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ANAIS ISSN: 2238-0787

SIMPÓSIO TEMÁTICO 6
Momentos de ruptura social e a representação do feminino

O TRAVESTISMO NA LITERATURA ESCRITA POR MULHERES EM PORTUGAL NO FINAL DO


SÉCULO XVIII E INÍCIO DO SÉCULO XIX

Elen Biguelini (CAPES/BR, FLUC)

INTRODUÇÃO

A autoria feminina portuguesa foi escassa durante a primeira metade do século XIX. Precedentes a um
aumento no número de mulheres que publicaram seus textos, as autoras aqui analisadas foram senhoras com
considerável ou marcante produção literária, mas que foram praticamente apagadas da história da literatura
portuguesa por serem mulheres.
A mais antiga destas autoras é Teresa Margarida da Silva e Orta (1711-1793), que escreveu o primeiro
romance brasileiro e o primeiro romance português de autoria feminina, Aventuras de Diófanes. Nascida em
São Paulo em 1711, D. Teresa Margarida foi filha de um imigrante português que havia enriquecido na colônia,
e que se mudou para Lisboa em 1716. Seu pai José Ramos da Silva optou por mandar suas duas filhas para o
convento, onde elas teriam aprendido música, poesia e astronomia. No entanto, a autora fugiu do
estabelecimento aos 16 anos, para se casar, a contragosto do pai, com Pedro Jansen. Seu contato com as Luzes
portuguesas e com a ciência (FLORES, 2006, p. 69-70) teria sido posterior a este casamento, visto que ela e o
marido frequentavam a corte e tinham amigos influentes, tais como Alexandre de Gusmão e Matias Aires,
irmão da autora.
Francisca Paula Póssolo da Costa (1783-1838) é a autora da segunda obra analisada, Henriqueta de
Orleans, ou o Heroísmo. A poetisa, filha de Nicolau Possolo e de Maria de Carmo Correia Calabre, estudou
música e francês, bem como foi anfitriã de um salão frequentado pela elite cultural da época, que incluía as
escritoras e poetisas D. Maria Antónia Maldonado, a Viscondessa de Balsemão e a Marquesa de Alorna.
A terceira autora, não menos importante às suas predecessoras, é Maria Peregrina de Sousa (1809-
1894). Nascida em 13 de fevereiro de 1809 na Moreira da Mata, perto da cidade do Porto, D. Maria Peregrina
morou grande parte de sua vida com o pai e os irmãos em uma quinta na pequena vila onde nasceu e na qual
seu pai foi administrador. Sem mestres, aprendeu francês, inglês e italiano e começou a escrever pequenos

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romances, inicialmente lidos apenas pela irmã, a também poetisa Maria do Patrocínio (após 1809-1864). De
forma gradual, a partir de 1842 enviou seus textos anonimamente para diversos periódicos portugueses e
brasileiros, entre eles: o Lidador, a Aurora, o Pirata¸ o Archivo Popular, o Panorama, a Restauração, o Braz
Tisana, o Recreio das Damas, a Grinalda e o Almanach de Lembranças de Portugal e do Brasil. É o folhetim
Pépa, publicado no segundo tomo do jornal brasileiro Iris, e posteriormente editado em formato de livro, que
será analisado neste trabalho, mas sua obra é vasta e diversificada; incluindo um romance também chamado
Henriqueta, que é acompanhado de uma biografia da autora escrita por António Feliciano de Castilho, mas cuja
temática difere em muito do homônimo de Francisca Paula Póssolo da Costa.
As obras escolhidas destas três autoras apresentam um elemento em comum: a presença do travestismo
como método utilizado para permitir liberdades, tanto para suas personagens como para elas próprias como
autoras ao se expressarem em um local eminentemente masculino, que é a escrita.
Embora a história de Portugal apresente alguns nomes femininos na autoria de textos, conhecidas
devido a seu brilhantismo relacionado a letras e a ciência, pode-se afirmar que a autoria feminina não era uma
atividade aceita no país durante a primeira metade do século XIX. Quando uma mulher escrevia,
consequentemente tornava público os seus pensamentos, e como o lugar visto como predestinado para a mulher
era o privado, a atitude da publicação literária era transgressora.
Compreende-se, então, porquê muitas mulheres que escreveram ao longo da história utilizaram
artimanhas de defesa em seu texto, uma espécie de proteção do meio literário masculino. Susan Gubar e Sandra
Gilbert (GILBERT; GUBAR, 1984) descrevem a ansiedade que acompanha o ato da escrita como medo da
autoria ou ansiedade da autoria (anxiety of authorship), um temor causado pelo ato transgressor de escrever e
que era marcante na vida destas mulheres o que as levava a protegerem a si e a seus textos de diferentes
maneiras.
Uma destas formas de defesa é o uso de pseudônimos. As três autoras aqui analisadas assinaram suas
obras através deste subterfúgio. Enquanto Henriqueta de Orleans é assinado por D. F. P. P. C, uma maneira não
completamente incógnita, mas ainda capaz de proteger Francisca Paula Póssolo da Costa da crítica daqueles
que não a conheciam, o romance Pépa traz a assinatura de uma obscura portuense, forma utilizada por D.
Maria Peregrina de Sousa para se manter escondida do público português. A identidade desta mulher teria
permanecido desconhecida não fosse a curiosidade de seu contemporâneo Antonio Feliciano de Castilho, que
ao observar diversos textos e cartas com esta assinatura, decidiu descobrir quem era ela. Já o pseudônimo de D.
Teresa Margarida da Silva e Orta, Doroteia Engrassia Tavareda Dalmira, é um anagrama de seu próprio nome.

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Por vezes estas autoras assinavam de diversas formas, não se prendendo a um único pseudônimo. D.
Francisca Paula Póssolo era também conhecida pelo nome Arcádio de Francília e D. Maria Peregrina de Sousa
assinou também Mariposa e D. M. P.
Também podem ser percebidas na obra destas autoras outras formas de defesa de seus textos, mas aqui
será analisado especificadamente o uso do travestismo, masculino ou feminino, como forma de permitir a seus
heróis e heroínas uma maior liberdade em relação aos padrões de gênero dentro do texto.
O termo escolhido aqui foi "travestir", seguindo a definição de travestir como "adopção, por homem ou
mulher, de trajes tradicionalmente associados com o outro sexo, de um modo temporário ou contínuo"
(MACEDO, AMARAL, 2005, p. 188). Tanto Hemirena (Belino) de Aventuras de Diófanes, quanto Henriqueta
de Henriqueta de Orleans, referem-se a si próprias no feminino. Hemirena chega a defender a sua mudança de
trajes:
Não me culpeis o haver usado da dissimulação de tais vestidos; porque como os maiores trabalhos, e
desgraças, que acontecem às mulheres, são originados pelos enganos dos homens, que os cegos de amor,
ou de seus desordenados costumes, lhes prendem a liberdade, e as encaminham aos precipícios, pareceu-
me que só escondendo-me assim aos seus olhos, caminharia com menos riscos. (ORTA, 1993, p. 144-
145).

Assim, ela optou por se vestir com trajes masculinos como uma forma de proteger sua própria virtude,
uma necessidade para uma jovem solteira (noiva de um príncipe) que havia sido separada de sua família e
precisou encontrar formas de sobreviver só. Também Henriqueta, de Henriqueta de Orleans, afirma ter
escolhido travestir-se devido à necessidade de proteção de um mal pior e o fez amparada no conselho do irmão,
que percebia estes perigos.
Já Pépa, de romance de mesmo nome, não tem voz ao longo do texto, visto que o folhetim é relatado a
partir das opiniões de Arthur, que se refere à personagem no feminino durante grande parte do texto, mas
quando é revelado para o herói (e para o leitor) que seu nome é Josesito, os pronomes até então femininos
passam a ser masculinos. Embora Josesito não descreva diretamente a relação com o gênero que lhe foi
imposto, compara sua situação à de pássaros confinados. Antes de revelar-se dizia em altas vozes na casa de
seu avô: "- Pobres passarinhos que estaes em gaiolas, protesto soltar-vos quando vos-chegar" (Iris, Tomo II, p.
628), mais tarde afirma para Arthur "eu era muito infeliz na minha gaióla, e só achava distracção a rir comigo
mesmo dos outros e de mim" (Íris, Tomo II, p. 646). Logo, sentia-se engaiolado nos trajes femininos e nas
atitudes femininas que deveria incorporar.
À primeira leitura o uso do travestismo parece completamente inovador, especialmente quanto
considerado que os textos são de autoria feminina, mas o trabalho de Rudolf M. Dekker e Lotte Van de Pal The

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tradition of Female Travestism in Early Modern Europe 1 demonstra que a prática de travestir era relativamente
comum, ou ao menos mais comum do que se supõe, visto terem sido encontrados muitos exemplos de mulheres
que se travestiram por curto ou longo período. Os motivos também eram muito variados: a vontade de
participar na guerra, o desejo de viver abertamente casadas com suas parceiras, uma fuga da prostituição visto
que como homens teriam maior acesso ao mercado de trabalho e mais dificilmente passariam fome, e também
para segurar a vida (e a virtude) durante viagens.
Nos três romances aqui analisados foram encontradas três diferentes formas de travestismo. A mulher
que trajou roupas masculinas para proteção em viagens longas, Hemirena e Henriqueta, e a senhora que optou
vestiu-se de homem e participou de guerras, Henriqueta.
A terceira forma é o travestismo masculino que é, neste caso, imposto. Mas ao contrário das duas
heroínas, que conseguem enganar todos à sua volta (Henriqueta não engana seu irmão, mas como foi ele que
lhe recomendou a mudança de trajes, ele a reconheceria com qualquer roupa que usasse), Josesito parece sofrer
com os padrões de gênero que lhe eram impostos, pois ao contrário de Henriqueta e Hemirena, que optaram
pela mudança, ele foi obrigado a fazê-la.

1 UMA PRINCESA TRAVESTIDA

Em Aventuras de Diófanes, Teresa Margarida da Silva e Orta relata a história de uma família real que no
trajeto para o casamento de sua filha Hemirena sofre um naufrágio e acaba por ser escravizada e separada.
Muitos anos se passam antes que a família possa novamente se unir, e todos os familiares vivem situações
difíceis. A jovem escravizada se vê obrigada a defender sua honra e para isso se veste com vestimentas
masculinas e não revela seu sexo nem mesmo àquela que a trata como mãe 2. Na voz da heroína: "sahio com
vestido de homem, disposta com aquelle fingimento a vencer os maiores assaltos de sua cruel fortuna" (ORTA,
1818, p. 71).
Esta obra de D. Teresa Margarida é uma clara defesa da capacidade intelectual da mulher, visto que
tanto Hemirena quanto sua mãe Climeneia são sábias e fortes. Para Conceição Flores, o romance é um
"pretexto para apresentar a filosofia das luzes", no qual as mulheres são porta-vozes da defesa da educação das
mulheres (FLORES, 2009, p. 4). Ao longo do texto, não defende apenas que o sexo feminino tenha acesso ao

1
Aqui foi utilizada a tradução espanhola DEKKE, R. M.; VAN DE POL, L.; QUINDÓS, P. G. (tradução). La Doncella quiso ser
marinero. Travestismo feminino en Europa (siglos XVII-XVIII). Siglo XXI: Madrid, 2006.
2
Coincidentemente, esta é sua mãe, cujo tempo e trabalho escravo modificaram de tal forma que Hermirena não a reconhece.
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estudo, mas que todos os súditos de um soberano frequentem a escola. Estas duas personagens exemplificam
uma boa educação feminina, bem como defendem as capacidades destas para a ciência, mas sem distanciá-las
de ideais de feminilidade.
Para Beatriz Amazonas Cardoso, Hemirena é "a filha dedicada e respeitosa, modelo da conciliadora
familiar, ao mesmo tempo em que se mostra uma figura firme e resistente ao poder de pessoas que a queriam
dominar, quer pela força, que pelo amor" (CARDOSO, 2009, p. 203). O travestir-se não lhe retira a sua
feminilidade, apenas aumenta a sua superioridade como mulher e filha, visto que é feita como defesa de sua
honra feminina.
A filha de Diófanes é aquela que encontra a mãe em uma caverna, a salva da prisão e novamente a
encontra após um segundo naufrágio 3; ela é uma defensora. A narração de Aventuras de Diófanes, descreve-a
como forte, sendo que "[n]ão parecia Belino dama delicada." (ORTA, 1993, p. 154). Ao travestir-se, como
forma de defesa de sua virtude, também participa da guerra, tornando-se defensora da pátria, ainda que fosse
obrigada à carreira militar de uma cidade à qual não pertencia. Independente de seu traje, a figura majestosa de
Hemirena/Belino leva todos à sua volta a se apaixonarem por ela. Porém, virtuosa, ela foge a qualquer vestígio
de uma paixão indesejada, mantendo-se casta para o noivo que a procura desde o seu primeiro naufrágio.
Contudo, como percebe Cardoso, ao encontrar mãe, pai e noivo, sua voz é silenciada dentro do texto.
Na análise de Sofia de Melo Araújo, o romance de Teresa Margarida da Silva e Orta ilustra uma mulher
ideal, misto de qualidades femininas e masculinas (ARAÚJO, 2008, p. 110). Hemirena é tanto bela, leal e
carinhosa quanto forte, valente e heroica. Assim, a personagem representa não somente um ideal de mulher,
mas um ideal de soberano. Sendo filha do sábio Diófanes, que ensina príncipes na arte de governar, e por
apresentar as características que há de melhor na humanidade, Hemirena pode ser uma boa rainha.
Considerando o momento no qual o romance é publicado e as esperanças da própria autora no futuro reinado de
D. Maria I (para quem o livro é dedicado), fica claro o intento de D. Teresa Margarida em celebrar a soberania
feminina.

2 A DONZELA GUERREIRA

O romance Henriqueta de Orleans ou o Heroísmo retrata a vida de Henriqueta, que após a morte de
seus pais precisou se travestir para acompanhar seu irmão em suas viagens por vários locais da Europa. Um
3
Os naufrágios são constantes ao longo da obra. É um naufrágio que leva à familia a se tornarem escravos, mais tarde o navio em que
estavam Climenéia, Hemirena e seu noivo disfarçado também naufraga.
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destes lugares é Portugal, onde ambos se alistaram. Henrique (Henriqueta) se provou grande combatente e foi
contemplada com a patente de 2ª Comandante do 1º Batalhão da Infantaria portuguesa, mas perdeu o contato
com seu irmão e conheceu D. João d'Oropesa, um militar espanhol de quem se tornou muito amiga (e por quem
Henriqueta logo se apaixonou). Infelizmente uma paixão por parte de uma namorada de D. João (que
rapidamente se enamora da heroína) faz com que os amigos duelem. Uma ferida mortal leva D. João a precisar
ser tratado enquanto Henriqueta continua a sua viagem. Encontros e desencontros são recorrentes neste
romance e logo eles novamente se reencontram.
Henriqueta permanece trajada de vestes masculinas durante todo o primeiro tomo do livro, até que se
revela a D. João. Já o segundo tomo apresenta o casamento e a história de pessoas com quem ela e o marido ou
o irmão cruzaram ao longo da narrativa.
A revelação de seu segredo acontece após reencontrar o irmão, agora prisioneiro em um barco, que a
reconhece em seus trajes masculinos e torna pública sua identidade: "Ó inconsiderado Luiz [o irmão], a tua
repentina alegria neste momento se fez declarar hum segredo, o que tu mesmo me aconselhaste, e que até agora
com tanto trabalho occultei" (C[OSTA], 1819, Tomo I, p. 138). A vida militar, sempre ao lado de D. João e de
muitos outros jovens militares, não deveria facilitar esconder tal segredo, mas Henriqueta mantém a máscara de
masculinidade até este momento quando, então, desmaia. O desmaio é uma atitude feminina, relacionada a
suposta fraqueza do sexo e, embora até este momento tenha provado o contrário, agora a personagem pode se
permitir demonstrá-la, visto que a uma mulher ela seria permitida.
É logo depois que Henriqueta revela sua identidade a seu amado D. João, desvendando também seus
sentimentos. Mas os sentimentos da personagem já haviam sido mencionados ao longo do texto, e a
reciprocidade deles é indicada pela autora: "difficilmente poderia fazer comprehender os transportes de alegria,
que a vista de D. João excitou na minha alma! hum violento affecto, cuja origem elle não conhecia, lhe inspirou
o mesmo prazer ao vêr-me: corremos um para o outro, e abraçamos ternamente, as nossas lagrimas só
testemunhavam o nosso interior alvoroço" (C[OSTA], 1819, Tomo I, 134). D. João claramente ama
Henrique/ta, mas não o compreende. Assim que descobre o segredo, ele lhe responde: "ó virtuosa, e
imcomparavel Henriqueta, a que estranho transportes de admiração e de prazer me eleva o teu heroísmo! tudo o
que presencio me parece hum sonho!" (C[OSTA], 1819, Tomo I, p. 139). D. João admira não apenas a
capacidade de Henriqueta de se manter casta, mas também suas habilidades como guerreira, o que o leva a
relatar sua história a El-Rei, para quem Henriqueta é apresentada ainda em trajes masculinos, por não possuir
vestidos. Seu marido morre quando seu único filho era ainda criança e Henriqueta finaliza o romance educando

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os netos, filhos de seu filho Luís com sua sobrinha.


A narração de Henriqueta é feita inteiramente em primeira pessoa. Logo, sempre que a heroína tem o
ponto de vista da obra podemos acompanhar seus pensamentos e em todos estes momentos, a narração se refere
a si no feminino. No entanto, o trajar masculino é poucas vezes mencionado, não havendo por parte da autora,
ou da narração, uma discussão sobre a transgressão em si. O ato é justificado pela necessidade, mas não
explicitadas as razões, nem esclarecido como Henriqueta conseguiu manter este segredo por tanto tempo.
Desta forma, pode-se perceber que o uso do travestismo serve como permissão para que estas
personagens fujam aos padrões de gênero. Como mulheres não poderiam participar no campo de batalha, o que
é feito por Henriqueta, e teriam dificuldade de viajar sozinhas, como faz Hemirena. Assim, percebe-se que as
trajando com um vestuário masculino as autoras tinham liberdade de extrapolar os limites daquilo que era
esperado das mulheres.
É notável também a possibilidade de que figuras reais da história de Portugal poderiam ter influenciado
esta representação de uma donzela guerreira. O próprio termo se refere a contos infantis de uma jovem mulher
que se transveste e participa da guerra, mas é a figura de Antónia Rodrigues (1560-?) que levanta a maior
quantidade de paralelos, especialmente com Henriqueta. Nascida em Aveiro em 31 de março de 1580, era ainda
criança quando se vestiu de menino para poder entrar em um navio e se dirigir a Mazagão 4. Sua carreira como
soldado teve muito sucesso e, enquanto não começou a frequentar os salões, onde teria chamado a atenção
feminina, não foi descoberta. No entanto, quando a filha de Diogo de Mendonça se disse apaixonada por
António, ela teve que revelar sua identidade para fugir do casamento. Mais tarde se casou e voltou a Portugal,
onde o rei Filipe III teve interesse em conhecê-la, dando-lhe uma tença anual (QUADROS, 197?, p. 118).
A dissertação de mestrado de Andrea Gisela Vilela Borges sobre a vida e obra de Francisca Paula
Possolo (BORGES, 2006) demonstra a relação entre a vida de Antónia Rodrigues e Henriqueta, bem como
relaciona a obra de Francisca Paula Possolo com Joana d'Arc, que poderia ser a razão da escolha do sobrenome
Orleans (BORGES, 2006, p. 314), e que além da figura de guerreira pode ser relacionada com a castidade
feminina que Henriqueta também defende. Outros paralelos encontrados por Andrea Gisela Borges são com a
obra Mémoires de la vie de Henriette-Sylvie de Molière de Madame de Villedieu, e com outras portuguesas tais
como Isabel Vaz e Públia Hortênsia de Castro (BORGES, 2006, p. 316-319). A primeira teria defendido
Tânger, e a segunda é celebre por ter passado despercebida em trajes masculinos entre os estudantes da
universidade.
4
A idade com que Antónia Rodrigues foi para Mazagão não é precisa, sendo que em Aveirenses Notáveis Rangel Quadros diz que ela
o fez aos 15 anos. QUADROS, R. Aveirenses Notáveis. Aveiro, Camara Municipal de Aveiro, 197?, p. 114.
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Borges não vê o travestir de Henriqueta como tendo um objetivo que não o de "alcançar a glória e o
êxito", completando que "[a] novela prova então como a mulher se revela heroína das armas e da virtude"
(BORGES, 2006, p. 324) em romances que figuram a mulher como herói de guerra.
A figura da donzela guerreira serve, desta forma, na obra de Francisca Paula Possolo, para demonstrar o
valor feminino, mas não apenas físico.

3 UMA DOIDA

O último romance aqui analisado é o folhetim Pépa, que conta a história de um jovem português que é
enviado a casa daquele que ele pensa ser seu tio, mas que é na verdade seu avô, na Espanha, para descobrir se
este lhe deixaria algo em seu testamento. Lá ele encontra a prima Pépa, descrita como "uma linda senhorita
debruçada a uma janella, e rindo como perdida" e "uma doida" (SOUZA, Tomo II, p. 565). Arthur percebe uma
clara diferença entre as jovens portuguesas e a espanhola e frequentemente se espanta com a forma com que
esta fala abertamente com ele, não demonstrando pudor algum em nenhum momento. A fascinação que Pépa
lhe causa é um inquietamento de origem sexual, mas ele nunca pensa em se casar com ela, tendo além de uma
namorada à sua espera em Portugal, uma prima com quem sua família deseja que ele se case e que é o extremo
oposto de Pépa.
Todas as atitudes da espanhola causam choque ao herói e a narração do texto, por consequência,
também choca os leitores. Descrita pelos criados da casa como "boa ás vezes... é divertida, mas quer ter sempre
palitos... para os morder; porém se seo avô o soubesse.... guarda debaixo..!" (SOUZA, Tomo II, p. 587). Perto
de seu retorno, Pépa diz a seu tio que estava grávida e tenta fazer com Arthur se case com ela, o que ele nega e
recusa, mas antes que ele saia da casa Pépa foge.
Além das atitudes desregradas de Pépa, o período em que Arthur passa na casa de seu tio é marcado por
estranhos barulhos à noite e rumores de que os cavalos da estrebaria seriam usados após o entardecer, causando
o temor dos criados. Como a obra de D. Maria Peregrina de Sousa também apresenta um ou dois folhetins com
esta temática publicados no mesmo períodico, o leitor é facilmente confundido.
No retorno a atitude de Pépa está constantemente no pensamento de Arthur, que a compara com as
mulheres portuguesas que encontra, em especial com prima Ernestina, com quem irá casar: "Ernestina não era
uma mulher, era sua prima... e era um anjo" (SOUZA, Tomo II, p. 632). Sua prima é o ideal feminino de
castidade, enquanto Pépa é o desejo e a ousadia.

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Ainda no caminho para casa, quando chegou a Vianna do Castelo, Arthur é interceptado por uma "uma
mulher tão mal amanhada que parecia um espantalho" e que logo o chamou de "amorsito". Era Pépa (SOUZA,
Tomo II, p. 642) que para ali tinha fugido. Arthur desenlaça-se o mais rápido possível, mas novamente a
encontra já na cidade de seu pai. Em sua casa e em frente a Ernestina, Pépa o chama de "maridinho" (SOUZA,
Tomo II, p. 645), causando horror à família que o pensa casado. É então, quando Pépa está na casa do pai de
Arthur que se revela: Pépa é, na verdade, Josésito, irmão de Arthur, que explica sua situação:
Elle [o avô] havia tido uma filha unica, e como meo pae lh'a-roubasse e trouxesse para Portugal, foi tal a
sua zanga, que nunca se-deixou abrandar, e inviou uma, que havia sido creada de minha mãe, em busca
d'ella, com ordem de lhe-roubar a primeira filha que ella tivesse. Antonia, a mencionada creada, foi
illudida por minha mãe, que me-chamava quasi sempre a sua Pepa, porque eu parecia uma menina.
Roubou-me e quando conheceu o lôgro, já não podia retroceder. Como a ordem terminante era para
roubar uma menina, e Antonia queria o prémio, inganou meo avô, e depois que eu fui crescendo me-
pediu, com muitas lágrimas, não a-desmascarasse, temendo a cólera do meu avô. (SOUZA, Tomo II, p.
646).

Foi obrigado a vestir trajes femininos, mas não se resignou a manter as atitudes que seriam esperadas de
uma menina. Os estranhos barulhos que Arthur ouvia na casa de seu avô são então explicados: à noite era o
único momento em que Josesito podia ser ele próprio, pulando no cavalo e exercendo atividades tipicamente
masculinas que lhe eram proibidas durante o dia.
A atitude feminina desregrada de Pépa é então desculpada. Como homem, Josesito tem o direito de agir
daquela forma, de conversar com estranhos, pedir favores, usar roupas desconectas e falar alto. Mas mulheres
não poderiam agir assim. A fascinação de Arthur por Pépa não é mais mencionada e levanta interessantes
questões sobre a sexualidade do herói. No entanto, é possível que D. Maria Peregrina de Sousa não tivesse o
intuito de permitir esta leitura, visto que a fascinação de Arthur é causada pela atitude desviante e não pelo
corpo/indivíduo que a executa. Esta fascinação também se contrasta com o asco que lhe causa tais atitudes, ao
ponto de, após sair da casa de seu tio, Arthur jurar odiar todas as mulheres, especialmente Pépa e a namorada
que havia deixado em Portugal. É o contraste entre estas duas que faz com que ele passe a venerar a imagem de
sua prima, com quem irá eventualmente se casar.
A história conclui-se quando o avô de Josésito aprende a verdade sobre o jovem que criara até então e
afirma "que amaria tanto o mancebo como amára a moça" (SOUZA, Tomo II, p. 648).

CONCLUSÃO

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Embora a escrita seja, por si só, uma transgressão, o uso do travestismo nas obras aqui analisadas
aparece como uma forma de libertação da autora. Introduzindo personagens que distorcem os padrões de
gênero esperados pela época, ela está permitindo a si e a suas personagens agir de forma desviante, mas sem
fazê-lo abertamente. Nas entrelinhas do texto estas autoras podem extrapolar aquilo que era esperado delas,
mas manter-se, ao mesmo tempo, protegidas das críticas da sociedade. Desta forma, o travestismo tem a mesma
função de um pseudônimo, permitindo transgredir, mas protegendo da reação daqueles que poderiam se opor à
presença feminina nestes locais.

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