Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
de Samuel Beckett
Covil de Krapp.
Andar laborioso.
[Pausa.]
O trigo, vejamos, pergunto a mim mesmo o que entendo por tal, entendo...
[hesita]... suponho que entendo por isto todas as coisas que ainda valerão a pena
quando toda a poeira tiver – quando toda a minha poeira tiver assentado. Fecho
os olhos e tento imaginá-las.
[Pausa.]
Acabo de ouvir um ano remoto, passagens ao acaso. Não conferi no livro,
mas isto deve ter sido, no mínimo, há dez ou doze anos atrás. Naquela época,
acho que ainda vivia com Bianca, em Kedar Street. Escapei de boa, ah, se
escapei! Era um caso perdido. [Pausa.] Nada a respeito dela, a não ser um tributo
aos seus olhos. Muito ardentes. Repentinamente tornei a vê-los. [Pausa.]
Incomparáveis! [Pausa.] Bem... [Pausa.] Essas velhas evocações são horríveis,
mas muitas vezes as considero – [Krapp desliga o aparelho, medita, liga o
aparelho] – uma ajuda antes de embarcar em uma nova... [hesita]...
retrospectiva. Difícil de acreditar que algum dia eu tenha sido tão imbecil. Aquela
voz. Jesus. E as aspirações. [Risada breve à qual se junta Krapp.] E aquelas
conclusões. [Risada breve à qual se junta Krapp.] Beber menos, em particular.
[Risada breve de Krapp, sozinho.] Estatísticas. Mil e setecentas horas, fora o
precedente das oito mil adicionais, consumidas em pequenas coisas inúteis.
Mais de vinte por cento, digamos quarenta por cento da sua vida
acordada. [Pausa.] Planos para uma vida sexual menos... [hesita]... cativante.
Última doença de seu pai. Procura desanimada da felicidade. Laxação
inatingível. Zomba sobre o que ele chama de sua juventude e agradece a Deus
que ela tenha terminado. [Pausa.] Falsa nota ali. [Pausa.] Sombras do opus...
magnum. Encerrando com um – [risada breve] – uivo para a Providência. [Risada
prolongada à qual se junta Krapp.] O que restou de toda aquela miséria? Uma
garota com um casaco verde surrado, na plataforma de uma estação de trem?
Não?
[Pausa.]
Quando olho –
[Krapp desliga o gravador, medita, olha para seu relógio, levanta, vai até
o fundo do palco que está escuro. Dez segundos. Barulho de estourar de rolha.
Dez segundos. Segundo estourar de rolha. Dez segundos. Terceiro estourar de
rolha. Dez segundos. Breve interrupção por uma canção entrecortada e trêmula.]
Sombras –
[Acesso de tosse. Ele volta até a luz, senta-se, limpa a boca, liga o
gravador, assume postura de ouvinte.]
A FITA: – para o ano que passou, o qual espero que talvez tenha trazido
de volta o antigo brilho de meu olhar, existe, é claro, a casa no canal onde
mamãe esperava pela morte, no último outono, após sua longa viuvez [reação
de Krapp] e o – [Krapp desliga o gravador, volta um pouco a fita, aproxima seu
ouvido do aparelho, liga-o novamente] – esperava pela morte, após sua longa
viuvez, e o –
A FITA: – banco perto da represa, de onde eu podia ver sua janela. Ali eu
me sentava, sob o vento cortante, desejando que ela tivesse partido. [Pausa.]
Raramente uma alma, apenas frequentadores, babás, crianças, velhos, cães.
Acabei por conhecê-los muito bem – quero dizer, de vista, é claro! Recordo
particularmente de uma bela jovem morena, toda branca e engomada, seios
incomparáveis, com um grande carrinho de capota negra; coisa mais fúnebre.
Sempre que olhava em sua direção, ela tinha seus olhos em mim. Mas, quando
eu estava com coragem suficiente para falar com ela – sem ter sido apresentado
– ela ameaçou chamar um policial. Como se eu tivesse planos com relação à
sua virtude. [Risada. Pausa.] Que rosto ela tinha! Que olhos! Como... [hesita]...
crisólitos! [Pausa.] Enfim... [Pausa.] Eu estava lá quando – [Krapp desliga o
gravador, medita, liga novamente o gravador.] – a persiana desceu, daquele tipo
de enrolar, marrom e bem suja, jogando uma bola para um pequeno cachorro
branco. Ocorreu-me olhar para cima e lá estava. Feito, finalmente. Sentei por
alguns momentos com a bola nas mãos, o cachorro latindo e apoiando as patas
em mim. [Pausa.] Momentos. Momentos dela, meus momentos. [Pausa.]
Momentos do cachorro. [Pausa.] Por fim, a soltei para ele, e ele a pegou com
sua boca, suavemente, suavemente. Uma pequena, velha, preta, dura, sólida
bola de borracha. [Pausa.] Eu a sentirei nas mãos até o dia de minha morte.
[Pausa.] Deveria tê-la guardado. [Pausa.] Mas a entreguei ao cachorro.
[Pausa.]
PAG
E
Enfim...
110
[Pausa.]
[Pausa.]
[Pausa.]
Aqui eu termino –
[Pausa.]
[Pausa.]
CORTINA