O documento resume a obra "A Vida é Sonho" de Calderón de la Barca. A peça explora questões sobre a realidade e o sonho através da história de Segismundo, príncipe isolado em uma torre por seu pai que teme que ele destrua o reino. Quando Segismundo é trazido à corte, ele se mostra violento, levantando dúvidas sobre o que é realidade.
O documento resume a obra "A Vida é Sonho" de Calderón de la Barca. A peça explora questões sobre a realidade e o sonho através da história de Segismundo, príncipe isolado em uma torre por seu pai que teme que ele destrua o reino. Quando Segismundo é trazido à corte, ele se mostra violento, levantando dúvidas sobre o que é realidade.
O documento resume a obra "A Vida é Sonho" de Calderón de la Barca. A peça explora questões sobre a realidade e o sonho através da história de Segismundo, príncipe isolado em uma torre por seu pai que teme que ele destrua o reino. Quando Segismundo é trazido à corte, ele se mostra violento, levantando dúvidas sobre o que é realidade.
Meus c a r o s : quando p e n s e i neste a s s u n t o ,
quando p l a n e j e i f a l a r , neste Colóquio, a r e s - p e i t o de Calderón e de La Vida es Sueíio f o i desejando que o c o r r e s s e h o j e uma coincidência que, de f a t o , acabou p o r o c o r r e r : e s t o u f a l a n d o a vocês no d i a em que está acontecendo em São Paulo a estréia da montagem d i r i g i d a p o r Ga- briel Villela e protagonizada p o r Regina D u a r t e . Como sempre, quando o c o r r e a conversão mágica, e o t e x t o se t r a n s f o r m a em espetáculo v i v o , o T e a t r o passa a t e r m u i t o mais i n t e - resse . Ao f a l a r d e s t e t e x t o , deve-se p a r t i r de um f a t o : o t e a t r o espanhol não c r i o u uma tragédia clássica, mas, a d e s p e i t o d i s s o , e em c o n t r a - p a r t i d a , conseguiu c r i a r o r e t r a t o das c o n t r a -
* Escritora e Dramaturga. Docente da EAD e dá ECA - USP.
Itinerários, Araraquara. 5: 87-101. 1993
dições, dos c o n t r a s t e s da v i d a v e r d a d e i r a : con- s e g u i u c r i a r o T e a t r o do Mundo. É sempre p e r i g o s o g e n e r a l i z a r , mas se pode, com c u i d a d o , d i z e r que f a z p a r t e do tem- peramento espanhol um d e s e j o de romper os câno- nes, de romper as r e g r a s ; a obediência a, p o r exemplo, a r e g r a das três unidades - f a l s a m e n t e imputada a Aristóteles, p e l o menos em sua r i g i - dez a b s o l u t i s t a - nunca c a i u bem ao tempera- mento e s p a n h o l , como se pode v e r , quer na sua produção dramática, quer mesmo na produção teó- r i c a - as suas poéticas. O t e a t r o espanhol do século de Ouro (e é desse que estamos f a l a n d o ) c a r a c t e r i z o u - s e p o r uma forma p e c u l i a r , p e l a irrupção, na sua f e i t u r a dramática, de traços épicos e, p o r t a n t o , p e l o quase t o t a l desprezo à d i s c i p l i n a r e i v i n d i c a d a , p o r exemplo, p e l o t e a - t r o clássico francês. O t e a t r o espanhol e s t a v a preocupado em f a - l a r a r e s p e i t o do Homem saído do Renascimento, saído daquele sonho de harmonia e b e l e z a , de equilíbrio e descobrimentos, de t o d o o t i p o , que o Renascimento t r o u x e r a . A e u f o r i a r e n a s - c e n t i s t a é substituída p e l o dramático c o n f l i - tuado do Barroco e da Contra-Reforma. P r o f u n d a - mente mergulhada na t a r e f a de c o n t r a p o r - s e à " i n d i s c i p l i n a " da Reforma, a Espanha, através da m a i o r i a de seus a r t i s t a s , t i n h a como sua a obrigação de f a l a r das novas relações do D i v i n o com o Humano, um dos temas predominantes do Barroco. Era um mundo em que o Homem e s t a v a p e r - dendo algumas c e r t e z a s : a T e r r a não e r a mais o c e n t r o do u n i v e r s o e o Deus seguro, f i r m e , da Idade Média, e s t a v a sendo c o n t e s t a d o . Não é a Espanha só - embora a Espanha apareça a i m u i t o bem r e p r e s e n t a d a - quem nos dá a imagem desse personagem angustiado, dividido, "moderno"; b a s t a que se pense em Shaskespeare, b a s t a que se pense em Hamlet. Mas não se pode, também, deixar de lado o monumental Quixote de Cervantes, prova v i v a de como o homem da época e s t a v a fragmentado e como d i s c u t i r essa f r a g - mentação e r a p r i m o r d i a l para os a r t i s t a s de então. O homem que não sabe bem q u a l é o seu tempo e q u a l é o seu l u g a r , também não sabe bem q u a l é a sua r e a l i d a d e . Ora, esse é, e x a t a - mente, o tema de A Vida é Sonho. Em que mundo vivemos nós, os seres humanos? O que é, r e a l - mente, a v i d a ? A que r e a l i d a d e corresponde e l a ? Será r e a l e s t a v i d a que supomos v i v e r ? Não c o r - responderá e l a , simplesmente, a um sonho? E, n e s t e caso, não será o sonho a única v i d a "verdadeira"? Este tema, complicado com a necessidade em que se e n c o n t r a o mundo ibérico de d e f e n d e r o Deus, de d e f e n d e r o C r i s t o e o c r i s t i a n i s m o , acaba p o r redundar na trama dramática da o b r a . A l u t a p e l a afirmação da r e l i g i o s i d a d e permeia a própria v i d a de Calderón de La Barca, e l e mesmo um homem d i v i d i d o e n t r e a v i d a p r o f a n a e a v i d a r e l i g i o s a , e n t r e o amor do mundo e o amor do sagrado. Calderón, n a s c i d o em 1600, desde os p r i m e i r o s anos namora o c l a u s t r o e acaba p o r , aos cinqüenta anos, a d e r i r p o r i n - t e i r o à v i d a r e l i g i o s a . É c u r i o s o como se cos- tuma defender a " s a n t i d a d e " de Calderón, opondo-o ao "pecador" Lope de Vega. Na verdade, parece que nem um, nem o u t r o dos extremos é verdadeiro. A Espanha aparece, naquela a l t u r a , como a dona do mundo; no e n t a n t o , já se e s t a v a sen- t i n d o , a nível até de sucessão e de famílias r e i n a n t e s (com o drama p e s s o a l dos Reis Católi- cos e a conseqüente ascenção dos A u s t r i a s ) um começo de decadência. A c r i s e se i n s t a l a v a e todas as formas de defesa do que já f o r a con- q u i s t a d o eram necessárias e benvindas. É nesse c a u d a l que se i n s e r e o nosso p o e t a . O s e r humano s e r i a então, naquele con- t e x t o , v i s t o como o s e r que f a l h o u , que pode f a l h a r a i n d a , mas que tem a seu l a d o o uso da razão, o uso do l i v r e arbítrio. Se e l e f a l h o u - e a q u i se i n s e r e o m i t o de Adão - e l e é também dotado de p o t e n c i a l i d a d e s que o ajudarão a s a l - v a r - s e . O a u t o sacramentai de Calderón que tem o mesmo nome - La Vida es Sueflo - e que f o i , c u r i o s a m e n t e , composto m u i t o s anos d e p o i s da tragicomédia que estudamos, a q u a l é de 1635 - o a u t o , como se d i s s e , a p r e s e n t a a mesma histó- r i a , mas agora " c r u a " , a b s t r a t a , despida do r e - c h e i o psicológico que preenche os v a z i o s dos personagens nossos conhecidos. T r a t a - s e , no a u t o , de Deus, que c r i o u o Homem, falível, f a - lhando, mesmo, mas que l h e dá a o p o r t u n i d a d e de a r r e p e n d e r - s e e s a l v a r - s e . 0 homem usa de seu l i v r e arbítrio, e de f a t o se s a l v a . A história de A Vida é Sonho é, em l i n h a s g e r a i s , essa mesma: Basílio, r e i da Polônia, em época i n d e t e r m i n a d a , t e v e indicações, p o r so- nhos e predições de a s t r o s , que seu f i l h o , pró- ximo a nascer, a r r u i n a r i a sua pátria e s e r i a a perdição dos p a i s . Os vaticínios são p a r c i a l - mente cumpridos p o r ocasião do nascimento: em meio a fenômenos n a t u r a i s a s s u s t a d o r e s , a r a i - nha morre em conseqüência do p a r t o . Assim, Se- gismundo, o príncipe, já deu morte a sua mãe e f o i responsável p o r v i o l e n t o s c a t a c l i s m a s . Em v i s t a d i s s o , B a s i l i o manda que a criança s e j a i s o l a d a numa t o r r e , onde d e v e r i a permanecer p a r a sempre. No e n t a n t o , v i n t e anos d e p o i s , quando começa a o b r a , vemos que uma jovem t r a - v e s t i d a , Rosaura, se aproxima da t o r r e onde está c o n f i n a d o Segismundo, acompanhada do seu c r i a d o C l a r i m , que é o " g r a c i o s o " da peça. Ro- saura é uma jovem m o s c o v i t a que, tendo s i d o l u - d i b r i a d a em sua honra p o r A s t o l f o , príncipe de Moscou, vem à Polônia em busca de auxílio para v i n g a r - s e , cumprindo um conselho de sua mãe, V i o l a n t e . Rosaura ouve a voz queixosa de S e g i s - mundo, e é d e t i d a p o r C l o t a l d o , o guardião. Nesse e n c o n t r o , C l o t a l d o tem razões p a r a con- c l u i r que aquele jovem é seu f i l h o . Levados ao palácio, f i c a m todos sabendo que Basílio p r e - tende f a z e r uma experiência com Segismundo, que c o n s i s t e em fazê-lo adormecer e trazê-lo d e p o i s à c o r t e , para v e r como se comporta. Assim se f a z , e Segismundo, depois de drogado, é t r a z i d o ao palácio. 0 jovem príncipe se m o s t r a , então, v i o l e n t o e i n j u s t o , matando a um c r i a d o , amea- çando a C l o t a l d o e ao próprio p a i . Em v i s t a d i s s o , Basílio manda que e l e s e j a de novo l e ^ vado à t o r r e , d e p o i s de novamente embriagado. De v o l t a à t o r r e , atordoado p e l a s s u c e s s i v a s mudanças e p e l a s beberagens que recebeu, S e g i s - mundo está t o t a l m e n t e p e r d i d o : d u v i d a dos pró- p r i o s o l h o s , já não sabe o que é r e a l i d a d e e o que é sonho - e não tem a i n d a , como é n a t u r a l , confiança em quem quer que s e j a . Desenrola-se no palácio, e n t r e t a n t o , a i n t r i g a p a r a l e l a , que acabará p o r c o l o c a r f r e n t e a f r e n t e Rosaura e A s t o l f o , seu s e d u t o r , e a i n d a p o r c o n c r e t i z a r a r i v a l i d a d e que deverá e x i s t i r e n t r e Rosaura e E s t r e l a , s o b r i n h a do r e i e n o i v a do m o s c o v i t a . C i e n t e s de que a Polônia está ameaçada de s e r governada p o r um príncipe e s t r a n g e i r o , soldados tomam a s i a t a r e f a de l i b e r t a r Segismundo, e d a r - l h e poder para e n f r e n t a r , em g u e r r a , a seu p a i . A g u e r r a acontece, e Segismundo vence. Ao f i n a l , c i e n t e já agora de que nada é r e a l i d a d e e que t u d o pode s e r sonho, Segismundo perdoa ao p a i e a C l o t a l d o , dá Rosaura em casamento a As- t o l f o e se casará com E s t r e l a , para sanar as f a l h a s da situação. No e n t a n t o , ao soldado que o l i b e r t o u dará prisão, porque o t r a i d o r é inú- t i l quando já cumprida a traição. Nessa decisão absurda, Segismundo mostra já que se t o r n o u " r e i " . Enquanto príncipe injustiçado e r e b e l d e , o t r a i d o r (o povo?) l h e e r a útil; já agora, como r e i , cumpre-lhe manter a ordem e g a r a n t i r a disciplina. É de minha convicção que, p a r a bem t r a d u - z i r , uma pessoa deve conhecer razoavelmente as duas línguas básicas - a do o r i g i n a l e a da tradução - deve, se se t r a t a r de p o e s i a , s e r um poeta e, mais a i n d a : deve c o l o c a r - s e a serviço do t e x t o , e não c o l o c a r o t e x t o a seu serviço. Digo i s s o porque, das várias maneiras de mal t r a d u z i r , a p i o r , t a l v e z , é aquela em que o t r a d u t o r p r o c u r a b r i l h a r acima do t e x t o t r a d u - z i d o , afirmando-se através d e l e , e buscando através d e l e o prestígio que, p o r seus próprios méritos, não conseguiu. Bom t r a d u t o r é, para mim, aquele que se t o r n a um p o r t a - v o z das idéias e dos méritos do a u t o r o r i g i n a l . Não se t r a t a , obviamente, de f a z e r um t r a - b a l h o s e r v i l , sem c r i a t i v i d a d e , sem imaginação; t r a t a - s e de, com c r i a t i v i d a d e e imaginação, t r a n s p l a n t a r a o u t r o idioma a criação o r i g i n a l , que f o i c o n s i d e r a d a apreciável na sua o r i g e m , tão apreciável, de f a t o , que m o t i v o u a t r a - dução. Outro problema o c o r r e com as adaptações, e a q u i se t r a t a de uma adaptação; além de dever t r a b a l h a r em uma boa versão, c r i a t i v a , poética, p e s s o a l porém a t e n t a aos v a l o r e s do o r i g i n a l , o t r a d u t o r p r e c i s a r e c r i a r um t e x t o que se adapte às condições que j u l g a o p o r t u n a s - de tempo, de espaço, de pensamento - mas não pode nunca t r a i r o espírito do a u t o r , t r a i r a sua visão de mundo, o seu pensamento n o r t e a d o r , a sua f i l o - s o f i a . Não posso compreender a adaptação de um t e x t o que, na sua origem, e r a uma defesa da mo- n a r q u i a a b s o l u t i s t a e se t r a n s f o r m e numa p r e - gação, p o r exemplo, da a n a r q u i a . Nada a v e r com as minhas próprias idéias políticas, nem com a defesa das idéias políticas do a u t o r o r i g i n a l . T r a t a - s e apenas de uma questão de coerência. Se p r e t e n d o um t e x t o que defenda o Anarquismo, vou escrevê-lo eu mesmo, ou p r o c u r o um que já e x i s t a nesse s e n t i d o . Na adaptação, posso me p e r m i t i r p r a t i c a m e n t e t u d o , mas nunca t r a i r o espírito do a u t o r o r i g i n a l , basicamente em suas idéias c e n t r a i s , na razão p e l a q u a l esse homem, um d i a , sentou-se para e s c r e v e r uma obra. No caso de La Vida es Sueno f o i p r e c i s o pensar em uma peça que t i n h a mais de t r e z e n t o s anos e que obedecia - a uma forma peculiar, cor- 1 respondente a um- determinado r i t m o de v i d a , o r i t m o de v i d a do século- X V I I . S e r i a m u i t o c u r i o s o um estudo que nos- r e - velasse, como num desenho animado, em que r i t m o , r e a l m e n t e , v i v i a m e se moviam as pessoas do século X V I I (e i s s o t a l v e z já e x i s t a ! ) . Se- r i a i n t e r e s a n t e c o n f i r m a r a nossa c e r t e z a de que e r a agradável - e não necessariamente t a - r e f a c u l t u r a l - f i c a r p o r duas, três horas de pé, num " c o r r a l " m a d r i l e n h o , ao a r l i v r e , nos t e a t r o s a céu a b e r t o , ouvindo longos monólogos em v e r s o que p e r q u i r i a m das mais p r o f u n d a s an- gústias humanas. I s s o d e v i a corresponder, e v i - dentemente, a o u t r a concepção de v i d a , uma v i d a onde a A r t e permeava e i n v a d i a os pensamentos, enquanto as mãos t r a b a l h a v a m e os corpos se mo- vimentavam, um tempo em que a F i l o s o f i a e a Re- ligião f a z i a m p a r t e n a t u r a l do d i a - a - d i a , em que a concepção de Mundo determinava o compor- tamento humano e a visão do T e a t r o e da A r t e . Assim, minha p r i m e i r a preocupação, quando comecei a t r a d u z i r , f o i a de passar, com d i g n i - dade, para o português, um t e x t o de a l t a q u a l i - dade, t a n t o dramática quanto literária, sem castrá-lo, mas também sem impor ao público v i v o de uma a r t e v i v a duas horas de frustração. O b a r r o c o c a l d e r o n i a n o é, a q u i , t o d o f e i t o de d u p l o s , do r e a l e sua sombra, da v i d a e do sonho, da r e a l i d a d e r e da ilusão, da l o u c u r a e da sanidade, do Bem e de Mal. A q u i , como em m u i t o s momentos mais-, o Real se desdobra, se vêem o Céu .e a T e r r a , C r i s t a e os a s t r o s , amor e ódio, d e n t r o do quadro místico, ascético, pundonoroso e ousado do Século de Ouro espa- nhol. A solução que e n c o n t r e i f o i t r a n s p o r a peça, que é toda f e i t a em versos m e t r i f i c a d o s e rimados e com rima soante, para um t e x t o f i n a l , p a r t e em prosa e p a r t e em v e r s o , n e s t e último caso m e t r i f i c a d o e rimado de acordo com o o r i - g i n a l . A e s c o l h a dos t r e c h o s que deveriam s e r mantidos em versos não f o i aleatória. I n i c i a l - mente, foram mantidas assim as p a r t e s de v e r d a - d e i r o conteúdo lírico, as mais s u b j e t i v a s , de confissão, de perquirição interior. Também aquelas que, embora n a r r a t i v a s , p e r d e r i a m m u i t o com a mudança de e s t i l o ; há t r e c h o s que, t r a d i - c i o n a l m e n t e , ao longo dos seus mais de t r e z e n - t o s anos de v i d a , mantêm uma música e um r i t m o próprios. Também se conservaram em versos c e r - t o s t r e c h o s que contribuíam para a criação de um c l i m a de sonho (fundamento da peça), um c l i m a de i r r e a l i d a d e , que s e r v i a ao t e x t o e às intenções da direção. P r o c u r e i f a z e r com que o t e x t o f o s s e pas- sível de uma fácil dicção, que fluísse l i v r e - mente no j o g o e n t r e os a t o r e s . Sabe-se que t e x - t o s belíssimos, l i t e r a r i a m e n t e r i c o s , perdem-se quando são d i t o s em cena; a q u i , t i n h a - s e a o p o r t u n i d a d e de e x p e r i m e n t a r ; logo de início, pareceu-nos, p o r exemplo, que " h i p o g r i f o " , p a r a o público a t u a l , e r a p a l a v r a r a r a e, p o r t a n t o , p e r d i d a p e l o entendimento. 0 " h i p o g r i f o " se t r a n s f o r m o u em " c e n t a u r o " , sem prejuízo do sen- t i d o e, c r e i o eu, sem prejuízo do b a r r o c o que é o cerne da peça. Não se pode t r a n s f o r m a r um t e x t o do Século de Ouro, um t e x t o com mais de t r e z e n t o s anos de i d a d e , que corresponde a um período, a uma Idade, a um espírito, em b r i n c a - d e i r a inconseqüente, a i n d a que s e j a em nome da comunicação. A p e r p l e x i d a d e de Segismundo, d e p o i s de suas experiências conturbadas e d u p l a s , o i n - f l u x o p e r t u r b a d o r das próprias p a l a v r a s de seu guardião C l o t a l d o , o r e s u l t a d o das drogas que l h e foram dadas, a s u r p r e s a que l h e a c a r r e t a m as provas de amor e as provas de ódio, s u b s t i - t u i n d o - s e e a l t e r n a n d o - s e , não são mais que a metáfora do confuso conhecimento, do obscuro conhecimento do s e r humano. Será a nossa v i d a , também, um sonho? Seremos nós, os seres huma- nos, apenas j o g u e t e s na mão do deus que f a z c o - nosco experiências, que nos j u l g a e aprova ou desaprova, que nos condena ou a b s o l v e segundo seus próprios v a l o r e s ? N a t u r a l m e n t e , não cabe ao católico Calderón d u v i d a r da justiça d i v i n a . Mas, quanto a nós, l e i t o r e s de séculos p o s t e - r i o r e s , a dúvida nos pode o c o r r e r . Não e x i s t e a q u i , convém n o t a r , uma contradição e n t r e a visão da adaptadora, que defende a t e s e de que o pensamento do a u t o r deve s e r r e s p e i t a d o , e a visão da l e i t o r a de séculos d e p o i s : Calderón é um católico f i e l ; nós não o somos n e c e s s a r i a - mente, enquanto espectadores da peça. T e r i a Ba- sílio o d i r e i t o de condenar seu f i l h o à prisão e ao delírio? O p o s t e r i o r arrependimento do r e i não a n u l a a sua injustiça e a sua superstição; a assunção de Segismundo ao t r o n o não a n u l a os v i n t e anos de s o f r i m e n t o que a prisão l h e a c a r - retou. É do pensamento da época a metáfora do T e a t r o do Mundo; a v i d a é, r e a l m e n t e , uma ficção dramática, que algum a u t o r s u p e r i o r e inatingível escreve e f a z r e p r e s e n t a r , ficção da q u a l não somos mais que títeres, personagens movidos e determinados p o r um D e s t i n o ou uma Vontade imperturbável. Como conseqüência d i s s o , e mais i m p o r t a n t e do que i s s o - p e l o menos na visão cristã do a u t o r : o que realmente i m p o r t a e deve i m p o r t a r é a v i d a e t e r n a , a v i d a de de- p o i s da m o r t e , à q u a l todos devemos a l m e j a r e p a r a a q u a l devemos p r e p a r a r - n o s . Condenado em- b o r a p o r uma e r r a d a visão da verdade, na q u a l i n c o r r e u o r e i Basílio, Segismundo, como s e r humano, pode r e c o r r e r à sua vontade - f o n t e da fé - ao uso da razão, ao livre-arbítrio de que foram dotados os homens, pode a g i r com justiça e magnanimidade, pode, e n f i m , s a l v a r - s e , s a l v a r a sua pátria e p r e p a r a r a sua própria salvação eterna. Há uma f a l a de Segismundo, ao f i n a l da Jornada Segunda, que é um bom exemplo do e s t i l o e do pensamento do a u t o r ; permito-me r e p r o d u z i r p a r t e da tradução, como maneira de exemplificá- l a e, também de e n c e r r a r e s t a p a l e s t r a : SEGISMUNDO - É c e r t o ; então reprimamos e s t a f e r a condição, e s t a fúria, e s t a ambição, p o i s pode s e r que sonhemos; e o faremos, p o i s estamos em mundo tão s i n g u l a r que o v i v e r só é sonhar e a v i d a ao f i m nos imponha que o homem que v i v e , sonha o que é, até d e s p e r t a r . Sonha o r e i que é r e i e segue com esse engano mandando resolvendo e governando. E os aplausos que recebe v a z i o s , no vento escreve; e em c i n z a s a sua s o r t e a morte t a l h a de um c o r t e . E há quem q u e i r a r e i n a r vendo que há de d e s p e r t a r no negro sonho da morte? Sonha o r i c o sua r i q u e z a que t r a b a l h o s l h e o f e r e c e , sonha o pobre que padece sua miséria e pobreza; sonha o que o t r i u n f o p r e z a sonha o que l u t a e p r e t e n d e , sonha o que agrava e ofende e no mundo, em conclusão, todos sonham o que são, no e n t a n t o ninguém entende. Eu sonho que e s t o u a q u i , de c o r r e n t e s carregado e sonhei que em o u t r o estado mais l i s o n g e i r o me v i . Que é a v i d a ? Um f r e n e s i . Que é a v i d a ? Uma ilusão, uma sombra, uma ficção; o maior bem é t r i s t o n h o , porque t o d a a v i d a é sonho