me não fales em tal cousa.
Meus duros pais não curem de cansar-me,
porque nem posso nisso obedecer-lhes,
nem em o não fazer desobedeço.
Arranquem-me a vontade deste peito,
390 arranquem-me do peito est'alma minha,
então acabarão o que começam.
Não cuidem que me posso apartar donde
estou todo, onde vivo: que primeiro
a terra subirá onde os céus andam, (f. 21 lvº)
395 o mar abrasará os céus, e terra,
o fogo será frio, o sol escuro,
a lua dará dia, e todo mundo
andará ao contrário de sua ordem
que eu, ó Castro, te deixe, ou nisso cuide.
400 Dei-te alma, dei-te fé, guardá-la-ei firme .
Confio isto de ti, não mo descubras.

373: o que eu creio 380: eu só ser 381 : quisera ter mil mundos, pera todos 382: de que tanto
383: Mais baixa 384: em vez deste verso, BLib tem os 3 seguintes:
pera aquela cabeça. Deus me mostra
cá nos meus pensamentos cousas grandes
que despois verão. Olha o que mando
depois de 385, Blib tem o verso seguinte: não uses mais de minha paciência 387: porque não posso 389-
-99: os versos de Blib que correspondem a este trecho vêm da tirada do Infante que forma a Cena I
do Acto I. 389: Arranca-me 390: arranca-me 391 : então acabarás o que começas 392: Não cuides 395:
e a terra 397: a lya dará o dia, e todo o mundo 398: andará o contrairo 399: que eu te deixe, meu bem,

395
CASTRO ACTO 1

SECRETÁRIO

Ó senhor, que me matas! Deus quisera


que nunca merecera honra tamanha,
pois me põe em perigo de desonra.
405 Seguir tua vontade é destruir-te,
destruir este reino, e teu pai triste:
querer-te apartar dela é impossível.

IFANTE

Sigue minha razão, minha vontade.

SECRETÁRIO

Não te vejo razão, vejo vontade.

IFANTE

41 O Sigue a vontade, que forçar não podes.

SECRETÁRIO

Manda-me o que te devo que a não siga.

IFANTE

Queres mandar teu príncipe?

400: em vez deste verso Blib tem os 5 seguintes:


Ya causa farei só enquanto vivera:
o nome de molher terei secreto.
Chamem-lhe minha dama ou minha amiga,
mas com maior rezão minha senhora,
e tu por tal daqui a reconhece.
depois de 407 Blib tem os 5 versos seguintes, do Secretário:
Vejo de que fugir, não sei que siga.
Descubre-te, senhor, já que assi queres,
pubrica-a por senhora, que isso querem
teus pais e reino. Pode ser que entanto
o tempo abrandará toda aspereza.
408-19 em vez deste diálogo, Blib tem unicamente o verso seguinte: /nf. Não queiras de mim
mais. Secr. Enfim, senhor

396
CASTRO ACTO 1

SECRETÁRIO

Mas sirvo.

IFANTE

Obedece ao que quero.

SECRETÁRIO

Manda o justo.

IFANTE

Deos só me julga.

SECRETÁRIO

E a razão te obriga

IFANTE

415 Livre há-de ser um príncipe.

SECRETÁRIO

Cativo
É, quem de si se vence.

IFANTE

Inda importunas?

SECRETÁRIO

Se te não conselhar, meus são teus erros.

IFANTE

Eu te livrarei deles.

397
CASTRO ACTO 1

SECRETÁRIO

A Deus temo.
Tu no corpo só podes, ele n'alma.
420 Eu aconselhar-te posso, forçar não.
Testemunha me é Deus, e tu também .
Amor em ti só reina, amor te manda
peçonha doce d'alma, d'honra, e vida.
Mas porque te não movem tantos choros
425 da rainha tua mãe? Os tantos rogos
dei-rei teu pai? Os tão leais conselhos (j. 212 (PL 112))
de quantos a teus pés estão lançados
pedindo-te piedade deste reino,
que ameaçado está assi da fortuna?
430 Não te declararás por honra tua,
e prova pera o mundo, que t'infama
com nome de pecado pertinaz?
Eu choro de assi ver üa molher fraca
mais forte contra ti, que quantas forças
435 de Deus, do mundo estão por ti tirando.

IFANTE

Ó persiguição forte, ó ódio estranho!


Ó duros fados todos conjurados
c'os céus, e com as estrelas a perder-me!
Que me quereis? Que sem-razão vos faço,
440 homens d'entranhas feras, e danadas,
em ter igual amor a quem mo tem?
A quem é tão devido? Quem o mundo
todo merece ter, e inda é pequeno?
Homens, que procurais meu mal, e morte,
445 vede bem o que eu vejo: que alto império
daquele real rosto não será
honrado, e acrecentado? Aquele rosto,

420: omite eu 423 : BLib da alma, da honra 432: de de pecado 435: de todo o mundo 436:
perseguição 439: sem-rezão 441 : tamanho amor 442: divido, a quem o mundo 443: em vez deste verso,
BLib tem os 3 versos seguintes: a quem tu, Portugal, a quem vós todos/ que assi me perseguis deveis
a honra/ de antre vós parescer cousa tão bela 445-6: em vez destes 2 versos, BLib tem os 3 seguintes:
vede bem o que eu vejo, então vereis
a cegueira em que estais. Que império ou reino
daquele rostro belo não será

398
CASTRO ACTO 1

que tanto aborreceis, que mundos pede!


Que estados, que grandezas, que triunfos!
450 Em corpo tão fermoso, a fermosa alma
tão santa, tão honesta, casta, e pura,
que tacha podeis dar? Ou que virtudes,
que graças das mais raras, e excelentes
não achareis em tudo quanto mostra?
455 Pode ser mais cru ódio, e mais injusto?
Pode ser mor inveja, e mais sem causa?

CORO

Ó quão perigoso é qualquer princípio


de mal, que um só descuido pode tanto, (f 212v0 )
que traz um ânimo alto a tal baixeza!

IFANTE

460 Para onde fugirei, por que me deixem?

SECRETÁRIO

De ti hás-de fugir, por teu remédio.

IFANTE

Não me valerá já ver que não posso?

SECRETÁRIO

.Tu mesmo te poseste em tal fraqueza.

IFANTE

Não quero, nem desejo arrepender-me.

448: que tanto aborreceis, não é divino 449: Blib omite 450: a tão fermosa alma 452: tachas
455-6: Em Blih estes versos aparecem. em ordem invertida, 11a tirada do lfa111e da Cena I do Acro
/. 455: mais cru o ódio e menos justo 456: mais enveja 457-9: Blib dá estes 3 versos ao Secrerârio
458: num só descuido 460: Por onde 462: o que não posso 463: puseste

399
CASTRO ACTO I

SECRETÁRIO

465 Acrecentas o erro co'a vontade.

IFANTE

Se é erro, como dizes, não houve outros?

SECRETÁRIO

Houve, mas todavia foram erros.

IFANTE

Desculpem-me outros reis, e emperadores.

SECRETÁRIO

Como o farão, pois a si não poderam?

IFANTE

470 Não me persigas mais.

SECRETÁRIO

O mal persigo.

IFANTE

Um príncipe dum reino tão cativo


há-de ser, que não faça o que costuma
qualquer do povo seu?

SECRETÁRIO

Um príncipe antes
há-de ter seu esprito tão alçado
475 da terra, que dela erga o pensamento
ao baixo povo seu, pera que o siga.
O esprito há-de ser puro: um ouro limpo

469: puderam 475: de terra, que dela erga os pensamentos 477 : PL Esprito BLib O esprito

400
CASTRO ACTO 1

sem fezes, e sem liga, exemplo claro


de fortaleza, mansidão, e justiça.

IFANTE

480 Vai-te diante mim, fuge minha ira.

SECRETÁRIO

Quem governara üa vontade livre,


que outro senhor não tem senão a si mesma?

[CORO]

Coro 1

Quando Amor nasceu,


nasceu ao mundo vida,
485 claros raios ao sol, luz às estrelas.
O céu resplandeceu,
e de sua luz vencida, (f. 213)
a escuridão mostrou as cousas belas.
Aquela, que subida
490 está na terceira esfera,
do bravo mar nascida,
amor ao mundo dá, doce amor gera.

Por amor s' orna a terra


d'água, e de verdura,
495 às árvores dá folhas, cor às flores.
Em doce paz a guerra,
a dureza em brandura,
e mil ódios converte em mil amores.
Quantas vidas a dura
500 morte desfaz, renova:
a fermosa pintura
do mundo, amor a tem inteira, e nova.

482 : não te senão Com a excepção de 5 versos, as odes corais de BLib seio completamente
diferentes das de PL. Ver apêndice 2.

401
CASTRO ACTO 1

Ninguém tema seus fogos ,


e chamas furiosas .
505 Amor é tudo, amor suave, e brando,
sojeito a brandos rogos,
as águas amorosas
dos olhos com branduras está alimpando.
Douradas, e fermosas
510 setas n' aljaba soam,
à vista perigosas,
mas amor levam, dos amores voam .

Amor em doces cantos, (f. 213v 0 )


em doces liras soe,
515 torne seu brando nome est ' ar sereno.
Fujam mágoas, e prantos,
o ledo prazer voe,
e claro o rio faça, o vale ameno.
No terceiro céu toe
520 d'amor a doce lira,
e de lá te coroe,
Castro, d' ouro o grã Deos que amor inspira.

Coro 2

Antes cego tirano


dos poetas fingido,
525 cruel desejo, e engano:
deus de vã gente, de ócio só nascido.
Geral estrago, e dano
da gloriosa fama,
com sua seta, e chama
530 tirando a toda parte,
ardendo fica Apolo, ardendo Marte.

Vai pelos ares voando,


arde cá toda a terra,
e d'aljaba soando
535 o tiro empece mais, quanto o mai s erra.
Tem por glória ir juntando
estados diferentes:
os mais convenientes
a amor e iguais aparta. (f. 214)
540 Nunca de sangue e lágrimas se farta .

402
CASTRO ACTO I

No tenro e casto peito


da moça vergonhosa,
tempo esperando, e jeito,
entra com força branda, ou furiosa .
545 O fogo já desfeito
da cinza outra vez cria;
no frio sangue, e fria
neve outra vez se acende.
Dos olhos no meio d'alma o raio prende.

550 Dali sua peçonha


vai por todas as veias.
A alma dormente sonha
em seu engano, e tece doces teias.
Foge a casta vergonha.
555 Foge a constância forte.
Entra tristeza, e morte
debaixo de brandura,
que a razão mata, o coração endura.

Quem a ferrada maça


560 ao grande Alcides toma?
E quer que assi aos pés jaça
da moça, feito moça, quem !iões doma?
Quem da espantosa caça
os despojos famosos
565 lhe converte em mimosos (f. 214v0 )
trajos de dama, e o uso
das duras mãos lhe põe no brando fuso?

Júpiter transformado
em tão várias figuras,
570 deixando desprezado
o céu, quão baixo o mostram mil pinturas !
Poderosas branduras
que assi as almas convertem
no que amam! Assi sovertem
575 por manha a grande alteza
do esprito, que s' enterra em vil fraqueza!

De que outro fogo ardia


dos Teucros a alta glóri a?
De que deixou história

403
CASTRO ACTO I

580 tão triste ao mundo Espanha a forte, e pia?


Amor cego vencia.
Amor cruel matava.
Um moço triunfava
de tanto sangue, e vidas,
585 por um vão apetite mal vendidas.

Ditoso, ó quão ditoso,


quem o seu peito armou
contra o raio furioso
ou, em alçando as chamas, o apagou!
590 Poucos, que Deus amou,
dos céus tanto alcançaram, (f.215)
e mil , e mil choraram,
do vão contentamento
ao cego ifante, seu rependimento.

404
ACTO II

[Cena 1]

El-rei D. Afonso IV
Peró Coelho Diogo Lopes Pacheco: conselheiros

REI

595 Ó cetro rico, a quem te não conhece,


como és fennoso, e belo! E quem soubesse
bem quão diferente és do que prometes,
neste chão que te achasse, quereria
pisar-te antes com os pés, que levantar-te.
600 Não louvo os que se louvam por impérios
a ferro, sangue, e fogo destruírem,
o seu próprio estendendo: mas aqueles
(ó grandeza espantosa, e ânimo livre!)
que tendo-os muito grandes, os deixaram.
605 Mor alteza, e mor ânimo é as grandezas
desprezar, que aceitar: e mais seguro
a si cada um reger, que o mundo todo.
O resplandor deste ouro nos engana,
e é terra enfim, e terra a mais pesada.
610 Dua alta fortaleza estamos sempre
postos por atalaias à fortuna,
por escudos do povo, oferecidos
a receber seus golpes. Não fazê-lo
é usar mal do cetro, e bem fazê-lo (f. 215v 0 )
615 é não ter vida mais segura, e certa
que quanto estes perigos nos prometem.

Blib 601: a força de sangue fogo 603-4: Blib inverte a ordem destes versos 603: com
grandeza 607: omite: 608: o resplandor destoutro

405
CASTRO ACTO li

COELHO

Gloriosos perigos, e trabalhos,


ó bemaventurados, pois te sobem
da coroa da terra à que nos céus
620 mais rica, mais gloriosa te darão.

PACHECO

Trabalho mais que estado tem os reis,


os bons reis, que não amam assi seus vícios,
como as obrigações de se mostrarem
contra si mais isentos, e mais fortes
625 que o povo baixo, que anda só após eles.
E tal rei como tu, senhor, é rei .
Não te pese de o ser, que virá tempo
que te hajam mais enveja a esses trabalhos,
sofridos com paciência, e bem regidos,
630 que a vitórias famosas com grã perda
de homens, e de riquezas mal ganhadas.
Isto faz os reis grandes, dinos sempre
de memória imortal: sofrer trabalhos
polo público bem, quebrar a força
635 do sangue, e próprio amor, fazer-se exemplo
de todo bem ao povo, atalhar prestes
o mal em seu começo, antes que empeça.
Despois nem forças bastam, nem conselho.
Atalhando a este mal, que t'assi agora
640 tão trabalhado traz, ficarás livre,
rindo-te da fortuna e de seus medos.

REI

Vence o mal ao remédio. Vejo o lfante


de todo contra mim determinado,
duro a meus rogos, mais duro aos mandados.
-------
618: mui bemaventurados 619: PL e BLib a 620: e gloriosa 622: omite; 623 : que outras obri-
gações 624: contra eles 626: senhor e rei 628: enveja estes 630: as vitórias 631 : e riquezas 632-8:
omite es1es 7 versos 639: omite te 641: dos seus 642 : em vez deste verso, tem os 3 seguintes:
De quem menos esperas teus agravos
os sentes mais . Eu não nos esperava
do ifante meu filho, que já está
644: omite

406
CASTRO ACTO 11

645 Que estrela foi aquela tão escura,


que mau signo, ou que fado, ou que planeta? (f. 216 (PL 162))

PACHECO

Enquanto há ocasião, dura o pecado:


tirando-lha, ei-lo livre.

REI

Forte cousa
endurecer-se assi aquela vontade!

PACHECO

650 Endureça-se a tua com justiça.

REI

Duro remédio! Quanto melhor fora


amor, e obediência. Meus pecados
quão gravemente sobre mim caíram!

COELHO

Senhor, pera que é mais? Moura esta dama.

REI

655 Que moura todavia?

PACHECO

Senhor, moura
por salvação do povo.

REI

Não é crueza
matar quem não tem culpa?

407
CASTRO ACTO li

COELHO

Muitos podes
mandar matar sem culpa, mas com causa.

REI

Com que cor, com que causa esta matamos?

PACHECO

660 Não basta que em sua morte só se atalham


os males que sua vida nos promete?

REI

Ela que culpa tem?

PACHECO

Da ocasião.

REI

Ó que ela não a dá, o lfante a toma.


Que lei há que a condene, ou que justiça?

COELHO

665 O bem comum, senhor, tem tais larguezas


com que justifica obras duvidosas.

REI

Assi que assentais nisto?

COELHO

Nisto: moura.

663: que não na 665: omite o 666: obras sem desculpa

408
CASTRO ACTO 11

PACHECO

Moura.

REI

Üa inocente?

COELHO

Que nos mata.

REI

Não haverá outro meio?

PACHECO

Não o temos.

REI

670 Metê-la-ei num mosteiro.

COELHO

Ei-lo queimado.

REI

Mandá-la-ei deste reino.

COELHO

O amor voa.
Este fogo, senhor, não morre logo.
Quanto lhe mais resistes, mais s'acende.
Contra amor que lugar darás seguro?

669: Não o tomes 670-1: 671 vem antes de 670 673: mais lhe

409
CASTRO ACTO 11

REI

675 Matá-la é cruel meio, e riguroso.

PACHECO

Não vês. não ouves quantas vezes morrem


muitos, que o não merecem? Deus o quer
polo bem que se segue .

REI

Deus o faça (J. 216v0 )


cuja vontade é lei, e a minha não.

PACHECO

680 Essa licença tem também os reis,


que em seu lugar estão.

REI

Antes não tem


licença pera mais, que quanto pede
a razão, e justiça: a mais licença
é bárbara crueza de infiéis.

PACHECO

685 Pois que dirás daqueles que a seus próprios


filhos, e a seu amor não perdoaram,
polo exemplo comum, e bem do povo?

REI

Aos que o bem fizeram, hei inveja.


Os outros nem os louvo, nem os sigo.

COELHO

690 Inda que houvesse excessos, todavia


mais males atalharam dos que deram.

678: pelo 679: omite 682: quanto pod.! 683: a rezão, a justiça 685 : aqueles que os seus
686: e o seu 687: pelo 688 : omite o 689: não os louvo 691: do que deram

410
CASTRO ACTO 11

REI

Não se há-de fazer mal por quantos bens


se possam daí seguir.

COELHO

Nem bem nenhum


de que se sigam males.

REI

Mal parece
695 matar üa inocente.

PACHECO

Não é mal,
que a causa o justifica.

REI

Antes Deus quer


que se perdoe um mau, que um bom padeça.

COELHO

O bem geral quer Deus que mais s'estime


que o bem particular. Nas circunstâncias
700 se salvam, ou se perdem as obras todas.

REI

Enganam-se os juízos muitas vezes.

COELHO

Os dos reis bem fundados Deus inspira.

695-6: Não no é / que causa justifica. Rei Antes quer Deus 700: se fundam mal ou bem

411
CASTRO ACTO li

REI

Hei medo de deixar nome de injusto.

COELHO

De justo o deixarás, pois te conselhas


705 c' os juízos dos teus leais prudentes.

PACHECO

Vês, poderoso rei, vês c' os teus olhos


a peçonha cruel que vai lavrando
gerada deste amor cego; vês quanto
a soberba, e desprezo destes homens
710 contra ti, e contra todos vai crescendo. (f.217)
S' em tua vida nos tememos tanto,
que faremos despois de tua morte?
Por dar saúde ao corpo, qualquer membro
que apodrece se corta, e pelo são,
715 por que o são não corrompa. Este teu corpo,
de que tu és cabeça, está em perigo
por esta molher só: corta-lh' a vida,
atalha esta peçonha, tê-lo-ás salvo.
Médico, senhor, és desta república.
720 O poder que tem o médico num corpo,
tens tu sobre nós todos: usa dele.
Se te parece em parte isto crueza,
não é crueza aquela, mas justiça,
quando de cruel ânimo não nasce.
725 Tua tenção não peca, em si se salva.
A aspereza dest' obra é medicina
com que s'atalham as mortes, que adiante
muitos é que por força te mereçam.
A clemência por certo é grã virtude,

716: do que tu és a cabeça 720: ... de que ela usa em todo um corpo 727: se atalha ... ao diante
depois de 728 intercala os 4 versos seguimes:
Pois, por salvar um reino que em perigo
tem esta só molher. não é justiça
que moura, pola paz. sossego e bem
de todos e castigo de teu filho?

412
CASTRO ACTO II

730 e dina mais dos reis que outras virtudes,


polo perigo grande que há na ira
em quem tão livremente assi a executa.
Mas com esta o rigor é necessário,
por não vir em desprezo tal virtude.
735 Este é o que se chamou severidade,
de que tantos exemplos nos deixaram
os famosos romãos em paz, e guerra.
Estas colunas ambas são tão fortes:
que bemaventurado este teu reino,
740 que nelas por ti só está tão fundado!
De tal modo, senhor, hás-de usar delas,
que ua vá sempre d'outra acompanhada. (f. 217v 0 )
Exemplos tens mostrado de clemência.
Mostra agora, que é bem, severidade.

REI

745 A parte que me cabe deste feito


eu a ponho em vós toda, como aqueles
que sem ódio, e temor sois obrigados
aquilo conselhar-me que é só justo,
mais serviço de Deus, e bem do povo.
750 Vós outros sois meus olhos, que eu não vejo.
Vós sois minhas orelhas, que eu não ouço.
Minha tenção me leve, ela me salve.
O engano se é vosso, em vós só caia.

PACHECO

Sobre nós descarrega esse teu peso.

COELHO

755 Eu tomo minha parte, ou tomo-o todo.

731 : pelo 732 omite assi 736: de quantos 737: romanos 740: omite tão 742: Blib da outra 746:
PL ponha Blib ponho 752: me leva ela me me salve 755: PL e Blib tomo. Blib atribui este verso a
Pacheco. Depois de 755 intercala 6 versos de Coelho:
Sobre quem te aconselha o que não deve
caia dos céus um furioso raio,
a terra trema e se abra e assi o engulo,
que em corpo e alma ao mais profundo centro
o leve e ponha entre as escuras sombras,
sombras cruéis, que vinguem teu engano.

413
CASTRO ACTO II

Almas, e honras temos: estas ambas


a ti, senhor, se devem, a ti as damos.
Estas sós te conselham, que bem vês
quão grande mal é nosso o que fazemos .
760 Aventuramos vidas, e fazendas,
que em ódio de teu filho ficam sempre,
sob cujos pés ficamos, e em cuja ira.
Mas percamo-nos nós, percamos vidas,
soframos cruéis mortes, nossos filhos
765 fiquem órfãos de nós, e deserdados,
a fúria de teu filho nos persiga,
antes que esse tal medo em nós mais possa,
que o que a virtude manda, e te devemos.

REI

1-vos aparelhar, que em vós me salvo.

[Cena 2)

REI

770 Senhor, que estás nos céus, e vês as almas,


que cuidam, que propõem, que determinam:
alumia minh' alma, não se cegue
no perigo em que está. Não sei que siga.
Entre medo, e conselho fico agora: (f. 218)
775 matar injustamente é grã crueza,
socorrer a mal público é piedade.
Düa parte receio, mas d'outra ouso.
Ó filho meu, que queres destruir-me!
Há dó desta velhice tão cansada,
780 muda essa pertinácia em bom conselho.
Não dês ocasião pera que eu fique
julgado mal na terra, e condenado
ant' aquele grã juiz que está nos céus.
-------
756: e estas amqas 757: e tas damos 758: aconselham 759: quamanho mal 763: percamos nos
depois de 768 intercala os 3 versos seguintes:
Teu filho, pois, o sabe. Não lhe demos
tempo de vir a crer o de que zomba,
sinal de grã dureza e pertinácia.
antes de 770: PL omite Rei BLib ElR 773: no aperto 776: mal grande 777 BLib da outra 783:
omite grã

414
CASTRO ACTO II

Ó vida felicíssima a que vive


785 o pobre lavrador só no seu campo,
seguro da fortuna, e descansado,
livre destes desastres que cá reinam!
Ninguém menos é rei, que quem tem reino.
Ah, que não é isto estado, é cativeiro,
790 de muitos desejado, mas mal crido,
fia servidão pomposa, um grã trabalho
escondido sob nome de descanso.
Aquele é rei somente que assi vive
(inda que cá seu nome nunca s' ouça)
795 que de medo, e desejo, e d'esperança
livre passa seus dias. Ó bons dias,
com que eu todos meus anos tão cansados
trocara alegremente! Temo os homens,
com outros dissimulo; outros não posso
800 castigar, ou não ouso. Um rei não ousa.
Também teme seu povo, também sofre.
Também suspira, e geme, e dissimula.
Não sou rei, sou cativo: e tão cativo
como quem nunca tem vontade livre.
805 Salvo-me no conselho dos que creio
que me serão leais. Isto me salve, (f. 2 l 8v0 )
Senhor, contigo, ou tu me mostra cedo
remédio mais seguro, com que viva
conforme a este alto estado que me deste,
8IO e me livra algum tempo, antes que moura,
de tanta obrigação, pera que possa
conhecer-me melhor, e a ti voar,
com mais ligeiras asas do que pode
üa alma carregada de tal peso.

CORO
[Coro 1]

815 Quanto mais livre, quanto mais seguro


é aquele estado, que de si contente
não se levanta mais que quanto pode
fugir misérias!

791 : é grã trabalho 792: com nome 795 : e esperança 800: ou não ouso punir. Não ousa um
rei 802: cousas que algum dos seus não sofreria
antes de 815: Coro. Sáficos

415
CASTRO ACTO li

Tristes pobrezas ninguém as deseje,


820 cegas riquezas ninguém as procure.
Num meio honesto está a felicidade
dos céus e terra.

Reis poderosos, príncipes, monarcas,


sobre nós pondes vossos pés, pisai-nos.
825 Mas sobre vós está sempre a fortuna,
nós livres dela.

Nos altos muros soam mais os ventos,


as mais crescidas árvores derribam,
as mais inchadas velas no mar rompem,
830 caem mores torres.

Pompas, e ventos, títulos inchados


não dão descanso, nem mais doce sono. (f. 219)
Antes mais cansam, antes em mais medo
põe, e perigo.

835 Como se volvem no grã mar as ondas,


assi se volvem estes peitos cheios,
e nunca fartos, nunca satisfeitos,
nunca seguros.

S' eu me podesse à minha vontade


840 formar meus fados, mais não quereria
que meãmente segurar a vida
c' o necessário.

Quem mais deseja, muitas vezes s'acha


triste, enganado: poucas vezes dorme,
845 temendo o fogo, ventos, ares, sombras,
temendo os homens.

Rei poderoso, tu porque desejas


nunca ter reino? Porque essa coroa
chamas pesada? Polo peso d'alma
850 que te carrega.

820: pegas 824: pisais-nos 826: livre 827: altos montes 828: árvores caem 830: as mores tor-
res 832: mais descanso 833: em mor medo 835: bolvem 837: omite e 839: me podesse só 840: não
queria 847: Rei Dom Afonso 848: ter sceptro 849: pelo peso dalma;

416
CASTRO ACTO li

[Coro 2]

Quão poucas vezes vimos


tardar a grã justiça,
que não decesse sobre
aqueles livres filhos,
855 que contra a natural
obrigação, e lei ,
negaram obediência
àqueles que os geraram!

Pecado torpe, e feio


860 ante Deus, ant'os homens,
mais pera hircanos tigres,
mais pera !iões bravos,
que razão não conhecem,
que pera quem só dela
865 e par' ela é formado.

Aquele amor tão grande


dos pais, com que te criam
c' o sangue do seu peito,
que fereza há tamanha,
870 que tal brutalidade,
que contr'ele te mova?

Rei Dom Afonso, rei,


lembra-te de ti mesmo.
Aqueles erros feios,
875 com que tu perseguiste
teu pai tão cruamente,
lhe dão de ti vingança,
por outro tu, teu filho,
que te desobedece.

880 Viram-se as reais Quinas,


polo mesmo Deus dadas
àquele rei primeiro,
de que herdaste esse nome
com esse cetro rico, (f. 220)

antes de 851 Coro ii. Mea rithma 856: a el-rei 863 : rezão 865 : pera ela 878: per outro
881 : pelo

417
CASTRO ACTO li

885 levantadas por ti ,


não contra cinco reis,
com cujo sangue as houve,
mas contra el-rei teu pai,
mas contra teus vassalos.

890 Viram-se as reais Quinas,


cruéis contra si mesmas,
em hravo fogo acesas
contr'üa parte, e outra,
- de que tão cruelmente
895 corria um mesmo sangue!

Quantas vezes a santa


rainha tua mãe
se meteu nesse fogo,
por te salvar a vida!
900 Por ela era apagado,
por ti tomava arder.
Agora ardes neste outro.
Justiça de Deus grande!

894: cruamente 895: cria um mesmo

418
ACTO III

[Cena 1)

Castro Ama [ Filhos de CastroJ

CASTRO

Nunca mais tarde pera mim que agora


905 amanheceu. Ó sol claro, e fermoso,
como alegras os olhos, que esta noite
cuidaram não te ver! Ó noite triste!
Ó noite escura, quão comprida foste! (f. 220v0 )
Como cansaste est'alma em sombras vãs!
91 O Em medos me trouxeste tais, que cria
que ali se me acabava o meu amor,
ali a saudade da minh'alma,
que me ficava cá. E vós, meus filhos,
meus filhos tão fermosos, em que eu vejo
915 aquele rosto, e olhos do pai vosso,
de mim ficáveis cá desemparados.
Ó sonho triste que assi me assombraste!
Tremo ind'agora, tremo. Deus afaste
de nós tão triste agouro, Deus o mude
920 em mais ditoso fado, em melhor dia.
Crescereis vós primeiro, filhos meus,
que chorais de me ver estar-vos chorando,
meus filhos tão pequenos! Ai, meus filhos,
quem em vida vos ama, e teme tanto,
925 na morte que fará? Mas vivireis,
crescereis vós primeiro, que veja eu
que pisais este campo, em que nascestes,

BLib Antes de 904 Dona Inês de Castro. No princípio de todas as outras intervenções desta
personagem D. Inês 909: com sobras vãs 910: em medo me deixaste, tal que cria 913: filhos meus
914: em quem 915: rostro 920: ditosos fados e melhor dita 921: meus filhos 923: piquenos, ai meus
filhinhos 926-7: e verei eu/ pisardes estes campos

419
CASTRO ACTO Ili

em fermosos ginetes arraiados,


quais vosso pai vos guarda, com que o rio
930 passeis a nado a ver esta mãe vossa,
com que canseis as feras , e os imigos
vos temam de tão longe, que não ousem
nomear-vos somente. Então me venham
buscar meus fados, venha aquele dia
935 que me estájá esperando: em vossos olhos
ficarei eu, meus filhos, vossa vida
tomarei eu por vida em minha morte.

[Cena 2)

Ama Castro [Filhos de Castro]

AMA

Que choros, e que gritos, senhora, eram


os que t'ouvi esta noite?

CASTRO

Ó ama minha,
940 vi a morte esta noite, crua e fera. (f. 221)

AMA

Entre sonhos t'ouvi chorar tão alto,


que de medo, e d'espanto fiquei fria.

CASTRO

lnd'agora minh'alma s'entristece,


assombrada dos medos, em que estive.
945 Cansada de cuidar na saudade,
que sempre leva, e deixa aqui o Ifante,
adormeci tão triste, que a tristeza

935: Blib está já esperando, em vós os olhos PL está esperando 936: fincarei 937: omite eu
941 : Entre sonhos, senhora, te ouvi chorar 943: a minha 946: deixar-me aqui

420
CASTRO ACTO Ili

me fez tomar o sono mais pesado


do que nunca me lembra que tivesse.
950 Então sonhei que estando eu só num bosque
escuro, e triste. di1a sombra negra
cuberto todo, ouvia ao longe uns brados
de feras espantosas, cujo medo
m' arrepiava toda, e me impidia
955 a língua e os pés: eu co'a alma quasi morta,
sem me mover, meus filhos abraçava.
Nisto um bravo !ião a mim se vinha
co' a catadura fera, e logo manso
para trás se tornava: mas, em s' indo,
960 não sei donde saíam uns bravos lobos,
que remetendo a mim com suas unhas
os peitos me rasgavam. Então alçava
vozes aos céus, chamava meu senhor.
Ouvia-me, e tardava; e eu morria
965 com tanta saudade, que ind'agora
parece que a cá tenho, e est'alma triste
se m'arrancava tão forçadamente,
como quem ante tempo assi deixava
seu lugar, e deixava pera sempre
970 (que este na minha morte era o mor mal)
a doce vista de quem me ama tanto.

AMA

Ai, e como estaria essa tu ' alma (f. 221 vº)


tão morta! Deus te guarde. Mas às vezes
o pensamento triste traz visões

948: o sonos 950-64: em vez destes 15 versos, tem os 9 seguintes:


Então sonhei que, estando eu nesta sala,
assi como agora estou, co estes meu filhos,
entravam uns liões tão furiosos
que, remetendo a mim com suas unhas,
os peitos me rasgavam. E eu, em vendo-os,
começava a gritar por meu senhor,
escondia meus filhos e a mim não,
que não podia, nem me davam tempo.
Então me parecia que morria
955: PL co' alma 966: a tenho cá 969- 71 : e deixava já de ver/ que este era o meu tormento e
minha mágoa/ ao ifante Dom Pedro meu senhor 974: triste triste

421
CASTRO ACTO III

975 escuras, e medonhas: do cuidado


com que, senhora, andaste, e adormeceste,
se te representaram esses medos.

CASTRO

Choro daquela dor, daquela mágoa


que ao meu lfante dera a minha morte.

AMA

980 Pera que choras sonhos?

CASTRO

Não sei que hei.


Não sei que peso é este que cá tenho
assi no coração, que me carrega.
Soía ser que quando só ficava,
como agora me vejo, em meu senhor
985 eram todos meus sonhos tão alegres,
que desejava a noite, pera nela
me lograr dos enganos que com ele
se me representavam. Ali o via,
ali cria que o tinha, e que falava
990 comigo, e eu com ele: e muitas vezes
muitas palavras, que ele em se partindo
me dizia chorando, ali chorando
mas tornava a dizer. E eu o detinha
apertado em meus braços, senão quando
995 acordava abraçada só comigo.
Aqueles meus enganos me sostinham
das noites pera os dias. E esta noite
perdia estes enganos com a vida.

AMA

Outro dia verás que te amanheça


1000 mais claro, e mais ditoso, em que a coroa,
que t' espera, terás sobr' esses teus

977: omite te 979: que sintira o meu bem com minha morte 984: como me agora 992: dezia
995: abraçado

422
CASTRO ACTO III

cabelos d' ouro. Alegra-te entretanto:


deixa vãs sombras, deixa tristes medos.

CASTRO

Não sei que est' alma vê, que tanto teme. (f. 222)

AMA

1005 A imaginação é perigosa.

CASTRO

Que fará quem não pode fugir dela?

AMA

Cuidar no bem lança a tristeza fora.

CASTRO

Faze-me o bem seguro, que eu não vejo.

AMA

Porque temes o mal de que estás livre?

CASTRO

1010 Porque temo perder o bem que espero.

1003: deixa essas sombras vãs, deixa esses medos depois deste verso, intercala os 10 seguintes:
falsos com que te assombra e engana amor.
D. Inês Ó senhor, meu senhor, quem te ora vira!
Quem vira esses teus olhos, porque os meus
agora não choraram como choram!
Não entendo estas lágrimas: parece
que alma se me derrete e se me arranca
como em sinal de grande apartamento.
Ama Ai, não te agoures mal, que melhor fado
o teu será. Senhora, porque choras?
Senhora, filha minha, porque choras?
1006: não pode estar sem ela depois de 1007, Castro intercala: Tira-me tu as causas de ser
triste 1008: que eu receio

423
CASTRO ACTO III

AMA

Temer de longe o mal é mal dobrado.

CASTRO

Como estará a alma leda em culpa sua?


Julgam-me mal os homens, e a Deus temo.

antes de IO 11, Castro intercala as 5 versos seguintes:


Qualquer sombra me assombra, qualquer vento
me faz tremer. Quando olho aquele estado
tão alto a que subi, caem-me os olhos,
desmaia o coração da grande altura
em que minha baixeza vejo posta.
1O11: em vez deste verso, Ama tem os 7 seguintes:
Sube, senhora, sube! Deus eleva.
Porque temes os homens? Que fortuna,
que fados ou que estrelas, tanto cridas
da cega antiguedade, mudar podem
aquela providência certa e firme
de quem assi levanta e levará
aquele grande estado que te espera.
1012: PL estará alma 1012-13: BLib em vez destes 2 versos, há uma fala de Inês seguida por
uma réplica da Ama (ao todo, 19 versos):
Segura, firme e forte e certo creio
que é tudo o que o grã rei dos céus e terra
ordena, faz, dispõe. Desses enganos,
dessas idolatrias vãs e cegas,
de Deus roubadas tão forçosamente,
dadas a criaturas suas, zombo.
Mas isto mais receio, em mor perigo
me põe, que me conheço: vejo este erro
em que, ainda que forçada estou, quisera
a vida antes perder, que tal escândalo
fazer a todo reino, em cujas bocas
meu nome é praguejado. E lá de cima,
donde se ouve e vê tudo, estou temendo
aquela grã justiça, que não deça
sobre mim, que sou causa deste dano.
Ama. Temer é obedecer aquele eterno
verdadeiro juiz, antes do dia
daquela sua universal justiça,
é seguro, senhora, e necessário.

424
CASTRO ACTO III

AMA

Dos secretos, senhora, que parecem


1015 ao mundo (que os não vê, e do de fora
julga somente) feios, maus, e torpes,
basta a só consciência, basta tanto,
que com esta há-de ter Deus toda a conta.
Esta, senhora, é boa prova d'alma,
1020 pois esta está segura no teu peito.
Se pecado houve já, já está purgado
com esse ânimo finne, com que já ambos
estais confederados santamente.
O tempo Deus trará com mor seguro
1025 do que vos este dá, pera mais claro
o mundo conhecer quão grã perigo
é as almas julgar, que só Deus vê.
Entretanto contente espera, e vive.
Vive, pera que viva quem tanto ama
1030 esta tua vida, em que toda está a sua.

1014: Mas também dos secretos que parecem 1015: os homens que os não vem 1016: julgam
1017: basta só a 1019: esta é, senhora, a prova da alma 1025-7: em vez destes 3 versos, tem os 19
seguintes:
do que vos este dá, pera então verem
os que tão mal vos julgam como há causa
de vos melhor julgarem do que cuidam.
D. Inês Se os ânimos desculpam obras, posso
as minhas desculpar c'o meu, mas temo
que este ânimo não baste. Porém, baste,
ó Senhor piadoso, esta fraqueza
desculpar a si mesma; baste quanto
trabalhei por livrar-me destes ferros
tão fones em que estou, conformada
a vontade com aquela que cativa
assi me tem, em o mais santo e puro
do matrimónio, com que me segura.
Ou havendo entre nós apanamento,
dos maus erros passados pera sempre
isto vejam meus olhos, Senhor: veja
esta alma livre.
Ama Livre a varás cedo
se esperas, se confias, se te queres
guardar pera aquela hora tão ditosa
1028: Entretanto, semhora, vive, vive 1030: em quem toda a sua está

425
CASTRO ACTO Ili

CASTRO

Nunca o tanto meus olhos desejaram.


Nunca meu pensamento o imaginou
de mim tão esquecido. Deus o guarde.
Deus te guarde, senhor, que me parece
1035 que algum mal te detém, algum mal grande.
Arranca-se a minh' alma de mim mesma,
parece que voar quer onde estás,
parece que lhe foges, que me deixas.
Ah, pensamentos tristes, pensamentos
1040 escuros, carregados! 1-vos, i-vos.

AMA

Ah, não te agoures mal, que melhor fado


o teu será, senhora! Quem tristeza
de sua vontade chama, mal a pode
lançar de si, que às vezes n'alegria
1045 entra tão furiosa, que a destrui.
Olha pera estes teus doces penhores,
tão seguros, e certos desse amor
de que foram gerados. Em seus olhos
alegra ora esses teus, que assi desfazes
1050 com essas cruéis lágrimas: não chores.
Danas este teu rosto tão fermoso,
filha, com tantas lágrimas: não chores,
não ofendas teus olhos. Ah, não vejam
neles sinais tamanhos de tristeza
1055 aqueles, cuja glória é ver-te alegre.
Olha as águas do rio como correm
pera onde está tão saudosamente.
De lá te vê, senhora: elas lhe lembram
este aposento seu, ou da su' alma.
1060 Estes campos fermosos, que parecem
debaixo deste céu dourado, e belo,
quem os verá que logo não se alegre?
Ouve a música doce, com que sempre
te vem a receber os passarinhos

1032: o meu 1036: omite a 1039: Ai, pensamentos 1041-3: em vez destes 3 versos, tem o
verso seguinte: Quem a tristeza chama, mal a pode 1046: estes anjos, teus penhores 1049: alegra
estes teus olhos que desfazes 1051: rostro 1052: ligrymas 1053: não agraves teus olhos. Ai, não
vejam 1062: PL alegte

426
CASTRO ACTO III

1065 por cima destas árvores fermosas .


Cuida, senhora, de lograres isto
em algum tempo com dobrado gosto,
segura da fortuna, e de seus medos, (f. 223)
senhora do teu bem, e desta terra.

[Cena 3]

Coro Castro Ama [ Filhos de Castro J

CORO

1070 Tristes novas, cruéis,


novas mortais te trago, Dona Inês.
Ah, coitada de ti, ah, triste, triste,
que não mereces tu a cruel morte
que assim te vem buscar!

AMA

Que dizes? Fala.

CORO

1075 Não posso, choro.

CASTRO

De que choras?

1069 Blib de teu bem antes de 1070 Inês tem os 7 versos seguintes:
Ai, ama minha, se te não tivera
mal pudera sofrer meus acidentes.
Bem vejo que são sombras, que são ventos
que amor me representa.
Mas agora parece que entristeço
mais do que costumava; agora mais
temo, e não sei que temo.
1072: Coitadinha de ti, ó coitadinha 1073: a crua morte

427
CASTRO ACTO III

CORO

Vejo
esse rosto, esses olhos, essa ...

CASTRO

Triste
de mim, triste! Que mal, que mal tamanho
é esse que me trazes?

CORO

É tua morte.

CASTRO

É morto o meu senhor, o meu Infante?

CORO

1080 Ambos morrereis cedo.

CASTRO

Ó novas tristes!
Matam-me o meu amor? Porque mo matam?

CORO

Porque te matarão: por ti só vive,


por ti morrerá logo.

AMA

Deus não queira


tal mal, tal desventura.

1078: Coro Mal de morte depois de 1078, BLib intercala o verso seguinte: D. Inês Mal
grande! Coro Todo teu sobre te vindo 1079: ifante 1081: Ama Como, por que razão? D. Inês Porque
mo matam?

428
CASTRO ACTO Ili

CORO

Vem mui perto.


1085 Não te tardará muito, põe-te em salvo.
Fuge, coitada, fuge ; que já soam
as duras ferraduras, que te trazem
correndo a morte triste. Gente armada
correndo vem, senhora, em busca tua.
1090 El-rei te vem buscar determinado
de em ti vingar sua fúria . Vê se podes
salvar também teus filhos , não lh'empeça
parte de teus maus fados.

CASTRO

Ó coitada,
só, triste, perseguida! Ai, meu senhor,
1095 onde estás, que não vens? El-rei me busca?

CORO

El-rei.

CASTRO

Porque me mata?

CORO

Rei cruel!
Cruéis os que o moveram a tal crueza!
Por ti vem perguntando. Esses teus peitos (f. 223v 0 )
vem só buscar, pera com duro ferro
1100 serem furiosam~nte traspassados.

AMA

Cumpriram-se teus sonhos.

1092: esconder teus filhinhos 1100: trespassados PL

429
CASTRO ACTO III

CASTRO

Sonhos tristes!
Sonhos cruéis! Porque tão verdadeiros
me quisestes sair? O esprito meu,
como não creste mais o mal tamanho
1105 que crias, e sabias? Ama, fuge,
fuge desta ira grande que nos busca.
Eu fico, fico só, mas inocente.
Não quero mais ajudas, venha a morte.
Moura eu, mas inocente. Vós, meus filhos,
1110 vivireis cá por mim: meus tão pequenos,
que cruelmente vem tirar de mim.
Socorra-me só Deus, e socorrei-me
vós, moças de Coimbra. Homens, que vedes
esta inocência minha, socorrei-me.
1115 Meus filhos, não choreis: eu por vós choro.
Lograi-vos desta mãe, desta mãe triste,
enquanto a tendes viva. E vós, amigas,
cercai-me em roda todas, e podendo,
defendei-me da morte que me busca.

CORO

[Coro 1)

1120 Teme teus erros, mocidade cega,


fuge a ti mesma, logra-te do tempo,
que assi te deixa correndo, e voando
com suas asas.

Ó quan10 üa hora, quanto um só momento


1125 breve algü'hora quererás debalde!
Poupa o presente, guarda-o, entesoura-o,
tê-lo-ás seguro. (f. 224)

Todo ouro, e prata, pedras preciosas,


a que correndo vão todos perdidos,
1130 por água e fogo, não temendo a morte,
cavar nas veias,

1106: PL qne Blib 1110-1: vivireis cá por mim, quando tão crua/ a morte for que vos de
mim aparte 1115: não choreis, que ainda há tempo antes de 1120: Choro. Saphycos. 1122: corendo
1128: omite e

430
CASTRO ACTO III

nunca poderam, nunca poderão


comprar um ponto deste tempo livre,
que assi atrás deixa príncipes, senhores,
1135 como os mais baixos.

Igual a todos, igualmente foge.


Não valem forças, não vai gentileza.
Por tudo passa, tudo calca, e pisa.
Ninguém o força.

1140 Com sua fouce cruel vai cortando


vidas a moços, trabalhos a velhos.
Só boa fama, só virtude casta
pode mais que ele.

Esta se salva somente em si mesma.


1145 Esta o esprito segue, sempre vive.
Esta seguindo vencerás o tempo,
rir-te-ás da morte.

Vive pois, vive, mocidade cega,


vive c'o tempo, dele te enriquece.
1150 Dele só t'arma contr'aquele dia
do grande aperto.

[Coro 2]

Após amor vem morte,


ou da vida, ou da honra, (f. 224vº)
e d' alma juntamente,
1155 que em noite escura põe,
sem ver o claro dia
da razão, que lhe diz
os males, e perigos
em que este amor acaba.

1I 60 Ó príncipe tão cego!


Ó príncipe tão duro!
Que cerraste os teus olhos
àqueles bons conselhos,

1136:Iguala 1138: tudo alcança e pisa 1141 : PL tarbalhos BLib antes de 1152: Choro ii.
Mea rithma 1152: Após amor a morte 1154: ou da alma 1157: rezão 1163: bons avisos

431
CASTRO ACTO III

que cerraste as orelhas


1165 àqueles bons avisos.
Tu dormes, ou passeias,
e pelos campos vem
do Mondego correndo
a cruel morte em busca
1170 da tua doce vida,
do teu amor tão doce.

Cruel morte, que vens


buscar esta inocente,
há piadade, e mágoa
1175 dos seus fermosos olhos,
do seu fermoso rosto.
Não desates um nó
tão firme, com que dous
corações ajuntou (f. 225)
1180 amor tão estreitamente.

Crueza farás grande


partir uns olhos d'outros,
üa alma assi d' outr'alma,
e derramar o sangue,
1185 o sangue tão fermoso,
do seu fermoso corpo.

Doam-te aqueles peitos


de marfim, ou de neve.
Doam-te aquelas faces
1190 de lírios, e de rosas,
que já perdem sua cor
pola falta do sangue,
que no coração junto
lhe tens frio, e coalhado,
1195 com medo do teu nome.

Aquela alva garganta,


de cristal, ou de prata,
que sostém a cabeça
tão alva, e tão dourada,
-------
1165: bons conselhos 1169: a crua morte 1170: de tua 1171 : amor tamanho 1174: piedade
1175: destes seus olhos belos 1176: deste fennoso rostro 1182-3: divide estes 2 versos em 3 1186:
daquele corpo belo 1190: tão alvas e rosadas 1192: omite este verso 1194: está frio 1199: alva e
dourada

432
CASTRO ACTO 111

1200 porque cortar a queres


com golpe tão cruel,
e derramar nos ares
aquele esprito dino
do corpo em que vivia?
1205 Há piedade, e mágoa (f. 225vº)
de tanta formosura,
daquele triste ifante,
e destes seus penhores.
Detém-te, enquanto chega!
1210 Detém-te, enquanto tarda!
Corre, ó lfante, corre,
socorre ao teu amor.
Ai, tardas! Saberás
como o amor sempre acaba.

1204: daquele belo corpo 1206: de tanta gentileza 1207: ifante triste 1213: Ai, que tardas
1214: omite o

433
ACTO IV

[Cena 1)

Pacheco El-rei Coro


Castro Coelho [Filhos de Castro]

PACHECO

1215 A presteza em tal caso é bom seguro,


e piedade, senhor, será crueza.
Cerra os olhos a lágrimas, e mágoas,
que te podem mover dessa constância.

REI
Esta é, que a mim se vem: ó rosto dino
1220 de mais ditosos fados!

CORO

Eis a morte
vem. Vai-te entregar a ela: vai depressa,
terás que chorar menos.

CASTRO

Vou, amigas.
Acompanhai-me vós, amigas minhas,
ajudai-me a pedir misericórdia.
1225 Chorai o desemparo destes filhos
tão tenros, e inocentes. Filhos tristes,
vedes aqui o pai de vosso pai .

BLib 1215: o seguro 1216: é grã crueza 1217: Çarra 1219: Esta é que aqui se vem, ó ros-
tro dino

435
CASTRO ACTO IV

Eis aqui vosso avô, nosso senhor:


beijai-lhe a mão, pedi-lhe piedade
1230 de vós, desta mãe vossa, cuja vida (f. 226)
vos vem, filhos, roubar.

CORO

Quem pode ver-te


que não chore, e s' abrande?

CASTRO

Meu senhor,
esta é a mãe de teus netos. Estes são
filhos daquele filho que tanto amas.
1235 Esta é aquela coitada molher fraca,
contra quem vens armado de crueza.
Aqui me tens. Bastava teu mandado
pera eu segura, e livre t'esperar,
em ti, e em minh ' inocência confiada.
1240 Escusaras, senhor, todo este estrondo
d'armas e cavaleiros: que não foge,
nem se teme a inocência da justiça.
E quando meus pecados me acusaram
a ti fora buscar: a ti tomara
1245 por vida em minha morte. Agora vejo
que tu me vens buscar. Beijo estas mãos
reais tão piadosas, pois quiseste
por ti vir-te informar de minhas culpas.
Conhece-mas, senhor, como bom rei,
1250 como clemente, e justo, e como pai
de teus vassalos todos, a quem nunca
negaste piedade com justiça.
Que vês em mim, senhor? Que vês em quem
em tuas mãos se mete tão segura?
1255 Que fúria, que ira esta é, com que me buscas?
Mais contra imigos vens, que cruelmente
t' andassem tuas terras destruindo
a ferro, e fogo. Eu tremo, senhor, tremo
de me ver ante ti como me vejo,

1229: as mãos 1233: omite a depois de 1234 intercala: único subcessor de teu estado 1239: em
li e minha I 241: de cavaleiros 1246: bejo essas 1249: Conhece-me 1256: cruamente I 257: tua terra

436
CASTRO ACTO IV

1260 molher, moça, inocente, serva tua,


tão só, sem por mim ter quem me defenda,
que a língua não s'atreve, o esprito treme (f. 226v0 )
ante tua presença; porém, possam
estes moços, teus netos defender-me.
1265 Eles falem por mim, eles sós ouve.
Mas não te falarão, senhor, com língua,
que inda não podem. Falam-te co'as almas,
com suas idades tenras; com seu sangue,
que é teu, te falarão. Seu desemparo
1270 t'está pedindo vida: não lha negues.
Teus netos são, que nunca téqui viste:
e vê-los em tal tempo, que lhes tolhes
a glória, e o prazer, qu' em seus espritos
lhe está Deus revelando de te verem.

REI

1275 Tristes foram teus fados, Dona Inês,


triste ventura a tua.

CASTRO

Antes ditosa,
senhor, pois que me vejo ante teus olhos
em tempo tão estreito: põe-nos ora,
como nos outros sóis, nesta coitada,
1280 enche-os de piedade com justiça.
Vens-me, senhor, matar? Porque me matas?

REI

Teus pecados te matam: cuida neles.

1266: seuhor 1267: falar-te-ão 1279: cuitada depois de 1280 Inês intercala os 5 versos
seguintes:
Não te peço injustiça, que não quero
ajudar-me de meios piadosos.
Puro rigor te peço; neste fundo
toda minha justiça. Não te podes
com justiça escusar do que te peço.

437
CASTRO ACTO IV

CASTRO

Pecados meus! Ao menos contra ti


nenhum, meu rei, me acusa. Contra Deus
1285 me podem acusar muitos: mas ele ouve
as vozes d'alma triste, em que lhe pede
piedade, o Deus justo, Deus benino,
que não mata, podendo-o com justiça,
mas dá tempo de vida, e espera tempo
1290 só pera perdoar. Assi o fazes,
assi o fizeste sempre: pois não mudes
agora contra mim teu bom costume.

REI

Tua morte m'estão outras muitas vidas


pedindo com clamores.

PACHECO

Foge o tempo. (f. 227 (PL 225))

1286:Blib da alma 1287: ao Deus 1288 PL e Blib podendo 1290-1: ... ·como tu fazes/como
fizeste sempre depois de 1292 intercalam-se 17 versos:
Pach Senhor, foge-te o tempo. EIR Tu bem sabes
porque te busca a morte: tua dureza
não podia esperar senão dureza.
D. Inês Eu em que te fui dura? A que mandado
teu não obedeci? Que disse ou fiz,
que cuidei contra ti, contra teu reino?
EIR Ten-lo posto em perigo de cair
com destruição cruel geral de todos.
D. Inês Que forças, que poderes, que tesouros,
possuídos de mim, a ti roubados,
te dão causa a esse medo? Rei prudente,
conhece os maus enganos que te trazem
contra quem claro vês que não merece
magoar. Elia assi basta, esta pena
injusta que me dás pera remédio
do que eu adiante simplesmente
podera errar. Téqui em que te errei?
1293: outras mais vidas 1294: em vez de este verso, dado ao rei e a Pacheco, há 2, divididos
entre o rei e lnês:pedindo com clamores. Não tens tempo/ Dona Inês, que te foge . Inês Ó mal fadada

438
CASTRO ACTO IV

CASTRO

1295 Ó triste, triste! Meu senhor, não me ouves?


Sossega tua fúria, não a sigas.
Nunca conselhou bem: nunca deu tempo
de remédio a algum mal a ira. Sempre
traz arrependimento sem remédio.
1300 Ouve minha razão, minh'inocência.
Culpa é, senhor, guardar amor constante
a quem mo tem? Se por amor me matas,
que far_ás ao imigo? Amei teu filho,
não o matei. Amor amor merece.
1305 Estas são minhas culpas: estas queres
com morte castigar? Em que a mereço?

PACHECO

Dona Inês, contra ti é a sentença dada.


Despi de essa tu' alma desse corpo
em bom estado, e seja prestesmente.
1310 Não tenhas que chorar mais, que só a morte.

1296: Abranda essa tua ira, não na sigas 1297: Nunca aconselhou 1298-9: de remédio a algum
mal. Arrependimento/ traz e desgosto sempre sem remédio depois de 1300 intercalam-se os 5 versos
seguintes:
EIR Sacrifica-te a Deus, pois te é forçado
partires-te pera ele. Grã prudência
é fazer de vontade o necessário.
D. Inês E quem me põe em tal necessidade?
EIR Tuas culpas. Inês Que culpas? Não as vejo.
1305 E estas são depois de 1306, intercalam-se os 11 versos seguintes:
EIR Se em tua consciência te parece
que não mereces morte, o bom conselho
é tomar esta morte por marteiro.
D. Inês Crueza é isso logo, e não justiça.
Porque queres comigo ser cruel,
cruel contra teu sangue? Este marteiro
como mo podes dar? Senhor, rei és:
olha teu alto nome, olha este ceptro.
Pera que Deus to deu? Quando tu mesmo
cometes tal crueza, como podes
castigar sem vergonha outras cruezas?
1308: esse tua 1309: prestemente 1310: chorá-la mais que a morte

439
CASTRO ACTO IV

CASTRO

Ó meus amigos, porque não tirais


el-Rei de ira tamanha? A vós me vou,
em vós busco socorro: ajudai-me ora
pedir-lhe piedade. Ó cavaleiros,
1315 que as tristes prometestes defender,
defendei-me, que mouro injustamente.
Se me [... ] não defendeis, vós me matais.

COELHO

Por mágoa dessas lágrimas te rogo


que este tempo, que tens, inda que estreito,
1320 tomes pera remédio da tu· alma.
O que el-rei em ti faz, faz com justiça.
Nós o trazemos cá, não com tenção
de sermos em ti crus, mas de salvarmos
este reino, que pede esta tua morte.
1325 (Que nunca, ó Deus, quisera que tal meio
nos fora necessário!) A el-rei perdoa, (j. 227v°)
que crueza não faz . Se a nós fazemos,
por ti ante o grã Deus será pedida
vingança justa, se te não parece
1330 que perdão merecemos nas tenções,
com que el-rei conselhamos. Ó ditosa,
Dona Inês. tua morte: pois só nela
se ganha üa geral vida a todo o reino.
Bem vês por tua causa como estava,

1314: a pedir-lhe piedade, se algüa ora


depois de 1314 intercalam-se os Yversos seguintes:
entrou em vossas almas; ou se amor
de filhos, desemparo e outras mágoas
que em mim vedes vos podem abrandar,
defendei-me da morte, pois podeis.
Não me mateis, amigos: assi nunca
vos seja necessário este remédio
que em vós esta coitada vai buscar.
Se me não defendeis, vós me matais.
Não me faç ais tal crueza. Ó cavaleiros
depois de 1315 intercala-se um verso: defendei-me da morte que me busca 1317: PL Se me vós
BLib omite vós. Em Blib este verso vem 5 linhas antes do fim da fala de Inês 1318: Por mágoas
1320: de tua 1329: se te parece 1330: não merecemos nas teções 1331 : aconselhamos 1333: PL omite
o 8/ib todo o reino

440
CASTRO ACTO IV

1335 além desse pecado, em que te tinha


o ifante forçada (que assi o cremos).
Mas pois para remédio é necessária
a morte sua, ou tua, é necessário
que tu sofras a tua com paciência,
1340 que isso te ficará por maior glória
que aquela que esperavas cá do mundo.
E quanto mais injusta te parece,
tanto mais justa glória lá terás,
onde tudo se paga por medida.
1345 Nós, que a teu parecer mal te matamos,
não viviremos muito: lá nos tens,
antes de muito tempo, ant' esse trono
do grã juiz, onde daremos conta
do mal que te fazemos . Não ouviste
1350 já das romãs e gregas com que esforço
morreram muitas, só por glória sua?
Morre pois, Castro, morre de vontade,
pois não pode deixar de ser tua morte.

CASTRO

Triste prática, triste! Cru conselho


1355 me dás. Quem o ouvirá? Mas pois já mouro,
ouve-me, Rei senhor: ouve primeiro
a derradeira voz dest' alma triste.
Co estes teus pés me abraço, que não fujo . (f. 228)
Aqui me tens segura.

REI

Que me queres?

CASTRO

1360 Que te posso querer que tu não vejas?


Pergunta-te a ti mesmo o que me fazes,
a causa que te move a tal rigor.
1336: forçado 1337: pera ... necessário PL necessário BLib 1341 : no mundo 1346: não vivire-
mos sempre 1350: romanas 1352: Morre, Dona Inês, morre de vontade depois de 1353, intercalam-
se os 2 versos seguintes: Isto te cumpre agora mais que nada: / logra-te deste tempo que te damos
1354: PL trrste 1355: PL ouvira BLib que o ouvirá 1356: ouve-me primeiro 1360: posso dizer 1361 :
pregunta a ti mesmo

441
CASTRO ACTO IV

Dou tua consciência em minha prova.


S' os olhos de teu filho s'enganaram
1365 com o que viram em mim, que culpa tenho?
Paguei-lhe aquele amor com outro amor,
fraqueza costumada em todo estado.
Se contra Deus pequei, contra ti não.
Não soube defender-me, dei-me toda,
1370 não a imigos teus, não a traidores,
a que alguns teus segredos descobrisse
confiados a mim, mas a teu filho,
príncipe deste reino. Vê que forças
podia eu ter contra tamanhas forças.
1375 Não cuidava, senhor, que t'ofendia:
defenderas-mo tu, e obedecera,
inda que o grand'amor nunca se força.
Igualmente foi sempre entre nós ambos:
igualmente trocámos nossas almas.
1380 Esta que te ora fala, é de teu filho,
em mim matas a ele: ele pede
vida par' estes filhos concebidos
em tanto amor. Não vês como parecem
àquele filho teu? Senhor meu, matas
1385 todos, a mim matando: todos morrem.
Não sinto já, nem choro minha morte,
inda que injustamente assi me busca,
inda que estes meus dias assi corta,
na sua flor indina de tal golpe:
1390 mas sinto aquela morte triste e dura (f. 228v 0 )
pera ti, e pera o reino, que tão certa
vejo naquele amor que esta me causa.
Não vivirá teu filho, dá-lhe vida,
senhor, dando-ma a mim: que eu me irei logo
1395 onde nunca apareça, mas levando
estes penhores seus, que não conhecem
outros mimos, e tetas senão estas,
que cortar-lh' ora queres. Ai , meus filhos,
chorai, pedi justiça aos altos céus.
1400 Pedi misericórdia a vosso avô
contra vós tão cruel, meus inocentes.

1363: en minha 1370: tredores 1371: descubrisse 1373: Bem que forças 1374: taminhas
1376: defenderas-me 1380: agora fala é a 1381 : ele te pede 1382: pera 1391 : omite e 1394: omite
eu 1395: pareça 1398: que cortar-lhe ora queres. Meus filhinhos 1399: os altos 1400: mesericordia

442
CASTRO ACTO IV

Ficareis cá sem mim, sem vosso pai,


que não poderá ver-vos, sem me ver.
Abraçai-me, meus filhos, abraçai-me.
1405 Despedi-vos dos peitos que mamastes.
Estes sós foram sempre, já vos deixam.
Ah, já vos desempara esta mãe vossa.
Que achará vosso pai, quando vier?
Achar-vos-á tão sós, sem vossa mãe;
1410 não verá quem buscava; verá cheias
as casas, e paredes de meu sangue.
Ah, vejo-te morrer, senhor, por mim.
Meu senhor, já que eu mouro, vive tu.
Isto te peço, e rogo: vive, vive,
1415 empara estes teus filhos que tant' amas,
e pague minha morte seus desastres,
se alguns os esperavam. Rei senhor,
pois podes socorrer a tantos males,
socorre-me, perdoa-me. Não posso
1420 falar mais. Não me mates, não me mates.
Senhor, não to mereço.

REI

Ó molher forte!
Venceste-me, abrandaste-me. Eu te deixo. (f. 229)
Vive, enquanto Deus quer.

CORO

Rei piadoso,
vive tu, pois perdoas: moura aquele
1425 que sua dura tenção leva adiante.

1405: das tetas 1406: estas 1407: desampara 1409: tão sós, tão órfãozinhos depois de 1411,
Inês intercala os 4 versos seguintes:
Esta tapiçaria será a sua.
Ir-se-á onde eu andava passeando:
não me verá, não me achará no campo,
nem no jardim ou câmara. Ei-lo morto
1412: Ai ... meu bem, por mim 1418: tantos danos

443
CASTRO ACTO IV

[Cena 2)

Pacheco Rei Coelho

PACHECO

Ó senhor, que nos matas! Que fraqueza


essa é indina de ti, dum real peito?
Vence-te üa molher, e estranhas tanto
vencer assi teu filho, que já agora
1430 terá desculpa honesta? Não te esqueças
da tenção tão fundada que te trouxe.

REI

Não pode o meu esprito consentir


em crueza tamanha.

PACHECO

Mor crueza
fazes agora ao reino; agora fazes
1435 o que faz a pouca água em grande fogo;
agora mais s' acende, arderá mais
o fogo de teu filho. A que vieste?
A pôr em mor perigo teu estado?

REI

Vejo aquela inocente, chora-m' a alma.

COELHO

1440 O ânimo real tão firme, e forte


há-de ser no que faz, que nunca possa
debaixo do céu nada pervertê-lo.
A justiça, senhor, pinta-se armada
d'espada aguda, contra cujos fios
1445 não possa haver brandura nem dureza.
Cada um destes estremas é grã vício
em quem é pai comum de todo um reino.
-------
1435: o fogo que faz a pouca água 1437: o teu filho (Blib omite o fogo de) 1438: em mor
perigo nossa vida 1439: PL chora m'alma BLib chora malma 1447: em vez deste verso, Coelho tem
o verso seguinte: e agora mais que nunca perigoso

444
CASTRO ACTO IV

Despois da conta feita, e razões claras,


despois de tais conselhos em que viste
1450 quão necessária era esta tua vinda,
quão necessário o efeito a que vieste, (f. 229v 0 )
se muda assi, senhor, tão levemente,
por lágrimas, teu ânimo constante?
Antes não cometeras, nem cuidaras
1455 cometer isto, por que não vieras
acrescentar o mal, que agora vejo
que fica já de todo sem remédio.

REI

Não vejo culpa que mereça pena.

PACHECO

Inda hoje a viste. Quem ta esconde agora?

REI

1460 Mais quero perdoar que ser injusto.

COELHO

Injusto é quem perdoa a pena justa.

REI

Peque antes ness'estremo que em crueza.

COELHO

Não se consente o rei pecar em nada.

REI

Sou homem.

1448: rezões 1451 : efecto 1455: ou antes não vieras 1459: escondeu 1462: Peq

445
CASTRO ACTO IV

COELHO

Porém rei.

REI

O rei perdoa.

PACHECO

1465 Nem sempre perdoar é piadade.

REI

Eu vejo üa inocente, mãe duns filhos


de meu filho, que mato juntamente.

COELHO

Mas dás vida a teu filho, salvas-lh' a alma,


pacificas teu reino, a ti seguras.
1470 Restituis-nos honra, paz, descanso.
Destruis a traidores; cortas quanto
sobre ti e teu neto se tecia.
Ofensas, senhor, públicas não querem
perdão, mas rigor grande. Daqui pende
1475 ou remédio dum reino, ou queda certa.
Abre os olhos às causas necessárias
que te mostrámos sempre, e que tu vias.
Cuida no que emprendeste, e no que deixas.
O ódio de teu filho contra ti,
1480 contra nós, tal será como qual fora,
fazendo-se o que deixas por fazer.
A ti ficam seus filhos, ama-os, honra-os:
assi lh' amansarás grã parte da ira. (f. 230)
Senhor, por teu estado te pedimos;

1465: em vez deste l'erso, Pacheco e o rei têm este verso: Pach Perdoa com rezão. EIR Que
mais rezão 1466: que ver iia inocente 1468: PL salvas lh' alma BLib salvas lha alma 1470: restituis-
nos a honra 1471: tredores 1472: e sobre nós já se tecia 1473: poblicas 1475: o remédio 1476: cousas
1478: no que cometes, no que deixas 1479: sobre ti 1481 : de fazer 1482: A ti ficam teus netos
1483: assi amasarás a ira o ifante

446
CASTRO ACTO IV

1485 polo amor do teu povo, com que t'ama;


polo com que sabemos que nós amas;
por mais vida, e mais honra de teu filho,
príncipe nosso; e por aquele seu
Fernando único herdeiro, cuja vida
1490 te está pedindo justamente a morte
desta molher. Enfim por honra tua,
pola constância firme, com que sempre
acodiste õs remédios, e à justiça:
que a não deixes agora, que te movam
1495 mais estas razões fortes que essa mágoa
injusta, que despois chorarás mais,
perdendo esta ocasião que Deus te mostra.

REI

Eu não mando, nem vedo. Deus o julgue.


Vós outros o fazei , se vos parece
1500 justiça assi matar quem não tem culpa.

COELHO

Essa licença basta: a tenção nossa


nos salvará co's homens, e com Deus.

[Cena 3]

Coro Rei

CORO

Enfim venceu a ira, cruel imiga


de todo bom conselho. Ah, quanto podem
1505 palavras, e razões em peito brando!
Eu vejo teu esprito combatido

1485: pelo amor de teu povo 1486: pelo 1487: por vida, honra e estado de teu filho 1489: em
vez deste verso BLib tem os 2 versos seguintes: herdeiro sobre quem isto carrega / ifante Dom
Fernando, cuja vida 1491: desta molher. E mais por vida tua 1492: pela constacia 1493: acudiste
1494: que nisto agora amostres e te movam 1495: razões todas 1497: pPrdendo a ocasião que tens
agora 1498-9: Eu lavo minhas mãos deste inocente/ sangue. Vós o fazei, se vos parece 1500: mar-
lar 1501 : nos basta Cena 3. Não se encontra em BLib

447
CASTRO ACTO IV

de mil ondas, ó Rei . Bom é teu zelo;


o conselho leal ; cruel a obra.

REI

Por crueza julgais o que é justiça?

CORO

1510 Crueza a chamará tod'outra idade.

REI

Minh'alma inocente é, conselho sigo.

CORO

Deus te julgue. Eu não ouso. Porém, temo.

REI

Que temes?

CORO

Este sangue que aos céus brada.


Não culpamos a ti: nem desculpamos
1515 as descorteses mãos de teus ministros, (f. 230v 0 )
constantes no conselho, crus na obra.
Ai, vês que crueldade? Ó nunca visto
mais inocente sangue! E como sofres,
ó Rei, tal injustiça? Ouves os brados
1520 da inocente moça? Ouves os choros
dos inocentes filhos? Triste lfante,
ali passam tu'alma teus vassalos,
de teu sangue os cruéis tingem seus ferros.

REI

Afronta-se minh'alma. Ó quem podera


1525 desfazer o que é feito!

448
CASTRO ACTO IV

CORO

Já morreu Dona Inês, matou-a amor.


Amor cruel! Se tu tiveras olhos,
também morreras logo. Ó dura morte,
como ousaste matar aquela vida?
1530 Mas não mataste: melhor vida, e nome
lhe deste do que cá tinha na terra.

Este seu corpo só gastará a terra,


por quem estará chorando sempre o Amor,
honrando-se somente do seu nome.
1535 Mas quem a quiser ver com outros olhos,
outro nome, outra glória, outra honra, e vida
lhe achará, contra a qual não pode a morte.

Aqueles matas tu somente, ó morte,


cujo nome s' esquece, e a quem na terra
1540 fica de todo sepultada a vida.
Mas esta vivirá, enquanto o amor (f. 231)
entr'os homens reinar, e sempre os olhos
de todos a verão com melhor nome.

Real amor lhe dará real nome.


1545 Ó que coroa lhe aparelha a morte!
Despois que lhe cerrou os claros olhos
indinos d'ante tempo irem à terra,
sem quem só fica, e desarmado Amor,
sem quem quão triste, Ifante, a tua vida!

1550 Tu és o que morreste, aquela vida


era tua: já agora aquele nome,
que tão doce te fez sempre o amor,
triste to tem tornado a cruel morte.
Chorando a andarão sempre na terra
1555 té que nos céus a vejam esses teus olhos.

Nem haverá já nunca no mundo olhos


que não chorem de mágoa de iia vida
assi cortada em flor. E quem a terra

1526-64: em BLib, a sestina é divida entre Coro l e Coro 2 1532: comerá 1536: glória, honra
e vida 1537: o qual 1540: seplutada 1542: antre 1546: os belos olhos 1548: sem que ... o amor 1549 sem
que ó quão triste, ifante, é a tua vida 1553: quão triste to tomou a crua morte 1556: Nem verá

449
CASTRO ACTO IV

for ver, em que estiver escrito o nome


1560 dela, dirá: - Aqui está chorando a Morte,
de mágoa do que fez , aqui o Amor.

Amor, quanto perdeste nuns sós olhos


que debaixo da terra pôs a morte,
tanto eles mais terão de vida, e nome.

SÃFICOS

1565 Choremos todos a tragédia triste,


Que esta crua morte deixará no mundo. (f. 231 vº)
Já aquele esprito, que tão bem vivia
em ti, ó Castro, vai aos céus voando.
Já aquele sangue purpúreo, inocente,
1570 forçadamente desempara os membros,
a que ele dava aquela cor, e graça,
que a natureza mais perfeitamente
formar podera nesta, ou outra idade.
Assi a região que vê nascer o sol,
1575 como a região onde o sol se esconde,
assi aquela que ao fervente Cancro,
como aquel'outra que à fria mor Ursa
estão sogeitas, esta mágoa chorem.
Jaz a coitada no seu sangue envolta
1580 aos pés dos filhos, pera quem fugia;
não lhe valeram, que não tinham forças
pera tomarem os agudos ferros,
com que seus peitos tão irosamente
traspassar viam aqueles cruéis.
1585 Ó mãos tão duras, ó corações duros,
como podestes fazer tal crueza?
Outras mãos venham, que vo-los arranquem
com mor crueza.
Que duros Getas, mas que )iões, que ussos,

1559_: estará escrito 1564: esses mais terão vida 1568: no belo corpo vai 1570: desampara
1573: pudara 1574-8: em Blib estes versos aparecem no Coro 1 do Acto I (ver Ap2(ii) 11.6-10) 1575:
onde se o sol 1576: o fervente 1578: Pstão sogeitas, suas frechas sentem 1579: cuitada 1583: suas
tetas 1584: viram 1585: curas 1586: pudestes 1587: PL vo-las Blib vo-los; antes de 1589: Coro
primeiro

450
CASTRO ACTO II

1590 não amansara tão fennoso rosto?


Que ira tão brava não tomara branda
üa só mágoa de tão doce boca? (f. 232)
Que mãos tão cruas não ataram logo
aqueles crespos seus ricos cabelos?
1595 Aqueles olhos em que pedras duras
não imprimiram brandura? Ó que mágoa!
Ó que crueza tão fera, e tão bruta!
Moça inocente por amor só morta,
com gente armada, como forte imigo.
1600 Tu, Deus, que o viste, ouve o clamor justo
daquele sangue, que t' está pedindo
crua vingança.

1590: não abrandara aquele rostro belo 1591 : tornara mansa 1592: fui palavra daquela 1594:
aqueles belos seus depois de 1599 intercalam-se os 2 versos seguinres: Que mais podiam fazer
bravos turcos/ ou que fizeram mais a fortes caíres? 1601-2: em vez destes 2 versos, Blib tem o verso
seguinte: daquele sangue, que te está pedindo vingança

451
ACTO V

[Cena 1)

/Jante

IFANTE

Outro céu, outro sol me parece este,


diferente daquele, que lá deixo
1605 donde parti, mais claro, e mais fermoso.
Onde não resplandecem os dous claros
olhos da minha luz, tudo é escuro.
Aquele é só meu sol, a minha estrela,
mais clara, mais fermosa, mais luzente
1610 que Vénus quando mais clara se mostra. (f. 232vº)
Daqueles olhos s' alumia a terra, .
em que sombra não há, nem nuvem escura:
tudo ali é tão claro, que té a noite
me parece mais dia que este dia.
1615 A terra ali s' alegra, e reverdece
doutras flores mais frescas, e melhores.
O céu se ri, e se doura diferente
do que neste horizonte se me mostra.
O soberbo Mondego com tal vista
1620 parece que ao grã mar vai fazer guerra.
Doutros ares respira ali a gente,
que fazem imortais os que lá vivem.

Em BLib, o Acto V abre com uma fala de 45 versos, em meia ritma, de D. Pedro que é
inteiramente omitida em PL (ver Ap2 (iii)). O novo Acto V começa com versos tirados do princípio
da tragédia de 1587. 1605: mais claro e fennoso 1606: Ai , onde não parecem os dous belos 1608:
omite só 1611 : Daqueles raios 1614: que de dia 1619: O Mondego soberbo de tal vista 1620: que co
mar 1622: que faz alegres os que ali vivem

453
CASTRO ACTO V

Ó Castro, Castro, meu amor constante!


Quem me de ti tirar, tire-me a vida.
1625 Minh'alma lá ma tens, tenho cá a tua,
morrendo üa destas vidas, ambas morrem.
E havemos de morrer? Pode vir tempo
que ambos nos não vejamos? Nem eu possa,
indo buscar-te, ó Castro, achar-te lá?
1630 Nem achar os teus olhos tão formosos,
de que os meus tomam luz e tomam vida?
Não posso cuidar nisto, sem os olhos
mostrarem a saudade que me fazem
tão tristes pensamentos. Viviremos
1635 muitos anos, e muitos; viviremos
sempre ambos nest'amor tão doce, e puro.
Rainha te verei deste meu reino,
d'outra nova coroa coroada
diferente de quantas coroaram
1640 ou de homens, ou molheres as cabeças.
Então serão meus olhos satisfeitos,
então se fartará da glória sua
est' alma, que anda morta de desejos.

Depois de 1622 Blib tem 8 versos omitidos em PL:


Ó minha Dona Inês, minha senhora,
ó meu amor tão doce e tão constante,
ó minha saudade! Que faria
quando com te não ver üa meia hora,
podendo ver-te, e estar st!mpre contigo,
não vivo sem te ver? Que vida triste
seria aquela! Vida não seria,
que em cuidar nisto só me sinto morto.
1623: não vem em BLib 1624: tira-me Em Blib, este verso encontra-se 45/l. mais adiante, a
l. 28 da parte da/ala do ifante impressa como Ap2 (i) .
1627: há-de vir 1629: indo de cá cansado, achar-te lá 1630: os meus olhos 1634-6 em vez
destes 3 versos, Blib intercala 52. Destes, vv. /-37 estão impressos como Ap2 (i). Os restantes foram
integrados na nova tragédia, li. 389-99. 1641: BLib omite; depois de 1643 BLib tem os 6 versos
seguintes com que se acaba a/ala do ifante:
Não tardes, ó senhor dos céus,
não tardes em mostrar-me um bem tamanho.
E despois de mostrar-mo, então me mata,
se te não merecer dares-me vida
no tempo que a eu mais estimaria
por me lograr do fim de meus desejos.

454
CASTRO ACTO V

[Cena 2]

Messageiro /Jante

MESSAGEIRO

Ó triste nova, triste messageiro


1645 tens ante ti, senhor.

IFANTE

Que novas trazes?

MESSAGEIRO

Novas cruéis. Cruel sou contra ti,


pois m'atrevi trazê-las. Mas primeiro
sossega teu esprito, e nele finge
a mor desaventura que te agora
1650 podia acontecer: que grã remédio (f. 233)
é ter o esprito armado à má fortuna.

IFANTE

Tens-me suspenso. Conta, que acrecentas


o mal com a tardança.

1651 : armado contra tudo depois de 1651 BLib intercala os 7 versos seguintes:
lf Não te entendo. Declara-te. Mess. Que cuidas
que pode agora ser o que trago.
Faze conta que perdeste teu estado,
que te morreu teu filho, nosso ifante,
que abrasou todo o reino um novo fogo
que caiu lá dos céus, e tu só ficas
pera este mal chorares sem remédio.

455
CASTRO ACTO V

MESSAGEIRO

É morta Dona Inês, que tanto amavas.

IFANTE

1655 Ó Déus, ó céus! Que contas? Que me dizes?

MESSAGEJRO

De morte tão cruel, que é nova mágoa


contar-ta. Não me atrevo.

IFANTE

É morta?

MESSAGEIRO

Si.

IFANTE

Quem ma matou?

MESSAGEIRO

Teu pai, com gente armada,


foi hoje salteá-la. A inocente,
1660 que tão segura estava, não fugiu.
Não lhe valeu o amor com que te amava;

1653: depois da fala do ifante Blib intercala os 6 versos seguintes:


Mess. Senhor, sofre
com ânimo real teu grã desastre.
Esse teu coração, que sempre forte
se mostrou à fortuna, agora é tempo
que tome novas forças. Já a fortuna
te chegou a mor mágoa que podia
1654: dana (sic) 1657: /f É morta? Mess. Morta depois de 1657, Blib tem o verso seguinte :
/f É morta Dona Inês? Mess. Si. /f Como? Mess. A ferro 1658: Quem a matou? 1659: Foi hoje
salteada a coitadinha 1661: omite que

456
CASTRO ACTO V

não teus filhos com quem se defendia;


não aquela inocência, e piedade
com que pediu perdão aos pés lançada
1665 dei-Rei teu pai, que teve tanta força
que lho deu já, chorando. Mas aqueles
cruéis ministros seus, e conselheiros,
contr'aquele perdão tão merecido,
arrancando as espadas se vão a ela,
1670 traspassando-lh' os peitos cruelmente.
Abraçada c' os filhos a mataram,
que inda ficaram tintos do seu sangue.

IFANTE

Que direi? Que farei? Que clamarei?


Ó fortuna! Ó crueza! Ó mal tamanho!
1675 Ó minha Dona Inês, ó alma minha,
morta m'és tu? Morte houve tão ousada
que contra ti podesse? Ouço-o, e vivo?
Eu vivo, e tu és morta? Ó morte crua!
Morte cega, mataste minha vida,
1680 e não me vejo morto! Abra-se a terra,
sorva-me num momento; rompa-s' a alma,
aparte-se dum corpo tão pesado, (f. 233v0 )
que ma detém por força .
Ah, minha Dona Inês, ah, ah, minha alma!
1685 Amor meu, meu desejo, meu cuidado,
minh'esperança só, minh'alegria,
mataram-te? Mataram-te? Tua alma
inocente, fermosa, humilde, e santa
deixou já seu lugar? Ah, de teu sangue
1690 s'encheram as espadas? De teu sangue?
Que espadas tão cruéis, que cruéis mãos!
Ah, como se moveram contra ti?
Como tiveram forças, como fios
aqueles duros ferros contra ti?

1662: nem teus 1663: nem aquela 1666: que lho dava 1671-2: omite 1677: pudesse 1680: Eu
me vejo morto 1681 : PL rompas'alma Blib rompa-se a alma 1683: que me detém por força vida
minha 1684: ah minha alma 1686: omite 1688: frrmosa, casta e limpa 1689: deixou teu belo corpo.
De teu sangue 1690: omite De teu sangue 1692: aü como 1693: Como teveram forças, como brios
1694-5: ... contra carnes/ tão belas e tão brandas. R~i cruel

457
CASTRO ACTO V

1695 Como tal consentiste, rei cruel?


!migo meu, não pai, imigo meu!
Porque assi me mataste? Ó )iões bravos,
ó tigres, ó serpentes, que tal sede
tínheis deste meu sangue, por que causa
1700 vós não vínheis em mim fartar vossa ira?
Matáreis-me, e vivera. Homens cruéis,
porque não me matastes? Meus imigos,
se mal vos merecia, em mim vingáreis
esse mal todo. Aquela ovelha mansa
1705 inocente, fermosa, simplex, casta
que mal vos merecia? Mas quisestes,
como imigos cruéis, buscar-me a morte,
não da vida, mas d' alma. Ó céus, que vistes
tamanha crueldade, como logo
1710 não caístes? Ó montes de Coimbra,
como não sovortestes tais ministros?
Como não treme a terra, e s'abre toda?
Como sustenta em si tão grã crueza?

MESSAGEJRO

Senhor, pera chorar fica assaz tempo. (f. 234)


1715 Mas lágrimas que fazem contr'a morte?
Vai ver aquele corpo, vai fazer-lhe
as honras que lhe deves.

IFANTE

Tristes honras!
Outras honras, senhora, te guardava,
outras se te deviam. Ó triste, triste!
1720 Enganado, nascido em cruel signo,
quem m'enganou? Ah cego, que não cria
aquelas ameaças! Mas quem crera
que tal podia ser?
Como poderei ver aqueles olhos
1725 cerrados pera sempre? Como aqueles
cabelos já não de ouro, mas de sangue?

1699: desse meu 1701: matereis-me e vivira 1705: Blib limpa, casta 1706: PL mrecia (sic)
1708: Blib da alma ... que vedes 1711 : sorvestes 1713: sostenta 1717: aas honras 1723-4: em BLib
estes 2 versos aparecem como um só

458
CASTRO ACTO V

Aquelas mãos tão frias , e tão negras,


que antes via tão alvas, e fermosas?
Aqueles brancos peitos traspassados
1730 de golpes tão cruéis? Aquele corpo,
que tantas vezes tive nos meus braços
vivo, e fermoso, como morto agora
e frio o posso ver? Ai como aqueles
penhores seus tão sós? Ó pai cruel,
1735 tu não me vias neles? Meu amor,
já me não ouves? Já não te hei-de ver?
Já te não posso achar em toda a terra?
Chorem meu mal comigo quantos m'ouvem,
chorem as pedras duras, pois nos homens
1740 s' achou tanta crueza. E tu, Coimbra,
cubre-te de tristeza pera sempre.
Não se ria em ti nunca, nem s'ouça
senão prantos, e lágrimas: em sangue
se converta aquela água do Mondego.
1745 As árvores se sequem e as flores.
Ajudem-me pedir aos céus justiça (f. 234vº)
deste meu mal tamanho.
Eu te matei, senhora, eu te matei.
Com morte te paguei o teu amor.
1750 Mas eu me matarei mais cruelmente
do que te a ti mataram, se não vingo
com novas crueldades tua morte.
Para isto me dá, Deus, somente vida.
Abra eu com minhas mãos aqueles peitos.
1755 Arranque deles uns corações feras,
que tal crueza ousaram: então acabe.
Eu te perseguirei, Rei meu imigo.
Lavrará muito cedo bravo fogo
nos teus, na tua terra; destruídos
1760 verão os teus amigos, outros mortos,

1729: peitos belos 1733: e feio posso ver 1742: nunca se ouça depois de 1745 BLib intercala
os 5 versos seguintes:
Vós ninfas que habitais em aquelas águas
nunca mais pareçais ledas sobre elas.
Chorai aquela ninfa tão fermosa,
celebrai pera sempre suas obséquias
com vozes tristes lá debaixo da água
1746: ajudai-me 1749: omite te 1750: cruamente 1753: PL Par'a a isto BLib Pera isto 1757:
persiguirei 1759: decepados 1760: verás os teus amigos

459
CASTRO ACTO V

de cujo sangue s'encherão os campos,


de cujo sangue correrão os rios,
em vingança daquele. Ou tu me mata,
ou fuge da minh ' ira, que já agora
1765 te não conhecerá por pai. !migo
me chamo teu, imigo teu me chama.
Não m' és pai, não sou filho, imigo sou.
Tu, senhora, estás lá nos céus; eu fico
enquanto te vingar; Jogo lá voo.
1770 Tu serás cá rainha, como foras.
Teus filhos só por teus serão ifantes.
Teu inocente corpo será posto
em estado real; o teu amor
m'acompanhará sempre, té que deixe
1775 o meu corpo c'o teu, e lá vá est'alma
descansar com a tua pera sempre. (f. 235)

1764: de minha ira 1765: conhecerei 1769: lá vou 1774: até que 1776: a descansar contigo

460
APÊNDICE 1

Poesias não incluídas nos Poemas Lusitanos

(i) Soneto

A el-rei nosso senhor

Quem pode acrecentar a luz ao dia?


Que luz ante o sol claro resplandece?
Que juízo, grã rei, já não escurece
ante este esprito que em ti o céu nos cria?

5 Tu serás sol, e norte, e luz, e guia


à mundo que mais claro já parece,
mas enquanto a menhã bem não esclarece,
aparta Teive a nuve que a cobria.

Enquanto nessa idade mais não cabe,


10 sigue o caminho que te vai abrindo
o teu bom Teive à imortalidade.

Somente Deus ser por si só sabe;


tu irás por tais meios descubrindo
à novo mundo üa nova claridade.

6: T(/565) o (1786) ao 11 : T(/565) a (1786) á 14: T(/565) o (1786) ao

(ii) Epigrama

Resposta de António Ferreira pelos mesmos consoantes

Pera ver-te, e ouvir-te só sou vindo,


e enriquecer em ti a pobre veia.
Em ti nos vai, Andrade, restituindo
da sua água Hipocrene a fonte cheia.
5 Eu com tua luz irei caminho abrindo

461
APÊNDICES

à ingenho, que a ti entenda, e leia.


Quem não sabe quanto há que de ti aprendo,
se alguma cousa escrevo, leio, e intendo?

6: PL ( I 771) o ingenho AC Ó ingenho

(iii) Elegia

Ao senhor Francisco de Sá de Miranda, à morte de seu filho Gonçalo Mendes de Sá

Não chores, mas alegra-te, elegia;


força agora o costume, e natureza,
inda que de chorares causa havia.

A parte vás onde há nojo e tristeza,


5 mas com aquele nojo, que é forçado,
junto está grã prazer, grã fortaleza.

Verás um pai a quem o duro fado


desemparou dum filho, em que esperava
ver seu nome nos céus alevantado;

10 verás a mãe que tanto o filho amava,


que partindo a sua alma pelo meio,
a metade lhe deu, a outra ficava,

dizendo: - Filho, vivirei em receio


enquanto te não vir! E ele partido,
15 eis que subitamente a morte veio.

Inda bem se não tinha despedido,


inda as lágrimas bem não s'enxugavam,
inda não tinham dele nova ouvido,

e a primeira nova que lhe davam


20 era de morte! Porém, morte qual
ele quis sempre e a que eles o mandavam.

O primeiro acidente é natural.


Com este não poderam, que os mais fortes
como aos mais fracos sói ser igual.

462
APÊNDICES

25 Mas, de que viram bem as iguais sortes


que nos outros caíram, em si tomaram,
vendo chorar a todos tantas mortes.

As lágrimas alheias consolaram


as suas, que já deixam de lançar;
30 jágora rim os olhos que choraram.

Verás ambos jágora tais estar,


que por mais que tu vás triste, e chorando,
rindo t'hão-de ver já, rindo falar.

Começa te jágora ir espantando


35 daquela fortaleza com que o pai
seu nojo tão cruel foi temperando.

N'alma o sentiu somente, que lá vai


a verdadeira dor, mas não se ouviu
de sua boca algum sospiro, ou ai.

40 De pura dor a triste alma se abriu,


mas acudiu o siso, e a prudência,
com que aquele alvoroço se encubriu;

acudiu à ferida igual paciência,


armou-se contra a carne logo o esprito,
45 esforçado do tempo, e experiência.

Tanto que o triste caso lhe foi dito,


c' o aquele coração prudente e forte,
qual em seu rosto verás logo escrito,

disse: - Sabia que obrigado à morte


50 o gerei, e calou-se. Ó gloriosa
voz! Ó bem vinda, e bem ditosa sorte!

Eu vejo despedir-se a tão fermosa


purpúrea alma do corpo, e ir voando
coroada de louro, e tão lustrosa

55 como üa bela estrela alumiando


os céus, e dando lume cá na terra,
em que seu raio está reverberando.

463
APÊNDICES

Ó alma bem nacida, qu ' em tal guerra


ganhaste ila tal vida, honra, e glória,
60 quem morte lhe chamar, contra ti erra.

Teu vencimento foi tua vitória,


teu sangue rico esmalte da tua alma,
tua morte te deu vida e memória.

Quão bem compraste aquela bela palma


65 com que estás lá nos céus, fazendo enveja
a quem cá está temendo frio e calma.

Qual aquele será, por mais que seja


de sua vida amigo, que não queira
ser tu, e que tal morte não deseja?

70 A todos está ila hora derradeira


esperando. Há-de vir e há-de chegar;
o quando, Deus o sabe, e a maneira.

Pois, ó que trabalho é sempre esperar


tão incerta certeza! Mas maior
75 é dela se esquecer, ou descuidar.

E quem não quererá de tal temor,


de tal perigo, livre estar seguro,
com Deus em glória, em fama cá, e louvor?

Ditoso aquele que do ferro duro


80 traspassado caiu, pois foi levado
seu esprito onde está tão claro e puro!

Ditosos pais de que foste gerado,


glorioso mancebo, e boa estrela
em que naceste, e glorioso fado!

85 Seguiste aquele bem pera que t' ela


sempre inflamou e, seguindo-o, o alcançaste
e a coroa que já vias nela.

Mas, ó estrela cruel, já que mostraste


tão grande esprito ao mundo, porque assi
90 mostrado dantre nós logo o levaste?
67: SdeM quelle 86: seguindo

464
APÊNDICES

Morte cruel, queixemo-nos de ti,


que sempre andas roubando o melhor que há;
sempre o ouvi dizer, agora o cri.

Levara-lo em nascendo, ou pois que já


95 quiseste que o nós víssemos, quiseras
que dele nós lográramos mais cá,

não deras a seus pais tal dor, não deras


tamanha perda a quem dele esperava
as cousas que tu nunca desfezeras .

100 Par'ele só a fortuna se guardava.


Qu' enveja houveste, morte, à nossa terra,
qu' outro Marcelo neste nos criava?

Aquele fora outro raio de guerra,


se os fados o deixaram; duros fados,
105 quem vos cuida fugir, ó quanto erra!

Mas estes dias seus serão contados


por muitos, e mui grandes: grand' é a vida
dos que em virtude e honra são louvados.

Aquela vida só se diz perdida,


110 aquela só devia ser chorada,
aquela só por triste e breve tida

dos qu' em morrendo assi fica apagada,


que memória não deixa nem sinal
em testemunho da que lhe foi dada.

115 Igual à dum bruto é tal vida, igual


à düa planta, ao pó, à sombra, ao vento,
e a 4ualquer cousa, se a há, que menos vai.

Que é de que vem que aqui morrendo cento,


se fale mais de um só? Porque vivia,
120 e em bem morrer trazia o pensamento.

Dos outros outra vida não se via,


senão dos corpos; a estes igualmente
a morte e vida os nomes lh'encubria.

118: SdeM omite é

465
APÊNDICES

Vive teu nome claro, e excelente,


125 glorioso mancebo, e vivirá,
enquanto i houver vida, e houver gente.

Ouvi-lo-á o Tejo, ouvi-lo-á


o Indo, o Ganges; lá será escuitado
o som que em ti teu pai levantará.

130 Dinamente serás dele cantado,


e em todo mundo com prazer ouvido,
por ele mais glorioso, e envejado.

Muito de ti dirá, mas muito crido


será de ti; muitos desejarão
135 tal nome ter, e tão bem merecido.

Também as belas ninfas cantarão,


as belas ninfas do Minho e do Douro,
teu nome, e a todo o mundo o levarão.

Alegres andam c'o cabelo d'ouro


140 ao vento solto, rindo, e não chorando,
de palma coroadas, e de louro,

todas esta tua morte festejando,


como teu nascimento festejaram,
por isto que de ti iam esperando.

145 Para esta morte tua te criaram,


com ela estão agora tão contentes,
que mais agora te amam, do que amaram.

Pois tu, que lá nos céus, ond' estás, sentes


a glória que lá tens e a que te damos,
150 porque chorar por ti. ninguém consentes,

esta é a causa porque não choramos,


elegia, esta mo.te gloriosa,
mas vida gloriosa lhe chamamos.

Portanto tu, não triste, nem chorosa,


155 mas rindo, vai alegre ver aqueles
pai e mãe seus, e a terra que ditosa
fizeram por tal causa sair deles.

466
APÊNDICE 2

Textos da versão de 1587 da Castro

(i) Tirada do /Jante D. Pedro (Acto [)

Vi viremos,
amor meu, neste amor tão casto e puro,
que os céus o querem; e quando a morte
(ó morte triste, que assi me intristeces)
5 se vier por um de nós, leve-nos ambos.
Não fique eu, senhora, só sem mi;
não fique eu triste cá, de ti tão só.
Mas Deus não te fez tal, pera que logo
te levasse da terra que tanto honras,
IO que isto seria não te dar ventage
sobre as outras molheres; que quem pode
tão diferente delas ser, parece
que alguns estremos mais lhe são devidos,
inda que a morte sempre o milhor busca,
15 e tu és o milhor que nós cá temos.
Os tristes deixa, deixa os que não fazem
sombra no mundo; a nossa luz nos leva.
Quer-se-nos mostrar grande e poderosa
em desfazer as cousas excelentes,
20 espanto e maravilha destes olhos.
Mas esta está guardada de ti, morte;
nesta te foi mandado não tocares,
senão quando quisesses juntamente
deixar a Portugal sem honra e glória,
25 a todo mundo mágoa e nojo triste,
e tirar-me a mi esta vida cruelmente.
De ti, senhora, vivo e por ti mouro;
quem me de ti tirar, tira-me a vida.
Meu pai ma tirará se isso me manda,

8/ib 24: Portguel 26: tiraame

467
APÊNDI CES

30 mais do que já até aqui mo tem mandado.


Ó triste reino, cego, ingrato os céus,
cruel contra o amor e contra mim,
cruel contra a minha alma que me querem
arrancar deste corpo! Ó rei cruel,
35 que te fez esta triste, que assi queres
roubar-lhe esta honra que lhe tem guardado
os céus, que pera mores a fizeram?

(ii) Coros do Acto I

[l]

Coro das Coimbrãs

Sáficos hendecasílabos

Este Cupido que os poetas fingem


filho de Vénus, filho do mar bravo,
que juntamente com fogo e com setas
persegue os homens: ó com que crueza
5 arma seu arco contra todo mundo!
Assi a região que vê nascer o sol,
como a região onde se o sol esconde,
assi aquela que à fervente Cancro,
como aqueloutra que à fria mor Ursa
10 estão sogeitas, suas frechas sentem,
seus fogos temem. Todos deles ardem
no mais secreto lugar das entranhas,
no meio da alma. Como em alvo acerta,
dali derrama por todalas veias
15 sua peçonha, seu ardente fogo .
No sangue quente faz alevantar chamas;
no sangue frio resuscitar toma
o fogo morto; no coração tenro
da casta moça que inda o não conhece
20 entra seu raio furiosamente .
Quanto acha estraga; nunca tal tirano
o mundo veio, nunca todo mundo
lançar o pode. Todos a seu jugo

30: qui 31 : O triste Título: hendecasillados 8: o fervente 13 : dalma

468
APÊNDICES

traz, não sei como, sábios, altos, fortes .


25 O ceptro rico do rei poderoso,
a forte espada, o invencível braço
do cavaleiro, a prudência e arte
do que mais sabe, que prestam pera ele?
Ó Tróia, Tróia, de que fogo ardeste?
30 Tu, louro Apolo, porque pastor foste?
Porque na terra tanto tempo andaste
em tão diversas formas como dizem,
Júpiter,-de ti? Tu, filho de Alcmena,
porque deixaste do !ião a pele
35 e porque as setas, porque a dura maça,
e os robustos dedos abrandaste
com anéis de ouro? Porque consentiste
dar os teus doces cabelos unturas
e, como fêmea no vistido e trato,
40 com roca e fuso aquelas ocupaste
mãos com que dantes os !iões e ussos,
bravas serpentes tão ligeiramente
despedaçavas? Mas pera que quero
ir-me tão longe? Tu, ó nossa Espanha,
45 forte, invencível, de que enfraqueceste?
Quem te entregou à danada seta
de que com tanto sangue te tiraram?
Este amor, este moço apetitoso
vence, destruí, mata, reina, vive.
50 Ninguém lhe escapa.

[2]
Coro mea rithma

Também arde e se encende


deste tão bravo fogo
o mar: também Neptuno
andou por Menalipe
55 e por Medusa ardendo.
Também vós outras, belas
Nereidas, lá no fundo
das verdes, negras águas,
sentis as cruas frechas

33 Alcumena 35: por a dura 46: a...sete

469
APÊNDICES

60 de Amor. Ó cousa estranha,


arder tão bravamente
no meio da água o fogo!
Também vós outras, aves,
desde aquela ave grande
65 de Júpiter até as outras,
não podeis com as asas
fugir deste, que as suas
tem muito mais ligeiras.
Que guerras, que batalhas
70 fazem os brutos touros
por seus amores! Que ira
os mansos cervos mostram!
E tu, lião de todos
temido, e tigre forte,
75 como ficais tão mansos
depois que amor vos vence?
Que cousa se achará
livre de amor no mundo?
No ar tem seu império,
80 como no mar e terra,
e assi que por agora
não é cousa de espantar
vencer-te a ti, ó ifante.
Daqueles olhos belos
85 que te cegaram a alma,
deles saíram duas
frechas que te cortaram
no meio das entranhas,
onde as tens tão pregadas
90 que nem em vida ou morte
de ti se arrancarão.
Ó cego, olha o perigo
em que pões honra e alma!
Vence-te ora a ti mesmo,
95 antes que o mal te vença:
não comprarás tão caro
triste arrependimento.

62 dagoa 65: tae 82: despantar

470
APÊNDICES

(iii) Versos do ifante (Acto V)

Mea rithma

Quem fará força a iia alma


que vive do costume
de ver uns belos olhos
de que recebe vida?
5 Mouro aquela hora toda
que me vejo tão longe
de ti, minha senhora.
De lá me estás chamando,
cá ouço teus sospiros
10 e entendo teus desejos.
Nem o céu estrelado,
nem o florido campo,
nem a gustosa água,
nem o conversar cos homens
15 me tiram este peso
com que me sinto sempre
quando de ti me aparto.
A ti me vou, senhora,
pera nunca partir-me
20 dessa fermosa vista
em que perfeitamente
descansam os meus olhos.
Fora de ti são cegos,
fora de ti não vejo
25 senão tristeza em tudo:
nas noites e nos dias,
nos montes e cidades.
As fontes me parecem
que estão sempre chorando.
30 Entristecem-me as aves
com seus alegres cantos.
As flores se me secam.
O mundo todo me é
um deserto mui triste.
35 Em tudo cansa esta alma,
em te ver só descansa.
Quem me aparta de ti,

3: ves 8: chamaudo

471
APÊNDICES

meu bem, quem me aparta


de ver o que deixando
40 um momento não vivo?
Não quero mais estado,
não quero melhor vida
que ver-te só e falar-te .
Este é meu reino todo;
45 nisso descanso e vivo.

472
APÊNDICE 3

JANIUS

Lycidas Mycon

LYCIDAS

Aspicis inclusum tumulo nunc corpus amici


qui campos linquens sidera clara tenet,
quem tristes flevere luci, quem flumina flerunt,
quem lacrimis montes ingemuere piis.
5 Ipsi etiam Fauni, Satyri, Dryadesque puellae
fletibus implerunt tristia rura suis.
Dum morsu attondent herbas, dum flumina mittunt
sicca per ora caprae, dum iuga summa petunt,
formosi Iaudes pueri celebremus. Honores,
10 clare puer, penetrent fletibus astra tui.
O Jani, quondam pastorum maxima cura,
aetatis nostrae gloria, ruris honor,
Iascivi custos pecoris, Dryadumque Ievamen
non parvum, mentis munera parva cape.
15 Accipe frondosam fagum Iaurumque virentem
et molles violas purpureasque rosas.
Sic tua Neptunus pisces in retia ducat,
sic mitem praestet se Galatea, Mycon.
Incipe quae humidas olim recinebat ad undas
20 cum lacrimis Francus carmina maesta puer.

MYCON

Heu nequeo meminisse iterum lacrimabile fatum,


nam mens luctifico iusta dolore cadit.
Hic semper tumulo flores appendit olentes,
hic sempre Francus thura sabaea cremat,

ANTT3: flerunt 17: si

473
APÊNDICES

25 et simul undantes revomens e pectore questus


singultuque secans verba frequenter ait:
'Heu, formose puer, lacrimantem Phyllida cerne,
scindentem crines purpureasque genas.
Heu, laus una tuis, steriles iam pulcher Apollo
30 destituit campos destituitque Pales.
Nunc tibi quae quondam cithara resonante canebant
in numerum Nymphae carmina laeta silent.
Nunc quoque nec choreas plaudunt, nec carmina dicunt:
interitu campos deseruere tuo.
35 Non fluvii lymphas, arbor non explicat umbras,
nec caelum !una sideribusve nitet.
Nec Phoebus radiis rutilans affulgit in orbe,
postquam te Parcae subripuere tuis.
ln tristes ovium nunc sunt conversa querelas
40 carmina punctarum, tristis avena tacet.
Implet et horrendis taurus mugitibus agros
suspirans tristes, orba capella furit.
Heu , dilecte puer, postquam te fata tulerunt,
conticuit Phoebus, conticuere Deae.
45 Pro violis spini laetis nascuntur acuti,
te vocat horrisono carmine silva furens.
Te lucus vocat umbrosus, te silva querelis,
unda etiam revocat, te nemus omne vocal.
Herba tuis, Jani, viridis crescebat ocellis;
50 crescebant oculis semina laeta tuis.
Ah, dilecte puer, quo non formosior alter,
lucida cui facies, cui decus oris erat!
Maesta vagi, Phyllis, ducunt suspiria venti
heu tua; nunc lacrimas despicit ille tuas.
55 Nunc habitat nubes, vario iam tempore liber,
non metuens fraudes insidiasque lupum.'

LYCIDAS

Dulce sonas. Lacrimis poterit quis parcere, cantu


caetera si cogis collacrimare tuo.
Aspicis obscurum humido caelum imbre, sonoris
60 aspicis ut ventis aequora vasta tument;
aspicis horrendum tauros per rura boantes,
aspicis ut tigres antra profunda petunt.

25: quaestus 40: puntarum

474
APÊNDICES

At modo dum flebas, tauri tigresque tacebant,


sistebant rapidas signa doloris aguas.
65 Et memini gemitus per noctem audisse silentem,
carmina sed reperi cortice scissa cavo.
Cum caneret, paribus resonabat vocibus unda
prodens interitus, ah puer alme, tuos.
Phyllida cur tristem, cur tristia rura relinquis,
70 rura, puer, pedibus non repetenda tuis?
Maesta Deos Phyllis crudeles nomine dicit,
crudelem !unam sidereumque polum.
Quid nunc conspiciam laetum, quid dulce putabo?
Laeta procul fugiunt, tristia fata manent.

MYCON

75 O Lycida, nostris nemo tibi certat in agris


carminibus. Clausuro duc in ovile pecus.

LYCIDAS

Tempora Iaeta Deus referat. Tu flumina quaere;


ipse pecus ducam. Nox venit atra, pluit.

FINIS

66: scisa

475
..
COMENTÁRIO
..
AOS BONS INGENHOS

Nesta poesia liminar Ferreira anuncia muito da temática de PL: o amor, o


patriotismo, o culto da poesia ou das Musas, e o desejo de comunicar só com um
grupo de amigos cultos. Pode ser comparada com Oi 1.

SONETOS

LIVRO I

Este soneto, tal como Si2, é introdutório. Em Si 1 apresenta-se o livro do nosso


poeta e na poesia a seguir a dama que vai ser o objecto do seu lirismo (Mamoto,
pp. 386-88). Há, portanto, um forte nexo entre as duas composições, fenómeno
que se verificará em muitos outros sonetos da sequência de Ferreira. A inspiração
de Si 1 é horaciana. Na epístola I, 20, o poeta romano também fala com o seu livro,
confessa os receios quanto à sua recepção e admite quantos anos tem (Castilho).

10-11 Quem te move ... danos: referência a alguém de quem o poeta espera
protecção, talvez a Musa, a própria amada ou algum mecenas.

Logo no primeiro soneto dedicado à amada, Ferreira liga estreitamente o seu


amor com a expressão poética.

7 c'um: com um.


13 cante ... Amor: que cante aquele a quem Amor inspira.
14 busco... fama: o verso é inspirado em Petrarca, Canz. l, 1.8: spero trovar
pietà, non che perdóno. Ferreira, tal como Sá de Miranda (Soneto 7, 1.14, em Poe-
sias, p. 71 ), não sabia que non che significa não só.

479
COMENTÁRIO

Este soneto aparece, com algumas variantes, no Cancioneiro Fernandes To-


más, fól.149r., onde está atribuído a Camões. Nenhum editor, porém, com excep-
ção de Teófilo Braga, julga que pertence na verdade ao poeta d' Os Lusíadas. A poe-
sia cabe perfeitamente em PL, já que forma par com o soneto subsequente (ver
notas a Si4). Por causa da origem supostamente camoniana do soneto, existem
várias discussões acerca dele, em Bismut ( 1970) p. 398 e nas edições de M. de L.
Saraiva, II, p.324 e de Berardinelli, p.662.

1 Eu não ... choro: Castilho nota que três sonetos de Petrarca, Canz. 229,230
e 252, começam pela oposição de canto a choro.
2-3 de ter-me ... em parte tal: de ter-me obrigado a amar uma dama tão altiva.
11 me deixa ... mágoa: o verso não é tão obscuro como Castilho julgava.
Significa: o Amor tem piedade do meu triste estado e por isso deixa-me. O Amor
que vai e vem é um topos frequente na poesia quinhentista. Ver por exemplo
Ecl I O, 1.8.
13 afronta: anseia-se. Morais documenta o uso intransitivo de afrontar em
dois autores do século XVI, Fr. João de Lucena e Francisco de Morais. Não são
necessárias, portanto, as modificações drásticas da pontuação do soneto propostas
por Berardinelli.

Marnoto vê nesta poesia uma recordação do início de Canz. 125, onde Pe-
trarca busca uma linguagem poética adequada aos seus pensamentos (pp. 404-5) .
Contudo, o soneto de Ferreira retoma também a temática do fogo e da água de
Si3, 1.14. A existência de um elo entre os dois sonetos é indicada pela palavra
igualmente de Si4 1.1. Em Si3 o poeta fala do seu mundo interior; na poesia
seguinte tenta exteriorizar os seus sentimentos.

5 as saudosas lágrimas: as lágrimas são o complemento directo de "se eu


podesse ... mostrar fora" (l. l ).

Este soneto aparece, com uma variante de pouca importância, no Cancio-


neiro Fernandes Tomás, onde está atribuído a António de Siqueira, figura quase
desconhecida. Tal como Si3, porém, cabe bem dentro de PL, já que forma par com

480
COMENTÁRIO

a poesia que se lhe segue. Com efeito, segundo nota Marnoto, pp. 393-4, tanto Si5
como Si6 são sonetos em louvor da mulher amada, cuja natureza divina se realça.

No soneto é evidente a influência de Canz. 348 (ver Fucilla, pp. 284-5 e


Marnoto, p. 393). Porém, como muitas vezes acontece, é o incipit da poesia
petrarquiana que mais atrai o nosso poeta: o resto do seu soneto segue um rumo
diferente. Na verdade, Canz. 348 é um soneto in morte que tem nos tercetos um
remate melancólico, enquanto Ferreira exprime uma alegria estática.

O soneto forma par com Si5.

3-4 qual... estrela: a amada é comparada com a lua também em Si38. A ori-
gem da comparação encontra-se em Horácio, Odes, 1.12, 11.47-9, micat... velut
inter ignes !una minores.

É o primeiro elemento de mais um par de sonetos. Em Si7, como em Si8, o


poeta confessa a sua fraqueza moral perante o poder do seu amor.

11 algum esprito: provavelmente o espírito da amada, que ocupa perma-


nentemente os pensamentos do amador.

Soneto famoso, pela ligação que possa ter com a biografia do poeta. Foi
Castilho o primeiro a notar que a repetição de S 'erra podia ser uma maneira de se
referir a uma dama com o apelido de Serra. A grafia de PL, S'erra, torna mais
provável a hipótese. Até agora, tem sido impossível identificar a amada de Fer-
reira (Roig ( 1970) pp. l 03-7), mas a importância simbólica da palavra na obra do
poeta é inegável (Earle (1990) pp.152-8). Em 1.14, ele tentar culpar a amada dos
efeitos da sua paixão, mas a palavra S 'erra/Serra, repetida tantas vezes, sugere
que havia no espírito do poeta alguma dúvid:i quanto à moralidade dos amores
profanos . A técnica deriva dos jogos de Petrarca com o nome de Laura, que pode
significar !'aura (brisa) ou lauro (louro/loureiro) .

1 S'erra: se é condicional, não reflexivo, aqui e no resto do poema.

481
COMENTÁRIO

Imitação de Canz. 148 (Fucilla, pp.286-7, Earle (1990) pp.130-3, Marnoto,


p. 393). Petrarca dirige-se aos rios do mundo, mas Ferreira, sempre patriota, res-
tringe-se aos de Portugal e aos da Ásia, porque a menção deste continente levava
automaticamente a pensar nos Descobrimentos. Nota-se também, em comparação
com o poeta italiano, a maior certeza do português ao falar da grandeza do seu amor.

1 Odiana: Guadiana.
2 Mondego... Lima: PL lê Avia, rio cuja existência não foi possível verificar.
Além disso, a inclusão do Avia faria um verso de 11 sílabas, já que Ferreira nunca
escande um -i- tónico seguido por outra vogal como uma única sílaba. O Ave é
um rio conhecido do Minho que caberia no esquema métrico do verso.
4 Hidaspe e Tana: respectivamente, o nome clássico de um afluente do Indo
e do Don.
5 enzinho: azinho/azinheira
8 do terceiro céu: de Vénus.

10

Este soneto, tal como Si9, com que forma par, exprime a confiança do poeta
na grandeza do seu amor. Há também no soneto, como em muitos outros, uma
estreita ligação entre os sentimentos do poeta e a sua expressão literária. Ferreira
está convencido de que os seus versos vão conferir imortalidade ao seu sofrimento.

5-6 fora ... podera: fosse ... poderia.


13 juntos nos lerão: as gerações futuras lerão da vossa aspereza e das mi-
nhas mágoas.

11

Soneto ligado com Si43, em que Ferreira imagina as águas do Tejo levadas
ao Oriente, e com Si46-7, em que o poeta, já contente com um novo amor, regressa
ao Mondego. Ver também Castro ll.1619~20: HO soberbo Mondego, com tal vista
[de Inês]/parece que ao grã mar vai fazer guerra".

É possível que esta poesia tenha sido enviada a algum amigo desconhecido
do poeta na Índia ( ver II. 9- l 4 ).

482
COMENTÁRIO

l vás: vais.
9 Tétis: divindade marítima, mulher de Oceano, que aparece também n 'Os
Lusíadas.

12

Neste soneto, o próprio nome da amada dá nova cor ao sol. A imagem do


sol aparece no soneto a seguir, mas com o sentido oposto. Há ainda uma ligação
entre Si 12 e Si38, em que o poeta soube dar uma significação mais profunda à
comparação entre a dama e a luz do dia (ver Earle (1986) p. 230).

13

Este soneto está ligado ao anterior através da imagística do sol. O poeta


explica que, porque não dormiu uma noite com desejo de ver a amada, ela não se
lhe mostrou na manhã seguinte. Já que, por um conceito visível também em Si 12,
a dama dá cor ao sol, o seu desaparecimento leva o astro a esconder-se. Há tam-
bém uma relação estreita com Si14, porque ambos são sonetos "dos olhos", do
poeta em Si 13 e da amada na poesia que se lhe segue. Com a referência a Serra
(1.5) confirma-se a integração do soneto com o resto da sequência.

6 vós: os olhos do poeta.


8 esperando... encerra: esperando a luz que vem da pessoa que proíbe os
olhos de vê-la.

14

Mais um soneto cuidadosamente integrado no conjunto do Livro I, já que é


o segundo dos dois sonetos "dos olhos", e o mesmo modelo construtivo (uma
série de apóstrofes) encontra-se em Si25. Em 11.9-12 aparece mais uma vez o con-
ceito olhos= sol que domina toda a série de Si12-14. Marnoto (p. 398) compara-
-o a um soneto do petrarquista italiano Lodovico Paterno que começa Occhi, non
occhi, anzi due chiare stelle. O Nuovo Petrarca de Paterno, editado pela primeira
vez em 1560, não podia ter influenciado a poesia de Ferreira, escrita em 1557 ou
anteriormente, mas o artificialismo das duas composições revela como o petrar-
quismo evoluiu de uma forma parecida dentro e fora da Itália.

12-13 por quem ... por quem: pelos quais. Na linguagem de Ferreira, quem
não é unicamente pronome pessoal.

483
COMENTÁRIO

15

Este soneto desenvolve o tema da ausência que foi introduzido em Si 13.


O tema assume uma importância maior depois de Si42. A técnica da pergunta
repetida é de origem petrarquiana. Ver, por exemplo, Canz. 299.

16

Soneto cujos quartetos mostram um poder notável de construção retórica,


em que uma série de anáforas conduz, em 1.8, a um ponto culminante cheio da-
quela força emocional que empolga o poeta sempre que pensa na sua própria arte.
Aqui proclama a imortalidade do esprito, ou a capacidade da criação poética.

6 se corre: envergonha-se.

17

Soneto cujo começo é uma imitação de Canz. 64, 11.1-2. No resto do poema,
Ferreira afasta-se da linguagem do original, mas o seu pensamento continua muito
semelhante ao de Petrarca (Fucilla, pp.287-8, Marnoto, p.405). Ambos os poetas
utilizam a constância de sentimentos para tentar persuadir a amada a não rejeitar
o seu amor. Marnoto considera, com alguma verdade, que Si 17 é um dos sonetos
"mais dolorosos", mas nele, tal como em Si 16, Ferreira não deixa de proclamar a
sua imortalidade.

A estrutura do soneto é feita de um único período, contrastando assim com


o poema anterior.

7 desposto: disposto a.

19

Si 18-19 são ambos sonetos em louvor da amada. Si 19 é uma imitação de


Canz. 220 (Fucilla, pp. 288-9, Marnoto, pp.396-7). Nos quartetos Ferreira segue
Petrarca de perto, mas nos tercetos afasta-se do modelo, e "daqui resulta o maior
apegamento ao terreno que é próprio da figura feminina que [no soneto] é can-
tada" (Marnoto).

9-1 O Antes ... tomaram: 1.9 tem uma estrutura quiástica, pela qual tanto al-
vura como cor são o complemento directo de tomaram .

484
COMENTÁRIO

20

No Índice do cancioneiro do p_e Pedro Ribeiro (ed. Castro, pp.146-7), em


que só aparece o primeiro verso, o soneto é atribuído a Diogo Bernardes. Não
está, porém, incluído com os outros sonetos publicados nas Rimas Várias de
Bernardes de 1597. Podemos alegar também contra tal atribuição a estrutura
numerológica do Livro I dos sonetos de Ferreira, a que seria difícil tirar ou acres-
centar qualquer composição, e o gosto do poeta pelo velho topos da fuga da alma
do amante para junto da amada.

2 aparece: parece.
11 então... salteais: volta subitamente a pensar em vós.

21

O soneto tem um papel importante na estrutura do Livro I, porque Ferreira


se lhe refere numa poesia posterior, Si46, em que volta à cena dos antigos amores
à beira do Mondego.

2 arço: ardo.
2-3 quem ... cantando: construção elíptica. Quem viu alguém cantar, vivo e
ledo, ao aproximar-se da morte? ·
4 desvario: a palavra reaparece, na mesma posição no verso, em Si46, 1.4.
6 vás: vais.
12-13 Tristes ... arde: construção elíptica, parecida com a de Si33, 11.1-3, na
qual parece faltar um verbo à oração relativa. Talvez seja possível pensar na frase
como se fosse um ablativo latino, quibus correntibus, o que significaria: tristes
lágrimas ... , por causa do correr das quais mais o peito arde.

22

Soneto dos mais engenhosos de Ferreira, em que insinua, através da sim-


bologia ligada ao nome da amada (Serra), que o seu sofrimento por amor é maior
que o do próprio Petrarca (ver Earle (1990) pp.153-4 ). O mito de Apolo/Sol/Febo
e a ninfa Dafne, que se transformou em loureiro ao ser abraçada pelo deus, é uma
constante no Canzoniere, devido à associação com o nome de Laura.

3-4 teu lume ... tiveste: o sol recebe a luz dum sol maior, i.e., da amada. Há
o mesmo conceito em Si 13 e 18. vás: vais.

485
COMENTÁRIO

9-1 O tu ... podias: podias tornar a tua planta branda para ti, apesar de ela per-
tencer à dura terra.

23

Nota-se neste soneto, como em muitos outros, a concepção altamente literá-


ria que Ferreira forma do seu amor. Em ll.3-4 a transformação da amada num texto
para leitura é ainda mais completa do que em Si 10 11.13-14.

2 já... posto: no mesmo lugar que eu.


7-8 ante quem ... feio : se o raio do sol é posto ao lado da amada ele (o sol)
fica escuro e feio. A construção com o particípio do passado posto imita a sintaxe
latina.

24

Como nota Mamoto (p.397), o incipit deste soneto é uma imitação de Canz.
198 ll.1-2. A imagem de Amor que faz um laço ou uma rede dos cabelos da amada
encontra-se em várias composições de Petrarca.

Este soneto forma par com Si25, também dedicado aos cabelos da amada. A
associação da amada com o sol é uma imagem usada em vári9s sonetos, como
Sil2-13 etc.

7-8 e parecia ... dece: quando os cabelos da amada se soltam ao vento o sol
parece aproximar-se da terra.

25

Este soneto, dedicado aos cabelos da amada, forma par com o anterior. Além
disso, retoma também o modelo construtivo utilizado em Si 14 (Marnoto, p. 398).

8 arço: ardo.

26

Neste soneto Ferreira associa, mais uma vez, os seus amores e os anseios
literários. Assim, alude ao seu medo da crítica hostil e injusta, tópico tratado também
em várias das cartas. A imagem do poeta alado (11.5-6) aparece em Oi5, 11.1-12.

486
COMENTÁRIO

5 com que: o pronome relativo remete para 1.2: com ter levantado o nome
da amada o poeta teria asas.
8 assome: aqui com valor transitivo, fazer assomar.
13-14 dela ... a: os pronomes são ambíguos, podendo remeter ou para a vista
da dama ou para a língua do poeta, indicação da íntima relação neste soneto, e em
muitos outros, entre literatura e amor. Ver Si30 1.14.

27

Soneto retórico em que Ferreira contrapõe estados psíquicos opostos para


chegar a uma conclusão triunfante.

4 como ... desejo: como morro (mouro) de a não ver quando desejo vê-la.
9 vivera: teria vivido.
12 fora ... perdera: teria sido ...tivesse perdido.

28

Soneto antitético, como o anterior, mas que chega a um fim trágico.

11 traz ... tento: toma cuidado.

29

Marnoto (pp.378-9) vê nesta poesia um bom exemplo de um soneto petrar-


quiano que não imita de perto nenhuma composição de Petrarca, embora exista
um certo parentesco com Canz. 145.

5-8 Ou corra ... inspire: nesta enumeração tumultuosa das forças da natu-
reza Ferreira perde um pouco a disciplina retórica que lhe é habitual e, consequen-
temente, não é fácil pontuar o quarteto. Adaptamos uma pontuação que respeita a
métrica, mas seria possível suprimir o ponto-e-vírgula depois de espire (assim se-
guindo PL). Igualmente, poder-se-ia ler no oriente com sol roxo. 7-8 na luzente ...
Amor: Vénus, a estrela vespertina.

30

Marques Braga encontrou um paralelo a este soneto em Garcilaso, Elegia 2,


11.49-69, onde a imagem do fogo e da água aparece juntamente com a temática da

487
COMENTÁRIO

ausência da amada. A existência do paralelismo não prova, porém, que Ferreira


tenha utilizado o poema espanhol.

3 o: a emenda é de Marques Braga. É evidente que a água apaga o fogo, e


não o contrário.
9 quedo: que não viaja, que fica junto com a amada.
10-11 parte ... partindo: Ferreira joga com os dois sentidos de partir, dividir
ou quebrar e sair.
14 pena ... arte: os substantivos ambíguos podem referir-se ou ao sofrimento
do amante e aos ardis do Amor ou ao triunfo do poeta. Comparar Si26 11.12-14.

31

Este soneto está ligado tematicamente com Si27, em que o poeta também
lamenta o seu nascimento (Marnoto, p.427), mas Si3 l chega a uma conclusão
triunfante. As referências ao dia natalício e o uso de palavras como céus e sorte
são indicações do interesse do poeta pela astrologia, que é visível também em
Si37 e nalguns sonetos do Livro II, como Siil0, 27 e 36.

É interessante comparar Si31 com o conhecido soneto de Camões, "O dia


em que nasci moura e pereça".

32

Outro soneto com remate optimista, em que Ferreira fala do seu amor com
uma convicção quase religiosa.

33

Soneto importante, porque marca o início da série das poesias do amor novo
que só acaba, após algumas peripécias, com a reunião triunfante dos dois amantes
no final do Livro I. Castilho, porém, (1, pp.40-1) acha que a série começa com
Si34. É tentador ver nestas poesias uma ·nota biográfica, a expressão do amor do
poeta pela futura mulher, Maria Pimentel. Contudo, há precedentes literários para
a mudança de um baixo amor para sentimentos mais elevados, na Vita Nuova de
Dante (Mamoto, pp.411-2) e nos sonetos de Boscán, que Ferreira certamente co-
nhecia (Earle (1986) p.233 ).

488
COMENTÁ RIO

1-3 Eu vi ... fermosura: construção elíptica, porque parece faltar um sujeito


a viram . Depois de 1.2 é necessário subentender uma frase como "fez com que os
meus [olhos] vissem outra .. .fermosura". A explicação da dificuldade destes ver-
sos talvez se encontre em 11.9-11.
8 consume: como sempre em Ferreira (ver, por ex., Cii6 1.31).
9-11 Nesta ... arte: o desejo de dar prazer à amada é vão, porque ela existe
numa esfera para além dos prazeres terrestres. Contudo, o poeta continua a bus-
car uma linguagem digna dela, tema que retoma nos sonetos seguintes.

34

Continua e desenvolve o amor novo anunciado no soneto precedente.

6 do que: do Amor que.

35

Soneto em que Ferreira declara que o seu amor novo terá uma expressão
nova. Com efeito, vários dos sonetos da sequência triunfante desenvolvem tópi-
cos enunciados pela primeira vez em sonetos anteriores. No caso presente, Si35
pode ser considerado uma re-escrita em termos optimistas de Si26.

36

Este soneto é atribuído a Sá de Miranda na edição de Michaelis de Vascon-


celos ((1885) p.596). Na edição presente tem a abreviatura MdeV. Pina Martins
aceita a atribuição, por razões estilísticas ( (1985) p. 7). Marnoto, porém, (p.409)
encontra paralelismos entre Si36 e Si54 e aponta que Si36 cabe bem dentro do
grupo dos sonetos de triunfo. Michaelis de Vasconcelos não diz quase nada acerca
do soneto e, evidentemente, não sabia que tinha sido impresso em PL. Deve ter
considerado que a poesia era de Sá de Miranda porque vem no MS Juromenha,
colecção provavelmente quinhentista, em que há muitas composições do poeta do
Neiva. Contudo, há um grupo de poesias no MS, nos 181, 184 e 187, que, segundo
a editora, podem não pertencer a Sá de Miranda (ver a introdução à sua edição,
p.lx, e as respectivas notas). Já que Si36 vem na mesma secção do MS (onde tem
o no.185) é lícito concluir que ele também não é de Sá de Miranda e que tem todo
o direito de ser incluído em PL.

489
COMENTÁRIO

8 olhei e vi: há hiato de olhei e e, mas a leitura de MdeV, pela qual o hiato
desapareceria, não é necessariamente superior. O nosso poeta não temia os hiatos,
e neste mesmo soneto há hiato de o e achei (1.3) e de que e ai (1.14).

37

Poema que marca uma etapa nova na série dos sonetos de triunfo. Em Si33-
-36 persistia ainda uma nota, ténue embora, de desconfiança relativa ao amor
novo, mas a partir do soneto presente, até Si4 l, todas as dúvidas desaparecem.
Aqui a amada faz parte dum mundo bucólico, tranquilo, contrastando com as poe-
sias de amor não correspondido, por exemplo, Si29.

8 estrelas e fados: talvez a estrela infeliz sob a qual o poeta nasceu. Ver Si3 l .

38

Um dos mais belos sonetos de Ferreira, cujas ressonâncias se sentem em


outras composições de PL, como Si39 e 44, El3 ll .8-11 , EIS ll.14-15 etc. Além
disso, Si38 desenvolve a imagística da poesia anterior, em que a amada foi com-
parada ao sol que ilumina o mundo pastoril, e está ligado a Si 12, de que é uma
reescrita aprofundada (ver Earle ( 1990) pp. 139-40).

5 a branca Délia: a lua. Délia foi um dos nomes da deusa Diana que, segundo
a mitologia greco-romana, se identificava com a lua.
7 tempestosas: tempestuosas.

39

A temática da renovação de Si38 desenvolve-se em Si39 através da imagem


do porto em que a alma cansada busca salvamento, ll. l-2.

40

2 Vulcano: Vulcano, o deus-ferreiro, fez uma rede subtil em que aprisionou


a mulher, Vénus, e o amante, Marte, e os exibiu a todos os habitantes de Olimpo.
9-1 O Triunfem ... vivos: em Roma os generais vitoriosos celebravam triun-
fos em que se exibiam perante o público os prisioneiros que tinham tomado. Para
o triunfo como tema dos sonetos de Ferreira, ver Mamoto, pp. 410-11.

490
COMENTÁRIO

41

Si41 é o ponto culminante dos sonetos de amor triunfante. Na primeira es-


trofe o poeta retoma a comparação de Si39, entre a amada e o porto a que se chega
depois de uma tormenta. No resto da poesia desenvolve a imagística do triunfo
romano de Si40.

4 faro: farol.
12 arço: ardo.
14 botas: sem fio, rombas e, portanto, inúteis.

42

O primeiro de uma série de quatro sonetos em que o poeta lamenta o estar


longe da nova amada de Si33-4 l.

12- 14 e quanto... dura: nesta frase, de sintaxe económica e elegante, quanto


de meus bens é o complemento directo de figura e o sujeito de davam e de dão.

43

Soneto especialmente interessante, porque é o objecto dum comentário que


parece ter sido escrito pelo próprio filho do poeta, Miguel Leite Ferreira. Com
efeito, num exemplar de PL guardado na Biblioteca Geral da Universidade de
Coimbra (onde tem a cota de V.T. 18-7-25), há uma nota marginal em letra qui-
nhentista que reza "este soneto fez meu Pai embarcando no Tejo vindo p3 o Porto
a minha mai q morava em monte sinai." (Monte Sinai é um bairro do Porto).
Existem ainda outras notas, mais breves, que indicam que, na opinião de quem as
escreveu, toda a série Si43-58 foi dirigida à mesma dama. A assinatura de Miguel
Leite não aparece no exemplar, mas é difícil conjecturar quem teria sido o autor
das notas se não um filho do poeta. Mas o que diz será verdade? Miguel Leite era
filho de Maria Leite, segunda mulher do poeta. Nunca chegou a conhecer o pai e
ainda menos Maria Pimentel, segundo a interpretação biografista da sequência o
amor novo do poeta, mas que morreu em 1557 ou pouco depois. Por isso, a infor-
mação que ele nos dá terá vindo de fonte pouco segura.

Além disso, o comentário a Si43 é pouco ajustado ao conteúdo do soneto,


que não parece ter sido escrito em vésperas de uma viagem. É antes uma prece ao

491
COM ENTÁ RIO

Rio Tejo para que receba não o poeta, mas as suas lágrimas, e que as mostre à
amada. Mamoto, pp. 413-14, nota a semelhança entre este soneto e Canz. 208,
Rapido fiume che d'alpestra vena, em que Petrarca pede ao rio Ródano que leve
uma mensagem de amor a Laura, naquela altura residente em Avinhão, cidade que
se encontra na margem esquerda do Ródano, la tua riva manca (1.10) . Se tomar-
mos o soneto de Ferreira ao pé da letra, a amada morava não no Porto, mas no que
parece ser a Serra de Sintra, que se encontra à margem direita do Tejo "à destra
mão da tua praia"(!.! 0). A mudança da esquerda para a direita é sugestiva e indica
que Ferreira tinha em mente uma localidade geográfica precisa. O soneto talvez
seja de 1556 ou 1557, data por volta da qual o poeta se tinha mudado para Lisboa.

4 Pales, Pomona e Flora: respectivamente divindades dos gados, das frutas


e das flores.
9 E antes ... direito: tradução de Can z. 208, 11.6-7.

44

Outro soneto de ausência, em que Ferreira retoma e transforma a imagística


pastoril de Si37. Em 11.13-14 lamenta o desaparecimento do tempo calmoso que
tinha celebrado em Si38.

13 ou que não sinta: entende-se "ou força é que não sinta". Se o poeta não
chorasse, não sentiria a dor.

45

Soneto em que Ferreira faz um contraste entre as recordações visuais que


tem da amada, 11.1-4, e a memória das palavras pronunciadas no momento da par-
tida. Segundo ele, a palavra escrita ou falada tinha uma força comunicativa muito
maior que uma imagem pictórica (ver também Epigl e Ci8 ll.47-5l).

5-6 arrancando duas almas: é necessário subentender estavam. Duas lê-se


como um monossílabo, como em Sii28 1.3 e Cii7 1.59.
7-8 que a que ... acompanhando: momento de comunhão espiritual entre os
amantes, como diz Marnoto, p.412.

46

Este soneto, como Si47, marca uma nova etapa na narrativa da vida emo-
cional do poeta, que volta ao Mondego e lá evoca os seus antigos amores fracas-

492
COMENTÁRIO

sados com a cruel Serra, aos quais chama desvario, palavra utilizada num soneto
anterior dedicado ao rio, Si2 l. A experiência leva-o a celebrar o contentamento
que o novo amor lhe proporciona em linguagem que tem um paralelo em Si38. A
volta à cena de um antigo amor é um tópico petrarquiano (ver Canz. 301).

13 rim: riem.

47

Neste soneto, como no anterior, Ferreira visita o sítio dos seus antigos amo-
res com Serra.

5 fráguas: fornalhas, mas é possível que Ferreira tenha pensado também em


frágua no sentido de fraga, que recorda a dureza de Serra.
IO üa voz ... desfeita: os sonetos que tinha composto em louvor da primeira
amada.

48

Este soneto dramático, entre os melhores que Ferreira escreveu, é o primeiro


de uma série de poesias (Si48-5 l) em que ele continua a lamentar a ausência da
amada mas sente também a certeza de que o seu amor é correspondido. O soneto
é, além disso, uma re-escrita de Si 13, cuja artificialidade transcende e transforma.

12-3 Ditosas ... penas: as aves são ditosas porque podem voar até onde mora
a amada.

49

Soneto baseado em Canz. 288 (Mamoto, pp.415-6). Mas enquanto Petrarca


chora a perda irremediável de Laura, Ferreira crê ver a amada, mesmo se só na
imaginação.

l Vou ... enchendo: é uma tradução do primeiro verso do soneto de Petrarca,


l' ho pien di sospir quest'aere tutto.
7 as altas serras: possivelmente a Serra de Sintra (ver Si43), ou pode tratar-se
simplesmente de aproveitamento dos aspri colli e dos monti de Petrarca (11.2 e 9).

493
COMENTÁRIO

50

Soneto pastoril, em que aparecem algumas das personagens de Écl6 e 9


(para um outro soneto relacionado com uma écloga, ver Sii28). Alcipo é o mais
conhecido dos vários pseudónimos pelos quais o poeta se designava (Roig ( 1970)
p.112, Earle ( 1990) pp.163-4) e Marília é o nome poético de Maria Pimentel. Tal
como Si43, Si50 é uma prece ao rio para que leve uma mensagem de amor.

1-12 Assi... apresente: a sintaxe latinizante é baseada num passo de


Virgílio, Écl.10, ll.3-5 (Castilho) ou 9, ll.30-2. Assi é equivalente ao latim sic. Em
português moderno o sentido da longa frase seria: se queres, meu rio, que a tua
clara água vá correndo ... , se queres que um canto de amor esteja detendo o cam-
inhante e que Marília em ti se banhe: neste caso, manda as lágrimas saudosas ...
Há uma construção semelhante em Oi6 ll.l-ll e em Écl2 ll.19-27.
2 meu rio: talvez o Tejo, a que, em Écl9, Alcipo e Marília estão associados.
5-6 canto... estê: Castilho lê cantos ... estem (= estejam), o que seria portu-
guês mais normal, mas é arriscado emendar um texto, como PL, que normalmente
é correcto.
10 contra a corrente: o poeta pede ao rio que desvie a corrente para onde
está Marília.

51

1 triste: triste de mim.


3 daquela doce parte: da parte onde está a amada.
5-6 Vereis... messageiros de Amor: os messageiros são os suspiros da
amada que o poeta recolhe no peito e com os quais conversa.

52

Soneto misterioso, que suscitou várias conjecturas acerca da identidade da


dama de 1.14. Cristóvão Alão de Morais, autor setecentista da Pedatura Lusitana ,
diz que ela é Maria Leite, segunda mulher do poeta (Roig (1970) pp.125-7), opi-
nião seguida pelo próprio Roig e por outros. Segundo o artigo bem informado de
Silva Terra, pp.13-25, tal identificação não passa de uma mera hipótese. Podemos
acrescentar aos argumentos aduzidos por Silva Terra que é pouco provável que
Ferreira tenha dedicado o mesmo soneto a duas famílias, Sá de Meneses (1.2) e
Leite. Parece mais verosímil que todo o poema seja um elogio de vários dos Sá
de Meneses, família muito admirada pelo poeta. A metáfora central da poesia

494
COMENTÁRIO

leva-nos à mesma conclusão, porque não há razão para separar a planta de 1.7 do
tronco de 1.9. Além disso, o soneto não parece ser uma poesia de amor. Falta a
paixão dos outros sonetos de Livro I, em que nunca aparece a palavra dama, que
o poeta deve ter considerado demasiado fria e respeitosa. (Serve-se sempre do
termo senhora ao dirigir-se à amada). É possível que a dama seja D. Ângela de
Noronha, jovem quase desconhecida ligada por parentesco aos Sá de Meneses,
cuja morte Ferreira chora em Sii22 e Epitl5-16. Porém, em Si52 ela parece estar
viva, ou Ferreira não teria usado o tempo presente em 1.7. Podemos concluir uni-
camente que, nesta poesia, Ferreira lamenta não encontrar no Porto uma senhora
desconhecida ligada à família dos Sá de Meneses. De qualquer forma, o soneto
não destoa dos outros que o cercam, porque é, como eles, uma poesia em que se
lamenta a ausência de alguém. Ferreira talvez o tenha incluído no Livro I por
razões numerológicas.

53

A partir deste soneto, o poeta exprime um desejo cada vez mais veemente
de rever a amada. Efectivamente, em Si58, última composição do livro, os dois
amantes encontram-se de novo.

2 obgeito: em PL a mesma palavra é escrita objeito (Ci8, 1.90) e objecto


(Sii25, 1.3).

54

12-14 Faça ... veja: o contraste parece ser entre os desejos múltiplos do cobi-
çoso e a atitude do poeta, que só quer contemplar a amada.

55

12 olhos meus... fontes: tradução da 1.4 de Canz. 161, 1.4 (Marques Braga),
mas em outros aspectos as duas composições têm pouco em comum.

56

Soneto em que reaparece a imagística da tormenta e da bonança de Si48 e Si39.


1Ovencia ... ao fraco esprito: o verbo é seguido da preposição a também em
EIS 1.76.

495
COMENTÁRIO

57

Soneto ligado ao precedente, através da imagem do sol que desaparece em


Si56 e volta a aparecer em Si57, e ao que se lhe segue, pela semelhança entre os
incipit. É também uma imitação de Canz. 18 (Fucilla, pp. 289-90, Marnoto, p. 350),
e Ferreira serve-se de algumas das palavras do original para rimar, embora exprima
uma confiança no seu amor que falta a Petrarca (Earle (1990) p. 147). Segundo
Marnoto, p. 413, este é o único soneto de Ferreira em que é feita alusão ao desejo,
mas a palavra aparece como verbo em Si 15, 30, 54 etc.

6-7 onde ... vista clara: o sujeito da frase é a vista clara.


10 entre altas serras: a serra onde morava a amada, talvez a Serra de Sintra
(ver Si43).

58

Soneto em que se descreve a reunião triunfante dos amantes. Assim forma


um belo remate a todo o primeiro livro, mas nem por isso deixa de ser uma tessi-
tura de imitações de Petrarca.

Não é impossível que Ferreira tenha alterado ll.l 3-14 depois da morte de
Maria Pimentel. Em 1557 quando, segundo ele, o Livro I dos ~onetos se acabou
de escrever, Maria ainda estava viva, e Si58 podia ter tido uma conclusão menos
dramática.

1 Quando ... rosto: verso semelhante ao incipit de Si57 e, portanto, imitação


de Canz.18, 1.1 (Mamoto, p. 350).
3 ditosa ... ano: Canz.61, 1. 1.
4 como cera ... posto: Canz.133, 1.2.
9-10 Aquele ... vivo: Canz.93, 1.4.

LIVRO II

Sii 1-13 são todos poemas em que se lamenta a morte da amada e primeira
mulher do poeta, Maria Pimentel. Sii 1 serve como introdução à colecção. Petrarca
também tinha dividido o Canzoniere em dois livros, de que o primeiro consistia

496
COMENTÁRIO

de poesias invita, e o segundo de poesias in morte. Porém, nem todos os sonetos


do segundo livro de Ferreira são poesias fúnebres , e ao estruturar a colecção
seguia critérios diferentes dos do poeta italiano. (Ver Introdução, pp. 32-3).

A vida de casada de Maria foi muito breve (ver o soneto presente, 1.9, Sii3
11.10-11 etc) . Não se sabe a data exacta do seu enlace com o poeta, provavelmente
entre 1557 e 1559, nem a da sua morte prematura. (Ver as notas a El5.)

1 Almonda: o rio Almonda passa por Torres Novas, onde vivia a família
Pimentel, a que pertencia Maria (ver Roig (1970) pp. 109-10).
6 alma ... dina: inspirado em Canz. 267, 1.7 (Castilho).

Soneto muito ao gosto oitocentista de Castilho. Forma par com Sii3 .

7-8 iia hora ... nos soberia: saberia (subiria) tem sentido activo : üa hora for-
nos-ia subir. Ver Sii 11 1.8. O desejo de morrer ao mesmo tempo que a amada
encontra-se também em Sii8.
9 cárcer: cárcere.

No último terceto deste soneto, como no do anterior, Ferreira exprime a sua


convicção de que a alma da mulher lhe mostra o caminho para a salvação. Em
ambos poemas também se encontra a imagem da prisão, mas enquanto em Sii2
Ferreira se dirige à alma da mulher, em Sii3 foca o seu próprio corpo de cujo peso
se deseja ver libertado. O anelo de uma reunião espiritual que aqui se exprime
encontra-se também em Sii8.

3 volta: voltada.

É uma reescrita, em termos fúnebres, de Si4, que é igualmente um diálogo


com Amor e com o qual também tem em comum algumas frases e a imagística da
riqueza e da pobreza. Além disso, há paralelismos entre Sii4 e alguns dos sonetos
"dos olhos" do Livro I.

497
COMENTÁRIO

Soneto em que se sente o ambiente de Sii2. Maria aparece como guia para
os céus, mas o poeta continua a ser "perdido peregrino no deserto". A poesia
segue de perto Canz. 306 (Fucilla, pp. 290-2; Mamoto, p. 419-20), mas este facto,
como nota Fucilla, não impede Ferreira de descrever um estado de espírito que lhe
é próprio. O primeiro quarteto faz lembrar Si38, ll.3 e to.

Soneto em que começa a aflorar uma atitude mais convencionalmente reli-


giosa perante a morte. Ver também Sii9 e 11. Fucilla, p.292, vê a influência de Canz.
348 nesta poesia, mas as semelhanças limitam-se à referência ao paraíso de 1.6.

Nesta poesia Ferreira volta a uma dor sem limites. Contudo, o soneto é bem
equilibrado, porque nas estrofes 1 e 3, em que há reminiscências de Si2 l, ele lem-
bra as emoções sentidas durante a vida da amada, enquanto nas estrofes 2 e 4
pensa na finalidade da morte.

Neste soneto, o poeta levanta, mais uma vez, a possibilidade de uma reunião
espiritual entre os dois amantes (11.12-14).

7 que um golpe os corte: que morram no mesmo dia. Ferreira exprime o


mesmo sentimento em Sii2.

Há uma discussão útil deste soneto em Mamoto, pp.422-4. Ela nota que no
livro ln Morte do Canz. são várias as poesias em que Laura fala com Petrarca.
Podemos acrescentar que, em todas elas, Laura fala com o amigo de além do
túmulo. Contudo, no soneto de Ferreira, temos as últimas palavras de Maria
enquanto ainda estava viva, uma indicação da ortodoxia do nosso poeta, que aqui

498
COMENTÁRIO

não admite a possibilidade de um diálogo com os mortos . Mas a sua ortodoxia


tinha limites, e em EIS , poesia dramática e cheia de conflitos não resolvidos, Ma-
ria fala com Ferreira do céu.

2 sembrante: semblante, rosto.


8 no céu terceiro: na esfera de Vénus.

10

Soneto, como Sii7, em que Ferreira mais uma vez sucumbe à fraqueza e con-
fessa o desejo de morrer.

l Qual bom... sino: O ritmo deste verso é semelhante ao do primeiro verso


de Canz. 221 . sino: destino.
14 em quanto vejo: jogo de palavras, que significa "em tudo o que vejo" e
"enquanto vivo e vejo com os olhos do corpo".

11

A presença de Alcipo, projecção pastoril do poeta, justifica-se neste soneto


porque é um lamento sobre o túmulo de Maria. Tais lamentos são frequentes nas
éclogas de Ferreira e dos seus contemporâneos.

8 a subiu: subiu tem sentido activo, como em Sii2 1.8.


14 Tu ... viste: Tu, Amor, afirma ao mundo [a grandeza] do espírito [de
Maria] que viste.

12

Para a função deste soneto na estrutura do Livro II ver a Introdução, p. 21.


A partir de Sii.14 Ferreira evita falar mais da morte de Maria, o que é uma indi-
cação da importância do poema de Silveira. Os restantes sonetos do livro tocam
temas públicos e religiosos ou são dirigidos a amigos. É verdade que em certas
poesias de natureza mais íntima, Sii23-4 e 26-8, Ferreira menciona os seus des-
gostos amorosos, mas discretamente e de uma maneira que escapou a Castilho e
a Marques Braga. Assim, como bom estóico, o nosso poeta recupera o equilíbrio
e, além disso, manifesta independência relativamente a Petrarca, cujo livro de

499
COMENTÁRIO

poesias ln morte di Madonna Laura é feito exclusivamente de poesias de mágoa


e de amor.

Para informação acerca de D. Simão da Silveira, ver as notas à Cii 10.

4 deu: aconteceu.
11 sembrante: semblante, rosto.

13

A resposta de Ferreira é a chamada "resposta pelos consoantes", em que se


repete a palavra final de cada um dos versos do soneto anterior. Na poesia Ferreira
atribui ao amigo o poder órfico de fazer ressucitar os mortos com o canto. É uma
ideia que repete em Écl6, 11.130-2 e 145-51. Nada diz, porém, de Eurídice, mulher
de Orfeu, que o poeta foi buscar ao inferno. A omissão talvez se deva à relutância
de Ferreira em entrar demais nos pormenores da mitologia clássica.

9 Foi ... desatino: o desatino foi um remédio porque levou Silveira a dar con-
selhos ao amigo Ferreira.

14

Apesar do que dizem Castilho e Roig ( 1970) p.128, este soneto não faz parte
da sequência amorosa. O uso da 2ª pessoa do singular, e não do plural (como é o
caso invariável em todos os sonetos dedicados à mulher amada), e a ausência de
referências aos sentimentos pessoais de quem escreve indicam que a poesia é
dirigida a alguma figura pública da época (ver Earle (l 986) pp. 233-4 ). A desti-
natária é provavelmente a Princesa D. Joana, e a data da composição Dezembro
de 1552, quando ela atravessou o Tejo para ir ao encontro do futuro marido, o
Príncipe D. João. Na écloga Arquigâmia, da mesma época, a princesa é também
associada à deusa virgem Diana.

2 lá onde ele... escurece: Lisboa, a parte mais ocidental da Europa.

15

O soneto não tem dedicatória, mas é evidente que o rei é D. Sebastião, que
atingiu a maioridade com a idade de catorze anos em 20 de Janeiro de 1568, data
presumível do poema. Naquele dia o Cardeal D. Henrique prestou contas da sua

500
COMENTÁRIO

regência, começando por dizer que entregava os reinos "quietos, e pacíficos no


estado em que estão" (Azevedo Cruz, II p. 225), afirmação a que Ferreira se pode
referir nas 11.9-10. A ameaça turca, porém, ainda se sentia (Azevedo Cruz, II p. 229),
como se vê da 1.12.

16

Ferreira dedicou um soneto (Sii43) à Rainha Santa Isabel e referiu-se-lhe em


Écl l 11.60-2. É muito ·provável, como afirma Castilho, que ela seja também o
sujeito de Sii 16, pelas razões seguintes: o "real estado" da pessoa louvada, o facto
de ela ser "bem-aventurada", sinónimo de beatificada (D. João III pediu a beati-
ficação da Rainha Santa em 1553), e a veneração do túmulo, mencionada em
Il.l 3-14. Ferreira, porém, não descreve os milagres da Santa, o que teria deixado
a dedicatória do soneto sem sombra de dúvida, mas prefere, de uma maneira que
lhe era muito típica, focar as suas qualidades morais e espirituais. Em 1550, quando
D. João e D. Catarina visitaram Coimbra, a rainha rezou fervorosamente junto ao
sepulcro de Isabel, no convento de Santa Clara, o que é uma indicação de como o
culto da Rainha Santa se associava com o destino do reino inteiro. Será provavel-
mente por esta razão que Ferreira emprega a primeira pessoa do plural nesta poe-
sia e em Sii.43. Ver também Ecl l. 11.60-2.

O soneto podia datar de 1553 (data da beatificação definitiva), de 1554 (a


Rainha Santa foi muito invocada durante a crise provocada pela morte do Príncipe
D. João) ou ainda de 1556, quando o Papa permitiu que o culto da rainha se espa-
lhasse por todo Portugal e o rei mandou ao reitor da Universidade que houvesse
em cada ano uma celebração em seu louvor. (Ver António de Vasconcellos, I pp.
238-9 e 300-1 O) .

17

O soneto não tem dedicatória em PL. Castilho (1, p.84) julgou que nela Fer-
reira se dirigiu a todos os membros da família real portuguesa da época. Marques
Braga, sem alegar razões, diz que é dedicado aos príncipes D. João e D. Joana. Os
paralelismos temáticos entre o soneto e Oi2, certamente dedicada ao par real, suge-
rem que a opinião de Marques Braga é correcta. No soneto e na ode, 11.16-27,
Ferreira refere-se a uma obra de arte, provavelmente uma escultura, que ia ser
feita dos príncipes, e não é difícil chegar à conclusão de que as duas poesias foram
compostas na altura do casamento de D. João e D. Joana em Dezembro de 1552.

501
COMENTÁRIO

O argumento, algo fantástico, do soneto é que a natureza divina dos príncipes


toma impossível qualquer criação artística digna deles.

l Apeles ... Lisipos: como diz Marques Braga, respectivamente o mais


famoso pintor e o melhor escultor da Antiguidade. Mas é importante acrescentar
que ambos trabalharam ao serviço de Alexandre Magno, uma das maiores per-
sonagens da história grega, para com quem, porém, Ferreira tinha sentimentos
altamente ambíguos . Neste passo insinua que Alexandre era uma figura menor,
relativamente a D. João e D. Joana, porque Apeles e Lisipo, que o delinearam tão
bem, teriam sido incapazes de captar "as figuras" dos jovens príncipes.

18

Soneto dedicado ao casamento de D. Jorge de Lencastre, filho mais velho do


Duque de Aveiro e Marquês de Torres Novas, com uma fidalga castelhana, D. Mag-
dalena Girón, irmã do primeiro Duque de Osuna e filha de Juan Téllez Girón,
quarto Conde de Urefia. As três deusas da poesia são as que se submeteram ao
juízo de Paris para ver quem era a mais bela, sendo portanto as mais dotadas de
todas as habitantes de Olimpo.

D. Jorge nasceu em 1547 ou mais tarde (ver notas a Sii20). Não há referên-
cias ao casamento antes de 1570, ano em que nasceu a sua única filha, D. Juliana
(Neves, p.27). O enlace devia ter-se realizado pouco antes, em 1568 ou 69, de
forma que Sii 18-19 devem ser entre as últimas composições poéticas de Ferreira.

2 planta: filha (ver também Soneto I, 52, 1.7).


3 Não é... acharam: Juno, sendo rainha do céu, considerava-se naturalmente
senhora da honra e da riqueza.
8 dões: dons.
9 fora: teria sido.
11 não vira... vencida: não tivesse vindo tão vencida de Cupido, filho de
Vénus e deus do amor.
13-4 eu sofro ... concedida: Júpiter amou muitas ninfas, mas teve de ceder
Magdalena a D. Jorge.

19

D. Jorge de Lencastre foi o único fidalgo do grau de marquês a quem Fer-


reira costumava dirigir-se em verso. Se Sii 19 é, efectivamente, dedicado a ele, o

502
COMENTÁRIO

soneto está emparelhado com o que o precede e que Ferreira enviou à esposa do
jovem fidalgo. Assim Siil8-20 formariam uma série de três, todos dirigidos aos
filhos do Duque de Aveiro.

Marques Braga chama a atenção à influência de Garcilaso nesta poesia. Com


efeito, o soneto 21 do poeta espanhol, Clarísimo Marqués, en quien derrama,
começa com as mesmas palavras que o soneto português, e embora não haja ou-
tras citações direct~s, o pensamento das duas poesias é quase idêntico.

14 o templo: o templo das Musas, ou a imortalidade.

20

Castilho (1, p.111) e Marques Braga afirmam que este soneto foi destinado
a D. Pedro Dinis, irmão do Marquês de Torres Novas, o que é provável mas não
absolutamente certo. Ferreira chama ao destinatário do poema Dom Pedro, e não
D. Pedro Dinis, mas utiliza a forma abreviada do nome em SC 1.32, narrativa que
foi destinada com certeza aos dois irmãos. Do destinatário a poesia nada nos diz
além do nome e do facto de ele ser ainda muito novo. O Duque de Aveiro, D. João
de Lencastre, casou-se em 22 de Fevereiro de 1547, de forma que o segundo filho,
D. Pedro Dinis, não podia ter nascido antes de 1548. Em 1560, porém, o pai
deixou-lhe no testamento a capitania de Porto Seguro no Brasil, facto prometedor
que podia ter ocasionado o soneto de Ferreira.

21

O soneto vem logo a seguir a uma série de três dedicada a membros da casa
ducal de Aveiro. O título honorífico de Dom indica que, como eles, D. Diogo per-
tencia à alta nobreza, mas não consta que houvesse alguém com este nome entre os
Lencastre. O que é certo é que não pode ser identificado com Diogo de Betancor,
amigo do poeta que morreu jovem e que era de uma família sem grande distinção.

É evidente que D. Diogo era mais uma pessoa que Ferreira queria recrutar
para o grande projecto dos "bons engenhos".

22

Este soneto fúnebre não tem dedicatória. Todos os comentaristas, porém,


julgam que o António da primeira linha é António de Sá de Meneses. Ele era o

503
COMENTÁRIO

único António conhecido do poeta que estava relacionado com o Douro e o Lima.
Vivia no Porto e era casado com D. Inês de Noronha, filha de D. Francisco de
Lima, Visconde de Vila Nova de Cerveira. O pai de António, João Rodrigues,
casou-se pela segunda vez com D. Catarina de Noronha, irmã de D. Inês (Silva
Terra, pp.19-20). É de presumir que a Ângela da 1.14 seja D. Ângela de Noronha,
a quem Ferreira dedicou Epit 15 e 16. Não se sabe exactamente quem ela era, mas
podia muito bem ter sido filha ou neta de António que morreu nova (Silva Terra,
p.46). Silva Terra provou, com documentação abundante, que não era mulher de
António de Sá de Meneses, o que é um erro repetido por muitos críticos.

l Lima: Ferreira refere-se aqui simultaneamente ao rio e à família dos Lima.

23

O poeta Pero de Andrade Caminha teve várias irmãs (ver Vasconcelos (1982)
pp.64-5). Uma delas, D. Ana de Toar ou de Tovar, não gozava de boa saúde (ver
o epitáfio 26 em Andrade Caminha, ed. Anastácio, p. 1049) e pode, portanto, ser o
assunto deste soneto. Morreu em data desconhecida, mas depois dos pais, que
faleceram entre 1553 e 1556. Ferreira dedicou-lhe Epit 17.

Neste belo soneto Ferreira contrasta a calma religiosa da vida de Andrade


Caminha e da irmã com a sua própria existência atribulada (ll.9-14). A poesia
parece pertencer ao período de Si33-4 l , período esse em que procurava um amor
mais santo (uma referência possível aos amores com Maria Pimentel, primeira
mulher do poeta). O último verso de Sii23 faz lembrar vários sonetos do "amor
novo", por exemplo, e Si33, 11.7-8, Si34, 11.IO-l l, Si35, 11.9-IO etc .

5-6 e quantos passos ... casa: uma referência a uma promessa de peregrina-
ção que o poeta cumpriu durante a doença da irmã (Vasconcelos (1982) p. 65n.) .
A "casa" será o reino dos céus (pela metáfora, ver S. João 14:2).
12-14 que ... em santo fogo: suspiro (1.9) que me veja arder quieto em santo
fogo, ao sol claro, à doce sombra, livre üa hora deste duro jugo que ora tiro.
Ferreira manipula a sintaxe da frase para colocar "santo fogo" no último verso,
onde faz um belo contraste com "votos santos" em 1.1.

24

Soneto dedicado a um desconhecido, em que Ferreira confessa os seus amo-


res em linguagem que faz lembrar, como Sii23 , os sonetos do amor novo. Deve

504
COMENTÁRIO

pertencer ao período em que Ferreira se achava longe de Maria e, efectivamente,


há um paralelo entre Sii24 e Si57 . Em ambas as poesias a amada chama-se "novo
sol" e em ambas o poeta insiste na intenção de tornar público o seu amor. Ferreira
acaba o seu soneto com uma citação, em italiano, do último verso de Canz. 139,
em que Petrarca também se dirige a um grupo de indivíduos do sexo masculino.
O conceito da alma dividida em duas partes deriva do mesmo soneto de Petrarca.

14 il nostro ... corto: o estarmos junto é raro e curto.

25

Uma versão deste soneto, que foi escrito em resposta a um soneto de Diogo
Bernardes, "Se dona Inês de Castro presumira" (Rimas Várias (1985) p. 151 ),
encontra-se no mesmo livro de Bernardes, p. 152. Damos às leituras desta versão
a abreviatura de RV. Como quase sempre é o caso, quando aparecem versões
alternativas de poesias de Ferreira, a incluída em Pl é a melhor.

No soneto Ferreira protesta, muito modestamente, a sua incapacidade de


conferir a imortalidade a Inês de Castro através de um conceito pelo qual D. Pedro
pede que "um raio claro", talvez o próprio Bernardes, restaure "seu doce amor" à
vida. Bismut, pp. 37-43, nega que o soneto seja de Ferreira, mas os seus argu-
mentos foram refutados por Teyssier ( 1993 ), pp. 422-8. Só nos parece menos certa
a interpretação dada por Teyssier de RV, 1.14. É mais provável que o texto seja
corrupto, hipótese que sugere, não que Ferreira não tenha escrito o soneto, mas ou
que o não reviu ou que a poesia foi mal tratada pelos tipógrafos de Manuel de
Lira.

4 será a alta: Teyssier, p. 424, julga que o verso é hipermétrico e prefere a


leitura de RV. Mas Ferreira não tinha escrúpulos em fundir três vogais idênticas
numa só (ver Ci.8 1.184), e não há razão, por isso, de modificar Pl.

26

Outro soneto de que há uma versão em kV, p.153 . A poesia, que parece per-
tencer ao mesmo período atribulado que Sii23-4, forma par com o soneto antece-
dente, por ser dedicado à mesma pessoa, e também com o que se lhe segue.

1 Limiano: Bernardes, o poeta do Lima.

505
COMENTÁRIO

6 Citereia: Vénus.
7-8 em companhia ... clima: talvez signifique que as poesias de Bernardes
já eram lidas por pessoas que estavam no Oriente.

27

Forma par com Sii26, por ser dedicado a um indivíduo disfarçado sob um
pseudónimo, indecifrável no caso de Sii27, e pela presença em ambas as poesias
de Vénus, deusa do amor e estrela sob a qual o poeta nasceu , como nos informa
em 1.5. Porém, enquanto os amigos Limiano e Víncio se regozijam, Ferreira sofre,
exprimindo-se em termos que, mais uma vez, fazem lembrar os sonetos dolorosos
do Livro I. O nome Víncio reaparece em Sii28 e Écl5 .

Sii27, que celebra a conjunção de Vénus com Júpiter, "o pai" de 1.3, é uma
das poesias que revela, com mais clareza, as preocupações astrológicas do poeta
(um outro exemplo é Sii36).

28

Há um parentesco estreito entre este soneto e Écl5, porque em ambas as poe-


sias aparecem as mesmas personagens, Aónio, Víncio, Célia e Lília. No soneto,
porém, Ferreira muda a cena do campo para a beira-mar, o que indica que
provavelmente conhecia as éclogas piscatórias de Sannazaro (ver também Écl2).

Em várias poesias de Ferreira encontra-se o tópico renascentista de se escre-


verem palavras nos troncos das árvores ou nas pedras, e.g., Écl6 e 9, 11.154-6 e
61-8 respecti vamente, e em Si50.

3 duas: lê-se como se fosse uma sílaba. Ver também Si45 1.6, Cii7 1.59 etc.

29

PL dá a este soneto o número XXX, do que resulta que a numeração de


todos os restantes sonetos do Livro II está errada.

É possível que este soneto, como Epig2, tenha sido escrito para acompanhar
o Sucesso do segundo cerco de Diu, epopeia de Jerónimo Corte-Real, editada em
1574, depois da morte de Ferreira. Corte-Real desenhou uma série de estampas

506
COMENTÁRIO

para ilustrar a sua poesia, e assim deu "vida no verso, vida na pintura". O epigra-
ma de Ferreira foi incluído na edição de 1574, sem o soneto. As duas poesias,
porém, constituem um par, como tantos outros em PL, porque o soneto é em lou-
vor de uma obra artística, enquanto o epigrama foca o autor dela. Além disso,
Sii29 tem semelhanças estruturais com a poesia liminar que Andrade Caminha
contribuiu para a obra de Corte-Real, o soneto "Espritos valerosos e esforçados" .
Em Oii2, 11.50-6, outra poesia dedicada a um poeta, desta vez o próprio Caminha,
aparece uma estrofe cuja linguagem é muito parecida com a de Sii29, 11.1-4.

8 Lete: o rio do esquecimento.

30

Quem era o João do soneto? Ferreira dedicou poesias a muitas pessoas deste
nome. Castilho conjectura que o destinatário é D. João III, por três razões: a lin-
guagem de "respeitosa cortesia" do soneto, o epíteto "felicíssimo", que ele julga
próprio da corte, e o último verso que "só a um Rei se podéra dirigir". A primeira
razão não parece de grande peso, já que Ferreira utiliza uma linguagem respeitosa
sempre que se dirige a um indivíduo importante. É verdade, porém, que Ferreira
muitas vezes aplica o adjectivo "feliz" ou "feiice" e os seus derivados a reis. Há,
porém, excepções, Oi7 1.4, em que Ferreira chama a Coimbra "terra feiice" e Écl 12,
1.20, em que os pastores humildes que viram Cristo têm o epíteto de "felicíssimos".
Na nossa opinião, nem a um rei se poderia dirigir o último verso, excepto se ele
estivesse morto, e neste soneto o poeta não fala de morte. Contudo, um religioso
que tivesse deixado o mundo pela vida conventual podia estar fora do alcance da
fortuna. Ferreira conhecia um religioso de nome João, D. João de Lencastre, filho
do Duque de Aveiro, que em 1557 professou e tomou o nome de Fr. João Furtado
(ver notas a Oi3), perdendo assim o título de Dom. Como vimos, Ferreira empre-
gou o superlativo "felicíssimo" pelo menos uma vez num contexto religioso. Há
também uma notável coincidência de temática e de linguagem entre Oi3 11.35-41,
também dirigido a João de Lencastre, e Sii3011.7-8 (para que Marques Braga chama
a atenção), outro factor que nos leva a pensar que o soneto tenha sido dedicado ao
filho do duque. Mas, como Castilho também confessa, tudo isto são conjecturas.

31

O soneto apresenta mais um problema, provavelmente insolúvel, da identi-


ficação de pseudónimos. Para Castilho e Roig, Salício é Sá de Miranda; para
Marques Braga, é Francisco de Sá de Meneses. O Salício de Sii3 l é um poeta que

507
COMENTÁRIO

escreve numa língua estrangeira, provavelmente o espanhol, e que usa "grandes


versos", ou decassílabos, o que se pode dizer tanto de Sá de Meneses como de Sá
de Miranda. Contudo, Ferreira julgava que a obra deste era de grande importân-
cia cultural (ver Cii9, li. l 3ff), enquanto considerava Sá de Meneses meramente
um poeta de amor (ver Ciil3, 11.1-3), exactamente como Salício (ver 11.1-4).
Mesmo assim, seria arriscado identificar Salício com Sá de Meneses, porque a sua
poesia mais conhecida, a elegia em espanhol, Buelve Fílis hermosa a este llano,
a que Ferreira se refere em Cii 13 , foi dedicada a Fílis, e não a Flérida, nome que
tão-pouco aparece na obra de Sá de Miranda. O mistério subsiste, pois. Os argu-
mentos de Roig (1978b), pp.28-30, que dependem de uma consistência pouco
poética no uso dos pseudónimos, não convencem.

6 lágrimas tantas: entende-se "às lágrimas tantas".

32

O soneto não tem título, mas é evidente que é dedicado ao amigo do poeta
Diogo de Betancor, que morreu ainda jovem, possivelmente em 1557 ou 1558.
Ver as notas à Ci l l.

9 atalhaste à tua idade: acabaste a tua vida breve.


14 o teu primeiro e derradeiro dia: aqui , como em muitas poesias fúne-
bres, Ferreira joga com as ideias opostas da morte terreste e ·da vida eterna. Do
ponto de vista de quem vive na terra, o primeiro dia de Betancor foi o seu derra-
deiro dia, porque morreu muito jovem. Em termos religiosos, porém, o derradeiro
dia na terra é o primeiro dia da vida eterna.

33

Este soneto, e o que se lhe segue, tiveram um impacto maior que quaisquer
outros de Ferreira nos espíritos dos seus contemporâneos, como se vê do número
de variantes. O facto deve-se ao uso feito pelo poeta do português medieval, à liga-
ção entre Sii33 e 34 e o famoso romance Amadis de Gaula e à crença errónea de
que os dois sonetos fossem obra de membros da família real, o Príncipe D. Afonso
(mais tarde D. Afonso IV) ou o Infante D. Pedro. Foram também objecto de vários
comentários, entre outros, do filho do poeta, Miguel Leite Ferreira. Em tempos
modernos o melhor estudo é o de Roig ( 1978a).

Logo depois da errata de PL Miguel Leite Ferreira escreve: "Os dous sone-
tos que vão às fól.24 fez meu pai na linguagem que se costumava neste reino em

508
COMENTÁRIO

tempo dei-rei D. Dinis, que é a mesma em que foi composta a história de Amadis
de Gaula, por Vasco de Lobeira, natural da cidade do Porto, cujo original anda na
casa de Aveiro. Divulgaram-se em nome do infante D. Afonso, filho primogénito
dei-rei D. Dinis, por quão mal este príncipe recebera (como se vê da mesma
história) ser a fermosa Briolanja em seus amores tão mal tratada". Miguel Leite
fez este comentário em parte para explicar ao leitor a ortografia pouco ortodoxa
dos sonetos em questão, mas também porque queria reclamar para o pai a honra
de os ter composto. Tinha um interesse também em associar poesias famosas com
a cidade do Porto, onde a família dos Leite tinha relações, e com a família real
portuguesa. Na verdade, as críticas de D. Afonso a Amadis de Gaula são referi-
das no Livro I, cap.40. A afirmação do filho de que o pai foi o autor das poesias
também parece fora da dúvida. Ferreira tinha um interesse muito vivo pelo século
XIV, como provam as muitas referências na sua obra a D. Dinis, à mulher, a
Rainha Santa Isabel (ver as notas a Epit2 e Sii 16), e ao filho, D. Afonso IV, per-
sonagem de Castro. Tinha também ligações estreitas com a casa de Aveiro. Além
disso, a versão dos sonetos que aparece em PL é nitidamente superior a todas as
outras, o que indica que Ferreira os considerava como seus e os retocava com a
finalidade de, um dia, os poder editar.

Damos no apparatus as leituras do Cancioneiro de corte e de magnates, p. 297


(CCM) e do Cancioneiro do Pe. Pedro Ribeiro (1988), p.167 (PPR) por serem
testemunhas mais ou menos contemporânea s de Ferreira. Mesmo assim, as suas
leituras, evidentemente defeituosas, parecem derivar de PL. O soneto aparece tam-
bém em colectâneas manuscritas posteriores, como o Cód. Cvd/1-2 da BPE, onde
é atribuído a Ferreira, e o Cód. 861 O da BNL, que o considera inédito, tal como
Si34. Faria e Sousa inclui ambas as poesias na Fuente de Aganipe ('Discurso de
los sonetos', para. 8), como sendo do Infante D. Pedro. Mesmo assim, todas estas
versões derivam directa ou indirectamente de PL.

Roig, p.207, indica a existência de paralelismos entre a temática dos sone-


tos e outras obras do poeta. Ferreira simpatizava com figuras femininas como Inês
de Castro ou Santa Maria Madalena que sofreram "pour avoir trop aimé", e pode-
mos acrescentar que, em Epig7, a rainha Dido se queixa de ter sido caluniada por
Virgílio de uma maneira que faz lembrar o soneto.

As notas linguísticas aos dois sonetos derivam principalmente do artigo citado


de Roig, pp.196-200, e do vocabulário da edição das Cantigas d'escarnho e mal-
dizer de Rodrigues Lapa. É evidente que Ferreira tinha conhecimentos sólidos do
português medieval.

I sem: bom senso.

509
COMENTÁRIO

2 de prão: certamente.
4 ende... rem: há uma certa redundância de expressão neste verso, segundo
Roig, porque tanto "ende" como "i" significam "en cet endroit, à ce sujet''. rem:
[qualquer] coisa.
5 aprougue: aprouve. a tão bem: tão bem.
1O endoado: em vão.
11 cambade: mudai .
12 Cá: porque.
14 er: também.

34

Soneto, como Sii33, "na antiga língua portuguesa". Nele Briolanja vinga-se
do Amor que, no soneto anterior, a tinha tratado injustamente. A meu ver, tanto
Michaelis de Vasconcelos como Roig (1978a., p.207-8) se enganaram ao pensar
que a fonte do soneto fosse o Trionfo della Pudizia de Petrarca (Earle ( 1990)
p. 204). É uma composição frívola , com evidentes paralelismos temáticos, como
aliás nota Roig, com alguns dos epigramas de Ferreira.

1 trebelhando: brincando.
3 ledice: substantivo derivado de ledo.
5 a sazom: naquele momento. sia: era (de ser). Ver também 1.9.
7 filha: furta.
1O er: ainda. me hás falido: me tens enganado.
11 vendita: vingança.
13 catando a sa sestra: olhando ao lado esquerdo [do corpo] . endoado: em
vão.

35

Os restantes sonetos do Livro II são todos de temática religiosa. Para a sua


função estrutural ver a Introdução, p. 33.

Sii35 forma par com o soneto que se lhe segue, que é de 1557. Ambas são
poesias de arrependimento, e em ambas Ferreira pede um guia que o leve ao céu.

1 Solitário: não se sabe quem foi o destinatário do soneto.


6 tégora: até agora.

510
COMENTÁRIO

36

Neste soneto, como em Sil, Ferreira comemora o ano de 1557, em que fez
29 anos. Foi um ano significativo na vida de Ferreira, porque foi o dos amores
com Maria Pimentel, e é difícil resistir à impressão de que ll.5-6 se referem aos
problemas emocionais daquela época. Na poesia, que tem, como Sii27, ressonân-
cias astrológicas, há uma certa hesitação entre uma crença nas estrelas e a fé orto-
doxa cristã de li. 9-14.

4 do mau planeta: provavelmente Saturno, planeta da melancolia. Lembra-


-se que no signo natalício do poeta se encontrava também Vénus (ver Sii27 ll.1-8).
6-7 fennosura ... escritura: o poeta não dá um nome à formosura a que se
dirige. Mas a beleza que orna os céus será provavelmente a das estrelas em que,
segundo a astrologia, o futuro está escrito. Para Ferreira, escritura significava
profecia, história do porvir (ver Ci2 1.56, Ell 1.136).

37

Outro soneto de arrependimento, baseado no Salm. 107.23-30. É uma re-


-escrita, em termos religiosos, de Si48.

13 escuro véu: a carne. Porém, a metáfora combina-se com a imagística


marítima do soneto, porque se pode também dar a véu o sentido de vela.

38

É o último da série de sonetos penitenciais. Baseia-se em várias referências


bíblicas.

1 Onde... de ti: ver Salm. 138.7.


6 atégora: até agora
9 Ovelha ... perdida: S. Mat. 18.12-13.
10-11 ingrato ... deste: a narração do regresso do filho pródigo encontra-se
em S. Luc. 15.11-32, e a parábola dos talentos em S. Mat. 25.14-30.

39

Soneto de romaria, provavelmente a N. S. da Lap,, no concelho de Sernan-


celhe. Este santuário mariano, hoje quase 1bandonado, era no século XVI "de fre-

511
COMENTÁRIO

quente e devota romaria, não só da Beira, mas de todo Portugal" (Rodrigues,


vol.II.l (1938), p.227). Foi adquirido em 1575 pelo colégio dos Jesuítas de
Coimbra. Este facto leva a supor que havia contactos anteriores entre o santuário
e Coimbra, e que talvez o soneto pertença ao período universitário da vida do
nosso poeta, i.e., antes de 1555/56.

No soneto, tal como na El9 (a Santa Mª Madalena), proclama-se a necessi-


dade de uma espiritualidade interior, inspirada mais pela fé do que por sinais
(l. l 0).

3 Que: ainda que, como em El7 1.67, Ci8 11.58-60.


4 ver o que: indinos de ver o que.
8 ofrece: oferece é a forma mais comum em PL, mas ofrece ocorre também
em Cii 11 1.38.

40

Soneto dedicado a S. João Baptista. As 11.1-10 são todas feitas de citações


dos Evangelhos. Diogo Bernardes (Várias rimas ao bom Jesus, pp.85-9) e Fr.
Agostinho da Cruz ((1994), pp.50-51, 141) também escreveram poesias em lou-
vor do mesmo santo.

1 a aparelhar as vias: no latim da Vulgata "parate viam domini".


3-4 que no ventre ... conhecias: S. Lucas (1.41) é o único Evangelista a nar-
rar como o santo reconheceu Jesus enquanto ainda estava no ventre da mãe, Santa
Isabel.

41

A S. João Evangelista. Há poesias dedicadas ao mesmo santo de Fr. Agos-


tinho da Cruz (1994), p. 52 e de Diogo Bernardes, Várias rimas ao bom Jesus, pp.
74-84 e 90-1.

1 Águia divina: é o símbolo do santo.


9 Tu ... adormeceste: S. João 13.23.
10 tu só... dado: S. João 19.26-7.
12 Discípulo... amado: em várias ocasiões o Evangelista afirma que foi ele
o discípulo a quem Jesus amou.

512
COMENTÁRIO

42

Foi Júlio de Castilho quem sugeriu que este soneto celebra os cinco mártires
de Marrocos, hipótese que parece muito provável. Em 1218 ou 1219 S. Francisco
enviou cinco frades para converter os muçulmanos de Marrocos. Os missionários
foram martirizados em 1220 e, mais tarde, algumas relíquias suas foram deposi-
tadas no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. A edição, em Coimbra, em 1568 do
Tratado da vida e martírio dos cinco mártires de Marrocos enviados por S. Fran-
cisco indica que o culto estava muito vivo em Coimbra no século XVI.

14 grã coroa ... louro: aqui Ferreira afirma que mesmo o prémio tradi-
cionalmente dado os poetas, "coroa ...de louro" é inferior à vida imortal.

43

Soneto dedicado à Rainha Santa Isabel, como Sii.16 (Marques Braga). Os


sonetos aparecem em lugares distintos porque Sii.16 faz parte da sequência de poe-
sias em louvor da fanu1ia real portuguesa, enquanto Sii.43, como todos os outros do
final do livro, tem a forma de uma prece. Para mais informações acerca da Santa ver
Sii.16. O soneto presente será provavelmente da mesma época que o outro.

8 de quem ... caro: Cristo.


12-14 esta tua terra... fortaleza: ou Coimbra ou Portugal. Na década de
1550 a Santa começou a ser considerada protectora do reino (António de
Vasconcellos I, pp.304).

44

Não há dedicatória em PL, mas é evidente que neste soneto Ferreira se dirige
a todos os santos. A poesia é parecida com um soneto de Fr. Agostinho da Cruz
(1994), p.120. Ambos os poetas fazem um tipo de listagem de santos a quem
depois pedem a intercessão por toda a humanidade pecaminosa. No caso de Fer-
reira, os santos alistados são os apóstolos e outros escritores religiosos, ll.5-6, os
eremitas, 11.7-8 e, mais vagamente, os mártires, 1.10.
É de notar como Ferreira insiste, como sempre, na fé como a base da reli-
gião, ll.5-6.

8 deixásseis: é uma prece: oxalá nos deixásseis.

513
COMENTÁRIO

9-1 O vossos despojos ... mortes: todos estes substantivos constituem o com-
plemento directo de presentai (1.12).
11 que a essa: a omissão de um monossílabo antes de uma palavra que
começa com uma vogal diferente é rara em PL. O único paralelo encontra-se em
El2 1.68, onde PL lê éssas que representa a essas. Aqui temos unicamente qu'essa,
em vez de qu ' éssa, mas possivelmente havia dificuldades tipográficas na época
em fazer seguir um apóstrofo por um e acentuado.

LIVRO DOS EPIGRAMAS

O pequeno livro dos epigramas tem uma estrutura simples, mas coerente.
Com efeito, depois de duas poesias dedicadas a pessoas conhecidas do poeta, as
restantes oito são todas traduções ou imitações de originais gregos ou novilatinos.
Para a importância dos epigramas como uma das primeiras manifestações do
interesse pela literatura grega em Portugal, ver Earle (1990) pp. 191-200.

A um retrato de Dona Caterina de Sousa

Uma das irmãs do poeta Pero de Andrade Caminha· que se fez freira
(Vasconcelos ( 1982) p.65), acontecimento a que Ferreira se refere, 11. 7-8. Dedicou
também Epit13 e 17 e Oii.2 e 4 a membros da família do amigo.

2 mas só ... Caterina: Ferreira exprime aqui a sua convicção de que as artes
plásticas eram incapazes de retratar a alma duma pessoa, sendo por isso inferiores
à literatura. Ver também Ci8 11.47-51 e Si45.

A Jerónimo Corte Real

O epigrama foi editado pela primeira vez em 1574, quando apareceu a epo-
peia de Corte-Real, Sucesso do segundo cerco de Diu (abreviada a SCD). É pos-
sível que Sii29 também seja em louvor da mesma obra. Corte-Real retribuiu o
gesto do amigo, escrevendo-lhe um soneto que mais tarde (morreu em 1588) foi
incluído em PL.

514
COMENTÁRIO

3 No pincel... arte: Corte-Real desenhou uma série de estampas ilustrativas


de episódios da sua epopeia.
4 na lira ... tocaram: no soneto de Diogo Bernardes incluído em SCD men-
cionam-se também os dotes músicais de Corte-Real: "Orfeu a voz lhe deu, Apolo
a lira".
5 na forte ... Marte: pouco se sabe da carreira militar de Corte-Real, mas
referiram-se-lhe vários contemporâneos seus (ver Corte-Real ( 1979) pp. xvii-xix).
7-8 Até ... natureza: Corte-Real vinha de uma família de grandes senhores
dos Açores.

De Anacreonte

Em 1554 o humanista Henricus Stephanus (Henri Estienne) publicou em


Paris as supostas odes do poeta grego Anacreonte (século VI a. C.). Na realidade,
as poesias, hoje chamadas Anacreontea, foram compostas muito mais tarde. O livro
de Stephanus, em que os originais gregos vêm com tradução para latim, teve um
impacto enorme na Europa quinhentista. É possível, porém, que Ferreira tenha
conhecido não <!- edição bilingue de Stephanus, mas a tradução latina de Helias
Andreas, que apareceu em 1556 sem o texto grego. Epig3 é uma imitação em por-
tuguês de uma poesia traduzida por Andreas (pp.28-9), mas que não vem nem na
1ª edição de Stephanus nem na 2ª, de 1556. Se a fonte da poesia de Ferreira tiver
sido a versão latina feita por Andreas, isso é uma indicação de que o nosso poeta
não dominava a língua grega (ver também as notas a EpiglO).

Em edições modernas dos Anacreontea Epig3 tem o número 19.

5 dões: plural de dom (presente).


6 Amores: companheiros de Vénus.
8 dali ... acostumado: o Amor continua a estar em poder da formosura.

De grego

É uma tradução dos Anacreontea, n. º 26. Duas versões em latim deste epi-
grama apareceram em 1556, da responsabilidade de Henricus Stephanus e de

515
COMENTÁRIO

Helias Andreas. Há um estudo em Rocha Pereira ( 1972), pp.80-1, que chama a


atenção para o "poder de sugestão" dos versos finais.

Traduzido. Contra o maldizente

Até agora, não foi possível identificar o original deste epigrama.

7 despadace: despedace.

A Lésbia

Tradução de De Caeliae Furto do poeta novilatino italiano Girolamo Ange-


riano, com mudança do nome da rapariga responsável pelo furto de Caelia para Lés-
bia. Ver o texto latino em Earle (1990) p.195. O livro das poesias de Angeriano,
o Erotopaegnion, teve uma influência grande por toda a Europa (Fucilla, pp. 297-8).
O pequeno volume saiu em Nápoles em 1520, com fólios nã~ numerados.

A um retrato de Dido

A Antiguidade clássica conhecia outras histórias acerca de Dido, fundadora


mítica de Cartago, além da dos seus amores com Eneias que Virgílio narra no
livro 4. º da Eneida e que Ferreira também conheceu, como era de esperar (ver
Écl8, 11.91-6). Segundo uma tradição mais antiga que a virgiliana, Dido suicidou-
se para manter a promessa de fidelidade perpétua que tinha dado ao marido,
Siqueu, antes da morte deste. Em Sii33 Ferreira defende Briolanja, outra figura
lendária acerca da qual, segundo o poeta, a literatura conservava ficções men-
tirosas.

Há duas opiniões acerca da fonte do epigrama. Ou é uma adaptação de um


original grego, n. º 151 da Appendix Planudea da Anthologia Palatina (Rocha Pe-
reira (1972) p.58n), ou vem de uma poesia atribuída a Ausónio (1517), fol.1 O1v-

516
COMENTÁRIO

-102r. A poesia latina foi traduzida por Andrade Caminha, com a rubrica "De
Dido, traduzido d' Ausónio", (ed. Anastácio, p. 695). A versão de Ferreira é bas-
tante livre, o que torna a questão da fonte algo melindrosa. Contudo, o facto de o
amigo do nosso poeta ter traduzido um original latino sugere a possibilidade de
que Ferreira tenha feito a mesma coisa.

2 Maro: Virgílio (Publius Virgilius Maro).


3 Aeneas: é a forma latina de Eneias.

A Vénus e Cupido

O epigrama é uma imitação bastante fiel de Angeriano, De Venere et Cupi-


dine que, por seu lado, tinha seguido um original grego (ver Earle (1990) pp. 196-7).

Fermosura

É uma versão livre dos Anacreontea n. 0 24. A poesia foi traduzida para latim
por Stephanus (em 1556) e por Relias Andreas. ·

10

Marte namorado

É uma versão livre dos Anacreontea n. º 28. A poesia foi traduzida por
Stephanus em 1554, pp. 106-7, e em 1556, p. 119, e por Relias Andreas, pp. 40-1,
sendo provável que Ferreira tivesse seguido a versão de Andreas, que foi editada
sem o texto original grego. Com efeito, no passo correspondente a 1.6 do epigrama
português, Andreas escreve: "Et Amoris elevabat / Leviora tela ridens". Stephanus
tem simplesmente: "Tela elevans Amoris", aqui seguindo mais de perto o grego, em
que falta também a referência ao riso de Marte. É mais uma indicação que Ferreira
só conhecia a literatura grega através de traduções feitas para latim (ver Epig3).

2 Forjava... de Vénus o marido: Vulcano, deus das forjas , era casado com
Vénus. A ilha de Lemno era-lhe consagrada.
8 Marte jaz: os amores adúlteros de Marte e Vénus eram famosos .

517
COMENTÁRIO

ODES

LIVRO I

A ode tomou-se talvez a mais popular de todas as poesias do nosso autor por
causa do amor à língua portuguesa que nela se exprime. É a única que não tem
dedicatória a um indivíduo determinado, porque Ferreira visa toda a comunidade
de poetas que, como ele, seguiam o novo canto. Serve como introdução aos dois
livros de odes, e pode ser comparada com a poesia liminar dedicada aos bons
ingenhos. Desconhece-se a data da ode, mas o facto de Ferreira nela se conside-
rar unicamente poeta de amor sugere que a poesia fosse escrita em 1557 ou ante-
riormente. Depois de 1557, ano em que acabou o livro l. 0 dos sonetos, Ferreira
parece ter abandonado a lírica de amor.

Já Castilho notou a influência da Ode III, l de Horácio no começo da ode


portuguesa. Ao contrário do poeta romano, porém, Ferreira não se chama "Musa-
rum sacerdos" (sacerdote das Musas: ver Earle (1990) pp.85-8). Horácio muitas
vezes dizia que era incapaz de fazer versos heróicos (ver Odes II, l e III, 3), e na
última estrofe da ode de Ferreira há uma referência a este topos.

3 a brandas Musas: Marques Braga emenda para "as brandas Musas", mas
desnecessariamente. Ferreira canta as Musas também em Abi, 1.2 e em Cii9, 1.190.
Aqui Musas pode significar simplesmente poetas e ser portanto equivalente aos
"espritos dados ... ao novo canto". Mas a palavra pode também se referir a toda a
tradição da poesia clássica e italiana (ver Earle (1990) pp.46-8).
6 nunca ouvido... passados: a temática da falta de cultura do Portugal
medieval é frequente em Ferreira. É o assunto principal de Ci2, por exemplo.
12 do fogo ... renova: é o fogo da inspiração poética que renova o mundo.
Ver a mesma ideia em Cii9, 11.31-45 e em outras poesias.
18 do mundo... mundo: Ferreira joga com a palavra mundo, nos dois senti-
dos de planeta e de gente.

Aos príncipes D. João e D. Joana

O casamento do Príncipe D. João, filho de D. João III, com a sua prima D.


Joana, filha de Carlos V, realizou-se em 5 de Dezembro de 1552. A ode de Ferreira

518
COMENTÁRIO

celebra o feliz acontecimento e podia mais propriamente ser chamada um epita-


lâmio, embora as referências sexuais normais em tais composições sejam muito
atenuadas (ver 11.47-9). A estrutura métrica da poesia, de verso branco com um
refrão que aparece a intervalos irregulares, é inspirada nos epitalâmios de Catulo
(poesias 61 e 62). Ferreira imita uma outra técnica composicional do poeta
romano na repetição do primeiro verso ao fim da ode (ver Catulo, poesias 36, 52
e 57). Oi2, junto com Ci 1, de 1554, e Castro, são as únicas obras do nosso poeta
em que se emprega o verso branco.

5 feiices: feiice, plural feiices, é a forma corrente em Ferreira.


8-15 De troféus... em tributo: o sujeito da frase é os vossos capitães (l.12)
e o verbo principal tornem (1.11 ). trunfas: turbantes.
19 Novas estátuas ... letreiros: a presença de letreiros (inscrições) é signi-
ficativa: para Ferreira a palavra escrita valia mais que a imagem visual (ver Ci8,
11.47-53).
24-5 como fez Alexandre... Alexandre: Alexandre sacrificou ao túmulo de
Aquiles (Arriano, I, 11) e César suspirou de inveja ao contemplar uma estátua de
Alexandre (Suetónio, Vida de César, cap.7).
26-7 polos que vedes ... pais: Ferreira podia ter ouvido falar da famosa estátua
de Carlos V feita em 1548 por Leone Leoni. A inspiração da obra, que representa o
imperador a triunfar sobre o furore, vem de Virgílio, Eneida, I, 11.291-6 (Trevor-
-Roper, pp. 33-4), linhas que podiam ser consideradas como letreiro. Para Ferreira,
Carlos V era "derradeiro dos que bem pareceram emperadores" (Ep ll.l 17-8) e,
portanto, o herdeiro de Júlio César. No cruzeiro da igreja dos Jerónimos existia,
até o séc. XVIII, uma grande estátua policroma representando D. João III, (Mo-
reira, p. 12).
42 partos ... citas: os gregos e romanos julgavam serem estes os povos geo-
graficamente mais distantes do mundo civilizado.

A D. João de Lancastro, filho do Duque de Aveiro

D. João de Lencastre (para empregar a forma moderna do apelido) era filho


ilegítimo do Duque de Aveiro, também chamado D. João. Ferreira dedicou três
poesias importantes a este seu contemporâneo em Coimbra (Oi3, Ci5 e Ci9) e,
possivelmente, Sii30 também. Era muito mais velho do que os seus dois meio-
-irmãos legítimos, D. Jorge e D. Pedro Dinis, a quem Ferreira também enviou poe-
sias. Estes nasceram depois de Fevereiro de 1547, data do casamento do Duque.

519
COMENTÁRIO

Pelo contrato do casamento, D. João, como bastardo, não podia suceder ao mor-
gado que ia ser criado, o que pode ter ocasionado as queixas contra a fortuna a que
Ferreira se refere na ode (Provas da história genealógica, Tom. 6, Pte. l , p. 73).
D. João entrou no Colégio de Jesus da Universidade de Coimbra em 1546 e estu-
dou também no Colégio das Artes. Foi-lhe conferido o grau de licenciado em 30
de Novembro de 1554, pouco mais de sete meses antes de Ferreira. Parece que
D. João era um jovem de convicções religiosas profundas mas não isento de dúvi-
das. Passou a ser noviço da Companhia de Jesus em 1547, mas pouco depois
abandonou a ordem. Mais tarde, fez-se frade dominicano e morreu em Castela
(Brandão vol.11, pp. 35-6). É, pois, muito provável que ele seja o senhor D. João
da carta de 30 de Junho de 1557 escrita em prosa de Lisboa a António de Castilho.
Deste senhor D. João diz o poeta, "é já professo e se chama Frei João Furtado"
(Brito Rebelo (1903) p. 145). Fr. João Furtado foi um dominicano espanhol que,
a convite de D. Manuel, em 1513 começou a reforma da província portuguesa (Fr.
Luís Cacegas (1678) pp. 3-7). Era natural que D. João de Lencastre tomasse o
nome de uma figura importante da ordem em que tinha ingressado.

Três vezes o poeta anima o jovem aristocrata a crer que a felicidade religiosa
está quase à mão (ll.l 6-18, 30-2 e 60-2), mas a poesia deve ter sido escrita antes
de 1557. Na ode (ao contrário de Ci9) Ferreira e D. João parecem estar juntos em
Coimbra. Ora Ferreira doutorou-se em 14 de Julho de 1555, saindo da Univer-
sidade para Lisboa mais tarde, numa data desconhecida mas de qualquer forma
anterior à carta a Castilho. Assim, não podemos atribuir à ode uma data posterior
a 1555 ou, possivelmente, 1556, se o poeta ficou algum tempo em Coimbra de-
pois do doutoramento.

Apesar do seu conteúdo a ode não deixa de manifestar a influência da litera-


tura latina. Na métrica, Ferreira imitou a técnica tipicamente horaciana da sepa-
ração das estruturas sintácticas e estróficas, dando assim à sua composição um
sabor nitidamente classicista. Com efeito, só a 2ª estância e a última acabam com
um ponto final. Rocha Pereira (1972), pp. 49-51, mostra que o começo da poesia
de Ferreira é uma reminiscência do começo de Horácio, Odes, II, 17 e que ll.54-9
imitam Odes, I, 1, 11.29-30 e 35-6. Ambas as odes horacianas foram dedicadas a
Mecenas, e Ferreira via em D. João um protector da sua própria poesia (vertam-
bém Ci5, 1.61). O empréstimo de Horácio, Odes, I, 22 que Rocha Pereira vê em
ll .14-15 é mais discutível.

Vê-se também no estoicismo desta poesia a influência do classicismo. Odes-


prezo da fortuna e dos bens mundanos (11.33-4) e o louvor das virtudes da fortaleza
e da prudência (o que significava na época a aplicação da razão à conduta moral)

520
COMENTÁRIO

constitutem a temática estóica da ode de Ferreira. Assim, ele aceita certos aspec-
tos do pensamento antigo, embora faça a crítica de outros, como a deificação da
fortuna (11.35-49). Além disso, consegue evitar em toda a poesia a imagística de
clara inspiração pagã ou cristã. A composição possui um equilíbrio perfeito entre
o mundo greco-romano e o mundo católico de quinhentos.

Título d'Lancastro: é de presumir que Ferreira teria dito Lancastro, e não


Alancastro. Em PL grafa-se sempre Lancastro, que é a forma adoptada na edição
presente. A evidência de Ci5, 1.1 e Ci9, 1.112 aponta também para Lancastro.
2 humaníssimo: segundo Ferreira, uma das características do homem ver-
dadeiramente humano é de fugir "de pesadumes, de tristezas" (ver Ci 11, 1.88-90).
Assim os sentimentos tristes de D. João contradizem a sua própria natureza de
humano. O epíteto é também notável no contexto religioso da ode e mostra como
Ferreira procura encontrar posições equilibradas.
24 ela: a consciência pura (1.15), que se contempla a si própria.
28 dela: a direita via (11.24-5).
53 imos: vamos.
54-6 tu de palma... hera: há uma discussão dos símbolos vegetais em Rocha
Pereira ( 1972) pp. 49-51. Aqui a hera é atributo do poeta. O louro, recompensa tanto
dos poetas como dos guerreiros, será dado a D. João como soldado de Cristo. A pal-
ma, símbolo igualmente clássico e cristão, é mais uma indicação do equilíbrio da ode.
62 tégora: até agora.

Aos Reis cristãos

Nesta ode bem conhecida, Ferreira adapta o Epodo 7 de Horácio para a


situação política internacional da Europa quinhentista (ver Earle ( 1990) pp. 32-9).
Como o próprio Papa Pio IV foi forçado a admitir (Azevedo Cruz, II, p. 83), só
Portugal continuava a guerra contra os muçulmanos, esquivando-se de qualquer
conflito armado entre as potências europeias (ver também Camões, Os Lusíadas,
VII, 2-14, Sá de Miranda, Écloga Celia, 11.33-40 etc). O próprio Ferreira critica a
cegueira dos reis cristãos também em Écl9, 11.7-15, e 12 11.129-30. Os aconteci-
mentos militares e políticos mencionados na ode ocorreram antes do nascimento
do poeta, de forma que não é fácil datá-la.

Ao contrário do que afirma Silva Dias, p.821, a ode exprime não tanto o
ideário da cruzada contra o infiel como o anseio de uma união pacífica entre
cristãos. Ferreira espera a restituição pia e cristã da "cabeça do Oriente", 11.6-9, e

521
COMENTÁRIO

só faz uma referência relativamente breve à violência, ll.16-20. Na última estância


da poesia afasta-se completamente do original romano para proclamar em versos
sentidos o seu desejo de paz.

7 cabeça do Oriente: Bizâncio, segundo Silva Dias; Jerusalém, segundo


Marques Braga. A sugestão de Silva Dias parece mais provável, porque Ferreira
se refere a Jerusalém ll.11-2. Os turcos tomaram Bizâncio em 1453.
20 o seu Rei: o rei, ou xeque mameluco do Cairo, opôs-se violentamente à
presença portuguesa no Oriente. Em 1517, porém, os turcos destruíram por com-
pleto o império mameluco do Egipto. Ferreira, contudo, era um poeta pouco inte-
ressado em pormenores históricos.
29 Rodes ... Hungria: os turcos ocuparam a ilha de Rodes em 1522-3 e
ganharam a batalha de Mohács, na Hungria, em 1526.
31-5 Paz santa ... é: a frase é desajeitada, mas, apesar do que diz Castilho,
não há razão para emendá-la. O sentido é: como é que a paz santa ...é tão despre-
zada pelo vosso injusto ódio?

5
A D. Afonso de Castel Branco

Marques Braga diz, numa nota, que a ode "é dedicada ao Bispo de Coimbra,
D. Afonso". Porém D. Afonso só veio a ser bispo de Coimbr~ em 1585, muitos
anos depois da morte do poeta (Fortunato de Almeida, vol. II, p.655). O pequeno
lapso foi o suficiente para despistar outros investigadores, como Rocha Pereira
(1972), p.52, e Earle (1990), pp.71-2. Silva Dias, p. 923n., evita este erro, mas cai
em outro, já que atribui a data de 1577 à poesia, oito anos depois de Ferreira ter
morrido. Com efeito, bem pode ser que a ode pertença à primeira fase da carreira
de Ferreira, enquanto ainda estava em Coimbra. D . Afonso tinha quase a mesma
idade que o poeta (nascera em 1522) e estudou humanidades na Universidade. Na
altura em que Ferreira lhe escreveu, D. Afonso podia ainda não ter começado os
estudos teológicos a que se dedicou mais tarde, já que na ode se fala unicamente
da literatura profana (as Musas, 1.7, o monte de Apolo, 11.40-1). Depois de ter ido
para Lisboa, Ferreira sentia muito a ausência dos amigos universitários, mas aqui
não há referência a uma tal separação. É possível, portanto, que o poema tenha
sido escrito antes de 1555-56.

Rocha Pereira nota a influência de Horácio, Odes II, 20 em 11.2-12 da poe-


sia de Ferreira. A influência é inegável, mas o poeta português modifica a imagem
algo vaidosa do original, pela qual Horácio se imagina transformado em cisne. A
imagem de Ferreira é menos nítida, mais espiritualizada, e o poeta aplica-a, com

522
COMENTÁRIO

a sua modéstia acostumada, não a si próprio, mas a D. Afonso. Utiliza a mesma


comparação em Si26 11.5-6.

1 Fuge ... profano: a frase, utilizada também em Oi 1, 1.1, vem de Horácio,


Ode III, 1.
2 descustumada: desacostumada.
3 pena: Ferreira joga com os dois sentidos da palavra, pena de ave e pena
como instrumento de escrever.
31 Tudo ai: tudo o resto.
39 guia: sintaxe latinizante. A frase adjectival "de Apolo" pertence a "novo
esprito", que é o sujeito da frase. O verbo é "guia".
41-2 donde... corria: é uma referência às fontes de Aganipe e Hipocrene
(Marques Braga) que davam a inspiração poética. Ferreira espera que D. Afonso
se inspire nas mesmas fontes que os poetas da antiguidade, a quem a palavra
•·antes" refere.

A üa nau da armada em que ia seu irmão Garcia Fróis

Para Garcia Fróis Ferreira ver as notas a Écl8. Pelas razões ali expostas,
podemos dar à ode a data tentativa de 1557.

Todos os comentadores notaram o paralelismo estreito entre esta ode e a Ode


I, 3 de Horácio, dedicada a Virgílio (o estudo mais pormenorizado encontra-se em
Rocha Pereira (1972) pp.46-7). Camões imitou-a também n'Os Lusíadas, IV, 102-4.
Porém, Ferreira não deixou de modificar o original romano. Introduziu uma prece
cristã, 11.47-8, e deu à sua poesia um tom mais moralizador, menos mitológico que
o da ode horaciana. Um exemplo é o tratamento do mito de Prometeu, a que Ho-
rácio dedica 11.27-33. No passo correspondente da sua ode, 11.37-42, Ferreira cri-
tica em termos abstractos a ousadia dos homens e, se menciona Prometeu, fá-lo
muito vagamente.

1-9 Assi ... vivo e são: quase uma tradução de Horácio, 11.1-8. Horácio explica
que Virgílio ia para Atenas, mas Ferreira não nos diz o destino da viagem do
irmão, talvez para dar à ode uma nota mais universalista, menos particular. assi:
a sintaxe latinizante da prece, introduzida por assi, baseia-se no passo correspon-
dente da ode de Horácio. Ver também Si50. a ... deusa de Chipre: Vénus, nasci-
da da espuma do mar. os ... irmãos de Helena: Castor e Pólux, heróis transforma-
dos em estrelas, protegiam os marinheiros . o... rei dos ventos: Éolo.

523
COMENTÁRIO

I 3-16 Quem cometeu ... peito: segue de perto Horácio, 11.9-12. enzinho:
azinho/azinheira.
22-4 do sempre ... morte: o África, mencionado por Horácio, 1.12, era o
vento que soprava da África, i.e., do sudoeste. Contudo, Horácio nada diz acerca
de Cila, monstro que infestava o estreito entre a Sicília e a Itália. Segundo
Castilho, Ferreira queria, com esta modificação, indicar a rota de Garcia Fróis no
Mediterrâneo. Porém é igualmente possível que tenha querido simplificar o ori-
ginal, introduzindo uma figura mitológica bem conhecida em vez das referências
recônditas de Horácio, 11.13-14. Mesmo assim, Ferreira, que tinha pouco interesse
nos pormenores da mitologia, cometeu um erro ao supor que Cila era do sexo
masculino. os vaus cegos: baixios perigosos.
25-36 A que mal... crueza: segue Horácio, 11.17-26, omitindo a referência
erudita de l.20. 26-7 quem ... viu: quem viu com secos olhos os monstros que vão
nadando no mar.
27-30 quem ... perto: a pergunta retórica depende de 1.25.
36 roubo e crueza: e a roubo e a crueza.
42 o que ... espantoso: o mar.
43 Um ... cometeu: segundo Marques Braga, o gigante Tifeu, mas é mais
provável que seja simplesmente uma tradução da frase imprecisa de Horácio
"caelum ipsum petimus ", 1.38.
44-5 outro... homem: Dédalo, que voou de Creta para a Itália. O passo cor-
responde a Horácio, ll.34-5.
45-6 outro ... rompeu: mais uma vez, Ferreira evita dar indicações mitológi-
cas precisas. Segundo Rocha Pereira, ele teria modificado a referência horaciana
(1.36) à descida de Hércules aos infernos, substituindo-a por outra façanha do
herói, a colocação das Colunas de Hércules.

A Manuel de Sampaio

Para a biografia de Manuel de Sampaio ver as notas à Ci l O. A Sampaio e


Betancor, amigos universitários, Ferreira confiava alguns dos segredos da sua
vida íntima. Em Cil0 referiu-se ao casamento que planeava e na ode mencionou
as suas relações com a misteriosa Serra (li. 9-11), episódio amoroso anterior ao
enlace com Maria Pimentel. Portanto, se a carta tem a data de 1557/58, a ode deve
pertencer ao período 1556/57. O destinatário dela estava em Coimbra (11.1-15) e
o poeta em Lisboa, onde chegou em 1555 ou 1556. As poesias escritas em Lisboa
neste período exprimem, tal como a ode, a dor de quem se considerava exilado no
seu próprio país. O contraste entre o campo e a cidade faz lembrar Horácio, Epo-

524
COMENTÁRIO

dos 2 (Fucilla, pp.278-9), ou Virgílio, Geórgicas, II, ll.458-540 (Marques Braga),


mas Ferreira não seguia de perto nenhuma destas poesias. No imaginário do
poeta, o rio Mondego, que parece serpentear através das duas primeiras estrofes
da ode, leva consigo uma variedade de reminiscências e aspirações pessoais.
Ferreira consegue aqui uma forte emotividade por meio da proliferação extra
-ordinária de adjectivos com que descreve o rio, as fontes que nele desembocam,
as terras por onde passa e as plantas que nascem nas margens. Ao todo, há vinte
adjectivos descritivos, alguns deles repetidos, que contribuem para a celebração
extática da beleza, da amizade, do amor, da poesia e da grandeza nacional.

A forma métrica da ode é a mais complexa de toda a obra de Ferreira. As


quatro estrofes, que têm um esquema rimático cuidadosamente elaborado (ver
Earle ( 1990) p 62), estão ligadas entre si, porque o primeiro verso das estrofes 2-4
rima com o penúltimo verso da estância que a precede. À primeira estrofe, preci-
samente por ser a primeira, falta esta rima, e por consequência tem só 15 versos,
em vez de 16 como as outras.
1-2 só de mim: sem mim.
4 feiice: feliz.
6 Tibre ou Pó: é evidente que o Tibre representa Roma, mas o Pó, rio do
norte da Itália, não tem conotações literárias muito precisas. As referências do
poeta a factos, geográficos ou outros, são normalmente bastante vagas.
25 Ah ... montes: Ferreira consegue manipular a forma métrica da ode com
habilidade. Com efeito, os montes áridos de Lisboa ocupam na estrofe um lugar
exactamente paralelo ao da Serra de Coimbra na primeira estância.
36 i-vos ... i: ide-vos .. .ide.
38 acerto: aqui no sentido de caso, fortuna.
41-3 Ditoso ... enches: não necessariamente Sampaio, que provavelmente
era estudante e não agricultor. As apóstrofes dirigidas a pessoas imaginárias são
frequentes em toda a poesia de Ferreira.
58-9 aborrecendo te estão: o sujeito serão as pessoas de "olhos cegos,
corações errados" de l.39.

8
A D. António de Vasconcelos

Castilho confessa não saber quem era o destinatário desta ode, e Marques
Braga não diz nada a respeito dele. Contudo, um D. António de Vasconcelos e Mene-
ses era irmão mais novo de D. Luís Fernandes de Vasconcelos, a quem Ferreira
dirigiu a Elegia 4, e filho de D. Fernando de Vasconcelos, arcebispo de Lisboa

525
COMENTÁRIO

(Caetano e Sousa, Hist. Gen. vol.12, pte. 1, p.80). Talvez ele seja identificável com
o jovem poeta da ode. Existe um epigrama de Andrade Caminha (ed. Anastácio, p.
672) dedicado a D. António, em que o poeta lhe chama "Vasconcelos, raríssimo
entr' as Musas" , l.3. Segundo Caetano e Sousa, D. António serviu o príncipe D. João
como gentilhomem em 1551 . Mais tarde foi combater em África, em data desco-
nhecida mas depois da composição da poesia de Ferreira (ver ll.40-2).

Na ode Ferreira incita D. António, com alguma veemência, a comemorar em


verso os feitos dos avós, ll.27-39. Parece provável que o poeta tivesse em mente
D. Martim Moniz, que combateu em Ourique e se casou com D. Teresa Afonso,
filha ilegítima de D. Afonso Henriques. O consórcio real de D. Martim, de que
descendem os Vasconcelos (ver Enciclopédia Verbo) , explicaria a referência de
ll.28-9. Além disso, 11.36-9 parecem referir-se à lenda, mencionada por Ferreira
também em Epitl, segundo a qual D. Afonso Henriques foi aclamado rei em Ouri-
que, no campo da batalha. A tradição afirma que o combate se travou no Alentejo,
longe do centro do poder cristão, isto é, em "terras ... de tão longe entradas". Os
outros reis da primeira dinastia foram todos coroados em Coimbra (ver Mattoso
pp.190-3). Ferreira menciona D. Afonso Henriques também em Écl 1, 1.64, em
Cii3, ll.136-44, em Cii8, 1. 77 e em Castro 11.36-40 e 880-7. O interesse do nosso
poeta pelo primeiro rei de Portugal pode ter alguma relação com a tentativa de
D. João III, em 1556, de o canonizar (Ana Isabel Buescu p. 132).

2 das nove irmãs: das Musas.


5-6 do licor... a cópia: a quantidade abundante de água da fonte Hipocrene
(i.e., a inspiração).
13 parte: parte ... do lume [de inspiração] de 11.6-7. A linha seguinte "Eu
digo o canto ..." desenvolve a ideia contida em parte.
42 com as Musas: com os teus dons de poeta.
50 que ... ofende: a oração relativa depende de a ... cruel aljaba (aljava) .
62 Flora: podia ser ou o nome de alguma pastora, como em Écl6, ou a deusa
romana dos campos.

LIVRO II DAS ODES

Ao Senhor D. Duarte, filho do Jfante D. Duarte


Foi em Maio de 1557 que o senhor D. Duarte foi nomeado condestável de
Portugal, como sucessor do tio, o infante D. Luís, facto que a ode parece comemo-

526
COMENTÁRIO

rar. Foi um dos últimos actos de D. João III, que morreu em 12 de Junho do
mesmo ano. É evidente de ll.3 l-3 que o rei, tio de D. Duarte, ainda estava vivo
quando Ferreira compôs a ode. (Para mais informações acerca de D. Duarte, ver
as notas à Cil3).

A ode é uma imitação estrita da Ode I, 6 de Horácio (ver Earle (1990) pp.
80-1 ). A linguagem da poesia, especialmente da 4ª estrofe, é de uma violência
pouco característica de Ferreira, amante da razão e da arte. Porém Ferreira, tal
como Horácio, não se considerava capaz de poesia heróica, e na ode propõe cons-
tantemente que o seu amigo Andrade Caminha, camareiro de D. Duarte, cante as
grandezas futuras do patrão. O que é mais característico de Ferreira é a sua
insistência em que a poesia tem uma paridade absoluta com os feitos militares,
ideia que repete em cada uma das seis estrofes da ode. O que lhe interessa não é
tanto uma guerra na África como a criação de uma obra de arte acerca daquela
mesma guerra.

4-6 que à glória ... Duarte: já que teu ânimo, Duarte, inspira a Caminha um
favor igual à glória ou a que ele (Caminha) já aspira ou a que teu ânimo já aspira.
Há uma certa ambiguidade nestes versos, mas mesmo assim exprimem bem a
necessidade de um equilíbrio perfeito entre os feitos bélicos e a poesia que os
comemora.
13-14 vivo ... grã nome: deixando teu grã nome vivo na terra. O poeta An-
drade Caminha é o sujeito de toda a frase.
29-34 Enquanto não tento ... não faça: enquanto não tento e Apolo veda
que eu não faça menores os tão altos louvores devidos a ti e ao rei, teu tio ...
39-40 Comece ser... a voz: pela tua influência, pelo estímulo que dás a Cami-
nha, comece a ser ouvida a sua voz.

A Pero de Andrade Caminha

O poeta Pero de Andrade Caminha (ver as notas à Ci3) teve dois irmãos,
Afonso Vaz Caminha e Gaspar de Sousa Caminha (Vasconcelos ( 1982) pp.64-5).
O assunto desta ode fúnebre é a morte de um deles. Ambos morreram durante a
vida de Andrade Caminha (ver, na ed. Anastácio, o epitáfio em memória de Afonso
(p. 1058) e o em memória de Gaspar (p. 1063). Desconhece-se a data da morte de
Gaspar, cavaleiro da Ordem de Malta. Afonso foi para a Índia na armada de D.
Constantino de Bragança, em 1558, e lá faleceu , com a idade de vinte anos apenas,

527
COMENTÁRIO

em 1559 ou mais tarde. A falta de pormenores pessoais na ode de Ferreira torna


impossível a identificação do morto. O facto de o nosso poeta ter enviado Oii4 a
Afonso, então na Índia, sugere que o assunto de Oii2 talvez seja a morte de Gas-
par. Se assim for, e se a ordem das odes do livro 2. º respeitar a cronologia, tere-
mos uma data anterior a 1559 para a poesia presente.

No princípio da ode Ferreira imita o começo da Ode II, 14 de Horácio, tanto


no pensamento como na técnica da repetição de uma palavra: "Eheu fugaces ,
Postume, Postume,/labuntur anni", e na segunda estrofe resume o pensamento de
Ode IV, 7, 11.1-24 (Fucilla, pp. 279-80 e Rocha Pereira, pp.48-9). A atitude pagã
perante a morte de Horácio é modificada pelo moralismo de 11.15-28 e pelas refe-
rências à imortalidade da alma de 11.50-63. A ode exemplifica o preceito estóico
da necessidade do domínio das emoções, porque é só no último verso que o poeta
revela que tinha morrido o irmão do seu amigo.

13 mortal: a grafia de PL, "mortal" indicaria que o acento talvez caísse na


primeiro sílaba. Mas já que a palavra ocorre mais 15 vezes na poesia de Ferreira,
sempre sem acento, trata-se mais provavelmente de uma gralha.
32 sogigado: subjugado.
41 vistes: aqui Ferreira dirige-se aos "passados tempos".
50-6 Espritos ... baixeza: a linguagem desta estrofe é muito parecida com a
de Sii29, 11.1-4, outra poesia dedicada (provavelmente) a um poeta.
60-2 com que ... imortalidade: com que nova grandeza, já de imortalidade,
está vestida a fortaleza de teu irmão.

A Francisco de Sá de Meneses

A Francisco de Sá de Meneses Ferreira dedicou também El 1 e Cii 13. As três


poesias são das mais complexas e mais alusivas de PL, talvez por Sá de Meneses
ser não só poeta, mas também personagem de grande influência política, a quem
Ferreira queria ter demonstrado a sua capacidade como escritor culto e ao mesmo
tempo diplomático, capaz de guardar segredos. O argumento da ode parece ser o
seguinte: "as habilidades das pessoas variam muito (11.1-12). A minha função é a
de louvar o claro esprito, nem sempre reconhecido pelos contemporâneos (11.13-
-21 ). O génio muitas vezes manifesta-se cedo na vida dos indivíduos excepcionais
(11.22-48). Tu brilhaste muito jovem e portanto o rei deve-te a recompensa neces-
sária (11.49-66)." O carácter alusivo da poesia torna difícil a interpretação de

528
COMENTÁRIO

vários passos (ver 11.13-15, 25-30, 49-51 e 64-6), mas Ferreira parece desejar con-
solar o amigo e, provavelmente, protector, por algum desgosto sofrido na sua car-
reira pública. Segundo o esboço biográfico de Michaelis de Vasconcelos ( 1885),
p. 750, houve um peóodo de 4 anos, entre 1554 e 1558, em que Sá de Meneses
não teve nenhum cargo oficial, e pode ser que a ode tenha sido escrita naquela
época. De qualquer forma, o terminus a quo da data da ode é 1554, ano da morte
do príncipe D. João, mas é provável que pertença a um ano posterior, já que em
11.46-7 Ferreira diz que Sá de Meneses "inda" sentia o desaparecimento do jovem
que tinha servido como camareiro-mor.

Na ode, Ferreira fala muito da juventude mas, quando a escreveu, o desti-


natário teria tido mais de 40 anos. Segundo os cálculos de Vasconcelos, nasceu
entre 1513 e 1515, o que não destoa da afirmação de Silva Terra, p. 26, que era o
segundo dos seis filhos de João Roiz de Sá de Meneses e de D. Camila de Noro-
nha, que morreu em 1522.

3-6 nem igual verão... inspirado: Sintaxe latinizante. O sentido é: Deus nem
reparte igualmente o verão e o inverno, nem concede a todas as almas o mesmo
fogo de inspiração, dom que vem do céu.
7-10 Ora um ... mora: segundo a astrologia, a psicologia das pessoas é
influenciada pelo planeta sob o qual nasceram. Aqui são mencionados Saturno,
Júpiter, Sol (Febo) e Lua, cada um com o adjectivo que define o respectivo tipo
psicológico.
13-5 Eis um ... canto: possivelmente Cipião Africano que, apesar das vitó-
rias (ver 11.31-6), vivia no exílio e Licurgo, o legislador espartano expulso pelos .
seus conterrâneos, cuja história Ferreira narra em Ci3, 11.85-9.
25-30 O raio ... história: tudo o que se diz nesta estrofe se pode aplicar a
Alexandre Magno, figura com a qual Ferreira estava obcecado (para um exemplo
nas odes, ver Oi2, 11.24-5). Morreu com a idade de 32 anos.
31-6 Olha ... antigo: foi com a idade de 32 anos que Cipião Africano destro-
çou o exército do cartaginense Aníbal na batalha de Zama, pondo assim fim a uma
guerra prolongada que tinha ameaçado a própria existência de Roma. Já antes
disto Cipião tinha dado mostras de génio militar.
37-42 O sucessor... nomeou: o sucessor de Júlio César foi Augusto, que
entrou na cena política com 19 anos apenas. O velho Cícero (Túlio) disse dele que
era "divinum adulescentem " (Phil.5, 43, citado por Syme p.181) mas não propria-
mente princeps, o que teria contrariado os seus princípios republicanos.
43-8 viste... vencia: o póncipe D. João morreu quando tinha 16 anos. Ver El 1.
49-51 E tu ... entre tantos: segundo Barbosa Machado (Biblioteca Lusitana, II,
p. 248) "em os primeiros crepusculos da idade era tal a prudencia do juízo, e gravi-

529
COMENTÁRIO

dade do aspecto .. .que o elegeo [D. João III) para Criado do Príncipe D. João". Foi
em 1537, quando Sá de Meneses tinha entre 22 e 24 anos.
61-4 Té quando ... rei: os motivos reais dos maus conhecem-se pelos seus
actos, ou pelos seus frutos, como ensina a Bíblia (Mateus 7.16-20), conselho que
o rei deve seguir.
65-6 Já ... lume: é o mesmo pensamento de 11.22-4. Há jovens com a maturi-
dade de velhos.

A Afonso Vaz Caminha, na Índia

Afonso Vaz Caminha era irmão mais novo do poeta Pero de Andrade Caminha
(Roig (1970) p. 122). Segundo a carta do irmão (ed. de Anastácio, p. 951), estava na
Índia ao mesmo tempo que D. Constantino de Bragança, que para lá partiu como
vice-rei em 1558. Roig, citando T. Braga, atribui a data de 1557 ou 1558 à ode, mas
1559 é mais provável, se, efectivamente, Caminha acompanhou o vice-rei a Goa.
A armada chefiada por D. Constantino chegou à Índia em menos de cinco meses
(7 de Abril a 3 de Setembro de 1558), o que, na época, era considerado rapidíssimo.
A viagem de Caminha também foi fácil (1.5), o que leva a supor que ele fosse
membro da mesma expedição. Normalmente as viagens eram de seis a oito meses
(Boxer ( 1959) pp. 6-7). As notícias do bom sucesso da armada não podiam ter
chegado a Portugal antes de 1559. Caminha morreu só com 20 anos, provavel-
mente na Índia (ver o epitáfio de Andrade Caminha, ed. de Anastácio, p. 1058).

Em 11.46-54 a influência de Horácio é evidente. Rocha Pereira (1972) p. 47


indicou como em 11.50-1 Ferreira utilizou uma frase tirada da Ode I, 3, 1.38.
Contudo, a fonte principal é Ode, III, 4, 11.65-75. Ferreira encontrou a estrutura da
sua poesia, na mesma ode horaciana, embora a tenha tratado com alguma liber-
dade (Earle (1990) pp.72-5).

17 Olha o bom pai: João Caminha, pai de Afonso Vaz, combateu no


Oriente. Michaelis de Vasconcelos encontrou uma referência a um certo João Vaz,
talvez a ser identificado com Caminha, que tomou parte no malogrado assalto a
Adem por Afonso de Albuquerque em 1513 (Vasconcelos (1982) p.58). A notícia
é confirmada por Barros, II, pp.349-51, que menciona um João Caminha ou João
de Caminha que foi ferido na mesma ocasião. Mais tarde um indivíduo com o
mesmo nome aparece como feitor de Chaul (Barros, III, fól. l 74r).
27 do céu, onde está: João Caminha morreu entre 1553 e 1556 (Baião (1916)
pp. 3-6). Em 11.27-36 Ferreira imagina-o a falar com o filho de além do túmulo.

530
COMENTÁRIO

5
A António de Sá de Meneses

António de Sá de Meneses era membro proeminente de uma família bem


conhecida de Ferreira. À relação entre os dois Antónios dedicou Silva Terra um
estudo importante.

A ode, uma das mais belas, começa com uma invocação da primavera (ll. l-50)
e depois passa a ser uma prece a Apolo, deus da Medicina, para a restauração da
saúde de António de Sá de Meneses (ll.56-77). A poesia é habilmente construída. A
invocação da primavera está relacionada com os cuidados do poeta pelo estado físico
e espiritual do amigo, porque as alegrias da natureza devem ser um alívio para o
doente. Para unificar a poesia Ferreira emprega também um jogo mitológico, tratan-
do Apolo, ou Febo, simultaneamente como sinónimo do sol e como deus da Medi-
cina e da Poesia. Nas últimas estrofes da ode Ferreira medita sobre a passagem das
estações e sobre a inevitabilidade da morte, dando assim, à moda de Horácio, uma
tonalidade triste após as alegrias do começo. Na invocação da primavera nota-se a
influência de nada menos de três odes de Horácio: I, 4, IV, 7 e IV, 12 (Costa Ramalho,
1969b, pp. 319-29. Ver também Earle (1990) pp. 75-8). Como observa Costa Rama-
lho, p. 326, a ode acaba numa nota cristã e moralista mas, mesmo assim, há em quase
toda ela uma atmosfera pagã, como em Cii5, também dedicada a António de Sá de
Meneses, o que sugere que ele apreciava a literatura e o pensamento clássicos.

Sá de Meneses morreu a l 9 de Março de l 566 (Silva Terra, p. 31 ). A ode é


a última do segundo livro, e é sedutor pensar que foi escrita durante a última
doença de Sá de Meneses, pouco antes da morte do próprio Ferreira. É uma
hipótese que fica por provar, porém, embora a doença para a qual Ferreira pede
uma cura ao deus da Medicina não tenha sido a primeira crise na vida do amigo
(ver a referência ao passado medo do rio Douro 11.75-6).

2 Zéfiro: o deus do vento do oeste.


7 as Graças: as três Graças personificavam a beleza.
11 revezando: cantando alternativamente (Morais).
12 Após ... Apolo e Marte: na poesia de Ferreira após tem normalmente
valor preposicional, mas aqui e em Écl7 l.61 parece ser utilizado como advérbio.
Seguimos Castilho, portanto, em colocar uma vírgula depois da palavra. Mesmo
assim, a frase fica sem verbo principal, mas podemos subentender um verbo como
vem ou o advérbio eis. a branda deusa: Vénus, a quem pertencia a terceira esfera
do sistema ptolemaico. Ela triunfava de Apolo e Marte porque ambos estes deuses
sucumbiam ao amor.

531
COMENTÁRIO

14 o frecheiro: Cupido.
33 um Chipre, um Gnido: a ilha de Chipre e a cidade de Gnido ou Cnido
na Ásia Menor eram lugares consagrados a Vénus.
39-40 ou Progne ... Títiro: na mitologia romana, Progne personificava a
andorinha e Filomena ou Filomela o rouxinol. Títiro é o sujeito da frase. O nome
é tirado das Éclogas de Virgílio, mas aqui designa, vagamente, qualquer pastor.
44 Clóris: nome, de origem grega, de uma ninfa ou pastora. Nas éclogas vir-
gilianas não aparece nenhuma Clóris como amante de Títiro, mas Ferreira era
indiferente aos pormenores da mitologia.
47 e mil odes cantemos: não há prova de que António de Sá de Meneses
tenha sido poeta (Silva Terra, pp. 35-9), mas "era homem dado a letras" (Castilho,
I, p. 90). Ver também 11.73-4.
54 Nise: D. Inês de Noronha era mulher de António de Sá de Meneses (Silva
Terra, pp. 31-2). Nise é anagrama de Inês.
58 ó movedor segundo: Deus é o primeiro movedor (motor) do universo.
Ele dá luz e vida ao mundo através do sol, que assim se toma o movedor segundo.
60 crespo Apolo: a palavra crespo sugeria a beleza clássica à imaginação do
poeta. Só a empregou em contextos mitológicos, para descrever os cabelos de Apolo
e de Cupido, ou os da dama amada, com os quais Cupido costumava brincar.
64-6 o mau Saturno ... força inteira: No Renascimento a astrologia e a medi-
cina estavam intimamente relacionadas. Ferreira espera que o sol (Apolo), planeta
benéfico, afaste a influência maligna de Saturno, planeta associada à doença, à
velhice e à melancolia e restaure a Sá de Meneses a perfeita saúde. luz primeira:
aqui em sentido metafórico. Ferreira espera que o amigo recobre a serenidade
espiritual da juventude.
70 Sabá: (assim escrita em PL) cidade da Arábia famosa pelas suas plantas
aromáticas.
73-4 a quem ... adora: Sá de Meneses, que adorava a poesia, uma arte asso-
ciada com ,Febo, ou Apolo.
75 Douro: Sá de Meneses vivia no Porto.

ELEGIAS

A Francisco de Sá de Meneses, na morte do Príncipe D. João,


a quem serviu de aio e camareiro-mor
O príncipe D. João morreu em 2 de Janeiro de 1554, com a idade de 16 anos.
A poesia deve ter sido escrita naquele mesmo ano, durante o qual, por pouco

532
COMENTÁRIO

tempo, Francisco de Sá de Meneses, poeta além de cortesão, serviu de mestre ao


pequeno D. Sebastião (ver 11.121 -32 e Michaelis de Vasconcelos (1885) p.750).
Depois de um intervalo de alguns anos veio a desempenhar outras funções impor-
tantes na corte. A complexidade da linguagem e do pensamento desta elegia faz
pensar nas outras poesias dedicadas à mesma personagem, Oii3 e Ciil3.

Ferreira correspondia-se com vários membros da família de Sá de Meneses,


além de Francisco: António, seu irmão mais velho, e João Raiz, pai de ambos.
Todos protegiam a nova literatura. A dor que se exprime na elegia deve-se, não
simplesmente à morte -dum príncipe, mas à morte dum príncipe educado segundo
os moldes humanísticos que o seu aio sabia inculcar tão bem. Ferreira, seguindo
a lição dos tratados sobre o ensino de crianças ou de Plutarco, Mora/ia, 1, 5, ou de
Quintiliano, lnstitutionis oratoriae, I, 5, pensava que o espírito de uma criança era
um tipo de página em branco em que o preceptor podia ter uma influência con-
siderável. A ideia está subjacente a um trecho longo da elegia (11.52-96), e
Ferreira chega até a afirmar que o esprito de Francisco de Sá de Meneses passara
para dentro do jovem príncipe (11.86-7).

3 que meio ... posesse: moderar, assim formando um contraste com fim ...
pedisse de 11.4-5 (Castilho).
17 vá-la: vai-la.
27 te lanças: te deitas (Castilho).
31-6 Deixa o pranto ... honrando: o argumento destes tercetos é que Sá de
Meneses não precisa de chorar tanto, já que todo o mundo lamenta o desapareci-
mento do príncipe.
46 acipreste: cipreste.
56-7 quanto ... roubado: quanto mais ias prometendo dele ao mundo a que
foi roubado.
59 que o informavas: aqui tem o sentido quinhentista de "dar forma a". Ver
a nota a 1.83.
68-72 viveras ... ficara ... conheceras ... temeras: vivesses ... teria ficado ...
terias conhecido ... terias temido.
79-81 Isto... triste sorte: isto refere-se a "o que ...triste sorte". A dor de Sá
de Meneses é maior porque uma parte do espírito do preceptor morreu com o
príncipe (ver 11.82-4).
83 a nova ideia de rei: a palavra ideia só aparece quatro vezes na poesia de
Ferreira (aqui e em Cii 1, 1.151, Cii3, 1.11 e Si 19, 1.8). O sentido varia um pouco
de poesia para poesia, mas em termos Jatos pode-se dizer que significa "conceito" .
Na mentalidade de Ferreira, a noção de ideia era inseparável da de forma ou
feição (ver 1.84 "conforme a teu esprito" ): uma ideia só se pode manifestar na

533
COMENTÁRIO

vida real se tiver a devida forma . As ideias de Ferreira não são, portanto, as ideias
transcendentais de Platão, que existem sem a necessidade de uma forma corpórea.
nova (ver também 1.54): significa "jovem", "nunca vista antes" mas não neces-
sariamente "diferente". Podemos, portanto, parafrasear 11.82-4 assim: conheceste-
te bem a ti (o que, segundo os humanistas, sempre conferia autoridade) e reconhe-
ceste que no espírito do jovem príncipe existia uma consciência da sua própria
realeza. Isto esperavas, para poder moldá-lo, formá-lo , em conformidade com a
grandeza do teu próprio espírito.
94-5 Quem ... tantos anos: D. João viu e viveu muito, apesar dos seus
poucos anos, porque tinha beneficiado da experiência e dos conhecimentos de Sá
de Meneses. tanta viu: tanta vida viu.
104-5 Vês o rei ... diferente: Ferreira exprime a mesma ideia na carta a D.
Sebastião, Cii 1, 11.133-4.
117 esté: esteja. O -e- de estê é normalmente fechado, mas aqui rima com é
efé.
119 se lha ... desejo: se invejarmos a glória de D. João, no céu, é porque o
amamos e o desejamos rever.
120 mas tal amor... culpa: D . João é o sujeito dos verbos desta frase .
139-41 já se cria ... subirá: já se cria alguém a quem tu serás Néstor e que
da terra subirá ... Néstor: na Ilíada, o velho que dava conselhos aos heróis gregos.

Na morte de Diogo de Betancor

Para este jovem amigo de Ferreira ver as notas à Ci 11, também dedicada a
Betancor. Betancor morreu ainda novo, 1.2, e é, portanto, legítimo atribuir à ele-
gia uma data pouco posterior à da carta, 1557 ou 1558. Castilho vê na poesia a
influência de Horácio, Ode I, 24, a meu ver sem justificação.

É de notar nesta elegia o uso feito por Ferreira das formas verbais com ter-
minação em -ra, -ras etc., por exemplo alçaras, 1.19, e dera, 1.24, sempre com
valor de conjuntivo ou condicional. Na linguagem de Ferreira, tais formas verbais
só raramente têm valor de mais-que-perfeito, por ex., em El9 11.20-1.

1 Darei choros ou cantos: nesta, como em outras poesias fúnebres, Ferreira


joga com a oposição entre a dor que a morte do amigo lhe ocasionou e a alegria
conferida pela crença na imortalidade da alma. Ver, por exemplo, Epitl4, dedi-
cado a Betancor.

534
COMENTÁRIO

19-27 alçaras ... se cantara ... dera ... fora coroado: terias alçado, se teria
cantado, teria dado, teria sido coroado.
29 laureiro: loureiro.
31-33 quem a Mântua ... soa! : Virgílio era natural de Mântua. O rio Arno
passa por Florença, grande centro da literatura italiana. fizera: teria feito. dera:
teria dado.
34 doce facúndia e bom despejo: eloquência e facilidade.
35-39 soara ... correra: teria soado, tivesse corrido.
70-84 Quantos vales... mais duraras: em Ci 11, dedicada a Betancor,
Ferreira tinha dito: "vai-te à natureza/ em que aprendeste bem filosofar", ll.119-20.
Aqui evoca as lições.
76-81 Outra hora ... quedos: a frase depende sintacticamente de ll.70-71.
As últimas palavras, "estando quedos", contrastam com o princípio da frase ante-
rior, "Quantos vales pisámos".
84 duraras: tivesses durado.
94-6 cortara ... voara: cortasse ... voasse.
97 cárcer: Ferreira emprega sempre esta palavra sem o -e final.

A Maio

Na Antiguidade clássica o termo elegia referia-se, não ao conteúdo de uma


composição poética, mas à sua forma métrica. Ferreira, sempre escrupuloso em
questões de género literário, empregava só o terceto rimado nas suas elegias, dis-
tinguindo-as desta maneira das odes e das éclogas. Os antigos não estabeleceram
regras para o conteúdo de uma elegia, e, por consequência, Ferreira utilizou o
género para os assuntos mais variados, fúnebres, amorosos, religiosos e outros.
(Ver também a Introdução, p. 33-4). El3, tal como El7 e El8, pertence à classe das
elegias amorosas. Nestas poesias Ferreira fala, não de si próprio, mas das figuras
mitológicas de Vénus e do seu filho Cupido, cujo encanto teria sentido através das
suas leituras da Antologia Grega e dos Anacreontea. A Elegia a Maio, porém, ao
contrário das outras, não é uma tradução. Nela aparecem as divindades pagãs mas
também, um pouco desajeitadamente, termos alegóricos como pensamento, en-
gano etc. (no texto impressos com inicial maiúscula), cujo uso poético é um lugar
comum da lírica amorosa do século XV português.

Não é possível atribuir uma data certa à elegia. Deve ter sido escrita depois
de 1556, data em que, provavelmente, Ferreira chegou a conhecer os Anacreontea

535
COMENTÁRIO

(ver notas a Epig3). Em ll.1-2 aparece uma construção latina (ver notas) exacta-
mente paralela a Écl 11 1.62, que pertence a 1558 ou a um ano posterior. A imagís-
tica de 11.8-11 faz pensar num dos melhores sonetos de Ferreira, Si38, que é de 1557.

2 as frontes coroado: com as frontes coroadas (de mil ervas, etc.). A cons-
trução é latina, o chamado acusativo de respeito. Aparece também na Écl 11 1.62,
e na elegia presente, 1.34.
10-12 Sai ... saudosas: Diana, deusa da lua, enamorou-se do belo pastor
Endimião enquanto ele dormia.
16 as Graças: as três Graças eram as filhas de Vénus.
17 ao filho mil espritos: como em 11.13 e 15, é necessário subentender um
verbo, aqui talvez andam.
26 a triste: a Afeição.
28 encruece: torna-se cruel.
34 Aos olhos ... atado: com os olhos atados (ver 1.2).
49 Ela ... ouro: Vénus despe-se e solta os cabelos louros.

AD. Luís Fernandes de Vasconcelos, vindo da Índia

A elegia é uma das poucas poesias, se não a única, em que Ferreira celebra
o regresso de um herói do ultramar. Ele era muito mais o poeta da aspiração e da
esperança que do triunfo material e mundano. E era precisamente porque nada
tinha de triunfante que celebrou o regresso de D. Luís. Em 1557, ao sair do Tejo,
a nau em que ia como capitão-mor de uma armada afundou-se, e na viagem de
volta, em 1559, sofreu um segundo naufrágio perto de Madagáscar. Ferreira alude
a estes acidentes, 11.7 e 28-9. Só chegou a Portugal, "tão falto de cabedaes, como
abundante de desgraças" (Barbosa Machado (1736), III, 335) em Junho de 1561.
A poesia, em que Ferreira fala do valor do trabalho sofrido com coragem, deve ter
sido escrita pouco depois. Ver também Couto, Década VII, fois 88v., 1O1v., 143v.-
- l 45r., l 63r. e Boxer ( 1968), pp.27-8. D. Luís era o filho mais velho do Arcebispo
de Lisboa, D. Fernando de Vasconcelos. Oi8 é dedicada ao terceiro filho, D. An-
tónio de Vasconcelos e Meneses.

6 que tu cantas também: na ode Ferreira celebra também os dotes poéticos


do irmão.
7-9 Enquanto ... mandas: aqui enquanto não tem valor temporal, mas signi-
fica "na medida em que". Ver também Cii 11, 11.44-5 .

536
COMENTÁRIO

1O outro grego ou troiano: as viagens prolongadas de Ulisses e de Eneias


foram também interrompidas por naufrágios.
22-7 Inda ... fermosos muros: passo em que Ferreira nos dá uma visão
espiritualizada do verdadeiro herói. espritos puros: são os bons espritos, os indi-
víduos merecedores que a poesia comemora. A coroa a que se refere em 1.24 é a
da poesia. fermosos muros: também é metáfora. O herói, tendo experimentado a
diversidade da vida e enfrentado com valor as suas dificuldades, acaba adquirindo
a força espiritual. Ver a mesma imagem em Ci9 11.136-7. tornaram ... fermosos: a
omissão da preposição a depois de tornar é normal em Ferreira: ver Si55 1.13, Ci4
l.29, Castro l.901.
44 os claros avós: ver as notas a Oi8.
49-50 descansa ... suspiravam: D. Luís era casado com D. Branca de Vi-
lhena, da qual teve um filho e duas filhas .
57_ ouviras: terias ouvido.

A Pero de Andrade Caminha, em resposta de outra sua

Ferreira respondeu com esta poesia à Elegia 3 de Andrade Caminha, "A Antó-
nio Ferreira. Na morte de Maria Pimentel sua molher", ed. de Anastácio, pp. 954-8.
Não se sabe ao certo a data nem do casamento do poeta nem da morte de Maria.
É possível, contudo, que dois sonetos, ambos de 1557, se lhe refiram. Si58, o último
do primeiro livro, descreve o encontro dos dois amantes, e o soneto astrológico,
Sii36, também menciona, sem entrar em pormenores, um acontecimento feliz na
vida do poeta. O que é certo é que Maria morreu pouco depois. O próprio Ferreira
o diz, Sii I li. 9- 11 e Andrade Caminha também, p.124. A elegia presente será, por-
tanto, do período 1557-9. A afirmação de Marques Braga segundo o qual o poeta
enviuvou ao terceiro ano de casado não tem fundamento.

Na elegia, que foi muito admirada por Camilo (citado por Marques Braga),
vê-se de uma forma especialmente dramática o conflito entre a dor ocasionada
pela morte de Maria e a necessidade da resignação cristã. Pode-se dizer, até, que
o conflito não se resolve. Com efeito, nos últimos versos da elegia Marília, ou
Maria, aparece numa visão para dar ao poeta uma lição de paciência e de fé, mas
a própria visão é o produto do desejo impaciente de Ferreira de rever a mulher.
Nota-se na poesia a presença de várias imagens muito semelhantes às de alguns
dos sonetos do livro I, e o poeta parece referir-se à colecção, 1.39. Dedicou tam-
bém Epit 18 e I 9 à memória da mulher, além de Sii 1- I 3.

537
COMENTÁRIO

1-2 daquele dia que: desde aquele dia em que.


8 cárcer: cárcere, a prisão do corpo.
10-12 assi ... chorada: a imagem da memória da mulher entalhada (grava-
da) na alma exprime bem a dor do poeta.
14-15 qual vem ... levante: ver a imagem semelhante em Si38, ll.1-4.
20-1 vi novo ... afugentando: ver o mesmo soneto, ll.1-4.
29-30 a poderosa ... natureza: a inevitabilidade da morte.
37-8 Aquele doce fogo ... fado: ver Si41, ll.1-3 e 9.
40-1 aquele nó ... leda: ver Si40 ll.1-4.
61 crera: creria.
65-6 quebrai ... lavores: a Parca, muitas vezes no plural, as Parcas, fiavam
a vida dos homens.
68 perdoarás à força: o verbo é seguido pela preposição a também em Ci l ,
l.77.
76 Vença ... vontade: o verbo é seguido pela preposição a também em Si56,
l.10.
79-80 O que... dizes: Ferreira pensava na elegia do amigo, pp. 954-5: "Podera-
-te lembrar como é devida/à tristeza a prudência, como sabe/até no sentimento
achar medida,/como o peito .. ./a toda dor (inda que grande) deve/achar remédio,
antes qu' o tempo o acabe". com cedo: cedo.
88-90 Quem me... era: os pais de Andrade Caminha morreram num mesmo
dia em data desconhecida entre 1553 e 1556. Ver Epit13.
98 impírea: empírea, celestial.

A Afonso de Alboquerque, em louvor dos Comentários


que compôs dos grandes feitos de seu pai

Os Comentários de Afonso de Albuquerque Capitão Geral e Governador da


Índia são uma obra biográfica e histórica da autoria do filho do governador da
Índia, também chamado Afonso de Albuquerque, por ordem de D. Manuel, que o
proibiu de usar o seu nome de baptismo, Brás. O livro saiu pela primeira vez em
Janeiro de 1557, data presumível da elegia. Ferreira, muito mais amante da litera-
tura do que das realidades da guerra, louva os Comentários do filho antes de pas-
sar para os feitos do pai os quais, segundo ele, só se salvaram do esquecimento
graças ao livro (l.78). A narrativa heróica teria atraído o interesse do poeta pre-
cisamente por ser um tipo de epopeia, embora em prosa, género pelo qual ele pro-
pugnava constantemente. É de notar também a importância que Ferreira atribui às
qualidades morais de Albuquerque, ll.58-67, além das puramente militares.

538
COMENTÁRIO

4 o teu branco carvalho: foi Roig ( 1970) p.132 que primeiro decifrou este
verso, embora o cite erradamente. Com efeito, Ferreira deriva Albuquerque, por
uma etimologia falsa, do latim alba quercus, em português branco carvalho.
6 seu real tronco: a família dos Albuquerque vem de um filho bastardo de
D. Dinis que se casou com uma neta de D. Sancho III de Castela (Albuquerque
( 1990) p.2).
11 do grande macedónio: Alexandre Magno.
14-18 a tua nua ... pura: na verdade, o estilo dos Comentários é notável pela
sua simplicidade e elegância (ver Albuquerque (1990), pp.39-40).
20 oriente: a palavra aparece aqui como adjectivo, pela única vez na poesia
de Ferreira.
25 o Hidaspe: o rio Indo ou, falando com rigor, um afluente do Indo.
28-30 De Meca ... conquistadas: Ferreira parece referir-se aqui à incursão
de Albuquerque no Mar Vermelho, descrita na Parte IV dos Comentários. Como
sempre, as referências históricas são vagas. As "portas de Meca" talvez sejam o
Estreito de Bab AI Mandab, chamado às vezes pelos portugueses Estreito de Meca,
por onde Albuquerque passou no decurso da sua malograda expedição, durante a
qual, ao contrário do que afirma Ferreira, não fez nenhuma conquista.
32-3 quantas minas ... encobertas: outra referência histórica pouco precisa.
A fonte principal do ouro do Estado da Índia eram as minas do sul da África,
donde era exportado através de portos como Sofala, Quíloa, Mombaça etc. Albu-
querque passou só alguns meses nesta região, no princípio da sua carreira, e não
fez lá nenhuma descoberta de nota.
38-9 se a morte ... fermoso: Albuquerque morreu em 1515, ainda no Oriente.
cortara: tivesse cortado. deras: terias dado.
43-5 Não pode... dura: os sentimentos de inveja que Albuquerque provo-
cava nos seus colegas formam um tema insistente dos Comentários (ver Albu-
querque (1990) pp.45-7).
49-51 Inda hoje... adora: ainda hoje lemos relatos sobre capitães romanos
e gregos que receberam um tratamento injusto (prémios escuros) durante a vida,
mas que foram honrados depois da morte. O exílio a que vários heróis da antigui-
dade clássica foram condenados é um tema que interessou Ferreira (ver Oii3 ll.13-
-15 e Ci3 ll.85-90).
58 Louvou-se... espanta: as palavras marcam a transição do louvor do livro
de Albuquerque filho, que ocupa a primeira parte da elegia, para a lição moral a
ser tirada da carreira do pai, que é a temática de 11.58-67.
66 Fábio: Quinto Fábio Máximo, tomado aqui como exemplo de uma grande
figura militar romana.
73-5 nenhum estado... ganhado: Ferreira exprime aqui uma dúvida, tipica-
mente humanista, acerca do valor dos títulos herdados. estado: posição social.

539
COMENTÁR IO

83 viva estátua: o livro de Albuquerque que, ao contrário de uma estátua de


mármore, dá vida ao herói (ver 11.1-2).
84-5 De ambos ... de ambos: a morte é vencida por ambos os Albuquerque,
pai e filho.

Amor Fugido
de Masco

A elegia do poeta alexandrino Mosco (século II a. C.) alcançou grande


popularidade no Renascimento através de traduções latinas (ver Costa Ramalho
( 1969a) pp.134-5). Ferreira inspirou-se provavelmente na de Policiano (Ribeiro
Rebelo, pp.247-51), cuja versão foi publicada por Costa Ramalho, p. 146. O iní-
cio da poesia portuguesa tem alguma originalidade, mas, mesmo assim, Ferreira
pôs muito pouco de seu na elegia, que deve ser considerada mero exercício lite-
rário, como as outras adaptações de originais gregos (El8, Epig3-10) . A data da
elegia é desconhecida, mas será provavelmente de depois de 1556, ano em que
Ferreira chegou a conhecer os Anacreontea, poesias estilísticamente semelhantes
a Amor Perdido e muito ao gosto da época (ver Epig3).

2 dos pés nua: descalça. Em latim, o adjectivo nudus é muitas vezes seguido
pelo ablativo, construção que Ferreira imita aqui.
16 Camenas: Musas.
24 doam ... mágoas: o conjuntivo tem valor condicional: temperarei as frias
neves, etc., sob a condição de as minhas mágoas vos doerem.
26 faunos : divindades pastoris, muitas vezes amantes das ninfas.
36 encruece: toma-se cruel.
47-8 De que... cante: como sempre em Ferreira, os pormenores mitológicos
são pouco precisos, mas a ideia é que se sente o amor mesmo no reino dos mortos.
Prosérpina foi raptada por Plutão, rei do Hades, e o amor de Orfeu por Eurídice
foi tanto que, depois da sua morte, ele a seguiu para debaixo da terra. Para a acen-
tuação de Prosérpina, ver Écl6, 1.11 O.
53 cheia a terra: estando cheia a terra. A omissão do particípio presente do
verbo estar é um latinismo.
67 Que vos prometa: embora vos prometa, mesmo se vos prometa. Ver tam-
bém Ci8, 11.58-60 e Sii39, 11.3-7.
68 bejo: beijo. Em El8, 1.19 aparece a forma verbal.

540
COMENTÁRIO

Amor Perdido
de Anacreonte

Aqui Ferreira imita Anacreontea n.º 33, seguindo-a bastante de perto. Rocha
Pereira ( 1972) p.56 nota uma certa falta de dramatismo na versão do nosso poeta,
porque Cupido revela quem é no princípio da sua fala. Porém, a poesia de Ferreira
acaba com uma antítese brilhante que falta no original (citado por Ribeiro Rebelo,
p. 257). A elegia deve ser de 1556, ou de uma data posterior (ver notas a Epig3).

3 Boote Ursa: Bootes, palavra grega que significa boieiro, nome de uma
constelação próxima da Ursa Maior.
19 bejo: beijo. Ver El7 1.68.
30 Fica embora: é uma fórmula de despedida, "fica com felicidade". Aqui
é uma ironia (Marques Braga).

A Santa Maria Madalena

A elegia, a História de Santa Comba e a écloga Natal são as únicas poesias


religiosas extensas da autoria de Ferreira. A elegia é uma paráfrase livre da narra-
ção bíblica do encontro entre Sta. Maria Madalena e Cristo depois da Sua Ressur-
reição. A fonte principal é S. João 20. 1-18, com elementos adicionais derivados
de S. Mateus 28. 1-1 O. Em meados do século XVI outros poetas parafrasearam a
mesma história, por exemplo, Jorge da Silva, autor de uma "Omilia feita a Mada-
lena", de 1549 ou anteriormente (Cancioneiro de Évora, pp.56-8). Mas enquanto
a poesia de Jorge da Silva não exprime nada mais que uma admiração sem limi-
tes pela devoção de Madalena a Cristo, Ferreira revela a sua independência, criti-
cando a santa, não pela sua vida pecaminosa, mas por ser ofuscada por "baixo
amor" e, por isso, ser incapaz de acreditar no facto da ressurreição. Segundo o
poeta, falta a Madalena a "vista... mais alta", proporcionada pela fé e pelas indica-
ções da natureza divina de Cristo que ela viu mas não entendeu (11.13-15, 69-80).
A ideia deriva de S. João 20.29, "beati qui non viderunt et crediderunt". No final
de contas, são as palavras do Senhor, sempre mais eficazes do que qualquer estí-
mulo puramente visual (11.117-9), que convencem a Santa. Assim, Ferreira, mais
uma vez, reivindica para a palavra, escrita ou falada, a primazia como meio de
comunicação e sugere que o verdadeiro entendimento vem do espírito e não da
observação do mundo exterior.

541
COMENTÁRIO

A ressurreição é um tema que fascinava Ferreira. Aparece em vários con-


textos, o que sugere que ocupava um lugar privilegiado no seu imaginário. Em
Epitl9, dedicado à morte de Maria Pimentel, surge mais uma vez o sepulcro vazio
de Cristo, enquanto em EIS, também dedicada à mulher, Maria fala ao poeta do
céu. Nas éclogas também o tema é importante. Em Arquigâmia é a natureza que
morre todos os anos e renasce, e o pastor Serrano está envolvido no mesmo
processo. Em Mágica Ferreira introduz várias histórias da morte e da ressurreição
tiradas da mitologia pagã e da literatura cavalheiresca. Pode-se concluir disto que
a elegia a Madalena também tem ressonâncias pessoais e que não deve ser con-
siderada unicamente como poesia religiosa. É justificável, portanto, o emprego na
elegia do vocabulário típico da poesia amorosa petrarquista que Marnoto (pp.
489-91) critica por ser impróprio de um poema dedicado a uma santa. É de notar
também a total ausência na elegia do culto da Madalena penitente e chorosa tão
divulgado na literatura e arte pós-tridentinas.

1-2 a quem ... muito: a citação vem de S. Lucas 7.47.


31-3 fizera ... dera: teria feito ... tivesse dado. É de notar, porém, que em
'l.20-1 levara e dera têm valor de mais-que-perfeito, como no português de hoje.
59 moimento: monumento, sepulcro.
81-3 Já aquela ... derribava: aqui Ferreira refere-se simultaneamente a
Cristo e a Sansão, o gigante que derrubou o templo dos filisteus, Juízes 16.25-30.
Sansão foi identificado com Cristo, Beda, Quaestiones super librum judicum, em
Patrologiae wtinae Tomus XCIII, ed. J.-P. Migne (Paris, 1850), col.427. já o
templo restaurou: é uma referência à ressurreição, ver S. João 2.19-22.
90-2 Como manso cordeiro ... prometido: a imagística destes versos parece
derivar de Apoc. 5.5-6.
96 disse: quem fala é o anjo de 11.55-6. Ver S. Mat. 28.7.
133 a grã corrente: se. de lágrimas.

ÉCLOGAS

ARQUIGAMIA

Arquigâmia, em grego alto casamento, é a mais extensa de todas as poesias


de Ferreira. Tal como Jânio e Dafnis, é uma tentativa de dar forma estética, segundo
moldes clássicos e renascentistas, a um acontecimento histórico. O casamento da

542
COMENTÁRIO

princesa espanhola D. Joana, filha do imperador Carlos V, com o príncipe D. João,


filho de D. João III e herdeiro do trono de Portugal (5 de Dezembro de 1552), ou,
mais propriamente, a chegada da princesa a Lisboa pouco antes do casamento, é
transformada num cenário pastoril e mitológico. A princesa é acompanhada pelas
divindades da terra e do mar, e na ode que dá remate à écloga (11.495-6 e 509-16)
é comparada a Vénus e a Diana (ver também Sii 14, escrito para comemorar o
mesmo acontecimento festivo). Mas nesta écloga Ferreira quis ainda desenvolver
uma mitologia pessoal (Earle (1990) pp.187-90). Através do emprego de maiús-
culas (11.78-88), o poeta indica a presença da misteriosa dama denominada Serra,
a quem são associadas também as qualidades de Diana, Minerva e Vénus . A fonte
dos amores perto de Coimbra, em que as deusas clássicas vão morar, é criação,
não delas, mas de um pastor português, Serrano (11.121-4 ). Ele fez a fonte das pró-
prias lágrimas, mas depois desaparece: "O corpo em água ali ficou desfeito; / do
esprito não se sabe bem que é feito" (11.127-8). Contudo, parece viver de novo na
pessoa do outro Serrano, personagem da écloga que sofre, ele próprio, uma trans-
formação de simples pastor para poeta inspirado, que presencia a viagem da
princesa através do Tejo e ouve, e repete o canto mágico das ninfas. A écloga está
repleta da imagística da morte e da ressurreição, por exemplo, nos versos acerca
da renovação da natureza, 11.41-8, ou na fala de Castílio, 11.241-76, em que se re-
fere aos mitos associados com a fénix e o cisne. Serrano e Castílio, ou Castálio,
possivelmente António de Castilho, aparecem também em Éc13 e 12.

Na estrutura da écloga vê-se a influência da Arcadia do poeta napolitano


Sannazaro e da Écloga II de Garcilaso (Earle ( 1990) p.185). Em ambas estas com-
posições um pastor adormecido é conduzido misteriosamente para debaixo das
águas de um rio. É notável também a variedade métrica da poesia, em que há oita-
vas, 11.1-168, tercetos, 11.169-295, rima encadeada, 11.296-481 e finalmente seis
estrofes que têm a forma de uma ode, 11.482-535.

Tal como Écl6, 1O e 12, a poesia começa com uma introdução, em oitavas,
pronunciada por uma figura anónima.

6 os lugares mais sagrados: o saque de Roma pelas tropas imperiais em


1527 causou uma grande impressão em Portugal. 25 anos mais t~r~..- . D. João III
ainda podia gabar-se de que os portugueses, ao contrário de:: outros povos euro-
peus, nunca tinham combatido contra um inimig-c, C:1 :stão.
18 desdo: desde o.
19-20 obrigou ... servi-lQ: o emprego da preposição a depois de obrigar é
variável em Ferreira. Aqui, e em Castro 11.747-8, falta a preposição, mas aparece
em Ci3 11.40-2. Em 11.91-4 a mesma preposição é omitida depois de forçar.
21-4 daquele que ... sua gente: D. Manuel. Na Carta marina navigatoria de

543
COMENTÁRIO

Waldseemüller (l 516) aparece uma gravura de D. Manuel montado num delfim,


reproduzida em Thomaz, p.45 .
26-7 da que... paz: da paz que se perdia.
27-9 Nunca... a cada passo: na antiga Roma, o templo de Jano ficava aberto
em tempo de guerra e fechado em tempo de paz.
49 Odiana: Guadiana.
55-64 Soía ali ... Lisboa: são linhas em louvor de Coimbra, para onde em 1537
D. João III tinha transferido a Universidade que, em 1552, o poeta ainda frequen-
tava. Através de Diana, deusa da caça, e de Palas, deusa da sabedoria, Ferreira ale-
goriza as actividades dos jovens nas margens do Mondego. Coimbra era o centro
do culto da Rainha Santa Isabel (ll.60-2 e ver também Sii.6 e 43) e lá se coroavam
os antigos reis de Portugal (Mattoso pp.190-3). daquele ... Lisboa: D. Afonso
Henriques (para o interesse de Ferreira por este rei , ver notas a Oi8).
65-72 Aqui Palas e Febo ... as criam: Febo, tal como Palas, protegia a sabe-
doria. Aqui Ferreira refere-se aos estudos matemáticos e astronómicos realizados
na universidade. Para o interesse do poeta nestes tópicos, ver Cii5. té li : até ali.
movimentos: Ferreira joga com vários sentidos da palavra, que pode significar
tanto "os movimentos dos orbes celestiais" como "os processos mentais dos
homens".
75-7 que inda hoje ... filho: Inês de Castro, morta em resultado da disputa
entre D. Afonso IV e o filho, o infante D. Pedro.
78 Serra: com maiúscula em PL, como em 1.87.
79 seu minino: Cupido, filho de Vénus. Ver também l.97.
91-2 com sua doce lira ... obedecer-nos: a imagem deriva de Horácio, Ars
Poetica , 1.393.
l 02 ela e Alemanha: a Espanha e Alemanha, o império de Carlos V, pai de
Joana.
l 05 vodas: bodas, como em l.357.
l 06 nos percebamos: nos apercebamos.
115 travadas: juntas.
117-18 mui diferentes... apetites vãos: uma referência ao célebre julgamento
de Paris, em que o herói troiano tinha de decidir a primazia entre Vénus, Palas (ou
Minerva) e Juno (ver 11.145-7). Ferreira tinha pouco respeito pelos apetitas vãos
que a mitologia clássica podia suscitar e mudou a última destas deusas para
Diana, a deusa virgem. O julgamento de Paris é referido outra vez, 11.495-6.
121 Àquela fonte antiga: gramaticalmente falando, a frase faz parte da
estrofe anterior: as deusas "vão-se (l.114) ... àquela fonte antiga". O poeta adopta
aqui uma sintaxe livre, mas o sentido é perfeitamente claro.
124 Serra: a emenda parece legítima, porque em PL a palavra grafa-se com
maiúscula 11.78 e 87.

544
COM ENTÁRIO

131 Lésbia: anagrama de Isabel. Lésbia e Crinaura (1.253) são as amantes


de Serrano e de Castílio/Castálio também em Écl3 .
142 Filomela: princesa grega, que foi violada por Tereu e depois transfor-
mada num rouxinol.
148 espiraram: a justificação da emenda é métrica. Para obter um verso em
que a 6ª sílaba (soltos) seja acentuada é necessário ler espiraram com quatro
sílabas. Seguindo a leitura de PL, spiráram, a 6ª sílaba cai em cabelos e, portanto,
não é acentuada.
151-2 morada ... de üa só: Vénus que "de antigamente / tinha tomado posse
dessa terra" (li. 73-4 ).
173-7 vivo ... sirvo ... cativo: há uma rima semelhante em Ci3 11.122-6.
181-3 Quisera ... vira ... dera: queria ... visse ... daria.
208 de monte a monte: cheio.
209 queixumes: o ruído surdo que faz um grande caudal de água.
223 A que dizes ... demanda: se me perguntas pelo que acabas de dizer
(acerca do amor), digo .. .
228 Morria ... por vir-me: na sua imaginação, Serrano queria voltar antes
de ter partido. Revela assim o seu temperamento instável.
237 disseras: dirias.
240 o tento: os sentidos.
242-6 Lá ouvi dizer... nascer: as aves em questão são o cisne e a fénix.
Castílio refere-se ao canto do cisne outra vez, ll.269-70.
258 sem carvalho ou louro: sem árvore que me protegesse.
277-8 o mar gerou ... mãe: Vénus, mãe de Cupido, nasceu da espuma do mar.
292-5 Pera mor... milagroso: emprega-se a rima encadeada em quase toda
a longa tirada de Serrano. Contudo, os primeiros quatro versos pertencem metri-
camente à secção da écloga em tercetos rimados. As poesias em tercetos costu-
mam acabar com uma estrofe de quatro versos, como esta.
334 que voavam: por que voavam.
335-6 Ali gado... pegadas: Castilho nota as semelhanças, um tanto vagas,
entre estas linhas e a descrição de Ovídio do lago de Narciso, Metamorfoses III,
ll.407-9.
359-60 vira ... presumira: visse ...presumiria.
367 Que dor ... mágoa: as emoções provocadas pelo amor impossível que
qualquer pessoa sentiria pelas deusas.
368 psalteiro: saltério (instrumento de cordas).
371-74 Corria a fonte ... iguais: a ideia é que o som produzido pela água da
fonte servia como acompanhamento à música das deusas. ao mesmo ponto: ao
mesmo tempo.
384-94 as ondas que ... cuberto: a imagem das ondas que avançam e recuam

545
COMENTÁRIO

exprime o medo de Serrano, que inicialmente é grande, mas que logo desaparece.
rosto mortal: perturbado, angustiado. Sá de Miranda ( 1885) fala de suores mor-
tais na écloga "Encantamento", 11.171-2 e 465.
397-8 conheceras ... poseras: conhecerias ... tivesses posto.
409 a partes: em várias partes do vestido.
413-16 No carro ... a ele: a imagem poética parece ter sido inspirada na
iconografia real da época. Ver Deswarte ( 1977) p.68 .
417 tritões: divindades do mar.
418 dões: dons.
422 Tétis: na mitologia clássica, rainha do mar.
435-6 o tão nomeado Duque ... João: D. João de Lencastre, Duque de
Aveiro, chefe da família que Ferreira tanto admirava. D. João III encarregou-o de
acompanhar a princesa D. Joana da fronteira espanhola até Lisboa.
444-7 Neto ... e digno: D. João de Lencastre era filho de D. Jorge, mestre de
Santiago e filho bastardo de D. João II. 11.446-7 referem-se à morte de D. Jorge,
ocorrida em 1550. Do mundo... espanto: uma frase quase idêntica encontra-se
em Epit6, dedicado a D. João II, 1.3.
450 Vulcano e Marte: o deus das forjas e o deus da guerra. Assim Ferreira
consegue incluir na sua cena mitológica uma referência à artilharia.
455 trunfas: turbantes.
471-4 viam ... areias: uma referência ao mito segundo o qual há ouro nas
areias do Tejo.
513-16 Tal vem ... Diana sai: Diana é o sujeito de "invejosa lhe pode ser".
527-8 Que príncipe... nascerá: D. Sebastião. É possível, como sugere
Castilho, que esta estrofe tenha sido acrescentada depois da composição do resto
da écloga.
534 Júlios, Paulos, Drusos: famílias a que pertenciam várais figuras con-
hecidas da história romana.
535 as Parcas: divindades romanos do fado. O fio representava a duração
da vida humana. Castilho nota neste verso a influência de Virgílio, Écloga IV,
11.46-7.

JÂNIO

Os pseudónimos que o poeta emprega nesta e noutras éclogas são a causa de


problemas de interpretação bastante intricados . Não é difícil identificar a maioria
das personagens de Jânio com personalidades históricas da época, mas seria erró-

546
COMENTÁRIO

neo pensar que tais identificações constituam a explicação da poesia como um


todo. Em Jânio Ferreira disfarçou o príncipe D. João sob o nome de Jânio, não
por medo da censura - refere-se-lhe pelo seu próprio nome em Écl 1 l.489 e em
outros lugares - mas porque quis fazer da morte do herdeiro do trono uma éclo-
ga, de um tipo novo, em que um nome literário, como Jânio, soaria melhor do que
o nome de uma pessoa da vida real. Podemos dizer, até, que a razão dos disfarces
da poesia é o desejo de Ferreira de criar uma obra de arte, tanto ou mais que o de
comemorar um facto histórico. Há um estudo mais completo em Earle ( 1995a).

A história da identificação das personagens históricas começa com Castilho,


que diz que o assunto desta écloga é a morte do príncipe D. João em 2 de Janeiro
de 1554. Antes disso nem Teófilo Braga tinha considerado semelhante possibili-
dade. Castilho não aduz razões para justificar a sua hipótese, mas é uma hipótese
razoável, apesar da falta de pormenores históricos na écloga (ver ll.7-8). São três os
argumentos em favor da sugestão: 1) a posição de Jânio na sequência das éclogas,
logo depois de Arquigâmia, que comemora o casamento do príncipe, pouco mais de
um ano antes da sua morte prematura; 2) o uso, em PL, de maiúsculas para grafar
os nomes de Jânio e Fílis. Na ed. de 1598 os nomes de personagens reais escrevem-
-se normalmente com maiúsculas; 3) a semelhança entre os nomes de Jânio e João,
e Sázio e Sá de Meneses. Francisco de Sá de Meneses foi camareiro do príncipe.
Contudo, o mistério é uma parte integral do género bucólico, e não há uma equi-
valência absolutamente certa entre João e Jânio, nem entre Sá de Meneses e Sázio.
Davam-se outros nomes pastoris ao príncipe: Dáfnis, em Écl7, Aónio, na Écloga 1
de Camões, e Adónis, na Écloga 1 de Bernardes. Sázio podia ser Sá de Miranda,
que escreveu uma elegia sentida à morte de D. João. Além disso, não há semelhança
alguma entre Fílis e D. Joana, mas a identificação é feita por Castilho e outros.

Fucilla, p. 268, seguido por Roig (1970), p.91 n., foram mais longe que Cas-
tilho, identificando Aónio com António (Ferreira) e Piério com Pero (de Andrade
Caminha). Mas Aónio e Piério são também nomes das Musas. Aónio deriva de
Aonius ou Aonis, ambos epítetos das Musas, que viviam numa zona da Boécia
antigamente chamada Aonia. Piério vem de Pieris ou Pierius, adjectivos forma-
dos à base de Pieros, na mitologia pai das nove irmãs. Os nomes clássicos são
uma indicação clara de que Ferreira não queria representar-se a si próprio, nem ao
seu amigo, como contemporâneos do príncipe na vida real, mas como poetas,
vates inspirados que dariam fama imortal ao seu nome. Por esta razão o Jânio da
poesia é muito mais uma divindade pastoril do que um homem de carne e osso.

Ferreira utilizou a oportunidade fornecida pela morte de D. João para com-


por uma écloga piscatória, cuja acção se passa à beira-mar. Talvez seja a primeira

547
COMENTÁRIO

piscatória portuguesa, embora Camões reinvindique a honra para a sua écloga


"A rústica contenda desusada", em que também entra um pescador, Alicuto ou
Alieuto. Segundo Maria de Lurdes Saraiva, porém, a poesia camoniana foi escrita
em 1571 ou mais tarde, isto é, muitos anos depois de Jânio, que é de 1554, como
vimos (ver a ed. de M . de Lurdes Saraiva, III, pp.337-8). O género piscatório é de
origem italiana, tendo sido inventado pelo poeta napolitano Sannazaro (1456/58-
-1530). Há uma ligação entre Jânio e as éclogas piscatórias de Sannazaro numa
écloga em latim, Janius, de que um exemplar é conservado no MS da Livraria
2209 da Torre do Tombo, fol.83v.-84r. (o fól. 83 é numerado duas vezes). Martyn
chama a atenção para a poesia, pp. 198-9. A écloga é anónima, mas tem tantas
semelhanças de estrutura e de linguagem com Jânio que tudo leva a crer que seja
contemporânea dela e, possivelmente, da autoria de Ferreira. Tem em comum com
as Piscatoriae de Sannazaro o uso do latim e os nomes dos interlocutores, Lycidas
e Mycon, pescadores que entram em cena na Phyllis (outro nome significativo) do
poeta napolitano. Na presente edição Janius imprime-se como Apêndice 3.

7-8 Jânio... saudade: a nacionalidade portuguesa de Jânio é uma das pou-


cas informações históricas que se depreendem da écloga. É possível também que
os "bárbaros pastores" de 1. 83 sejam os turcos ou outro povo oriental.
13-14 Este cedro ... levanto: dou honra ao cedro etc. escrevendo nele o teu
nome.
19-27 Aónio, assi ... cantes ora: para a construção, ver Si50 11.1-12.
29 Chovem-me ... dos olhos: Mamoto (p.434) vê neste verso a influência de
Petrarca, Canz. 17, 1.1: 'Piàvommi amare lagrime dai viso'.
31 cá.:;sia: uma erva aromática, também mencionada por Virgílio.
46/ráguas: a leitura taboas é um dos poucos erros graves de PL. Nem rima
nem faz sentido. Mesmo assim, nem Castilho nem Marques Braga chamam a
atenção pàra o problema. Propomosfráguas, no sentido de fragas, como emenda.
63 des que: desde que:
68-9 teus olhos... pendurados: os teus olhos formosos, Jânio, atraíam as
pessoas que os viam.

3
TÍTIRO

A écloga levanta, mais uma vez, a questão dos criptónimos. Nela se encon-
tram, como habitualmente, indivíduos disfarçados mas mencionam-se também,
sem qualquer máscara, dois poetas conhecidos, Francisco de Sá de Miranda e
Francisco de Sá de Meneses (11.18-20). Serrano representa um aspecto da persona-

548
COMENTÁRIO

!idade poética do propno Ferreira (ver Écl 1) e Castálio será provavelmente


António de Càstilho, que aparece também em Écl 1 e 12 como amigo de Serrano,
mas com o nome de Castílio. A mudança da sílaba tónica foi uma ideia feliz,
porque leva o leitor a pensar na fonte castália, uma das moradas das Musas.
Castálio, portanto, é um nome parecido com o Aónio e o Piério de Écl2.

O pseudónimo mais célebre da poesia é Magálio, o mau poeta. Tem sido iden-
tificado com Camões, o que não passa de uma hipótese (para a bibliografia, ver Ro-
cha Pereira (1972) p. 67, a que se deve acrescentar Costa Ramalho (1992) pp. 9-12).
O ódio ao mau poeta é uma constante por toda a poesia de Ferreira: é visível até em
Ciil2, ll.19-24, escrita em 1567, mais de uma década depois da viagem de Camões
para o Oriente. Em Écl3, Magálio corresponde ao Codro da Écloga 7 de Virgílio,
também mau poeta, o que sugere que aqui Ferreira não fez mais que imitar (hipótese
que não diminui em nada a sinceridade de Ferreira ao atacar o que ele considerava
ser a má literatura). Mas porque mudou Ferreira Codro em Magálio? Costa Ramalho
dá uma explicação engenhosa, embora tentativa, mas pode-se tratar simplesmente
de mais um erro da parte do nosso poeta na transcrição de nomes clássicos.

Títiro, porém, não é identificável com nenhum poeta quinhentista. Sempre


que aparece em PL, é como o símbolo do bucolismo antigo, o pastor cujo nome
forma a primeira palavra da Écloga l de Virgílio e que, na Écl5 de Ferreira re-
presenta o próprio Virgílio (ver 1.40). Assim, é altamente significativo que Títiro
apresente uma poesia pastoril cujo cenário é o Mondego, no seio de Portugal, o
que indica que a écloga portuguesa já está a par da bucólica clássica. Outras indi-
cações da confiança de Ferreira no seu domínio da nova literatura classicista são
o virtuosismo métrico de Títiro, especialmente 11.98-133, e a maneira hábil com
que na poesia se combinam elementos de várias éclogas virgilianas. A estrutura
básica da poesia de Ferreira vem da Écloga 7 de Virgílio, e há numerosas remi-
niscências verbais das Éclogas 2, 3 e l O, além da 7, como notam Castilho, Fucilla,
pp. 254-7, e Rocha Pereira (1972), pp. 67--9. Estas fontes estão apontadas nas notas.

A écloga foi escrita antes de 1558, ano da morte de Sá de Miranda, e pro-


vavelmente ainda antes de Ferreira e o seu condiscípulo Castilho se separarem, à
volta de 1556, quando Ferreira abandonou Coimbra para se estabelecer em Lisboa.

Títiro: em PL não é incluído entre os nomes dos interlocutores, nem no


princípio da poesia nem antes de 1.134, onde começa a sua segunda fala, mas é
evidente de 1.34 que toda a introdução (11.1-49) é pronunciada por ele.
7 ceiceiro: salgueiro.
18 Linos: Lino era filho de Apolo, segundo Virgílio, Écl.4, 11.55-7.

549
COMENTÁRIO

28-30 Aconteceu ... metida: o pormenor não vem em Virgílio. Talvez seja
uma referência simplificada ao brasão de armas de Coimbra: "N'elle se ve repre-
sentada uma donzella coroada, com as mãos postas e erguidas, mettida n' uma
copa, ou caliz, tendo de um lado um leão e do outro uma serpente, ou seja dragão"
(Michaelis de Vasconcelos (1885) p. 819).
31-7 Aconteceu ... assenta: o mesmo incidente em Virgílio, Écloga 7, 11.6- IO.
46 referta: altercação.
50-7 Musas ... fala: adaptação de Virgílio Écl.7, 11.21-8, em que dois poetas
portugueses, "meu Sá" e o misterioso Magálio, substituem o poeta romano Codro.
58-63 Meus versos ... te cante: Ferreira não distingue entre os dois Sás, de
Miranda e de Meneses, maneira de lisonjeá-los a ambos. Este trecho tem a sua
origem remota no louvor de Polião na Écl.3 de Virgílio, 11.84-7.
64 rompa-se ... rompa: Virgílio, Écl.7, 1.26.
70-3 Crinaura ... falava: adaptação de Virgílio, Écl.3 , 11.64-5.
74-7 Que me aproveita ... chamas: adaptação livre de Virgílio, Écl.3, 11.74-5,
de que Ferreira transforma a nota homossexual numa referência a Lésbia, a amante
de Serrano de Écl l .
78-85 Triste ... veio: é o equivalente bastante exacto de Virgílio, Écl.3, 11.80-3,
mas aqui também o jovem Amyntas é substituído por uma donzela, Fílis.
86-9 De duas... queres: como nota Rocha Pereira, Ferreira combina aqui
passos de duas éclogas virgilianas: 2, 11.40-4 e 3, 11.68-9.
90- l Dez maçãs ... tenho: a ideia vem de Virgílio, Écl.3, 11.70-1.
102-3 Olha ... enchendo: a técnica compositiva pela quài o último verso de
cada estrofe é repetido no princípio da estrofe seguinte deriva ou de Sá de Miranda,
Alejo, 11.446-82, ou da fonte comum, a Écl.2 da A readia de Sannazaro, 11.81-100.
114-17 e teu peito ... crece: para a compreensão desta frase, é necessário
subentender tal depois de parece (1.114).
125 Crescerá ... amores: Virgílio, Écl.10, 1.54.
134-7 Isto só ... fontes: Títiro dá o prémio a Castálio, tal como, na Écl. 7 de
Virgílio, Melibeu o dá a Córidon, 11.69-70.

LÍLIA

Há uma versão manuscrita desta écloga no Cancioneiro Fernandes Tomás,


fois l 73v.- l 74v. em que aparecem algumas leituras ligeiramente diferentes das de
PL. Segundo Michaelis de Vasconcelos ( 1922b) p.17 o cancioneiro foi coleccionado
provavelmente durante o período do domínio castelhano, sendo assim quase con-
temporâneo da edição impressa.

550
COMENTÁRIO

Na écloga, Ferreira imita a estrutura e algumas das próprias palavras da


Écloga 2 de Virgílio. O estudo mais completo das imitações encontra-se em
Rocha Pereira, ( 1972) pp.68-9, que nota como o homossexualismo do original
desaparece inteiramente na versão portuguesa. Ver também Fucilla pp. 257-60.

Um pastor chamado Aónio surge em várias poesias (Éc12, 4, e 5; Sii28), mui-


tas vezes como o amante de Lília. Porém, muito mais que um mero pseudónimo de
António Ferreira, Aónio, um dos epítetos das Musas (ver notas a Écl2), chama a
atenção para a renovação da tradição poética praticada pelo nosso autor, que aqui
mostra como uma écloga virgíliana pode ser recriada no Portugal de quinhentos.

1-9 Por Lília ... chamada: imitação de Virgílio, Écl.4, 11.1-5.


9 o nome ouve: a leitura de CFT, o não ouve, pode parecer preferível à de
PL porque toda a écloga é uma queixa contra a indiferença de Lília. Mesmo
assim, o nome de PL é de reter, porque se combina bem com o resto da frase, cuja
significação é "até tal ponto era dele chamada".
13-14 Com tua vista ... parte: as transformações mágicas da paisagem são
frequentes nas éclogas.
37-8 Também ... creio: imitação de Virgílio, Écl.9, 11.32-4.
40-1 Pois ... mortal: imitação de Virgílio, Écl.4, 1.25 . a cor mortal: o ar
angustiado (ver Écl 1 1.390.
42 des que: desde que.
54 dões: dons
57 em que ... misturava: imitação de Virgílio, Écl.4, 1.55.
67 quisesses: se quisesses. A omissão da conjunção numa oração condicio-
nal é um latinismo frequente em Ferreira
70-72 se virão ... alegrias!: a frase depende sintacticamente de "dizia em
mim" (1 .67)
85-6 Das ninfas ... escolhidos: imitação de Virgílio, Écl.4, 11.45-6.
94-7 Aónio ... aprazes : adaptação do final da écloga de Virgílio, 11.69-73.

5
TÉV/0

É costume identificar o Tévio desta écloga com o grande humanista e escri-


tor novilatino Diogo de Teive e, portanto, a poesia deve ser do período em que ele
e Ferreira estavam em Coimbra. Ferreira homenageia o douto mestre, como lhe
chama em Cii4, 1.60, dando-lhe o papel de árbitro na contenda literária entre Aónio
e Yíncio. Tévio é assim equivalente ao Palémon da Écloga 3 de Virgílio (Fucilla,

551
COMENTÁRIO

pp. 265-6). Para Aónio ver as notas a Écl2. A identidade de Víncio é desconhecida.
Há uma ligação forte entre Tévio e Sii28, em que se referem as aventuras de
Aónio, Víncio, Célia e Lília à beira-mar.

Nesta écloga Ferreira utiliza dois esquemas métricos, tercetos (11.1-39 e 94-
-100) e quartetos (11.40-93). Desta maneira separa a contenda literária entre Aónio
e V íncio do resto da poesia.

1-3 Porque... cantamos: imita a introdução da Écl.5 de Virgílio, 11.1-3


(Castilho).
4 alegre o dia: justifica-se a restauração do artigo antes de dia, porque todos
os outros substantivos da frase o têm.
12 tu ... não te afrontes: como frequentemente em Ferreira, a conjunção se
é omitida.
14 Lino: filho de Apolo, segundo Virgílio, Écl.4, 11.55-7.
22 desponhas: ou disponhas, o que significaria "antes que te exponhas a um
perigo maior". Na linguagem quinhentista havia às vezes uma hesitação entre des-
e es- inicial. Ver despedir, Apl 1.52 e espede, Cii2, 1.150.
39 Palas: aqui, a deusa da sabedoria.
40 Títiro ou Sincero: pastores associados respectivamente com Virgílio e
Sannazaro.
41 quisera: quereria.
61 pintura: cor.
65 estê: esteja.
68-9 levai-a... desempedida: i.e., levai água à ribeira, para que nunca falte.
O desejo da água por parte de Víncio forma um paralelo estrito com o desejo da
sombra sentido por Aónio.
70-3 Andava... vergonhosas: imitação de De Caelia et Cupidine do poeta
novilatino italiano Girolamo Angeriano, Erotopaegnion . (Fucilla, p. 298).
78-85 Três foram ... cantadas: em De Caelia, de Angeriano, a amante do poeta
é também a décima Musa e a quarta Graça. Há outras imitações de Angeriano em
Écll0 e em Epig6 e 8.
94 Arno: o rio de Florença na Toscana.

MÁGICA

A fonte desta poesia é a écloga 8 de Virgílio, muitas vezes chamada Phar-


maceutria. Rocha Pereira ( 1972), pp.69-71, publica duas longas listas de imitações,

552
COMENTÁ RIO

mas as correspondências não são tão íntimas como podem parecer à primeira
vista. Na verdade, o nosso poeta segue de perto a estrutura da poesia virgiliana,
mas reescreve-a, permitindo-se um número relativamente reduzido de traduções
ou de paráfrases (ver as notas) . Além disso, introduz uma nota pessoal na fala de
Ménalo, que pronuncia um encantamento cujo fim é o de reunir os dois amantes
Alcipo e Marília, muito possivelmente o próprio Ferreira e a sua primeira mulher,
Maria Pimentel. No encantamento de Ménalo, Ferreira inclui histórias de morte e
ressurreição que não se encontram no texto virgiliano e que aumentam o ambiente
mágico-religioso da écloga portuguesa. Mágica talvez pertença ao mesmo ano
( 1557) que o primeiro livro de sonetos, cuja temática é, muitas vezes, a separação
do poeta da sua amada.

1-4 De Lícidas ... detido: para chegar à compreensão desta frase elíptica é
necessário suprir certas palavras que faltam. Pode-se parafrasear 11.1 -4 assim: Eis
o novo canto ... que foi tal que, tendo sido ouvido por Amor, enquanto ia ... com os
Amores, se diz que ele [Amor] foi detido pelo brando som ...
14 de outras tuas: é necessário subentender "de outras tuas partes".
22 rompia ... cerrava: o sujeito de rompia é a lua (1.19) e de cerrava é outra
(se. nuvem).
41 Ao rústico ... Flora: adaptação de Virgílio, 1.26, "Mopso Nysa datur",
mas, mesmo assim, Ferreira muda os nomes das personagens para Flora e Serpilo.
Serpil ou serpilho são formas alternativas de serpão, planta indigna de uma moça
com o nome divino de Flora. A imitação deste passo da écloga virgiliana conti-
nua em 1.50.
46 Quem ... forçada : a referência é à roda da fortuna.
50 Que ... amamos: tradução do resto de Virgílio, 1.26 (ver 1.41).
73-9 Muitas ... vistes: paráfrase de Virgílio, 11.37-41.
81-4 Ah, já sei ... natureza: paráfrase de Virgílio, 11.43-5.
89-94 Pastores ... tristes: no passo correspondente de Virgílio, 11.58-60, o
pastor Damon ameaça suicidar-se. Lícidas acaba numa nota mais optimista, a
primeira indicação de que, nos últimos versos da écloga, a noite e a tristeza vão
ceder o lugar ao dia e à alegre reunião dos amantes .
96 Ménalo: personificação do monte Ménalo, na Arcádia, referido frequen-
temente pelo pastor Damon da écloga de Virgílio.
105-11 Só falecem ... trazia: ver Virgílio, 11.67 e 69-71. Ao poder da poesia
sobre a lua e as serpentes, mencionado por Virgílio, Ferreira acrescenta a capaci-
dade da arte de dar vida aos mortos e de renovar os campos. Desta capacidade dá
um exemplo, a conhecida história de Orfeu e Eurídice.
117-9 Piadosa ... Febo: a mãe é Vénus, o filho é Amor (ou Cupido) e Febo
é Apolo.

553
COMENTÁRIO

121-3 Ata ... amores: paráfrase de Virgílio, 11.77-8. Depois de 1.126 é evi-
dente que é Marília quem fala e não já Ménalo, que parece desaparecer da cena
logo que o seu encantamento começa a dar resultados.
130-2 eis derramo ... nasce: esta história de morte e ressurreição não vem
no original virgiliano.
137-43 Qual... queria: a mesma imagem em Virgílio, 11.85-9.
115-51 Este limo... fazia: trecho inspirado por Virgílio, 11.95-9. Ferreira acres-
centou as referências ao Nilo e a Horilo, Orrilo, ou Orilo, monstro egipciano,
descrito por Boiardo e Ariosto, que se recuperava milagrosamente das feridas que
lhe foram feitas. Ver Orlando Innamorato, Livro III, Canto 2, estr. 46-8 e Orlando
Furioso, Canto 15, estr.64-90.
153-4 Aqui ... despojos: tradução de Virgílio, 11.91-2. É possível que os des-
pojos sejam a roupa do ausente, guardada como garantia do seu regresso.
156 Esta ... creio: Man1ia acredita no que está escrito na árvore.
167 É Alcipo... fantesia: inspirado em Virgílio, 1.108.

DÁFNIS

Foi Castilho que viu que Dáfnis, tal como Jânio , tem como assunto a morte
do Príncipe D. João. No caso de Dáfnis dificilmente pode haver poucas dúvidas
de que 11.46-66 descrevem a morte do príncipe, ocorrida em 2 de Janeiro de 1554,
a mágoa da princesa e o nascimento de D. Sebastião, 18 dias mais tarde.

Na écloga a influência de Virgílio é óbvia, talvez mais do que em qualquer


outra poesia pastoril do nosso autor. Ferreira inspirou-se em várias éclogas do
poeta romano, especialmente em Écl.5 , em que se chora um pastor de nome
Daphnis, e em Écl.3, em que Menalcas oferece um tarro, ou alguidar, a Damoetas
como prémio de uma canção. São visíveis também várias frases tiradas destas e
de outras bucólicas virgilianas, que foram analisadas por Rocha Pereira ( 1972) pp.
60-3. Nas notas só se mencionam os empréstimos mais evidentes. Contudo, em
Dáfnis Ferreira conseguiu adoptar técnicas literárias romanas a um tema nacional
e deu também à sua poesia uma estrutura toda própria que exp~ime uma das suas
mais profundas convicções estéticas. É esta a sua crença na superioridade da poe-
sia às artes plásticas. Por esta razão, o lamento final de Lícidas, através do qual
Dáfnis parece ressuscitar, tem uma força imaginativa muito maior que a descri-
ção, estritamente alegórica, do tarro de Eurilo (ver Earle ( 1990) pp.180-1 ). Para
marcar o contraste, o lamento de Lícidas, em oitavas e com um refrão, distingue-se
metricamente do resto da écloga, em tercetos.

554
COMENTÁRIO

7 Lícida: o nome Lícidas, como muitos outros nomes pastoris, vem de Vir-
gílio e ultimamente do poeta grego, Teócrito. Virgílio conservou as flexões destes
substantivos gregos, de que o vocativo acaba em -a. Ferreira imita Virgílio nisto,
mas sem consistência (ver 11.1 , 31 etc.), o que revela ou um conhecimento pouco
profundo do grego da parte do poeta, ou uma falta de compreensão dos tipógrafos
de PL. dera: daria.
9 fizera: faria.
16 da branca Marília: Roig ( 1970) p.109 vê aqui uma referência a Maria
Pimentel, 'le grand amour d'António Ferreira'. Mas neste caso, quem é Lícidas,
que em Écl6 ama a cruel Flora? É uma indicação da arbitrariedade dos pseudó-
nimos, que não devem ser tomados à letra (ver Earle (1990) p. 165).
19-26 Rústico Mévio ... Bávio deleite: Bavius e Maevius (dos quais nada se
sabe) aparecem como exemplos de maus poetas na écloga 3 de Virgílio. Eurilo
tenta inspirar Lícidas com a sua crença no valor da boa poesia, tal como Ferreira
inspira Andrade Caminha em Ci8 ll.121-6.
34-6 Nunca o cheguei. .. bem guardado: 11.34 e 36 são uma tradução de
Virgílio, Écloga 3, 1.43, linha que Virgílio repete em 1.47.
35 tégora: até agora.
42 Pafo e Gnido: Pafo (na ilha de Chipre) e Gnido (ou Cnido, cidade da
Ásia Menor) eram lugares consagrados a Vénus.
46 Adónis: amante de Vénus. Na Écl.l de Bernardes D. João tem o nome
pastoril de Adónis.
51 a piedade: a correcção foi feita por Castilho.
55 Lucina: deusa do parto.
58 às douradas Horas: deusas das estações e da fertilidade, muitas vezes
presentes no parto de deuses e de heróis.
61 às ninfas: a correcção foi feita por Castilho.
63 Proteu: profeta que vivia no mar. Ferreira invoca-o aqui para realçar o
destino marítimo de D. Sebastião.
69 Eucrito: tal como Eurilo, é um nome pastoril inventado por Ferreira.
83-6 Que fontes ... piadosas: uma reminiscência da Écl.1 Ode Virgílio, 11.9-10.
Ferreira transforma as náiades do poeta romano em Musas.
91-4 Tinha-vos ... encobrido: Pindo era um monte consa~rado às Musas. o
vosso monte: o monte Pamasso. Ferreira continua a seguir a Ecl. l O de Virgílio,
11.11-2, nacionalizando a fonte Aganippe no Mondego.
96 Tempe: belo vale da Tessália, onde Apolo viveu durante algum tempo.
99- 100 Dáfnis ... choraram: o choro dos leões vem do lamento virgiliano
por Daphnis, Écl.5, 11.27-8.
107-10 cita ... geta ... parto: segundo os romanos, povos que viviam afasta-
dos do mundo civilizado.

555
COMENTÁ RIO

111 o cruel cometa: os cronistas Faria e Sousa (Europa portuguesa II, p. 614)
e Barbosa Machado ( 1736, I, p. 7) falam de presságios muito mai s extravagantes.
Segundo Machado, "appareceo sobre a Sé de Lisboa huma exhalação de fogo, que
tinha a fórma e a grandeza de hum ataGde meyo aberto".
115 Ovílio pastor... Tibre: deriva do latim ovilis ou ovillus, adjectivos que
significam "de ovelhas". A referência é, evidentemente, ao Papa, na época, Júlio III.
117-20 Quem levará ... acrescenta: é uma adaptação de Virgílio, Écl.5 ,
11.24-6.
123-6 Vinham outros ... atinas: as referências contidas na écloga a acon-
tecimentos na vida pública justificam uma leitura política deste passo. Em 1552
havia guerra na Alemanha entre as tropas do Império "pastores ... das serras" e de
França "das campinas". Um tema constante de toda a poesia de Fen:_eira é a
abstenção de Portugal de tais conflitos. (Ver, nas éclogas, Ecl 1, 11.1-16 e Ecl9, 11.3
e 11-12).
131-6 Não tanto... chamou: segundo os romanos, o delfim, o rouxinol (Filo-
mela) e o cisne eram todos animais com dotes musicais. Ariadne chorou o seu
abandono por parte de Teseu, Eco a indiferença de Narciso.
139-45 Dáfnis ... devemos: tanto nestas linhas como em Virgílio, Écl 5,
11.29-34, Dáfnis é visto como deus pastoril, que ensina várias artes aos homens.
Porém, Ferreira não segue o poeta romano de perto.
157 vira: visse.
168 enova: renova.
171-7 Ficai ... amemos: a fala de Dáfnis é inspirada no epitáfio de Virgílio,
Écl.5, 11.43-4 mas, tal como em 11.139-45 , Ferreira trata a fonte com muita liber-
dade.
179-80 Mel puro ... favos são: na écloga 5 de Virgílio, Menalcas louva Mop-
sus, que tinha cantado a morte de Daphnis, 11.45-7. A fala de Eurilo ocupa uma
posição equivalente na écloga de Ferreira, mas as palavras que usa parecem vir do
Jdílio Ide Teócrito, 1.146, como vê Michaelis de Vasconcelos, nas suas anotações
manuscritas a Castilho, citadas por Rocha Pereira, p.62-3 . Ferreira podia ter lido
as poesias do bucolista grego em tradução latina.

FLÓRIS

Garcia Fróis Ferreira era o irmão mais novo de António. Castilho, I, pp. 56-7,
identifica-o com o Flóris da écloga. O Alcipo de 11.78 ff. é um pseudónimo que o
irmão mais velho utilizava frequentemente . Em 1554 Garcia Frói s servia como

556
COMENTÁRIO

moço da câmara da Rainha (Roig (1970) pp. 70-1). Em Junho de 1557, porém,
segundo a carta em prosa de Ferreira a António de Castilho publicada por Brito
Rebello, estava "em Flandres, na armada". A armada em questão será possivel-
mente a que foi necessário reunir em Abril do mesmo ano para proteger doze
urcas que iam para Flandres dos ataques dos corsários franceses (ver Magalhães
Godinho, II, p. 229). Por esta razão, podemos atribuir a Flóris a data possível de
1557, mas evidentemente Garcia Fróis podia ter feito outras viagens.

Flóris é a menos pastoril das éclogas de Ferreira. A influência mais visível


na poesia não é a de Virgílio, mas a de Ovídio. Com efeito, a situação de Lídia,
que lamenta a ausência do amante, é paralela à das damas abandonadas das Herói-
des de Ovídio. Na parte final de Flóris, Alcipo refere-se a três destas composições
ovidianas, as epístolas de Ariadne a Teseu, de Dido a Eneias e de Hero a Leandro.
Sob a suavizante influência da narrativa poética de Alcipo, o desespero e raiva de
Lídia transformam-se num amor calmo e na certeza do regresso de Flóris (Earle
( 1990) pp.175-6) . Na evocação dos amores tristes de Ceice e Alcíone nota-se a
influência de uma outra poesia de Ovídio, as Metamorfoses, XI, 11.728-48.

5-6 de um alto ... corrente: Ferreira evoca a serra de Sintra mais de uma vez.
Ver Si43, 11.9-14.
34-6 Torna ... morte: para impedir que Flóris se aventure no mar, Lídia está
preparada a morrer ela própria.
38 a que o foge: a ovelha que dele foge (ver 1.39).
55-7 inda o látmio ... mora: segundo a mitologia, a lua enamorou-se de
Endímion ou Endimião enquanto ele dormia ao ar livre no monte de Latmo. Sá de
Miranda narra a mesma história na écloga Encantamento, 11.118-22.
61-72 Aves que serenais ... te metes: quando Ceice morreu afogado no mar,
Alcíone, a esposa, lançou-se às ondas. Ambos foram depois metamorfoseados em
aves. (Em latim, a palavra a/cedo ou alcyon significa pica-peixe). Segundo a
crença antiga, estas aves construíam o ninho no mar e, enquanto a fêmea incuba-
va os ovos, havia um período de sete dias de calma.
78 cantando: estará (da linha anterior) cantando.
79-90 Cantará ... feras: o herói Teseu prometeu casar com Ariadne, mas
abandonou a noiva na ilha de Naxo. Marques Braga engana-se ao pensar que há
nestas linhas uma referência ao rapto de Proserpina. vieras: viesses. fizeras: farias.
91-6 Despois ... culpa sua: Dido suicidou-se quando Eneias partiu de Car-
tago para viajar para a Itália. Em Epig7 há uma outra versão da biografia da rainha
africana.
97-102 Também ... muro: o verbo de 11.97-9 é cantará (l.91). Ao contrário
dos outros amantes referidos por Alcipo, Leandro foi fiel. Costumava visitar Hero

557
COMENTÁRIO

a nado. Ela guiava-o com uma luz, mas uma noite o jovem morreu afogado no
mar, o que levou Hero a suicidar-se.
105 tua fronte: a fronte é a do mar, que é personificado como um deus.
110-1 estêm ... estê: estejam ... esteja.

MIRANDA

O tema desta écloga fúnebre é o poeta Francisco de Sá de Miranda, que mor-


reu em 1558, posteriormente a 16 de Maio (Pina Martins (1969) p.15). Como se
sabe, Ferreira foi grande admirador de Sá de Miranda, que introduziu em Portugal
o gosto pela poesia clássica e italiana. Há na écloga indivíduos históricos dis-
farçados sob pseudónimos. como Alcipo (Ferreira), Andrógeu (Pero de Andrade
Caminha) e Sázio (Francisco de Sá de Meneses). Para Andrade Caminha, que
aparece sob os nomes de Piério e de Andrógeu ver também as notas a Écl2 e 11 .
Mas as personagens das éclogas não deixam de ser criações literárias, que o poeta
pode desenvolver da maneira que entender. Andrógeu tem normalmente uma
amante chamada Fílis (identificada com D. Francisca de Aragão), mas em Mi-
randa dirige as suas queixas amorosas a uma certa Délia, que pode muito bem ser
uma personagem puramente fictícia. Mesmo assim, não é impossível que 11.111-3
do lamento de Alcipo contenham uma referência autobiográfica e signifiquem
que Ferreira nunca chegou a conhecer Sá de Miranda pessoalmente. Alcipo e
Marília aparecem também em Si50.

Na écloga, cria-se um ambiente misterioso e sobrenatural pelo uso da sim-


bologia religiosa, tanto clássica como cristã.

4-23 Vês que fogo ... campos: uma ameaça paira sobre o mundo pastoril,
assim preparando o desaparecimento de Miranda, cuja morte se situa num con-
texto mais vasto, o da situação calamitosa da Europa nos meados do século.
Castilho viu no fogo de 1.3 e no lobo de 11.11-12 uma alusão à heresia, mas é mais
provável que Ferreira tenha visado as guerras entre cristãos, tantas vezes criti-
cadas pelos quinhentistas portugueses, incluindo o próprio Ferreira (ver Oi4), e a
ameaça turca. Para combatê-la, Andrógeu urge que pastores e gado sigam o
cordeiro "em sangue tinto", que representa Cristo e a sua Paixão (ver em Ci7 1.57
uma expressão semelhante). Em 11.16-17 a passagem do Mar Vermelho (Exodo
14: 15-31) e as profecias de Isaías (Isaías 40: 4) lembram os triunfos da fé. O tra-
tado de Cateau-Cambrésis, que pôs um fim temporário à luta franco-espanhola,
foi assinado só em 1559.

558
COMENTÁRIO

23-7 mas ditoso ... deleitoso: o louvor da paz e sossego de Portugal é evidente.
29-30 aquela divindade ... semente: é uma referência vaga que contribui
para a atmosfera misteriosa da écloga. Faz lembrar Jânio e Dáfnis, ambos con-
siderados um tipo de divindade pastoril, e pode, por isso, ser um louvor à família
real portuguesa.
33-6 Nem o povo ... flores: o elitismo de Ferreira é evidente nestes versos.
A linguagem misteriosa da écloga torna impossível a identificação dos surdos e
dos bárbaros de 1.34. Talvez sejam os que não apreciavam a nova poesia de
Ferreira e de Sá de Miranda, já que as flores e os rios são muitas vezes símbolos
da poesia (ver 11.63-4).
37-9 Quantos tu ... raras: os olhos de Man1ia e de Délia são mais constantes
que o próprio sol.
40 Pindo: monte consagrado a Apolo e às Musas.
42 Tudo é costume: o costume de hoje é ir tudo para pior.
61-7 Aquela lira ... Febo: Febo é o sujeito da frase. Aquela lira é o comple-
mento directo de pendurou. No epitáfio, louva-se Sá de Miranda por ter intro-
duzido em Portugal o gosto pela literatura italiana. Arno: o rio de Florença. tosca:
toscana. A Toscana é considerada tradicionalmente como a região mais culta da
Itália.
!07 os rios ... pontes: é uma referência a Orfeu, músico e poeta divino, que
também fez parar os rios com a beleza do seu canto. Em todo o lamento de Alcipo
Sá de Miranda é tratado, ele próprio, como uma divindade pastoril.
124-5 Estar-te-ão ... ouvido: outra referência misteriosa, talvez ao triunfo da
poesia sobre as armas visionado em outros poemas, como Cii7 11.49-51.
135 a fonte Hipocrene: um lugar consagrado às Musas.
136 Eco suspira: a ninfa Eco foi condenada a repetir as palavras dos outros.
Depois da morte de Miranda, porém, só se ouviam suspiros.

!O

SECADORES

Ao senhor D. Duarte

No século passado apreciava-se esta écloga porque se via nela a intenção de


descrever os costumes agrícolas do vale do Mondego (ver bibliografia em Rocha
Pereira (1972) pp.72-3) . Com efeito, há alguns toques pitorescos, mas existem
também na poesia sinais da erudição de Ferreira. No título da écloga vê-se a in-
fluência do Idílio I O do poeta bucólico grego Teócrito, que é visível também nas

559
COMENTÁRIO

11.201-4, que são uma reminiscência um tanto vaga do começo da poesia grega
(ver Rocha Pereira (1972) pp. 73-5). Além disso, Fucilla (pp.298-30 l) chamou a
atenção para a influência do poeta novilatino Angeriano, muito mais nítida que a
de Teócrito, em 11.137-52 e 169-84. (Para Angeriano, ver as notas a Epig6.)

Não é fácil atribuir uma data à écloga. Na extensa introdução, cheia de iro-
nia, Ferreira inclui várias referências à sua própria obra, dando relevo especial à
simbologia associada com a palavra serra (ver Earle (1990) pp.177-8). A morte do
pastor amoroso Serrano é referida em Arquigâmia, escrita em l 554. A cena de Sega-
dores é o vale do Mondego, o que sugere que foi composta entre l 554 e 1555/6,
quando o poeta deixou Coimbra por Lisboa. Porém, na dedicatória a D. Duarte
(11.49-64) parece voltar a Oii l, uma poesia escrita mais tarde, provavelmente em
1557, em que Ferreira confessa a sua incapacidade de louvar condignamente o
jovem a quem tinha sido conferido o título de condestável de Portugal. O facto de
Ferreira se referir ao passado "já os [versos maiores] tentei em vão" (1.54) sugere
que ele escreveu Segadores num ano posterior a l 557 . (Para a biografia de
D. Duarte ver as notas à Cil3) . E a indiferença da amada de Serrano, que "em
outro fogo arde" (1.16), aponta para a religiosidade de Santa Comba, heroína de
uma poesia da década de 60. De qualquer forma, em Segadores Ferreira põe de
lado a seriedade de algumas das éclogas, especialmente Écl6, 7 e 9, para escrever
uma pastoral ligeira e despreocupada.

Os nomes Silvano e Falcino só aparecem em Segadores. São uma indicação


da suposta rusticidade da écloga, já que Silvano é derivado da palavra latina silva,
ou bosque, para onde o Amor fugiu depois da morte de Serrano, enquanto Falcino
vem de falx, genitivo faleis, que quer dizer fouce. O nome do agricultor Aristo,
mencionado 1.133, deriva de arista, ou espiga.

6 Um seus bens ... seu dano: no diálogo entre os dois pastores Silvano canta
normalmente os bens do amor e Falcino os males . Mas a distinção entre eles não
se mantém rigidamente, como se vê de 11.137-200, a secção da poesia onde mais
se nota a influência de Angeriano.
48 nelas: as ninfas.
50 samponha: instrumento musical pastoril.
57-64 Já, senhor... Duarte: na opinião de Ferreira, Pero de Andrade Cami-
nha, camareiro de D. Duarte, foi o poeta destinado a cantar os seus feitos herói-
cos, "o melhor...de Marte". Ver Oii l. '
114 acolheita: refúgio.
· 115-6 Que fizera ... fora: teria feito ... fosse.
117 se a não avisara : se eu a [a alma] não tivesse avisado.

560
COMENTÁRIO

119-20 1-la-ei ... ambos: Falcino teme que vá perder-se a si próprio e à alma,
se Lília o favorecer. Na oitava desenvolve-se a ideia de que não ser amado é
menos perigoso que ceder ao amor.
125 o mau suão: o vento sul.
137-44 Lília ... brandura: imitação de Angeriano, De Caelia et Amare. Co-
meça: "Caeliafatur".
145-52 Nos cabelos ... paz: imitação de um dos muitos epigramas de Ange-
riano com o título Ad Caeliam. Começa: "ln crine accendens amor".
153 Ceres: deusa da agricultura.
155 a Palas a oliveira: a oliveira era consagrada a Palas ou Minerva.
169-74 Se lágrimas ... frágua: imitação de mais uma poesia de Angeriano
com o título de Ad Caeliam. As primeiras palavras são "Ni lachrymae fluerent".
foram ... ardera ... fora ... desfizera: fossem ... arderia ... fosse .. . teria desfeito.
173-4 dera ... sofrera: desse ... sofreria.
177-84 Tu passas ... cantasses: imitação livre de Angeriano, Ad Cicadam.
188 mortal: aflito.
189 arço: ardo.
195 des que: desde que.
213 espaço: liberdade.
214 jornal: pagamento de um dia de trabalho.
215 vira ... segara: visse ... segaria.
217-24 Erguei-vos ... afeito: o diálogo acaba com as palavras de Falcino, que
é sempre o segundo a falar. Na estrofe final o tom irónico da introdução à écloga
volta a notar-se.
218 atégora: até agora.

11

ANDRÓGEU

É costume identificar Andrógeu com o poeta Pero de Andrade Caminha ( ver


Castilho e Vasconcelos ( 1982) p. 23n. ). Seria erróneo, portanto, pensar que Andró-
geu representa Andrade Caminha como personagem histórica. Ele é muito mais
uma criação literária (ver também as notas a Écl9). Alcipo, a quem Andrógeu se re-
fere, 1.92, é um dos pseudónimos literários de Ferreira (ver Earle ( 1990) pp. 163-6).

A cena em que Andrógeu entra é igualmente uma criação literária, baseada


na Écloga I O de Virgílio (ver Rocha Pereira (1972) pp. 63-7). Na écloga Virgílio
apresenta-se, tal como Ferreira se apresenta em Andrógeu, como amigo de um

561
COMENTÁRIO

poeta, chamado Gallus na poesia romana, que está a morrer de amor pela bela
Lycoris. Virgílio diz (l. l) que a écloga é a última das suas composições bucólicas,
e Ferreira segue-o nisto também . Porém Andrógeu não é a última das éclogas de
Ferreira, porque a série de PL acaba com Natal, escrita provavelmente muito
antes de Andrógeu. Contudo, era costume colocar composições religiosas depois
das outras (ver Introdução, pp. 32-5). Se Andrógeu foi, de facto , a última das éclo-
gas a ser escrita, deve datar de 1558 (data da morte de Sá de Miranda, o tema de
Écl9) ou de um ano posterior. De 1.8 depreende-se que Ferreira já estava em
Lisboa ao compor a écloga.

1-9 Este último ... branca areia: uma paráfrase da Écloga 10 de Virgílio,
11.1-5. Fílis: é costume identificá-la com D. Francisca de Aragão, senhora nobre a
quem Caminha dedicava um amor dos mais respeitosos. Ela era muito mais pro-
tectora do que amante do poeta.
22-4 Porque cria ... amores: mesmo na Primavera, época do amor, Fílis
continua esquiva. Paradoxalmente, insinua-se também neste terceto que Fílis é a
divindade pastoril responsável pela criação da vegetação e das águas.
26 quem te ama: a resposta à pergunta é, evidentemente, Andrógeu, mas ele
vai morrer, assim deixando Fílis sem ninguém.
27 foras ... amaras: serias ... fosses.
30 não dessa neve... brancura: a brancura da pele de Fílis.
31-3 Inda a quem ... emparo: queres que todos os que te veêm morram logo
de amor, que é uma morte mais dolorosa do que qualquer outra, e queres, para os
desesperar mais, que achem amparo (emparo), não no Amor, mas em ti, o que não
é amparo nenhum?
50 desconhecida: ingrata (Marques Braga).
59-60 os pastores ... cruel: os pastores chamam a Andrógeu desditoso e a
Fílis cruel.
61-9 ,Vem o agreste ... semente: o deus Pan aparece na écloga de Virgílio,
11.26-30. Na parte final da fala de Pan, 11.67-9, Ferreira imita 11.28-30 da poesia
romana.
62 as frontes de pampilhos coroado: as frontes coroadas de pampilhos.
Para a construção, ver El3, 11.1-2.
67-9 a Amor... à abelha ... à semente: fartar é transitivo. A preposição a
indica o complemento directo do verbo.
73-82 Veio Vénus ... acabes : na écloga de Virgílio vários deuses são chama-
dos cena, mas não Vénus . Rocha Pereira vê na intervenção da deusa do amor a
à
possível influência do poeta grego Teócrito, ldílio l, 11.95-8.
92-3 a fermosura ... sostenha: Fílis é a causa da morte, mas também sustém
a vida, porque ela é considerada uma divindade pastoril.

562
COMENTÁRIO

100-3 A todos ... seja: nesta terra que pisas, Fílis, seja a triste sepultura do
triste Andrógeu um abrigo (encuberta) visível a todos. Significa que o túmulo do
amante morto será um tipo de protecção e aviso contra a força maléfica de Fílis.

12

NATAL

Ao Duque de Aveiro, D. João

Natal é a única écloga religiosa de Ferreira, e, por isso, foi colocada em último
lugar, seguindo-se assim o esquema adoptado para o Livro II dos sonetos e para
as elegias. Contudo, há indicações de que a poesia data da primeira fase da pro-
dução literária do nosso autor. Ele dedicou muitas poesias aos filhos de D. João,
Duque de Aveiro, mas só se referiu ao chefe da família duas vezes, na écloga pre-
sente e em Arquigâmia, ll.434-47. Há uma outra conexão entre Arquigâmia, escrita
para comemorar o casamento do príncipe D. João em Dezembro de 1552, e Natal,
na presença nas duas poesias das mesmas personagens, Serrano e Castílio, supos-
tamente pastores, mas, na realidade, poetas, como se vê de ll.4-5. Serrano é um
pseudónimo utilizado pelo jovem Ferreira (ver Earle (1990) pp. 163-4), enquanto
que Castílio será António de Castilho, amigo dos anos de Coimbra de quem Fer-
reira se separou depois de ter ido para Lisboa à volta de 1556 (para a carreira de
Castilho ver Serrão (1970)). O próprio Duque é personagem da écloga, em que tem
o nome de João. Ele diz as últimas palavras do poema, e é provável que inter-
venha também depois de 1.16, onde PL dá uma lista dos interlocutores, na ordem
seguinte: João, Serrano, Castílio. Na literatura dramática da época é frequente a
primeira personagem assim alistada ser quem pronuncia a fala logo a seguir, neste
caso, ll.17-34. Nesta fala, que é de certo modo introdutória, alguém - e porque
não o Duque? - dá ordens aos dois pastores para que cantem o nascimento de
Jesus. Especialmente a partir de 1.86, Ferreira insiste no facto de Cristo ter nasci-
do no campo, longe dos centros do poder político, aspecto da história bíblica que
deve ter sido do agrado de D. João, que viveu muito tempo em exílio voluntário
da corte (ver nota a 11.137-42).

14 quem igual... daria: quem no mundo daria versos dignos do tema do


Natal.
88 viera: tivesse vindo.
97 no que ... desprezado: isto é, a riqueza e o alto estado de 11.92-3. A res-
posta à pergunta retórica de Castílio é, evidentemente, ninguém.

563
COMENTÁRIO

l 09 is: ides.
118 reis e emperadores: a mesma frase em Cii9, 11.46-8 (a Sá de Miranda):
"Levantas sobre reis e emperadores ... a humildade inocente dos pastores".
129-30 Filhos de Deus ... vazios: a condenação da guerra entre cristãos é in-
sistente em Ferreira. Para outros exemplos nas éclogas, ver Ecl 1 11.1-16 e 9 11.4-23.
134-6 Torne ... cidade: Serrano associa o espírito de concórdia da época do
Natal com o mito clássico da idade de ouro.
137-42 Tu ... povoado: durante grande parte da sua vida o Duque de Aveiro
andava preocupado com a rivalidade com a casa de Bragança (História Genea-
lógica, XI, p.27). O "outro estado dino" de Castílio pode ser uma alusão ao dese-
jo de D. João de ser considerado igual em tudo à outra grande família ducal por-
tuguesa. Por causa das suas decepções, como ele próprio admite na sua carta à
regente D. Catarina (Provas da hist. gen., Tomo 6, Pte. 13, pp.49-50), o duque pas-
sou muito tempo fora da corte, facto a que Serrano alude 11.141-2.
146 imos: vamos.

EPITALÂM/O

ao casamento da senhora D. Maria com o senhor Alexandre Farnês,


Príncipe de Parma

D. Maria era a filha mais velha de D. Duarte, irmão mais novo de D. João III .
O seu casamento por procuração com o príncipe italiano Alessandro Farnese rea-
lizou-se em Lisboa em 22 de Maio de 1565, na presença do embaixador espanhol
(Barbosa Machado, Memórias, II, p.511). Os noivos eram parentes (ver 11.121-36)
e ambos tinham laços familiares também com Filipe II de Espanha, sendo a mãe
de Alessandro, a Duquesa Margarida, meia-irmã do rei. O parentesco de D. Maria
com a família real espanhola é explicado na nota a 11.125-34. O jovem príncipe de
Parma passou os seis anos anteriores ao casamento na corte de Madrid, seguindo
depois para Bruxelas, onde a mãe estava encarregada do governo dos Países
Baixos. Foi lá, embora mais tarde, em 1577, depois da morte de D. Maria, que ele
começou a sua carreira brilhante como militar e diplomata, sempre leal à causa
espanhola. Segundo Essen (1, p. 97), o casamento era em grande parte fruto da ini-
ciativa de Filipe, cujos planos de casar Alessandro com uma filha do imperador
tinham fracassado. O casamento podia ter trazido vantagens para Portugal (Azevedo
Cruz, I, pp.267-9), mas estava também ligado inextricavelmente aos interesses
familiares do rei de Espanha, que queria satisfazer as reivindicações da irmã, de
uma esposa digna para o filho . Ferreira, porém, sempre fiel aos seus princípios

564
COMENTÁRIO

anti-castelhanos, omitiu o nome de Filipe do Epitalâmio, só se referiu a Espanha


uma única vez (l.135) e inventou uma alegoria nem sempre bem conseguida de
Vénus e Cupido (ver Earle (1990) pp.201-3) para distrair o leitor das realidades
políticas do enlace entre uma princesa portuguesa e um príncipe fortemente
influenciado pelos anos passados em Espanha (Essen, I, 110), que até então nunca
se tinham visto.

D. Maria partiu para Bruxelas em 24 de Setembro de 1565, facto mencionado


por Ferreira ll.299-300. Não se referiu, porém, às dificuldades encontradas du-
rante a viagem (Essen,-1, 128-30), o que sugere que o Epitalâmio foi escrito pouco
depois da saída da princesa.

Além de Ferreira, celebraram o casamento real Andrade Caminha, com uma


carta, uma ode e um epitalâmio (ed. de Anastácio pp. 964-9, 886-9, 805-28), e
Diogo de Teive, com uma extensa poesia em latim (1565, III, fól.41r.-49v.).

4 aljaba: aljava.
5-1 O Pelos floridos prados ... cria: há na poesia uma metáfora vegetal, de
amor como uma flor, de crianças como plantas ou fruto, e da árvore genealógica.
(Ver por exemplo 11.56, 82-8, 205-6, 345-59). É uma metáfora muito ao gosto do
nosso poeta, que o empregava mesmo nas poesias da sua fase inicial (ver, por
exemplo, Ell (de 1554), 11.10-17).
15 em todas espantoso: ver nota preliminar a SC.
16 nas segundas temeroso: na alegoria de amor, 11.1-32, há dois sentimentos,
um alegre, representado pelo fogo, pelo ouro, e pelo mirto e o louro, as plantas
simbólicas do triunfo, e o outro triste e doloroso, representado pelo frio, pelo
chumbo e pela morte.
18 Vulcano: o deus romano do fogo e da fornalha.
36 duro a meu rogo: ver nota preliminar a SC.
40 dás as armas: o arco e as flechas . Maria, que Ferreira compara às deusas
virgens, Palas e Diana (1.43), quebrava as armas de Amor, protegida pela castidade;
Alessandro utilizava as mesmas armas na vida real, porque era caçador (11.137-44).
44 nunca a amor... sogigaste: a castidade de D. Maria era notória. Nunca
lia poesia, julgando-a perigosa para a alma, e quando por acaso abriu um volume
dos sonetos de Petrarca, fechou-o depois de ter lido só algumas linhas (Essen, I,
p. I 06-7). sogigaste: subjugaste, sujeitaste.
45 ou se ela engana: ou ela se engana.
46 favor: aqui em sentido irónico. tégora: até agora.
49-52 das duas filhas a primeira ... oriente: D. Duarte e D. Isabel de Bra-
gança, irmã de D. Teotónio, 5. º Duque de Bragança tiveram duas filhas, D. Maria,

565
COMENTÁRIO

que nasceu em 8 de Dezembro de 1538 e D. Catarina (ver 11.57-64), nascida em


18 de Janeiro de 1540. O avô, o "Rei primeiro do Oriente" é D. Manuel.
53-6 Porque ... raro: podemos parafrasear assim: porque não farás com que
D. Maria também queira ter filhos dignos da estirpe real de que ela vem?
57-64 Também ... triunfaste: D. Catarina era uma senhora de muita erudi-
ção, conhecida internacionalmente como tal. Em 8 de Agosto de 1563 casou-se
com o primo coirmão D. João, 6. º Duque de Bragança (Caetano de Sousa, Hist.
Gen., VI, pp.124-8). Ferreira parece aludir ao parentesco estreito dos noivos, 1.63.
69 Porque ... não comprenda: para que não te achem culpado.
73-6 Não negue ... intento: a ideia é que o mundo já espera que os filhos do
alto casamento de D. Maria tomarão parte nas grandes empresas a ser planeadas
por D. Sebastião quando ele tiver atingido a maioridade. Na linguagem de
Ferreira ajuntamento significa casamento, como em Ep 1.258 e Écl 1 1.492.
78-9 Duarte ... irmãs: o senhor D. Duarte era irmão mais novo de D. Maria e
de D. Catarina, as irmãs de 1.79. Para a sua biografia ver a nota preliminar a Cil3.
O exagero de "cento do real sangue" não é tão grande como pode parecer, já que as
duas famílias em questão tinham ramificações muito extensas (ver 11.113-36).
81-4 Que veja ... almas santas: o sujeito da frase só pode ser o mundo (l.80).
Toda a l.82 está aposta a "os altos reis e emperadores". plantas: membros da famí-
lia (real). A ideia é que os grandes feitos dos reis e imperadores, parentes dos noi-
vos, (ver 11.113-36) garantem que o casamento que Vénus propõe promete bem.
98 entregue: ela (D. Maria) entregue. .
105-6 Lá onde ... reparte: Apolo esfria os raios ao pôr do sol. Cupido alude,
portanto, à Europa, a parte ocidental do mundo.
109 Lombardia: ver 1.119.
110 de Alemanha: à mãe de Alessandro, Margarida de Áustria, fora confiado
o governo dos Países Baixos, aqui vagamente referidos como Alemanha.
111-20 do altíssimo sangue ... obediência: Margarida era filha ilegítima do
imperador Carlos V. Ele tinha ainda a concepção medieval da monarquia univer-
sal (11.117-8) mas, ao abdicar, em 1558, a parte alemã dos seus domínios (o impé-
rio) foi separada do reino de Espanha, que ficou sob a jurisdição do filho, Filipe II.
Ferreira também associa Carlos V e César em Oi2 11.25-7. O papa Paulo III era no
mundo Alessandro Farnese. O pai do nosso Alessandro era Ottavio Farnese (l.119),
neto do papa (Essen, I, pp.4-5) e Duque de Parma. O ducado, na Lombardia, no
norte da Itália, era constituído pela cidade de Parma e pela cidadela de Piacenza,
a que Ferreira dá a forma portuguesa de Plasência. Na realidade, a praça forte
estava ocupada por tropas espanholas, o que muito irritava os duques.
125-35 Deu ao mundo ... os mais chegados: Juana "la loca" e María eram
filhas dos Reis Católicos. O filho de Juana era Carlos V, e a linha continuava por
Margarida até a Alessandro Farnese. A princesa Maria era a segunda mulher de

566
COM ENTÁRIO

D. Manuel, e a sua linha continuava pelo infante D . Duarte (1.125) até à D. Maria
do Epitalâmio. Os noivos tinham, portanto, ligações estreitas com a casa real
espanhola (1.135). Eram também primos distantes (11.131-2), mas Maria pertencia
a uma geração anterior à de Alessandro, podendo assim ser chamada tia (1.134) .
Os reis de 1.134 são Carlos V e D. Manuel. Panónia: nome de uma província
romana, usada aqui para designar a parte oriental do Império, que incluía regiões
dos estados modernos da Áustria, da Hungria, da Esclavónia e da Bósnia.
138 disseras: terias dito.
140 passadores: flechas.
143 Per: por.
145-8 Igual ao teu Adónis ... manha: Adónis era um caçador amado por
Vénus. Na realidade, Alessandro Farnese gostava muito de desportos e de exercí-
cios militares (Essen, I, 22).
149-50 Tal Alexandre... Alemanha: foi sem dúvida por razões políticas que
o poeta omitiu a Espanha da lista dos países frequentados pelo jovem Alessandro.
Ver nota preliminar. a todos espantoso: ver nota preliminar a SC.
153 téqui: até aqui.
181-4 Empresta-me ... oriente: Alessandro queixa-se da distância que o
separa de Maria. A sua fala é repleta de imagens tiradas dos sonetos amorosos de
Ferreira. A paixão do príncipe é um exagero poético, ver a nota a 1.195.
195 nos retratos: era costume os noivos trocarem retratos mas, segundo
Essen, I, p.131, Alessandro estava pouco entusiasmado com a ideia de se casar
com D. Maria, de beleza duvidosa e sete anos mais velha do que ele.
199 dões: dons.
214 Nereidas: divindades marítimas.
233-6 Forjava ... erva: as repetições são típicos dos encantamentos. Ver Écl6,
11.121-4. erva: veneno.
257-8 Vem o Himineu ... ajuntamento: Himeneu, o deus do casamento, é
normalmente representado em obras de arte como um jovem, com uma tocha numa
mão e na outra um símbolo nupcial, aqui um anel.
273-80 Festeja... manto: Barbosa Machado, Memórias, II, 512, explica como
D. Sebastião, que tinha na altura 12 anos, dançou com D. Maria. O pai de D. Se-
bastião, o príncipe D. João, era primo coirmão de D . Maria, que por esta razão
podia ser chamada tia (l.274). altíssima rainha: D. Catarina, viúva de D. João Ili.
Segundo Barbosa Machado, foi D. Julião de Alva, capelão-mor da Capela Real ,
que celebrou o casamento e não o cardeal D. Henrique, apesar do que diz Ferreira,
11.277-80.
285 Às ninfas ... Duarte: segundo Barbosa Machado, o senhor D. Duarte,
irmão da noiva, dançou com D . Catharina de Eça, "que entre todas se distinguia
no excesso da fermosura".

567
COMENTÁRIO

287 bandos: contendas, disputas.


289-90 Ali os dous ... Aveiro: D. Jorge de Lencastre e D. Pedro Dinis, filho s
do Duque de Aveiro. Ver nota preliminar a SC e, na mesma poesia, a nota a 1.17.
299-300 Eis ... amorosas: a frota vinda de Flandres para buscar D. Maria
chegou a Lisboa em 30 de Agosto e saiu do Tejo em 24 de Setembro, vários meses
depois do casamento, por procuração, da princesa, que tomou lugar em Maio. O
poeta omite o lapso de tempo.
305-7 Claríssima Isabel. .. planta: ver a nota a 11.49-52.
308 erguera: teria erguido.
321-6 honra ... descobrindo: o sujeito da oração relativa que começa 1.322
é Neptuno, deus do mar. Para a compreensão da frase, devemos ler "honra e obe-
dece à neta do grã rei aquele que étc". grã rei: D. Manuel. Apesar do que nos diz
o poeta, houve uma tempestade violenta durante a viagem para a Flandres (ver
nota preliminar).
328 Nereidas e Tritões: divindades marítimas. No final do Epitalâmio Pas-
toril de Sá de Miranda (Michaelis de Vasconcelos (1885) pp. 520-3) coros de zaga-
les e zagalas cantam, em estrofes terminadas com refrão, as alegrias e as misérias
do casamento.
345-60 Como o lírio ... dourada: nestas estrofes Ferreira imita um epitalâ-
mio de Catulo, Poema 62, 11.39-57.
377-84 Lá te levam ... cantadas: a última estrofe não pertence à canção das
nereidas e dos tritões, mas ao narrador do resto da poesia. A Écl 1O acaba de uma
maneira semelhante.
378-80 Não valem ... claros: quais eram as forças maiores que as do Amor?
Ferreira ou se referia aos deuses mais altos, Vénus e Neptuno (11.313 e 321 ), ou
insinuava que havia em jogo interesses políticos que tinham muito pouco a ver
com a vida sentimental dos príncipes . reparos: defesas. Fraudes: Flandres.

História de Santa Comba dos Vales

A História de Santa Comba é uma narrativa, a única que o poeta nos deixou.
Pertence, por isso, ao mesmo género poético que a epopeia, de que é uma versão
em miniatura, chamada na época epyllion. Não lhe falta uma introdução, ou proé-
mio, precisamente como nas epopeias maiores (11.1-48). Nestas estrofes prelimi-
nares, temos a proclamação da temática da poesia, e da sua grandeza, 11.1-8, a
invocação da Musa, 11.9-16, e a dedicatória a duas pessoas ilustres, 11.17-32, que
também são convidadas a ouvir as façanhas de Sta. Comba, um pouco como D.
Sebastião no passo correspondente d' Os Lusíadas, (Canto I, est. 8- 17). Não faltam
à história do nosso poeta símiles ou comparações de tipo épico, 11.77-80, 289-97

568
COMENTÁRIO

e 3 l 3-24, e a influência da poesia heróica é evidente também na descrição do


combate entre Orelhão, o rei mouro, e Sta. Comba.

Todo este aparato literário imponente se emprega na narrativa da vida de


uma santa popular e do seu encontro com o grotesco Orelhão. Há uma ironia, por-
tanto, na própria situação inicial da poesia, e na maneira como o poeta retoma o
simbolismo pessoal associado com a esquiva e desdenhosa Serra dos sonetos
amorosos. Em SC, Comba, a pastora das serras, transforma-se de dama cruel em
virgem santa, votada à castidade, enquanto que o seu amante reaparece na forma
absurda do lascivo rei mouro. A fonte de lágrimas vertidas pelo pastor Serrano,
de Arquigâmia, transforma-se na nascente milagrosa formada pelo sangue do
santo Lionardo. Nesta versão a lo divino dos amores da juventude Ferreira não
deixa de mostrar considerável subtileza literária (ver Earle (l 990) pp. 155-8).

A versão que Ferreira nos dá da lenda de Santa Comba é a mais antiga que
conhecemos (Earle (1990) p.155). Mas a história tem raízes populares: Leite de
Vasoncelos incluiu-a nos seus Contos populares e lendas, vai.II, pp.548-9 e repete-
-se ainda hoje nas aldeias trasmontanas de Lamas de Orelhão e Franco. Em 1993,
eram visíveis a rocha milagrosa, as capelas de Santa Comba e de São Leonardo e
outros edifícios destinados ao acolhimento das pessoas que vão em romaria à
parte mais alta da Serra de Santa Comba.

Roig ( 1970) pp. l 30-32 apresenta razões sólidas para associar a poesia com
a família da segunda mulher do poeta, Maria Leite. Segundo a genealogia de
Andrade Leitão, a família possuía em Trás-os-Montes a comenda de Santa Comba
dos Vales, cenário da poesia. Além disso, no brasão de armas dos Leite aparece
uma pomba (em latim, columba), ave com a qual o poeta relaciona Comba, a he-
roína da narrativa, ver 11.16, 71-2, 385, 439-40. Desconhece-se a data do segundo
casamento de Ferreira- 1564 é uma mera conjectura de Camilo, citada por Roig,
p. 129n. - mas a poesia deve pertencer à década de 1560. Nos últimos anos da
vida Ferreira, sempre partidário da Casa de Aveiro, parece abandonar o amigo da
juventude, filho ilegítimo do duque, D. João de Lencastre, frade dominicano
desde 1557, e começa a cortejar D. Jorge e D. Pedro Dinis, filhos legítimos do
casamento do duque com D. Juliana de Lara. (D. Jorge, como primogénito, tinha
o tí.ulo de Marquês de Torres Novas). Aos dois irmãos dedicou SC e em Ep., cer-
tamente de 1565, refere-se-lhes, 11.289-96. Entre as duas poesias há semelhanças
estilísticas, como por exemplo o gosto por expressões como "a todos espantoso",
repetida duas vezes em SC, 11.117 e 3 l 6, e também em Ep., 1.15 (onde há uma
variação, "em todas espantoso") e 1.149. Encontram-se duas outras frases quase
idênticas em SC 1.225 "E se tão dura fora a meu rogo" e Ep. 1.36 "Porque és ...

569
COMENTÁRIO

duro a meu rogo?". Todas estas indicações, juntamente com o tratamento dado por
Ferreira aos amores da juventude, levam à conclusão de que SC pertence à última
fase da sua carreira literária.

Há uma versão manuscrita desta poesia no códice 2 da Biblioteca Nacional


de Lisboa, fois 1-1 O. O códice é uma miscelânea de poesia e prosa, com uma pre-
dominância de matéria de natureza religiosa. De Ferreira só inclui SC, mas há
também poesias de Bernardes e Camões. No fól.11 O há uma carta em prosa data-
da de 7 de Agosto de 1603, o que sugere que o manuscrito tenha sido compilado
nos princípios do século XVII. É evidente que a versão da poesia de Ferreira re-
presenta um estado do texto diferente do de PL, mas, apesar disso, as diferenças
são insignificantes . Existe também uma edição anónima da poesia (BNL Res
1349, fóls 37v-44r), descrita por Roig ( 1970) pp.28-30, que data do século XVII
ou XVIII. A edição referida tem uma espécie de prólogo, em prosa, que é uma
versão abreviada da história (fóls 37r-38r). Omite as 11.17-32 (a dedicatória a D.
Jorge e D. Pedro Dinis) mas de resto segue a leitura de PL, embora com muitos
erros tipográficos. O exemplar da BNL está mal encadernado, com muitos fólios
fora do devido lugar. Só as variantes do manuscrito (abreviação: BNL) estão
incluídas na nossa edição da poesia.

5 heroas: heróis.
11 Hipocrene: fonte consagrada às Musas.
13 não vos invoco... profana: o poeta chama as ninfas de Diana para o aju-
dar, porque a deusa era virgem, como Sta. Comba. A fábula que não quer narrar
é provavelmente a de Acteão, transformado pela deusa em cervo, a que chama
fábula vã, 1.293.
14 coreias: danças.
17 real tronco: a família de Aveiro descendia de D. Jorge, filho ilegítimo de
D. João II.
20-2 irmãos iguais ... impírio: os irmãos gémeos Castor e Pólux nasceram
do ovo posto por Leda, a quem Zeus visitou na forma de um cisne. Depois da
morte foram transformados em estrelas. impírio: empíreo.
28 cante: eu cante.
30-1 e que eu ... faça: depende sintacticamente de "quando ua hora virá", 1.25.
31 mármor: mármore.
45 cativamos: rendemos.
49 em que: a leitura do MS parece superior à de PL.
71 prudência ... pomba: alusão às instruções dadas por Cristo aos apósto-
los, Mateus l 0.16: "Estote ergo prudentes sicut serpentes, et simplices sicut colom-
bae". O "dom da pomba" será, portanto, a simplicidade.

570
COMENTÁRIO

75 Onde ... erva: o verso tem dois hiatos, mas a leitura de BNL não lhe é
superior.
84 de inveja: já que falta o artigo antes de ciúmes deve faltar também antes
de inveja.
91 i: ide (imperativo de ir).
99 bailos: bailes.
115 usso: urso.
116 e üa orelha ... cão: a razão de ser das orelhas do rei mouro é-nos dada
em 11.243-6.
118 Orelhão: Ferreira explica assim, por meio de uma etimologia fantasiosa
muito típica do séc. XVI, a origem do topónimo Lamas de Orelhão. Ver também
11.441-4.
128 lha levem: Comba teme que o rei mouro, violentando-a, a vá privar do céu.
)49 quem: vosso amor. Na linguagem de Ferreira, quem não é sempre
pronome pessoal.
185-9 quem cuidara... escapara ... entrara: teria cuidado... escapasse ...
teria entrado.
207 arço: ardo.
226 dões: dons.
229 Arderás ... fogo: o rei joga com dois fogos, o fogo metafórico da paixão
que o consome e o fogo literal com que ameaça Comba. O jogo de palavras con-
tinua em 1.236. arço: ardo.
243-6 De üa parte ... soberbos são: segundo a mitologia greco-romana,
Midas, rei da Frígia, tinha orelhas de burro. Era famoso também pela sua riqueza.
Cão significa príncipe ou chefe turco, mas há uma alusão também à forma cani-
na da orelha do rei mouro e além disso ao mito de Acteão (ver 11.289-97). Tanto
a Frígia como a Arménia são países asiáticos que na época de Ferreira faziam
parte do império otomano.
251 latas: ramos entrelaçados.
261 Diana ... Vesta: eram ambas deusas virgens. A descrição do banho de
Comba/Diana prepara o leitor para a narração do mito de Acteão, 11.289-92.
283-4 ei-la arde... raro: é mais um elemento no complexo jogo da imagís-
tica do fogo do poema (ver por ex. 11.229 e 236).
289-92 Qual ... do seu cão: há alusões ao mito de Acteão 11.243-6 e 257-64.
Acteão, indo à caça, por acaso viu Diana a tomar banho. A deusa puniu a trans-
gressão transformando-o em cervo, e o caçador foi logo devorado pelos seus
próprios cães. O mito clássico enquadra-se muito bem com a história piedosa de
Sta. Comba e o rei mouro porque, segundo a interpretação alegórica, corrente no
Renascimento, a morte de Acteão simboliza o efeito destrutivo das paixões do
homem.

571
COM ENTÁRIO

320 roge: ruge.


333 Mouta a não trova: o bosque espesso a não estorva (Marques Braga).
343-4 Lá me levas ... oferecida: o rei receia perder a alma, porque ficou
apaixonado, e a vida, porque persegue Comba através de uma serra perigosa.
369-76 Não com tanto fervor... seguiam: a ninfa Dafne transformou-se num
loureiro, assim se esquivando às atenções de Apolo. A virginal Atlanta desafiou
todos os seus pretendentes a uma corrida (páreo), e venceu muitos que depois
matou. Ferreira elimina da comparação o ardil pela qual Hipómenes conseguiu
vencê-la, deixando cair pelo caminho três maçãs de ouro, o que levou a jovem a
parar para as apanhar. Em vez disso, concentra-se na rapidez da fuga e na decep-
ção dos amantes.
385-92 Tu, virgem santa ... mal profane: a transição rápida das narrativas
pagãs para a invocação do Espírito Santo é muito típica de Ferreira. O Espírito
Santo é tradicionalmente representado pela imagem de uma pomba, com que Sta.
Comba é associada também.
427 que a sentiram: a leitura do MS da BNL é nitidamente superior à de PL.
440 os moços ... Combas: as leituras de PL e de BNL são inaceitáveis, por
razões métricas. A emenda que propomos dá um verso decassilábico, com acento
principal na 6ª sílaba.
446-7 ditosos também ... obedecem: o Duque de Aveiro, a cujo primogénito
era dado o título de marquês de Torres Novas, tinha jurisdição sobre as terras da
Casa do lnfantado, a que pertencia Lamas de Orelhão (Caetano de Sousa, Hist.
Genealógica, vol. XI, p. 30; Grande enciclopédia luso-brasíleira, s.v. Lamas de
Orelhão).

CARTAS

LIVRO I

Congratulação de todo reino a el-rei D. João Ili na morte do príncipe D. João


seu filho, que sofreu pacientissimamente

A Congratulação pertence ao género poético da gratulatio, na terminologia


teórica da época (Binns, p. 63). Na palavra latina há duas significações, a de dar
parabéns, como no português de hoje, e também a de dar graças. Ferreira combina

572
COMENTÁRIO

as duas acepções do termo, felicitando o rei pela calma estóica com que enfrentou
a morte do filho e agradecendo-lhe as suas múltiplas virtudes (ver 1.13). A mesma
nota de admiração por D. João III é visível em Ci2, Epit9 etc.

A Congratulação deve ter sido escrita pouco depois da morte do príncipe D.


João em 2 de Janeiro de 1554. Em PL abre o livro das cartas, mas é diferente de
todas as outras. É escrita em verso branco, como uma outra poesia da mesma
época, Oi2, ao contrário das restantes epístolas, em que se empregam tercetos
rimados. Além disso, não é propriamente uma carta, porque nela o autor não
aparece como indivíduo, mas só como membro de um grupo, o de todo reino.
Mesmo assim, o poema forma uma boa introdução aos dois livros de epístolas.
Ferreira afirma o seu amor ao rei e à pátria atraves de uma verdadeira torrente de
palavras e ao mesmo tempo manipula com destreza o verso branco, na época uma
métrica pouco conhecida em Portugal.

1 das casas ... ambas: da casa onde o sol nasce (a oriental) e a casa onde se
põe (a ocidental). Usa-se a mesma frase a respeito de D. Manuel, Epit7 1.4.
3 Brutos... Trajanos: os Brutos eram uma família famosa da época da
república romana. Ferreira tinha razões especiais para comparar D. João III aos
imperadores Augusto e Trajano. Ver Ci2 1.59 e a nota respectiva.
10-12 luz clara... destruidor: durante o reinado de D. João III a Inquisição
chegou a Portugal e os jesuítas começaram as suas missões no Oriente.
12 paz do teu reino: a não intervenção de Portugal nas guerras europeias do
século XVI é um tema constante da poesia de Ferreira . .
14-22 não... menores: é a figura de retórica chamada paralipse, "pela qual...
o poeta finge não querer falar de uma coisa que, no entanto, vai dizendo" (Dic. da
língua port.). Quando Ferreira começa a condenar o luxo desnecessário, depois de
1.22, as negativas deixam de ser fingidas .
17-20 não por letras ... nunca: foi durante o reinado de D. João III que a
universidade portuguesa se reformou e se transferiu para Coimbra.
23-45 Não te louvamos... povos: a longa frase, habilmente construída,
começa devagar, acelera na parte central (ll.33-7) e acaba com o mesmo ritmo do
princípio. Não é fácil identificar os autores dos excessos que Ferreira condena.
Alguns deles foram da responsabilidade do imperador Nero (11.31-2), cuja bio-
grafia Ferreira podia ter lido nas Rapsodiae historiarum de Sabélico, de que foi
publicada uma tradução em Coimbra em 1550 (Urefía Prieto, p. 776). Porém, a
intenção do poeta parece ter sido mais retórica do que estritamente histórica.
75-8 Tu rege ... apaga: segue muito de perto as palavras famosas que
Anquises dirige aos romanos na Eneida, VI, 11.851-3. a vencidos perdoa: perdoar
é seguido por uma preposição também em EIS 1.68.

573
COMENTÁRIO

90-2 Amor... amamos: a expressão do amor do povo para com o monarca


faz lembrar a conclusão da carta de Sá de Miranda dedicada a D. João III, espe-
cialmente 11.338-45 (Poesias (1885) pp. 202-3). Ferreira repete a mesma ideia em
Cii7 11.65-9.
95-116 Esses heróis ... mereceu: outro passo que é pouco mais que uma
tradução, desta vez de Horácio, Ep.11, 1 (dedicada a Augusto), 11.5-17. A modifi-
cação mais importante introduzida por Ferreira, cuja ortodoxia católica não o
deixava penetrar a fundo na religião pagã, é a condenação da idolatria (ll.l 05-6),
pela qual indica que só um rei cristão pode receber a verdadeira glória. Em Cii2
imitou l.1-4 da mesma epístola. Hidra: monstro morto por Hércules.

A Pero de Alcáçova Carneiro, secretário

Alcáçova Carneiro foi secretário de Estado de D. João III e a sua influência


política continuou a ser grande no reinado seguinte. Ferreira dirige-lhe uma carta
em que critica a rudeza do "Portugal antigo" e faz o elogio da arte e ciência dos
homens novos. A poesia versa, portanto, a temática familiar do debate entre as
armas e as letras, mas tem também importantes ressonâncias políticas e sociais.
Na época, havia um debate muito vivo acerca do papel na sociedade dos letrados,
homens formados pela Universidade e que constituíam uma nova classe dirigente,
cujos interesses eram muitas vezes diferentes dos da aristocracia até então domi-
nante. Porém, o poeta, apesar de ser estudante de Cânones e mais tarde desembar-
gador, não deixa de avisar Carneiro contra o abuso do sistema legal por oficiais
menos escrupulosos (ll.67-87). O tom ponderado da carta de Ferreira contrasta
com a paixão com que outros indivíduos entravam no mesmo debate. António
Pereira Marramaque, por exemplo, amigo do poeta Sá de Miranda e, ele próprio,
grande fidalgo, queixou-se ao secretário de D. João III, numa carta em prosa publi-
cada por António Dias Miguel, do comportamento dos desembargadores e correge-
dores (pp.188-207). Mas enquanto Pereira reclamou imperiosamente a Alcáçova
Carneiro os seus direitos como fidalgo, Ferreira critica alguns membros da sua
própria classe, por amor desinteressado da justiça e para dar à sua poesia o equi-
líbrio necessário entre o louvor das letras e a censura dos que lhes davam mau uso.

A carta é de data desconhecida, mas anterior à morte de D. João III em 11 de


Junho de 1557. Em ambos os livros de cartas Ferreira coloca composições dirigi-
das a personàlidades reais ou ligadas à família real antes das outras, o que implica
que a poesia presente pode ser posterior em data a muitas das cartas do Livro 1.

574
. COMENTÁRIO

9 um sol: D. João III. Ferreira tinha uma admiração incondicional pelo rei.
Ver Ci 1, Epit9 etc.
11-15 meios ... esteios ... dê-os: parece um caso, raro em Ferreira, de uma má
rima, se não for uma rima visual, já que em PL as palavras em questão se grafam
meos, esteos, deos. Em Sii 1 esteio rima com seio, veio e feio.
42 bom conselho, boa prudência: o exemplo tirado da história romana que
se segue a este trecho indica que bom e boa significam não só acertado mas tam-
bém recto, no sentido moral.
43-6 Enquanto ... receava: Roma triunfava enquanto a sua política se regia
por critérios morais. sofria: suportava.
54 até o Oriente: para a supressão do artigo definitivo em PL ver Intro-
dução, pp. 24-5. ·
59 Augusto ... Trajano: Ferreira compara D. João III com Augusto, de cuja
vida tinha alguns conhecimentos (ver Oii3 11.37-9), porque o imperador, como o
rei, trouxe a paz ao seu país. Trajano é invocado porque no seu reinado os exérci-
tos romanos chegaram até à Índia. Ferreira associa o rei aos mesmos imperadores
em Cil 1.3.
64 A nova... letras: referência à reforma da Universidade.
72 não pera ai: não para outra coisa.
73 só polo seu: só para o seu próprio proveito.
77-9 Má cobiça ... justiça: cf Sá de Miranda, Carta a el-rei nosso senhor,
11.16-19: "Onde ha homens, ha cobiça,/Ca e la tudo ela empeça/Se a santa igual
justiça/Não corta ou não desempeça ..." (Poesias, (1885) p. 188).
101 Escolham-se: se se escolherem.
103 os livros: os livros da história greco-romana.
106 Vençamos ... imitemos: vamos ganhar vitórias maiores que as dos anti-
gos, no sentido moral e militar, e vamos também imitar os seus escritos.

A Pero de Andrade Caminha

O poeta Pero de Andrade Caminha foi um dos amigos mais íntimos de Fer-
reira. A carta é uma das melhor conhecidas, por causa do seu louvor da língua
portuguesa (ver especialmente 11.124-6). Castilho até acreditava que Caminha,
influenciado pelas palavras de Ferreira, destruísse toda a sua poesia em espanhol.
Hoje sabemos que Caminha copiou por seu próprio punho a obra que escrevera
em castelhano (Roig, 1982, pp.156-7) e que a dedicou ao seu mecenas, o senhor
D. Duarte (ed. de Priebsch, p.377). Fez isto muitos anos depois de receber a epís-

575
COMENTÁRIO

tola de Ferreira, que deve ter sido escrita ainda antes de 1554. Nas cartas e odes
dedicadas a Caminha Ferreira ligava normalmente o nome do amigo ao do mece-
nas, sendo a única excepção a própria Ci3, facto que sugere que foi escrita antes
de Caminha ter entrado no círculo de D. Duarte. De Ci8 sabe-se que começou a
servi-lo acerca de 1554. Há outras razões para supor que Ci3 pertence à primeira
fase da carreira literária de Ferreira. Ocupa uma posição no princípio do livro das
cartas, que foi organizado, em grande parte, segundo princípios cronológicos.
Para além disso, Castilho via nas palavras "já nessa idade" (1.8) uma indicação de
que na altura Caminha era ainda muito jovem.

3 quantos ... vierem: toda a 1.3 funciona como o sujeito de esperem (1.1 ).
7-8 mereceram... cedro: mereceram a imortalidade. Em Roma, conservavam-
-se os livros untando-os de óleo de cedro (ver Horácio, Ars Poetica, 11.331-2).
9-1 O nos mostras... antiguidade: a tomar estas palavras à letra, Caminha
teria escrito pelo menos algumas poesias em português antes da composição da
carta. Com efeito, tudo o que escreveu na medida nova, ou italiana, isto é, segundo
Ferreira, tudo o que podia "renovar a antiguidade", é em português. Caminha reser-
vava o castelhano para a sua abundante poesia na medida velha.
17 com cópia: abundância de palavras e de conceitos; sentenças: ditos sen-
tenciosos.
20-1 àquele tão louvado poeta: Homero.
24 daquele Mantuano: Virgílio.
25 Garcilasso e Boscão: Garcilaso de la Vega e Juan Boscán introduziram
na poesia espanhola o gosto pela medida nova. As suas obras conheciam-se em
Portugal antes de 1536 (Michaelis de Vasconcelos (1885) p.832).
34-6 Assi ... deixastes: graças à obra dos poetas italianos (provavelmente
Dante e Petrarca), o toscano já pode ser considerado uma língua clássica.
43-4 Getas ... romãos: os getas, habitantes da Scítia, região situada além da
fronteira norte do império romano. caldeus: babilónios; romãos: romanos.
76-7 se ofereça ... a ajudar: se ofereça a ajudá-la (a república boa, 1.68).
84 escadrões: esquadrões.
88 des que: desde que.
85-9 E não se honrava mais ... desterraram: Licurgo foi o grande legis-
lador da Esparta. Ferreira parece confundir duas histórias acerca dele. Passou um
período de exílio, durante o qual Esparta degenerou, mas perdeu o olho num
motim depois do seu regresso (ver Plutarca, Lycurgus, caps.3 e 11 ).
88 des que: desde que.
93 quanto ... deixaram: Castilho emendou quanto para quão. O verso origi-
nal é aceitável metricamente se lermos estátua como státua . Para um exemplo
parecido, ver Cii12, 1.14.

576
COMENTÁRIO

94-6 Quanto foi mais sentida... honrada: Ferreira exprime uma ideia
semelhante em Cii7 11.28-30. A fonte comum é Cícero, Pro Archia, cap. 10 (Mar-
ques Braga). ·
l 00 tégora: até agora.
102 foras: tivesses sido.
122-6 sirva ... viva ... altiva: há uma rima parecida em Écl 1, 11.173-7.
127 téqui: até aqui.
135 porque ... sejam: verso obscuro. Talvez, para que eles (as gerações
futuras) possam orgulhar-se da sua língua perante os estrangeiros.

A António de Sá de Meneses

Nesta carta Ferreira lamenta o poder do oiro e elogia D. João III e a farru1ia
dos Sá de Meneses pela sua protecção às letras. Discorre também sobre a natureza
da verdadeira nobreza, tópico favorito dos humanistas, o que o leva a pronunciar
"tremendas objurgatorias contra os deshonradores da gloria herdada", nas pala-
vras algo pomposas de Castilho. Mas, além de tudo isso, podemos ver na poesia
uma nota mais pessoal: é, evidentemente, uma carta de agradecimento a António
de Sá de Meneses, que tinha ajudado o poeta na sua carreira literária. Isto
depreende-se das 11.1 -9 e 104-21. António, filho mais velho de João Rodrigues de
Sá de Meneses, não era poeta ele próprio, como seu irmão Francisco, mas era co-
nhecido como protector de poetas (ver Silva Terra, pp. 35-9). Como se vê desta
poesia e de Oi3 - dedicada a D. João de Lencastre - na primeira fase da sua
carreira literária o nosso poeta procurava activamente quem o ajudasse.

A carta foi escrita antes de 11 de Junho de 1557, data da morte de D. João III.

29 tornou ser: a preposição é omitida também em Si55 1.13.


41-5 céus ... véus...Deus: a rima indica que, na época de Ferreira, a vogal
tónica de Deus ainda não se tinpa fechado. Ver Introdução, p. 25 .
51 a melhor: a melhor vida.
52 assi os desonra: o sujeito é o ouro (1.34).
58 Que é: há uma discussão da supressão de monossílabos em PL na Intro-
dução, pp. 24-5. Sem um verbo a frase é defeituosa. Há um exemplo do mesmo fenó-
meno na Elegia editada como Apl (iii) 1.118. Em CilO 1.87 falta é antes de entre.
69 mercê de quem: D. João III, a quem Ferreira também se refere 1.76.
Como se sabe, o rei foi responsável pela reforma da universidade e pela sua trans-
ferência para Coimbra. Foi muito elogiado como mecenas pelos poetas quinhen-

577
COMENTÁRIO

tistas . Mesmo assim, o poeta não considera que a acção cultural do rei seja com-
pleta, porque os homens de letras são "bem criados, mas mal cridos" (l.80). Ver
também a nota seguinte.
70-2 Já agora vão sofrendo .. Siracusas: os inimigos da virtude, o sujeito
da frase, são mencionados em l.60. Põe-lhes na boca um exemplo do valor das
letras que é altamente irónico. O tirano de Siracusa, na Sicília, foi Dionísio II (séc.
IV a.C.) que foi expulso do trono e que depois, por ser um homem culto, con-
seguiu obter um lugar como professor numa escola de Corinto. Fez isto, segundo
Cícero, porqu~ um tirano precisa sempre de ter alguém em quem mandar, "usque
eo imperio carere non poterat" (Disputationes Tusculanae, III, 12, 27).
83 foram : seriam.
84 atéqui: até aqui.
88 prosápia: linhagem.
89 Apolo e Marte: na família de António de Sá de Meneses havia muitos
poetas e homens de letras, como o irmão mais novo, Francisco, o pai, João Rodri-
gues, o avô, Henrique, autor de poesias do Cancioneiro Geral, e o primo, Francisco
de Sá de Miranda. Vários membros da família serviram nas praças de África (ver
Azevedo Cruz, I, p.130). O tio de João Rodrigues de Sá de Meneses, D. Vasco
Coutinho, Conde de Borba, o capitão famoso de Arzila, é o sujeito de EpitlO.
92-6 Onde... tingem: estes versos são a resposta à pergunta de 11.91-2.
101 Apolo e Palas: aqui Palas é equivalente a Marte (l.89). Era deusa da
guerra, assim como da sabedoria (ver Cii7 1.51).
104 Louvo o que em ti vejo: António de Sá de Meneses tinha experiência
das guerras de Marrocos (ver Sá de Miranda, Epitalâmio Pastoril, 11.17-22 (ed. de
1885, p.502)), mas é típico de Ferreira, muito mais dado às letras do que às armas,
não mencionar este aspecto da carreira do amigo.
112-4 As leis... contendiam: são duas histórias famosas relativas a Virgílio
e Homero. Virgílio ordenou que a Eneida, ainda incompleta, se queimasse depois
da sua morte, mas as instruç.ões do poeta não foram seguidas. Sete cidades da Gré-
cia entraram em disputa sobre qual delas era o lugar de nascimento de Homero.
121 a honra... excelente: parece imitar uma sentença de Cícero, Disputatio-
nes Tusculanae, I, 2, 4: "Honos alit artes omnesque incenduntur ad studia gloria".

5
A D. João de Lancastro, filho do Duque de Aveiro

Para a biografia de D. João, ver as notas a Oi3. É de presumir que a carta


fosse escrita enquanto Ferreira e D. João estudavam juntos em Coimbra. O moral-
ismo da carta reflecte bem o carácter do destinatário, mas Ferreira introduz tam-

578
COMENTÁRIO

bém uma nota satírica, que revela a influência das Sátiras de Horácio. As 11.34-48
exprimem a mesma ideia que Sát. I, 3, 11.55-62, enquanto as 11.49-54 correspon-
dem a Sát. I, 6, 14-17 (Seabra, I, pp.193-4, 228).

Título: de Lancastro. Ver notas a Oi3 .


2 cachopos: a palavra usa-se unicamente aqui. Tem uma conotação irónica
evidente.
3 Catões ... Fábios: romanos do período republicano famosos pela morali-
dade pessoal e pelo amor ao Estado.
5 Por grandes ... rezam: é uma referência à hipocrisia religiosa. entoado:
entoadamente (cf. falar alto).
7-9 Menelau... Agesilau: segundo Ferreira, Menelau obteve uma fama
imerecida relativamente a Agesilau, simplesmente devido à sua beleza física.
Parece que a comparação entre os dois reis de Esparta não foi feita na época clás-
sica. Menelau é o herói homérico, marido da adúltera Helena. Homero diz-nos
que tinha cabelos louros. Quanto a Agesilau, foi uma figura histórica que viveu
numa época muito posterior (4. 0 séc. a. C.) e que teve uma reputação semelhante
à dos heróis romanos de 1.3.
1O tenção: intenção. A proximidade das palavras pejorativas carranca e
fumos dá uma conotação negativa aos outros substantivos da frase.
13 diferenças: as diferenças entre os costumes de hoje e os do passado.
20 rim: riem. ·
27 vás: vais.
40-6 Aquele... prudente e cauto: a frase é elíptica, mas ganha por isso em
força retórica. Em 1.43, para tomar mais nítido o constraste entre "frio e male-
cioso" e "prudente e cauto", o poeta omite o verbo, que deve ser "é só", como em
1.46. Em 1.42 omite o pronome relativo: "e do qual seu pouco falar... amas".
55-6 e a cega honra... dá: o sujeito do verbo é "o cego povo" (1.49) e "a
cega honra" é o complemento directo. O pronome antes de dá é pleonástico.
58 real esprito: o avô de D. João, D. Jorge, Duque de Coimbra, era filho
ilegítimo de D. João II.
61 que... digo e prego: Ferreira via em D. João um Mecenas (ver Oi3 ll.53-9).
72 moimentos: monumentos.

6
A João Roiz de Sá de Meneses, no Porto

João Roiz de Sá de Meneses, pai de António e de Francisco de Sá de


Meneses, e um dos precursores do humanismo em Portugal, foi o autor de poesia

579
COMENTÁRIO

e de prosa em português e latim (para a sua carreira literária, ver Silva Dias
(1969), pp. 204-9). Ferreira compôs a sua poesia entre 1549 e 1554, anos em que
Francisco de Sá de Meneses servia o príncipe D. João como aio e camareiro-mor
(ver ll.10-12, Michaelis de Vasconcelos (1885) p. 750 e Silva Terra, p. 32). Na
altura, João Roiz teria tido ao máximo 68 anos. Segundo Costa Ramalho (1980b ),
pp. 199-201, nasceu em 1486/7 e morreu em 1579, sendo portanto de uma longe-
vidade que se tomou lendária.

Na juventude, João Roiz tinha servido nas campanhas africanas (ver ll.124-35
e Azevedo Cruz, I, pp.130-1 ), juntamente com o tio, o conde de Borba, que Fer-
reira comemora em EpitlO. Porém, é evidente, de uma leitura da carta, que o
poeta aprovou inteiramente a sua desistência da carreira das armas. Com efeito,
em 1524 João Roiz sucede ao pai na alcaidaria do Porto (Azevedo Cruz, I, 213) e
herda também o título de senhor de Sever, propriedade que andava na família dos
Sá desde pelo menos há quatro gerações (ver a tábua genealógica em Michaelis
de Vasconcelos (1885)). Ferreira parece referir-se a estes factos ll.146 e 151-3.
Devido ao grande prestígio de Sá de Meneses, especialmente na área da literatura,
a carta é uma das mais elogiosas que o nosso poeta compôs. Mesmo assim, con-
tinuou fiel aos seus princípios morais e estéticos, já que louva João Roiz pelo seu
estoicismo e pelo seu amor às letras.

5 viste-te dos estranhos invejado: o humanista italiano Cataldo Parísio Sí-


culo (c.1455-c.1517) era grande admirador de João Roiz (Costa Ramalho (1980a)
pp. 53-75).
7-8 Viste o bom sucessor... com netos: António de Sá de Meneses era o
filho mais velho de João Roiz. D. Camila de Sá, filha de António, casou à volta
de 1545 e teve filhos (Silva Terra, pp. 33-4).
13 dos outros: para além de António e Francisco, João Roiz tinha pelo
menos quatro filhos (Silva Terra, p.26).
18 Chamá-la-emos deles: a explicação que Castilho dá a estas palavras é
demasiado parafrástica. Ferreira parece querer dizer: "diremos que têm alguma
estrela especial só para eles?".
25-6 Dá-lhe... forma-a : equivalente a se lhe deres ... se a formares .
35 onde a achaste: PL omite a, como frequentemente antes de uma palavra
com a- inicial.
58-9 Já a ti ... o alto exemplo: o sujeito de leva e de levará é o alto exemplo.
62 se tu foras ... ergueram: se tu tivesses sido (ou vivido) .. . teriam erguido.
68 fora: teria sido.
72 sem outro acidente: sem outra qualidade não essencial.
76-7 estremos: extremos.

580
COMENTÁRIO

84 vás: vais.
99-1 O1 outro que... a erva buscar: o animal que mata com a vista é o
basilisco da mitologia. É o cisne que devinha (adivinha) a sua morte porque,
segundo a tradição, canta sempre antes de morrer. Plínio, Historia Natura/is, VIII,
41 , 97, explica que o cervo se cura de feridas mastigando uma erva.
106-8 Que as feras ... negas: a mesma ideia em Sá de Miranda, Basto,
ll.531-40 (ed. de 1885, p. 176).
l 09 Não são... reis: a humanidade dos reis é um tópico frequente em Fer-
reira. Ver por exemplo Ciil, ll.130-5.
124 Em mancebo... fortaleza: referência ao serviço militar prestado por
João Raiz em Arzila, Azamor e Tânger.
130-4 Agora ... trepar: cavas: fossos; valos: muros com que se defende a en-
trada de uma fortificação; contramuros: muros suplementares (Castilho). Utiliza-
vam-se muitas vezes piques para escalar os muros de uma fortaleza inimiga.
136-8 Enriqueceste ... história: Damião de Góis, D. Manuel, IV, pp. 106-7,
publica uma carta de João Raiz que atesta o seu interesse pela história portuguesa.
148-50 Sempre prestes ... erra: uma paráfrase de Horácio, Sátiras, II, 2,
11.110- 1.
153 cos meios ... sosterás: vais suster as tuas propriedades pelos mesmos
meios (se. bons e honrados) com que elas se obtiveram. Ver também a introdução
a estas notas.

A Garcia Fróis Ferreira, seu irmão

Para informação biográfica acerca do irmão mais novo de Ferreira, ver as


notas a Écl8. Garcia servia na armada, enquanto António permanecia em
Portugal, mas ll.1-2 podem significar simplesmente que certos indivíduos têm
tendência para o bem e outros para o mal. Não há indicações que nos permitam
estabelecer a data da carta, mas se foi escrita acerca de 1554, como Ci6 e 8, é ante-
rior às outras composições que António dedicou ao irmão.

A carta é notável pela sua unidade: toda ela é uma meditação sobre a varie-
dade dos génios dos homens e as razões pelas quais Deus permitiu tal diversidade.
Na poesia Ferreira exprime a sua confiança na Providência divina e nega qualquer
influência da fortuna na vida dos homens (ll.25-30), nisto manifestando a forte
influência do estoicismo cristão. Mais tarde iria modificar a sua opinião (ver, por
exemplo, Cii 12, ll. 76-8).

581
COMENTÁRIO

4-6 Quantas ... tenções: o pensamento é inspirado em Horácio, Sátiras II, 1,


11.27-8 (Seabra I, pp.259-60).
10-11 Com outro ... homem: ideia que vem também em Cícero, De officiis,
I, XXX, 105.
31-6 Muito... simpresmente: os estóicos tinham a concepção de uma
Providência que ordenava todas as coisas. Ferreira acreditava que certos aspectos
do cristianismo eram acessíveis aos filósofos pagãos (ver Cill, 11.121-6 e Cii5 ,
1.13 ff.). Aqui diz também, porém, que eles enganavam o povo, possivelmente por
fazer da fortuna uma deusa e lhe estabelecer um culto (ver Oi3 , 11.35-49).
47-8 lhe ... lhes: os dois pronomes referem-se a "nossos cuidados ... confian-
ças" (11.43-5). No século XVI, lhe foi indiferentemente singular e plural.
56 grão: é a única vez em PL que aparece esta forma do adjectivo. Ferreira
normalmente escrevia grã ou grande.
57 tinto... sangue: Deus é assim descrito em Écl9, 11.13-15.
73-4 Por estas ... crua: inspirado em Horácio, Sátiras I, 1, 38-9 (Seabra I,
p. 157).
88-90 Aquela... cativa: a alma.
103 De nós ... história: mais uma vez, Ferreira, o humanista, nega que a
glória se possa herdar.
121-3 Apareça ... dela: noção platónica (ver Fedro, 250D) que Ferreira teria
lido provavelmente em Cícero, De oficiis, I, V, 15.
144 premeira: primeira. Cf. dereitos (Ci6 1.141).

A Pero de Andrade Caminha

Desta poesia diz Castilho: "Começa esta carta pelo elogio da amizade em
geral; passa d'ahi ao de Pero de Andrade em particular; e por elle ao da poesia".
Ferreira consegue dar unidade a esta variedade temática insistindo, por toda a
poesia, na necessidade do juízo bom, que serve igualmente para discernir a ver-
dadeira amizade, evitando a estreiteza, por um lado, e a vã largueza, por outro
(11.7-9), e para apreciar a boa poesia. Deixa transparecer também uma nota mais
pessoal: em muitos passos da carta exprime uma falta de confiança na sua habil-
idade como poeta que vai além da modéstia convencional. Há um certo azedume
na maneira como confessa o seu fracasso como poeta heróico, que é como um
antegosto das poesias da crise de 1556-59 (11.213-28). Mas mesmo nestas linhas
não é possível separar inteiramente a voz de Ferreira da de Horácio, que em
Epístola II, 1, 11.229-59 exprime ideias semelhantes, embora em tom mais jocoso.

582
COMENTÁRIO

A carta contém um elogio de Horácio (ll.90-107) e a influência da Ars Poetica é


também evidente (ver notas).

A carta foi composta depois da morte do Príncipe D. João e do nascimento


de D. Sebastião em 1554 (ll.202-10) e antes da morte de Sá de Miranda em 1558,
porque ll.108-10 indicam que o poeta do Neiva ainda estava vivo. A linguagem
sentida com que Ferreira fala da perda do príncipe sugere que a data da poesia é
de facto 1554.

4 1-vos ... i-vos: ide-vos ... ide-vos.


21 de Apolo ... Fílis bela: tu que és favorecido pelo deus da poesia e causa
da fama de Fílis. Fílis é o pseudónimo da amada de Andrade Caminha.
22-4 Ditosa ... bem meu: Ferreira interrompe o seu discurso para se dirigir
a Fílis. O poeta explica que ele ama Caminha que por seu turno ama Fílis, e que
assim ele também possui espiritualmente uma parte da dama que tinha um lugar
tão importante nas afeições do poeta seu amigo.
25 deste mortal meu véu: deste meu mortal véu, ou corpo.
28-30 Tu ... perdia: estas palavras não provam que Ferreira fosse discípulo
de Caminha, já que Caminha fala a Ferreira em termos parecidos. Ver, por exemplo,
o que diz na sua carta a Ferreira, Poezias, p. 53. Museu: o santuário da poesia
(Castilho).
37-9 uns pintores... louvores: sendo uns pintores e outros tais, que em pedras,
com suas mãos, roubavam ...i.e., eram escultores. A transposição de um elemento
de uma oração subordinada, em pedras, para a oração principal é um latinismo
frequente em Ferreira.
40-1 esses tão sãos ... desejos: teus desejos.
47-53 As Musas ... sempre: Ferreira exprime mais de uma vez a sua con-
vicção de que as artes plásticas eram inferiores à literatura: ver 11.190-2 e Epigl.
58 Que_... caia: ainda 9ue, como em Sii39, 1.3.
80 de Enio a Maro: Enio (239-169 a. de C.) foi o primeiro épico romano,
julgado pouco sofisticado em comparação com Virgílio (ou Maro; 70-19 a. de C.).
92 Horatio: Horácio. É só aqui, e em l.94, que aparece a forma alatinada do
nome do poeta.
106 Flaco: Horácio.
112-4 Não sofrem ... baixamente: versos baseados em Ars Poetica, 1.378
(Castilho).
119 is: ides.
160 Cherilos: Cherilo é o mau poeta criticado por Horácio, Ep.II, 1, ll.232-7.
Tem sido identificado com Camões (ver bibliografia em Costa Ramalho (1992)
pp. 10-11 ), mas a cronologia parece contrariar tal hipótese. A carta foi escrita

583
COMENTÁRIO

entre 1554 e 1558 (ver acima) e Camões partiu para a Índia em 1553 (ver a "carta
de perdão" publicada por Juromenha na sua edição de Camões, vol. I, pp. 166-67).
169-70 Levavam... cantos: imita Ars Poetica, 11.393-6, sem mencionar
Orfeu, o cantor divino que amansou leões etc. Ferreira evita sempre revelar um
conhecimento profundo da mitologia greco-romana.
172-4 Quem me desse ... tantos: são versos que revelam como Ferreira acre-
ditava na função pública da poesia. Em Cii2 l.l3-14 pede ao cardeal D. Henrique
que ouça "a viúva que te chora" e "o órfão deserdado".
184-89 Quanto mais ... sem segundo: Castilho enganou-se ao pensar que "o
grã Grego" fosse Ulisses . Com efeito, é Alexandre Magno, que sempre quis que
um segundo "cantor de Esmirna" (Homero) cantasse os seus feitos. soara: teria
soado; fora entoado: tivesse sido entoado.
190-92 De Lisipo... contado: o esculptor Lisipo e o pintor Apeles eram con-
temporâneos de Alexandre. Horácio menciona-os na Ep.II, 1, 11.237-41, mas Fer-
reira acreditava, mais que o poeta romano, que a literatura era mais duradoura que
as artes plásticas. Destas só resta a fama, que é transmitida através da palavra
escrita, os papéis, 1.192, e neles, 1.193. Ferreira utiliza os particípios esculpido e
pintado como se fossem particípios activos: de Lisipo, tendo esculpido, e de Ape-
les, o único, tendo pintado ... tá voas: tábuas.
194 os frígios muros: os muros de Tróia.
203-7 levantaras ... soaras ... honraras: terias levantado... terias soado ...
terias honrado.
208-9 Quantos ... heras: o jovem príncipe protegia vários escritores, entre
eles Sá de Miranda e o próprio Ferreira, que lhe dedicou a comédia Bristo
(Michaelis de Vasconcelos (1885) p.740).
211-13 Já há... feras: Ferreira pede desculpa ao amigo por ter digressado tanto.
215 está ... em preço: é uma época em que tudo está à venda.
217 Do que esperei ... me deço: esqueço as esperanças vãs que já tive.
223-8 Sempre... julgados: numa carta a outro poeta, Diogo Bernardes, Ci 12,
11.7-24, Ferreira exprime mais uma vez o medo que sente perante o acto de escrever.
242-3 Põe diante... duro: pensa no futuro, que será menos duro.
245-50 real sujeito ... grã Duarte: para o senhor D. Duarte, filho do infante
do mesmo nome, irmão de D. Manuel, ver as notas a Ci13 . Andrade Caminha era
membro da sua casa. arça: arda.

9
A D. João de Lancastro, filho do Duque d'Aveiro, em Coimbra

Para a biografia de D. João, ver as notas a Oi3. É de presumir que a carta

584
COMENTÁRIO

tenha sido escrita de Lisboa, no período entre 14 de Julho de 1555 (doutoramento


de Ferreira) e 30 de Junho de 1557, data da carta em prosa a António de Castilho
em que Ferreira o informa que D. João já tinha professado e mudado de nome para
Fr. João Furtado. Em ll.4-18 Ferreira parece falar da morte de uma figura pública
importante: segundo Roig, (1970) p.92, é a do Príncipe D. João (m. 2 de Janeiro
de 1554), mas podia ser a de D. João III (m. 1l de Junho de 1557).

A carta é a primeira de uma série de quatro, todas dedicadas a amigos ínti-


mos, em que Ferreira se queixa de ter abandonado a vida académica e literária de
Coimbra. A tonalidade sombria destas composições sugere, até, que ele passava
por um tipo de crise psicológica e profissional. De Ci9 é evidente que a mudança
do poeta para Lisboa ocasionou uma mudança nas suas relações com D. João,
porque fala muito de si e quase nada do destinatário, ao contrário do que faz nas
poesias que lhe enviou anteriormente, Ci5 e Oi3. Ferreira encontrou na literatura
clássica inspiração mesmo para as suas confissões mais pessoais. Na parte final
da carta, Ferreira imagina-se no campo, longe da detestável Lisboa. As suas pala-
vras são sentidas, mas não deixam de revelar a influência do famoso elogio da
vida rural de Virgílio, Geórgicas II. Como explica Marques Braga, há na carta
também uma ou outra frase tirada das poesias de Sá de Miranda (ver notas).

l Se te conheço bem: tradução das palavras de abertura de Horácio, Ep. I, 18,


l.l, "Si bene te novi ".
9 tal figura: a sorte foi muitas vezes visualisada como figura divina.
32 o norte: a Estrela Polar.
45 custe alheios suores: a frase deriva da Carta a D. João III de Sá de
Miranda, l.270 (ed. de 1885, p.198). custe: mesmo que custe.
48 crem: crêem.
64 Desejo ... posso: o medo de falar abertamente é uma constante das poe-
sias desta fase da vida de Ferreira.
85-7 Que me aproveita ... nada: aqui Ferreira refere-se provavelmente não
à história contemporânea, mas aos indivíduos que se vangloriavam dos feitos
praticados por antepassados muito distantes. A mesma ideia é mais explícita em
Ci4, ll.19-33.
93 Tanto ... entesouro: adaptação de Horácio Sát. I, 1 l.62 (Seabra I, p.166).
106-8 Não quero... derradeiros: ver Horácio Ep.11, 2, l.204.
115 em que: ainda que, como frequentemente em Sá de Miranda. Ver Mi-
chaelis de Vasconcelos ( 1885) p. 906.
124-6 Não... velando: Virgílio, Geórgicas II, ll.461-2.
131 forçados: escravos.
138 estêm: estejam.

585
COMENTÁRIO

139-47 Meus pensamentos ... encerra: exprime a mesma ideia que Virgílio,
ll.477-86, a que acrescenta uma nota cristã, 11.142-4.
149 antigos padres: a mesma frase na Carta de António Pereira de Sá de
Miranda, l.202 (ed. de 1885, p .244)
151-9 Em vós ... cingindo: neste trecho, imitado de Virgílio, ll.473-7, Ferreira
refere-se ao mito segundo o qual a justiça, ou Astreia, foi a última dos imortais a
abandonar a terra depois do fim da Idade de Ouro. Ferreira, porém, acrescenta à
justiça duas companheiras, a inocência e a verdade. estêm: estejam.

10

A Manuel de Sampaio, em Coimbra

Esta poesia, como Ci9 e 11-12, foi escrita de Lisboa nos anos que se seguiram
à prolongada estadia de Ferreira em Coimbra. Ele compôs Ci9 antes de 30 de Junho
de 1557 e Ci 12 depois da morte de Sá de Miranda em 1558. Será razoável, portan-
to, atribuir à poesia presente a data de 1557 ou 1558. Em todas as epístolas deste
período se exprime o mal-estar psíquico de quem se considera exilado no seu próprio
país. Em todas elas, também, nos revela Ferreira a sua vida íntima com uma fran-
queza rara na sua obra austera. A Sampaio confiou, em versos sentidos, as esperanças
que nutria relativamente ao casamento (ll.124-156) mas , como bom estóico, acaba
o doce sonho pedindo ao amigo que lhe acalme os ardores .e róticos (ll. 157 ff. ).

Manuel de Sampaio (ou São Paio) foi companheiro de estudos de Ferreira


em Coimbra. Os dois amigos obtiveram o grau de bacharel em Cânones no mesmo
mês, Julho de 1551 (Autos e graus, 1550-4, fol.16r.) . Há prova documental de que
Sampaio ainda estava em Coimbra em Fevereiro de 1554, quando ele e Ferreira
votaram numa oposição (Actas dos conselhos, vol.11, pte. 2, pp.198-9), e sabemos
pela própria carta do poeta que ficou na cidade do Mondego por mais alguns anos.
Foi possivelmente um dos sobrinhos de Manuel de Sampaio, camareiro de
D. João III, que morreram "sem geração" (Hist. gen., vol.XII, pte. 2, p.27). Ferreira
caracteriza-o como amigo austero que lhe corrige os versos (Ci 12, ll.163-71).

4 arço: ardo.
7 Aristipo: filósofo grego do séc. IV a. C. Foi famoso por ter declarado
voluptatem sumum bonum, e não é impossível que Ferreira tenha tido o seu exem-
plo presente ao compor os versos em louvor do matrimónio, ll.133-56 (Earle
(1990) pp. 110-1). Em ll.7-8, porém, com uma falta de precisão relativa a factos
históricos muito típica dos PL, Ferreira refere-se-lhe vagamente como crítico
destemido e mordaz.

586
COMENTÁRIO

13 Diógenes: o cínico, um dos mestres mais conhecidos da filosofia grega.


Pregava a autosuficiência, mas não consta ter utilizado as palavras que o poeta lhe
atribui.
17 novos mundos: "l'expression ... acquiert, apres les découvertes, une signi-
fication parodique". (Roig (1980) p. 580). Ver também 11.103 ff.
18 mouro: morro.
21 espanhóis ... franceses : a luta entre a Espanha e França, na Itália e em
Flandres, dominava a política internacional europeia na época.
40 Rua Nova: a artéria comercial da Lisboa quinhentista. Desapareceu
depois do terramoto de 1755.
57 venturaram: aventuraram.
61-3 Com gloriosa inveja ... venceu: segundo Ferreira, os romanos imitaram
não só a arte militar dos gregos mas também a sua literatura. Volta às relações
entre a Grécia e Roma em CiilO, 11.64-9. A frase gloriosa inveja resume muito
bem a teoria da imitação do poeta, pela qual o imitador não copia mas tenta supe-
rar o original.
69 nos levam: o sujeito é "nossos olhos e esprito" (l.68).
87 não é entre: tanto Castilho como Marques Braga notam a falta do verbo.
Parece legítimo emendar PL, já que no texto é frequente o desaparecimento de
monossílabos antes de uma palavra que começa com a mesma vogal que a do
monossílabo. Para um ouro exemplo da supressão de é, ver Ci4 1.58
88-90 Tantos dobrões ... mil: Ferreira utiliza uma metáfora comercial para
exprimir a noção tipicamente humanista de que a nobreza não se herda.
95 rependimento: arrependimento.
98 quem: o que.
103-5 Quanto ... Portugal: talvez a expressão mais vigorosa do desprezo do
poeta pela aventura ultramarina portuguesa. A metáfora marítima, habilmente
variada, continua até 1.120.
159 honestas: tomas honesta.
176 meã: é a "aurea mediocritas".

11
A Diogo de Betancor

Não se sabe muito acerca de Betancor. Das poesias que Ferreira lhe dedicou
pode-se inferir que era estudante de Coimbra e que era provavelmente mais novo
que o poeta. Assim podemos identificá-lo com o Diogo de Betancor, natural da
ilha da Madeira, que se fez bacharel em artes em 1554 e licenciado em artes em
1555. Ferreira obteve o grau de bacharel mais cedo, em 1551 ( ver Autos e Graus

587
COMENTÁRIO

1550-4 e 1555-7). Morreu jovem, El.2, 1.2, antes de os seus talentos literários da-
rem fruto, já que nem Diogo Bernardes nem Andrade Caminha lhe fazem alusão.

Ferreira escreve a Betancor como amigo mais velho (1. 29), com alguma expe-
riência da vida. Dá-lhe conselhos morais, mas confessa, à maneira de Horácio, que o
seu próprio comportame nto nem sempre foi perfeito (11.57-9). É evidente de 11.61-2
que Ferreira se referia a um episódio da sua própria vida amorosa. Será a mudança a
do amor infeliz de Sil-32 para o amor triunfante dos sonetos seguintes? Parece pro-
vável, porque, ao contrário de Roig (1970, pp.128-9), não vemos nenhuma referên-
cia à morte da amada. Como se sabe de Si 1, Ferreira tomou público pelo menos o
primeiro livro de sonetos em 1557, facto a que parece aludir nas ll.17-18 da carta. A
poesia teria sido composta, portanto, em 1557 ou 1558, (e não em 1564, como acha
Roig) numa época em que o poeta já não residia em Coimbra. A posição de Ci 11 na
sequência das cartas leva à mesma conclusão, porque Si 12 foi escrita depois da morte
de Sá de Miranda, em 1558. É provável que Betancor tenha morrido pouco depois,
porque nas poesias fúnebres que lhe dedica Ferreira insiste na sua pouca idade. Des-
tas poesias fúnebres há três, Sii.33, El.2 e Epit.14, prova da grande amizade do poeta.

I Beira: há várias referências ao estudo na carta (e.g. 11.56, II 9 e 145), o que


toma razoável a identificaçã o de Beira com Coimbra.
6 nas minhas: se. chamas. Quer dizer que Ferreira continua fiel a Betancor,
mas que o amigo já não lhe tem nenhuma afeição.
12 demostra: deixa ver.
43 Sogiga: sujeita.
70-99 Já que ... bom aviso: nota-se como em todo este trecho Ferreira, mo-
ralista não fanático à maneira de Horácio, avisa o amigo tanto contra o excesso de
virtude como contra o vício.
70-72 Já que ... de fora: é a mesma ideia que Horácio, Sátiras, I, 3, 11.68-9
(Seabra I, p. 194).
94 Sã alma em corpo são: a frase, que se tornou proverbial, vem de Juve-
nal, Sátiras, 10, l.356.
98 revezadas: alternadas entre ocupações agradáveis e sérias.
II 9-20 vai-te à natureza ... filosofar: em El.2, 11.70-84 Ferreira dá-nos uma
descrição de como os dois amigos aprenderam a filosofar no seio da natureza.
121-26 Medirás ... escuros meios: Ferreira exprime a mesma ideia em Cii.5,
ll.28-54 onde mostra, porém, uma apreciação muito maior dos trabalhos científi-
cos dos antigos.
145-47 Se todo tempo ... quiseres: Marques Braga indicou como esta frase
é traduzida de Fedro, Fábulas, III, 14, ll.10-1. O título da fábula, "De Lusu et Seve-
ritate" (Do jogo e da severidade) , exprime precisamen te a temática do conselho

588
COMENTÁRIO

que Ferreira dá ao amigo. Diogo de Teive, cujo nome é citado várias vezes em PL,
emprega a mesma imagem em Brevis institutio Sebastiani primi, publicada pela
primeira vez nos Opuscula de 1558 (cit. por Bigalle, p. 175).
149 o santo rei: David. Sá de Miranda, Poesias (1885), p.212, também via
nos Salmos de David a origem e a justificação da poesia lírica.
152 psalteiro: saltério (antigo instrumento musical de cordas).
154-56 Quão docemente ... concordas!: a relação recíproca entre o poeta e
a poesia é uma parte importante da teoria literária de Ferreira. Ver Earle ( 1990),
pp. 47-48.
160-62 Ora entoarás ... tamanha: o ardil do cavalo de Tróia e a destruição
da cidade são descritos por Virgílio na Eneida, II.

12

A Diogo Bernardes

Há uma versão desta carta n'O Lima de Diogo Bernardes, foi 98v.-102r, a
que damos a abreviatura de OL. A maioria das variantes não passa de simples
erros, mas as ll.66, 126 e 148 indicam que Simão Lopez, o editor quinhentista, se
serviu de uma versão da poesia não idêntica à de PL. No caso de l.148, a leitura
de OL é superior à de PL.

N'O Lima, a carta de Ferreira vem logo depois da Carta 12 de Diogo Ber-
nardes, "Ferreira meu, não meu que foste dado", de que a poesia do nosso autor é
uma resposta. Na sua carta, Bernardes trata Ferreira como mestre da poesia e
pede-lhe conselhos literários. A meu ver, as linhas de Bernardes "Cantarei teu
amor, e amor do céu/ onde o bom Sá Miranda se escondeu" (fol.97r.) referem-se à
morte de Sá de Miranda, e indicam que a data das duas poesias deve ser depois de
Maio de 1558. Na sua edição d' O Lima, porém, Marques Braga interpreta o trecho
como alusão à retirada de Sá de Miranda para o Minho, (1946, vol. II, p. 213 n.).

A resposta de Ferreira tomou-se famosa porque constitui uma fonte impor-


tante para o estudo da teoria literária portuguesa do século XVI e porque há nela,
como também em Ci 8, indicações claras dos problemas de liberdade de expressão
enfrentados pelos poetas (ver Saraiva e Lopes, pp.281-2, Saraiva (1950-62), II,
pp. 651-2 e Silva Dias (1969), pp. 924-6). É sabido que a teoria literária de
Ferreira deriva principalmente da Ars Poetica de Horácio. Os empréstimos feitos
por Ferreira, de que o estudo mais completo se encontra em Fucilla, pp. 272-75,
são indicados nas notas, mas é importante não esquecer que o estudo das influên-
cias não se esgota na recolha de paralelismos (ver Earle, 1990, pp. 42-8 e 1995a).

589
COMENTÁRIO

5 se não guarde: é necessário subentender que antes de esta frase.


28-30 quão sobejos ... pejos: o sábio só precisa do suficiente para evitar
obstáculos (cegos pejos) à virtude, em outras palavras, para não ser obrigado a
roubar etc. para viver. Em 1.158 pejo tem o sentido moderno de vergonha.
42 onde ... levantas: a inversão dos pronomes sujeito e complemento é rela-
tivamente frequente em Ferreira. Ver Cii8 1.13 e Cii9 l.66.
63 esconder-se trabalha: trabalha por esconder-se. Ver Castro 11.112-3.
69 rim: riem.
83 ao alto monte: Pamasso.
85 Do bom escrever... fonte: ver Horácio, Ars Poetica, 1.309.
91-2 Cada um ... trata: é uma paráfrase de Horácio, Ars Poetica, 11.38-9.
100-2 Questão foi ... ou nada: ver Horácio, Ars Poetica, 11.408-11, cuja fé
no valor do estudo não era tão grande como a de Ferreira. Para ilustrar a ideia de
que "tanto mais vai o ingenho, se à arte se ata" (1.96) Ferreira emprega os exem-
plos do joalheiro e do jardineiro que correspondem ao corredor e ao flautista de
Horácio.
109-1 O A palavra ... tornar: tradução de uma das frases mais conhecidas da
Ars Poetica, nescit vox missa reverti 1.390.
116 como em pintura: comparar o ut pictura poesis de Horácio, Ars Poe-
tica, 1.361.
121 podera: poderia.
125-6 diferença ... pensamento: a diferença entre a prática comum e o pen-
samento.
127 Dano... sentença: na linguagem de Ferreira, sentença significa dito
sentencioso, epigrama. A ideia é que tais ditos não devem fazer um contraste
demasiado violento com o estilo normal do poeta. Ele opõe estilo a conceito em
Ci8 1.86.
129 estê: esteja.
136-8 Roendo ... à praça: Ferreira repreende igualmente o poeta que corrige
excessivamente e o que deixa publicar a sua obra sem emendas nenhumas.
139-40 Há nas cousas ... vício: tradução de Horácio, Sátiras, I, 1, 106-7.
148 Qual... prove: a leitura da versão de OL é claramente superior a PL. As
línguas não têm fios, e só dificilmente pode o verbo ousar ter fios como comple-
mento directo.
163 Sampaio: o amigo crítico de Ferreira é equivalente a Quintilius, o amigo
de Horácio, Ars Poetica, 11.438-41 . Ferreira dedicou Ci 1O a Sampaio.
178 Quem ... acusa? : a resposta às duas perguntas é ninguém. O sentido da
segunda é: quem não increpa sem discriminação tanto o bom como o mau?
187-8 o seu grã prémio: a vida imortal. As contribuições de Bernardes à
poesia farão dele uma das Musas (ver Earle (1990) pp. 47-8).

590
COMENTÁRIO

13

Ao senhor D. Duarte

O senhor D. Duarte foi assim chamado para o distinguir do pai , o infante D.


Duarte, filho de D. Manuel e irmão mais novo de D. João III. O infante D. Duarte
(1515-40) casou-se com D. Isabel de Bragança, filha do Duque D. Jaime. Teve
três filhos, D. Maria (ver Epitalâmio), D. Catarina, que se casou com o primo, o
Duque D. João de Bragança, e D. Duarte, que nasceu postumamente em 1541.
Depois da morte do príncipe D. João o senhor D. Duarte era considerado como
herdeiro presuntivo do trono, no caso de D. Sebastião morrer sem deixar filhos
(Queiroz Veloso, p. 216; Azevedo Cmz, I, pp. 275-6). Era, portanto, um indiví-
duo de suma importância política, para quem Ferreira nutria grandes esperanças.
Morreu, porém, em 1576, sem se ter casado. Tal como o pai, que tinha tido como
mestre de latim o poeta André de Resende, D. Duarte protegia as letras, sendo
Pero de Andrade Caminha membro da sua casa. Sempre que se dirigia a D.
Duarte, Ferreira mencionava este facto, já que, para ele, a futura carreira do mece-
nas serviria principalmente como uma oportunidade para a composição de uma
grande obra literária. Com efeito, na carta, especialmente em 11.25-57, volta a este
seu tema predilecto, a celebração da própria poesia e da vida intelectual, com uma
intensidade e uma beleza raras (ver Earle (1990) pp. 49-53).

Um dos momentos culminantes da curta vida de D. Duarte foi a sua nomea-


ção para condestável de Portugal em Maio de 1557, pouco antes da morte de
D. João III. Há uma ode (Oii 1) que parece comemorar o acontecimento, e é prová-
vel que a carta tenha sido escrita na mesma altura. Em ambas as poesias Ferreira
fala de D. Duarte como um jovem de quem se esperavam grandes feitos na África
(ver, na carta, ll.68ff.). Porém, foi só em 1575, isto é, alguns anos depois da morte
do nosso poeta, que D. Duarte viajou até à África, na primeira expedição de
D. Sebastião a Marrocos.

1-2 Quem ... em mim: Ferreira deseja cantar, ele próprio, as glórias de
D. Duarte, mas sabe que não é capaz, como confessa em EcllO ll.53-6 e em Oiil.
Por esta razão faz, na carta, a recomendação do amigo Andrade Caminha.
9 das nove Irmãs: as Musas.
10 peregrino: belo, maravilhoso (ver também l.79).
13 nela: i.e., na terra.
21 Minerva: deusa da sabedoria e das artes mas também da guerra. Na ima-
ginação idealista de Ferreira, as qualidades que qualquer homem bom deve pos-
suir, seja ele general, poeta ou moralista, são substancialmente as mesmas. Ver

591
COMENTÁRIO

11.88-95, onde a deusa que D. Duarte honra parece ser outra vez Minerva, já que
ele possui "as boas artes" da paz e da guerra.
38 Títiro ... Galateia: na Écloga I de Virgílio Títiro aparece como o amante
de Galateia. Menalca ou Menalcas é uma personagem das Éclogas 3 e 5.
40 do rústico Sátiro a Napeia: os sátiros eram semi-deuses pastoris, famo-
sos pela sua sensualidade; as napeias eram as ninfas dos bosques e dos vales.
41 cantam: neste trecho estático, em que as barreiras entre a natureza e a arte
se parecem dissolver, a sintaxe é bastante fluída. Estritamente falando, o sujeito de
cantam deve ser o "dom por nosso bem dado" (i.é, os dons do espírito, que incluem
a poesia) de 1.25, mas o poeta está a pensar também nas aves que cantam de 1.35.
45-51 nas cinzas de Petrarca ... com memória gloriosa: Ferreira parece ter
em mente duas obras latinas de Petrarca, o tratado moralista, em prosa, De reme-
diis utriusque fortunae e a epopeia inacabada Africa, que trata da carreira de
Cipião Africanus e tem, portanto, relevância directa para D. Duarte.
53 heroas: heróis, como frequentemente em Ferreira.
58 Mas quais ... devidas: as coroas de 11.55-7.
59-60 a real geração ... vidas: ver o primeiro parágrafo destas notas.
63 Maro: Virgílio.
66 que ... seguindo: porque vais seguindo teu glorioso espírito. Segundo
Ferreira, a hora da grandeza de D. Duarte está a aproximar-se, porque ele começa
a ter pensamentos elevados.
67-9 Ditosa mãe ... alto estado: há referências pessoais neste terceto cuja
decifração é necessariamente tentativa. A "dor do mal passado" será talvez uma
referência à morte prematura, com 25 anos apenas, do infante, pai de D. Duarte.
O engrandecimento da família de que o poeta fala pode ser a nomeação do filho
como condestável de Portugal, como já foi indicado. plantas: filhos.
72 as três Irmãs: os fados eram personificados como três irmãs.
74 sogigado: subjugado.
106 i: ide.

LIVRO II

A el-rei D . Sebastião

Desta carta há mais versões, manuscritas e impressas, do que de qualquer


outra, facto que indica a sua popularidade e importância. As versões manuscritas

592
COMENTÁRIO

encontram-se no códice 8920 da Biblioteca Nacional de Lisboa, fol 1-4 (no apara-
to crítico com a abreviatura de L) e no MS CXIV/2-2 da Biblioteca Pública de
Évora, foi 167v.-172r., publicado por Askins em 1968 (com a abreviatura de E).
A versão impressa (designada C) foi incluída por D. António Álvares da Cunha
na sua edição da Terceira parte das Rimas de Camões (Lisboa, 1668), pp.93-8, e
atribuída por ele ao autor d'Os Lusíadas. O Códice 8920 da BNL foi estudado por
Sá Fardilha na sua edição das poesias de D. Manuel de Portugal. Além de Cii 1,
tem uma outra poesia de Ferreira, a carta ao cardeal infante D. Henrique, Cii2. A
parte do códice que contém as duas cartas foi escrita provavelmente antes de 1578
(Sá-Fardilha, p.xlii), enquanto que o MS da BPE foi acabado em 1608-10 (Askins,
p. 10). Numa nota ao leitor, D. António Álvares da Cunha diz que fez a sua edição
à base de vários manuscritos, mas não dá informações pormenorizadas. As três
versões LEC coincidem em 14 ocasiões e parecem derivar de uma mesma fonte. A
fonte em questão podia ser um manuscrito do próprio poeta, já que as 14 coin-
cidências são quase todas leituras aceitáveis, embora rejeitadas por PL. L é um
manuscrito antigo e bom. E, porém, é muito defeituoso e tem "numerosos erros
provocados pela falta de compreensão dos textos por parte dos escribas que os
copiaram" (Askins, p.4). C também tem erros e alterações possivelmente intro-
duzidas em 1668. Michaelis de Vasconcelos (1922b, pp.78-9) não tinha dúvidas de
que a atribuição da carta a Camões era um erro de Álvares da Cunha. Só uma das
variantes indicadas no aparato crítico parece superior às leituras de PL (1. 114).
Durante a sua vida D. Sebastião recebeu muitos conselhos de poetas e de
humanistas como, por exemplo, a Carta a el-rei D. Sebastião de Gonçalo Dias de
Carvalho (depois de 24 de Novembro de 1557) e, em 1558, a Brevis institutio
Sebastiani primi Lusitaniae Regis do amigo do poeta Diogo de Teive. Ferreira
contribuiu um soneto (ver Ap.1) às Sententiae de Teive, de 1565, que também
foram dirigidas ao rei. Já que, na carta de Ferreira, D. Sebastião é sempre tratado
como rei, a poesia deve ter sido composta depois de 11 de Junho de 1557, data da
morte de D. João III. Roig, ( 1970) p. 135, julga que a poesia, tal como Sii 15, per-
tence a 1568, ano em que o novo rei atingiu a maioridade. É verdade que o soneto
e a carta começam com as mesmas palavras, mas 11.7-9 e 184-6 indicam claramente
que D. Sebastião ainda era criança quando Ferreira lhe dirigiu a carta e que ela
pertence a uma época muito anterior a 1568, talvez 1559, data de Cii3, em que o
poeta também trata da educação do jovem rei. Embora Ferreira aceite a teoria da
origem divina da instituição monárquica (11 .76-8 e 88-90), dá ênfase considerável
à humanidade do rei e à necessidade de ele se conformar com a lei (11.97-9 e 104-11 ).
Ver também Earle (1990), pp.112-16.
14 milagroso nascimento: D. Sebastião nasceu depois da morte do pai, o
príncipe D. João.

593
COMENTÁRIO

29 perdidos: é um latinismo, pelo qual o particípio tem a função de um sus-


tantivo verbal. Assim, a frase significa: a antiga história conta quantas vezes a
perda de armadas e de grandes exércitos deixou a vitória a adversários menos
numerosos.
34 sogigam: subjugam.
46-57 Não é um só Cupido ... amigo: Ferreira ataca o amor excessivo de si
próprio. Ver também Camões, Os Lusíadas, IX, 25-9.
50 descobriram: despiram.
71 à razão: em Ferreira, é frequente o complemento directo do verbo vencer
ser precedido pela preposição a.
81 Por fábulas antigas ... movo: Ferreira refere-se implicitamente ao mito
da Idade de Ouro, segundo o qual os primeiros homens viviam em concórdia, sem
necessidade de leis nem de governadores. Rejeita a fábula e substitui a história
cristã da queda do homem.
88 Elegeu Deus ... grei: o primeiro rei de Israel foi Saul, ver / Reis 1O.
100-2 A quem ... fizer: o antecedente desta oração relativa é ele, que vem no
final da frase. Em Écl l 11.26-7 e 403 , há outros exemplos da posposição do
antecedente de uma oração relativa.
114 vau : é uma das poucas ocasiões em que a leitura de PL é inferior às dos
outros testemunhos da carta.
118 Hidra: monstro morto por Hércules (ver nota a Cii 1O1.51 ). Ferreira refere-
-se à história mitológica, mas evita narrá-la em pormenor.
124 Aquele: Deus.
133-4 Ver-te-ás... mandas: Ferreira exprime a mesma ideia em Ell 11.104-5.
151 ideia: ver a nota a El 1 1.83 e Earle ( 1990), p.30. É evidente neste terceto
a conexão íntima no espírito do poeta entre moral e estética.
163 releve: perdoe.
167 estê: esteja.
189 o mansíssimo avô: D. João III.
190 inteiro: recto, justo.

Ao Cardeal /Jante D. Anrique, regente

Desta carta, tal como da anterior, há uma versão manuscrita no Códice 8920
da BNL, fóls 14r.- l 7r. A parte do MS em que aparece a carta foi escrita provavel-
mente antes de 1578 (ver notas a Ciil). Não existe outra poesia de Ferreira com
variantes tão significativas, principalmente na parte final.

594
COMENTÁRIO

Foi em 23 de Dezembro de 1562 que D. Henrique prestou juramento como


regente de Portugal. Sucedeu no cargo a D. Catarina, viúva de D. João III e irmã
de Carlos V. Ferreira, em cuja poesia se nota a ausência de referências à presença
espanhola na corte portuguesa, nem menciona o nome da rainha. É possível que
tenha composto uma primeira versão da carta nos primeiros dias de 1563, porque
no manuscrito parece fazer uma alusão directa às Cortes realizadas entre Dezem-
bro de 1562 e Janeiro de 1563, especialmente aos capítulos apresentados naquela
assembleia nos quais se exprimia o desejo de "limitar o número de desembar-
gadores ...e o número de letrados em geral" (Azevedo Cruz, I, 344). As linhas
satíricas da parte final do MS podem bem referir-se a esta reclamação da parte dos
representantes do povo. Se assim for, é mais uma prova da isenção do poeta, que
censurou a sua própria classe também em Ci2. Contudo, as críticas acerca do
número excessivo dos letrados e do seu comportamento pouco digno desaparece-
ram quando Ferreira reviu a carta com o fim de editá-la em PL. Castro é uma
outra obra da qual a versão impressa em PL apresenta um número de factos
específicos históricos ou políticos inferior aos da versão escrita anteriormente.
Mesmo assim, ficou em ambas as versões da carta a ânsia de justiça e de boa
administração do ultramar que constituiu também parte importante dos capítulos
apresentados pelo povo.

A carta revela a influência de Horácio, principalmente da Epístola, II, 1, e


também de Cícero, cujo discurso Pro A. Licinio Archia, tal como a epístola de
Horácio, constitui uma defesa da poesia contra os seus detractores. O Cardeal
D. Henrique, apesar de ser inquisidor-mor, protegia pelo menos alguns huma-
nistas, apreciava muito o teatro e era o fundador da Universidade de Évora. Fer-
reira, portanto, tinha no regente de Portugal um aliado, e faz a apologia da sua
própria arte com o seu vigor acostumado. Este trecho inspira-se no passo corres-
pondente da epístola de Horácio, ll.118-25, mas Ferreira consegue ajustar os ver-
sos do poeta romano à sua própria situação. Apresenta argumentos razoáveis, sen-
satos, porque sabe que o regente, sobre quem choviam reivindicações de todo o
lado, não reagiria favoravelmente a pedidos exagerados.

1-12 Entre tantos... gente: o começo da carta inspira-se em Horácio, Ep. II,
1 ll.1-4. Sá de Miranda imitou o mesmo passo na sua carta a el-rei D. João, ll.1-10
(ed. de 1885, p.187), e Camões também nas oitavas dedicadas a D. Constantino de
Bragança, ll.1-16 (ed. de M. de L. Saraiva, vol.3, p. 219). A influência da mesma
epístola é visível numa outra poesia de Ferreira, Cil ll.95-114.
5-6 o santo irmão ... tormentas: D. Henrique era irmão mais novo de
D. João III, morto em 1557. Em 1562 D. Sebastião tinha só 8 anos. D. Henrique
continuou como regente até 1568.

595
COMENTÁRIO

11-5 meios ... esteios ... dê-os: é um dos poucos exemplos na poesia de Fer-
reira de uma rima má, devida talvez à semelhança visual entre as palavras na
ortografia quinhentista. Ver Introdução, pp. 25-6.
24 outro assento maior: D. Henrique foi mais que uma vez indicado como
possível papa. No conclave de 1559, depois da morte de Paulo IV, o cardeal-
-infante obteve 15 votos. (Azevedo Cruz, II, 75-8).
30 espinhas: espinhos, como sempre em Ferreira.
33 Crisipo: filósofo estóico grego que viveu no século III A.C. Da sua obra
volumosa só fragmentos vieram até nós . Foi o autor romano Aulo Gélio que
repetiu a sua descrição alegórica da justiça que Ferreira segue fielmente (Noctes
Atticae, XIV, 4, 1-4). A ideia de que a literatura consegue retratar valores abstrac-
tos melhor que a pintura vem também em Epig 1.
37-8 que o povo ... co dedo: de que o povo mofa.
42: ao seu, ao peregrino: ao conterrâneo, ao estrangeiro.
49-52 o outro ... o outro: a leitura de PL parece impossível, mas não o é. No
século XVI a fórmula o outro usava-se para aludir indirectamente a personagens
famosas na história ou na literatura da antiguidade clássica. Na versão manuscrita
de Os Vilhalpandos de Sá de Miranda que se encontra na Biblioteca de la Real
Academia de la Historia de Madrid, a personagem Milvo diz (Acto I, Cena 3):
"com aquelle ramo com que o outro passou todos os periguos do Inferno". A refe-
rência é a um conhecido incidente do Livro VI da Eneida, e não parece ter sido
necessário mencionar nem que o ramo era de ouro nem o nome do herói, Eneias.
Em PL a fórmula o outro só aparece aqui, mas não destoa da 'indiferença habitual
de Ferreira pelos pormenores da história romana. As personagens referidas são os
imperadores Heliogábalo e Nero. Heliogábalo (218-22 d.C) foi famoso pela sua
imoralidade. O incidente narrado vem da biografia de Heliogábalo, também cha-
mado Antoninus Elagabalus, contida na Historia Augusta, XXVIII, 6.
82-4 Em nenhum estudo ... em seu ofício: encontra-se a mesma ideia em
Cícero, Pro Archia, cap.1: "etenim omnes artes ... habent quoddam commune vin-
culum et qu'asi cognatione quadam inter se continentur".
91-3 Pera o público bem ... em bons mudam: imita Ars Poetica, 11.333-4
(Fucilla, p.275) .
104 letrados: juristas, mas em 1.119 a mesma palavra podia significar ou
juristas ou poetas.
111 piadade: assim aqui e em Cii 1O, 1.32, mas a forma normal em Ferreira
é piedade.
116-7 Cada um ... atiça: é um conselho dado aos poetas.
118-20 Seja... deseja: este terceto podia ser dirigido igualmente aos poetas
ou aos juristas. A partir de 1.121, porém, Ferreira volta a falar da administração da
justiça.

596
COMENTÁRIO

128 reis ... se obrigam: Ferreira insiste nesta ideia também na Carta a D.
Sebastião, Ciil, li. 98-9 .
132 persigam: perseguem. Diz Castilho: "está por força grammaticalmente
errado pelo poeta, obrigado pela rima".
150 espede: despede.
163-4 A quem... concederam: ao homem a quem os céus concederam ... Estas
linhas e as seguintes são uma paráfrase de Horácio, Sátiras, I, 4, 43-4 (Seabra).
175-86 Determine... afamam: este trecho, em que Ferreira toma uma ati-
tude defensiva perante a literatura, inspira-se no passo correspondente da Ep. 11.1
de Horácio, 11.118-25.
178 Demos ... não ata: concedamos que todos são bons ; esse argumento não
colhe, não prende (Castilho).
195 a rara arte: aqui significa qualquer arte. A ideia de Ferreira é que se os
juízes protegem todo o homem que "n üa arte aos outros excedia", seja qual for a
arte referida, devem também proteger a arte da poesia.
196 escurece: ataca, condena.
207 consume: consome, como sempre em Ferreira (ver Cii6, 1.31, Si33, 1.8
etc.).

A Luís Gonçalves de Câmara, mestre dei-rei D. Sebastião

O padre jesuíta Luís Gonçalves de Câmara foi escolhido como mestre, ou


preceptor de D. Sebastião em 1559, data presumível da poesia. Era o cardeal-
-infante D. Henrique que apoiava a escolha do jesuíta português, assim contra-
riando D. Catarina, que naquela altura era regente e que teria preferido Fr. Luís de
Granada ou Fr. Luis de Montoya, ambos castelhanos (Azevedo Cruz, I, 96-9 e
248-9). É evidente a simpatia de Ferreira pelo partido mais nacionalista do
infante. Nunca dedicou nenhuma poesia à rainha.

Na carta Ferreira insiste, mais que habitualmente, na importância das armas


na vida portuguesa. Dá ao jesuíta uma história abreviada das glórias militares de
Portugal, focando o reinado de D. Afonso Henriques, ll.136-44, e a época dos
Descobrimentos. Na sua narração o poeta, normalmente bastante vago ao falar de
acontecimentos históricos, distingue a invasão de Marrocos, ll.148-53, da aventura
transoceânica, ll.154-6. Deve ter sabido que o pe Gonçalves da Câmara tinha traba-
lhado na África (Azevedo Cruz, I p. 98), e teria querido também reflectir as opi-
niões do conselho régio acerca dos deveres do mestre do jovem rei . Com efeito,

597
COMENTÁRIO

tanto D. Aleixo de Meneses, aio de D. Sebastião, como a rainha, nas instruções


dadas por ela ao jesuíta, salientam em primeiro lugar a importância da instrução
militar (Barbosa Machado, Memórias I, 206-7 e 214-15). As instruções da rainha
também falam na necessidade da temperança no comer, a que o poeta também se
refere, ll.108-9. Contudo, a belicosidade da carta modifica-se se tomarmos em
conta o seu moralismo e a sua estrutura equilibrada. Na primeira secção da carta
Ferreira exalta a razão sobre os impulsos heróicos do rei, servindo-se de exemplos
tirados da vida de Alexandre Magno, 11.13-15, 37-42 e 58-62, cujos feitos e am-
bições bélicas critica. Ao falar de D . Afonso Henriques, na segunda parte, o poeta
insiste na virtude estóica da temperança que, segundo ele, caracterizava a vida
portuguesa naquela época. É assim que consegue o equilíbrio, porque o rei não
deve ser excessivamente heróico, mas, ao mesmo tempo, deve evitar os excessos
do fausto e preparar-se durante os períodos de paz para uma guerra eventual.

3 só da virtude ... amigo: Seabra (1 p.63) vê nesta linha uma referência, a


meu ver vaga, a Horácio, Sátiras, II, 1, 1.70.
9 encobres: é uma referência à humildade do jesuíta.
11 àquela ideia: os ensinamentos filosóficos e religiosos do preceptor. Ver
também a nota à Ell 1.83.
13-15 Porque ... dado: o mestre de Alexandre foi Aristóteles. A carta (fictí-
cia) do rei Filipe para o filósofo a que Ferreira se refere vem em Aulo Gélio,
Noctes Atticae, IX, 3.
19 Chegue: como frequentemente em Ferreira, a conjunção condicional se
é omitida da frase.
37-9 Aquelas ... larguezas: Plutarco, Vida de Alexandre, 39, refere-se à libe-
ralidade de Alexandre que Ferreira desaprova (Marques Braga). Juvenal critica Ale-
xandre por ter achado um mundo insuficiente para as suas ambições (X, 1.168-73).
47 o reino ... primeiro: S.Mat.6.33 .
57 porque... mande: neste caso, o esprito mor mandado por Deus é o pirata,
cuja reposta (resposta) tanto surpreendeu Alexandre.
58-62 Quem ... desata: a história vem em Santo Agostinho, De Civitate Dei,
IV, 4.
71 partes: qualidades.
82 feiice: feliz.
84 ninguém ... lhe erra: ninguém o ofende.
90 aventura: perigo.
99-102: as couraças ... vinham: couraças são armaduras para cobrir o peito;
adargas e padeses são escudos, sendo os padeses maiores. A pontuação adaptada,
bastante diferente da de PL, respeita a fluidez sintáctica destes versos. Em 1.100
é necessário subentender eram.

598
COMENTÁRIO

103 a mediocridade : o suficiente.


113 Lacedemónia e Esparta: são sinónimos.
137 Afonso: D. Afonso Henriques. Para o interesse de Ferreira neste rei, ver
as notas a Oi8.
139 fortes peitos: é necessário subentender com os antes de fortes peitos. Os
fortes peitos são dos homens que acompanharam o rei, os "poucos do trabalho
endurecidos" de l. 140.
145 C'os altos socessores: Castilho não entendia a frase e quis emendar
C'os para Os, mas a leitura de PL parece boa. O sujeito de "estendendo foram"
não é os reis de Portugal, mas os "poucos do trabalho endurecidos" de l.140.
162 primeiro: antes.
165 reprenda: repreenda.
171 defensa: defesa.
174 Cápua: cidade italiana cuja vida era de tal maneira dissoluta que as
tropas de Aníbal, que a capturaram em 216 a.d.C. , lá perderam todo o seu entu-
siasmo pela vida militar.
176-7 se aprovas ... filosofia: a frase, atribuída a Platão, é repetida por ou-
tros autores quinhentistas como Dias de Carvalho, fól.B2v.

A Diogo de Teive

Desta carta há um estudo em Brandão (1969) pp.972-5. O seu tom amistoso


e a sua franqueza (ver ll.55 ff.) indicam como Ferreira tinha entrado no mundo
literário novilatino, de que Diogo de Teive foi um dos representantes mais impor-
tantes em Portugal. Ferreira chama-lhe "douto mestre", l.60, mas não era aluno de
Teive no sentido estrito, já que Teive ensinava no Colégio das Artes, de que che-
gou a ser principal, enquanto o nosso poeta estudava Cânones (Brandão, p. 977).
Depois da entrega do Colégio aos jesuítas, Teive perdeu o emprego, mais por não
ser jesuíta que por razões ideológicas. Como recompensa, em 29 de Novembro de
1556, foi-lhe dada, por ordem régia, a abadia de S. Cristóvão de Vila Chã, no bis-
pado de Miranda (Brandão, pp.931-8 e 966). Na carta Ferreira tenta estimular o
amigo a aproveitar o seu retiro obrigatório no campo para a composição literária.
A poesia data do segundo semestre de 1557, pois em 11.152-9 é mencionada a
morte de D. João III, ocorrida em 11 de Junho daquele ano.

Para homenagear o mestre de latim, a quem muito admirava, Ferreira incluiu


na carta traduções e reminiscências mais vagas de três poesias romanas, as Epí-

599
COMENTÁRIO

stolas, I, 10 e II, 2 de Horácio, e a Geórgica II de Virgílio. Contudo, não falta à carta


uma certa ironia, já que, apesar de viver na cidade, Ferreira conseguiu escrever
uma longa poesia, enquanto Teive nada produzia (ver Earle ( 1990) pp.100-2). A crí-
tica da vida lisboeta faz pensar em outras poesias da mesma época, como Ci9- l 2.

1-3 Promiti-te... lida: Castilho vê aqui uma reminiscência, a meu ver vaga,
de Ep. II, 2, 11.20-2.
2 mil meses: exagero poético, como vê Brandão ( 1969) p. 973n., porque
provavelmente Teive só foi de Lisboa para Vila Chã nos princípios de 1557.
10 tanto honrado: é ironia evidente. Os "honrados" são os mentirosos, os
que faltam às suas promessas.
13-33 Mas em tão cheia ... imortais teias: todo este trecho segue Ep.11, 2,
65-80. Em 11.16-7 Ferreira muda os Montes Quirinal e Aventino romanos para
topónimos lisboetas. O mosteiro de N. S. da Esperança ficava nos arrabaldes da
cidade, no distrito de Santos, onde há ainda hoje uma Rua da Esperança, enquanto
que a igreja de S. Vicente de Fora se encontra em Alfama (Rodrigues de Oliveira,
pp. 76 e 102). mós... traves: traduzem quase literalmente lapidem (pedra) e tignum
(trave) de Horácio, 1.73. Vai ora ... brandos: traduz o i nunc et versus tecum medi-
tare canoros de Horácio, 1.76. ricas veias, 1.31, vem talvez de sine divite vena da
Ars Poetica, l.409 (Castilho).
19 cambos ... recambos: trocas de dinheiro, negócios, feitos na rua.
21 entrambos: ambos.
34-9 Contudo... afamam: a sátira da admiração mútua dos poetas citadinos
deriva de Ép.11, 2, 95-100 (Castilho). Mântua: cidade onde nasceu Virgílio.
40-2 Voam ... Camenas: Ferreira compara também um poeta com uma ave
em Oi5, 11.1-15, em ambos os casos formando a metáfora à base de um trocadilho
com a palavra pena. Camenas: as Musas.
57 ousara: ousaria.
69 donde eu ... fugeria: a mesma imagem surge em Ci9 11.1-3, outra poesia
em que Ferreira lamenta a necessidade de viver em Lisboa.
82-7 Pera a saúde... corte: imitação de Horácio, Ép.I, 10, 11.15-8. Cão... Lião:
os pormenores astronómicos também vêm da poesia latina, 1.16. O Cão é a cons-
telação Canis Maior, visível em Julho, mês em que o Sol entra no signo do Leão.
102 teitos: tectos. Ver também aspeito, Cii2 1.34 e objeito Si53 1.2.
103-5 Ó bem-aventurados ... mantimento: imita os conhecidos versos de
Virgílio, Geórgicas, II, 11.458-9.
109-23 Onde assi cheiram em Líbia as pedras ... destorcem: os romanos
ricos costumavam construir os pavimentos das casas utilizando pedras líbias. O tre-
cho todo é uma imitação de Horácio, Ép.l, 10, 11.19-25. Ferreira segue o poeta
romano de perto em 11.109-14, passando depois a parafrasear.

600
COMENTÁRIO

124-32 Que gosto ... cedo: o louvor da astronomia é um lugar comum da


poesia humanística. Mas a sugestão pode ter vindo da mesma obra virgiliana citada
acima (Geórgicas II, 11.477-92), onde se fala também das estrelas e da felicidade
de quem potuit rerum cognoscere causas. Ver também o trecho parecido em Cii5
11.16-24 onde, porém, Ferreira chega a uma conclusão diferente acerca das capaci-
dades do homem.
142-7 Do teu lume ... pensamentos: Teive era sacerdote além de humanista,
e há aqui uma referência à parábola dos talentos, S. Mat. 25.
148 Quem ... chamou: segundo Castilho, D. João III, mas é evidente do con-
texto religioso que Ferreira se referia a Cristo.
162-5 Devemo-nos ... sem mim: na Ep.11, 2, tantas vezes referida nesta carta,
Horácio também fala da morte e da inutilidade das riquezas materiais, 11.175-9.
168 secretários: os padres latinos e gregos mencionados ll.172-7.
170 de quem ... ensinava: mais tarde ensinava o que fazia. Na linguagem de
Ferreira, quem não é necessariamente pronome pessoal.
173-4 Bernardo... namorava: referência aos muitos sermões de S. Ber-
nardo em louvor da Virgem (J. P. Migne, PL, 183).
184-6 No teu verso... enova: Ferreira incita Teive a escrever em latim, se-
guindo os modelos poéticos de Horácio e de Virgílio (Maro) e em prosa Tito
Lívio, que nasceu em Pádua, e Cícero, natural de Arpino. enova: a emenda é
necessária, porque a leitura de PL, repetida por Castilho e por Marques Braga, não
faz sentido. Em Écl7 11.166-68 encontramos a mesma rima entre renova e enova.
187-9 Por ti ... raro: o livro de Teive acerca do segundo cerco de Diu, o
Commentarius de rebus in lndia apud Dium gestis (Coimbra: João de Barreira e
João Alves, 1548).

A António de Sá de Meneses

Nesta carta, em que se emprega uma linguagem sem precedentes nos Poe-
mas Lusitanos, a da astronomia e da geometria, Ferreira leva o seu louvor das
especulações filosóficas e científicas dos gregos e romanos mais longe do que em
qualquer outra. Segundo o poeta, a sociedade moderna, apesar de ter recebido a
revelação cristã, é inferior à antiga em termos de ciência e comportamento moral,
lição que repete em Cii 12. (Comparar Ci7 11.31 -6 e Ci 11 11.121-6 onde Ferreira
fala com desprezo dos escuros meios com que os gentios chegaram à verdade,
frases que são a expressão de uma atitude mais crítica ao passado clássico). O tom
da carta foi sem dúvida influenciado pela personalidade e pelos interesses inte-

601
COMENTÁRIO

lectuais do destinatário, António de Sá de Meneses (1510?-1566), membro de


uma família de humanistas e de poetas, a quem Ferreira enviou também, entre
outras poesias, uma ode impregnada de sabor pagão (Oii5) .

A tomarmos em consideração a posição da carta no Livro II, deve ter sido


escrita no período 1557-9. Não há outra indicação interna que nos ajude a atribuir-
-lhe uma data.

1-3 Aquela ... verdade: trecho inspirado em Horácio, Sátiras , I, 4, 11.1-5


(Seabra I, pp.102-3).
9 teus ... herdada: António de Sá de Meneses foi o filho mais velho de João
Rodrigues de Sá de Meneses, a quem Ferreira enviou Ci6. Os Sá eram uma famí-
lia importante do norte do país. Tinham fama como letrados e como guerreiros
(ver ll.121-6).
10-12 se uns cegos ... ninguém acerta: Ferreira chama cegos aos antigos
porque não eram cristãos, mas, mesmo assim, fizeram grandes descobertas cien-
tíficas e filosóficas . O poeta critica os seus contemporâneos que, apesar de
viverem sob a "clara luz" do cristianismo, continuam a ser imorais.
24 um alto Deus: segundo Ferreira, os sábios antigos chegaram à concepção
de "um alto Deus" como consequência das suas especulações astronómicas. A
fonte da ideia, de origem estóica, está provavelmente em Cícero, De natura deo-
rum, livro II, onde se fala extensamente da presença de Deus na natureza. O lou-
vor da astronomia é a temática também de Cii4 11.124-32; mas naquela carta,
dirigida a um sacerdote, Ferreira não chega a conclusões tão ousadas.
31-3 Ora um ... por onde ia: Ferreira pode referir-se aqui aos cálculos acer-
ca do tamanho da terra e ao atlas de Ptolomeu. Pedro Nunes traduziu o primeiro
livro da Geografia de Ptolomeu no seu Tratado da sphera (Lisboa, 1537).
Hooykaas (1979), pp.19-20, chama a atenção à falta de interesse de Ferreira pelo
saber prático adquirido pelos portugueses na área da navegação.
34-6 Outro... se tornava: Ferreira imagina aqui um astrónomo, baseado,
evidentemente, na terra, a observar primeiro o sol e depois o céu noctumo. volta:
segundo o sistema ptolomaico, o sol gira em volta da terra.
37-42 Ali ... trabalho dura: Ferreira emprega aqui, pela única vez na sua
obra poética, a terminologia técnica da astronomia e da geometria. Certas pala-
vras, tais como linha (do equador), quadrada e quadratura, só aparecem nesta
carta. altura: altura em relação ao horizonte. quadratura: o problema insolúvel
da quadratura do círculo era conhecido na Antiguidade. dura: pertinaz, incansável
(Castilho).
43-5 Daqui ... sostida: na mitologia clássica, o gigante Atlas sustinha o peso
dos céus nos ombros. A interpretação alegórica do mito, segundo a qual Atlas era

602
COMENTÁRIO

astrónomo ou astrólogo, era conhecida na Idade Média. Zurara refere-se-lhe na


Crónica da Guiné. Ver ed. de Bourdon, p.5ln. alma máquina: a máquina das
nove esferas dos céus, que dá vida à terra.
49 na nova claridade: a revelação cristã.
57 de noite: a metáfora das trevas ou da cegueira emprega-se por toda a
carta para designar os pagãos que não conheciam a religião verdadeira. Por isso
mesmo, os seus erros são menores que os dos cristãos.
75 daquele povo: os gregos ou os romanos.
80 corado: aparentemente bom (Morais). Mais uma vez Ferreira se refere
aos pagãos que actuavam bem por razões erradas, porque não eram cristãos.
90 as leis ... torcidas: subentende-se sendo antes de as leis. Ferreira imita
aqui a sintaxe latina.
103-5 Vingue-se... sem perigo: terceto baseado em Horácio, Sátiras, II, 1,
11.44-6 (Seabra I, pp. 260-1 ), com a diferença de que Horácio pensa em termos de
uma ofensa pessoal, enquanto que Ferreira visa o "imigo do comum bem".
118-20 e o vil tesouro... ouro: Horácio também afirma muitas vezes que o
acumular de riqueza é uma forma de loucura.
122 de parte a parte: inteiramente.
125-6 antigo nome ... reparte: Ferreira refere-se aos dois apelidos do desti-
natário, Sá e Meneses.

A António de Castilho

O título que PL dá a esta carta é uma das poucas indicações certas, se não a
única, de interferência editorial com o texto das poesias de Ferreira depois da sua
morte. Com efeito, segundo o artigo bem documentado de 1970 de J. V. Serrão,
foi só em 6 de Novembro de 1571, isto é, dois anos após o falecimento de Fer-
reira, que Castilho obteve o cargo de guarda-mor da Torre do Tombo, por alvará
régio (pp.348-50). Tinha passado os anos de 1549-1565 em Coimbra, onde che-
gou ao grau de doutor em leis (Serrão, pp.320-2). Ferreira fixou-se em Lisboa a
partir de 1555/56 e as alusões da poesia ao facto de o amigo estar ocioso e longe
de largos paços mostra que, ao compor a sua epístola, o poeta já estava na capi-
tal. Estas referências pouco precisas indicam unicamente que Ferreira escreveu a
sua carta em data desconhecida entre 1555/56 e 1565. Segundo Serrão, a poesia
pertence à fase final deste período, 1564-65 (p.334n.), mas é possível aventurar
outra hipótese. A carta a Castilho situa-se entre outras poesias de entre 1557 e
1560 (Cii4 e 7-9. A data de Cii5 não se sabe). Além disso, temos a carta em prosa

603
COMENTÁRIO

a Castilho, também datada de 1557. Tudo isto sugere (embora não o prove) que a
poesia presente seja do mesmo período.

Júlio de Castilho viu muito bem que a fonte principal da carta é a Epístola
I, 4 de Horácio, dedicada a Tibulo, que era poeta, tal como o amigo de Ferreira.

1- 12 Castilho ... seguro: imitação do começo da epístola horaciana, 11.1-5.


Como era seu hábito, porém, Ferreira introduz uma nota contemporânea na referên-
cia a Ariosto, o grã ferrarês , que teve Ferrara como terra adoptiva. Ferreira refere-
-se a um incidente da epopeia de Ariosto, Orlando Furioso, em Écl6 ll.145-51.
6 téqui: até aqui.
16-18 Quando ... memória: a frase indica que Castilho tinha planeado uma
obra histórica antes de ter sido nomeado guarda-mor da Torre do Tombo, mas
nunca chegou a escrever mais que alguns fragmentos (Serrão, pp. 334-6).
31-3 Quanta arma ... rume: o teu silêncio cruel custa-nos muitas armas e
muito sangue, porque, se falasses, o mouro e o rume (nome dado pelos portugue-
ses aos soldados mamelucos vindos do Egipto) estariam cheios de terror e de
medo e não resistiriam. A construção da frase é elíptica. consume: consome, como
sempre em Ferreira (ver Cii2, l.207 e Si33, l.8 etc).
34-6 Tu... cedo: a mesma imagem do voo do poeta encontra-se em Oi5, 11.1-12.
A fonte , algo distante, é Horácio, Ode II, 20.
47-50 Comece ... vida: adaptação livre de Horácio, Ep. _1,411.12-14.

7
A João Lopes Leitão, na Índia

O fidalgo João Lopes Leitão viajou à Índia, onde chegou a 3 de Setembro de


1558, na armada de D. Constantino de Bragança. Pelo título da poesia, como
pelos primeiros versos, é evidente que Ferreira escreveu a carta depois de Leitão
ter chegado ao Oriente, isto é, depois de ter tido notícias do que lá tinha feito. Nas
11.10-12, Ferreira parece referir-se a um evento dramático ocorrido em Balsar,
pequena fortaleza perto de Damão. Leitão tomou parte na ocupação pacífica de
Damão por D. Constantino em 1559, ficando como um dos capitães da guarnição
daquela cidade. Em Abril Balsar, também em poder dos portugueses, foi atacada
por uma força inimiga. O comandante foi morto e a guarnição ficou reduzida a
somente onze homens. Porém, no mesmo dia, chegou de Damão uma armada por-
tuguesa que entrou no rio de Balsar e derrotou o inimigo. É tentador identificar
Balsar com a "quási entrada fortaleza" de que Ferreira fala na carta. Diogo de
Couto não conseguiu descobrir quem eram os comandantes da armada salvadora,

604
COMENTÁRIO

mas é bem possível que Leitão tenha sido um deles. Antes de os soldados portu-
gueses desembarcarem, houve um debate em que se discutiu se o pedido de socorro
enviado pela guarnição não era, afinal, um embuste dos muçulmanos. É possível
que Ferreira também se refira ao debate quando aconselha acerca da necessidade
de prudência, 11.19-21. As viagens de Goa para Lisboa normalmente começavam
à volta do ano novo, de forma que a notícia da expedição a Balsar só teria chegado
a Ferreira em 1560, data presumível da carta. Seria difícil atribuir o poema a uma
época posterior, já que em 1560, ainda em Damão, Leitão foi atingido por uma
bomba de fogo que, miraculosamente, não explodiu. Ferreira não menciona este
episódio emocionante na vida do amigo. Ver Diogo do Couto, Década Sétima,
fois lOlv., 106r., 109r., 112v., 149r.-150v., 155r.

É possível que Ferreira não tenha chegado a conhecer Leitão pessoalmente


(11.55-60). Leitão foi, porém, amigo de outros poetas, entre os quais Andrade Cami-
nha (l.82), que lhe dedicou uma epístola, um epigrama, e quatro epitáfios, e
Camões que lhe dedicou as redondilhas "Se vossa dama vos dá" e o soneto
"Senhor João Lopes, o meu baixo estado" - se é que este último poema é real-
mente dele. Leitão foi também um dos convidados no célebre banquete poético
organizado por Camões na Índia. Das poesias dos amigos depreende-se que
Leitão também era poeta. Morreu afogado no mar em data desconhecida.

Toda a carta é um louvor à poesia, que melhora a acção do militar e que pode
unir dois amigos separados pelo mar. Na parte central, visionária, do poema
(11.49-51), vemos como os impulsos mais contraditórios, o amor e a guerra, ficam
reconciliados no culto das Musas.

6 trões: o som dos canhões.


7 estê: esteja.
9 rume: muçulmano egípcio ou turco.
11 escumosas: espumosas.
30 o grã Macedónio: Alexandre Magno, cujas conquistas foram inspiradas
pela poesia de Homero, cantor das proezas de Aquiles.
35 do rei profeta: o rei David, autor dos salmos.
43-4 Já... fermoso: a ideia de que a poesia é capaz de transformar a própria
paisagem aparece também em Cil3 l.28ff. e em Cii9 l.31ff.
44-5 mundo ... mundo: o trocadilho com mundo - mundo físico e os seus
habitantes - aparece também na Oi l 1.18.
51 Apolo e Palas: Apolo é o deus da poesia. É costume ver em Palas, ou
Minerva, a deusa da sabedoria, mas ela era também a deusa da guerra. Aqui, como
em Ci4, 1.1 O1, Ferreira parece focar o aspecto bélico da figura mitológica.

605
COMENTÁRIO

58-60 Pode... vida: na Idade Média e no Renascimento era um lugar comum


dizer que duas pessoas se podiam apaixonar ouvindo falar uma da outra. Ferreira
repete o tópos em Epit 11.196-7. Para mais exemplos, ver Asensio (1971), p. 10-13.
duas: lê-se como se fosse um monossílabo. Ver também Si45 l.6 e Sii28 l.3 .
65-9 nisto... amemos: a mesma ideia vem em Cil ll.90-2. Ver também a
carta de Sá de Miranda dedicada a D. João III, especialmente ll.338-45 (Poesias
(1885) pp.202-3).
85 servidor: uma das fórmulas convencionais com que se acabavam as car-
tas no século XVI era "servidor de Vossa Mercê". Ferreira emprega-a na carta em
prosa a Ant0nio de Castilho (ver Brito Rebello). Aqui rejeita-a a favor de uma
expressão mais calorosa dos seus sentimentos. No século XVII a fórmula já era
considerada antiquada (ver Rodrigues Lobo, Corte na Aldeia, p.81).

A D. Constantino, filho do Duque de Bragança, indo governar a Índia

O vice-reinado de D. Constantino de Bragança começou em 1558, data pre-


sumível da poesia. Como nota Roig ( (1970) p. 123), esta carta deve ter sido escri-
ta antes de Cii7, facto que indica que neste livro de poesias a ordem cronológica
de composição nem sempre foi seguida com rigor. Além de Cii7, dedicada a João
Lopes Leitão, Ferreira enviou uma outra poesia, Oii4, a uma pessoa que acom-
panhou o vice-rei a Goa, Afonso Vaz Caminha, irmão do poeta. D. Constantino era
o quarto filho do Duque D. Jaime. A ele Camões dedicou as oitavas cujo primeiro
verso é "Como nos vossos ombros tão constantes" .

Ferreira, partidário da casa ducal de Aveiro, dedicou unicamente esta poesia


a um membro da família rival de Bragança. Ao contrário de Camões, para quem
D. Constantino era um herói, Ferreira trata o vice-rei com uma certa frieza, dando
ênfase considerável às dificuldades que ia encontrar na Índia (ll.2-15 e 22-36). Há
até uma nota subversiva na maneira como o poeta se esquiva a lisonjear D. Cons-
tantino, dirigindo os seus louvores não a ele, mas à família real e à nobreza por-
tuguesa em geral (ll.74-90 e 95-114).

2 descobrir-te ao mundo: em 1558 D. Constantino só tinha 30 anos.


13 se a tu vencida... ver procuras: a inversão dos pronomes sujeito e comple-
mento é relativamente frequente em Ferreira. Ver também Ci12 l.42, e Cii9 l.66.
23 noda: nódoa.
24 estê: esteja.

606
COMENTÁ RIO

45 buscar a vem: forma rara em PL. Há outro exemplo em Castro, l.1200.


49 Constante: a referência ao nome do vice-rei é óbvia, mas aqui Ferreira
dirige-se, não a ele, mas a todos os que têm "firme ... o generoso peito" (l.47).
58-9 Cair-lhe-á ... do grã nome: a ideia pode parecer extravagante, mas em
1513 D. Jaime, pai de D. Constantino, conseguiu entrar na cidade marroquina de
Arzila "somente com o terror do seu nome, e a fama das suas armas" (Barbosa
Machado, 1736, I, 236). Em 1559, provavelmente após a composição da carta, o
próprio D. Constantino ocupou Damão sem resistência alguma dos habitantes.
Ferreira preferia vitórias sem sangue, ll.l O1-2.
60 em mais fermoso fogo: neste trecho visionário é impossível apurar o sen-
tido exacto da metáfora. Ferreira emprega muitas vezes a imagem do fogo no con-
texto da inspiração poética e parece imaginar aqui uma união idealista de armas e
letras, tal como em CiilO 11.16-60. Na carta presente, volta a uma metáfora seme-
lhante ao falar de "outra luz, que temos" (1.71) que, no contexto, parece ser a luz
da nova poesia classicista praticada pelos "bons ingenhos", os amigos do poeta.
61-2 Quem ... quem: na linguagem de Ferreira, quem não é um pronome
exclusivamente pessoal. Aqui as respostas às perguntas retóricas do poeta são "a
constante virtude", 1.69, e "as obras raras", 1.70.
71 em outra luz, que temos: ver nota a 11.59-60.
77 o grã Conde e o Rei primeiro: o conde D. Henrique e o seu filho,
D. Afonso Henriques.
79-81 um Sancho... Camilo verdadeiro: D. Sancho I e D. Dinis. Afonso é
D. Afonso IV, que venceu os mouros na batalha de Salado, vitória equivalente às
de M. Fúrio Camilo, herói da república romana, contra os gauleses. É de notar
que, mesmo numa poesia dirigida a um vice-rei da Índia, Ferreira não menciona
nenhum herói do ultramar.,
84-5 dous de que tem teu sangue parte tanta ... João e Nuno: D. João I e
Nun' Álvares. O primeiro Duque de Bragança, D. Afonso, filho bastardo de
D. João I, casou-se com a filha de Nun'Álvares. Ferreira insiste no sangue real de
D. Constantino, 11.92 e 127.
94 ao rume: muçulmano egípcio ou turco. frangue: nome pelo qual os por-
tugueses eram conhecidos no Oriente. ·
103-5 Baco... Paulos mil: Ferreira compara os portugueses com os deuses
guerreiros dos romanos (segundo o mito, Baco conquistou a lndia; Rómulo, vito-
rioso contra os sabinos, foi deificado após a sua morte; Marte era deus da guerra)
e depois com militares históricos, os dois Cipiões, heróis das guerras púnicas,
Fábio Máximo, o cunctator ou contemporizador, que também luto·• cr --: •ra .õs car-
tagineses, e os Paulos, família militar aparentada com a r.: fl L. 1 iões e ·a de Fábio
Máximo. Pela escolha das três famílias de militar·:: un.ú)_s·por laços matrimoniais
Ferreira sugere a unidade dos portuguest.,s.

607
COMENTÁRIO

117 à glória ... erra: no século XVI, errar, seguido por a, significava "ofen-
der", como em Cii3 l.84. Mas aqui o sentido é "não acertar, não conseguir".
120 Fabrício e Crasso: Fabrício era o modelo da frugalidade e probidade
romanas; ao contrário, o rico Crasso foi derrotado e morto pelos partos na batalha
de Carrhae (53 A.C.). Ver também Cii9 l.174.
121-2 Dário ... pobre: referência caracteristicamente vaga, talvez à batalha
de Maratona (490 A.C.), em que o exército de Dário, imperador dos persas, foi
vencido pelos gregos.
130 rei minino: em 1558 D. Sebastião tinha 4 anos.

9
A Francisco de Sá de Miranda

Nesta carta bem conhecida Ferreira proclama a sua admiração por Sá de


Miranda como fundador da nova escola poética portuguesa, de gosto clássico e
italianizante, e como homem de vida austera e de altos princíp os morais. Mesmo
assim, a carta sugere "um certo afastamento da visão extremista de Sá de Mi-
randa" (Earle (1990) p. 97). Neste respeito, ver as notas às 11.79-106, 172-74 e 190.

Em 1553 Ferreira e Sá de Miranda tiveram uma correspondência poética,


representada pela elegia de Ferreira "Não chores, mas alegra-te, elegia" (ver Ap.1)
e pela resposta de Sá de Miranda, a elegia "Esta branda Elegia, esta tam vossa"
(ed. de 1885, pp.461-5). Michaelis de Vasconcelos julga que o nosso poeta teria
respondido à elegia do homem que venerava como mestre com a carta presente
(p. 851), opinião seguida por Roig que declara que ela é de 1553 e que Ferreira
exprime, nos primeiros versos, "la crainte de ne pouvoir s 'entretenir avec., lui [Sá
de Miranda], de devoir bientôt quitter Coimbra" ((1970) p. 87). Contudo, não há
na carta nenhuma referência à troca de correspondência de 1553, e tudo indica
que é de uma época posterior, embora antes de Maio de 1558, data da morte de
Sá de Miranda. Portanto, foi escrita antes de Ci 12. A poesia vem acompanhada de
outras que são certamente do período 1558-59 (Cii8 e Ciil 1), e o sentimento de
ansiedade que se exprime no começo da carta faz pensar nas tribulações dos anos
a seguir a 1556/57, quando o poeta deixou Coimbra por Lisboa (ver as notas a
Ci9- l 2). Nas últimas linhas da carta Ferreira imaginou um idílio pastoril partilhado
com a mulher amada, tal como em CilO (a Manuel de Sampaio). O desejo de fugir
(l.198) é também típico das poesias do período lisboeta.

1 impida: impeça.
9 enquanto... pejo: se nada impedir a chegada da carta a um sítio tão distante.

608
COMENTÁRIO

14-15 em bom porto... Musas: no exílio voluntário no Minho, onde Sá de


Miranda compôs a maioria da sua obra.
22 Trazes ... rosto: Castilho e Marques Braga vêem nesta frase uma refe-
rência às conhecidas linhas da Carta a D. João III de Sá de Miranda: "Homem
d'um sô parecer/ D'um sô rosto e d' üa fe, / D'antes quebrar que volver/ Outra
cousa pode ser/ Mas de corte homem não é", (Poesias (1885), p.192, ll.111-15).
31-45 Novo mundo ... Ninfas raras: Ferreira compara as inovações poéticas
de Sá de Miranda à criação de um mundo novo. A capacidade da poesia de trans-
formar o mundo físico é um tema constante da sua obra (cf., por exemplo, Oi 1
l.12, Cil3, ll.25-42 etc.).
46-48 Levantas ... pastores: Marques Braga vê aqui uma alusão às eclogas
mirandinas, mas é provável que Ferreira tenha em mente mais uma vez a Carta a
D. João III, onde Sá de Miranda dá conselhos ao rei sob o disfarce de um humilde
guardacabras (l.381 ).
54 tençoeiro: obstinado. A ideia é que em tudo Sá de Miranda segue a razão
e a moderação.
56 uns espritos: são os poetas do círculo de Ferreira, Andrade Caminha,
Diogo Bernardes, Francisco de Sá de Meneses, etc.
59 téqui: até aqui.
60-63 ao alto cume... cheias: o Monte Pamasso, consagrado às Musas, e a
fonte Castália que, segundo a mitologia, transformava em poetas todos os que
bebiam dela.
66 como... mediste: a inversão dçs pronomes sujeito e complemento é rela-
tivamente frequente em Ferreira. Ver também Ci12 l.42, e Cii8 1.13.
79-106 E fraqueza ... ao fim chegou: Ferreira põe o louvor da vida activa
na boca de um interlocutor imaginário, técnica tipicamente horaciana. Introduziu-
se um travessão antes de 1.79 para assinalar o começo da fala desta personagem.
O interlocutor é taxado de hipócrita e de materialista (l.109 ff.), mas não deixa de
tocar em alguns pontos significativos: a vitória militar e ajusta administração são
empreendimentos dignos, e podem bem ser preferidos aos da vida contemplativa
de Sá de Miranda.
89 Alexandres e Júlios, Cipiões: Alexandre Magno e Júlio César. Distin-
guiram-se na vida pública de Roma vários membros da família dos Cipiões.
91 Aos que: aqueles a quem.
109 Besta de mil cabeças: Horácio tinha usado a mesma frase ao referir-se
ao povo romano, Ep. I, 1 l.76.
111 despondo: depondo.
118-9 Ouro primeiro... virtude: a frase vem da mesma epístola horaciana,
ll.53-4.
128 fex: fezes.

609
COMENTÁRIO

133-38 Onde ... mor dano? as perguntas que Ferreira faz ao seu interlocutor
imaginário dependem das perguntas feitas anteriormente, em 11.130-32. O sentido
é "quem honras dará onde a livre verdade ... se vende?"etc. De cada vez a resposta
é, evidentemente, "ninguém".
143-4 será rei ... mal: os meninos e o jogo são romanos. Ver Horácio Ep.1, 1
11.59-60.
155 um mom(,'nto de hora: Marques Braga encontrou a mesma expressão
em Gil Vicente, Auto pastoril português, (Obras, I, pp.170-71).
157 fora: fora das cidades. Em l.164 ali também se refere à vida no campo.
171 cor:· Castilho e Marques Braga dão a esta palavra o significado de de-
sejo. Porém, o significado normal faz perfeitamente sentido: o povo vão erra sob
a aparência do bem.
172-74 Cipião ... Fábio paciente: Cipião Africanus, o conquistador de Car-
tago, era também um intelectual que passou os últimos anos da vida no campo. O
cônsul Fabrício era o modelo da frugalidade romana (ver também Cii8 l.120), e
Quinto Fábio Máximo, o Cunctator, conseguiu defender Roma dos cartagineses
evitando a glória fácil e optando por uma táctica de defesa paciente. Através da
figura de Cipião Ferreira sugere, possivelmente, uma comparação com Sá de
Miranda mas, se o faz, é para insinuar que o herói romano, ao contrário do poeta
português, conseguiu combinar a vida activa com a contemplativa.
177 a si só somenos: ter uma opinião modesta de si próprio.
190 Marília: ao contrário de Sá de Miranda, que se apresenta nas suas poe-
sias como rigorosamente solitário, apesar de ter sido casado, Ferreira, menos
extremista, queria ter a companhia da mulher amada.

10

A D. Simão da Silveira

D. Simão da Silveira, segundo filho de D. Luís da Silveira, primeiro conde


de Sortelha (ver ll.140-4), é conhecido como poeta e homem galante (Askins
(1965) p.20). Foi autor de um poema incluído em PL, Sii12, em que tenta conso-
lar Ferreira da morte da primeira mulher. A carta pode pertencer ao mesmo período
que o soneto (1557-59), se a 1.12 se refere à dor sentida pelo jovem viúvo. No
Livro II das cartas CiilO vem antes da epístola ao conde de Redondo, que é de 1559,
facto que tende a confirmar a nossa hipótese.

Ao escrever ao amigo, Ferreira retoma os temas das outras cartas sobre


assuntos literários: a superioridade da inteligência à força, a necessidade de come-

610
COMENTÁRIO

morar na língua nacional os feitos dos portugueses, a origem da boa literatura na


tradição greco-romana e a renovação desta tradição em Portugal. Dá uma ênfase
considerável ao seu ódio à guerra, e aflora na poesia aquela aspiração a uma união
idealista de armas e letras que se nota em duas outras poesias, da mesma época,
que foram enviadas a militares, Cii7 e 8. Ferreira visionava não só a composição
de uma epopeia mas uma existência superior, governada pela razão, em que a vio-
lência não teria papel (ll.46-54). Mas a grande originalidade da carta, uma das
mais ricas em ideais de toda a série, é que nela, pela única vez em toda a sua obra,
o nosso poeta fala sobre a técnica da poesia, nomeadamente, a rima (ll.83-99).
Ferreira sabia que a rima não fazia parte da métrica antiga, tendo sido uma in-
venção da Idade Média. Como humanista que era, tinha-se ensaiado a compor, em
alguns dos coros de Castro, os versos sáficos dos romanos (ll.815-50, 1120-51,
1565-1602), mas na parte lírica de PL utiliza quase sempre versos rimados (a
única excepção é o verso solto de Ci 1 e Oi2). E notável a correspondência das
opiniões de Ferreira acerca da rima, que aceitava como um mal necessário (ver
ll.9 l-9), com as do humanista espanhol Antonio de Nebrija, publicadas pela
primeira vez na sua Gramática de La Lengua castellana de 1492 (ver ed. de 1980,
pp. 146-7).

2-3 em quem Marte ... tome: é evidente que Ferreira considerava que
D. Simão era soldado, mas isto não consta das informações biográficas reunidas
por Askins nem por Caetano de Sousa (Hist. Gen., XII, i, p.223).
4-6 as vitoriosas... melhor parte: a sintaxe da frase é extremamente elíptica,
devido ou a um erro de impressão ou a falta de revisão da parte do autor. Castilho
disse deste trecho, "n'esse imbroglio pouco percebemos". Podemos parafrasear
assim: pondo a um lado (a de parte) as vitórias que ganhaste, espargido (espar-
zido) do teu sangue e com um espírito e uma intenção santos.
1O nas ... Musas: na presença das Musas.
l l se despeja: perde a vergonha.
16-18 pois arde ... claridade: Ferreira utiliza a imagística do fogo e da luz,
que continua em ll.25-7, para exprimir a sua admiração pela nova literatura clás-
sica e italiana (ver Ci 13 ll.43-5).
29 aceiro: aço.
32 piadade: assim aqui e em Cii2 l. l 11, mas a forma normal em Ferreira é
piedade.
35 humanidade: o poeta joga com os dois sentidos da palavra, a natureza
humana e o estudo das letras humanas, i.e., das letras gregas e latinas.
37 Minerva: deusa da sabedoria e, às vezes, da guerra. Não consta, porém,
que ela tenha sido a amante de Marte.
41-2 entanto ... bandeiras: mais uma vez, a ideia da vitória sem sangue que

611
COMENTÁRIO

o soldado virtuoso e instruído ganhará. Para outros exemplos, ver Cii8 11.58-9 e
!01-2.
44-5 ao pio ... companheiraf: tanto o troiano Eneias como o grego Aquiles
eram filhos de deusas, respectivamente Vénus e Tétis.
47 Ociosa: inútil, mas o substantivo ócio tinha para Ferreira uma conotação
positiva, o repouso de espírito necessário para a criação literária.
51 Hidra: monstro de muitas cabeças. Quando se cortava uma, nasciam
duas no mesmo lugar, mas Hércules, ajudado por um servo, conseguiu cauterizar
as feridas que fez na fera e matou-a deste modo.
55-60 Inda ... emparo: a admiração de Ferreira por D. Dinis, poeta e fun-
dador da universidade, testemunha-se também em Cii8 1.79, em Epit2, em Castro
11.224-7 e em Sii.33-4 que compôs, segundo o filho Miguel Leite Ferreira, no que
julgava ser o português da época do rei. emparo: amparo.
64-9 Quem ... peregrino: Ferreira fala também das relações entre Roma e a
Grécia em Cil0 ll.58-66. Quem não é necessariamente um pronome pessoal em
Ferreira. Aqui refere-se a arte e uso e também a ingenho (11.67-8)._Não é fácil
compreender a ligação entre os substantivos abstractos arte e uso, por um lado, e
ingenho, por outro, que neste contexto se refere a um ser humano, o poeta que é
"inflamado em novo fogo". Talvez se trate de um erro da parte dos tipógrafos de
PL, que teriam posto hum sô diuino/lngenho em vez de c'um sô. Assim, o sen-
tido de I .67-8 seria parecido ao de 11.115-21, onde Ferreira volta a explicar que
um indivíduo de génio, tal como Homero, juntamente com um ambiente de cul-
tura, ou uso, são necessários para o aperfeiçoamento de uma língua.
70-5 Os pastores... humanas: a crença segundo a qual a literatura pastoril
teve a sua origem num ritual religioso vem provavelmente de Sérvio, ln Vergilii
carmina commentarii, vol. III (i) p.1 .
85 trova: Ferreira, bom conhecedor da língua medieval, sabia que trova
deriva de trobar, palavra provençal que significava "achar", além de "compor
versos".
86 consoante: rima (ver supra).
87 téqui: até aqui.
90 arço: ardo.
102 Lasso e Boscão: Garcilaso de la Vega e Juan Boscán, que introduziram
os metros italianos na poesia castelhana.
106 Mântua e Esmirna: cidades onde nasceram respectivamente Virgílio e
Homero.
116 Ferrara ou Florença: cidades associadas com Ariosto, Petrarca e Dante.
120 só... diferença: é o "bom esprito", por exemplo, Homero (1.12 l ), que me-
lhora a produção literária feita numa determinada língua, aqui, a grega. Quando
tais indivíduos faltam, a literatura entra em declínio (11.122-3).

612
COMENTÁRIO

126 as Camenas: as Musas .


140- 1 o glorioso ... conde: D. Luís da Silveira, l. º Conde de Sortelha, pai de
D. Simão. Era conhecido como poeta, com várias composições no Cancioneiro
Geral. Serviu em África entre 1508 e 1513, tendo combatido na tomada de Aza-
mor (Hist. Gen. XII (i) p.223).
147 Siracusas: o poeta bucólico Teócrito nasceu nesta cidade de Sicília.

11

Ao conde de Redondo, D. Francisco Coutinho, regedor

D. Francisco Coutinho prestou homenagem como regedor ou presidente da


Casa da Suplicação, o mais alto tribunal de justiça do reino, em 12 de Janeiro de
1559 (Azevedo Cruz, I, p. 136). A poesia deve ter sido escrita à volta dessa data.
Enquanto exercia as suas funções, o regedor era considerado identificável ao rei
(Azevedo Cruz, I, p. 131 ), o que explica o tom altamente moral da carta e o seu
louvor da virtude. Em 1561 D. Francisco foi para Goa como vice-rei, onde mor-
reu em 1564. Na carta Ferreira dá grande ênfase ao que parece ser um episódio da
carreira militar de D. Francisco, quando era capitão da praça marroquina de Arzila
(1546-49). Competia ao conde, cujo pai e avô também tinham sido capitães da
mesma cidade africana (ver a Carta, l.8 e Epitl0), cumprir as ordens de D. João
III de abandonar o lugar, acção que provocou ·muitos protestos em Portugal
(David Lopes (1925), pp. 428-9). Existe até uma carta de D. Francisco, dirigida a
D. Sebastião, em que o conde faz a apologia da política portuguesa expansionista
em Marrocos (publicada em Bernardo Rodrigues, II, pp.474-6) e há outras indi-
cações, nos Ditos portugueses ... , no. 236, de quanto lhe desagradava a necessi-
dade de abandonar Arzila. Ferreira parece aludir ao triste acontecimento, embora
muito discretamente, quando fala ao conde do uso da razão na guerra, da neces-
sidade de fugir ao erro e da loucura de perder a vida inutilmente, 11.19-45. Os
topai humanísticos aplicam-se aqui a uma situação militar bem concreta e bem
viva na memória das pessoas, já que a carta de D. Francisco a D. Sebastião deve
datar do período 1557-61 (Ricard, Études, pp.372-3). A carta de Ferreira que se
segue a esta, Ciil2, também foi dirigida a um indivíduo cuja família tinha ligações
estreitas com Arzila.

Precisamente ao meio da carta ao Conde de Redondo (1.51) a sua temática


muda para o louvor da virtude e da verdade, qualidades em que todos os homens
verdadeiramente bons podem participar, seja qual for a sua orientação política
(1 .103). Esta afirmação e outras parecidas (ver em especial ll.89-90) são de uma

613
COMENTÁRIO

tolerância inusitada na literatura portuguesa quinhentista. Há um estudo da poesia


em Earle (1996) .

4-5 de infiéis ... recolheste: a bandeira é do conde, que ganhou muitas vitó-
rias sobre os infiéis.
36 arreceoso: receoso.
37 àquele fermoso fim: a bem-aventurança.
40-2 Manda ... empece: o sujeito de obedece e de conserva é o homem bom
descrito em 11.37-9. donde: de situações em que.
49-51 Mas ... deixam memória: possível alusão a Bernardo Rodrigues, que
começou a compor os seus Anais de Arzila à volta de 1560 (ver a ed. de David Lo-
pes, I, p.xi). A obra está inacabada e não descreve os feitos do conde D. Francisco.
52-4 Aquela ... figura: no espírito do poeta os conceitos de formosura , de
glória e de virtude são quase idênticos. À virtude é também associado o "bem
fazer", 1.62. Em 1.54 é necessário entender "se mostra e se dá". O significado da
frase é que só a virtude se reveste de beleza e glória.
58-9 alifante ... lião: elefante ... leão.

12

A Vasco da Silveira

Vasco da Silveira era filho de António da Silveira, capitão de Arzila. Seguiu


a carreira militar e em Alcácer-Quibir combateu heroicamente como coronel. Foi
também membro da casa do senhor D. Duarte e amigo de Andrade Caminha, com
quem trocava poesias (ver Priebsch, pp. 308-10 e 537). Apesar de ter tido um
apelido idêntico ao de D. Simão da Silveira de Cii l O e Sii 12-13, não tinha rela-
ções de parentesco com ele.

A carta é notável pelas muitas palavras que nela aparecem pela única vez na
obra poética de Ferreira. Estas palavras são: roim, senador, quimera, entremês,
texto, tercetas, reto, aranha, estâmago, influências, inferior. O vocábulo senador
dá-nos uma indicação acerca da data da poesia, já que no Dictionarium latim-por-
tuguês de Jerónimo Cardoso o termo latim, senator, é dado como equivalente do
português desembargador (fol.44r). Ora, o nosso poeta foi promovido a desem-
bargador da Casa do Cível em 14 de Outubro de 1567 e, na carta, diz de si próprio
que é "senador grave chamado" (1.3). Ajustiça tem um papel importante na temá-
tica da carta, o que também sugere que Ferreira pensava nas responsabilidades da
sua nova posição.

614
COMENTÁRIO

O começo da carta faz melhor sentido se for lida como diálogo. A técnica
vem de Horácio, que a emprega frequentemente nas Sátiras, Livro II. O poeta é o
primeiro a falar. Repete as palavras dos seus detractores e faz uma pergunta a
Silveira. Podíamos ler li. 10-15 como a resposta do amigo, da qual a metáfora
militar se coaduna com a sua carreira como soldado. Depois Ferreira responde por
sua vez, 1.16, sendo o resto da carta um monólogo do poeta.

1 letrado: jurista (ver Cii2 1.104).


4 entremês: comédia.
5 texto: documento legal. Vieira define a forma plural como "as colecções
de direito romano ou canônico".
7 reto: repto, desafio.
9 me someto: me submeto.
20 Maro: Virgílio.
24 cores: "dar cores" significa "pintar o homem como na verdade é".
28 soverte: subverte.
34-63 Esta alma ... tanto dano: neste trecho, tal como em Cii5, Ferreira ma-
nifesta o seu espanto perante a "malícia" e "dano" (l.63) da sociedade moderna,
apesar de esta ter recebido a revelação cristã.
37-40 inspirara ... alumiara ... fora : tivesse inspirado ... alumiaria ... seria.
43-8 Nós ... se mude: referência à queda do homem e à redenção. a luz na-
tural: a inteligência do homem destituída da revelação cristã.
49-50 fez ... artes: a prova da verdade do cristianismo é o aumento da capa-
cidade intelectual do homem. Ferreira fala aqui com um certo desprezo dos gregos
e romanos, a quem só atribui "natural ingenho e rudes artes". Pensa provavelmente
não nas suas obras artísticas mas nas suas especulações religiosas, que ele costuma
qualificar de "cegas" (ver Ci 11 ll.121-6). A única excepção a esta regra encontra-se
em Cii5, a António de Sá de Meneses, grande senhor e humanista convicto.
55-60 Pois ... profuso: a época greco-romana. O tirano de 1.59 é talvez um
dos Dionísios de Siracusa, que tiveram Platão como amigo e conselheiro. Ferreira
menciona Dionísio II em Ci4, 11.70-2.
64-6 Como ... empece: nestes versos o poeta volta à temática do princípio da
carta e responde às críticas que lhe tinham sido feitas. Segundo ele, é perfeita-
mente possível saber duas artes, isto é, a arte da poesia e a da jurisprudência.
76-8 Não... governado: trecho importante para a teorização de Ferreira
acerca da fortuna. Nega o poder determinante do fado, e põe as suas esperanças
no céu (1.85), mas, mesmo assim, parece que este mundo não escapa às influên-
cias, forças com poder de alterar a vida de um indivíduo. A ambiguidade do pen-
samento do poeta é tal que ele não sabe se as dificuldades de que se queixa vêm
da maldade dos homens ou dalguma outra causa.

615
COMENTÁRIO

13
A Francisco de Sá de Meneses

Esta poesia é a última dos dois livros de cartas. No começo e no fim do


primeiro livro, e no começo do segundo, Ferreira tinha colocado uma poesia diri-
gida a um membro da família real. Francisco de Sá de Meneses era uma figura de
peso, mas não era nem rei nem filho de rei . Porque é que Ferreira queria acabar
com uma carta ao cortesão e poeta? É possível que a razão seja meramente cro-
nológica: a carta a Sá de Meneses pode ser, muito simplesmente, a última que
compôs. Se assim for, foi escrita depois de Outubro de 1567, data de Cii 12. Nos
primeiros meses de 1568 Sá de Meneses, diplomata de muita experiência, tinha
uma missão delicada a cumprir na corte espanhola. A família real portuguesa tinha
ficado profundamente perturbada pela notícia da prisão de D. Carlos, herdeiro do
trono espanhol e com estreitas ligações de parentesco ao de Portugal. Portanto, Sá
de Meneses tinha ido a Madrid, como embaixador da rainha D. Catarina, encarre-
gado de averiguar as razões do inesperado acontecimento (Azevedo Cruz, II, p. 236
e Gachard, p.332). A actuação violenta de Filipe II, que prendeu o filho com as
suas próprias mãos, alarmou a Europa inteira e podia ter provocado a composição
da carta, meditação sombria acerca da falta de justiça, de que os próprios reis não
são isentos (ver 11.70-5). Mas, como em Oii3, também dedicada a Sá de Meneses,
Ferreira esquivou-se de dizer explicitamente o que o levou a escrever a poesia,
que exprime a frustração de quem se via obrigado a manter uma estrita discrição
(11. 82-8). O último verso da epístola é perfeitamente adequado como ponto final
de uma série de poesias em que tantas vezes Ferreira se queixa da dificuldade de
ser escritor. Em PL o verso é seguido pela expressiva palavra FIM.

1-3 Sofrera-se ... ouvia: é provável que a elegia seja a poesia em espanhol
"Buelve Philis hermosa a este llano" editada por Askins (1979) pp.73-5. Vertam-
bém o comentário de Askins, pp.243-4. O ataque à poesia amorosa indica que o
interesse de Ferreira por esse género literário tinha acabado já há muito tempo.
Sofrera-se: teria sido preferível.
14 diligência: palavra cuja significação, como a de diligente, varia segundo
o contexto. Aqui opõe-se a razão e, portanto, deve ser entendida negativamente,
equivalente a gula, ambição de dinheiro, etc. Para um exemplo do uso negativo
de diligente, ver Cii2 1.64.
15 Mercúrio: aqui, o deus do comércio, das feiras e dos ladrões.
21 quem: na linguagem de Ferreira, quem não é necessariamente um pro-
nome pessoal. Aqui refere-se a injustiça.
25 Magno ... Augusto: os indivíduos referidos são, provavelmente, Alexan-
dre Magno e os imperadores romanos Antonino Pio e Augusto.

616
COMENTÁRIO

28-39 Cada um ... espantos: Ferreira também afirmou a sua fé na verdade


da reputação póstuma dos reis numa poesia que data do princípio da sua carreira,
Cil 11.93- 114. A origem da ideia encontra-se em Horácio Ep.11,1, 11.5-17.
54 sogigue: subjugue.
81 não sabe ... avença: que não sabe fazer uma acomodação com o tempo.

LIVRO DOS EPITÁFIOS

Com os epitáfios Ferreira põe fim à parte não-dramática de PL. A posição


do livro dos epitáfios está em conformidade com a estrutura das partes constituin-
tes de PL e da colecção como um todo, em que as poesias de natureza religiosa
vêm sempre em último lugar. Em Portugal sempre houve poesia fúnebre, mas os
epitáfios de Ferreira não deixam de constituir mais uma novidade na história da
literatura portuguesa, porque nenhum poeta antes dele tinha comemorado persona-
gens históricas, falecidas em época muito remota. Ferreira inspirou-se, provavel-
mente, nos epitáfios de Ausónio, De XII Caesaribus per Suetonium Tranquillum
scriptis (na realidade dirigidos aos primeiros 24 Césares) ou os Epitaphia heroum
qui bello troiano interfuerunt. Ferreira não imitou a forma muito complexa das
poesias fúnebres de Ausónio, mas, mesmo assim, não falta ao Livro dos Epitáfios
uma estrutura bem planeada, parecida com a de Sii 14-44. Com efeito, Epitl-9
tratam, por ordem cronológica, de reis e príncipes portugueses. Seguem-se-lhes
mais dois epitáfios históricos, também ordenados cronologicamente, dedicados ao
Conde de Borba e a Afonso de Albuquerque, vindo depois as poesias escritas para
comemorar pessoas conhecidas de Ferreira. Em primeiro lugar está o alto senhor
D. António de Sá de Meneses e no último Maria Pimentel, primeira mulher do
poeta. Na belíssima poesia com que a série acaba Ferreira compara Maria, impli-
citamente, com o Cristo ressurecto.

Há várias indicações, referidas nas notas, que sugerem que Ferreira escreveu
alguns epitáfios históricos (nos. 6, 7 e 8) enquanto estudava em Coimbra, portanto,
na primeira fase da sua carreira como escritor.

A el-Rei D. Afonso Anrique

Ferreira ocupou-se muito de D. Afonso Henriques. Para uma lista de referên-


cias ver as notas a Oi8.
1 Anrique: o Conde D. Henrique.

617
COMENTÁRIO

2 entre ... alçado: Ferreira emprega as mesmas palavras ao falar do rei em


Castro 11.37-8.
6 por mor que: por maior coisa que.

A el-Rei D. Dinis

Ver outras referências a D. Dinis, a quem Ferreira admirava muito, nas notas
a Cii 1O 11.55-60 e à Castro 11.224-7.

2 cetro ... arado: com estes substantivos Ferreira resume certos aspectos da
carreira de D. Dinis. Ele é bem conhecido como rei (cetro), e poeta (livro). picão:
Rui de Pina ( 1945) pp. 322-3, faz uma lista dos muitos castelos que D. Dinis man-
dou construir ou reparar. espada: guerra com Castela ( 1295-97). arado: segundo
Rui de Pina, (1945) p. 162, o rei "defendeu e favoreceu muito os lavradores a que
chamou nervos da terra".
3 paz de reis: ver as notas à Castro 11.224-7.
7-8 regeu ... leu: com grande virtuosismo poético, Ferreira transforma os
substantivos de 1.2 em verbos. honrou as Musas: provavelmente uma referência
à fundação da Universidade.

3
A el-Rei D. João I

Ferreira refere-se a D. João I em Cii8 11.85-90, mas não tinha por ele a admi-
ração que sentia pelo pacífico rei D. Dinis.

1-2 Soberba ... história: será possível ler estes versos em sentido literal, por-
que no magnífico túmulo de D. João I, na Batalha, se lavrou, em pedra, um longo
epitáfio do rei, que foi transcrito pelo Cardeal Saraiva (1872) pp. 332-7.
6 estes reinos ganhou: na batalha de Aljubarrota ( 1385).
8 pranto ... dos africanos: na tomada de Ceuta (1415).

4
Ao !Jante D. Pedro, regente

O infante D. Pedro foi a única figura pública a quem Ferreira dedicou dois
epitáfios. Durante as regências da rainha D. Catarina e do cardeal D. Henrique era

618
COMENTÁRIO

natural lembrar-se de D. Pedro, que tinha sido regente na menoridade de D.


Afonso V. Ferreira via na morte de D. Pedro, ocorrida na batalha de Alfarrobeira
(1449), uma injustiça flagrante, opinião partilhada por outros quinhentistas (ver
por ex . Sá de Miranda ( 1885) pp. 195-6). Ferreira tinha razões particulares para
admirar D. Pedro. O infante tinha sido Duque de Coimbra e por isso estava asso-
ciado à cidade que o poeta tanto amava. Além disso, o bisneto de D. Pedro, D.
Jorge, também Duque de Coimbra, era pai de D. João, Duque de Aveiro, com cuja
família o poeta estava ligado. Ser associado com a casa de Aveiro implicava ser
hostil à casa rival de Bragança, e Ferreira não deixa de mencionar a vingança
tomada por D. João II contra o Duque D. Fernando (Epit5 1.6).

2 sogro: a filha do infante, D. Isabel, era mulher de D. Afonso V.


5 em morte prisioneiro: foi só três dias depois da batalha que D. Pedro foi
enterrado, na igreja de Alverca, segundo Rui de Pina, Chronica de el-rei D. Affonso
V, vol. 2, p.11 O. Pouco tempo depois, a irmã do infante, a Duquesa de Borgonha,
anunciou o seu desejo de dar ao irmão um enterro mais digno. Receando um possí-
vel roubo dos ossos de D. Pedro, D. Afonso mandou guardá-los, depois de terem sido
exumados, no castelo de Abrantes, donde só foram levados para a Batalha em 1455
(Duarte Nunes de Leão, Crónica e vida del rey D. Affonso o V, pp. 854-5).

5
Ao mesmo

4 por lágrimas de tantos: Duarte Nunes de Leão, pp. 854-5, explica como
D. Pedro, grande viajante, era bem conhecido fora de Portugal. Entre os admi-
radores que lamentaram a morte do infante e o enterro humilde incluíram-se não
só a filha, rainha de Portugal, mas também o Duque e a Duquesa de Borgonha e
o Papa, Pio II.
5 em prisão dura: ver Epit4 1.5.
6 meu neto e vingador: D. João II, neto do infante, nasceu em 1455, ano em
que os ossos de D. Pedro, a instâncias da rainha, foram levados de Abrantes a Lis-
boa e depois enterrados com toda a solenidade na Batalha (Rui de Pina, D. Affonso V,
vol. 2, pp.137-40). Durante o reinado de D. João II, em 1483, o Duque de Bragança,
cujo avô tinha sido um dos inimigos principais de D. Pedro, foi acusado de traição
e degolado em Évora. Rui de Pina considera a morte do duque uma espécie de vin-
gança (pp.109-10).
7 se quebraram sangue e leis: em Alfarrobeira estavam contra o infante os
irmãos e o sobrinho. Segundo a perspectiva de muitos escritores quinhentistas,
D. Pedro era inocente de qualquer crime.

619
COMENTÁRIO

8 pai de reis: de Pedro, rei de Aragão e condestável de Portugal, de João, rei


de Chipre e de Isabel, rainha de Portugal, mulher de D. Afonso V (Marques Braga).

6
A el-Rei D. João II

Tal como Epit.4-5, Epit.6-7 formam par (ver as notas a Epit7). Em Arqui-
gâmia, 1.445, há uma frase muito parecida com 1.3 do epitáfio, o que sugere que
ambas as poesias datam da mesma época, 1552.

l corpo santo ... santo: apesar dos muitos actos de violência praticados por
D. João II, o rei era considerado santo, principalmente porque o seu corpo não
apresentou sinais de decomposição quando, em 1499, foi exumado e transferido
para a Batalha. Ver "A trasladação do corpo dei-rei D. João II", em O livro das
obras de Garcia de Resende, obra editada pela primeira vez em 1545.

7
A el-Rei D. Manuel

Na sua discussão de Epit6 e 7, Jorge Borges de Macedo nota que "la


cour. .. restait partagée entre partisans et adversaires de l'un -ou l'autre des rois",
p.129. Era natural que Ferreira tivesse preferido D. João II, com quem a Casa de
Aveiro teve a sua origem. D. Manuel gozou da "sorte estranha" que foi negada ao
seu predecessor pela sua morte prematura.

3 príncipe... de Espanha: por morte do príncipe D. Juan, filho dos Reis


Católicos, as Cortes de Toledo (1498) reconheceram D. Manuel e a sua primeira
mulher, D. Isabel de Castela, como herdeiros da coroa de Espanha.
4 ambas casas do sol: o Ocidente e o Oriente. A mesma frase, desta vez
aplicada a D. João III, em Cil 1.1 , de 1554.
5-6 Aqui ... famoso: o mosteiro de Belém.

Ao príncipe D. João

O príncipe D. João morreu em 2 de .laneiro de 1554, com a idade de 16 anos


apenas. Tinha casado com D. Joana, filha do imperador Carlos V, em Dezembro

620
COMENTÁRIO

de 1552. A sua morte foi considerada um desastre nacional, a que Ferreira se refe-
riu várias vezes, em Ci l, Ecl2 e 7, E! I, etc.

3 a que ... mande: Ferreira tinha uma grande admiração pelo imperador. Ver
Oi2, 11.32-3 e o Epitalâmio, 11.113-8.
7 cobre ... cortado: para compreender a sintaxe de 11.l-7 é necessário ler I. 7
como se fosse 1. l. "Esta pedra" é o sujeito de "cobre", e "moço em flor cortado"
é o complemento directo.
8 podera dar: poderia ter dado.

A el-Rei D. João li/

D. João III morreu em 11 de Junho de 1557. Ferreira tinha pelo rei uma
admiração quase sem limites (ver Cil, Ci2 etc).

3-4 enquanto ... gente: a crítica das guerras entre cristãos, nas quais, durante
o reinado de D. João III, os portugueses nunca tomaram parte, é uma constante na
poesia de Ferreira.
7-8 pai ... letras: foi durante o mesmo reinado que a Universidade sereno-
vou em Coimbra.

10

A D. Vasco Coutinho, Conde de Borba

D. Vasco era avô de D. Francisco Coutinho, o destinatário de Ciill, e tio de


João Roiz de Sá de Meneses ( ver Ci6 e Azevedo Cruz I, p.130). Como o filho e
o neto, foi capitão de Arzila, tendo lá exercido as funções , com interrupções, entre
1490 e 1513. Morreu em 1522. É possível que o epitáfio ao conde tenha a mesma
data que a carta ao neto (Janeiro de 1559). Ferreira diz, 11.5-6, que o conde não
tinha a fama que merecia, o que nos dá mais uma indicação da data da pequena
poesia, já que Bernardo Rodrigues, que fala largamente de D. Vasco nos seus
Anais de Arzila, só começou a trabalhar em 1560 (ver ed. de David Lopes, I, p.xi).

6 nem ao serviço... terra: em 1514 D. Manuel deu ao conde uma tença de


200.000 reais por ano, que parece uma recompensa razoável dos seus serviços. O

621
COMENTÁRIO

poeta pode referir-se a um outro episódio curioso da vida de D . Vasco. Foi criado
Conde de Borba por D. João II, mas mais tarde D. Manuel tirou-lhe o título, por
ter dado a vila de Borba a D. Jaime, Duque de Bragança. Em 1500 D. Vasco foi
criado Conde de Redondo, título que o filho e o neto herdaram, mas até ao fim da
vida ele foi conhecido normalmente como Conde de Borba (David Lopes ( 1925)
pp.120-1 ). O tratamento inconsistente que o rei lhe deu pode ter criado ressenti-
mentos.
7 Leal contra seu sangue: em 1484 D. Vasco denunciou o irmão, D. Gu-
terre, por ter tomado parte na conspiração do Duque de Viseu contra D. João II
(Rui de Pina, D. João II, pp. 57-9). Como o poeta, a família dos Coutinho foi par-
tidária da Casa de Aveiro (ver Azevedo Cruz, I, 269n.), a qual teve origem em
D. Jorge, filho ilegítimo de D. João II.

11

Ao grande Afonso d'Alboquerque

Para Albuquerque, ver as notas à EI6. É possível que o epitáfio tenha a


mesma data que a elegia (Janeiro de 1557).

7 tão casto: Albuquerque nunca se casou, mas teve um filho ilegítimo que
foi autor dos Comentários que Ferreira louva na Elegia.

12

A António de Sá de Meneses

António de Sá de Meneses, grande amigo do poeta, morreu em 19 de Março


de 1566. O epitáfio, como três outros, 2, 11 e 18, tem a forma de um diálogo.
Normalmente, quem faz as perguntas em tais diálogos é um caminhante, enquanto
que o outro interlocutor não se identifica. Aqui, porém, são as figuras personifi-
cadas da ciência, da honra e da bondade que respondem. Há uma análise do epitá-
fio em Silva Terra, pp. 40-1.

5 o Douro e sua cidade: o Porto, onde vivia Sá de Meneses.


7 o pai ... o irmão: João Rodrigues de Sá de Meneses, pai de António, mor-
reu em 1579. O irmão, Francisco, morreu em 1582.

622
COMENTÁRIO

13

A João Caminha, e D. Filipa de Sousa, sua molher,


ambos mortos e enterrados num dia

Pais do poeta Pero de Andrade Caminha, faleceram entre 1553 e 1556 (Vas-
concelos (1982) pp.59-60). Ferreira menciona o facto de eles terem morrido no
mesmo dia também em EIS 11.88-90. Outras poesias dedicadas a membros da
família de Andrade Caminha são Epit17, Epigl e Oii 2 e 4.

14

A Diogo de Betancor

Para Betancor, e a data da sua morte (à volta de 1558), ver as notas à Ci 11.
O epitáfio faz lembrar a sestina de Castro (li. 1526-64), em que Ferreira joga tam-
bém com os dois sentidos de vida (vida temporal e vida eterna) e de morte (morte
física e morte moral).

3-4 Antes... antes: na realidade.

15

A D. Ângela de Noronha

Ver Sii22.

16

À mesma

Ver Sii22.

17

A D. Ana de Toar

D. Ana de Toar, ou de Tovar (Vasconcelos ( 1982) p.65) era irmã do poeta


Pero de Andrade Caminha e fez-se freira. É possível que D. Ana seja também o

623
COMENTÁRIO

objecto de Sii23. Morreu em data desconhecida, mas depois dos pais (ver 1.6 e
Epitl3). Ferreira dedicou Epigl a uma outra irmã do poeta e Oii2 e 4 aos irmãos
Gaspar (provavelmente) e Afonso Vaz.

2 no ponto ... desatou: a vontade foi o ponto que a alma desatou, o que signi-
fica que D. Ana optou por uma vida santa, em que a vontade não tinha parte. A ima-
gem da costura continua 11.3-4.

18

A Maria Pimentel

O epitáfio forma par com o que se lhe segue. Para Maria Pimentel, ver EIS.

2 dele saudosa: a alma de Maria sente saudades do corpo. Em toda a poe-


sia fúnebre de natureza pessoal, Ferreira tentou equilibrar a noção da perda física
com a do ganho espiritual. Em Epitl8 o poeta exprime a dor da mulher, ao deixar
a vida, e o seu próprio sofrimento, ao contemplar os restos mortais da amada, mas
na poesia seguinte compraz-se em pensar no destino da alma de Maria Pimentel.
8 em vão ... resiste: tenta em vão esquivar-se ao veredicto do destino.

19

À mesma

Nesta bela poesia, a última do Livro dos Epitáfios e de toda a parte não-
-dramática de PL, Ferreira cria uma situação altamente emocionante, que faz lem-
brar a visita de Sta. Maria Madalena ao túmulo de Cristo e o seu encontro com o
Senhor ressurecto. Tratou o mesmo episódio da história bíblica em El9. Com efeito,
o "Que choras?" de 1.1 é uma tradução da pergunta repetida do anjo e de Jesus a
Madalena enquanto ela estava fora do sepulcro (Mulier quid pioras? S. João 20.13
e 15) e, além disso, em 1.3, a instrução "Revolve a pedra" retoma as palavras que
o próprio poeta atribui à santa na narrativa incluída na elegia, 11.49-50. Assim ele
teria tentado suavizar a sua dor depois da morte da esposa, comparando Maria
Pimentel, implicitamente, ao próprio Cristo ressuscitado. O poeta não continua a
comparação até ao final da poesia, pois 11.5-8 indicam que o corpo de Maria ainda
fica na sepultura, mas diz o suficiente para convencer o leitor da natureza quase
religiosa dos seus sentimentos para com a mulher.

624
COMENTÁRIO

CASTRO

A tragédia Castro é de longe a obra mais conhecida e mais apreciada de


Ferreira. Suscitou uma literatura crítica extensa, de que há uma bibliografia na
edição de Castro Soares, pp. 163-70. Há uma discussão dos problemas textuais
relativos à tragédia, de que há duas edições quinhentistas, na Introdução, pp. 37-42.
Dá-se aqui a abreviatura de BLib à versão da peça que veio à luz em 1587.

Não se sabe exactamente quando é que Ferreira escreveu a primeira versão


da tragédia nem quando a reviu. Porém, a afirmação de Jorge de Sena de que Cas-
tro pertence ao período universitário do poeta parece indiscutível (p. 435). A acção
da peça passa-se em Coimbra, o coro é composto de jovens da cidade e, segundo
o frontispício de BLib, foi lá que a obra de Ferreira foi levada ao palco. Segundo
Roig (1970, p.102), Castro é do período 1553-56, tendo sido composta depois da
comédia Bristo, a que o mesmo crítico atribui a data de 1552 (ed. de Roig, pp. 18-19).
É útil tentar estabelecer a data de Bristo porque Ferreira nos informa na dedi-
catória ao príncipe D. João que foi a sua "primeyra cousa". A sua primeira poe-
sia importante com data estabelecida é Arquigâmia, écloga com que celebrou o
casamento dos príncipes D. João e D. Joana em Dezembro de 1552. (Há várias
poesias menores (Oi2, Siil4) que se reportam ao mesmo acontecimento). Portanto,
Bristo é de antes de Dezembro de 1552, mas não se sabe quanto antes. Talvez seja
de 1551, o que toma incerto 1553 como terminus a quo de Castro. Contudo, em
1552/53, ao compor Arquigâmia, o poeta pelo menos pensava no enredo da tragé-
dia (ver 11. 75-7). Em 1977 Castro Soares apresentou uma argumentação diferente,
ao relacionar Castro com Johannes Princeps, tragédia novilatina de Diogo de Teive
que é certamente de 1554, embora só editada em 1558. Sabe-se que Ferreira tinha
uma grande admiração por Teive (ver Écl5 e Cii4) e que as duas peças, ambas
baseadas no modelo senequiano, se reportam a um assunto nacional e histórico.
Além disso, existia um tipo de simbiose entre a literatura novilatina e a literatura em
português, como evidencia Écl2, Jânio (também de 1554), poesia que tem muitos
paralelismos com a écloga latina Janius. É também muito possível que o período
de incerteza pela qual o reino passou depois da morte do príncipe D. João tenha
estimulado Ferreira a compor uma tragédia em que se meditam as dificuldades de
se ser rei. Mas não se pode dizer com certeza absoluta que a primeira versão de
Castro seja de 1554 nem que seja uma imitação de Johannes Princeps . Como a
própria Castro Soares admite, "algumas afinidades existentes entre as duas peças
serão antes resultado da mentalidade clássica ... que ambos possuíam" (p. 132) e é
verdade que quase todas as semelhanças linguísticas apontadas pela autora deri-
vam de fontes comuns (ver pp. 100-27 e as notas à tragédia de Teive, pp. 257-318).
Os versos soltos de Castro dão-nos mais uma indicação da data da sua composi-

625
COM EN TÁRIO

ção, porque na parte não-dramática de PL Ferreira só empregava versos sem rima


em Oi2, de 1552/53, e Ci 1, de 1554. Mas esta indicação, como todas as outras, não
pode ser considerada concludente, porque os tragediógrafos italianos que Ferreira
conheceu utilizavam versi seio/ti nas suas peças, e ele podia tê-los imitado nisto.

Disto tudo se pode concluir, com alguma probabilidade, que a primeira ver-
são de Castro (editada por Manuel de Lira em 1587) foi escrita nos anos 1553 e
1554. Mas quando foi que o poeta reviu a sua tragédia, dando-lhe a forma muito
mais apurada da versão incluída em PL? Aqui também só há incertezas, mas incli-
namo-nos a pensar que tenha sido nos anos a seguir à sua estadia em Coimbra. Foi
em três poesias escritas entre 1557 e 1559 que começou a aflorar um interesse pela
história portuguesa que dificilmente se encontra na obra anterior (Cii3 11.93-156,
Cii8 ll.74-105, CiilO 11.22-60). A história pátria forma uma parte importante tam-
bém das tiradas de Inês e de Pedro que Ferreira compôs para o novo Acto I da
tragédia (11. 36-50 e 216-27), facto que nos dá uma indicação, pelo menos, da sua
data. Uma figura histórica que o poeta muito apreciava era D. Afonso Henriques,
a cujo reinado se refere duas vezes em Castro (li. 36-40 e 880-87), em Cii3 e Cii8,
e em outras poesias cuja data não se conhece (para uma listagem completa, ver as
notas a Oi8). O interesse de Ferreira pode ter tido a sua origem numa iniciativa dos
cónegos de Santa Cruz de Coimbra, que em 1556 conseguiram que D. João III se
interessasse pela canonização do primeiro rei de Portugal (Brochado, pp. 312-14 ).
Contudo, é forçoso lembrar que o segundo passo da tragédia em que se fala de
D. Afonso Henriques (11.880-87) pertence a ambas as versões de Castro e deve ter
sido escrito antes de 1556. Mas, mesmo assim, há indicações suficientes para con-
cluir que Ferreira começou a rever a tragédia depois daquela data.

ACTO I
.
1-11 Colhei ... vozes: A tragédia abre com um pequeno monólogo lírico pro-
nunciado por Inês em versos não rimados de 6 e 1O sílabas. A Octavia de Séneca
começa também com um monólogo lírico da heroína, a que se segue um diálogo
com a Ama.
14 ajuda-me ... prazer: exceptuando as odes corais, e o monólogo intro-
dutório de Inês, o verso empregado em Castro é o decassílabo não rimado. Mas
de vez em quando, para variar, o poeta introduz versos só de seis sílabas, como
em 11. 14, 15, 202, 207 etc.
36-46 Daquele ... estrelas: os verbos principais deste período complexo são
"rege e manda", 1.41, o sujeito é "o bom velho .. .Afonso quarto", 11.42-3, e o com-
plemento directo "o real ceptro", 1.38. Daquele grande Afonso: D. Afonso Hen-

626
COMENTÁRIO

riques, primeiro rei de Portugal, cujo ceptro foi herdado pelos sucessores. alçado
entre armas, ant'imigos: exactamente a mesma frase ocorre em Epitl 1.2.
43 Salado: vitória luso-castelhana ( 1340) contra os mouros. O exército por-
tuguês foi comandado por D. Afonso IV.
45 grã: Com grande o verso teria onze sílabas (Sousa da Silveira e Roig).
A forma grã é muito frequente em Ferreira: só no Acto Ide Castro aparece sete
vezes.
52-4 na viva flor... fogo: A Inês histórica veio, com Costança, de Aragão
para Portugal. Ferreira, porém, finge que ela tinha amado Pedro antes do casa-
mento do Infante.
62 armas e furor: a guerra entre Portugal e Castela ( 1336-40) que se travou
depois do casamento por procuração de Pedro e Costança. O rei Alfonso XI de
Castela, inimigo do pai de Costança, recusou-se a permitir que ela atravessasse
território castelhano, recusa que provocou a guerra.
70-1 nascimento... parto: D. Fernando, o futuro rei de Portugal, nasceu em
1345.
90 Ele... ira: subentende-se um verbo como "causar": "Ele causa cuidado à
molher, eu causo ódio e ira" (Sousa da Silveira).
92 nem ... nada: este verso explica-se por 11.93-6. Ninguém ousou descobrir
(= desmascarar) Inês, nem vedar-lhe(= proibir) nada, porque era de estirpe real,
neta, pelo ramo bastardo, de Sancho IV de Castela.
103-4 que me ... grande: passo de interpretação difícil. Há 3 possibilidades:
1. O texto é defeituoso, faltando a preposição "a" antes de "esta". A construção
"chamar alguém a q.c." é frequente em Ferreira (Sousa da Silveira). 2. "Esta gló-
ria" é o complemento directo e "me" o complemento indirecto. Assim não será
necessário emendar o texto, mas a contrução é menos típica do poeta. É a solução
adaptada na tradução de Roig. 3. "Que", l.103, tem valor causal. Assim a frase
significaria: "Fortuna quebra o nó, porque esta glória ...já me chamava".
106 Leva ... triste: Costança morreu em 1345.
11 O penhores: os filhos de Inês.
112-3 trabalham apartar: trabalham por apartar (ver Ci12, 1.63).
132 tégora: até agora.
147 quando: tem valor condicional.
171-2 do alto estado ... doce: o nome de Inês faz doce o alto estado que o
Infante espera.
184 a culpa empece ao fado: torna pior. A Ama, ao contrário de Pedro, não
acredita no poder absoluto do destino e sabe que as pessoas estão livres para dis-
por das suas vidas em conformidade com a moral.
209- I O a prometida ... mandaste: a fé prometida àquela a quem já de lá me
mandaste dá-la.

627
COMENTÁRIO

216-27 Quanto tempo ... letras: Afonso III, quando príncipe, casou com a
Condessa Matilde de Bolonha e mais tarde, ainda em vida de Matilde, com
Beatriz, filha natural de Alfonso X de Castela, da qual houve D. Dinis.
218 que novas ... quinas : a conquista do Algarve por D. Afonso III .
226-7 paz ... tirou: em 1304 D. Dinis actuou como mediador numa disputa
entre os reis de Castela e de Aragão acerca da posse do Reino de Múrcia (ver Rui
de Pina, Crónica de D. Dinis, pp.225-32). Para outras referências a D. Dinis ver
Cii 1O 11.55-60.
238 Cada um ... vontade: não há qualquer ligação expressa entre este verso
e os que o procedem, de maneira que é necessário subentender uma frase como
"pois, nestas circunstâncias" antes de l.238. O sentido será: pois, nestas circuns-
tâncias, cada um se deixaria levar pela vontade.
239 a água: o artigo parece necessário, porque todos os outros substantivos
de 11.239-40 o têm (Sousa da Silveira).
242-5 este no amor... armado: passo difícil pelo duplo sentido que se dá à pala-
vra amor, como reconhece Sousa da Silveira. Ao contrário dele, porém, julgamos
que é só em l.242 que se refere ao amor paixão. Segundo o crítico brasileiro, 1.244
significa: "o amor (paixão) não sofre a razão, a virtude não sofre a lisonja". A tran-
sição deste amor para o amor que o Secretário diz que sente por D. Pedro em l.245
parece demasiado abrupta: seria preferível entender l.244 como "o meu amor pelo
Infante não sofre que ele continue no erro de acreditar que o amor (por uma mulher)
se possa combinar com a razão, e a minha virtude não me permite lisonjeá-lo".
258-71 a tão grã força ... vida: O Secretário e o Infante desenvolvem o
velho conceito segundo o qual a alma do amante reside com a da amada.
260 dar-ta: a sugestão de Sousa da Silveira é confirmada por BLib.
265 à fortuna: sugestão que vem de Sousa da Silveira. Nem PL nem BLib
são consistentes em distinguir o artigo da forma combinada com a preposição a.
270 homem: é o pronome indefinido, equivalente a "uma pessoa".
281 o menor deles: o menor dos segredos (Sousa da Silveira). Não há razão
para emendar para "a menor delas", como quer Teyssier ( 1993) p.461 .
282-4 Duma parte ... devo: existe uma oposição nestes versos entre o dever
próprio de um secretário de ser discreto, e o dever de um conselheiro que é o de
aconselhar.
332-45 Aquele claro sangue... acatamento: nestes versos, o Secretário refere-
-se, em termos bastante vagos, ao que considera ser o baixo sangue de Inês e ao
comportamento arrogante dos seus parentes. Se se lê o passo correspondente de
BLib, vê-se o cuidado do poeta em eliminar da versão revista pormenores políti-
cos e históricos degradantes.
362 o por que: aquilo por que (Sousa da Silveira).
367-76 Eu não sou ... mistérios: trecho que revela a arrogância do infante.

628
COMENTÁRIO

Nas suas cartas Ferreira insiste sempre na humanidade dos reis (ver, por exemplo,
Cii 1 11.58-9 e 133-5).
379 real. .. dina: ver a nota a 1.92.
401 Confio ... descubras: como nota Sousa da Silveira, neste verso o Infante
dirige-se ao Secretário.
403 merecera: merecesse.
408 Sigue: segue. É uma forma do imperativo (Sousa da Silveira), que se
encontra também no soneto editado em Apl (i) 1.10. O infante continua, 1.410, pelo
que se sabe que ele quer que a sua razão siga a sua vontade (e não o contrário),
i.é., ele confessa ser uma pessoa governada pelas paixões.
412 Mas sirvo: a significação da resposta elíptica do Secretário é "sim,
quero mandar nele, mas assim o sirvo", porque a obrigação dos conselheiros é de
aconselhar.
418 Eu ... deles: é de presumir que estas palavras são acompanhadas por um
gesto de violência. O Infante volta a ameaçar o Secretário uma outra vez, l.480.
423 d'alma, d'honra: a leitura de BLib indica que o apóstrofo representa o
artigo definido.
430 Não te declararás: não tens a coragem de admitir que és pecador (e,
como consequência, de rejeitar Inês)?
450 a fermosa alma: Sousa da Silveira sugere "à fermosa alma", mas a
leitura de PL parece certa. Tendo omitido o artigo antes de "tão fermoso corpo",
o poeta omitiu-o também antes de "fermosa alma/tão santa", assim mantendo o
equilíbrio da frase .
477 o esprito: a ausência do artigo em PL parece erro, suposição que é con-
firmada pela leitura de BLib.
481 Quem governara: quem governasse. O conjuntivo exprime um desejo
da parte do Secretário.
Coro: As duas odes corais são parecidas metricamente, mas não idênticas.
A primeira tem 4 estrofes, de 1O versos, com o esquema de rima abCabCbdbD.
A segunda tem 8 estrofes, de 9 versos, com este esquema: abaBaccdD. Ferreira
trabalhou muito nestas odes, que na sua forma definitiva são bastante diferentes
das da versão de 1587 (ver Ap2 (ii)). O Coro 1, em louvor de Amor, é uma com-
posição inteiramente nova, que faz um contraste temático com o Coro 2, para o
qual o poeta aproveitou o material contido na ode primitiva, que reescreveu, abre-
viando-a. Conservou intactos só 5 versos, que transpôs para o Acto IV, ll.1574-8 .
No fim do Acto I da tragédia Orbecche de Gian Battista Giraldi Cinzio há
um coro em louvor do amor. Para a possível influência desta peça ver também a
sestina do Acto IV.
489-92 Aquela ... gera: a terceira esfera era de Vénus, deusa do amor, que
nasceu no mar.

629
COMENTÁRIO

498-500 converte ... renova: o sujeito destes verbos é Amor.


Coro 2: é visível a influência da Phaedra de Séneca (Wickersham Crawford,
pp. 176-8). Ver notas. Contudo, os coros da versão primitiva devem ainda mais ao
tragediógrafo romano.
523-40 Antes cego ... se farta: trecho inspirado por Phaedra, 11.188-203.
541-9 No tenro ... prende: segue Phaedra , 11.290-3.
549 d'alma: seguimos Sousa da Silveira ao pensar que o apóstrofo repre-
senta o artigo definido.
559-67 Quem ... fuso: Alcides é Hércules, que muitas vezes é representado
na arte vestido com a pele dum leão que matou e levando uma maça. Enamorou-
-se de Onfale, rainha da Lídia, que o obrigou a fazer para ela várias tarefas mais
próprias de uma jovem. É óbvia a influência de Phaedra 11.317-24 nestes versos.
568-71 Júpiter... pinturas: Júpiter, para se unir a mulheres terrenas, trans-
formou-se em touro e cisne. Outro trecho baseado em Phaedra, 11,299-300.
574 sovertem: subvertem.
577-8 De que ... glória: os teucros são os troianos. A guerra de Tróia travou-
-se por causa dos amores de Paris com Helena.
579-80 De que ... pia: alusão à traição do Conde Juliano que, segundo a tra-
dição, entregou a Espanha aos mouros porque Rodrigo, o último rei godo, lhe tinha
raptado a filha.
594 ao cego ifante: aqui o Amor, e não D. Pedro. A sugestão vem de Sousa
da Silveira.

ACTO II
595-616 Ó cetro... prometem: as ideias que o rei exprime nesta fala encon-
tram paralelo em várias tragédias senequianas (Castro Soares ( 1983-84) pp. 342-3).
A negatividade de D. Afonso IV forma um contraste nítido com as atitudes posi-
tivas que Ferreira tenta inculcar no jovem rei Sebastião em poesias como Cii 1.
616 perigos nos prometem: é de presumir que o rei comece a falar sozinho.
Mas Coelho e Pacheco entram em cena oportunamente, para ouvir pelo menos as
últimas palavras do monarca.
617 COELHO: Roig nota que a abreviação C., utilizada em PL, representa
Coelho (ver a ed. de Roig, pp. 77-86). Todos os outros editores modernos caíram
no erro absurdo de supor que significasse os dois conselheiros, falando juntos
como se constituíssem um coro.
619 à que: sugestão de Sousa da Silveira. Ver a nota a 1.265.
636-9 atalhar... atalhando: na linguagem de Ferreira, são vários os verbos
que podem ser seguidos, ou não, pela preposição a, como vencer, danar etc, além
de atalhar.

630
COMENTÁRIO

642 Vence ... ao remédio: ver a nota a li. 636-9.


652-3 Meus pecados ... caíram: O rei também tinha desobedecido ao pai,
D. Dinis. Ver ll.872-903.
691 dos que: não é necessário emendar o texto, apesar da leitura aparente-
mente superior de BLib. Sousa da Silveira apresenta vários exemplos quinhentis-
tas do uso de dos como termo de comparação.
71 l nos tememos: lemos "nos tememos", com Sousa da Silveira, e não "nós
tememos". O uso pronominal de temer não é frequente em Ferreira, mas existe um
exemplo em Écl 12 l.111 .
714-15 e pelo são ... corrompa: o membro são corta o membro corrompido.
727-8 que adiante ... mereçam: a extensa nota de Sousa da Silveira não
parece enfrentar a dificuldade principal deste passo, o valor a dar ao conjuntivo
"mereçam", que tem aqui um sentido condicional. A tradução de Roig "nombreux
seront ceux qui devront te louer" também não parece certa. O sentido destes ver-
sos será: porque, se não usares aspereza, no futuro haverá certamente muitos que
podem merecer a morte às tuas mãos.
733 esta: Inês de Castro.
742 da outra: é razoável supor que o apóstrofo representa o artigo, já que
Pacheco fala em duas colunas, clemência e severidade (l.738). A leitura de BLib
confirma a suposição.
746 ponho: ponha é erro evidente de PL, corrigido em todas as edições
modernas. A leitura de BLib é ponho.
747-8 sois obrigados ...conselhar-me: a prática de Ferreira relativa ao uso
da preposição a com o verbo obrigar é variável. Aqui, e em Écll ll.19-20, falta a
preposição, mas aparece em Ci3 11.40-2.
755 Eu tomo... todo: A sugestão para a emenda vem de Teyssier (1993) p. 465.
Os tipógrafos quinhentistas omitiam frequentemente o artigo ou o pronome pes-
soal o depois de uma palavra terminada num -o átono. Ver também a Introdução
p. 24-5.
Um conselheiro repete frequentemente as ideias ou as palavras do outro.
Ver, por exemplo, 11.616-21.
763-6 Mas ... persiga: ironia dramática. As hipóteses de Coelho concretiza-
ram-se durante o reinado de Pedro, como o público sabe.
769-70 REI: Roig nota que a repetição de EIR em BLib indica que l. 769 per-
tence à Cena 1 e 1.770 à Cena 2. 1-vos: ide-vos (ver também l.1040). Na fala do
rei aparecem ideias e imagens derivadas de várias tragédias senequianas (Castro
Soares (1983-84) p. 343).
770-1 vês as almas ... determinam: vês o que as almas cuidam. A antecipa-
ção da oração relativa é sintaxe latinizante.
777 d'outra: tal como em 1.742, contrapõem-se dois estados da alma, medo

631
COMENTÁRIO

e conselho (l.774). Assim, o apóstrofo deve representar o artigo, suposição con-


firmada pela leitura de BLib.
790 mas mal crido: erradamente, porque não crêem que é cativeiro (Sousa
da Silveira).
798 trocara: trocaria.
806-10 Isto me salve ... livra: mostra e livra são imperativos. O sentido será:
Isto me salve ou, se me não salvar, mostra-me ...
815-50 Coro 1: É uma imitação da estrofe sáfica romana. A melhor dis-
cussão da métrica do coro encontra-se em Teyssier (1976) pp. 716-9. Resumindo,
podemos dizer que as estrofes consistem de três decassílabos, não rimados, com
acento tónico sempre na 4ª sílaba, e dum verso chamado adónico ou adónio, que
tem só quatro sílabas. Castro Soares (1983-84) p. 324-5 vê no emprego da estrofe
sáfica para uma ode coral dramática uma indicação da influência de Diogo de
Teive e não da tragediografia romana. Porém, segundo a mesma autora, p. 343, o
pensamento do coro deve muito a Séneca.
827-30 Reis ... dela: a inspiração desta estrofe vem de Horácio, Odes II, 10,
ll.9-12.
849 d'alma: aqui d' representa da , porque o sentido parece ser "da tua alma".
Roig interpreta o passo da mesma maneira.
851-903 Coro 2: Não é fácil determinar a origem do metro empregado por Fer-
reira. Pode-se tratar de uma imitação directa dos versos curtos que se encontram em
algumas das odes corais das tragédias de Séneca e de Diogo de Teive (ver, por ex.,
Johannes Princeps, ll.160-254 e 1073-1142). Contudo, segundo Bataillon, citado por
Roig na sua ed. de Castro p. 62 "cette versification ... se rattache directement au.x
choeurs des tragédies à !'antiquedes ltaliens". Com efeito, nas falas de várias perso-
nagens de L 'Oreste de Giovanni Rucellai, de 1524, aparecem hexassílabos não rima-
dos, semelhantes aos de Castro, às vezes misturados com versos de 4 ou de 10 sílabas.
No primeiro coro lembra-se ao rei, em termos gerais, que um grande estado
traz consigo grandes responsabilidades. Na segunda ode coral o comentário, desta
vez mais pessoal, visa os pecados individuais de D. Afonso IV.
861 hircanos tigres: uma referência erudita a um distrito da Ásia famoso,
na época romana, pelos seus tigres.
866-8 Aquele amor... peito: os pais do rei são comparados, indirectamente,
ao pelicano, ave que, segundo uma tradição muito antiga, nutre os filhos com o
sangue do próprio peito.
874-6 Aqueles ... cruamente: não podendo suportar os favores que D. Dinis
dispensava aos filhos bastardos, Afonso revoltou-se várias vezes contra o pai.
880-7 Viram-se ... houve: segundo a tradição, os cinco escudetes do escudo
real foram mandados gravar por D. Afonso Henriques para comemorar a derrota
dos cinco reis mouros na batalha de Ourique.

632
COMENTÁRIO

896-90 l Quantas vezes ... arder: Rui de Pina menciona pelo menos duas
ocasiões, em 1323 e 1325, em que a rainha santa Isabel interveio entre D. Dinis e
o filho (Crónica de D. Dinis, pp.293-5 e 311). tornava arder: a omissão da
preposição depois de tornar é frequente em Ferreira: ver Ci4 1.29, Si55 1.13 etc.

ACTO III

926 que veja eu: de modo que veja ou para que veja (sugestões de Sousa da
Silveira).
928 arraiados: arreados.
935 já: em PL falta uma sílaba ao verso. Por isso, a leitura de BLib parece
preferível.
945-71 Cansada ... tanto: há narrações de sonhos em mais de uma tragédia
de Séneca, em Troades, 11.438-60 e Octavia, ll.115-24. Nesta última, a heroína
fala com a Nutrix (ama). Também não falta um sonho em Johannes Princeps, 11.
48-90. O sonho mais parecido com o de Inês talvez seja o de Storge em Jephthes,
tragédia novilatina de Buchanan que Ferreira podia ter conhecido (ver Watson, p. 76
e a ed. de Castro de Martyn, pp. 139-40).
955 co'a alma: a sugestão vem de Sousa da Silveira. Aqui, como frequen-
temente, o artigo é empregado em vez do possessivo.
957-62 Nisto... rasgavam: em PL, o sonho está muito melhor integrado na
acção da peça do que em BLib.
979 dera: daria.
986-8 pera ... representavam: para nela gozar (lograr) dos enganos que se
me representavam ao sonhar com o infante, o que parece ser o sentido implícito
de com ele.
l O12-13 Como estará... temo: Castro sente-se culpada, perante Deus, por ter
sido a amante do Infante durante a vida da sua primeira mulher. Mas esse sentimento
de culpa é muito mais intenso em BLib, onde fala do escândalo que causou e do seu
temor da justiça divina. Em PL, portanto, a transição para os protestos de inocência
de Castro, do final do acto, é muito menos abrupta. a alma: a sugestão vem de Sousa
da Silveira. Aqui, como frequentemente, o artigo é empregado em vez do possessivo.
1014-27 Dos secretos ... vê: nas palavras da Ama acerca do valor da cons-
ciência individual Watson vê uma crítica disfarçada à Inquisição e aos processos
movidos contra os professores do Colégio das Artes (p. 75). Mas Ferreira repete
a mesma ideia numa poesia escrita mais tarde, em 1559, Cii 11, 11.52-66.
1019 d'alma: o sentido é "esta é boa prova [da inocência] da tua alma".
A mesma frase vem em EIS 11.100-1.
1022-3 com que ... santamente: alude ao matrimónio clandestino que D. Pe-
dro, depois de subir ao trono, afirmou ter contraído com Inês (Sousa da Silveira).

633
COMENTÁRIO

1024-5 com mor seguro ... este: com maior segurança ... este refere-se a tempo.
1040 1-vos, i-vos: ide-vos, ide-vos. É a forma normal em Ferreira. Ver Cas-
tro l.769, Cil3 1.106 etc.
1057 está: o sujeito implícito é o infante.
1093 parte: segundo Teyssier ( 1993) p.464 significa "la part qu 'ils pren-
draient à ton mauvais destin", mas na realidade o sentido é menos preciso, "qual-
quer parte" . Há uma frase parecida em Écl 1 1.102.
1104-5 como não creste ... sabias: como, crendo e sabendo o mal, te descui-
daste dele? (Sousa da Silveira)
Coro: as duas odes corais têm o mesmo esquema métrico que as do Acto II.
Ver as respectivas notas. Na primeira ode o Coro tece uma série de reflexões
gerais, exactamente como no Acto II . As ideias que expõe são lugares-comuns da
literatura clássica, mas tem sido difícil encontrar uma única fonte para elas. A te-
mática da segunda ode está mais estreitamente relacionada com a acção da peça,
tal como acontecia com a segunda ode do acto anterior.
1124-5 üa hora ... algü'hora : em 1.1124 hora é substantivo; em 1.1125 faz
parte de um adjunto adverbial. O uso da mesma palavra em categorias gramati-
cais diferentes é um recurso estilístico muito frequente em Ferreira.
1129-31 a que... veias: "cavar nas veias" está dependente de "a que correndo
vão" .
1154 d'alma: a sugestão de Sousa da Silveira de que o apóstrofo represen-
ta o artigo é confirmada pela leitura de BLib. É natural que alma tenha artigo, já
que vida e honra também o têm.
1155 que ... põe: "o amor põe em noite escura a alma, de sorte que esta não
vê o claro dia" (Sousa da Silveira).
1174 há piadade: tem piedade (a frase é repetida em 1.1205).
1181-2 Crueza... partir: subentende-se em antes de partir.
1192 pola falta do sangue: este verso, omitido em BLib e na Nise lastimosa
de Bermúdez, mas restaurado em PL, é uma das provas mais claras de que
Ferreira foi o autor original de Castro. Ver a ed. de Roig pp. 31-3.
1200 cortar a: a leitura de PL e de BLib é inusitada, mas há um outro exem-
plo em Cii8 1.45. Em PL a maneira normal de grafar o pronome enclítico quando
precedido pelo infinitivo varia entre -1- e -II-: por ex., apaga/o (Cil2 1.8) e amalla
(Si 27 l. 7).

ACTO IV

1219 Esta ... vem : é de presumir que Inês entra em cena enquanto o rei e os
conselheiros estão a conversar.

634
COMENTÁRIO

1240-4 Escusaras... acusaram ... fora ... tomara: podias escusar... acusas-
sem ... iria ... tomaria.
1243 quando: tem valor condicional.
1271 téqui: até aqui.
1272 vê-los: tu os vês (Sousa da Silveira).
1279 sóis: costumas. É a segunda pessoa do singular do presente do indica-
tivo do verbo soer (Sousa da Silveira).
1286 d'alma: a sugestão de Sousa da Silveira de que o apóstrofo representa o
artigo é confirmada pela leitura de BLib. O artigo usa-se aqui genericamente.
1287 o Deus: está aposto a ele, 1.1285.
1288podendo-o: a sugestão vem de Teyssier (1993) p. 466. Ver 1.755.
1290 assi o fazes: aqui Castro volta a dirigir-se directamente ao rei. Segundo
Roig, falta uma sílaba ao verso. É verdade que a regra normal de Ferreira era de
elidir o -i- final de assi antes de um -o- inicial. Há um exemplo desta tendência
mesmo em 1.1291. Porém, há hiato em Sii32 1.10, "meu Betancor! Assi o mere-
cia". É de presumir que haja um hiato desejado pelo poeta em l.1290, tanto mais
que se trata de uma reescrita do passo correspondente de BLib.
131 O mais que ... morte: mais que, unicamente, a morte.
1317 Se me [... ] não: Sousa da Silveira nota que o verso tem uma sílaba a
mais. A solução da dificuldade é a adopção da leitura de BLib.
1325-6 quisera ... fora: teria querido ... fosse.
1333 todo o reino: ver l.755.
1337 necessária: Sousa da Silveira interpreta necessário como "um neutro,
equivalente a coisa necessária", mas a explicação é forçada, e faltam paralelos em
PL. As palavras que cita de Fr. Tomé de Jesus não ajudam o seu argumento.
Necessário não será um erro, de PL e de BLib, causado pela proximidade do remé-
dio masculino? Para outros exemplos das formas masculina e feminina de neces-
sário em verso adjacentes, ver Castro 11.1450-1 e Ci6 ll.22-3 .
1355 ouvirá: a leitura de BLib é metricamente superior à de PL, em que o
acento principal cai na 5ª sílaba. Em termos de sentido, tanto ouvira como ouvirá
exprime as dúvidas de Castro.
1360-1421 : Que te posso... mereço: Castro Soares (1983-84) p. 337 estabe-
lece um paralelo entre esta fala de Inês e a de Medeia para Creonte em Medea de
Séneca, ll.203-51. Para uma análise dos recursos retóricos utilizados por Ferreira,
ver a ed. de Earle pp. 20-5.
1376 defenderas-mo... obedecera: se mo tivesses defendido (proibido) ...
teria obedecido.
1381 em mim ... pede: verso problemático, por causa da métrica. Escandindo-
-o assim: "eml miml maltasl ai elle: lellel pelde" tem dois hiatos, um entre as sílabas
5ª e 6ª e o outro entre a 6ª e 7ª. Se adoptarmos a leitura de BLib e de Roig, "ele te

635
COMENTÁRIO

pede", elimina-se o hiato entre ele: ele, mas este parece menos chocante, já que
as duas palavras estão separadas por uma pausa, indicada pela pontuação.
Contudo, é necessário manter o hiato entre a ele para que o acento principal do
verso caia sobre a primeira sílaba, tónica, de ele, mesmo admitindo que, em situa-
ções parecidas, o poeta normalmente elide a, excepto talvez num verso metrica-
mente ambíguo, Cil 1 1.165.
1392 naquele... causa: naquele amor que é a causa desta minha morte.
1406 Estes ... sempre: Roig traduz: "vous n 'en a vez pas connu d 'autres".
1428-9 estranhas... filho: estranhas que uma mulher (Castro) vença o teu filho.
1439 chora-m' a alma: a sugestão vem de Sousa da Silveira. Aqui, como
frequentemente, o artigo é utilizado em vez do possessivo.
1454 cometeras ... cuidaras: cometesses ... cuidasses, porque Coelho exprime
um desejo. 1455 porque não vieras: para que não viesses.
1468 salvas-lh' a alma: a sugestão vem de Sousa da Silveira e parece con-
firmada pela leitura de Blib.
1472 teu neto: isto é, o neto legítimo de D. Afonso IV, Fernando, filho de
Pedro e de Costança, mais tarde rei de Portugal. Ver também 1.1489.
1494 que ... movam: a frase depende sintacticamente de pedimos 1.1484.
1522 passam: matam.
Coro: é uma sestina, a única que Ferreira compôs. A palavra sestina não
aparece em PL nem em BLib, mas a disposição tipográfica dos versos indica que
os editores quinhentistas sabiam de que género poético se tratava. O mesmo não
se pode dizer da maioria das edições modernas, como nota Roig (ver ed. de Cas-
tro, p.59n.). Há uma análise da sestina na mesma edição, pp. 59-61. Cada uma das
seis estrofes tem seis versos, que acabam sempre com uma das palavras seguintes:
amor, olhos, morte, vida, nome, terra. Estas palavras finais nunca ocupam a mesma
posição de estrofe para estrofe. O remate da poesia é uma estrofe só de três ver-
sos, em que aparecem todas as seis palavras finais .
No fim do Acto III da tragédia Orbecche de Gian Battista Giraldi Cinzio
(lª edição em 1543) há uma sestina, cujas estrofes se dividem entre o Coro e a
Nudrice (Ama).
1527-8 tiveras ... morreras: tivesses ... terias morrido.
1562 nuns sós olhos: só nuns olhos.
Sáficos: a métrica desta ode coral é distinta da das odes sáficas dos Actos II
e III, já que falta a divisão em estrofes e o verso adónico (de só 4 sílabas) aparece
só esporadicamente (ll.1588 e 1602). Existe uma ode parecida nas Troades de
Séneca, 11.814-60.
1565 Choremos todos: o coro é constituído por "moças de Coimbra". Po-
rém, o masculino todos justifica-se aqui porque o coro se dirige ao público ou até
a todos os seres humanos (Teyssier (1993) p. 473).

636
COM ENTÁ RI O

1574-8 Assi ... chorem: imitação da Phaedra de Séneca, 11.285-90. fervente


Cancro: o trópico de Câncer, que aqui significa o Sul. fria ... Ursa: a constelação
da Estrela Polar, aqui, portanto, o Norte. Ferreira refere-se aos quatro pontos car-
diais, para indicar que o mundo inteiro deve chorar a morte de Inês.
1583-4 com que ... cruéis: com que viam aqueles cruéis traspassar seus pei-
tos tão irosamente.
1587 vo-los: a leitura de BLib, seguida por Roig, é superior à de PL. O Coro
profetiza o castigo dos conselheiros, a quem os corações foram arrancados por
ordem régia de D. Pedro. Ver também ll.1754-6.
1589 Que ... liões: as Getas eram uma tribo da Europa oriental cuja selvaja-
ria se tomou proverbial entre os romanos. mas: tem valor explicativo, "ou melhor".
osso: urso.
1590-6 amansara ... tornara... ataram ... imprimiram: amansaria ... tomar
-ia .. . atariam ... imprimiriam.

ACTOV

1604-5 que... parti: i.e., o sol de Coimbra.


1619-20 O soberbo ... guerra: o Mond~go, soberbo com tal vista (Sousa da
Silveira). Si 11 começa com palavras quase idênticas e desenvolve o mesmo con-
ceito guerreiro. O soneto deve ser do período coimbrão de Ferreira, mas não se
sabe a data exacta da sua composição.
1624 tire-me: Roig substitui "tira-me", que é a leitura de BLib, mas, neste
contexto, ambas as formas do verbo são aceitáveis.
1637-40 Rainha ... cabeças: é uma ironia dramática, já que o público, mas
não a personagem, sabe que a coroa de Castro foi diferente de todas as outras
porque ela só a recebeu depois de morta.
1650-1 que grã ... fortuna: as palavras do Mensageiro são um eco do que
disse o Secretário no Acto I, 11.264-6 e 324-7.
1653 o mal. .. tardança: não um verso incompleto, como pensa Roig, porque
a tragédia tem vários versos só de seis sílabas (e.g. ll.14, 15, 202, 1683, 1723 etc).
1665 que teve: segundo Sousa da Silveira, há duas possibilidades. Ou o
relativo é equivalente a "o que teve", ou o antecedente é "aquela inocência e
piedade" de 1.1663. Para o uso do verbo singular com sujeito plural ver ll.1742-3 .
1681 rompa-s' a alma : rompa-se a minha alma. A sugestão de Sousa da
Silveira é confirmada por BLib.
1701 Matáreis ... vivera: segundo Sousa da Silveira, "matar-me-íeis ...[e] eu
viveria" (porque Inês, que era a minha vida, viveria) . Mas uma solução mais sim-
ples seria fazer de Inês o sujeito de "vivera".

637
COMENTÁRIO

1703 vingáreis: devíeis vingar (Sousa da Silveira).


1705 simplex: simplex é uma palavra latina, cujo significado é simples.
Contudo, é uma forma que se encontra em textos quinhentistas portugueses como,
por exemplo, Década Terceira da Ásia de João de Barros, Livro 10, cap.5
(fol.259v; no texto 260v). Em PL empregam-se normalmente as formas simples
ou simpres.
1708 d'alma: a sugestão de Sousa da Silveira de que o apóstrofo representa o
artigo é confirmada por BLib. Para manter o equilíbrio da frase o artigo antes de
vida tinha de repetir-se antes de alma.
1711 sovortestes: subvertestes.
1722 crera: creria.
1754-6 Abra... ousaram: para a vingança do Infante, enquanto rei, vertam-
bém 1.1587.
1759-60 destruídos... mortos: segundo Sousa da Silveira, "verão" tem su-
jeito indefinido. Assim, a frase significaria "as pessoas verão os teus amigos, uns
destruídos, outros mortos". Talvez a interpretação seja correcta, mas os exemplos
comprovativos que Sousa da Silveira aduz não ajudam o seu argumento. É tentador
seguir a leitura de BLib, tanto mais que só difere em uma letra da de PL (veraõ) .
1763 daquele: daquele sangue.
1770 como foras: como serias, se te não tivessem morto. Michaelis de
Vasconcelos crê que falta um verso depois de 1.1770 ( 1922b, p. 130).
1774-5 té que ... teu: Sousa da Silveira vê aqui uma referência às sepulturas
que D. Pedro mandou construir, quando rei, em Alcobaça.

APÊNDICE 1

Poesias não incluídas nos Poemas Lusitanos

(i) Soneto

A el-rei nosso senhor

Este soneto, dedicado, como é evidente, a D. Sebastião, não vem em PL. Foi
publicado pela primeira vez, com atribuição a António Ferreira, em Diogo de
Teive, Epodon sive iambicorum carminum libri tres (Lisboa, 1565), fol.49v. e
numa edição posterior da mesma obra com a data de 1786 ( ver Brandão (1969)
pp. 975-6 e Roig (1970) pp. 31-3). Têm as abreviaturas de T(1565) e T(1786).
Como diz Roig, é a única poesia de Ferreira editada durante a vida do poeta.
Brandão crê que o soneto (juntamente com um outro soneto desconhecido de An-

638
COM ENTÁRI O

drade Caminha) foi escrito para acompanhar as Sententiae de Teive, tratado moral
bilingue dedicado a D. Sebastião que ocupa fois I v.-49r. dos Epodon . A existên-
cia da poesia liminar não prova, porém, que Ferreira tenha traduzido a obra do
mestre (Roig, pp. 32-3). Não se sabe se as Sententiae e as poesias que as acom-
panham são de 1565 ou de um ano anterior.

8 nuve: nuvem. A forma não aparece em PL, mas é atestada em outros tex-
tos da época.
10 sigue: segue. É uma forma do imperativo. Ver também Castro 11.408 e 410.

(ii) Epigrama

Resposta de António Ferreira pelos mesmos consoa1J,tes

Esta poesia foi editada pela primeira vez em 1771, na segunda edição de PL,
vol. 1, pp.38-9, e também em 1791, nas Poezias de Andrade Caminha, p. 359. (Abre-
viaturas: PL( 1771) e AC. Ver também a ed. de Anastácio, p. 668). As duas versões
diferem pouco, porque derivam da mesma fonte manuscrita, a do Duque de Cada-
val. Aqui segue-se a edição de 1771. Tanto em 1771 como em 1791 o epigrama de
Ferreira vem precedido do epigrama de Andrade Caminha a que é uma resposta.

Título pelos mesmos consoantes: Ferreira utiliza as mesmas palavras para


rimar que Andrade Caminha.
4 Hipocrene: fonte consagrada às Musas.
5 irei caminho abrindo: Roig (1970) p.41 vê aqui um jogo de palavras com
o nome do amigo de Ferreira.
6 que a ti entenda e leia: a frase tem provavelmente sentido final, "para que
eu a ti entenda ..." Na parte correspondente do seu epigrama, Andrade Caminha
escreveu: "Já me vai novo lume Febo abrindo/ pera que em ti de novo aprenda e
leia".

(iii) Elegia

Ao senhor Francisco de Sá de Miranda,


à morte de seu filho Gonçalo Mendes de Sá

A elegia não aparece em PL. Foi publicada pela primeira vez em 1595 nas
Obras de Sá de Miranda, fól s 56r.-59r., onde vem assinada, e mais tarde, com

639
COMENTÁRIO

alguns pequenos erros, na edição de Sá de Miranda de Michaelis de Vasconcelos,


pp. 638-42. A edição primitiva tem a abreviatura SdeM. Sá de Miranda respondeu
à poesia de Ferreira com outra elegia. Gonçalo Mendes de Sá morreu em 18 de
Abril de 1553, com mais trezentos cavaleiros portugueses, numa emboscada dos
mouros perto de Ceuta, aonde tinha chegado pouco antes (Michaelis de Vascon-
celos (1885) p. 851 ). Há na elegia alguns trechos pouco claros, ou por a poesia
pertencer à primeira fase da carreira literária de Ferreira, ou por não ter sido sujeita
ao processo de revisão das obras contidas em PL.

Como é normal nas elegias fúnebres, o poeta oscila entre a expressão da dor
humana ocasionada pela morte de Gonçaço Mendes de Sá e a confiança na vida
eterna de que disfrutará o jovem soldado. Contudo, a ambiguidade é muito mais
evidente em El2 e El5, poesias escritas sob a influência de uma forte dor pessoal.
É visível o estoicismo no retrato de Sá de Miranda de 11.31-51, em que estão
atribuídas ao poeta três das quatro virtudes estóicas, a fortaleza, a temperança e a
prudência.

5 forçado: ocasionado inevitavelmente no espírito do poeta e da mulher pela


morte do filho.
22 acidente: "ataque ... de melancolia" (Morais, (1823)).
25 de que: depois de que.
30 rim: riem.
31-3 Verás ... falar: o poeta continua a dirigir-se à sua própria poesia.
42 alboroço: alvoroço.
49-50 Sabia ... o gerei: a frase vem da antiguidade clássica, tendo sido atri-
buída a Anaxágoras, Solon e Xenofonte (Michaelis de Vasconcelos ( 1885) p. 871 ).
53 purpúrea: da cor do sangue. O adjectivo é explicado por 1.62.
86 seguindo-o: ver as notas a Castro 1.755.
94-7 Levara-lo... não deras: se tu (Morte) o levasses (a omissão da con-
junção se é frequente em Ferreira). quiseras: se quisesses. não deras: não terias
dado.
99 as cousas ... desfezeras: a fama, que a morte não pode destruir. desfeze-
ras: terias desfeito.
102 Marcelo: filho adoptivo do imperador romano Augusto que morreu
jovem.
103-4 fora ... deixaram: teria sido ... deixassem.
114 da que: da vida que.
118 Que é de que vem que: frase elíptica, que podemos talvez entender
como "que surpresa haverá de que acontece que ...". Para a supressão de é ver a
nota a Ci4 1.58.

640
COMENTÁRIO

128 escuitado: escutado.


148-52 Pois tu ... gloriosa: frase algo confusa, porque Ferreira começa por
se dirigir ao morto Gonçalo Mendes de Sá, o tu de 1. 148, e acaba falando com a
sua própria elegia, 1.152. A ed. de 1595 tem um ponto de interrogação depois de
consentes, 1. 150. Assim a sintaxe fica salva, mas perde-se o sentido da frase, já
que o porque de 1.150 é evidentemente explicativo e não interrogativo. Preferimos
manter a parêntese da ed. de Michaelis de Vasconcelos, que ajuda a compreensão
do sentido, embora a sintaxe fique estropiada, pela razão exposta.
157 tal causa: ver 1.151. Os pais de Gonçalo geraram uma alma destinada à
vida imortal.

APÊNDICE 2

Textos da Castro de 1587

Quando Ferreira reviu a sua tragédia, foram muitos os versos que omitiu ou
reescreveu. No Apêndice reimprimem-se os textos mais longos que ele não quis
reter.

(i) Tirada do Infante D. Pedro (Acto ])

Em 1587, o Acto I abriu com uma tirada do Infante de 101 versos. Como se
sabe, a versão definitiva começa com um diálogo entre Inês e a Ama, mas Ferreira
aproveitou uma parte da fala de Pedro, transpondo-a para a Cena 3 do Acto I e a
Cena 1 do Acto V, conforme o esquema que se segue. Os versos da ed. de 1587
estão numerados segundo a ed. de Roig, pp. 94-103

Edição de 1587 Edição de 1598


1-38 1603-34
65 1624
75-76 455-56
79-89 389-99
90-3 1637-40
95 1643

No Apêndice 2 (i) reimprime-se o trecho central da tirada do Infante, ou


seja, 11.38-74 da edição de Roig, que foi omitido de PL, com a excepção de um
verso (1.65 da ed. de Roig; 1.28 da nossa) .

641
COMENTÁRIO

4 intristeces: forma não atestada em PL.


10 ventage: forma não atestada em PL onde se encontra normalmente van-
tagem.

(ii) Coros do Acto I

Na ~.ersão definitiva Ferreira modificou muito estas odes corais (ver as notas
ao Coro do Acto I de Castro) .

Título Sáficos: ver as notas ao Coro do Acto II de Castro.


_ 6-1 O Assi... sogeitas: na versão definitiva estes versos foram transpostos
para 11.1574-8.
33 .Júpiter... Alcumena: verso problemático, por causa da métrica. Para ter
um verso sáfiêo com 11 sílabas e acento tónico na 4\ é necessário ler Júpiter
como dissílabo e conservar a forma incorrecta Alcumena. Alcmena era a mãe de
Hércules. Júpiter é dissílabo também em 1.65.
Título mea rithma: termo que só aparece na versão de 1587. De uma análise
do coro vê-se que versos mea rithma são versos hexassilábicos, com acento tónico
sempre na 6ª sílaba. Portanto, cada verso mea rithma constitui a metade de uma
decassílabo normal. Bataillon (1964 ), que segue a nomenclatura espanhola, refere-
-se-lhes como heptasílabos.
54 Menalipe: ninfa amada por Neptuno, chamada normalmente Melanipe.

(iii) Versos do Infante (Acto V)

Este trecho, também de mea rithma, com que o Acto V se abriu em 1587,
foi inteiramente omitido da versão definitiva. Há uma discussão da tirada na ed.
de Roig, pp. 62-4.

APÊNDICE 3

Janius

Justifica-si a yublicação desta écloga anónima, em latim, porque tem muitas


semelhanças com Ecl2, Jânio (ver as notas respectivas e Earle (1995a) pp. 130-1).
Uma cópia encontra-s_f,,na Jorre do Tombo, MS da Livraria 2209, fóls 83v.-8~r.
(o fól. 83 é numerado duas vezes), a que se deu a abreviatura de AN1T. A poesia
'

642
COMENTÁRIO

foi editada em Martyn ( 1998) como sendo de André de Resende (pp. 334-7), mas
o editor não apresenta nenhuma razão que justifique tal atribuição. Na nossa trans-
crição modernizou-se a ortografia, conservando embora o J inicial de Janius . Nas
notas apontam-se vários erros métricos, alguns dos quais são provavelmente da
responsabilidade do autor anónimo.

3 flevere: com flerunt o 3. º pé seria trocaico, o que é inadmissível numa


composição, como esta, formada de dísticos elegíacos.
19 quae humidas: os bons autores latinos não aceitavam o hiato. Além
disso, a primeira sílaba de humidas é longa. Uma palavra formada de três sílabas
de que só a segunda é curta é inadmissível numa poesia deste tipo.
59 obscurum humido: verso que tem os mesmos erros que 1.19.
66 cortice scissa: antes de -se a sílaba final de cortice torna-se longa, o que
estropia a métrica do verso.

643
BIBLIOGRAFIA

A. FONTES DAS POESIAS DE ANTÓNIO FERREIRA:

1. Manuscritos:

Biblioteca Nacional de Lisboa, códices 2, 8610, 8920


Torre do Tombo, MS da Livraria 2209
Biblioteca Pública de Évora, códice Cvd/1-2

2. Impressos:

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Arthur Lee-Francis Askins, Cancioneiro de corte e de magnates (Berkeley e Los Angeles: Uni-
versity of California Press, 1968)
Diogo Bernardes, O Lima (Lisboa: Simão Lopez, 1596)
-, Rimas várias flores do Lima , ed. por Aníbal Pinto de Castro (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1985)
Pero de Andrade Caminha, Poezias (Lisboa: Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1791)
Luís de Camões, Terceira parte das rimas, ed. por D. Antonio Alvarez da Cunha (Lisboa: Antonio
Craesbeeck de Mello, 1668)
Cancioneiro Fernandes Tomás, ed. D. Fernando de Almeida (Lisboa: Museu Nacional de Arqueo-
logia e Etnologia, 1971)
Aníbal Pinto de Castro, 'O índice do Cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro: fac-símile e leitura diplo-
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Francisco de Sá de Miranda, Obras (Lisboa: Manoel de Lyra, 1595)
-, Poesias ed. por Carolina Michaelis de Vasconcelos (Halle: Max Niemeyer, 1885; facsímile, Lis-
boa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989)
Diogo de Teive, Epodon siue lãbicorum carminum libri tres (Lisboa: Franciscus Correa, 1565)

(ii) edições separadas de Castro

Tragedia muy sentida e elegante de Dona lnes de Castro (s.l. : Manuel de Lira, 1587; ed. facsimilada
em La Tragédie "Castro" d'António Ferreira ed. de Adrien Roig (Paris: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1971)

645
BIBLIOGRAFIA

Casrro Tragedia do Dourar Anronio Ferreira (Lisboa: Pedro Crasbeeck, 1598). Na realidade, esta
edição data de fins do século XVIII 1
A Casrro, ed. de Mendes dos Remédios (Coimbra: França Amado, 1915)
Castro em Texros quinhentistas, ed. de Sousa da Silveira, (Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Var-
gas, 1945)
Castro, ed. F. Costa Marques (Coimbra: Atlântida, 1961)
la Tragédie "Castro" d ' António Ferreira, ed. e com tradução para francês por Adrien Roig (Paris:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1971)
Castro, ed. de Augusto C. Pires de Lima (Porto: Domingos Barreira, s.d.)
The Tragedy of lnes de Castro, ed. e com tradução para inglês por John R. C. Martyn (Coimbra:
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1987)
Castro ed. por Silvério Augusto Benedito (Lisboa: Ulisseia, 1989)
Castro, ed. por T . F. Earle (Lisboa: Comunicação, 1990)
Nair de Nazaré Castro Soares, lnrrodução à leitura da Castro de António Ferreira (Coimbra, Alme-
dina, 1996) 2

(iii) edições completas ou parciais dos Poemas Lusitanos

Poemas Lusitanos (Lisboa: Pedro Crasbeeck, 1598)


Poemas Lusitanos, 2 vols (Lisboa: Irmãos Du-Bueux, 1771)
Poemas Lusitanos, 3• impressão, 2 vols (Lisboa: Typographia Rollandiana, 1829)
Obras Completas, ed. Conego Doutor J.-C. Fernandes Pinheiro, 2 vols (Rio de Janeiro e Paris: B.
L. Gamier e Augusto Durand, 1865)
Julio de Castilho, Antonio Ferreira poeta quinhentista: estudos biographicos-litterarios, 3 vols (Rio
de Janeiro: B. L. Gamier, 1875)
Poemas Lusitanos, ed. Marques Braga, 2 vols (Lisboa: Sá da Costa, 1• ed .. 1939-40, 2• ed. 1953-7)
Poemas Lusitanos, ed. F. Costa Marques (Coimbra: Atlântida, 1961) 3

B. OUTRAS OBRAS CONSULTADAS

Actas dos Conselhos da Universidade de 1537 a 1557, ed. por Mário Brandão e Ligia Cruz, 3 vols
(Coimbra: Publicações do Arquivo e Museu de Arte da Universidade de Coimbra, 1941-
1976)
Albuquerque: Caesar of the East, textos escolhidos e editados por T. F. Earle e John Villiers
(Warrninster: Aris & Phillips, 1990)
Fortunato de Almeida, História da igreja em Portugal, ed. Damião Peres, 4 vols, (Porto: Portuca-
lense Editora, 1967-71)
Augusto Ferreira do Amaral, História de Mazagão (Lisboa: Alfa, 1989)

1
Ver la Tragédie " Castro" d'António Ferreira, pp. 69-75
2
Ao longo do século XX têm aparecido várias edições de Castro , de fins meramente divulgativos. que
não estão alistadas na bibliografia.
3
Tal como no caso de Castro , durante o século XX têm aparecido antologias dos Poemas Lusitanos, de
fins divulgativos. que não estão alistados na bibliografia.

646
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655
ÍNDICE DE PRIMEIROS VERSOS

A esta lapa vimos, virgem santa ......................... ..................................... ................ .. ........... .. 98


Afonso d'Alboquerque, por ti escrito..................................................................................... 146
Águia divina que tão altamente .............................................................................................. 99
Ah, porque não posso eu em prosa ou rima. ......................................................... ................. 61
A Júpiter três deosas se queixaram ............................ ...... ..... ................................... .............. 87
Alegra-me e entristece a real cidade ........................................... ..... ...................................... 74
Alma inocente que teu véu despindo. ................ ................. ..... ....... ........ .. ... ........................... 94
À mão do pintor devo nova vida ...................................................... ...................................... 105
Anjo enviado a aparelhar as vidas .......................................................................................... 99
Antes que minha sorte impida ou mude........................................................................ ......... 35 I
Antigo pai das Musas desta terra.................................................. .......................................... 270
Ao touro cornos, unhas ao )ião .......................................................................... .. ................... 105
A paz, a mansidão, a alta bondade ......................................................................................... 373
A que alçarei os olhos, pois não vejo ........................................ ............................................. 76
Aquela a quem foi muito perdoado ........................................... ........ ..................................... 152
Aquela, cujo nome a meus escritos........................................................................................ 49
Aquela em vida morta na vontade .......................................................................................... 376
Aquela nunca vista fermosura ................................................................................................ 81
Aquela proveitosa liberdade ................................................................................................... 338
Aquele claro sol que me mostrava ...................................... ................................................... 81
Aqueles olhos que eu deixei chorando................................................................................... 71
Aqui as graças, virtudes e fermosura ......................................................... ............................ 376
Aqui d'üa part' o Douro, d'outra o Lima.. ............................................................................. 375
Aqui está o corpo santo do rei santo ............................................................................. :........ 372
Aqui jaz Betancor, chorou-o a morte. .................................................................................... 375
Aqui, Lícidas, canta; olha quão branda .... .............................................................................. 194
Aqui o grã capitão, e ilustre conde ......................................................................................... 374
Aspicis inclusum tumulo nunc corpus amici ................................ ......................... ,................ 473
Assi a poderosa ..................................... .................................................................................. 114
Assi da fonte cristalina e pura ................................................................................................ 73
A ti tomo, Mondego, claro rio.................................................... ............................................ 71
A vós só canto, espritos bem nascidos ................................................................................... 47
Bem podeis vós, senhora, ajuntar fogo ................................................. ........................ ......... 56
Bernardes, cujo esprito Apolo inspira .......... ,.. :.................... .. ........... ..................................... 91
Bom Vasco de Lobeira, e de grã sem ......................................................... .............. ,.. ..... ...... 95
Cante quem quer o furioso Marte ........................................................................................... 104
Castilho, de meus versos douta lima. .......................... ......................................................... .. 342
Choras António, e levam Lima e Douro ........................................... .. .. ................................ . 89

657
ÍNDICE DE PRIMEIROS VERSOS

Claríssimo Luís, a nova vida .. ...... ............................ ..... .... .. ... ... .......... .. .... ............... ..... ..... .... 140
Claríssimo marquês, em cujo esprito .................. ........ .. ...................... ............. .... ........... ....... 88
Co' a alma nos céus pronta, o esprito inteiro ................. ..... ........... .. ............ ..... .......... ... ......... 83
Com que mágoa, ó Amor, com que tristeza. .......................... ............... ....... .. ....... .......... .... ... 80
Constantino, tu vás provar tua sorte ...... .. .................... ... ..... .................................. ..... ..... ....... 347
Correndo os prados vai, correndo os montes........... ......... ............ ...... .................. ....... .......... 148
Daquela vista, de que se mantinham ... ..... ...... .. ................ ... ...... .... .. ...................... ..... ...... ...... 69
Darei choros ou cantos à tua morte ................... .. ...... .................. ........................................... 135
Das brandas Musas dessa doce terra ............................ ............... .. ............. ......... .... ... ......... ... 292
De Lícidas e Ménalo pastores .......... ........ .. ....... ........ .................. ......... .. .... ..... ...... ... .. ... .. ...... . 189
Desfeito o esprito em vento, o corpo em pranto ....... ........... ....... .................................. .. ....... 85
Despois de cinco lustros, já aquela hora .. ..... ....... .................................... ............. ..... ... ......... 97
Despois qu' o meu esprito, então só claro......................... ... .. ............................................... 69
Despojo triste, corpo mal nascido ............... ..... ....... ...... ... ..... ....... ...... ............................ ... ..... 80
Deste meu peito são em teu são peito ......... ..... ... ............. ..... ... .. ......................................... ... 279
Diante do cutelo riguroso .. .. .. .. .. .. ......... ......... ......... ................................. .. ...................... ....... 100
Dizem que antigamente o céu caía ................. .......................... .............................. ........... ..... 105
Do antigo Portugal , da grã Lisboa ............................. ............................................................. 344
Do bárbaro tirano os cruéis amores. .......................... ...................... .......................... ............ . 239
Doce amor novo meu tão bem tomado ................ .... .... ...... .. ........ ...... .. .. .. .. .. .. .. .... .. .. .. .. .. .. .. .... 65
Dom Simão da Silveira (este só nome .................................... ..................... .......................... 357
- Donas, quem sois? - Ciência, honra, bondade................................................................. ... 374
Donde tomou Amor, e de qual veia ............... ..... ......................... ....................................... ... 58
Do que em vós vi, senhora, me presenta..................... ........................................................ ... 76
Dos mais fermosos olhos, mais fermoso .................................. ................... ... ... ... .... ... .. ... .. .. .. 51
Dos segredos reais segura guarda ........................................... ......... ............... ,....................... 256
Eis nos torna a nascer o ano fermoso ........................................................... :."........................ 128
Eis o mar, eis o vento, espanto e medo .................................................................................. 97
Em dia escuro e triste fui lançado .... ............. ...... .. ..... .. .. ...... .. .. .. .. .. ... .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. ... .. .... .. .. .... 64
Em duas partes deixei lá partida ............................................................................................. 90
Em paz e em guerra üa esperança grande ... .............. ........ ..... ............. .......... ................ ...... ... 373
Enquanto solto ao sol brando ar movia.. ................................................................................ 60
Enquanto tu lá, Andrade, os votos santos .. .. .... ... ... .. ... .. ... ..... ... ........ .. ... .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .... .. .. .. .. . 90
Entre tantos negócios e tão graves ..... ............... ............. .... ... ......... .................. ....... ..... ......... . 319
Era alta noite, quando descansava .......................................................................................... 151
Escreve, Dom Diogo, escreve e canta ....... .. ............................................ ............................... 89
Espritos coroados da vitória ............................................ .............. .... ........ ............................. 101
Estas cinzas aqui, chorando, encerra.. .............................. .. ........................ .............. ............ .. 84
Estava Amor seu arco guarnecendo ................ ................. .......... ...... ........ ................. ............ . 227
Este peito, que está de fogo cheio ............................................ .............................................. 63
Este último favor só me concede.............. ............................ ............... ............ ................ ...... . 216
Eu não canto, mas choro, e vai chorando.............................. .. ...................................... ......... 50
Eu vejo arder teu peito em nova glória ... .... ........................ .. ..... .. .. ............ ................. ... ...... .. 88
Eu vejo inda aqui os sinais das águas ... .. ...... ... ..... ..... ......... ..... .. .. ............ .. ....... ...... ....... ... .... . 72
Eu vi em vossos olhos novo lume ... .............................................. ........ ...... ........ ....... ...... ..... . 65
Fez força ao meu intento a doce e branda ....... ...................... .............. ... ............................ .... 303
Filho segundo dei-rei João primeiro................ ............ ..... .......... ... ................... ...... ................ 372

658
ÍNDICE DE PRIMEIROS VERSOS

Fogem, fogem ligeiros ... .. .. .. ... .. .. .. .... .......... .... ........... ..... .................. ........ ..... ........... ..... ...... .. 122
Forjava em Lemno com destreza e arte................. .......... ................ ....................................... 106
Fuge o vulgo profano............. .................................................. ........ ............................... ........ 113
Fuja daqui o odioso .................... ........ .. ................... ..... .......................................................... I07
Furtou a aljaba a Amor, quando dormia............................................. .................................... I04
Gloriosos espritos, coroados ................................. ....... ......... ................... ............................... 93
Grã rei, senhor das casas do sol ambas .............................. ................ .................................... 253
Ilustre conde, d'entre mil eleito....................................... ............. ......... ..... .......... .. ................ 362
Já, generoso Afonso, já chegaste ................................................................ ............................ 126
Lágrimas costumadas a correr-me ................................ .......................................................... 52
Lá onde o claro Tejo a praia lava .................................................... ....................................... 199
Limiano, tu ao som do claro Lima .... ...... .. ...... .................. ............. .... ..... ....... ... ..... .. ......... ..... 9I
Livro, se luz desejas, mal te enganas ................... .. ............................................... ............. .... 49
Minha Musa, que baixa estava tanto ...................................................................................... 263
Mondego, tão soberbo vás da vista ........................................................................................ 54
Mostrou o que pode a mão, a tinta e arte ............................................................................... 103
Muitas vezes quisera, tal me vejo........................................................................................... 62
Não aparece o sol, triste está a terra ....................................................................................... 55
Não chores, mas alegra-te, elegia ............................ ......................................................... ...... 462
Não é minha tenção louvar aquela .......................... ............................................................... 51
Não lágrimas fingidas, não de cores....................................................................................... 66
Não mostra em toda parte....................................................................................................... 124
Não passes, caminhante, um pouco espera ............................................................................ 375
Não Tejo, Douro, Zézer, Minho, Odiana ......................................................... ...................... 53
Não tinha visto o sol daquele dia... .............................................................. .......................... 142
Ninfas do claro Almonda, em cujo seio ................................ ,................................................ 79
No campo do Mondego, ao meio-dia. .................................................................................... 209
No tempo qu'o cruel e furioso ......................................................... ....................................... 157
Num côncavo penedo, onde quebravam....................................... .......................................... 92
Ó alma pura enquanto cá vivias.. ........................................................................................... 79
Ó cabelos, de Amor rico tesouro. ........................................................................................... 61
O fogo que em meu seio guardo e crio .................................................................................. 62
Onde está aquela imagem pura e bela ...................................................................... ._. .. .. ..... .. 56
Onde me esconderei, senhor, de ti? ......................................................... ............................... 98
Onde, onde assi cruéis ...... .. .... .. .. ........ .. ................... ....... ................... .. ... .. .......... .. .................. 111
Onde quer que eu esteja, onde me vire ........... ....................................................................... 63
Ó olhos, donde Amor suas frechas tira ......................................................... ......... ...... .......... 55
Os dias conto, e cada hora, e momento.. ................................................................................ 70
Os qu' a fortuna deusa sua faziam ......................................................................................... 93
Parecerá, senhora, em outra idade................................................................................. ......... 53
Passa, amigo, não saibas a ventura ......................................... .... .......................... .................. 372
Pera ver-te, e ouvir-te só sou vindo ......................... ............................................... ................ 461
- Poeta queres ser, e ser letrado .................. ........... ... .. .............. .............. ............ .................. 365
Por Lília em vivo fogo Aónio ardia ........... ............. .. ... .............. ............................................ I 82
Porque, já que aqui ambos nos juntamos ..... ........... .......... ......... .. ............................... ........... I 85
Porque não ousarei livre contigo ............................. ............................................................... 327
Porque tão cruelmente .. ...... .. ............... ....................................... ........................ ..... .......... ..... I09

659
ÍNDICE DE PRIMEIROS VERSOS

Prenderam as Musas, por nova aventura. ....................... .. ............... .................. .. ........... ... ..... 103
Primeiro Afonso sou, filho de Anrique ...... ................................. ... .. .. ...................... .............. 371
Príncipes nossos, nosso bem e glória. ....................................... ......... .................................... 108
Promiti-te, meu Teive, à tua partida................................................. .. .................................... 332
Qual bom planeta, qual boa estrela ou sino ........................................................................... 83
Quando entoar começo com voz branda ............ ..... .. ............ ............. .................................... 54
Quando eu os olhos ergo àquela parte..................................................... ............................... 77
Quando eu os olhos ergo àquele rosto .................. .......................................................... ........ 77
Quando eu vejo sair a menhã clara .................... ................................ .............................. .. .. .. 67
Quando se envolve o céu, o dia escurece ........................................ ................................... .. .. 72
Quando será que eu tome a ter diante .................................................................................... 75
Quando vos vi, senhora, vi tão alto ...................................................................................... .. 66
Quantas vezes Amor comigo, cheio .......................................................................... .... ......... 60
Quanto d' amor se pode humanamente ............. ...................................................................... 94
Quantos suspiros, triste, e quão compridos ............................. ................... ,......... .................. 74
Quanto tempo, ó Andrógeu, não cantamos............................... ........... ............... .................... 203
Quão diferentemente Deus reparte ......................................................................................... 275
Que Apeles, que Lisipos poderiam ............................. :........................................................... 87
Que choras? Crês que é isso sepultura ................................................................................. 377
Que dizes, meu Lancastro, destes sábios................................................................................ 267
Quem é este de insígnias diferentes ....................................................................................... 371
- Quem jaz aqui? - Um corpo em que vivia.... ................................................................... 376
Quem não sabe a ventura e sorte estranha ............................................................................. 373
Quem pode acrecentar a luz ao dia .... ..... ............................. .. ...... ... .... ......... ....... ....... ..... .... ... 461
Quem pode, grã Jerónimo, louvar-te. ................................................................................ ..... 103
Quem p_od~ ver um ~oração tão tri~te .......................................................... _. ._.. ....................... 82
Quem tao igual espnto a meu deseJo ......... .................. ............... ............................. ............ .. 309
Quem viu neve queimar? Quem viu tão frio.. ...................................................................... 59
Que poderosas ervas nessa Beira. ........................................................................................... 298
Rainha santa, aos reis exemplo raro ....................................................................................... 100
Rei bem-aventurado, em quem parece ......... .... .................... .... .... ................................ .......... 313
Rei bem-aventurado, este é o dia ........................................................................................... 86
Sai minha alma às vezes a buscar-vos.................................................................................... 58
Sampaio, tu lá só..................................................................................... ................ ...... ... ....... 115
Se com vos ver, senhora, assi lá ardia... ...................................... ........................................... 75
S'erra minha alma em contemplar-vos tanto.......................................................................... 52
Se eu podesse igualmente mostrar fora. .................................................................. ........... .... 50
Se meu desejo só é sempre ver-vos .......................................................... .......................... .... 64
Se pastores de Deus foram ouvidos ........................................ ,.......................................... ..... 219
Sepultado em tristeza, em dor, em pranto .................. ............................................................ 84
Serás escrito e em alto som cantado ................................ ........... ....... ............................ ......... 121
Se saber, formosura e real estado ............................................. .. ............. ............................... 86
Se te conheço bem, dessas Atenas .. ................ .................... .......... ..... ............................. ....... 287
Se vós podésseis com desprezo ou ira ......................................................................... .. ... ..... 57
Soberba sepultura. alta grandeza .......................................................................................... .. 371
Sofrera-se melhor üa elegia.................................................................................. .. ................ 368
Solitário, que segues tão contente ........................................................................................ .. 96

660
ÍNDICE DE PRIMEIROS VERSOS

Sol , que já tantas voltas aos céus deste ......... ........ ...... .. .............. .................. ......................... 59
Tejo triunfador do claro Oriente...... ........ ............ ...................................... .. .................. .. ....... 70
Tem me Amor preso em üas redes de ouro......... .......... ......................................................... 68
Té quando assi, cruel. o peito duro ............................... ......................................................... 117
Teu nome, Andrade, de qu ' é bem qu ' esperem .............................................. ................... ... 259
Tristíssimo Francisco, quem podesse ........................................................... .......................... 131
Tu que coa língua feres, monstro és ................... .................................................................... 104
Oa fresca menhã, fria, orvalhosa ... ........................... ...... .. ............................ ............... .. ......... 177
Um tempo chorei, ledo co'a esperança.................................................................................. 82
Uns olhos que ao sol claro, à lua, ao norte.......... ................................................................... 57
Vai minha alma cansada a vós, buscando .. ................ ................... .... .. ................................... 68
Vai novo sol esclarecer o dia.. ...................................... ....... ................................................... 85
Vales, serras e montes, bosques, prados ................................................................................. 67
Vejo Alexandre, César, Cipião ................................................ :.............................................. 374
Vem, Maio de mil ervas, de mil flores ................................................................................... 138
Vês o sepulcro triste do formoso. ............................................................................ ............... 172
Víncio, eu vejo do Oriente a clara.............................. ...................................... ...................... 92
Vinha Amor pelo campo trebelhando ...................................... .............................................. 96
Vou de suspiros todo est' ar enchendo....................... ............................................................ 73

661
ÍNDICE ONOMÁSTICO 1
Abrantes, 619 Aristo (personagem de Segadores), 560
Acteão, 570-1, Aristóteles, 598
Adónis, 567 Arzila, 607, 613-4, 621
D. Afonso III, 628 Astreia, 586
D. Afonso IV, 508-9, 607, 625-38 Atenas, 523
D. Afonso V, 619 Atlanta, 572
Aganipe, 523 Atlas, 602-3
Agesilau, 579 Augusto (imperador), 529, 573-5, 616
Albuquerque, Afonso de (pai e filho), 530, 538- Ausónio, 516-7, 617
-40, 617,622 Ave (rio), 482
Alcácer-Quibir, 614 Aveiro, duques de (v. também Lencastre), 502-3,
Alcíone, 557 507,519,563,606,620,622
Alcipo (pseudónimo), 494, 499, 553, 556-8 A vinhão, 492
Alcobaça, 638 Azamor, 612
Alexandre Magno, 502, 519, 539, 584, 598, Baco, 607
605,609,616 Balsar (fortaleza indiana), 604-5
Alfarrobeira, 619 Barros, João de, 530, 638
Alfonso XI (de Castela), 627 Batalha (mosteiro), 618-20
Aljubarrota, 618 Beatriz (filha de Alfonso X de Castela), 628
Almonda (rio), 497 Beda,542
Amadis de Gaula, 508-9, Belém, 620
Anacreonte, Anacreontea, 515, 517, 535, 540-1, Bermúdez, Jerónimo, 634
Anaxágoras, 640 Bernardes, Diogo, 485, 505-6, 512, 515, 547,
Andreas, Hei ias, 515-7 555, 570,584,598-90,608
Andrógeo (pseudónimo), 558, 561-3 Betancor, Diogo de, 503, 508, 524, 534-5, 587-9,
Angeriano, Girolamo, 5 16-7, 552, 559-61 623
Aníbal, 529 Bizâncio, 522
Anthologia Palatina, 516-7, Boiardo, 554
Aónio (pseudónimo), 506,547: 551 -2 Bolonha, Matilde de, 628
Apeles, 502, 584 Boote, 541
Apolo, 485,523,529, 531-2, 544 Borba, conde de: ver Coutinho, Vasco de
Aquiles, 519,612 Borgonha, duques de, 619
Aragão, D. Francisca de, 558, 562 Boscán,Juan,488,576,612
Ariadne, 557 Bragança (casa de), 564
Ariosto, 554, 604, 612 D. Constantino, 527,530, 595,604, 606-7
Aristipo, 586 D. Fernando, 619
1
Neste índice, que se reporta ao Comentário, encontram-se as referências geográficas,
históricas, literárias e mitológicas mais importantes nele contidas.

663
ÍNDICE ONOMÁSTICO

D. Isabel , 565, 591-2 Cateau-Cambrésis (tratado de), 558


D. Jaime, 591, 606-7 Catulo, 519
D. João, 566, 591 Ceice, 557
D. Teotónio, 565 Célia, 506,
Branco, D. Afonso de Castel, 522-3 César. Júlio, 519, 529, 566, 609
Branco, Call}ilo Castelo, 537 Ceuta, 618, 640
Briolanja, 510, 5 16 Chaul, 530
Bruto, 573 Chipre, 523
Buchanan, George, 633 Cícero, Marco Túlio, 529, 577-8, 582. 595-6,
Cacegas, Fr Luís 601, 603
Cadaval, duque de, 639 Cila, 524
Cairo, 522 Cinzio, Gian Battista Giraldi, 629, 636
Câmara, Luís Gonçalves de, 597-8 Cipião, 529, 592, 607, 609-10
Camilo, M. Fúrio (herói romano), 607 Coimbra,
Caminha Armas da cidade, 550
Afonso Vaz, 527-8, 530, 606, 624 Biblioteca, 491
Gaspar de Sousa, 527-8, 624 Colégio das Artes, 520, 599, 633
João, 530, 623-4 Colégio de Jesus, 512, 520
Pero de Andrade, 504,507,514,517, 526-8, Convento de Santa Clara, 501
530, 537-8, 558, 560-2, 565, 575-6, 582-4, Convento de Santa Cruz, 513, 626
591,605,608,614,623,638-9 Universidade, 507, 520, 522, 524, 544. 575,
Camões, 480, 488, 547-9, 570, 583-4, 593, 595, 577, 585-8, 618, 621
605-6 Corte-Real, Jerónimo, 506-7, 514-5
Os Lusíadas, 483, 521, 523, 568, 594 Costança (primeira mulher de D. Pedro 1), 627
Cancioneiro Coutinho
de corte e de magnates, 509 D. Francisco, 613-4
de Évora, 541 D. Guterre, 622
Fernandes Tomás, 480, 550 D. Vasco, 578,580,616, 621-2
P' Pedro Ribeiro, 485, 509 Couto, Diogo do, 536, 604-5
Cápua,598 Crasso, 608
Cardoso, Jerónimo (lexicógrafo quinhentista), Creta, 524
614 Crinaura (pseudónimo), 545
D. Carlos (filho de Filipe II), 616, 620-1 Crisipo (filósofo), 596
Carlos V, 518-9, 566, 595 Cruz, Fr Agostinho da, 512-3
Carneiro, Pedro de Alcáçova, 574 Cunha, D. Antonio Alvarez (editor de Camões),
Carvalho, Gonçalo Dias de, 593 593
Casa do Cível, 614 Cupido, 502
Castálio, Castílio (pseudónimos), 549, 563-4 Dafne, 572
Castela, 520 Dáfnis (pseudónimo), 554-6, 559
D. Isabel de, 620 Damão, 604-5 , 607
Castilho, António de, 520,557,563, 585, 603-4, Dante, 488, 612
606 Dário, 608
Castor, 523. 570 David (rei), 589, 605
Castro, Inês de, 505, 509, 544, 625-38 Dédalo, 524
D. Catarina (filha de D. Duarte), 565-6 Délia v. Diana
D. Catarina de Áustria (rainha), 557, 564, 567, Diana (deusa), 490, 500, 543-4, 565, 570-1
595,597,616,618 Dido,509,516-7 , 557

664
ÍNDICE ONOMÁSTICO

D. Dinis, 509,539, 607,618,628, 631-3 D. Henrique (conde ; pai de D. Afonso Henri-


Diógenes, 587 · ques), 607
Dionísio (tirano de Siracusa), 578, 614 Henriques, D. Afonso, 526, 544, 597-9, 607 ,
Diu, 601 617-8, 626-7
D. Duarte (príncipe), 526,564, 591-2 Hércules, 524, 594, 612, 630
Senhor D. Duarte (príncipe), 526-7, 559-60, Hero, 557-8
575-6, 584, 591-2 Hidaspe, 482
Eça, D. Catarina de, 567 Hidra, 594, 612
Eco,559 Himeneu, 567
Egito, egípcios, 604, 607 Hipocrene, 523
Endimião, 536, 557 Homero, 578, 605, 612
Eneias, 537, 596, 612 Horácio
Énio, 583 Ars poetica , 576, 583-4, 589-90, 596, 600
Eurídice, 500 odes e epodos, 481 , 518, 520-5, 527-8, 530-1,
Fábio (Quinto Fábio Máximo), 539, 607, 610 534,604,632
Fabrício, 608 sátiras e epístolas, 574,579, 581-6, 588,590,
Falcino (personagem pastoril), 560 595-6, 598-604, 609- I0,614,617
Famese, Hungria, 522
Alessandro, 564-7 D. Isabel (filha do infante D. Pedro), 619
Ottavio, 566 Isaías (profeta), 558
Febo v. Apolo Itália, 524
Fedro (autor romano), 588-9 Jânio (pseudónimo), 546-8, 559
D. Fernando, 636 Jerónimos (mosteiro), 519
Ferreira Jerusalém, 522
Garcia Fróis, 523-4, 556-7, 581 Jesus, Fr. Tomé de, 635
Miguel Leite, 491, 508-9 D. Joana (princesa), 500-2, 518-9, 543, 620-1,
Filipe II, 564-5, 616 625
Fílis (pseudónimo), 547, 558, 562-3, 583 D. João (príncipe), 500-2, 518-9, 526,529, 532-
Filomela, 545 4, 543, 547-8, 554, 567,573,583, 620-l, 625
Flora, 492 D. João I, 607, 618
Flóris (pseudónimo), 556 D. João II, 619-20, 622 .
Franco (aldeia trasmontana), 569 D. João III, 501,507,519, 526-7, 573-5, 577-8,
Furtado, Fr.João,507,520,585 594, 599,606, 613,620- I, 626
Garcilaso, 487-8, 503, 543, 576, 612 João (rei de Chipre), 620
Gélio, Aulo, 596, 598 D. Jorge (filho de D. João II), 570, 579, 619,
Getas, 637 622
Girón D. Juan (filho dos Reis católicos), 620
D. Magdalena, 502 Juana 'la loca', 566
Juan Téllez, 502 Juliano (conde), 630
Goa, 530, 605,613 Juno, 502
Góis, Damião de, 581 Júpiter, 502, 506, 529, 630
Granada, Fr. Luís de, 597 Juvenal, 598
Guadiana (rio), 482 Lamas de Orelhão, 569, 571-2
Helena, 523 Lara, D. Juliana de, 569
Heliogábalo, 596 Laura (amada de Petrarca), 485, 492-3 , 498
D. Henrique (cardeal), 500-1, 567, 584, 593-7, Leandro, 557-8
618 Leão, Duarte Nunes de, 619

665
ÍNDICE ONOMÁSTICO

Leitão, João Lopes, 604-6 António, 503-4, 531-3, 577-8, 580, 601 -3,
Leite, Maria, 491, 494, 569 614, 617 , 622
Lencastre Francisco, 507-8, 528-30, 532-4, 547-9, 558,
D. João (duque de Aveiro), 546, 563-4, 619 577-8,608,616,622
D. João (filho ilegítimo do duque D. João), Henrique, 578
507, 519-21 , 569, 578-9, 584-6 João Rodrigues ou Roiz, 504, 529, 533, 577-
D. Jorge, 502-3, 519,546,567 81, 601, 621-2
D. Pedro Dinis, 502,519,567,569 Mercúrio, 616
Leoni, Leone, 519 Midas, 571
Lésbia (pseudonimo ), 5 16, 545 Minerva, 591-2, 605,611
Lícidas (pseudónimo), 555 Miranda, Francisco de Sá de, 479, 489, 507-8,

º·
Licurgo, 576 521, 546-7, 557-9, 568, 574-5, 578, 581 ,
Lília (pseudónimo), 506, 551 583-6, 589, 595-6, 608-1 639-41
Lima (rio), 482, 505 Mondego (rio), 482, 485 , 492, 525, 559, 637
Lima, D. Francisco de, 504 Moniz, D. Martim, 526
Limiano (pseudónimo), 505-6 Montoya, Fr. Luis de, 597
Lino, 549 Morais
Lira, Manuel de, 505 Cristóvão Alão de, 494
Lisboa, 500, 524-5, 543 Francisco de, 480
N. S. da Esperança, 600 Mosco, 540
Rua Nova, 587 Nebrija, Antonio de, 611
S. Vicente de Fora, 600 Nero, 596
Lisipo, 502, 584 Noronha
Lívio, Tito, 601 D. Ângela, 495, 504, 623
Lobeira, Vasco de, 509 D. Camila, 529
Lobo, Francisco Rodrigues de, 606 D. Caterina, 504
Lopez, Simão, 589 D. Inês, 504, 532 ..
Lucena, Fr. João de, 480 N. S. da Lapa, 511-2
D. Luís (príncipe), 526 Nunes, Pedro, 602
Machado, Diogo Barbosa, 556 Onfale, 626
Magálio (pseudónimo), 549-50 Orfeu,500,540,553,559
D. Manuel, 568, 620-2 Osuna, duque de, 502
Marcelo, 640 Ourique, 526, 632
Margarida de Áustria, 564, 566 Ovídio, 545, 557
D. Maria (filha de D. Duarte), 564-8 Ovílio (pseudónimo), 556
María (princesa; filha dos reis católicos), 566 Palas, 544, 565, 605
Man1ia (pseudónimo), 494, 553, 555 Pales, 492
Maro: ver Virgílio Pan,562
Marramaque, António Pereira, 574 Panónia, 567
Marrocos, 597 Papas
5 mártires de, 513 Júlio III, 556
Marte,517,546,611 Paulo III, 566
Meca, 539 Paulo IV, 521 , 596
Melanipe ou Menalipe, 642 Pio II, 619
Menelau, 579 Pio IV, 521
Meneses, D. Aleixo de, 598 Paris Uuízo de), 502, 544
Sá de Meneses, 494-5 Parma,566

666
ÍNDICE ONOMÁSTICO

Paterno, Lodovico, 483 Sá, Gonçalo Mendes de (filho de Sá de Miranda),


D. Pedro (infante), 508, 618-9 639-41
D. Pedro (condestável de Portugal e rei de Sabá, 532
Aragão), 620 Sabélico, 573
D. Pedro (príncipe; depois rei), 505, Salado, 607, 627
Pereira, Nun'Álvares, 607 Salício (pseudónimo), 507-8
Petrarca, 612 Salmos, 511
Canzoniere, 479-87, 492-3, 495-500, 505, Sampaio, Manuel de, 524, 586-7, 608
548,565 D. Sancho I (de Portugal), 607
Obras latinas, 592 Sancho III (de Castela), 539
Trionfi, 510 Sancho IV (de Castela), 627
Piacenza, 566 Sannazaro,506,543,548,550,552
Piério (pseudónimo), 547 Sansão, 542
Pimentel, Maria, 488, 491, 494, 496-9, 504-5, Santa
511,524,537,553,555,617,624 Comba dos Vales, 560, 568-72
Pina, Rui de, 618-9, 622, 628, 633 Isabel, 512
Platão, 534, 582, 598, 614 Isabel, Rainha Santa, 501,509,513,544,633
Plínio o Velho, 581 Maria Madalena, 509,512, 541-2, 624
Plutarco, 533, 576, 598 Santo, São
Pó, 525 Agostinho, 598
Policiano, 540 Bernardo, 601
Pólux, 523, 570 Francisco, 513
Pomona, 492 João Baptista, 512
Porto,491-2,495 , 504,509,532,622 João Evangelista, 512,541,624
Porto Seguro, 503 Lionardo, 569
Prometeu, 523 Lucas, 511-2, 542
Prosérpina, 540 Mateus, 511,530, 541-2, 570,598, 601
Ptolomeu, 602 Saturno, 511,529,532
Quintiliano, 533 Saul, 594
Redondo, conde de (v. D. Francisco Coutinho e Sázio (pseudónimo), 547, 558
D. Vasco Coutinho) D. Sebastião, 500-1, 533,546,554, 566-7, 591-3,
Reis (Livro do Antigo Testamento), 594 596,630,638
Resende Séneca, 632
André de, 591 Medea, 635
Garcia de, 620 Octavia, 626, 633
Ribeiro, P'. Pedro, 485 Phaedra, 630, 637
Ródano (rio), 492 Troades, 633, 636
Rodes, 522 Sernancelhe, 511
Rodrigo (rei godo), 630 Serra (apelido), 481,492,524, 543-4, 560,569
Rodrigues, Bernardo (escritor quinhentista), Serrano (pseudónimo), 543, 560, 563-4, 569
613-4, 621 Sérvio (comentador de Virgílio), 612
Roma, 525, 543 Sicília, 524
Aventino, 600 Sículo, Cataldo Parísio, 580
Quirinal, 600 Silva, Jorge de, 541
Rómulo, 607 Silvano, 560
Rucellai, Giovanni, 632 Silveira
Sá, D. Camila de, 580 António da (capitão de Arzila), 614

667
ÍNDICE ONOMÁSTICO

D. Luís da (conde de Sortelha), 610, 613 Torres Novas


D. Simão da. 499-500, 610-1 , 614 marquês de , 502-3
Vasco da, 614-5 vila, 497
Sincero (v . Sannazaro) Trajano, 573, 575
Sintra, 492-3 , 496, 557 Tróia, 630
Siqueira, António de, 480 Turquia, turcos, 501, 522, 548, 558, 571, 605
Sol v. Apolo Ulisses, 537
Solon, 640 Ureõa, conde de, 502
Sousa Vasconcelos
D. Caterina de (irmã de Pero de Andrade Ca- D. António, 525-6, 536
minha), 514 D. Fernando, 525-6, 536
D. Filipa de (mãe de Pero de Andrade Cami- D. Luís Fernandes, 525, 536-7
nha), 623 Vénus, 482, 490, 502, 506, 511,515,517,531-2,
Manuel de Faria e, 509, 556 545, 555, 562,629
Stephanus, Henricus, 515-7 Vicente, Gil, 610
Teive, Diogo de, 551-2, 565, 589, 593, 599-60 I, Vila Nova de Cerveira, visconde de, 504
638-9 Vilhena, D. Branca de, 537
Johannes Princeps, 625, 632-3 Víncio (pseudónimo), 506
Tejo (rio), 482, 492, 494, 500 Virgílio, 494, 509, 5 I 6, 5 I 9, 523, 525, 532, 548-
Tempe, 555 56, 561-2, 573, 578, 583, 585-6, 589, 592,
Teócrito,555-6, 559-60, 562, 612 600-1, 612,614
Teseu, 557 Viseu, duque de, 622
Tétis, 483 Vulcano, 490,517, 546
Tibre, 525 Waldseemüller, 543-4
Títiro (pseudónimo), 548-50 Xenofonte, 640
Toar ou Tovar, D. Ana de, 504, 623-4 Zurara, 603
Toledo, cortes de, 620

668
ÍNDICE DAS PALAVRAS COMUNS COMENTADAS

aceiro ciil0 1.29 cássia ecl2 1.31


acidente ci6 l.72 catando sii34 l.13
acipreste ell 1.46 cativamos se 1.45
acolhei ta ecll0 1.114 cedro ci3 1.7
adarga cii3 l.99 ceiceiro ecl3 1.7
a de parte ciil0 1.4 chamar Castro 1.103
afronta si3 1.13 consoante ciilO 1.86
ainda que sii39 l.3 consume cii2 l.207
ajuntamento ep 1.73 contramuros ci6 1.130
ai oi5 l.31 cópia ci3 1.17
alboroço ap 1(iii) 1.42 cor ecl4 l.40
alifante ciil 11.58 cores ciil2 l.24
aljaba oi8 l.51 corado cii5 l.80
alma máquina cii5 1.43 coreias se 1.14
altura cii5 1.37 couraças cii3 1.99
amor novo si33 crem ci9 l.48
ao seu cii2 l.42 danar Castro 636
após oii5 l.12 defensa cii3 1.171
aprougue sii33 l.5 de monte a monte ecll 1. 208
aranha ciil2 demostra cill l.12
arço si21 l.2 de parte a parte cii5 l.122
arraiados Castro 1.928 de prão sii33 l.2
arreceoso ciil 11.36 de que ap 1(iii) 1.25
assi si501.1 dereitos ci7 1.144
assome si26 l.8 descobrir Castro 1.92
atalhar Castro 1.636 descobriram ciil 1.50
atão sii33 l.5 descustumada oi5 1.6
atégora sii38 l.6 desembargador ciil2
avença ciil3 1.81 despadace epig5 1.7
aventura cii3 l.90 despejo el2 l.34
bailos se 1.99 se despeja ciilO 1.11
bejo el7 l.68 despondo cii91.I II
botas si41 1.14 desponhas ecl5 1.22
cá sii33 1.12 desposto sil7 1.7
cambade sii33 1.11 devinha ci6 l.99
cambos cii4 1.19 diligência, diligente ciil31.14
cárcer sii2 l.9 dões siil8 1.8
carvalho el6 l.4 donde ciil 1 1.40

669
ÍNDICE DAS PALAVRAS COMUNS COMENTADAS

dos pés nua el7 1.2 i oi7 1.36


duas si45 1.5 ideia ell 1.83
emparo ecll l 1.31 imos oi3 1.53
empece Castro 1.184 impida cii9 I.I
em preço ci8 1.215 impírea, e15 1.98
entrambos cii4 l.21 impírio se 1.20
encruece el3 l.28 inferior ciil2
encuberta ecl 11 1.100 influências ciil2 l.76
ende sii33 4 informavas ell 1.59
endoado sii33 10 inteiro cii I 1.190
enova ecl7 1.168 intristeces ap2(i) 1.4
enquanto el4 l.7 is ecl121.109
entalhada el5 1.10 jornal ecll0 1.214
entremês ciil2 1.4 lanças ell 1.27
enzinho si9 1.5 latas se 1.251
er sii33 l.14 laureiro el2 l.29
errar cii81.117 ledice sii34 1.3
erva ep 1.233 letrados ci2 1.104
escadrões ci3 l.84 letreiro oi2 l.26
escritura sii36 l.6 lhe ci7 l.47
escuitado ap 1(iii) 1.128 linha cii5 1.37
escurece sii21.196 lograr Castro 1.986
escumosas cii7 I. II márrnor se 31
espaço ecll0 1.213 mea rithma ap2(ii)
esparzido ciilO 1.4 mediocridade cii3 l.103
espede ecl5 1.22 moimento e19 l.59
espinhas cii2 1.30 mortal ecll 1.384
espiraram ecll 1.148 mouro si27 l.3
estâmago ciil2 mouta se 1.333
esté ell 1.117 movimentos ecll 1.65
estê, estêm ecl8 1.110 muimentos ci5 l.72
estremos ci6 l.76 mundo oil 1.18
fábula se 1.13 natural ciil2 l.43
facúndia el2 l.34 noda cii8 l.23
falido sii34 10 nuve apl(i) 1.8
faro si41 l.4 obgeito si53 l.2
feiice oi2 l.5 obrigar ecl 1 1.19
forçar ecll 1.19 ofrece sii39 l.8
forçados ci91.131 o outro cii2 l.49
frágua si47 l.5 oriente el6 l.20
frangue cii8 1.94 padeses cii3 l.99
grã Castro 1.45 palma oi3 1.54
grão ci7 1.56 páreo se 1.369
hera oi3 1.54 parte si30 1.10
heroas se 1.5 partes cii3 1.71
homem Castro 1.270 passadores ep 1.140
humanidade ciilO 1.35 passam Castro 1.1522

670
ÍNDICE DAS PALAVRAS COMUNS COMENTADAS

pejo cil2 l.28 sentenças ci3 1.17


pena oi5 1.3 servidor cii7 1.85
penhores Castro 1.110 sestra sii34 1.13
per ep 1.143 sia sii34 l.5
percebamos ecl 1 1.106 sigue Castro 1.408
perdoar el5 1.68 simplex Castro 1.1705
peregrino cil3 1.10 sino sii!O 1.1
persigam cii2 1.132 soberia sii2 1.7
piadade cii21.111 sofria ci2 l.43
pintura ecl5 1.61 sogigado oii2 1.32
planta sii18 1.2 sóis ( de soer) Castro 1.1279
polo seu ci2 l.73 somenos cii9 l.177
ponto ecll l.371 soverte ciil2 l.28
por mor que epitl 1.6 sovortestes Castro 1.1711
premeira ci7 1.144 suão ecllO 1.125
primeiro cii3 l.162 subiu siil 1 1.8
prosápia ci4 l.88 tarro ecl7
psalteiro ecll 1.368 tégora sii35 1.6
purpúrea apl(iii) 1.53 temer Castro 1.711
quadratura cii5 1.37 tenção ci5 1.10
quando Castro 1.147 tençoeiro cii9 l.54
queixumes ecll 1.209 tento si28 1.11
quem si 14 1.12 téqui ep 1.153
quimera cii12 tercetas ciil2
recambos cii4 l.19 texto ciil2 1.5
referta ecl3 l.46 tomar el4 l.27
rei oi4 l.20 tosca ec191.61
releve cii 1 1.163 trebelhando sii34 1.1
rem sii331.4 Irões cii71.6
reparos ep 1.378 trova se 1.333
rependimento ci!O 1.95 trunfas oi2 l.8
reprenda cii3 1.165 usso se 1.115
reto cii12 l.7 valas ci6 1.130
revezadas ci li 1.98 vantagem ap2(i) 1.10
rim si46 1.13 vás si!! 1.1
roge se 320 vedar Castro 1.92
roim cii12 vencer si56 l.10
rume cii6 l.31 vendita sii34 1.11
sáficos Castro 1.1562 ventage ap2(i) 1.1 O
samponha ecl 10 1.50 venturaram cilO 1.57
sazom sii34 1.5 véu sii37 1.13
sem sii33 l.1 vodas ecl 1 1.105
sembrante sii9 l.2 volta sii3 1.3
senador ciil2

671
ÍNDICE GERAL

Prefácio .................................................................................. ................................................. 3


Prefácio à 2.ª edição ............................ ... ............... :................ .......................................... ....... 5

Introdução

I Aspectos literários dos Poemas Lusitanos.. .... ....................................................... ....... 7


2 Características da edição presente dos Poemas Lusitanos.................................... .... .. .. 22
3 A edição dos Poemas Lusitanos de I598 o seu valor como texto-base ......... ........... 27
4 Os problemas textuais da tragédia Castro.... .......... ... .. ...................................... ........... 37
5 A métrica dos Poemas Lusitanos .. .. ... .. ............ .................................................... ......... 39
6 Nota ao leitor ........................................................................... ................... ................ ... 42

Lista das abreviaturas. .. .. ..... .................................................................................. ........... 43

Poemas Lusitanos

Aos bons ingenhos ........................................................................................................... 47

Sonetos, Livro I ............... .......................................... .................. ................. ..... ..... .......... 49

Sonetos, Livro 11 ...... ...... .... ...... .................................................... ........ .... ... ......... .. ........ ... 79

Epigramas ....................... ............ .......................................... ........................ ...... .............. 103

Odes, Livro I
1. ........................................... ..... ................................................................................. 107
2 Aos Príncipes D. João e D. Joana. ............ ............ ................ .................................. 108
3 AD. João de Lancastro, filho do Duque de Aveiro .. ........................................... .. 109
4 Aos reis cristãos................................................... ........................................ ........... 11 "1
5 A D. Afonso de Castel Branco ................................................... ............................ 113
6 A üa nau da armada em que ia seu irmão Garcia Fróis.................................... ...... 114
7 A Manuel de Sampaio................................... ...... ...... .............................................. 11.5
8 A D. António de Vasconcelos ....... .. ......................... ............................. ................. I 17

Odes, Livro II
1 Ao Senhor D. Duarte, filho do lfante D. Duarte ....... .. ............... ............................ 121
2 A Pero de Andrade Caminha ............................................ ... .. ................ ...... :.... ...... 122
3 A Francisco de Sá de Meneses .................. ....................................... ,.. ..... ... .. ......... 124
4 A Afonso Vaz caminha, na Índia .......,................................................. ............. ..... . 126
5 A António de Sá de Meneses...................... ......................... ........ ....... .................... 128

673
ÍNDICE GERAL

Elegias
1 A Francisco de Sá de Meneses, na morte do príncipe D. João .......... ..... ............... 13 1
2 Na morte de Diogo de Betancor ............................................. .... ............................ 135
3 A Maio ................. .... ............................... ........................ ..................................... ... 138
4 AD. Luís Fernandes de Vasconcelos, vindo da índia ............................................ 140
5 A Pero de Andrade Caminha, em resposta de outra sua ...................... .... .............. 142
6 A Afonso de Albuquerque .. ...... ................................................. ......... .................... 146
7 Amor Fugido, de Mosco ...................................................................................... ... 148
8 Amor Perdido, de Anacreonte ..... .... ..... ..... .................... ..................... .. .... .............. 151
9 A Santa Maria Madalena ...................................... .................................................. 152

Éclogas
1 Arquigâmia... ............................ ....... ...................................... ..... ........ ..................... 157
2 Jânio .............................................................................................. .......................... 172
3 Títiro......................... ............... .............................................. ........ ....................... ... 177
4 Lília .......................... ................... ............................................................ ................ 182
5 Tévio ........................ ........................... .................................................................... 185
6 Mágica ...................................... ............................................................................... 189
7 Dáfnis ......................... ................... ............................ .. ............................. .... ........... 194
8 Flóris ..................................... :...... ........................................................................... 199
9 Miranda ................ .............. ... ............ ............ ... ....................................................... 203
1O Segadores ..... ................. ... ........................ ... ... ............ ......................... ............ ...... 209
11 Andrógeu ............................................................................................................... 216
12 Natal ............................................................................................................... ....... 219

Epitalâmio ao casamento da Senhora D. Maria com o Senhor Alexandre Farnês .......... 227

História de Santa Comba dos Vales ................................................................................. 239

Cartas, Livro I
1 Congratulação de todo o reino a el-rei D. João III.. ............. ........................ .......... 253
2 A Pero de Alcáçova Carneiro, secretário.................................................... ............ 256
3 A Pero de Andrade Caminha .................................................................................. 259
4 A António de Sá de Meneses ........................ .......................................................... 263
5 AD. João de Lancastro, filho do Duque de Aveiro ............................................... 267
6 A João Ruiz de Sá de Meneses, no Porto ............................................................... 270
7 A Garcia Fróis Ferreira, seu irmão ......................................................................... 275
8 A Pero de Andrade Caminha ................. ..................................... .... ........................ 279
9 AD. João de Lancastro, filho do Duque de Aveiro, em Coimbra ......................... 287
10 A Manuel de Sampaio, em Coimbra .................................... ................................ 292
11 A Diogo de Betancor .. ....... ... ....... ... ............. ......... ........ ... .......... ....... ... ................. 298
12 A Diogo Bernardes ..... ... ........ ... ....... .. ................ ... ............. .... ..... ... ..... .... ........ ... ... 303
13 Ao Senhor D. Duarte ....................... ........................................ ....... .............. ........ 309

Cartas, Livro II
1 A el-rei D. Sebastião ....................................................... ..................... ................... 31 3
2 Ao Cardeal lfante D. Anrique, regente ........................... ........... ....... ...................... 3 19

674
ÍNDICE GERAL

3 A Luís Gonçalves da Câmara, mestre dei-rei D. Sebastião .. .... ................. ............ 3'27
4 A Diogo de Teive...................... ............... .......................................................... ... .. 332
5 A António de Sá de Meneses ............................................................................. ..... 338
6 A António de Castilho ............................. .. ... ................. .................... .. .. ............ ..... 342
7 A João Lopes Leitão, na índia. .................................. ............................................. 344
8 AD. Constantino, filho do Duque de Bragança, indo governar a Índia................ 347
9 A Francisco de Sá de Miranda.... ............................................................................ 351
10 A D. Simão da Silveira......................................................................................... 357
11 Ao Conde de Redondo, D. Francisco Coutinho, regedor. .................................... 362
12 A Vasco da Silveira ..................... ......................................................................... 365
13 A Francisco de Sá de Meneses .............. ................... ...... ..... ................................. 368

Epitáfios............................................................................................................................ 371

Castro
Acto 1.... .... ...... ... .. ... ......... ... ..... ......... ... ... ......... .... ..... ..... ..... ............. ..... ... .... .. .. ........... 379
Acto II ........................................................................................................................ 405
Acto 111 ....................................................................................................................... 419
Acto IV. ...................................................................................................................... 435
Acto V ........................................................................................................................ 453

Apêndices
1 Poesias não incluídos nos Poemas Lusitanos. ........................................................ 461
2 Textos da versão de 1587 da Castro....................................................................... 467
3 Janius ....................................................................................................................... 473

Comentário ....... ... .......... .. .... ..... ... ... .. ................ ...... ................. ..... .... ....... ..... ......... ... ..... ........ 477

Bibliografia ......................... .............................................. ... ........... ... .. .................................. 645

Índices
índice de primeiros versos ....................................................... ........................................ 659
Índice onomástico........................................................................ ..................................... 663
índice das palavras comuns comentadas.......................................................................... 669
índice geral. ................................................. ..................................................................... 673

675
Esta 2ª edição de POEMAS LUSITANOS, de ANTÓNIO
FERREIRA, foi composta, impressa e brochada para
a Fundação Calouste Gulbenkian, nas oficinas da
I'mprensa Portuguesa - Porto
A tiragem é 500 exemplares

Março de 2008
Depósito Legal n.º 269882/08
ISBN 978-972-31-1233-7
EDIÇÕES DA FUNDAÇÃO
CALOUSTEGULBENKIAN

Manuais Universitários

Mecânica Quântica
- Filipe Duarte Santos
- António Joaquim Barbosa
- João Nobre Batista

Textos Clássicos

Lógica. A Pergunta pela Essência da Linguagem


- Martin Heidegger

Cultura Portuguesa

Obra Completa do Pe. Manuel Antunes


Volume V -Tomo I e II

Sobrecapa de Victor da Silva


SÉRIE DE CULTURA PORTUGUESA
DAS EDIÇÕES DA FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN

Aparecendo embora depois de outras , talvez que esta série do Plano


de Edições da Fundação Calouste Gulbenkian possa considerar-se
anterior às que a precederam: pois não foi sempre na Cultura
Portuguesa que se pensou ao projectar e fazer tudo quanto já existe
no referido Plano? Agora e aqui trata-se apenas de explicitar, criando
um lugar próprio reservado aos testemunhos válidos da singularidade
e da autenticidade da nossa cultura, seja qual for o quadrante onde se
localizem . Interessa-nos documentar o que somos e temos sido no
campo das letras e das artes, da reflexão e do saber; procuramos
atingir a realidade colectiva nacional, que se criou pensando e
agindo , aprendendo e inventando, conhecendo ou descobrindo os
outros, mas sentindo-se sempre diferente deles. Uma realidade que é
viva e se interroga à medida que vive: o clássico e indecifrado
enigma histórico de tudo o que é humano e existe no tempo .

ISBN 978-972-31 -1233-7

9 789723 112337

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