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Translatio 13 < http://seer.ufrgs.br/index.php/translatio/index >
N. 13 (2017)
TRADUÇÃO E DIÁSPORAS NEGRAS
(orgs) Dennys Silva‐Reis e Cibele de Guadalupe Sousa Araújo
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
TRADUÇÃO E DIÁSPORAS NEGRAS: O PERCURSO DA GRAÚNA METAFÍSICA PDF
Dennys Silva‐Reis, Cibele de Guadalupe Sousa Araújo 1‐21
TEXTOS TEÓRICOS
ESTUDOS DA DIÁSPORA: PASSADO, PRESENTE E PROMESSA PDF
Khachig Tölölyan 22‐39
OS USOS DA DIÁSPORA PDF
Brent Hayes Edwards 40‐71
A IDEIA DE CULTURA NEGRA PDF
Hortense Spillers 72‐94
TRADUZIR A LITERATURA EM SITUAÇÃO DE DIGLOSSIA PDF
Raphaël Confiant 95‐105
ARTIGOS
(RE‐)CONSTRUINDO MEMÓRIA AFETIVO‐CULTURAL ATRAVÉS DA TRADUÇÃO DE POESIA NEGRA PDF
DE E PARA A LÍNGUA ALEMÃ 106‐
Jessica Oliveira de Jesus 126
QUEM NOMEOU ESSAS MULHERES “DE COR”? POLÍTICAS FEMINISTAS DE TRADUÇÃO QUE MAL PDF
DÃO CONTA DAS SUJEITAS NEGRAS TRADUZIDAS 127‐
tatiana nascimento 142
ESCRITAS AFROFEMININAS EM TRADUÇÃO: THE COLOR OF TENDERNESS E L’HISTOIRE DE PDF
PONCIÁ 143‐
Marcela Iochem Valente, Luciana de Mesquita Silva 162
ORALIDADE INVEROSSÍMIL E ROMANCE GRÁFICO: A TRADUÇÃO BRASILEIRA DE AYA DE PDF
YOPOUGON 163‐
Marcos Araújo Bagno 184
DA NEGRITUDE CESARIANA À ANTILHANIDADE GLISSANTIANA: O CAMINHO PARA CRIOULIDADE PDF
E A TRADUÇÃO COMO PRÁTICA MESTIÇA 185‐
Dyhorrani da Silva Beira 200
POLÍTICAS DE TRADUÇÃO E ESCRITA LITERÁRIA NEGRA PDF
Valeria Lima de Almeida 201‐214
TRADUÇÕES TRANSGRESSORAS: A IMPORTÂNCIA DA TRADUÇÃO NÃO OFICIAL SOCIAL DE PDF
TEXTOS DE AUTORIA NEGRA PARA O AMBIENTE ACADÊMICO 215‐
Adélia Mathias 233
TOBIAS BARRETO, AGENTE NEGRO DE TRADUÇÃO PDF
Roch Duval 234‐251
PODE O TRADUTOR FALAR? UMA ANÁLISE DA TRADUÇÃO DA AUTOBIOGRAFÍA DE JUAN PDF
FRANCISCO MANZANO NO BRASIL SOB A ÓTICA DOS ESTUDOS CULTURAIS 251‐
Liliam Ramos da Silva 267
RESENHAS CRÍTICAS
CALÇOS E PERCALÇOS NA ÁREA DE BABEL: ESBOÇO DE UMA ANTROPOLOGIA DA PDF
TEXTUALIDADE 268‐
N'gana Yéo 273
A ANÁLISE DAS LITERATURAS FRANCÓFONAS E DA MUNDIALIZAÇÃO NO LIVRO DE NADÈGE PDF
VELDWACHTER 274‐
Kall Lyws Barroso Sales 280
TRADUÇÕES COMENTADAS
"O DESTRUIDOR", DE FRANK MARTINUS ARION PDF
Daniel Dago 281‐289
CONECTANDO PETINA GAPPAH COM OS LEITORES BRASILEIROS: UMA TRADUÇÃO COMENTADA PDF
DE “MISS MCCONKEY OF BRIDGEWATER CLOSE” 290‐
Cibele de Guadalupe Sousa Araújo 300
SAUDADES DO BENIM: SETE POEMAS DE EURYDICE REINERT CEND PDF
Dennys Silva‐Reis 301‐316
PROJETOS DE PESQUISA
RELATO DO PROJETO “LITERATURA DE REFÚGIO: EXPRESSÕES HAITIANAS” PDF
João Arthur Pugsley Grahl, Luciano Ramos Mendes, Rei Seely, Emerson Pereti, Carla Cursino, 317‐
Rafaela Santana, Glaucia dos Santos Abreu 322
ENTREVISTAS
POESIA, CRÍTICA E TRADUÇÃO: ENTREVISTA COM RONALD AUGUSTO PDF
C. Leonardo B. Antunes, Ronald Augusto, Dennys Silva‐Reis 323‐334
SER INTÉRPRETE E NEGRO NO BRASIL E NA VENEZUELA: ENTREVISTA COM AMAURY WILLIAMS PDF
DE CASTRO 335‐
Luciana Carvalho Fonseca 356
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Doutorando em Literatura (POSLIT) e Mestre em Estudos da Tradução (POSTRAD) pela Universidade
de Brasília (UnB). Professor, tradutor e cronista em seu blog Historiografia da tradução no Brasil
(http://historiografiadatraducaobr.blogspot.com.br). E-mail: reisdennys@gmail.com. Brasília, Brasil.
2
Doutora e Mestre em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Goiás (UFG). É professora da
Secretaria Municipal de Educação de Goiânia, onde atua, desde 2008, ministrando a disciplina de Língua
Estrangeira – Inglês. É autora do livro A representação do feminino na ficção de Yvonne Vera (Goiânia:
PUC_GO: Kelps, 2011). E-mail: guadalupe.sousa@gmail.com. Goiânia, Goiás.
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Para maior aprofundamento, consultar os trabalhos de Khachig Tölölyan (2014, 2007, 1996) e Rogers
Brubaker (2005).
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Porto Alegre, n. 13, Junho de 2017
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uma cultura imaginada que, de alguma forma, folcloriza a ideia de África como algo
sincrético, universal e unidiferencial. Nesse contexto, haveria uma voga de
tecnocratização do pensamento e da cultura a fim de “facilitar” a ideia de diáspora
africana. Entretanto, essa ação de homogeneizar é uma forma de desumanizar cultural e
socialmente o entendimento da diversidade africana e do hibridismo das diásporas
africanas. Além disso, o reconhecimento dos hibridismos culturais não levaria mais até
uma diáspora africana única, mas sim à formação de culturas negras e de culturas afro-
diaspóricas.
No aceite e na celebração das diferenças, é necessário ressaltar que essas só são
passíveis de existência graças à presença de subjetividades. Segundo Khachig Tölölyan
(2014), a existência de diásporas só é potencial quando há o “culto” à memória,
geralmente traumática, e, junto a essa, o resgate da pátria natal, de uma espécie de
identidade étnica. Essas duas subjetividades são transformadas conforme a competência
bicultural, por meio da qual as comunidades diaspóricas selecionam os elementos de que
podem se orgulhar de sua cultura ancestral, mas, ao mesmo tempo, não reconhecem
plenamente uma identidade diaspórica que vai de encontro a seus princípios nacionais e
morais e que as levem a se enquadrar em comportamentos com os quais não estão de
acordo ou que não desejam adotar. Isso significa que as comunidades diaspóricas unem
o local e o pátrio criando, assim, identidades híbridas, múltiplas. Provavelmente seja essa
a explicação para podermos falar em diásporas negras e não somente em diásporas
africanas.
A memória traumática negra é perene e a ela somam-se outros acontecimentos
cotidianos, formando-se, desse modo, uma espécie de discurso de resistência, uma força
estética e um tronco comum de identidade, ainda que tal diáspora tenha cores locais. A
ideia de diásporas negras parece-nos mais abrangente, pois a ela pertence a diáspora
africana, mas também as novas diásporas emergentes, como a haitiana, a cubana, a
brasileira, a antilhana e tantas outras. Assim, na contemporaneidade, como em outros
momentos históricos, observa-se uma tendência à tentativa de reconstrução de um
território imaginado negro. Tal território possibilitaria a busca do reconhecimento e da
pertença, sem, no entanto, cair-se no essencialismo. Essa comunidade imaginada negra
demarca cada vez mais seu território com corpos negros ocupando lugares jamais
imaginados, com discursos cada vez mais incisivos e estéticas marcadas, sobretudo, pela
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Edwards (20034) chama atenção para o fato de grande parcela dos negros não
dominarem uma língua estrangeira, pelos mais diversos motivos, inclusive de cunho
histórico. Ressalta-se que tal domínio refere-se o mais das vezes à modalidade formal de
línguas representativas de culturas hegemônicas, não dizendo respeito à gama substancial
de países com população negra bi- ou mesmo plurilíngue, como é o caso de muitos países
africanos, em que, como resultado de uma organização populacional forçada pela
empresa colonial, diversas etnias, com línguas diferentes, foram encerradas em um
mesmo país. Além disso, os discursos negros viajam e a forma como são traduzidos,
disseminados, reformulados e debatidos nos contextos transnacionais é primordial, posto
que a primeira atestação a ser feita é a de que estes textos formam arquivos individuais,
coletivos e institucionais das culturas negras. Cabe-nos, aqui, salientar que arquivo, nos
moldes de Michel Foucault (2008, p. 142), é o “sistema geral da formação e da
transformação dos enunciados”. De acordo com esse autor:
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No texto original, o autor se refere exclusivamente à população negra norte-americana. Entretanto,
parece-nos que a situação no Brasil não é diferente.
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Isto é, uma vez criada uma cultura tradutória negra e realizada uma tradução
identitária diaspórica negra, para além do profissionalismo e do trabalho linguístico, um
viés ético-político – uma responsabilidade social e consciente sobre seu dizer-fazer – pode
sobressair como movimento maior do ato tradutório. Nas palavras da pesquisadora Denise
Carrascosa (2017, p. 68-69):
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Expressão cunhada pela escritora Conceição Evaristo para designar sua forma autoral de escrita.
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Um exemplo de função-tradutor do ponto de vista ético-político é o ofício realizado por Tobias Barreto
no que concerne à implantação do germanismo no Brasil. Para mais detalhes, ver o texto de Roch Duval
intitulado “Tobias Barreto, agente negro de tradução” neste Número Especial.
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exercendo o ato da tradução, é praticamente impossível não percorrer essa vereda. Isso se
dá porque o tradutor, como ser subjetivo que é, impregna-se também de valores pessoais
ou ditos universais de sua cultura, mesmo não tendo consciência efetiva disso. Além de
levar em conta esses componentes, um outro elemento precisa ser considerado: o espaço
de experiência, termo cunhado pelo historiador Reinhart Koselleck (2015). Tanto a
tradução-processo como a tradução-produto são espaços de experienciar o Outro. O
tradutor, antes do leitor, é o primeiro a estar diante do espaço de experiência. O leitor, ao
ler a tradução – que também lhe oferece um espaço de experiência –, não tem acesso ao
mesmo espaço de experiência experimentado pelo tradutor, visto que o seu espaço será
muito mais híbrido, pois ao espaço de experiência do próprio texto é somada a
experiência de seu tradutor. Vale aqui recordar o que vem a ser experiência:
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não defende um projeto ético-político como profissional, no que concerne à questão das
culturas e das diásporas negras. No entanto, suas duas traduções são respeitadas (não se
encontrou qualquer crítica a essas traduções, do ponto de vista comparativo entre as
línguas e culturas) e consideradas grandes contribuições para (e pela) comunidade negra
brasileira. Como explicar isso? Provavelmente, o tradutor deu a conhecer o Outro
inconscientemente, ofereceu o espaço de experiência desse Outro ao leitor e de alguma
forma reimaginou esse Outro para o provável público leitor dessas obras. É possível que
as culturas de ambos os livros tenham contribuído para o êxito dessas traduções. Porém,
o mérito do texto em língua portuguesa é do tradutor que, de alguma forma, trouxe essa
representação e essa representatividade discursiva para o público brasileiro.
O terceiro princípio essencial do ato de tradução é o performativo. A tradução é
um acontecimento tanto do ponto de vista da produção, já que há escolhas a serem feitas
para que a tradução venha ao mundo, quanto do ponto de vista da recepção, pois
identifica-se uma resposta do destinatário da tradução devida às escolhas do tradutor e às
instâncias que o acompanham. Segundo Lenita Esteves (2014), a tradução é um ato
performativo e, como tal, produz efeitos na cultura de chegada que podem ser os mais
diversos: difusão de conhecimento, imersão na textualidade, enriquecimento, intervenção
política, entre outros. É possível que o que mais justifique a tradução como ato
performativo seja o fato de que nela sempre exista uma criação contínua, uma espécie de
movência, nos termos de Zumthor (2005), uma mobilidade do signo que nunca se esgota,
mas que é sempre contínua e recontextulizada. Por um lado, a performatividade verbal
pode ser explicada pelo contexto mutante – tanto cultural quanto temporal —, de onde
surge a provável explicação para as retraduções. Por outro lado, toda tradução está ligada
a feitos linguajeiros exteriores à materialidade linguística. Logo, o que as palavras fazem
dentro e fora do texto não depende somente do autor, do tradutor ou do leitor, mas também
da situação, do contexto em que elas se encontram (MARVIN, 2009). Dentro da questão
performativa do texto em tradução, entram em jogo as inferências, a intencionalidade e o
efeito real que esta tradução pode alcançar, além, é claro, do julgamento de um observador
que, com alguma autoridade, pode dizer se a performatividade da tradução alcançou, ou
não, êxito. Isso significa que todo tradutor, independentemente de haver engajamento,
está dentro de um contexto, assim também como está a tradução-produto.
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No que tange às diásporas negras no Brasil, a questão das cotas raciais, a lei de
inclusão do estudo das culturas africanas na escola e os acalorados debates acerca da
questão do negro nos vários âmbitos e instâncias da sociedade vêm criando um contexto
cada vez mais propício – mesmo que com grande enfrentamento e batalhas – a uma maior
aceitação e conexão da cultura negra. Não por mera coincidência, podemos perceber um
movimento não engajado de diversas editoras não acadêmicas que publicam autores
negros em tradução. A título de exemplo, podemos mencionar, dentre os mais recentes
nomes, as traduções de Dany Laferrière, pela Editora 34; de Ngũgĩ wa Thiong’o, pela
Biblioteca Azul, selo da Editora Globo e Companhia das Letras; de Chinua Achebe, pela
Editora Ática e pela Companhia das Letras; de Teju Cole, pela Companhia das Letras; de
Chimamanda Ngozi Adichie, também pela Companhia das Letras; de Ahmadou
Kourouma, pela Estação Liberdade; de Alaa Al Aswany, pela Companhia das Letras; de
Ishmael Beah, pela Ediouro e pela Companhia das Letras; de Ayaan Hirsi Ali, pela
Companhia das Letras; de NoViolet Bulawayo, pela Biblioteca Azul, selo da Editora
Globo; e de William Kamkwamba, pela editora Objetiva. Convém destacar que todos
esses autores primeiramente obtiveram sucesso fora do Brasil para, só depois, serem
traduzidos em âmbito nacional. Todavia, mesmo que esse tenha sido o critério editorial,
a prevalência das culturas hegemônicas e da não-representatividade negra está cada vez
mais dando lugar à presença das culturas negras. É por esse motivo que podemos afirmar
que tanto o tradutor quanto a tradução não-engajada podem sim oferecer uma
contribuição à cultura negra local. Somado a esses fatores, podemos ainda mencionar que,
no princípio performático da tradução, ainda podem ser agregados eventos (do tipo festa,
espetáculo, comemoração, solenidade, etc.) que impulsionem a tradução ou mesmo que
a mostrem de forma performática como, por exemplo, a Festa Literária Internacional de
Paraty (Flip) que, em 2017, ao trazer a escritora ruandesa Scholastique Mukasonga,
motivou a Editora Nós7 a traduzir duas de suas obras. Outro exemplo a citar é o do evento
Literatura de Refúgio: Expressões Haitianas8 que, ao produzir um momento de interação
entre a comunidade de refugiados haitianos e a comunidade local em Curitiba, utilizou-
se da tradução como instrumento de empatia cultural, linguística e humanitária.
7
Mais informações disponíveis em: <http://editoranos.com.br>.
8
Ver texto do Número Tradução e Diásporas Negras, Relato do Projeto "Literatura de Refúgio:
Expressões Haitianas" de João Arthur Pugsley Grahl e alii.
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Apesar de termos procurado demonstrar até aqui que a falta de engajamento não
implica necessariamente na falta de qualidade da tradução ou mesmo na ausência de um
contributo para a comunidade e a cultura negra local, ressaltamos que é sim possível haver
uma condução do ato tradutório e da recepção da tradução como movimento assimilador
(AMORIM, 2010, 2012a, 2012b, 2013, 2014), deturpador, estereotipado e caricaturesco
(LIMA, 2001, 2011, 2014, 2015), tanto das culturas negras quanto das imagens dos
negros. Tais movimentos assimiladores e redutores (por vezes racistas!) parecem,
inclusive, ser muito mais frequentes em outras modalidades ou tipos de tradução, como a
tradução audiovisual, a tradução intersemiótica e o versionismo, aos quais são dedicadas
ainda poucas pesquisas, no âmbito de Tradução e Diásporas Negras.
No caso da tradução audiovisual (dublagem, legendagem, localização e
acessibilidade da mídia – audiodescrição e legendagem para surdos), parece haver uma
homogeneização do ato tradutório vinculado sobretudo às estruturas técnicas dessas
modalidades a despeito das culturas em que elas são praticadas. Para ilustrar isso,
tomemos como exemplo a série de televisão The Fresh Prince of Bel-Air (no Brasil,
intitulada Um Maluco no Pedaço) e o filme Precious (no Brasil, Preciosa - Uma História
de Esperança). Esses dois produtos audiovisuais, um feito para a televisão e outro para o
cinema, têm como protagonistas personagens estadunidenses negros e pobres. É
conhecida a existência nos Estados Unidos de comunidades negras que utilizam o Afro-
American Vernacular English (AAVE – Inglês vernáculo afro-americano), inicialmente
chamado de Black English Vernacular (BEV – Inglês vernáculo negro), variedade que
caracteriza a chamada língua dos guetos afro-americanos. Esta variedade está presente
nas produções originais de Um Maluco no Pedaço e de Preciosa - Uma História de
Esperança, representando, de alguma forma, a estratificação social dos personagens, bem
como a forte identificação linguística da comunidade afro-americana. Todavia, tanto na
dublagem de Um Maluco no Pedaço quanto na legendagem de Preciosa - Uma História
de Esperança, para o português brasileiro, este elemento característico da cultura negra
norte-americana desaparece. Ele é homogeneizado ora como variante oral da língua
portuguesa de menor prestígio no Brasil, ora como somente registro oral brasileiro em
contexto não formal. Desta forma, perde-se, na tradução audiovisual, uma característica
cultural dessa comunidade negra. A priori, esse trabalho de crítica e feitura tradutiva mais
consciente parece um fardo árduo. No entanto, os trabalhos do professor Gian Luigi De
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Rosa (2007a, 2007b, 2007c, 2011, 2012a, 2012b) podem auxiliar em muito os futuros
pesquisadores dessa área no Brasil.
Não muito distante da tradução audiovisual, uma outra modalidade complexa da
tradução, em que começam a emergir estudos mais densos sobre Tradução e Diásporas
Negras, é a Tradução Intersemiótica. O princípio representacional da tradução, nessa área,
é primordial e, por vezes, a busca de uma fidelidade é levada ao extremo, devido a ser a
modalidade de criação mais paradoxal, pois criatividade e “correspondência” precisam
ser um único amálgama. Ainda assim, o elo ideológico de estigmatização das culturas
negras pode ser forte nesse tipo de modalidade de tradução, a depender do
tradutor/adaptador. Nesse sentido, mencionamos dois exemplos: um histórico e outro
mais recente. Bug-Jargal (1836), romance de Victor Hugo, cujo enredo trata da
independência do Haiti, foi transmutado em ópera, por Gama Malcher e Vincenzo Valle,
em 1890, tendo sido apresentado no Theatro da Paz, em Belém. Entretanto, um dos fatos
mais inusitados da ópera foi a ausência de atores negros, atuando como personagens
negros, visto que o enredo é basicamente composto por personagens negros. Jocileide
Silva (2012) explica que a apresentação desta ópera aconteceu após a abolição da
escravatura. Contudo, os apreciadores brasileiros de ópera, pertencentes à classe abastada,
não estavam habituados a ver negros exercendo a função de ator. Assim, a solução foi
tingir o corpo e o rosto dos atores principais, hábito comum à época e que, a despeito de
diversas manifestações e críticas de vertentes do movimento negro, prevalece até a
atualidade, em várias partes do mundo, sob a designação de blackface. Aliás, no Brasil, o
blackface foi utilizado como prática racista até meados da década de 1970. Há um
episódio conhecido envolvendo um dos maiores intelectuais negros brasileiros, militante
contra o racismo, Abdias Nascimento. Nelson Rodrigues escreveu a peça de teatro “Anjo
Negro”, com a intenção declarada de oferecer um papel de destaque a um ator negro, um
personagem que não fosse o tipo folclorizado, caricaturesco, das comédias de costume.
Nelson convidou então Abdias para encarnar o personagem Ismael. No entanto, a censura
do Teatro Municipal do Rio de Janeiro proibiu que um ator negro representasse um papel
sério relacionado a um tema tabu: a relação sexual inter-racial. Assim, a peça estreou em
1948 com um ator pintado de graxa, Orlando Guy, sob direção de Ziembinski (CASTRO,
1992; RODRIGUES, 1993).
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mensagem racial, o que foi adaptado e o que foi retirado ainda constitui uma lacuna, em
nosso meio acadêmico. Prosseguindo no viés do versionismo, em 2012, Djavan concedeu
várias entrevistas expondo sua atuação como “cotradutor” junto aos versionistas em
inglês e em espanhol de suas músicas, o que demonstra que a cultura negra brasileira
também tem, de igual modo, alcançado outros espaços geográficos, por meio deste tipo
de tradução, segundo demonstra Adriana Meiberg (2014), em sua dissertação de
mestrado, que tangencia o assunto.
Viviane Veras (2013), em seu artigo "Quando traduzir é (re)escrever (um)a
história: o papel dos intérpretes na Comissão da Verdade na África do Sul", e Geri
Augusto (2017), em capítulo de livro intitulado “A língua não deve nos separar!
Reflexões para uma Práxis Negra Transnacional de Tradução”, trazem à tona uma área
quase impenetrável para agentes negros: a interpretação. As duas pesquisadoras
demonstram, a partir de práticas e relatos da tradução oral, como esta modalidade de
tradução é carregada de vivência, já que se trata da tradução em ato ou do “quando
traduzir é fazer”. As relações entre cultura negra e interpretação no Brasil ainda estão
ocultas. Há um preconceito com a questão do negro enquanto intérprete devido a um
suposto status de brancura da profissão, no que se refere ao acesso à profissão, a
profissionais negros preparados e habilidosos, mas, igualmente, ao racismo reinante no
meio das relações entre profissionais da área e contratantes destes serviços 9. Além disso,
as relações de intérpretes negros atuando em assuntos raciais no ato da interpretação
trazem à superfície outros elementos contextuais, psicolinguísticos, emocionais e
históricos complexos e ainda pouco estudados (VERAS, 2013; AUGUSTO, 2017).
Tanto a prática da tradução quanto os estudos da tradução em contextos de
diásporas negras têm se tornado uma bandeira emergente dentro da área nomeada Estudos
de Tradução em solo brasileiro. Por um lado, tal área de estudo tem conseguido dar
oportunidade e reconhecimento discursivos e representativos. Por outro lado, tem-se
buscado construir uma práxis que abarque essa especificidade – pois consideramos que a
tradução de textos oriundos e que abordem as diásporas negras constituem sim uma
especialidade, tal como a tradução de textos científicos, econômicos, jurídicos, etc., e que
tal especialidade demanda e merece atenção especial de seus tradutores para as
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Assunto discorrido no texto “Ser intérprete e negro no Brasil e na Venezuela: entrevista com Amaury
Williams de Castro”, de Luciana Carvalho que compõe o presente número temático.
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Ver no presente número temático artigo de Adélia Mathias intitulado “Traduções Transgressoras: a
importância da tradução não oficial social de textos de autoria negra para o ambiente acadêmico”.
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SERNEGRA – Semana de Reflexões sobre Negritude, Gênero e Raça, organizada por Glauco Vaz
Feijó e Pollyana Ribeiro Alves Martins. Em 2016, o evento teve por temática “Decolonialidade e
antirracismo”. Agradecemos aos organizadores a acolhida do frutífero simpósio.
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Bibliografia
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Khachig Tölölyan2
ABSTRACT: This paper formed the inaugural lecture at the launch of the Oxford
Diasporas Programme in June 2011. It explores the contradictions and complexities of
three ‘formative binaries’ – between dispersion and diaspora, the subjective and objective
aspects of the diasporic experience, and the differences between home and homeland.
1 Introdução
Todo pesquisador tenta alcançar uma perspectiva objetiva, mas todo pesquisador
honesto sabe que também tem uma perspectiva subjetiva moldada por sua formação como
profissional e como indivíduo. Vocês têm o direito de conhecer a minha. Qualquer
pesquisador no campo dos estudos da diáspora tem de desenvolver alguma competência
em três campos. Primeiro, tem de conhecer as pessoas da diáspora que está estudando,
um pouco como um bom antropólogo as conhece: deve entender como as pessoas se
sustentam economicamente, como organizam sua vida social, participam da vida púlbica
e política, produzem uma cultura que as representa para si mesmas e para os outros e, no
processo, atribui valor e significado a suas vidas. Em segundo lugar, o pesquisador
1
Este artigo foi publicado como parte do Programa Diasporas da Univeridade de Oxford no Instituto
Internacional de Migração em junho de 2011. Diretos de tradução cedidos pelo autor. Tradução: Marcos
Bagno e Dennys Silva-Reis. Dísponível em < https://www.imi.ox.ac.uk/publications/wp-55-12>.
2
Professor da área de Humanidades na Wesleyan University (Estados Unidos). Em 1991 fundou a
revista Diaspora: a journal of transnational studies, publicada pela University of Toronto Press, da qual é
desde então o editor. É autor de um livro em sua língua materna, o armênio, Spurki Mech (Na Diáspora),
Haratch Press, 1980. É co-organizador do livro Diaspora, Identity and Religion (Routledge, 2004) e autor
de 35 artigos sobre diásporas, terrorismo e literatura.
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responsável deve ter algum conhecimento histórico de como a formação social sob estudo
veio a se constituir, e às vezes até adquirirá mais conhecimento desse tipo do que o que
têm os membros individuais dessa sociedade ou desse povo. E, em terceiro, um
pesquisador deve ter o que hoje se chama competência teórica — uma familiaridade com
os modos como ideias sobre formações sociais semelhantes têm sido produzidas e podem
ser examinadas criticamente e auto-reflexivamente. No meu caso, a formação social
específica que conheço como estudioso em todos esses aspectos é a diáspora armênia,
que no entanto não é o tópico central da minha fala hoje. Minha segunda área de
especialidade é fruto do meu trabalho nas últimas duas décadas como editor da revista
Diaspora, o que me tem dado a oportunidade de observar de perto a emergência do campo
multidisciplinar dos estudos da diáspora.
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potencialmente útil para organizar suas investigações. Desde então, conforme notaram
estudiosos como Dominique Schnapper (2006) e Oliver Bakewell (2008), temos
observado a progressiva superlotação do domínio semântico da diáspora. Essa
superlotação não é simplesmente aditiva, mas transformativa. Conforme apontava
Ferdinand de Saussure em 1916, nenhum termo obtém seu significado
independentemente, mas o adquire em sua relação, e em sua diferença matizada, com
outros aparentados. Por conseguinte, desde o final dos anos 1960, “diáspora” passou a
significar o que significa em sua imbricação com os termos transnacionalismo,
globalização, migração, etnicidade, exílio, pós-colonial e nação. Desde os anos 1980, os
significados em mutação de “pertencimento” e “cidadania” têm complicado ainda mais a
situação conceitual. Para isso também contribui a mídia digital, na qual redes emergem e
se autodenominam diásporas, não sem algum fundamento, exceto talvez no caso daqueles
programadores que, objetando-se às práticas do Facebook em fevereiro de 2010,
abandonaram essa rede social e estabeleceram uma nova chamada “diaspora*”
(diasporafoundation.org).
Como têm sugerido diversos colaboradores cujos trabalhos editei para a revista,
em algumas ocasiões agi como um membro da polícia linguística, mas não é minha
intenção agora insistir na necessidade de uma patrulha das fronteiras de nossas categorias.
Nem tenho tempo suficiente para oferecer uma narrativa detalhada da série de importantes
artigos e livros que desempenharam papéis essenciais na emergência do campo dos
estudos da diáspora ao mesmo tempo em que, por vezes, também contribuíram para a
consequente confusão terminológica. No entanto, outro gênero de narrativa analítica
poderia indagar como e por quê “diáspora” se tornou um termo “bon pour penser avec”,
para parafrasear Lévi-Strauss acerca dos animais no totemismo. Hoje, vou me concentrar
primordialmente em alguns termos e conceitos interessantes e persistentes e que me
parecem suscetíveis de permanecer importantes à medida que os estudos da diáspora
avançam; em alguns casos, duplas de termos têm funcionado como binários formativos
que nos ajudam a mapear o campo contemporâneo dos estudos da diáspora.
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O primeiro evento que impeliu essa popularidade foi o empoderamento dos negros
estadunidenses como eleitores pelas leis de direitos civis de 1964-65 e a subsequente
emergência nos Estados Unidos do movimento Black Power; a renomeação das pessoas
de cor (coloured people) e dos negros (negroes) primeiro como Black e depois como
Afro-Americans, uma etnicização terminológica que ocorreu durante a ascensão de Jesse
Jackson como um candidato temporariamente plausível à presidência por volta de 1984;
e a emergência paralela do termo African Diaspora (“Diáspora africana”), observado pela
primeira vez numa palestra dada pelo historiador George Shepperson numa conferência
pan-africana em Dar-es-Salaam (Tanzânia), em 1964. Embora não amplamente aceito por
todos os afro-americanos leigos, o termo African Diaspora está agora firmemente
estabelecido nas universidades e no discurso de intelectuais e jornalistas respeitáveis nos
Estados Unidos. A dispersão dos descendentes de ex-escravos africanos pelos Estados
Unidos e pela Jamaica, pelo Brasil e pelo Oceano Índico, pela Grã-Bretanha e pela
Colômbia, é agora uma “diáspora” para estudiosos de história e sociologia, de
etnomusicologia bem como de estudos literários e culturais; nos estudos culturais, o livro
The Black Atlantic, de Paul Gilroy (Gilroy, 1993), teve um efeito-cascata e catalisador
raramente testemunhado no meio acadêmico.
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O terceiro evento que convergiu com os fatores acima citados foi a aprovação,
pelo Congresso dos Estados Unidos, da Lei Hart-Celler de Imigração e Nacionalidade,
em 1965, numa votação de 76 a 18. Essa lei, com emendas acrescentadas nos anos
seguintes, anulou as quotas de imigração restritivas estabelecidas em 1923-24, ampliou o
número de imigrantes e permitiu a imigração não europeia para os Estados Unidos em
escala global. Embora esse evento tenha ocorrido no período que estou discutindo — isto
é, 1964-68 —, devo acrescentar que seus efeitos plenos só foram sentidos depois de 1970;
demorou cinco anos até que a imigração ganhasse ímpeto. Ainda assim, depois da
aprovação da Lei de Imigração, os estadunidenses começaram a se dar conta novamente
de que seu país era uma terra de imigrantes que se tornaram cidadãos de pleno direito
muito antes que sua assimilação cultural se completasse. Os dois textos que
desempenharam papel fundamental no processo foram A Nation of Immigrants, do
presidente John F. Kennedy, escrito em 1958 mas publicado postumamente em 1964
(Kennedy, 1964), e o volume de Nathan Glazer e Daniel Moynihan, Beyond de Melting
Pot: The Negroes, Puerto Ricans, Jews, Italians and Irish of New York City (Glazer e
Moynihan, 1963). Embora muito diferentes, os dois textos reconhecem com relutância
que a tarefa a ser cumprida era aculturar e integrar todos os imigrantes como
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O termo melting pot designa, em inglês, o cadinho ou crisol, recipiente utilizado para experiências
químicas em que se tem de misturar ou fundir substâncias, metais etc. É empregado também para se referir
à formação da sociedade estadunidense como resultante de uma mescla de pessoas provenientes dos mais
diversos lugares do mundo (N. T.).
4
John Enoch Powell (1912-1998), intelectual e político conservador britânico, pronunciou no Parlamento
em 1968 um discurso contra a imigração, no qual empregou a expressão “rios de sangue” para se referir às
possíveis turbulências sociais da existência de etnias diversas num mesmo país (N. T.).
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que enumerei, essa última afirmação é a mais aberta ao debate porque não há quantidade
suficiente de comprovação para ela; baseia-se na experiência e na interpretação.
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a ideia de que a diáspora não é “um objeto de análise”, conforme ela escreve. Sabemos
demais sobre diásporas como bairros e redes, cadeias de conexões e trocas, como vítimas
frágeis de perseguição, mas também como saudáveis praticantes do que chamo “poder
sem Estado” em meu próprio trabalho, para concordamos sem restrições com a
caracterização da autora. E, no entanto, o que ela diz é crucial. Não existe de fato nenhum
lugar chamado diáspora, embora existam lugares de habitação e memória. Não existe
nenhuma categoria legal, jurídica, burocrática chamada diáspora, embora existam
passaportes, visas e vistos de residência, estrangeiros legais e ilegais, les dépaysés e les
sans-papiers, estrangeiros com documentos e sem documentos, residentes permanentes,
refugiados, apátridas, mas também detentores de duplas cidadanias etc. A insistência de
Cho em que as diásporas são o luto das perdas vincula-a aos intelectuais que veem os
indivíduos reunir-se em comunidades de memória traumática, consistindo de vítimas cuja
identidade e cujas reivindicações de direitos estão presas às suas feridas. Robin Cohen
introduziu a noção de “diáspora de vítimas” (victim diaspora) uma década antes de Cho
ter escrito seu texto e ele reconhecia que, embora nenhuma diáspora duradoura dure
somente por meio de tal memória, ainda assim muito de sua vida pode ser organizada em
torno de funções comemorativas e discursos e práticas que tomam as feridas como seu
ponto de partida. É claro que o genocídio e o etnocídio, o estupro e a expropriação são
mais do que reais. Mas eles não são parte da experiência vivida, objetiva das gerações
diaspóricas subsequentes, que podem não ter nenhuma memória direta e não mediada do
horror. Ao contrário, como argumenta Marianne Hirsch (Hirsch, 2008), as gerações
recentes herdam ou constroem o que ela chama de “pós-memória” através de fotografias
e narrativas, artefatos e exposições, em convenções e conferências e, agora, on-line. O
subjetivo é real, embora num registro diferente do da materialidade do objetivo, e ele
ajuda a construir o sujeito diaspórico individual que é atraído por outros que
compartilham a mesma subjetividade mediada. Essa é uma razão pela qual o estudo da
literatura e da cultura de massa, e das novas mídias digitais, deve ser trazido para mais
perto do trabalho dos cientistas sociais.
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Exceto esse caso, considera-se que todas as outras diásporas têm uma pátria e se
orientam na direção dela. Essa concepção é de tal modo predominante que a encontramos
entre funcionários dos governos das pátrias ancestrais, persuadidos da importância de
reivindicar suas diásporas e que se esforçam por criar ministérios e secretarias da diáspora
na Armênia, na Itália, na Grécia, na República Dominicana e até na região autônoma
basca na Espanha. Atuando como consultor em duas dessas instâncias, considerei
necessário argumentar em favor de uma posição ligeiramente diferente e mais produtiva,
cujo fundamento consigo ilustrar melhor com três episódios interligados.
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importante para mim, e me preocupo muito com sua prosperidade e segurança”. Dois
meses antes, num evento armeno-americano em Watertown (Massachusetts), um
estudante universitário, que se identificava como pertencente à quarta geração da família
nascida nos Estados Unidos, disse quase a mesma coisa a um orador apaixonado sobre o
que considerava ser a “pátria armênia” da plateia. “Sou americano”, disse o estudante,
“este país tem sido o lar da minha família há várias gerações. Sei que a Armênia é a pátria
dos meus ancestrais e que tenho parentes longínquos lá, e eu gostaria de fazer alguma
coisa para ajudá-la a se fortalecer contra a Turquia e a ser menos economicamente pobre
do que é”. Parte do que ele disse era praticamente idêntica às palavras da professora em
Poitiers.
Esses sentimentos estão bem difundidos entre os estudantes jovens com quem
tenho trabalhado há décadas. Meu próximo caso, que também relatei num artigo intitulado
“Beyond the homeland: From exilic nationalism to diasporic transnationalism”
(Tölölyan, 2010), ocorreu no primeiro dia do meu curso sobre “Diásporas,
transnacionalismo e globalização”, quatro anos atrás. Pedi aos dezesseis estudantes do
seminário que dissessem algo sobre seus interesses etnodiaspóricos, se tivessem algum.
Fez-se um longo silêncio. Voltei-me para uma estudante que já tinha frequentado dois
cursos meus e a quem eu conhecia de longas conversas e disse: “Eu conheço você, sei
que é judia, já falou sobre isso, por que o silêncio?” Ela demorou a responder.
“Professor”, disse por fim, “eu sei que sou judia. O senhor sabe que sou judia. O problema
é que, no mesmo instante em que eu admitir isso, minha mãe e minha avó também vão
dizer que tipo de judia eu tenho que ser, quem eu devo namorar, o que eu deveria fazer.
Não posso me permitir ser uma judia assim”. Essa observação deu início às conversas.
Um estudante coreano-americano, cujos pais, como é frequentemente o caso com recentes
imigrantes coreanos nos Estados Unidos, são evangélicos praticantes, expressou reservas
semelhantes quanto a reivindicar uma identidade diaspórica. Nas universidades e online,
um grande número dos jovens que formarão a próxima geração das diásporas nos Estados
Unidos expressam as mesmas opiniões. Reconhecem uma pátria ancestral e uma
identidade etnodiaspórica, e as duas coisas são importantes. Mas não reconhecerão
plenamente nenhuma identidade diaspórica que seja concebida em relação e em
subordinação à autoridade nacional e moral atribuída à pátria porque tal consentimento
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Não surpreende que estudiosos da diáspora tenham começado a usar termos como
“comunidade contingente” para diásporas duradouras que estão sendo rapidamente
alteradas pelas atitudes de seus jovens mais instruídos, ou que Aram Sinnreich tenha
publicado um livro sobre a prática juvenil do mash-up5 na música (2010). Ele argumenta
que os jovens exigem e celebram o que ele chama de “‘configurabilidade’ musical,
enraizada numa infra-estrutura global, de comunicações em rede”. Sinnreich utiliza
entrevistas com DJs famosos, executivos da indústria musical e advogados para
argumentar que as disputas atuais sobre sampleagem, compartilhamento de arquivos e a
comercialização de estilos novos como mash-up e techno antecipam mudanças sociais
ainda mais amplas. “A música, que tem um poder único de evocar emoções coletivas,
sinaliza a identidade, e une ou divide sociedades inteiras”, é agora também matéria-prima,
um recurso para reconfigurar identificações como multilocais ou diaspóricas. Na minha
opinião, o artigo de Gayatri Gopinath sobre a síntese punjabi, caribenha e anglo-
americana que produziu a música bhangra, publicado em Diaspora em 1995 (Gayatri,
1995), permanece como um modelo de trabalho que precisa ser feito com mais
frequência.
5
Mash-up é uma gravação criada digitalmente em que se mistura trechos de duas ou mais músicas
diferentes, aos quais se acrescenta vozes e instrumentos novos (N. T.).
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Tenho argumentado que precisamos ter cuidado para não situar tão facilmente o
lar diaspórico na pátria ancestral. É um hábito moldado em parte pelos estudos de
políticas diaspóricas. A observação de Michel Laguerre (1999: 641) de que “a nação
cresceu para além do Estado por causa de seus tentáculos diaspóricos” é um bom exemplo
do problema: confunde migrantes haitianos de primeira geração com uma diáspora
estabelecida e atribui a essa diáspora o status de um fragmento ou extensão da nação. No
meu entender, um conjunto de migrantes transnacionais se torna uma diáspora quando
seus membros desenvolvem alguma distância familiar, cultural e social para com sua
nação, embora continuem a se preocupar profundamente com ela, não só em termos de
parentesco e filiação, mas pelo compromisso com certas afiliações conscientes. Os
estudos transnacionais contemporâneos mostram que a pátria é alcançada facilmente por
telefone, por vídeo e por avião, e que o espaço social transnacional é o espaço em que os
novos imigrantes ainda se sentem mais à vontade, e eles projetam sobre as diásporas essa
característica de formas recentes de dispersão. Por outro lado, após várias gerações, o
diaspórico já não se sente comprometido por causa de vínculos de parentesco e memórias
pessoais (embora ainda sejam importantes na medida em que esses vínculos e memórias
podem ser revividos e revigorados por meio de viagens e participações); nem se
compromete simplesmente porque não está integrado à sociedade anfitriã, como se dá
frequentemente com a primeira e a segunda gerações. O diaspórico não comprometido
por meio desses vínculos é agora um cidadão em seu “novo” país, possui uma cultura e
identidade híbridas ou, pelo menos, desenvolveu uma confortável competência bicultural.
É um diaspórico por causa de um conjunto de decisões cumulativas de permanecer bi- ou
multi-local, de se preocupar com os outros na diáspora, com quem compartilha uma
origem etnodiaspórica, e também de se preocupar de algum maodo com o bem-estar da
pátria de seus ancestrais.
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A lacuna entre as percepções êmica e ética da diáspora tem se tornado cada vez
mais visível em anos recentes, à medida que governos dos países de origem e organismos
internacionais como o Banco Mundial e o FMI buscam, um tanto desajeitadamente,
desenvolver meios para atrair mais investimento e remessas de dinheiro, vender bônus às
diásporas e, de modo geral, dirigir o capital político e econômico das diásporas, sejam
elas indianas, ruandenses, armênias, haitianas ou africanas.
Este texto se iniciou com uma consideração das condições sociais e políticas
favorecedoras que levaram ao crescimento vertiginoso dos estudos da diáspora, o qual
preocupava Rogers Brubaker. Em seguida, empreendeu uma tipologia parcial de binários
conceituais que persistentemente estruturam a proliferação que Brubaker achava tão
perturbadora. Embora permaneça a necessidade de nos mantermos vigilantes acerca da
clareza terminológica e conceitual, gostaria de concluir chamando nossa atenção para a
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atual e problemática politização das diásporas e para o papel que pode desempenhar na
solução dessa tendência o campo relativamente autônomo constituído por estudos da
diáspora bem amadurecidos.
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tudo isso é, na minha opinião, um exemplo do modo como cada um, incluindo os naturais
de qualquer país, terá de viver num mundo cada vez mais heterogêneo e plural. É um
mundo em que as diásporas têm vivido por bastante tempo. Espero por estudos da
diáspora que estejam à altura da complexidade das diásporas que são tanto os objetos
quanto os co-sujeitos de suas análises.
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OS USOS DA DIÁSPORA1
RESUMO: O termo diáspora só começou a ser empregado nos estudos sobre história e
cultura negras depois da Segunda Guerra Mundial. Neste artigo, o autor retraça os usos
desse termo na produção acadêmica a partir daquele período, compara-os a outras
expressões que tentam dar conta dos mesmos fenômenos, como pan-africanismo e
Atlântico negro, recupera a noção de articulação empregada por Stuart Hall e propõe
combiná-la com a noção de décalage, palavra francesa que significa “defasagem,
discrepância, divergência”, para criar um modelo de análise da historiografia negra capaz
de lidar com as diferenças e as semelhanças existentes nas diversas comunidades de
origem africana dispersas pelo mundo.
ABSTRACT: The term diaspora has only appeared in the work on black history and
culture after World War II. In this paper, the author tracks down the uses of the term in
scholarship since that period, compares them to other expressions that attempt to account
for the same phenomena, like Pan-Africanism and Black Atlantic, takes back the notion
of articulation employed by Stuart Hall and proposes a combination of it with the notion
of décalage, a French word that means “gap, discrepancy, uneveness”, in order to create
a model of analysis of black historiography allowing to deal with differences and
similarities that exist in the various communities of African descent scatterd worldwide.
Introdução
1
Este artigo foi publicado originalmente na revista Social Text 66 V. 19, N. 1, Primavera - 2001. Tradução
de D'Artagnhan Rodrigues e Marcos Bagno. Agradecemos ao autor por nos conceder os direitos de
tradução.
2
Brent Hayes Edwards é professor de Inglês e Literatura Comparada na Universidade Columbia. Suas áreas
de interesse são a literatura diaspórica africana e afro-americana; a poesia do século XX; a literatura
francófona; a teoria da tradução e o jazz. Publicou, entre outros, The Practice of Diaspora: Literature,
Translation, and the Rise of Black Internationalism (2003), obra que recebeu diversos prêmios literários.
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3
Khacig Tölölyan, “Rethinking Diaspora(s): Stateless Power in the Transnational Moment,” Diaspora 5
(primavera, 1996): 8.
4
James Clifford, “Diasporas”, in Routes: Travel and Translation in the Late Twentieth Century
(Cambridge: Harvard University Press, 1997), 244-78.
5
Tölölyan comenta que os afro-americanos constituem uma comunidade que “permanece excepcional,
sobretudo em sua formação como uma diáspora, e é um desserviço tanto intelectual quanto político ocultar
essa excepcionalidade na crença de uma solidariedade que conjuga todos os povos de cor em algum discurso
etnodiaspórico ou multiculturalista” (“Rethinking Diaspora(s)”, 23). Embora eu acompanhe Tölölyan aqui
ao argumentar que a história intelectual de um discurso da “diáspora Africana” é singular, deve-se observar
que minha abordagem rompe com a ênfase naquilo que se pode chamar de “diásporas comparativas”
exemplificado pela política editorial de Diaspora, a revista que ele edita, bem como com outros trabalhos
recentes (alguns bastante úteis) que interpretam a diáspora africana como apenas um exemplo numa
tipologia. Outros exemplos são Diaspora and Immigration, um número especial do South Atlantic
Quarterly (98 [inverno/primavera, 1999]), editador por V. Y. Mudimbe e Sabine Engel; Kim Butler,
“Defining Diaspora, Refining a Discourse”, Diaspora (no prelo); Robin Cohen, Global Diásporas: An
Introduction (Seattle: University of Washington Press, 1997); William Safran, “Diásporas in Modern
Societies: Myths of Homeland and Return”, Diaspora 1 (primavera, 1991): 83-99.
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relativizações do próprio Paul Gilroy) confundir diáspora, sua história particular e seu
uso na cultura e política negra, com a postulação deste campo que Gilroy chama de Black
Atlantic (Atlântico Negro) – termo rapidamente canonizado e institucionalizado na
academia nos Estado Unidos.
Não estou sugerindo que limitemos o objeto do estudo do termo a fenômenos mais
contemporâneos. Ao contrário, para meu próprio trabalho, procuro explorar a cultura e
política negras no período entre guerras, particularmente no circuito transnacional de
intercâmbio entre a chamada “Renascença do Harlem” (Harlem Renaissance) e a
atividade da pré-Negritude francófona na França e na África ocidental6. Procuro explorar,
então, o sentido historicizado e politizado de diáspora. Repenso os usos de diáspora mais
precisamente para instigar uma discussão da política da nominalização, em um momento
de prolixidade e falta de cuidado retórico, quando tal questão é geralmente a primeira a
sofrer baixas. Uma história intelectual do termo se faz necessária, em outras palavras,
porque diáspora tem sido tomado numa conjuntura particular no discurso acadêmico
negro para desenvolver um tipo particular de trabalho epistemológico7.
O uso do termo diáspora emerge diretamente do crescente interesse acadêmico
pelo movimento pan-africano em particular, e pelo internacionalismo negro em geral, que
começou a se desenvolver nos anos 1950. É importante lembrar que o pan-africanismo,
referindo-se tanto à Conferência Pan-Africana de 1900 de Henry Sylvester William
quanto aos congressos organizados por W. E. D. Du Bois e outros em 1919, 1921, 1923,
1927 e 1974, surge como discurso de internacionalismo objetivando, de modo geral, a
coordenação dos interesses culturais e políticos dos povos africanos e de seus
descendentes espalhados por todo o mundo. Como declarou Du Bois em 1993, em célebre
artigo publicado na revista Crisis, “Pan-África significa compreensão intelectual e
6
Brent Hayes Edwards, “Three Ways to Translate the Harlem Renaissance”, in The Harlem Renaissance:
Temples for Tomorrow, ed. Geneviève Fabre e Michel Feith (Bloomington: Indiana University Press,
2001), 359-96; e Edwards, The Practice of Diaspora (Cambridge: Harvard University Press, 2001).
7
Ao assumir uma política do uso de diáspora, trago para o primeiro plano a função analítica do termo,
porque (embora alguns trabalhos históricos recentes confundam a questão) diáspora não tem sido um termo
dominante de organização política. Quando os ativistas negros se uniram a movimentos transnacionais,
eles se voltaram para uma ampla gama de termos (incluindo etiopianismo, pan-africanismo, antifascismo,
comunismo, direitos civis, Black Power, afrocentrismo, anti-racismo, antiapartheid), mas raramente e
apenas bem recentemente recorreram a diáspora como um denominador comum ou uma designação de
grupo.
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A ideia de uma África para unir pensamentos e ideais de todos os povos nativos do
continente negro pertence ao século XX e deriva naturalmente do Caribe e dos
Estados Unidos. Aqui, vários grupos de africanos, bem separados em suas origens,
ficaram tão unidos na experiência e tão expostos ao impacto de novas culturas que
começam a pensar na África como uma ideia e uma terra 9.
8
W. E. B. Dubois, “Pan-Africa and the New Racial Philosophy”, Crisis 40 (novembro, 1933): 247.
9
Du Bois, The World and Africa: An Inquiriy into the Part Which Africa Has Played in World History
(1946; ed. ampliada, New York: International Publishers, 1965), 7. Para outra versão deste argumento, ver
J. A. Langley, “New-World Origins of Pan-Negro Sentiment”, em Pan-Africanism and Nationalism in West
Africa, 1900-1945: A Study in Ideology and Social Classes (Oxford: Oxford University Press, 1973), 17-
40.
10
St. Clair Drake, “Negro Americans and the Africa Interest”, em The American Negro Reference Book,
ed. John P. Davis (Englewood Cliffs, NJ: Prentice Hall, 1966), 662-705.
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abrangente, os estudos sobre a história do “interesse pela África” foram uma maneira de
dar conta de uma necessidade consistente de um “retorno” ideológico à questão da África,
como um símbolo da questão das origens – um retorno para o que Edouard Glissant
chamou de “ponto de emaranhamento” (intrication). A problemática do “retorno”, nesse
sentido, animou de forma consistente ideologias negras tão diversas quanto o garveísmo,
a Negritude e numerosos discursos negros de “etiopianismo” no Novo Mundo; também
animou uma grande quantidade de pioneiros da história e da sociologia afro-americanas
nas primeiras décadas do século XX (como Du Bois, Carter G. Woodson, Arturo
Schomburg, entre outros)11. No período entre guerras, essas raízes se estenderam à
emergente disciplina da antropologia, especialmente pela influência de estudiosos como
Jean-Price Mars e Melville Herskovits no trabalhos sobre “sobreviventes africanos” nas
culturas negras do Mundo Novo12. Essas questões de retenção cultural foram igualmente
dominantes no trabalho histórico e arquivístico que se seguiu ao Congresso Pan-Africano
de Manchester de 1945; nos trabalhos de estudiosos como St. Clair Drake, George
Shepperson, Rayford Logan, Harold Isaacs, James Ivy, Dorothy Porter, Adelaide
Cormwell Hill e E. U. Essien-Udom13.
11
Edouard Glissant, Caribbean Discourse, trad. J. Michael Dash (Charlottesville: CARAF
Books/University Press of Virginia, 1989), 26. O original é Le Discours Antillais (Paris: Seuil, 1981), 36.
Argumentos desse período de que uma problemática do “retorno” molda tanto a Negritude quanto o
etiopianismo aparecem em St. Clair Drake, “Hide My Face? – On Pan-Adricanism and Negritude”, em
Soon, One Morning: New Writing by American Negroes, 1940-1962, ed. Herbert Hill (New York: Alfred
A. Knopf, 1966), 77-105; e George Shepperson, “Ethiopianism and African Nationalism”, Phylon 14
(primeiro trimestre de 1953): 9-18. Drake comenta de modo mais geral sobre “‘The Return’ As a Pan-
African Theme” em seu “Diaspora Studies and Pan-Africanism”, em Global Dimensions of the African
Diaspora, ed. Joseph Harris (Washington: Howard University Press, 1982), 359-66.
12
Uma excelente introdução é David Scott, “That Event, This Memory: Notes on the Anthropology of
African Diasporas in the New World”, Diaspora 1 (inverno, 1991): 261-84.
13
Eis uma pequena amostra da abundância de trabalhos sobre o “interesse pela África” nesse período,
dedicados particularmente aos projetos de retorno de negros do Novo Mundo e às influências ideológicas
afro-americanas sobre a África: Harold R. Isaacs, “The American Negro and Africa: Some Notes”, Phylon
20 (outono, 1959): 219-33; George Shepperson, “Notes on Negro American Influences on the Emergence
of African Nationalism”, Journal of African History 1, n. 2 (1960): 299-312; E. U. Essien-Udom, “The
Relationship of Afro-Americans to African Nationalism”, Freedomways 2 (outono, 1962): 391-407;
Richard B. Moore, “Africa Conscious Harlem”, Freedomways 3 (verão, 1963): 315-34; Adelaide Cromwell
e Martin Kilson, Apropos of Africa: Sentiments of Negro American Leaders on Africa from the 1800s to
the 1950s (Londres: Frank Cass, 1969); Essien-Udom, “Black Identity in the International Context”, em
Key Issues in the Afro-American Experience, v. 2: Since 1865, ed. Nathan Huggins, Martin Kilson e Daniel
Fox (New York: Harcourt Brance Jovanovich, 1971), 233-58; Shepperson, “The Afro-American
Contribution to African Studies”, Journal of American Studies 8 (dezembro, 1974): 281-301. Ver também
Sterling Stuckey, “Black Americans and African Consciousness: Du Bois, Woodson, and the Spell of
Africa”, in Going through the Storm: The Influence of African American Art in History (New York: Oxford
University Press, 1994), 120-37.
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Não surpreende que a revista tenha sido concebida na metrópole europeia por um
grupo de estudantes “vindos de ultramar” (étudiants d’outre mer – mais precisamente,
estudantes vindos das colônias francesas de ultramar ou France d’outre mer), que
sentiram, depois das devastações da guerra, que constituíam “uma nova raça,
mentalmente mestiça” [mentalement métissée] e que começaram a reconsiderar sua
posição nos discursos europeus de humanismo “universal”15. A Présence africaine, como
o título diz, inscreve uma presença africana na modernidade e inaugura a “re-criação” do
projeto humanista através dessa intervenção16. Os objetivos de tal projeto são
notavelmente diferentes dos anunciados por revistas francófonas do período entre guerras
14
Alioune Diop, “Niam N’Goura, or Présence africaine’s raison d’être”, trad. Richard Wright e Thomas
Diop, Présence africaine 1 (outubro-novembro, 1947): 190-91. O original francês aparece no mesmo
número, 7-14.
15
Ibid., 186.
16
Bernard Mouralis, “Présence Africaine: The Geography of an ‘Ideology’”, em The Surreptitious Speech:
Présence Africaine and the Politics of Otherness, 1947-1987, ed. V. Y. Mudimbe (Chicago: University of
Chicago Press, 1992), 6. Ver também o relato de Jacques Howlett, o filósofo francês que trabalhou
intimamente com Diop na revista: “Présence Africaine, 1947-1958”, trad. Mercer Cook, Journal of Negro
History 43 (abril, 1958): 140-50.
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17
La Dépêche africaine, sob a direção do guadalupense Maurice Satineau, começou a ser publicada em
fevereiro de 1928. O cabeçalho do jornal o apresentava como um “grand organe républicain indépendant
de correspondence entre les Noirs et d’Etudes des Questions Politiques et Economiques Coloniales”. A
citação provém de um editorial de Paulette Nardal e Léo Sajous, “Our Aim” [Ce que nous voulons faire],
trad. Nardal e Clara W. Shepard, La Revue du monde noir / Review of the Black World 1 (1931).
18
O primeiro número trazia o “Bright and Morning Star” de Wright, traduzido por Boris Vian, e o poema
de Gwendolyn Brook “The Ballad of Pearl May Lee”. Wright, trabalhando com o conselho editorial da
revista até 1950, também foi responsável por Présence africaine publicar Frank Marshall Davis, Samuel
Allen, Horace Clayton e C. L. R. James. Tal como La Revue du monde noir no início dos anos 1930,
Présence africaine também publicava uma versão em inglês.
19
“Foreword”, Présence africaine, nova série, ns. 1-2 (abril-julho, 1955): 8.
20
Em certo sentido, os congressos internacionais marcam uma convergência entre as formações intelectuais
em torno do “interesse pela África” nos Estados Unidos e a “presença africana” na França, culminando em
publicações como Africa Seen by American Negro Scholars, o volume publicado em 1958, um esforço
conjunto da Société africaine de culture de Diop e sua homóloga norte-americana, a American Society of
African Culture, chefiada por John A. Davis. Ver também American Society of African Culture, Pan-
Africanism Reconsidered (Berkeley: University of California Press, 1962).
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A guinada rumo a diáspora no início dos anos 1960 representa, num grau nada
modesto, uma ruptura com a orientação do “interesse pela África”, ruptura que, como
mostrado por Penny Von Eschen, estava fortemente moldada pelas exigências da Guerra
Fria. Mesmo quando em colaboração com a produção francófona, muito do trabalho
proveniente dos Estados Unidos durante esse período estava condicionado por um
inflexível excepcionalismo americano21. É claro que os elementos figurativos dessa
guinada não eram de forma alguma novos: culturas escravas sincréticas afro-americanas
tinham encontrado ressonância nos relatos do Êxodo no Antigo Testamento, e referências
ao “espalhamento” dos africanos pelo Novo Mundo eram comuns, pelo menos desde o
trabalho de Blyden no século XIX. Mas a cristalização dessas alusões figurativas num
discurso teórico sobre diáspora, explicitamente em diálogo com as persistentes tradições
judaicas por trás do termo, corresponde a uma série de necessidades historiográficas
particulares no final dos anos 1950 e início dos 1960, especialmente nos trabalhos dos
historiadores George Shapperson e Joseph Harris.
Embora frequentemente negligenciada, a necessidade dessa guinada conceitual se
desenvolve primeiramente num trabalho feito no crescente campo da história africana e
especificamente sobre a questão da resistência africana ao colonialismo. O livro
Independent African (1958), de George Pearson e Thomas Price, é um famoso estudo
sobre as revoltas que aconteceram na África Britânica Central em 1915, comumente
consideradas como o primeiro de uma extensa série de movimentos de resistência africana
no período moderno e que conduziram, em explosões intermitentes, às lutas pela
independência nos anos 1950 e 196022. Shepperson e Price, no esforço de explicar a
trajetória de John Chilembwe, pastor religioso africano que conduziu a insurreição de sua
missão nos planaltos de Shire, no que então se chamava Niassalândia, passaram um tempo
considerável investigando sua viagem aos Estados Unidos em 1897, onde Chilembwe se
21
Von Eschen argumenta mais particularmente que o “interesse pela África” nem sempre se articulava com
as reivindicações de descolonização e independência. Havia um silêncio eloquente em torno da abundância
de trabalhos radicais que buscavam especificamente essa internacionalização no período (com destaque
para os trabalhos de George Padmore, Kwame Nkrumah, Paul Robeson, Alphaeus Hunton e o Council on
African Affairs). Penny Von Eschen, Race against Empire: Black Americans and Anticolonialism, 1937-
1957 (Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997), 176.
22
George Shepperson e Thomas Price, Independent African: John Chilembwe and the Origins, Setting and
Significance of the Nyasaland Native Rising of 1915 (Edinburgh: Edinburgh University Press,
1958)(doravante citado como IA). Para comentários sobre Independent African, ver particularmente Cedric
Robinson, “Notes on a ‘Native’ Theory of History”, Review 4 (verão, 1980): 45-78.
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tornou membro da Conveção Nacional Batista Negra (IA, 112), estudou no Seminário
Teológico da Virgínia e ingressou no ministério. Os autores se empenham em dar conta
da influência desse contexto de Novo Mundo, diante do grande fluxo de trabalhos
intelectuais e culturais negros que surgiam na virada do século nos Estado Unidos, em
particular: a luta contra o imperialismo estadunidense no Caribe e nas Filipinas, que em
parte foi expresso no movimento Niágara em 1905 (IA, 103); as histórias culturais do
“background africano” que emergeriam do trabalho de Du Bois e Woodson; as histórias
da insurreição negra nos Estados Unidos e no Caribe (IA, 106-7); e o predomínio, no
século XIX, de diversas ideologias do “retorno” e de projetos “de volta para a África”
como os da American Colonization Society. Para Shepperson e Price, a explicação para
o desenvolvimento intelectual de Chilembwe nesse meio social requer uma compreensão
da influência transnacional negra que teria que divergir agudamente das considerações
despolitizadas e vanguardistas do “interesse pela África”.
Num ensaio muito citado, publicado em Phylon em 196223, Shepperson ampliou
esse trabalho teoricamente ao reconsiderar os usos e as limitações do termo pan-africano.
Numa tentativa de limpar um terreno que se tornara cada vez mais deformado por
referências indiscriminadas ao pan-africanismo no tocante a qualquer consideração de
organização racial ou internacionalismo negro, Shepperson separou o termo em seus
sentidos “próprio” e “comum”: “Pan-africanismo” (com P maiúsculo) indica a história do
movimento transnacional em si mesmo, dos parâmetros limitados do Congresso Pan-
africano de 1900 em diante. Mas outra derivação do termo era necessária: “Por outro lado,
o pan-africanismo, com inicial minúscula, não é um movimento claramente reconhecível,
com um núcleo único como o nonagenário Du Bois. [...] É bem mais um grupo de
movimentos, muitos deles efêmeros” (P, 346). Para Shepperson, o “elemento cultural
frequentemente predomina” nesse agrupamento diversificado de movimentos “pan-
africanos”, mas essas formações não estão de modo algum limitadas a esse foco (não se
trata de uma separação entre as versões “política” e “cultural” do pan-africanismo, como
uma leitura equivocada às vezes faz crer). Shepperson considera que o termo com “p”
minúsculo pode representar tanto evocações estéticas quanto instituições políticas como
as organizações religiosas, conferências e associações acadêmicas, grupos de lobby e
23
George Shepperson, “Pan-Africanism and ‘pan-Africanism’: Some Historical Notes”, Phylon 23
(inverno, 1962): 346-58 (doravante citado como P).
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24
Ibid., 356. Temos agora uma história definitiva desta dinâmica, o extraordinário livro de Winston James,
Holding Aloft the Banner of Ethiopia: Caribbean Radicalism in Early-Twentieth-Century America
(Londres: Verso, 1998).
49
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25
Shepperson, “The African Abroad or the African Diaspora”, em Emerging Themes of African History,
ed. T. O. Ranger (Nairobi: East African Publishing House, 1968), 152-76 (doravante citado como D). É
fundamental mencionar que este ensaio foi publicado primeiramente em Africa Forum, a revista da
American Society of African Culture (ver nota 11 acima); nesta arena, ele marca uma intervenção explícita
nos pressupostos do “interesse pela África”. A citação (observe-se a inversão do título: o ensaio é idêntico,
mas seu título enfatiza o conceito de “diáspora” mais que o de história africana) vem de Shepperson, “The
African Diaspora — or the African Abroad”, Africa Forum: A Quarterly Journal of African Affairs 1, n. 2
(verão, 1966): 76-93. Para os comentários de Joseph Harris sobre a conferência de Dar es Salaam e sobre
a introdução do conceito de “diáspora”, ver Joseph E. Harris, “Introduction to the African Diaspora”, em
Emerging Themes, 146-51; e Harris, “The International Congress on African History, 1965”, Africa Forum
1, n. 3 (inverno, 1966): 80-84.
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Embora não se possa dizer que as pessoas de pele escura da África, os chamados
negros, tenham sido dispersados por todos os reinos da terra, elas certamente
migraram para um grande número destes. E as forças que as levaram para o exterior,
a escravidão e o imperialismo, foram semelhantes àquelas que espalharam os judeus.
Portanto, é fácil entender por que a expressão “diáspora africana” tem obtido
aceitação como uma descrição do grande movimento que, de acordo com uma
estimativa de 1946, foi responsável por criar mais de 41 milhões de descendentes de
africanos no hemisfério ocidental. (D, 152)
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natal”, mediado por dinâmicas de memória coletiva e pela política do “retorno”26. Como
um quadro para a produção do conhecimento, a “diáspora africana”, da mesma forma,
inaugura uma análise radicalmente descentralizada e ambiciosa de circuitos
transnacionais de cultura e política que resistem aos padrões de nações e continentes ou
os extrapolam.
A guinada rumo à diáspora surge, não em termos de culturas negras no Novo
Mundo, mas no contexto de revisar o que Shepperson chama de tendências
“isolacionistas” (D, 173) e restritivas na historiografia africana – daí o aposto enunciado
pelo título do ensaio (“O africano no exterior ou a diáspora africana”). Além disso, a
“diáspora africana” é formulada expressamente no intuito de dar conta das diversas e
interinfluenciadas tradições negras de resistência e anticolonialismo. Num plano teórico,
essa intervenção se concentra especialmente nas relações de diferença e disjunção nas
variadas interações dos discursos do internacionalismo negro, tanto em termos
ideológicos quanto em termos das próprias diferenças linguísticas27.
Não se trata de sugerir que Shepperson tenha sido definitivamente o primeiro
intelectual a usar a expressão “diáspora africana”. Shepperson insiste em que o uso da
expressão estava “claramente estabelecido” no vocabulário acadêmico antes da
Conferência de Dar es Salaam de 196528. Em seu ensaio de 1982, “African Diaspora:
Concept and Context” (“Diáspora africana: conceito e contexto”), ele esboça a trajetória
do termo:
Em algum momento entre meados dos anos 1950 e meados dos 1960, período no
qual muitos Estados africanos estavam rompendo com os impérios europeus e
alcançando a independência, a expressão “diáspora africana” começou a ser usada
com mais frequência por escritores e pensadores que estavam preocupados com o
status e as perspectivas das pessoas de ascendência africana tanto mundo afora
26
Ver Tölölyan, “Rethinking Diaspora(s)”, 12-15.
27
Nos artigos sobre “diáspora”, tanto Shepperson quanto Harris chamam novamente a atenção para a
influência francesa sobre discursos de pan-africanismo e internacionalismo negro. Ver Shepperson, “The
African Abroad”, 167; Harris, “Introduction”, 149-50. Entre os primeiros trabalhos a responder a essa
chamada de atenção estão Immanuel Geiss, 1968, The Pan-African Movement: A History of Pan-Africanism
in America, Europe, and Africa, trad. Ann Keep (New York: Holmes and Meier, 1974), especialmente o
capítulo intitulado “Nationalist Groups in France: The Roots of Négritude”, 305-21; e J. A. Langley, “The
Movement and Thought of Francophone Pan-Negroism: 1924-1936”, que foi publicado originalmente
numa versão mais curta no Journal of Modern African Studies em 1969 e saiu mais tarde como o capítulo
7 de seu livro Pan-Africanism and Nationalism in West Africa, 1900-1945, 286-325.
28
Shepperson, “Introduction”, em The African Diaspora: Interpretive Essays, ed. Martin L. Kilson e Robert
I. Rotberg (Cambridge: Harvard University Press, 1976), 2. No entanto, ainda não encontrei um exemplo
impresso anterior.
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quanto em sua terra natal. Não sei quem foi o primeiro a usar a expressão, e me
agradaria muito que alguém tentasse a difícil tarefa de rastrear o emprego da palavra
grega para dispersão — palavra que, até o momento em que foi adicionado o adjetivo
africana ou negra, era usada amplamente para referir-se à dispersão dos judeus29.
A questão não é que diáspora seja apolítico, mas que não tenha nenhuma das
“conotações” que fazem de um termo como Pan-africanismo um terreno já disputado.
Nesse sentido, a opção por diáspora como um termo de análise permite explicações para
as formações transnacionais negras que levam em conta suas diferenças constitutivas, os
desafios políticos da organização do “africano no exterior”. O risco aceito é que o foco
29
Shepperson, “African Diaspora: Concept and Context”, em Harris, Global Dimensions of the African
Diaspora, 46.
30
Michael McKeon, resenha de Keywords, Studies in Romanticism 16 (inverno, 1977): 133.
31
Shepperson, “Introduction”, 3.
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32
St. Clair Drake, “Diaspora Studies and Pan-Africanism”, em Harris, Global Dimensions of the African
Diaspora, 358, 373. Mas ver também Drake, “The Black Diaspora in Pan-African Perspective”, Black
Studies 7, n. 1 (setembro, 1975), que é mais experimental em suas afirmações: “A analogia da diáspora”,
escreve ele, “como a analogia da colônia interna, precisa de uma constante análise crítica se quiser ser um
guia útil de pesquisa assim como uma metáfora relevante” (2). Outros trabalhos também têm se distanciado
do sentido de diáspora como um tipo particular de intervenção: alguns articularam o termo em torno de
questões de política externa, enquanto outros continuaram a se preocupar com a questão da “unidade”
histórica e cultural da diáspora, numa linha que poderia ser mais adequadamente chamada de pan-
africanista (por exemplo, Ruth Simms Hamilton, “Conceptualizing the African Diaspora”, em African
Presence in the Americas, ed. Carlos Moore et al. [Trenton, NJ: Africa World Press, 1995], 393-410).
33
Drake, “Diaspora Studies and Pan-Africanism”, 353.
34
Ibid., 358-59.
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35
Ibid., 343.
36
Em outras palavras, parte do motivo para a guinada rumo a um discurso de diáspora nos anos 1960 e
1970 é precisamente a crescente divisão, no período da independência, entre visões “continentais” e
“tradicionais” do pan-africanismo (para usar os termos de Drake). Embora alguns projetos explicitamente
“culturais” continuassem a florescer (por exemplo, o Primeiro Festival de Artes Negras em Dacar, no
Senegal, em 1966), o movimento pan-africano atingiu um impasse no sexto congresso de Dar es Salaam
em 1974, quando delegados das Américas e delegados do próprio continente africano debateram sobre se
o movimento deveria se concentrar nas preocupações do continente ou nas conexões internacionais entre
povos de ascendência africana. Drake anota essas dificuldades (357-59) sem reconsiderar, porém, a fusão
que faz de diáspora com Pan-africanismo. Ver também os artigos sobre o congresso de 1974 editados por
Horace Campbell, Pan-Africanism: Struggle against Neo-Colonialism and Imperialism (Toronto: Afro-
Carib Publications, 1975); e Joseph Harris e Slimane Zeghidour, “Africa and Its Diaspora since 1935”, em
General History of Africa, v. 3: Africa since 1935, ed. Ali A. Mazrui (Berkeley: UNESCO/Heinemann,
1993), 716-17.
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quanto por meio dos tráficos de escravos praticados por árabes e por europeus) e a
subsequente formação transnacional de uma “diáspora mobilizada”, um fenômeno
particular ao século XX. Harris define o segundo termo observando que, no início dos
1990,
as principais cidades das potências ocidentais [...] se tornaram lugares para a reunião
de diversos grupos étnicos e políticos de origem africana, facilitando o
desenvolvimento de uma rede internacional que liga a África à sua diáspora; essa
rede pode ser chamada de diáspora mobilizada [...].
[...] até os anos 1960, a maioria dos africanos na África conservavam uma lealdade
étnica primária, enquanto seus descendentes no exterior constituíam uma diáspora
“sem Estado”, sem um país de origem comum, sem uma língua, religião ou cultura
comuns. A força da conexão entre os africanos e a diáspora africana continuou a ser
essencialmente suas origens comuns na África como um todo e uma condição social
comum (marginalização social, econômica e política) mundo afora.
Foi essa combinação que preparou o caminho para o desenvolvimento de uma rede
internacional efetiva da parte da diáspora africana mobilizada, a saber, descendentes
de africanos com uma consciência da identidade de suas raízes, de suas habilidades
ocupacionais e de comunicação, status social e econômico, e acesso a entidades de
tomada de decisão em seu país anfitrião 37.
37
Joseph E. Harris, “The Dynamics of the Global African Diaspora”, em The African Diaspora, ed. Alusine
Jalloh (College Station: University of Texas at Arlington, 1996), 14. Embora Harris não cite uma fonte para
a expressão, a aplicação original de mobilized diaspora (“diáspora mobilizada”) à diáspora africana parece
ser Locksley Edmondson, “Black America as a Mobilizing Diaspora: Some International Implications”, em
Modern Diasporas in International Politics, ed. Gabriel Sheffer (Londres: Croon Helm, 1986), 164-211.
Outros trabalhos nesta linha de política externa são Robert Chrisman, “History of Black Involvement in
International Politics”, in The Non-Aligned Movement in World Politics, ed. A. W. Singham (Westport:
Lawrence, Hill & Co., 1977); John A. Davis, “Black Americans and United States Policy toward Black
Africa”, Journal of International Affairs 23, n. 2 (1969): 236-49; Yossi Shain, “Ethnic Diasporas and US
Foreing Policy”, Political Science Quarterly 109 (inverno, 1994-95): 811-41.
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Uma genealogia mais completa dos usos de diáspora no trabalho negro crítico
depois da Segunda Guerra Mundial teria de se voltar para a institucionalização dos
estudos negros no meio acadêmico estadunidense nos anos 1960 e 1970 38. Essa
internvenção no mundo acadêmico ocidental é um desafio epistemológico39,
explicitamente afirmado por meio de uma política da diáspora que rejeita os pressupostos
ocidentais sobre um vínculo entre produção de conhecimento e nação. Apelos à diáspora
foram cruciais e estratégicos em quase todas as declarações de intenção dos estudos
negros e dos departamentos de estudos afro-americanos fundados no final dos anos 1960
e início dos 1970 — embora não necessariamente num modo condizente com o trabalho
pioneiro de Harris e Shepperson. Por exemplo, a Introduction to Black Studies, de
Maulana Karenga, como muito da literatura programática, oferece uma concepção
dividida de diáspora que separa um passado africano de um presente estadunidense:
baseia-se num “foco diaspórico que trata primeiro dos afro-americanos e depois de todo
38
Este também é o período em que começa a emergir um discurso da diáspora na cultura popular negra.
Não há espaço aqui, porém, para rastrear os usos do termo neste nível.
39
Sobre estudos negros como intervenção epistemológica, ver particularmente Russell L. Adams,
“Intellectual Questions and Imperatives in the Development of Afro-American Studies”, Journal of Negro
Education 53 (verão, 1984): 204. Os ensaios de Sylvia Wynter oferecem a elaboração mais impressionante
sobre o tema. Ver, por exemplo, Wynter, “Columbus, the Ocean Blue, and Fables That Stir the Mind: To
Reinvent the Study of Letters”, em Poetics of the Americas: Race, Founding, and Textuality, ed. Bainard
Cowan e Jeffeson Humpries (Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1997), 148-49.
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os outros africanos dispersos pelo mundo”40. Karenga explica essa divisão privilegiada
em termos pragmáticos:
40
Maulana Karenga, Introduction to Black Studies (Los Angeles: University of Sankore Press, 1993), 13.
41
Ibid., 492.
42
James, “The Black Scholar Interviews C. L. R. James”, Black Scholar 2, n. 1 (setembro, 1970): 43. St.
Clair Drakes frequentemente apontou o papel de diáspora na institucionalização de estudos negros: ver seu
“Diaspora Studies and Pan-Africanism”, 380-84, e seu mais recente “Black Studies and Global
Perspectives: An Essay”, Journal of Negro Education 53 (verão, 1984): 226-42.
58
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43
Ver Mae G. Henderson, “‘Where, By the Way, Is This Train Going?’ A Case for Black (Cultural)
Studies”, Callaloo 19 (inverno, 1996): 60-67; Wahneema Lubiano, “Mapping the Interstices between Afro-
American Cultural Discourse and Cultural Studies: A Prolegomenon”, Callaloo 19 (inverno, 1996): 68-77;
Manthia Diawara, “Black Studies/Cultural Studies”, em Borders, Boundaries, and Frames: Cultural
Criticism and Cultural Studies, ed. Mae G. Henderson (New York: Routledge, 1995), 202-12; Wynter,
“Columbus, the Ocean Blue, and Fables That Stir the Mind”, 193-94, n. 34.
44
As fontes mais evidentes dessa crítica são The Empire Strikes Back: Race and Racism in ‘70s Britain
(Londres: Hutchinson/Centre for Contemporary Cultural Studies, University of Birmingham, 1982);
capítulo 2 de Paul Gilroy, “There Ain’t No Black in the Union Jack”: The Cultural Politics of Race and
Nation (Chicago: University of Chicago Press, 1987); e o ensaio de Stuart Hall, “Culture, Community,
Nation”, Cultural Studies 7 (outubro, 1993): 349-63.
45
Em sua discussão sobre Blyden no último capítulo de The Black Atlantic, Paul Gilory cita o ensaio de
Shepperson “African Diaspora: Concept and Context”, mas sem levar em conta a introdução do próprio
termo. Gilroy, The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness (Cambridge: Harvard University
Press, 1993), 211.
46
Stuart Hall, Chas Critcher, Tony Jefferson, John Clarke e Brian Roberts, Policing the Crisis: Mugging,
the State, and Law and Order (New York: Holmes and Meier, 1978)(doravante citado como PC).
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de seus aspectos mais perniciosos — e por seu insight teórico de que a raça deveria ser
entendida como a “modalidade em que a classe é vivida” (PC, 394). Mas, no último
capítulo, “The Politics of ‘Mugging’” (“A política da ‘delinquência’”), os autores se
desviam de sua investigação paciente e polêmica do significado social da conjuntura do
“pânico moral” em torno de raça, crime e juventude num momento de particular crise
ideológica na sociedade britânica no final da década de 1970 e oferecem uma análise
pioneira das comunidades negras “assentadas” na Inglaterra no período pós-guerra. Num
contexto de subemprego e racialização, alguns aspectos culturais da “colônia de
assentados”, particularmente a gama de atividades compreendidas sob o termo popular
hustling (“esquema, manobra ou prática para se obter algum benefício às custas de
outrem”), são reconceitualizados como “modos de sobrevivência” e até como um terreno
potencial para a consciência negra e a resistência comunitária, em vez de como a marca
de uma patologia negra e de comportamentos retrógrados (PC, 352-53). “O fator
dinâmico”, escrevem os autores,
Policing the Crisis descreve essa volta às “raízes africanas” como inerentemente
transnacional. A emergência da consciência negra britânica nunca é um fenômeno
puramente nacional: é influenciada particularmente pelos movimentos de independência
africanos do pós-guerra e pelas rebeliões negras dos anos 1960 nos Estados Unidos. De
fato, tal como Shepperson, Policing the Crisis levanta expressamente a questão de como
as ideologias negras internacionalistas e liberacionistas são traduzidas de um contexto
“nacional” para outro. Os autores invocam especificamente “a adoção e a adaptação do
fanonismo dentro do movimento negro nos Estados Unidos” (especialmente através do
movimento Black Power e dos Black Panthers), e observam que esse “movimento” de
trabalho ideológico negro teve um impacto formativo “sobre a consciência das pessoas
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negras que se desenvolvia por toda parte, inclusive na Grã-Bretanha [...] porque sugeria
que uma análise política, iniciada em termos de sociedade colonial e luta, era adaptável
e transferível às condições das minorias negras em situações urbanas de capitalismo
desenvolvido” (PC, 386).
Stuart Hall estendeu esse trabalho, de forma mais notável em seu conhecido artigo
de 1980, “Race, Articulation, and Societies Structured in Dominance” (“Raça, articulação
e sociedades estruturadas na dominação”)47, o qual, como o último capítulo de Policing
the Crisis, busca teorizar a função da diferença num modo de produção capitalista global.
Aqui, Hall recorre mais diretamente a Marx para trazer à tona uma noção de articulação
que é fundamental para qualquer consideração política da “diáspora”. “Para entender a
produção capitalista numa ‘escala global’”, escreve Hall (valendo-se dos trabalhos de
Althusser e Laclau), Marx começou a teorizar
47
Stuart Hall, “Race, Articulation, and Societies Structured in Dominance”, em Sociological Theories:
Race and Colonialism (UNESCO, 1980), reimpresso em Black British Cultural Studies: A Reader, ed.
Houston A. Baker, Manthia Diawara e Ruth H. Lindeborg (Chicago: University of Chicago Press, 1996),
16-60.
48
Ibid., 33.
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(uma combinação articulada) e não uma associação aleatória — que haverá relações
estruturadas entre suas partes, isto é, relações de dominação e subordinação49.
49
Ibid., 38.
50
Outros trabalhos que tratam da importância do termo nos estudos culturais de Birmingham são Jennifer
Daryl Stack, “The Theory and Method of Articulation in Cultural Studies”, em Stuart Hall: Critical
Dialogues in Cultural Studies, ed. David Morley e Kuan-Hsing Chen (New York: Routledge, 1996), 112-
30, e a entrevista com Hall, “On Postmodernism and Articulation”, 131-50, no mesmo volume. Fredric
Jameson oferece uma genealogia mais idiossincrática do termo (em seu ensaio-resenha “On ‘Cultural
Studies’”, Social Text n. 34 [1993]: 30-33), mas observa, com elegância, os modos como o termo implica
uma “poética” entre o estrutural e o discursivo (32).
51
Stuart Hall, “Cultural Identity and Diaspora”, em Identity, Community, Culture, Difference, ed. Jonathan
Rutheford (Londres: Lawrence and Wishart, 1990), 235. Essa abordagem tem sido estendida por teóricos,
como Kobena Mercer e Hazel Carby, que consideram os modos como a diáspora, enquanto estrutura
articulada da diferença, se constitui não só de raça e colonização, mas também de representação,
sexualidade, gênero e produção cultural.
62
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52
Gilroy, “There Ain’t No Black in the Union Jack”, 154. Na página seguinte, ele escreve que “este capítulo
introduz o estudo das culturas negras dentro de um arcabouço de uma diáspora como uma alternativa às
diferentes variedades de absolutismo que confinariam a cultura em essências ‘raciais’, étnicas ou
nacionais”.
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53
De fato, pode-se medir a influência do livro pelo número de importantes estudiosos que sentiram a
necessidade de contestar por escrito as propostas mais provocadoras de Gilroy. Algumas das críticas mais
significativas de The Black Atlantic são Neil Lazarus, “Is a Counterculture of Modernity a Theory of
Modernity?”, Diaspora 4 (inverno, 1995): 323-39; Ronald A. T. Judy, “Paul Gilroy’s Black Atlantic and
the Place(s) of English in the Global”, Critical Quarterly 39 (primavera, 1997): 22-29; Laura Chrisman,
“Journeying to Death: Gilroy’s Black Atlantic”, Race and Class 39 (outubro-dezembro, 1997): 51-64; as
resenhas de Brackette F. Williams e George Lipsitz, Social Identities 1, n. 1 (1995): 175-92 e 192-220,
respectivamente; e os ensaios reunidos em Research in African Literatures 27, n. 4 (inverno, 1996),
particularmente Joan Dayan, “Paul Gilroy’s Slaves, Ships, and Routes: The Middle Passage as Metaphor”,
7-14.
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54
Gilroy, The Black Atlantic, 3.
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Primeiramente, temos que lutar pelo conceito de diáspora e distanciá-lo da obsessão com
origens, pureza e uniformidade invariante. Com muita frequência o conceito de diáspora
tem sido usado para dizer: “Oba! Podemos rebobinar a fita da história, podemos voltar ao
55
Ver Peter Linebaugh, “All the Atlantic Mountains Shook”, Labour/Le Travailleur 10 (outono, 1982): 87-
121; Peter Linebaugh e Marcus Rediker, “The Many-Headed Hydra: Sailors, Slaves, and the Atlantic
Working Class in the Eighteenth Century”, Journal of Historical Sociology 3 (setembro, 1990): 225-52.
56
Para cautelas nesta linha acerca da noção de “Atlântico negro”, ver a resenha de Colin Palmer em
Perspectives 36, n. 6 (setembro, 1998): 24-25, e Alasdair Pettinger, “Enduring Fortresses — A Review of
The Black Atlantic”, Research in African Literatures 29, n. 4 (inverno, 1998): 142-47. Philip D. Curtin,
entre outros, tem argumentado que o Mediterrâneo tem que ser considerado coextensivo com o Atlântico
em termos do desenvolvimento do tráfico de escravos. Chega mesmo a reivindicar as “origens
mediterrâneas do sistema sul-atlântico”; ver Curtin, “The Slave Trade and the Atlantic Basin:
Intercontinental Perspectives”, em Key Issues in the Afro-American Experience, v. 1, ed. Nathan Huggins,
Martin Kilson e Daniel Fox (New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1971), 75-77.
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momento original da nossa dispersão!” Eu digo algo bem diferente. Por isso não chamei o
livro de diáspora qualquer coisa. Chamei-o de The Black Atlantic porque queria dizer: “Se
isso é uma diáspora, então é um tipo muito particular de diáspora. É uma diáspora que não
pode ser revertida”57.
57
Tommy Lott, “Black Cultural Politics: An Interview with Paul Gilroy”, Found Object 4 (outono, 1994),
56-57.
58
Ibid., 75. Gilroy comenta: “Se eu fosse escrever o livro de novo, não usaria a modernidade como uma
moldura para ele”. Salienta que, no livro, está interessado numa “história particular da modernidade”,
aquela “gerada através e a partir do tráfico sistêmico e hemisférico de escravos africanos”. Esse foco
“hemisférico” — o Atlântico, em outras palavras — leva implicitamente à preocupação da obra com a
modernidade e a questão das origens.
59
De fato, existe um modelo prévio precisamente para esse tipo de trabalho através da lente “diaspórica”
que tenho endossado: ver Joseph Harris, “A Comparative Approach to the Study of the African Diaspora”,
em Harris, Global Dimensions of the African Diaspora, 112-24, que tenta abranger tanto a presença afro-
americana em Serra Leoa e na Libéria quanto as histórias de comunidades africanas na Índia, Turquia,
Oriente Médio e Ásia. A principal fonte dessa última parte da diáspora africana é, evidentemente, o trabalho
sem precedentes de Harris, The African Presence in Asia: Consequences of the East African Slave Trade
(Evanston: Northwestern University Press, 1971).
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Lendo o décalage
Ao concluir, retorno à noção de Stuart Hall de diáspora como articulada, como uma
combinação estruturada de elementos “tanto por meio de suas diferenças quanto por meio
de suas semelhanças”. Se um discurso da diáspora articula a diferença, então é preciso
considerar o status dessa diferença — não só a diferença linguística, mas, de modo mais
amplo, o vestígio ou o resíduo, talvez, daquilo que resiste à tradução ou que às vezes não
tem como evitar a recusa da tradução entre as fronteiras da língua, da classe, do gênero,
60
Earl Lewis, “To Turn As on a Pivot: Writing African Americans into a History of Overlapping
Diasporas”, American Historical Review 100 (junho, 1995): 765-87.
68
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61
Senghor, “Problématique de la Négritude” (1971), em Liberté III: Négritude et civilisation de l’universel
(Paris: Seuil, 1977), 274.
62
O historiador Ranajit Guha é um dos poucos estudiosos de língua inglesa a recorrer regularmente ao
termo décalage, usando-o para indicar uma sobreposição ou discrepância estrutural, um período de
“transformação social” em que uma classe, burocracia estatal ou formação social “desafia a autoridade de
outra que é mais antiga e moribunda, porém ainda dominante”. Guha, Dominance without Hegemony:
History and Power in Colonial India (Cambridge: Harvard University Press, 1997), 13, 157. Ver também
Guha, Elementary Aspects of Peasant Insurgency in Colonial India (Durham: Duke University Press,
1999), 173, 330.
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diversidade prévia; alude à retirada de alguma coisa que foi acrescentada de início,
alguma coisa artificial, uma pedra ou um bloco de madeira que servia para preencher a
lacuna ou retificar algum desequilíbrio. Assim, o décalage diaspórico negro entre afro-
americanos e africanos não é simplesmente distância geográfica, nem é simplesmente
diferença em evolução ou consciência; é, isto sim, um tipo diferente de interface que pode
não ser suscetível de expressão na terminologia opositiva de “vanguarda” e “retaguarda”.
Em outras palavras, décalage é o âmago daquilo que precisamente não pode ser
transferido ou intercambiado, os vieses impregnados que se recusam a passar para o outro
lado quando alguém atravessa a água. É um cerne mutante de diferença; é o trabalho das
“diferenças dentro da unidade”63, um ponto inidentificável que é incessantemente tocado,
dedilhado, pressionado.
É possível repensar os mecanismos de “raça” na política cultural negra por meio
de um modelo de décalage? Qualquer articulação da diáspora em tal modelo ficaria
inerentemente décalée ou defasada por um conjunto de fatores. Assim como uma mesa
com pernas de comprimentos diferentes ou uma estante bamba, a diáspora pode ser
discursivamente calçada (calée) num estado artificialmente “regular” ou “equilibrado” de
pertencimento “racial”. Mas esses calços de retórica, estratégia ou organização são
sempre articulações de unidade ou globalismo, calços que podem ser “mobilizados” para
uma variedade de propósitos, mas nunca podem ser definitivos: são sempre protéticos.
Neste sentido, o décalage é próprio da estrutura de uma formação diaspórica “racial”, e
seu retorno na forma de desarticulação — os pontos de mal-entendidos, má-fé, tradução
infeliz — tem de ser considerado como uma necessária obsessão espectral. Isso vai na
contramão de Senghor, se considerarmos sua Negritude como uma variedade influente
desse calço diaspórico. Em vez de ler buscando a eficácia da prótese, esta orientação
buscaria os efeitos de semelhante operação, os vestígios dessa obsessão espectral,
interpretando-os como constitutivos da estrutura de qualquer articulação da diáspora64.
Recorde-se que Hall aponta para dois significados da palavra articulação: “tanto
‘juntura’ (como os membros do corpo ou uma estrutura anatômica) quanto ‘dar expressão
63
Ibid., 278.
64
Minha ênfase na diáspora como uma tradição discursiva ecoa a sugestão de David Scott de que a diáspora
africana seja interpretada menos como uma continuidade culturalmente unificada e mais como “disputas
corporificadas” entre populações negras mundo afora acerca do próprio sentido de “África”, escravidão ou
identidade negra. Scott, Refashioning Futures: Criticism after Postcolonialism (Princeton: Princeton
University Press, 1999), 123-24.
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a’”65. Ele sugere que o termo é mais útil no estudo dos mecanismos da raça em formações
sociais quando se distancia do segundo sentido, de um “elo expressivo” (que implicaria
uma hierarquia predeterminada, uma situação em que um fator faz outro “falar”), e se
aproxima de sua etimologia como uma metáfora do corpo. Então, a relação entre fatores
não é predeterminada; ela oferece um modelo mais ambivalente, mais elusivo. O que
significa dizer, por exemplo, que alguém articula uma junta? A conexão fala. Essa “fala”
é funcional, é claro: o braço se dobra no cotovelo para alcançar a mesa, a perna pivota da
coxa para dar o próximo passo. Mas a junta é um lugar curioso, já que é tanto o ponto de
separação (entre o antebraço e o braço, por exemplo) quanto o ponto de ligação. Mais do
que um modelo de debilitação definitiva ou de retardação predeterminada, então, o
décalage, ao fornecer um modelo para o que escapa ou resiste à tradução através da
diáspora africana, alude a essa estranha dualidade da junta. Dirige nossa atenção para o
que descrevi anteriormente como a “estrutura antitética” do termo diáspora, sua
intervenção arriscada. Minha tese, finalmente, é a de que as articulações da diáspora têm
que ser abordadas desse modo, por meio de seu décalage. Porque, paradoxalmente, é essa
lacuna ou discrepância obsedante que permite exatamente à diáspora africana “dar
passos” e “mover-se” em várias articulações. A articulação é sempre um gesto estranho e
ambivalente porque, afinal, no corpo, é somente a diferença — a separação entre ossos
ou membros — que permite o movimento.
65
Hall, “Race, Articulation, and Societies Structured in Dominance”, 41.
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Hortense J. Spillers2
RESUMO: Hortense J. Spillers aborda de forma crítica a Cultura Negra em seu artigo
“A Ideia de Cultura Negra”, mesmo sendo consciente que esta ideia de cultura ainda estar
por vir. Nesta perspectiva, a autora aborda o que exatamente pode ser entendido por
Cultura Negra na nossa era contemporânea, e quais os motivos de ainda não existir uma
“Cultura Negra”. Spillers inclui em seus estudos, teóricos como Williams, Du Bois, entre
outros, que também abordam a ideia de Cultura Negra. A partir de uma análise desses
trabalhos teóricos, Spillers faz uma crítica ao Afrocentrismo e propõe uma nova visão da
“ideia de Cultura Negra” como um objeto de estudo crítico conceitual e instrumento
prático de transformação e desenvolvimento social.
ABSTRACT: Hortense J. Spillers critically approaches the Black Culture in her article
‘The Idea of Black Culture", even though she is aware that the idea of culture is yet to
come. In this perspective, Spillers discusses what exactly can be understood by Black
Culture in our contemporary era and the reasons why there is no a “Black Culture” yet.
Spillers includes in her studies, theorists like Williams, Du Bois, among others who also
research about the idea of Black Culture. From an analysis of these theoretical works,
Spillers criticizes the Afrocentrism and proposes a new vision of “the idea of Black
Culture”, as an object of critical conceptual study and a practical instrument of social
transformation and development.
1
Este artigo foi escrito por Hortense J. Spillers e publicado nos Estados Unidos no ano de 2006 em CR:
The New Centennial Review, Volume 6, Number 3, Winter 2006, p. 7-28. Tradução de Mislainy de
Andrade e revisão de tradução de Dilma Machado. Agradecemos a autora por nos conceder os direitos de
tradução.
2
Hortense J. Spillers foi membro da Faculdade de Inglês da Universidade de Vanderbilt durante o outono
de 2006-2007. Atuou como presidente da Gertude Conoway Vanderbilt. Alguns de seus trabalhos mais
recentes foram publicados no Boundary 2, Critical Quarterly, Das Argument, e no Journal of the William
Faulkner Society no Japão. O artigo The Idea of Black Culture foi publicado pela Universidade do Estado
de Michigan. Sua coleção de ensaios Black, White and Color: Essays on American Literature and Culture
foi publicado em 2003 pala Universidade de Chicago. Lecionou no Centro de Estudos de Cidadania na
Universidade do Estado Wayne e no Institudo John F. Kennedy da Universidade Publica de Berlin.
Atualmente, Hortense realiza palestras nos Estados Unidos e em outros países como China e Japão.
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Um retorno à ideia de cultura negra deve ser pensado hoje de forma crítica, o que
não é acolhedor para o tema, embora hospitalidade e comodidade nunca tenham sido
atributos do contexto em que a ideia foi criada ou compreendida. Um dos aspectos da
problemática para o pesquisador é, então, vislumbrar um horizonte de investigação que
permitirá, se não necessariamente atestar, um projeto que é, por definição, anacrônico em
vários pontos de vista. Talvez seja mais exato dizer que um repertório considerável de
recusas, que fazem do tema uma impossibilidade virtual, atualmente bloqueia sua
visibilidade: (1) A recessão do sujeito, o contexto histórico, em outros contextos; (2) um
presente adimensional, em analogia com a televisão; e então, (3) o empobrecimento da
história; (4) o declínio do conceito e das práticas do Estado-nação, exceto a atual política
externa dos Estados Unidos, a ascensão dramática dos Estados Pós-Soviéticos, e o
crescimento extraordinário da China no cenário do mundo contemporâneo,
impulsionariam todos a repensarem seriamente essas alegações; (5) a “exaustão da
diferença”; (6) os novos impulsos de uma globalização tão completa, que nos levam a
crer que a localidade ou o próprio “local”, aparentemente desaparece como um momento
delimitado de percepção; e, paradoxalmente, (7) um espaço conceitual Afrocêntrico que
quebra a distância entre uma suposta Diáspora Africana e as culturas do Continente
Africano, é uma pequena diferenciação interposta entre eles. Qualquer tentativa
contemporânea de rever, então, o projeto de cultura negra como um objeto conceitual e,
como um instrumento prático de transformação social, deve enfrentar esses sintomas de
impedimento completamente destruídos, que parecem ter surgido das reações do mundo
pós década de 1960.
Um dos sintomas que identifiquei aqui –“a exaustão da diferença” - em conjunto
com o restante do repertório, pode ser aceito como um referencial crítico que permite que
um projeto como este, ao mesmo tempo em que altera, significativamente, o tema longe
dos impulsos binarísticos, possa, a priori, inspirar a questão. Publicado em 2001, The
Exhaustion of Difference, [A Exaustão da Diferença] de Alberto Moreiras, tópico que
tenho me apropriado aqui, aborda as condições epistêmicas que tornariam possível situar
aqui, os estudos culturais latino-americanos (MOREIRAS, 2001). Poderíamos nos
alongar um pouco mais, porque este texto nos oferece uma síntese brilhante de reflexões
teóricas sobre os novos epistemes, entre os quais, eu localizaria a investigação na qual me
embarquei e, que é paralelo, como um elemento de formação social emergente em
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discurso, que tenho sob minha observação. Além disso, representa o tipo de resistência
que um projeto como “a ideia de cultura negra” precisa responder. Uma das manifestações
cruciais que The Exhaustion of Difference realiza, em sua exemplaridade, é festejar o
valor do engajamento dialético aplicado como um freio aos movimentos encerrados ao
longo de uma trajetória de pontos conceituais: este movimento interminável tem suas
desvantagens, bem como, o seu tédio, talvez outra representação de “exaustão”, mas a
recompensa aqui é que a divisão entre posições – este efeito escamoso que é falso, na
verdade – é evitado, na medida que o caso é revelado. O desafio, então, é montar uma
divisão e conduzi-la, em vez de se repousar sobre qualquer nuança particular, que pode
nunca ser totalmente concluída, mas o esforço é válido, e identifica precisamente o tipo
de problemática que os novos epistemes quiseram abordar. O processo de movimento
dialógico ou dialético entre tais pontualidades assegura também que a análise surge
frequentemente do posicionador que contrasta o seu ponto de vista com um outro ponto,
que seja, talvez, contrário ao dele ou um complemento, uma postura decisiva de um
grupo, que poderia eventualmente ser substituída por outra de igual importância, se um
ritmo dialógico ou atual fosse criado e sustentado entre eles. O dialogismo, neste caso,
pode deter o avanço do “straw man”3 [“espantalho"].
Uma das outras recusas mais persistentes na conceituação da cultura negra é,
ironicamente o bastante, o próprio Afrocentrismo, que coloca em questão, de forma bem
diferenciada, a “exaustão da diferença”. De qualquer forma, o Afrocentrismo é o abraço
radical da diferença, com uma "diferença", quando ele coloca em confronto o
Afrocentrismo e o Eurocentrismo. Seu mais proeminente teórico sobre o assunto, Molefi
Asante, 1987, propõe em seu texto The Afrocentric Idea [A Ideia Afrocêntrica], que
Afrocentricidade significa “colocar os ideais africanos no centro de qualquer análise que
envolva a cultura e o comportamento africano” (ASANTE, 1987, p. 6). O autor continua:
“A análise Afrocêntrica restabelece a centralidade da antiga civilização Kemética
(Egípcia) e do Vale do Nilo, complexos culturais com pontos de referência para uma
perspectiva africana assim como a Grécia e Roma são pontos de referência para o mundo
europeu” (p. 9). Asante traça sua própria ascendência intelectual de volta à W. E. B. Du
3A autora aqui se refere a uma falácia informal baseada em dar a impressão de refutar uma visão contrária.
Pode simbolizar também a ideia de um documento frágil que é apenas um rascunho inicial de um assunto
que provavelmente será modificado por outros. (Nota da Tradutora)
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4
A prestigiosa formulação de "O Atlântico Negro" foi proficientemente desenvolvida por Paul Gilroy
(1993); O trabalho mais recente de Brent Edwards examina as álgebras internas do trânsito do Atlântico
Negro por meio dos caminhos artísticos e literários da Diáspora (2003).
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aventurar em uma ideia sobre a “ideia de cultura negra”, devemos restabelecer uma
perspectiva da “ideia de cultura”. Num segundo momento, no entanto, o primeiro e o
segundo níveis de tensão se convergem, de forma que percebemos que a junção destas
pontualidades não está tão em questão como a exploração deste estilo forte de aparente
singularidade que irá nos permitir várias e, num certo momento, sucessivos caminhos
para conduzi-las. O objetivo deste ensaio é mediar um destes caminhos.
Raymond Williams assegurou aos seus leitores que “cultura” é “uma das duas ou
três palavras mais complicadas da língua inglesa” (WILLIAMS, 1976, p. 76). O
inspirador Keywords [Palavras-chave] de Williams, no qual ele promoveu essas
definições há mais de três décadas atrás, agora tem inspirado o New Keywords [Novo
Palavras-chave]: Keywords: A Revised Vocabulary of Culture and Society [Um
Vocabulário Revisado de Culture e Sociedade], cujo o objetivo inicial, neste campo, é
fazer parecer ridículo o repúdio virtual do termo cultura de Williams: “Existe agora”,
começam os editores, “uma grande incerteza sobre o valor da palavra cultura”
(BENNETT, et al., 2005, p. 63). Os editores então vão para a citação de Politics and
Letter [Políticas e Cartas] de Williams, quando em resposta à pergunta de um
entrevistador – “Por que você decidiu adaptar o termo cultura, em plena consciência de
sua carga semântica, para representar toda uma forma de vida – ao invés do termo
sociedade . . .? ” – Williams responde:
I suppose I felt that, for all its difficulties, culture more conveniently
indicates a total human order than society as it had come to be used. I
also think by this time I had become so used to thinking with this
concept that it was just a matter of persistence as much as anything else.
After all most of the work I was doing was in an arena which people
called “culture,” even in the narrower sense, so that the term had a
certain obviousness. But you know the number of times I’ve wished
that I had never heard of the damned word. I have become more aware
of its difficulties, not less, as I have gone on. (Williams 1979, 154)5
5
Eu suponho que senti, por todas as suas complexidades, que cultura indica, convenientemente, uma ordem
humana mais completa do que sociedade. A essa altura, eu também acho que eu tinha me tornado muito
corriqueiro pensando desta forma, que foi apenas uma questão de persistência como qualquer outra coisa,
depois de toda a maioria dos trabalhos que eu estava fazendo numa região onde as pessoas falavam “cultura”
mesmo que de forma mais restrita, de modo que o termo tivesse uma certa lógica. Mas você pode imaginar
que por inúmeras vezes eu desejei nunca ter ouvido falar desta maldita palavra. Eu tenho me tornado mais
ciente de suas complicações, mas não menos que antes (WILLIAMS, 1979, p. 154).
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“La constation s’impose de nouveau: c’est au moment où une culture n’a plus moyens de se défendre que
l’ethnologue ou l’archeologue apparaisent” (p. 54).
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Segundo Klein, o ego primitivo não pode perceber ou conceber os objetos em seu mundo externo como
pessoas inteiras e multifacetadas. Ao contrário disso, vive em um mundo de objetos unidimensionais que
tem boas e más intenções desde a infância. (Nota da tradutora)
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Antes da Escola de Frankfurt de Rolf Wiggerhaus: sua História, Teorias e significado Político (1995), a
Imaginação Dialética de Martin Jay: Uma História da Escola de Frankfurt e do Instituto da Pesquisa Social
- 1923-1950 (1973) era um dos poucos, se o único, Estudos de Inglês existentes desta escola de teoria e
praxis.
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9
Gadfly é uma pessoa que interfere com o status quo de uma sociedade ou comunidade, apresentando novas
e potentes questões, geralmente dirigidas às autoridades. O termo está originalmente associado com o
filósofo grego Sócrates. (Nota da Tradutora)
10
Capital de Gana. (Nota da tradutora)
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Manifestação política por justiça social, trabalho, liberdade e pelo fim da segregação racial negra nos
Estados Unidos. (Nota da tradutora)
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programa cultural de Du Bois no final do século como uma versão do que Marcuse
chamaria de humanitas, ou o objetivo da cultura, descrito como “modos de pensamento
e imaginação”, expressão essencialmente não operativa e transcendente, que transcede o
universo de comportamento estabelecido, não em direção a um reino de fantasias e
ilusões, mas em direção a possibilidades históricas” (p. 194). Por meio de Humanitas,
Marcuse enfatiza o “conteúdo cognitivo” das obras culturais, das “faculdades intelectuais
e de uma consciência intelectual” que não são “exatamente adequadas aos modos de
pensamento e do comportamento exigidos pela civilização dominante nos países
industrializados” (p. 193). Este “conteúdo cognitivo”, colocado sobre e contra modos
operacionais de pensamento e comportamento, constituiria e complementaria objetivos
transformadores análogos aos protocolos de reconstrução humana que Du Bois esboça
em todo o corpo de The Souls of Black Folk.
Em nota, o que foi descrito como o impulso fundador do Institute of Social
Research - ou seja, a articulação de uma “teoria da sociedade como um todo, foi uma
teoria da era contemporânea” (WIGGERSHAUS, 1995) - uma afinidade ampla com a
tentativa sistemática de Du Bois, começando com The Philadelphia Negro [O negro de
Filadélfia], concluída no final do século XIX, para aplicar o melhor conhecimento
disponível de metodologia do seu tempo (a era das jovens ciências sociais nos Estados
Unidos), ao “Negro Problem” [“Problema negro”]. A série da Universidade de Atlanta,
sob direção de Du Bois a partir de 1897, foi projetada para investigar cada fase da vida
negra. Uma ideia originária de “a conferência sobre educação, trabalho e agricultura”,
anualmente organizada, a partir do início da década de 1890, pelos Institutos Hampton e
Tuskegee (LEWIS, 1993, p. 218). Os estudos demarcam a primeira sequência analítica
sistêmica sobre a formação social negra na visão das ciências sociais empíricas. Podemos
também lembrar que o ponto de vista de Du Bois, complexo por ser uma mistura eclética
de filosofia, história e teoria econômica e trabalhista, ao lado da formação de Du Bois nas
línguas e nos clássicos, foi parcialmente confeccionado a partir de aspectos da filosofia
continental alemã, via Kant e Hegel, e reforçado por dois anos de estudo na Universidade
Humboldt de Berlim, onde Du Bois passou seu vigésimo quinto aniversário em 1893.
Quando Du Bois sugere que a contribuição do negro para as culturas do mundo será
“espírito”, creio que ouvimos ecos hegelianos que também ecoaram na formulação da
“dupla consciência”. Em todo caso, a teoria metafísica da ciência social duboisiana parece
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“En fait, cette région molle est silencieusement exploitée par son contraire, le dur. . .. ”
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européias do século XIX, militarmente ocupadas e desarmadas” (p. 234)13. Esta série de
motivos leva Certeau a concluir que a cultura é o “sintoma canceroso e imoderado de uma
sociedade dividida entre a tecnocritização do progresso econômico e a folclorização das
expressões cívicas” (p. 235)14. Uma das eventualidades desta lesão é a privatização da
cidadania, assim como faz Lauren Berlant (BERLANT, 1997). Essa fragmentação do
processo político pelo corporativismo efetivamente expulsa a esfera pública e os objetivos
e conceitos relacionados a ela. Certeau conclui o argumento alegando que a luta
multiforme entre o “rígido” e o “suave” evidencia uma disfunção interna: a apropriação
do poder produtivo por organismos privilegiados tem como resultado uma apropriação
indevida do capital social e a regressão política do país, ou seja, o desaparecimento ou o
enfraquecimento do poder democrático na determinação da organização e configuração
do trabalho que uma sociedade realiza para si (p. 235)15. Embora Certeau reconheça que
seus exemplos são extraídos do cenário francês, talvez a cultura como o terreno de uma
patologia é, até mesmo, monótona em toda a zona ocidental, assim como são as saliências
e inchaços em um corpo, descreve o autor (p. 235)16. Segundo Certeau, os novos nomes
da lógica do desenvolvimento presidem o medo, a insegurança e o endurecimento das
ideologias surgidas anteriormente, bem como a regressão dos conservadores que voltam
a uma linguagem religiosa na qual eles não acreditam mais (p. 235-236)17.
Em nenhum outro lugar essas observações são mais estranhamente exibidas do
que nos Estados Unidos do início do século XXI. Ordenados entre meados e finais dos
anos 70, esses argumentos se lêem como uma cartilha da vida cotidiana nesta conjuntura
histórica em nosso contexto nacional. Poderíamos acrescentar a esta imagem as novas
realidades virtuais do ciberespaço e a bolha da solidão que infla, a dissolução das
13
“La culture est le terrain d’un néocolonialism; c’est le colonisé du xxe siècle. La technocratie
contemporaine y installe des empires, comme les nations européenes du xixe siècle occupaient
militairement des continents désarmés.”
14
“Elle est le symptôme démesuré, cancéreux, d’une société partagée entre la technocratisation
du progrès economique et la folklorisation des expressions civiques.”
15
“Elle manifeste un dysfonctionnement interne: le fait que l’appropriation du pouvoir producteur par des
organismes privilégiés a pour corollaire un désappropriation et une régression politiques du pays, c’est-à-
dire l’evanousissment du pouvoir démocratique de déterminer l’organisation et la représentation du travail
qu’une société fait sur elle-même.”
16
“Là déjà, dans le secteur culturel les symptômes pathologiques s’accumulent, comme les boutons et des
enflures sur les corps.”
17
“Ainsi les défis et les révisions déchirantes liés à la logique du développement favorisent à la fois
l’ambition de jeunes loups, énarques et gestionnaires du réformisme; le poujadism et les corporatismes
provoqués par le peur de l’insécurité; le raidissement d’idéologies nées en d’autre temps, ou la régression
des conservateurs vers des langages religieux auxquels ils ne croient plus.”
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fronteiras entre alvos civis e instalações militares expressas de maneira mais dramática
nos ataques do 11 de setembro contra o World Trade Center e o Pentágono de Nova
Yorque, os bombardeamentos na capital espanhola, bem como em Londres e, por último,
a ameaça da liquidação do “contrato social” do capitalismo avançado entre o cidadão e a
corporação, exemplificado na falha do Estado para proteger a propriedade privada dos
investidores em fracasso, tais como aqueles relacionados com Enron18 e WorldCom19. Se
a própria noção de “investimento” já não é mais sagrada, sinceramente, está seria a
verdadeira religião dos Estados Unidos. Desta forma, sabemos que estamos em um lugar
não tão diferente do terreno em que a garotinha chamada Dorothy20 do estado de Kansas,
Estados Unidos, esteve um dia.
Portanto, quer se encontre aqui ou não - no brilho mágico dos dedos da inocência
ou no pesadelo de um Estado mais maduro de consciência, independente da idade, mas
da vantagem de que se intercepta a imagem inescapável - milhões de cidadãos
alimentados da terrível carruagem de ilusões e mentiras. E, se é aí que se encontra, pode-
se dizer que, de fato, nossa cultura nacional e seus vários subfluxos não nos serviram
muito. Este espetáculo desanimador, bastante preciso ao próprio senso das coisas, é
descrito por Marcuse, antes de Certeau, como uma “forma e direção prevalecente”
evocadas em nome do “progresso da civilização [chamando] de modos operacionais e
comportamentais de pensamento, de aceitação da racionalidade produtiva dos sistemas
sociais dados, para sua defesa e aperfeiçoamento, mas não para sua negação” (p. 193)
Para Marcuse, foi o conteúdo cognitivo da cultura “superior”, cultura cuja tarefa era
precisamente esta negação, embora esta cultura “estivesse divorciada da labuta e da
miséria daqueles que por seu trabalho reproduzia a sociedade cuja cultura estava” (p.
193). Dessa forma, a cultura "superior" “tornou-se a ideologia da sociedade”, enquanto a
ideologia foi “dissociada da sociedade, e nesta dissociação era livre para se comunicar
com a contradição, acusação e a recusa” (p. 193). Embora a comunicação cultural seja
tecnicamente multiplicada - um computador em cada canto – “amplamente facilitada e
muito recompensada”, também é verdade que seu “conteúdo é alterado porque o espaço
18
Foi uma companhia elétrica americana, líder em distribuição de energia e comunicações, localizada em
Houston, Texas. Empregava cerca de 21 000 pessoas, mas decretou falência em 2001. (Nota da tradutora)
19
Foi uma empresa de telecomunicações americana, que depois de falida foi comprada pela empresa
(americana) Verizon Soluções Empresariais em 2006. (Nota da tradutora)
20
É um personagem fictício, heroína dos livroa de Oz, escritos pelo autor americano Frank Baum. (Nota
da tradutora)
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mental e, mesmo físico, no qual a dissolução efetiva pode se desenvolver é fechado” (p.
194). Marcuse deixa claro que ele não se refere a “eliminação do antigo conteúdo
antagônico da cultura”. “O destino de algum ideal romântico não sucumbe ao progresso
tecnológico, nem a progressiva democratização da cultura, nem a equiparação das classes
sociais, mas, sim, ao fechamento de um espaço vital para o desenvolvimento da
autonomia e da oposição, a destruição de um refúgio, uma barreira ao totalitarismo” (p.
194), em que se identifica a condição do destino do “homem unidimensional”. As
marcantes “Observações” de Marcuse carregam a força de fechamento, mas se afastam
de todos os frutos que o ambíguo possa dispersar, ou mesmo o próprio exercício de
Marcuse do paradoxo, expresso nos parágrafos inaugurais deste ensaio: a ausência de
cultura como um processo de humanização “pode muito bem ser parte integrante da
cultura, de modo que a realização ou aproximação dos objetivos culturais ocorrem através
da prática da crueldade e da violência” (p. 191). Este forte domínio de impulsos pode
explicar “o paradoxo de que grande parte da “cultura superior” do Ocidente tem sido alvo
de protesto, recusa e acusação - não apenas de sua miserável representação na realidade,
mas de seus próprios princípios e conteúdo” (p. 191)! Um, portanto, trabalha com as
imperfeições à mão e, às vezes, entra em contradição. Terry Eagleton argumenta em The
Idea of Culture [A Ideia de cultura], que a cultura “significa uma dupla recusa: do
determinismo biológico por um lado, e da autonomia do espírito por outro. É uma rejeição
tanto ao naturalismo quanto ao idealismo, insistindo contra o primeiro que existe dentro
da natureza, que o supera e desfaz e, contra o idealismo, que até a mais alta mente humana
tem suas humildes raízes em nossa biologia e ambiente natural”. (EAGLETON, 2000, p.
4-5). Eagleton conclui sua argumentação de uma maneira muito mais otimista do que a
pesquisa de Marcuse ou Certeau, sobre a cultura como sintoma patológico ou uma
desproporção de meios sociais. Para Eagleton, a cultura não é apenas o que vivemos, mas
também, para o que vivemos, considerando “afetividade, relacionamento, memória,
parentesco, lugar, comunidade, satisfação emocional, gozo intelectual, uma sensação de
significado final” (p. 131). Ao mesmo tempo, a cultura de Eagleton “também pode estar
muito próxima ao conforto”, evidenciando uma intimidade que a “possível cresça
mórbida e obsessiva, a menos que ela seja colocada em um contexto político esclarecido,
possa dosar essas imediações com informações mais abstratas, mas, também, de forma
mais generosa” (p. 131). Ele ressalta que a cultura “assumiu uma nova importância
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Um africando nascido em 1746, escravo liberto e proeminente em Londres, conhecido como Gustavus
Vassa, que apoiava o movimento britânico contra o tráfico de escravos. (Nota da tradutora)
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compreensão dos modos de constituição de qualquer assunto histórico que possa ser
chamado Americano, especialmente o americano “Branco” e, da mesma forma, para
aqueles que chamamos de modernos ou que são colocados sob o tema da modernidade
em geral” (p. 255). Esta escrita se move poderosamente através do “exemplo”, bem como
sobre uma visão geral de certos exemplares de textos historiográficos, a uma das
formulações-chave de Chandler sobre a força do princípio desproporcional - isto é, a
“figura do outro” - e como ele dá origem “ao movimento de sua produção à figura da
hegemonia - neste caso, ao sujeito da branquitude” (p. 257). Estamos assim conduzidos
ao momento do “entre” e do seu fechamento antecipado no choque desse reconhecimento
- a posição do sujeito “é construída durante o relacionamento, e não antes” (p. 282). De
margem à centro, de um lugar para outro, o sujeito “desencorajado” de Chandler, da
história e da investigação crítica agora nomeia a própria formação da modernidade. Fazer
tremer “ao desalojar as camadas de instalações sedimentadas que mantêm [uma
conclusão] no lugar” (p. 257). Em suma, a subordinação e o domínio são espaços
reservados neste argumento para os acordos mais frágeis que estão inteiramente abertos
para derrubar, pelo menos, do lugar onde a questão é colocada.
Se a subordinação, então, já é iminente na postura hegemônica e na postura
hegemônica não subordinada, não existe mais a cultura “negra” ou “branca”, per se, e se
alguma vez existiu, o monopólio de poder implícito na sua formulação, foi “apenas
diferença de força” (p. 282). Embora eu aceite as linhas gerais das teorizações de
Chandler (que meus próprios textos tendem a sustentar), ainda nos resta o “apoio”
político, histórico e material da “diferença”, talvez até suas “evidências” ilusórias e
fantásticas que ocupam o palco histórico. Chandler sustenta que o exemplo de Du Bois,
como figura exemplar, é “bom para refletir”, e que sua “dupla consciência” responda
imediatamente a uma ordem geral de casos e “aos limites do exemplo como se estivessem
inseridos em seu contexto particular e específico” (p. 254). Desta forma, devemos pensar
que a “cultura negra” que poderia ser estabelecida como um “exemplo”, poderia nos levar
de volta ou nos colocar diante da problemática da cultura em geral e “como tal”.
Parece, então, que Du Bois e os teóricos contemporâneos precisam da
especificidade do contexto para articular uma contextualização do procedimento
ontológico, de modo que, generosamente, possamos ter “uma fatia do bolo e comê-la
também”. Nesse caso, a “desalienação” do filósofo pode muito bem constituir uma
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REFERÊNCIAS
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Citizenship. Series Q. Durham, NC: Duke University Press, 1997.
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———. Politics and Letters: Interviews with New Left Review. London: NLB, 1979.
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Raphaël Confiant2
ABSTRACT: This paper examines the coexistence of two languages for Francophone
Carribbean writers: French, the loud-voiced language and Creole, the dumb tongue, the
language whispered underneath. Consequently, creative writing takes a rather paradoxical
turn for them: it becomes an unavowed translation. And when such texts have effectively
to be translated, translators mustn't forget that under the visible language lies another one;
hence the necessary passage from 2 ( French + Creole) to 1 (target language), implying
their taking into account linguistic diversity.
1
Raphaël Confiant, “Traduire la littérature en situation de diglossie”, Palimpsestes, n. 12, 2000. Tradução
de Marcos Bagno e Dennys Silva-Reis.
2
Raphaël Confiant é professor da Universidade das Antilhas et da Guiana, doctor honoris causa da
Universidade Autônoma de Santo Domingo. Escritor reconhecido em francês e em crioulo, é autor de
diversos romances, contos, narrativas e poemas, entre os quais: Eau de café, Ravines de devant-jour,
L’Allée des soupirs, La Savane des pétrifications, Le Meurtre du samedi-gloria, Jik deye do Bondye, Bitako-
A, Jou bare, Dictionnaire des titim et sirandanes. Cofundador com Patrick Chamoiseau do Movimento da
Crioulidade (Mouvement de la Créolité), escreveu em colaboração com este vários ensaios sobre a
questão: Lettres créoles: tracées antillaises et continentales de la littérature; Éloge de la créolité.
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3
Charles Ferguson, “Diglossia”, Word 15, 1959.
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da diglossia ainda permanece válida, tanto para o mundo crioulo quanto para o mundo
árabe (árabe literário vs. árabe dialetal), para a Occitânia, a Catalunha ou o Quebec por
exemplo, ou seja, a coexistência conflituosa no interior de um mesmo ecossistema de pelo
menos dois idiomas, dos quais só um tem status de “língua”, enquanto o(s) outro(s) é(são)
considerado(s) como patoá(s)4. Esse status conferido à língua dita dominante, o francês
nas Antilhas, permite a ela monopolizar na prática todos os âmbitos prestigiosos ou
oficiais da comunicação, ao passo que a língua dominada se restringe ao falar cotidiano
e à expressão da informalidade, quando não da trivialidade. Aqui, a dimensão conflituosa
é a única pertinente pois, excetuado, novamente, o caso particular do crioulo, o valor dos
sistemas linguísticos dominados não está em causa: o árabe é escrito muito séculos antes
do francês, dispõe de grafia própria e é dotado de um livro sagrado, o Corão, que lhe
fornece um prestígio indiscutível; o catalão e o francês quebequense também não são,
enquanto sistemas linguísticos, considerados inferiores ao espanhol e ao inglês.
4
Patoá, do francês patois, “dialeto essencialmente oral que difere da língua oficial” (Dicionário Houaiss)
[NT].
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Dessa “guerra de línguas” nascerá, não uma bipartição do espaço linguístico, mas
uma quadripartição, conforme mostra Jean Bernabé (1983). Este autor define, de fato, a
diglossia antilhano-guianense como um conjunto de relações conflituosas, relações de
continuum-discontinuum, conforme a seguinte ordem hierárquica:
Francês-padrão
Francês crioulizado
Crioulo afrancesado
Crioulo basiletal6
5
Decerto seria melhor falar, na esteira de Salikoko Mufwene, professor de linguística da Universidade de
Chicago, de “espécies linguísticas” e não de “organismos” (1997).
6
Um basileto é uma “variedade baixa utilizada num sistema de comunicação”. J. Bernabé e o GEREC
recorrem também à noção de basileto para caracterizar o conjunto dos fatos mais desviantes com relação
ao francês. “Trata-se, neste sentido, de um crioulo ‘construído’, no qual se encontram reunidas todas as
formas mais afastadas do francês, sejam elas atestadas ou não na comunicação real. Tem-se portanto aí uma
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atitude voluntarista, que tende a definir o crioulo como o que se opõe na comunicação ao francês-padrão e,
por outro lado, a propor como modelo e a constituir como variedade normativa o crioulo assim construído”
(Marie-Christine Hazael-Massieux, Écrire en créole. Paris, L’Harmattan, 1993, p. 287).
7
Mesmo no caso do Haiti, considerado monoglota em 90%, se se admitir a teoria do “campo central” e do
“campo periférico” da diglossia elaborada por J. Bernabé (1987)
8
Jacques Coursil, “L’éloge de la muette”, Césure, Revue de la convention psychanalytique, n. 11, La
commotion des langues, 1996.
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Um leitor francófono não antilhano compreenderá “Pour moi, j’ai ôté mes pieds”
(“Por mim, tirei meus pés”), verso no mínimo obscuro, já que o verbo ôter em francês
exige automaticamente um complemento: tira-se alguém ou alguma coisa de algo. O
leitor antilhano não terá nenhuma espécie de hesitação, pois, para ele, esse verso,
decalque do crioulo guadalupense “An tiré pyé an mwen”, significa simplesmente “fui-
me embora”. Em romancistas como Jacques Roumain, Joseph Zobel ou Simone Schwarz-
Bart, além dos decalques, encontraremos sobretudo transposições que, embora possam
ser apreciadas por sua beleza formal pelo leitor não antilhano, permanecem para ele
frequentemente obscuras quanto a suas conotações extralinguísticas. É o caso da
transposição dos provérbios crioulos praticada com talento por Simone Schwarz-Bart em
Pluie et vent sur Télumée Miracle.
Notas de rodapé, glossário, decalques e transposições têm a ver com uma prática
ora selvagem ora erudita da tradução, mas essa tensão tradutora que atravessa a escrita
antilhana vai ainda mais longe, pois conduz o autor a se tornar tradutor no sentido
habitual, técnico, do termo, coisa que levou Maximilien Laroche (1976) a afirmar que
toda a literatura francófona haitiana não passaria no fundo de um vasto empreendimento
de tradução.
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O problema reside no fato de que, até o momento, toda tradução é concebida como
a passagem de uma língua-fonte a uma língua-alvo, de uma língua de partida a uma língua
de chegada. A gente se vê na confrontação do Um ao Um. O empreendimento de tradução
é vivido, metaforicamento, como a passagem de uma fronteira terrestre entre dois países
com tarifas alfandegárias mais ou menos elevadas a pagar, conforme esses países, essas
línguas portanto, sejam fronteiriças ou não, culturalmente aparentadas ou não. Ora,
traduzir um texto francófono antilhano-guianense consiste em passar de dois para um,
operação complicada, desconcertante, já que a grande maioria dos tradutores não conhece
a língua crioula. Ficam então reduzidos a trapacear, fingem não ver nem ouvir a língua
muda que fala sob o francês, no francês e com o francês. O problema pode ser resumido
assim: como traduzir um texto escrito não em uma mas sim em duas línguas-fontes (duas
línguas-fontes, ainda por cima, fortemente imbricadas)? Conservar somente a língua-
fonte de superfície, isto é, o francês, expõe o tradutor a contrassensos permanentes e, no
plano estilístico, ao aplainamento sistemático dos efeitos induzidos pela fricção do
francês e do crioulo.
Eis alguns exemplos dessa atitude assumida na tradução italiana de L’homme au bâton
(1993), de E. Pepin:
1. “Il y avait son allurance...” (p. 9): “C’era la sua andatura”. O termo allurance é
uma invenção do autor que parece ser crioulo e que, capturando a atenção do leitor
francófono não crioulófono, não lhe é incompreensível. Essa pseudocrioulização
do francês allure tem por efeito acrescentar o sema “sexualidade”, o qual fica
totalmente ausente da tradução italiana andatura.
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2. “Le marchand de jus de canne” (p. 11): “Il venditore di canna di zucchero” (p. 9).
Há aqui uma omissão, ou mesmo um erro de tradução, pois a palavra jus (“suco”
ou, no caso, “caldo de cana”) desaparece, o que leva o leitor italiano a pensar que
há vendedores ambulantes de cana de açúcar nas ruas das cidades de Guadalupe.
3. “Mme Denise ouvrait ses cocos-yeux” (p. 14): “Madame Denise con gli occhi
fuori delle orbite” (p. 11). Há aqui excesso de tradução e um deslizamento de
sentido, porque “cocos-yeux” conota bem mais a forma redonda e o tamanho dos
olhos do que o fato de estarem fora de suas órbitas (o que se diria em crioulo
“yeux-grenouilles” [“olhos-rãs”]).
4. “Ainsi allait la vie comme un galop de cheval à trois pattes et toujours il manquait
la quatrième” (p. 15): “Così andava la vita, come un cavallo al galopo, una con
tre zampe e sempre mancava la quarta” (p. 12). O “cavalo de três patas” em crioulo
é uma criatura diabólica com a qual se pode topar à noite nos caminhos isolados
do campo. Na tradução italiana, essa conotação mágica desaparece e sobra apenas
o efeito banal da existência, que o autor compara ao mencionado cavalo.
Como fazer então? Para Edouard Glissant (1990): “Criar em qualquer língua dada
supõe assim que se seja habitado pelo desejo impossível de todas as línguas do mundo.
A totalidade nos convoca. Toda obra de literatura hoje se inspira nisso.”
A nosso ver, assim como o escritor moderno escreve com a pluralidade das línguas
do mundo na cabeça por causa da cotidiana onipresença delas através dos meios
eletrônicos ou da presença crescente por toda parte de populações migrantes, o tradutor
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moderno deve sair da clausura que constitui a passagem de Um a Um. Deve a partir de
agora trabalhar no quadro daquilo que se poderia chamar de diversalidade linguística.
BIBLIOGRAFIA
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de la zone américano-caraïbe. Paris: L’Harmattan, 1987.
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1990.
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SCHWARZ-BART, Simone. Pluie et vent sur Télumée Miracle. Paris: Seuil, 1972.
ANEXO
Embora a linguagem seja uma capacidade universal e a língua seja um fato social, isto é,
coletivo, esta e aquela de fato só são acessíveis à observação na forma de manifestações
sempre singulares, individuais. Jamais estamos diante da linguagem em sua generalidade
nem mesmo de uma língua em sua abstração, mas diante de atos de fala, ou seja, de
“eventos” linguísticos, sempre singulares e sempre caracterizados pelas circunstâncias
particulares de sua emissão. (p. 14-15)
Por sua simples existência, ela [a tradução] postula a possibilidade de uma dissociação
entre a mensagem como conteúdo comunicável (universalizável) e a língua (social) que
o exprime. Com ou sem razão, a visada tradutora postula portanto a existência de
universais de linguagem, para além do caráter social das línguas através dasquais ela (a
linguagem) se manifesta. (p. 15)
[...] traduzir consiste em substituir uma mensagem (ou uma parte de mensagem)
enunciada numa língua por uma mensagem equivalente enunciada em outra língua.
Enfatizaremos como importante nesta definição o fato de que a tradução opera sobre
mensagens e que ela questiona línguas. Em termos saussurianos, diríamos que a tradução
opera sobre a fala (parole).
Poderemos dizer, é claro, que, se a tradução não incicde sobre a língua, ela incide
entretanto sobre material linguístico. “AQUILO” que se traduz (frase, discurso, obra...)
é formulado em francês, em inglês, em alemão etc., e o resultado da tradução será uma
formulação em inglês, em francês, em alemão etc., isto é, a língua intervém, sim, enquanto
tal. (p. 19)
A linguística aplicada à tradução deve incluir em seu estudo uma teoria da mensagem
tanto quanto uma teoria da língua. Deve ser uma linguística da fala tanto quanto uma
linguística da língua [...] (p. 22).
Dizer que a tradução opera sobre mensagens é, com efeito, proclamar que ela é um ato de
comunicação (ou de troca linguística) antes de ser um ato de comparação inter-lingual.
(p. 23)
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ABSTRACT: In the following pages, I discuss the translation of poetry within the
African Diaspora, between two specific hegemonic languages: German and Brazilian
Portuguese. At first, I present the historical context of the poetic work of the Afro-
German writer May Ayim (1960-1996), reflecting on the translation of her poems into
Brazilian Portuguese by an Afrodescendant Germanist. In a second moment, I bring
examples of Afro-Brazilian poetry’s translation to German considering the challenges,
correspondences and identifications implied in both translation processes. Finally, I
reflect on processes that pervade the subjectivity of the Black translator along Spivak's
(2000) proposals, thus seeking to contribute to a theoretical and methodological
framework for the translation of Black subject’s textes within the diaspora by Black
subjects also within the Diaspora.
1
O presente artigo é um recorte de uma pesquisa de mestrado em andamento sobre tradução de literatura
afrodiaspórica em língua alemã no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET) na
Universidade Federal de Santa Catarina.
Mestranda em Estudos da Tradução (PGET-UFSC). Possui graduação com dupla habilitação em Letras -
Alemão e Português pela USP. Seu enfoque é em textos da diáspora africana e em textos feministas
interseccionais. Já tendo traduzido textos de Grada Kilomba e June Jordan para o português brasileiro.
Contato: oliveira.jessica@posgrad.ufsc.br
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Introdução
2
Publicado em 1986 e em tradução livre: (Re-)Conhecendo a Cor: Mulheres Afro-Alemãs Traçando Suas
Histórias
3
Tradução livre. Livro sem tradução para o português.
4
Todas as traduções de citações neste artigo são de minha autoria.
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eventos antirracistas. Em maio de 2010 a antiga rua Gröbenufer em Berlim, cujo nome
homenageava Otto Friedrich von der Gröben (1657–1728), um colonizador alemão que
liderou em 1683 uma expedição ao oeste africano, passou – depois da pressão da ISD –
a homenagear a poeta, e hoje se chama May Ayim-Ufer. Ayim foi também uma das
primeiras poetas negras a escrever em língua alemã, influenciando sua geração e
gerações seguintes de afro-alemães. Hoje na Alemanha e Áustria vive e floresce uma
potente cena literária e ativista negra intervindo nas artes, na política, na academia, etc.
5
Segundo o IBGE, os negros (pretos e pardos) eram a maioria da população brasileira em 2014,
representando 53,6% da população. Fonte:<
https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2015/12/04/negros-representam-54-da-populacao-do-pais-
mas-sao-so-17-dos-mais-ricos.htm > acesso em 9 fev. 2017.
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Este obviamente não é o caso de May Ayim, pois ela nasceu, foi alfabetizada,
educada e socializada em língua alemã e por instituições alemãs. Mesmo assim, sua
poesia continua invisível e inaudível. Ayim não era imigrante na Alemanha, mas sua
negritude a “situava” sempre à margem do que é ser um cidadão pleno (e) alemão e,
portanto, a aproximava da experiência estrangeira, sendo estrangeira em seu próprio
país. Nesta política do nacional versus estrangeiro, que categoriza alemães e não-
alemães vemos como o nacionalismo apresenta um lado universal da identidade,
apagando diferenças constitutivas e fabricando “o outro”. Venuti (2005) fala de uma
“contradição fundamental da identidade transcendente”, postulando que todo discurso
nacional é singular, mas se coloca como universal. Há uma ideia universal do que é ser
brasileiro/a, inglês/a, indiano/a, peruano/a alemã/o, etc que suprime diferenças e
dissonâncias destas supostas identidades dentro das fronteiras dos próprios países. O
fato de Ayim não ser vista como alemã, por ser negra e, tampouco ser estrangeira, já
6
O prêmio de Literatura Adalbert von Chamisso foi instaurado em 1985 e premia a chamada literatura de
emigração em língua alemã, isto é, obras literárias escritas por autoras/as cuja língua materna não é a
alemã.
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que nascera e crescera na Alemanha, de uma mãe biológica alemã, moldou e marcou
sua perspectiva sobre esta sociedade.
Ayim também não aparece em leituras, cursos, discussões sobre literatura pós-
colonial, cuja boa parte das/os autoras/es é negra. O não enquadramento da poesia
afro-alemã na literatura intercultural, na literatura alemã canônica, tampouco na pós-
colonial pode ser, à primeira vista, um empecilho para nos aproximarmos de sua obra.
Entretanto, escolho justamente esse caminho para lê-la e traduzi-la. Assim, me acerco
a sua poesia por meio de duas vertentes: como literatura alemã, escrita por uma alemã
em um contexto alemão em determinado período histórico, e dentro do riquíssimo,
plurilíngue contexto cultural e político afrodiaspórico. Desta forma, além de conferir
visibilidade a sua identidade afro e alemã (como ela mesma se denominava) e a seu
status como poeta, é possível analisar a partir de sua obra, a sociedade alemã de
maneira complexa e profunda, desde seu processo de unificação no XIX, de suas
colônias no continente africano, da emergência de uma ideia de pureza racial e
linguística criadas e utilizadas para a formação deste Estado-Nação, bem como as
consequências de tais ideias ao longo do século XX. Do mesmo modo, ao abordar sua
obra dentro do contexto afrodiaspórico tangenciamos diversos elementos de sua
poética, compreendemos seus temas e a reinscrição de “outras narrativas” articulada
pela diáspora negra (HALL, 2003, p. 347). Ainda segundo Hall por essa razão, a
diáspora negra teve que trabalhar em si mesma como “telas de representação”. Pois, é
no modo como “representamos e imaginamos a nós mesmos”, que compreendemos
“quem somos”, É em nossos corpos negros que produzimos contranarrativas e
contraimagens silenciadas, apagadas e “esquecidas” pela história ocidental. (HALL,
2003, p. 347) e é também por meio de nossos corpos negros, nossa arte, escrita,
tradução, etc que nossas vozes e histórias “mantidas em silêncio como segredos”
(KILOMBA, 2016 p. 177) saem desta condição.
É justamente neste contexto afrodiaspórico que localizo minha tradução da poesia
negra alemã de May Ayim. Esta tradução é um gesto político motivado por
silenciamentos seculares impostos ao povo negro (KILOMBA, 2016, p. 172) e sobre
sua história global e local. No caso alemão, a própria Ayim como citado acima realizou
na década de 1980 uma pesquisa inédita sobre a história negra na Alemanha e através da
minha tradução continuo seus passos estreitando laços transnacionais da diáspora negra.
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Traduzo-a pela ampliação que a tradução pode conferir à sua voz. Voz que Ayim usava,
assim como outras e outros poetas afrodiaspóricos ao redor do mundo, para recitar sua
poesia.
O poema que traduzo abaixo “Destemida e sem fronteiras: poema contra a bel-
(uni)dade alemã” foi escrito meses após a queda do muro de Berlim como protesto ao
aumento do número de ataques racistas e xenófobos em toda a Alemanha, diretamente
relacionados às comemorações da reunificação que desenterraram com elas velhas
ideias do que é ser alemã(o); isto é, com a queda do muro a sonhada unificação trouxe à
tona ideias nacionalistas ligados à supremacia branca, ao biotipo “ariano”, à
superioridade da língua alemã, e portanto, excluíam todos que (supostamente) não se
enquadravam nesses ideais. Já no título, Ayim expõe o que significou para ela a
reunificação alemã em 1989. A poeta brinca com a língua e faz um trocadilho com a
palavra Sch-einheit, que abriga Einheit = unidade e ecoa Scheinheit = aparência e
também Schönheit = beleza. Assim, ela demonstra como a reunificação alemã foi sobre
aparências, uma vez que ela e muitas outras pessoas não puderam comemorar, pois para
afro-alemães e imigrantes a unificação significou maior segregação. Durante as
comemorações e em geral havia reivindicações sobre um ideal de cidadania, de
pertencimento à nação e de beleza, que ditavam quem era alemã/o. Ayim comenta o
contexto que a levou a escrevê-lo em texto publicado postumamente no livro
Grenzenlos und Unverschämt:
Pela primeira vez desde que vivo em Berlim, tenho que combater diariamente
insultos indecorosos, olhares hostis e/ou difamações abertamente racistas”
(...) Uma amiga no trem com sua filha afro-alemã no colo, ouviu: “Nós não
precisamos mais de pessoas como vocês, aqui e agora somos mais do que
suficientes! Um menino africano de 10 anos foi expulso do trem para dar
lugar a um alemão branco... (AYIM, 2002, p. 91)
7
Agradeço a minha orientadora, Profa. Dra. Rosvitha Friesen Blume (UFSC), à Kristina Michahelles,
jornalista e tradutora, e ao grupo que se reúne semestralmente nas oficinas de tradução alemão-português
e vice-versa que têm sido grandes interlocutoras/es das minhas traduções dos poemas de May Ayim.
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May, ao mesclar tais elementos culturais, está falando sobre si, esse sujeito
afrodiaspórico alemão e inscrevendo na história e na literatura tal identidade. Assim,
Ayim realiza exatamente aquela reeinscrição de “outras narrativas” através das
informações culturais de seus antepassados, de códigos e de signos, de mitos e ritos
herdados.” (HALL, 2003, p.342) os mantendo em pé de igualdade com seus poemas
em alemão. Com sankofa na primeira página do livro, além de ‘pôr em relação
horizontal’ tais elementos culturais aparentemente tão distantes e distintos, a poeta
reconhece seu lado ganense, e num gesto de busca de seu passado, à cultura de seu pai,
indica o futuro, o ‘novo’ que é sua poesia (em língua) alemã e que não se desvincula dos
símbolos adinkra. Por isso, é impossível aproximar-se de sua obra literária somente
através da perspectiva da literatura ou cultura alemã, pois sua poesia extrapola tais áreas
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de estudo. De uma perspectiva teórica tradutória, através destas práticas Ayim está
inscrevendo e garantindo sua opacidade e demonstrando sua retórica, dois elementos
cruciais segundo Spivak (2012) para entender e traduzir sua obra.
A tradução na diáspora negra tem um status de “vetor/produtor de um diálogo
intercultural que ainda está por vir.” (CARRASCOSA, 2016 p.63) e que se está dando
através da tradução, pois segundo Carrascosca (2016), sob uma perspectiva tradutória
negra “a palavra, o conhecimento outro, o toque de atabaque e vozes subalternas
tomam o campo de luta da linguagem/discurso, possibilitando a abertura do eu e a
convivência com o outro”, sem assimilá-lo. Este tem sido um dos desafios e dos
prazeres dessa tradução, isto é, o não apagamento das múltiplas identidades e
compromissos políticos de May Ayim. Há em sua obra, por um lado, uma crítica ao seu
país natal, à língua alemã, e por outro, sua busca, encontro e utilização de elementos de
culturas negras, retomando uma memória ancestral ao passo que integra culturas
afrodiaspóricas, na qual me reconhecço como afro-brasileira, bem como me reconheço
em sua crítica à, e em sua utilização da língua alemã que muitas vezes, com suas bases
racistas, me coloca em posição subalterna enquanto negra e tradutora. Busco, portanto,
utilizar a tradução de sua poesia como uma ponte desta parte da diáspora que nos parece
tão distante e em uma língua que pode ser, em contexto brasileiro, um marcador de
divisão e apagamento. Pretendo demonstrar que Ayim amava sua língua materna, ao
ponto de reconhecer que a mesma pode ser um tanto hostil para sujeitos como ela.
Assim, a poeta cria inúmeros jogos de palavras, utiliza diversos artifícios poéticos como
aliteração, ironia, desmembramento de palavras, etc., e, sobretudo, realiza através de sua
poesia um questionamento fundamental acerca de resquícios racistas na língua e
sociedade alemãs, trazendo ditos populares e expressões idiomáticas, que assim como
em português, localizam e relacionam o sujeito negro ao que é ilegal, sujo, proibido,
exótico, selvagem e inferior, como nos exemplificará a tradução de tatiana nascimento a
seguir. É exatamente no reconhecimento, nas experiências comuns de corpos e
subjetividades negras em diáspora, através das utilizações e críticas às línguas é que
localizo ambas poetas na diáspora africana. Lao-Montes (2007, p. 310) conceitua a
diáspora africana como:
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em berlim...
eu
talvez...
devesse deveria poderia quisesse
rimar
rimaria uns fonema assim
“controlarem”
com
10
Alguns linguistas falam em Afro-português, nomenclatura produzida a partir de pesquisa coletiva
conduzida por um grupo da UFBA, coordenado pelos professores Alan Baxter, Ilza Ribeiro e Luchesi,
que resultou no livro O português afro-brasileiro, Salvador: EDUFBA, 2009.
11
A tradução integral para o alemão encontra-se disponível em:
<https://www.academia.edu/24305232/_Schmeckt_nach_Glas_und_Schnitt_deutsche_Version_?auto=do
wnload>
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schwarzfahren.
acho talvez que a pouca gente preta que tem já deve saber
o que significa rimar
controlarem com
schwarzfahren.
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pra ver você pra ver se vc consegue sorrir cheio mancha nos dentes turvos
de chagas na pele lazarento imaturo futuro no escuro
dor no peito da idade de mil saturnos
Atotô ou um Exu pra pedir licença em alemão alivia
seu
aburro?
você...
em seus suiplícios...
tá
andando na linha pagando a tarifa tomando a pílula
vai
sobre-
viver?
tá mais calminha
agora
as bicha
tudo surtada
na psiquiatria?
tá tudo andando
mansinha?
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os corvos me acenam embora como as mil folhas de uma árvore presa num parque
que nem eu sei o nome
nem seria português nem alemão
pra elas,
árvores não se importam com essas línguas, a não ser que ordenem
lâminas
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[...] […]
dor no peito da idade de mil saturnos Schmerzen in der Brust vom Lebensalter tausender Saturnen
Atotô ou um Exu Atotô oder ein Eshu
pra pedir licença em alemão um sich auf Deutsch zu eshu-ldigen
alivia seu
aburro? erleichtet es deine
[…] Langeweile?
[…]
Exu é quem dá licença, e é relevante lembrar que tal entidade foi ‘traduzida’ por
cristãos como Diabo, devido à sua irreverência e estilo brincalhão, o que é um grande
equívoco, pois na cultura iorubá não existem diabos ou entidades unicamente “más”.
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Viveiros de Castro (2004, p. 10) declara que “traduzir é presumir que equivocação sempre existe; é
12
comunicar por diferenças, ao invés de silenciar o Outro supondo uma univocidade — a similaridade
essencial — entre o que o Outro e Nós dizemos”.
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em berlim... in berlin
eu sollte ich
talvez... vielleicht...
devesse deveria poderia quisesse müsste ich, könnte ich, wollte ich
rimar reimen
rimaria uns fonema assim würde ich ein paar Phoneme so reimen
"controlarem" “kontrollieren” mit
com was weiß ich...
eu nem sei talvez vielleicht mit
schwarzfahren. schwarzfahren.
Conclusão
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DOS SANTOS, J. E. Os nagô e a morte. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
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tatiana nascimento1
De presenças e ausências
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tatiana nascimento, brasiliense, poeta, cantautora, editora na padê editorial (livros artesanais de autoras
negras/lgbtqi). publicou "lundu,", primeiro livro de poemas seus, em 2016. edita o blog traduzidas, de
tradução clandestina de autoras lgbtqi e/ou negras. doutora em estudos da tradução pela universidade federal
de santa catarina. professora voluntária na universidade de brasília, ministra a disciplina feminismos e teoria
cuíer. E-mail: palavrapreta@gmail.com
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Quando escrevia isso vivia em Florianópolis e estava muito marcada pela prática
de tortura conhecida como “farra do boi” (para mim, sadismo humano em nome de
“tradição”). Também me impressionavam os pastos de concentração em que vacas,
bois, bezerrxs ficavam expostas enquanto o dia do assassinato delas não chegava, e
ouvir no ônibus a caminho de casa comentários acerca do bucolismo da cidade – os
matadouros ficam escondidos. Essa menção importa porque uma prática epistêmica de
feminismo antirracista precisa pensar também o que significa, em termos de dominação
e colonização interespécie, a fronteira entre o que é humano e o que não é.
Em 2000, a Revista Estudos Feministas – REF publicou uma tradução da teórica
negra feminista Kia Lilly Caldwell chamada “Fronteiras da diferença: raça e mulher no
Brasil”. A tradução é anônima, e quem-traduziu escolheu o termo “mulheres não
brancas” para traduzir a expressão “women of color”, justificando sua decisão em uma
nota de tradução. Sendo uma tradutora lésbica negra, reflito sobre essa escolha
tradutória pensando nos limites e possibilidades de uma política de tradução feminista
efetivamente antirracista e anticolonial.
Barbara Godard escreveu em 1989 um texto muito inspirador para pensar
tradução feminista como um encontro radical de diferenças; para ela, discurso e
tradução feministas são propostas de reconstrução de subjetividades mal
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Chela Sandoval, teórica feminista lésbica de cor, conta essas dúvidas no contexto
de práticas e subjetividades feministas quando postas em contato no contexto de uma
conferência: “Iria então nossa potencial união ser designada ‘terceiro-mundista’, ‘de
cor’, ou nenhuma dessas? O grupo não chegou a nenhuma resolução final [...]”, e conta
ainda que nesse momento primevo dos encontros de várias mulheres de cor em que
esses questionamentos pipocavam, “[...] o que estava escondido se revelava, os medos
se dissipavam, os esterótipos eram confrontados, e as dores e visões mútuas eram
compartilhadas. Esses foram os processos necessários a nos ajudar a compreender quem
éramos juntas, a condição presente de nossas similitudes e diferenças, e quais poderiam
ser nossas táticas para a criação de um ‘feminismo’ mais saudável” (1981/2006, p. 464,
traduções minhas). Para Mohanty, o uso é variável, e politicamente contextual:
“reinvindicar identidades raciais baseadas em história, localização social e experiências
é sempre uma questão de análise e política coletivas” (MOHANTY, 1986/2003, p. 135,
tradução minha).
Esse detalhamento conceitual esboça minha costura textual de um chão teórico
desde as autoras que mais me acompanham aqui para caminhar entre as interconexões
de subjetividades de mulheres de cor e/ou de mulheres terceiromundistas que são
majoritariamente afrodescendentes, e de práticas políticas feministas pós-coloniais e/ou
terceiromundistas que dizem respeito à minha própria percepção subjetiva enquanto
lésbica negra afrodiaspórica e terceiromundista, marcada colonialmente e que me
traduzo em termos de flutuações na borrada fronteira racial em que me insiro (negra de
pele clara) e impasses na prática de tradução feminista (traduzir do inglês ao pb, mas
raramente o inverso).
Eu prefiro aqui usar “feminismo pós-colonial” a “feminismo terceiromundista”
porque quero olhar para o contexto da tradução do artigo de Caldwell a partir da
particularidade de ser um texto escrito por uma teórica negra afrodiaspórica que vive
“no centro”, escrevendo sobre “a periferia”, e sendo traduzida nessa “periferia” de uma
maneira específica. Em seu artigo, Caldwell vai comparar a inserção de raça como parte
das análises na produção feminista feita no Brasil e aquela feita em dois países da
América do Norte (EEUU e Canadá) e na Inglaterra. E além de notar essa ausência
significativa do tema nas produções locais, ela também critica a baixa tradução de
teóricas negras para o português brasileiro – pb:
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Ochy Curiel mesma usa “não brancas”, que não quero demonizar como a
versão malévola que “mulheres de cor” deve heroicamente apagar, mas a
contextualização que oferece ao termo aponta as nuances do que estava em disputa
na constituição e uso de dele. E parte do que estava em disputa era visibilizar mulheres
de cor, seja na autodefinição, seja nas produções teóricas (poéticas ou em prosa).
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De qualquer forma, o tradutor fez uma pesquisa, mesmo não a tendo detalhado
como Curiel faz; e sua justificativa explicita que entende o contexto de autodefinição a
que “women of color” remete. Mas mesmo assim defende que “é preferível” usar “não
brancas”, porque no Brasil, “de cor” “[...] popularmente se restringe a negras e mulatas
[...]”, e assim tentar manter uma especificidade do original. A especificidade do original
é que o termo tem uma história político-geográfica, étnica e racial que “não brancas”
não evoca, porque o campo semântico de “women of color” tem uma marca textual em
sua superfície, em sua letra, como diz uma teoria de tradução famosa, e “não brancas”
não dá conta dessa conjugação.
Não dá conta porque “não brancas” não existe, no português brasileiro, como
letra que evoque uma semântica relacionada a um contexto histórico, geográfico,
político, étnico e racial de disputas textuais e políticas de grupos feministas,
acadêmicos ou não, em torno de uma ideia de branquitude que deixa um “o
feminismo” planificado. Existem críticas brasileiras às práticas racistas em contextos
feministas (Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, Jurema Werneck, Denise Botelho, ou
eu mesma, Djamila Ribeiro, Jéssica Hipólito, entre outras), mas elas não são cunhadas
em termos de “não branquitude”, e sim de negritude, em termos de raça ou etnia. O
etnocentrismo de dar “cor local” apagou a pele do termo traduzido, seja na “a
especificidade” “daqui” ou “de lá”.
Assim é que funciona a outra incoerência argumentativa. A falta de
posicionamento nítido entre um projeto de tradução como domesticação e um
estrangeirizante fez com que a tradução soe fora de contexto, des-localizada, não se
referindo a nenhuma experiência concreta, efetiva, fora dos limites da própria
textualidade. Porque tenta apagar o estranhamento que “women of color” em uma
tradução justa traria ao texto, sugerindo um outro uso que não o “popular” do Brasil, e
tenta criar um equivalente inexistente, e logo ininteligível, no contexto das críticas feitas
a práticas racistas no feminismo no Brasil.
Além disso tudo, há também um outro ponto que me parece muito
questionável. A noção de que “de cor” é usado “popularmente” no Brasil para fazer
referência a “negras e mulatas”. Aqui lembro os escritos de Maria Nascimento no jornal
O Quilombo, com sua coluna Fala a Mulher voltada às “Patrícias de cor”, o movimento
negro nos anos 1940/1950: o uso de “de cor” aqui me parece mais próximo do uso de
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Como peles negras podem emergir embaixo da pesada máscara branca que um
termo aparentemente simples como não-cor carrega? A branquitude é tão eficiente que,
mesmo no contexto da produção e recepção desse texto de Caldwell e sua tradução, ela
passa em branco? Quem traduziu essas mulheres de cor? Se eu soubesse quem ele é, se
soubesse se é negro ou não negro, se é gay ou não gay, se é trans ou não trans, se eu
soubesse seu nome e seu email, teria feito essas perguntas primeiro, ao invés de
escrever todas essas palavras marcadas, ao invés de supor o que sabia, não sabia ou
preferiu não saber ao traduzir Caldwell? E se ele me dissesse que não sabia? O
privilégio da leviandade seria mais irresponsabilizável em tradução?
REFERÊNCIAS
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Betsch; GUY-SHEFTALL, Beverly (Ed.). I am your sister: collected and unpublished
writings of Audre Lorde. Nova Iorque: Oxford University Press, 2009. p. 156-157.
______. Under western eyes: feminist scholarship and colonial discourses (1986/2003).
In: ______. Feminism without borders: decolonizing theory, practicing solidarity.
Durham: Duke, 2003.
MORAGA, Cherry; ANZALDÚA, Gloria (Ed.). This bridge called my back: writings
by radical women of color. Latham: Kitchen Table Women of Color Press, 1981.
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1
Professora de Língua Inglesa e Língua Portuguesa do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso
Suckow da Fonseca (CEFET/RJ), com atuação no Bacharelado em Turismo (Campus Petrópolis) e no
Mestrado em Relações Étnico-Raciais (Campus Maracanã). Doutora em Letras - Estudos da Linguagem
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2015), Mestre em Letras - Teoria da Literatura
pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2007), Bacharel em Letras - Tradução pela Universidade
Federal de Juiz de Fora (2005), Licenciada em Letras - Língua Inglesa e Língua Portuguesa pela
Universidade Federal de Juiz de Fora (2004/2003).
2
Professora Adjunta do setor de Língua Inglesa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atuando na
Pós-graduação Stricto Sensu em Letras, na área de Estudos da Literatura; na Pós-graduação Lato Sensu
em Linguística Aplicada: Inglês como Língua Estrangeira; e na graduação em Inglês e Literaturas de
Língua Inglesa. Possui Doutorado em Letras - Estudos da Linguagem, com pesquisa em Estudos da
Tradução, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2013); Mestrado em Literaturas de
Língua Inglesa com pesquisa em estudos afro-americanos / Tradução pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (2009); e graduação em Letras - Inglês e Literaturas de Língua Inglesa - pela mesma
universidade (2007).
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(1989), and its translation into English, and Ponciá Vicencio (2003), by Conceição
Evaristo, and its translation into French. The Color of Tenderness is an autobiographical
work that portrays the challenges faced by Geni, a poor black girl, in search for the
construction of her own identity. Entitled The Color of Tenderness, its translation was
done by Niyi Afolabi and published in 2013 by the American publisher Africa World
Press. With regard to Ponciá Vicencio, it brings the story of Ponciá and her family, who
are descendants of slaves, living in a post-abolitionist period and negotiating her
present, future yearnings and the reminiscence of her family’s slavery past. Entitled
L'Histoire de Ponciá, its translation was done by Patrick Louis and Paula Anacaona and
published in 2015 by the French publisher Anacaona. Descriptive Translation Studies
(DTS) will serve as the basis for our proposal, considering the views of authors such as
Even-Zohar (1990); Bassnett & Lefevere (1990) and Toury (1995).
3
Referência ao poema “Vozes-mulheres”, de Conceição Evaristo, publicado nos Cadernos Negros 13,
1990, p. 32-33.
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buscam dissimular seu lócus de enunciação, conforme ocorre com Lima Barreto,
Machado de Assis e Cruz e Souza, quanto daqueles que se assumem etnicamente. É o
caso, por exemplo, de Geni Guimarães e de Conceição Evaristo.
Geni Guimarães é natural de São Manuel, cidade situada no interior de São Paulo.
Nascida no ano de 1947, desde cedo, ela enfrentou obstáculos por ser negra e de origem
humilde. Mesmo com essas dificuldades, Guimarães formou-se professora e começou
sua carreira de escritora ainda jovem, através da publicação de textos literários em
jornais como Debate regional e Jornal da Barra. No decorrer dos anos, ela lançou
obras como Terceiro filho (1979), Leite do peito (1988), A cor da ternura (1989) e Balé
das emoções (1993), além de ter contos publicados nos Cadernos negros. É importante
destacar que os Cadernos negros, com publicações anuais ininterruptas desde 1978 e
alguns números esgotados, são um exemplo de movimento por parte de escritores
negros para ocuparem seu espaço no mercado editorial brasileiro. Na apresentação da
edição bilíngue Cadernos negros: literatura afro-brasileira contemporânea / Black
Notebooks: Contemporary Afro-Brazilian Literature (2008), Esmeralda Ribeiro ressalta
a importância de Cadernos para a divulgação da literatura afro-brasileira:
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peito foi mantido e o livro foi publicado em 2001 pela Mazza Edições, editora que se
mostra comprometida com a divulgação da cultura afro-brasileira4.
A cor da ternura compõe-se de dez capítulos, além de ilustrações criadas por
Saritah Barbosa. Apresentando um tom de oralidade, notadamente nos diálogos, a obra
traz a história de vida de uma menina negra e pobre chamada Geni. Desde cedo, a
personagem-narradora enfrenta questões relativas à sua identidade. É o que se pode
observar nesta conversa com sua mãe:
– Mãe, se chover água de Deus, será que sai a minha tinta? – Credo-
em-cruz! Tinta de gente não sai. Se saísse, mas se saísse mesmo, sabe
o que ia acontecer?
– Pegou-me e, fazendo cócegas na barriga, foi dizendo: – Você ficava
branca e eu preta, você ficava branca e eu preta... (GUIMARÃES,
1998, p. 10).
4
Esta é a descrição presente no site da Mazza Edições: “Ao longo de mais trinta anos de atividades,
Mazza Edições reafirma seu compromisso de levar o melhor da cultura brasileira e afro-brasileira aos
seus leitores”. Disponível em: <http://www.mazzaedicoes.com.br/editora/>. Acesso em: 6 jan. 2017.
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Olhos d’água, recebeu o prêmio Jabuti, na categoria “Contos”, no mesmo ano de sua
publicação. Além de ficção, Evaristo possui também trabalhos acadêmicos e ensaios
publicados, assim como inúmeras falas e palestras no Brasil e no exterior, muitas
disponíveis em vídeos na web. Seu blog “Nossa Escrevivência”5, no ar desde novembro
de 2012, também merece destaque, pois disponibiliza, além de sua tese de doutorado,
“informações sobre os livros já publicados por Evaristo, textos da escritora, entrevistas,
depoimentos, vídeos, artigos publicados sobre sua obra e material sobre a literatura afro-
brasileira de um modo mais amplo” (VALENTE, 2013, p. 11).
Com suas constantes participações em eventos, com as traduções de seu romance
– como veremos adiante – e com o prêmio Jabuti, um importante prêmio literário
brasileiro, Evaristo e sua obra vêm conseguindo alcançar maior visibilidade,
principalmente no contexto dos estudos afrodiaspóricos e de gênero, já que, como
afirma a autora, sua criação literária “é marcada pela [sua] convicção de mulher e negra
na sociedade brasileira” (EVARISTO, 2016, s.n.p.)6. Além disso, a presença da
escritora em eventos como um dos maiores festivais literários do Brasil – a FLIP, em
2016, também contribui para essa visibilidade, não apenas da literatura de Evaristo, mas
da literatura afro-brasileira como um todo, devido ao seu posicionamento engajado.
Embora a FLIP tenha recebido inúmeras críticas pelo fato de sua edição de 2016
praticamente não contar com autores negros, especialmente com relação às vozes
femininas7, Evaristo participou da mesa “De onde escrevo” no evento, mediada pela
atriz, MC e escritora Roberta Estrela D'Alva, contando também com a participação das
autoras Ana Maria Gonçalves, Andréa Del Fuego e Maria Valéria Rezende. Para a
autora, fatores como a participação na mesa supracitada e o recebimento de um prêmio
literário de tamanha importância em nosso país, como o Jabuti, são “a prova de que
muita coisa está mudando na sociedade, para mulheres e negros. Depois de muito
5
http://nossaescrevivencia.blogspot.com.br/
6
O Globo online, Categoria Segundo Caderno/Prosa: Conceição Evaristo, Prêmio faz diferença,
publicado em 13/12/16. Disponível em: <http://eventos.oglobo.globo.com/faz-
diferenca/2016/vencedores/categoria-segundo-cadernoprosa-nome-do-vencedor/:>. Acesso em:
15/02/2017
7
LUZ, Sérgio. Escritoras dialogam com o curador da Flip na mesa 'De onde escrevo': ausência de negros
na programação foi tema debatido com Paulo Werneck, publicado em 29/06/2016. Disponível em:
<http://oglobo.globo.com/cultura/livros/escritoras-dialogam-com-curador-da-flip-na-mesa-de-onde-
escrevo-19610940>. Acesso em: 10/02/2017
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esforço, essas novas vozes começam a ganhar o espaço que é delas por direito. A
sociedade brasileira está mais propensa a escutar essas vozes” (EVARISTO, 2016,
s.n.p.).
Embora os contos e poemas publicados por Evaristo nos Cadernos Negros
tenham bastante visibilidade e sejam bastante lidos e estudados na academia, é o
romance Ponciá Vicêncio que se destaca dentre suas produções. Ponciá foi publicado
em 2003 pela Mazza edições, mesma editora que publicou Leite do peito, de Geni
Guimarães em 2001, e foi traduzido para duas línguas até o momento. Nos Estados
Unidos, o romance foi publicado pela editora Host em 2007, com tradução de Paloma
Martinez-Cruz, professora assistente de Estudos de Cultura e Literatura Latina, do
Departamento de Espanhol e Português, da Ohio State University8; e na França, seu
lançamento foi no Salão do Livro de Paris, em março de 2015, pela editora Anacaona,
com tradução para o francês por Patrick Louis e Paula Anacaona.
Ponciá Vicêncio é um romance composto por 46 capítulos não enumerados,
marcados apenas pela mudança de página e fonte que inicia cada um dos capítulos. O
romance apresenta um tom de oralidade, embora não traga diálogos, como acontece
com o romance de Geni Guimarães, e traz muitos elementos da cultura brasileira. O
romance narra a história de uma menina negra e pobre chamada Ponciá e de sua família,
que sofre com a reminiscência de seu passado escravocrata. Os avós de Ponciá
experienciaram a escravidão e seus pais, embora beneficiados pela Lei do Ventre Livre,
ainda vivem sob os resquícios dessa escravidão, em uma pseudoliberdade, nas terras de
seus antigos donos. Coronel Vicêncio alegava que as terras eram um “presente de
libertação. (...) Uma condição havia, entretanto, a de que continuassem todos a trabalhar
nas terras” (EVARISTO, 2006, p. 48). Já adulta, após a morte de seu pai, Ponciá decide
buscar uma vida melhor para si na cidade grande, porém, a vida na cidade não se mostra
fácil e, apenas muitos anos após a sua chegada, Ponciá consegue comprar um quartinho
em um morro na periferia da cidade. Ao retornar ao seu povoado de origem em busca de
8
Para saber mais sobre a tradução para a língua inglesa ver: VALENTE, Marcela Iochem. A tradução e a
construção de imagens culturais: Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, e sua tradução para o inglês.
Rio de Janeiro, 2013. 163p. Tese de Doutorado – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
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sua mãe e irmão, após a compra de seu quartinho, Ponciá depara-se com a casa vazia.
Em momentos e situações diferentes, ambos, mãe e irmão, partem para a cidade na
esperança de encontrarem uns aos outros, entretanto, a história é repleta de
desencontros. Por fim, na estação de trem da cidade, após idas e vindas, sofrimentos e
desencontros, a família se reencontra e retorna ao campo após perceberem que a cidade
não oferece a vida melhor que todos buscavam.
O romance de Evaristo narra problemas do cotidiano das mulheres negras e da
pobreza, de forma muito rica e cheia de referências culturais, partindo de uma ótica
feminina e afrodescendente, dando voz a um grupo historicamente excluído no Brasil e
questionando os cânones brasileiros, que tendem a priorizar obras produzidas pelas
supostas maiorias ou, ainda, pelos membros da dita sociedade hegemônica, tida como
padrão. A publicação e a tradução de obras como Ponciá Vicêncio e A cor da ternura
permite que partes da cultura brasileira, por muito tempo encobertas, possam ser
conhecidas internacionalmente, dando alguma visibilidade a grupos que a história por
muito tempo excluiu ou apresentou de maneira estereotipada, conveniente aos relatos
hegemônicos.
Ainda que a crítica literária e a mídia também não tenham dado o merecido
destaque para Ponciá Vicêncio e que o livro ainda seja pouco conhecido do público
brasileiro em geral, o romance já foi indicado como leitura obrigatória para vestibulares
de algumas instituições mineiras como a UFMG, o CEFET Minas, entre outras. No que
diz respeito à capa, Ponciá Vicêncio traz a ilustração de uma mulher negra moldando
uma peça de barro, mostrando apenas o barro começando a ser trabalhado, parte do
rosto da mulher e suas mãos, uma alusão ao trabalho com o barro feito por Ponciá e sua
mãe para ajudar na renda da família Vicêncio. O livro traz também um prefácio de seis
páginas, escrito por Maria José Somerlate Barbosa, professora assistente do
departamento de espanhol e português na Universidade de Iowa, em que Ponciá é
apontado como um romance de formação, que apresenta personagens complexos e
multifacetados. Barbosa apresenta o enredo em linhas gerais, com o foco na
protagonista:
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O prefácio também destaca a forma poética como Evaristo escreve e o constante apelo
aos sentidos presente no romance:
Por fim, o prefácio traz uma avaliação muito positiva do romance, destacando as
questões econômicas, sociais e raciais presentes no enredo e comparando Evaristo, em
alguns aspectos, a Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. Segundo
Barbosa, Ponciá “é um romance que li de um só fôlego porque além de me prender a
atenção, me tomou pelos sentidos para percorrer com Ponciá os labirintos e as vias
tortuosas da memória (BARBOSA, 2006, p. 12).
A cor da ternura, de Geni Guimarães, foi traduzido para a língua inglesa por
Niyi Afolabi e publicado pela Africa World Press em 2013. Com sede na cidade de
Trenton, Nova Jersey, Estados Unidos, a editora foi fundada em 1983 com o objetivo de
“fornecer literatura de alta qualidade sobre a história, a cultura e a política da África e
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da diáspora africana”9. Nesse contexto, segundo o site da Africa World Press, The Color
of Tenderness se encontra na categoria “Women’s Studies” (Estudos de Mulheres), ao
lado de obras como Beyond Tradition: African Women and Cultural Spaces, organizado
por Toyin Falola e S. U. Fwatshak, e Black Women Feminism and Black Liberation:
Which Way?, de Vivian Gordon.
Com relação ao tradutor do livro, Niyi Afolabi é professor nos departamentos de
Espanhol e Português e de Estudos Africanos e da Diáspora Africana na Universidade
do Texas, nos Estados Unidos. Sua pesquisa se insere no campo dos Estudos Culturais
Afro-Brasileiros e tem oferecido importantes contribuições nessa área a partir da
publicação de livros como Afro-Brazilian Mind / A mente afro-brasileira:
Contemporary Cultural and Critical Criticism (2007), Cadernos Negros / Black
Notebooks: Afro-Brazilian Literary Movement (2008) e Cadernos negros / Black
Notebooks: Afro-Brazilian Literature (2008) e Afro-Brazilians: Cultural Production in
a Racial Democracy (2009), além de artigos como “Beyond the Curtains: Unveiling
Afrobrazilian Women Writers” e “The Myth of the Participatory Paradigm: Carnival
and Contradictions in Brazil”, de 2001. Nesse sentido, pode-se observar a relevância do
trabalho de Afolabi na divulgação da literatura e cultura afro-brasileiras no cenário
internacional.
No tocante a questões de recepção de The Color of Tenderness, mesmo que sites
como Amazon e Africa World Press tenham sido consultados, o único comentário
encontrado faz referência ao livro em português e está presente no Goodreads. Postado
por Julie em 18 de novembro de 2013, o relato esclarece que o livro traduzido em inglês
pode ser diferente da edição original lida por ela. Mesmo assim, ela recomenda sua
leitura. Soma-se ao comentário mencionado uma resenha escrita por Andreia Lisboa de
Sousa publicada em 2014 no site da Universidade do Texas, em Austin. Nesse texto,
além de trazer dados biográficos da autora, citar algumas de suas obras literárias e
apresentar um resumo do enredo, Sousa destaca a relevância de Geni Guimarães para as
discussões étnico-raciais referentes ao Brasil, afirmando o seguinte:
9
Texto original: “[...] provide high quality literature on the history, culture, politics of Africa and the
African diáspora” (tradução nossa). Disponível em: <http://africaworldpressbooks.com/about-us/> .
Acesso em: 21 dez. 2016.
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Diante desse cenário e tomando como base o pensamento de Even Zohar (1990)
de que a tradução é produzida com o intuito de atender às expectativas do polo receptor,
pode ser que a publicação de The Color of Tenderness tenha tido como um de seus
objetivos contribuir para a divulgação da literatura e cultura afro-brasileiras no exterior.
Tal ideia se baseia em fatores como: o perfil da editora, voltada para o lançamento de
obras vinculadas à diáspora africana; o perfil do tradutor, cuja pesquisa envolve o
estudo de questões concernentes ao universo afro-brasileiro; a introdução do livro,
intitulada “Magic of Words: Gender, History, and Afro-Memory”, escrita por Niyi
Afolabi, que apresenta a literatura de Geni Guimarães como vinculada ao contexto
cultural afro-brasileiro e de suma importância para as reflexões acerca de gênero,
história e memória africana; o destaque dado ao Prêmio Jabuti concedido à autora por A
cor da ternura, em 1990.
É interessante ressaltar que, de acordo com Toury (1995), os aspectos que se
conservam em uma tradução se relacionam com a sua significância para o contexto de
chegada. No caso analisado, a manutenção das ilustrações de Saritah Barbosa bem como
o tom de oralidade ao longo do livro podem ser citados como exemplos desses aspectos.
Ainda assim, tendo em vista que a tradução é uma reescrita embasada em diversos
fatores sociais, culturais, econômicos, de patronagem, entre outros (BASSNETT;
LEFEVERE, 1990), nota-se que The Color of Tenderness parece ter mais acadêmicos e
10
Texto original: “Niyi Afolabi’s recent English translation of The Color of Tenderness is invaluable.
[…] Having access to books with diverse, complex, and positive images of black characters, such as The
Color of Tenderness in its English version, is an opportunity to establish a fruitful dialogue between
children’s and young adult literature from Brazil and the United States” (tradução nossa). Disponível em:
<http://www.dwrl.utexas.edu/orgs/e3w/volume-14-spring-2014/exploring-the-land-of-oz-young-adult-
and-childrensliterature/andreia-lisboa-de-sousa-on-the-color-of-tenderness-a-cor-daternura>. Acesso em:
14 fev. 2017.
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11
Texto original: “[...] Afro-Brazilian writers such as Miriam Alves, Geni Guimarães, Esmeralda Ribeiro,
and Cuti, are better known and recognized for their works outside of Brazil than within Brazil” (tradução
nossa).
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Luiz Carrascoza, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego. As obras são em sua grande
maioria selecionadas e traduzidas pela própria Paula Anacaona.
Até a realização do Salão Internacional do Livro de Paris, que aconteceu em
março de 2015, pouco se ouvia falar sobre a tradução do romance de Conceição
Evaristo para a língua francesa. Em pesquisas na internet e em outras mídias, tinha-se
acesso apenas à informação de que o Brasil seria o convidado especial do evento e que a
escritora Conceição Evaristo estaria compondo a delegação de autores brasileiros
selecionados para participar do evento representando o nosso país. Porém, durante o
Salão Internacional do Livro de Paris de 2015, o quase anonimato em relação à
publicação do romance de Evaristo em francês deu lugar a matérias e notas sobre a
surpreendente acolhida de sua publicação: “[e]la é um dos nomes brasileiros mais
assediados até agora no salão. Depois de falar numa mesa, no sábado, deu autógrafos,
tirou fotos e conversou com leitores por quase uma hora” (NEVES, 2015, s.n.p.).
A própria escritora Conceição Evaristo afirma que foi surpreendida com o
grande assédio no Salão Internacional do Livro de Paris e com o reconhecimento que
teve por conta de seu romance Ponciá Vicêncio. Em entrevista ao jornal Folha de São
Paulo em 23 de março de 2015, Evaristo afirma que “[seu] caso chama a atenção
porque não é muito comum uma escritora brasileira negra participar de uma feira
internacional” (EVARISTO, apud NEVES, 2015, s.n.p.).
No que diz respeito à recepção de L’histoire de Poncia, ainda não há muito
material disponível sobre a recepção crítica da tradução, porém é possível termos acesso
a diversas matérias publicadas em jornais e em diferentes fontes na internet por conta do
Salão do livro de Paris, ocasião do lançamento do livro, além de algumas resenhas e
avaliações do romance em sites como o “Babelio”12, e o da própria editora
“Anacaona”13, que reserva espaço para que o leitor comum poste sua avaliação. É
importante ressaltar que tais resenhas acabam funcionando como espaços formadores de
opinião, já que um possível leitor que decide fazer uma busca online antes de decidir
pela leitura do livro, facilmente terá acesso a essas avaliações. Nota-se que o leitor que
buscar referências na web sobre L’Histoire de Poncia encontrará, até o momento, uma
12
http://www.babelio.com/livres/Evaristo-Lhistoire-de-Poncia/699424
13
http://www.anacaona.fr/boutique/l_histoire_de_poncia_conceicao_evaristo/
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Texto original: “Un grand merci à Paula et aux éditions Anacaona pour ce voyage au coeur du Brésil et
de la saudade” (tradução nossa). Disponível em: <https://www.babelio.com/livres/Evaristo-Lhistoire-de-
Poncia/699424>. Acesso em: 10 fev. 2017.
15
Texto original: “[u]n magnifique petit roman qui évoque sobrement et avec beaucoup de poésie la
discrimination raciale au Brésil, la migration des paysans vers les villes par la voix vibrante d'une femme
en quête de son identité et de ses racines” (tradução nossa). Disponível em:
<https://www.babelio.com/livres/Evaristo-Lhistoire-de-Poncia/699424>. Acesso em: 10 fev. 2017.
16
Texto original: “Poncià est un livre PASSIONNANT ET MERVEILLEUX…. Le texte mis en préface
est grandissime! Merci” (tradução nossa). Disponível em: <
http://www.anacaona.fr/boutique/l_histoire_de_poncia_conceicao_evaristo/>. Acesso em: 20 fev. 2017.
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Considerações finais
Após a discussão aqui proposta, acreditamos estar evidente que as escritoras Geni
Guimarães e Conceição Evaristo são importantes representantes da literatura afro-
brasileira e que as traduções de suas obras permitem que suas escritas alcem voos ainda
mais altos, dando voz a esse sistema de literatura não canônica em nosso país. Embora o
próprio campo da literatura afro-brasileira seja ainda controverso, como argumentamos,
17
http://www.amazon.fr/L-histoire-Poncia-Conceicao-Evaristo/dp/2918799750
18
Para informações sobre a recepção da tradução para a língua inglesa, consulte o artigo: VALENTE, M.
I.; SILVA, L. M. Narrativas no espelho: algumas considerações sobre a recepção de O olho mais azul, de
Toni Morrison, e Ponciá Vicencio, de Conceição Evaristo. Caderno de Letras (UFPEL), v. 23, p. 109-
138, 2014.
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indo além das barreiras nacionais através de suas traduções para as línguas inglesa e
francesa.
Referências
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NEVES, Lucas. Negra em Salão do Livro causa furor, diz autora brasileira. Em: Folha
de são Paulo. 23 mar. 2015. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/03/1606652-negra-em-salao-do-livro-
causa-furor-diz-autora-brasileira.shtml. Acesso em: 30 mar. 2015
NOSSA escrevivência. Disponível em: http://nossaescrevivencia.blogspot.com.br/,
[s.d.].
O GLOBO online, Categoria Segundo Caderno/Prosa: Conceição Evaristo, Prêmio faz
diferença, publicado em 13 dez. 2016. Disponível em:
http://eventos.oglobo.globo.com/faz-diferenca/2016/vencedores/categoria-segundo-
cadernoprosa-nome-do-vencedor/. Acesso em: 31 jan. 2017.
RIBEIRO, Esmeralda. Apresentação. In: AFOLABI, Niyi; BARBOSA, Márcio;
RIBEIRO, Esmeralda (Orgs.). Cadernos Negros: literatura afro-brasileira
contemporânea / Black Notebooks: Contemporary Afro-Brazilian Literature. Trenton,
NJ: Africa World Press, 2008.p. 197-199.
SOUSA, Andreia Lisboa de. Andreia Lisboa de Sousa on “The color of tenderness” (“A
cor da ternura”). E3W Review of Books, Spring 2014. Disponível em:
<http://www.dwrl.utexas.edu/orgs/e3w/volume-14-spring-2014/exploring-the-land-of-
oz-young-adult-and-childrensliterature/andreia-lisboa-de-sousa-on-the-color-of-
tenderness-a-cor-daternura>. Acesso em: 14 fev. 2017.
TOURY, Gideon. Descriptive Translation Studies and beyond.
Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 1995.
VALENTE, Marcela Iochem. A tradução e a construção de imagens culturais: Ponciá
Vicêncio, de Conceição Evaristo, e sua tradução para o inglês. Rio de Janeiro, 2013.
163p. Tese de Doutorado – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro.
_______; SILVA, Luciana de Mesquita. Narrativas no espelho: algumas considerações
sobre a recepção de O olho mais azul, de Toni Morrison, e Ponciá Vicencio, de
Conceição Evaristo. Caderno de Letras (UFPEL), v. 23, p. 109-138, 2014.
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Marcos Bagno*
Aqui, no entanto, vamos trabalhar numa perspectiva sociolinguística, que levará em conta
exclusivamente o texto verbal, ou seja, a língua em suas propriedades sintático-
*
Professor do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB), colaborador do Programa de Pós-
Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal Fluminense (UFF), autor, entre outros, de
Gramática pedagógica do português brasileiro (2012) e Dicionário crítico de sociolinguística (2017).
Endereço eletrônico: bagno.marcos@gmail.com.
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No caso de um romance gráfico, como o que nos ocupa aqui, é evidente que o texto a ser
analisado não é uma fala autêntica, mas, sim, uma representação da fala, uma tentativa
de recriação artística – com finalidades puramente estéticas e nunca de documentação fiel
– de um universo social específico. Trata-se do que Carsten Sinner designa pelo termo
oralidade fingida, que ele assim define (Sinner, 2011: 224, nota 3):
Entendemos por oralidade fingida o tipo de oralidade criada por um autor num
romance, conto, história em quadrinhos etc., por um roteirista numa obra fílmica ou
radiofônica, pelo tradutor e adaptador na dublagem de filmes etc. Não coincide com
a língua oral real já que não pode ser considerada como simples modelagem da
linguagem coloquial, mas evoca contextos orais mediante a seleção de determinados
traços típicos da oralidade ou de recursos convencionalmente usados para
representar a oralidade na ficção. É costume seguir-se, portanto, uma tradição de
modelagem da oralidade fingida.
Convém ressaltar que o adjetivo fingida, que qualifica oralidade nesse conceito, não
pretende emitir nenhum julgamento pejorativo, como em seus sinônimos habituais
“falsa”, “dissimulada”, “enganadora” etc. Fingida equivale, aqui, a ficcional – são termos
derivados do verbo latino fingĕre:
Como se vê, na evolução do latim para as línguas românicas, o sentido abstrato, que, no
dicionário, aparece somente como sexto conjunto de acepções, tomou a dianteira e se
tornou o mais usual naquelas línguas, como o português/espanhol/catalão fingir, o francês
feindre, o italiano fingere etc. O particípio passado desse verbo latino é fictus, e é dessa
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raiz fict- que surgiram, em português, ficção, ficcional, fictício etc. Da mesma família
morfológica é a raiz fig-, que comparece em figura e toda a sua vasta derivação.
Decerto, foi com a consciência do significado mais remoto de fingir que Sinner associou
oralidade fingida a “modelagem”, termo que escolhemos para traduzir plasmación,
empregado no texto-fonte, escrito em espanhol.
A oralidade fingida pode não ser – aliás, não tem como ser – uma representação fiel das
práticas reais de uso da fala em interações sociais autênticas. No entanto, para cumprir as
chamadas condições de felicidade† da teoria dos atos de fala, ela precisa atingir o mais
alto grau possível de verossimilhança. Por isso, neste trabalho, vamos associar a tradução
da oralidade fingida, consubstanciada no texto de partida, à oralidade (in)verossímil,
plasmada no texto de chegada. O grau de (in)verossimilhança da oralidade representada
na tradução será medido com base nos conhecimentos acumulados pela pesquisa
sociolinguística que, há mais de quarenta anos, vem promovendo uma descrição cada vez
mais acurada e precisa do português brasileiro (doravante PB) em suas mais diversas
variedades (regionais, sociais, etárias, profissionais etc.). Esses conhecimentos advindos
da pesquisa empírica serão contrastados com a representação de norma que transparece
no texto traduzido.
1. Aya de Yopougon
O objeto de nossa análise serão os dois volumes de Aya de Yopougon, referidos a seguir
como AY-1 e AY-2, publicados no Brasil por L&PM Editores, respectivamente em 2011
e 2012.
Capas das edições francesas que Capas das edições brasileiras que
utilizamos utilizamos
†
Na teoria dos atos de fala de John Austin (1962), as condições de felcidade são os critérios que precisam
ser satisfeitos para que um enunciado performativo seja bem-sucedido. Atos de fala como promessa,
ameaça, solicitação etc. precisam estar formatados adequadamente, em termos linguísticos e
extralinguísticos, para que possam ser corretamente interpretados como tais pelo interlocutor a quem são
dirigidos.
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A heroína-epônima, Aya, é uma jovem de 19 anos que vive na casa dos pais, com um
irmão pré-adolescente, Fanfana, e uma irmã pequena, que está aprendendo a falar, Akissi.
Também mora na casa Félicité, uma jovem de 22 anos, vinda do interior, e que serve de
babá para as crianças menores. A narrativa é conduzida em primeira pessoa por Aya, o
que levaria a esperar que ela somente relatasse os eventos e situações que testemunhou
pessoalmente, mas não é o caso: o foco narrativo se desloca para vários outros ambientes
em que Aya não está presente e envolve diversos personagens alheios à família dela e a
seu círculo de amizades.
As aventuras são vividas por Aya e por duas de suas melhores amigas, Bintou e Adjoua,
da mesma faixa de idade, bem como pelos núcleos familiares das três jovens, todos
residentes em Yopougon. Ao contrário de Bintou e Adjoua, que não dão importância aos
estudos e que só vislumbram seu futuro como mulheres casadas vivendo à sombra dos
maridos, Aya tem pretensões de se tornar médica e faz todos os esforços para ter sucesso
na escola. As três jovens são muito bonitas e atraem o interesse dos homens de todas as
idades. Esse, por sinal, é um tema recorrente no romance gráfico: o verdadeiro assédio
que as jovens sofrem na rua da parte não só de homens de sua idade, como também de
homens mais velhos, casados e pais de família. Bintou e Adjoua já experimentam uma
vida sexual ativa, enquanto Aya não menciona nenhum relacionamento de qualquer tipo
em que esteja envolvida, mais preocupada com os estudos, em cuidar da família e ajudar
as amigas a se livrarem das sucessivas confusões em que se metem.
‡
Aya de Yopougon também recebeu uma versão cinematográfica, realizada pelos próprios autores (M.
Abouet e C. Oubrerie), lançada em 2013 em DVD e premiada com o César de melhor filme de animação
de 2012.
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No que diz respeito à oralidade fingida presente em Aya de Yopougon, é possível dizer
que Marguerite Abouet foi bem-sucedida na produção de um texto de fácil acesso para
os leitores nativos de língua francesa e, ao mesmo tempo, temperado com pitadas de
vocabulário marfinense, vocabulário que é elucidado num glossário no final de cada
fascículo na edição francesa e que, na tradução brasileira, mereceu notas de rodapé a cada
ocorrência das palavras. O principal recurso da autora para caracterizar suas personagens
como habitantes de Abidjan é o emprego das interjeições dêh e kêh, que aparecem
praticamente a cada página e na fala de quase todas as pessoas, juntamente com ô. Essas
interjeições foram reproduzidas, inclusive em sua grafia, na tradução brasileira, uma
opção que, a nosso ver, não se justifica: para um leitor de língua francesa, dêh e kêh
podem causar uma dose de “estranhamento” e “cor local”, desejável para que o texto se
firme em sua recepção como produzido fora da França, num país francófono da África,
enquanto que para leitores brasileiros o uso dessas interjeições não tem como obter o
mesmo efeito e poderiam ter sido substituídas por interjeições características brasileiras.
No que diz respeito à competência linguística das personagens, Marguerite Abouet tenta
mostrar as diferenças que existem, no domínio do francês, da parte das diferentes camadas
sociais de Abidjan. Embora seja a língua oficial do país, o francês não é a língua materna
da maioria dos marfinenses, sobretudo os que vivem longe dos grandes centros urbanos.
Segundo dados da OIF (Organisation internationale de la francophonie)§, pouco mais de
um terço da população total do país (21,5 milhões em 2010) têm domínio pleno da língua
francesa (34%, ou seja, 7,2 milhões). Em Abidjan, porém, essa porcentagem sobe para
69% da população da cidade (7,35 milhões em 2014). Existem mais de cem línguas
diferentes faladas na Costa do Marfim, das quais as mais utilizadas são o diúla, o senufo,
o baulê e o betê. A taxa de analfabetismo do país é de 56,8%, mas ela cai para 30% em
Abidjan. Uma vez que o francês é língua oficial, mas não língua materna, sua aquisição
depende em ampla medida da escolarização formal. Segundo dados da Unesco** (2015),
a alfabetização na Costa do Marfim alcançava somente 43,2% da população maior de 15
anos de idade, com uma diferença gritante entre homens e mulheres: desses alfabetizados,
67,3% eram do sexo masculino contra 32,7% do feminino. É fácil supor que em 1978,
época em que se situa a história de Aya de Yopougon, essas taxas e essas disparidades
deviam ser ainda mais dramáticas.
Em alguns momentos da narrativa, o domínio do francês aparece como elemento que põe
em confronto as personagens. Aya, por exemplo, que tem apreço pelos estudos, exibe
uma excelente competência da língua, enquanto suas amigas Bintou e Adjoua, ao
contrário de Aya, só ambicionam seguir o que chamam de série C: “coiffure, couture et
chasse au mari” (“Série C: cabelo, costura e caça ao marido”, na tradução brasileira).
Elas acusam Aya de usar esse conhecimento para humilhá-las ou dificultar o
entendimento do que ela pretende dizer, como se vê abaixo (AY-1, p. 49)††:
§
http://www.francophonie.org/Cote-d-Ivoire-100.html, acesso em 23 de janeiro de 2017.
**
http://uis.unesco.org/en/country/ci, acesso em 23 de janeiro de 2017.
††
A numeração das páginas é idêntica nas publicações francesa e na brasileira, de modo que as indicações
valem para ambas.
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O domínio menos proficiente do francês aparece sobretudo nas falas de Félicité, uma
jovem vinda do interior que trabalha de babá na casa de Aya, e de Hervé, primo
adolescente de Bintou que mora na casa dela. Félicité frequenta a escola, ao passo que
Hervé é totalmente iletrado. Numa das falas de Félicité aparece a forma grafada kekun,
tentativa de reproduzir uma pronúncia incorreta do pronome indefinido quelqu’un
(“alguém”) (AY-1, p. 51). Esse detalhe passou despercebido na tradução brasileira, em
que a palavra kekun se repete, como se fosse o nome de uma pessoa ainda desconhecida
do leitor que, no final, é simplesmente Adjoua, uma das personagens principais da
história.
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Quanto a Hervé, sua paixão pouco dissimulada por Aya acaba por levá-lo a acatar as
sugestões que ela lhe faz de procurar um emprego: ele se torna mecânico numa oficina
de conserto de automóveis. Seu trabalho ali é tão bom que o proprietário, velho e doente,
decide fazer de Hervé seu sócio. Para isso, no entanto, Hervé terá de aprender papier de
blancs (“papel de brancos”), isto é, a ler e a escrever. Ele recorre então a Aya, que aceita
alfabetizá-lo.
Para um bom entendimento do que se segue, é fundamental ter em mente uma distinção
terminológica referente ao conceito de norma linguística. Os estudiosos da dinâmica
social da linguagem se esforçam há bom tempo por delimitar o que é do domínio do
normativo e o que é do domínio do normal. Esse esforço já estava presente, por exemplo,
num artigo hoje clássico de Alain Rey, publicado em 1972:
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A partir dos anos 1990, linguistas brasileiros também começaram a se empenhar nessa
delimitação terminológica (cf. Lucchesi, 1994; Mattos e Silva, 1995; Britto, 1997; Bagno,
2003; Faraco, 2008), considerada por eles incontornável para a adequada análise das
dinâmicas linguísticas da sociedade brasileira e, principalmente, para um planejamento
realista do ensino de língua na escola. Para isso, fizeram o termo norma se acompanhar
de dois qualificativos diferentes:
Não se pode confundir, portanto, norma-padrão e norma culta, embora essa confusão
reine no discurso do senso comum sobre a língua e, infelizmente, também no de pessoas
que, vinculadas ao campo da língua e seu ensino, não buscam fundamentação teórica mais
atualizada no trabalho dos pesquisadores que se dedicam a essas questões.
Por ser um construto sociocultural e nunca uma variedade linguística real, a norma-padrão
é reconhecida pelos falantes, mas nunca totalmente conhecida por eles, até porque mesmo
entre os gramáticos normativistas as prescrições apresentam graus variados de maior ou
menor tolerância. O caráter eminentemente anacrônico do padrão faz que ele seja antes
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Com isso, entre a norma-padrão e a norma culta surge uma zona de tensão na qual todos
os falantes, e mais intensamente os falantes urbanos letrados, se veem pressionados por
duas forças opostas. O resultado é que, desconhecendo em sua integralidade o aparato
normativo e, ao mesmo tempo, sujeitos à força inelutável de sua intuição linguística, esses
falantes acabam por criar, cada um deles, uma representação da norma que é, sempre,
um compósito híbrido, em que o normal e o normativo se interpenetram e se mesclam.
NORMA-PADRÃO
representação da norma
NORMA CULTA
Essa norma híbrida, nem inteiramente normal nem inteiramente normativa, aparece nos
seguintes exemplos, entre outros, da tradução brasileira de Aya de Yopougon:
(1) “É que, mamãe, tem uma garota, aí, dizendo que a engravidei” (AY-1, p. 69) →
Trata-se de uma fala de Moussa, um rapaz de seus 19 anos, filho de um homem rico,
que leva uma vida de playboy, sem preocupação com estudos ou trabalho. O uso do
verbo ter no lugar de haver é censurado pela norma-padrão prescritiva tradicional, e
seu emprego nessa fala de Moussa poderia servir para caracterizar o modo de falar
de um jovem ao se dirigir à mãe. No entanto, o uso do clítico a em “a engravidei”
configura essa fala como extremamente artificial, pois nenhum jovem brasileiro –
aliás, como se verá adiante, nenhum brasileiro – empregaria esse pronome em tal
situação. Além disso, a ausência do pronome-sujeito eu também descaracteriza os
usos mais autênticos do PB, uma língua em que a realização fonológica do sujeito já
se tornou praticamente obrigatória. Mais verossímil, e sem hibridismos, seria algo
como: “É que, mamãe, tem uma garota, aí, dizendo que eu engravidei ela”.
(2) “Mas você o está alimentando bem! Veja como está gordo!” (AY-2, p. 73) → Quem
fala aqui é Mamadou, um rapaz muito bonito, de família pobre, namorador mas nada
disposto a compromissos, sem trabalho fixo. Ele se dirige a Adjoua, a jovem que deu
à luz Bobby, filho de ambos, fruto de uma relação casual. Aqui, como no exemplo
anterior, o emprego do clítico o torna inverossímil a fala de um jovem com essas
características sociais. E, também como em (1), o apagamento do sujeito impede a
modelagem de uma fala mais próxima da realidade dos usos. Outro aspecto é o
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emprego de está que, como se sabe, no registro espontâneo sempre se realiza como
tá. Essa fala se aproximaria mais da realidade dos usos se fosse, por exemplo: “Mas
você tá alimentando ele bem! Veja como ele tá gordo!”.
(3) “Eu sei, mas é só o tempo de a situação se restabelecer. Por que você está tão
irritado?” (AY-2, p. 91) → É uma fala de Fanta, mãe de Aya, dirigida ao marido,
Ignace. A suposta obrigação de não aglutinar a preposição de e o artigo definido
diante de verbos no infinitivo é contestada até mesmo por um gramático de perfil
conservador como Evanildo Bechara (1999: 536). Já em 1985, porém, Cunha e Cintra
(1985: 203) registravam em seu compêndio que “é aconselhável que os dois
elementos fiquem separados, embora não faltem exemplos de sua aglutinação na
prática dos melhores escritores”. Representar a fala íntima de uma mulher ao marido
com a não aglutinação é submeter-se injustificadamente a uma prescrição que é
relativizada até mesmo pelos gramáticos normativistas.
(4) “Por favor, não o deixe fazer isso!” / “Espere eu ligar.” (AY-1, 61) → São duas falas
do mesmo personagem, Moussa, dirigidas à mesma interlocutora, Adjoua, num único
diálogo. Quando se emprega um verbo causativo-sensitivo (mandar, fazer, sentir,
deixar, ouvir, ver etc.) seguido de um infinitivo ou de um gerúndio, a norma-padrão
prescreve o uso de pronomes no caso oblíquo: mande-o entrar; deixa-me sair; vi-a
bebendo etc. No entanto, no PB, e há muito tempo, é muitíssimo mais usual que
apareçam os pronomes no caso reto: mande ele entrar; deixa eu sair; vi ela bebendo
etc. A tradução brasileira segue a norma-padrão na primeira ocorrência – “não o
deixe fazer isso!” –, mas opta por uma forma não normativa na segunda – “espere
eu ligar”. Essa segunda ocorrência contraria todas as regras prescritivas: o verbo
esperar não faz parte da categoria dos causativos-sensitivos clássicos; para empregá-
lo “corretamente” seria preciso dizer: “espere que eu ligue”. Ou seja, normas híbridas
convivendo na mesma página.
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TRADUTOR/A [norma1]
PREPARADOR/A [norma2]
REVISOR/A [norma3]
DIAGRAMADOR/A [norma4]
Embora a pessoa cujo nome figura como tradutora de uma obra publicada seja
considerada, por esse simples fato, como responsável única e última pelo texto traduzido,
é injusto que somente ela seja alvo das eventuais críticas positivas ou negativas que o
trabalho venha a receber: a interferência dos outros agentes normatizadores ao longo da
cadeia de produção também responde em grande medida pelo produto final que chega a
público.
A não ser em raras situações, em que o tradutor goza de algum prestígio pessoal (como
escritor, pesquisador ou jornalista de renome), a prática mais comum, nas casas editoriais,
é interferir no texto entregue pelo tradutor sem nenhum aviso prévio nem pedido de
autorização. Não é nada infrequente que um tradutor não reconheça seu próprio trabalho
quando vai ler a obra publicada ‡‡ . Por esse motivo é que sempre nos referiremos à
tradução brasileira de Aya de Yopougon, usando esse rótulo coletivo para abarcar todos
os agentes normatizadores responsáveis pelo texto final.
Conforme dito acima, a oralidade fingida plasmada por Marguerite Abouet em seu
romance gráfico pode ser considerada exitosa também no que diz respeito à sua
verossimilhança. Além de empregar interjeições e vocabulário característicos do francês
falado em Abidjan, a autora também se vale de formas próprias do francês informal, como
‡‡
Como tradutor de mais de uma centena de livros publicados, posso dar testemunho pessoal dessa situação,
em que muitas de minhas traduções, quando publicadas, exibiram opções sintáticas ou lexicais que jamais
me ocorreriam; isso para não mencionar os erros puros e simples introduzidos à minha revelia em textos
creditados a mim como tradutor. Tratei disso em Bagno (2009).
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y a (por il y a, “há”) ou t’es e t’as (por tu es, “você é”, e tu as, “você tem”), e sinaliza o
conhecimento menos proficiente da língua na fala de personagens com pouca ou nenhuma
instrução formal.
O efeito obtido na obra-fonte, porém, se perdeu quase por completo na tradução brasileira,
na qual se modelou uma oralidade fingida inverossímil. Isso se deve, primordialmente, a
uma subserviência irrefletida à norma-padrão tradicional, numa atitude que sacrifica a
naturalidade e a espontaneidade das falas em favor da obediência a convenções
gramaticais que, postas na boca das personagens do romance gráfico, soam de uma
artificialidade a toda prova.
São muitos os fatos linguísticos que poderíamos elencar para demonstrar essa
inverossimilhança. Já mencionamos acima a presença exclusiva, no texto, das formas
plenas do verbo estar, quando se sabe que, no colóquio informal brasileiro (e português
também, diga-se de passagem), o que realmente se diz e se ouve são formas como tô, tá,
tão, tava, tive etc. Destaque-se também o uso do pronome oblíquo nos, de uso raríssimo
na fala espontânea, junto com seu alomorfe conosco. Aliás, o pronome a gente, que
caracteriza o PB atual em todas as suas variedades como o mais empregado para expressar
a primeira pessoal do plural, tem uma única ocorrência (AY-2, 70), enquanto em todo o
resto dos dois volumes se dá o emprego exclusivo de nós e sua morfologia verbal. No
entanto, “com base na produção científica dos últimos 30 anos, é possível afirmar que o
processo de substituição de nós por a gente no PB se encontra em avançado estágio, na
língua oral”, de modo que “tal fenômeno é amplamente caracterizado como mudança
linguística” (Vianna; Lopes, 2015: 130). Uma concessão, mínima porém, à oralidade
autêntica é o emprego, na tradução brasileira, da forma pra em lugar de para – são, no
entanto, apenas dez ocorrências de pra nos dois volumes, contra várias dezenas de para.
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12 de dele e flexões. Isso gera diálogos de probabilidade nula no PB autêntico, como este
(AY-1, 10):
A fala de Mamadou – “Sim, sou seu primo” – é inverossímil porque, como sabe qualquer
falante de PB, a resposta mais óbvia seria: “Sim, sou primo dela”.
Outra situação em que o uso de seu em lugar de dele pode gerar ambiguidade de
interpretação é:
A mãe de Moussa está furiosa porque o filho engravidou uma moça pobre, a quem ela
qualifica de plebeia. Sem saber o que o termo significa, Moussa diz: “Seu emprego não
é esse, mamãe!”. Da forma como está publicado, o leitor pode supor que Moussa está
dizendo que o emprego de sua mãe não é esse, ou seja, que sua mãe não é uma plebeia.
Se a opção tivesse sido por “o emprego dela não é esse, mamãe”, o humor se preservaria
e não haveria risco de ambiguidade de leitura. Aliás, melhor do que emprego seria sem
dúvida profissão.
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A jovem Bintou foi vista pelo pai a dançar num maquis com um homem casado, ninguém
menos do que o pai de Adjoua. Furioso, o pai de Bintou mandou que Hervé, seu primo,
mantivesse cerrada vigilância sobre ela. É disso que falam Aya e Adjoua. No entanto, o
uso de “seu velho” em lugar de “o velho dela” corre o risco de gerar uma leitura
equivocada, até porque, em seguida, Aya diz: “ela estava com o seu pai, Adjoua”, isto é,
com o pai de Adjoua. No entanto, com o uso indiferenciado de seu para expressar tanto o
que é dela quanto o que é de você, a confusão está sempre à espreita. E quando Adjoua
se refere a “suas histórias”, é justo que o leitor fique na dúvida: histórias de quem? De
Bintou? Do pai de Adjoua? Da mãe de Adjoua?
O emprego de seu em lugar dele não se sustenta num texto que pretende ser a modelagem
de uma oralidade fingida, a menos que se entenda fingida aqui em seu sentido de “falsa”,
“mentirosa” etc.
Segundo pesquisa de Poplack (2011), 99% das expressões do futuro em português falado
se realizam por meio da perífrase ir + infinitivo: eu vou viajar; ele vai dormir; elas vão
trabalhar etc. A morfologia do futuro simples do indicativo – cantarei; dormirá;
chegaremos etc. – se restringe aos gêneros escritos mais monitorados ou ao discurso oral
com elevado grau de formalidade.
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No que diz respeito a esse tempo verbal na tradução brasileira de Aya de Yopougon,
parece ter havido uma mudança de opção normativa entre a produção do primeiro e a do
segundo volume. No primeiro, com exceção de 4 ocorrências da foram perifrástica, todas
as demais aparecem no futuro simples, como no exemplo abaixo (AY-1, p. 26):
É uma cena de violência doméstica, em que o pai de Bintou bate na filha por tê-la
encontrado num maquis dançando com um homem mais velho, casado (o pai de Adjoua).
A mãe intervém em defesa da filha. Nada sugere um contexto de interação formal, de
modo que o emprego predominante do futuro simples torna essa oralidade fingida
altamente inverossímil.
No segundo volume, no entanto, é o oposto que se dá: são 64 futuros que se fazem pela
construção perifrástica, contra apenas dois usos do futuro simples. Essa mudança
contribui, evidentemente, para conferir maior autenticidade ao discurso falado.
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Isso não impediu, porém, que a tradução brasileira de Aya de Yopougon optasse 9 vezes
pelo uso de haver contra 6 pelo uso de ter. Tal como nos demais casos, o verbo haver
ocorre na fala de personagens de todas as classes sociais e graus de escolarização e
independentemente da maior formalidade da interação. Por exemplo, ao comentar sobre
o comportamento estranho da amiga Bintou, Adjoua diz a Aya: “Ela anda estranha
ultimamente. O que ela tem?”. Ao que Aya responde: “Não sei, ô. Deve haver um cara
por trás disso tudo”. Uma jovem brasileira como Aya, em conversa íntima com uma
amiga, muito provavelmente diria “deve ter um cara por trás disso tudo”. O uso
simultâneo de haver e de cara explicita, mais uma vez, o hibridismo de normas.
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Esses e outros resultados da pesquisa sociolinguística nos permitem afirmar sem risco de
equívoco que os pronomes o(s)/a(s) não fazem parte da língua materna da população
brasileira em geral, isto é, eles não são apreendidos pelas crianças em seu processo de
aquisição natural da língua junto a seus familiares e a sua comunidade expandida: de fato,
a aquisição desses pronomes depende integralmente do letramento explícito, de modo que
só entram em contato com eles as pessoas que frequentam a escola e se apropriam da
leitura e da escrita. Isso se comprova também na investigação empírica: na fala de
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analfabetos plenos, os clíticos simplesmente nunca ocorrem (Omena, 1978; Pará, 1997).
Desse modo, esses pronomes são marca registrada da fala mais monitorada e,
evidentemente e mais ainda, da escrita de gêneros mais monitorados. Na fala espontânea,
íntima, cotidiana é praticamente nula a probabilidade de ocorrerem, mesmo entre falantes
altamente letrados.
O não emprego dos clíticos e a opção predominante pelo objeto nulo – comprei o livro,
mas não [ø] trouxe – é um fenômeno morfossintático que diferencia radicalmente o
português brasileiro, não só do português europeu, como também de todo o conjunto
maior das línguas românicas. É uma das mudanças linguísticas mais extraordinárias
ocorridas no PB e, por isso mesmo, alvo de intensa reflexão teórica da parte de linguistas
brasileiros e estrangeiros.
Diante disso, optar pelo uso praticamente exclusivo dos clíticos para construir uma
representação da língua falada – como se dá na tradução brasileira dos romances gráficos
que nos ocupam aqui – é uma estratégia fadada desde o início à inverossimilhança mais
flagrante, principalmente quando esses clíticos aparecem nas falas de personagens com
pouca ou nenhuma instrução formal, como é o caso da jovem Félicité, babá dos irmãos
de Aya, que se exprime, no texto-fonte, num francês que poderíamos chamar de truncado,
mas que, na tradução brasileira, diz coisas como: “Bobby chora sem parar. Está com
fome, ô. Aya disse para você alimentá-lo” (AY-2, 31).
Outro exemplo de oralidade fingida inverossímil é o que aparece na fala de uma mulher
que, na praça do mercado, oferece seus serviços de curandeira tradicional. Quando
Adjoua, sabendo-se grávida e desejando abortar, lhe diz que procura um remédio para
eliminar a gravidez, a mulher responde (AY-1, 54): “Hé! Ça là, y a pas ce médicament,
ma fille”. A isso Adjoua retruca que lhe disseram que a mulher curava tudo, ao que esta
responde: “Mais, ma fille, ça là, c’est pas maladie”. Para moldar sua oralidade fingida,
a autora optou por formas como y a pas em lugar de il n’y a pas (“não há”) e c’est pas
maladie em lugar de ce n’est pas une maladie (“não é uma doença”). Ora, na fala dessa
mesma mulher, na tradução brasileira, encontramos (AY-1, 55): “Bom... como você corre
o risco de morrer, vou ajudá-la”. Conforme observamos mais acima, a correferência mais
habitual no PB é você → te (“vou te ajudar”) ou, em algumas variedades regionais, você
→ lhe (“vou lhe ajudar”). A opção por ajudá-la, na fala de uma mulher do povo que
exerce ofício de curandeira no mercado, resulta, mais uma vez, em patente
inverossimilhança.
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Conclusão
A página que reproduzimos acima (AY-2, 14) demonstra bem, esperamos, o que temos
classificado até aqui de oralidade fingida inverossímil. A cena reúne as três amigas –
Aya, Bintou e Adjoua – em conversa sobre temas muito pessoais, um tipo de interação
que favorece o emprego das variantes linguísticas mais habituais na fala, menos sujeitas
ao monitoramento estilístico. No entanto, diversas opções de tradução conferem aos
diálogos, devido à subserviência prescritiva e ao hibridismo de normas, um caráter
artificial, já que três jovens brasileiras de idade e condição social semelhantes decerto
nunca se expressariam desse modo numa interação autêntica:
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O caso da tradução brasileira de Aya de Yopougon, no entanto, está muito longe de ser
isolado. Já criticamos em outra oportunidade (Bagno, 2009), e até em tom de desabafo, a
barreira que muitos profissionais do texto – editores, tradutores, preparadores, revisores
etc. – levantam contra as características próprias do português brasileiro, tratando ainda
como “erros a evitar” opções morfossintáticas presentes há quase dois séculos na nossa
melhor literatura (desde o Romantismo e, mais ainda, a partir do Modernismo), muitas
delas abonadas por gramáticos e dicionaristas conceituados. É uma tentativa desesperada
de ser “mais realista do que o rei” e preservar a todo custo um padrão linguístico muito
distante da realidade autêntica dos usos, incluindo os usos escritos mais monitorados.
Esse padrão irreal e irracional é o que Faraco (2008) rotula, ironicamente, de norma curta,
uma representação distorcida da verdadeira norma culta brasileira contemporânea,
representação guiada pela ideologia normativa intolerante que tem caracterizado a cultura
linguística brasileira desde sempre. É, nas palavras do autor,
A norma curta se torna ainda menos aceitável quando aparece num texto, como a
tradução de Aya de Yopougon, que se inscreve num gênero específico, o romance gráfico,
cuja materialidade linguística é toda ela moldada na forma de diálogos, isto é, de fala, de
interações orais. O valor literário do romance gráfico está precisamente na sua busca por
produzir uma oralidade fingida que, voltamos a sublinhar, não é “falsa” nem “mentirosa”,
mas fictícia, no sentido mais positivo do termo: inventiva, criativa, artística.
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uma norma curta que não corresponde sequer aos usos cultos mais monitorados dos dias
de hoje.
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ABSTRACT: This article seeks to draw a parallel between the concepts of Negritude,
developed by Césaire, and of Antilhanité, by Édouard Glissant, as a way for the
development of the Crioliness of Barnabé, Chamoiseau and Confiant as an engaging
movement in the search for the Antillean identity described in the book Éloge de la
créolité (1993). In this way, we present the reasons why Negritude not only opened the
route for other movements, but gave place, voice and critical sense to these movements
in the social and literary sphere. Finally, we present the translation as a mestizo practice.
Introdução
Aimé Césaire juntamente com Léon-Gontron Damas e Léopold Sédar Senghor
são considerados os fundadores do movimento da Negritude, eles se enquadram como
alguns dos primeiros intelectuais que buscaram uma reflexão sobre a questão da
identidade antilhana. Assim, o termo “Negritude” aparece como conceito em 1933 na
1
Este artigo faz parte da dissertação de mestrado Éloge de la créolité: para uma tradução crioula, de
Dyhorrani da Silva Beira, defendida em março de 2017, junto ao Programa de Pós-graduação em Estudos
da Tradução da Universidade de Brasília, orientada pela professora Alice Maria de Araújo Ferreira.
2
Dyhorrani Beira é Graduada em Letras-Tradução Francês e Mestre em Estudos da Tradução pela mesma
Universidade. Atua como professora substituta no Departamento de Letras e Tradução (LET) da
Universidade de Brasília – UnB.
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publicação do jornal L’etudiant noir editado pelo mesmo trio de autores. Enquanto
movimento, a Negritude reivindica a manutenção da cultura negra africana, visando a
afirmar a própria identidade, à manutenção da luta contra o colonialismo europeu, o
eurocentrismo, à valorização do negro e das contribuições históricas do ponto de vista
cultural, condição que foi aos poucos depreciada pelos valores ocidentais. De maneira
geral, a ideia dos jovens escritores era promover soluções para os povos negros
explorados e de, certo modo, formular uma nova visão de mundo que concebesse e
valorasse a história dos negros e as suas origens africanas, rejeitando a ideia de exploração
de uma raça pela outra, deflagrada em parte pela imposição cultural.
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1. Negritude e Antilhanidade
René Depestre (1980) afirma que o conceito de Negritude, na medida em que era
entendido como ideologia e até mesmo como ontologia, passou a ter vários sentidos
3
«La Négritude au premier degré peut se définir d’abord comme prise de conscience de la différence,
comme mémoire, comme fidélité et comme solidarité ».
4
Avec Édouard Glissant nous refusâmes de nous enfermer dans la Négritude, épelant l'Antillanité qui
relevait plus de la vision que du concept. Le projet n'était pas seulement d'abandonner les hypnoses d'Europe
et d'Afrique. Il fallait aussi garder en éveil la claire conscience des apports de l'une et de l'autre : en leurs
spécificités, leurs dosages, leurs équilibres, sans rien oblitérer ni oublier des autres sources, à elles mêlées.
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Said (1995) reconhece o período da Negritude como uma etapa necessária. Ele a
chama de “nativista”, ressaltando que o nativismo “reforça a distinção mesmo quando
valoriza o lado mais fraco ou servil” (SAID, 1995, p. 288). O nativismo também é
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Para Said não basta apenas passar por esse nativismo, mas é preciso também superá-
lo. Suplantá-lo não significa abandonar o passado histórico, mas utilizá-lo para que se
possa prosseguir evoluindo nesse processo de construção identitária e também pensar a
identidade local como algo que não esgota as suas múltiplas construções. Dessa maneira,
Said elenca três caminhos possíveis para tentar combater esse nativismo:
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encontrava presa, rodeada pelo mar. Ele acreditava que a identidade do povo antilhano
apresenta características que não se resumem às raízes africanas e que não se tratava de
negar a funcionalidade e a importância do movimento negro, como vimos acima, mas de
entender a negritude como um processo, como uma fase necessária para chegar-se
realmente ao cerne do problema antilhano, o reconhecimento da Antilhanidade. Tentando
ir além, o conceito busca ser mais do que um engajamento político e cultural. Em 1981,
é publicado o Discours antillais, ainda sem tradução no Brasil, em que podemos perceber
a luta por um fazer poético conjunto com todas as outras demandas sociais que ele
acreditava serem necessárias para o povo da Martinica. A identidade surge, então, de uma
realidade questionada e que precisa rever seus ideais mesmo que utópicos.
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entre as sociedades que foram colonizadas e buscaram imitar seus colonos, não só
contribuiu para a superação do nativismo, mas também do mimetismo, principalmente do
relacionado aos valores europeus. Apesar de, nessa perspectiva, a Negritude ser
considerada incompleta, ela desempenhou e ainda desempenha um importantíssimo papel
na conquista dos valores africanos e antilhanos e dos povos negros do mundo. Sob esse
prisma, ela é vista apenas como um movimento incompleto. Entretanto, seu papel
desencadeou uma série de acontecimentos positivos não só nas Antilhas, mas também em
todo o mundo.
3. Crioulidade
5
« Monde diffracté mais recomposé, un maelström de signifiés dans un seul signifiant : une totalité »
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segundo Figueiredo (1998), uma “visão interior” da Antilhanidade proposta por Glissant
em Le discours antillais (1981), ou seja, a autora sugere que se a Antilhanidade é uma
concepção geopolítica e a Crioulidade visa a acentuar o aspecto mais cultural e mais
antropológico. A Crioulidade, nesse sentido, visaria a valorizar a cultura tradicional
crioula através dos contos, dos ditos populares, de provérbios. Essa continuidade daria-
se pela manutenção da língua crioula composta por tantos outros elementos heterogêneos.
Ela instituiu-se como um movimento teórico-literário. Engendrada a partir das ideias de
Antilhanidade e Crioulização de Édouard Glissant, a Crioulidade teve o mérito de
formular novas maneiras de observar e vivenciar a identidade caribenha:
Durante três séculos, as ilhas e as áreas do continente que este fenômeno afetou
foram verdadeiras forjas de uma humanidade nova, onde línguas, raças,
religiões, costumes, maneiras de ser de todas as faces do mundo, encontraram-
se brutalmente desterritorializadas, transplantadas em um contexto onde
tiveram que reinventar a vida. Nossa crioulidade nasceu, portanto, desse
formidável "migan" que tratou rapidamente de reduzir a seu único aspecto
linguístico ou a um só dos termos de sua composição. Nossa personalidade
cultural carrega ao mesmo tempo os estigmas desse universo e os testemunhos
de sua negação. Nós nos forjamos na aceitação e na recusa, portanto no
questionamento permanente, em total familiaridade com as ambiguidades mais
complexas, fora de todas as reduções, de toda pureza, de todo empobrecimento.
Nossa História é uma trança de histórias (BERNABE; CHAMOISEAU;
CONFIANT, 1993, p. 26, tradução nossa)6.
6
La Créolité est l’agrégat interactionnel ou transactionnel, des éléments culturels caraïbes, européens,
africains, asiatiques, et levantins, que le joug de l’Histoire a réunis sur le même sol. Pendant trois siècles,
les îles et les pans de continent que ce phénomène a affecté, ont été de véritables forgeries d’une humanité
nouvelle, celles où langues, races, religions, coutumes, manières d’être de toutes les faces du monde, se
trouvèrent brutalement déterritorialisées, transplantées dans un environnement où elles durent réinventer la
vie. Notre Créolité est donc née de ce formidable « migan » que l’on a eu trop vite fait de réduire à son seul
aspect linguistique ou à un seul des termes de sa composition. Notre personnalité culturelle porte tout à la
fois les stigmates de cet univers et les témoignages de sa négation. Nous sommes forgés dans l’acceptation
et le refus, donc dans le questionnement permanent, en toute familiarité avec les ambiguïtés les plus
complexes, hors de toutes réductions, de toute pureté, de tout appauvrissement. Notre Histoire est une tresse
d’histoires (BERNABE ; CHAMOISEAU ; CONFIANT, 1993, p. 26).
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tradução nossa)7 e para que isso ocorra é necessário considerar todos os componentes
daquela cultura, até mesmo aqueles que contribuíram de forma impositiva.
O conceito de Crioulidade, como foi dito anteriormente, não trata de um movimento
essencialmente literário, mas de um conceito relativamente ontológico, que busca
explicar o mundo antilhano através de uma concepção mestiça. O movimento rejeita a
unicidade, o universal e o puro. Propõe a diversidade cultural e literária e não nega os
conceitos de Antilhanidade e Negritude que o antecederam. A Crioulidade defende como
cerne o uso de uma língua mestiça, denominada crioulo para que, através dela, os valores
antilhanos sejam reconhecidos. Não se trata apenas de irromper a modernidade através
do crioulo, ou do reconhecimento de que, na verdade toda língua é crioula, mas de partir
do pressuposto que toda língua é política e carrega consigo todo o peso de uma sociedade
que busca ser reconhecida através dos seus valores culturais.
4. Identidade
7
La conscience non totalitaire d’une diversité préservée (BERNABE ; CHAMOISEAU ; CONFIANT,
1993, p.28)
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A relação identitária que se estabelece dentro desse manifesto é, como afirma Glissant
(2005), a necessidade única do mundo. Estar em relação, nesse sentido, é poder
compreender todo o potencial que cada um apresenta e, ao mesmo tempo, reconhecer o
outro enquanto outro sem que ele me usurpe e vice-versa. Desse modo, o manifesto se
configura dentro da relação com o outro e ao mesmo tempo estabelece o seu lugar de fala,
delimitando o seu espaço e simultaneamente reconhecendo que foi constituído por outros
espaços, poéticas e valores. De modo geral, a história contada no Éloge de la créolité se
assemelha com a História do Brasil – do princípio ao fim – e da mesma forma que eles
precisaram compreender a relação entre colonizador e colonizado, mímica e
autenticidade, nós precisamos compreender que se (des) mimetizar do outro não significa
ser inferior, significa valorar contatos múltiplos que se fazem inegavelmente ricos e
mestiços.
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Se antes os livros de alguma forma pretendiam enraizar sua gênese nas outras
comunidades, de modo a querer germanizar ou anglicizar outras literaturas, hoje
percebemos que as literaturas são compósitas e estão em relação acompanhando um falar
multilíngue, e, desse modo, plural. Esse pensamento do múltiplo pode ser justificado pelo
pensamento rastro/resíduo em que se supõe que todos os povos apresentam resquícios,
marcas do seu processo histórico. É um ato em construção, é a representação constante
do novo porque o rastro e o resíduo estarão sempre presentes em todas as relações com o
mundo. A língua como representação da identidade também é tocada pela noção do
rasto/resíduo porque sempre se encontra em contato, como afirma (GLISSANT, 2005,
p.71): “as línguas crioulas são rastro/resíduos singrados na grande bacia do Caribe e do
oceano índico. Quando fugiram paras as matas, os rastros/resíduos que seguiram não
supunham nem o abando nem o desespero, e nem tampouco o orgulho ou a vaidade de si
mesmo”. Esse pensamento busca de modo geral refutar a possessão e configura a noção
de que tudo é tocado pelo outro e por nós mesmos.
Glissant (2005) considera como uma das futuras artes mais importantes a tradução. O
que a tradução sugere em seu princípio é a soberania de todas as línguas do mundo. Para
ele, a tradução é uma verdadeira execução da Crioulização, a mestiçagem inevitável. É a
arte da fuga de uma língua a outra, sem a renúncia de ambas, porque, nos nossos dias,
acompanha toda a malha de traduções possíveis em toda e qualquer língua, ou seja, a
tradução é fuga, renúncia que corresponde à maneira de pensar que apenas toca (de leve),
não agride e nos ensina o imprevisível como prática do rastro/resíduo8. Assim, ele
ressalta: “como a absoluta limitação do ser, a arte da tradução contribui para acumular a
extensão de todos os sendos e todos os existentes do mundo. Rastrear nas línguas significa
8
Conceito desenvolvido por Édouard Glissant que supõe que todos os povos apresentam resquícios,
marcas do seu processo histórico.
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Apesar de ser uma nova noção de tradução, considerada por algumas correntes até
mesmo idealista, a tradução mestiça pode ser encontrada em todos os textos existentes no
mundo, porque, mesmo que ela queira se fantasiar de “belles infidèles”, ela carregará
consigo as marcas da mestiçagem que são intrínsecas a todo texto, tradução ou original.
Entretanto, é preciso lembrar também que essa ideia de uma relação aberta com o outro
não é perfeitamente pacífica e/ou perfeitamente aceitável, ela se prefigura em sua maioria
como um ideal. É preciso lembrar disso para não esquecer que os processos de tradução
nunca foram pacíficos, eles sempre estiveram permeados de questões hegemônicas,
étnicas e éticas.
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Considerações finais
É nessa busca por valores próprios que observamos que tanto a Negritude quanto a
Antilhanidade entram em cena para tentar estabelecer um lugar de fala que seja
propriamente antilhano ou que se baseie em uma das suas origens, a África. Os dois
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De modo geral, devemos pensar na tradução e na escrita antilhana como uma abertura,
uma relação que se estabelece inicialmente pela marca definida por Glissant (2005) como
rastro/resíduo que se insere e transforma os espaços preenchidos pelos outros e não é
mais entendida como uma alteridade agressiva, mas uma que contribui intrinsecamente.
Do mesmo modo, a tradução se insere como propulsora dessas correntes de poéticas que
buscam alcançar o mundo, o devir tradutório insere-se na possibilidade de jamais ceder à
rigidez, de sempre se abrir e de renovar todos os dizeres possíveis, fazendo jus assim à
ideia de identidade-rizoma.
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A tradução, nesse contexto, deve tentar abarcar as singularidades que esses textos
apresentam. Assim como observam Laplantine & Nouss (2002), o pensamento da
mestiçagem “é claramente o pensamento da mediação, que se exerce no intermediário, no
intervalo e nos interstícios a partir dos cruzamentos e das trocas” (LAPLANTINE;
NOUSS, 2002, p. 83), sendo para eles impossível que ele se reduza ao pensamento do
entre ou entremeios porque estes se reduzem a categorias espaciais. Para os autores,
pensar a tradução como heterogênea, como se pensa a forma, é ainda estar preso às ideias
antigas que, do nosso ponto de vista, não conseguiriam abarcar as peculiaridades do texto
antilhano, por exemplo.
Referências
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1. Introdução
1
Tradutora, residente no Rio de Janeiro, Graduada em Letras: Português-Inglês pela Universidade
Cândido Mendes e Pós-Graduanda em Tradução pela Universidade Estácio de Sá. E-mail:
trad.valeria@gmail.com.
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Estas questões e outras estão localizadas no âmbito geral das políticas culturais e de
representação, e a tradução desempenha um papel relevante na configuração dessas políticas.
Assim, existe uma ligação íntima entre as políticas de tradução – aqui compreendidas como os
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fatores que levam à tradução (ou à divulgação da tradução) de certos textos em um dado
momento e local histórico – e as políticas de cultura e representação em voga, bem como a
correlação internacional de forças.
3. Cultura nacional
As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de
símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir
sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós
mesmos (ver The Penguin Dictionary of Sociology, verbete “discourse”). As culturas
nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais podemos nos
identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas histórias que são
contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens
que dela são construídas (p. 31).
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(...) isso já aconteceu muitas vezes com o “Oriente”, esse constructo semimítico que, desde
a invasão do Egito por Napoleão, no fim do século XVIII, já foi feito e refeito um sem-
número de vezes, sempre pela força agindo por intermédio de um tipo expediente de
conhecimento cujo objetivo é asseverar que tal ou qual é a natureza do Oriente, e que
devemos lidar com ele condizentemente. No processo, os inúmeros sedimentos de
história que incluem incontáveis histórias e uma variedade estonteante de povos,
línguas, experiências e culturas, tudo isso é desqualificado ou ignorado, relegado ao
monturo, juntamente com os tesouros esmigalhados até formar fragmentos
insignificantes – como é o caso dos tesouros retirados das bibliotecas e museus de Bagdá.
Em minha opinião, a história é feita por homens e mulheres, e do mesmo modo ela também
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pode ser desfeita e reescrita, sempre com vários silêncios e elisões, sempre com formas
impostas e desfiguramentos tolerados, de modo que o “nosso” Leste, o “nosso” Oriente
possa ser dirigido e possuído por “nós”. (p. 14, grifo nosso).
todos os impérios que já existiram, em seus discursos oficiais, afirmaram não ser como os
outros, explicaram que suas circunstâncias são especiais, que existem com a missão de
educar, civilizar e instaurar a ordem e a democracia (p. 17)
Ora, se cabe a apenas um ator social (etnia, classe, grupo, sexo) a fala sobre todos
os outros componentes de uma cultura nacional, esta representação será construída a partir de
um único ponto de vista, o do “sujeito” – aquele de posse “da palavra”, vale dizer, da
capacidade (socialmente outorgada) de conferir sentidos. Enquanto isso, os indivíduos e/ou
grupos não-hegemônicos estarão presentes apenas mediante a representação que lhes atribui o
grupo dominante, ou seja, um estereótipo. Hall (2016) sustenta que
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sobre uma pessoa; tudo sobre ela é reduzido a esses traços que são, depois, exagerados e
simplificados. Este é o processo que descrevemos anteriormente. Então, o primeiro ponto é
que a estereotipagem reduz, essencializa, naturaliza e fixa a “diferença”. (p. 191)
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Essa nova conjuntura irá atuar, ainda que de forma incipiente, na forma que a
intelectualidade do país pensa a questão da identidade brasileira, o que incidirá também sobre
as questões relacionadas à produção e visibilidade da literatura brasileira. Se no início do
século XX essas políticas visavam romper com o atraso do país, fazendo com que o Brasil
figurasse no rol das nações modernas – e para isso diversas traduções de obras europeias
foram editadas, já que o referencial máximo era a cultura europeia, detentora de uma validade
que a elite não via nas matrizes africana e indígena – agora, com o restabelecimento do
regime democrático, o Brasil visava mostrar ao mundo que já fazia parte do grupo de países
“civilizados”. Começou, assim, a tomar impulso a tradução de obras literárias brasileiras no
exterior.
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No seu discurso, na sua produção escrita, na sua intervenção social, literária e acadêmica
esses intelectuais expressam um olhar marcado não só pela sua condição de classe, mas,
também, pela raça. E mais, a raça na sua intermediação com o gênero, a idade e demais
lugares sociais dos quais participam. São também sujeitos que não estão obrigados a
somente produzir conhecimento sobre o negro, mas que dentro de qualquer campo do
conhecimento onde estiverem, indagam a sociedade, a universidade e a ciência do lugar da
raça, ou seja, não têm receio de expressar que já nascemos em um espaço/tempo racializado
e até em um pensamento social racializado (...) (p. 502).
E ainda
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O fato de a literatura negra ter se originado fora do cânone literário brasileiro, por
intelectuais cujo perfil artístico se encontra conjugado a uma postura ideológica frente às
relações raciais interfere, de forma evidente, na forma de difusão dessa literatura. Essa
produção literária, como elemento discursivo contra-hegemônico, terá como principais vias de
divulgação outros canais que não o mercado editorial: os saraus, principalmente os de
periferia, bem como as publicações independentes de coletivos de escritores negros e, mais
recentemente, editoras voltadas para a temática negra. É evidente que não se tratou de mera
escolha desses escritores, tendo em vista que o preconceito existente no mercado editorial
impede a visibilidade dessa escrita junto ao grande público; mas, em se tratando de um gênero
literário que propõe e se propõe como lócus de resistência e recriação, é coerente que sua
difusão, originariamente, tenha se dado em locais nos quais a arte é, em si, também militância.
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totalidade, de autores brancos, com exceção de Daniel Munduruku, indígena, e de dois dos
três escritores negros canônicos: Lima Barreto e Machado de Assis. A presença de mulheres
brancas é minoritária e a de mulheres negras, inexistente. Com efeito, é interessante constatar
que o resgate da imagem de Machado de Assis como escritor negro é bastante recente, e sua
obra não é abordada sob esse prisma no cânone literário.
não é muito comum uma escritora brasileira negra participar de um evento internacional. A gente
fica como fruta rara. E não é que não tenhamos escritoras negras. Geni Guimarães, Miriam Alves,
Ana Maria Gonçalves, Lia Vieira, são só algumas”. “(...) a presença da negra fora das instâncias em
que se está acostumado a vê-la causa furor”: “Não seria a mesma coisa se isto aqui [o salão] fosse
um festival de gastronomia em que baianas estivessem preparando acarajés (Jornal Folha de São
Paulo, 23/03/2015).
8. Considerações finais
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9. Referências bibliográficas
DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil – 1917 – 1945.
São Paulo, Ed. UNESP, 2006.
ESTEVES, Lenita Maria Rimoli. Atos de tradução: éticas, intervenções, mediações. São
Paulo, Humanitas/ FAPESP, 2014.
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SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs). Epistemologias do sul. São
Paulo, Cortez, 2010.
Reportagens:
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Adélia Mathias2
ABSTRACT: There is a need for translations of black diaspora authors in Brazil, and this
void undermines the epistemic diversity of the academy, which in turn continues to follow
Eurocentric and hegemonic patterns. The admission of a significant group of black
students into Brazilian public universities pushes for an ever greater dialogue with
African and Afro-Portuguese theories and literatures. Thus this paper addresses issues
about translation, empowerment and academic contributions of these new agents and their
demands.
Introdução
1
A Tradução não oficial social é entendida neste artigo como tradução utilizada sem fins comerciais,
lucrativos ou de publicação. É feita por pessoas que apenas desejam difundir saber entre seus pares e
objetivam compartilhar conhecimento de forma pontual, visando ao empoderamento de pequenos grupos
de estudos.
2
Doutoranda em Literatura e Práticas Sociais pela Universidade de Brasília, pesquisa sobre a Literatura
Afro-Brasileira contemporânea, trabalha especialmente com a autoria de mulheres. Membro do Grupo de
Estudos Calundu sobre religiões afro-brasileiras e do Grupo de Pesquisa Vozes Femininas UnB/CNPq.
Email: adeliamathias@gmail.com
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A despeito dos últimos 15 anos em que se pode falar sobre um projeto do Estado
brasileiro de inserção efetiva de estudantes negras/os no ensino superior, as universidades
e as pesquisas desenvolvidas pelos sujeitos nelas inseridos apontavam para uma gama de
diversidade extremamente limitada. Teorias, críticas e mesmo o corpus de análise de
grande parte das diferentes áreas de produção de saber vinham ganhando um tom
uníssono, muitas vezes incômodo para as/os próprias/os pesquisadoras/es. Na área de
literatura, da qual faço parte, por exemplo, a pesquisadora e professora Regina
Dalcastagnè alerta:
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3
Como a que tenho desenvolvido no doutorado na área de Literatura e Práticas sociais da Universidade
de Brasília, ainda em andamento, com o foco na autoria de escritoras brasileiras negras e contemporâneas.
4
Os Cadernos Negros são uma série que publicam poesias e contos escritos por afro-brasileiros há quase
quatro décadas. Cada edição conta com a colaboração de diferentes escritoras/es, em um formato de
produção coletiva. Os Cadernos são um importante referencial de escritoras/es, bem como se configuram
como um espaço propício ao surgimento de novos talentos da Literatura Afro-Brasileira.
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Além disso, constata que, para ser traduzidas para o português brasileiro, obras de
argentinos/as, caribenhos/as ou cubanos/as precisam passar primeiro por grandes centros
globais, de modo que, antes de virem para um país geograficamente tão próximo, como
é o Brasil, a obra precisa passar por Estados Unidos, Espanha ou França, por exemplo,
seguindo uma lógica de mercado empobrecedora para leitores/as brasileiros/as, pois,
muitas vezes, nos furta de uma tradução direta do idioma nativo da obra. Partindo do
princípio de que quanto menos interferência de tradutoras/es, mais próximos do texto
original e menos intervenções ideológicas estarão presentes, ter a possibilidade de
traduzir textos que passam primeiro por essas grandes potências culturais nos deixa a
mercê de modos de ver o mundo muito diferenciados do que poderia ser o de um
compartilhamento de epistemologias do sul, para exemplificar, pois nem sempre essa
perspectiva e suas sutilezas são captadas por quem vive na Europa ou é uma potência
mundial, como os Estados Unidos.
No quesito pesquisadoras/es brasileiras/os negras/os, sujeitos que mais procuram
a produção de saber de intelectuais negras/os da diáspora e, por sua vez, trazem essas
diferentes maneiras de compreender o mundo para o ambiente acadêmico, o número de
estudantes negras/os no nível superior era muito reduzido e ainda hoje não condiz com
seu número na sociedade brasileira. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), de 2004, apontam que o número de negras/os entre 18 e 24 anos na
universidade era de 16,7%; depois das ações afirmativas, dentre as quais figuravam as
cotas raciais em universidades públicas, esse número cresceu exponencialmente para
45,5% em 2014 entre o mesmo grupo. Embora tais dados sejam muito relevantes,
precisamos lembrar que a desigualdade no nível superior permanece, pois nesse mesmo
período o número de brancas/os, entre a mesma faixa etária, nas universidades era de
57,9% e avançou para 71,7%.
Por um exercício de analogia, se para Dalcastagnè a ausência de negras/os na
literatura costuma ser creditada à invisibilidade delas/es na sociedade brasileira –
fazendo-nos chegar à conclusão de que os grupos sociais hegemônicos são
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Esse fragmento não ignora que autoras negras têm sido estudadas em grupos de
pesquisas de escritoras brasileiras, ou que escritoras negras não sejam estudadas nos dois
grupos de literatura afro-brasileira; apenas constata a marginalização da mulher negra no
campo do simbólico.
Seguindo ainda esta linha de raciocínio, é possível notar o porquê de a tradução
de autoras/es negras/os não ter sido um problema tão urgente quanto é neste momento,
em que o aumento de estudantes negras/os na graduação e pós-graduação nunca foi tão
grande. Para isso, preciso trazer o empirismo do sujeito negro acadêmico que sou e inserir
no artigo uma episteme da experiência.
Enquanto pesquisadora negra que atua em uma área cujas bases são diversas e
podem se apoiar em múltiplas teorias, tenho dificuldade de encontrar textos de teóricas/os
negras/os em português brasileiro na sociologia, na história, na teoria literária, na
filosofia, na educação, mesmo existindo autoras que produziram uma robusta
contribuição para essas áreas e, para exemplificar, cito mulheres negras teóricas, como
5
À época, tal consulta foi realizada na Plataforma da Capes.
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Audre Lorde, bell hooks, Patricia Hill Collins, Barbara Smith, Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí,
Grada Kilomba, dentre tantas outras. Noto a carência destas traduções de experiências de
sujeitos negros, especialmente de mulheres negras, que poderiam auxiliar em nossas
perspectivas e produções acadêmicas. Certamente, tais constatações são compartilhadas
com tantas/os outras/os pesquisadoras/es, sobretudo negras/os.
Enquanto leitora de literatura tenho grande dificuldade de encontrar livros de
autoria negra, sobretudo da América Latina, traduzidos, mesmo sabendo que essas obras
têm se destacado como grandes potências para uma literatura a partir do local de
enunciação de afrodescendentes, dentre as quais cito Juan Francisco Manzano, com sua
Autobiografía de un esclavo6, e Shirley Campbell Barr, com sua poesia feminista negra
bem representada pelo poema Rotundamente negra, de livro homônimo, publicado em
2013.
Entretanto, entendo que há um processo histórico que faz pesquisadoras/es
negras/os buscarem por essa autoria quase invisível nas universidades, chamado de busca
das raízes identitárias, bem ilustrada pelo movimento artístico negro da década de 1970
(Souza, 2005). Esse processo é viabilizado por pessoas negras porque é no saber empírico
de seu apagamento enquanto sujeito que se pode supor a existência de um mundo
ignorado ou silenciado por espaços majoritariamente brancos. Então, o que não fazia falta
nas universidades hoje é buscado como possibilidade de fôlego novo para revisar teorias
inadequadas para processos sociais brasileiros, uma vez que ignoravam, e muitas ainda
ignoram, um dos grupos raciais mais importantes na formação e no desenvolvimento do
país, os sujeitos negros, a saber, africanos/as e afro-brasileiros/as.
Pensando que na história educacional de negras/os brasileiras/os a dificuldade de
acesso ao ensino básico de qualidade é um problema histórico, uma vez que nossa
educação formal era majoritariamente voltada para a qualificação mínima de mão de obra
trabalhadora (Gonçalves; Silva, 2000). O domínio de língua estrangeira, por exemplo,
não fez parte, durante muitas décadas, do plano de ensino público, o maior reduto de
educação formal de afro-brasileiras/os e, quando finalmente se tornou disciplina no
ensino público, tinha como objetivo principal facilitar o manuseio de maquinário
6
Obra possivelmente escrita entre 1835 e 1839, que somente teve sua primeira tradução para o português
brasileiro em 2015, por Alex Castro. É um marco para a literatura de testemunho de escravizados na
América Latina e, a despeito de sua importância para a literatura do continente americano, levou quase dois
séculos para ser traduzido.
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No Brasil, a questão parece ser um pouco mais sensível porque não existiu um
tempo menos difícil para ser intelectual no país. Foi no início dos anos 2000 que um
número expressivo de afro-brasileiras/os teve a oportunidade de conseguir o
reconhecimento formal de sua intelectualidade. Antes disso, ainda que o movimento
negro e as irmandades negras produzissem seus intelectuais, ainda que as/os griots
continuassem a passar seus saberes por meio da oralidade, essas pessoas nunca foram
socialmente reconhecidas como pessoas dotadas de saber e conhecimento o bastante para
serem respeitadas e consideradas importantes agentes sociais, ainda que efetivamente o
fossem, ao fomentarem o estudo formal, a alfabetização em massa e o empoderamento
do movimento organizado de afro-brasileiras/os.
Dentre os desafios já apresentados, cuja raça se mostra o componente essencial, o
sentimento de não pertencimento leva estudantes negras/os universitárias/os a
aprenderem outras línguas para acompanharem as leituras hegemônicas. O
empoderamento de dominar outro idioma, somado à dupla consciência dos sujeitos
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diaspóricos do Atlântico Negro (Gilroy, 2001), os fazem buscar outras bibliografias para
além do que a academia oferece. Nessa busca pessoal, para encontrar textos que não
constam nas historiografias oficiais, ou no circuito privilegiado da produção de saber,
esses novos agentes trazem para a universidade novas possibilidades, perspectivas e até
mesmo epistemologias.
É a partir de questionamentos individuais que uma nova dinâmica se instaura
diante da possibilidade de trazer para o debate teorias não traduzidas e desconhecidas pela
universidade em seus trabalhos, dissertações e teses. Nessa perspectiva, percebe-se a
postura de que a tradução das citações diretas é parte importante para o público leitor do
trabalho. Assim, estudantes que começaram aprendendo a ler teoria para embasar suas
argumentações passam, aos poucos, a se tornarem tradutores, ainda que limitadamente e
sem dominar a teoria da tradução necessária e compatível com o grau de complexidade
exigido nas traduções oficiais. Os idiomas mais traduzidos são os dos grandes centros já
citados, portanto, inglês, francês e espanhol. Obviamente, algumas vezes não se tem
contato com o idioma original de determinadas obras escritas, mas é possível encontrar
traduções para uma dessas línguas e, a partir daí, fazer suas próprias traduções com
objetivos específicos e pontuais.
Se, durante séculos, a população afro-brasileira foi objeto de estudos, sem
possibilidade nenhuma de falar por si nos espaços universitários, ao fazer parte desse jogo
social, falar sobre si, seu grupo, suas histórias e suas perspectivas tem se mostrado um
trabalho muito elaborado por estudantes negras/os, um dado fácil de notar devido ao
aumento no número de teses e dissertações com temática racial nos bancos de dados das
universidades que adotam o sistema de cotas raciais.
Na busca pelo entendimento de si enquanto sujeito, as mulheres negras, maioria
nas universidades, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2014),
encontraram nos feminismos e nos Estudos Culturais as teorias com maior consonância
com o que buscavam, pois derivam delas os estudos revisionistas e propostas de busca e
releitura de clássicos à luz de novas perspectivas.
Uma vez aberta essa possibilidade de atuação, as mulheres negras se depararam
com um mundo de teorias afro-estadunidenses dos feminismos e, junto com mulheres não
negras, conseguiram negociar espaços de traduções para pequenos grupos de estudos
cujos objetivos eram capacitar as integrantes com o que existia acerca do assunto sem que
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fossem necessárias tantas décadas, ou mesmo séculos, para que brasileiras tivessem
acesso às teorias de pessoas negras da diáspora, sobretudo de mulheres. Os grupos
secretos que crescem exponencialmente nas redes sociais ilustram tal afirmação:
mulheres tem traçado e desenvolvido estratégias alternativas e cuidadosas de se
empoderarem, fortalecendo-se mutuamente e multiplicando formas de circular e trocar
saberes não hegemônicos.
Nestes grupos de estudos autoras/es como Deborah King, Stuart Hall, Shirley
Campbell Barr, Frantz Fanon, Angela Davis, Audre Lorde, Cornel West, bell hooks,
Patricia Hill Collins, Barbara Smith, autores/as das Antilhas e de Cuba, assim como
francófonas/os, etc, começaram a ser traduzidos com fins não comerciais. Com a ideia de
livre circulação de saber, essas iniciativas que pareciam isoladas cresceram em tal
proporção que grupos feministas de fora do ambiente acadêmico, mas dentro da militância
social, passaram também a se apropriar desse material. As personagens condutoras desse
trânsito são mulheres e homens negras/os, que têm transitado tanto em espaços de lutas
sociais do movimento negro quanto nos espaços acadêmicos. Diante do crescimento da
demanda e da ferramenta extremamente útil que é a internet, espaços virtuais de
compartilhamentos dessas traduções começaram a pulular e quem aprendeu a lidar com
essa novidade teve finalmente a possibilidade de ler e armazenar materiais que antes
levavam até 100 anos para serem disponibilizados - isso quando eram traduzidos. Há,
então, uma espécie de tradução social, com objetivo limitado de acessos a traduções que
não se querem comerciais, nem de grande alcance ou duração, pois, na maioria das vezes,
esse trabalho importa apenas a um grupo de estudos.
A partir de então, motes empoderadores de Audre Lorde, como “as ferramentas
do senhor nunca desmantelarão a casa grande” (e outras variações de traduções livres) ou
“não há hierarquia de opressão” são reproduzidos com o mesmo eco nos diferentes
sujeitos afro-brasileiros que os encontram pela primeira vez, apesar do passar dos anos,
na internet. O conceito de imagens de controle ou imagens controladas, cunhado por
Patricia Hill Collins (2000), que explica a importância dos papéis simbólicos das
mulheres negras nas artes para a manutenção da sociedade racista e quais as estratégias
utilizadas para combatê-las; ou, ainda, o mais recente debate, feito no livro da filósofa
nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (2011), que coloca conceitos tradicionais do feminismo
ocidental em questionamento, são facilmente encontrados na própria web, citados em
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Diante do que ela nos apresenta, o processo de tradução nos parece ser também
um processo no qual as/os tradutoras/es negras/os se reconhecem nos textos, se
comunicam com o original e podem passar essa subjetividade que, enquanto sujeitos
negros da diáspora, nos é constantemente negada. O religare proposto pelas religiões
pode ser também exercido nessa prática que conecta diferentes sujeitos da diáspora negra
espalhados pelo Atlântico Negro e que carregam consigo um fio condutor em comum. O
processo de circulação do texto entre autor/a, tradutor/a e leitor/a negro/a carrega consigo
uma carga semântica muito diferente do processo tradicional de tradução, pois
compartilha histórias e (re)constrói uma relação de ancestralidade a partir de uma relação
bastante inusitada, mas que comunica todo um processo de silenciamento histórico, o qual
somente pessoas negras da diáspora conseguem alcançar graças à história de colonização
sofrida pelo imperialismo.
Um exemplo de que essa tradução se dá de forma diferente, conforme os sujeitos
responsáveis pela tradução e, por isso pode ter resultados diferentes, é apresentado por
Jéssica de Jesus quando ela fala sobre a tradução domesticadora do livro Jubiabá (1935),
de Jorge Amado, para o castelhano:
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Desse modo, podemos ver que a tradução pode apoiar a formação de identidades
e/ou estereótipos, tanto por meio da seleção dos textos estrangeiros que serão traduzidos
quanto através da adoção de estratégias discursivas para traduzi-los.
Como todo processo social, a tradução de autores negros é complexa, tem seus
percalços e não segue de forma linear, entretanto, o mais importante a dizer neste
momento é que, assim como o quilombismo, de Abdias do Nascimento (1980), a ideia
primeira de resistência em conjunto tem norteado as práticas de tradução de textos
acadêmicos. Aprendemos historicamente o quanto a atividade coletiva tem força em
nossa história, seja pelos próprios Quilombos, pelos Cadernos Negros, pelas traduções
coletivas e compartilhadas em grupos de estudos, pelos movimentos de mulheres negras,
ou pelo Movimento Negro Unificado.
Para os sujeitos negros inseridos na universidade, esta é mais uma forma de
resistência a um mundo racializado, que já está dado desde quando nascemos e que é
extremamente cruel, deixando poucas alternativas de interação que não pareçam
opressivas aos sujeitos não brancos nem nos deixem sempre em situação de inferioridade
em relação ao nosso outro. Leitura, compartilhamento e (re)criação de novas perspectivas
epistêmicas a partir de outros sujeitos que também vivem literalmente na pele essa
condição fazem com que trazer autoras/es negras/os para o ambiente eurocêntrico, que
ainda é a universidade brasileira, seja nossa agência dentro de um legado de melhoria de
condições de vida para as futuras gerações afro-brasileiras. Simultaneamente, esse
processo transforma a nós mesmas/os pela experiência de viver algo proporcionado pelas
gerações negras anteriores, cujos trabalhos resultaram, finalmente, em nossa presença em
um importante espaço da elite intelectual brasileira.
Traduzir não oficialmente textos de autoria negra para fins acadêmicos tem sido
de grande importância como ato de resistência ao racismo epistêmico, tão tradicional no
modo de produzir e reconhecer como legítimos determinados saberes em detrimento de
tantos outros, forçadamente silenciados, como bem ilustra Kilomba (2016), em sua
analogia sobre a máscara de flandres imposta à escrava Anastácia e tantas/os outras/os
escravaizadas/os, sob o pretexto de evitar o consumo de alimentos, mas que encontra seu
intuito mais importante em silenciar de forma extremamente violenta o povo colonizado.
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Um cenário em reconfiguração
Quem pode falar? Quem não pode? E acima de tudo, sobre o que
podemos falar? Por que a boca do sujeito Negro tem que ser calada?
Por que ela, ele, ou eles/elas têm de ser silenciados/as? O que o sujeito
Negro poderia dizer se a sua boca não estivesse tampada? E o que é que
o sujeito branco teria que ouvir?
Existe um medo apreensivo de que, se o/a colonizado/a falar, o/a
colonizador/a terá que ouvir e seria forçado/a a entrar em uma
confrontação desconfortável com as verdades do ‘Outro’. Verdades que
supostamente não deveriam ser ditas, ouvidas e que “deveriam” ser
mantidas "em silêncio como segredos". Gosto muito dessa expressão,
“mantidas em silêncio como segredos”, pois ela anuncia o momento em
7
Sujeitos racializados são todas as pessoas que não fazem parte da branquitude que, por sua vez, tem o
privilégio de ser compreendida como regra, como norma. Desse modo, qualquer pessoa não pertencente a
esse grupo que se autodenomina a medida de todas as coisas é um sujeito racializado.
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que alguém está prestes a revelar algo que se presume não ser permitido
dizer (o que se presume ser um segredo). Segredos como a escravidão.
Segredos como o colonialismo. Segredos como o racismo.
O medo de ouvir o que possivelmente poderia ser revelado pelo sujeito
Negro pode ser articulado com a noção psicanalítica de repressão, uma
vez que a repressão “consiste em afastar algo e mantê-lo à distância do
consciente.” (Freud 1923, p. 17). Este é o processo pelo qual certas
verdades só podem existir (na profundidade do oceano, bem lá no
fundo) no inconsciente, bem longe da superfície – devido à ansiedade
extrema, culpa ou vergonha que elas causam. Imaginem um iceberg
flutuando na água azul, todas as verdades reprimidas ainda estão lá,
porém imersas e reprimidas na profundidade. Ou seja, o sujeito sabe,
mas quer tornar (e manter) o conhecido, desconhecido. (2016, p. 2,
grifos da autora).
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REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Acesso em: 13/02/2017.
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Roch Duval1
RESUME: « Tobias Barreto agente negro de tradução » vise à mettre en relief l’apport du
philosophe, traducteur et visionnaire métis, natif de l’État du Sergipe, dans l’histoire non
seulement de la traduction au Brésil mais également dans la formation d’une pensée
identitaire typiquement brésilienne. En ce sens, il ressort que l’épithète « agent de traduction
» convient parfaitement à Tobias Barreto. Ce qu’il y a de particulier chez lui, c’est qu’il a été
impliqué dans toutes les étapes du processus traductif lui-même, soit de la traduction stricto
sensu - comme transfert linguistique – jusqu’à la diffusion de ses œuvres – en tant que produit
matériel, objet réifié – en passant par la confection matérielle – l’impression, la mise en page,
la pagination, etc. – de ces dernières. À partir de la décennie des années 1870, le projet
traductif de Barreto prend une direction essentiellement vouée à la promotion du
germanisme. Le présent article présente les tenants et les aboutissants de cette position
idéologique.
1
Tradutor e agente psicossocial especialista em prevenção do suicídio e em suicidiologia. Tem Doutorado em
Filosofia pela Université de Montréal (1994), Mestrado em tradutologia (2007) e, em 2015, defendeu a tese de
Doutorado em tradutologia pela Université de Montréal. O tema da tese foi uma análise da influência do filosofo
alemã Max Bense sobre a teoria de tradução de Haroldo de Campos. Foi leitor em tradutologia nos cursos de
graduação e pós-graduação na Université de Montréal.
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Wir sehen auf den ersten Blick, dass wir einen Mulatten
vor uns haben, wie man deren in allen amerikanischen
Ländern mit gemischter europäischer und afrikanischer
Bevölkerung viele trifft und ihre Intelligenz zu bewundern
vielfach Gelegenheit findet. Die ungewöhnlich hohe
Stirn, das geistvolle Auge, der entschlossene Zug um den
Mund lassen uns nicht lange unklar darüber bleiben,
dass sich auch hier eine Summe von Intelligenz verkörpert,
hat, der wir unser Interesse, unsere Achtung nicht
versagen können.können.
2
“Logo ao primeiro olhar, era visível que, diante de nós, se encontrava um mulato, como em todos os países
do Novo Mundo onde ocorre com frequência uma miscigenação entre a população europeia e africana. Além
disso, tivemos muitas vezes a oportunidade de admirar a sua inteligência. A fronte excepcionalmente alta, o
olho sagaz, a boca bem desenhada não deixam dúvidas sobre o fato de que uma riqueza de conhecimentos está
concentrada aqui e isso não escapou a nossa curiosidade e a nossa atenção”. (Todas as traduções são minhas
salvo indicação em contrário. Para facilitar a leitura, a ortografia foi atualizada segundo a norma atual).
3
“A expressão ‘fulgurante plebe intelectual’ é exata e feliz para caracterizar os bacharéis, tantos deles de origem
humilde e vários, negroides, que, com a fundação dos cursos jurídicos, foram aparecendo na sociedade brasileira
como nova e considerável elite, compensada pela cultura intelectual e jurídica nas deficiências de sua posição
social e na inferioridade de sua condição étnica” (FREYRE, 1977, p. 626). Ver também (CORDEIRO, 1997, p.
65); (COSTA, 2006, p. 239); (ALMEIDA, 2008, p. 57-65).
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um despertador de consciência cujo mérito é conveniente recordar aqui, para que ele não caia
no esquecimento.
Poucos intelectuais brasileiros se valeram tanto e de forma tão íntima e definitiva da imprensa como
Tobias Barreto. Foi redator, editor, diretor, colaborador de jornais e de revistas, deixando seu nome
em pelo menos 32 periódicos pernambucanos (BARRETO, 1987b, p. 3).4
A história nos ensina que foi em princípios de 1871, depois de vários insucessos tanto
pessoais quanto profissionais, que Barreto resolveu mudar-se para Escada, zona da mata sul
de Pernambuco, a cerca 60 quilômetros do Recife. Segundo Hermes Lima (1902-1978), esta
decisão foi “o ato mais calculado da vida de Tobias’’ (LIMA, 1939, p. 21). Para confirmar
esta afirmação do político, jornalista e ensaísta baiano há que fazer menção de alguns fatos
significativos. Em primeiro lugar, importa salientar que foi em Escada que nosso sergipano
aprofundou, como autodidata5, seu conhecimento da língua e da cultura alemã (PAIM, 1999,
4
Ao número dos 32 jornais pernambucanos devem ser acrescentadas 11 publicações exclusivamente de
responsabilidade do próprio Barreto – algumas das quais foram de curta duração – além de 3 jornais editados
em língua alemã (igualmente precários). Ver (Barreto 1987b, 3). Ver também (Carvalho 1908). “Dos 32
periódicos listados, apenas 23 podem ser encontrados” (Barreto 1987b, 3).
5
O autodidatismo de Barreto foi concomitantemente uma força e uma fraqueza: “Tobias padeceu de todos os
males do autodidatismo. [...] Faltou-lhe viver num meio em que o saber se movesse objetivamente” (LIMA,
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p. 102). Como observa o falecido Luiz Antônio Barreto (1940-2012)6, foi em Escada que o
filósofo sergipano “se lança ao domínio da língua e da cultura alemã” (BARRETO, 1994, p.
87). O que impressiona em seu aprendizado da língua alemã é o fato de Tobias Barreto ter
conseguido produzir textos adequados em estilo elevado de acordo com o estilo acadêmico
da época.
Ele nos comunicou que nunca saiu do Brasil, e é um autodidata no verdadeiro sentido da palavra, visto
como não recebeu aqui instrução alguma quanto ao alemão. Tanto mais maravilhosa é a perseverança
com que ele apropriou-se, não só do uso da língua estrangeira, mas também do grande tesouro da
ciência alemã, de que dão testemunho seus trabalhos literários (NASCIMENTO, 1966, 19).
Assim, não é por acaso que o filósofo sergipano publicou vários escritos (ou seja,
cartas, livros, ensaios) em alemão. A esse respeito podemos mencionar, segundo uma ordem
cronológica, as obras alemãs seguintes: o jornal Der Deutscher Kaempfer7 [O lutador
alemão] (1875); Brasilien wie es ist in Literarischer hinsicht betrachtet [O Brasil tal como é
do ponto de vista literário] (1876); Ein offener Brief an die Deutsche Presse [Carta Aberta à
Imprensa Alemã] (1878). Cabe aqui notar também que Tobias Barreto publicou artigos
(redigidos em alemão) no Koseritz Deutsche Zeitung de Carlos von Koseritz, em Porto
Alegre, e no jornal Germânica, de São Paulo8.
É de todo conveniente insistir na inclusão de Tobias Barreto entre os agentes de tradução.
Mas o que significa exatamente o termo “agente de tradução”? De modo geral, na língua
usual, um agente designa uma pessoa singular ou uma entidade coletiva (BRATMAN, 2009)
que opera, que atua, ou o que é capaz de executar tanto uma ação quanto uma alteração
material em um estado de coisas (matter of facts). Em outras palavras, um agente é a causa
principal ou o princípio motor ou eficiente (para utilizar aqui um termo da filosofia de
1939, p. 108). “Tal deficiência é o fruto de seu autodidatismo em meio intelectual desprovido de uma
comunidade científica e de instituições apropriadas para o desenvolvimento da erudição e cultura filosóficas”
(SUCUPIRA, 1994, p. 116). Um dos pontos fracos do domínio da língua alemã em Tobias Barreto era a
expressão oral: “Os problemas só apareciam no momento da comunicação verbal... ” (COSTA, 2006, p. 239).
6
Luiz Antônio Barreto, antigo ocupante da Cadeira número 28 da Academia Sergipana de Letras, nasceu no
munícipio de Lagarto (Sergipe) e foi o fundador e diretor do Instituto Tobias Barreto (ITB), localizado no
segundo andar da biblioteca central da Universidade Tiradentes, na Farolândia (bairro de Aracaju). A diretora
atual do ITB é Raylane Andreza Dias Navarro Barreto, viúva de Luiz Antônio Barreto.
7
Citamos textualmente o título do jornal. De acordo com as normas atuais, a grafia é Deutscher Kämpfer.
8
Em 1883, no Diário de Pernambuco, Barreto publicou cartas de apoio de diversos autores alemães que
elogiaram seu trabalho intelectual.
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Aristóteles)9 de uma mudança intencional (ou seja, desejada ou planificada) numa coisa ou
no estado do mundo. Do ponto de visto filosófico, um “agente” designa o princípio ou sujeito
de uma ação. Assim, um agente é considerado essencialmente responsável por um
determinado ato. Agora, temos de especificar o que é um “agente tradutor”. Segundo a
definição de Juan Carlos Sager, um agente de tradução designa todo indivíduo que se
encontra “in an intermediary position between a translator and an end user of a translation”
(SAGER, 1994, p. 321). Embora seja verdade que existe em Tobias Barreto uma certa
superposição dos papéis de tradutor stricto sensu e de difusor/editor de sua própria obra, seu
exemplo permite definir melhor as características do termo “agente de tradução” e definir
com maior clareza o seu âmbito de aplicação. Assim, de maneira geral, um agente de
tradução designa um intermediário ou qualquer outro vetor que tem um caráter instrumental
– mas essencial – na divulgação, na difusão ou na preservação (conservação) de uma obra
em que uma tradução foi usada como forma especifica para alcançar e influenciar uma
cultura-alvo e, do mesmo modo, promover os interesses literários, políticos, estéticos e/ou
pessoais de todos os intervenientes no processo de transferência. “These agents may be text
producers, mediators who modify the text such as those who produce abstracts, editors,
revisors and translators, commissioners and publishers” (MILTON e BANDIA, 2009, p. 1).
Em outras palavras, os agentes de tradução são mediadores cuja atividade principal visa
transferir “sapere in movimento” [saber em movimento] (CANGEMI, 2012, 96).
9
Andrew Chesterman fez referência à tipologia aristotélica – dentro do chamado modelo causal (Causal model)
— e defendeu sua aplicação em tradutologia. Ver em particular (CHESTERMAN, 2017, p. 123-136).
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‘Imposition’ is normally deliberate, it is always driven by the source culture, often with little regard for
the receptor culture, and therefore pays much attention to the intention or intentionalities behind the
original text manifestation; ‘requisition’ springs from the target culture and therefore implies a more
relaxed attitude (perhaps out of ignorance) towards the sender’s intentionality (DOLLERUP, 1996, 46)
10
Preferimos traduzir requisition por “apropriação” em vez de por “requisição”.
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mas também em todas as partes do Brasil. O papel de agente de tradução de Barreto foi muito
especial porque ele contribuiu diretamente para a conscientização e a difusão da cultura
alemã – definida segundo seus próprios critérios programáticos a fim de permitir criar uma
nova espitêmé – para os brasileiros através de suas traduções de alguns trechos de obras de
diversos pensadores alemães, seja de pensadores mais influentes ou de outros menos
conhecidos. Um excelente exemplo de apropriação pelo filósofo brasileiro foi a gestão
integral do processo tradutório desde o início – a tradução em si, ou seja, a transferência
linguística – até o fim, ou seja, a divulgação ou distribuição das traduções como “objeto
reificado”, passando pela produção material, isto é, a impressão das traduções. A gestão
integral do processo de tradução surgiu em 1874, em Escada. Em 1954, o jornalista Junot
Silveira escreveu no jornal A Tarde que Tobias Barreto, “para poder publicar muitas de suas
produções, teve de fundar jornais, que ele redigia, compunha, revisava, paginava e
imprimia...” (NASCIMENTO, 1994, 26). Com efeito, foi mais precisamente a partir do mês
de julho daquele ano que Barreto publicou às sua próprias custas seu primeiro jornal: Um
signal dos tempos. Este jornal – como os outros que ele publicou em Escada – saíram da
Tipografia Comercial que se localizava na Rua da Cadeia, 22, em Escada (Pernambuco), e
que era de propriedade de Tobias Barreto. A publicação do jornal Um signal dos tempos foi
de curta duração (dez números), mas também suficientemente longa para trazer à cena da
cultura brasileira o nome de David Friedrich Strauss (1808-1874), e principalmente o de
Eduard von Hartmann (1842-1906)11. Neste sentido, podemos dizer que a temporada de
Barreto em Escada – entre 1871 e 1881 – foi a incubadora perfeita para o desenvolvimento e
o aperfeiçoamento do seu germanismo. Um signal dos tempo foi substituído rapidamente por
A Comarca de Escada em 1875 (num total de cinco números) e pelo Devaneio Literário
(1875)12. Uma manifestação marcante do germanismo como posição teórica nítida e forte foi
claramente a publicação do Deutscher Kämpfer em 1875 (BARRETO, 1994, 247)13. O
11
A filosofia de Eduard von Hartmann foi apresentada no artigo intitulado “O Capítulo do Amor na Filosofia
do Inconsciente” na edição número 8 de 31 de outubro de 1874.
12
Publicação bissemanal de 15 de junho de 1875 a 27 de julho de 1875 num total de 12 números. Em dezembro
de 1875, teve uma décima terceira publicação.
13
O Deutsche Kämpfer foi publicado de 2 de agosto até 12 de setembro de 1875, num total de 5 números
(NASCIMENTO, 1966, 19). O Deutscher Kämpfer era impresso na Tipografia Mercantil do brasileiro de
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próprio Tobias Barreto, no entanto, definia o seu jornal como um “periódico literário e
acidentalmente político, destinado à expansão do germanismo no norte do País.” Para grande
espanto de todos14, Tobias Barreto redigiu este jornal em alemão, uma língua em grande
medida desconhecida da maioria dos brasileiros (BARRETO, 1994, 367)15. Dessa forma,
Barreto contrariava voluntariamente todos os intelectuais brasileiros que aclamavam
servilmente a cultura e a filosofia francesas. Para Barreto, o futuro era outro; a chamada
germanidade foi percebida como uma tábua de salvação, pois a ciência e a razão em vigor na
filosofia alemã prevaleciam finalmente sobre o escolasticismo caduco e tomista que
petrificava a vida intelectual brasileira.
A publicação do Deutscher Kämpfer deu início a uma série de textos (jornais, ensaios,
panfletos, artigos) redigidos em alemão. Em conformidade com a firme convicção intelectual
de que a cultura alemã era superior à francesa, mas sobretudo devido a sua perseverança neste
projeto, não surpreende que alguns de seus contemporâneos tenham sucumbido ao seu
programa de fortalecimento da cultura alemã pela infusão do espírito alemão no Brasil. Mas,
então, quais eram precisamente os motivos políticos, ideológicos e/ou tradutológicos que
nortearam o germanismo de Tobias Barreto?
origem alemã Carl Eduard Muhlert, no Recife (NASCIMENTO, 1966, 19; BARRETO, 1994, 367; SCHMIDT,
2009, 44). A Tipografia Mercantil era localizada na Rua do Torres, no 10.
14
“Para irritar o burguês com uma nota mais ostensiva de superioridade, abria frequentemente seu luminoso
leque de pavão – o germanismo. Um dos periódicos redige-o mesmo em alemão, o Deutscher Kämpfer. Era um
luxo, uma extravagância. Mas era igualmente uma maneira de reagir, de não se deixar absorver” (LIMA, 1939,
44). Por sua vez, Nelson Werneck Sodré qualificou de “curiosíssima” a publicação em alemão do Deutscher
Kämpfer (SODRÉ, 1998, 1994, 225) Esta preocupação intelectual particular de Barreto fez dele o alvo de toda
uma geração. Foi por essa razão que Sílvio Romero escreveu “Tobias Barreto é, [...], não o mais desconhecido
escritor da nova geração, porém certamente o mais odiado!” (ROMERO, 187, 137).
15
Na verdade, o Deutscher Kämpfer teve grande repercussão nas colônias alemãs do sul do Brasil,
especialmente no Rio Grande do Sul, no jornal alemão de Koseritz, o Deutsche Zeitung (NASCIMENTO, 1966,
19).
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característica das traduções de obras estrangeiras no Brasil era o fato de serem traduções de
traduções feitas através do espelho distorcido ou do filtro ideológico da língua francesa.
Invariavelmente, essas obras traduzidas eram totalmente dependentes dos imperativos
culturais, ideológicos e estéticos vigentes na França. Claramente, isso significa que a
totalidade do ethos cultural brasileiro era fortemente dependente da cultura francesa em todas
as suas formas.
Totalmente insatisfeito com a dependência, a sujeição intelectual e ideológica do
Brasil para com a França, o filósofo sergipano se esforçou então por escolher, promover e
disseminar as ideias adequadas para uma obra de renovação, ou seja, de vivificação e de
fortalecimento da cultura brasileira. Ao ecletismo representado pelo espírito francês e à
escolástica, desacreditada e decadente, ainda vigente no Brasil, contrapuseram-se as
tendências monistas dos filósofos alemães como Ludwig Büchner, Jacob Moleschott e mais
particularmente Ernst Haeckel e Ludwig Noiré, entre outros. Segundo Tobias Barreto, a
salvação intelectual e cultural do Brasil estava na adoção dessas novas correntes alemãs
monistas, materialistas e antiescravistas que contrabalançavam as deficiências da filosofia e
da cultura francesas.
No mesmo período, já havia exemplos na Europa de proeminentes pensadores que se
deixaram influenciar pela cultura germânica. O Brasil, entretanto, ainda parecia ser imune a
essa influência em nítida progressão na Europa. Por exemplo, na Inglaterra, o ensaísta
Thomas De Quincey (1785-1859) traduziu do alemão para o inglês obras de Johan Paul
Friedrich Richter (1763-1825) – mais conhecido como Jean-Paul –, Immanuel Kant (1724-
1804), Ludwig Tieck (1773-1853) e Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), entre outros.
Thomas Carlyle (1795-1881), sempre na Inglaterra, tinha traduzido obras escritas em alemão,
especialmente os fragmentos de Novalis. Na Itália, a filosofia de Hegel influenciou de forma
significativa os filósofos Francesco de Sanctis (1817-1883) e Bertrando Spaventa (1817-
1883). Este último, digno representante da chamada esquerda hegeliana, escreveu “il far
intendere Hegel all'Italia, vorrebbe dire rifare l'Italia” [“fazer a Itália entender Hegel
significaria refazer a Itália”]. Refazer e consertar o Brasil com a ajuda intencional da
filosofia alemã – selecionando e adaptando os melhores elementos que poderão crescer de
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uma maneira idiossincrática –, este foi o verdadeiro projeto reformador de Tobias Barreto na
busca de uma identidade brasileira.
A França também foi varrida por um vento de mudança no mundo das ideias,
especialmente após a derrota francesa frente a Bismarck na Guerra Franco-Prussiana de 1870.
Assim, Ernest Renan, na França, viu na vida intelectual alemã o refúgio da razão e da ciência
desinteressada. Barreto assumiu a mesma posição de Renan, quando este, ao analisar a
vitória prussiana de 1866 em Königgrätz, escrevera:
Quem venceu em Sadow foi a ciência alemã, foram as virtudes alemãs, foi o protestantismo, foi a
filosofia alemã, foi Lutero, foi Kant, foi Fichte e foi Hegel (BARRETO 1990, 269).
Além disso, Hyppolite Taine dizia que houve uma ânsia, uma sofreguidão pela ciência
alemã, pela literatura alemã, pela cultura alemã simplesmente para contrabalançar a
hegemonia da cultura francesa. No Brasil, o movimento não deixará de voltar-se também
para a cultura germânica a fim de recolher as armas necessárias à renovação desejada. Clovis
Bevilacqua, companheiro constante e dedicado à causa do germanismo no Brasil e aliás
relacionado com a chamada Escola do Recife – e naturalmente com seu líder, Tobias Barreto
–, declarou no final do século XIX: “Nós, os brasileiros, fomos levados a olhar, a estimar e
a estudar os livros alemães, reconhecendo que, além de Portugal e da França, havia muito
que aprender” (MERCADANTE e PAIM, 1972, 155).
Deve-se observar o que significava o epíteto “alemão” para Barreto. Um elemento de
resposta tem de ser encontrado no prefácio de Estudos Alemães:
O epíteto de alemães, que dou aos escritos aqui prometidos, não serve para indicar o momento objetivo
do meu programa, visto como não tenho em mira fazer da Alemanha, em todas ou qualquer das relações,
em que ela possa e deve ser considerada, o assunto obrigado das minhas indagações; mas esse epíteto
indica, sem exceção alguma, o momento subjetivo da coisa, quero dizer, põe logo a descoberto o meu
ponto de partida, a minha intuição, as pressuposições necessárias do meu escrever e criticar. Isto é um
mal, eu o reconheço, que pode até dar em resultado um desgosto antecipado, uma prevenção
desfavorável à obra que empreendo. As ideias ditas alemãs ainda são entre nós umas hóspedes
importunas, e os poucos, bem poucos adeptos, que elas contam, continuam a passar, se não de todo por
uns tipos irrisórios, ao menos por extravagantes, que insistem no propósito irrealizável de implantar no
espírito nacional o gosto das coisas germânicas (BARRETO, 1991, 45).
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O fascínio de Tobias Barreto pela cultura alemã era inigualável. Irritava-o a obsessão
dos brasileiros pela França, cunhando a máxima: “A Alemanha ensina a pensar – a França
ensina a escrever.” (BARRETO, 1990, 274). Deve-se destacar aqui que seu entusiasmo pelo
germanismo nunca implicou o endosso incondicional e cego por tudo o que se pensava e se
escrevia na Alemanha. Por exemplo, ele criticou duramente a posição do judeu-alemão Adolf
Jellinek (1821-1893) num artigo de 1874 intitulado A alma da mulher (um texto reeditado
nos Estudos Alemães). Barreto investiu também contra os positivistas alemães, que
considerava como tão dogmáticos quanto seus correlatos franceses que empunhavam uma
bandeira de progresso e tentavam impedi-la a todos os povos. Aliás, ele não poupou crítica a
muitos prussianos que, a partir da década de 70 do século XIX, passaram a fazer um discurso
imperialista que denominavam de pangermanismo. Na verdade, de modo geral, Tobias
Barreto vê na Alemanha a possibilidade de identificar um contraponto à enorme influência
que a cultura francesa exercia no Brasil. Na sua opinião havia a necessidade de deixar de
receber de Paris todas as novidades, indicando ser possível ver o mundo através de outras
lentes que não as exclusivamente francesas. Tobias Barreto nunca escondeu essa
característica da sua maneira de pensar: “não fiz nem faço segredo do meu
Franzosenfressenthum” (BARRETO, 1888, 42), aversão que se traduz em exacerbado
entusiasmo pela cultura alemã que, todavia, não empana a sua lucidez no que tange ao
emaranhando de contradições das posições políticas assumidas pelos alemães. Sobre isso,
Barreto escreveu em Estudos de Direito:
Os pensadores alemães, em quase todos os domínios da inteligência, andam dez anos pelo menos, adiante
dos franceses. Não sei se deva executar o domínio político. A política alemã não me é totalmente
simpática (BARRETO, 2000, 19).
Por outro lado, os sentimentos patrióticos de Tobias Barreto para com a cultura alemã
não podem ser negados. Como alegava Miguel Reale, a temática patriótica incitou o
sergipano a traduzir o poema Minha Pátria [Mein Vaterland (Fallersleben)] (1840) de
Heinrich Hoffmann (1809-1894), publicado na versão original alemã e na tradução, no seu
jornal O Americano, em 1870 (REALE, 1991, 66). Então, podemos especular que o uso da
língua alemã foi encarado por Barreto como um verdadeiro protesto lançado contra as
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em alemão (existe uma reprodução desta monografia numa nova edição de 1990). Um exame
superficial do texto escrito em alemão revela imediatamente erros grosseiros na escrita ou na
tradução do português para o alemão. Por exemplo, Barreto escreveu na apresentação do Der
Deutsche Kämpfer “Von Tage zu Tage” (De dia a dia) em vez de escrever “Vom Tage zu
dem Tage”. Em outra sentença escreveu: “und Wissenschaft und Philosophie aussahen, wie
eigentlich französisch Waren die man sich um jeden Preis ankaufen möchte” (“e a Ciência e
a filosofia pareciam propriamente mercadorias francesas, as quais se podia comprar por
qualquer preço”). O erro gramatical aqui é o seguinte: precisamos escrever “Wisenschaft und
Philosophie aussehen” em vez de “aussahen”.
Barreto escrevia e lia bem, embora alguns textos produzidos nos primeiros anos de
manejo do idioma apresentem problemas. Todavia, dominou as obras clássicas e científicas
alemãs. Contudo, sua pronúncia era quase incompreensível. Sua condição de autodidata no
idioma o impediu de resolver determinados problemas fonéticos que tornavam ininteligível
aos alemães aquilo que ele dizia, ao expressar-se oralmente. Assim, os problemas de Barreto
com a língua alemã só apareciam no momento da comunicação verbal: “tão somente na sua
pronúncia, não chegou a vencer, como autodidata, uma estranha acentuação, de tal modo que
os alemães tinham suas dificuldades em entendê-lo” (OBERACKER, 1990, 269). O
intelectual sergipano Sílvio Romero, seu amigo de longa data, lembra-nos como Barreto foi
iniciado na língua e na cultura alemã:
Foi, então, em 1870 que Tobias Barreto se decidiu pelos germânicos. Com aquele ardor que ele punha
em tudo, com aquela enorme capacidade de aprender que o impelia, comprou um dicionário e uma
gramática alemães, e pediu ao livreiro que lhe mandasse buscar na Europa a Geschichte des Volkes
Israels, de Ewald. Foi este o primeiro livro alemão que o poeta sergipano possuiu. No intervalo, entre a
encomenda e a chegada da célebre obra, o nosso patrício ficou estudando a língua alemã consigo mesmo
(ROMERO. 1905, 122-123).
Conclusão
Ao optar pelo germanismo, Tobias Barreto, agente de tradução, fez mais do que
demonstrar sua inclinação pessoal por uma determinada cultura. Quando sua obra é vista em
conjunto, e não isoladamente, sem preconceitos, é possível perceber que havia toda uma
motivação no cenário brasileiro, presente na totalidade das investigações da Escola do Recife.
A busca frenética diante da necessidade de assumir as tendências que àquele grupo de
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intelectuais parecia ser a mais avançada e mais adequada ao tempo. Daí ser fundamental
submeter ao crivo crítico, como fez toda a produção intelectual do seu tempo. Muitas vezes
há dificuldade em se perceber isso, diante da falta de unidade natural em uma obra dispersa
e produzida esparsamente em diversos meios impressos de grande, média e pequena tiragem
ao longo de muitos anos.
O problema tradutológico que nos interessa precisamente aqui envolve a avaliação da
qualidade das traduções do alemão para o português feitas por Tobias Barreto. Assim,
precisamos localizar nos textos de Tobias Barreto todas as referências e as citações – diretas
e/ou indiretas (ou oblíquas) – dos autores alemães para garantir a precisão, a fidelidade ou,
quando aplicável, a manipulação envolvida em suas traduções. Esta dimensão do problema
tradutológico é muito importante porque um de seus mais fiéis colaboradores, Sílvio Romero,
no inicio do século XX, foi acusado de ter traduzido autores alemães a partir de traduções
em francês. O conhecimento comprovado que Barreto tinha da língua alemã provavelmente
serve como prova para livrá-lo de quaisquer suspeitas. Nesse sentido, seguindo Antoine
Berman em Pour une critique des traductions: John Donne, precisamos distinguir entre uma
tradução e uma translation. Esta última muitas vezes acontece de modo diacrônico: o
encontro com a obra estrangeira numa língua estrangeira, a adaptação, a primeira tradução
(às vezes parcial e explicativa) e finalmente a tradução total e crítica da obra. A translation
inclui a tradução, mas também a critica e numerosas formas de transformações textuais (e às
vezes não-textuais). Portanto, acreditamos que uma crítica das traduções de Barreto é
inevitável. Precisamos também destacar o papel exato desempenhado pelos impressos neste
processo tradutório.
Polemista, destruidor, mata-mouros de velhas crenças enraizadas na cultura brasileira
retrógrada e conservadora do fim do século XIX, Tobias Barreto acumulou mais desafetos
do que amigos. Despediu-se do mundo doente e miserável, proferindo do leito de morte seu
último pedido: “Erguei-me! Quero morrer como soldado prussiano!” (BARRETO 1990,
277).16 Chegou a hora de examinar as suas traduções e avaliar o seu papel como agente de
tradução sem quaisquer preconceitos.
16
Como relatado por João Luiz Barreto (1872-1950) – um dos nove filhos de Tobias Barreto – foram
aparentemente as últimas palavras do filosofo brasileiro em seu leito de morte. Cabe observar que existe também
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elefante e a metrópole. A índia entre história e globalização]. Bari: Edizioni Dedalo, 2012.
uma variante desta citação: ‘Sentem-me, quero morrer como um soldado prussiano’. Ver (Teles 1924; 1925;
Viera 1939, 82; Mont’Alegre 1939, 295; Nascimento 1966, 45).
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Liliam Ramos1
RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar a Autobiografia do poeta-escravo Juan
Francisco Manzano, única obra latino-americana conhecida escrita por um homem negro ainda
em situação de escravidão em Cuba. Com tradução publicada no Brasil em 2015 pelo escritor,
pesquisador e tradutor Alex Castro, propõe-se uma discussão do texto traduzido sob a ótica dos
Estudos Culturais. Os teóricos dos Estudos Culturais utilizados no ensaio – Gayatri Spivak,
Stuart Hall e Boaventura Sousa Santos – sustentam que o sujeito pós-colonial é alguém que se
posiciona entre duas culturas e que constantemente desenvolve estratégias de tradução cultural
entre diferentes povos. As pesquisadoras dos Estudos da Tradução Susan Bassnet e Rosemary
Arrojo inserem os textos traduzidos em uma perspectiva intercultural, na qual o tradutor não
pode eximir-se tampouco invisibilizar-se. A reflexão abordará a presença do tradutor no
processo de tradução intercultural de um texto escrito no século XIX de acordo com a proposta
de Castro que realizou uma Tradução (adaptação ao português contemporâneo) e uma
Transcriação (criação de um Manzano lusófono fictício, cujo texto mantém os desvios de
gramática e as estruturas sintáticas presentes na versão de 1835), além de 342 notas explicativas
relacionadas ao contexto escravocrata da época e à escrita dialética de Manzano. Discutiremos
o papel do tradutor que transcodifica textos incluídos em uma perspectiva pós-colonial e sua
mediação na tradução linguística e cultural.
RESUMEN: Este texto tiene como objetivo analizar la Autobiografia do poeta-escravo Juan
Francisco Manzano, única obra latinoamericana conocida escrita por un hombre negro todavía
en situación de esclavizado en Cuba. Con traducción publicada en Brasil en 2015 por el escritor,
investigador y traductor Alex Castro, se propone una discusión del texto traducido bajo la óptica
de los Estudios Culturales. Los teóricos de los Estudios Culturales utilizados en el ensayo –
Gayatri Spivak, Stuart Hall y Boaventura Sousa Santos – sostienen que el sujeto postcolonial
es alguien que se ubica entre dos culturas y que constantemente desarrolla estrategias de
traducción cultural entre diferentes pueblos. Las investigadoras de los Estudios de Traducción
Susan Bassnet y Rosemary Arrojo insertan los textos traducidos en una perspectiva
intercultural, en la cual el tradutor no puede eximirse tampoco invizibilizarse. La reflexión
abordará la presencia del traductor en el proceso de traducción intercultural de un texto escrito
1
Professora de Língua Espanhola, Literatura Hispano-americana e Tradução Português/Espanhol no
Instituto de Letras/UFRGS; graduada em Letras - Bacharelado Português/Espanhol (UFRGS); Mestre e
Doutora em Letras (UFRGS); coordenadora do projeto Tradução e Legendagem na UFRGS vigência 2014-
2016; desde 2012 coordena o projeto Vozes negras no romance hispano-americano.
Contato: liliam.ramos@ufrgs.br
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en el siglo XIX de acuerdo con la propuesta de Castro que realizó una Traducción (adaptación
al portugués contemporáneo) y una Transcriación (creación de un Manzano lusófono ficticio,
cuyo texto mantiene los desvíos de gramática y las estructuras sintácticas presentes en la versión
de 1835), además de 342 notas explicativas relacionadas al contexto esclavista de la época y a
la escritura dialéctica de Manzano. Discutiremos el papel de traductor que transcodifica textos
incluidos en una perspectiva postcolonial y su mediación en la traducción lingüística y cultural.
Preliminares
A tradução é um processo intercultural cujo resultado permite analisar o modo como uma
determinada sociedade recebe uma obra, um(a) autor(a), uma literatura, uma cultura diferente
da sua. As diversas reflexões sobre a tradução (e suas práticas, abordagens teóricas, recepção)
que tiveram como consequência a constituição dos Estudos da Tradução como uma disciplina
independente têm se consolidado para pensar a tradução além da transposição semiótica com
foco nos processos linguísticos. O ato de traduzir envolve um conjunto complexo de critérios
extralinguísticos que se aprofundam em uma dimensão cultural muito mais abrangente: o
tradutor assume um papel que ultrapassa o de mediador linguístico, constituindo-se também em
mediador cultural entre textos e culturas distintas.
Tomando de empréstimo o título do ensaio Can the subaltern speak? (1988)2, da
intelectual indiana Gayatri Spivak, no qual a especialista em crítica literária questiona a real
abertura de espaço para as vozes dos indivíduos cujas culturas e representações são
consideradas subalternas e que convivem com a opressão e o silenciamento em contextos
patriarcais e pós-coloniais, a presente reflexão pretende questionar o quanto a participação do
tradutor nas obras incluídas na perspectiva pós-colonial será determinante na (re)produção de
um texto que precisa transpor à cultura de chegada muito mais do que aquilo que está registrado
graficamente no papel. Neste caso específico, proporemos uma discussão sobre a obra
traduzida A autobiografia do poeta-escravo Juan Francisco Manzano, com organização,
tradução e notas de Alex Castro, escritor e pesquisador atento ao tratamento dado aos menos
privilegiados (sócio e economicamente) como mulheres, negros e homossexuais e questionador
das situações de exclusão, como pode ser conferido em sua página www.alexcastro.com.br. Os
2
Utilizaremos como referência a tradução brasileira de 2010.
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processos tradutórios realizados por Castro passaram por etapas como compreender
integralmente um texto manuscrito por um escravizado alfabetizado informalmente, inserido
em seu contexto de escritura no século XIX; também, foi necessário transpor à língua
portuguesa toda a significação que um texto como esse pode apresentar ao leitor, primeiro em
uma escritura arcaica e, após, em uma linguagem contemporânea. Utilizaremos as reflexões de
Arrojo (2007) sobre o Texto de Chegada (TC) ser uma representação do Texto de Partida (TP),
e o quanto o ato interpretativo do tradutor é relevante nesse processo.
O protagonismo do negro na literatura começou a ser retratado desde a época colonial,
manifestando-se, principalmente, nos círculos intelectuais de Cuba. A literatura cubana de
temática escravagista desenvolvida no século XIX era, em grande parte, publicada a partir de
encomendas vindas da Europa realizadas por intelectuais como Domingo del Monte, crítico
literário e fundador da Academia Cubana de Literatura. Del Monte e os demais ideólogos
abolicionistas da época acreditavam que para solucionar o problema da escravidão era de suma
importância que argumentos a favor do antiescravismo viessem também das vítimas. Dessa
forma, a criação de tertúlias para discussões sobre a temática emerge de maneira a promover a
cultura criolla de raiz africana altamente influenciada pelos ideais abolicionistas da Inglaterra
e dos Estados Unidos. É nesse contexto que o escravizado Juan Francisco Manzano, conhecido
pelas declamações de poemas em reuniões e saraus poéticos, é convidado a escrever a sua
história. De acordo com Castro (2015), o convite não surgiu apenas pela admiração que os
participantes sentiam por sua oratória; devemos recordar que, no início do século XIX, ocorrera,
no Haiti, a primeira revolução de independência nas colônias americanas, um risco ainda vivo
e real à época da escrita da Autobiografía. A encomenda do texto, portanto, se inseriu no projeto
de desviar o olhar do temido “perigo negro” e mostrar aos interessados no tema um escravizado
submisso, religioso e obediente que seguia os códigos brancos.
Somente no ano de 2015 o leitor brasileiro pôde contar com a tradução da obra
Autobiografía de Juan Francisco Manzano, escrita em Cuba por volta do ano de 1835 por
Manzano e que se tornaria o texto precursor do gênero autobiografia na América Latina. Texto
que circula, primeiramente e por muito tempo, somente em versão traduzida: patrocinado pelo
abolicionista Richard Madden, foi publicado pela primeira vez no ano de 1940, na cidade de
Londres, em tradução para a língua inglesa sob o título de Life of the negro poet, texto que
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retornaria a Cuba um século depois, publicado em língua espanhola na ilha apenas em 19373.
Nesse entretempo, Manzano obteve sua liberdade em 1836, publicou uma peça de teatro, Zafira,
em 1842, e continuou escrevendo poemas até 1843. Em 1844 foi preso durante a repressão da
Conspiración de la Escalera mas, com o fuzilamento de outros poetas negros acusados de
conspiradores, como Plácido, Manzano passou seus últimos anos sem escrever. Para Castro
(2015), “a repressão não matou o homem mas calou o poeta” (p.145), visto que Manzano
percebeu que o destaque literário poderia ser um perigo para os afrodescendentes naqueles
tempos.
O livro divide-se em três partes: na primeira, com prefácio de Ricardo Salles (professor
de História da UNIRIO, especialista em século XIX) e apresentação de Alex Castro, o leitor
brasileiro tem a oportunidade de compreender o contexto da publicação do relato. A segunda
parte da obra apresenta os dois trabalhos de transposição da Autobiografia à língua portuguesa
realizados por Castro: uma tradução e uma transcriação. O texto traduzido tem como objetivo
alcançar estudantes do ensino médio e o público em geral na medida em que apresenta o texto
quebrado em parágrafos, atualiza a pontuação e ortografia, simplifica as construções truncadas
e substitui os vocábulos fora de uso. A intenção foi aproximar o texto ao leitor contemporâneo
e, de certa forma, conseguir publicá-lo por uma grande editora para que tenha circulação
nacional. Para tanto, a adaptação à norma culta da língua portuguesa tornou-se inevitável.
Surpreendentemente, chama a atenção a transcriação realizada por Castro. Com auxílio
do músico e tradutor Pablo Zumarán, Castro cria a voz de um Manzano lusófono fictício, dando
fidelidade à voz do escravizado, à sua sintaxe, à sua escolha de palavras, ao ritmo das frases e
à peculiar pontuação, mantendo os desvios à norma culta em português na mesma proporção
do espanhol escrito por ele em 1835. Vale lembrar que Castro buscou, como original, o texto
mais autêntico que se conhece, o manuscrito que se encontra na Biblioteca Nacional José Martí,
autógrafo, com a caligrafia de Manzano, que apresenta uma tentativa de utilização da norma
culta, com ortografia e sintaxe idiossincráticas e pontuação inexistente. Verifica-se, portanto, o
árduo trabalho de Alex Castro em recriar essa construção linguística para a língua portuguesa e
também o quanto se sente mais à vontade nesta parte já que, para ele, corrigir os erros
ortográficos, gramaticais e sintáticos de Manzano significou “apagar sua trajetória, silenciar seu
3
Referência à publicação do texto na íntegra. Trechos da autobiografia foram publicados em 1878 na antologia
Poetas de Cor, organizada por Francisco Calcagno. Atualmente, há dois manuscritos na Biblioteca Nacional José
Martí, em Cuba: uma versão autógrafa de Manzano (utilizada por Castro para a tradução) e uma versão corrigida
por Anselmo Suárez y Romero, de 1839. Há, também, uma cópia da versão corrigida na Biblioteca de Yale, EUA.
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sofrimento e rasurar sua vida” (p.18). Na terceira parte da obra, Castro nos brinda com
iconografias, sugestões de leitura para os brasileiros que se interessam pelo tema, bibliografia
extensa de pesquisa, os estudos para a criação da voz lusófona do Manzano fictício, além do
epílogo “Réquiem para Manzano”, do historiador cubano Urbano Martínez Carmenata citado
na Autobiografia.
As citações retiradas do texto autobiográfico de Manzano utilizadas neste artigo seguirão
a norma da transcriação proposta por Alex Castro. Dessa forma, esperamos manter o respeito e
a admiração do tradutor pelo escravizado que tentaram calar por tantas vezes e cuja voz
permanece ecoando até os dias de hoje, lembrando a todos nós as atrocidades praticadas pelos
senhores de escravizados e a conivência da sociedade com o tipo de tratamento dado a eles.
4
Em texto de apresentação à tradução, a tradutora explica que decidiu manter a palavra cimarron (sem acento) por
trata-se de um termo específico.
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mundo e acabou se tornando a referência ao falar-se sobre a escravidão em Cuba, visto que os
revolucionários de 1959 o escolhem por seu espírito inquieto e insatisfeito com a situação, ao
contrário de Manzano, considerado demasiado manso e conservador. Ainda segundo o tradutor,
a Autobiografia é muito mais lida e discutida fora da ilha e, nas livrarias cubanas, encontram-
se vários exemplares das Memórias e nenhum da Autobiografia, esta com última edição de
1972. Em fevereiro de 2016, Castro lançou uma edição comentada da Autobiografía em Cuba
pela editora Matanzas, o que comprova que foi necessário o interesse de um escritor não cubano
em reativar a impressionante história de Juan Francisco Manzano.
A existência do texto de Manzano é insólita para a época já que a maioria dos escravizados
era analfabeta, com qualquer acesso ao ensino vedado pelos proprietários. No entanto, Manzano
se apropria do proibido, ensinando-se a si mesmo como ler e escrever, escondido, copiando e
transcrevendo poemas que haviam sido escritos por outros poetas. Embora seu texto sirva como
um testemunho dos horrores que sofreu como escravizado, foi seu reconhecido talento poético
que provocou o respaldo que recebeu do abolicionista Domingo del Monte, que o converteu em
seu protegido literário, conseguindo sua liberdade em 1836. E é justamente por este motivo, por
ter um padrinho dentro do mais respeitado círculo literário de Cuba, adjunto ao fato de que
homens da elite cubana participavam de tais reuniões literárias, que é possível notar uma clara
moderação em seus relatos, principalmente quando se refere à sua ama, a Marquesa del Prado
Ameno, já que ele escrevia a autobiografia em troca de dinheiro para comprar sua liberdade.
Quem se disponibiliza a traduzir um texto como a autobiografia de Manzano certamente
precisa compreender muito mais que a transposição das línguas espanhol/português nos
contextos dos séculos XIX e XX: é preciso detectar as nuances dos silêncios do escravizado de
forma a manter o ritmo que ele desenvolveu no texto de partida para que se possa compreendê-
lo na contemporaneidade. Retomando a noção de texto traduzido como um palimpsesto, Arroyo
(1996) afirma que o signficado original não é fixo ou estável e depende do contexto em que
originalmente ocorre: o texto se apaga, “em cada comunidade cultural e em cada época, para
dar lugar a outra escritura (ou interpretação, ou leitura, ou tradução) do ‘mesmo’ texto” (p.23-
24). A pesquisadora defende a inevitabilidade da interpretação e do viés inscritos em toda a
tradução reafirmando o protagonismo do tradutor, que reivindica seu espaço fugindo da
inferioridade incômoda e da transparência impossível. Através da conscientização de uma
responsabilidade autoral por parte do tradutor, este se torna componente essencial e participante
ativo na criação de significados. No caso de Castro, tradutor e escritor politicamente engajado,
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ele assume sua interferência e tem consciência de que a tradução “faz alguma coisa”
(ARROYO, 1996), deixando claro quais são suas posições políticas e ideológicas,
características essenciais para interpretar e traduzir um texto como a autobiografia de Manzano.
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promovendo uma espécie de dupla tradução. Desse modo, podemos considerar a língua materna
e a língua estrangeira como complementares, e não antagônicas, já que os focos da tradução
intercultural e das literaturas pós-coloniais estão muito próximos pois se ocupam, além da
transcodificação linguística, da transmissão de elementos culturais. No caso da obra analisada,
citamos a nota 44 à página 151. No texto autobiográfico, Manzano utiliza adjetivos com teor
exagerado para referir-se à sua senhora: “mas aquella bondadozíssima senhora fonte
inesgotavel de graças (44) tornou á renovar hum documento offerecendo-le a liberdade do outro
ventre nacece o qᵉ. nacece” (p.94-95), e, na nota explicativa, Castro aproxima os países Brasil
e Cuba e as suas narrativas da escravidão: Nota 44: “Ainda cativo e escrevendo para um público
de literatos brancos escravistas, o quase-brasileiro Manzano demonstra sempre não apenas
‘saber seu lugar’ como também ‘saber com quem está falando” (p.151).
Para o intelectual Boaventura de Sousa Santos (2009), a tradução cultural tem como tarefa
recuperar as experiências cognitivas perdidas pelo epistemicídio massivo das nações do Norte
que vigiam as fronteiras dos saberes. Arroyo (1996) chama a atenção para a proximidade da
tradução e da colonização: características ainda defendidas por estudiosos da tradução que se
apoiam em uma ética dominante se referem à transparência e ao respeito incondicional ao
“original” (poderoso, sagrado), traços também encontrados na colonização como
supremacia/superioridade do colonizador como pretexto para sobrepujar a cultura e a identidade
do colonizado. Nesse caso, há o apagamento da diferença e o destaque para as relações
assimétricas com o Outro. O tradutor, portanto, deve estar consciente da relevância do texto
que está traduzindo:
Para Santos (2009), a tradução deve operar em dois níveis, o linguístico e o cultural.
Através da tradução intercultural, chega a ser possível identificar preocupações comuns,
enfoques complementares e, também, contradições inultrapassáveis; por esse motivo, a
tradução cultural será uma tarefa desafiadora a filósofos, cientistas sociais, tradutores e
pesquisadores do século XXI. Por exemplo, nas literaturas conhecidas como de minorias, o
aspecto intercultural da tradução não somente é necessário como indispensável pois esses textos
estão carregados de fatores políticos, culturais e ideológicos e têm um forte papel social em
suas comunidades. Se no TP há o reconhecimento da diversidade de experiências, saberes e
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práticas existentes dos povos em questão, a interpretação e a tradução por meio de olhares
desconstruídos, que conheçam e que respeitem as culturas alvo e fonte, certamente resultará em
um produto mais conveniente e adequado à proposta do TP.
Gayatri Spivak (1990) define a tradução como transmissão de textos literários e culturais
através de uma forma - outra - de imaginarmos culturas de maneira mais compreensiva e mais
responsável como estímulo para um (re)pensar de nós mesmos pelo olhar dos povos
emergentes. Asseverando as afirmações de Hall, Bassnet e Santos, para a intelectual indiana,
os desafios do tradutor não se resumem às dificuldades específicas relativas à transposição dos
idiomas, e sim se ampliam na transmissão das marcas culturais peculiares de determinadas
regiões à cultura de chegada, além da complexidade de enredos e personagens e, também, o
forte papel social deste tipo de literatura. É nessa linha que a tradução da Autobiografía
realizada por Alex Castro está posicionada. Além da importância da reativação da narrativa,
Castro, como tradutor e organizador das notas que acompanham o texto transcriado, pretende
contestar algumas impressões deixadas por Manzano em seu texto em uma leitura menos atenta.
Por exemplo, as características de “manso e conservador” que Manzano poderia ter apresentado
ao descrever sua vida e comentar sobre suas impressões de homem negro escravizado é refutada
pelo pesquisador quando questiona sobre a real permissão para falar que lhe fora concedida:
Castro afirma que a Autobiografia não é prosa espontânea já que houve reflexão, escolha
de episódios e construção narrativa, pois continuamente Manzano menciona episódios que
decide não contar: “(...) estive a pique de perder a vida em maõs do sitado Silbestre mas
pasemos em silencio o resto d’esta sena doloroza pasado este tempo com otra multidaõ de
soffrimentos semeliantes (...)” (p.107). Castro expõe em nota: “Em Manzano, todo clímax é
seguido de um silêncio ainda mais estrondoso, um silêncio intencional que simultaneamente
revela e ofusca” (p.162). Além dos silêncios, o tradutor também analisa as rasuras do
manuscrito: “No manuscrito, depois de ‘mas’, Manzano escreveu ‘a última’, rasurou e
substituiu por ‘a vez pª. mim mais memorável qᵉ. todas’. Quantas cenas terríveis de tortura e
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castigo Manzano não deveria estar equilibrando em sua memória para fazer esse tipo de
autocorreção?” Também chamam a atenção os interstícios temporais escolhidos por ele: “Desde
meus doze anos dou hum salto até a de quatorze deixando em seu inter médio algumas
passagens em qᵉ. se virifica como minha fortuna era instavel” (p.97). Os “privilégios” de
Manzano também são evidenciados. Um exemplo destacado por Castro é a oportunidade de o
escravizado ter conhecido sua família e ter convivido com ela, exposto em opinião pessoal nas
notas explicativas:
Manzano, mais uma vez, demonstra ser uma pessoa escravizada privilegiadíssima.
O que, naturalmente, só aumenta o nosso próprio terror ao ler seu relato: se a vida
das pessoas escravizadas privilegiadas era assim, como seria a vida das outras cuja
voz nunca chegou até nossos ouvidos? (CASTRO, 2015, p.182)
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O professor e pesquisador da USP John Milton publicou texto discutindo o fator econômico na circulação de
textos traduzidos: A importância de fatores econômicos na publicação de traduções: um exemplo do Brasil, em
2010, disponível em <file:///C:/Users/user/Downloads/40284-47600-1-PB.pdf> Acesso em 28.fev.2017
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questão e opta pelo termo sinhozinho, pois neste caso não havia o benefício das notas e
precisava decidir por uma palavra que desse conta de contextualizar o vocabulário da
escravidão ao sentido que ele desejava demonstrar ao leitor: “As palavras são
‘multimoduladas’. Elas sempre carregam ecos de outros significados que elas colocam em
movimento, apesar de nossos melhores esforços para cerrar o significado” (HALL, 2003a,
p.41). Acreditamos que foi uma boa opção do tradutor, porém ler o texto transcriado e as notas
nos revela muito mais sobre a perspectiva da sociedade escravocrata e faz com que a
decodificação se aproxime do texto de Manzano.
O segundo ponto trata das observações de Manzano que, primeiro, elogia sua sinhá
argumentando que ela era muito cuidadosa com o menino, porém, em uma mesma frase sem
pontuação (próprio do texto), como se não quisesse deixar escapar o que realmente acontecia
no momento das refeições, ele era tratado como um cachorro, com a comida jogada aos seus
pés, e logo comenta sobre a saudade que sentia de seus pais e sobre a tristeza de viver longe de
sua família. Segundo Castro (2015, p.147), “O episódio é característico da prosa de Manzano:
depois de tecer mil elogios à pretensa bondade de uma pessoa branca, ele sorrateiramente sugere
que as coisas não eram bem assim”.
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a única outra narrativa de uma pessoa escravizada cubana, da qual se falará mais
adiante.
Texto traduzido/adaptado
Mas, como a melancolia já estava instalada em minha alma e havia tomado em
meu físico uma parte de minha existência, eu me sentava embaixo de uma
guaxiúma, cujas raízes formavam uma espécie de pedestal, e me alegrava compondo
alguns versos de memória, todos eram sempre tristes, que eu não escrevia por ignorar
esse ramo. Por isso, sempre trazia um caderno de versos na memória e, por qualquer
coisa, improvisava. (p.41-42)
Fonte: A autora (2017)
A linguagem poética aparece em partes do texto como uma expressão triste e melancólica
de Manzano que se vê um desafortunado por ter o dom poético mas não poder expressá-lo da
forma como gostaria. É possível que, no texto escrito pelo escravizado, houvesse outras partes
relacionadas às formas literárias utilizadas por ele, mas que foram suprimidas pelos tradutores
à língua inglesa por não interessar ao público-alvo, que ansiava pelas narrativas de violência.
Percebe-se, novamente, uma adequação da nota explicativa direcionada ao leitor brasileiro,
buscando uma aproximação entre as histórias de escravidão ocorridas nos dois países. É ponto
interessante que ele ficasse embaixo de uma guaxiúma, descrita em nota como uma árvore
associada aos enforcamentos dos escravizados cimarrones, que se transforma em um espaço de
ressignificação para o escravizado que elaborava versos de memória por medo de escrevê-los e
ser castigado por isso, conforme havia acontecido diversas vezes (e viria a acontecer). Castro
observa que
(...) para Manzano, escrever era um ato criador de liberdade, mas também de
subjugação às vontades e objetivos políticos dos literatos brancos: de
reivindicação de sua subjetividade de ser humano e de poeta, mas também de
contínua e reiterada humilhação. (CASTRO, 2015, p.154)
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Considerações finais
Retomando a pergunta inicial de Spivak (2010) ao questionar se, realmente, o subalterno
está em uma posição na qual pode falar e pode ser ouvido, salientamos que a voz de Manzano,
embora hoje considerada relevante por se tratar de um documento único na história da literatura
latino-americana, foi tolhida pelos próprios incentivadores da sua escrita. Para Castro, os
componentes do grupo delmontino talvez até pudessem desejar a abolição da escravidão,
porém, sua própria concepção de mundo e a posição que ocupavam na sociedade cubana não
concebiam a possibilidade de existência de um intelectual negro: “nunca houve espaço para
Manzano falar, escrever ou mesmo existir, seja como intelectual ou artista” (CASTRO, 2015,
p.146).
E podemos ouvir o subalterno? Devemos, no mínimo, exercitar nossa capacidade de
compreensão e interpretação dos sujeitos silenciados e, no caso da Autobiografía, o tradutor é
a peça chave na articulação dos discursos transpostos. Neste ponto, é necessário destacar a
pesquisa minuciosa de Castro em suas 342 notas que, além de esclarecer o contexto da
publicação e trazer informações diversas ao leitor, ressaltam também os silêncios de Manzano,
gritantes em alguns momentos do relato. Castro explica: “Em se tratando de textos antigos,
especialmente escritos por pessoas em posição subalterna, só o que temos são conjecturas. Com
base nelas, fazemos o melhor trabalho possível” (p.25). Nas notas, posicionadas ao final do
texto transcriado, Castro se solta: questiona, induz, sugere, afirma, duvida, levando o leitor a
participar do jogo dialógico de Manzano. No texto introdutório, Castro orienta que a leitura do
texto transcriado seja realizada em voz alta, permitindo que o leitor se desprenda das normas
de escritura (estruturas sintáticas, gramática, pontuação, etc.), possibilitando que o texto fale
em seus próprios termos e que possamos nos aproximar da voz silenciada de Manzano:
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É possível afirmar, portanto, que a tradução de Castro foi bastante respeitosa com a voz
de Manzano, abrindo espaços para que o escravizado pudesse relatar os acontecimentos
ocorridos em sua vida, especialmente no texto transcriado, com o auxílio das notas explicativas.
Obviamente, muitas informações se perderam durante os anos subsequentes à escrita da
Autobiografía, já que pouco se oficializou com relação às histórias da escravidão e, o que se
tornou oficial, foi escrito por homens brancos que ocupavam posições de autoridade nas
sociedades coloniais e que adaptaram os acontecimentos aos seus pontos de vista. As notas
explicativas deixam claro qual a posição ideológica de Castro, que pode ser conferida na leitura
dos demais textos do escritor. Muitos leitores poderão se sentir incomodados com a presença
gritante do tradutor, no entanto, consideramos que, no caso de traduzir um texto produzido às
margens do sistema, a tomada de posição é inevitável. Arroyo (1996) chama esse processo de
perda da inocência nos estudos da tradução, quando ocorre o reconhecimento por parte do
tradutor de que não há uma ética dissociada dos interesses a que inevitavelmente serve. Se o
tradutor não interfere, não toma partido e mantém o texto asséptico, configura-se também uma
tomada de posição. Com relação aos tradutores,
Quanto mais conscientes estiverem dessa realidade e do papel que exercem sobre
e a partir dela, menos hipócrita e menos ingênua será a intervenção linguística,
política, cultural e social que inescapavelmente exercem. (ARROYO, 1996, p.64)
Referências
ARROJO, R. Oficina de tradução: a teoria na prática. 5.ed. São Paulo: Ática, 2007.
______. Os estudos da tradução na pós-modernidade, o reconhecimento da diferença e a perda
da inocência. In: Cadernos de Tradução, v.1, n.1, Florianópolis, 1996. Disponível em
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/5064/4567> Acesso em
28.fev.2017
BASSNET, S. Post-colonial translation: theory and practice. Brighton: Routledge, 1999.
CAMPUZANO, B.S. Revelaciones y silencios: Autobiografía de un esclavo, de Juan Francisco
Manzano y Biografía de un cimarrón, de Miguel Barnet. In: Mitologías hoy. Universitat
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Yéo N’gana1
1
Doutorando em Estudos de Tradução, possui Graduação em Letras (Português) pela Universidade Félix
Houphouët Boigny (UFHB – 2010) e Mestrado em Letras (Sociolinguística) pela Universidade Félix
Houphouët Boigny (UFHB – 2014). Especialização em Desenvolvimento Sustentável e Gestão Ambiental
pelo Centre de Recherches et d’Action pour la Paix (CERAP). Tem experiência em ensino de inglês (Centro
Cultural americano – American Corner CIRES). Atualmente é Membro do Núcleo de Pesquisa História da
Tradução (CNPq/UFSC). Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. E-mail: nganayeo@gmail.com.
2
A tradução dos títulos e citações neste trabalho é da nossa autoria.
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Humboldt pelo conjunto da obra sobre as literaturas africanas. Faleceu em agosto de 2016.
Já na introdução de Le sable de Babel, Ricard faz questão de definir conceitos –
revolução, babel, apartheid, missão de Paris, texto e textualidade, e o possível nexo entre
tradução “dialógica” e “subliminal” – que lhe parecem essenciais para mergulhar na
viagem que o texto propicia. Para tanto, sua abordagem foi a chamada “antropologia da
textualidade”. A partir de exemplos variados e estendidos no tempo (num período de
aproximadamente 200 anos) e no espaço (do leste passando pelo sul e centro até a região
subsaariana da África), Ricard busca mostrar historicamente a relação línguas-discursos-
genética textual. Entre suas preocupações, nos deparamos com as seguintes perguntas:
“De onde vem (esse discurso)? Como chegou nas nossas mãos? Será que é o original?
Como textualizá-lo, isto é, o processo que, através de discursos duráveis e traçáveis,
produz textos?” (p. 39). A traçabilidade do discurso é capital (Toulabor, 2013), pois
permite ao fragmento do texto “ser assinalável a uma instância específica, identificável
no campo dos discursos, situado numa sequência cronológica que possibilita rastrear sua
gênesis.” (Ricard, 2011, p. 39) Tendo o apoio financeiro de diversas instituições de
pesquisa, Ricard vem retraçando o destino pouco comum desses discursos textualizados
partindo de 1800 até hoje. O autor destaca a importância dos trabalhos de monges tanto
de La Mission de Paris (Eugene Casalis, 1812-1891; Victor Ellenberger, 1879-1972)
quanto da London Missionary Society (Robert Moffat, 1795-1883; Hinrich Lichtenstein,
1780-1857) preocupados em entender as línguas e mentes africanas para posteriormente
traduzir a Bíblia nesses idiomas, e assim introduzir e expandir as culturas coloniais
eurocêntricas. Ricard também tem consciência do quão fundamental a tradução é num
projeto de tal envergadura. Por isso, procurou neste livro explorar a complexa relação da
prática da tradução como ponte com o apartheid3. Poliglota, Ricard leu e comparou
diversas obras tais como as de Thomas Mofolo (Moeti Oa Bochabela, 1907; Pitseng,
1910; Chaka, 1925) originais na língua sesoto e suas traduções para o inglês sem ficar no
labirinto semântico de um tradutor/intérprete, e conversou também com Ebrahim
Hussein, o mais notório dos escritores em Swahili e do teatro tanzaniano.
Bem escrito e fluido, o texto é agradável de ler especialmente pelo caráter
instigador e convidativo dos títulos de seus capítulos, a saber: Chapitre premier:
Interprètes et philologues: Comprendre des langues inconnues (Interpretes e filólogos:
3
Instituição regida por um conjunto de [pre]conceitos e leis que privilegiam a separação racial.
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Se você quer alcançar um povo na sua mais profunda intimidade, se você quer
desenraizar um povo, se você quer desesperar, desequilibrar um povo, se você
quer tornar um povo vulnerável para abatê-lo com uma facilidade pueril, isto é,
se você quer assassinar infalivelmente um povo, se você quer matá-lo de uma
ciência exata: destrua sua alma, profane suas crenças, suas religiões. Negue sua
cultura, sua história, queime tudo que ele adora e o objetivo será alcançado, sem
que você mesmo perceba. O que vale um povo que não sabe mais interpretar
seus próprios signos? Que força moral, que solidez pode ter um povo que perdeu
a significação de seus próprios mitos, de seus símbolos? Um estrangeiro para si
mesmo. (1980, p.39; tradução nossa)
Para falar em tradução dialógica, Ricard aposta na importância das trocas com os
nativos tanto linguisticamente, como na negociação dos significados. Enfatiza a
necessidade de se haver um percurso bilateral, até multilateral, no que tange à escolha dos
próprios discursos e/ou textos e dos autores a serem traduzidos. O que o tradutor quer é
alcançar o mundo, e o que o escritor busca é ir até o mundo. E nessa inevitável meta que
ambos têm em comum, textualizar é produzir um discurso para o mundo. Por isso, Alain
Ricard traz à luz as reflexões da Antje Krog, escritora e tradutora sulafricana, sobretudo
pela visão desconstrutivista que ela tem do fazer tradutório. Traduzir, na concepção de
Krog, é interferir nas relações entre as línguas, é dar um peso político e verbal às línguas
dominadas (in Ricard, p.394). Isso significa, um tradutor intervencionista ciente da sua
tarefa e com um escopo bem definido. Ideia essa que Ricard abraçou ao longo do seu
trabalho quando diz que “a tradução é conversação, discurso dialógico, diálogo entre
línguas e pessoas, na utopia da igualdade formal entre os falantes e as línguas” (Ricard,
2011, p.161). Pois, a “democracia impõe a traduzibilidade generalizada: uma voz
equivale à outra, uma língua equivale à outra” (idem).
Em Le sable de Babel, traduction et apartheid : esquisse d’une anthropologie de
la textualité, o autor examina sincronica e diacronicamente o impacto da tradução do
imaginário e/ou mitos em línguas africanas para as línguas europeias e vice-versa. No
entanto, quanto ao resultado, Ricard permanece cuidadoso ao dizer que “a arrogância
cultural é a característica dominante nas relações [do ocidente, nossa ênfase] com as
línguas do Sul, da Índia ou da África. Isto deveria nos levar a refletirmos sobre os limites
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4
Esta questão do reconhecimento também levantada por Paul Bandia em ͞Orality and Translation͟ e
͞Post-colonial Literatures and translation͟.
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REFERÊNCIAS:
___. Entrevista pela Valérie Marin la Meslée. Paris: lepoint.fr. Disponível em:
http://afrique.lepoint.fr/culture/pour-saluer-alain-ricard-page-2-02-09-2016-
2065490_2256.php
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1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução na Universidade Federal de Santa
Catarina e Mestre em Estudos da Tradução também pela mesma Universidade. Foi professor de Língua
Francesa e Literatura Francesa na Universidade Estadual do Ceará e professor das disciplinas de Francês
do Curso de Hotelaria do IFCE. Tem especialização em Estudos da Tradução pela Universidade Federal
do Ceará. Graduado em Letras com habilitação em português, francês e respectivas literaturas.
2
Literatura Francófona e mundialização. [a obra ainda não possui um tradução para o português, portanto
todas as traduções sem referência serão do autor desta resenha].
3
Politiques littéraires: jeux de miroir, paratextes et traductions du discours antillais en France et aux États-
Unis.
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Sartre, fazendo uma discussão sobre a questão literária sob um viés material e
sociológico, ou seja, da literatura como elemento indissociável de seu suporte: o livro.
Ao citar Leenhardt, percebemos que seu estudo versará sobre a discussão entre livro,
obra literária e leitura como componentes essenciais para a existência da literatura.
Com o avanço das tecnologias, o início dos anos 80 mostrou que a comunicação
se globalizou e que movimentos que rompem a clássica fronteira nacional e as novas
atividades econômicas da indústria da comunicação foram responsáveis pela união do
som, da imagem e do texto. Por isso, em sua introdução, a autora deixa evidente que seu
livro se propõe a estudar as ambiguidades que afetam a articulação entre as leis do
mercado que ditam os interesses globais, nacionais e locais, ao mesmo tempo em que
defende a noção de diversidade e, para tanto, se vale do estudo da literatura em dois
vieses: o primeiro de entender o texto como forma discursiva, metafórica e simbólica, e
o segundo de apresentar os fatores exteriores ao texto dando ênfase aos métodos de
fabricação e seu valor de mercado. Assim, nesse cenário de fronteiras opacas, entram
em jogo na literatura dinâmicas identitárias complexas através das noções de hibridação
que, entretanto, não acompanham de forma satisfatória a consciência do Outro, pois
muitas vezes as forças globalizantes e capitalistas não se engajam em um verdadeiro
sentido de coabitação.
Ao utilizar o conceito de “tecnologias do reconhecimento” de Shu-mei, a autora
apresenta que a lógica de produção de literatura vem imbricada em uma constelação de
discursos, em práticas institucionais, em produção acadêmica e em outras formas de
representação que criam e sancionam conceitos, fazendo com que os sistemas de centro
sejam entendidos como agentes de reconhecimento enquanto que o “restante” periférico
seja entendido como objeto a ser reconhecido4.
Assim, no primeiro capítulo, intitulado: a edição nas Antilhas e em África
subsaariana francófona: um mapa dos lugares5, a autora apresenta as duas vertentes da
palavra mundialização. O texto faz uma diferença entre usar o termo Globalização e
Mundialização, pois ambos têm conceitos distintos. Para a autora, ao citar Michel
4
Ao citar o texto de Shu-Mei a autora cita a passagem de seu texto em que apresenta um jogo de palavras
entre “West” [Ocidente] como agente de reconhecimento e “the Rest” [o Resto] os países entendidos
como periféricos que são objetos de reconhecimento.
5
L’édition aux Antilles et en Afrique francofone subsaharienne: un état des lieux.
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Gillou, a mundialização deve ser entendida como o processo neutro de extensão das
tecnologias modernas, dos meios de comunicação e de suas técnicas enquanto que a
globalização seria a utilização do processo de mundialização pelos Estados Unidos e
pelas potências anglófonas para expandir seu conceito de mundo, seu comércio, cultura
e língua. (Tece também uma) crítica à cocacolonização, ou seja, ao imperialismo do
consumo que submete o planeta ao modo de vida e de mercado dos países do Norte,
atacando as culturas não hegemônicas. Há uma hierarquia também linguística entre as
línguas europeias e as não europeias, fazendo com que aquelas sejam confundidas com
a produção de comunicação e de conhecimento e as outras “simples criadoras de
folclores e culturas” (2012, p.39).
A autora, portanto, faz uma discussão de termos como “mestiçagem”,
“hibridação cultural” e “glocalização”, sendo este último uma palavra que engloba o
global e o local, um processo de globalização que tem limites e deve se adaptar às
realidades locais, mais do que ignorá-las ou destruí-las. Para tanto, faz uma análise das
editoras insulares da América Central, começando pelo Haiti depois pela Guiana, que é
incluída por necessidades de categorização do trabalho, Guadalupe, Martinica. Também
um levantamento da produção nas ilhas do Caribe, elencando a importância da criação
da Université des Antilles-Guyane nos anos 70 que favoreceu o surgimento das edições
universitárias. Também apresenta a década de 90 como fundamental para o surgimento
e difusão do mercado do livro por Jean-Louis Malherbe na Guiana em 1995, Guadalupe
em 1998 e em 2000 na Martinica.
Ao apresentar uma entrevista com Malherbe, a autora evidencia a problemática
articulação na vendagem de livros no Caribe, pois, segundo Malherbe, somente autores
conhecidos são bem vendidos, e isso se deve mais ao nome do autor do que
propriamente da qualidade do texto. Outro problema no território recortado das ilhas é
que um autor conhecido em Guadalupe não será vendido nem na Guiana e nem na
Martinica e vice-versa. O uso do crioulo na produção literária também gerou impasses
na produção da literatura, não só na produção de textos, mas também na quase
inexistência de leitorado para os romances, estudos, gramáticas, dicionários de língua
crioula. O arquétipo do leitor antilhano é predominantemente francófilo (2012, p.53).
Depois apresenta as edições francófonas na França, fazendo uma distinção entre
as editoras dos generalistas, das vozes autorizadas, e das editoras especializadas e como
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os autores não-europeus entram nessa máquina das edições, já que o escritor africano
está confinado a um horizonte bem definido, tanto sobre a natureza de sua temática
quanto de seus escritos e a urgência dessa literatura engajada é, segundo as palavras de
Fanon, um “convite à ação, de se engajar de corpo e alma no combate nacional”. Ao
final, percebemos que a ideia das editoras de criar uma categoria para a literatura de
outros países francófonos, ou “de criar uma coleção específica de literatura negra” é
uma forma de guetizar e de marginalizar a produção literária.
No segundo capítulo intitulado: a literatura-mundo em francês, para além da
Francofonia?6 temos uma apresentação da Literatura-Mundo produzida em língua
francesa e uma análise do que a autora chama de Mercado das Línguas segundo o
conceito de Wallerstein, que observa nesse mercado uma lógica que apresenta uma
língua hiper-central, o inglês, que corresponde a mais ou menos a metade de todos os
livros traduzidos. Depois temos as línguas centrais, francês e alemão, que representam
10 e 12% do mercado mundial das traduções. Em seguida, temos oito línguas que
ocupam uma posição semiperiférica como, por exemplo, o espanhol e o italiano, com
uma parte nesse mercado que varia de 1 a 3%. As outras línguas que correspondem a
menos de 1% das produções nesse mercado são consideradas periféricas, mesmo que
representem grandes grupos de falantes como, por exemplo, o chinês, o árabe e o
japonês.
Para ampliar essa força da língua no panorama geopolítico da literatura,
Promoveu-se a exportação das edições francesas para o mundo, fazendo com que as
exportações dos livros valessem, em 2008, 695 milhões de euros com uma difusão dos
livros nos 5 continentes. Essa análise propriamente econômica do mercado de venda e
exportação de livros mostra que a produção literária francesa é consumida em sua
maioria pela união europeia ou pelos países da francofonia do Norte. A partir dessas
informações, a autora apresenta um manifesto intitulado Pour une littérature-monde en
français publicado em 2007 que buscava o fim da francofonia e o nascimento de uma
Litreatura-Mundo. A discussão desse manifesto consistia em desconstruir as barreiras
estipuladas pelo pensamento dicotômico entre centro e periférico que existe dentro do
conceito da francofonia. Logo depois, surge o livro Pour une Littérature-Monde
6
La littérature-monde en français, au-delà de la francophonie?
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organizado por Jean Rouaud e Michel Le Bris, que prolonga os ideais do manifesto.
Mesmo buscando uma diferença metodológica e conceitual da francofonia, o manifesto
recebeu alguma crítica como a de Abdou Diouf, secretário geral da Organização da
Francofonia, que acrescentava uma confusão existente dentro do manifesto ao confundir
francofonia com francocentrismo, defendendo a força de uma francofonia aberta e
diversa, ao entender que o francês não pertence apenas aos franceses, mas a todos
aqueles que aprenderam, estudaram e escolheram o francês como língua para criar
culturas, imaginários e difundir seus talentos.
A autora termina o segundo capitulo falando sobre a tradução dos autores
antilhanos e a importância das editoras universitárias para a produção e divulgação dos
textos literários do Caribe, principalmente as editoras no meio anglófono. Dentro desse
mercado de produção universitária, mais uma vez a autora faz uso do texto de Casanova
para usar a terminologia financeira de “capital literário” da autora e evidenciar o papel
da tradução num mercado inegável como fenômeno linguístico e cultural de distribuição
de produtos literários o que ela chama de “operações de tradução”. Percebemos, então,
que a tradução se torna um espaço sociológico e econômico transnacional que circula e
que tem a função de consagrar um campo literário.
Em seu terceiro capítulo intitulado O avesso das capas: da exposição ao
espetáculo7 a autora apresenta uma análise minuciosa sobre a produção de livros e
analisa o que ela chama de “máquina editorial”, atendo-se a análise das capas e da
apresentação de paratextos das obras francófonas das Antilhas e de África francófona.
Para sua análise, ela apresenta um interessante diálogo entre textos de Michel Foucault,
Homi Bhabha e o texto Paratextos Editoriais de Gérard Genette, para conceituar e
analisar a produção dos paratextos e das paratraduções. Após apresentar conceitos e
textos teóricos, a autora seleciona os romances da escritora Maryse Condé publicados
na França e suas traduções para outras línguas, analisando a lógica das relações de
poder que existem entre edição e discurso sobre a produção de literatura negra.
Antes de começar a análise dos paratextos literários, a autora faz uma reflexão
sobre a representação da população negra na França, nos Estados Unidos e na
Alemanha. Ela evidencia como a manifestação histórica do racismo dessas comunidades
7
L’envers des couvertures: de l’exposition au spectacle.
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antilhano é predominantemente francófilo (2012, p.53). Não se pode negar que o livro
hoje é exclusivamente controlado pelos estados, financiadores e multinacionais do
Norte. Para afirmar o texto apresenta uma tabela com dados de 2011 sobre as
Exportações para a África francófona em milhares de euros, mostrando um crescimento
na exportação de 2007 até 2010 e a evolução média da arrecadação de 21 países de
África. (2012, p.59). Mesmo assim, Confiant parece mostrar que é possível se abrir ao
outro sem se renegar e se apropriar de sua identidade sem permanecer enclausurado
nela, representando em sua literatura uma dupla perspectiva de se e do outro, do local e
do global.
REFERÊNCIAS:
HALEN, Pierre. "Aucun titre". In: Études littéraires africaines 34. Traductions
postcoloniales Numéro 34, 2012. p. 116-118.
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Daniel Dago2
ABSTRACT: Frank Martinus Arion (1936-2015) was born in Curaçao. He was a poet
and a novelist. His main novel, Double Play (Dubbelspel, 1973), is considered a
contemporary classic of Dutch literature. The present short story is part of the book The
eternal hound (De eeuwige hond, 2001).
1
Comentário do tradutor: esse conto possui um título bastante difícil de traduzir. "Nozem", em holandês,
literalmente, é "jovem delinquente". Também poderia ser "brigão" ou "arruaceiro". Preferimos "destruidor"
pelo contexto, pois o filho destrói a vida de diversas pessoas.
2
Daniel Dago é tradutor de holandês. Traduziu diversos clássicos da Holanda, como Max Havelaar, de
Multatuli; Sobre pessoas velhas e coisas que passam..., de Louis Couperus; entre muitos outros. Organizou
e traduziu a primeira antologia do conto holandês feita em língua portuguesa e na América Latina, Contos
holandeses (1839-1939) [editora Zouk, 2017].
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De Nozem
Frank Martinus Arion
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goeds te doen. Hij was in ieder geval van plan te voorkomen dat er iets kwaads
plaatsvond.
Het meisje liep van de hoofdweg af. Door een labyrint van nog niet geheel
aangelegde wegen ging ze verder. Ze keek niet om. De man volgde haar. Hij volgde de
man. Nu zou Vader hein eens moeten zien, nu hij wilde helpen zoals Vader altijd hielp…
De man haalde het meisje langzaam maar zeker in. De man was nu heel dicht bij het
meisje. Hij volgde de man. Hij was nu heel dicht bij de man. De man keek niet om. De
man zag hem niet. Hij was woedend op de man en tegelijkertijd was hij blij dat het geweld
van ergens boven of onder hem, dat hem altijd dwarsboomde, hem nu de kans gaf om iets
goeds te doen.
De man liep nu bijna tegen het meisje aan, Hij haalde de man in. Hij greep de man
vast. Hij wierp de man op de grond. De man had dit verwacht, daarom kon hij ook niet
veel terugdoen. In een opwelling van vreugde, vreugde om het goede dat hij bezig was te
doen door de kwade opzet van de man te verhinderen, sloeg hij de man, sloeg hij de man...
Naar het meisje dal vliegensvlug wegrende keek hij niet om. Hij reed naar huis, met
vreugde in zijn hart. De stadslichten leken hoger te zijn opgeklommen, de stadslichten
blonken als echte sterren.
De man klaagde hem aan: de man was de bewaker van de bouwterreinen. De man
zei dat hij het meisje had willem aanranden en dat de man het meisje juist had gered. De
man maakte er een heel verhaal van. Men geloofde het meisje en de man en niet hem,
vooral toen de man en het meisje bekenden dat ze op weg waren naar hun liefdesnest in
een van de in aanbouw zijnde huizen. Hem stuurde men naar tuchtschool, omdat hij altijd
verkeerde dingen deed...
Vader heeft toen niets gezegd, Hij heeft zijn zoon alleen maar aangekeken
hopeloze blik in zijn grijze ogen. Moeder heeft bitter gehuild: zij geloofde haar jongen:
haar jongen is niet slecht, haar jongen wil altijd het goede doen. Heeft zijn moeder hem
geloofd omdat zij de enige is die weet hoe hij is, hoe zij zelfs is…? Omdat het misschien
háár schuld is dat hij zo is?
Daarna, na zijn twee jaar tuchtschool, heeft hij andere dingen gedaan; steeds goede
bedoelingen, steeds op een verkeerde manier.
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Hij denkt aan Vader. Hij ligt op bed in zijn eigen kamer. Zijn Vader zal binnen
zitten, zal bezig zijn met de krant. Hoe zullen de ogen van Vader nu kijken? Wakker?
Zullen ze nog die verre glans van tevredenheid hebben?
Neen, de grijze ogen van Vader zullen nu hulpeloos, hopeloos wanhopig over de
letters van de krant, omdat Vader weet, zoals hij weet, dat moeder, moeder die Vader zo
gelukkig wil maken, Vader bedriegt! Moeder is zo lief; Moede goed, maar ook zo zwak.
Zoals hij. Beiden willen ze Vader steeds gelukkig zien, beiden bedreigen ze steeds het
geluk van Vader. Moeder is zoals hij, precies zoals hij. Nu ze zich klaarmaakt om naar
haar minnaar te gaan, daar in de kamer naast de zijne, nu zal zij ook de strijd voeren die
hij zo vaak met zichzelf heeft gevoerd, en zoals hij bijna altijd deze strijd verloren heeft,
zo zal ook moeder nu haar strijd verliezen.
Ze zal de kamer uit komen, naar vader gaan en hem zeggen dat ze gaat bridgen.
Dan zal zij Vader een zoen geven op zijn voorhoofd. Vader zal haar een zoen geven op
haar voorhoofd en haar met die vergevende glimlach aankijken. Dan zal moeder de deur
uit gaan; naar haar minnaar. Maar ze zal zich niet de verliezer voelen omdar ze denken
zal: ik wil het eigenlijk niet. Ik wil hem niet bedriegen. Hij is zo goed, zo in-goed... En
toch zal ze op de tram stappen en Vader gaan bedriegen.
Hij houdt van Vader; intens veel; dat ondervindt hij de laastste weken elke avond
weer wanneer moeder is weggegaan. En hij lijdt omdat hij ziet dat moeder het geluk van
Vader bedreigt op een manier waarop hijzelf dit nooit heeft gedaan.
Hij bekijkt de kleine revolver in zijn hand. Hij staat op en voelt zicht heel zeker
van zichzelf. Haast onfeilbaar zeker weet dat dit het grote goede is dat hij altijd heeft
willen doen, dat dit onaanvechtbaar juist is. Hij heeft er lang over nagedacht. Dit is het:
dit is de enige manier waarop hij Vaders geluk kan behouden en moeder helpen kan.
Ze is weg nu. Hij loopt zijn kamer uit en naar Vader. Hij biedt Vader een sigaret
aan. Vader kijkt op en neemt de sigaret aan. Hij haalt zijn aansteker te voorschijn en steekt
de sigaret aan voor Vader. Hij ziet weer die blik in de diep onder het voorhoofd liggende
ogen…
Hij gaat het huis uit. Hij zal er zijn vóór moeder. Hij fietste hard, heel hard! Hij
voelt de wind niet en de sterren ziet hij niet.
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Het adres van de minnaar van zijn moeder is een symbool voor hem geworden.
Een wit symbool, een alles dekkend symbool, een symbool van het winnende goede.
Dit is de straat. Hij zet zijn fiets op de hoek van de straat; de straat is ook een
symbool. Hij gaat te voet verder; hij kijkt niet naar nummers. Hij wéét waar het is. Een
lantaarnpaal staat pal voor het huis van de minnaar van zijn moeder, dat is nummer
genoeg voor hem. Hij twijfelt even, want de lantaarnpaal staat niet pal voor één deur, mas
eigenlijk tussen twee deuren in. Hij rukt toch aan de bel. Een man doet open. Hij kijkt
niet naar het gezicht van de man. Hij loopt de man voorbij, het huis in. De man loopt hem
achterna. De man is verbaasd, verrast. De man begint hem uit te schelden. Hij grijpt de
man aan.
Hij vraagt niets, vraagt niets, zegt niets, zegt niets.
Hij werpt de man op de vloer. De man heeft dit niet verwacht, daarom kan de man
ook niet veel terugdoen. Vader moest hem nu eens kannen zien. Zouden de grijze ogen
nu wel weer wakker staan en vol van tevreden, diepe verten? In een opwelling van
vreugde, vreugde om het goede dat hij bezig is te doen, slaat hii de man, slaat hij de man!
Daarna drukt hij de revolver tegen het hoofd van de man en schiet.
Dan gaat hij vlug naar buiten. Hij kijkt niet om naar de man. Hij zal zijn moeder
opwachten en haar meenemen naar huis, terug naar Vader…
Net op tijd is hij klaar: moeder komt aan. Hij drukt zichzelf plat tegen de deurpost.
Hij zal wachten tot moeder heel dicht bij hem is. Moeder zal hem dan zien; moeder zal
weten dat hij haar geholpen heeft en moeder zal blij zijn. Ze heeft altijd het goede gewild
maar meestal het kwade gedaan, omdat zij evenals hijzelf het kwade niet alléén aankan,
omdat niemand het kwade allen aankan.
Moeder is dicht bij hem nu. Hij kan het parfum van haar haren ruiken. Ze zal hem
herkennen, het is niet al te donker. Ze zal hem herkennen… Maar… moder, moeder,
moeder! Moeder loopt hem voorbij!
De sterren staan laag aan de hemel, alsof ,mensenhanden, die niet hoog reiken, ze aan de
hemel hebben geplant… Moeder loopt hem voorbij, is hem voorbij en belt al aan de deur
naast de deur die hije is ingegaan om haar minnaar neer te schieten. Een man in kamerjas
doet open. Moeder en de man in kamerjas gaan lachende naar binnen.
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O destruidor
Frank Martinus Arion
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A moça saiu da rodovia. Continuou andando por uma estrada labiríntica ainda em
construção. Não olhou para trás. O homem a seguiu. Ele seguiu o homem. O Pai tinha
que vê-lo agora, ele só queria ajudar alguém, assim como o Pai sempre ajudava... O
homem alcançou a moça, lento mas certeiro. Agora o homem estava bem perto da moça.
Ele seguiu o homem. Agora estava bem perto. O homem não olhou para trás. Ele estava
furioso com o homem e, ao mesmo tempo, contente que a violência, de certo modo, estava
ao seu redor, ele sempre a resistia, mas agora tinha a chance de fazer algo bom.
O homem estava quase rente à moça. Ele alcançou-o. Agarrou-o. Jogou-o no chão.
O homem não esperava tal ato, por isso não pôde retrucar muito. Num acesso de alegria,
alegria pelo bem que estava tentando praticar, ao impedir sua intenção maliciosa, bateu
no homem, bateu no homem, bateu no homem... Não olhou para moça, que correu em
disparada. Ele foi para casa com alegria no coração. As luzes da cidade pareciam ascender
cada vez mais, as luzes da cidade brilhavam feito estrelas de verdade.
O homem deu queixa dele; era vigia de um canteiro de obras. Disse que ele queria
estuprar a moça e que a tinha salvado. O homem contou toda uma história. Acreditaram
na moça e no homem, não nele, especialmente quando eles disseram que tinham feito
uma residência agradável perto da estrada, numa das casas ainda em construção.
Enviaram-no ao reformatório, pois sempre fazia tudo errado...
O Pai, então, não disse nada. Deu apenas uma olhada no filho, olhar
desesperançoso nos olhos grises. A mãe chorou amargamente; acreditou no rapaz: o rapaz
não era mau, o rapaz sempre queria praticar o bem. A mãe acreditou nele apenas porque
sabia como ele era, como ela era...? Pois talvez tivesse tanta culpa quanto o filho?
Posteriormente, depois de doze anos de reformatório, ele tinha feito outras coisas;
sempre com boas intenções, sempre de maneira errada.
Ele pensa no Pai. Deita na cama do quarto. O Pai vai entrar e ler o jornal. Como
os olhos do Pai vão vê-los? Acordados? Terão o distante brilho de satisfação?
Não, os olhos grises do Pai estarão desesperançosos, desesperançosos, o desespero
passará pelas letras do jornal, pois o Pai sabe, assim como ele sabe, que a mãe, a mãe que
deixa o Pai tão contente, o engana! A mãe é tão doce; a mãe é tão boa, mas também é
fraca. Assim como ele. Ambos querem ver o Pai feliz, ambos sempre ameaçam a
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felicidade do Pai. A mãe é como ele, exatamente como ele. Agora, ali no quarto ao lado,
ela se prepara para ir ver o amante, vai seguir na luta que ele tantas vezes lutou, e que,
assim como ele, sempre perdeu, agora a mãe também vai perder essa luta.
Ela vai sair do quarto, dirigir-se ao pai e dizer-lhe que vai jogar bridge. Depois
vai dar um beijo na testa do Pai. O Pai lhe dará um beijo na testa e a olhará com um sorriso
indulgente. Então a mãe vai abrir a porta; vai ver o amante. Mas ela não vai se sentir
fracassada, pois vai pensar: não quero. Não quero enganá-lo. Ele é tão bom, tão bom...
Então pega o bonde e vai enganar o Pai.
Ele gosta do Pai; até demais; é isso o que ele tem vivenciado nas últimas semanas,
toda noite, quando a mãe vai embora. E sofre, pois vê a mãe ameaçar a felicidade do pai
de uma maneira que ele mesmo nunca fez.
Olha o pequeno revólver na mão. Levanta-se e se sente confiante. É a quase
infalível certeza de que vai fazer um bem enorme, que sempre quis fazer, que é
incontestável. Ele pensa nisso há muito tempo. É isso; essa é a única maneira na qual a
felicidade do Pai pode ser mantida e a mãe pode ser ajudada.
Ela já foi embora. Ele sai do quarto e dirige-se ao Pai. Oferece-lhe um cigarro. O
Pai o olha e apanha o cigarro. Ele pega o isqueiro e acende o cigarro para o Pai. Ele vê
novamente aquele olhar na profundidade, sob a testa...
Ele sai da casa. Vai procurar a mãe. Pedala muito, muito! Não sente o vento nem
vê as estrelas.
O endereço do amante da mãe torna-se um símbolo para ele. Um símbolo branco,
um símbolo coberto, um símbolo de que é bom ganhar.
Essa é a rua. Coloca a bicicleta num canto da rua; a rua também é um símbolo.
Vai a pé; nem olha os números. Ele sabe qual é. Há um poste na frente da casa do amante
da mãe, só esse identificador já é o suficiente. Ele hesita, pois o poste não está na frente
de uma porta, mas sim entre duas portas. Toca a campainha. Um homem abre a porta. Ele
não olha para seu rosto. Passa-lhe e entra na casa. O homem o segue. Está espantado,
surpreso. Começa a repreendê-lo. Ele o agarra.
Não pergunta nada, não pergunta nada, não fala nada, não fala nada.
Joga-o no chão. O homem não esperava tal ato, por isso não pôde retrucar muito.
O Pai deveria tê-lo visto. Será que os olhos grises estariam bem abertos e cheios de
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felicidade, profundamente distantes? Num acesso de alegria, alegria pelo bem que estava
tentando praticar, bate no homem, bate no homem, bate no homem...
Depois pega o revólver, aponta na cabeça do homem e atira.
Então sai correndo da casa. Não olha o homem. Vai esperar pela mãe e levá-la
para casa, de volta ao Pai....
O tempo passa logo: a mãe chega. Ele se comprime no umbral da porta. Vai
esperar até que a mãe passe por ele. A mãe vai vê-lo; a mãe vai saber que ele a ajudou e
vai ficar contente. Ela sempre quis fazer o bem, mas geralmente dava errado, já que, assim
como ele, ela não conseguia lidar sozinha com o mal, pois ninguém consegue lidar
sozinho com o mal.
A mãe aproxima-se dele. Ele consegue sentir o perfume de seus cabelos. Ela vai
reconhecê-lo, ainda não escureceu. Vai reconhecê-lo... Mas... mãe, mãe, mãe! A mãe
passa por ele!
As estrelas estão baixas no céu, como mãos humanas, não alcançam altura, estão
plantadas no céu... A mãe passa por ele, passa por ele, e bate na porta ao lado da porta em
que ele entrou e atirou no amante. Um homem de roupão abre a porta. A mãe e o homem
de roupão entram rindo.
BILIOGRAFIA
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Cibele de Guadalupe Sousa Araújo é doutora em Letras e Linguística, com concentração em Estudos
Literários, pela UFG. Leciona Inglês da Rede Municipal de Educação de Goiânia. E-mail:
guadalupe.sousa@gmail.com.
2
“[Ser uma escritora] significa falhar sempre. Mas também significa, em raros momentos de sucesso,
conectar-se com os leitores por meio de um trabalho da imaginação. Esta parte é maravilhosa. É mágico.”.
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3
“No coração de minha história, ‘Miss McConkey of Brigdewater Close’, está uma exploração dos fardos
sociais que vieram com a libertação do Zimbábue, com sua Independência, particularmente os fardos
carregados pelas crianças negras que foram as primeiras a ir para as escolas previamente reservadas apenas
aos brancos e assim integraram essas escolas. Eu fui uma destas crianças. A memória mais viva que tenho
daqueles dias é o medo constante de ter feito ou dito algo errado, algo que me exporia aos olhares e
comentários humilhantes de meus colegas de sala. Enquanto a nação estava celebrando sua independência,
enquanto os pais e mães negros estavam celebrando a abertura de oportunidades educacionais que haviam
sido fechadas, as crianças estavam experimentando a liberdade como agonia. No entanto, minha história
também é sobre outro tipo de liberdade, é sobre a liberdade que vem com o perdão, a liberdade que vem
com desfazer-se da memória da dor” (GAPPAH, 2011, p. ix-x).
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como o “Civvies Day” ou a “Prizegiving Night”. Uma exceção à esta diretriz deu-se em
relação às referências a “Marmite”, “polony” e “Smarties”, os quais busquei indicar, por
acréscimo, tratarem-se de alimentos, ainda que tenha tido dificuldade em encontrar um
exato correspondente e que tenha acabado por adaptá-los. Outra dificuldade foi a tradução
de “Roan”, que, por falta de termo mais exato, acabei por verter por “equitação”, e de
“widths” e de “lengths”, que, apesar de referirem-se a medidas, verti por “mergulhos” e
“braçadas”.
Não atentei qualquer intervenção também nos trechos em que a língua autóctone
das personagens negras era utilizada, pois no texto original esses trechos também chegam
ao leitor sem mediação e, além disso, acredito que eles cumprem uma importante função
na narrativa aprofundando o embate cultural e identitário no contexto colonial e pós-
colonial, sem prejudicar a compreensão da tradução. Por outro lado, fiz a adaptação dos
pronomes de tratamento empregados ao português brasileiro, visando também à fluência
do texto traduzido. Também por questões de fluência, com vistas a evitar truncamentos,
interferi, em alguns casos na pontuação textual, sem adaptá-la por completo às normas
vernáculas.
Por fim, apresento a seguir o texto traduzido, logrando mediar uma primeira
conexão, por meio de sua escrita literária, entre Petina Gappah, esta proeminente escritora
zimbabuense, e o leitor brasileiro, que ainda não dispunha de tradução de sua obra, mesmo
que tão capsular, como esta apresentada neste Dossiê, o qual visa justamente ao
estreitamento das complexas e relevantes relações entre a Tradução e a Diáspora Negra.
Quando a vi ontem, a Srta. McConkey parecia vívida e frágil ao mesmo tempo, como um
cruzamento entre Doris Lessing e a pobre e assassinada Cora Lansquenet. Ela estava na
fila para o único caixa dentro do supermercado OK, que substituiu o Bom Marché, no
centro comercial Mabelreign. Ela sustentava sua cabeça como sempre fizera, levemente
inclinada para a esquerda, e seu cabelo, todo branco agora, estava apinhado em um grande
coque no topo da cabeça. Quando eu era uma garotinha, seu cabelo lembrava-me o de
Mam'zelle em Mallory Towers. Não Mam’zelle Rougier, que era magra e amarga e nunca
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nada divertida, mas Mam’zelle Dupont, que era roliça e alegre. Seus olhos, diferente dos
de Mam’zelle Dupont, que nunca foram estáticos e brilhavam e cintilavam atrás dos
binóculos de teatro, não luziam atrás de seus óculos redondos. Mesmo com todo o tempo
que se passara, eu a teria reconhecido em qualquer lugar, e, além disso, pode-se contar
em apenas oitos dedos o número de pessoas brancas que sobraram ao todo, de Mabelreign,
de Sentosa a Bluff Hill, de Meyrick Park a Cotswold Hills.
Ela levou uma quantia de tempo imoderada para colocar suas coisas no balcão: açúcar, e
macarrão, extrato de tomate, um pacote de cebola e duas latas de leite condensado, suco
concentrado de laranja Mazoe, um pão, uma cartela de ovos, sete caixas de vela e três
pacotes de ração Irvine's Chik. “São setenta e cinco bilhões, trezentos milhões e
seiscentos mil dólares”, o caixa disse.
Ela pegou quatro maços de notas, despelou algumas de um deles e entregou o resto. O
caixa retirou as ligas dos maços e colocou o dinheiro no contador de cédulas.
Quando o som zumbente parou, e o botão vermelho piscou para indicar a quantia, o caixa
disse: “Faltam quinhentos milhões.”.
“Não pode ser”, a Srta. McConkey disse. “Sua máquina deve estar estragada. Eu acabei
de vir do banco neste exato instante.”.
O caixa contou o dinheiro nota por nota, empilhando as notas em pequenas pilhas de
bilhões e milhões por cima do balcão. Agora a fila de clientes segurando suas compras,
principalmente pacotes de velas sobre as quais havia rumores de que estariam disponíveis
apenas no OK de Mabelreign, estava murmurando motins. A contagem continuou. A
máquina não estava estragada.
Ela remexeu em sua bolsa para encontrar as notas que despelara, mas estas somadas com
as outras falharam em inteirar os setenta e cinco bilhões, trezentos milhões e seiscentos
mil dólares.
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“Está fechado agora, não está?”, disse a Srta. McConkey, “E de que adiantaria?”
“Eu a conheço”, eu disse para o caixa em shona, e em inglês, para a Srta. McConkey, eu
disse: “Eu ficaria muito feliz em ajudá-la a pagar por suas compras.”
“Não, muito obrigada”, a Srta. McConkey disse sem olhar para mim.
“Você mora em Brigdewater Close”, eu disse, “No número dezessete. Eu conheço a sua
casa e eu poderia pegar o dinheiro depois”.
Ignorei os murmúrios vindos detrás de mim e continuei: “Você foi minha diretora na
HMS Junior”. Então contei-lhe meu nome. Ela pareceu não entender, e não era de se
admirar, eu havia lhe dado meu verdadeiro nome. Contei-lhe meu nome da escola.
Dei-lhe o dinheiro para suas compras, paguei pelas minhas, e, depois de uma peleja, ela
concordou que eu poderia carregar suas sacolas até o carro. Seu carro estava estacionado
do outro lado da Stortford Parade, de frente ao mercado e à igreja. Era um Datsun 120Y,
lembrei-me, o carro que fazia meu coração disparar ao vê-lo passar.
“Não fui diretora por muito tempo depois de você entrar lá, fui?”
Ela olhou diretamente para mim, e eu era uma criança novamente, o velho medo agarrou
meu coração, e eu pensei que ela devia saber que foi por minha causa que ela não esteve
mais em cena no corredor, flanqueada entre os dois murais de mérito e todos de HMS
Junior, da série KG1 até a 7Blue, respondendo com uma só voz e dizendo: “Bom Dia
Srta. McConkey.”
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Sempre estivemos em primeiro lugar nas coisas que importavam para meus pais. Então
não foi surpresa para ninguém quando meus pais se mudaram para Cotswold Hills,
quando eu tinha sete anos, o ano em que as pessoas brancas que governavam nosso país
abriram as áreas que haviam fechado para os negros.
Meu pai trabalhava para um banco na cidade. Nossa família foi a primeira da rua a possuir
um carro, um Citroen amarelo chamado de bambadatya no distrito por causa de sua forma
de sapo acocorado. Eu fui a primeira criança que conheci a viajar de avião, para a Victoria
Falls, não para ver as cataratas mas meu pai, que trabalhou por lá brevemente por seis
meses.
Por anos depois daquilo, minha mãe manteve os bilhetes presos proeminentemente em
um álbum de fotos, próximo a uma foto nossa de pé ao lado da aeronave da Air Rhodesia.
Quando visitas pediam para ver o álbum de fotos, e perguntavam o que eram os bilhetes,
minha mãe, em uma voz muito trabalhada para ser casual, dizia: “Ah, esses são só os
bilhetes de avião da vez em que fomos a Vic Falls.”. Ela fazia questão de chamá-las de
Vic Falls porque foi assim que o capitão chamou quando aterrissamos: “Bem-vindos a
Vic Falls”, ele disse, “neste dia brilhante e ensolarado”, e ela nunca mais as chamou de
qualquer outro modo depois daquilo.
Pouco depois da viagem de avião, mas muito depois de ele comprar o carro, nós nos
mudamos de Specimen para Glen Norah B, para um dos apartamentos inteligentes que
eram em uma rua do distrito, onde nós não erámos os primeiros a ter um carro, mas
erámos os primeiros a ter tanto um telefone quanto uma televisão. Meu pai não se
contentava em morar nos distritos africanos, em Mbare e Highfield, Mabvuku e Glen
Norah; nem serviam para ele os subúrbios africanos de Westwood, apenas uma rua de
Kambuzuma, ou Marimba Park, dez passos afastado de Mufakose. Nos domingos, após
a igreja, ele nos levava para longos passeios de carro ao longo da Salisbury Drive e
apontava para Borrowdale, Cotswold Hills, Marlborough e Mount Pleasant, Highlands,
Avondale, Bluff Hill, lugares cujos meros nomes evocavam vidas maravilhosas que
estavam fechadas para nós porque o primeiro ministro decretara que nem em mil anos
pessoas negras governariam a Rodésia.
Nós nos mudamos no ano do povoamento interno. As casas eram tranquilas em ruas sem
poeira. Havia árvores, flores e gramados por toda parte. Havia cercas vivas e portões
baixos com placas em que a silhueta de um cão rosnava para um homem com os dizeres
“Cuidado com o cão, bassopo la inja". O leiteiro depositava as garrafas de leite com
tampas douradas e prateadas do lado de fora, e ninguém as roubava. Na nossa sala de
estar, com uma lareira e um carpete marrom sob medida, nós assistíamos anúncios de
televisão da Solo, a margarina para famílias com um apetite pela vida, da Pro-Nutro, o
equilíbrio da natureza, e da Luz do Sol para aquela limpeza fresca e eficaz. Naquele Natal,
meus pais deram uma festa para todos os nossos parentes. Meu pai rodopiou minha mãe
para lá e para cá enquanto David Scobie cantava “Gypsy Girl”. Todos os convidados
gritavam enko enko enko então na hora em que fui dormir naquela noite, eu já sabia todas
as palavras da canção e o tanatana tanatana tanatana do refrão teceu seu caminho até
meus sonhos.
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Em janeiro, comecei em minha nova escola. Chamava-se Henry Morton Stanley Junior
School, mas todos chamavam-na de HMS Junior. Na manhã de meu primeiro dia, conheci
a Srta. McConkey. “Não consigo pronunciar Zvamaida”, ela disse, enquanto anotava meu
nome. “Ela não teria outro nome?”
De fato eu tinha, meu segundo nome, Hester, o nome da irmã falecida de meu pai, um
nome que eu odiava. Tive sorte, suponho, Lucia na série 3Red não tinha nenhum outro
nome além de Chioniso, então sua mãe arrancou Lucia do nada na sala da Srta.
McConkey. Às vezes ela esquecia seu novo nome e se metia em encrenca.
Eu deixei Zvamaida para trás em Glen Norah, e Hester tomou seu lugar, uma Hester que
sentia falta da velha escola, onde as vozes de crianças em uníssono podiam ser ouvidas
entoando a tabuada de doze vezes ou "Sleep baby mine, the jackals by the river are calling
soft across the dim lagoon where tufted rows of mealies stand aquiver under a silver
moon."4
Em março, todas as cincos crianças negras que haviam começado na escola no mesmo
dia foram chamadas à sala da Srta. McConkey. Um livro desaparecido fora encontrado
na mochila de Gary da série 5Red que era Garikai em casa. Um de nós havia sido
descoberto por ser um ladrão e um mentiroso, ela nos disse. Ela deu um longo sermão
sobre padrões, e quando nós olhamos para baixo para nossos pés, à maneira de crianças
africanas respeitosas treinadas para não olhar adultos nos olhos, ela falou sobre a
importância de não ser dissimulado.
O roubo de Gary veio a definir nosso relacionamento um com o outro. Até que mais
crianças negras entrassem na escola muito tempo depois, os cinco de nós estávamos
conectados pela dura realidade de nossa cor, mas separados pelos golfos maiores de sexo
e idade, e acima de tudo, por uma necessidade urgente de mostrar que não erámos todos
uns iguais aos outros. Queríamos amigos brancos, eles tinham todas as coisas boas,
tinham coisas diferentes em seus sanduíches, como manteiga Marmite e patê polony e
queijo. Eles iam para a África do Sul nas férias, e traziam de volta confetes de chocolate
Smarties. Eles sabiam todas as piadas com Van e o que você conseguia quando cruzava
um canguru com um novelo de barbante o que era preto e branco e todo vermelho, o que
o biscoito disse depois de ser ultrapassado, por que o homem maneta atravessou a rua. De
Natal, eles não ganhavam roupas da promoção do cabide vermelho da Edgars, que
vestiriam na escola no Civvies Day, eles tinham anuários, como o Misty and Jacky, e o
The Beano e o Whizzer and Chips. Eles tinham cubos mágicos da Rubik, e ioiôs, e
Monopoly e Ludo. Eles podiam segurar a respiração por dois mergulhos embaixo d’água,
e às vezes, como Evan Smith, por duas braçadas. Eles tinham seus próprios tacos de
hóquei, raquetes de tênis, e bastões de críquete, e não usavam aqueles velhos e
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“Durma meu bebê, os chacais às margens do rio estão chamando macio pela lagoa sombria onde fileiras
adornadas de milho tremulam sob a lua prateada.”.
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desgastados da escola. Suas mães compravam seus crachás na Barbours; elas não os
costuravam com mãos desiguais. E os rádios de seus pais não diziam nditaki nzvee
kwaAmato wandiona ou tinham as exortações de Jarzin Man para comprar na Jarzin kune
zvekudya zvine mitengo yakaderera.
As únicas crianças brancas que fizeram amizade conosco, ao menos naquele primeiro e
solitário ano, foram as desajustadas e proscritas, as crianças cuja companhia todos os
outros evitavam. Gary agarrou-se a Keith Culverton, cuja família era grande o suficiente
para ser africana, cujos dois cães eram afamados por ter raiva, e que muitas vezes vinha
para escola vestindo bermudas grandes de seu irmão mais velho. Depois da mãe de Ian
Moffat fazer uma cena na escola, quando seu marido fugiu para viver com a Srta.
Adamson, que lecionava na série 5Red, Ian Moffat transformou-se pela humilhação e
tornou-se amigo de Vusani. E quando Antonia de Souza derrubou o bastão e fez Kudu
chegar em último lugar na corrida interclasse, ninguém mais brincava com ela, porque
ela corria como uma espática (e além disso, disse Stacey Collins, ela não era europeia de
verdade, apenas portuguesa), ela falava principalmente com Lucia, que tinha feito Eland
chegar em primeiro na mesma corrida, mas que só recebeu o troféu compartilhado muito
depois de termos esquecido que fora ela que conduzira Eland à vitória.
Eu tinha Lara, Lara Van Tonder, a única Van em uma turma viciada em piadas de van,
Lara a gorda a quem todos começaram a chamar de Blubber - Oléo de Baleia, após a Sra.
Crowther nos contar sobre as baleias. Ela era muito gorda para correr ou nadar e quando
andava rápido sua respiração vinha rapidamente em pequenos assobios. Lara gostava que
eu penteasse seu cabelo com cem escovadas no parquinho da escola, e ela me fazia contar
cada uma delas. “Se você escovar o suficiente, ao menos três vezes ao dia”, ela dizia, “ele
se tornará dourado, como o da Pauline Fossil". Eu não acreditava nisso de verdade, mas
eu o fazia mesmo assim, porque Lara tinha uma piscina em casa em que não podia nadar,
então ela sentava com as pernas penduradas na piscina, enquanto eu mergulhava e
apanhava moedas no fundo da piscina, e eu ficava feliz porque nós erámos iguaizinhas a
Darrel e Mary-Lou em Mallory Towers.
A Srta. McConkey morava a duas ruas de nossa casa, em Bridgewater Close, e ela muitas
vezes passava por mim em seu Datsun 120Y. Eu tratava de endireitar meus ombros
quando via seu carro ou quando passava por sua casa para atalhar o caminho de minha
casa. Uma vez, enquanto eu passava pela Pat Palmer descalça e aproveitava o forte calor
da estrada sob meus pés, vi seu carro e me escondi na vala até ela passar.
Na escola, eu a via todo dia na acolhida, e nos corredores quando ela nos via andando em
grupos ela dizia, fila única, crianças. Apenas no terceiro bimestre, com a chegada da
Prizegiving Night, eu a vi frequentemente. Era uma tradição escolar, fomos informados,
para HMS Junior, celebrar naquela noite a descoberta de David Livingstone por HM
Stanley. Havia um poema que a escola recitava, um poema longo e ativo em que havia
um Livingstone e um Stanley, muitas pessoas preocupadas na Inglaterra imaginando o
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que acontecera com Livingstone e muitas nativos fazendo danças e nomeando todos os
lugares que Livingstone descobrira.
A estrela era Keith Timmons, o capitão de equitação. Ele era Stanley, em um chapéu de
explorador, e declamou, em uma voz alta e exaltada: “Ah, onde está o Dr. Livingstone,
Dr. David Livingstone, que partiu para a África para pisar a trilha invicto?". Então vinte
crianças, que supostamente seriam o povo na Inglaterra, diziam: "Nós não recebemos
nenhuma carta já faz tanto tempo, talvez devêssemos enviar o Sr. HM Stanley, apenas
para saber se ele foi comido."
"E cantem comigo em coro", disse Stanley, "enquanto os nativos fazem uma algaz-arra".
Os cinco de nós, as cinco crianças negras, tínhamos de estar em coro e com vozes altas,
entoamos: "Nyasa e Zambesi e Cabango e Kabompo, Chambese e Ujiji e Ilala e Dilolo,
Shapanga e Katanga, sem esquecer de Bangweolo!". Nós dançamos e pisamos duro e
batemos nossos tambores como se nossas vidas dependessem disso. Lucia e eu
adicionamos um pequeno floreio tentando ulular como tínhamos visto nossas mães
fazerem. “Muito bem crianças”, a Srta. McConkey disse. Nós fomos os melhores nativos
que a escola já havia visto, ela disse.
Foi meu tio Gift que mudou tudo. Ele havia lutado na guerra como Camarada White
Destroyer e retornado com pouca paciência para o que ele chamava de elementos
renegados duros de matar. Ele trabalhava no Departamento de Assuntos da Juventude e
Criação de Empregos e contou a seu chefe sobre nosso poema, e seu chefe ligou para
alguém no Herald, e a Srta. McConkey foi parar nas notícias e então ela não era mais a
diretora. Havia outro diretor, um homem de cor chamado Sr. Marchand, e os professores,
meus pais disseram, não trabalhariam sob suas ordens então iriam para a África do Sul.
Tio Gift disse que não havia lugar para pessoas como aquelas no país, mas minha mãe
estava preocupada com a partida dos professores brancos, porque ela queria que eu tivesse
um bom sotaque.
Nunca mais fui chamada à sala da Srta. McConkey novamente, porque ela não tinha mais
uma sala. Ela permaneceu, lecionando aulas de reforço para os aprendizes lentos, até que
não houvesse sobrado nenhum dos professores brancos na escola e apenas um punhado
de crianças brancas. Eu tomei tanto medo da Srta. McConkey que passei a trilhar o
caminho mais longo para casa, pela Pat Palmer e pela Cotswold Way, e assim consegui
evitar a Bridgewater pelo resto da minha vida na HMS Junior. Quando parti para a escola
secundária, ela ainda estava lecionando as aulas de reforço, sem nunca saber que fora eu
que mudara sua vida para sempre. Não a vi novamente até ontem, quando lhe faltou
dinheiro no OK.
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Pensei que ela diria mais alguma coisa e esperei, mas ela não disse nada enquanto entrava
no carro. Ela fechou a porta e disse: “Trate de vir e buscar seu dinheiro”.
Ela ligou o carro sem dar outra palavra, e dirigiu para a Stortford Parade, passou a
policlínica que costumava ser o hospital veterinário, e passou a Wessex Drive. Eu a assisti
até seu carro virar à esquerda na Harare Drive, a antiga Salisburry Drive ao longo da qual
meu pai nos levara para passear há uma vida atrás. Eu a assisti até que ela desapareceu de
minha vista.
Referências bibliográficas:
GAPPAH, Petina. “Miss McConkey of Bridgewater Close”. Sítio do jornal The Guardian.
Disponível em: <https://www.theguardian.com/books/2009/dec/05/petina-gappah-
awardwinner-short-story> Acessado em: jan. 2017.
_________. In: Stauton, Irene. Writing Free. Weaver Press: Harare, 2011. p. ix-x
_________. Entrevista. In: “Q&A with author Petina Gappah”. Sítio do jornal Financial
Times. Disponível em: <https://www.ft.com/content/4f1bf308-58a5-11e5-9846-
de406ccb37f2> Acessado em: fev. 2017.
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SAUDADES DO BENIM:
SETE POEMAS DE EURYDICE REINERT CEND
Dennys Silva-Reis1
RESUMO: São apresentados nesta tradução sete poemas da escritora Eurydice Reinert
Cend, autora contemporânea de língua francesa do Benim. Todos os poemas fazem
parte de sua coletânea L'Afrique en poésie (2013) e mostram o sentimento de saudade,
bem como a relação da poesia escrita com a tradição da literatura oral africana.
ABSTRACT: Seven poems are presented in this translation. They were written by
Eurydice Reinert Cend, a contemporary French-language author of Benin. All the
poems are part of her collection L'Afrique en poésie, (2013), and show the feeling of
longing, as well as the relation between the written poetry and the tradition of African
oral literature.
1
Doutorando em Literatura (POSLIT) e mestre em Estudos da Tradução (POSTRAD) pela Universidade
de Brasília. Seus principais eixos de trabalho são: Literatura Francófona, História da Tradução e Tradução
intersemiótica. Igualmente é tradutor e cronista em seu blog Historiografia da tradução no Brasil
(http://historiografiadatraducaobr.blogspot.com.br). E-mail: reisdennys@gmail.com. Brasília, Brasil.
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É autora de mais de 20 obras, com destaque para a poesia [Maman, comme un doux
chant (2012); La vie en poésie; Parfums d'éternité (2007); Elle, ode à l'amour et à la
femme (2007); Les chansons d'Eurydice (2006); L'oeil (2005)] e os romances Les
amazones du Knoryl: L'escapade rituelle e Les amazones du Knoryl: Souviens-toi,
publicado em 2014. Para esta que é a primeira publicação brasileira de seu trabalho,
foram escolhidos sete poemas da coletânea L’Afrique en poèsie (2013).
Os poemas de Eurydice Reinert Cend são em versos livres heterométricos com muitas
rimas sonoras ao final e no meio dos versos. São poemas, por vezes, muito descritivos
que configuram uma imagem visual ou ambiências psicológicas e sentimentais, recursos
que nos remetem à literatura oral africana. Vale a pena destacar que, nessa obra em
especial, há diversas aquarelas de Marc Filior3 que acompanham os poemas, ora como
ilustração, ora como fusão da poesia imagética verbal com a visual disposta logo ao
lado do poema.
Os sete poemas aqui traduzidos dão uma dimensão desta obra poética da autora. A
proximidade das línguas (francês e português), no que concerne à maioria das rimas,
auxiliou muito para manter a mesma sonoridade e, por vezes, oralidade da poesia.
Optamos por não colocar notas nos vários atributos lexicais de referência ao contexto
africano, a fim de que se atice no leitor a curiosidade pela palavra depositada em frasco
poético que é cada poema aqui traduzido.
2
Agradeço imensamente à autora por ceder os direitos de tradução dos poemas aqui apresentados.
3
Agradeço ao pintor por ceder as imagens dos poemas para esta publicação.
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Je suis l’Afrique, depuis toujours, dans ton Sou a África, desde sempre, no teu coração
cœur
A l’écoute de tes secrets, à l’affût de tes A escutar teus segredos, a espreitar tuas
regrets saudades
Para te poupar da amargura, a imbebível seiva
Pour t’épargner de l’amertume l’imbuvable
sève E te oferecer a doçura e o calor do dia que se
Et t’offrir la douceur et la chaleur du jour qui levanta!
se lève !
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[ 4 ] Rencontre Encontro
Dans la fraîcheur du tiède matin No frescor da tépida manhã
La rose perlante reluit, offrant encore son A rosa perolada reluz, oferecendo ainda um
doux festin doce festim
A tous, partout dans la belle et mystérieuse A todos, por toda parte na bela e misteriosa
savane ensoleillée ! savana ensolarada!
Mon ami Amadou savoure aussi cet instant Meu amigo Amadou saboreia também este
unique instante único
Quand nos pas se rapprochent dans ce Quando nossos passos se aproximam nesse
nouveau jour, timide ! novo dia, tímido!
Une franche poignée de mains scelle nos Um franco aperto de mãos sela nossos
retrouvailles enjouées reencontros divertidos
Et, de salamalec en salamalec, sur tout et sur E, de salamaleque a salamaleque, sobre tudo e
rien nous devisons, heureux ! sobre nada conversamos, felizes!
Sur ce chemin de terre où nos routes à Neste caminho de terra onde nossas rotas de
nouveau se croisent, novo se cruzam,
Les regards, les sourires et les exclamations Os olhares, os sorrisos e as exclamações
fascinantes fascinantes
Transportent nos joies, nos peines et nos Transportam nossas alegrias, nossas penas e
espoirs encore rayonnants nossas esperanças ainda radiantes
Vers le blond désert étouffant où, souvent, se Em direção ao louro deserto sufocante, onde,
perdent nos humaines pensées ! muitas vezes, se perdem nossos pensamentos
humanos!
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Femme africaine — photo d’une peinture dont l’auteur n’est pas identifiable
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[ 6 ] Souviens-toi ! Lembra-te!
Si dans le bel élan Se no belo impulso
Que te donne la vie Que te dá a vida
Les hommes et le temps Os homens e o tempo
De toi parfois rient De ti por vezes riem
Souviens-toi Lembra-te
Que tu n’es qu’un murmure Que não passas de um murmúrio
Qui s’envole et danse Que voa e dança
Dans la mouvance de l’existence No movimento da existência
Avec ou sans armure ! Com ou sem armadura
Souviens-toi Lembra-te
Que tu n’es qu’un murmure Que não passas de um murmúrio
Dans la rumeur du vent No rumor do vento
Qui t’emporte si souvent Que te leva muitas vezes
Là où tu rases les murs Lá onde raspas os muros
De peur de n’être plus De medo de não ser mais
Qu’un triste souvenir Do que uma triste lembrança
Dans les mémoires liquides ! Nas memórias líquidas!
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Chuuuuuuuuuuuuuuuut…, Pssssssssssssssss...,
Dans le silence du jour qui déjà fuit No silêncio do dia que já se vai
Comme dans le murmure de la nuit qui, Como no murmúrio da noite que,
Inévitablement, le suit Inevitavelmente, o segue
Oui, souviens-toi de tout, souviens-toi de toi Sim, lembra-te de tudo, lembra-te de ti e sê
et sois toujours toi ! sempre tu!
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BIBLIOGRAFIA
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ABSTRACT: In 2016, at the Sesc Paço da Liberdade, in Curitiba, the event “Literatura de
Refúgio: Expressões Haitianas” was promoted as part of the project PBMIH (Português
Brasileiro para Migração Humanitária) of the UFPR. This was the second time that the event
was promoted of five so far. In the event it was shown translations and the originals by
1
Doutorando em Estudos Literários na Universidade de Brasília. E-mail: joarthur@gmail.com
2
Mestrando em Estudos Literários na Universidade Federal de Santa Catarina.
3
Poeta haitiano graduado em filosofia e letras.
4
Professor de língua e literatura na Universidade Federal da Integração Latino-Americana.
5
Graduanda em letras francês e mestranda em estudos linguísticos na Universidade Federal do Paraná.
6
Graduanda em letras francês na Universidade Federal do Paraná.
7
Graduanda em letras francês na Universidade Federal do Paraná.
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INTRODUÇÃO
No fim de 2013, na UFPR, o Celin UFPR (Centro de línguas da UFPR) foi
procurado por uma professora da prefeitura da cidade de Curitiba e pela ONG CASLA (Casa
Latino-Americana) para tratar de um problema bastante atual: o ensino de português dos
migrantes, sobretudo sírios e haitianos que chegam ao Brasil como indica Marcio Oliveira
(2016). Dessa data até hoje, diversos alunos e professores do curso de letras, e centenas de
haitianos e refugiados de diversas nacionalidades passaram pelo projeto PBMIH da UFPR
(Português Brasileiro para Migração Humanitária) como foi historicizado por Bruna Ruano
et al (2016).
No mês do migrante de 2016, foi cedido aos participantes do projeto pelo Sesc Paço
da Liberdade o espaço para a feitura de um evento. Junho é o mês do migrante. Os
participantes do projeto decidiram que iriam buscar textos literários de diversas culturas e
línguas, tendo como eixo comum a temática do refúgio, exílio e diáspora. O evento foi
marcado para 21 de junho. Cahier de Retour à un pays Natal, de Aimée Césaire, autor
martinicano e um dos fundadores do movimento da negritude; Pan Cogito, de Zbigniewa
Herbert, poeta polonês; Flüchtlingsgespräche, de Bertolt Brecht, dramaturgo e poeta alemão;
Peregrino, de Luis Cernuda, poeta espanhol; Tout ce qu’on ne te dira pas, Mongo, de Dany
Laferrière (ver biografia abaixo), escritor haitiano exilado no Canadá; Melovivi, de
Frankétienne, escritor e artista plástico haitiano (ver biografia abaixo); Nous les exilés, de
Maram Al-Masri, poetisa francófona síria; e um poema sem título de Adonis, poeta sírio que
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vivem entre o Líbano e a França, foram traduzidos e declamados na língua original, para
causar estranhamento, e em português. O evento mobilizou estudantes, professores e, por ser
localizado fora da universidade, pessoas não necessariamente iniciadas no mundo literário
participaram dele (cerca de 60 pessoas).
O presente artigo trata da segunda edição do evento de 15 de setembro de 2016. Para
esse, dedicamos todo o tempo (uma hora e meia) à literatura haitiana, pois a maior parte de
nossos alunos do curso de português são dessa origem.
Começamos com uma música em kréyol haitiano e projetamos a letra da canção/
poema em Power Point. Tratava-se de Pitit Malere de Georges Castera (ver biografia mais
abaixo). Seguimos com Jacques Roumain, mostrando a foto do escritor e as transcrições do
original e da tradução com uma pequena biografia (de maneira a valorizar a língua com a
qual o texto foi escrito e situar o autor). O objetivo era ser superficialmente didático e colocar
mais em evidência o contato do público com as línguas e a emoção vinculada pelos textos.
Os textos e traduções reproduzidos aqui não estão disponíveis nem no mercado editorial nem
na internet.
Os títulos seguintes do artigo mostram um texto do editor da tradução de Jacques
Roumain, e em seguida um texto do poeta haitiano que declamou seus poemas no dia do
evento, e que também falou um pouco sobre o Haiti, e cujo livro de poemas será editado pelo
mesmo editor supracitado, logo após serão mostradas as traduções tal como foi no dia do
evento. O texto dá assim uma boa ideia de como as “Expressões Haitianas” foram
apresentadas.
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Mas eu decidira tornar-me um editor. Editei, por algum tempo, junto a dois amigos,
uma revista-blog chamada ‘Sinuosa’: buscávamos, na literatura, os caminhos tornos, difíceis.
Publicamos trabalhos autorais e algumas traduções de poetas lituanos, romenos, israelenses.
Mas essa primeira experiência acabou naufragando, por conta de inúmeros
compromissos acadêmicos e profissionais meus e dos colegas. Alguns meses depois seguia
inquieto com o estado das coisas. Incomodava-me a lógica excessivamente mercadológica
das grandes editoras que atuavam (e atuam) no território nacional. A falta de espaço a que
eram forçadas algumas manifestações literárias que não pertencessem a certo cânone.
Foi assim que fundei a Editora Dybbuk. Sem a menor ideia de como tocar uma
editora, é verdade. Não sabia onde conseguiria autores, tradutores, textos. Tinha em mente
publicar algumas traduções de poetas poloneses e iídiches, de minha autoria. Publicar alguns
autores que conhecia pessoalmente. Mas eu queria ir além disso, usar a editora como uma
espécie de amplificador para as vozes que não costumamos ouvir na literatura que se torna a
oficial.
Nesse tempo, pelos corredores da universidade, um de meus grandes interlocutores
ao falar de poesia era o João Arthur Grahl. Certa feita comentou a respeito de seu trabalho
com o ensino de língua portuguesa aos haitianos e sua aproximação com a cultura desse país.
Leu para mim sua tradução do poema de Jacques Roumain, Negros Sujos.
A partir da leitura desse poema, tão cheio de rancor, de raiva, mas, acima de tudo,
de beleza e solidariedade, cheio de um clamor por liberdade, eu resolvi publicá-lo. Foi nossa
primeira publicação - um pequeno livreto com esse e mais alguns poemas de Roumain, bem
como um ensaio do autor, todos em tradução de João Arthur.
O tempo segue, a editora publica mais alguns volumes. E, através do blog-revista
Escamandro, entrei em contato com a obra de Rei Seely, a quem contatei através das redes
sociais - algo que me havia sido recomendado por alguns conhecidos em comum.
Estamos, atualmente, nos preparativos finais para a publicação de Poesia sem
folhas/ Refugiado feijoada, primeiro livro de Seely. Escrito em português, este é um
testemunho sensível do mundo em que vivemos. Ele ocupa o lugar do poeta deslocado,
retirado de seu lugar de origem por força das circunstâncias históricas.
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A publicação da obra desse poeta me parece essencial, haja vista a missão que
postulei para minha atividade de editor. É dar voz a alguém que os grandes gostariam de ver
silenciado, é um modo de amplificar o grito que - se hoje é dos haitianos e dos sírios, ontem
foi dos meus antepassados judeus. É lutar contra as barreiras - impostas pela burocracia e,
acima de tudo, pelo preconceito - que tenta nos separar, quando a verdade é que, já diz o
próprio poeta mais abaixo:
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pareceu a mesma, nenhuma diferença. A única música que gemeu no coração de todos; foi
como uma sinfonia, uma sinfonia que provou que nós somos todos iguais.
As almas dos meus irmãos falecidos viajados ficaram na tranquilidade otimista sob
os escombros anárquicos. E para nós, os sobreviventes esquizofrênicos, foi a bênção de uma
mudança, em nosso sono do meio-dia para uma nova sociedade. Às vezes após a chuva é o
belo sol, como a taxa da miséria do povo foi na escala magnitude oito da FAO 8. No entanto,
todos os países tinham os olhos em nós, mesmo a Somália, por um gesto humanitário de
queixas, grandes ou pequenas, todos enviando suas doações.
Os anos perdidos nos discursos e as entranhas do cataclismo esquecido ficam no
coração dos órfãos e dos amputados. Antes pensei que este mal foi um bem, esqueci
completamente que vivo em um hemisfério selva, donde a doutrina de James Monroe está
em vigor. As ONGs vieram com seus projetos sociais de sanguessuga, elas foram formadas
como templos religiosos, vestindo a Boa Notícia para uma nação em perigo, é sempre assim
seu propósito no mundo...
Sou um povo explorado e marginalizado, desde o esperma da vida me deu luz, neste
mundo do princípio de contrário. Aqui, é por isso que a farsa da imprensa nos cumprimenta,
e nos embeleza como negros sujos. Uma ironia estúpida sem fundamentos, com críticas para
aquele que é humanista, que pode ler; ler no sentido de conhecer o outro sem o marginalizar.
Eu não sou nem cristão, nem católico Eu tenho raízes humanistas da minha infância
Que causou a guerra de cem anos Sem compromisso e com coração
Nem a metrópole da religião capitalista Eu mostrei-lhe o caminho da razão
Pregando resiliência, fabricando miséria Nós éramos inseparáveis na época
8
Food and Agriculture Organization of the United Nations.
9
Os dois poemas seguintes estão no prelo para serem publicados por Luciano Mendes da Dybbuk editora (ver
texto do editor acima).
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Eu sei que minha vida é guerra Para construir suas cidades de beleza
Você aprecia a força de meus filhos Você é sanguessuga com sua ajuda
Tratando-os bons trabalhadores como humanitária
escravos
Com trabalhos pesados por um salário de Filhos de povoamento privilegiados!
miséria Filhos de exploração marginalizados!
A história dos povos não é uma ficção
Eu não sou nem lixeira da América Porque nós somos todos os produtos de
Se você utilizar minha pobreza importação
Déjà presqu´une décennie sous les décombres 2010 venait du Diable. Merci au peuple
où Haiti reste toujours dans l´ombre haitien qui croit en VIVE ou ABA pour
la misère nous affecte plus panser Haiti.
et notre espoir fleurit pus. Merci à tous nos politiciens resquilleurs et
Merci à la Croix Rouge Internationale. Merci parlementaires antillais qui pensent à Haiti.
à la Foundation Clinton. Merci à la Caritas Derechef une pensée, un lyrisme, un
Internationale. Merci à l´USAID.Merci à pamphlet et une épitaphe pour mes soeurs et
l´Oxfam. Merci à toutes les ONG’s qui ont frères défunts qui ont cru en l´avenir d’Haiti,
contribué à la reconstruction Haiti avec ce mais hélas!
plan de fiction. Merci à la Minustah (ONU) Jusqu’à présent les jours sont crus.
pour le choléra. Merci à tous les “Qui croit en la voie des sans-voix ne voit
missionnaires qui ont prié pour Haiti qui nous
jamais la croix”
faisaient croire que le séisme du 12 janvier
AS TRADUÇÕES
O critério principal de escolha dos textos era de mostrar a temática do refúgio e
exílio. Houve um poema em língua Kreyòl 10, textos dos autores mais conhecidos para que se
achem mais facilmente (Frankétienne, Laferrière), uma mulher (Bogart), um “clássico”
(Roumain). Também um que pudesse servir de mote para falar da história do Haiti
(Batraville). O Primeiro poema foi apresentado na forma de canção como encontrado no site
de TV511. A música ecoou sem a foto, somente com a tradução projetada como forma de
preparação para o evento. Os textos subsequentes foram projetados tal como se encontram
abaixo: com a foto e uma pequena nota biográfica mostrada pelo apresentador do evento.
Cada nota bibliográfica foi adaptada a partir de textos achados em sites na internet
10
Ou Criolo haitiano. Língua oficial do Haiti, falada por toda a população.
11
Logo após o terremoto de 2010, tv5 propôs em seu site um dossiê sobre diversos escritores:
http://www.tv5monde.com/TV5Site/lettres-haiti/
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(Wikipedia, TV5, Ile en Ile, por exemplo), por Carla Cursino, que é jornalista e traduziu o
texto de Georges Castera logo abaixo. Após o texto original foi lido por Rei Seely, a tradução
em seguida foi lida pelo estudante de letras e ator “Victor” Hugo Simões. Após a tradução,
para este texto colocamos os depoimentos dos alunos falando sobre a experiência de traduzir.
Georges Castera
O evento foi aberto com esse poema/canção “Pitit malere” de Castera. Iniciou-se o
evento sem nenhuma introdução ou preparação, como forma de encantar o público através
do Kreyòl. O texto pode ser lido logo abaixo. Não foi projetada nenhuma foto de Castera,
somente o poema e a tradução.
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leitor compreenda a realidade social que o poeta apresenta e para a reflexão proposta pelo
“Literatura de Refúgio”.
Jacques Roumain
Jacques Roumain (1907-1944) foi um escritor e político haitiano. É um dos
principais nomes da cultura haitiana; teve um papel fundamental na luta
contra a ocupação americana do Haiti (1915-1934). Fundou o Partido Comunista
do Haiti, razão pela qual foi condenado ao exílio em 1934. Volta ao país natal em
1941 e torna-se político. Jacques Roumain, o “filósofo da Negritude”, é o escritor
haitiano mais conhecido no mundo e um dos principais artistas do país a lutar
Foto 1: Site Île-en-île
pela cultura e pela identidade haitiana. Os dois poemas declamados no evento
(Madeira de Ébano e Negros Sujos) podem ser encontrados em Roumain (2015)
ou no site scribd: https://www.scribd.com/document/330475538/Negros-Sujos-
Dybbuk-1. (Texto adaptado do site http://ile-en-ile.org/bibliographie-de-jacques-
roumain-par-genres/).
Frankétienne
Nasceu em 1936. É poeta, dramaturgo, pintor, músico e professor haitiano.
Durante a era Duvalier, a situação política do Haiti torna-se insuportável para os
intelectuais do país e muitos deles buscam exílio no Canadá, na França e na África.
Frankétienne, contudo, decide permanecer no Haiti para lutar. Sua obra é um
verdadeiro retrato da história haitiana contemporânea e testemunha a vida de
milhares de jovens que se sentem forçados a deixar o país sem esperança nem desejo
de retorno. Este “poema” a seguir é um fragmento do prólogo da obra Mûr à crever,
Foto 2: Site Wikipedia
de Frankétienne (2006), e serve como uma espécie de síntese da poética do
espiralismo, proposta por ele, René Philoctète e Jean-Claude Fignolé. (Texto
adaptado por Emerson Pereti e Carla Cursino da obra Mûr à crever e do site ile-en-
ile.org/franketienne).
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Dany Laferrière
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Dominique Batraville
Dominique Batraville, escritor, poeta e jornalista haitiano, nasceu em
1962, em Porto Príncipe. Durante a ditadura de Papa Doc e Baby Doc,
Batraville se exila na Europa. Volta para seu país natal em 1986. Suas obras
retratam, sobretudo, a cultura haitiana e o imaginário caribenho. Abaixo pode-
se ver que o poema engloba geografia e história do Haiti com relação ao
mundo. (Texto adaptado do site http://ile-en-ile.org/ e
Foto 4: Site île-en-île http://www.tv5monde.com/TV5Site/lettres-haiti/).
Je compte me promener dans les nouvelles Espero passear pelas novas bibliotecas do
bibliothèques du Nouveau Monde. Novo Mundo.
J'entends revisiter mes textes en arawak et Quero revisitar meus textos em aruaque e
écrire mes formules cabalistiques en maya escrever minhas fórmulas cabalísticas em
Question de mathématiser mille lunes et maia.
trois soleils géants.
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visão feminina sobre o Haiti para o mundo como pode ser visto no poema
abaixo. (Texto adaptado do site http://ile-en-ile.org/bogart/).
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sur cette terre aux parfums d’épices sobre esta terra de perfumes de especiarias
la vie s’était figée a vida foi sedimentada
et belle fut-elle au soleil e bela ela era ao sol
somnolant à la tombée du jour sonolento ao cair do dia
colorée fut-elle de créoles colorida era ela de crioulos
à la peau de toutes les nuances de pele de todas as nuances
ma mémoire me frappe la poitrine minha memória me golpeia o peito
elle la gonfle de fierté ela o infla de orgulho
j’associe le sang à la canne à sucre eu associo o sangue à cana de açúcar
celui de mon grand-père que je n’ai pas o de meu avô que não conheci
connu avô
grand-père derrubado sob o chicote do colono
écroulé sous le fouet du colon a África e sua mata
l’Afrique et sa brousse ficaram enclausuradas em minha alma
me sont resté cloîtrées dans l’âme eu mudo de pele
je change de peau eu mudo de cor
je change de couleur à mercê de minha memória
au gré de ma mémoire que se quer história
qui se veut histoire que se quer porvir
qui se veut avenir em meus olhos
dans mes yeux uma lágrima salgada
une larme salée Haiti-Martinica
Haïti-Martinique azul ilusão
bleu fantasme o passado enlaça a alma
le passé nous ficelle l’âme o grito revém
le cri revient sempre com força
toujours en force a me rebentar a garganta
à me péter la gorge o sangue de meu avô
le sang de mon grand-père derramado por nada?
versé pour rien? a carne esmagada dos negros
la chair broyée des nègres misturada à poeira
mélangée à la poussière meu país morre
mon pays se meurt a independência soa como uma farsa
l’indépendance a l’air d’une farce o homem parece perder a memória
l’homme semble perdre la mémoire o homem
l’homme de quatro
à quatre pattes lambe as botas dos colonos modernos
lèche les bottes des colons modernes eu berro
je hurle arrebentando as cordas vocais
à me briser la corde vocale a honra se vende
l’honneur se vent em punhados de mãos verdes
par poignées de mains vertes a honra se troca
l’honneur s’échange por um Nike um Armani um Dior
contre un Nike un Armani un Dior a identidade crioula desprezada
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O evento teve uma ótima recepção do público e do Sesc, que é entusiasta para que
continue. O terceiro evento tratou de escritores árabes do Oriente Médio, que pode ser
sumarizado pela coluna, publicada pelo jornal Gazeta do Povo, do jornalista José Carlos
Fernandes (2016), que relata o evento de maneira belíssima. No terceiro evento os alunos e
professores continuaram traduzindo os textos (por tradução indireta do francês, inglês e
espanhol pois ninguém falava árabe).
A fórmula do evento mudou um pouco aparentemente para melhor: continua-se com
um evento de no máximo uma hora e meia. Principalmente os alunos do curso de letras
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REFERÊNCIAS
FRANKÉTIENNE, Jean-Pierre Basilic Dantor. Mûr à crever. Bordeaux: Ana Editions,
2006.
GRAHL, João Arthur Pugsley. Literatura Francófona da África da Diáspora. In: DIAS, L.;
FERREIRA, V. (orgs.). O tempo muda: estudos étnico-raciais diacrônicos e sincrônicos.
Volume III da coleção cadernos do NEAB-UFPR. 2016. Disponível em:
https://issuu.com/neabufpr/docs/livro_neab-ufpr_-_o_tempo_muda/1. 04/06/2017.
MOREIRA, Heloísa Caldeira Alves. Traduzindo uma obra crioula : Pays sans chapeau
de Dany Laferrière. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, 2006. Dissertação de Mestrado em Língua e Literatura Francesa,
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Sites consultados:
Bouchotte, Giscard. Dominique Batraville. 2016. http://ile-en-ile.org/batraville/. 28/05/2017.
Fernandes, José Carlos. A Revolução Cultural da Síria. 2016.
http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/colunistas/jose-carlos-fernandes/a-
revolucao-cultural-da-siria-aj6mk1y061r50q3vpt1kmlxo0. 29/05/2017.
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Ronald Augusto1
Dennys Silva-Reis2
C. Leonardo B. Antunes3
C. Leonardo B. Antunes (LA): Antes de mais nada, Ronald, gostaria de dizer que é
uma honra, uma alegria e um privilégio poder entrevistá-lo para esta edição
especial da Translatio: uma honra porque você é, para mim e para muitos, o maior
poeta gaúcho da atualidade e certamente um dos nomes mais importantes da
poesia brasileira; uma alegria porque você é tão grande poeta quanto amigo; e um
privilégio porque, nesse ínterim, acabei eu próprio me tornando tradutor seu ao
traduzir três poemas d’À Ipásia que o espera, seu belíssimo e mais recente livro,
que possui uma comunicabilidade incomum em relação ao restante de sua obra,
em especial aos poemas mais antigos.
1
Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983),
Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro
(2007), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012) e À Ipásia que o espera (2016).
2
Doutorando em Literatura (POSLIT) e mestre em Estudos da Tradução (POSTRAD) pela Universidade
de Brasília. Seus principais eixos de trabalho são: Literatura Francófona, História da Tradução e Tradução
intersemiótica. Igualmente é tradutor e cronista em seu blog Historiografia da tradução no Brasil
(http://historiografiadatraducaobr.blogspot.com.br). E-mail: reisdennys@gmail.com. Brasília, Brasil.
3
Mestre e Doutor em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo, é professor de Língua e Literatura
Grega na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde realiza um trabalho de reconstrução rítmica e
musical da poesia grega antiga.
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Ronald Augusto (RA): Para mim também é uma satisfação pôr em movimento esse
diálogo com você, Leonardo. Pois é, esses três poemas que você traduziu se configuram
numa parceria que há tempos eu queria fazer contigo, tamanha foi a identificação que se
estabeleceu entre nós (espero que seja recíproco: risos) desde o momento em que me
tornei seu aluno de grego antigo. Fiz três semestres. De fato, esses poemas de À Ipásia
que o espera são menos ásperos em termos de comunicabilidade, ainda que o Claudio
Cruz (prefaciador do conjunto) tenha notado que há momentos em que uma certa
“cerebração” perturba um ou outro poema. Isto é, a “obscuridade” segue rondando aqui
e ali. Essa comunicabilidade aparentemente estranha ao grosso da minha poesia é
resultado desse projeto em particular e que precisava ser mais envolvente, digamos
assim. São poemas em que quero falar ao desejo e à sensibilidade da Denise, mas isso é
feito na perspectiva de também generalizar as imagens e os discursos. Ampliar o campo
de sentidos das senhas amorosas. Em certa medida, a tradição literária circunscreve ou
disciplina o eros que transfiguro nesse livro. Trata-se de uma tentativa de traduzir para o
mundo (a recepção) aquilo de mais íntimo e indecoroso que sussurrei à minha musa,
que também é poeta.
LA: Nesse processo de escolhermos alguns poemas seus para traduzir para o
Inglês, você inicialmente sugeriu o “Homem ao rubro apócrifo”, tarefa da qual eu
prontamente me esquivei, pela evidente dificuldade, senão impossibilidade, de uma
tradução adequada. Como confessa, em nota de rodapé, a própria tradutora de
uma primeira tentativa de verter esse poema para Inglês, a sua poesia, em especial
a sua produção mais antiga, é tida como “difícil”. Sei que você é extremamente
avesso a facilitar a compreensão de sua poesia para seus leitores. Entretanto, isso
às vezes se faz necessário no processo de tradução. Como você lida com essa
dificuldade ao auxiliar o tradutor em sua tarefa? É possível vencer essa
dificuldade, ou melhor, recriá-la em outra língua?
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toda num gesto de comiseração ao leitor. Não me programo para fazer o “difícil”. Meus
poemas são “assim” porque, de alguma maneira, as formas artísticas que sempre me
interessaram perseguem isso que, em algum lugar, o Augusto de Campos chamou de a
“beleza do difícil”. Além do mais, o leitor não precisa ser tutelado. Há duas formas de
tutela: (a) avisar ao leitor que ele está diante de um “texto difícil”, que ele deve tomar
cuidado, que o texto “não tem sentido” e assim por diante; e (b) que é preciso ser mais
comunicativo de modo a conquistar o leitor como uma espécie de seguidor de redes
sociais. Em primeiro lugar sobre (a): é o leitor que, no corpo a corpo com o texto, irá
julgar da dificuldade ou não do texto e o repertório de que dispõe é fundamental nessa
equação; e quanto a (b): o leitor não é bobo, ele precisa assumir sua responsabilidade de
intérprete diante de uma espécie de partitura (Joan Brossa dixit) que é o poema, isto é,
essa partitura parece aberta, no entanto, há uma séria de indicações implícitas que levam
o leitor a interpretá-la dessa ou daquela maneira. Há um contrato tenso entre a liberdade
do leitor e a estrutura formal e significativa do poema. No prólogo a Don Quijote
Cervantes se refere ao executante de sua obra como um “desocupado lector”. Com esse
expediente o narrador coloca o leitor no centro da história. O qualificativo,
“desocupado”, denuncia, em tom metalinguístico, o estatuto ético-estético a que está
submetido o fruidor desse texto literário, é mesmo uma espécie de chave léxica para
uma compreensão provisória da obra. Entra-se no âmbito da leitura-interpretação pela
vereda da errância e da vadiação, trata-se de valorizar a leitura desinteressada, leitura de
prazer. Grosso modo, esse leitor não se acha imbuído de um desejo de ilustração. Evoca
a metáfora do leitor na rede, “este objeto da preguiça”, e não do leitor de lápis em
punho, discípulo aplicado, obediente.
LA: Às vezes, ao que me parece, sua poesia flerta com o incomunicável, com uma
constelação de referências, palavras e imagens tão próprias à sua trajetória pessoal
e ao seu imaginário, que o leitor se sente propositalmente fechado à possibilidade
de sentido: tem-se uma experiência de sons, imagens e referências cujo nexo muitas
vezes parece ser premeditadamente negado ao leitor. Pode ser apenas uma leitura
equivocada de minha parte, mas sempre me pareceu que essa era uma
característica importante de seu trabalho de mais longa data: uma espécie de
barreira simbólica ao leitor, que impossibilita uma compreensão – digamos –
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tradicional dos signos, mas que aponta para uma compreensão de outra ordem, a
da exclusão ao sentido. Como foi o processo para recriar essa constelação de signos
tão peculiares em outras línguas, como o Inglês, o Francês e o Alemão?
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LA: Fiquei feliz ao ler seus poemas em outras línguas e sentir que, de modo geral, a
poesia continua ali. Os ritmos às vezes são outros; às vezes se perde algum jogo de
palavras; mas, de alguma forma, a potência dos recursos poéticos (o som, as
imagens, a interação entre as várias mudanças de voz e de narrativa) colabora
para que a poesia renasça em outra língua, ainda de modo poderoso. Algo que
notei, entretanto, foi que se trata de traduções que buscam ao máximo, dentro do
que é possível sem comprometer os efeitos poéticos do texto, atingir a literalidade.
É curioso, de certa forma, que sua poesia, tão experimental e inovadora, seja
traduzida de uma maneira quase acadêmica. Ao mesmo tempo, é compreensível
que se prefira, ao traduzir pela primeira vez um texto para uma língua
4
https://dichtungsring.org/
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estrangeira, oferecer para o leitor uma tradução informativa, literal, não ousada.
Porém, vencido esse momento inicial, como você imagina uma boa tradução de sua
poesia? Quais os elementos que você julga necessários para serem mantidos?
Quanto seria possível alterar, na forma e no conteúdo, para se produzir uma
experiência análoga, conquanto distinta em seus signos?
RA: Pode ser, sim, que algumas traduções carreguem essa característica de serem pouco
ousadas, mas eu atribuo isso ao fato de que elas cumprem uma função mais de
divulgação, de primeiro contato do leitor estrangeiro com minha poesia. São sempre
poemas esparsos que são traduzidos. Um apanhado, algo como um aceno: “preste
atenção nesse poeta”. Como eu imagino uma boa tradução: em primeiro lugar, uma boa
tradução de minha poesia, me parece, deveria abarcar um conjunto mais significativo de
poemas, deveria ser um livro completo. A tradução não pode perder de vista os valores
formais, as hesitações de som e sentido, de minha poesia: buscar as equivalências na
língua de chegada. Gosto de um aforismo sobre a tarefa tradutória do Roman Jakobson,
diz ele que é: “algo que envolve duas mensagens equivalentes em dois códigos
diferentes”. A “mensagem” é uma espécie de aroma que surtirá desse novo arranjo do
código. Quanto é possível alterar na forma e no conteúdo? Não sei muito bem. Acho
que isso vai depender muito da capacidade e da sensibilidade poética do tradutor; o
tradutor sabe que vai entrar nesse jogo para perder aqui e ganhar acolá e vice-versa. No
meu caso, se ele não perder muito no que toca às questões da forma, ficarei satisfeito.
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RA: Do meu ponto de vista você acertou na mosca. Não vou conferir agora, mas
estou quase certo de que Augusto de Campos, a propósito das ideias de Pound (1885-
1972) acerca da arte da tradução, diz algo parecido. Segundo o poeta concreto, Ezra
Pound considerava a tradução como um tipo especial de crítica e do mesmo modo
considerava possível fazer crítica via música, isto é, um poema pode ser testado em sua
eficiência estética quando tentamos colocar música em seu andamento. Resumidamente,
se música e poema se ajustarem bem, então o poema é bom. Parece que Pound fez
experiências desse tipo com poemas de Guido Cavalcanti (1255-1300). O que isso quer
dizer? Em primeiro lugar que as formas críticas são múltiplas. Em algum sentido a
adaptação (a tradução) fílmica de um romance é sempre crítica da poética da demora
que caracteriza esse gênero. Porque a síntese visual, a rapidez do cinema se interessa
apenas pelos momentos de máxima intensidade da obra transposta, sugerindo o restante
do entrecho narrativo. Em segundo lugar, porque a crítica é dialógica, aproximativa e
provisória como a tradução. A próxima leitura, a próxima tradução, desvelarão, na
medida em que se colocarem em relação com as demais leituras e versões, outras
camadas sígnicas da obra-objeto. Embora o exercício da crítica literária – que não é
senão uma forma de fazer relações sígnicas e de interlocução parcial a partir de um
objeto verbal construído, seja sob que motivação social, individual ou metafísica, enfim,
desde os contornos de uma objetividade em perspectiva ou, ainda, desde uma
subjetividade tornada precisa: o poema mesmo, coesão fundo-forma –, enfim, embora
essa crítica me interesse muito, sei que se trata de um texto-gesto segundo, subsidiário,
uma forma discursiva circunscrita a margear os rastros da linguagem do poeta (se não
soasse retrô eu poderia dizer genericamente “do artista”, envolvendo outros modos de
expressão). Talvez me acusem de reducionismo, mas, encurtando o caminho, prefiro
concordar com a ideia de que a crítica é tão-só mais uma forma de paratexto, ou seja, no
sentido em que, segundo Gérard Genette, “o ‘paratexto’ consiste em toda série de
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LA: Ainda sobre crítica, qual é sua relação com a crítica feita a seus trabalhos? Ela
tem ajudado a fazer essa travessia do leitor entre texto e sentido(s possíveis)? Você
vê alguma diferença notável entre a crítica que recebe dentro do país e a que
recebe no exterior? Onde sente que sua obra é melhor traduzida em forma crítica?
RA: Ser criticado é como ser lido, quase a mesma coisa; a crítica trata-se de um modo
mais focado de ler. Sim, meu trabalho tem sido objeto de estudos e de críticas e isso me
deixa muito contente, principalmente pela qualidade das abordagens. Um exemplo disso
é estudo de Prisca Agustoni, professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF), que recebeu o Prêmio Capes de Teses pela tese de doutorado:
“O Atlântico em Movimento: travessia, trânsito e transferência de signos entre África e
Brasil na poesia contemporânea em Língua Portuguesa”. Prisca analisou, na produção
poética de autores africanos e brasileiros contemporâneos, elementos diaspóricos. Seu
trabalho destaca como a estética da diáspora negra interfere na produção poética
contemporânea de alguns poetas de língua portuguesa. Prisca analisou tanto a minha,
como produção do Ricardo Aleixo, Edimilson de Almeida Pereira; além dos angolanos
Paula Tavares e Ruy Duarte de Carvalho; e do moçambicano: Luís Carlos Patraquim.
Mas, se considerarmos o sentido fraco com que o senso comum entende a crítica, ou
seja, no sentido em que “crítica” sugere algo de desfavorável, devo dizer que ainda não
sei o que significa isto. Não estou sendo arrogante. Até agora, quando alguém me
“critica”, isso tem a ver com minha atividade crítica; os autores reagem defensivamente
e com certa revolta, como se eu fosse um traidor da irmandade. Fazer crítica apontando
problemas se limita, hoje em dia, com o gesto reativo do sujeito que ficou com o
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orgulho ferido. Esse escritor medíocre faz beicinho e sai da sala para chamar a atenção.
Fora do país, a recepção crítica ao meu trabalho é boa, não posso me queixar. Os
estudos, leituras e análises se restringem ao âmbito acadêmico, universidades dos
Estados Unidos, Alemanha e França. Nos últimos anos comecei uma bela interlocução
com alguns poetas e leitores argentinos. Deixo o trabalho falar por si mesmo: o tempo
das leituras: tanto a de prazer, como a de lápis em punho. Não sou de fazer o jogo do
toma lá dá cá.
Dennys Silva-Reis (DSR): Alguma obra sua já foi adaptada para outra arte/mídia?
Se sim, poderia nos dizer como foi essa “tradução” e sua percepção a respeito
dela?
RA: Meu livro Homem ao Rubro (1983) ganhou uma transposição cênica, virou uma
montagem híbrida de dança e teatro. O bailarino Robson Duarte e a atriz Ligia Rigo
performatizaram oral e corporalmente os poemas. A direção geral foi de Camilo de
Lélis. Fiquei muito contente com o resultado. Isso aconteceu no início da década de
1990.
DSR: Ronald, em que medida você acha que é possível ver a tradução como uma
prática da diáspora negra?
RA: Não tenho uma ideia muito precisa a respeito dessa questão. Mas posso ensaiar
algo. Falamos em “diáspora negra” como se soubéssemos o que de fato isso significa.
Confesso que eu não nunca estudei o assunto o suficiente. Acho que é bastante
complexo: o drama ou a aventura da diáspora interfere no e transfigura o ambiente de
chegada, isto é, o diaspórico não é algo que se aclimata para, por exemplo, apenas fazer
sobreviver um essencialismo ou uma nostalgia de partida. Se interpretarmos “tradução”
em sentido bem amplo, então talvez a questão faça algum sentido, pois a experiência
diaspórica supõe transações, transes, transas – metáforas da operação tradutória. Com
esses termos também evoco o título de um livro de poemas traduzidos do poeta José
Lino Grünewald. Entretanto, eu recomendaria, a propósito do tema, a leitura de
Traduzindo no Atlântico negro: cartas náuticas afrodiaspóricas para travessias
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literárias (Editora Ogum’s Toques Negros, 2017), obra organizada pela tradutora e
pesquisadora Denise Carrascosa que enfeixa uma série de estudos dedicados à prática
teórico-política da tradução no contexto das literaturas afrodiaspóricas.
RA: Entendo que Machado de Assis, no que diz respeito à recepção estrangeira de sua
obra, ainda não é encarado como um escritor negro, isto é, isso parece ser algo
secundário. Ele é um novo clássico da América do Sul que começa a ser exportado a um
público mais refinado. Sua condição de negro será considerada aos poucos. É como vem
acontecendo no Brasil; os especialistas machadianos são muito conservadores. O
fenômeno Carolina de Jesus funciona, para a audiência de outros países, como uma
espécie documento da vida na favela, um entretenimento à curiosidade do estrangeiro
médio.
RA: Eu vejo isso como mais uma forma de apagamento e exclusão das possibilidades
criativas e intelectuais que os negros podem oferecer ao pensamento brasileiro. Mais do
que uma “falta de prática” do que quer que seja, trata-se antes de um impedimento
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RA: Racismo de pele versus racismo intelectual, como assim? Estamos falando de
racismo anti-negro e ponto. O racismo não é apenas epidérmico, ele é epistêmico. Há
um continuado epistemicídio do ser e/ou do vir-a-ser negro. Há tão somente variantes
do mesmo.
RA: Um intelectual de verdade se sente implicado nos logros e nas contradições que ele
investiga e/ou denuncia. Além disso, ele não deve temer pensar nos limites de suas
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DSR: Se você pudesse ditar as próximas traduções de uma editora, quais seriam as
mais urgentes para o público brasileiro e porquê?
RA: Não tenho nada a acrescentar, Leonardo. Dizem que mesmo um show muito bom
pode ser encurtado em 15 minutos. Espero que o leitor concorde que fizemos um bom
show. Brincadeira. Só posso agradecer pela oportunidade de debater com você essas
questões que me interessam desde sempre. Foi um prazer.
Referências
AUGUSTO, Ronald. À Ipásia que o espera. Salvador: Editora Ogum’s Toques, 2016
_____. Cair de Costas. Poesia reunida. Porto Alegre: Editora Éblis, 2012.
_____. Confissões Aplicadas. Porto Alegre: Editora Ameop, 2004.
_____. Decupagens assim. Porto Alegre: Letras Contemporâneas, 2012.
_____. Homem ao Rubro. Porto Alegre: Edição Grupo Pró-texto, 1983.
_____. Kânhamo. Porto Alegre: Ronald Augusto, 1987,
_____. No assoalho duro. Porto Alegre: Editora Éblis, 2007.
_____. (org.) Oliveira Silveira: Obra Reunida. Organização, introdução e notas. Porto
Alegre: Corag, 2012.
_____. Vá de Valha. Porto Alegre: Coleção Petit Poa (SMC), 1992.
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Luciana Carvalho†
*
Meus agradecimentos às alunas Amanda Bittencourt e Isabela Martins do Bacharelado em Tradução da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) pela transcrição da entrevista.
†
Professora doutora do Departamento de Inglês e do Curso Sequencial de Formação de Intérpretes da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e professora orientador pleno do programa de pós-
graduação em Tradução da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo (TRADUSP). luciana.carvalho@tradjuris.com.br
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Introdução
Por ocasião deste número especial da Translatio, cujo tema é Tradução e Diáspora
Negra, os organizadores me sugeriram que realizasse uma entrevista com um intérprete
negro. Tendo em vista minha atuação como intérprete e meu interesse por questões de
gênero, as quais nunca podem ser tratadas dissociadas das questões de raça, aceitei
prontamente.
Amaury também revela preciosidades de sua carreira como intérprete. Ele nos
conta como começou a trabalhar na área, ao lado de nada menos que sua mãe. Professora
de tradução e interpretação da Universidad Central de Venezuela (UCV) e ex-funcionária
da embaixada brasileira em Caracas, Cleusa de Castro Williams, ficava muito à vontade
de formar seu filho on the fly e lhe dar broncas se precisasse em plena cabine de
interpretação!
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Trabalho como intérprete faz quase vinte anos. Nesse período todo, fui
companheira de cabine de apenas uma colega que se autodeclara negra. Também sou
professora de interpretação e, ao longo de toda minha carreira, não devo ter tido dez
alunos negros. Atualmente, tenho uma turma com duas mulheres negras. Em quinze anos,
é a primeira vez que isso acontece. Portanto, nem é preciso dizer que para realizar esta
entrevista foi um desafio encontrar colegas que, além de se autodeclarem negros,
estivessem dispostos a conceder uma entrevista sobre o tema relacionado à profissão.
Gostaria de expressar minha gratidão e afirmar a honra e o privilégio que senti ao
entrevistar Amaury Williams de Castro.
Por fim, após ler o que Amaury tem a dizer e de conhecer os desafios e
preconceitos sofridos por nossos colegas intérpretes afrodescendentes, o leitor perceberá
que não nos é possível des-conhecer. Já não somos – nós, intérpretes de conferência –
racialmente inocentes.
Entrevista
Luciana Carvalho Fonseca (LCF): Muitas pessoas dizem que a interpretação não é
uma profissão de escolha, mas uma profissão que nos escolhe. Como você se tornou
intérprete?
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LCF: Não mesmo. Por essa e outras razões, os cursos de formação de intérprete
despertam muito interesse por parte dos pesquisadores e professores que leem a
Translatio. Você poderia falar um pouco mais sobre esse bacharelado? Quais eram
as línguas oferecidas? Havia português?
AWC: Os alunos podiam optar entre francês, italiano, russo, inglês, alemão e português.
Havia cátedras de cada uma das línguas e, quando foram abrir para o português, houve
uma situação um pouco delicada, pois a UCV entrou em contato direto com o governo do
Brasil para apoiar a abertura dessa cátedra. Minha mãe, que trabalhava na embaixada do
Brasil, acabou sendo chamada pela UCV para se encarregar da Cátedra de Português.
Porém, o governo brasileiro não demonstrou o menor interesse em mandar professor
brasileiro para trabalhar na UCV e abriram para a embaixada a possibilidade de que
brasileiros que já moravam na Venezuela ocupassem a vaga.
LCF: Tendo em vista a falta de interesse do governo brasileiro, como então se deu a
abertura da cátedra de português na Universidad Central de Venezuela?
AWC: Como o Brasil não demonstrou interesse, apesar de ter fronteira com a Venezuela,
fazendo todo sentido que o português ensinado fosse o brasileiro, a UCV contatou a
embaixada de Portugal. Em menos de um mês, Portugal instalou não apenas uma Cátedra,
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A maioria desses alunos era filha de portugueses e acharam o máximo poderem falar o
português correto já que os pais não falavam, pois emigraram para a Venezuela com
escolaridade de segunda série, no máximo. Consequentemente, não falavam o português
corretamente e ainda tiveram que enfrentar o espanhol. Acabavam falando portunhol.
ACW: Sim e era muito interessante que a princípio eram esses os alunos de português. A
Venezuela é um país que, vou dizer era, que passou por uma mudança muito drástica.
Mas, naquela época, era um país – provavelmente o único no continente – que tinha uma
maior mobilidade social. Qualquer filho da Dona Maria, empregada doméstica com 10
filhos, um de cada pai, conseguia colocar, pelo menos, 6 filhos em uma universidade com
status da USP. E todos tendo prestado e sido aprovados no equivalente ao vestibular. Ela
matriculava todos na escola pública e, da escola pública, eles conseguiam prestar o exame
para uma USP da vida, que, no caso, seria a UCV ou outras universidades públicas. Essas
universidades são ótimas.
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ACW: A educação pública de qualidade fazia com que todas as raças na Venezuela
tivessem oportunidades. E essas raças são a indígena, local, e a negra, trazida no mesmo
processo de escravatura do Brasil.
LCF: Mas não em uma proporção tão grande quanto para o Brasil, não é? E quais
eram os outros grupos populacionais na Venezuela?
ACW: Não. A Venezuela é um país pequeno, tem mais ou menos o tamanho de Minas
Gerais. A proporção de negros que chegou foi muito grande, mas claro que me refiro em
termos proporcionais à população. Até hoje o país possui uma grande população negra e,
obviamente, os espanhóis, portugueses, italianos foram chegando já após a
independência. Emigraram também os árabes, os turcos e chineses. Por outro lado, até
hoje não temos uma população japonesa na Venezuela. Há também uma população do
Caribe, logicamente, os cubanos, as pessoas da República Dominicana, Aruba, Curaçao,
Bonaire, Trinidade e Tobago, que eram ilhas que pertenciam à Venezuela e que depois
foram tomadas pela Inglaterra. Havia também colombianos, equatorianos e peruanos.
Eesses eram os únicos da cordilheira andina. Na Venezuela, não se via bolivianos, por
exemplo. Chilenos chegaram apenas com a ditadura de Pinochet e conforme acabou a
ditadura também saíram. Nem voltaram, foram para os Estados Unidos [risos]. Então, a
Venezuela não tinha um grande problema racial em relação às carreiras universitárias.
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LCF: Interessante.
ACW: O venezuelano também sempre gostou de estudar línguas, porque Miami fica a
duas horas e meia de voo de Caracas. Uma passagem para Miami nunca custou mais do
que duzentos dólares, ida e volta. A mobilidade social permitia que uma empregada
doméstica pudesse juntar seu dinheirinho durante o ano e depois passar duas semanas nos
Estados Unidos, pagando hotel, comida e levava no bolso em torno de dois mil, três mil
dólares para ela gastar. Então, é muito comum você encontrar, hoje, uma ex-empregada
doméstica que tenha 60, 70 anos de idade e ela vai te falar sobre Nova York. Vai te falar
das ruas e vai te falar das grandes lojas. Ela provavelmente começou indo como babá e,
de repente, ela deixou de trabalhar naquela casa, mas pegou o gosto e percebeu que não
era tão caro.
LCF: E o impacto dessa mobilidade geográfica e social certamente tinha efeito nos
filhos dessa mulher.
AWC: Sim, ela tinha essas condições e os filhos também pegavam gosto e percebiam
que, para poder viajar, era necessário falar outra língua. Então, a Venezuela é um país
onde as pessoas gostam de estudar línguas. Estudar inglês é básico.
AWC: Com a chegada das novelas brasileiras na década de 70, chamou muita atenção o
português. Apesar de as novelas serem dubladas, as músicas eram em português. As
pessoas começaram a conhecer a MPB, Ivan Lins, Chico Buarque de Holanda, Maria
Bethânia. Inspirados pela música e pela vontade de entender o que estavam cantando, os
venezuelanos iam para o Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil, do qual
a minha mãe foi diretora. Fazia-se um ano de estudo de Língua Portuguesa e, ao longo do
curso, vários alunos, que estavam finalizando o segundo grau, tinham a possibilidade de,
por meio de um convênio cultural, entre Brasil e Venezuela – aliás, o convênio era entre
o Brasil e todos os países da América Latina, estudar aqui. Essa é uma das razões porque
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não dava para entender o porquê de o governo do Brasil não ter mostrado interesse na
cátedra de língua portuguesa na UCV.
LCF: Certamente sua mãe teve uma influência ou inspiração na sua carreira de
intérprete. Você poderia falar sobre o trabalho da sua mãe? Qual o nome da sua
mãe?
ACW: Seu nome é Cleusa de Castro Williams. Além de fundadora e diretora do Centro
de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil em Caracas, foi professora da UCV de
Interpretação Simultânea, Interpretação Consecutiva e Tradução Especializada de
português.
LCF: Então você é filho de peixe! E como era o trabalho de intérpretes de português
na Venezuela? Você começou a trabalhar lá?
ACW: A escassez de intérpretes de português, mesmo porque até então não existia a
Língua Portuguesa como matéria dentro da carreira, gerou uma situação na qual só
existiam três intérpretes de Português – entre eles a minha mãe. Aliás, três. Houve um
grande evento no qual me lançaram. Antes, eu falava português que nem marinheiro:
falava, falava, falava, mas não escrevia. Resultado, minha mãe me obrigou a fazer um
curso de português para eu aprender a escrever. Em seguida, comecei a fazer traduções
para o Sistema Econômico Latino Americano (SELA), cuja sede era em Caracas. Nesse
grande evento, houve a necessidade de intérpretes de português. Fui então intimado pela
minha mãe [risos] a ser intérprete. Ela, sentada do meu lado. E até hoje interpretamos
juntos.
Quando comecei, era ela que me corrigia, me ajudava, dava todas as dicas. De vez em
quando, eu também apanhava na cabine quando cometia erros desnecessários que ela já
havia corrigido [risos].
LCF: Que experiência singular! Mas em casa, só retomando, em casa você disse que
falava português. Com quem?
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ACW: Com a minha mãe e com meu pai [Pedro Williams Greene]. Apesar de meu pai
ser venezuelano, ele estudou aqui no Brasil mais de dez anos. Ele estudou medicina na
USP, se formou nos anos 60. Depois ele fez a pós-graduação em cardiologia. Meu pai
tem 82 anos e minha mãe, 80. E só ela que é intérprete e ela deu aula na Universidade
Central da Venezuela até novembro do ano passado. Agora, meus pais estão morando
aqui no Brasil.
LCF: Sua mãe é um tesouro. Será que ela ainda teria interesse em dar aula?
ACW: Acredito que não [risos]. Ela me disse que iria curtir a cidade, seu país mesmo.
Mas eu a intimei, porque logo que ela chegou havia um evento e minhas colegas, que já
conhecem toda a minha história falaram que minha mãe tinha que ir. Nessa ocasião, ela
trabalhou comigo e depois disse que faria interpretação três, quatro vezes por ano para
não perder o pique. Ela é ótima. Ótima intérprete, realmente.
LCF: Ambos, você e sua mãe, trabalham na combinação espanhol e português? Você
fala ou interpreta também em outras línguas?
ACW: Estudei na Inglaterra. Mas, como tenho extremo respeito pelas línguas e pelos
meus colegas falantes de inglês, apesar de falar, prefiro não trabalhar com o inglês, por
saber que a qualidade nunca vai ser a mesma. Agora, eu acho um desrespeito com meus
colegas fazer isso, assim como acho desrespeitosa a atitude de que todo intérprete
brasileiro sabe espanhol.
LCF: Tendo morado em vários países que falam espanhol e sendo nativo, a dimensão
que você tem dessa atitude é ainda mais rica, não é?
ACW: No meu caso, eu sou considerado nativo porque de fato em espanhol eu não tenho
sotaque. E ainda posso, no caso, caso necessário, interpretar o sotaque, por exemplo, da
Espanha, do México, do Cone Sul, principalmente, do Estuário de la Plata, né, do Caribe,
da Venezuela, de Cuba e da Colômbia. O espanhol, além de ser uma língua muito rica,
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Se você está, por exemplo, em qualquer país hispano-americano, você vai assistir a filmes
da Colômbia, do Peru, da Espanha, do México. Desde criança, você começa a acostumar
o ouvido não apenas aos sotaques, mas às palavras.
LCF: Tendo trabalhado como tradutor e intérprete na Venezuela, como foi a sua
chegada no Brasil? Como você entrou para a Associação Profissional de Intérpretes
de Conferência (APIC)?
ACW: A minha chegada aqui foi muito fácil. Não apenas pelo fato de ser brasileiro, mas
porque eu já era membro da Associación Venezolana de Intérpretes de Conferencia
(AVINC). Vários de meus colegas da AVINC também eram da Associação Internacional
de Intérpretes e Conferência (AIIC), portanto, quando me mudei, meus colegas
venezuelanos se comunicaram com seus respectivos colegas no Brasil dizendo que
estavam me perdendo e me apresentando.
Quando eu cheguei, fui muito bem recebido pelo pessoal da APIC que era meu grande
contato. Entrei na APIC imediatamente e era chamado para eventos e tudo mais. Como
sabemos, as associações de intérpretes nada mais são do que isso, uma associação de
intérpretes. Elas não são head hunters. Então, não são obrigadas a te chamarem, né? Você
tem que fazer o teu caminho. Os intérpretes novatos cometem um erro ao pensar: “Ah, eu
entrei em tal associação, mas eles não me chamam”. Mas os associados não têm o dever
de te chamar. Você entrou porque isso te oferece uma credencial, que corresponde a
“Olha, essa pessoa é boa porque faz parte dessa associação”.
LCF: Nós marcamos essa conversa para falar também de sua experiência como
intérprete profissional e negro no Brasil. Quais foram suas experiências nesse
sentido? Você deve ter uma visão interessante da questão racial no Brasil por tudo
aquilo que você já falou da Venezuela e também por você ter morado em muitos
países.
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ACW: De fato, já aconteceram situações que eu não posso esquecer até hoje, porquê... é
interessante o que ocorre, pois como já morei em vários países tenho uma perspectiva
bem ampla. Já morei na Venezuela, na Inglaterra, nos Estados Unidos, no México. E é
muito duro quando você mora em países que não têm, por exemplo, uma grande
população negra ou que essa população negra não tem maiores oportunidades, e você não
sofreu racismo nesses países.
E, em seguida, você chega e volta ao Brasil que é um país que tem a maior população
negra depois da África e você não entende. Você não entende as situações em que pessoas
com traços indígenas, mistura de português, de espanhol e tal, se veem como arianas. E,
portanto, se sentem no direito de pisotear. É muito duro.
A interpretação era às oito e, lógico, eu com medo de chegar tarde, cheguei com mala e
tudo às sete horas da manhã. Uma moça que era organizadora do evento, quando me viu
entrando, simplesmente me atravessou na porta, me olhou de cima pra baixo e falou: “Pois
não?”. Eu respondi: “Ah, bom dia eu vou trabalhar nesse evento, nessa sala.”. “Como
assim trabalhar? Este aqui é um evento particular.”. Eu respondi: “Pois é, eu sou um dos
intérpretes simultâneos, eu sou um dos intérpretes de espanhol”. Ela deu um passo pra
trás, me olhou de cima pra baixo e disse assim: “Intérprete?! Você?!”.
ACW: Ela não teve outra alternativa senão me liberar a entrada. Só que aquilo foi
consumindo a moça durante todo o dia e ela entrava a cada vinte minutos e olhava pra
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cabine. Foi bem desagradável. No dia seguinte, e eram quatro dias de evento, um pouco
antes do intervalo eu saí da sala e perguntei para uma funcionária do mesmo hotel onde
era o café para eu ir comprar um café. A moça, que estava próxima de nós, ouviu a minha
pergunta e disse que o coffee break não iria sair ainda e que se eu fosse beber café, seria
depois de que todos os convidados bebessem.
Eu falei: “Acho que não me expliquei. Eu estou procurando o café do hotel para eu ir e
comprar o meu café”. Depois que ela percebeu a gafe cometida, já era muito tarde. Fui
beber meu café e quando eu voltei, ela já tinha falado com a coordenadora dos intérpretes
que ela não queria que eu estivesse mais no evento. Então, eu fui expulso do evento no
segundo dia.
Já na tradução, isso não vai acontecer, porque a tradução hoje é contratada pela internet e
por telefone.
LCF: Em outros países que você trabalhou como intérprete você nunca passou por
isso?
ACW: Em outros países, eu jamais passei por esse tipo de situação. Nem na Inglaterra,
nem nos Estados Unidos. É muito difícil, pois quando você para e reflete, você percebe
que é justamente aqui, no Brasil.
Outro fator que não está relacionado à cor da pele é o sotaque. Durante toda a minha vida,
fui o homem mais brasileiro do mundo, porque eu não morava aqui. E aí quando eu voltei
definitivamente para morar, eu descobri que eu não era brasileiro. Conforme eu ia abrindo
a boca as pessoas perguntavam da onde eu era. Cheguei a ouvir frases dantescas e tristes.
Uma vez, em um táxi indo para um evento, o taxista me ouviu falar pelo celular. Falei em
espanhol e depois eu tive que falar em inglês com outra pessoa e ele falou assim: “Bom,
está na cara que o senhor não é brasileiro, né?”. Antes de eu interrompê-lo para falar que
era sim, ele completou: “É, porque negro brasileiro não presta. E o senhor é um doutor.”.
LCF: Imagino que seu sotaque cause certa dissonância cognitiva nos brasileiros.
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ACW: Estando no Brasil, passei a perceber uma série de detalhes. Percebi, por exemplo,
que, se eu quero sair para comprar uma roupa social, eu tenho que me vestir socialmente
para entrar nessa determinada loja para, no mínimo, não ser perseguido. Já entro e começo
a falar e começo a falar até para tranquilizar as pessoas. Como falo com sotaque, viro
gringo, e gringo é dólar, então não vão achar que vou roubar. É muito duro.
Hoje, eu dou graças a Deus de que eu não tenho filhos, porque não gostaria que fossem
criados aqui sob essas condições. Como é que eu ia explicar pra eles aquilo que eu te
falei? O país que tem a maior população negra no mundo depois da África e é racista? É
racista.
LCF: Você falou de seu trabalho em São Paulo. Você passou por situações
semelhantes em outras cidades?
ACW: A interpretação simultânea, quando fora da cidade de São Paulo, percebi que tem
muito menos pressão a nível racial. Muito menos pressão. No interior de São Paulo, no
Rio de Janeiro. Eu, assim, eu adoro trabalhar no Rio de Janeiro, provavelmente por isso.
Nos outros estados do país, é muito agradável.
LCF: Na questão do Brasil, a que você atribui aqui o preconceito ser maior do que
nos outros países que você mencionou?
ACW: O caso do Brasil possui raízes profundas. Fui professor de história nas Relações
Internacionais aí tive que estudar muito sobre a questão. O tráfico dos escravos para o
Brasil foi o mais sanguinário. Ocorreram situações horríveis já no transporte. A Inglaterra
já tinha acabado com o comércio de escravos, que passaram a proibir. Os ingleses
confiscavam os navios que estavam trazendo negros para o Brasil. Quando o navio estava
prestes a ser capturado, o capitão preferia perder a carga, porque era isso que o negro era
naquela época. E perder a carga era perder a carga viva, jogando no fundo do mar. Quando
você escuta esse tipo de coisa, é chocante, né? As coisas que aconteceram aqui no Brasil
foram muito mais violentas. Muito mais sanguinárias.
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Quando chegaram aqui os escravos de várias regiões da África, foi muito duro porque
eles não podiam nem se comunicar entre eles. Em seguida, eram vendidos. E nem todos
tinham o mesmo preço. Por exemplo, nos países hispânicos, havia os negros Mandingas,
que eram muito altos, quase dois metros, às vezes ultrapassavam dois metros, fortes
demais. Eles não eram usados para a lavoura, eles eram sementais. Um negro desses valia
em torno de mil dólares, mil dólares e mil setecentos. Além dos sementais, você tinha o
negro da casa, o negro da casa normalmente era filho do senhor.
Este tinha a pele mais clara pela mestiçagem, mas também pelo fato de passar o dia inteiro
dentro da casa. Mesmo dois filhos do mesmo dono, se um estivesse na lavoura e o outro
não, um seria muito mais escuro do que o outro. Com base na cor, o negro da casa tinha
um valor mais alto. Quer dizer, normalmente o que tinha valor mais baixo era o da
lavoura. E ele era mais descartável. Isso já criou, dentro da própria população negra, um
sentimento de que os negros mais claros eram melhores que os mais escuros, porque o
valor dos primeiros era maior.
A pele, por ser mais clara, representava que tinha uma mistura com o branco. Daí veio o
terrível termo mulato, que nada mais é do que mula. E esse processo todo foi muito
violento e por que existe racismo no Brasil até hoje? Bom, porque a abolição foi em 1888.
Foi ontem.
ACW: No geral, não, até onde eu saiba. Eu acho que conheço mais dois colegas negros,
mas eles têm a pele bem clara.
ACW: Acho que sim, mas não tenho certeza. Essa é uma situação complexa no Brasil.
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ACW: Principalmente de pai. Meu avô era da chamada Guiana Inglesa e morreram
britânicos e faziam alarde de que tinham passaporte britânico. A minha avó era da ilha de
Barbados, nas Antilhas, e eu me lembro que a minha vó achava terrível o inglês dos
Estados Unidos e ela fazia questão de falar ou de dizer que ela falava the queen’s English.
Então, eu cresci numa casa onde a minha avó me levava para a Igreja anglicana, onde o
serviço era em inglês, e, na época, eu não falava inglês, mas tive que aprender porque a
bíblia estava em inglês. Era também uma época na qual os avós podiam bater nos netos,
motivo pelo qual acabamos todos fazendo faculdade.
Mas minha ascendência é negra tanto do lado da minha mãe quanto do lado do meu pai.
E por nos considerarmos negros havia piadas tão suportáveis dentro da família como:
“tira tua cara negra de dentro da minha cozinha”, da qual todo mundo vai rir, porque não
é em tom de agressão. Uma coisa que eu também percebi aqui no Brasil é que a palavra
negro já é uma agressão.
Nos países hispânicos, na própria Argentina, onde não há uma grande população negra, e
nos países hispânicos em geral, imagine uma família. Vamos supor, pai e mãe holandeses,
todos são claros. Mas tem um filho com o cabelo escuro. Esse filho será chamado de
negro e pronto. Ele pode ter olhos azuis, mas ele é chamado de negro.
Já com o próprio negro, eles vão te chamar negro também, mas de um modo diferente.
Em Cuba, por exemplo, na Venezuela e na Colômbia, sou chamado de el negro Amaury.
Quando se referem a mim, podem dizer: “Eu estava na casa de el negro Amaury”. Com
meu pai, nos ambientes formais ele é Doutor Williams, mas entre as amizades, el negro
Williams. Eu mesmo, ao telefone, falaria “Hola, aqui que fala é el negro Amaury”.
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LCF: Nos círculos em que você cresceu, se formou e viveu, havia outros negros?
Imagino que no universo da diplomacia você não tenha conhecido muitos
afrodescendentes.
ACW: No curso de Diplomacia que fiz, não havia. Já nas demais carreiras da UCV, sim.
Em Medicina, em Direito nem se fale. Quando eu estudava na Inglaterra, tinha colegas
venezuelanos também e havia poucos negros. Mas, pensando bem, eu acho que eu não
ficava procurando, pois você não busca as pessoas por cor de pele, você busca o coração,
o intelecto.
LCF: E no âmbito familiar? Você e sua família sofreram experiências racistas que
você gostaria de compartilhar?
ACW: Minha mãe se refere a si como negra, mas aqui no Brasil, as pessoas, quando me
veem com ela na rua – nós nos divertimos muito com isso, tendem a achar que, por ela
ser mais velha que eu, ela é uma velha ordinária que está bancando o negão. Pensam:
“Mas que negão safado, se aproveitando da coitada da velha”.
Minha mãe viveu muitas situações quando eu e meus dois irmãos eram crianças. Nós três
somos negros e estávamos num parque em Caracas. Ela tava sentada lendo um livro e
nós, brincando. Passou o carrinho de sorvete e eu fui até ela e disse: “Mãe, me compra
um sorvete?”. Havia uma senhora, de cerca de 65, toda religiosa, cheia do terço na mão e
tudo mais, que olhou pra minha mãe e disse: “Mãe? Não filha, pelo amor de Deus, você
sabe que você morreu, vai direto pro céu. Porque Deus está vendo essa obra de caridade
que você está fazendo, imagine, cuidar de pretinhos, e três…”.
LCF: Você se recorda dessa experiência? O que experiências como essa despertam
em você?
ACW: Nesse caso, minha mãe conta que os olhos da senhora encheram-se de lágrimas e
que ela percebeu que a senhora estava tão emocionada, mandando tantas vibrações
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positivas que ela preferiu não retrucar. Minha mãe riu e essa história ela conta e reconta.
É uma das nossas anedotas divertidas.
Porém, há situações que chocam de verdade. Como aquele caso do hotel que eu falei
antes. Houve uma outra situação, a mais recente. Foi duro. Eu estava viajando de Lima
pra o Brasil e fui embarcar. Todo mundo já estava fazendo fila e cheguei no balcão para
fazer uma pergunta para a moça. Mencionei que já tinha trabalhado na British Airways e
ela me disse: “Ah, colega, fica por aqui mesmo”. Na hora do embarque, embarquei na
frente. Havia um grupo de brasileiros que estava viajando pelo Peru, faziam parte do
Lions Club. Estávamos todos viajando na classe executiva e acabou sendo muito
desagradável, pois a primeira coisa que eu ouvi veio do senhor que se sentou do meu lado.
Eles eram de Curitiba, era um homem que obviamente era caucasiano. Ele ficou um bom
tempo olhando para os lados para ver se de fato ele teria que sentar ali, eu estava na janela
e ele não tinha outra alternativa. Ele ficava no corredor, olhou para o comissário, acho
que ele não teve coragem de falar nada e se sentou. Mas toda postura dele conseguiu me
intimidar.
Pensei que isso nunca fosse me acontecer, que pudessem chegar a me intimidar. Mas,
aquilo me intimidou. Eu me senti muito pequeno. Depois de sentado, ele ficou muito duro
e então colocou o braço e deixou bem claro que não era para eu encostar o braço ali. Em
seguida, ele abriu o livro dele.
O chefe da tripulação, que já sabia que eu tinha trabalhado na British, falou comigo em
espanhol na hora do serviço de bordo. Logo depois, se dirigiu ao senhor na mesma língua,
e ele não entendeu. Eu, ingenuamente, fui procurar ajudar e disse “Ele está perguntando
isso, isso e isso”. O cara olhou pra mim e disse: “Eu entendi claramente”.
ACW: Pensei comigo: “Eu não vou viajar três horas e meia com isso”. E falei: “Não, não
entendeu, porque a sua resposta foi totalmente absurda em relação ao que o comissário
lhe perguntou. Na verdade, eu peço desculpas por eu ter me metido nesse assunto, mas o
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senhor está incomodando o comissário, que já foi colega meu, porque eu já fui tripulante.
O senhor está atrapalhando o trabalho dele, pois ele tem que atender mais passageiros.
Ele não pode passar a noite toda aqui esperando o senhor entender o que ele está falando”.
Depois de eu ter reagido, não se passou mais nada com ele e senti que esfriou a situação.
Mas, eu também ia te contar outra coisa. Do grupo dele, depois que ele se sentou,
chegaram os outros membros do grupo falando assim: “Olha só, e ainda sentado aqui na
frente, tá se achando todo, todo, esse aí”.
ACW: Sim, muito alto pra eu ouvir. Isso acontece muito. Eu já ouvi de colegas intérpretes
quando se comenta que alguém vai embarcar no aeroporto de Congonhas, dizer que
Congonhas deixou de ser aeroporto e virou um terminal de ônibus, uma rodoviária.
Só que esse discurso, pelo que eu percebi, está mais voltado para o povo Nordestino do
que para o negro. Porque o negro ainda não é o que mais viaja de avião. Não é um
problema de raça. Eu acho que é um problema basicamente econômico e geográfico
também.
Por exemplo, quando digo: “Não, porque nós os negros”, muitas pessoas falam: “Não,
imagina, como que você se chama assim? Você não é negro, você é moreno!”. E então,
eu percebo que para ela eu sou moreno porque ela sabe que eu viajo. Logo, a relação de
negro, na verdade, tem tudo a ver com pobreza, marginalidade. Conforme esses elementos
vão se afastando e a pessoa vai tendo mais recursos, as outras pessoas te veem mais
branco. Na verdade, ela não está conseguindo te enxergar como negro. Ela está te vendo
como uma pessoa morena.
LCF: Eu uso um livro com meus alunos do curso de Letras da PUCSP que se chama
“Whistling Vivaldi: how stereotypes affect us and what we can do” do psicólogo
americano negro, Calude M. Steel. Ele é também professor universitário e, além de
apresentar fundamentos científicos da questão racial e das consequências nefastas
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dos estereótipos, ele também fala da experiência pessoal dele. Um episódio de vida
que me chamou muita atenção foi quando ele, criança, nos Estados Unidos, se
descobriu negro. Foi quando ele percebeu que não podia frequentar as piscinas
públicas em qualquer dia da semana, ou seja, que havia um dia certo pra ele ir pra
piscina pública. Era quarta-feira. Às quartas, os negros podiam ir na piscina
pública. Ele tinha seis anos ou sete anos. Já, na minha vida, eu morei em Bracknell,
na Inglaterra, dos 8 aos 12. Um certo dia, eu devia ter uns 9 anos, uma criança
inglesa que queria o meu balanço, quando percebeu que eu não iria ceder, me
chamou de paki. Eu não sabia o que era e quando cheguei em casa, perguntei a
minha mãe, que me explicou que era paquistanês. Eu nem sabia onde era o
Paquistão, mas comecei a observar os paquistaneses e notei que a pele deles era mais
escura que a minha e tomei consciência de que a minha pele era mais escura que a
dos ingleses, para quem eu não era branca. Aos nove anos, caí em mim e percebi que
não sou branca e também não sou negra.
ACW: Isso é muito interessante, pois no Brasil você é considerada branca. A minha mãe
é considerada loira.
ACW: No meu caso, demorou muito mais. Eu não tinha percebido como seria
maravilhoso se morrêssemos sem perceber. Eu fui perceber por causa dos vizinhos que
moravam dois ou três quarteirões de casa. Foi na Venezuela. Lembro que a senhora era
viúva e dois dos filhos dela estudavam comigo e brincávamos no meu prédio. Era um
prédio com jardins e tinha uma área maravilhosa. Mas um dia, fui brincar na casa deles,
que era uma casa mais simples com um pequeno jardim.
Quando chegou a mãe, eu tava brincando e eu senti um clima estranho, pois ela chamou
o filho e o filho veio me dizer que iam jantar. Eu percebi que estava muito cedo para
jantar, mas peguei minha bicicleta para ir embora. A mãe dele saiu correndo atrás de mim
e falou assim: “Aonde você acha que está levando a bicicleta do meu filho?”. A minha
bicicleta era idêntica a dele, então, eu respondi: “Não, essa bicicleta é minha”. Ela
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continua: “Tá vendo, você está me chamando de mentirosa, está vendo porque que vocês
não podem… ”. Foi pela bronca que ela depois deu nos filhos que eu percebi que tinha
alguma coisa comigo que não estava fluindo com ela.
Fiquei muito chocado, muito triste. Mas até aquele dia, eu não percebia que era isso. E
quando cheguei em casa, eu me lembro de nem ter contado para minha mãe, porque, às
vezes, a gente tinha medo de contar por medo de apanhar. Mas depois comentei com
amigos e um adolescente disse: “Ela é conhecida. Ela não gosta de negros”.
ACW: Exato. Quando ele falou: “Não gosta de negro, porque ela é racista”, eu fiquei
pensando sobre a palavra racista, que eu provavelmente já tinha ouvido, mas que, até
então, nada tinha a ver comigo.
Então esse momento eu acho que não é o pior dos momentos, esse é um grande momento
quando você se depara com essa realidade. O problema é que a partir dali, você acaba de
me falar, é quando a gente começa a se testar e a ver o mundo ao redor. O mundo que até
então era livre.
A partir daí, comecei a ler os olhares e a perceber porque, em determinados locais, eu não
me sentia à vontade. Compreendi: “Ah, então era isso”.
Bibliografia
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Porto Alegre, n. 13, Junho de 2017
TRANSLATIO Tradução e Diásporas Negras
Medeiros, Étore & Pompeu, Ana. Correio Braziliense. Brasileiros acham que há racismo,
mas somente 1,3% se consideram racista. 25 de março de 2014. Disponível em:
<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2014/03/25/internas_polbraec
o,419288/brasileiros-acham-que-ha-racismo-mas-somente-1-3-se-consideram-
racistas.shtml> Recuperado em: 8 de maio de 2017.
Steele, Claude M. Whistling Vivaldi: how stereoptypes affect us and what we can do.
New York&London: W.W. Norton & Company, 2010.
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