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Translatio 13 < http://seer.ufrgs.br/index.php/translatio/index > 
N. 13 (2017)
TRADUÇÃO E DIÁSPORAS NEGRAS
(orgs) Dennys Silva‐Reis e Cibele de Guadalupe Sousa Araújo 
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
TRADUÇÃO E DIÁSPORAS NEGRAS: O PERCURSO DA GRAÚNA METAFÍSICA  PDF 
Dennys Silva‐Reis, Cibele de Guadalupe Sousa Araújo   1‐21 

TEXTOS TEÓRICOS
ESTUDOS DA DIÁSPORA: PASSADO, PRESENTE E PROMESSA  PDF 
Khachig Tölölyan   22‐39 

OS USOS DA DIÁSPORA  PDF 
Brent Hayes Edwards   40‐71 

A IDEIA DE CULTURA NEGRA  PDF 
Hortense Spillers   72‐94 

TRADUZIR A LITERATURA EM SITUAÇÃO DE DIGLOSSIA  PDF 
Raphaël Confiant   95‐105 

ARTIGOS
(RE‐)CONSTRUINDO MEMÓRIA AFETIVO‐CULTURAL ATRAVÉS DA TRADUÇÃO DE POESIA NEGRA  PDF 
DE E PARA A LÍNGUA ALEMà 106‐
Jessica Oliveira de Jesus   126 

QUEM NOMEOU ESSAS MULHERES “DE COR”? POLÍTICAS FEMINISTAS DE TRADUÇÃO QUE MAL  PDF 
DÃO CONTA DAS SUJEITAS NEGRAS TRADUZIDAS  127‐
tatiana nascimento   142 

ESCRITAS AFROFEMININAS EM TRADUÇÃO: THE COLOR OF TENDERNESS E L’HISTOIRE DE  PDF 
PONCIÁ  143‐
Marcela Iochem Valente, Luciana de Mesquita Silva   162 

ORALIDADE INVEROSSÍMIL E ROMANCE GRÁFICO: A TRADUÇÃO BRASILEIRA DE AYA DE  PDF 
YOPOUGON  163‐
Marcos Araújo Bagno   184 

DA NEGRITUDE CESARIANA À ANTILHANIDADE GLISSANTIANA: O CAMINHO PARA CRIOULIDADE  PDF 
E A TRADUÇÃO COMO PRÁTICA MESTIÇA  185‐
Dyhorrani da Silva Beira   200 

POLÍTICAS DE TRADUÇÃO E ESCRITA LITERÁRIA NEGRA  PDF 
Valeria Lima de Almeida   201‐214 

TRADUÇÕES TRANSGRESSORAS: A IMPORTÂNCIA DA TRADUÇÃO NÃO OFICIAL SOCIAL DE  PDF 
TEXTOS DE AUTORIA NEGRA PARA O AMBIENTE ACADÊMICO    215‐
Adélia Mathias   233 
 
TOBIAS BARRETO, AGENTE NEGRO DE TRADUÇÃO  PDF 
Roch Duval   234‐251 

PODE O TRADUTOR FALAR? UMA ANÁLISE DA TRADUÇÃO DA AUTOBIOGRAFÍA DE JUAN  PDF 
FRANCISCO MANZANO NO BRASIL SOB A ÓTICA DOS ESTUDOS CULTURAIS  251‐
Liliam Ramos da Silva   267 

RESENHAS CRÍTICAS
CALÇOS E PERCALÇOS NA ÁREA DE BABEL: ESBOÇO DE UMA ANTROPOLOGIA DA  PDF 
TEXTUALIDADE  268‐
N'gana Yéo   273 

A ANÁLISE DAS LITERATURAS FRANCÓFONAS E DA MUNDIALIZAÇÃO NO LIVRO DE NADÈGE  PDF 
VELDWACHTER  274‐
Kall Lyws Barroso Sales   280 

TRADUÇÕES COMENTADAS
"O DESTRUIDOR", DE FRANK MARTINUS ARION  PDF 
Daniel Dago   281‐289 

CONECTANDO PETINA GAPPAH COM OS LEITORES BRASILEIROS: UMA TRADUÇÃO COMENTADA  PDF 
DE “MISS MCCONKEY OF BRIDGEWATER CLOSE”  290‐
Cibele de Guadalupe Sousa Araújo   300 

SAUDADES DO BENIM: SETE POEMAS DE EURYDICE REINERT CEND  PDF 
Dennys Silva‐Reis   301‐316 

PROJETOS DE PESQUISA
RELATO DO PROJETO “LITERATURA DE REFÚGIO: EXPRESSÕES HAITIANAS”  PDF 
João Arthur Pugsley Grahl, Luciano Ramos Mendes, Rei Seely, Emerson Pereti, Carla Cursino,  317‐
Rafaela Santana, Glaucia dos Santos Abreu   322 

ENTREVISTAS
POESIA, CRÍTICA E TRADUÇÃO: ENTREVISTA COM RONALD AUGUSTO  PDF 
C. Leonardo B. Antunes, Ronald Augusto, Dennys Silva‐Reis   323‐334 

SER INTÉRPRETE E NEGRO NO BRASIL E NA VENEZUELA: ENTREVISTA COM AMAURY WILLIAMS  PDF 
DE CASTRO  335‐
Luciana Carvalho Fonseca   356 
 

ISSN eletrônico: 2236-4013


 
 
Porto Alegre, n. 13, Junho de 2017
TRANSLATIO Tradução e Diásporas Negras

TRADUÇÃO E DIÁSPORAS NEGRAS: O PERCURSO DA


GRAÚNA METAFÍSICA

Dennys Silva-Reis1 (POSLIT/UnB)


Cibele de Guadalupe Sousa Araújo2 (IFG)

O termo diáspora (do grego clássico διασπορά, “dispersão”) foi utilizado, em um


primeiro momento, para designar a dispersão involuntária de povos que resistiam à
assimilação ou que se encontravam impedidos de fazê-la. Logo, originalmente, falava-se
em diáspora do povo judeu, grego e armênio. Com o desenvolvimento dos Estudos de
Diáspora, o termo alcançou novos significados, agregando a ideia generalista de referir-
se a qualquer tipo de dispersão – forçada ou voluntária, assimilativa ou dissimilativa,
racial ou nacional e, até mesmo, de gênero3.
Foi a partir dessa visada terminológica que estudiosos negros norte-americanos
começaram a nomear como “diáspora” o histórico dos descendentes africanos dispersos
por diversos motivos (como o exílio, a migração, a expatriação, o nomadismo, etc.), nos
mais diferentes locais (tais como os Estados Unidos, o Brasil, Cuba, o Haiti, a Costa Rica,
entre outros). A historiadora norte-americana Linda Heywood (2015) afirma que os
estudos da diáspora negra, em sua origem, interessavam-se, em particular, pela
investigação do sistema escravocrata desenvolvido na Europa e posto em prática na
América, na Ásia e na Oceania. Pesquisas relacionadas à diáspora negra trouxeram, dentre
outros conceitos, as noções de “Sistema do Atlântico Sul”, “Atlântico Negro” e “Mundo
Atlântico”. Noções que, de alguma forma, revitalizam dimensões múltiplas de análise da
diáspora africana, em particular quanto a sua questão cultural.
Segundo Nei Lopes (2011, p. 51):

1
Doutorando em Literatura (POSLIT) e Mestre em Estudos da Tradução (POSTRAD) pela Universidade
de Brasília (UnB). Professor, tradutor e cronista em seu blog Historiografia da tradução no Brasil
(http://historiografiadatraducaobr.blogspot.com.br). E-mail: reisdennys@gmail.com. Brasília, Brasil.
2
Doutora e Mestre em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Goiás (UFG). É professora da
Secretaria Municipal de Educação de Goiânia, onde atua, desde 2008, ministrando a disciplina de Língua
Estrangeira – Inglês. É autora do livro A representação do feminino na ficção de Yvonne Vera (Goiânia:
PUC_GO: Kelps, 2011). E-mail: guadalupe.sousa@gmail.com. Goiânia, Goiás.
3
Para maior aprofundamento, consultar os trabalhos de Khachig Tölölyan (2014, 2007, 1996) e Rogers
Brubaker (2005).

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[a] Diáspora Africana compreende dois momentos principais. O primeiro,


gerado pelo comércio de escravos, ocasionou a dispersão de povos africanos
tanto pelo Atlântico quanto pelo oceano Índico e mar Vermelho,
caracterizando um verdadeiro genocídio, a partir do século XV – quando
talvez mais de 10 milhões de indivíduos foram levados, por traficantes
europeus, principalmente para as Américas. O segundo momento ocorre a
partir do século XX, com a emigração, sobretudo para a Europa, em direção
às antigas metrópoles coloniais.

Para além das constatações do efeito da Diáspora Africana, observa-se que,


atualmente, uma outra preocupação vem emergindo cada vez mais forte: a
homogeneização do adjetivo “africano/a”. A origem de tal fato remonta ao movimento
denominado Pan-africanismo, dentro do qual se promoveu a busca de uma solidariedade
e de uma unidade em torno de todos os países africanos (EDWARDS, 2001). Tal
movimento buscava uma unidade cultural, discursiva e social no que tangesse a todos os
indivíduos pertencentes à África. De um lado, o movimento marcava sua diferença em
relação aos outros continentes em vários domínios da vida humana. Por outro lado,
ajudava bastante a disseminar e, por vezes, a ampliar estereótipos culturais e sociais. Esse
paradoxo foi o que, em parte, fez com que o movimento não perdurasse por muito tempo.
Todavia, as ideias homogeneizadoras de cultura e sociedade africanas não se sustentam
mais. Inúmeros estudiosos, dos mais diversos campos do saber, concordam que não se
pode mais falar em diáspora (no singular), mas sim em diásporas (no plural) africanas.
Se nos voltarmos para a história do Brasil, sabe-se que os africanos que aqui foram
escravizados vieram de diversas partes daquele continente. Desta forma, as orientações
religiosas que trouxeram consigo não advêm somente de uma única religião africana, mas
de inúmeras delas. Até mesmo as influências africanas na língua portuguesa de expressão
brasileira provêm não de apenas uma língua africana, mas de, ao menos, duas famílias
linguísticas. Portanto, o conceito de cultura do Atlântico Negro não pode ou deve ser
único, fechado e centrado em apenas um ideal de africanidade, haja vista a existência de
resquícios culturais que permanecem em forma de história, memória e arquivo, mas que,
apesar de sua permanência, estão, a todo momento, em trânsito, sendo transformados e
transculturados.
A pesquisadora Hortense Spillers (2003) defende que o ideal afrocêntrico impõe
uma distância entre uma suposta cultura da diáspora africana e as outras culturas
africanas. Para Spillers, há um homem fictício, unidimensional e inventado que propaga

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uma cultura imaginada que, de alguma forma, folcloriza a ideia de África como algo
sincrético, universal e unidiferencial. Nesse contexto, haveria uma voga de
tecnocratização do pensamento e da cultura a fim de “facilitar” a ideia de diáspora
africana. Entretanto, essa ação de homogeneizar é uma forma de desumanizar cultural e
socialmente o entendimento da diversidade africana e do hibridismo das diásporas
africanas. Além disso, o reconhecimento dos hibridismos culturais não levaria mais até
uma diáspora africana única, mas sim à formação de culturas negras e de culturas afro-
diaspóricas.
No aceite e na celebração das diferenças, é necessário ressaltar que essas só são
passíveis de existência graças à presença de subjetividades. Segundo Khachig Tölölyan
(2014), a existência de diásporas só é potencial quando há o “culto” à memória,
geralmente traumática, e, junto a essa, o resgate da pátria natal, de uma espécie de
identidade étnica. Essas duas subjetividades são transformadas conforme a competência
bicultural, por meio da qual as comunidades diaspóricas selecionam os elementos de que
podem se orgulhar de sua cultura ancestral, mas, ao mesmo tempo, não reconhecem
plenamente uma identidade diaspórica que vai de encontro a seus princípios nacionais e
morais e que as levem a se enquadrar em comportamentos com os quais não estão de
acordo ou que não desejam adotar. Isso significa que as comunidades diaspóricas unem
o local e o pátrio criando, assim, identidades híbridas, múltiplas. Provavelmente seja essa
a explicação para podermos falar em diásporas negras e não somente em diásporas
africanas.
A memória traumática negra é perene e a ela somam-se outros acontecimentos
cotidianos, formando-se, desse modo, uma espécie de discurso de resistência, uma força
estética e um tronco comum de identidade, ainda que tal diáspora tenha cores locais. A
ideia de diásporas negras parece-nos mais abrangente, pois a ela pertence a diáspora
africana, mas também as novas diásporas emergentes, como a haitiana, a cubana, a
brasileira, a antilhana e tantas outras. Assim, na contemporaneidade, como em outros
momentos históricos, observa-se uma tendência à tentativa de reconstrução de um
território imaginado negro. Tal território possibilitaria a busca do reconhecimento e da
pertença, sem, no entanto, cair-se no essencialismo. Essa comunidade imaginada negra
demarca cada vez mais seu território com corpos negros ocupando lugares jamais
imaginados, com discursos cada vez mais incisivos e estéticas marcadas, sobretudo, pela

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singularidade e não mais pela dicotomia diferença/comparação; em suma, pela emissão e


pela presentificação das vozes negras.
Esse conjunto de ações presentificadoras, que tem se intensificado cada vez mais,
nasceu primeiramente da consciência de cor, seguida da consciência de raça, e, por fim,
há alguns anos, se situa em torno do questionamento: What is this 'black' in Black
Culture/Diaspora? (HALL, 1992; GILROY, 2000; STEPHENS, 2009). Desta forma, por
si só, a questão epidérmica ou a epidermização nos termos de Paul Gilroy (2000) não
seria capaz de responder à questão do que vem a ser “o negro” da Diáspora Negra ou
mesmo de explicar no que consiste sua superioridade ou inferioridade dentro dos limites
defasados do conceito de raça. Duas constatações podem ser feitas a esse respeito: a
primeira, só é possível identificar-se como negro na relação com o branco; e a segunda,
independentemente de onde o ser negro estiver, ele será identificado como negro. Essas
duas constatações, já identificadas na obra de Frantz Fanon (2008), no século passado,
que acompanham as diásporas negras, trazem luz a sua maior característica: a existência
de uma relação intercultural e transnacional, isto é, a existência de uma psiquê negra.
A psiquê negra, ou seja, o inconsciente coletivo da comunidade negra, tem raízes
históricas e ganhou força ao enfrentar o colonialismo. Somado a isso, ela tende a se
articular intensamente conforme as mudanças sociais de cada país e as condições político-
econômicas globais para a população negra. E é a partir dessa visada profunda que se
pode falar em diásporas negras. A intersubjetivação do ser negro em cada membro das
comunidades negras tende a fazer com se busque uma dimensão identitária negra
intercultural e interpessoal que, por conseguinte, almeja uma visão de mundo e estratégias
de vivência únicas, particulares (STEPHENS, 2009).
Dessa maneira, tal delimitação do território negro tem sido marcadamente local.
Entretanto, esses fatos, atos e discursos locais têm viajado e sido re-apropriados por outras
comunidades negras locais por meio da inspiração, da imitação ou da continuidade
estética, política e social. Do ponto de vista de Brent Hayes Edwards (2003), tem havido
uma internacionalização da cultura negra, o que favorece muito as suas diásporas. Nesse
contexto, dois dos instrumentos da prática das diásporas negras seriam, sem dúvida
alguma, a tradução – seja enquanto produto, seja enquanto processo – e o seu agente
cultural, o tradutor – seja ele branco, seja ele negro.

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Edwards (20034) chama atenção para o fato de grande parcela dos negros não
dominarem uma língua estrangeira, pelos mais diversos motivos, inclusive de cunho
histórico. Ressalta-se que tal domínio refere-se o mais das vezes à modalidade formal de
línguas representativas de culturas hegemônicas, não dizendo respeito à gama substancial
de países com população negra bi- ou mesmo plurilíngue, como é o caso de muitos países
africanos, em que, como resultado de uma organização populacional forçada pela
empresa colonial, diversas etnias, com línguas diferentes, foram encerradas em um
mesmo país. Além disso, os discursos negros viajam e a forma como são traduzidos,
disseminados, reformulados e debatidos nos contextos transnacionais é primordial, posto
que a primeira atestação a ser feita é a de que estes textos formam arquivos individuais,
coletivos e institucionais das culturas negras. Cabe-nos, aqui, salientar que arquivo, nos
moldes de Michel Foucault (2008, p. 142), é o “sistema geral da formação e da
transformação dos enunciados”. De acordo com esse autor:

[e]ntre a língua que define o sistema de construção das frases possíveis


e o corpus que recolhe passivamente as palavras pronunciadas, o
arquivo define um nível particular: o de uma prática que faz surgir uma
multiplicidade de enunciados como tantos acontecimentos regulares,
como tantas coisas oferecidas ao tratamento e à manipulação
(FOUCAULT, 2008, p. 147).

Para Foucault, existe um sistema discursivo geral em que os enunciados são


depositados, revisitados e estratificados. É esse sistema que orienta o aparecimento de
novos enunciados e seu acúmulo, bem como sua história, seu esquecimento e seu
desaparecimento. É provável que esse seja também o sistema que rege o mundo da
tradução, seja como economia linguística, seja como alargamento de horizonte. O filósofo
francês acrescenta que:

[a] descrição do arquivo desenvolve suas possibilidades (e o controle de suas


possibilidades) a partir dos discursos que começam a deixar justamente de ser
os nossos; seu limiar de existência é instaurado pelo corte que nos separa do
que não podemos mais dizer e do que fica fora de nossa prática discursiva;
começa com o exterior da nossa própria linguagem; seu lugar é o afastamento
de nossas próprias práticas discursivas. Nesse sentido, vale para nosso
diagnóstico. Não porque nos permitiria levantar o quadro de nossos traços
distintivos e esboçar, antecipadamente, o perfil que teremos no futuro, mas

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No texto original, o autor se refere exclusivamente à população negra norte-americana. Entretanto,
parece-nos que a situação no Brasil não é diferente.

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porque nos desprende de nossas continuidades; dissipa essa identidade


temporal em que gostamos de nos olhar para conjurar as rupturas da história;
rompe o fio das teleologias transcendentais e aí onde o pensamento
antropológico interrogava o ser do homem ou sua subjetividade faz com que
o outro e o externo se manifestem com evidência. O diagnóstico assim
entendido não estabelece a autenticação de nossa identidade pelo jogo das
distinções. Ele estabelece que somos diferença, que nossa razão é a diferença
dos discursos, nossa história a diferença dos tempos, nosso eu a diferença das
máscaras. Que a diferença, longe de ser origem esquecida e recoberta, é a
dispersão que somos e que fazemos (FOUCAULT, 2008, p 148-149).

Em outras palavras, uma vez admitindo que o sistema de enunciados de


determinada comunidade ou cultura possa ser cada vez mais fortalecido ou enfraquecido
por diferentes práticas discursivas oriundas de lugares heterogêneos, instaura-se a
existência, o convívio e a dispersão do e com o Outro, porque se admite que existem
outras maneiras de pensar e de ser – pessoal, institucional e coletivamente. A tradução é
uma dessas práticas discursivas com particular função de multiplicar um sistema de
arquivos já existente em uma dada comunidade ou cultura, uma vez que, além de
atravessar a ponte linguística de um lado a outro, ela amplia e dá a conhecer novos
enunciados/modos de pensar e de ser. Portanto, ela constitui um importante instrumento
diaspórico. Mais do que conexões linguísticas, fazem-se, via tradução, conexões
culturais, alianças de ideias e de práticas, interações internacionais e acolhida.
Para Edwards (2003), a tradução no âmbito da diáspora negra é um processo de
articulação, em que há a diferença dentro da unidade. Assim, na tradução, há um resíduo
do texto de partida e há, igualmente, uma nítida diferença temporal e espacial um
décalage na visão de Edwards –, visto que ela é sempre um post-scriptum. Contudo, uma
vez que esse texto esteja traduzido e pertença à diáspora negra, ele tem grande
probabilidade de vincular-se a seus receptores, por reativar o arquivo do inconsciente
coletivo da diáspora à qual pertence. Vista assim, a tradução, além de instrumento, é
mediadora e propagadora de culturas diaspóricas negras. E o tradutor, consequentemente,
é o agente desse processo, o anfitrião da acolhida do Outro.
Tal orientação dada ao tradutor vai ao encontro do que Solange Mittmann
denominou de função tradutor, a saber:

[a] função tradutor é responsável pela organização das vozes presentes no


processo tradutório, bem como pelo direcionamento de uma interpretação,
criando a ilusão da homogeneidade e da transparência. É responsável pela
ilusão de que o tradutor, como sujeito enunciador, é dotado de unidade,

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coerência e responsabilidade sobre seu dizer, resgatando e reproduzindo os


sentidos do original (MITTMANN, 2003, p. 136).

Isto é, uma vez criada uma cultura tradutória negra e realizada uma tradução
identitária diaspórica negra, para além do profissionalismo e do trabalho linguístico, um
viés ético-político – uma responsabilidade social e consciente sobre seu dizer-fazer – pode
sobressair como movimento maior do ato tradutório. Nas palavras da pesquisadora Denise
Carrascosa (2017, p. 68-69):

[a] tarefa tradutória, nesse sentido ético-político, processa-se em um


double bind que agencia, ao mesmo tempo, a) o sujeito da tradução em
sua relação erótica com o texto a traduzir, relação de amor em que o
texto literário constitui dimensão de sua própria intimidade e b) a
abertura do eu para o outro da cultura, através da linguagem, dimensão
coletiva com a qual o tradutor produzirá uma comunidade por vir. Essas
duas instâncias fazem acoplar-se o privado e o público de forma a fazer
funcionar o dentro e o fora do sujeito tradutor a partir de uma dobradiça
que me interessa pensar como “função-tradutor”.
Para definir a “função-tradutor”, é preciso, em primeira instância,
operar por exclusão (duas negações): 1) não representa univocamente
uma atividade criativa e/ou profissional; b) não encontra
correspondente em um sujeito que realiza esta atividade.

Carrascosa, assim como Solange Mittmann (2003), toma emprestado o aparato


teórico foucaultiano da função-autor ao definir a função-tradutor. A função-autor
consiste em um modo de caracterizar os diferentes discursos, onde são produzidos e o que
tange a sua circulação e ao seu funcionamento (FOUCAULT, 2013). Uma vez que o
tradutor acolha esse modo de ser dos discursos, de forma consciente e engajada, ele
prolonga sua função para além do ofício esperado. Não há mais apenas um deslocamento
linguístico-cultural, mas a ele é somado um transladar ético-político. O tradutor torna-se,
assim, um coautor amante. Ele apropria-se do texto de forma singular, confirma seu
discurso pessoal na fiabilidade do texto que está traduzindo, racionaliza na companhia do
autor materializado no texto, escreve seus “eus” (pessoal e profissional) junto aos “eus”
do autor. O processo de tradução torna-se um ato de dupla escrevivência5, a partir da
articulação da vivência pessoal com o texto fonte (a escrevivência primeira). Nesse
sentido, Carrascosa assevera que:

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Expressão cunhada pela escritora Conceição Evaristo para designar sua forma autoral de escrita.

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[p]ara que alguém se possa investir nessa tarefa intensamente mobilizadora,


não é difícil entender que precise estar fortemente afetado pelo vetor de força
da afrodiasporicidade em sua experiência subjetiva; seja em seu próprio corpo,
que carrega nas cores e nos traços a forma e a força da negritude; seja em seu
desejo de uma experiência ética do social, que passe necessariamente pelo
diálogo amoroso com um “eu” da cultura que se apresenta como força
constitutiva de seu próprio outro.
[...] A função-tradutor – o mecanismo de funcionamento de produção de
discursos em desvio e diferença – pensada como força capaz de
curar/envenenar as relações de força agenciadas pelos regimes de signos
violentamente subalternizantes (nesta discussão, o racismo etnocida) – pode
ser compreendida como agência de sujeitos que, por força de sua intimidade
com a dor e a potência subversiva que tais regimes engendram, movimentam
um repertório de traços afrodiaspóricos e se deixam afetar amorosamente
pelas vozes e textualidades de escritoras e escritores do Atlântico Negro.
Seu exercício tradutório não configura apenas um trabalho instrumental
comunicativo de ampliar a acessibilidade e o diálogo entre escrita e leitura
nesse outro espaço-tempo imaginado; mas, suplementarmente, produz uma
performatividade na linguagem capaz de deslocar, descentrar e rearticular
possibilidades de sentidos reversores das forças etnoepistemicidas. Seu
trabalho tradutório configura-se como exercício de uma performance de si, a
partir da qual emergem subjetividades transformadas e transformadoras,
ciosas de uma construção identitária ética em sua relação a si e sua abertura
amorosa para a alteridade (CARRASCOSA, 2017, p. 72-73).

Agregando uma outra maneira de se conceber a função-tradutor, é possível


também identificar a crítica de tradução diaspórica como mais uma forma de função-
tradutor6, na medida em que, a priori, para se criticar é preciso haver uma empatia com
a escrevivência primeira (o texto fonte), além do domínio linguístico que, ao comparar
tradução e original, articula em si um terceiro texto não materializado em tradução, mas
com propriedades tradutivas e disposto em formato de crítica. Essa posição justifica o
número crescente de trabalhos sobre a diáspora negra tradutória, visto que a crítica de
tradução é mais uma forma de acolher o alheio e o Outro das culturas negras, além de
sinalizar o êxito ou o fracasso desse acolhimento.
Após essa reflexão, um questionamento fica pendente: é possível contribuir para
as diásporas negras por meio da tradução sem estar enquadrado na função-tradutor?
Nossa resposta é sim. Uma vez traduzindo textualidades diaspóricas, mesmo sem uma
identidade ético-política, o texto pode afetar o tradutor (ou não) e, mais do que isso, os
princípios essenciais do ato tradutório são acionados, a saber: o princípio verbal, o

6
Um exemplo de função-tradutor do ponto de vista ético-político é o ofício realizado por Tobias Barreto
no que concerne à implantação do germanismo no Brasil. Para mais detalhes, ver o texto de Roch Duval
intitulado “Tobias Barreto, agente negro de tradução” neste Número Especial.

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princípio representacional e o princípio performático. A toda tradução, aprioristicamente,


enquanto processo ou produto, subjazem esses princípios. E apesar de, por vezes, eles
subverterem epistemologias, resquícios diaspóricos podem ser identificados. Esses, por
sua vez, podem ou não ser somados às comunidades diaspóricas negras locais.
O princípio verbal da tradução está sobretudo articulado à transmissão de
mensagem, ou seja, à transposição discursiva em que é possível transferir argumentos,
ideias, narrativas e afirmativas sobre as culturas negras para uma outra cultura (negra ou
não). Ele é o fundamento da tradução e a matéria prima do tradutor. Por sua vez, o
tradutor, imbuído do resquício da neutralidade e da invisibilidade textual-discursiva,
impostos por uma suposta norma de fluidez na tradução, bem como pelo sistema
mercadológico da tradução (com demandas de tempo de realização limitado, de normas
editoriais, de imposições da relação contratado-contratador, etc.), desempenha seu
trabalho como mero canal de decodificação da mensagem – como se possível fosse! Não
obstante, mesmo uma ação tradutória “mecânica” oportuniza a passagem de elementos
culturais diaspóricos negros, seja como enriquecimento da língua, seja como retórica ou
estilo do texto, seja como difusão de conhecimento. Como exemplo disso, pensemos no
caso da obra Amkoullel, o menino fula, de Amadou Hampâté Bá, traduzida no Brasil em
2013 por Xina Smith de Vasconcellos. Tal tradução, além de trazer todo o conhecimento
sobre África, foi operacionada de forma a enfatizar a retórica e a estilística de seu autor,
grande contista africano da tradição oral dos griots. Não se sabe se Vasconcellos tinha
algum engajamento ou apreço pelo texto fonte. Entretanto, é inegável que seu trabalho
tradutório resultou em uma grande contribuição para o compartilhamento da cultura negra
do Mali para o público brasileiro. Para além das veredas literárias, podemos citar a
tradução de gêneros textuais de origem africana pertencentes ao domínio religioso ou ao
gastronômico que, quando traduzidos ao português brasileiro, além de trazerem o
conhecimento de tais domínios, enriquecerão também a língua de chegada por serem
textos marcadamente culturais de comunidades negro-africanas com vocábulos
particulares.
O princípio representacional, por sua vez, encontra-se intimamente ligado à
questão da (de)formação, ampliação ou restrição de identidades, bem como à da projeção
de horizontes de expectativas e de valores compartilhados entre as culturas. Dessa forma,
o texto traduzido é uma forma de reimaginação do Outro (AMORIM, 2015) e, uma vez

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exercendo o ato da tradução, é praticamente impossível não percorrer essa vereda. Isso se
dá porque o tradutor, como ser subjetivo que é, impregna-se também de valores pessoais
ou ditos universais de sua cultura, mesmo não tendo consciência efetiva disso. Além de
levar em conta esses componentes, um outro elemento precisa ser considerado: o espaço
de experiência, termo cunhado pelo historiador Reinhart Koselleck (2015). Tanto a
tradução-processo como a tradução-produto são espaços de experienciar o Outro. O
tradutor, antes do leitor, é o primeiro a estar diante do espaço de experiência. O leitor, ao
ler a tradução – que também lhe oferece um espaço de experiência –, não tem acesso ao
mesmo espaço de experiência experimentado pelo tradutor, visto que o seu espaço será
muito mais híbrido, pois ao espaço de experiência do próprio texto é somada a
experiência de seu tradutor. Vale aqui recordar o que vem a ser experiência:

[a] experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram


incorporados e podem ser lembrados. Na experiência se fundem tanto a
elaboração racional quanto as formas inconscientes de comportamento, que
não estão mais, ou que não precisam mais estar presentes no conhecimento.
Além disso, na experiência de cada um, transmitida por gerações e
instituições, sempre está contida e é conservada uma experiência alheia
(KOSELLECK, 2015, p. 309-310).

Em outras palavras, no que concerne à tradução, um texto anterior (passado) é


reformulado em um texto atual (presente). No texto atual (a tradução), são rememoradas
e fundidas sua forma racional (a materialidade linguística) e as formas subjetivas de um
possível inconsciente coletivo da linguagem da cultura fonte, o que, consequentemente,
resulta na preservação e na inclusão do alheio, do Outro, na nova materialidade
linguística. Nessa perspectiva, é possível afirmar que mesmo um tradutor não tendo
engajamento ético-político, sua tradução pode representar um Outro discursivo, um Outro
cultural.
Em termos de cultura negra, o fato de uma obra ter sido traduzida no Brasil de
forma não-engajada ou com ausência de amorosidade não significa necessariamente que
ela não dê a conhecer ou que não represente o Outro. Um dos exemplos mais interessantes
disso é o do tradutor Cid Knipel Moreira. Dois textos considerados fundamentais da
cultura negra têm tradução de sua lavra: o ensaio O Atlântico Negro: Modernindade e
Dupla consciência, de Paul Gilroy (tradução brasileira de 2012), e o romance Malícia
negra, de Evelyn Waugh (tradução brasileira de 2003). Até onde se sabe, esse tradutor

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não defende um projeto ético-político como profissional, no que concerne à questão das
culturas e das diásporas negras. No entanto, suas duas traduções são respeitadas (não se
encontrou qualquer crítica a essas traduções, do ponto de vista comparativo entre as
línguas e culturas) e consideradas grandes contribuições para (e pela) comunidade negra
brasileira. Como explicar isso? Provavelmente, o tradutor deu a conhecer o Outro
inconscientemente, ofereceu o espaço de experiência desse Outro ao leitor e de alguma
forma reimaginou esse Outro para o provável público leitor dessas obras. É possível que
as culturas de ambos os livros tenham contribuído para o êxito dessas traduções. Porém,
o mérito do texto em língua portuguesa é do tradutor que, de alguma forma, trouxe essa
representação e essa representatividade discursiva para o público brasileiro.
O terceiro princípio essencial do ato de tradução é o performativo. A tradução é
um acontecimento tanto do ponto de vista da produção, já que há escolhas a serem feitas
para que a tradução venha ao mundo, quanto do ponto de vista da recepção, pois
identifica-se uma resposta do destinatário da tradução devida às escolhas do tradutor e às
instâncias que o acompanham. Segundo Lenita Esteves (2014), a tradução é um ato
performativo e, como tal, produz efeitos na cultura de chegada que podem ser os mais
diversos: difusão de conhecimento, imersão na textualidade, enriquecimento, intervenção
política, entre outros. É possível que o que mais justifique a tradução como ato
performativo seja o fato de que nela sempre exista uma criação contínua, uma espécie de
movência, nos termos de Zumthor (2005), uma mobilidade do signo que nunca se esgota,
mas que é sempre contínua e recontextulizada. Por um lado, a performatividade verbal
pode ser explicada pelo contexto mutante – tanto cultural quanto temporal —, de onde
surge a provável explicação para as retraduções. Por outro lado, toda tradução está ligada
a feitos linguajeiros exteriores à materialidade linguística. Logo, o que as palavras fazem
dentro e fora do texto não depende somente do autor, do tradutor ou do leitor, mas também
da situação, do contexto em que elas se encontram (MARVIN, 2009). Dentro da questão
performativa do texto em tradução, entram em jogo as inferências, a intencionalidade e o
efeito real que esta tradução pode alcançar, além, é claro, do julgamento de um observador
que, com alguma autoridade, pode dizer se a performatividade da tradução alcançou, ou
não, êxito. Isso significa que todo tradutor, independentemente de haver engajamento,
está dentro de um contexto, assim também como está a tradução-produto.

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No que tange às diásporas negras no Brasil, a questão das cotas raciais, a lei de
inclusão do estudo das culturas africanas na escola e os acalorados debates acerca da
questão do negro nos vários âmbitos e instâncias da sociedade vêm criando um contexto
cada vez mais propício – mesmo que com grande enfrentamento e batalhas – a uma maior
aceitação e conexão da cultura negra. Não por mera coincidência, podemos perceber um
movimento não engajado de diversas editoras não acadêmicas que publicam autores
negros em tradução. A título de exemplo, podemos mencionar, dentre os mais recentes
nomes, as traduções de Dany Laferrière, pela Editora 34; de Ngũgĩ wa Thiong’o, pela
Biblioteca Azul, selo da Editora Globo e Companhia das Letras; de Chinua Achebe, pela
Editora Ática e pela Companhia das Letras; de Teju Cole, pela Companhia das Letras; de
Chimamanda Ngozi Adichie, também pela Companhia das Letras; de Ahmadou
Kourouma, pela Estação Liberdade; de Alaa Al Aswany, pela Companhia das Letras; de
Ishmael Beah, pela Ediouro e pela Companhia das Letras; de Ayaan Hirsi Ali, pela
Companhia das Letras; de NoViolet Bulawayo, pela Biblioteca Azul, selo da Editora
Globo; e de William Kamkwamba, pela editora Objetiva. Convém destacar que todos
esses autores primeiramente obtiveram sucesso fora do Brasil para, só depois, serem
traduzidos em âmbito nacional. Todavia, mesmo que esse tenha sido o critério editorial,
a prevalência das culturas hegemônicas e da não-representatividade negra está cada vez
mais dando lugar à presença das culturas negras. É por esse motivo que podemos afirmar
que tanto o tradutor quanto a tradução não-engajada podem sim oferecer uma
contribuição à cultura negra local. Somado a esses fatores, podemos ainda mencionar que,
no princípio performático da tradução, ainda podem ser agregados eventos (do tipo festa,
espetáculo, comemoração, solenidade, etc.) que impulsionem a tradução ou mesmo que
a mostrem de forma performática como, por exemplo, a Festa Literária Internacional de
Paraty (Flip) que, em 2017, ao trazer a escritora ruandesa Scholastique Mukasonga,
motivou a Editora Nós7 a traduzir duas de suas obras. Outro exemplo a citar é o do evento
Literatura de Refúgio: Expressões Haitianas8 que, ao produzir um momento de interação
entre a comunidade de refugiados haitianos e a comunidade local em Curitiba, utilizou-
se da tradução como instrumento de empatia cultural, linguística e humanitária.

7
Mais informações disponíveis em: <http://editoranos.com.br>.
8
Ver texto do Número Tradução e Diásporas Negras, Relato do Projeto "Literatura de Refúgio:
Expressões Haitianas" de João Arthur Pugsley Grahl e alii.

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Apesar de termos procurado demonstrar até aqui que a falta de engajamento não
implica necessariamente na falta de qualidade da tradução ou mesmo na ausência de um
contributo para a comunidade e a cultura negra local, ressaltamos que é sim possível haver
uma condução do ato tradutório e da recepção da tradução como movimento assimilador
(AMORIM, 2010, 2012a, 2012b, 2013, 2014), deturpador, estereotipado e caricaturesco
(LIMA, 2001, 2011, 2014, 2015), tanto das culturas negras quanto das imagens dos
negros. Tais movimentos assimiladores e redutores (por vezes racistas!) parecem,
inclusive, ser muito mais frequentes em outras modalidades ou tipos de tradução, como a
tradução audiovisual, a tradução intersemiótica e o versionismo, aos quais são dedicadas
ainda poucas pesquisas, no âmbito de Tradução e Diásporas Negras.
No caso da tradução audiovisual (dublagem, legendagem, localização e
acessibilidade da mídia – audiodescrição e legendagem para surdos), parece haver uma
homogeneização do ato tradutório vinculado sobretudo às estruturas técnicas dessas
modalidades a despeito das culturas em que elas são praticadas. Para ilustrar isso,
tomemos como exemplo a série de televisão The Fresh Prince of Bel-Air (no Brasil,
intitulada Um Maluco no Pedaço) e o filme Precious (no Brasil, Preciosa - Uma História
de Esperança). Esses dois produtos audiovisuais, um feito para a televisão e outro para o
cinema, têm como protagonistas personagens estadunidenses negros e pobres. É
conhecida a existência nos Estados Unidos de comunidades negras que utilizam o Afro-
American Vernacular English (AAVE – Inglês vernáculo afro-americano), inicialmente
chamado de Black English Vernacular (BEV – Inglês vernáculo negro), variedade que
caracteriza a chamada língua dos guetos afro-americanos. Esta variedade está presente
nas produções originais de Um Maluco no Pedaço e de Preciosa - Uma História de
Esperança, representando, de alguma forma, a estratificação social dos personagens, bem
como a forte identificação linguística da comunidade afro-americana. Todavia, tanto na
dublagem de Um Maluco no Pedaço quanto na legendagem de Preciosa - Uma História
de Esperança, para o português brasileiro, este elemento característico da cultura negra
norte-americana desaparece. Ele é homogeneizado ora como variante oral da língua
portuguesa de menor prestígio no Brasil, ora como somente registro oral brasileiro em
contexto não formal. Desta forma, perde-se, na tradução audiovisual, uma característica
cultural dessa comunidade negra. A priori, esse trabalho de crítica e feitura tradutiva mais
consciente parece um fardo árduo. No entanto, os trabalhos do professor Gian Luigi De

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Rosa (2007a, 2007b, 2007c, 2011, 2012a, 2012b) podem auxiliar em muito os futuros
pesquisadores dessa área no Brasil.
Não muito distante da tradução audiovisual, uma outra modalidade complexa da
tradução, em que começam a emergir estudos mais densos sobre Tradução e Diásporas
Negras, é a Tradução Intersemiótica. O princípio representacional da tradução, nessa área,
é primordial e, por vezes, a busca de uma fidelidade é levada ao extremo, devido a ser a
modalidade de criação mais paradoxal, pois criatividade e “correspondência” precisam
ser um único amálgama. Ainda assim, o elo ideológico de estigmatização das culturas
negras pode ser forte nesse tipo de modalidade de tradução, a depender do
tradutor/adaptador. Nesse sentido, mencionamos dois exemplos: um histórico e outro
mais recente. Bug-Jargal (1836), romance de Victor Hugo, cujo enredo trata da
independência do Haiti, foi transmutado em ópera, por Gama Malcher e Vincenzo Valle,
em 1890, tendo sido apresentado no Theatro da Paz, em Belém. Entretanto, um dos fatos
mais inusitados da ópera foi a ausência de atores negros, atuando como personagens
negros, visto que o enredo é basicamente composto por personagens negros. Jocileide
Silva (2012) explica que a apresentação desta ópera aconteceu após a abolição da
escravatura. Contudo, os apreciadores brasileiros de ópera, pertencentes à classe abastada,
não estavam habituados a ver negros exercendo a função de ator. Assim, a solução foi
tingir o corpo e o rosto dos atores principais, hábito comum à época e que, a despeito de
diversas manifestações e críticas de vertentes do movimento negro, prevalece até a
atualidade, em várias partes do mundo, sob a designação de blackface. Aliás, no Brasil, o
blackface foi utilizado como prática racista até meados da década de 1970. Há um
episódio conhecido envolvendo um dos maiores intelectuais negros brasileiros, militante
contra o racismo, Abdias Nascimento. Nelson Rodrigues escreveu a peça de teatro “Anjo
Negro”, com a intenção declarada de oferecer um papel de destaque a um ator negro, um
personagem que não fosse o tipo folclorizado, caricaturesco, das comédias de costume.
Nelson convidou então Abdias para encarnar o personagem Ismael. No entanto, a censura
do Teatro Municipal do Rio de Janeiro proibiu que um ator negro representasse um papel
sério relacionado a um tema tabu: a relação sexual inter-racial. Assim, a peça estreou em
1948 com um ator pintado de graxa, Orlando Guy, sob direção de Ziembinski (CASTRO,
1992; RODRIGUES, 1993).

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Um outro exemplo a citar, agora mais recente, é a adaptação da biografia de


Chiquinha Gonzaga para a minissérie televisiva homônima, em 1999, pela Rede Globo
de Televisão. Como é sabido, Chiquinha Gonzaga, além de grande figura engajada na
causa negra no Brasil, era filha de uma negra e de um homem branco, o que nos leva a
inferir que a compositora exibia, ao menos, traços negros, o que percebemos facilmente
em fotografias suas – disponíveis na Internet. Todavia, a compositora foi interpretada, na
minissérie, por duas atrizes brancas: Regina Duarte e, sua filha, Gabriela Duarte. Se ainda
pairava alguma dúvida acerca do imaginário sobre Chiquinha Gonzaga, artista de
ascendência negra, a adaptação de sua biografia para a televisão conduziu um processo
de apagamento de tal ascendência, ao representá-la como branca – “branquinha da Silva”.
Apesar de esses dois exemplos de tradução intersemiótica irem de encontro a qualquer
diálogo com a cultura negra e mostrarem-se extremamente racistas, não se pode deixar
de citar a novela Fera Ferida que trouxe, pela primeira vez, o mundo ficcional de um
escritor negro para a televisão brasileira. Fera Ferida (1993-1994) adaptou quase que
integralmente a obra de Lima Barreto em uma única trama que, apesar de alguns deslizes,
não deixou de trazer para o horário nobre as questões literárias e ideológicas relacionadas
ao negro, abordadas na obra do referido escritor.
O versionismo ou, grosso modo, tradução de músicas – uma modalidade da
tradução pouco estudada na academia brasileira, mas muito viva –, é mais uma
modalidade de tradução que perpassa as Diásporas Negras e que tem apresentado
contribuições significativas, especialmente por parte de seu maior exponente: Gilberto
Gil. O cantor baiano é o responsável, no Brasil, por versar em português músicas de Bob
Marley e Stevie Wonder, por exemplo. Segundo Heloísa Cintrão (2009), uma das
escolhas para que Gilberto Gil fizesse a versão de músicas estrangeiras em português foi
justamente uma íntima empatia tanto por artistas negros quanto por temas sobre a
população negra e a ancestralidade africana, já engendrados originalmente nessas
músicas. Uma tendência de musicais estrangeiros no Brasil tem se servido bastante da
tradução. Hair, um dos musicais mais conhecidos internacionalmente, teve duas versões
no Brasil, sendo a última de 2012. Apesar de este musical abordar, sobretudo, a temática
do movimento hippie, ele trata abertamente do tema racial, com músicas sobre a temática
da população negra e atuações de personagens/atores negros. Uma análise mais profunda
sobre como essas músicas foram traduzidas, a fim de verificar o que se manteve da

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mensagem racial, o que foi adaptado e o que foi retirado ainda constitui uma lacuna, em
nosso meio acadêmico. Prosseguindo no viés do versionismo, em 2012, Djavan concedeu
várias entrevistas expondo sua atuação como “cotradutor” junto aos versionistas em
inglês e em espanhol de suas músicas, o que demonstra que a cultura negra brasileira
também tem, de igual modo, alcançado outros espaços geográficos, por meio deste tipo
de tradução, segundo demonstra Adriana Meiberg (2014), em sua dissertação de
mestrado, que tangencia o assunto.
Viviane Veras (2013), em seu artigo "Quando traduzir é (re)escrever (um)a
história: o papel dos intérpretes na Comissão da Verdade na África do Sul", e Geri
Augusto (2017), em capítulo de livro intitulado “A língua não deve nos separar!
Reflexões para uma Práxis Negra Transnacional de Tradução”, trazem à tona uma área
quase impenetrável para agentes negros: a interpretação. As duas pesquisadoras
demonstram, a partir de práticas e relatos da tradução oral, como esta modalidade de
tradução é carregada de vivência, já que se trata da tradução em ato ou do “quando
traduzir é fazer”. As relações entre cultura negra e interpretação no Brasil ainda estão
ocultas. Há um preconceito com a questão do negro enquanto intérprete devido a um
suposto status de brancura da profissão, no que se refere ao acesso à profissão, a
profissionais negros preparados e habilidosos, mas, igualmente, ao racismo reinante no
meio das relações entre profissionais da área e contratantes destes serviços 9. Além disso,
as relações de intérpretes negros atuando em assuntos raciais no ato da interpretação
trazem à superfície outros elementos contextuais, psicolinguísticos, emocionais e
históricos complexos e ainda pouco estudados (VERAS, 2013; AUGUSTO, 2017).
Tanto a prática da tradução quanto os estudos da tradução em contextos de
diásporas negras têm se tornado uma bandeira emergente dentro da área nomeada Estudos
de Tradução em solo brasileiro. Por um lado, tal área de estudo tem conseguido dar
oportunidade e reconhecimento discursivos e representativos. Por outro lado, tem-se
buscado construir uma práxis que abarque essa especificidade – pois consideramos que a
tradução de textos oriundos e que abordem as diásporas negras constituem sim uma
especialidade, tal como a tradução de textos científicos, econômicos, jurídicos, etc., e que
tal especialidade demanda e merece atenção especial de seus tradutores para as

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Assunto discorrido no texto “Ser intérprete e negro no Brasil e na Venezuela: entrevista com Amaury
Williams de Castro”, de Luciana Carvalho que compõe o presente número temático.

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características e especificidades de sua textualidade, de seus temas, de suas imagens,


estilos, contextos. Além disso, a prática da tradução, em todas as suas modalidades no
Brasil, em contextos diaspóricos negros tem colocado a cultura negra em debate, seja
reconhecendo sua atual ausência, seja mobilizando-se por um espaço para o negro e do
negro – e é, nesse viés, que têm surgido comunidades sociais de tradução de textualidades
negras10.
Por fim, convém mencionar que o caminho percorrido para a publicação do
presente número temático passa necessariamente pela organização e realização da Seção
Temática “Tradução e Diáspora Negra: entre decolonialismo e antirracismo”, que foi
proposta ao evento V SERNEGRA11 (Semana de Raça, Negritude e Gênero), realizado
no Instituto Federal de Brasília, e bem acolhida por participantes de diversas instituições
nacionais. Naquela Seção, pretendíamos discutir temas, como a difusão de autores negros
(literatos ou não), a tradução de literatura negra, a recepção de obras estrangeiras cujo
discurso seja antirracista ou de identidade negra, obras de autores negros brasileiros no
exterior, o mapeamento da diáspora negra em tradução e os tradutores negros. No decorrer
dos dois dias de profícuos debates, observamos entusiasmados a confluência entre as
pesquisas expostas, bem como o impulso engajado e, ao mesmo tempo, as dificuldades
compartilhadas pelos pesquisadores que lá dialogavam, compartilhavam, mais do que
suas pesquisas, suas experiências. De sorte que, ali mesmo, brotara em nós o desejo de
(re)unir, compartilhar e impulsionar mais uma vez, agora em forma de publicação,
aqueles diálogos.
Desta forma, neste número especial, procuramos focalizar os Estudos de Tradução
em sua histórica e complexa relação com as Diásporas Negras. Assim, Tradução e
Diásporas Negras privilegiou trabalhos que discutissem e favorecessem a difusão de
autores negros (literatos ou não), a tradução de literatura negra, a recepção de obras
estrangeiras cujo discurso seja antirracista ou de identidade negra, obras de autores negros
brasileiros no exterior, o mapeamento da diáspora negra em tradução (audiovisual,
interlingual, estudos da interpretação, etc.) e os tradutores e intérpretes negros. Além

10
Ver no presente número temático artigo de Adélia Mathias intitulado “Traduções Transgressoras: a
importância da tradução não oficial social de textos de autoria negra para o ambiente acadêmico”.
11
SERNEGRA – Semana de Reflexões sobre Negritude, Gênero e Raça, organizada por Glauco Vaz
Feijó e Pollyana Ribeiro Alves Martins. Em 2016, o evento teve por temática “Decolonialidade e
antirracismo”. Agradecemos aos organizadores a acolhida do frutífero simpósio.

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disso, procuramos também valorizar a produção epistemológica nacional e internacional,


no tocante aos Estudos da Tradução, com especial enfoque na tradução de textos de
autores e autoras negros ou aqueles traduzidos por tradutores e tradutoras negros, e
fomentar o intercâmbio de reflexões e discussões entre pesquisadores e tradutores
brasileiros e estrangeiros interessados na temática focalizada.
Assim, reunimos nesta publicação traduções comentadas, traduções de textos
teóricos, entrevistas, artigos acadêmicos, resenhas e um relato de projeto de pesquisa.
Todos esses textos reunidos são apenas um impulso para o desenvolvimento desta área –
relativamente tão nova, mas, ao mesmo tempo, tão necessária! Fundamentais foram os
pesquisadores e tradutores interessados e engajados que tornaram esse número tão
qualitativo quanto existencial – a todos eles prestamos nossos mais profundos
agradecimentos. Gratidão também devemos à equipe editorial da revista Translatio, aqui
homenageada na pessoa do professor Leonardo Antunes, que acolheu com muito
entusiasmo este número. A Pedro Neto, artista plástico cuja obra ilustra a capa do número,
uma especial saudação por nos agraciar com mais um de seus belíssimos trabalhos. E a
Adélia Matias, Lauro Maia Amorim e Marcos Bagno nosso Muito Obrigado! pela leitura
e pertinentes contribuições para o presente texto.
Finalmente, à guisa de encerrar esta introdução, cabe ainda uma metáfora. Há no
Brasil, em quase todo o território não-amazônico, um pássaro de nome graúna (derivado
do tupi “guira-una” = ave preta). Pequeno, cerca de 21,5 cm de comprimento, bom
nidificador, que não descuida da própria prole, de plumagem e bico negros, considerado
o portador da voz mais melodiosa entre todos os pássaros brasileiros. A graúna começou
a ganhar fama nacional ao ser mencionada no romance Iracema, de José de Alencar, cuja
protagonista era a índia que “tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna”, revelando
assim a beleza da negrura do pequenino animal. Sua fama foi acentuada com a canção
Assum preto, nome usado em algumas regiões do nordeste brasileiro para denominar a
graúna, de autoria de Luiz Gonzaga. Essa música revela o histórico brasileiro desta
espécie: passarinheiros que, ao capturá-la, furavam os olhos da ave preta pensando que
assim ela cantaria melhor na gaiola. A ave começou a simbolizar, dessa forma, dor e
beleza já na conotação dada pelos dois artistas, até então. Nas décadas de 1960 e 1970, a
graúna é transformada em um personagem fictício pelas mãos do cartunista Henfil
(Henrique de Souza Filho). Esse personagem, publicado semanalmente no Jornal do

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Brasil e no hebdomadário O Pasquim, trazia um humor crítico e ácido denunciado todas


as mazelas da ditadura. Sua própria figura lembra um ponto de interrogação, sua
existência, como ser fictício, dava-se na busca por melhorias de sua vida e de seus
companheiros. Com tal personagem, o simbolismo da graúna tornou-se político. Parece-
nos que o conhecimento da cultura negra, analogicamente ao da graúna, leva-nos a
conhecer uma beleza, uma história traumática, um fazer político e, sobretudo, indivíduos
aparelhados em corpos, discursos e imagens ainda não totalmente reconhecidos,
respeitados e representados. Acreditamos que estudar Tradução e Diásporas Negras é uma
espécie de percurso da graúna metafísica e é este percurso que compartilhamos com os
leitores do presente número. Boa leitura, nas asas da graúna!

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ESTUDOS DA DIÁSPORA: PASSADO, PRESENTE E PROMESSA 1

Khachig Tölölyan2

RESUMO: Este artigo constituiu a fala inaugural no lançamento do Oxford Diasporas


Programme em junho de 2011. Explora as contradições e complexidades de três “binários
formativos”: entre dispersão e diáspora, entre os aspectos subjetivos e objetivos da
experiência diaspórica, e a diferença entre lar e pátria.

PALAVRAS-CHAVE: diáspora, dispersão, pátria.

ABSTRACT: This paper formed the inaugural lecture at the launch of the Oxford
Diasporas Programme in June 2011. It explores the contradictions and complexities of
three ‘formative binaries’ – between dispersion and diaspora, the subjective and objective
aspects of the diasporic experience, and the differences between home and homeland.

KEYWORDS: diaspora, dispersion, homeland

1 Introdução

Todo pesquisador tenta alcançar uma perspectiva objetiva, mas todo pesquisador
honesto sabe que também tem uma perspectiva subjetiva moldada por sua formação como
profissional e como indivíduo. Vocês têm o direito de conhecer a minha. Qualquer
pesquisador no campo dos estudos da diáspora tem de desenvolver alguma competência
em três campos. Primeiro, tem de conhecer as pessoas da diáspora que está estudando,
um pouco como um bom antropólogo as conhece: deve entender como as pessoas se
sustentam economicamente, como organizam sua vida social, participam da vida púlbica
e política, produzem uma cultura que as representa para si mesmas e para os outros e, no
processo, atribui valor e significado a suas vidas. Em segundo lugar, o pesquisador

1
Este artigo foi publicado como parte do Programa Diasporas da Univeridade de Oxford no Instituto
Internacional de Migração em junho de 2011. Diretos de tradução cedidos pelo autor. Tradução: Marcos
Bagno e Dennys Silva-Reis. Dísponível em < https://www.imi.ox.ac.uk/publications/wp-55-12>.
2
Professor da área de Humanidades na Wesleyan University (Estados Unidos). Em 1991 fundou a
revista Diaspora: a journal of transnational studies, publicada pela University of Toronto Press, da qual é
desde então o editor. É autor de um livro em sua língua materna, o armênio, Spurki Mech (Na Diáspora),
Haratch Press, 1980. É co-organizador do livro Diaspora, Identity and Religion (Routledge, 2004) e autor
de 35 artigos sobre diásporas, terrorismo e literatura.

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responsável deve ter algum conhecimento histórico de como a formação social sob estudo
veio a se constituir, e às vezes até adquirirá mais conhecimento desse tipo do que o que
têm os membros individuais dessa sociedade ou desse povo. E, em terceiro, um
pesquisador deve ter o que hoje se chama competência teórica — uma familiaridade com
os modos como ideias sobre formações sociais semelhantes têm sido produzidas e podem
ser examinadas criticamente e auto-reflexivamente. No meu caso, a formação social
específica que conheço como estudioso em todos esses aspectos é a diáspora armênia,
que no entanto não é o tópico central da minha fala hoje. Minha segunda área de
especialidade é fruto do meu trabalho nas últimas duas décadas como editor da revista
Diaspora, o que me tem dado a oportunidade de observar de perto a emergência do campo
multidisciplinar dos estudos da diáspora.

Em 2005, o sociólogo Rogers Brubaker, da UCLA, deu à sua crítica do rápido


crescimento dos estudos da diáspora o título de “The ‘diaspora’ diaspora” (“A ‘diáspora’
da diáspora”). Ele mostrou que, durante os anos 1970, o termo “diáspora” e seus cognatos
apareciam como palavras-chave somente uma ou duas vezes por ano em resumos de tese;
no final dos 1980, apareciam em média 13 vezes por ano; já em 2001, e só neste ano, 130
vezes. Brubaker alertava que essa rápida dispersão do termo em tantos discursos
disciplinares estava distendendo e diluindo seu significado. Identificava na revista
Diaspora “um veículo chave para a proliferação da fala acadêmica sobre diáspora”, mas
acrescentava que até seu editor (ou seja, eu) se preocupava com o fato de que diáspora
“corre o risco de se tornar uma categoria promiscuamente ampla”. O primeiro número de
Diaspora saiu no final de maio de 1991. Em meu ensaio introdutório para aquele número,
escrevi que o “domínio semântico” do termo “diáspora” estava sendo “compartilhado”
com termos como “migrante, expatriado, refugiado, trabalhador estrangeiro, exílio,
comunidade ultramarina e comunidade étnica”, e que as diásporas tinham se tornado “as
comunidades exemplares do momento transnacional”. Eu queria dizer que as antigas
diásporas, como as nações, estavam sendo remodeladas enquanto novas se formavam pela
crescente mobilidade, através das fronteiras estatais, de pessoas, dinheiro e produtos
culturais como informação, ideias, imagens, música. Também dizia que, ao mesmo
tempo, pesquisadores que trabalhavam sobre um amplo espectro de materiais primários
em diversas disciplinas estavam considerando a categoria de diáspora atraente e

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potencialmente útil para organizar suas investigações. Desde então, conforme notaram
estudiosos como Dominique Schnapper (2006) e Oliver Bakewell (2008), temos
observado a progressiva superlotação do domínio semântico da diáspora. Essa
superlotação não é simplesmente aditiva, mas transformativa. Conforme apontava
Ferdinand de Saussure em 1916, nenhum termo obtém seu significado
independentemente, mas o adquire em sua relação, e em sua diferença matizada, com
outros aparentados. Por conseguinte, desde o final dos anos 1960, “diáspora” passou a
significar o que significa em sua imbricação com os termos transnacionalismo,
globalização, migração, etnicidade, exílio, pós-colonial e nação. Desde os anos 1980, os
significados em mutação de “pertencimento” e “cidadania” têm complicado ainda mais a
situação conceitual. Para isso também contribui a mídia digital, na qual redes emergem e
se autodenominam diásporas, não sem algum fundamento, exceto talvez no caso daqueles
programadores que, objetando-se às práticas do Facebook em fevereiro de 2010,
abandonaram essa rede social e estabeleceram uma nova chamada “diaspora*”
(diasporafoundation.org).

Como têm sugerido diversos colaboradores cujos trabalhos editei para a revista,
em algumas ocasiões agi como um membro da polícia linguística, mas não é minha
intenção agora insistir na necessidade de uma patrulha das fronteiras de nossas categorias.
Nem tenho tempo suficiente para oferecer uma narrativa detalhada da série de importantes
artigos e livros que desempenharam papéis essenciais na emergência do campo dos
estudos da diáspora ao mesmo tempo em que, por vezes, também contribuíram para a
consequente confusão terminológica. No entanto, outro gênero de narrativa analítica
poderia indagar como e por quê “diáspora” se tornou um termo “bon pour penser avec”,
para parafrasear Lévi-Strauss acerca dos animais no totemismo. Hoje, vou me concentrar
primordialmente em alguns termos e conceitos interessantes e persistentes e que me
parecem suscetíveis de permanecer importantes à medida que os estudos da diáspora
avançam; em alguns casos, duplas de termos têm funcionado como binários formativos
que nos ajudam a mapear o campo contemporâneo dos estudos da diáspora.

2 Mapeando os estudos da diáspora

2.1 Dispersão e diáspora

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O primeiro e mais simples desses pares de binários é dispersão e diáspora. Se eu


estivesse fundando a revista hoje, seu subtítulo poderia ser “uma revista de estudos sobre
a dispersão”. “Dispersão” é o termo mais geral e inclusivo, ao passo que “diáspora” é
simplesmente um dos diversos tipos de dispersão, de modo que, numa curiosa inversão,
se tornou uma sinédoque, a parte — diáspora — no lugar do todo. Outras formas de
mobilidade e dispersão incluem a migração com vistas a adquirir educação, trabalho,
terra, assentamento, nova cidadania, ou uma combinação desses; também existem
mercadores ambulantes e lavradores itinerantes que circulam entre oportunidades em seu
país e no exterior; existem vítimas de deportações em massa, refugiados e solicitadores
de asilo — alguns escolhem a mobilidade, a outros ela é imposta; alguns têm suas raízes
cortadas, outros cortam as próprias raízes. Alguns acabam por voltar, muitos são
assimilados, e os restantes podem ficar consolidados em comunidades diaspóricas.

Até os anos 1930, as formações sociais conhecidas como “diásporas” consistiam


numa rede de comunidades, em alguns momentos sedentárias e em outros bastante
móveis, que viviam na dispersão frequentemente involuntária, longe de suas terras natais
e que resistiam à assimilação plena ou viam negada a opção de se assimilar, ou as duas
coisas ao mesmo tempo. Muitas delas existiam em condições lamentáveis e precárias,
glorificadas por ninguém numa época em que o Estado-nação era a forma suprema de
entidade política, e a diasporicidade podia significar cidadania de segunda classe. Nesse
período inicial, os estudiosos confinavam o termo “diáspora” a somente três grupos: os
judeus (o caso paradigmático); os armênios (desde o século XI); e os gregos. (Devo
acrescentar, de passagem, que os antigos estabelecimentos portuários gregos no
Mediterrâneo, de Marselha a Siracusa, de Nápoles a Tarento e Síbaris, não eram
chamados de “diáspora” pelos helenos, muito embora o trabalho de Robin Cohen em
Global Diasporas [Cohen, 2008] possa oferecer um argumento para renomeá-los hoje de
diásporas de assentamento. A aplicação mais antiga do termo “diáspora” aos gregos
parece datar do período sucessivo à conquista otomana de Constantinopla em 1453, e só
se estabeleceu com firmeza nos anos 1650.)

A ascensão do termo “diáspora” como um cognato para todas as dispersões é um


processo complexo, produto da convergência de vários eventos autônomos. Em outras
ocasiões, em dois artigos intitulados “Rethinking Diaspora” (Tölölyan, 1996) e “The

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Contemporary Discourse of Diaspora Studies” (Tölölyan, 2007), apresentei minha


própria análise desse processo, que não vou recapitular aqui, exceto para dizer que, na
minha opinião, as precondições que permitiram essa convergência nos Estados Unidos se
deram entre 1964 e 1968. Assinalarei sem muita elaboração o conjunto mais importante
de eventos que contribuíram para isso. O relato mais enciclopédico de todos os usos do
termo aparece na tese de 650 páginas de Stépahne Dufoix, Les Diasporas, publicada
como La Dispersion (Dufoix 2012), uma síntese extraordinária, mas cuja riqueza de
detalhes por vezes obscurece o caráter relativamente repentino do salto que o termo deu
em popularidade acadêmica.

O primeiro evento que impeliu essa popularidade foi o empoderamento dos negros
estadunidenses como eleitores pelas leis de direitos civis de 1964-65 e a subsequente
emergência nos Estados Unidos do movimento Black Power; a renomeação das pessoas
de cor (coloured people) e dos negros (negroes) primeiro como Black e depois como
Afro-Americans, uma etnicização terminológica que ocorreu durante a ascensão de Jesse
Jackson como um candidato temporariamente plausível à presidência por volta de 1984;
e a emergência paralela do termo African Diaspora (“Diáspora africana”), observado pela
primeira vez numa palestra dada pelo historiador George Shepperson numa conferência
pan-africana em Dar-es-Salaam (Tanzânia), em 1964. Embora não amplamente aceito por
todos os afro-americanos leigos, o termo African Diaspora está agora firmemente
estabelecido nas universidades e no discurso de intelectuais e jornalistas respeitáveis nos
Estados Unidos. A dispersão dos descendentes de ex-escravos africanos pelos Estados
Unidos e pela Jamaica, pelo Brasil e pelo Oceano Índico, pela Grã-Bretanha e pela
Colômbia, é agora uma “diáspora” para estudiosos de história e sociologia, de
etnomusicologia bem como de estudos literários e culturais; nos estudos culturais, o livro
The Black Atlantic, de Paul Gilroy (Gilroy, 1993), teve um efeito-cascata e catalisador
raramente testemunhado no meio acadêmico.

O segundo evento autônomo que contribuiu para a renomeação de várias


dispersões como diásporas foi a Guerra de Junho de 1967, em que Israel, um Estado
fundado por pessoas nascidas na diáspora, derrotou espetacularmente seus oponentes
árabes e galvanizou o já considerável apoio que tinha na comunidade judaica
estadunidense, não só como um lobby político, mas como um movimento na vida

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intelectual. Um produto resultante do boom no discurso judaico estadunidense foi o que


chamo de re-diasporização da etnicidade. Líderes gregos, armênios, negros, porto-
riquenhos, cubanos, irlandeses, indianos e chineses de grupos étnicos antigos e recentes
se viram animados por compromissos novos e especificamente diaspóricos. Tornou-se
possível, e até ficou na moda, desenvolver e defender compromissos translocais com a
pátria ancestral e com comunidades aparentadas em outros países. Líderes comunitários
acrescentaram à tarefa mais antiga de prover de funcionários e financiar instituições
étnicas o trabalho de “ultrapassar” as fronteiras. Trabalhando muitas vezes explicitamente
com o modelo judeu-isralense, mesmo quando este era inadequado, figuras notáveis de
comunidades étnicas se engajaram em atividades diaspóricas mesmo antes de aceitarem
o termo, lutando pelo reconhecimento de novas autoidentificações nas universidades, na
mídia pública e nos lobbies, na cultura e nas artes — de fato, em todos os locais e eventos
em que representações de grupos diaspóricos são formuladas e disseminadas, ou em que
seus direitos e deveres são discutidos.

O terceiro evento que convergiu com os fatores acima citados foi a aprovação,
pelo Congresso dos Estados Unidos, da Lei Hart-Celler de Imigração e Nacionalidade,
em 1965, numa votação de 76 a 18. Essa lei, com emendas acrescentadas nos anos
seguintes, anulou as quotas de imigração restritivas estabelecidas em 1923-24, ampliou o
número de imigrantes e permitiu a imigração não europeia para os Estados Unidos em
escala global. Embora esse evento tenha ocorrido no período que estou discutindo — isto
é, 1964-68 —, devo acrescentar que seus efeitos plenos só foram sentidos depois de 1970;
demorou cinco anos até que a imigração ganhasse ímpeto. Ainda assim, depois da
aprovação da Lei de Imigração, os estadunidenses começaram a se dar conta novamente
de que seu país era uma terra de imigrantes que se tornaram cidadãos de pleno direito
muito antes que sua assimilação cultural se completasse. Os dois textos que
desempenharam papel fundamental no processo foram A Nation of Immigrants, do
presidente John F. Kennedy, escrito em 1958 mas publicado postumamente em 1964
(Kennedy, 1964), e o volume de Nathan Glazer e Daniel Moynihan, Beyond de Melting
Pot: The Negroes, Puerto Ricans, Jews, Italians and Irish of New York City (Glazer e
Moynihan, 1963). Embora muito diferentes, os dois textos reconhecem com relutância
que a tarefa a ser cumprida era aculturar e integrar todos os imigrantes como

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estadunidenses sem insistir necessariamente em sua assimilação completa; o melting pot3


não tinha homogeneizado a todos; a etnicidade era aceitável, a integração — uma das
palavras de ordem do movimento pelos direitos civis —, essencial. Na minha visão, as
diásporas são uma categoria especial de dispersão etnicizada. Nas décadas de discussões
que se seguiram aos dois textos há um padrão recorrente. Tanto as pessoas comuns quanto
alguns intelectuais ficaram tão hipnotizados pela noção estereotipada da grande
imigração de 1871—1923 que esperaram que se repetisse o padrão de assimilação, e
ficaram surpresos quando isso não aconteceu exatamente da mesma maneira. Até o
momento, ainda existe uma considerável diferença de opinião, com estudiosos como
Alba, Knee, Massey, Glick-Schiller e Waldinger incapazes de chegar a um acordo sobre
a extensão em que a mobilidade transnacional promove uma resistência à plena
assimilação que pode resultar em diásporas. A prolífica discussão sobre a imigração e as
variedades de integração nos Estados Unidos é dificultada, de modo sutil porém
impregnante, pelo receio que os estudiosos têm de serem percebidos como racistas.

Foi nesse ambiente que a mídia estadunidense e, em seguida, os currículos


universitários começaram a notar e atribuir importância ao fato de que os principais países
industriais da Europa ocidental também estavam recebendo novos imigrantes, vindos
inicialmente do Caribe em 1948, seguidos de trabalhadores migrantes da Itália, da
Iugoslávia, da Turquia e de Portugal desde o final dos anos 1950, aos quais se
acrescentaram numerosos cidadãos britânicos e franceses retornados das antigas colônias
à medida que suas terras natais eram descolonizadas, a começar pelo Vietnã em 1954,
Gana em 1957, Argélia em 1962, e terminando com a desintegração do império português
em 1974. O reconhecimento dessas imigrações Europa adentro, acelerado pelo discurso
de Enoch Powell em 19684, se juntou à vaga percepção de que o Canadá e a Austrália
também estavam facilitando a imigração e aos poucos desenvolvendo leis e políticas
culturais em prol da tolerância e da aceitação, rebatizadas de “multiculturalismo” nos

3
O termo melting pot designa, em inglês, o cadinho ou crisol, recipiente utilizado para experiências
químicas em que se tem de misturar ou fundir substâncias, metais etc. É empregado também para se referir
à formação da sociedade estadunidense como resultante de uma mescla de pessoas provenientes dos mais
diversos lugares do mundo (N. T.).
4
John Enoch Powell (1912-1998), intelectual e político conservador britânico, pronunciou no Parlamento
em 1968 um discurso contra a imigração, no qual empregou a expressão “rios de sangue” para se referir às
possíveis turbulências sociais da existência de etnias diversas num mesmo país (N. T.).

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anos 1970. A crescente reflexão sobre a nova imigração, a etnicidade e o


multiculturalismo limpou o terreno para a aceitação do conceito de diáspora, que tornou
possível considerar os concidadãos com compromissos multilocais, com cidadania dupla
e participação em redes transnacionais como algo diferente de pessoas perigosas com
lealdades divididas, cujo descontentamento poderia algum dia fazer correr “rios de
sangue”.

Por fim, o quarto desdobramento importante que, em minha opinião, preparou o


terreno para a aceitação pelos intelectuais do conceito de diáspora foi a emergência e a
valorização definitiva, dentro dos currículos universitários, das noções de identidade,
diferença e diversidade como temas de investigação. Tomando mais uma vez os Estados
Unidos como exemplo, depois do sucesso difícil mas extraordinário do movimento pelos
direitos civis dos negros estadunidenses, emergiu uma série de lutas no final da Guerra
do Vietnã pelos direitos das mulheres, dos homossexuais e outros. Dentro das
universidades, a indispensabilidade da diferença como uma função que estabelece
fronteiras e identidades e, no entanto, também cria heterogeneidades dentro delas,
emergiu primeiramente em 1966, à medida que começaram a aparecer textos como os do
suíço Ferdinand de Saussure, de teóricos franceses como Barthes e Benveniste e de
filósofos como Derrida. O favorecimento e a celebração da diferença levaram a
reivindicações identitárias e a polêmicas na academia que tiveram e ainda têm
consequências problemáticas; mas também levaram a uma aceitação, dentro de boa parte
da elite letrada estadunidense, do direito à diferença, que acabaria por facilitar a aceitação
e a alta valorização da diáspora como conceito e como identidade. Esse movimento, que
denunciava a exclusão e advogava pela inclusão sem homogeneização, impregnou o
trabalho teórico e o empírico. Assim como foram rejeitados o racismo, a masculinidade
e as normas heterossexuais intolerantes que silenciavam e excluíam, também o foram as
normas homogeneizantes da identidade nacional. Historiadores estabeleceram agendas
de pesquisa a fim de preencher falhas e lacunas, de permitir que vozes silenciadas fossem
ouvidas, para deixar falar os subalternos, na crença de que podiam, deviam e seriam
ouvidos. Os estudos da diáspora se beneficiaram desse movimento mais amplo. Dito isso,
deixem-me acrescentar que, entre as causas iniciais do sucesso do conceito de diáspora

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que enumerei, essa última afirmação é a mais aberta ao debate porque não há quantidade
suficiente de comprovação para ela; baseia-se na experiência e na interpretação.

Juntos, esses eventos conduziram à ampla aceitação social e acadêmica da


importância da dispersão; ela já não era vista apenas como um estágio preliminar do
desaparecimento de diferentes formações sociais e identidades coletivas, porém, bem
mais, como o primeiro passo para sua persistência aceitável na forma de diásporas
consolidadas. Na minha própria prática como pesquisador, chamo de “diásporas” aquelas
comunidades de dispersos que desenvolvem uma variedade de associações que perduram
ao menos até a terceira geração. Mas, como editor, estou aberto às práticas de colegas que
assumem outras posições a respeito das redes transnacionais e dos campos sociais,
posições compartilhadas por muitos dos pareceristas da revista.

2.2 Objetivo e subjetivo

Se dispersão e diáspora são um par de binários formativos que acompanham as


tensões conceituais e as variações nos estudos da diáspora, “objetivo” e “subjetivo”
assinalam outra polêmica permanente. Para soprar vida nesses termos banais, permitam-
me uma citação longa de um ensaio da crítica literária sino-canadense Lily Cho (Cho,
2007). Ela escreve: “A diáspora deve ser entendida como uma condição de subjetividade
e não como um objeto de análise. Proponho uma concepção de diáspora como, antes de
qualquer coisa, uma condição subjetiva marcada pelas contingências de longas histórias
de deslocamentos e genealogias de expropriação”. Acrescenta que “alguns sujeitos
diaspóricos são transnacionais, mas não todos! A diáspora emerge como uma
subjetividade viva aos efeitos de globalização e migração, mas também sintonizada com
as histórias de colonialismo e imperialismo. A diáspora não é uma função de fenômenos
sócio-históricos e disciplinares, mas emerge de processos profundamente subjetivos de
memória racial, de luto pelas perdas que nem sempre pode ser articulado, e de desejos
que pendem à margem da possibilidade. Ela se constitui na espectralidade da dor e dos
‘prazeres de obscuros milagres de conexão’”.

Uma vez que acabo de alegar que a popularidade de “diáspora” se deve à


convergência de fenômenos sócio-históricos e disciplinares, dificilmente posso endossar
na totalidade as opiniões de Cho. Na verdade, nenhum pesquisador pode concordar com

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a ideia de que a diáspora não é “um objeto de análise”, conforme ela escreve. Sabemos
demais sobre diásporas como bairros e redes, cadeias de conexões e trocas, como vítimas
frágeis de perseguição, mas também como saudáveis praticantes do que chamo “poder
sem Estado” em meu próprio trabalho, para concordamos sem restrições com a
caracterização da autora. E, no entanto, o que ela diz é crucial. Não existe de fato nenhum
lugar chamado diáspora, embora existam lugares de habitação e memória. Não existe
nenhuma categoria legal, jurídica, burocrática chamada diáspora, embora existam
passaportes, visas e vistos de residência, estrangeiros legais e ilegais, les dépaysés e les
sans-papiers, estrangeiros com documentos e sem documentos, residentes permanentes,
refugiados, apátridas, mas também detentores de duplas cidadanias etc. A insistência de
Cho em que as diásporas são o luto das perdas vincula-a aos intelectuais que veem os
indivíduos reunir-se em comunidades de memória traumática, consistindo de vítimas cuja
identidade e cujas reivindicações de direitos estão presas às suas feridas. Robin Cohen
introduziu a noção de “diáspora de vítimas” (victim diaspora) uma década antes de Cho
ter escrito seu texto e ele reconhecia que, embora nenhuma diáspora duradoura dure
somente por meio de tal memória, ainda assim muito de sua vida pode ser organizada em
torno de funções comemorativas e discursos e práticas que tomam as feridas como seu
ponto de partida. É claro que o genocídio e o etnocídio, o estupro e a expropriação são
mais do que reais. Mas eles não são parte da experiência vivida, objetiva das gerações
diaspóricas subsequentes, que podem não ter nenhuma memória direta e não mediada do
horror. Ao contrário, como argumenta Marianne Hirsch (Hirsch, 2008), as gerações
recentes herdam ou constroem o que ela chama de “pós-memória” através de fotografias
e narrativas, artefatos e exposições, em convenções e conferências e, agora, on-line. O
subjetivo é real, embora num registro diferente do da materialidade do objetivo, e ele
ajuda a construir o sujeito diaspórico individual que é atraído por outros que
compartilham a mesma subjetividade mediada. Essa é uma razão pela qual o estudo da
literatura e da cultura de massa, e das novas mídias digitais, deve ser trazido para mais
perto do trabalho dos cientistas sociais.

2.3 Lar e pátria

Um terceiro binário formativo para os estudos da diáspora é o de lar (home) e


pátria (homeland). As teorias dominantes postulam uma orientação para a pátria como

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um traço fundamental da identidade diaspórica; essa posição é profundamente


influenciada por uma certa visão da história judaica que acabou se tornando a do sionismo
e agora é a do Estado judaico. Muitos têm argumentado que a diáspora judaica sempre
viveu com a esperança do “ano que vem em Jerusalém”, uma afirmação ritual que
supostamente configura uma orientação inabalável para o projeto do retorno, do aliyah.
Mesmo hoje em dia, apesar de nem todos os judeus optarem por retornar a Israel e
400.000 judeus israelenses viverem numa nova diáspora, e muito embora a diáspora
judaica não ocupe um lugar tão importante no campo dos estudos da diáspora como
ocupava antes porque o espaço se abriu para outras formas de dispersões pós-coloniais e
transnacionais, ainda assim a orientação para a pátria é normalmente considerada óbvia.
Somente os roms (ou ciganos), como se tem ressaltado, constituem uma diáspora
absoluta, sem nenhum olhar voltado para uma pátria, nenhuma memória dela, nenhum
desejo de retornar àquela área do que hoje é a fronteira entre Paquistão e Índia que,
supostamente, eles abandonaram por volta do século VIII. Os roms existem como uma
diáspora que atravessa fronteiras porque seus líderes se reconhecem como fragmentos de
um povo disperso e oprimido, fragmentos que eles trabalham incessantemente por
reconectar.

Exceto esse caso, considera-se que todas as outras diásporas têm uma pátria e se
orientam na direção dela. Essa concepção é de tal modo predominante que a encontramos
entre funcionários dos governos das pátrias ancestrais, persuadidos da importância de
reivindicar suas diásporas e que se esforçam por criar ministérios e secretarias da diáspora
na Armênia, na Itália, na Grécia, na República Dominicana e até na região autônoma
basca na Espanha. Atuando como consultor em duas dessas instâncias, considerei
necessário argumentar em favor de uma posição ligeiramente diferente e mais produtiva,
cujo fundamento consigo ilustrar melhor com três episódios interligados.

Em 2002, participei de uma conferência internacional em Poitiers, na França, na


qual conhecidos intelectuais israelenses falaram diversas vezes do papel de Israel como a
pátria de todos os judeus do mundo. Até que, em dado momento, uma professora
estadunidense pediu a palavra e disse: “Sou judia e americana. Meu lar e o lar dos meus
pais são os Estados Unidos. O lar dos meus avós era a Hungria. Israel é a pátria dos meus
ancestrais, não a minha. Depois dos Estados Unidos, Israel é o segundo país mais

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importante para mim, e me preocupo muito com sua prosperidade e segurança”. Dois
meses antes, num evento armeno-americano em Watertown (Massachusetts), um
estudante universitário, que se identificava como pertencente à quarta geração da família
nascida nos Estados Unidos, disse quase a mesma coisa a um orador apaixonado sobre o
que considerava ser a “pátria armênia” da plateia. “Sou americano”, disse o estudante,
“este país tem sido o lar da minha família há várias gerações. Sei que a Armênia é a pátria
dos meus ancestrais e que tenho parentes longínquos lá, e eu gostaria de fazer alguma
coisa para ajudá-la a se fortalecer contra a Turquia e a ser menos economicamente pobre
do que é”. Parte do que ele disse era praticamente idêntica às palavras da professora em
Poitiers.

Esses sentimentos estão bem difundidos entre os estudantes jovens com quem
tenho trabalhado há décadas. Meu próximo caso, que também relatei num artigo intitulado
“Beyond the homeland: From exilic nationalism to diasporic transnationalism”
(Tölölyan, 2010), ocorreu no primeiro dia do meu curso sobre “Diásporas,
transnacionalismo e globalização”, quatro anos atrás. Pedi aos dezesseis estudantes do
seminário que dissessem algo sobre seus interesses etnodiaspóricos, se tivessem algum.
Fez-se um longo silêncio. Voltei-me para uma estudante que já tinha frequentado dois
cursos meus e a quem eu conhecia de longas conversas e disse: “Eu conheço você, sei
que é judia, já falou sobre isso, por que o silêncio?” Ela demorou a responder.
“Professor”, disse por fim, “eu sei que sou judia. O senhor sabe que sou judia. O problema
é que, no mesmo instante em que eu admitir isso, minha mãe e minha avó também vão
dizer que tipo de judia eu tenho que ser, quem eu devo namorar, o que eu deveria fazer.
Não posso me permitir ser uma judia assim”. Essa observação deu início às conversas.
Um estudante coreano-americano, cujos pais, como é frequentemente o caso com recentes
imigrantes coreanos nos Estados Unidos, são evangélicos praticantes, expressou reservas
semelhantes quanto a reivindicar uma identidade diaspórica. Nas universidades e online,
um grande número dos jovens que formarão a próxima geração das diásporas nos Estados
Unidos expressam as mesmas opiniões. Reconhecem uma pátria ancestral e uma
identidade etnodiaspórica, e as duas coisas são importantes. Mas não reconhecerão
plenamente nenhuma identidade diaspórica que seja concebida em relação e em
subordinação à autoridade nacional e moral atribuída à pátria porque tal consentimento

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os confinará e controlará seu comportamento. Imediatamente após admitir alguma forma


de identidade diaspórica ligada à pátria ancestral, eles buscam distanciar-se das possíveis
reivindicações, enfatizando que têm diversas identidades — as habituais de gênero, raça,
classe, orientação sexual, junto com a identidade etnodiaspórica. Eles desejam e almejam
o que eu chamaria, em analogia à Flexible Citizenship: The Cultural Logics of
Transnationality de Aihwa Ong (1999), de identidades múltiplas e flexíveis, que eles
podem configurar conforme a necessidade — querem selecionar dentre todos e cada um
dos elementos dos quais podem se orgulhar e cujas reivindicações e obrigações estão
prontos a honrar. Sentem-se em casa nos Estados Unidos, ainda que conservem seu
sentimento pela pátria de seus ancestrais e pela diáspora dos mais velhos da família, mais
estritamente definida e orientada para a pátria. Eles já abandonaram o nacionalismo do
exílio em favor do transnacionalismo diaspórico.

Não surpreende que estudiosos da diáspora tenham começado a usar termos como
“comunidade contingente” para diásporas duradouras que estão sendo rapidamente
alteradas pelas atitudes de seus jovens mais instruídos, ou que Aram Sinnreich tenha
publicado um livro sobre a prática juvenil do mash-up5 na música (2010). Ele argumenta
que os jovens exigem e celebram o que ele chama de “‘configurabilidade’ musical,
enraizada numa infra-estrutura global, de comunicações em rede”. Sinnreich utiliza
entrevistas com DJs famosos, executivos da indústria musical e advogados para
argumentar que as disputas atuais sobre sampleagem, compartilhamento de arquivos e a
comercialização de estilos novos como mash-up e techno antecipam mudanças sociais
ainda mais amplas. “A música, que tem um poder único de evocar emoções coletivas,
sinaliza a identidade, e une ou divide sociedades inteiras”, é agora também matéria-prima,
um recurso para reconfigurar identificações como multilocais ou diaspóricas. Na minha
opinião, o artigo de Gayatri Gopinath sobre a síntese punjabi, caribenha e anglo-
americana que produziu a música bhangra, publicado em Diaspora em 1995 (Gayatri,
1995), permanece como um modelo de trabalho que precisa ser feito com mais
frequência.

5
Mash-up é uma gravação criada digitalmente em que se mistura trechos de duas ou mais músicas
diferentes, aos quais se acrescenta vozes e instrumentos novos (N. T.).

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Tenho argumentado que precisamos ter cuidado para não situar tão facilmente o
lar diaspórico na pátria ancestral. É um hábito moldado em parte pelos estudos de
políticas diaspóricas. A observação de Michel Laguerre (1999: 641) de que “a nação
cresceu para além do Estado por causa de seus tentáculos diaspóricos” é um bom exemplo
do problema: confunde migrantes haitianos de primeira geração com uma diáspora
estabelecida e atribui a essa diáspora o status de um fragmento ou extensão da nação. No
meu entender, um conjunto de migrantes transnacionais se torna uma diáspora quando
seus membros desenvolvem alguma distância familiar, cultural e social para com sua
nação, embora continuem a se preocupar profundamente com ela, não só em termos de
parentesco e filiação, mas pelo compromisso com certas afiliações conscientes. Os
estudos transnacionais contemporâneos mostram que a pátria é alcançada facilmente por
telefone, por vídeo e por avião, e que o espaço social transnacional é o espaço em que os
novos imigrantes ainda se sentem mais à vontade, e eles projetam sobre as diásporas essa
característica de formas recentes de dispersão. Por outro lado, após várias gerações, o
diaspórico já não se sente comprometido por causa de vínculos de parentesco e memórias
pessoais (embora ainda sejam importantes na medida em que esses vínculos e memórias
podem ser revividos e revigorados por meio de viagens e participações); nem se
compromete simplesmente porque não está integrado à sociedade anfitriã, como se dá
frequentemente com a primeira e a segunda gerações. O diaspórico não comprometido
por meio desses vínculos é agora um cidadão em seu “novo” país, possui uma cultura e
identidade híbridas ou, pelo menos, desenvolveu uma confortável competência bicultural.
É um diaspórico por causa de um conjunto de decisões cumulativas de permanecer bi- ou
multi-local, de se preocupar com os outros na diáspora, com quem compartilha uma
origem etnodiaspórica, e também de se preocupar de algum maodo com o bem-estar da
pátria de seus ancestrais.

2.4 Outros binários

As restrições de espaço não me permitem discutir na mesma profundidade outros


aspectos e binários formativos dos estudos da diáspora. Em particular, lamento não ter
tempo para explorar o debate sobre os papéis políticos das diásporas e das pátrias. Vou
tocar no assunto parafraseando o estudioso britânico sikh Gurharpal Singh, que alerta que
devemos ter cuidado ao supor que os novos ventos políticos se originam

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predominantemente destas ou daquelas. Nunca está claro, a priori, se as diásporas são o


vento novo ou simplesmente o cata-vento que responde às tempestades geradas na pátria
ancestral. Outros binários que poderíamos considerar são a tensão entre o termo
identidade, que corre o risco da reificação e do essencialismo, e identificação, que aponta
para um processo muito mais flexível e reversível. Outro binário aponta para uma
distinção entre êmico e ético, feita inicialmente pela antropologia linguística nos anos
1950. Para os linguistas, o êmico, termo derivado de fonêmico, designa a perspectiva do
falante nativo, o conhecimento e a fluência do membro do grupo, que não precisa nem
conhece o discurso ético com que os pesquisadores descrevem os aspectos fonéticos,
gramaticais e sintáticos de uma língua. O análogo do ético é o discurso acadêmico dos
estudos da diáspora que, na minha opinião, frequentemente falha na compreensão do
vocabulário, conceitos, representações, disposições e comportamentos êmicos com que
os membros de uma diáspora falam de si mesmos para si mesmos e encenam
reciprocamente suas identificações, enquanto estudam, debatem e nutrem sua própria
formação social. Insisto na oposição entre estudos da diáspora tal como os praticamos e
o estudo das diásporas conduzidos por membros da diáspora, e ficaria contente em
discutir isso mais demoradamente.

A lacuna entre as percepções êmica e ética da diáspora tem se tornado cada vez
mais visível em anos recentes, à medida que governos dos países de origem e organismos
internacionais como o Banco Mundial e o FMI buscam, um tanto desajeitadamente,
desenvolver meios para atrair mais investimento e remessas de dinheiro, vender bônus às
diásporas e, de modo geral, dirigir o capital político e econômico das diásporas, sejam
elas indianas, ruandenses, armênias, haitianas ou africanas.

3 Conclusão: a politização das diásporas

Este texto se iniciou com uma consideração das condições sociais e políticas
favorecedoras que levaram ao crescimento vertiginoso dos estudos da diáspora, o qual
preocupava Rogers Brubaker. Em seguida, empreendeu uma tipologia parcial de binários
conceituais que persistentemente estruturam a proliferação que Brubaker achava tão
perturbadora. Embora permaneça a necessidade de nos mantermos vigilantes acerca da
clareza terminológica e conceitual, gostaria de concluir chamando nossa atenção para a

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atual e problemática politização das diásporas e para o papel que pode desempenhar na
solução dessa tendência o campo relativamente autônomo constituído por estudos da
diáspora bem amadurecidos.

Os estudos da diáspora correm o risco de se tornarem servos das forças políticas


globais, tal como a antropologia outrora correu o risco de servir ao imperialismo. A
politização multifacetada das diásporas se deve a diversos fatores. À medida que
formações sociais diaspóricas se consolidam, suas próprias novas elites e empreendedores
políticos aspiram a se tornar líderes, agentes influentes e intermediários das relações das
diásporas com os governos de seus novos países de assentamento, bem como com os
governos das pátrias originais. Inspirados nos sucessos de Israel, Índia e China em
variadas formas de atrair investimento diaspórico e oferecer apoio na forma de lobbies,
governos de países de origem estão criando atrativos que vão desde o status de dupla
cidadania ou cidadania especial até eleições para cargos nas legislaturas dos países de
origem, como uma forma de manter suas diásporas produtivamente engajadas na
qualidade de subordinadas. ONGs, o Banco Mundial e o FMI se envolvem agora em
tentativas semelhantes que visam assegurar aos países de origem e a seus governos mais
investimentos, mais remessas de dinheiro, mais filantropia, compras de títulos financeiros
e coisas do gênero. Por fim, os governos e os aparatos de segurança dos países em que
novas diásporas estão emergindo — ansiosos com relação a coisas que vão do terrorismo
ao desemprego — também se inclinam a reduzir a vívida complexidade das diásporas a
umas poucas banalidades políticas acerca de lealdade e envolvimento.

Os estudos da diáspora podem tentar ser um antídoto à instrumentalização


reducionista da complexidade social, cultural e afetiva das diásporas. Como
pesquisadores dos estudos da diáspora, precisamos tomar a dianteira, lembrar a nós
mesmos e aos outros essa surpreendente complexidade, que é o produto dos esforços
diaspóricos por construir, representar e discutir a vida cotidiana de comunidades
diaspóricas locais, enquanto também atentam para as demandas de engajamento com
outras comunidades diaspóricas e com a pátria ancestral. A combinação paradoxal de
localismo e transnacionalismo, o ardente desejo de alcançar o sucesso econômico e social
e a disposição ao sacrifício pela comunidade e pela pátria original, a real oscilação entre
lealdade e desprendimento cético que caracteriza a performance das vidas diaspóricas,

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tudo isso é, na minha opinião, um exemplo do modo como cada um, incluindo os naturais
de qualquer país, terá de viver num mundo cada vez mais heterogêneo e plural. É um
mundo em que as diásporas têm vivido por bastante tempo. Espero por estudos da
diáspora que estejam à altura da complexidade das diásporas que são tanto os objetos
quanto os co-sujeitos de suas análises.

Referências

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OS USOS DA DIÁSPORA1

Brent Hayes Edwards2

RESUMO: O termo diáspora só começou a ser empregado nos estudos sobre história e
cultura negras depois da Segunda Guerra Mundial. Neste artigo, o autor retraça os usos
desse termo na produção acadêmica a partir daquele período, compara-os a outras
expressões que tentam dar conta dos mesmos fenômenos, como pan-africanismo e
Atlântico negro, recupera a noção de articulação empregada por Stuart Hall e propõe
combiná-la com a noção de décalage, palavra francesa que significa “defasagem,
discrepância, divergência”, para criar um modelo de análise da historiografia negra capaz
de lidar com as diferenças e as semelhanças existentes nas diversas comunidades de
origem africana dispersas pelo mundo.

PALAVRAS-CHAVE: diáspora; pan-africanismo; Atlântico negro; articulação;


décalage.

ABSTRACT: The term diaspora has only appeared in the work on black history and
culture after World War II. In this paper, the author tracks down the uses of the term in
scholarship since that period, compares them to other expressions that attempt to account
for the same phenomena, like Pan-Africanism and Black Atlantic, takes back the notion
of articulation employed by Stuart Hall and proposes a combination of it with the notion
of décalage, a French word that means “gap, discrepancy, uneveness”, in order to create
a model of analysis of black historiography allowing to deal with differences and
similarities that exist in the various communities of African descent scatterd worldwide.

KEYWORDS: diaspora; Pan-Africanism; black Atlantic; articulation; décalage.

Introdução

Um dos problemas mais constrangedores nos trabalhos recentes sobre a cultura


negra e a política em esfera internacional é que o termo diáspora, tão atraente para muitas

1
Este artigo foi publicado originalmente na revista Social Text 66 V. 19, N. 1, Primavera - 2001. Tradução
de D'Artagnhan Rodrigues e Marcos Bagno. Agradecemos ao autor por nos conceder os direitos de
tradução.
2
Brent Hayes Edwards é professor de Inglês e Literatura Comparada na Universidade Columbia. Suas áreas
de interesse são a literatura diaspórica africana e afro-americana; a poesia do século XX; a literatura
francófona; a teoria da tradução e o jazz. Publicou, entre outros, The Practice of Diaspora: Literature,
Translation, and the Rise of Black Internationalism (2003), obra que recebeu diversos prêmios literários.

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de nossas análises, surpreendentemente só aparece na literatura sob exame algum tempo


depois da Segunda Guerra Mundial. É claro que artistas e intelectuais negros, de Edward
Wilmot Blyden, Martin Delany e Pauline Hopkins, no século XIX, até W. E. B. Du Bois,
Marcus Garvey e Tiemoko Garan Kouyaté no início do século XX, estiveram engajados
por muito tempo em temas relacionados ao internacionalismo, mas o termo diáspora
somente nos últimos quarenta anos tem sido escolhido para demonstrar as conexões e os
pontos comuns entre os grupos de ascendência africana espalhados pelo mundo. Aqui,
abordo esse problema citando o alerta de Khachin Tölölyan para “o retorno à diáspora”:
sobre a multiplicidade confusa de termos que irrompem nos trabalhos recentes – incluindo
“exílio”, “expatriação”, “pós-colonialidade”, “migração”, “globalidade” e
“transnacionalidade” entre outros –, ele argumenta que se faz necessário o “retorno à
diáspora”, a qual está em risco de se tornar uma categoria promiscuamente ampla usada
para incluir todos os fenômenos adjacentes com os quais ela se relaciona, mas também
dos quais ela difere em sua constituição, o que, na verdade, torna possível uma definição
viável de diáspora3. Tölölyan e James Clifford escreveram uma valiosa visão geral
comparativa do uso do termo “diáspora”4. Contudo, limitarei minhas considerações à
política da “diáspora” no trabalho histórico e na crítica cultural negros, pois como o termo
marca uma intervenção um tanto quanto específica nessa arena, não pode ser subsumido
num quadro de investigação abrangente5. Focarei meus esforços particularmente em
esmiuçar a função do termo no trabalho de Paul Gilroy, já que ele é um dos teóricos
citados em quase todas as questões recentes relacionadas ao tema. A recepção de seu
brilhante estudo de 1993, The Black Atlantic, ameaça continuamente (apesar das

3
Khacig Tölölyan, “Rethinking Diaspora(s): Stateless Power in the Transnational Moment,” Diaspora 5
(primavera, 1996): 8.
4
James Clifford, “Diasporas”, in Routes: Travel and Translation in the Late Twentieth Century
(Cambridge: Harvard University Press, 1997), 244-78.
5
Tölölyan comenta que os afro-americanos constituem uma comunidade que “permanece excepcional,
sobretudo em sua formação como uma diáspora, e é um desserviço tanto intelectual quanto político ocultar
essa excepcionalidade na crença de uma solidariedade que conjuga todos os povos de cor em algum discurso
etnodiaspórico ou multiculturalista” (“Rethinking Diaspora(s)”, 23). Embora eu acompanhe Tölölyan aqui
ao argumentar que a história intelectual de um discurso da “diáspora Africana” é singular, deve-se observar
que minha abordagem rompe com a ênfase naquilo que se pode chamar de “diásporas comparativas”
exemplificado pela política editorial de Diaspora, a revista que ele edita, bem como com outros trabalhos
recentes (alguns bastante úteis) que interpretam a diáspora africana como apenas um exemplo numa
tipologia. Outros exemplos são Diaspora and Immigration, um número especial do South Atlantic
Quarterly (98 [inverno/primavera, 1999]), editador por V. Y. Mudimbe e Sabine Engel; Kim Butler,
“Defining Diaspora, Refining a Discourse”, Diaspora (no prelo); Robin Cohen, Global Diásporas: An
Introduction (Seattle: University of Washington Press, 1997); William Safran, “Diásporas in Modern
Societies: Myths of Homeland and Return”, Diaspora 1 (primavera, 1991): 83-99.

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relativizações do próprio Paul Gilroy) confundir diáspora, sua história particular e seu
uso na cultura e política negra, com a postulação deste campo que Gilroy chama de Black
Atlantic (Atlântico Negro) – termo rapidamente canonizado e institucionalizado na
academia nos Estado Unidos.
Não estou sugerindo que limitemos o objeto do estudo do termo a fenômenos mais
contemporâneos. Ao contrário, para meu próprio trabalho, procuro explorar a cultura e
política negras no período entre guerras, particularmente no circuito transnacional de
intercâmbio entre a chamada “Renascença do Harlem” (Harlem Renaissance) e a
atividade da pré-Negritude francófona na França e na África ocidental6. Procuro explorar,
então, o sentido historicizado e politizado de diáspora. Repenso os usos de diáspora mais
precisamente para instigar uma discussão da política da nominalização, em um momento
de prolixidade e falta de cuidado retórico, quando tal questão é geralmente a primeira a
sofrer baixas. Uma história intelectual do termo se faz necessária, em outras palavras,
porque diáspora tem sido tomado numa conjuntura particular no discurso acadêmico
negro para desenvolver um tipo particular de trabalho epistemológico7.
O uso do termo diáspora emerge diretamente do crescente interesse acadêmico
pelo movimento pan-africano em particular, e pelo internacionalismo negro em geral, que
começou a se desenvolver nos anos 1950. É importante lembrar que o pan-africanismo,
referindo-se tanto à Conferência Pan-Africana de 1900 de Henry Sylvester William
quanto aos congressos organizados por W. E. D. Du Bois e outros em 1919, 1921, 1923,
1927 e 1974, surge como discurso de internacionalismo objetivando, de modo geral, a
coordenação dos interesses culturais e políticos dos povos africanos e de seus
descendentes espalhados por todo o mundo. Como declarou Du Bois em 1993, em célebre
artigo publicado na revista Crisis, “Pan-África significa compreensão intelectual e

6
Brent Hayes Edwards, “Three Ways to Translate the Harlem Renaissance”, in The Harlem Renaissance:
Temples for Tomorrow, ed. Geneviève Fabre e Michel Feith (Bloomington: Indiana University Press,
2001), 359-96; e Edwards, The Practice of Diaspora (Cambridge: Harvard University Press, 2001).
7
Ao assumir uma política do uso de diáspora, trago para o primeiro plano a função analítica do termo,
porque (embora alguns trabalhos históricos recentes confundam a questão) diáspora não tem sido um termo
dominante de organização política. Quando os ativistas negros se uniram a movimentos transnacionais,
eles se voltaram para uma ampla gama de termos (incluindo etiopianismo, pan-africanismo, antifascismo,
comunismo, direitos civis, Black Power, afrocentrismo, anti-racismo, antiapartheid), mas raramente e
apenas bem recentemente recorreram a diáspora como um denominador comum ou uma designação de
grupo.

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cooperação entre todos os grupos de ascendência negra para promover, o mais


brevemente possível, a emancipação industrial e espiritual dos povos negros”8.
Considera-se em geral que essa ênfase numa colaboração de vanguarda em direção
a uma articulação unificada dos “povos africanos” no nível da política internacional foi
influenciada por diversas correntes populares; a mais importante dessas correntes incluía
as diversas ideologias sobre o “retorno”, que foram um componente frequente da
experiência africana no Novo Mundo. De fato, Du Bois chegaria mesmo a afirmar que as
motivações do pan-africanismo são paradigmaticamente afro-americanas. Se as
populações negras do Novo Mundo tiveram sua origem na fragmentação, na opressão
racializada e na desapropriação sistemáticas do comércio escravagista, então o impulso
pan-africanista origina-se da necessidade de confrontar ou curar esse legado por meio de
uma organização ela mesma racial: por meio de ideologias de um retorno real ou
simbólico à África. Mesmo no fim da vida, quando ficou mais diretamente envolvido –
particularmente em Gana – no que foi denominado “pan-africanismo continental”, Du
Bois fixou-se nessa orientação para o Novo Mundo. Em The World and Africa, ele
escreveu:

A ideia de uma África para unir pensamentos e ideais de todos os povos nativos do
continente negro pertence ao século XX e deriva naturalmente do Caribe e dos
Estados Unidos. Aqui, vários grupos de africanos, bem separados em suas origens,
ficaram tão unidos na experiência e tão expostos ao impacto de novas culturas que
começam a pensar na África como uma ideia e uma terra 9.

Na década de 1950, estudiosos começavam a considerar esse impulso


paradigmaticamente vinculado ao Novo Mundo, que St. Claire Drake resumiu de forma
memorável na expressão “interesse pela África” (“Africa interest”), como uma força
ampla na formação da identidade afro-americana10. Por vezes, o “interesse pela África”
se inflectia como um retorno ao próprio continente africano, como nos movimentos de
colonização e missionários do século XIX, por exemplo. Mas, numa visão mais

8
W. E. B. Dubois, “Pan-Africa and the New Racial Philosophy”, Crisis 40 (novembro, 1933): 247.
9
Du Bois, The World and Africa: An Inquiriy into the Part Which Africa Has Played in World History
(1946; ed. ampliada, New York: International Publishers, 1965), 7. Para outra versão deste argumento, ver
J. A. Langley, “New-World Origins of Pan-Negro Sentiment”, em Pan-Africanism and Nationalism in West
Africa, 1900-1945: A Study in Ideology and Social Classes (Oxford: Oxford University Press, 1973), 17-
40.
10
St. Clair Drake, “Negro Americans and the Africa Interest”, em The American Negro Reference Book,
ed. John P. Davis (Englewood Cliffs, NJ: Prentice Hall, 1966), 662-705.

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abrangente, os estudos sobre a história do “interesse pela África” foram uma maneira de
dar conta de uma necessidade consistente de um “retorno” ideológico à questão da África,
como um símbolo da questão das origens – um retorno para o que Edouard Glissant
chamou de “ponto de emaranhamento” (intrication). A problemática do “retorno”, nesse
sentido, animou de forma consistente ideologias negras tão diversas quanto o garveísmo,
a Negritude e numerosos discursos negros de “etiopianismo” no Novo Mundo; também
animou uma grande quantidade de pioneiros da história e da sociologia afro-americanas
nas primeiras décadas do século XX (como Du Bois, Carter G. Woodson, Arturo
Schomburg, entre outros)11. No período entre guerras, essas raízes se estenderam à
emergente disciplina da antropologia, especialmente pela influência de estudiosos como
Jean-Price Mars e Melville Herskovits no trabalhos sobre “sobreviventes africanos” nas
culturas negras do Mundo Novo12. Essas questões de retenção cultural foram igualmente
dominantes no trabalho histórico e arquivístico que se seguiu ao Congresso Pan-Africano
de Manchester de 1945; nos trabalhos de estudiosos como St. Clair Drake, George
Shepperson, Rayford Logan, Harold Isaacs, James Ivy, Dorothy Porter, Adelaide
Cormwell Hill e E. U. Essien-Udom13.

11
Edouard Glissant, Caribbean Discourse, trad. J. Michael Dash (Charlottesville: CARAF
Books/University Press of Virginia, 1989), 26. O original é Le Discours Antillais (Paris: Seuil, 1981), 36.
Argumentos desse período de que uma problemática do “retorno” molda tanto a Negritude quanto o
etiopianismo aparecem em St. Clair Drake, “Hide My Face? – On Pan-Adricanism and Negritude”, em
Soon, One Morning: New Writing by American Negroes, 1940-1962, ed. Herbert Hill (New York: Alfred
A. Knopf, 1966), 77-105; e George Shepperson, “Ethiopianism and African Nationalism”, Phylon 14
(primeiro trimestre de 1953): 9-18. Drake comenta de modo mais geral sobre “‘The Return’ As a Pan-
African Theme” em seu “Diaspora Studies and Pan-Africanism”, em Global Dimensions of the African
Diaspora, ed. Joseph Harris (Washington: Howard University Press, 1982), 359-66.
12
Uma excelente introdução é David Scott, “That Event, This Memory: Notes on the Anthropology of
African Diasporas in the New World”, Diaspora 1 (inverno, 1991): 261-84.
13
Eis uma pequena amostra da abundância de trabalhos sobre o “interesse pela África” nesse período,
dedicados particularmente aos projetos de retorno de negros do Novo Mundo e às influências ideológicas
afro-americanas sobre a África: Harold R. Isaacs, “The American Negro and Africa: Some Notes”, Phylon
20 (outono, 1959): 219-33; George Shepperson, “Notes on Negro American Influences on the Emergence
of African Nationalism”, Journal of African History 1, n. 2 (1960): 299-312; E. U. Essien-Udom, “The
Relationship of Afro-Americans to African Nationalism”, Freedomways 2 (outono, 1962): 391-407;
Richard B. Moore, “Africa Conscious Harlem”, Freedomways 3 (verão, 1963): 315-34; Adelaide Cromwell
e Martin Kilson, Apropos of Africa: Sentiments of Negro American Leaders on Africa from the 1800s to
the 1950s (Londres: Frank Cass, 1969); Essien-Udom, “Black Identity in the International Context”, em
Key Issues in the Afro-American Experience, v. 2: Since 1865, ed. Nathan Huggins, Martin Kilson e Daniel
Fox (New York: Harcourt Brance Jovanovich, 1971), 233-58; Shepperson, “The Afro-American
Contribution to African Studies”, Journal of American Studies 8 (dezembro, 1974): 281-301. Ver também
Sterling Stuckey, “Black Americans and African Consciousness: Du Bois, Woodson, and the Spell of
Africa”, in Going through the Storm: The Influence of African American Art in History (New York: Oxford
University Press, 1994), 120-37.

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Retornarei abaixo às articulações francófonas de diáspora, mas quero mencionar


aqui o papel específico da revista Présence africaine, frequentemente citada como um
solo fértil para o trabalho diaspórico. Por outro lado, é preciso lembrar que, em seu início,
a Présence africaine não foi concebida primordialmente como um projeto diaspórico,
voltada que estava para questões de conexão e colaboração entre povos de ascendência
africana. Foi concebida mais expressamente como uma incursão africana na
modernidade. Na carta de princípios, ao falar sobre a missão da Présence africaine,
Alioune Diop escreve:

Estendendo-se para além dos confins da colonização francesa, [Présence africaine]


pretende levantar e estudar o problema geral das relações da Europa com o resto do
mundo, tomando a África como exemplo, especialmente uma vez que sua
humanidade negra se vê como a mais deserdada. [...]
O homem negro [Le noir], notável por sua ausência na construção da cidade
moderna, poderá exprimir sua presença pouco a pouco, ao contribuir com a recriação
de um humanismo que reflita a real medida do homem.[...]
Quanto a nós, africanos, esperamos resultados concretos dessas atividades culturais.
Ao nos permitir fundirmo-nos à sociedade moderna e identificarmo-nos claramente
nessa sociedade, Présence africaine, enquanto nos revela ao mundo, vai, mais do
que tudo, nos persuadir a ter fé em ideias14.

Não surpreende que a revista tenha sido concebida na metrópole europeia por um
grupo de estudantes “vindos de ultramar” (étudiants d’outre mer – mais precisamente,
estudantes vindos das colônias francesas de ultramar ou France d’outre mer), que
sentiram, depois das devastações da guerra, que constituíam “uma nova raça,
mentalmente mestiça” [mentalement métissée] e que começaram a reconsiderar sua
posição nos discursos europeus de humanismo “universal”15. A Présence africaine, como
o título diz, inscreve uma presença africana na modernidade e inaugura a “re-criação” do
projeto humanista através dessa intervenção16. Os objetivos de tal projeto são
notavelmente diferentes dos anunciados por revistas francófonas do período entre guerras

14
Alioune Diop, “Niam N’Goura, or Présence africaine’s raison d’être”, trad. Richard Wright e Thomas
Diop, Présence africaine 1 (outubro-novembro, 1947): 190-91. O original francês aparece no mesmo
número, 7-14.
15
Ibid., 186.
16
Bernard Mouralis, “Présence Africaine: The Geography of an ‘Ideology’”, em The Surreptitious Speech:
Présence Africaine and the Politics of Otherness, 1947-1987, ed. V. Y. Mudimbe (Chicago: University of
Chicago Press, 1992), 6. Ver também o relato de Jacques Howlett, o filósofo francês que trabalhou
intimamente com Diop na revista: “Présence Africaine, 1947-1958”, trad. Mercer Cook, Journal of Negro
History 43 (abril, 1958): 140-50.

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em Paris, como La Dépêche africaine, que se esforçou explicitamente por promover a


“correspondência” entre negros ao redor do mundo, ou La Revue du monde noir, que
pretendia “criar entre os negros [les Noirs] do mundo todo, independentemente de sua
nacionalidade, um vínculo intelectual e moral, que lhes permitirá conhecer melhor uns
aos outros [,] amar uns aos outros, defender mais efetivamente seus interesses e exaltar
sua raça”17. Por outro lado, mesmo diante dos objetivos claros da Présence africaine, não
se pode esquecer que a tradução do “Niam N’Goura” de Diop citada acima foi feita por
Thomas Diop e Richard Wright, o escritor afro-americano, enquanto morava em Paris.
Mesmo que a Présence africaine não tivesse inicialmente o objetivo de teorizar o
internacionalismo negro, ela representou o internacionalismo negro na prática,
particularmente por suas traduções18 e por congressos internacionais de artistas e
intelectuais negros que ela organizou, em Paris em 1956 e em Roma em 1959. Além disso,
especialmente em sua “nova série” após 1955, a Présence africaine adotou explicitamente
uma posição anticolonialista e afirmou que “nossas aspirações nacionais comuns”
ofereciam os fundamentos para a “solidariedade dos povos colonizados”19. No contexto
das lutas por independência na África, a revista se mostraria receptiva ao trabalho sobre
diáspora tal como surgiu nos anos 196020.

Rumo a uma genealogia do conceito de diáspora africana

17
La Dépêche africaine, sob a direção do guadalupense Maurice Satineau, começou a ser publicada em
fevereiro de 1928. O cabeçalho do jornal o apresentava como um “grand organe républicain indépendant
de correspondence entre les Noirs et d’Etudes des Questions Politiques et Economiques Coloniales”. A
citação provém de um editorial de Paulette Nardal e Léo Sajous, “Our Aim” [Ce que nous voulons faire],
trad. Nardal e Clara W. Shepard, La Revue du monde noir / Review of the Black World 1 (1931).
18
O primeiro número trazia o “Bright and Morning Star” de Wright, traduzido por Boris Vian, e o poema
de Gwendolyn Brook “The Ballad of Pearl May Lee”. Wright, trabalhando com o conselho editorial da
revista até 1950, também foi responsável por Présence africaine publicar Frank Marshall Davis, Samuel
Allen, Horace Clayton e C. L. R. James. Tal como La Revue du monde noir no início dos anos 1930,
Présence africaine também publicava uma versão em inglês.
19
“Foreword”, Présence africaine, nova série, ns. 1-2 (abril-julho, 1955): 8.
20
Em certo sentido, os congressos internacionais marcam uma convergência entre as formações intelectuais
em torno do “interesse pela África” nos Estados Unidos e a “presença africana” na França, culminando em
publicações como Africa Seen by American Negro Scholars, o volume publicado em 1958, um esforço
conjunto da Société africaine de culture de Diop e sua homóloga norte-americana, a American Society of
African Culture, chefiada por John A. Davis. Ver também American Society of African Culture, Pan-
Africanism Reconsidered (Berkeley: University of California Press, 1962).

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A guinada rumo a diáspora no início dos anos 1960 representa, num grau nada
modesto, uma ruptura com a orientação do “interesse pela África”, ruptura que, como
mostrado por Penny Von Eschen, estava fortemente moldada pelas exigências da Guerra
Fria. Mesmo quando em colaboração com a produção francófona, muito do trabalho
proveniente dos Estados Unidos durante esse período estava condicionado por um
inflexível excepcionalismo americano21. É claro que os elementos figurativos dessa
guinada não eram de forma alguma novos: culturas escravas sincréticas afro-americanas
tinham encontrado ressonância nos relatos do Êxodo no Antigo Testamento, e referências
ao “espalhamento” dos africanos pelo Novo Mundo eram comuns, pelo menos desde o
trabalho de Blyden no século XIX. Mas a cristalização dessas alusões figurativas num
discurso teórico sobre diáspora, explicitamente em diálogo com as persistentes tradições
judaicas por trás do termo, corresponde a uma série de necessidades historiográficas
particulares no final dos anos 1950 e início dos 1960, especialmente nos trabalhos dos
historiadores George Shapperson e Joseph Harris.
Embora frequentemente negligenciada, a necessidade dessa guinada conceitual se
desenvolve primeiramente num trabalho feito no crescente campo da história africana e
especificamente sobre a questão da resistência africana ao colonialismo. O livro
Independent African (1958), de George Pearson e Thomas Price, é um famoso estudo
sobre as revoltas que aconteceram na África Britânica Central em 1915, comumente
consideradas como o primeiro de uma extensa série de movimentos de resistência africana
no período moderno e que conduziram, em explosões intermitentes, às lutas pela
independência nos anos 1950 e 196022. Shepperson e Price, no esforço de explicar a
trajetória de John Chilembwe, pastor religioso africano que conduziu a insurreição de sua
missão nos planaltos de Shire, no que então se chamava Niassalândia, passaram um tempo
considerável investigando sua viagem aos Estados Unidos em 1897, onde Chilembwe se

21
Von Eschen argumenta mais particularmente que o “interesse pela África” nem sempre se articulava com
as reivindicações de descolonização e independência. Havia um silêncio eloquente em torno da abundância
de trabalhos radicais que buscavam especificamente essa internacionalização no período (com destaque
para os trabalhos de George Padmore, Kwame Nkrumah, Paul Robeson, Alphaeus Hunton e o Council on
African Affairs). Penny Von Eschen, Race against Empire: Black Americans and Anticolonialism, 1937-
1957 (Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997), 176.
22
George Shepperson e Thomas Price, Independent African: John Chilembwe and the Origins, Setting and
Significance of the Nyasaland Native Rising of 1915 (Edinburgh: Edinburgh University Press,
1958)(doravante citado como IA). Para comentários sobre Independent African, ver particularmente Cedric
Robinson, “Notes on a ‘Native’ Theory of History”, Review 4 (verão, 1980): 45-78.

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tornou membro da Conveção Nacional Batista Negra (IA, 112), estudou no Seminário
Teológico da Virgínia e ingressou no ministério. Os autores se empenham em dar conta
da influência desse contexto de Novo Mundo, diante do grande fluxo de trabalhos
intelectuais e culturais negros que surgiam na virada do século nos Estado Unidos, em
particular: a luta contra o imperialismo estadunidense no Caribe e nas Filipinas, que em
parte foi expresso no movimento Niágara em 1905 (IA, 103); as histórias culturais do
“background africano” que emergeriam do trabalho de Du Bois e Woodson; as histórias
da insurreição negra nos Estados Unidos e no Caribe (IA, 106-7); e o predomínio, no
século XIX, de diversas ideologias do “retorno” e de projetos “de volta para a África”
como os da American Colonization Society. Para Shepperson e Price, a explicação para
o desenvolvimento intelectual de Chilembwe nesse meio social requer uma compreensão
da influência transnacional negra que teria que divergir agudamente das considerações
despolitizadas e vanguardistas do “interesse pela África”.
Num ensaio muito citado, publicado em Phylon em 196223, Shepperson ampliou
esse trabalho teoricamente ao reconsiderar os usos e as limitações do termo pan-africano.
Numa tentativa de limpar um terreno que se tornara cada vez mais deformado por
referências indiscriminadas ao pan-africanismo no tocante a qualquer consideração de
organização racial ou internacionalismo negro, Shepperson separou o termo em seus
sentidos “próprio” e “comum”: “Pan-africanismo” (com P maiúsculo) indica a história do
movimento transnacional em si mesmo, dos parâmetros limitados do Congresso Pan-
africano de 1900 em diante. Mas outra derivação do termo era necessária: “Por outro lado,
o pan-africanismo, com inicial minúscula, não é um movimento claramente reconhecível,
com um núcleo único como o nonagenário Du Bois. [...] É bem mais um grupo de
movimentos, muitos deles efêmeros” (P, 346). Para Shepperson, o “elemento cultural
frequentemente predomina” nesse agrupamento diversificado de movimentos “pan-
africanos”, mas essas formações não estão de modo algum limitadas a esse foco (não se
trata de uma separação entre as versões “política” e “cultural” do pan-africanismo, como
uma leitura equivocada às vezes faz crer). Shepperson considera que o termo com “p”
minúsculo pode representar tanto evocações estéticas quanto instituições políticas como
as organizações religiosas, conferências e associações acadêmicas, grupos de lobby e

23
George Shepperson, “Pan-Africanism and ‘pan-Africanism’: Some Historical Notes”, Phylon 23
(inverno, 1962): 346-58 (doravante citado como P).

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vários grupos de pressão radicais. Finalmente, Shepperson argumenta que a diversidade


ideológica que existe sob essa ampla rubrica, que inclui Pan-africanismo e pan-
africanismo, demonstra que a própria África emerge apenas historicamente como um
conceito, sobretudo por evocações externas da “unidade continental” e pelas convocações
ao retorno (P, 349).
Destacarei dois componentes dessa revisão ou separação do Pan-africanismo. Por
um lado, Shepperson faz uma releitura do termo precisamente para dar espaço à diferença
ideológica e à disjunção ao considerar políticas culturais negras numa esfera
internacional. Ele invoca, especificamente, a necessidade de considerar os modos como
os internacionalismos negros se refletiram através do Caribe, por exemplo, especialmente
pelas contribuições desproporcionais dos migrantes caribenhos às ideologias de
libertação nos Estados Unidos no início do século24. Na visão de Shepperson, é imperativo
explicar essas transformações que o pensamento pan-africano sofre num circuito
transnacional. Um exemplo fundamental é o trabalho de Marcus Garvey, que é
geralmente descrito como um “pan-negroísta” após a Primeira Guerra Mundial, mesmo
que as iniciativas do Congresso Pan-Africano de Du Bois se articulassem diretamente
contrárias à versão populista e racialista da “volta à África” de Garvey. Mais tarde, porém,
aponta Shepperson, Garvey foi incluído na tradição pan-africana, especialmente por
intelectuais africanos que dominaram o movimento depois do Congresso Pan-Africano
de 1945 em Manchester, como Kwame Nkrumah, que citou expressamente Philosophy
and Opinions de Garvey como uma das principais influências no desenvolvimento da
consciência continental africana de raça e das ideologias de independência (P, 347-48).
Ao mesmo tempo, Shepperson afirma que muitas dessas descontinuidades do “pan-
africanismo” e do “Pan-africanismo” se originam não apenas em divergências
ideológicas, mas também na diferença linguística que, necessariamente, tem
consequências cruciais em quaisquer considerações do internacionalismo negro. Ele
observa o papel da Liga Africana na Federação das Associações Africanas Portuguesas
no Congresso Pan-africano em Lisboa em 1923 (P, 355), mas considera que a arena mais
importante de diferenças linguísticas surgia em francês, particularmente devido à

24
Ibid., 356. Temos agora uma história definitiva desta dinâmica, o extraordinário livro de Winston James,
Holding Aloft the Banner of Ethiopia: Caribbean Radicalism in Early-Twentieth-Century America
(Londres: Verso, 1998).

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participação francesa no primeiro e no segundo Congressos Pan-africanos e também pela


influência da Negritude após a Segunda Guerra Mundial:

Acima de tudo, a história da participação de africanos falantes de francês no Pan-


africanismo e no pan-africanismo ainda precisa ser contada. Blaise Diagne, deputado
do Senegal, e Gratien Candace, deputado de Guadalupe, desempenharam papéis
importantes nas Conferências Pan-africanas de 1919 e 1921. Mas seu afastamento
final com respeito às forças de Du Bois seria percebido ao se auto-referirem como
“nós, franceses”, enquanto a delegação de língua inglesa se autodesignava “nós,
negros”. Em 1921, a diferença entre os dois grupos ficou clara quando Du Bois sentiu
que precisava se opor à avalanche de declarações anti-Garvey vindas de Diagne e
Candace e tomou uma atitude incomum de dizer em público que concordava com os
mais importantes princípios jamaicanos (P, 355-56).

O fato é que Shepperson está tentando forçar um movimento em direção a uma


noção revisada ou expandida do trabalho internacional negro que poderia explicar de
modo claro a dinâmica da diferença, ao invés de assumir uma definição universal
aplicável de “Pan-africano” ou pressupor uma versão excepcionalista da atividade “Pan-
africana” no Novo Mundo. Ele chega ao ponto de sugerir o termo “all-African” como um
“termo coletivo” (P, 346), para esse contexto mais amplo e mais variado do
internacionalismo negro. Shepperson encerra seu ensaio convocando a considerar o “All-
Africanism em seu contexto internacional: se for necessário estudar o Pan-africanismo e
o pan-africanismo num contexto africano mais amplo do que o contexto da África
Ocidental, é de igual importância contemplar sua plena perspectiva internacional, tanto
no tempo quanto no espaço” (P, 358)
Em outubro de 1965, Shepperson formalizou essa intervenção com um estudo
chamado “The African Abroad or The African Diaspora” (“O africano no exterior ou a
diáspora africana”), apresentado num painel organizado por Joseph Harris no Congresso
Internacional de Historiadores Africanos no University College, em Dar es Salaam25. A

25
Shepperson, “The African Abroad or the African Diaspora”, em Emerging Themes of African History,
ed. T. O. Ranger (Nairobi: East African Publishing House, 1968), 152-76 (doravante citado como D). É
fundamental mencionar que este ensaio foi publicado primeiramente em Africa Forum, a revista da
American Society of African Culture (ver nota 11 acima); nesta arena, ele marca uma intervenção explícita
nos pressupostos do “interesse pela África”. A citação (observe-se a inversão do título: o ensaio é idêntico,
mas seu título enfatiza o conceito de “diáspora” mais que o de história africana) vem de Shepperson, “The
African Diaspora — or the African Abroad”, Africa Forum: A Quarterly Journal of African Affairs 1, n. 2
(verão, 1966): 76-93. Para os comentários de Joseph Harris sobre a conferência de Dar es Salaam e sobre
a introdução do conceito de “diáspora”, ver Joseph E. Harris, “Introduction to the African Diaspora”, em
Emerging Themes, 146-51; e Harris, “The International Congress on African History, 1965”, Africa Forum
1, n. 3 (inverno, 1966): 80-84.

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esse texto se credita a responsabilidade pela introdução da noção de “diáspora” no estudo


da cultura, história e política negras. Shepperson começa invocando explicitamente a “A
Dispersão ou Diáspora Judaica” com uma citação do capítulo 28 do Deuteronômio (“E
eles serão dispersos por todos os reinos da terra”). Em seguida, estende a analogia:

Embora não se possa dizer que as pessoas de pele escura da África, os chamados
negros, tenham sido dispersados por todos os reinos da terra, elas certamente
migraram para um grande número destes. E as forças que as levaram para o exterior,
a escravidão e o imperialismo, foram semelhantes àquelas que espalharam os judeus.
Portanto, é fácil entender por que a expressão “diáspora africana” tem obtido
aceitação como uma descrição do grande movimento que, de acordo com uma
estimativa de 1946, foi responsável por criar mais de 41 milhões de descendentes de
africanos no hemisfério ocidental. (D, 152)

O ensaio é uma elaboração um tanto esquemática dos usos de “diáspora”, numa


revisão da historiografia africana; ele avança fazendo uma lista, enumerando os objetos
de estudo que podem cair sob o rótulo de “o africano no exterior” (the African Abroad).
De novo, Shepperson usa o termo precisamente para ultrapassar os limites que “Pan-
africanismo” impõe ao escopo de análise: os estudos da “diáspora” chamariam não apenas
a atenção para a “ideia e prática da unidade africana” (isto é, o “Pan-africanismo” e o
“pan-africanismo”) (D, 168-69), mas também para um entendimento da escravidão
influenciado em particular pelo trabalho de W. E. B. Du Bois e C. L. R. James, os quais
consideram o tráfico de escravos como central para qualquer entendimento da
modernidade ocidental ou “história universal” (D, 161); uma investigação dos efeitos do
tráfico de escravos e o subsequente imperialismo na África mesma, e os padrões de
dispersão interna no continente (D, 162, 170); uma análise dos “sobreviventes africanos”
nas culturas negras do Novo Mundo (D, 162-66); e uma consideração da influência dos
afro-americanos na emergência do nacionalismo africano (D, 166).
No uso feito por Shepperson, o termo é, em outras palavras, bastante flexível: ele
sugere que o conceito de diáspora “pode ser consideravelmente estendido no tempo e no
espaço”, e parte do uso do conceito está precisamente nessas extensões (D, 152). A
“diáspora africana” aqui adere a muitos elementos considerados comuns às três diásporas
“clássicas” (a dos judeus, a dos gregos e dos armênios): em particular, uma origem no
espalhamento e no desenraizamento de comunidades, uma história “de partidas forçadas
e traumáticas”, assim como um sentimento de relação, real ou imaginária, com a “terra

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natal”, mediado por dinâmicas de memória coletiva e pela política do “retorno”26. Como
um quadro para a produção do conhecimento, a “diáspora africana”, da mesma forma,
inaugura uma análise radicalmente descentralizada e ambiciosa de circuitos
transnacionais de cultura e política que resistem aos padrões de nações e continentes ou
os extrapolam.
A guinada rumo à diáspora surge, não em termos de culturas negras no Novo
Mundo, mas no contexto de revisar o que Shepperson chama de tendências
“isolacionistas” (D, 173) e restritivas na historiografia africana – daí o aposto enunciado
pelo título do ensaio (“O africano no exterior ou a diáspora africana”). Além disso, a
“diáspora africana” é formulada expressamente no intuito de dar conta das diversas e
interinfluenciadas tradições negras de resistência e anticolonialismo. Num plano teórico,
essa intervenção se concentra especialmente nas relações de diferença e disjunção nas
variadas interações dos discursos do internacionalismo negro, tanto em termos
ideológicos quanto em termos das próprias diferenças linguísticas27.
Não se trata de sugerir que Shepperson tenha sido definitivamente o primeiro
intelectual a usar a expressão “diáspora africana”. Shepperson insiste em que o uso da
expressão estava “claramente estabelecido” no vocabulário acadêmico antes da
Conferência de Dar es Salaam de 196528. Em seu ensaio de 1982, “African Diaspora:
Concept and Context” (“Diáspora africana: conceito e contexto”), ele esboça a trajetória
do termo:

Em algum momento entre meados dos anos 1950 e meados dos 1960, período no
qual muitos Estados africanos estavam rompendo com os impérios europeus e
alcançando a independência, a expressão “diáspora africana” começou a ser usada
com mais frequência por escritores e pensadores que estavam preocupados com o
status e as perspectivas das pessoas de ascendência africana tanto mundo afora

26
Ver Tölölyan, “Rethinking Diaspora(s)”, 12-15.
27
Nos artigos sobre “diáspora”, tanto Shepperson quanto Harris chamam novamente a atenção para a
influência francesa sobre discursos de pan-africanismo e internacionalismo negro. Ver Shepperson, “The
African Abroad”, 167; Harris, “Introduction”, 149-50. Entre os primeiros trabalhos a responder a essa
chamada de atenção estão Immanuel Geiss, 1968, The Pan-African Movement: A History of Pan-Africanism
in America, Europe, and Africa, trad. Ann Keep (New York: Holmes and Meier, 1974), especialmente o
capítulo intitulado “Nationalist Groups in France: The Roots of Négritude”, 305-21; e J. A. Langley, “The
Movement and Thought of Francophone Pan-Negroism: 1924-1936”, que foi publicado originalmente
numa versão mais curta no Journal of Modern African Studies em 1969 e saiu mais tarde como o capítulo
7 de seu livro Pan-Africanism and Nationalism in West Africa, 1900-1945, 286-325.
28
Shepperson, “Introduction”, em The African Diaspora: Interpretive Essays, ed. Martin L. Kilson e Robert
I. Rotberg (Cambridge: Harvard University Press, 1976), 2. No entanto, ainda não encontrei um exemplo
impresso anterior.

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quanto em sua terra natal. Não sei quem foi o primeiro a usar a expressão, e me
agradaria muito que alguém tentasse a difícil tarefa de rastrear o emprego da palavra
grega para dispersão — palavra que, até o momento em que foi adicionado o adjetivo
africana ou negra, era usada amplamente para referir-se à dispersão dos judeus29.

Não estou preocupado aqui em desenterrar o “originador” ou o primeiro uso do que


Shepperson chama de “conceito de diáspora africana”. As etimologias são em parte
sedutoras por causa da astúcia da origem — a suposição de que alguém pode descobrir as
raízes do uso e da transformação da língua. Elas são mais instrutivas, porém, na maneira
como provêm uma sedimentação da construção social do significado linguístico ao longo
do tempo: algo não diferente da noção de “keyword” (“palavra-chave”) de Raymond
William, a qual Michael McKeon descreveu com felicidade como uma “estrutura
antitética que expressa uma contradição histórica”30. Ao invés do uso original, a questão
é por que se fez necessário, numa determinada conjuntura histórica, empregar o termo
diáspora nos trabalhos intelectuais negros. O próprio Shepperson começa a apontar para
uma resposta ao conjecturar por que o intelectual negro do século XIX Edward Wilmot
Blyden nunca usou o termo:

Considerando o conhecimento de hebraico de Blyden, seu interesse pela história


judaica e simpatia pelas aspirações sionistas, é surpreendente que ele não empregue
a expressão “diáspora africana”.
Se, no entanto, Blyden tivesse popularizado a expressão “diáspora africana” no
século XIX e ela tivesse conseguido apoio em meio aos primeiros intelectuais
nacionalistas africanos, o termo teria adquirido conotações políticas que o teriam
tornado inútil para estudiosos de hoje, que consideram conveniente empregá-lo em
seus estudos sobre o tema, desprezado por tão longo tempo, do africano no exterior.
Sem conotações políticas, o termo serve de foco satisfatório, embora às vezes
flutuante, para os vários aspectos dos africanos fora da África31.

A questão não é que diáspora seja apolítico, mas que não tenha nenhuma das
“conotações” que fazem de um termo como Pan-africanismo um terreno já disputado.
Nesse sentido, a opção por diáspora como um termo de análise permite explicações para
as formações transnacionais negras que levam em conta suas diferenças constitutivas, os
desafios políticos da organização do “africano no exterior”. O risco aceito é que o foco

29
Shepperson, “African Diaspora: Concept and Context”, em Harris, Global Dimensions of the African
Diaspora, 46.
30
Michael McKeon, resenha de Keywords, Studies in Romanticism 16 (inverno, 1977): 133.
31
Shepperson, “Introduction”, 3.

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analítico do termo é “flutuante”. Tal como Pan-africano, o termo está aberto à


apropriação ideológica numa ampla variedade de projetos políticos, desde o ativismo
anticolonialista até o que se tem chamado de “sionismo negro” — articulações de
diáspora que fazem o termo cair em versões de nacionalismo ou de essencialismo racial.
Infelizmente, alguns dos mais célebres trabalhos sobre diáspora nos últimos trinta anos
têm servido para desfazer a complexa história da emergência do termo. É impossível
assumir o “conceito africano de diáspora” sem reconhecer a dívida para com o trabalho
do historiador St. Claire Drake, que talvez seja o único intelectual com o mais duradouro
e impressionante compromisso em sua elaboração. Ainda assim, é difícil endossar as
conclusões teóricas de Drake em “Diaspora Studies and Pan-Africanism”, um ensaio de
1982 que oferece um panorama historicamente rico mas teoricamente equivocado do
desenvolvimento dos “estudos de diáspora”32. Sem concordar plenamente com o
argumento de Shepperson sobre a grande diversidade dos movimentos Pan-africanista e
pan-africanista, Drake simplesmente periodiza uma separação entre o que ele denomina
“atividade Pan-africana tradicional” (que encapsula ambos os sentidos dados por
Shepperson ao termo)33 e um subsequente “Pan-africanismo continental”, que desenvolve
um discurso de unidade política na África nas lutas pela independência após a Segunda
Guerra Mundial34. Em seguida, descarta o sentido preciso de diáspora como intervenção
no trabalho de Shepperson, ao classificar “os estudos da diáspora como um aspecto da
atividade Pan-africana tradicional”. Isso terminou desnecessariamente confundindo os
dois termos:

Um conceito do mundo negro é necessário ao se definir a atividade Pan-africana. Ele


incluiria todas aquelas áreas onde a população é realmente negra, em um sentido
fenotípico, isto é, negroide, ou onde as pessoas se consideram negras apesar de uma
notável miscigenação, ou onde elas também são definidas dessa forma pelos outros.

32
St. Clair Drake, “Diaspora Studies and Pan-Africanism”, em Harris, Global Dimensions of the African
Diaspora, 358, 373. Mas ver também Drake, “The Black Diaspora in Pan-African Perspective”, Black
Studies 7, n. 1 (setembro, 1975), que é mais experimental em suas afirmações: “A analogia da diáspora”,
escreve ele, “como a analogia da colônia interna, precisa de uma constante análise crítica se quiser ser um
guia útil de pesquisa assim como uma metáfora relevante” (2). Outros trabalhos também têm se distanciado
do sentido de diáspora como um tipo particular de intervenção: alguns articularam o termo em torno de
questões de política externa, enquanto outros continuaram a se preocupar com a questão da “unidade”
histórica e cultural da diáspora, numa linha que poderia ser mais adequadamente chamada de pan-
africanista (por exemplo, Ruth Simms Hamilton, “Conceptualizing the African Diaspora”, em African
Presence in the Americas, ed. Carlos Moore et al. [Trenton, NJ: Africa World Press, 1995], 393-410).
33
Drake, “Diaspora Studies and Pan-Africanism”, 353.
34
Ibid., 358-59.

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Há quase um século um movimento consciente e deliberado tem se desenvolvido


dentro de várias partes do mundo negro no intuito de aumentar o contato cultural
entre seus diversos segmentos e unificá-los na busca de seus interesses comuns.
Refiro-me a isso como uma atividade Pan-africana tradicional. Para que os estudos
da diáspora sejam considerados como um aspecto dessa atividade, um aspecto que
opera em seu setor cultural, eles devem contribuir para a manutenção e o
fortalecimento da consciência negra e se orientar para o objetivo de encorajar o
entendimento, a solidariedade e a cooperação por todo o mundo negro (ênfase de
Drake)35.

Mesmo que deixemos de lado o lamentável recurso de Drake a um entendimento


genético (“fenotípico”) da identidade negra, deve estar claro que seu argumento em favor
dos “parâmetros dos estudos da diáspora Africana” diverge da intervenção de Shepperson
de modo significativo. Aqui, “diáspora” assinala uma simples continuidade com o “Pan-
africanismo” — na verdade, uma redução a seu “setor cultural”, ao invés de um meio
preciso de teorizar a cultura e a política no nível transnacional. Enquanto Shepperson usa
“diáspora” para romper com uma ênfase despolitizadora na “unidade” e no retorno
unidirecional nos estudos negros internacionalistas da metade do século, Drake reintroduz
aqui a preocupação Pan-africana com “contatos culturais” vagamente definidos, com
projetos de “encorajar o entendimento, a solidariedade e a cooperação por todo o mundo
negro”. Isso resulta numa supressão com graves consequências para a política de diáspora
como um termo de análise: em particular, abandona-se a percepção de que diáspora se
torna necessário em parte devido à crescente disputa sobre o escopo político de Pan-
africanismo no momento da independência36.
Joseph Harris e Locksley Edmondson ofereceram uma historiografia mais
convincente do termo. Sugerem que periodizemos a diáspora africana para distinguir
entre uma história inicial de migração e a “diáspora involuntária” (tanto dentro da África

35
Ibid., 343.
36
Em outras palavras, parte do motivo para a guinada rumo a um discurso de diáspora nos anos 1960 e
1970 é precisamente a crescente divisão, no período da independência, entre visões “continentais” e
“tradicionais” do pan-africanismo (para usar os termos de Drake). Embora alguns projetos explicitamente
“culturais” continuassem a florescer (por exemplo, o Primeiro Festival de Artes Negras em Dacar, no
Senegal, em 1966), o movimento pan-africano atingiu um impasse no sexto congresso de Dar es Salaam
em 1974, quando delegados das Américas e delegados do próprio continente africano debateram sobre se
o movimento deveria se concentrar nas preocupações do continente ou nas conexões internacionais entre
povos de ascendência africana. Drake anota essas dificuldades (357-59) sem reconsiderar, porém, a fusão
que faz de diáspora com Pan-africanismo. Ver também os artigos sobre o congresso de 1974 editados por
Horace Campbell, Pan-Africanism: Struggle against Neo-Colonialism and Imperialism (Toronto: Afro-
Carib Publications, 1975); e Joseph Harris e Slimane Zeghidour, “Africa and Its Diaspora since 1935”, em
General History of Africa, v. 3: Africa since 1935, ed. Ali A. Mazrui (Berkeley: UNESCO/Heinemann,
1993), 716-17.

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quanto por meio dos tráficos de escravos praticados por árabes e por europeus) e a
subsequente formação transnacional de uma “diáspora mobilizada”, um fenômeno
particular ao século XX. Harris define o segundo termo observando que, no início dos
1990,

as principais cidades das potências ocidentais [...] se tornaram lugares para a reunião
de diversos grupos étnicos e políticos de origem africana, facilitando o
desenvolvimento de uma rede internacional que liga a África à sua diáspora; essa
rede pode ser chamada de diáspora mobilizada [...].
[...] até os anos 1960, a maioria dos africanos na África conservavam uma lealdade
étnica primária, enquanto seus descendentes no exterior constituíam uma diáspora
“sem Estado”, sem um país de origem comum, sem uma língua, religião ou cultura
comuns. A força da conexão entre os africanos e a diáspora africana continuou a ser
essencialmente suas origens comuns na África como um todo e uma condição social
comum (marginalização social, econômica e política) mundo afora.
Foi essa combinação que preparou o caminho para o desenvolvimento de uma rede
internacional efetiva da parte da diáspora africana mobilizada, a saber, descendentes
de africanos com uma consciência da identidade de suas raízes, de suas habilidades
ocupacionais e de comunicação, status social e econômico, e acesso a entidades de
tomada de decisão em seu país anfitrião 37.

Minha intenção ao ressuscitar a história do próprio termo, no entanto, tem a ver


com o fato de que um discurso da diáspora se torna necessário no mesmo período em que
a “diáspora mobilizada” toma forma — de fato, a opção por “diáspora” faz parte
precisamente daquilo que permite que essa mobilização ocorra.
Ao mesmo tempo, é preciso acrescentar que o texto “Diaspora Studies and Pan-
Africanism” de Drake aparece numa coletânea organizada por Joseph Harris, Global
Dimensions of the African Diaspora, decorrente da conferência de 1979 no First African
Diaspora Studies Institute da Universidade Howard. Apesar dos problemas do uso que
Drake faz de diáspora, a coletânea pode ser considerada como a culminância do uso
intervencionista de diáspora: ela inclui ensaios de uma ampla gama de intelectuais de

37
Joseph E. Harris, “The Dynamics of the Global African Diaspora”, em The African Diaspora, ed. Alusine
Jalloh (College Station: University of Texas at Arlington, 1996), 14. Embora Harris não cite uma fonte para
a expressão, a aplicação original de mobilized diaspora (“diáspora mobilizada”) à diáspora africana parece
ser Locksley Edmondson, “Black America as a Mobilizing Diaspora: Some International Implications”, em
Modern Diasporas in International Politics, ed. Gabriel Sheffer (Londres: Croon Helm, 1986), 164-211.
Outros trabalhos nesta linha de política externa são Robert Chrisman, “History of Black Involvement in
International Politics”, in The Non-Aligned Movement in World Politics, ed. A. W. Singham (Westport:
Lawrence, Hill & Co., 1977); John A. Davis, “Black Americans and United States Policy toward Black
Africa”, Journal of International Affairs 23, n. 2 (1969): 236-49; Yossi Shain, “Ethnic Diasporas and US
Foreing Policy”, Political Science Quarterly 109 (inverno, 1994-95): 811-41.

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procedência internacional, entre os quais Harris, Elliott Skinner, George Shepperson e


Lawrence Levine, e se organiza precisamente para sinalizar um sentido politizado dos
desafios dessas questões de definição e um espaço para divergência e discordância, apesar
do uso do termo diáspora como um quadro para a conferência em geral. Além disso,
Global Dimensions enfatiza mais uma vez não só a disjunção ideológica mas também a
divergência linguística como uma questão central em qualquer abordagem do tema:
quatro capítulos foram escritos originalmente em francês (os de Oruno D. Lara, Daniel
Racine, Guerin C. Montilus e Ibrahima B. Kaké), e faz-se uma copiosa cobertura das
políticas culturais do Pan-africanismo francófono e da Negritude dentro do quadro maior
do “conceito de diáspora africana”.

Estudos culturais e diáspora

Uma genealogia mais completa dos usos de diáspora no trabalho negro crítico
depois da Segunda Guerra Mundial teria de se voltar para a institucionalização dos
estudos negros no meio acadêmico estadunidense nos anos 1960 e 1970 38. Essa
internvenção no mundo acadêmico ocidental é um desafio epistemológico39,
explicitamente afirmado por meio de uma política da diáspora que rejeita os pressupostos
ocidentais sobre um vínculo entre produção de conhecimento e nação. Apelos à diáspora
foram cruciais e estratégicos em quase todas as declarações de intenção dos estudos
negros e dos departamentos de estudos afro-americanos fundados no final dos anos 1960
e início dos 1970 — embora não necessariamente num modo condizente com o trabalho
pioneiro de Harris e Shepperson. Por exemplo, a Introduction to Black Studies, de
Maulana Karenga, como muito da literatura programática, oferece uma concepção
dividida de diáspora que separa um passado africano de um presente estadunidense:
baseia-se num “foco diaspórico que trata primeiro dos afro-americanos e depois de todo

38
Este também é o período em que começa a emergir um discurso da diáspora na cultura popular negra.
Não há espaço aqui, porém, para rastrear os usos do termo neste nível.
39
Sobre estudos negros como intervenção epistemológica, ver particularmente Russell L. Adams,
“Intellectual Questions and Imperatives in the Development of Afro-American Studies”, Journal of Negro
Education 53 (verão, 1984): 204. Os ensaios de Sylvia Wynter oferecem a elaboração mais impressionante
sobre o tema. Ver, por exemplo, Wynter, “Columbus, the Ocean Blue, and Fables That Stir the Mind: To
Reinvent the Study of Letters”, em Poetics of the Americas: Race, Founding, and Textuality, ed. Bainard
Cowan e Jeffeson Humpries (Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1997), 148-49.

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os outros africanos dispersos pelo mundo”40. Karenga explica essa divisão privilegiada
em termos pragmáticos:

Apenas como ponto de partida e procedimento seguro, a lógica não exige um


impulso que não é demasiado ambicioso, mas começa onde ele está, nos Estados
Unidos, entre os afro-americanos, e em seguida, à medida que se torna mais forte, se
expande para fora? Em outras palavras, o estudo dos americanos africanos não é o
núcleo dos estudos negros nos Estados Unidos, o estudo de um povo africano
desprezado mais que qualquer outro, sem dúvida mais do que o estudo dos
continentais ou caribenhos?41

Isso impõe uma pergunta: quais as implicações de semelhante “núcleo” para o


projeto dos estudos negros? Semelhante “impulso” não tenderia a cimentar um
excepcionalismo estadunidense já predominante no meio acadêmico dos Estados Unidos,
em vez de usar a diáspora precisamente para romper com essa orientação? Ou, como disse
C. L. R. James numa entrevista em 1970:

Os estudantes negros acreditam que os estudos negros dizem respeito a eles e


somente às pessoas negras. Mas isso é um equívoco. Os estudos negros significam a
intervenção de uma área desprezada de estudos que são essenciais para se
compreender a sociedade antiga e moderna [...]. Os estudos negros exigem uma
completa reorganização da vida intelectual e da perspectiva histórica dos Estados
Unidos e da civilização mundial como um todo 42.

Em outras palavras, o discurso da diáspora é, ao mesmo tempo, possibilitador dos


estudos negros, a serviço da mencionada “intervenção”, e inerentemente um risco, na
medida em que pode cair no essencialismo racial ou no vanguardismo norte-americano.
Mais recentemente, essa história complexa de intervenção institucional tem sido elidida
pela “internacionalização” do discurso da diáspora nos estudos culturais britânicos.
Estudiosas como Mae Henderson, Wahneema Lubiano e Sylvia Wynter têm expressado
seus receios de que a recente “importação” dos estudos culturais nos Estados Unidos sirva
com frequência para marginalizar ou mesmo apagar os ganhos arduamente conquistados

40
Maulana Karenga, Introduction to Black Studies (Los Angeles: University of Sankore Press, 1993), 13.
41
Ibid., 492.
42
James, “The Black Scholar Interviews C. L. R. James”, Black Scholar 2, n. 1 (setembro, 1970): 43. St.
Clair Drakes frequentemente apontou o papel de diáspora na institucionalização de estudos negros: ver seu
“Diaspora Studies and Pan-Africanism”, 380-84, e seu mais recente “Black Studies and Global
Perspectives: An Essay”, Journal of Negro Education 53 (verão, 1984): 226-42.

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pelos estudos negros e pelos programas de estudos afro-americanos43. Os desafios não


são apenas institucionais, mas também epistemológicos, já que a metodologia dos estudos
culturais é frequentemente retratada nos Estados Unidos como oferecendo um foco
“novo” sobre questões diaspóricas. Certamente, o que se chama com frequência de
“guinada para a raça” na trajetória do trabalho associado ao Centro de Estudos Culturais
Contemporâneos da Universidade de Birmingham precisa ser lido também como uma
guinada para a diáspora. A produção acadêmica que começou a criticar o pressuposto
de um enquadre nacional “inglês” (particularmente no desenvolvimento de um paradigma
de estudos culturais da parte de Raymond Williams) se move para um registro diaspórico
como um remédio para os vínculos constitutivos entre racismo e nacionalismo 44. Esse
movimento estratégico surge, porém, como um discurso descontínuo com as invocações
da diáspora no trabalho historiográfico e cultural afro-americano e africano45. A questão
da possível juntura entre essas diferentes guinadas rumo a diáspora é, portanto, central
ao problema dos usos de diáspora na produção acadêmica crítica contemporânea com um
foco transnacional.
Tal como na obra de Shepperson, emerge um imperativo transnacional nos estudos
culturais antes que ele se cristalize num discurso explícito da “diáspora africana” em
meados dos anos 1980. Por exemplo, o extraordinário estudo Policing the Crisis, de 1978,
escrito em conjunto por Stuart Hall, Chas Critcher, Tony Jefferson, John Clarke e Brian
Roberts, aponta para um nascente registro diaspórico46. O livro é geralmente celebrado
por suas afirmações antecipatórias sobre a emergência do “populismo autoritário” na
política britânica — uma previsão da ascensão do thatcherismo dos anos 1980 e de vários

43
Ver Mae G. Henderson, “‘Where, By the Way, Is This Train Going?’ A Case for Black (Cultural)
Studies”, Callaloo 19 (inverno, 1996): 60-67; Wahneema Lubiano, “Mapping the Interstices between Afro-
American Cultural Discourse and Cultural Studies: A Prolegomenon”, Callaloo 19 (inverno, 1996): 68-77;
Manthia Diawara, “Black Studies/Cultural Studies”, em Borders, Boundaries, and Frames: Cultural
Criticism and Cultural Studies, ed. Mae G. Henderson (New York: Routledge, 1995), 202-12; Wynter,
“Columbus, the Ocean Blue, and Fables That Stir the Mind”, 193-94, n. 34.
44
As fontes mais evidentes dessa crítica são The Empire Strikes Back: Race and Racism in ‘70s Britain
(Londres: Hutchinson/Centre for Contemporary Cultural Studies, University of Birmingham, 1982);
capítulo 2 de Paul Gilroy, “There Ain’t No Black in the Union Jack”: The Cultural Politics of Race and
Nation (Chicago: University of Chicago Press, 1987); e o ensaio de Stuart Hall, “Culture, Community,
Nation”, Cultural Studies 7 (outubro, 1993): 349-63.
45
Em sua discussão sobre Blyden no último capítulo de The Black Atlantic, Paul Gilory cita o ensaio de
Shepperson “African Diaspora: Concept and Context”, mas sem levar em conta a introdução do próprio
termo. Gilroy, The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness (Cambridge: Harvard University
Press, 1993), 211.
46
Stuart Hall, Chas Critcher, Tony Jefferson, John Clarke e Brian Roberts, Policing the Crisis: Mugging,
the State, and Law and Order (New York: Holmes and Meier, 1978)(doravante citado como PC).

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de seus aspectos mais perniciosos — e por seu insight teórico de que a raça deveria ser
entendida como a “modalidade em que a classe é vivida” (PC, 394). Mas, no último
capítulo, “The Politics of ‘Mugging’” (“A política da ‘delinquência’”), os autores se
desviam de sua investigação paciente e polêmica do significado social da conjuntura do
“pânico moral” em torno de raça, crime e juventude num momento de particular crise
ideológica na sociedade britânica no final da década de 1970 e oferecem uma análise
pioneira das comunidades negras “assentadas” na Inglaterra no período pós-guerra. Num
contexto de subemprego e racialização, alguns aspectos culturais da “colônia de
assentados”, particularmente a gama de atividades compreendidas sob o termo popular
hustling (“esquema, manobra ou prática para se obter algum benefício às custas de
outrem”), são reconceitualizados como “modos de sobrevivência” e até como um terreno
potencial para a consciência negra e a resistência comunitária, em vez de como a marca
de uma patologia negra e de comportamentos retrógrados (PC, 352-53). “O fator
dinâmico”, escrevem os autores,

é a mudança no modo como esse processo objetivo é coletivamente compreendido e


enfrentado. Portanto, o conteúdo social e o significado político de “vagabundagem”
[worklessness] está sendo completamente transformado de dentro para fora. Aqueles
que não conseguem trabalhar estão descobrindo que não querem trabalhar em tais
condições [...], esse setor negro da classe “em si” começou a passar por um processo
de se tornar uma força política “para si”. [...] Essa mudança qualitativa não aconteceu
espontaneamente. Tem uma história. Começou com a descoberta da identidade
negra, mais especificamente com a redescoberta, dentro da experiência da
emigração, das raízes africanas da vida da “colônia”. (PC, 381)

Policing the Crisis descreve essa volta às “raízes africanas” como inerentemente
transnacional. A emergência da consciência negra britânica nunca é um fenômeno
puramente nacional: é influenciada particularmente pelos movimentos de independência
africanos do pós-guerra e pelas rebeliões negras dos anos 1960 nos Estados Unidos. De
fato, tal como Shepperson, Policing the Crisis levanta expressamente a questão de como
as ideologias negras internacionalistas e liberacionistas são traduzidas de um contexto
“nacional” para outro. Os autores invocam especificamente “a adoção e a adaptação do
fanonismo dentro do movimento negro nos Estados Unidos” (especialmente através do
movimento Black Power e dos Black Panthers), e observam que esse “movimento” de
trabalho ideológico negro teve um impacto formativo “sobre a consciência das pessoas

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negras que se desenvolvia por toda parte, inclusive na Grã-Bretanha [...] porque sugeria
que uma análise política, iniciada em termos de sociedade colonial e luta, era adaptável
e transferível às condições das minorias negras em situações urbanas de capitalismo
desenvolvido” (PC, 386).
Stuart Hall estendeu esse trabalho, de forma mais notável em seu conhecido artigo
de 1980, “Race, Articulation, and Societies Structured in Dominance” (“Raça, articulação
e sociedades estruturadas na dominação”)47, o qual, como o último capítulo de Policing
the Crisis, busca teorizar a função da diferença num modo de produção capitalista global.
Aqui, Hall recorre mais diretamente a Marx para trazer à tona uma noção de articulação
que é fundamental para qualquer consideração política da “diáspora”. “Para entender a
produção capitalista numa ‘escala global’”, escreve Hall (valendo-se dos trabalhos de
Althusser e Laclau), Marx começou a teorizar

uma articulação (Gliederung) entre dois modos de produção, um “capitalista” em


sentido verdadeiro e outro, apenas “formalmente” capitalista: os dois se combinavam
por meio de um princípio, mecanismo ou conjunto de relações articulatório porque,
conforme observou Marx, “seus beneficiários participam de um mercado mundial
em que os setores produtivos dominantes já são capitalistas”. Ou seja, o objeto de
investigação deve ser tratado como uma estrutura articulada complexa que é, ela
mesma, “estruturada na dominação” 48.

A articulação funciona aqui como um conceito-metáfora que nos permite pensar


relações de “diferença dentro da unidade”, relações não-naturalizáveis de vínculo entre
elementos sociais desconectados. A “unidade” funcional de estruturas específicas e
estrategicamente conjugadas, então, é enfaticamente

não a de uma identidade, em que uma estrutura recapitula ou reproduz perfeitamente


ou até “expressa” outra; ou em que cada uma é redutível à outra [...].
A unidade formada por essa combinação ou articulação é sempre, necessariamente,
uma “estrutura complexa”, uma estrutura em que as coisas se relacionam, tanto por
meio de suas diferenças quanto por meio de suas semelhanças. Isso exige que os
mecanismos que conectam aspectos dessemelhantes sejam mostrados — já que
nenhuma “correspondência necessária” ou homologia expressiva pode ser
considerada como dada. Também significa — já que a combinação é uma estrutura

47
Stuart Hall, “Race, Articulation, and Societies Structured in Dominance”, em Sociological Theories:
Race and Colonialism (UNESCO, 1980), reimpresso em Black British Cultural Studies: A Reader, ed.
Houston A. Baker, Manthia Diawara e Ruth H. Lindeborg (Chicago: University of Chicago Press, 1996),
16-60.
48
Ibid., 33.

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(uma combinação articulada) e não uma associação aleatória — que haverá relações
estruturadas entre suas partes, isto é, relações de dominação e subordinação49.

A noção de articulação é fundamental não somente porque combina o estrutural e


o discursivo, mas também porque tem um outro lado: estas “sociedades estruturadas na
dominação” também são o terreno da resistência cultural. Hall, na esteira de Gramsci,
afirma que a ideologia deve ser considerada como o lugar principal da luta em torno de
articulações concorrentes50. Num circuito transnacional, então, a articulação oferece os
meios para explicar a diversidade de “tomadas” negras sobre diáspora, a qual o próprio
Hall começa explicitamente a teorizar no final dos anos 1980 como uma moldura da
identidade cultural determinada, não pelo “retorno”, mas pela diferença: “não por
essência ou pureza, mas pelo reconhecimento de uma necessária heterogeneidade e
diversidade; por uma concepção de ‘identidade’ que vive com e através da diferença, não
apesar dela”51.
A guinada rumo a um discurso explícito da diáspora nos estudos culturais se dá em
1987, no “There Ain’t no Black in the Union Jack” (“Não tem preto na bandeira
britânica”), de Paul Gilroy, embora seu quinto capítulo, “Diaspora, Utopia and the
Critique of Capitalism”, se afaste de um modo significativo do vocabulário da articulação
de Hall, mais estritamente marxista. É fundamental reconhecer que diáspora funciona
nesta obra, escrita no auge da dominação thatcherista na Grã-Bretanha, de um modo muito
diferente do da historiografia africana de Shepperson. Enquanto para Shepperson
diáspora era um meio de dar conta dos circuitos transnacionais de influência intelectual
no desenvolvimento do internacionalismo negro e da resistência ao colonialismo, na obra
de Gilroy o termo é invocado para explicar a posição peculiar das comunidades negras na

49
Ibid., 38.
50
Outros trabalhos que tratam da importância do termo nos estudos culturais de Birmingham são Jennifer
Daryl Stack, “The Theory and Method of Articulation in Cultural Studies”, em Stuart Hall: Critical
Dialogues in Cultural Studies, ed. David Morley e Kuan-Hsing Chen (New York: Routledge, 1996), 112-
30, e a entrevista com Hall, “On Postmodernism and Articulation”, 131-50, no mesmo volume. Fredric
Jameson oferece uma genealogia mais idiossincrática do termo (em seu ensaio-resenha “On ‘Cultural
Studies’”, Social Text n. 34 [1993]: 30-33), mas observa, com elegância, os modos como o termo implica
uma “poética” entre o estrutural e o discursivo (32).
51
Stuart Hall, “Cultural Identity and Diaspora”, em Identity, Community, Culture, Difference, ed. Jonathan
Rutheford (Londres: Lawrence and Wishart, 1990), 235. Essa abordagem tem sido estendida por teóricos,
como Kobena Mercer e Hazel Carby, que consideram os modos como a diáspora, enquanto estrutura
articulada da diferença, se constitui não só de raça e colonização, mas também de representação,
sexualidade, gênero e produção cultural.

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Grã-Bretanha durante um período em que o nacionalismo estava sendo perniciosamente


expresso por meio do recurso ao racismo populista. Gilroy escreve:

A Grã-Bretanha negra se define fundamentalmente como parte de uma diáspora.


Suas culturas específicas se inspiram naquelas desenvolvidas por populações negras
em outros lugares. Em particular, a cultura e a política da América e do Caribe negros
têm se tornado matéria bruta para processos criativos que redefinem o que significa
ser negro, adaptando-a à experiência e a significados distintivamente britânicos. A
cultura negra se faz e se re-faz ativamente52.

Na leitura dessa citação, cabe perguntar o que ficou de fora no posicionamento


das culturas negras estadunidense e caribenha como “matéria bruta” para a cultura
expressiva “britânica negra” — semelhante percurso parece apagar a “feitura” igualmente
sincrética (e as fontes igualmente transnacionais) da cultura negra naqueles contextos
supostamente “brutos” do Novo Mundo. (Além disso a “adaptação”, na terminologia de
Gilroy, é o mesmo processo que o “fazer e re-fazer” ativos?) Mas a desatenção de Gilroy
para com a metáfora da “matéria bruta” não surpreende quando consideramos o grau com
que seu projeto é moldado pela necessidade de teorizar a cultura negra britânica como
extrapolando o Estado-nação. Diáspora é apenas um dos termos que Gilory usa na
tentativa de definir o que ele vê como uma “nova estrutura de intercâmbio cultural” que,
no século XX, foi “construída ao longo das redes imperiais que outrora abrigavam o
comércio triangular de açúcar, escravos e capital” (157). Também escreve sobre a cultura
negra como “exportada” (157, 184), “transferida” (157), “traduzida” (194), como
“sincrética” (155), como “articulada” num sentido algo próximo do de Hall (160, 187), e
até divaga sobre a “ponte viva” entre performance e improvisação na música popular
britânica negra e “tradições africanas de fazer música que dissolvem as distinções entre
arte e vida” (164). Esse deslizamento entre termos, creio eu, se deve principalmente aos
saudáveis esforços de Gilroy de identificar essa “nova estrutura de intercâmbio cultural”,
sobretudo no tocante a formas de música popular como hip hop, dub e soul — formas
que, naquele momento, estavam apenas começando a ser investigadas mais
detalhadamente por críticos culturais como Gilroy e Dick Hebdige. No entanto, o capítulo

52
Gilroy, “There Ain’t No Black in the Union Jack”, 154. Na página seguinte, ele escreve que “este capítulo
introduz o estudo das culturas negras dentro de um arcabouço de uma diáspora como uma alternativa às
diferentes variedades de absolutismo que confinariam a cultura em essências ‘raciais’, étnicas ou
nacionais”.

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está, ao fim e ao cabo, menos interessado em teorizar a diáspora em si mesma do que em


escapar dos limites confinantes da nação britânica. Gilroy se volta para “o arcabouço da
diáspora”, não a fim de especificar esse espaço, mas “como uma alternativa às diferentes
variedades de absolutismo que confinariam a cultura em essências ‘raciais’, étnicas ou
nacionais” (155). Ele sustenta que “unidades nacionais não são a base mais apropriada
para estudar essa história, pois a autoconsciência da diáspora africana tem sido definida
dentro e contra fronteiras nacionais restritivas” (158). O resultado dessa insistência na
extrapolação do nacional (muito embora, na citação acima, “diáspora” é confusamente
definida ao menos em parte dentro de fronteiras nacionais) é que o uso que Gilroy faz do
termo flutua, para usar uma expressão de Shepperd. Fica-se sem saber a que “a
autoconsciência da diáspora africana” pode se referir — onde essa autoconsciência
poderia estar localizada. “Diáspora” aqui acaba funcionando bem mais como uma das
imagens para o obstinado antiabsolutismo e antiessencialismo de Gilroy do que como
uma elaboração daquela “nova estrutura de intercâmbio cultural”.
Esse discurso da diáspora sofre uma mudança no livro de Gilroy de 1993, The
Black Atlantic, a obra que frequentemente é chamada a representar toda essa complexa e
descontínua tradição de intervenção — ou, de fato, que é às vezes vista como a própria
“origem” desse foco transnacional na crítica cultural negra. A questão, é claro, são os
problemas do emprego de “Atlântico negro” como um termo que (particularmente na
adoção do trabalho de Gilroy nos Estados Unidos) frequentemente usurpa o espaço que
deveria ser reservado para diáspora. O sucesso de The Black Atlantic abriu espaço para
uma ampla gama de trabalho intelectual no meio acadêmico; no entanto, esse
desdobramento torna ainda mais premente interrogar-se sobre os riscos de Atlântico
negro como um termo de análise que não é necessariamente condizente com o sentido de
diáspora como intervenção, tal como descrevi acima53.

53
De fato, pode-se medir a influência do livro pelo número de importantes estudiosos que sentiram a
necessidade de contestar por escrito as propostas mais provocadoras de Gilroy. Algumas das críticas mais
significativas de The Black Atlantic são Neil Lazarus, “Is a Counterculture of Modernity a Theory of
Modernity?”, Diaspora 4 (inverno, 1995): 323-39; Ronald A. T. Judy, “Paul Gilroy’s Black Atlantic and
the Place(s) of English in the Global”, Critical Quarterly 39 (primavera, 1997): 22-29; Laura Chrisman,
“Journeying to Death: Gilroy’s Black Atlantic”, Race and Class 39 (outubro-dezembro, 1997): 51-64; as
resenhas de Brackette F. Williams e George Lipsitz, Social Identities 1, n. 1 (1995): 175-92 e 192-220,
respectivamente; e os ensaios reunidos em Research in African Literatures 27, n. 4 (inverno, 1996),
particularmente Joan Dayan, “Paul Gilroy’s Slaves, Ships, and Routes: The Middle Passage as Metaphor”,
7-14.

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Às vezes se desconsidera que o próprio Gilroy é cuidadoso ao propor Atlântico


negro como um termo de análise provisório ou heurístico, visando bem mais a abrir um
certo espaço teórico que descarte qualquer investigação formulada em moldes singulares
— seja “raça”, “etnicidade” ou “nação” — do que a formalizar tal espaço. Por exemplo,
numa eloquente passagem no início do livro, ele escreve sobre “as formas culturais
estereofônicas, bilíngues ou bifocais originadas (porém não mais propriedade exclusiva)
dos negros dispersos dentro das estruturas de sentimento, produção, comunicação e
recordação que tenho chamado heuristicamente de o mundo do Atlântico negro” 54.
(Interpreto o modo atabalhoado dos adjetivos de Gilroy ao descrever o “Atlântico negro”
como a performance da natureza heurística da categoria.) Ao mesmo tempo, Gilroy
frequentemente se move rumo a algo como uma tipologia da política cultural no
“Atlântico negro”, sobretudo em termos dos circuitos locais e globais de produção e
recepção da música negra. Para tanto, ele convoca os historiadores culturais a pensar no
“Atlântico como uma complexa e singular unidade de análise na discussão deles sobre o
mundo moderno e a usá-la para produzir uma perspectiva explicitamente transnacional e
intercultural” (The Black Atlantic, 15). Ou, como escreve pouco adiante,

a história do Atlântico negro desde [Colombo], continuamente atravessado pelos


movimentos de pessoas negras — não somente como mercadorias, mas engajadas
em várias lutas pela emancipação, autonomia e cidadania —, oferece um meio de se
reexaminar os problemas de nacionalidade, localização, identidade e memória
histórica. Todos eles emergem dali com especial clareza se contrastarmos os
paradigmas nacionais, nacionalistas e etnicamente absolutos da crítica cultural que
se encontram na Inglaterra e nos Estados Unidos com aquelas expressões ocultas,
tanto residuais quanto emergentes, que tentam ser globais ou extranacionais por
natureza. Essas tradições têm sustentado contraculturas da modernidade que
atingiram o movimento dos trabalhadores, mas que não são redutíveis a ele. (16)

Gilroy simultaneamente assinala a importância do próprio termo diáspora como


um meio igualmente “heurístico de focalizar a relação de identidade e não identidade na
cultura política negra”, e o capítulo final de The Black Atlantic é uma sensível
consideração das ressonâncias de diáspora tanto no pensamento judaico quanto no negro
do Novo Mundo, elaborada através da leitura do Beloved de Toni Morrison e do trabalho
do intelectual do século XIX Edward Blyden. Esse discurso contínuo sobre diáspora põe

54
Gilroy, The Black Atlantic, 3.

65
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em causa a noção do “Atlântico negro”, que parece impor uma suposição de


especificidade geográfica (que poderíamos denominar limite hemisférico) e um contexto
“racial” num campo que poderia ser muito mais amplo e mais variado.
Gilroy adota a unidade conceitual do Atlântico a partir sobretudo do trabalho
recente e notável de Peter Linebaugh (12-13). Mas a investigação de Linebaugh e suas
colaborações recentes com Marcus Rediker se concentram explicitamente na ascensão de
uma classe trabalhadora em complexas histórias culturais de marinheiros e vagabundos
em portos ao redor da bacia atlântica que, dos primórdios do tráfico de escravos em diante,
resistiram com muita frequência a se deixar pressionar para servir à expansão de modos
capitalistas de produção numa escala transnacional55. Esse “internacionalismo proletário”
antinomiano se vincula ao desenvolvimento da consciência negra e ao movimento
antiescravagista, para Linebaugh, mas ao mesmo tempo ele não sugere que se possa
deduzir um circuito “negro” transnacional singular ou autônomo de intercâmbios
culturais e políticos56. Gilroy, de todo modo, está mais interessado em relatos de viagem
individuais (as temporadas de Du Bois na Alemanha, a vida de Richard Wright na França,
a turnê dos Fisk Jubilee Singers pela Europa no final do século XIX) e em noções
abstratas de circuitos transnacionais de cultura do que em histórias prosaicas da cultura
em cidades portuárias e em navios mundo afora. O risco aqui é que Atlântico negro perde
o amplo espectro do termo diáspora sem sequer substituí-lo por uma história
contextualizada de culturas transnacionais no hemisfério ocidental. Embora essas
questões não sejam trabalhadas diretamente em The Black Atlantic, Gilroy explicou essa
estratégia numa entrevista de 1994:

Primeiramente, temos que lutar pelo conceito de diáspora e distanciá-lo da obsessão com
origens, pureza e uniformidade invariante. Com muita frequência o conceito de diáspora
tem sido usado para dizer: “Oba! Podemos rebobinar a fita da história, podemos voltar ao

55
Ver Peter Linebaugh, “All the Atlantic Mountains Shook”, Labour/Le Travailleur 10 (outono, 1982): 87-
121; Peter Linebaugh e Marcus Rediker, “The Many-Headed Hydra: Sailors, Slaves, and the Atlantic
Working Class in the Eighteenth Century”, Journal of Historical Sociology 3 (setembro, 1990): 225-52.
56
Para cautelas nesta linha acerca da noção de “Atlântico negro”, ver a resenha de Colin Palmer em
Perspectives 36, n. 6 (setembro, 1998): 24-25, e Alasdair Pettinger, “Enduring Fortresses — A Review of
The Black Atlantic”, Research in African Literatures 29, n. 4 (inverno, 1998): 142-47. Philip D. Curtin,
entre outros, tem argumentado que o Mediterrâneo tem que ser considerado coextensivo com o Atlântico
em termos do desenvolvimento do tráfico de escravos. Chega mesmo a reivindicar as “origens
mediterrâneas do sistema sul-atlântico”; ver Curtin, “The Slave Trade and the Atlantic Basin:
Intercontinental Perspectives”, em Key Issues in the Afro-American Experience, v. 1, ed. Nathan Huggins,
Martin Kilson e Daniel Fox (New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1971), 75-77.

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momento original da nossa dispersão!” Eu digo algo bem diferente. Por isso não chamei o
livro de diáspora qualquer coisa. Chamei-o de The Black Atlantic porque queria dizer: “Se
isso é uma diáspora, então é um tipo muito particular de diáspora. É uma diáspora que não
pode ser revertida”57.

Compartilho da preocupação de Gilroy, mas acho, ironicamente, que a terminologia


em The Black Atlantic opera de uma maneira quase inversa: na obra mesma, é o fascínio
pela moldura atlântica e seu foco no tráfico escravagista triangular que puxam Gilroy de
volta para o atoleiro das origens, ao impor (como ele mesmo admite) “um tensão que se
estabelece em torno da modernidade como uma categoria cronológica e temporal —
quando começou a modernidade?”58. Ao mesmo tempo, temos começado a ver um tipo
redutor de “lógica serial” em marcha em estudos sobre circuitos transnacionais de cultura
negra, na qual o “Atlântico negro” teria de ser posto ao lado da moldura oceânica paralela
do “Mediterrâneo negro” ou do “Pacífico negro”. Continuo a não me convencer de que
tais molduras oceânicas possam ser pensadas como separadas em qualquer modo
coerente, e argumento que é precisamente o termo diáspora, no sentido intervencionista
que esbocei aqui, que nos permitiria pensar para além dessas molduras geográficas
limitadoras e sem o recurso a uma obsessão pelas origens59.
Outro modo de defender essa tese é observar que um discurso da diáspora funciona
simultaneamente como uma abstração e uma antiabstração. Em geral, temos sido levados
a recorrer inquestionavelmente a seu nível de abstração, a seus postulados básicos sobre
identidade e iniciativas transnacionais numa história do “espalhamento dos africanos”
que supostamente oferece um princípio de unidade — nas palavras de Gilroy, “pureza e
uniformidade invariante” — a essas populações dispersadas. Não estou argumentando
aqui nem para invalidar essa história de dispersão nem para propor outra abstração (um

57
Tommy Lott, “Black Cultural Politics: An Interview with Paul Gilroy”, Found Object 4 (outono, 1994),
56-57.
58
Ibid., 75. Gilroy comenta: “Se eu fosse escrever o livro de novo, não usaria a modernidade como uma
moldura para ele”. Salienta que, no livro, está interessado numa “história particular da modernidade”,
aquela “gerada através e a partir do tráfico sistêmico e hemisférico de escravos africanos”. Esse foco
“hemisférico” — o Atlântico, em outras palavras — leva implicitamente à preocupação da obra com a
modernidade e a questão das origens.
59
De fato, existe um modelo prévio precisamente para esse tipo de trabalho através da lente “diaspórica”
que tenho endossado: ver Joseph Harris, “A Comparative Approach to the Study of the African Diaspora”,
em Harris, Global Dimensions of the African Diaspora, 112-24, que tenta abranger tanto a presença afro-
americana em Serra Leoa e na Libéria quanto as histórias de comunidades africanas na Índia, Turquia,
Oriente Médio e Ásia. A principal fonte dessa última parte da diáspora africana é, evidentemente, o trabalho
sem precedentes de Harris, The African Presence in Asia: Consequences of the East African Slave Trade
(Evanston: Northwestern University Press, 1971).

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princípio alternativo de continuidade, como a moldura oceânica oferecida por Atlântico),


mas, ao contrário, para enfatizar os usos antiabstratos de diáspora. Conforme apontei, um
retorno à história intelectual do próprio termo é necessário porque nos recorda que
diáspora foi introduzido em grande parte para dar conta da diferença entre populações de
ascendência africana, de um modo que um termo como Pan-africanismo não conseguia.
Além disso, diáspora aponta para diferenças não só internas (as maneiras como
agrupamentos negros transnacionais são fraturados em nação, classe, gênero, sexualidade
e língua) mas também externas: ao nos apropriarmos de um termo tão intimamente
associado ao pensamento judaico, somos forçados a pensar, não em termos de algum
sistema fechado autônomo de dispersão africana, mas explicitamente em termos de um
passado complexo de migrações forçadas e de racialização — o que Earl Lewis tem
chamado de uma história de “diásporas sobrepostas”60. (Por exemplo, numa história do
internacionalismo negro na França entre as duas guerras mundiais, diáspora aponta não
só para o encontro em Marselha entre o radical senegalês Lamine Senghor e o romancista
jamaicano Claude McKay, mas também para a colaboração no Partido Comunista Francês
entre Senghor e o radical vietnamita Nguyen Ai Quoc, mais tarde conhecido como Ho
Chi Minh.) Não estou sugerindo o uso do termo diáspora porque ele oferece o conforto
da abstração, um recurso fácil às origens, mas porque ele nos obriga a considerar
discursos de vinculação cultural e política somente por meio da diferença e em meio a
ela.

Lendo o décalage

Ao concluir, retorno à noção de Stuart Hall de diáspora como articulada, como uma
combinação estruturada de elementos “tanto por meio de suas diferenças quanto por meio
de suas semelhanças”. Se um discurso da diáspora articula a diferença, então é preciso
considerar o status dessa diferença — não só a diferença linguística, mas, de modo mais
amplo, o vestígio ou o resíduo, talvez, daquilo que resiste à tradução ou que às vezes não
tem como evitar a recusa da tradução entre as fronteiras da língua, da classe, do gênero,

60
Earl Lewis, “To Turn As on a Pivot: Writing African Americans into a History of Overlapping
Diasporas”, American Historical Review 100 (junho, 1995): 765-87.

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da sexualidade, da religião, do Estado-nação. Sempre que a diáspora africana se articula


(assim como quando os projetos negros transnacionais são adiados, abortados ou
recusados), essas forças sociais deixam efeitos sutis, mas indeléveis. Essa desigualdade
ou diferenciação marca um décalage constitutivo no próprio tecido da cultura, um
décalage que não pode ser nem descartado nem arrancado. Léopold Senghor, num breve
e importante ensaio chamado “Négro-Américains et Négro-Africains”, escreve
sugestivamente sobre as diferenças e as influências entre negros estadunidenses e negros
africanos, vendo-as como entretecidas através dessa lacuna:

Le différend entre Négro-Américains et Négro-Africains est plus léger malgré les


apparences. Il s’agit, en réalité, d’un simple décalage — dans le temps et dans
l’espace. [O diferendo entre negro-americanos e negro-africanos é mais leve do que
parece. Trata-se, na realidade, de uma simples defasagem — no tempo e no
espaço.]61

Décalage é uma dessas muitas palavras francesas que resistem à tradução em


inglês; para marcar essa resistência e, além disso, endossar o modo como esse termo
marca uma resistência à travessia, vou mantê-lo aqui em francês62. Pode ser traduzido por
“lacuna”, “discrepância”, “adiamento” ou “intervalo”; também é o termo que os falantes
de francês às vezes usam para traduzir jet lag (“diferença de fuso horário”). Em outras
palavras, um décalage é ou uma diferença ou lacuna no tempo (avanço ou atraso de uma
agenda) ou no espaço (mudar ou deslocar um objeto). Eu sugeriria, lendo de algum modo
o texto de Senghor a contrapelo, que existe aqui uma possibilidade na locução “no tempo
e no espaço” de um modo “leve” (léger) e sutilmente inovador de ler a estrutura daquela
disparidade na diáspora africana.
O verbo caler significa “tornar estável, pôr um calço” (como quando a perna de
uma mesa está fora do prumo). Assim, décalage, em seu sentido etimológico, se refere à
remoção desse calço. Décalage indica o restabelecimento de uma disparidade ou

61
Senghor, “Problématique de la Négritude” (1971), em Liberté III: Négritude et civilisation de l’universel
(Paris: Seuil, 1977), 274.
62
O historiador Ranajit Guha é um dos poucos estudiosos de língua inglesa a recorrer regularmente ao
termo décalage, usando-o para indicar uma sobreposição ou discrepância estrutural, um período de
“transformação social” em que uma classe, burocracia estatal ou formação social “desafia a autoridade de
outra que é mais antiga e moribunda, porém ainda dominante”. Guha, Dominance without Hegemony:
History and Power in Colonial India (Cambridge: Harvard University Press, 1997), 13, 157. Ver também
Guha, Elementary Aspects of Peasant Insurgency in Colonial India (Durham: Duke University Press,
1999), 173, 330.

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diversidade prévia; alude à retirada de alguma coisa que foi acrescentada de início,
alguma coisa artificial, uma pedra ou um bloco de madeira que servia para preencher a
lacuna ou retificar algum desequilíbrio. Assim, o décalage diaspórico negro entre afro-
americanos e africanos não é simplesmente distância geográfica, nem é simplesmente
diferença em evolução ou consciência; é, isto sim, um tipo diferente de interface que pode
não ser suscetível de expressão na terminologia opositiva de “vanguarda” e “retaguarda”.
Em outras palavras, décalage é o âmago daquilo que precisamente não pode ser
transferido ou intercambiado, os vieses impregnados que se recusam a passar para o outro
lado quando alguém atravessa a água. É um cerne mutante de diferença; é o trabalho das
“diferenças dentro da unidade”63, um ponto inidentificável que é incessantemente tocado,
dedilhado, pressionado.
É possível repensar os mecanismos de “raça” na política cultural negra por meio
de um modelo de décalage? Qualquer articulação da diáspora em tal modelo ficaria
inerentemente décalée ou defasada por um conjunto de fatores. Assim como uma mesa
com pernas de comprimentos diferentes ou uma estante bamba, a diáspora pode ser
discursivamente calçada (calée) num estado artificialmente “regular” ou “equilibrado” de
pertencimento “racial”. Mas esses calços de retórica, estratégia ou organização são
sempre articulações de unidade ou globalismo, calços que podem ser “mobilizados” para
uma variedade de propósitos, mas nunca podem ser definitivos: são sempre protéticos.
Neste sentido, o décalage é próprio da estrutura de uma formação diaspórica “racial”, e
seu retorno na forma de desarticulação — os pontos de mal-entendidos, má-fé, tradução
infeliz — tem de ser considerado como uma necessária obsessão espectral. Isso vai na
contramão de Senghor, se considerarmos sua Negritude como uma variedade influente
desse calço diaspórico. Em vez de ler buscando a eficácia da prótese, esta orientação
buscaria os efeitos de semelhante operação, os vestígios dessa obsessão espectral,
interpretando-os como constitutivos da estrutura de qualquer articulação da diáspora64.
Recorde-se que Hall aponta para dois significados da palavra articulação: “tanto
‘juntura’ (como os membros do corpo ou uma estrutura anatômica) quanto ‘dar expressão

63
Ibid., 278.
64
Minha ênfase na diáspora como uma tradição discursiva ecoa a sugestão de David Scott de que a diáspora
africana seja interpretada menos como uma continuidade culturalmente unificada e mais como “disputas
corporificadas” entre populações negras mundo afora acerca do próprio sentido de “África”, escravidão ou
identidade negra. Scott, Refashioning Futures: Criticism after Postcolonialism (Princeton: Princeton
University Press, 1999), 123-24.

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a’”65. Ele sugere que o termo é mais útil no estudo dos mecanismos da raça em formações
sociais quando se distancia do segundo sentido, de um “elo expressivo” (que implicaria
uma hierarquia predeterminada, uma situação em que um fator faz outro “falar”), e se
aproxima de sua etimologia como uma metáfora do corpo. Então, a relação entre fatores
não é predeterminada; ela oferece um modelo mais ambivalente, mais elusivo. O que
significa dizer, por exemplo, que alguém articula uma junta? A conexão fala. Essa “fala”
é funcional, é claro: o braço se dobra no cotovelo para alcançar a mesa, a perna pivota da
coxa para dar o próximo passo. Mas a junta é um lugar curioso, já que é tanto o ponto de
separação (entre o antebraço e o braço, por exemplo) quanto o ponto de ligação. Mais do
que um modelo de debilitação definitiva ou de retardação predeterminada, então, o
décalage, ao fornecer um modelo para o que escapa ou resiste à tradução através da
diáspora africana, alude a essa estranha dualidade da junta. Dirige nossa atenção para o
que descrevi anteriormente como a “estrutura antitética” do termo diáspora, sua
intervenção arriscada. Minha tese, finalmente, é a de que as articulações da diáspora têm
que ser abordadas desse modo, por meio de seu décalage. Porque, paradoxalmente, é essa
lacuna ou discrepância obsedante que permite exatamente à diáspora africana “dar
passos” e “mover-se” em várias articulações. A articulação é sempre um gesto estranho e
ambivalente porque, afinal, no corpo, é somente a diferença — a separação entre ossos
ou membros — que permite o movimento.

65
Hall, “Race, Articulation, and Societies Structured in Dominance”, 41.

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A IDEIA DE CULTURA NEGRA1

Hortense J. Spillers2

RESUMO: Hortense J. Spillers aborda de forma crítica a Cultura Negra em seu artigo
“A Ideia de Cultura Negra”, mesmo sendo consciente que esta ideia de cultura ainda estar
por vir. Nesta perspectiva, a autora aborda o que exatamente pode ser entendido por
Cultura Negra na nossa era contemporânea, e quais os motivos de ainda não existir uma
“Cultura Negra”. Spillers inclui em seus estudos, teóricos como Williams, Du Bois, entre
outros, que também abordam a ideia de Cultura Negra. A partir de uma análise desses
trabalhos teóricos, Spillers faz uma crítica ao Afrocentrismo e propõe uma nova visão da
“ideia de Cultura Negra” como um objeto de estudo crítico conceitual e instrumento
prático de transformação e desenvolvimento social.

PALAVRAS-CHAVE: Cultura Negra. Crítica. Transformação Social.

ABSTRACT: Hortense J. Spillers critically approaches the Black Culture in her article
‘The Idea of Black Culture", even though she is aware that the idea of culture is yet to
come. In this perspective, Spillers discusses what exactly can be understood by Black
Culture in our contemporary era and the reasons why there is no a “Black Culture” yet.
Spillers includes in her studies, theorists like Williams, Du Bois, among others who also
research about the idea of Black Culture. From an analysis of these theoretical works,
Spillers criticizes the Afrocentrism and proposes a new vision of “the idea of Black
Culture”, as an object of critical conceptual study and a practical instrument of social
transformation and development.

KEYWORDS: Black Culture. Critical. Social Transformation.

1
Este artigo foi escrito por Hortense J. Spillers e publicado nos Estados Unidos no ano de 2006 em CR:
The New Centennial Review, Volume 6, Number 3, Winter 2006, p. 7-28. Tradução de Mislainy de
Andrade e revisão de tradução de Dilma Machado. Agradecemos a autora por nos conceder os direitos de
tradução.
2
Hortense J. Spillers foi membro da Faculdade de Inglês da Universidade de Vanderbilt durante o outono
de 2006-2007. Atuou como presidente da Gertude Conoway Vanderbilt. Alguns de seus trabalhos mais
recentes foram publicados no Boundary 2, Critical Quarterly, Das Argument, e no Journal of the William
Faulkner Society no Japão. O artigo The Idea of Black Culture foi publicado pela Universidade do Estado
de Michigan. Sua coleção de ensaios Black, White and Color: Essays on American Literature and Culture
foi publicado em 2003 pala Universidade de Chicago. Lecionou no Centro de Estudos de Cidadania na
Universidade do Estado Wayne e no Institudo John F. Kennedy da Universidade Publica de Berlin.
Atualmente, Hortense realiza palestras nos Estados Unidos e em outros países como China e Japão.

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Um retorno à ideia de cultura negra deve ser pensado hoje de forma crítica, o que
não é acolhedor para o tema, embora hospitalidade e comodidade nunca tenham sido
atributos do contexto em que a ideia foi criada ou compreendida. Um dos aspectos da
problemática para o pesquisador é, então, vislumbrar um horizonte de investigação que
permitirá, se não necessariamente atestar, um projeto que é, por definição, anacrônico em
vários pontos de vista. Talvez seja mais exato dizer que um repertório considerável de
recusas, que fazem do tema uma impossibilidade virtual, atualmente bloqueia sua
visibilidade: (1) A recessão do sujeito, o contexto histórico, em outros contextos; (2) um
presente adimensional, em analogia com a televisão; e então, (3) o empobrecimento da
história; (4) o declínio do conceito e das práticas do Estado-nação, exceto a atual política
externa dos Estados Unidos, a ascensão dramática dos Estados Pós-Soviéticos, e o
crescimento extraordinário da China no cenário do mundo contemporâneo,
impulsionariam todos a repensarem seriamente essas alegações; (5) a “exaustão da
diferença”; (6) os novos impulsos de uma globalização tão completa, que nos levam a
crer que a localidade ou o próprio “local”, aparentemente desaparece como um momento
delimitado de percepção; e, paradoxalmente, (7) um espaço conceitual Afrocêntrico que
quebra a distância entre uma suposta Diáspora Africana e as culturas do Continente
Africano, é uma pequena diferenciação interposta entre eles. Qualquer tentativa
contemporânea de rever, então, o projeto de cultura negra como um objeto conceitual e,
como um instrumento prático de transformação social, deve enfrentar esses sintomas de
impedimento completamente destruídos, que parecem ter surgido das reações do mundo
pós década de 1960.
Um dos sintomas que identifiquei aqui –“a exaustão da diferença” - em conjunto
com o restante do repertório, pode ser aceito como um referencial crítico que permite que
um projeto como este, ao mesmo tempo em que altera, significativamente, o tema longe
dos impulsos binarísticos, possa, a priori, inspirar a questão. Publicado em 2001, The
Exhaustion of Difference, [A Exaustão da Diferença] de Alberto Moreiras, tópico que
tenho me apropriado aqui, aborda as condições epistêmicas que tornariam possível situar
aqui, os estudos culturais latino-americanos (MOREIRAS, 2001). Poderíamos nos
alongar um pouco mais, porque este texto nos oferece uma síntese brilhante de reflexões
teóricas sobre os novos epistemes, entre os quais, eu localizaria a investigação na qual me
embarquei e, que é paralelo, como um elemento de formação social emergente em

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discurso, que tenho sob minha observação. Além disso, representa o tipo de resistência
que um projeto como “a ideia de cultura negra” precisa responder. Uma das manifestações
cruciais que The Exhaustion of Difference realiza, em sua exemplaridade, é festejar o
valor do engajamento dialético aplicado como um freio aos movimentos encerrados ao
longo de uma trajetória de pontos conceituais: este movimento interminável tem suas
desvantagens, bem como, o seu tédio, talvez outra representação de “exaustão”, mas a
recompensa aqui é que a divisão entre posições – este efeito escamoso que é falso, na
verdade – é evitado, na medida que o caso é revelado. O desafio, então, é montar uma
divisão e conduzi-la, em vez de se repousar sobre qualquer nuança particular, que pode
nunca ser totalmente concluída, mas o esforço é válido, e identifica precisamente o tipo
de problemática que os novos epistemes quiseram abordar. O processo de movimento
dialógico ou dialético entre tais pontualidades assegura também que a análise surge
frequentemente do posicionador que contrasta o seu ponto de vista com um outro ponto,
que seja, talvez, contrário ao dele ou um complemento, uma postura decisiva de um
grupo, que poderia eventualmente ser substituída por outra de igual importância, se um
ritmo dialógico ou atual fosse criado e sustentado entre eles. O dialogismo, neste caso,
pode deter o avanço do “straw man”3 [“espantalho"].
Uma das outras recusas mais persistentes na conceituação da cultura negra é,
ironicamente o bastante, o próprio Afrocentrismo, que coloca em questão, de forma bem
diferenciada, a “exaustão da diferença”. De qualquer forma, o Afrocentrismo é o abraço
radical da diferença, com uma "diferença", quando ele coloca em confronto o
Afrocentrismo e o Eurocentrismo. Seu mais proeminente teórico sobre o assunto, Molefi
Asante, 1987, propõe em seu texto The Afrocentric Idea [A Ideia Afrocêntrica], que
Afrocentricidade significa “colocar os ideais africanos no centro de qualquer análise que
envolva a cultura e o comportamento africano” (ASANTE, 1987, p. 6). O autor continua:
“A análise Afrocêntrica restabelece a centralidade da antiga civilização Kemética
(Egípcia) e do Vale do Nilo, complexos culturais com pontos de referência para uma
perspectiva africana assim como a Grécia e Roma são pontos de referência para o mundo
europeu” (p. 9). Asante traça sua própria ascendência intelectual de volta à W. E. B. Du

3A autora aqui se refere a uma falácia informal baseada em dar a impressão de refutar uma visão contrária.
Pode simbolizar também a ideia de um documento frágil que é apenas um rascunho inicial de um assunto
que provavelmente será modificado por outros. (Nota da Tradutora)

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Bois (o pai de posições intelectuais divergentes sobre a Negritude e Africanidade) e


Cheikh Anta Diop, pensador senegalês e político que, seguindo certas pistas colocadas
pelos escritores clássicos - Heródoto, eminente entre eles – coloca o Antigo Egito numa
relação de parentesco com a Grécia. Os dois volumes de Black Athena [Atenas Negra],
de Martin Bernal examina sistematicamente a investigação dos protocolos das eras de
bolsa europeia que colocava a Grécia na vanguarda da civilização europeia, e é uma
questão interessante, Asante parece aceitar a proveniência Hegeliana da Grécia como é
revelado em The Philosophy of History [A Filosofia da História]. De qualquer modo, a
interrupção ou lacuna que o conceito de “Black Atlantic”4 [“Atlântico Negro”] propõe ou
que as ideologias do Pan-africanismo impulsionam, são tão saturadas e costuradas na
Afrocentricidade, que as culturas da Diáspora e do continente se tornam, por uma
insignificante distração, um projeto único, ou como alguns críticos poderiam tê-lo
colocado, habitantes do mesmo “continente teórico” (DIOUF, MBOJI, 1992, p. 118).
Mas assim tão precisamente registrada como a linha de tendência das recusas pode
ser, e tão persistentemente repetidos seus rumores e crenças, os seus registros, restrições
e convicções podem nos mostrar que são, parecem insuficientes para as exigências
cotidianas de um sujeito fictício, aos excessos indecoráveis e indeterminados do produto
social, e à estrutura memorial que se inscreve na atividade humana desde a aquisição da
linguagem à busca consciente e à expressão das artes. Em outras palavras, enquanto vida
houver, parece que rumores não têm importância. E é precisamente essa divisão de razões
entre os sistemas atuais de pensamento (escritos em permanente desespero) – e, de certa
forma, inteiramente reconciliada com o supremacia tecnológica de Herbert Marcuse, que
há várias décadas atrás em seu livro “One-dimensional man” [“Homem unidimensional”],
totalmente em sintonia com tais mecanismos, identificou que a “cultura” não estava indo
muito bem, enquanto expressões particulares, assim como na “cultura negra”, não são
mais pontuadas – e os espaços de habitação que são organizados e desdobrados como
uma autonomia de valores vão obsecar qualquer discussão de formações sociais que são
atribuidas a uma preferência cultural. À primeira vista, há aqui um problema de tensões
de primeiro e segundo níveis de tensão, ou, em outras palavras, antes que possamos nos

4
A prestigiosa formulação de "O Atlântico Negro" foi proficientemente desenvolvida por Paul Gilroy
(1993); O trabalho mais recente de Brent Edwards examina as álgebras internas do trânsito do Atlântico
Negro por meio dos caminhos artísticos e literários da Diáspora (2003).

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aventurar em uma ideia sobre a “ideia de cultura negra”, devemos restabelecer uma
perspectiva da “ideia de cultura”. Num segundo momento, no entanto, o primeiro e o
segundo níveis de tensão se convergem, de forma que percebemos que a junção destas
pontualidades não está tão em questão como a exploração deste estilo forte de aparente
singularidade que irá nos permitir várias e, num certo momento, sucessivos caminhos
para conduzi-las. O objetivo deste ensaio é mediar um destes caminhos.
Raymond Williams assegurou aos seus leitores que “cultura” é “uma das duas ou
três palavras mais complicadas da língua inglesa” (WILLIAMS, 1976, p. 76). O
inspirador Keywords [Palavras-chave] de Williams, no qual ele promoveu essas
definições há mais de três décadas atrás, agora tem inspirado o New Keywords [Novo
Palavras-chave]: Keywords: A Revised Vocabulary of Culture and Society [Um
Vocabulário Revisado de Culture e Sociedade], cujo o objetivo inicial, neste campo, é
fazer parecer ridículo o repúdio virtual do termo cultura de Williams: “Existe agora”,
começam os editores, “uma grande incerteza sobre o valor da palavra cultura”
(BENNETT, et al., 2005, p. 63). Os editores então vão para a citação de Politics and
Letter [Políticas e Cartas] de Williams, quando em resposta à pergunta de um
entrevistador – “Por que você decidiu adaptar o termo cultura, em plena consciência de
sua carga semântica, para representar toda uma forma de vida – ao invés do termo
sociedade . . .? ” – Williams responde:

I suppose I felt that, for all its difficulties, culture more conveniently
indicates a total human order than society as it had come to be used. I
also think by this time I had become so used to thinking with this
concept that it was just a matter of persistence as much as anything else.
After all most of the work I was doing was in an arena which people
called “culture,” even in the narrower sense, so that the term had a
certain obviousness. But you know the number of times I’ve wished
that I had never heard of the damned word. I have become more aware
of its difficulties, not less, as I have gone on. (Williams 1979, 154)5

5
Eu suponho que senti, por todas as suas complexidades, que cultura indica, convenientemente, uma ordem
humana mais completa do que sociedade. A essa altura, eu também acho que eu tinha me tornado muito
corriqueiro pensando desta forma, que foi apenas uma questão de persistência como qualquer outra coisa,
depois de toda a maioria dos trabalhos que eu estava fazendo numa região onde as pessoas falavam “cultura”
mesmo que de forma mais restrita, de modo que o termo tivesse uma certa lógica. Mas você pode imaginar
que por inúmeras vezes eu desejei nunca ter ouvido falar desta maldita palavra. Eu tenho me tornado mais
ciente de suas complicações, mas não menos que antes (WILLIAMS, 1979, p. 154).

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Os editores pontuam que o termo cultura, “uma ideia profundamente


comprometida”, na perspectiva de James Clifford é, todavia, um termo que ele “ainda não
pode descartar” (BENNETT, et al., 2005, p. 63). Talvez, admitindo um pouco da incerteza
de “cultura” (embora eu pretenda apenas ser convincente, mas, propositalmente, defender
as minhas apostas), então, poderíamos pensar o termo como um marco crucial. Em
Keywords [Palavras-chave], William traça uma complexa trajetória semântica do termo
a partir da sua origem, palavras que têm a ver com o biológico – de cólera: habitar,
cultivar, proteger, honrar com adoração - às suas preferências generalizadas a partir das
civilizações emergentes do desenvolvimento industrial do século XIX. Partindo do
Preface to the Critique of Political Economy [Prefácio para a Crítica da Política
Econômica] de Marx, Williams elabora sobre a “superestrutura”, ou a diferença da
“estrutura econômica”, e a partir desta distinção, ele consegue três “grandes categorias
possíveis de utilização” para cultura, uma vez que não era mais limitado em referências
para uma “continuidade literal do processo físico. . .” (1976, p. 80): (1) “um substantivo
independente e abstrato que descreve um processo geral do desenvolvimento intelectual,
espiritual e estético”; (2) “um substantivo independente, que indica quer seja ele utilizado
de um modo geral ou específico, um modo de vida peculiar, quer de um povo, um período
ou um grupo . . .” (p. 80). E é aqui que “cultura” se reúne com os aspectos antropológicos
e etnográficos, como “as culturas específicas e variáveis dos grupos sociais e econômicos
dentro de uma nação” (p. 79). (Michel de Certeau argumenta no monitoramento do
nascimento do exotismo e do conceito elitista de “cultura popular” no século XVIII na
França, que “é no momento em que uma cultura já não tem mais os meios para se
defender, que o etnólogo ou o arqueólogo aparece” (CERTEAU, 1974, p. 54)6. Em
terceiro lugar, a cultura no esboço do Keywords, é um “substantivo independente e
abstrato que descreve as obras e práticas intelectuais, especialmente, a atividade artística”
(p. 80).
O que Williams nos adianta, então, é um “argumento complexo sobre as relações
entre o desenvolvimento humano geral e um estilo particular de vida entre ambos, e as
obras e práticas da arte e da inteligência” (p. 80-81). Talvez pudéssemos alterar este

6
“La constation s’impose de nouveau: c’est au moment où une culture n’a plus moyens de se défendre que
l’ethnologue ou l’archeologue apparaisent” (p. 54).

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esboço para incluirmos um componente psicanalítico, que seria global e de pouco


impacto, ou seja, de cultura imaginária que está localizada em uma progressão espacial
e atemporal (isso, se pudéssemos chamá-la de “progressão”), uma sequência de
acontecimentos que não podem ser sempre marcados ou antecipados. Ao longo desta
dimensão, a cultura não tem uma definição - não é “preta” ou “branca”, “africana”, ou
“europeia”, ou de qualquer outra raça – por mais que os poetas persistam na produção do
poema, o imaginário cultural não fala o seu significado, é um conteúdo sem explicação.
Parece que desse ângulo a cultura é ilimitada e indefinida, como se fosse uma segunda
pele. A cultura, como um termo, poderia aderir a uma certa imobilidade e previsibilidade
no papel, mas para além de seus limites nominais de resgate, é visível apenas em seus
efeitos, e seu conteúdo mostrará adiante um repertório de complementos, de um
fantástico\imaginário para o material\atual que se espalha em pluralidade e numa
considerável variação. Deste ponto de vista, existam, talvez, apenas as culturas [negras].
Tão familiar como estes pontos de percepções podem ser, um retorno a eles, uma
vez ou outra, seria uma busca de orientação sobre um tópico que conhecemos tão bem,
mas, que na verdade, o ignoramos. Penso que o objetivo é “retornar” e conhecer o lugar
como se fosse a primeira vez. Parece que chegamos a um passe bastante peculiar, onde
tudo é cultura (ou parece ser) ou tudo imita a cultura. Será que alcançamos um nível de
altura ou profundidade que pode ser descrito como a dissolução do estágio político com
o resultado dos aparatos do estado/ideológico que são, aparentemente, internalizados em
níveis mais profundos de identidade, como Louis Althusser retratou? Seria impossível
imaginar e alcançar, através dos motivos que Althusser elaborou, uma transformação
radical e democrática de ordem social? E seria uma noção revisada e corrigida de
“cultura” que nos ajudaria a introduzi-la? Em um ensaio de 1965, Herbert Marcuse
argumentou que a cultura “é mais do que uma mera ideologia”, na medida em que as
“instituições dominantes da sociedade e os relacionamentos entre os membros desta
respectiva sociedade precisam demonstrar uma grande afinidade com os valores
proclamados . . .” (p. 190). Ou seja, o que uma sociedade alega é que seus valores “devem
fornecer uma base para a sua possível realização” (MARCUSE, p. 190). O autor afirma
que a cultura pode ser definida como um “processo de humanização, caracterizada pelo
esforço coletivo para proteger a vida humana, pacificar a luta pela existência mantendo
ela dentro dos limites controláveis, para estabilizar uma organização produtiva da

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sociedade”, para desenvolver os recursos intelectuais humano e, “reduzir e subliminar as


agressões, a violência e a miséria” (p.190-191). Marcuse argumenta
sobre duas experiências elaboradas em “Remarks on a Redefinition of Culture”
[“Observações sobre uma redefinição de Cultura”], bem como em One-Dimensional
Man, que outros críticos tendem a omitir de modo que boa parte do comentário trata a
“ideia de cultura” como uma suavidade elíptica, mas Marcuse penetra no cerne de uma
dificuldade que provavelmente ninguém irá reconhecer como dificuldade, a menos que
por qualquer razão, sua atenção tenha sido despertada: ele alega que a “validade” da
cultura “tem sido sempre confinada a um determinado universo, constituída por uma
tribo, identidade nacional, religiosa ou por outra identidade” (p. 191). À título de
complemento, “sempre houve um universo ‘estranho’ ao qual os objetivos culturais não
foram aplicados: Enemy [o Inimigo], Other [o Outro], Alien [o Alienígena], Out-cast [o
Elenco] - termos que não se referem inicialmente aos indivíduos, mas aos grupos, a
religiões, “estilos de vida” e sistemas sociais” (p. 191). No encontro com o Inimigo
[Enemy], “a cultura é suspensa ou mesmo proibida, e a crueldade pode com frequência
seguir seu curso” (p. 191). Reconhecemos nesta descrição de cultura o recorte que a
inscreve em uma analogia como a de Klein “bad breast” [“coração de pedra”]7, que
parece ser o único disponível hoje em todos os setores do globo. Mas isso é apenas na
“exclusão de crueldade, do fanatismo e da violência crua” que a “definição de cultura
como um processo de humanização” é permitida (p. 191). De acordo com esta
fundamentação, o guerreiro canibal nazista que se vangloriou por lançar mão de sua arma
sempre que a palavra (cultura) fosse proferida ao seu redor, “deu um tiro no pé” na medida
em que a “cultura”, na qual ele se inseriu e teria o humano que se render, não era de fato
cultura, em seu desejo de pulverização e assassinato do Outro. Na medida em que o termo
e algumas das práticas seguidas em seu nome são tão frequentemente carregadas como as
mais monstruosas instâncias de perversão e desgoverno, então somos forçados a admitir
sua fragilidade, até mesmo seu temor ocasional. Ao mesmo tempo, o potencial corretivo
que Marcuse esboçou, mas que em 1965 já não acreditava mais, com certeza, constitui o

7
Segundo Klein, o ego primitivo não pode perceber ou conceber os objetos em seu mundo externo como
pessoas inteiras e multifacetadas. Ao contrário disso, vive em um mundo de objetos unidimensionais que
tem boas e más intenções desde a infância. (Nota da tradutora)

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elemento analítico e transformador sobre o qual o investigador mantém um olho crítico.


A ambiguidade da cultura, em seus padrões de tempo oscilantes, dificilmente é tranquila
e confortável, mas um grau de desconforto é o melhor para lidarmos aqui, com um
qualitativo bastante alto de “capacidade negativa”. Mas essa imperfeição pode ser
suficiente para o caso.
O que está em jogo no “Remarks on a Redefinition of Culture” de Marcuse é uma
inspeção da cultura, pois envolve “a relação dos valores com os fatos” ou “os significados
da sociedade relacionados aos seus fins autodeclarados. . .” (p. 191). Ainda que Marcuse
estivesse usando esses argumentos durante quatro décadas, volto a eles aqui não apenas
para invocar as “duas culturas”, cultura-disputa, referente à “alguma dimensão superior
de autonomia e realização humana” e, civilização, em referência ao “reino da
necessidade, do trabalho e do comportamento socialmente necessários” (p. 192) - mas
também para percorrer a disputa ao abrir uma interlocução entre os teóricos da
problemática cultural negra e os pensadores da “imaginação dialética”, para invocar a
obra de Martin Jay8, porque parece-me que a “teoria crítica” e seus objetivos para a práxis
formam um elo entre essas positividades discrepantes entre diferentes culturas, raças,
línguas, sequências temporais, história e o terreno geoestratégico e formações sociais. Em
procurar uma ocasião interlocutória entre alguns dos escritos de Du Bois, e certas figuras
representativas da Escola de Frankfurt como o grande Marcuse, eu não estou nem
sugerindo nem buscando (nem mesmo suspeito) uma “ânsia de influência” de qualquer
tipo - Du Bois, por exemplo, era três décadas mais velho do que os membros mais antigos
da Escola de Frankfurt, assim como seu texto The Souls of Black Folk [As almas do povo
negro] precede a fundação do Institute of Social Research [Instituto de Pesquisa Social]
por quase uma geração - mas, antes, considerar como a conjuntura histórica que ocupamos
atualmente em seus terríveis, assustadores e inconfundíveis fracassos pode ser informada
por essas respectivas e sobrepostas teorizações que buscavam, por diferentes razões, uma
teoria crítica da cultura e da sociedade. O que eles tinham em comum era o encontro com
o extremo, Du Bois, tentando evitar o desespero no próprio nadir da vida negra e seu
desenvolvimento nas primeiras décadas do século XX, e a Escola de Frankfurt, cujos

8
Antes da Escola de Frankfurt de Rolf Wiggerhaus: sua História, Teorias e significado Político (1995), a
Imaginação Dialética de Martin Jay: Uma História da Escola de Frankfurt e do Instituto da Pesquisa Social
- 1923-1950 (1973) era um dos poucos, se o único, Estudos de Inglês existentes desta escola de teoria e
praxis.

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membros foram forçados a aprender, a bordo, “o medo da morte, o soberano mestre”


(HEGEL, 1931, p. 237). O tremor ao longo de cada fibra, e senti-lo todos os dias não é
uma circunstância comum, mas dentro destes respectivos contornos biográficos, foi o
gadfly9 que enviou mais de um relator alemão através do oceano, assim como homens e
mulheres negros para escreverem e pensarem como se a suas próprias vidas dependessem
disso.
O que Du Bois quis dizer para o pesquisador cultural de hoje, quando em 1903,
ele encontrou essas palavras no Souls of Black Folk? “E, em suma, nós, homens negros
parecemos o único oásis de fé e reverência em um deserto empoeirado de dólares e
espertezas”(DU BOIS, 1999, 16)? Ou quando expressou desapontamento, no final de sua
longa vida, aquela comunidade negra não tinha se tornado a vanguarda que levaria a
República Americana a um novo céu e uma nova terra? Du Bois morreu em Acra 10,
afastado de sua terra natal, na véspera da Marcha de 1963 em Washington 11. Segundo
relatos, se Du Bois tivesse chegado ao pódio naquele dia, ele poderia ter perdido
momentos de certa evidência, mas nós chegamos, e, desta vez voltamos, como se nunca
tivesse havido um Du Bois, uma marcha ou uma árdua luta pelos direitos humanos e
justiça social anteriormente em solo americano. Sejam quais fossem as suas perguntas, só
não seriam menos pungentes agora, porém ainda mais urgentes à luz do esquecimento
que varre a República como uma forte ferrugem. Nesse sentido, a interlocução que estou
colocando aqui cruza seus fios entre as leituras indispensáveis e o estimulo da ação - em
suma, o dilema definidor da vida e meditação de Du Bois.
O sentido visionário da cultura negra americana de Du Bois como uma crítica
potencial da cultura empresarial americana é considerado como uma trama de
contradições, feito a partir do plano da ordem histórica em que suas ideias foram
construídas. Shamoon Zamir expande essas observações, argumentando que as atitudes
culturais e éticas de Du Bois refletiam “sua educação puritana primitiva e sua crença da
Nova Inglaterra na cultura como o regulador moral dos excessos e explorações do mundo
comercial. . .” (ZAMIR, 1995, p. 107). Mas, na minha opinião, poderemos recuperar o

9
Gadfly é uma pessoa que interfere com o status quo de uma sociedade ou comunidade, apresentando novas
e potentes questões, geralmente dirigidas às autoridades. O termo está originalmente associado com o
filósofo grego Sócrates. (Nota da Tradutora)
10
Capital de Gana. (Nota da tradutora)
11
Manifestação política por justiça social, trabalho, liberdade e pelo fim da segregação racial negra nos
Estados Unidos. (Nota da tradutora)

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programa cultural de Du Bois no final do século como uma versão do que Marcuse
chamaria de humanitas, ou o objetivo da cultura, descrito como “modos de pensamento
e imaginação”, expressão essencialmente não operativa e transcendente, que transcede o
universo de comportamento estabelecido, não em direção a um reino de fantasias e
ilusões, mas em direção a possibilidades históricas” (p. 194). Por meio de Humanitas,
Marcuse enfatiza o “conteúdo cognitivo” das obras culturais, das “faculdades intelectuais
e de uma consciência intelectual” que não são “exatamente adequadas aos modos de
pensamento e do comportamento exigidos pela civilização dominante nos países
industrializados” (p. 193). Este “conteúdo cognitivo”, colocado sobre e contra modos
operacionais de pensamento e comportamento, constituiria e complementaria objetivos
transformadores análogos aos protocolos de reconstrução humana que Du Bois esboça
em todo o corpo de The Souls of Black Folk.
Em nota, o que foi descrito como o impulso fundador do Institute of Social
Research - ou seja, a articulação de uma “teoria da sociedade como um todo, foi uma
teoria da era contemporânea” (WIGGERSHAUS, 1995) - uma afinidade ampla com a
tentativa sistemática de Du Bois, começando com The Philadelphia Negro [O negro de
Filadélfia], concluída no final do século XIX, para aplicar o melhor conhecimento
disponível de metodologia do seu tempo (a era das jovens ciências sociais nos Estados
Unidos), ao “Negro Problem” [“Problema negro”]. A série da Universidade de Atlanta,
sob direção de Du Bois a partir de 1897, foi projetada para investigar cada fase da vida
negra. Uma ideia originária de “a conferência sobre educação, trabalho e agricultura”,
anualmente organizada, a partir do início da década de 1890, pelos Institutos Hampton e
Tuskegee (LEWIS, 1993, p. 218). Os estudos demarcam a primeira sequência analítica
sistêmica sobre a formação social negra na visão das ciências sociais empíricas. Podemos
também lembrar que o ponto de vista de Du Bois, complexo por ser uma mistura eclética
de filosofia, história e teoria econômica e trabalhista, ao lado da formação de Du Bois nas
línguas e nos clássicos, foi parcialmente confeccionado a partir de aspectos da filosofia
continental alemã, via Kant e Hegel, e reforçado por dois anos de estudo na Universidade
Humboldt de Berlim, onde Du Bois passou seu vigésimo quinto aniversário em 1893.
Quando Du Bois sugere que a contribuição do negro para as culturas do mundo será
“espírito”, creio que ouvimos ecos hegelianos que também ecoaram na formulação da
“dupla consciência”. Em todo caso, a teoria metafísica da ciência social duboisiana parece

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inteiramente compatível com a importância da formação cultural que Du Bois desenha


em “Of the Wings of Atalanta” [“Das Asas de Atalanta”] e em “Of the Training of Black
Men” [“Da Formação de Homens Negros”], ambos apresentados em The Souls of Black
Folk, bem como em um dos seus mais conhecidos ensaios - sua “Conservation of Races”
[“Conservação das Raças”] de 1897, que poderia ser considerada o marco inaugural da
fundação da American Negro Academy [Academia Americana do Negro], em 1897.
Como Marcuse definiu o “objetivo da cultura”, Du Bois adotou o conteúdo das “artes
liberais” como um marco para o aprendizado cultural e histórico. Embora o vocabulário
de Du Bois não fosse o da Escola de Frankfurt, até certo ponto, ele não estava em conversa
firmada com teóricos marxistas, a não ser que tenhamos de contar sua conversão tardia
ao comunismo nos anos de 1950, sua perspectiva materialista histórica sobre a questão
da “linha de cor” e seu profundo senso global da problemática da cor em relação às forças
geoestratégicas que, na maioria das vezes, eram muito mais sofisticadas e abrangentes do
que a força nacionalista negra das correntes de pensamento marxistas durante a década
de 1960. Certamente, Du Bois executou uma crítica marxista, embora não pudesse assim
ser chamada, de um lado de sua carreira para o outro, que associou a crescente
mercantilização das práticas sociais, econômicas e trabalhistas americanas e, sem dúvida,
a uma fatal desventura.

Michel de Certeau distribuiu as funções de “cultura” e “civilização”, ou o que C.


P. Snow elabora, como “duas culturas”, da seguinte maneira: le dur e le mou (CERTEAU,
1974, p. 233), ou como as funções “rígida” e “suave” da gestão social. A cultura para
Certeau está para “suave”. É a gestão social deixando uma marca, ou uma cicatriz,
chamada cultura, e esta região é “silenciosamente explorada pelo ‘rígido’12, embora os
cálculos objetivos tenham tentado evadir o desconhecido, o imprevisível - o que uma
determinada prática fará de sinais pré-estabelecidos, e o que os sinais tornam como
remetentes e receptores” (p. 233-234). Esta mobilidade, colocada em movimento pelo
imprevisível, contorna as fronteiras do esperado, que nas palavras de Marcuse, são os
modos operacionais de pensamento. A cultura, deste modo, descreve um “terreno de neo-
colonialismo”, e seu destino era se tornar “o colonizador do século XX, assim como a
tecnologia contemporânea instala seus impérios na cultura atual, não diferente das nações

12
“En fait, cette région molle est silencieusement exploitée par son contraire, le dur. . .. ”

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européias do século XIX, militarmente ocupadas e desarmadas” (p. 234)13. Esta série de
motivos leva Certeau a concluir que a cultura é o “sintoma canceroso e imoderado de uma
sociedade dividida entre a tecnocritização do progresso econômico e a folclorização das
expressões cívicas” (p. 235)14. Uma das eventualidades desta lesão é a privatização da
cidadania, assim como faz Lauren Berlant (BERLANT, 1997). Essa fragmentação do
processo político pelo corporativismo efetivamente expulsa a esfera pública e os objetivos
e conceitos relacionados a ela. Certeau conclui o argumento alegando que a luta
multiforme entre o “rígido” e o “suave” evidencia uma disfunção interna: a apropriação
do poder produtivo por organismos privilegiados tem como resultado uma apropriação
indevida do capital social e a regressão política do país, ou seja, o desaparecimento ou o
enfraquecimento do poder democrático na determinação da organização e configuração
do trabalho que uma sociedade realiza para si (p. 235)15. Embora Certeau reconheça que
seus exemplos são extraídos do cenário francês, talvez a cultura como o terreno de uma
patologia é, até mesmo, monótona em toda a zona ocidental, assim como são as saliências
e inchaços em um corpo, descreve o autor (p. 235)16. Segundo Certeau, os novos nomes
da lógica do desenvolvimento presidem o medo, a insegurança e o endurecimento das
ideologias surgidas anteriormente, bem como a regressão dos conservadores que voltam
a uma linguagem religiosa na qual eles não acreditam mais (p. 235-236)17.
Em nenhum outro lugar essas observações são mais estranhamente exibidas do
que nos Estados Unidos do início do século XXI. Ordenados entre meados e finais dos
anos 70, esses argumentos se lêem como uma cartilha da vida cotidiana nesta conjuntura
histórica em nosso contexto nacional. Poderíamos acrescentar a esta imagem as novas
realidades virtuais do ciberespaço e a bolha da solidão que infla, a dissolução das

13
“La culture est le terrain d’un néocolonialism; c’est le colonisé du xxe siècle. La technocratie
contemporaine y installe des empires, comme les nations européenes du xixe siècle occupaient
militairement des continents désarmés.”
14
“Elle est le symptôme démesuré, cancéreux, d’une société partagée entre la technocratisation
du progrès economique et la folklorisation des expressions civiques.”
15
“Elle manifeste un dysfonctionnement interne: le fait que l’appropriation du pouvoir producteur par des
organismes privilégiés a pour corollaire un désappropriation et une régression politiques du pays, c’est-à-
dire l’evanousissment du pouvoir démocratique de déterminer l’organisation et la représentation du travail
qu’une société fait sur elle-même.”
16
“Là déjà, dans le secteur culturel les symptômes pathologiques s’accumulent, comme les boutons et des
enflures sur les corps.”
17
“Ainsi les défis et les révisions déchirantes liés à la logique du développement favorisent à la fois
l’ambition de jeunes loups, énarques et gestionnaires du réformisme; le poujadism et les corporatismes
provoqués par le peur de l’insécurité; le raidissement d’idéologies nées en d’autre temps, ou la régression
des conservateurs vers des langages religieux auxquels ils ne croient plus.”

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fronteiras entre alvos civis e instalações militares expressas de maneira mais dramática
nos ataques do 11 de setembro contra o World Trade Center e o Pentágono de Nova
Yorque, os bombardeamentos na capital espanhola, bem como em Londres e, por último,
a ameaça da liquidação do “contrato social” do capitalismo avançado entre o cidadão e a
corporação, exemplificado na falha do Estado para proteger a propriedade privada dos
investidores em fracasso, tais como aqueles relacionados com Enron18 e WorldCom19. Se
a própria noção de “investimento” já não é mais sagrada, sinceramente, está seria a
verdadeira religião dos Estados Unidos. Desta forma, sabemos que estamos em um lugar
não tão diferente do terreno em que a garotinha chamada Dorothy20 do estado de Kansas,
Estados Unidos, esteve um dia.
Portanto, quer se encontre aqui ou não - no brilho mágico dos dedos da inocência
ou no pesadelo de um Estado mais maduro de consciência, independente da idade, mas
da vantagem de que se intercepta a imagem inescapável - milhões de cidadãos
alimentados da terrível carruagem de ilusões e mentiras. E, se é aí que se encontra, pode-
se dizer que, de fato, nossa cultura nacional e seus vários subfluxos não nos serviram
muito. Este espetáculo desanimador, bastante preciso ao próprio senso das coisas, é
descrito por Marcuse, antes de Certeau, como uma “forma e direção prevalecente”
evocadas em nome do “progresso da civilização [chamando] de modos operacionais e
comportamentais de pensamento, de aceitação da racionalidade produtiva dos sistemas
sociais dados, para sua defesa e aperfeiçoamento, mas não para sua negação” (p. 193)
Para Marcuse, foi o conteúdo cognitivo da cultura “superior”, cultura cuja tarefa era
precisamente esta negação, embora esta cultura “estivesse divorciada da labuta e da
miséria daqueles que por seu trabalho reproduzia a sociedade cuja cultura estava” (p.
193). Dessa forma, a cultura "superior" “tornou-se a ideologia da sociedade”, enquanto a
ideologia foi “dissociada da sociedade, e nesta dissociação era livre para se comunicar
com a contradição, acusação e a recusa” (p. 193). Embora a comunicação cultural seja
tecnicamente multiplicada - um computador em cada canto – “amplamente facilitada e
muito recompensada”, também é verdade que seu “conteúdo é alterado porque o espaço

18
Foi uma companhia elétrica americana, líder em distribuição de energia e comunicações, localizada em
Houston, Texas. Empregava cerca de 21 000 pessoas, mas decretou falência em 2001. (Nota da tradutora)
19
Foi uma empresa de telecomunicações americana, que depois de falida foi comprada pela empresa
(americana) Verizon Soluções Empresariais em 2006. (Nota da tradutora)
20
É um personagem fictício, heroína dos livroa de Oz, escritos pelo autor americano Frank Baum. (Nota
da tradutora)

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mental e, mesmo físico, no qual a dissolução efetiva pode se desenvolver é fechado” (p.
194). Marcuse deixa claro que ele não se refere a “eliminação do antigo conteúdo
antagônico da cultura”. “O destino de algum ideal romântico não sucumbe ao progresso
tecnológico, nem a progressiva democratização da cultura, nem a equiparação das classes
sociais, mas, sim, ao fechamento de um espaço vital para o desenvolvimento da
autonomia e da oposição, a destruição de um refúgio, uma barreira ao totalitarismo” (p.
194), em que se identifica a condição do destino do “homem unidimensional”. As
marcantes “Observações” de Marcuse carregam a força de fechamento, mas se afastam
de todos os frutos que o ambíguo possa dispersar, ou mesmo o próprio exercício de
Marcuse do paradoxo, expresso nos parágrafos inaugurais deste ensaio: a ausência de
cultura como um processo de humanização “pode muito bem ser parte integrante da
cultura, de modo que a realização ou aproximação dos objetivos culturais ocorrem através
da prática da crueldade e da violência” (p. 191). Este forte domínio de impulsos pode
explicar “o paradoxo de que grande parte da “cultura superior” do Ocidente tem sido alvo
de protesto, recusa e acusação - não apenas de sua miserável representação na realidade,
mas de seus próprios princípios e conteúdo” (p. 191)! Um, portanto, trabalha com as
imperfeições à mão e, às vezes, entra em contradição. Terry Eagleton argumenta em The
Idea of Culture [A Ideia de cultura], que a cultura “significa uma dupla recusa: do
determinismo biológico por um lado, e da autonomia do espírito por outro. É uma rejeição
tanto ao naturalismo quanto ao idealismo, insistindo contra o primeiro que existe dentro
da natureza, que o supera e desfaz e, contra o idealismo, que até a mais alta mente humana
tem suas humildes raízes em nossa biologia e ambiente natural”. (EAGLETON, 2000, p.
4-5). Eagleton conclui sua argumentação de uma maneira muito mais otimista do que a
pesquisa de Marcuse ou Certeau, sobre a cultura como sintoma patológico ou uma
desproporção de meios sociais. Para Eagleton, a cultura não é apenas o que vivemos, mas
também, para o que vivemos, considerando “afetividade, relacionamento, memória,
parentesco, lugar, comunidade, satisfação emocional, gozo intelectual, uma sensação de
significado final” (p. 131). Ao mesmo tempo, a cultura de Eagleton “também pode estar
muito próxima ao conforto”, evidenciando uma intimidade que a “possível cresça
mórbida e obsessiva, a menos que ela seja colocada em um contexto político esclarecido,
possa dosar essas imediações com informações mais abstratas, mas, também, de forma
mais generosa” (p. 131). Ele ressalta que a cultura “assumiu uma nova importância

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política”, mas em um movimento crítico complementar ao que outros críticos estão


fazendo atualmente, Eagleton insiste que a cultura também cresceu “demasiada e
esmagadoramente” e, que é hora de nós a “colocarmos de volta em seu lugar” (p. 131).
Ou seja, é tempo de recuperar o seu espaço político. Se retomassemos essas linhas de
discussão sobre o “conceito de cultura”, poderíamos colocá-las facilmente, creio eu, no
campo da “cultura negra”, porque parece que ela – nunca (não ainda) foi um direito
cultural oficial ou um sinal de ordem estabelecida – oferece um dos campos mais
frutíferos que permitiria que essas posições se destacassem nas mais ousadas tensões:
como uma propriedade analítica, a cultura negra - seria ao certo, a cultura da diáspora
negra – que nasce na penumbra das culturas oficiais e são historicamente emergentes num
determinado momento que poderíamos chamar justamente de modernidade. Mas, na
realidade, é a exclusão que Marcuse destacou como uma condição da cultura – que mais
tarde demarcaria um universo definido por um certo tipo de formação social, o que é,
portanto, excluído dele - é, na verdade, tão dependente dos seus outros tipos, de modo
que não podemos detectar nenhum momento de prioridade e sucessão nesta soma de
motivos, mas uma simultaneidade de um e outro, do mesmo e da diferença - de um lado
para o outro. O resultado pode ser semelhante à escotoma do campo de visão, “uma
mancha cega ou escura no campo visual”. (Provavelmente não seria atribuir os traços
individuais do ego às formações sociais inteiras, mas é, contudo, fascinante ponderar
meditações freudianas sobre o ato escotômico e, quão plausível [ou não] pode ser explicar
o que Robin Blackburn chama de “percepções racializadas da identidade”
[BLACKBURN, 1997, p. 4], emergente no limite do sistema mundial moderno). Embora
Althusser esteja abordando a problemática da leitura em suas referências ao campo visual,
seus argumentos parecem aptos para uma aplicação mais ampla. “No desenvolvimento
de uma teoria”, o autor sugere que “o invisível de um campo visível não é geralmente
qualquer coisa fora e alheia ao visível definido por esse campo” (ALTHUSSER,
BALIBAR, 1979, p. 26), mas, antes, o “invisível é definido pelo visível como sua visão
proibida” (p. 26). Em sentido estrito, portanto, essa relação ou “economia” não implica
um procedimento de oposição, nem mesmo uma permanente contradição, mas identifica,
em vez disso, uma divisão ou um exemplo de discrepância num movimento único que
percebe as condições de sua própria produção. O que essa “cegueira” da visão pode
parecer, verdadeiramente falando, poderia ser descrita como amnésia histórica na melhor

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das hipóteses ou um descrédito da realidade, na pior. Com o tempo, a cumplicidade ou a


falsa impressão estarão para a verdade das coisas e será representada como verdadeira.
Filósofos e críticos desta área, do Terceiro Mundo / Mundo Africano, argumentaram que
as comunidades dominadas na “cegueira” do “insight” cultural ocidental experimentaram
claramente metade do seu aprendizado histórico e da carreira discursiva como uma
resposta aos efeitos e afetos dos epifenômenos da “cegeira”. Enquanto isso, a investigação
sistemática sobre essa resposta tem sido chamada de “desalienação”: nas primeiras
páginas de Black Skin, White Masks [Pele Negra, Máscaras Brancas], de Frantz Fanon
(1967, p. 10-11). No conceito do significado histórico de Presence Africaine [Presença
Africana], de V. Y. Mudimbe (1992, p. xxii), e nas manobras complexas da Caliban’s
Reason [Razão de Caliban], de Paget Henry (2000, p. 1-18), uma avaliação completa do
que Mudimbe chama de articulações teóricas de uma “dupla missão” (p. xxii) é montada
num contexto de reflexão contemporânea.
Esses pensadores esboçam o trabalho de “desalienação”, por exemplo, no caso do
“Negro of the Antilles” [“Negro das Antilhas”], a metáfora de Fanon para a personalidade
do complexo colonial-neocolonial. Mudimbe medita na criação de Presence Africaine
[Presença Africana], uma revista em circulação que começou sua história como o
principal ponto de partida da “Negritude”, durante a década de 1940 em Paris, quando
jovens escritores e intelectuais criativos do Caribe e do continente subsaariano
exploraram efetivamente as desterritorializações das culturas francófonas. Seus analistas
contemporâneos examinam os historiadores, os críticos e ativistas, oriundos da Diáspora
Africana, que fazem avançar o conjunto de protocolos que vêm à tona sob a rubrica do
Pan-Africanismo. Mas se considerarmos as culturas em questão como mais do que
reativas e contraditórias, então como podemos abordar suas disposições internas?
Em “Originary Displacement” [“Deslocamento Originário”], Nahum Chandler
lança um argumento que se concentra no cânone de Du Bois, mas esta escrita
extraordinária sobre a formação do sujeito na instância da histórica afro-americana não
só empresta um ângulo de “desalienação”, mas, essencialmente, desaloca a sua lógica
para o interrogatório dos termos próximos em que se baseia (CHANDLER, 2000).
Chandler argumenta, a partir da “dupla consciência” de Du Bois, que a formação da
identidade afro-americana pode ser referida não apenas às identidades americanas como
tais, mas às “subjetividades modernas em geral” (p. 251). Situando seu próprio protocolo

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diretamente aos precintos das epistemologias continentais e pós-coloniais


contemporâneas, Chandler persegue escrupulosamente a aniquilação de “pressupostos
acríticos sobre a identidade afro-americana, principalmente através do itinerário do
conceito de raça (ou o conceito de pureza) que o organiza” dentro das disciplinas
ocidentais do conhecimento (p. 251). O projeto de Chandler aqui incorpora uma leitura
da Narrative of the Life of olaundah Equiano, or Gustavus Vassa, the African [Narrativa
da vida de Olaudah Equiano, ou Gustavus Vassa, o africano], escrito por ele mesmo,
publicado primeiramente na Inglaterra em 1789. Chandler mostra que mesmo sob a
circunstância mais extrema imaginável, tal como a condição de escravidão quanto a
subjetivação e a subjetividade ocorrem na relação entre as partes. Partindo da irônica
colocação de posições de Equiano21 de proprieda-do-outro para dono de propriedade (que
transforma sua relação com outros humanos, assim como com as coisas), Chandler
conclui que podemos olhar para Equiano nos espaços intersticiais entre posições fixas,
como na diáspora africana e européia. Mas Equiano e sua narrativa aparecem no ensaio
como um caso exemplar, tanto em sua marginalidade com relação à hegemonia quanto
em sua centralidade potencial no desconhecimento da restrição conceitual que fixa as
subjetividades no seu devido lugar. Se, portanto, o Equiano é o “exemplo” de afro-
americano, do americano e da formação sujeito em geral, certamente poderíamos dizer o
seguinte:

Assim, na medida em que o compromisso de qualquer investigação é


desenvolver a compreensão mais abrangente possível (e toda
investigação, quer sob o título de ciência ou interpretação, é envolto a
partir do momento em que formula uma questão de forma especulativa
e, consequentemente, filosófica, discursiva), o bom (ou melhor)
exemplo, que faz a “boa” teoria, é o “mau” (ou difícil) exemplo (p. 253).

Chandler está, de imediato, no ataque disciplinar, em busca de uma leitura atenta,


e indagando as concatenações da formação do sujeito, referindo-se a ele “como a
possibilidade de uma dessedimentação geral de uma premissa conceptual tradicional que
organiza a interpretação do sujeito afro-americano” (p. 255). Colocar essa premissa em
questão “pode ajudar ainda mais a criar uma nova maneira de pensar a questão do sujeito
afro-americano ou da diáspora africana, cujas implicações podem ter força sobre nossa

21
Um africando nascido em 1746, escravo liberto e proeminente em Londres, conhecido como Gustavus
Vassa, que apoiava o movimento britânico contra o tráfico de escravos. (Nota da tradutora)

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compreensão dos modos de constituição de qualquer assunto histórico que possa ser
chamado Americano, especialmente o americano “Branco” e, da mesma forma, para
aqueles que chamamos de modernos ou que são colocados sob o tema da modernidade
em geral” (p. 255). Esta escrita se move poderosamente através do “exemplo”, bem como
sobre uma visão geral de certos exemplares de textos historiográficos, a uma das
formulações-chave de Chandler sobre a força do princípio desproporcional - isto é, a
“figura do outro” - e como ele dá origem “ao movimento de sua produção à figura da
hegemonia - neste caso, ao sujeito da branquitude” (p. 257). Estamos assim conduzidos
ao momento do “entre” e do seu fechamento antecipado no choque desse reconhecimento
- a posição do sujeito “é construída durante o relacionamento, e não antes” (p. 282). De
margem à centro, de um lugar para outro, o sujeito “desencorajado” de Chandler, da
história e da investigação crítica agora nomeia a própria formação da modernidade. Fazer
tremer “ao desalojar as camadas de instalações sedimentadas que mantêm [uma
conclusão] no lugar” (p. 257). Em suma, a subordinação e o domínio são espaços
reservados neste argumento para os acordos mais frágeis que estão inteiramente abertos
para derrubar, pelo menos, do lugar onde a questão é colocada.
Se a subordinação, então, já é iminente na postura hegemônica e na postura
hegemônica não subordinada, não existe mais a cultura “negra” ou “branca”, per se, e se
alguma vez existiu, o monopólio de poder implícito na sua formulação, foi “apenas
diferença de força” (p. 282). Embora eu aceite as linhas gerais das teorizações de
Chandler (que meus próprios textos tendem a sustentar), ainda nos resta o “apoio”
político, histórico e material da “diferença”, talvez até suas “evidências” ilusórias e
fantásticas que ocupam o palco histórico. Chandler sustenta que o exemplo de Du Bois,
como figura exemplar, é “bom para refletir”, e que sua “dupla consciência” responda
imediatamente a uma ordem geral de casos e “aos limites do exemplo como se estivessem
inseridos em seu contexto particular e específico” (p. 254). Desta forma, devemos pensar
que a “cultura negra” que poderia ser estabelecida como um “exemplo”, poderia nos levar
de volta ou nos colocar diante da problemática da cultura em geral e “como tal”.
Parece, então, que Du Bois e os teóricos contemporâneos precisam da
especificidade do contexto para articular uma contextualização do procedimento
ontológico, de modo que, generosamente, possamos ter “uma fatia do bolo e comê-la
também”. Nesse caso, a “desalienação” do filósofo pode muito bem constituir uma

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espécie de momento vestibular através do qual o limite de “dessedimentação” pode fazer


o seu trabalho e, talvez, a disposição interna de projetos e períodos culturais específicos
esteja configurada neste duplo campo de duelo - isto é, a aproximar-se o suficiente da
própria situação para “vê-la” (a capacidade de auto-reflexão de Du Bois, por exemplo,
que marca um movimento de “desalienação” e, além disso, a nomeação teórica e
sistemática de um auto-desenvolvimento, isto é, por sua vez, um movimento de
“dessedimentação”).
As culturas diaspóricas em questão foram, então, convocadas a desfazer as
condições de alienação, simultaneamente com a exploração da sua força atual para fazer
novas, trazer à existência um repertório de predicados que não existiam antes, até onde
podemos ver. Como não podemos separar facilmente as imposições uns dos outros,
teríamos que dizer que as culturas negras do Novo Mundo, bem como suas formações
paralelas em outras partes do globo, não são apenas formas crioulas adotadas a partir dos
implementos materiais e imaginativos acessíveis, mas que eles também são
“esquizofrênicos”, composto de uma disposição que carrega a sua declaração e contra-
afirmação, que desfaz a alienação e constituem seu próprio ponto de vista. Seria justo
perguntar como esse resultado é diferente de outras formações culturais, e a que ponto
seria ele ou não, a não ser que o eixo de desalienação / alienação fosse violentamente
inserido nas narrativas que as culturas negras e da diáspora africana contam sobre si
mesmas. Portanto, as culturas negras parecem reconhecer que, nas palavras do pensador
abolicionista Theodore Parker, “o arco do universo moral é longo, mas inclina-se para a
justiça” (BRANCH, 1988, p. 197). Todavia, poderíamos dizer que a cultura negra, tendo
sido pensada como uma afirmação alternativa - uma contraposição à cultura / civilização
americana, ou à cultura / civilização ocidental, em termos mais gerais, identifica a
vocação cultural como um espaço de “contradição, acusação e recusa”. É interessante
que, precisamente, porque as culturas negras surgiram no mundo da violência normativa,
do trabalho coercivo, do esmagamento virtual absoluto e da luta cotidiana pela existência,
seus súditos poderiam imaginar, ou ousar imaginar, um mundo além das tecnologias
coercivas de suas vidas cotidianas, porém, analizando as possibilidades históricas que
marcam constantemente o imenso trabalho de emancipação de Du Bois. “O Espírito”
através deste cânone era o retiro, o “oásis” dos impulsos comerciais da civilização
convencional, ao mesmo tempo em que era o encontro mais intenso com o real. Em suma,

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a noção de possibilidade histórica dominou o campo discursivo da obra de Du Bois, bem


como toda a obra interpretativa da teoria da cultura negra, porque foi posta de lado a
cultura negra, que em virtude do próprio ato de discriminação, poderia tornar-se cultura,
na medida em que foi historicamente forçada a transformar seus recursos de espírito em
recusa e crítica. Mas uma crise estaria agora à vista.
E aqui está o paradoxo: à medida que a cultura negra se desdobra no seu patamar
atual, ela se aproxima cada vez mais da postura que complementa os princípios
democráticos e as imposições das práticas neoliberais. Como o “Sonho Americano”, ela
também é um brilho em nossos olhos. Podemos hoje presenciar a formação social negra
cada vez mais acentuada e pavoneada em direção à “civilização” e às tecnologias
intelectuais, crescendo desacreditada e moribunda. Como objeto das análises de Du Bois
e Marcuse, essas tecnologias reforçam a falsa supremacia da mídia corporativa e o valor
comercial supremo. Ouvindo as palavras em seu eco irônico, pode-se perguntar: qual é o
preço da “americanização” quando um dos últimos baluartes da crítica cai? Quando a
credibilidade moral imaginária do negro agora se traduz em uma habilitação das práticas
mais repressivas entre as democracias do mundo atual? De certa forma, se não existe a
cultura negra - ou não mais existe (porque ela foi “substituída”), então, nós precisamos
dela agora. E se isso é verdade, talvez a cultura negra - como a recuperação da vantagem
crítica, como uma dessas vantagens que podem ser espionadas, e que já não se baseia
mais na “raça” - ainda está por vir.

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TRADUZIR A LITERATURA EM SITUAÇÃO DE DIGLOSSIA1

Raphaël Confiant2

RESUMO: Este artigo trata de coexistência de duas línguas no escritor antilhano


francófono: "aquela que fala em voz alta”, o francês, e "aquela que murmura" por trás, o
crioulo, a língua muda. Esta o conduz a adotar uma atitude paradoxal em sua escrita que
ele vive como uma tradução inconfessa. Por fim, quando se traduz tal tipo de texto
literário, o tradutor não deve esquecer que sob a língua visível fala uma outra língua e
que é necessário estabelecer uma relação de 2 (francês+crioulo) para 1 (língua de
chegada), e trabalhar no quadro da diversalidade linguística.

PALAVRAS-CHAVE: diglossia, crioulo, escrita literária, tradução

ABSTRACT: This paper examines the coexistence of two languages for Francophone
Carribbean writers: French, the loud-voiced language and Creole, the dumb tongue, the
language whispered underneath. Consequently, creative writing takes a rather paradoxical
turn for them: it becomes an unavowed translation. And when such texts have effectively
to be translated, translators mustn't forget that under the visible language lies another one;
hence the necessary passage from 2 ( French + Creole) to 1 (target language), implying
their taking into account linguistic diversity.

KEYWORDS: diglossia, Creole, literary writing, translation

O escritor antilhano e guianense, em particular aquele da zona franco-crioulófona


que engloba Martinica, Guadalupe, Guiana Francesa e Haiti, é um tradutor disfarçado ou,
mais exatamente, um tradutor inconfesso. Por “inconfesso” é preciso entender o fato de
que sua atividade de escrita nunca é tida explicitamente como do domínio da tradução,
exceto de modo adjacente quando, por exemplo, ele se vê forçado a inserir em seu texto

1
Raphaël Confiant, “Traduire la littérature en situation de diglossie”, Palimpsestes, n. 12, 2000. Tradução
de Marcos Bagno e Dennys Silva-Reis.
2
Raphaël Confiant é professor da Universidade das Antilhas et da Guiana, doctor honoris causa da
Universidade Autônoma de Santo Domingo. Escritor reconhecido em francês e em crioulo, é autor de
diversos romances, contos, narrativas e poemas, entre os quais: Eau de café, Ravines de devant-jour,
L’Allée des soupirs, La Savane des pétrifications, Le Meurtre du samedi-gloria, Jik deye do Bondye, Bitako-
A, Jou bare, Dictionnaire des titim et sirandanes. Cofundador com Patrick Chamoiseau do Movimento da
Crioulidade (Mouvement de la Créolité), escreveu em colaboração com este vários ensaios sobre a
questão: Lettres créoles: tracées antillaises et continentales de la littérature; Éloge de la créolité.

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notas de rodapé. Todo leitor da literatura antilhano-guianense conhece a mais famosa


delas: “Morne: petite colline des Antilles” (“Morne: pequena colina das Antilhas”).

De fato, alguns romances, haitianos em particular, se assemelham a verdadeiras


colchas de retalhos de tal modo estão recheados não somente de notas de rodapé, mas
também de termos ou expressões em itálico, quando não em negrito. É o caso das obras
de um Justin Lhérissé ou de um Fernand Hibbert do início do século XX. Por vezes, essa
atividade tradutória pode se tornar mais discreta ao assumir a forma de um glossário de
termos crioulos colocado no final do livro.

Neste artigo, me dedicarei a explorar as causas dessa escrita que qualificarei de


escrita tradutora; num segundo momento, examinarei suas manifestações concretas em
alguns textos antilhano-guianenses; por fim, tentarei trazer à luz as consequências que
essa escrita tradutora tem inevitavelmente sobre a tradução, no sentido próprio do termo.

Uma escrita em situação de diglossia

A desterritorialização da língua francesa, e seu reenraizamento em diversas


regiões do mundo, acarretou, como bem sabemos hoje, não somente uma remodelagem
dessa língua, mas sobretudo criou situações sociolinguísticas inéditas com o
aparecimento de ecossistemas marcados pelo coabitação não igualitária das línguas.

O ecossistema linguístico antilhano-guianense é um dos mais originais na medida


em que coloca em presença, não duas línguas de igual tradição escrita, como na África
do Norte, nem diversas línguas de igual ancestralidade, como na África negra, mas sim
uma língua de antiga tradição escrita, o francês, com uma língua nova, parcialmente
aparentada a este, o crioulo, prisioneira de sua oralidade, embora se tenha começado a
grafá-la já em meados do século XVIII.

Desde o trabalho de Charles Ferguson (1959)3, essa situação é classificada como


situação de diglossia, conceito que desde então vem sofrendo múltiplas reformulações e
contestações, a tal ponto que chega hoje a ser rejeitado por algumas pessoas. Parece-nos,
por nossa parte, que uma definição mínima, embora insuficiente como veremos a seguir,

3
Charles Ferguson, “Diglossia”, Word 15, 1959.

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da diglossia ainda permanece válida, tanto para o mundo crioulo quanto para o mundo
árabe (árabe literário vs. árabe dialetal), para a Occitânia, a Catalunha ou o Quebec por
exemplo, ou seja, a coexistência conflituosa no interior de um mesmo ecossistema de pelo
menos dois idiomas, dos quais só um tem status de “língua”, enquanto o(s) outro(s) é(são)
considerado(s) como patoá(s)4. Esse status conferido à língua dita dominante, o francês
nas Antilhas, permite a ela monopolizar na prática todos os âmbitos prestigiosos ou
oficiais da comunicação, ao passo que a língua dominada se restringe ao falar cotidiano
e à expressão da informalidade, quando não da trivialidade. Aqui, a dimensão conflituosa
é a única pertinente pois, excetuado, novamente, o caso particular do crioulo, o valor dos
sistemas linguísticos dominados não está em causa: o árabe é escrito muito séculos antes
do francês, dispõe de grafia própria e é dotado de um livro sagrado, o Corão, que lhe
fornece um prestígio indiscutível; o catalão e o francês quebequense também não são,
enquanto sistemas linguísticos, considerados inferiores ao espanhol e ao inglês.

Nessa repartição pesadamente desigual das tarefas comunicativas, o domínio da


escrita desempenha um papel fundamental.

Nas Antilhas-Guiana, ela servirá não somente para assentar e legitimar a


onipotência do francês, mas sobretudo para recalcar qualquer incursão explícita ou
disfarçada do crioulo naquilo que é, para o francês, uma verdadeira reserva de domínio.
A incursão direta do crioulo no campo da escrita tem sido, há três séculos, perfeitamente
impedida, já que, apesar do fato de, desde 1754, terem sido produzidos textos de vocação
literária nessa língua e tal produção nunca ter deixado de existir ao longo da história da
região (o primeiro romance em crioulo, Atipa, du guianense Alfred Parépou, data de
1885), a literatura crioulófona, e a escrita crioulófona em geral, vivem sempre numa
absoluta marginalidade social. Se, na oralidade, o crioulo dispõe daquilo que Jean
Bernabé (1983) chama de “esferas de excelência”, isto é, espaços comunicativos onde ele
reina sem concorrência, a situação é totalmente outra na escrita, onde, ao contrário, ele
só existe no modo da insignificância ou da gratuidade.

4
Patoá, do francês patois, “dialeto essencialmente oral que difere da língua oficial” (Dicionário Houaiss)
[NT].

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Em contrapartida, a incursão disfarçada ou indireta do crioulo nunca pôde ser


subjugada. Por incursão disfarçada entendemos o fato, para o crioulo, de penetrar
clandestinamente no campo da escrita por intermédio daquele mesmo que o impede, o
francês, e isso apesar da guerra sem tréguas travada pela escola contra o que ela chama
pejorativamente de crioulismo (créolisme), verdadeiro pecado mortal que pode levar o
aluno diretamente para o inferno das notas baixas, da reprovação nos exames, quando não
à expulsão pura e simples da instituição escolar. O “crioulismo natural”, que distinguimos
do “crioulismo literário”, afeta a totalidade dos falantes e, evidentemente, dos escreventes
antilhano-guianenses, e sob formas e modalidades diversas conforme o posicionamento
de cada um na escala sociolinguística. O crioulismo, natural ou literário, depende sem
dúvida de uma prática tradutória cujo funcionamento examinaremos, na qualidade de
interferência linguística já muito bem estudada.

Para tanto, cabe precisar a configuração, esboçada mais acima, da diglossia


antilhano-guianense, configuração que podia dar a impressão de uma repartição ao fim e
ao cabo harmoniosa das tarefas comunicativas entre francês e crioulo. Na realidade, o
termo ecossistema linguístico, em sua conotação biologizante, não é inocente: quer dizer
que os organismos5 linguísticos que ali vivem tentam aumentar seu espaço vital, tentando
eliminar os organismos concorrentes.

Dessa “guerra de línguas” nascerá, não uma bipartição do espaço linguístico, mas
uma quadripartição, conforme mostra Jean Bernabé (1983). Este autor define, de fato, a
diglossia antilhano-guianense como um conjunto de relações conflituosas, relações de
continuum-discontinuum, conforme a seguinte ordem hierárquica:

Francês-padrão
Francês crioulizado
Crioulo afrancesado
Crioulo basiletal6

5
Decerto seria melhor falar, na esteira de Salikoko Mufwene, professor de linguística da Universidade de
Chicago, de “espécies linguísticas” e não de “organismos” (1997).
6
Um basileto é uma “variedade baixa utilizada num sistema de comunicação”. J. Bernabé e o GEREC
recorrem também à noção de basileto para caracterizar o conjunto dos fatos mais desviantes com relação
ao francês. “Trata-se, neste sentido, de um crioulo ‘construído’, no qual se encontram reunidas todas as
formas mais afastadas do francês, sejam elas atestadas ou não na comunicação real. Tem-se portanto aí uma

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Qualquer zona compreendida entre o francês-padrão e o francês crioulizado é


afetada por fenômenos de “crioulismo natural”, e a prática deste, numa comunidade
totalmente diglota 7 , não afetará somente os falantes/escreventes que têm apenas um
domínio restrito ou medíocre do francês-padrão, mas sim a totalidade destes, ainda que –
e aqui se desliza insensivelmente rumo ao “crioulismo literário” – aqueles que têm um
bom domínio do francês-padrão possam, ocasionalmente, tanto no oral quanto no escrito,
se entregar voluntariamente a essa prática com um objetivo estilístico ou pragmático.

Na oralidade, a utilização voluntária do crioulismo é, por exemplo, um dos


recursos principais do humor antilhano. São os efeitos dessa prática no nível da escrita
que passarei a examinar agora.

Elogio da língua muda

Quando um antilhano escreve, há de imediato duas línguas que falam, há quatro


polos linguísticos que se põem em movimento. Há aquela que fala em voz alta, o francês,
e aquela que murmura, o crioulo. Jacques Coursil8 chama esta última de língua muda, e
se trata de uma muda que fala. Como ela resolve isso? Pela tradução, justamente, por uma
espécie de tensão tradutora generalizada que vai atravessar de ponta a ponta a escrita
antilhana, mesmo aquela que aparenta utilizar exclusivamente a variedade-padrão, como
faz a poesia de um Aimé Césaire. Evocamos, no início do artigo, os procedimentos mais
espetaculares, quando não os mais grosseiros (notas de rodapé, termos em itálico ou
negrito, glossário), daquilo que é preciso chamar de diglossia literária, na esteira de
Robert Lafont e dos sociolinguistas occitanos e catalães. Essa tensão tradutora vai muito
além do domínio lexical e alcança igualmente os domínios da morfossintaxe e da retórica
do francês utilizado pelos autores antilhano-guianenses. Emile Yoyo (1975) mostrou a
presença dessa morfossintaxe em Saint-John Perse, domiciliando assim sua poesia em

atitude voluntarista, que tende a definir o crioulo como o que se opõe na comunicação ao francês-padrão e,
por outro lado, a propor como modelo e a constituir como variedade normativa o crioulo assim construído”
(Marie-Christine Hazael-Massieux, Écrire en créole. Paris, L’Harmattan, 1993, p. 287).
7
Mesmo no caso do Haiti, considerado monoglota em 90%, se se admitir a teoria do “campo central” e do
“campo periférico” da diglossia elaborada por J. Bernabé (1987)
8
Jacques Coursil, “L’éloge de la muette”, Césure, Revue de la convention psychanalytique, n. 11, La
commotion des langues, 1996.

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seu berço linguístico original, o da diglossia antilhana, embora houvesse a tendência na


Europa a fazer do autor de Anabase o modelo de uma escrita altivamente clássica. Yoyo
demonstra de que modo, e é um exemplo mínimo, a língua muda fala no interior mesmo
do francês quando Perse escreve: “Pour moi, j’ai retiré mes pieds” (literalmente: “Por
mim, retirei meus pés”).

Um leitor francófono não antilhano compreenderá “Pour moi, j’ai ôté mes pieds”
(“Por mim, tirei meus pés”), verso no mínimo obscuro, já que o verbo ôter em francês
exige automaticamente um complemento: tira-se alguém ou alguma coisa de algo. O
leitor antilhano não terá nenhuma espécie de hesitação, pois, para ele, esse verso,
decalque do crioulo guadalupense “An tiré pyé an mwen”, significa simplesmente “fui-
me embora”. Em romancistas como Jacques Roumain, Joseph Zobel ou Simone Schwarz-
Bart, além dos decalques, encontraremos sobretudo transposições que, embora possam
ser apreciadas por sua beleza formal pelo leitor não antilhano, permanecem para ele
frequentemente obscuras quanto a suas conotações extralinguísticas. É o caso da
transposição dos provérbios crioulos praticada com talento por Simone Schwarz-Bart em
Pluie et vent sur Télumée Miracle.

Notas de rodapé, glossário, decalques e transposições têm a ver com uma prática
ora selvagem ora erudita da tradução, mas essa tensão tradutora que atravessa a escrita
antilhana vai ainda mais longe, pois conduz o autor a se tornar tradutor no sentido
habitual, técnico, do termo, coisa que levou Maximilien Laroche (1976) a afirmar que
toda a literatura francófona haitiana não passaria no fundo de um vasto empreendimento
de tradução.

Aqui, é preciso insistir, não se trata de forma alguma da tradução no sentido


metafórico do termo como quando se diz “em Germinal, Zola traduz bem o sofrimento
dos operários das minas”. Trata-se, isto sim, de uma tradução no sentido próprio do termo.
Com efeito, quando os camponeses dos romances La Rue Cases Nègres do martinicano
Joseph Zobel ou Gouverneur de la rosée do haitiano Jacques Roumain se exprimem em
francês, trata-se de uma verdadeira tradução.

O camponês antilhano é crioulófono e, no caso do Haiti, crioulófono monolíngue,


o que significa que os romancistas antilhanos estão incessantemente, ao longo de suas

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obras, traduzindo em francês a fala do camponês (assim como de todos os outros


personagens populares). Tal como mostra Jean Bernabé (1983), na literatura antilhana, a
língua indígena da narrativa não é a língua indígena da realidade, e o francês exerce um
papel de procuração com relação ao crioulo. É fácil medir os efeitos devastadores que
essa tradução pode ter no plano da verossimilhança das obras literárias antilhanas.
Conforme os autores utilizem um francês mais ou menos padronizado ou, ao contrário,
um francês mais ou menos crioulizado, eles correm o risco de artificializar seus
personagens. Assim, os diálogos amorosos entre Manuel e Anaïse em Gouverneurs de la
rosée (1948) se parecem com diálogos à moda de Tristão e Isolda por causa do nível de
língua muito elevado utilizado por J. Roumain, diálogos que seriam impossíveis na
realidade camponesa haitiana, não somente por causa da miséria extrema mas também
porque as relações amorosas crioulas não são verbalizadas de maneira romântica, decerto
por causa dos séculos de escravidão durante os quais as relações homem-mulher, quase
exclusivamente aliás senhor branco/escrava negra, eram marcadas pelo signo da
brutalidade, quando não do estupro permanente. É o que se vê, portanto: ao se tornar
tradutor, o romancista antilhano pode se tornar traidor da realidade antilhana, e é por isso
que um autor como Patrick Chamoiseau, num desejo de adequação máxima entre a língua
de sua literatura e a língua do real, inventa um francês no qual enxerta, no sentido quase
botânico do termo, o crioulo. Trata-se no caso de uma tentativa que visa reproduzir a
oralidade crioula sobre a literalidade francesa. Os djobeurs, isto é, os carregadores de
Chamoiseau em Chronique des Sept Misères (1986) sem dúvida não falam sua língua
verdadeira, o crioulo, mas usam um francês de tal modo habitado pelo crioulo que dá, ao
leitor em todo caso, a ilusão de estar lendo crioulo. Todavia, o autor não se contenta em
buscar o realismo linguístico somente no nível do diálogo, como faziam tradicionalmente
os romancistas antilhanos, em cuja obra a narrativa é em francês-padrão e o discurso em
francês crioulizado: ele vai se esforçar por forjar peça por peça uma língua nova que visa
se apoderar da totalidade de seus enunciados literários e não só nos diálogos. Nisso
Chamoiseau tenta escapar – tentavia vã mas bela – da obrigação permanente de traduzir
que pesa sobre a escrita francófona antilhana e guianense. Em Chamoiseau, duas línguas
distintas, embora estreitamente abraçadas, continuam a falar e este é um verdadeiro
desafio para os tradutores de seus romances.

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Traduzir a literatura diglóssica

Quando um tradutor trabalha com um texto literário francófono das Antilhas-


Guiana, ele não pode ignorar que sob o francês fala, sem descontinuidade, uma outra
língua, o crioulo, sob pena de desfigurar a tradução. Infelizmente, porém, é o que se
produz na maior parte do tempo. Se as consequências são menos graves quando se trata
de autores que usam o francês aparentemente desprovido de qualquer vestígio de crioulo,
como Aimé Césaire, elas se tornam catastróficas no caso de um Edouard Glissant ou de
um Patrick Chamoiseau.

O problema reside no fato de que, até o momento, toda tradução é concebida como
a passagem de uma língua-fonte a uma língua-alvo, de uma língua de partida a uma língua
de chegada. A gente se vê na confrontação do Um ao Um. O empreendimento de tradução
é vivido, metaforicamento, como a passagem de uma fronteira terrestre entre dois países
com tarifas alfandegárias mais ou menos elevadas a pagar, conforme esses países, essas
línguas portanto, sejam fronteiriças ou não, culturalmente aparentadas ou não. Ora,
traduzir um texto francófono antilhano-guianense consiste em passar de dois para um,
operação complicada, desconcertante, já que a grande maioria dos tradutores não conhece
a língua crioula. Ficam então reduzidos a trapacear, fingem não ver nem ouvir a língua
muda que fala sob o francês, no francês e com o francês. O problema pode ser resumido
assim: como traduzir um texto escrito não em uma mas sim em duas línguas-fontes (duas
línguas-fontes, ainda por cima, fortemente imbricadas)? Conservar somente a língua-
fonte de superfície, isto é, o francês, expõe o tradutor a contrassensos permanentes e, no
plano estilístico, ao aplainamento sistemático dos efeitos induzidos pela fricção do
francês e do crioulo.

Eis alguns exemplos dessa atitude assumida na tradução italiana de L’homme au bâton
(1993), de E. Pepin:

1. “Il y avait son allurance...” (p. 9): “C’era la sua andatura”. O termo allurance é
uma invenção do autor que parece ser crioulo e que, capturando a atenção do leitor
francófono não crioulófono, não lhe é incompreensível. Essa pseudocrioulização
do francês allure tem por efeito acrescentar o sema “sexualidade”, o qual fica
totalmente ausente da tradução italiana andatura.

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2. “Le marchand de jus de canne” (p. 11): “Il venditore di canna di zucchero” (p. 9).
Há aqui uma omissão, ou mesmo um erro de tradução, pois a palavra jus (“suco”
ou, no caso, “caldo de cana”) desaparece, o que leva o leitor italiano a pensar que
há vendedores ambulantes de cana de açúcar nas ruas das cidades de Guadalupe.
3. “Mme Denise ouvrait ses cocos-yeux” (p. 14): “Madame Denise con gli occhi
fuori delle orbite” (p. 11). Há aqui excesso de tradução e um deslizamento de
sentido, porque “cocos-yeux” conota bem mais a forma redonda e o tamanho dos
olhos do que o fato de estarem fora de suas órbitas (o que se diria em crioulo
“yeux-grenouilles” [“olhos-rãs”]).
4. “Ainsi allait la vie comme un galop de cheval à trois pattes et toujours il manquait
la quatrième” (p. 15): “Così andava la vita, come un cavallo al galopo, una con
tre zampe e sempre mancava la quarta” (p. 12). O “cavalo de três patas” em crioulo
é uma criatura diabólica com a qual se pode topar à noite nos caminhos isolados
do campo. Na tradução italiana, essa conotação mágica desaparece e sobra apenas
o efeito banal da existência, que o autor compara ao mencionado cavalo.

Numa outra tradução italiana, a de Chroniques des Sept Misères de Patrick


Chamoiseau (1986), Cronaca delle sette miserie (1990), aparecem fenômenos
semelhantes, dos quais damos o seguinte exemplo:

Une manière de ciel, d’horizon, de destin, à l’intérieur de laquelle nous


battions la misère p. 13 : Una sorta di cielo, di orizzonte, di destino,
all’interno del quale languivamo nella più squalida miseria .

A expressão decalcada do crioulo “battre la misère” conota uma ideia de não


resignação frente à miséria, ideia que é traída no italiano “languivamo” que, ao contrário,
conota a resignação.

Como fazer então? Para Edouard Glissant (1990): “Criar em qualquer língua dada
supõe assim que se seja habitado pelo desejo impossível de todas as línguas do mundo.
A totalidade nos convoca. Toda obra de literatura hoje se inspira nisso.”

A nosso ver, assim como o escritor moderno escreve com a pluralidade das línguas
do mundo na cabeça por causa da cotidiana onipresença delas através dos meios
eletrônicos ou da presença crescente por toda parte de populações migrantes, o tradutor

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moderno deve sair da clausura que constitui a passagem de Um a Um. Deve a partir de
agora trabalhar no quadro daquilo que se poderia chamar de diversalidade linguística.

BIBLIOGRAFIA

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ZOBEL, Joseph. La Rue Cases Nègres. Paris: Présence Africaines, 1975.

ANEXO

Maurice Pergnier: Les fondements sociolinguisques de la traduction, 1993.

Embora a linguagem seja uma capacidade universal e a língua seja um fato social, isto é,
coletivo, esta e aquela de fato só são acessíveis à observação na forma de manifestações
sempre singulares, individuais. Jamais estamos diante da linguagem em sua generalidade
nem mesmo de uma língua em sua abstração, mas diante de atos de fala, ou seja, de
“eventos” linguísticos, sempre singulares e sempre caracterizados pelas circunstâncias
particulares de sua emissão. (p. 14-15)

Por sua simples existência, ela [a tradução] postula a possibilidade de uma dissociação
entre a mensagem como conteúdo comunicável (universalizável) e a língua (social) que
o exprime. Com ou sem razão, a visada tradutora postula portanto a existência de
universais de linguagem, para além do caráter social das línguas através dasquais ela (a
linguagem) se manifesta. (p. 15)

[...] traduzir consiste em substituir uma mensagem (ou uma parte de mensagem)
enunciada numa língua por uma mensagem equivalente enunciada em outra língua.
Enfatizaremos como importante nesta definição o fato de que a tradução opera sobre
mensagens e que ela questiona línguas. Em termos saussurianos, diríamos que a tradução
opera sobre a fala (parole).

Poderemos dizer, é claro, que, se a tradução não incicde sobre a língua, ela incide
entretanto sobre material linguístico. “AQUILO” que se traduz (frase, discurso, obra...)
é formulado em francês, em inglês, em alemão etc., e o resultado da tradução será uma
formulação em inglês, em francês, em alemão etc., isto é, a língua intervém, sim, enquanto
tal. (p. 19)

A mensagem é o pivô da operação tradutória, é o único elemento implicado cuja


invariância é buscada. (p. 21)

A linguística aplicada à tradução deve incluir em seu estudo uma teoria da mensagem
tanto quanto uma teoria da língua. Deve ser uma linguística da fala tanto quanto uma
linguística da língua [...] (p. 22).

Dizer que a tradução opera sobre mensagens é, com efeito, proclamar que ela é um ato de
comunicação (ou de troca linguística) antes de ser um ato de comparação inter-lingual.
(p. 23)

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FOUND IN TRANSLATION: (RE-) CONSTRUINDO MEMÓRIA AFETIVO-


CULTURAL ATRAVÉS DA TRADUÇÃO DE POESIA AFRODIASPÓRICA1

Jessica Oliveira de Jesus

RESUMO: O presente artigo discute a tradução de poesia em contextos


afrodiaspóricos, especificamente entre duas línguas hegemônicas: alemã e portuguesa
do Brasil. Em um primeiro momento, apresento o contexto histórico da obra poética da
afro-alemã May Ayim (1960-1996) refletindo sobre a tradução de seus poemas para o
português brasileiro, realizada por uma afrodescendente germanista. Em um segundo
momento, trago exemplos de tradução de poesia negra brasileira para o alemão tratando
dos desafios, correspondências e reconhecimentos inerentes a ambos processos
tradutórios. Por fim, reflito tais processos que perpassam a subjetividade da tradutora
negra junto às propostas de Spivak (2000), buscando assim contribuir para um
arcabouço teórico e metodológico de tradução de textos de sujeitos negros em diáspora,
por sujeitos também negros em diáspora.

PALAVRAS-CHAVE: Diáspora Negra, Tradução, Poesia, May Ayim, tatiana


nascimento.

ABSTRACT: In the following pages, I discuss the translation of poetry within the
African Diaspora, between two specific hegemonic languages: German and Brazilian
Portuguese. At first, I present the historical context of the poetic work of the Afro-
German writer May Ayim (1960-1996), reflecting on the translation of her poems into
Brazilian Portuguese by an Afrodescendant Germanist. In a second moment, I bring
examples of Afro-Brazilian poetry’s translation to German considering the challenges,
correspondences and identifications implied in both translation processes. Finally, I
reflect on processes that pervade the subjectivity of the Black translator along Spivak's
(2000) proposals, thus seeking to contribute to a theoretical and methodological
framework for the translation of Black subject’s textes within the diaspora by Black
subjects also within the Diaspora.

KEYWORDS: African Diaspora, Translation, Poetry, May Ayim, tatiana nascimento.

1
O presente artigo é um recorte de uma pesquisa de mestrado em andamento sobre tradução de literatura
afrodiaspórica em língua alemã no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET) na
Universidade Federal de Santa Catarina.

Mestranda em Estudos da Tradução (PGET-UFSC). Possui graduação com dupla habilitação em Letras -
Alemão e Português pela USP. Seu enfoque é em textos da diáspora africana e em textos feministas
interseccionais. Já tendo traduzido textos de Grada Kilomba e June Jordan para o português brasileiro.
Contato: oliveira.jessica@posgrad.ufsc.br

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Introdução

May Ayim (Hamburgo, 1960 - Berlim, 1996), poeta, pedagoga e ativista


antirracista afro-alemã foi, logo após seu nascimento, deixada por sua mãe biológica
alemã em um orfanato onde passou alguns meses antes de ser adotada por uma família
alemã branca. Sua infância e adolescência - permeadas por experiências de racismo -
são contadas por ela a partir dos anos 80 em cartas, ensaios e poesia. Após terminar seus
estudos em pedagogia e psicologia, Ayim muda-se para Berlim, cidade em que vive
desde 1984 até a data de seu suicídio em 1996, e onde começa a participar do
movimento de mulheres. Ayim logo publica alguns poemas no livro Farbe Bekennen:
Afro-deutsche Frauen auf den Spuren ihrer Geschichte2, obra que reúne histórias e
depoimentos de mulheres alemãs negras, e prenuncia a fundação da Associação de
Pessoas Negras na Alemanha (Initiative Schwarze Menschen in Deutschland -ISD). Este
volume contém também seu trabalho de conclusão de curso intitulado Afro-alemães:
sua história cultural e social sob o plano de fundo da mudança social,3 primeiro
trabalho acadêmico sobre a história de pessoas negras nascidas e/ou residentes na
Alemanha que remonta à Idade Média, quando comerciantes africanos trabalhavam e
viviam em território hoje conhecido como Alemanha. O trabalho de Ayim também
desvela o passado colonial alemão – assunto negligenciado nos livros de história oficial
– além de abranger a realidade de negros/as na Alemanha contemporânea ao lançamento
do livro.

No prefácio desta obra, as organizadoras – entre elas Ayim – afirmam: “Com


este livro queremos - juntamente a experiências pessoais - revelar contextos sociais
racistas.” E continuam: “Nossas vidas serão mais leves, quando não tivermos que
explicar exausta e repetidamente nossa existência.4” (OGONTOYE; AYIM, SCHULTZ
1986, p.9-10). Ayim dedicou-se à investigação do racismo em contexto educacional
trabalhando como docente em diferentes universidades. Em 1993 a poeta viaja ao
Caribe, Estados Unidos, Gana e África do Sul recitando sua poesia em festivais e

2
Publicado em 1986 e em tradução livre: (Re-)Conhecendo a Cor: Mulheres Afro-Alemãs Traçando Suas
Histórias
3
Tradução livre. Livro sem tradução para o português.
4
Todas as traduções de citações neste artigo são de minha autoria.

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eventos antirracistas. Em maio de 2010 a antiga rua Gröbenufer em Berlim, cujo nome
homenageava Otto Friedrich von der Gröben (1657–1728), um colonizador alemão que
liderou em 1683 uma expedição ao oeste africano, passou – depois da pressão da ISD –
a homenagear a poeta, e hoje se chama May Ayim-Ufer. Ayim foi também uma das
primeiras poetas negras a escrever em língua alemã, influenciando sua geração e
gerações seguintes de afro-alemães. Hoje na Alemanha e Áustria vive e floresce uma
potente cena literária e ativista negra intervindo nas artes, na política, na academia, etc.

“Você é Afro-alemã?”: traduzindo May Ayim para o português


brasileiro

Você é o que? Afro-Alemã?


Ah! Entendi...: africana e alemã
Não é que dá uma mistura interessante!
Sabe que muitos ainda pensam
que mulatos
não conseguem ir tão longe na vida
como os brancos

May Ayim, trecho do poema “Afro-alemã I”


In: Blues in schwarz Weiss, p. 18-9

A tradução de May Ayim para o português brasileiro é de extrema importância e


urgência no contexto afrodiaspórico global e local, especialmente no Brasil, cuja
população negra é maioria5. Sua obra levanta questões pouco discutidas em âmbito
cultural, político e acadêmico e a tradução de seus poemas preenche uma lacuna, pois
não há traduções para o português brasileiro desta pouco conhecida ativista e poeta
negra alemã, porém de grande relevância e atualidade.
A ignorância acadêmica acerca da obra de Ayim deve-se a diversos fatores, entre
eles a negligência em relação a discussões que sua obra aborda. Em última instância, a
sua ausência no campo acadêmico está intrinsicamente ligada ao seu não-lugar na
sociedade alemã, tema longa e profundamente abordado por ela em ensaios e obra lírica.
Para traduzí-la, portanto, é preciso conhecê-la, entender seu contexto e texto, sua

5
Segundo o IBGE, os negros (pretos e pardos) eram a maioria da população brasileira em 2014,
representando 53,6% da população. Fonte:<
https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2015/12/04/negros-representam-54-da-populacao-do-pais-
mas-sao-so-17-dos-mais-ricos.htm > acesso em 9 fev. 2017.

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mensagem. Parto então, como tradutora afro-brasileira e germanista, das reflexões de


Spivak (2000) sobre tradução como ato mais íntimo de leitura, que tomo como
metodologia para tradução de textos no contexto da diáspora negra, como demonstrarei
a seguir. Aproveito para questionar a indiferença dos cursos de germanística no Brasil
que, até onde sei, não incluem perspectivas não hegemônicas sobre a sociedade alemã,
embora as mesmas pululem na literatura e artes na Alemanha contemporânea. Obras de
May Ayim, Noah Sow, entre outras afro-alemãs, são pouquíssimo estudadas e citadas e
mesmo obras em língua alemã escritas por estrangeiras/os que aparecem com mais
frequência nas ementas de cursos universitários ocupam sub-categorias literárias, e
levam títulos como “literatura intercultural”, “literatura imigrante”. “literatura
Chamisso6”, etc. Para Calero (2010, p. 62):

El premio [Chamisso] puede significar para muchos autores y autoras una


rampa de lanzamiento hacia el reconocimiento y los grandes mercados
editoriales, pero también puede conducir al aislamiento y a la segregación
puesto que se reúnen en un mismo grupo a escritores y escritoras que poco
o nada tienen que ver literariamente, y a los que se recuerda constantemente
que son extranjeros en Alemania.

Este obviamente não é o caso de May Ayim, pois ela nasceu, foi alfabetizada,
educada e socializada em língua alemã e por instituições alemãs. Mesmo assim, sua
poesia continua invisível e inaudível. Ayim não era imigrante na Alemanha, mas sua
negritude a “situava” sempre à margem do que é ser um cidadão pleno (e) alemão e,
portanto, a aproximava da experiência estrangeira, sendo estrangeira em seu próprio
país. Nesta política do nacional versus estrangeiro, que categoriza alemães e não-
alemães vemos como o nacionalismo apresenta um lado universal da identidade,
apagando diferenças constitutivas e fabricando “o outro”. Venuti (2005) fala de uma
“contradição fundamental da identidade transcendente”, postulando que todo discurso
nacional é singular, mas se coloca como universal. Há uma ideia universal do que é ser
brasileiro/a, inglês/a, indiano/a, peruano/a alemã/o, etc que suprime diferenças e
dissonâncias destas supostas identidades dentro das fronteiras dos próprios países. O
fato de Ayim não ser vista como alemã, por ser negra e, tampouco ser estrangeira, já

6
O prêmio de Literatura Adalbert von Chamisso foi instaurado em 1985 e premia a chamada literatura de
emigração em língua alemã, isto é, obras literárias escritas por autoras/as cuja língua materna não é a
alemã.

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que nascera e crescera na Alemanha, de uma mãe biológica alemã, moldou e marcou
sua perspectiva sobre esta sociedade.
Ayim também não aparece em leituras, cursos, discussões sobre literatura pós-
colonial, cuja boa parte das/os autoras/es é negra. O não enquadramento da poesia
afro-alemã na literatura intercultural, na literatura alemã canônica, tampouco na pós-
colonial pode ser, à primeira vista, um empecilho para nos aproximarmos de sua obra.
Entretanto, escolho justamente esse caminho para lê-la e traduzi-la. Assim, me acerco
a sua poesia por meio de duas vertentes: como literatura alemã, escrita por uma alemã
em um contexto alemão em determinado período histórico, e dentro do riquíssimo,
plurilíngue contexto cultural e político afrodiaspórico. Desta forma, além de conferir
visibilidade a sua identidade afro e alemã (como ela mesma se denominava) e a seu
status como poeta, é possível analisar a partir de sua obra, a sociedade alemã de
maneira complexa e profunda, desde seu processo de unificação no XIX, de suas
colônias no continente africano, da emergência de uma ideia de pureza racial e
linguística criadas e utilizadas para a formação deste Estado-Nação, bem como as
consequências de tais ideias ao longo do século XX. Do mesmo modo, ao abordar sua
obra dentro do contexto afrodiaspórico tangenciamos diversos elementos de sua
poética, compreendemos seus temas e a reinscrição de “outras narrativas” articulada
pela diáspora negra (HALL, 2003, p. 347). Ainda segundo Hall por essa razão, a
diáspora negra teve que trabalhar em si mesma como “telas de representação”. Pois, é
no modo como “representamos e imaginamos a nós mesmos”, que compreendemos
“quem somos”, É em nossos corpos negros que produzimos contranarrativas e
contraimagens silenciadas, apagadas e “esquecidas” pela história ocidental. (HALL,
2003, p. 347) e é também por meio de nossos corpos negros, nossa arte, escrita,
tradução, etc que nossas vozes e histórias “mantidas em silêncio como segredos”
(KILOMBA, 2016 p. 177) saem desta condição.
É justamente neste contexto afrodiaspórico que localizo minha tradução da poesia
negra alemã de May Ayim. Esta tradução é um gesto político motivado por
silenciamentos seculares impostos ao povo negro (KILOMBA, 2016, p. 172) e sobre
sua história global e local. No caso alemão, a própria Ayim como citado acima realizou
na década de 1980 uma pesquisa inédita sobre a história negra na Alemanha e através da
minha tradução continuo seus passos estreitando laços transnacionais da diáspora negra.

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Traduzo-a pela ampliação que a tradução pode conferir à sua voz. Voz que Ayim usava,
assim como outras e outros poetas afrodiaspóricos ao redor do mundo, para recitar sua
poesia.
O poema que traduzo abaixo “Destemida e sem fronteiras: poema contra a bel-
(uni)dade alemã” foi escrito meses após a queda do muro de Berlim como protesto ao
aumento do número de ataques racistas e xenófobos em toda a Alemanha, diretamente
relacionados às comemorações da reunificação que desenterraram com elas velhas
ideias do que é ser alemã(o); isto é, com a queda do muro a sonhada unificação trouxe à
tona ideias nacionalistas ligados à supremacia branca, ao biotipo “ariano”, à
superioridade da língua alemã, e portanto, excluíam todos que (supostamente) não se
enquadravam nesses ideais. Já no título, Ayim expõe o que significou para ela a
reunificação alemã em 1989. A poeta brinca com a língua e faz um trocadilho com a
palavra Sch-einheit, que abriga Einheit = unidade e ecoa Scheinheit = aparência e
também Schönheit = beleza. Assim, ela demonstra como a reunificação alemã foi sobre
aparências, uma vez que ela e muitas outras pessoas não puderam comemorar, pois para
afro-alemães e imigrantes a unificação significou maior segregação. Durante as
comemorações e em geral havia reivindicações sobre um ideal de cidadania, de
pertencimento à nação e de beleza, que ditavam quem era alemã/o. Ayim comenta o
contexto que a levou a escrevê-lo em texto publicado postumamente no livro
Grenzenlos und Unverschämt:
Pela primeira vez desde que vivo em Berlim, tenho que combater diariamente
insultos indecorosos, olhares hostis e/ou difamações abertamente racistas”
(...) Uma amiga no trem com sua filha afro-alemã no colo, ouviu: “Nós não
precisamos mais de pessoas como vocês, aqui e agora somos mais do que
suficientes! Um menino africano de 10 anos foi expulso do trem para dar
lugar a um alemão branco... (AYIM, 2002, p. 91)

Relatando que tais episódios aumentaram drasticamente a partir de novembro de


1989 e que a imprensa oficial os ignorava, Ayim diz: “Comecei o ano de 1990 com um
poema:” (AYIM, 2002, p. 91 – 92), que transcrevo e traduzo7 abaixo:

7
Agradeço a minha orientadora, Profa. Dra. Rosvitha Friesen Blume (UFSC), à Kristina Michahelles,
jornalista e tradutora, e ao grupo que se reúne semestralmente nas oficinas de tradução alemão-português
e vice-versa que têm sido grandes interlocutoras/es das minhas traduções dos poemas de May Ayim.

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grenzenlos und unverschämt – ein destemida e sem fronteiras: poema


gedicht gegen die deutsch sch-einheit contra a bel-(uni)dade alemã

ich werde trotzdem Serei


afrikanisch africana
sein mesmo que
auch wenn ihr me queiram
mich gerne alemã
deutsch haben
wollt

und werde trotzdem e serei


deutsch sein alemã
auch wenn euch mesmo que
meine schwärze minha Negritude
nicht paßt não lhes agrade

ich werde darei


noch einen schritt weitergehen um passo mais à frente
bis an den äußersten rand até a periferia mais longínqua

wo meine schwestern sind onde estão minhas irmãs


wo meine brüder stehen onde estão meus irmãos
wo unsere onde começa
FREIHEIT nossa
Beginnt LIBERDADE

ich werde darei


noch einen schritt weitergehen und mais um passo à frente e
noch einen schritt mais um passo
weiter e regressarei
und wiederkehren quando
wann eu quiser
ich will se
wenn eu quiser
ich will e permanecerei
grenzenlos und unverschämt bleiben - destemida e sem fronteiras- .

May Ayim 1990 In: Blues in Schwarz weiss, p. 61

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Neste poema, Ayim, contra todas as expectativas, levanta sua caneta/voz


empoderada declarando seu direito à opacidade (GLISSANT, [1991] 2008), seu direito
de existir e de ser reconhecida, além de relacionar seu lado alemão ao seu lado ganense
de maneira não hierárquica: ela é afro e alemã como declara em outros poemas, em um
gesto de deserção da identidade nacional uni-versal alemã rumo à identidade rizomática,
que se estende para entrar em contato com o outro, conectando-a com a diáspora negra
ao redor do mundo e, por conseguinte, consigo mesma.
Em seu livro Blues in schwarz weiss (Blues em preto e branco) de 1995, há 56
poemas em língua alemã e em algumas páginas, inclusive na capa, símbolos-conceitos
adinkra de origem entre os povos da África Ocidental de língua Akan, das regiões que
hoje conhecemos como Gana, Togo e Costa do Marfim. Blues em preto e branco inicia-
se com uma página contendo somente o símbolo-conceito Sankofa centralizado na parte
superior da página. Sankofa é comumente representado por um pássaro mítico que voa
para a frente com a cabeça voltada para trás, carregando no seu bico um ovo, isto é, o
futuro. Este conceito-símbolo nos lembra e ensina sobre a possibilidade de nos voltar ao
passado como exercício para avançar, pensando no futuro. Essa é a mensagem que May
Ayim passa a quem tem seu livro em mãos, ela olha para seu passado, e nos deixa seu
livro-futuro; e este é o movimento que afrodescendentes têm feito cada vez mais em
busca de seu passado. Uma vez que recuperamos nossa memória africana diaspórica,
nosso futuro é modificado.

May, ao mesclar tais elementos culturais, está falando sobre si, esse sujeito
afrodiaspórico alemão e inscrevendo na história e na literatura tal identidade. Assim,
Ayim realiza exatamente aquela reeinscrição de “outras narrativas” através das
informações culturais de seus antepassados, de códigos e de signos, de mitos e ritos
herdados.” (HALL, 2003, p.342) os mantendo em pé de igualdade com seus poemas
em alemão. Com sankofa na primeira página do livro, além de ‘pôr em relação
horizontal’ tais elementos culturais aparentemente tão distantes e distintos, a poeta
reconhece seu lado ganense, e num gesto de busca de seu passado, à cultura de seu pai,
indica o futuro, o ‘novo’ que é sua poesia (em língua) alemã e que não se desvincula dos
símbolos adinkra. Por isso, é impossível aproximar-se de sua obra literária somente
através da perspectiva da literatura ou cultura alemã, pois sua poesia extrapola tais áreas

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de estudo. De uma perspectiva teórica tradutória, através destas práticas Ayim está
inscrevendo e garantindo sua opacidade e demonstrando sua retórica, dois elementos
cruciais segundo Spivak (2012) para entender e traduzir sua obra.
A tradução na diáspora negra tem um status de “vetor/produtor de um diálogo
intercultural que ainda está por vir.” (CARRASCOSA, 2016 p.63) e que se está dando
através da tradução, pois segundo Carrascosca (2016), sob uma perspectiva tradutória
negra “a palavra, o conhecimento outro, o toque de atabaque e vozes subalternas
tomam o campo de luta da linguagem/discurso, possibilitando a abertura do eu e a
convivência com o outro”, sem assimilá-lo. Este tem sido um dos desafios e dos
prazeres dessa tradução, isto é, o não apagamento das múltiplas identidades e
compromissos políticos de May Ayim. Há em sua obra, por um lado, uma crítica ao seu
país natal, à língua alemã, e por outro, sua busca, encontro e utilização de elementos de
culturas negras, retomando uma memória ancestral ao passo que integra culturas
afrodiaspóricas, na qual me reconhecço como afro-brasileira, bem como me reconheço
em sua crítica à, e em sua utilização da língua alemã que muitas vezes, com suas bases
racistas, me coloca em posição subalterna enquanto negra e tradutora. Busco, portanto,
utilizar a tradução de sua poesia como uma ponte desta parte da diáspora que nos parece
tão distante e em uma língua que pode ser, em contexto brasileiro, um marcador de
divisão e apagamento. Pretendo demonstrar que Ayim amava sua língua materna, ao
ponto de reconhecer que a mesma pode ser um tanto hostil para sujeitos como ela.
Assim, a poeta cria inúmeros jogos de palavras, utiliza diversos artifícios poéticos como
aliteração, ironia, desmembramento de palavras, etc., e, sobretudo, realiza através de sua
poesia um questionamento fundamental acerca de resquícios racistas na língua e
sociedade alemãs, trazendo ditos populares e expressões idiomáticas, que assim como
em português, localizam e relacionam o sujeito negro ao que é ilegal, sujo, proibido,
exótico, selvagem e inferior, como nos exemplificará a tradução de tatiana nascimento a
seguir. É exatamente no reconhecimento, nas experiências comuns de corpos e
subjetividades negras em diáspora, através das utilizações e críticas às línguas é que
localizo ambas poetas na diáspora africana. Lao-Montes (2007, p. 310) conceitua a
diáspora africana como:

um projeto de afinidade e libertação fundado em uma ideologia translocal de


formação de comunidade e uma política global de descolonização. A

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Diáspora Africana pode ser concebida como um projeto de descolonização e


libertação incorporado às práticas culturais, correntes intelectuais, aos
movimentos sociais e às ações políticas dos sujeitos afrodiaspóricos. O
projeto da Diáspora como uma busca de libertação e de construção
comunitária transnacional baseia-se nas condições de subalternização dos
povos afrodiaspóricos e em sua agência histórica de resistência e auto-
afirmação. (traduçã minha e ênfase no original)

É dentro deste “projeto de afinidade” e formação de comunidade e numa


“política global de descolonização” que traduzo também para o alemão poetas
contemporâneas negras brasileiras. Trago a seguir um exemplo de uma dessas
traduções.

Poesia negra brasileira em alemão

Em 2016, traduzi para o alemão poemas da poeta e tradutora tatiana nascimento,


que traduziu textos de Audre Lorde. Lorde, poeta negra, lésbica e caribenha-
estadunidense morou na Alemanha e foi fundamental na articulação da identidade afro-
alemã fomentando e influenciando imensamente a obra de May Ayim. Portanto, há uma
rede afrodiaspórica que une esses con-textos e traduções. A poesia de nascimento, assim
como a de Ayim é atravessada pela oralidade8 e repleta de elementos culturais
cosmológicos da diáspora negra (candomblé, dizeres populares, modos de falar que
fogem às regras da língua “culta”, jogos de palavras, ritmo, sonoridade, o corpo, a
experiência e ancestralidade negras, etc), assim como a poesia de Ayim. Sua “poesia di
dendê”, como ela a apresenta em seu blog9 é também rica em temas e elementos das
culturas das dissidências sexual e de gênero.

Frente a este desafio de tradução para o alemão “como a tradutora atende à


especificidade da língua que traduz?” Estas e outras perguntas feitas por Spivak (2000)
ecoavam em minha cabeça. Como transportar para o alemão a poeticidade da língua
afiada de tatiana nascimento sem apagar seu conteúdo político, sem perder nem
8
A artista é organizadora e participante de diversas batalhas de poesia falada (slams) por todo o Brasil,
entre elas o Slam das Minas que acontece no DF, além de ter organizado e participado de slams na
Alemanha e Áustria e de ter organizado da I palavra preta: Mostra Nacional de Negras Autoras, que
aconteceu em Salvador no início de 2017.
9
Cf. https://palavrapreta.wordpress.com/

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silenciar a poeta a favor do entendimento do público de língua alemã? Como transmitir


o efeito que sua poesia causa em falantes da língua afro-brasileira10? “Já que a escritora
é escrita por meio de sua língua” (SPIVAK, 2000, p. 400) e no caso da poesia, também
pela forma. Procurei então, na tradução, manter a semelhança na apresentação visual
dos poemas, mantive palavras utilizadas pela poeta, pois “a escrita da escritora grafa
[sua] agência” (SPIVAK, 2000) de um modo específico. No caso da escrita de tatiana
nascimento, estaríamos diante da escrita e da retórica que grafa sua agência
afrodiaspórica latino-americana e dissidente sexual. Busquei re-criar trocadilhos
(artifício muito presente em sua obra) em alemão para que estes transmitissem e
reafirmassem as mensagens do poema. E mesmo antes de recorrer à escrita de May
Ayim e de outras poetas afro-alemãs para traduzir-escrever poesia negra em alemão,
durante a tradução do poema de nascimento deparei-me, como não poderia deixar de
fazê-lo, com elementos comuns à experiência diaspórica negra. As poetas (Ayim e
nascimento) além de articularem uma quebra da lógica racista das línguas portuguesa e
alemã, trazem traços do trauma colonial. Me deterei aos elementos preto e branco
bastante presente em ambas obras, no geral. Essa di-visão dicotômica cria o sujeito
branco em oposição e por assujeitamento do negro. A palavra preta de nascimento e o
blues em preto e branco de Ayim desmantelam o euro-falo-logocentrismo, que Derrida
(1991) também chamara de ‘mitologia branca’.

sabor de vidro e corte11


tatiana nascimento

em berlim...
eu
talvez...
devesse deveria poderia quisesse
rimar
rimaria uns fonema assim
“controlarem”
com

10
Alguns linguistas falam em Afro-português, nomenclatura produzida a partir de pesquisa coletiva
conduzida por um grupo da UFBA, coordenado pelos professores Alan Baxter, Ilza Ribeiro e Luchesi,
que resultou no livro O português afro-brasileiro, Salvador: EDUFBA, 2009.
11
A tradução integral para o alemão encontra-se disponível em:
<https://www.academia.edu/24305232/_Schmeckt_nach_Glas_und_Schnitt_deutsche_Version_?auto=do
wnload>

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eu nem sei talvez

schwarzfahren.

comparando com minhas poucas horas de paris,


tem bem pouca gente preta
na berlim
quer dizer
eu acho né
é o que
me parece
talvez se...
tem também que...
no bairro turco né, que eu fiquei,
é que lá tem...

mas tem, tem gente preta também


muitas mulheres usam véu
a chanceler se chama merkel
fechou os portões do céu
o paraíso ordenado do bem-estar européu
o calendário
o cronograma
o apreço aos horários
nunca falha em berlim, pelo que...
é, pelo que eu
vi

acho talvez que a pouca gente preta que tem já deve saber
o que significa rimar
controlarem com
schwarzfahren.

mesmo que só com uma imagem


ideogramas simbolizam sistematicamente
branco branco branco no preto

pra quem tá no aperto


sem passagem certa
quem não tem os euro que valem ouro
tem até uma...
gíria é errado chamar gíria?
é... expressão idiomática que uma linguista diria?
ou é tudo idiossincrazias idiotas y a fantasmagoria dos
nazistas em cada esquina é proibido ao invés diga
n a z i ou pega mal ali do lado, ali,
derrubou o muro mas a polícia continua firmão

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ou mora no coração cidadão de cada alemão atento


pra ninguém passar ileso
pelo controlador do metrô
com suas portas abertas
pelo hospício com suas doses
precisas y incertas
de entorpecimentes+mentais não mentem
jamais
“weiß”
deve significar alguma coisa em alemão também
eu...
eu não entendo bem
nada que dizem por aqui
eu que nem...
nem lembro direito de onde que eu vim
que só tô de passagem pelaí

pra ver você pra ver se vc consegue sorrir cheio mancha nos dentes turvos
de chagas na pele lazarento imaturo futuro no escuro
dor no peito da idade de mil saturnos
Atotô ou um Exu pra pedir licença em alemão alivia
seu
aburro?
você...
em seus suiplícios...

andando na linha pagando a tarifa tomando a pílula
vai
sobre-
viver?
tá mais calminha
agora
as bicha
tudo surtada
na psiquiatria?
tá tudo andando
mansinha?

eu acho que me parece que talvez "andar no preto" não seja só


um delito
ameaça
eh uma ofensa pra gente
que nem eu

diretamente de um mundo velho que finge que nem sabe


do que foi que adoeceu

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esse céu... esse céu nublado esse cinza


essas árvores fileiradas que nem dente
branco
em bocas pretas contralei mesmo de quem
já estava não chegou de botes porões ilegais sobre a terra
atravessamento do diabo pra chegar
por aqui embaixo desse...
desse céu...
esse céu nublado setentrional...
também eh...
hj ainda...
sob o sol
do capital poderia em qualquer possibilidade
não ser...
colonial?

os corvos me acenam embora como as mil folhas de uma árvore presa num parque
que nem eu sei o nome
nem seria português nem alemão

pra elas,

árvores não se importam com essas línguas, a não ser que ordenem
lâminas

(nenhum corpo negro


esqueceu).

Em “Sabor de Vidro e Corte”, a poeta faz alusão à canção “San Vicente” de


Milton Nascimento já se inscrevendo na caminhada afrodiaspórica. Quando recita o
poema, a poeta de Brasília canta a primeira estrofe da canção de Milton Nascimento no
início de sua performance. “San Vicente”, embora muito ligada aos contextos das
ditaduras na América Latina, parece versar sobre a experiência negra em diáspora,
bastante atual, visto nosso contexto político contemporâneo e suas consequências para a
população negra brasileira.

O poema foi escrito em 2015 durante estadia da poeta na Alemanha, condição


que, para uma afrodescendente saindo do Brasil, pressupõe a travessia do Atlântico,
aquela travessia que “nenhum corpo negro esqueceu”, no Atlântico que guarda tantos
segredos coloniais. “A espera na fila imensa” dos controles dos aeroportos, os olhares
racistas, o silenciamento produzido pela falta de inteligibilidade da língua que se fala,
com a qual se versa, com a qual se expressa. tatiana nascimento logra traduzir neste

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poema tal experiência esfacelando sua língua, gaguejando inicialmente em português,


como que para mostrar a dificuldade de articular a fala perante o violento
schwarzfahren, palavra que destoa no poema, termo em língua alemã do qual trataremos
adiante. Como manter essa “retórica do outro” (SPIVAK, 2000) no exercício de
tradução para o alemão de um termo tão corriqueiro desta mesma língua? Como traduzir
a dor da palavra-chicote a quem nos chicoteia? Reproduzo abaixo o exemplo mais feliz
e devido aos propósitos e limitações deste artigo, trarei somente dois trechos traduzidos
do poema com explanações subsequentes.

[...] […]

dor no peito da idade de mil saturnos Schmerzen in der Brust vom Lebensalter tausender Saturnen
Atotô ou um Exu Atotô oder ein Eshu
pra pedir licença em alemão um sich auf Deutsch zu eshu-ldigen
alivia seu
aburro? erleichtet es deine
[…] Langeweile?
[…]

Neste poema, a autora cita e traz referências a diversas entidades e elementos de


religiões de matriz africana. Além disso, algumas rimas, jogos de palavras e referências
foram perdidas na tradução, criei então em alemão, como se pode ver acima, um
trocadilho com a palavra “entschuldigen”, (pedir licença e/ou desculpar-se) criando
eshuldigen, assim não perdi o som da palavra alemã e fiz referência a Exu (Eshu), orixá
do movimento, elo de comunicação entre Orun e Aiê. Exu representa o poder da
comunicação, da língua, responsável pela ordem e pelo caos. Deste modo, as energias
envolvidas no ato tradutório são as mesmas regidas e representadas pelo orixá. Portanto,
Exu é também um tradutor.

Èsú [...]é o único capaz de transportar e fazer aceitar as oferendas a seus


respectivos destinatários, mantendo a harmoniosa relação entre os seres e as
entidades sobrenaturais, o equilíbrio entre os dois planos da existência e entre
todos os componentes do sistema. (DOS SANTOS, 2001, p. 183).

Exu é quem dá licença, e é relevante lembrar que tal entidade foi ‘traduzida’ por
cristãos como Diabo, devido à sua irreverência e estilo brincalhão, o que é um grande
equívoco, pois na cultura iorubá não existem diabos ou entidades unicamente “más”.

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Todas as entidades têm suas porções positivas e negativas.


Com este exemplo também reproduzo, em certa medida, a diversidade dos
falares de imigrantes (brasileiros/as) residentes na Alemanha, que criam a todo o
momento neologismos na língua alemã, como estratégia política anti-assimilacionista,
mantendo a diferença ou a opacidade destes indivíduos12, também em diáspora. Deste
modo, através de uma prática tradutória crítico-criativa que nasce de uma leitura e da
intimidade com o texto, que seria para Spivak (2000) imprescindível nas traduções de
mulheres do chamado “Terceiro Mundo”, procuro nas traduções de ambas poetas minar,
assim como elas o fazem, a linguagem (racista) – borrar a retórica hegemônica com a da
“outra” e, para isso, é preciso conhecer as estratégias retóricas e a língua destas
“outras”.

Em um próximo trecho relevante para a presente análise, o tratamento que a


poeta dá ao termo alemão schwarzfahren, expressão coloquial que designa dois atos
ilegais: utilizar transporte público sem um ticket validado e/ou dirigir um automóvel
sem licença. Entretanto, a palavra schwarzfahren é constituída por duas palavras:
schwarz = preto e fahren = dirigir; andar. E assim como na língua portuguesa, a alemã
tem uma série de palavras ligadas ao campo do ilegal, do negativo que trazem consigo a
palavra schwarz (preto/negro). Nascimento manteve em seu poema escrito em língua
portuguesa o termo em alemão, portanto, a estratégia utilizada na tradução foi criar uma
tensão entre o termo schwarzfahren e a palavra weiß em alemão, que significa branco,
mas tem a mesma grafia do verbo saber em primeira pessoa do singular no presente do
indicativo. Para dizer em alemão “eu sei” digo “ich weiß” e para dizer “ela é branca”,
digo: “sie ist weiß “. Na tradução do poema para o alemão a palavra weiß aparece então,
sempre em itálico e negrito, como se pode ver a seguir:

Viveiros de Castro (2004, p. 10) declara que “traduzir é presumir que equivocação sempre existe; é
12

comunicar por diferenças, ao invés de silenciar o Outro supondo uma univocidade — a similaridade
essencial — entre o que o Outro e Nós dizemos”.

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em berlim... in berlin
eu sollte ich
talvez... vielleicht...
devesse deveria poderia quisesse müsste ich, könnte ich, wollte ich
rimar reimen
rimaria uns fonema assim würde ich ein paar Phoneme so reimen
"controlarem" “kontrollieren” mit
com was weiß ich...
eu nem sei talvez vielleicht mit

schwarzfahren. schwarzfahren.

Não se tratam de coincidência que tanto em alemão quanto em português


campos semânticos ligados à palavra preto/negro estejam tão associados ao
negativo/criminoso e já com a palavra branco a associação seja a elementos e ideias
positivas/limpas/boas. Tais estruturas linguísticas sustentam um modo de ver o mundo
bastante condizente com o projeto moderno/colonial. Este projeto tradutório busca então
tencionar esses dizeres e tais traduções já feitas do mundo, mostrando também através
da tradução pontos de vista outros. Mudimbe (2013, p. 23), ao analisar pinturas do
século XVI e a representação de negros/as por europeus declara que tais representações
“expressa[m]”, na verdade, “ordens discursivas” e que: “os contrastes entre preto e
branco contam uma história que provavelmente duplica uma configuração silenciosa,
mas epistemológica poderosa.”

Conclusão

Me coloco enquanto tradutora como elo e ponte que traduz contextos


aparentemente tão distantes, mas que quando vistos pelo prisma da diáspora negra e da
própria constituição da modernidade ocidental tem passados, presentes e futuros
análogos. O futuro é a quebra do silenciamento de sujeitos negros, aqui ilustrados pelas
poetas negras May Ayim e tatiana nascimento e pela tradutora negra. Para Spivak
(2000, p. 405), conhecer a autora, ter intimidade com o texto e “render-se” à retórica
presente em seu texto são tarefas da tradutora feminista, e aqui acresento, da tradutora
antirracista.

A tradutora de escritas de mulheres do Terceiro Mundo tem que se fazer


quase melhor equipada do que a tradutora que está lidando com línguas da

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Europa Ocidental, devido ao fato de que, ligeiramente deslocada, muito da


antiga atitude colonial, pode emergir no trabalho como ruídos na tradução.

A teórica e também tradutora ainda ressalta que na tradução de textos terceiro


mundistas, é quase praxe que a mensagem e os interesses do texto, sejam sufocados pela
agenda política de quem o traduz. Portanto, a tradutora “deve ser capaz de lutar contra
aquele materialismo metropolitano com um tipo de conhecimento sui generis de
especialista, não com uma mera convicção filosófica.” (SPIVAK, 2000 p. 405). O
conselho de Spivak parece nos auxiliar na tradução da poesia de tatiana nascimento,
bem como na de May Ayim. A última, apesar de não vir do “Terceiro Mundo”, e de não
ter escrito em uma língua minoritária, acaba sendo deslocada para este lugar através da
invisibilização de sua literatura pelos currículos escolares e universitários. Sua
identidade afro-alemã e a retórica de seu texto, como já demonstradas, deslocam a
hegemonia alemã e a retórica dominante. Assim, o projeto literário da poeta produz um
movimento de apropriação da língua hegemônica e racista e em última instância é o que
tatiana nascimento faz tanto com o português como com o alemão no exemplo aqui
trabalhado. Para Glissant, poeta e teórico afro-caribenho, (apud DAMATO, 1995, p.
272) “a apropriação da língua é a tarefa maior da literatura”. Ayim amava sua língua
materna, mas tinha consciência que a mesma era tendenciosa e hostil para negros e
negras, então apropriou-se dela e virou o jogo usando a arma que a reprimia para
sobreviver, mesmo depois de sua morte, ao deixar seus poemas.
A tradução da diáspora na diáspora, isto é, por uma
tradutora afro-brasileira, por conseguinte, também mina a retórica dominante, pois gera
intervenção para a comunidade negra, cria acúmulo cultural, possibilita a comunicação
transatlântica, a ampliação e reverberação de vozes subalternizadas, desloca também o
locus hegemonicamente imaginado da figura do tradutor de língua alemã. Acredito que
tais movimentos e gestos destes sujeitos evitam com que “velhas atitudes coloniais” de
que falava Spivak (2000) emerjam na tradução. Por fim, este artigo buscou
abranger brevemente as poeticidades negras diaspóricas presentes tanto em Ayim como
em nascimento, se apoiando na intimidade que uma leitora-tradutora afro-brasileira
germanista tem com tais poemas. Assim, tracei diálogos e similitudes entre ambas
poetas, enfatizando o significado político destas traduções. Minha “tradução age para
combater a petrificação de imagens do passado, de leituras de cultura e tradição. Assim,

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a tradução é potencialmente um local permanente (perpetual locus) de engajamento


político.” Como declara Tymozcko, (2000 p.17). São muitos os encontros entre a
tradutora e ambas poetas e suas poéticas. Há no ato tradutório um reconhecimento
desta(s) experiência(s), a rememoração do trauma, e empoderamento através da
escrita/tradução/reescrita. Spivak (2000) afirma ainda que o ato tradutório implica o
trabalho com a linguagem do outro, isto é, com a linguagem que não me pertence, mas
que, no entanto, acaba por construir um eu. Assim, a tradução de poesia
afrodescendente tem construído um eu que se reconhece nas narrativas, se empodera
através de sua leitura, recuperando memórias e vozes silenciadas, construindo uma
linguagem do eu-tradutora, poeta afrodiaspórica, pois ao render-me aos textos das
poetas em questão, neste “ato mais íntimo de leitura” sinto acessar um devir poeta
afrodiaspórica, unindo e fortalecendo os pontos das nossas história e vozes negras em
diáspora.

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QUEM NOMEOU ESSAS MULHERES “DE COR”? POLÍTICAS


FEMINISTAS DE TRADUÇÃO QUE MAL DÃO CONTA DAS
SUJEITAS NEGRAS TRADUZIDAS

tatiana nascimento1

RESUMO: Controversamente à abundância de textos teóricos feministas traduzidos no


Brasil, as produções feitas por teóricas negras lésbicas que chegam no Brasil via tradução
são poucas. Qual é a cor hegemônica da política feminista de tradução acadêmica? Kia
Lilly Caldwell critica e denuncia no artigo Fronteiras da Diferença: raça e mulher no
Brasil (2000): a larga produção de textualidades traduzidas no Brasil não contempla a
teorização feita por autoras negras. A própria tradução do texto de Caldwell deixa
perceber a predominância de pensares e fazeres tradutórios que não questionam a
tradução como prática colonial – do contrário, reforçam essa mirada com uma simples
expressão, no caso da tradução analisada.

PALAVRAS-CHAVE: Teoria feminista negra. Tradução feminista anticolonial.


Políticas de tradução.

ABSTRACT: Despite the abundance of feminist theoretical texts translated to Brazilian


portuguese, the productions made by black lesbian theoreticians that come via translation
are few. What is the hegemonic color of the feminist policies of academic translations in
Brazil? Kia Lilly Caldwell (2000) criticizes and denounces that the wide production of
translated texts in Brazil does not contemplate the theorization made by black authors.
The very translation of Caldwell's text reveals the predominance of a thinking and doing
translation that does not question this practice as a colonial one – and the translated text
reveals how this view may be reinforced by a single term.

KEYWORDS: Black feminist theory. Feminist anticolonial translation. Translation


policies.

De presenças e ausências

Uma enquete imaginária: qual é o maior sucesso da teoria feminista publicada em


livro desde O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir (até hoje não li)? Acho que Gender

1
tatiana nascimento, brasiliense, poeta, cantautora, editora na padê editorial (livros artesanais de autoras
negras/lgbtqi). publicou "lundu,", primeiro livro de poemas seus, em 2016. edita o blog traduzidas, de
tradução clandestina de autoras lgbtqi e/ou negras. doutora em estudos da tradução pela universidade federal
de santa catarina. professora voluntária na universidade de brasília, ministra a disciplina feminismos e teoria
cuíer. E-mail: palavrapreta@gmail.com

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trouble/Problemas de gênero, da Judith Butler (já li alguns trechos, confesso) ganha


disparado de qualquer segundo lugar. de Beauvoir não escreveu O Segundo Sexo, mas Le
Deuxième Sexe, em 1949, e Judith Butler Gender trouble, não Problemas de gênero. A
tradução Problemas de gênero (2003) já foi criticada com relação à “desfilofização” da
obra (assim como a tradução, para o inglês, da obra de de Beauvoir, como Flotow comenta
em artigo publicado em 2013), entre outras críticas, mas é um dos livros mais utilizados
em cursos sobre gênero, acadêmicos ou não.
Gender trouble é originalmente dos EUA, e o Brasil importa muita teoria – típico
de uma colonialidade muito bem expressa no sistema de constituição dos saberes – no
qual a universidade é somente um, mas bastante poderoso, agente de instituição e
legitimação epistêmica –, e importa muita teoria política. de Beauvoir e Butler não são as
únicas teóricas não-brasileiras em voga aqui – Monique Wittig, Teresa de Lauretis, Gayle
Rubin, Paul Preciado, Gayatri Spivak são os nomes que chegam imediatamente para mim,
mas há tantxs outrxs... Nessa lista rápida, a única não-branca é a indiana Spivak. Butler é
judia.
Outras não-brancas estão mais às margens do sistema feminista estabelecido de
saberes, e dali têm relevância bem considerável – mas têm que estar ali, são sujeitas
marcadas. Poderia citar Audre Lorde, Gloria Anzaldúa, bell hooks, Angela Davis,
Barbara Smith, Patricia Hill Collins, Cheryl Clarke, mas é como eu disse antes – essas
são as não-canônicas, ainda que pertençam todas a um círculo privilegiado de produção
intelectual por terem constituído suas carreiras nos EUA (apesar de nem todas serem
nascidas ali, como Audre Lorde e Gloria Anzaldúa). Não constam dos currículos,
ementas, programas de curso de teoria feminista a não ser que haja, explicitamente, uma
marcação sobre feminismos outros, feminismos de cor, feminismos negros, feminismos
chicanos, as críticas ao feminismo hegemônico...
A marcação do lugar outro, marginalizado, se dá concomitantemente ao
apagamento das marcas do lugar que vai ser hegemonizado. Não é só porque a própria
Audre Lorde se definia uma negra lésbica mãe guerreira poeta que ela é citada como uma
grande pensadora feminista negra (muitas vezes os outros termos depois desse são
deixados de lado), mas porque o custo de nunca se mencionar Judith Butler como “a
grande filósofa branca” (a despeito de ela ser judia) é que as não-brancas sejam marcadas,
por ser a branquitude é o lugar de desmarcação, o espaço hegemônico, o referente, a

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norma – e, portanto, invisível. A diferença, aqui, entre invisível e invisibilizado é que


enquanto o invisível é dominante, constantemente presente, o invisibilizado é apagado.
E quando a produção teórica feminista depende tanto da tradução como uma de suas
garantidoras, se não surgem questionamentos sobre quem tem sido mais traduzida e quem
tem sido menos, e as relações que isso tem com o racismo, então tudo fica mais ou menos
o mesmo: branco. Com relação à lesbiandade, há alguma diferença – a maioria das
teóricas feministas mais traduzidas, lidas e influentes no pensamento feminista brasileiro
acadêmico são abertamente lésbicas: Butler, Wittig, Rubin, de Lauretis. Como suas
lesbiandades são apagadas, isso é outro assunto. Por enquanto, vou me ater a um caso
específico de tradução feminista racialmente descomprometido (do ponto de vista
afrodiaspórico).

“Dar nome aos bois”

Quando escrevia isso vivia em Florianópolis e estava muito marcada pela prática
de tortura conhecida como “farra do boi” (para mim, sadismo humano em nome de
“tradição”). Também me impressionavam os pastos de concentração em que vacas,
bois, bezerrxs ficavam expostas enquanto o dia do assassinato delas não chegava, e
ouvir no ônibus a caminho de casa comentários acerca do bucolismo da cidade – os
matadouros ficam escondidos. Essa menção importa porque uma prática epistêmica de
feminismo antirracista precisa pensar também o que significa, em termos de dominação
e colonização interespécie, a fronteira entre o que é humano e o que não é.
Em 2000, a Revista Estudos Feministas – REF publicou uma tradução da teórica
negra feminista Kia Lilly Caldwell chamada “Fronteiras da diferença: raça e mulher no
Brasil”. A tradução é anônima, e quem-traduziu escolheu o termo “mulheres não
brancas” para traduzir a expressão “women of color”, justificando sua decisão em uma
nota de tradução. Sendo uma tradutora lésbica negra, reflito sobre essa escolha
tradutória pensando nos limites e possibilidades de uma política de tradução feminista
efetivamente antirracista e anticolonial.
Barbara Godard escreveu em 1989 um texto muito inspirador para pensar
tradução feminista como um encontro radical de diferenças; para ela, discurso e
tradução feministas são propostas de reconstrução de subjetividades mal

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representadas, se é que chegam a ser representadas, contra uma linguagem opressora


(porque não feminina). Godard condena o regime de invisibilidade da tradutora na
política da transparência de um pensar hegemônico da tradução, centrado no
conteúdo/sentido, e propõe a tradução feminista como uma poética da diferença em que
o trabalho de autoria e coautoria seja tirado das hierarquias autora x tradutora, forma x
conteúdo, e que seja marcado, visível, aparente, feito desde as diferenças.
Para Goretti López Heredia, essa importância de retomar, ressignificar,
desconstruir e reconstruir línguas e linguagens também está nas propostas de tradução
cultural, especialmente aquelas que se dedicam a examinar a produção de textos pós-
coloniais e suas traduções: “Este esfuerzo de re-invención del lenguage es un rasgo
propio de la literatura poscolonial escrita en lenguas coloniales” (HEREDIA, 2003, p.
162). Ela se refere à literatura pós- colonial como aquele conjunto de produções
literárias de escritorxs de países como Moçambique e Índia, os quais viveram até o
século XX regimes coloniais contra os quais se insurgiram inclusive e profundamente
pela expressão literária.
Heredia discute as estratégias discursivas e estilísticas usadas em escritas pós-
coloniais, apontando o uso de hibridismo entre línguas de povos colonizadores
(português, espanhol e francês europeus, inglês britânico e dos EEUU etc.) e línguas
dos povos colonizados (bantu, árabe etc.) e a retomada de termos coloniais típicos
ressignificados em semânticas e sintaxes pós-coloniais como parte de um repertório
linguístico-político q u e questiona o poder colonial, e ainda o sabota propondo uso
de linguagens outras que sejam mais representativas dos povos colonizados e dessas
dinâmicas de poder políticas-linguísticas contra-hegemônicas.
Audre Lorde, Cheryl Clarke, Doris Davenport, Barbara Smith, para comentar
algumas das teóricas lésbicas negras que gosto de ler, Gloria Anzaldúa e Cherríe
Moraga, para incluir lésbicas de cor, estão entre as teóricas feministas que também
escrevem sobre a necessidade e a importância de reinventar linguagens, e/ou
reinventam e analisam essas reinvenções, desde uma mirada contra a tradição do
silêncio (ANZALDÚA, 1999) imposta às pessoas consideradas mulheres, e que atua
de formas específicas quando outros marcadores identitários são entrecuzados nessa
“mulheridade”: raça, etnia, geração, classe, lesbiandade.

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As feministas de cor ali citadas estão entre as ativistas em movimentos sociais


e/ou contextos teóricos questionadoras do uso universalizante das categoria mulher,
gênero e patriarcado na chamada “segunda onda” do movimento feminista ocidental,
especialmente em EEUU, e denunciaram a invisibilização de suas vidas, paixões, lutas,
teorias pela supervisibilização daquelas. Para Chandra Mohanty (1992, p. 75, tradução
minha), essas críticas foram vitais para pensar políticas feministas transformadoras e
questionar a supremacia do gênero: “Essa universalidade da opressão de gênero é
problemática, baseada como está na assunção de que categorias de raça e classe devem
ser invisíveis para que gênero seja visível”.
Para conectar as pontes de sentido que quero costurar e chegar à tradução de
Caldwell, me importa trazer essas datas e considerações que conectam as críticas das
feministas de cor à constituição de um feminismo pós-colonial, e partir da noção
discursiva de colonização feita por Mohanty (1986/2003, p. 17, tradução minha): “com
foco num certo modo de apropriação e codificação da pesquisa e conhecimento sobre
as mulheres terceiro-mundistas”. Karina Bidaseca também se remete aos anos 1970 da
“segunda onda” como o contexto histórico em que os conflitos entre as críticas de
feministas de cor e as práticas de feminismos brancos hegemônicos plantam as
sementes do feminismo pós-colonial:

Estas tensiones se retrotraen a la década de 1970, en la que el


feminismo chicano, negro, indígena y asiático-americano, reunido en
el ejemplar libro Esta puente mi espalda. Voces de mujeres
tercermundistas en los Estados Unidos (Moraga y Castillo, 1988)
constituye el antecedente de lo que luego se llamaría feminismo
‘postcolonial’. Las mujeres que cuestionan este feminismo son
aquellas que observan otras ausencias sintomáticas de la agenda
feminista: el racismo, lesbofobia, la colonización. En torno al llamado
a la unidad del feminismo para luchar contra la opresión universal
del patriarcado, las feministas – que desconocían la opresión de
raza y clase – pospusieron y desecharon estas otras opresiones [...]
(BIDASECA, 2011, p. 66, grifos dela).

Chandra Mohanty, d i s c u t i n d o o uso do termo “colonização” por movimentos


esquerdistas nos 1980, explicita que para feministas de cor nos EEUU ele descrevia
“[...] a apropriação de suas experiências e lutas por movimentos hegemônicos de
mulheres brancas [...]” (1986/2003, p. 18, tradução minha). Em A Black Feminist
Statement, do coletivo de lésbicas negras The Combahee River, publicado no citado This
bridge called my back... (MORAGA; ANZALDÚA, 1981), as autoras explicitam suas

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bases de coalisão política a partir dessa perpção de experiências e lutas apropriadas e


mal-representadas. Cheryl Clarke, Barbara Smith e Audre Lorde, algumas das teóricas
que traduzi em minha tese de doutoramento, estão entre as teóricas integrantes do grupo.
E estão também entre as autoras que contribuiram com This bridge...,
conhecida como a primeira publicação que vai dar visibilidade às teorizações, em prosa
e poesia, de mulheres feministas de cor, e que Ochy Curiel (2007) considera parte das
experiências mais significativas de desarticulação da universalidade pretendida com
“mulher”. Portolés também comenta a presença crítica negra e/ou lésbica nos 1970, nos
quais “[...] el feminismo negro y/o lesbiano se despegó del feminismo existente; este
feminismo, por sus críticas al racismo y al etnocentrismo, puede considerarse el
antecedente de lo que luego se llamaría feminismo ‘postcolonial’. (PORTOLÉS, 2004,
p. 0).
Nessa minha escrita, “pós-colonial” se refere a essa presença de negras e lésbicas,
pois as autoras com que penso autodefinição são negras lésbicas. E também, para
pensar a tradução de Caldwell, enfatizo a articulação entre o termo “mulheres de cor”
que aprendi em This bridge called my back... (MORAGA; ANZALDÚA, 1981), e a
noção de “feminismo pós-colonial”, usada aqui preferencialmente à de “feminismo
terceiromundista”. Há uma discussão teórica vasta sobre a escolha de tal ou qual termo;
Portolés prefere o segundo “porque daría cabida tanto a las mujeres oprimidas por la
raza en el ‘Primer Mundo’ como a las mujeres de los países descolonizados o
neocolonizados” (2004, p. 0), que Bidaseca critica a possibilidade de que seja também
rasurante de especificidades:

Tampoco el feminismo (heterosexual, blanco y burgués) escapa a


[...] críticas, cuando las diferencias de las mujeres del “Tercer
Mundo” fueron borradas, subsumidas bajo la ilusión de una opresión
en común. Las diferencias entre mujeres son el nuevo eje articulador
del feminismo. Este cambio de eje se inscribe en el pensamiento
próximo al “feminismo postcolonial” en la discusión sobre los rasgos
que asumió el feminismo como “feminismo blanco occidental y
heterosexista” y la preocupación sobre las diferencias históricas y
culturales que podían afectar la teoría y la práctica política del
feminismo. El feminismo postcolonial (Johnson-Odin, 1991: 316)
reedita un feminismo del “Tercer Mundo”; aunque surgen problemas
con esta denominación, que englobaría tanto a las mujeres oprimidas
por la raza en el “Primer Mundo” como a las mujeres de países
descolonizados. (BIDASECA, 2011, p. 64-65, grifos dela).

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Chela Sandoval, teórica feminista lésbica de cor, conta essas dúvidas no contexto
de práticas e subjetividades feministas quando postas em contato no contexto de uma
conferência: “Iria então nossa potencial união ser designada ‘terceiro-mundista’, ‘de
cor’, ou nenhuma dessas? O grupo não chegou a nenhuma resolução final [...]”, e conta
ainda que nesse momento primevo dos encontros de várias mulheres de cor em que
esses questionamentos pipocavam, “[...] o que estava escondido se revelava, os medos
se dissipavam, os esterótipos eram confrontados, e as dores e visões mútuas eram
compartilhadas. Esses foram os processos necessários a nos ajudar a compreender quem
éramos juntas, a condição presente de nossas similitudes e diferenças, e quais poderiam
ser nossas táticas para a criação de um ‘feminismo’ mais saudável” (1981/2006, p. 464,
traduções minhas). Para Mohanty, o uso é variável, e politicamente contextual:
“reinvindicar identidades raciais baseadas em história, localização social e experiências
é sempre uma questão de análise e política coletivas” (MOHANTY, 1986/2003, p. 135,
tradução minha).
Esse detalhamento conceitual esboça minha costura textual de um chão teórico
desde as autoras que mais me acompanham aqui para caminhar entre as interconexões
de subjetividades de mulheres de cor e/ou de mulheres terceiromundistas que são
majoritariamente afrodescendentes, e de práticas políticas feministas pós-coloniais e/ou
terceiromundistas que dizem respeito à minha própria percepção subjetiva enquanto
lésbica negra afrodiaspórica e terceiromundista, marcada colonialmente e que me
traduzo em termos de flutuações na borrada fronteira racial em que me insiro (negra de
pele clara) e impasses na prática de tradução feminista (traduzir do inglês ao pb, mas
raramente o inverso).
Eu prefiro aqui usar “feminismo pós-colonial” a “feminismo terceiromundista”
porque quero olhar para o contexto da tradução do artigo de Caldwell a partir da
particularidade de ser um texto escrito por uma teórica negra afrodiaspórica que vive
“no centro”, escrevendo sobre “a periferia”, e sendo traduzida nessa “periferia” de uma
maneira específica. Em seu artigo, Caldwell vai comparar a inserção de raça como parte
das análises na produção feminista feita no Brasil e aquela feita em dois países da
América do Norte (EEUU e Canadá) e na Inglaterra. E além de notar essa ausência
significativa do tema nas produções locais, ela também critica a baixa tradução de
teóricas negras para o português brasileiro – pb:

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Although the discussion of race has increased in U.S. and British


women's studies scholarship in recent decades, Brazilian women's
studies scholars have been much slower to embrace the study of race
as a research priority. The lack of sustained attention to the
relationship between race and gender in Brazilian feminist scholarship
is largely due to the manner in which the field of women's studies has
developed in Brazil. The formal establishment of women's studies in
Brazil took place during the early 1980s when critiques of feminism by
U.S. women of color began to gain a wider audience.' However,
these critiques appear to have had little, if any, impact on Brazilian
women's studies scholarship. The work of U.S. women of color has
only rarely been translated into Portuguese, the national language of
Brazil, and their analyses of the racialization of gender and women's
identities have not widely influenced the agenda of Brazilian women's
studies. (CALDWELL, 2001, p. 220-221, grifos meus).

Essa versão acima é do artigo em inglês (CALDWELL, 2001), “ligeiramente


modificado” para publicação na Journal of Negro Education segundo a autora. É
assim que Caldwell abre a seção Gender, Race, and “Difference” in Brazil, e ela tem
uma correspondente na tradução para o pb: Gênero, raça e ‘diferença’ no Brasil – as
diferenças de capitalização e pontuação no nome das seções são pequenas perto
das várias dessemelhanças entre elas, que são diferentes não só por estarem cada qual
numa língua. Os parágrafos iniciais das duas são bastante correspondentes, trata-se
mesmo de um trecho em inglês e sua tradução para o português brasileiro, apesar de
uma inversão entre períodos, mas o mais marcante é que logo no começo aparece a
discrepância conceitual que discutirei:

A falta de atenção à relação entre raça e gênero no feminismo


acadêmico brasileiro se deve em grande parte à forma como se
desenvolveu o campo dos estudos sobre mulheres no país. Ao contrário
do feminismo acadêmico nos Estados Unidos e na Inglaterra, onde a
discussão sobre raça aumentou nas décadas mais recentes, as
pesquisadoras feministas brasileiras têm sido muito mais lentas na
incorporação do estudo da raça aos estudos sobre mulheres e à teoria
feminista. Além disso, embora os estudos sobre mulheres tenham se
estabelecido formalmente no Brasil quando as críticas ao feminismo
feito por não brancas nos Estados Unidos e na Inglaterra começaram
a atingir um público mais amplo, no início dos anos 80, essas críticas
parecem ter tido pequeno impacto no país, ou quase nenhum. O
trabalho de não brancas americanas não tem sido largamente
traduzido para o Português, e seus insights críticos sobre a racialização
do gênero e dos estudos sobre mulheres não influenciaram a agenda dos
estudos da mulher no Brasil. (CALDWELL em tradução anônima,
2000, p. 94; itálicos da tradução; negritos meus).

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No artigo em inglês, o termo “women of color” aparece 14 vezes; no artigo em


português, que vou chamar de agora em diante de “a tradução”, aparece uma vez, no
segundo parágrafo, depois da proposta de termo-traduzido “mulheres não brancas”. O
termo-traduzido “mulheres não brancas” aparece quatro vezes no texto, e uma na nota
de rodapé que vou discutir. Depois, “não brancas”, sem “mulheres”, aparece uma
vez na nota, e vai aparecer assim, com referência vazia, ou acompanhando os termos
“feministas” e “intelectuais” dez vezes. No último parágrafo, “mulheres brancas e não
brancas” aparece na conclusão do texto, um chamado de Caldwell a desaprender a
homogeneização de “mulheres”:
“Continuar chamando atenção para as diferenças de experiência de vida entre
mulheres brancas e não brancas é um passo fundamental para se poder ver e entender
melhor a heterogeneidade que existe dentro da população feminina no Brasil”
(CALDWELL, 2000, p. 105, grifos meus). Considero colonial um projeto de tradução
que se proponha falar de heterogeneidade cultural entre mulheres mas o faz a partir do
uso da branquitude como único referente para fazer menção a uma multiplicidade
étnicorracial feminista crítica à branquitude, que women of color, termo escolhido por
Caldwell e cunhado por uma geração em luta pelo direito à autodefinição, significa.
A única pista identitária sobre o tradutor refere-se ao sexo+gênero, e está na
primeira nota de rodapé do texto: “N. do T.”. Nela, o tradutor justifica sua escolha
por traduzir “women of color” como “mulheres não brancas”: “O termo se refere a
mulheres não brancas nos EUA, Inglaterra e Canadá. Seu significado político foi
redefinido no sentido da afirmação racial étnica e racial por mulheres de ascendência
africana, latino americana, caribenha, indígena e asiática naqueles países. O termo ‘não
brancas’ é preferível a ‘de cor’, que no Brasil popularmente se restringe a negras e
mulatas, por manter a especificidade anglo-americana do original (N. do T.)” (tradução,
2000, p. 91).
Preferível para quem? E q u a l é o c u s t o d a t e n t a t i v a d e “manter a
especificidade anglo-americana do original”? A justificativa do tradutor traz uma
incoerência argumentativa; um apego à ideia de “conteúdo original/sentido original”
comum a teorias (e metodologias) hegemônicas da tradução, em sua ficção da “tradução
transparente”, que acaba ele mesmo ampliando a incoerência argumentativa da nota;
uma compreensão anacrônica, homogeneizante e racista quanto ao uso de expressões

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brasileiras de referência a pessoas negras; e uma falta de atenção e cuidado à


soberania da autodefinição que, juntas, atuam de forma colonizadora, mesmo que
venham num par cultural/linguístico marcado por relações colonizadoras unilaterais.
A primeira incoerência argumentativa vem de uma dissonância que a ausência de
uma conjunção adversativa traz, deixando discrepantes as informações dos dois
primeiros períodos da nota, de caráter explicativo. Primeiro, “O termo se refere a
mulheres não brancas nos EUA, Inglaterra e Canadá. Seu significado político foi
redefinido no sentido da afirmação racial étnica e racial por mulheres de ascendência
africana, latino americana, caribenha, indígena e asiática naqueles países”. Depois, o
argumento do período final, em que o tradutor justifica sua escolha: “O termo ‘não
brancas’ é preferível a ‘de cor’, que no Brasil popularmente se restringe a negras e
mulatas, por manter a especificidade anglo-americana do original”.
O primeiro trecho explicita: mulheres específicas, de um contexto, história e
subjetividade também específicas, estão pensando sobre suas várias raças de uma forma
determinada, e propuseram um termo, “women of color”, para referir-se à constituição
coletiva e racializada de suas identidades e os processos políticos em torno disso. Um
exercício de subjetividade fundado na política da localização (KAPLAN, 1994).
Enquanto o segundo trecho sugere que a tradução usa ‘não brancas’ ao invés de ‘de cor’
para evitar a carga pejorativa que o termo ‘de cor’ tem no Brasil, onde se refere a negras
e mulatas exclusivamente, e portanto anula a referência às diversas raças e etnias que o
termo em inglês refere.
Penso que o uso de “mas” ou “entretanto”, “contudo”, dissolveria a contradição
entre os períodos, ao menos aparentemente, numa primeira mirada. Um advérbio de
lugar também ajudaria: “[...] aqui é preferível a ‘de cor’ [...]”, além de romper a
pretensão universalista e evasiva de “é preferível”, recurso linguístico para ativar uma
impessoalidade indispensável à política da tradução transparente, na qual o tradutor não
pode, não deve, nem precisa aparecer: o que deve ser mantido é o sentido, o original,
ou, nessa nota, “a especificidade anglo-americana do original”. Mas como manter
a “especificidade” unicamente em termos linguísticos de um termo que foi
politicamente construído?
Não acho pertinente nem didática uma cisão entre “linguístico” e “político”;
muitas pesquisas, inclusive de feministas interessadas no discurso, revelam há pelo

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menos quatro décadas as relações entre linguagem e ideologia (Deborah Cameron e


Sally McConnell-Ginnet, para citar algumas). Mas o tradutor reforça essa cisão ao
esquivar-se de traduzir um termo politicamente cunhado com uma justificativa
linguisticamente motivada. E essa cisão não só justifica, mas orienta sua tradução. Para
Heredia (2003, p. 166), “[...] la creación de significados depende totalmente del
contexto socio-cultural donde se lleve a cabo”, e “[...] la validez de una traducción no
puede basarse en la mera equivalencia semántica [...]”.
Como o tradutor é anônimo e não é possível saber quem é, de onde veio, como se
percebe racialmente, como se insere em movimentos políticos, qual é sua trajetória
acadêmica, o que pensa sobre tradução enquanto prática que envolve não só
textualidades mas as subjetividades que as conformam, é indispensável trazer uma outra
mirada ao termo “women of color”.

La hermandad entre mujeres fue un mito que a pesar de que


apuntaba la necesidad de entrelazar lazos de complicidad entre las
mujeres frente al patriarcado y al sexismo, no dejaba ver en qué
medida se reproducía el racismo en la práctica feminista. Estas
nuevas visiones de las feministas afrodescendientes, llevaron a
desarrollar lo que se denomina Black feminism o feminismo negro, en
Estados Unidos abriendo así las brechas teóricas y conceptuales que
articula diversos sistemas de opresión y que se han hecho concreta en
las diversas prácticas políticas colectivas articulando un movimiento
antirracista y antisexista de mucho impacto. Bajo el concepto de
“mujeres de color” nace el feminismo negro en Estados Unidos a
principios de los años 70 con dos propósitos: la reconstrucción del
feminismo, dominado por una visión etnocentrista y racista que
invisibilizaba las experiencias de las mujeres no blancas en sus
postulados teóricos, analíticos y en la práctica misma y la denuncia
del sexismo del movimiento de los derechos civiles de los hombres
negros que se desarrolla desde los años 60. “Mujeres de color” más
que una categoría biológica fue asumida como una categoría política
que cuestionaba el predominio de una supremacía blanca (hooks,
2004) y las prácticas patriarcales que se daban tanto en la sociedad
norteamericana como en estos movimientos sociales. (CURIEL, 2007,
p 3-4).

Ochy Curiel mesma usa “não brancas”, que não quero demonizar como a
versão malévola que “mulheres de cor” deve heroicamente apagar, mas a
contextualização que oferece ao termo aponta as nuances do que estava em disputa
na constituição e uso de dele. E parte do que estava em disputa era visibilizar mulheres
de cor, seja na autodefinição, seja nas produções teóricas (poéticas ou em prosa).

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De qualquer forma, o tradutor fez uma pesquisa, mesmo não a tendo detalhado
como Curiel faz; e sua justificativa explicita que entende o contexto de autodefinição a
que “women of color” remete. Mas mesmo assim defende que “é preferível” usar “não
brancas”, porque no Brasil, “de cor” “[...] popularmente se restringe a negras e mulatas
[...]”, e assim tentar manter uma especificidade do original. A especificidade do original
é que o termo tem uma história político-geográfica, étnica e racial que “não brancas”
não evoca, porque o campo semântico de “women of color” tem uma marca textual em
sua superfície, em sua letra, como diz uma teoria de tradução famosa, e “não brancas”
não dá conta dessa conjugação.
Não dá conta porque “não brancas” não existe, no português brasileiro, como
letra que evoque uma semântica relacionada a um contexto histórico, geográfico,
político, étnico e racial de disputas textuais e políticas de grupos feministas,
acadêmicos ou não, em torno de uma ideia de branquitude que deixa um “o
feminismo” planificado. Existem críticas brasileiras às práticas racistas em contextos
feministas (Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, Jurema Werneck, Denise Botelho, ou
eu mesma, Djamila Ribeiro, Jéssica Hipólito, entre outras), mas elas não são cunhadas
em termos de “não branquitude”, e sim de negritude, em termos de raça ou etnia. O
etnocentrismo de dar “cor local” apagou a pele do termo traduzido, seja na “a
especificidade” “daqui” ou “de lá”.
Assim é que funciona a outra incoerência argumentativa. A falta de
posicionamento nítido entre um projeto de tradução como domesticação e um
estrangeirizante fez com que a tradução soe fora de contexto, des-localizada, não se
referindo a nenhuma experiência concreta, efetiva, fora dos limites da própria
textualidade. Porque tenta apagar o estranhamento que “women of color” em uma
tradução justa traria ao texto, sugerindo um outro uso que não o “popular” do Brasil, e
tenta criar um equivalente inexistente, e logo ininteligível, no contexto das críticas feitas
a práticas racistas no feminismo no Brasil.
Além disso tudo, há também um outro ponto que me parece muito
questionável. A noção de que “de cor” é usado “popularmente” no Brasil para fazer
referência a “negras e mulatas”. Aqui lembro os escritos de Maria Nascimento no jornal
O Quilombo, com sua coluna Fala a Mulher voltada às “Patrícias de cor”, o movimento
negro nos anos 1940/1950: o uso de “de cor” aqui me parece mais próximo do uso de

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“de cor” sugerido por “women of color” e “people of color”, em termos de


ressignificação e retomada do que era usado pejorativamente, menos próximo da noção
carnavalesca de “negra e mulata” que a nota ressoa.
Qual é o contato do tradutor com alguns expoentes importantes da cultura negra
afro- diaspórica? Há tanta documentação histórica, teórica, política, ativista sobre
movimentos negros no Brasil e nos EEUU, inclusive tantas análises comparativas... Me
pergunto se ele não estava conectado ao debate político, promovido intensamente por
mulheres em movimentos negros, sobre “mulata” e suas marcas racistas e sexistas
profundas, (Gilliam; Gilliam, 1995) e o eco que faz da doutrina de branqueamento do
século XIX com e seu lastro simbólico e cultural persistente? Diferentemente de “de
cor”, retomado e ressignificado, a “mulatice” não entrou no léxico ativista (será pela
animalização sexualizada a que remete?).
O que aqui me parece um gesto colonizador, emprestando a expressão de
Mohanty (2003, p. 88), é como, em nome de uma fundamentação logocêntrica de
tradução – uma tradução hegemônica fissurada pelo sentido –, um artigo de uma
pesquisadora negra que critica a ausência de algumas inspirações teóricas que podiam
ser trazidas, em tradução, ao corpo da teoria feminista no Brasil vai ser traduzido de
forma descuidada, como se o mais importante fosse não o “como” essa pesquisadora
diz, mas “o que diz”, e como se fosse possível separar essas duas instâncias – ou, em
outras palavras, a tranquilidade em desconsiderar a letra das articulações teóricas de
uma feminista negra.
Essa desconsideração tem implicações, raízes mesmo, muito mais fundas do que
mostra a subserviência à tradução (fa)logocêntrica; ela denuncia de que forma a
constituição da supremacia do sentido está aliada a um projeto epistêmico específico
que organiza, também, pelo apagamento ou sabotagem, outras supremacias, sobre quem
pode emitir sentidos, e de que forma pode, ou deve, fazê-lo. Não acredito que o tradutor
tenha feito isso deliberadamente, até porque os propósitos da revista que publicou a
tradução são explicitamente feministas antirracistas, mas isso, efetivamente, aconteceu:
reafirmar e remontar a ausência que Caldwell contesta: raça na pesquisa de gênero no
Brasil.
Existe uma tradição de pensamento própria de negras, chicanas, descendentes dos
povos originários (para evitar a alcunha “indígena”, dada pelo colonizador), asian

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americans, judaicas, muçulmanas e outras – e a publicação This bridge called my back...


foi inaugural no sentido de plasmar o termo como uma escola de pensamento e ação
feminista terceiro-mundista. Se a tradução evita nomear esse contexto definido a partir
da escolha das próprias envolvidas, me parece, então, que desrespeita a autonomia e a
soberania de redefinição de um grupo específico de mulheres que cunhou um termo
específico (ou o uso específico de um termo) para comunicar sua experiência e
contrastá-la a práticas feministas racistas.
“Por mais sofisticado ou problemático que seja seu uso como construto
explanatório, colonização quase invariavelmente implica uma relação de dominação
estruturação e uma supressão – frequentemente violenta – da heterogeneidade da(s)
sujeita(s) em questão.” (MOHANTY, 1986/2003, p. 18, tradução minha). Como
acontece em boa parte da escrita feminista negra, a subjetividade tem uma dimensão
textual importante. De que forma um projeto de tradução feminista pode se tornar uma
prática de tradução colonizadora, em que um tradutor decide um jeito “preferível” de
dizer o que foi dito por quem escreveu, e o que isso me conta sobre perigos e
possibilidades de pensar e realizar projetos anticoloniais de tradução feminista de
escritas negras e/ou de cor?
Lorde (2009) insiste na importância da autodefinição para grupos subalternizados
ou colonizados. Me parece tão colonizador definir como “não brancas” existências
que estão justamente afirmando uma diferenciação da branquitude, a qual tem sido
usada há séculos como o único referente viável, possível, pronunciável; reafirmar o
diferente ao referente hegemônico nomeando o referente hegemônico (brancas) e
contando com um único “não” para dar conta de uma multiplicidade racial e étnica
crítica, autodefinida...
É outra condenação à não existência, ou à existência somente permitida em termos
do que se contesta – é a negação a que alguém seja a própria referência em sua vida,
por mais que essa vida seja forjada em termos de disputas raciais e étnicas com uma
hegemonia embranquecedora, pois é hegemônica mas não é total, não é a opressão
sufocante à qual não há resistência possível. Essa tradução é também uma insistência
na retórica da reatividade, da negação, que tantas vezes tenho visto imobilizar no plano
do denuncismo e das acusações a ação feminista negra e/ou lésbica, no plano
insuperável da falta de propostas. É, em última instância, limitador, como disse Lorde:

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Minhas amigas, sempre haverá alguém tentando usar uma parte de


vocês, e ao mesmo tempo exigindo que você esqueça ou destrua todos
os outros eus. E eu digo, isso é morte. Morte a você enquanto mulher,
morte a você enquanto poeta, morte a você enquanto ser humano.
Quando o desejo por definição, própria ou outra, vem de um desejo por
limitação e não de um desejo por expansão, nenhuma face verdadeira
pode emergir. (LORDE, 2009, p.157, tradução minha).

Como peles negras podem emergir embaixo da pesada máscara branca que um
termo aparentemente simples como não-cor carrega? A branquitude é tão eficiente que,
mesmo no contexto da produção e recepção desse texto de Caldwell e sua tradução, ela
passa em branco? Quem traduziu essas mulheres de cor? Se eu soubesse quem ele é, se
soubesse se é negro ou não negro, se é gay ou não gay, se é trans ou não trans, se eu
soubesse seu nome e seu email, teria feito essas perguntas primeiro, ao invés de
escrever todas essas palavras marcadas, ao invés de supor o que sabia, não sabia ou
preferiu não saber ao traduzir Caldwell? E se ele me dissesse que não sabia? O
privilégio da leviandade seria mais irresponsabilizável em tradução?

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ESCRITAS AFROFEMININAS EM TRADUÇÃO: THE COLOR OF


TENDERNESS E L’HISTOIRE DE PONCIA

Luciana de Mesquita Silva1


Marcela Iochem Valente2

RESUMO: Neste artigo, trataremos da recepção de textos literários afro-brasileiros


traduzidos. Para tanto, abordaremos A cor da ternura (1989), de Geni Guimarães, e sua
tradução para a língua inglesa, e Ponciá Vicêncio (2003), de Conceição Evaristo, e sua
tradução para a língua francesa. A cor da ternura é uma obra de cunho
autobiográfico que retrata os desafios enfrentados por Geni, uma menina pobre e
negra, na busca da construção de sua própria identidade. Com o título The Color of
Tenderness, sua tradução foi realizada por Niyi Afolabi e publicada em 2013 pela
editora estadunidense Africa World Press. No que diz respeito a Ponciá Vicêncio, temos
a história de Ponciá e sua família descendente de escravos, vivendo em um período pós-
abolicionista, negociando o seu presente, anseios futuros e a reminiscência do passado
escravocrata de sua família. Com o título L’Histoire de Poncia, sua tradução foi
realizada por Patrick Louis e Paula Anacaona e publicada em 2015 pela editora francesa
Anacaona. Os Estudos Descritivos da Tradução (DTS) servirão de base para a nossa
proposta, a partir das visões de autores como Even-Zohar (1990); Bassnett & Lefevere
(1990) e Toury (1995).

PALAVRAS-CHAVE: tradução, literatura afro-brasileira, The Color of Tenderness,


L’Histoire de Poncia

ABSTRACT: In this article, we will address the reception of translated Afro-Brazilian


literary texts. Therefore, we will approach Geni Guimarães’s The Color of Tenderness

1
Professora de Língua Inglesa e Língua Portuguesa do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso
Suckow da Fonseca (CEFET/RJ), com atuação no Bacharelado em Turismo (Campus Petrópolis) e no
Mestrado em Relações Étnico-Raciais (Campus Maracanã). Doutora em Letras - Estudos da Linguagem
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2015), Mestre em Letras - Teoria da Literatura
pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2007), Bacharel em Letras - Tradução pela Universidade
Federal de Juiz de Fora (2005), Licenciada em Letras - Língua Inglesa e Língua Portuguesa pela
Universidade Federal de Juiz de Fora (2004/2003).
2
Professora Adjunta do setor de Língua Inglesa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atuando na
Pós-graduação Stricto Sensu em Letras, na área de Estudos da Literatura; na Pós-graduação Lato Sensu
em Linguística Aplicada: Inglês como Língua Estrangeira; e na graduação em Inglês e Literaturas de
Língua Inglesa. Possui Doutorado em Letras - Estudos da Linguagem, com pesquisa em Estudos da
Tradução, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2013); Mestrado em Literaturas de
Língua Inglesa com pesquisa em estudos afro-americanos / Tradução pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (2009); e graduação em Letras - Inglês e Literaturas de Língua Inglesa - pela mesma
universidade (2007).

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(1989), and its translation into English, and Ponciá Vicencio (2003), by Conceição
Evaristo, and its translation into French. The Color of Tenderness is an autobiographical
work that portrays the challenges faced by Geni, a poor black girl, in search for the
construction of her own identity. Entitled The Color of Tenderness, its translation was
done by Niyi Afolabi and published in 2013 by the American publisher Africa World
Press. With regard to Ponciá Vicencio, it brings the story of Ponciá and her family, who
are descendants of slaves, living in a post-abolitionist period and negotiating her
present, future yearnings and the reminiscence of her family’s slavery past. Entitled
L'Histoire de Ponciá, its translation was done by Patrick Louis and Paula Anacaona and
published in 2015 by the French publisher Anacaona. Descriptive Translation Studies
(DTS) will serve as the basis for our proposal, considering the views of authors such as
Even-Zohar (1990); Bassnett & Lefevere (1990) and Toury (1995).

Keywords: translation, Afro-Brazilian literature, The Color of Tenderness, L’ Historie


de Ponciá

Geni Guimarães e Conceição Evaristo: “vozes-mulheres”3 em perspectiva

As escritoras Geni Guimarães e Conceição Evaristo são reconhecidas como


importantes representantes do campo de literatura afro-brasileira. Trata-se de um campo
controverso, tendo em vista os diferentes ângulos sob os quais é considerado. Por um
lado, há intelectuais que se contrapõem à existência desse tipo de literatura, alegando
que a literatura brasileira é única, ou seja, não deve ter separações em categorias, e que
todos nós temos, até certo ponto, uma herança africana. Desse modo, especificar
determinadas produções literárias utilizando-se de critérios étnicos não teria
fundamento. Tal postura, baseada em grande parte no mito da democracia racial, acaba
gerando um desconhecimento por parte do público em geral de uma literatura engajada
na luta pela visibilidade dos negros e pelo combate ao racismo. Por outro lado,
principalmente a partir da década de 1980, passou a haver um reconhecimento desse
campo literário na academia, mesmo que com visões distintas sobre suas definições. De
acordo com Benedita Gouveia Damasceno, em Poesia negra no modernismo brasileiro
(1988), em se tratando de literatura negra, a cor do autor é um aspecto irrelevante. Zilá
Bernd, no livro Introdução à literatura negra, também publicado em 1988, compartilha

3
Referência ao poema “Vozes-mulheres”, de Conceição Evaristo, publicado nos Cadernos Negros 13,
1990, p. 32-33.

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da mesma opinião de Damasceno ao afirmar que “o conceito de literatura negra não se


atrela nem à cor da pele do autor nem apenas à temática por ele utilizada, mas emerge
da própria evidência textual cuja consistência é dada pelo surgimento de um eu
enunciador que se quer negro” (BERND, 1988, p. 2).
Luiza Lobo, no artigo “A pioneira maranhense Maria Firmina dos Reis” (1989),
demonstra uma postura divergente das duas estudiosas citadas, já que “só pode ser
considerada literatura negra, portanto, a escritura de africanos e seus descendentes que
assumem ideologicamente a identidade de negros” (LOBO, 1989, p. 91). Domício
Proença Filho, no artigo “O negro na literatura brasileira” (1988), chama a atenção para
o “‘risco terminológico’ implícito ao uso da expressão literatura negra, qual seja, o de
‘fazer o jogo do preconceito’ ao atribuir a esses escritos um lugar ‘sutilmente distinto,
sob a capa de aparente valorização’” (PROENÇA FILHO, apud DUARTE, 2013, p. 2).
Com o passar dos anos, especialmente após a virada do século XXI, a concepção
de “literatura afro-brasileira” tem adquirido sentidos mais amplos, tais quais os propostos
por Eduardo de Assis Duarte. Em contraste com a visão de alguns acadêmicos no Brasil,
o autor defende que “essa literatura não só existe como se faz presente nos tempos e
espaços históricos de nossa constituição enquanto povo; não só existe como é múltipla e
diversa” (DUARTE, 2008, p. 11). Nesse sentido, a postura de Duarte se difere das de
Benedita Damasceno e Zilá Bernd, visto que ele enxerga a literatura afro-brasileira a
partir dos seguintes elementos: a) temática: o negro é o assunto principal; b) autoria: o
autor é afrodescendente, considerando-se o processo de miscigenação predominante em
nosso país; c) ponto de vista: há uma perspectiva que dialoga com a história e cultura
negras no Brasil; d) linguagem: novos ritmos e significados são criados com base em
uma herança africana; e) público-alvo: o leitor idealizado é afrodescendente. Segundo
Duarte, os aspectos em questão fazem parte de um conceito ainda em construção e
devem ser considerados em conjunto, e não isoladamente, como o fez Damasceno, por
exemplo. Isso porque “existem autores que, apesar de afrodescendentes, não
reivindicam para si essa condição, nem a incluem em seu projeto literário, a exemplo de
Marilene Felinto e tantos outros” (DUARTE, 2010, p. 125). Sendo assim, essa
concepção abrangente proposta por Duarte inclui a produção tanto de sujeitos que

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buscam dissimular seu lócus de enunciação, conforme ocorre com Lima Barreto,
Machado de Assis e Cruz e Souza, quanto daqueles que se assumem etnicamente. É o
caso, por exemplo, de Geni Guimarães e de Conceição Evaristo.
Geni Guimarães é natural de São Manuel, cidade situada no interior de São Paulo.
Nascida no ano de 1947, desde cedo, ela enfrentou obstáculos por ser negra e de origem
humilde. Mesmo com essas dificuldades, Guimarães formou-se professora e começou
sua carreira de escritora ainda jovem, através da publicação de textos literários em
jornais como Debate regional e Jornal da Barra. No decorrer dos anos, ela lançou
obras como Terceiro filho (1979), Leite do peito (1988), A cor da ternura (1989) e Balé
das emoções (1993), além de ter contos publicados nos Cadernos negros. É importante
destacar que os Cadernos negros, com publicações anuais ininterruptas desde 1978 e
alguns números esgotados, são um exemplo de movimento por parte de escritores
negros para ocuparem seu espaço no mercado editorial brasileiro. Na apresentação da
edição bilíngue Cadernos negros: literatura afro-brasileira contemporânea / Black
Notebooks: Contemporary Afro-Brazilian Literature (2008), Esmeralda Ribeiro ressalta
a importância de Cadernos para a divulgação da literatura afro-brasileira:

Sobrepujando a indiferença do mercado, das universidades em geral e


da grande mídia, Cadernos foi, ao longo do tempo, formando um
público leitor e uma tradição calcada no resgate de heranças e
ancestralidades, colocando em evidência um fato insofismável: a
existência de uma produção literária afro-brasileira importante e
qualitativamente significativa (RIBEIRO, 2008, p. 199).

No que diz respeito especificamente à produção literária de Guimarães, A cor da


ternura, lançado em 1989 pela editora FTD, é uma de suas principais obras. Foi a partir
dela que a autora ganhou dois importantes prêmios literários: o Jabuti, em 1990, e o
Adolf Aizen (vinculado à Academia Brasileira de Letras e à União Brasileira dos
Escritores), em 1992. Após ter sido editado em diferentes momentos, A cor da ternura
foi incorporado a Leite do peito e novos contos foram acrescentados. O título Leite do

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peito foi mantido e o livro foi publicado em 2001 pela Mazza Edições, editora que se
mostra comprometida com a divulgação da cultura afro-brasileira4.
A cor da ternura compõe-se de dez capítulos, além de ilustrações criadas por
Saritah Barbosa. Apresentando um tom de oralidade, notadamente nos diálogos, a obra
traz a história de vida de uma menina negra e pobre chamada Geni. Desde cedo, a
personagem-narradora enfrenta questões relativas à sua identidade. É o que se pode
observar nesta conversa com sua mãe:
– Mãe, se chover água de Deus, será que sai a minha tinta? – Credo-
em-cruz! Tinta de gente não sai. Se saísse, mas se saísse mesmo, sabe
o que ia acontecer?
– Pegou-me e, fazendo cócegas na barriga, foi dizendo: – Você ficava
branca e eu preta, você ficava branca e eu preta... (GUIMARÃES,
1998, p. 10).

Na escola, Geni é apelidada de “boneca de piche”, “cabelo de Bombril” e “negrinha”


por seus colegas de classe, os quais olham para ela de forma piedosa quando a
professora ensina que os escravos eram submissos e covardes. Sentindo-se humilhada, a
menina pega tijolos triturados, que eram usados para limpar panelas, e toma a seguinte
atitude: “Esfreguei, esfreguei [a barriga da perna] e vi que diante de tanta dor era
impossível tirar todo o negro da pele” (GUIMARÃES, 1998, p. 69).
Mesmo com todas as dificuldades vivenciadas no ambiente escolar ao longo dos
anos, Geni não desistiu de seu objetivo: formar-se professora. Em seu primeiro dia de
aula lecionando em uma escola infantil, ela teve que lidar com os olhares desconfiados
da diretora, dos colegas de trabalho e das mães dos alunos. Porém, seu maior desafio
aconteceu quando uma menina branca ficou parada na entrada de sua sala de aula e
disse: “– Eu tenho medo da professora preta” (GUIMARÃES, 1998, p. 87). Diante
dessa situação, Geni conquistou a confiança da aluna aos poucos e se sentiu fortalecida
para dar continuidade à sua trajetória.
Ainda que a crítica literária e a mídia não tenham dado o merecido destaque para
A cor da ternura e que o livro seja ainda pouco conhecido do público brasileiro em
geral, ele tem sido adotado em algumas escolas de São Paulo, como exemplo de

4
Esta é a descrição presente no site da Mazza Edições: “Ao longo de mais trinta anos de atividades,
Mazza Edições reafirma seu compromisso de levar o melhor da cultura brasileira e afro-brasileira aos
seus leitores”. Disponível em: <http://www.mazzaedicoes.com.br/editora/>. Acesso em: 6 jan. 2017.

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literatura infantojuvenil. Em sua capa, há a ilustração de uma menina negra com um


vestido amarelo, sentada em um balanço feito de pneu e olhando para cima. No final do
livro, estão presentes dois textos: um descrevendo quem é Geni Guimarães e outro,
Saritah Barbosa. Enquanto no primeiro a autora afirma que “o ato de escrever é o
veículo de exteriorização da situação de um povo dentro da sociedade e pode, com isso,
motivar mudanças. Baseada nessa crença, fui buscar minha menina das fazendas e
escrevi A cor da ternura” (GUIMARÃES, 1998, p. 94), no segundo, a ilustradora diz
que, “tendo participado de mais de dez exposições de arte, não me sinto tanto nos
quadros que já fiz quanto em cada ilustração deste livro” (GUIMARÃES, 1998, p. 95).
Já na quarta capa, há uma passagem do livro e dados biográficos da autora nos quais são
ressaltados os obstáculos que a mulher negra tem que encarar em uma sociedade
hegemônica branca e patriarcal. Além dos elementos mencionados, há um folheto que
acompanha a obra contendo o resumo do enredo, algumas perguntas sobre o livro e
possibilidades de temas para serem discutidos.
Conceição Evaristo é natural de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais.
Nascida em 1946, em uma realidade bastante humilde, desde muito jovem precisou
ajudar a família trabalhando nos afazeres domésticos, em casas de famílias mineiras.
Apesar das dificuldades enfrentadas pelo cenário de pobreza em que vivia, Evaristo teve
acesso à educação formal, cursando o normal ainda em sua cidade, formando-se
professora e, anos mais tarde, após sua mudança para o Rio de Janeiro, ingressando no
curso de Letras, no mestrado em Literatura Brasileira, e no doutorado em Literatura
Comparada.
No que diz respeito à sua carreira de escritora, Evaristo é autora de diversos
poemas e contos publicados na série Cadernos Negros e também em diversas antologias
no Brasil e no exterior, sendo “Os amores de Kimbá” o seu mais recente conto, a ser
publicado na antologia Olhos de azeviche, pela editora Malê, em 2017. Evaristo também
é autora dos romances Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da Memória (2006), e de quatro
coletâneas: Poemas da recordação e outros movimentos (2008) – coletânea de poemas,
Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), Olhos d’água (2015) e Histórias de leves
enganos e parecenças (2016) – coletâneas de contos. A coletânea publicada em 2015,

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Olhos d’água, recebeu o prêmio Jabuti, na categoria “Contos”, no mesmo ano de sua
publicação. Além de ficção, Evaristo possui também trabalhos acadêmicos e ensaios
publicados, assim como inúmeras falas e palestras no Brasil e no exterior, muitas
disponíveis em vídeos na web. Seu blog “Nossa Escrevivência”5, no ar desde novembro
de 2012, também merece destaque, pois disponibiliza, além de sua tese de doutorado,
“informações sobre os livros já publicados por Evaristo, textos da escritora, entrevistas,
depoimentos, vídeos, artigos publicados sobre sua obra e material sobre a literatura afro-
brasileira de um modo mais amplo” (VALENTE, 2013, p. 11).
Com suas constantes participações em eventos, com as traduções de seu romance
– como veremos adiante – e com o prêmio Jabuti, um importante prêmio literário
brasileiro, Evaristo e sua obra vêm conseguindo alcançar maior visibilidade,
principalmente no contexto dos estudos afrodiaspóricos e de gênero, já que, como
afirma a autora, sua criação literária “é marcada pela [sua] convicção de mulher e negra
na sociedade brasileira” (EVARISTO, 2016, s.n.p.)6. Além disso, a presença da
escritora em eventos como um dos maiores festivais literários do Brasil – a FLIP, em
2016, também contribui para essa visibilidade, não apenas da literatura de Evaristo, mas
da literatura afro-brasileira como um todo, devido ao seu posicionamento engajado.
Embora a FLIP tenha recebido inúmeras críticas pelo fato de sua edição de 2016
praticamente não contar com autores negros, especialmente com relação às vozes
femininas7, Evaristo participou da mesa “De onde escrevo” no evento, mediada pela
atriz, MC e escritora Roberta Estrela D'Alva, contando também com a participação das
autoras Ana Maria Gonçalves, Andréa Del Fuego e Maria Valéria Rezende. Para a
autora, fatores como a participação na mesa supracitada e o recebimento de um prêmio
literário de tamanha importância em nosso país, como o Jabuti, são “a prova de que
muita coisa está mudando na sociedade, para mulheres e negros. Depois de muito

5
http://nossaescrevivencia.blogspot.com.br/
6
O Globo online, Categoria Segundo Caderno/Prosa: Conceição Evaristo, Prêmio faz diferença,
publicado em 13/12/16. Disponível em: <http://eventos.oglobo.globo.com/faz-
diferenca/2016/vencedores/categoria-segundo-cadernoprosa-nome-do-vencedor/:>. Acesso em:
15/02/2017
7
LUZ, Sérgio. Escritoras dialogam com o curador da Flip na mesa 'De onde escrevo': ausência de negros
na programação foi tema debatido com Paulo Werneck, publicado em 29/06/2016. Disponível em:
<http://oglobo.globo.com/cultura/livros/escritoras-dialogam-com-curador-da-flip-na-mesa-de-onde-
escrevo-19610940>. Acesso em: 10/02/2017

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esforço, essas novas vozes começam a ganhar o espaço que é delas por direito. A
sociedade brasileira está mais propensa a escutar essas vozes” (EVARISTO, 2016,
s.n.p.).
Embora os contos e poemas publicados por Evaristo nos Cadernos Negros
tenham bastante visibilidade e sejam bastante lidos e estudados na academia, é o
romance Ponciá Vicêncio que se destaca dentre suas produções. Ponciá foi publicado
em 2003 pela Mazza edições, mesma editora que publicou Leite do peito, de Geni
Guimarães em 2001, e foi traduzido para duas línguas até o momento. Nos Estados
Unidos, o romance foi publicado pela editora Host em 2007, com tradução de Paloma
Martinez-Cruz, professora assistente de Estudos de Cultura e Literatura Latina, do
Departamento de Espanhol e Português, da Ohio State University8; e na França, seu
lançamento foi no Salão do Livro de Paris, em março de 2015, pela editora Anacaona,
com tradução para o francês por Patrick Louis e Paula Anacaona.
Ponciá Vicêncio é um romance composto por 46 capítulos não enumerados,
marcados apenas pela mudança de página e fonte que inicia cada um dos capítulos. O
romance apresenta um tom de oralidade, embora não traga diálogos, como acontece
com o romance de Geni Guimarães, e traz muitos elementos da cultura brasileira. O
romance narra a história de uma menina negra e pobre chamada Ponciá e de sua família,
que sofre com a reminiscência de seu passado escravocrata. Os avós de Ponciá
experienciaram a escravidão e seus pais, embora beneficiados pela Lei do Ventre Livre,
ainda vivem sob os resquícios dessa escravidão, em uma pseudoliberdade, nas terras de
seus antigos donos. Coronel Vicêncio alegava que as terras eram um “presente de
libertação. (...) Uma condição havia, entretanto, a de que continuassem todos a trabalhar
nas terras” (EVARISTO, 2006, p. 48). Já adulta, após a morte de seu pai, Ponciá decide
buscar uma vida melhor para si na cidade grande, porém, a vida na cidade não se mostra
fácil e, apenas muitos anos após a sua chegada, Ponciá consegue comprar um quartinho
em um morro na periferia da cidade. Ao retornar ao seu povoado de origem em busca de

8
Para saber mais sobre a tradução para a língua inglesa ver: VALENTE, Marcela Iochem. A tradução e a
construção de imagens culturais: Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, e sua tradução para o inglês.
Rio de Janeiro, 2013. 163p. Tese de Doutorado – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.

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sua mãe e irmão, após a compra de seu quartinho, Ponciá depara-se com a casa vazia.
Em momentos e situações diferentes, ambos, mãe e irmão, partem para a cidade na
esperança de encontrarem uns aos outros, entretanto, a história é repleta de
desencontros. Por fim, na estação de trem da cidade, após idas e vindas, sofrimentos e
desencontros, a família se reencontra e retorna ao campo após perceberem que a cidade
não oferece a vida melhor que todos buscavam.
O romance de Evaristo narra problemas do cotidiano das mulheres negras e da
pobreza, de forma muito rica e cheia de referências culturais, partindo de uma ótica
feminina e afrodescendente, dando voz a um grupo historicamente excluído no Brasil e
questionando os cânones brasileiros, que tendem a priorizar obras produzidas pelas
supostas maiorias ou, ainda, pelos membros da dita sociedade hegemônica, tida como
padrão. A publicação e a tradução de obras como Ponciá Vicêncio e A cor da ternura
permite que partes da cultura brasileira, por muito tempo encobertas, possam ser
conhecidas internacionalmente, dando alguma visibilidade a grupos que a história por
muito tempo excluiu ou apresentou de maneira estereotipada, conveniente aos relatos
hegemônicos.
Ainda que a crítica literária e a mídia também não tenham dado o merecido
destaque para Ponciá Vicêncio e que o livro ainda seja pouco conhecido do público
brasileiro em geral, o romance já foi indicado como leitura obrigatória para vestibulares
de algumas instituições mineiras como a UFMG, o CEFET Minas, entre outras. No que
diz respeito à capa, Ponciá Vicêncio traz a ilustração de uma mulher negra moldando
uma peça de barro, mostrando apenas o barro começando a ser trabalhado, parte do
rosto da mulher e suas mãos, uma alusão ao trabalho com o barro feito por Ponciá e sua
mãe para ajudar na renda da família Vicêncio. O livro traz também um prefácio de seis
páginas, escrito por Maria José Somerlate Barbosa, professora assistente do
departamento de espanhol e português na Universidade de Iowa, em que Ponciá é
apontado como um romance de formação, que apresenta personagens complexos e
multifacetados. Barbosa apresenta o enredo em linhas gerais, com o foco na
protagonista:

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[o] romance explora a fundo as sucessivas perdas de Ponciá (a morte


do avô, do pai, dos sete filhos, a separação da mãe e do irmão),
penetrando no “apartar-se de si mesma”. Analisa tal fato como uma
consequência de grandes abalos emocionais, de profundas ausências e
vazios, mas também como resultado de fatores sociais (extrema
pobreza, desamparo e injustiças sociais) que levam a situações
extremamente estressantes (BARBOSA, 2006, p. 7).

O prefácio também destaca a forma poética como Evaristo escreve e o constante apelo
aos sentidos presente no romance:

que convida o (a) leitor (a) a conhecer a protagonista pelos sentidos.


Revela cheiros, sabores, paisagens e a percepção da menina que escuta
tudo e todos, olha, vê, sente e se emociona com o arco-íris, com as
comidas, com o cheiro do café fresco e das broas de fubá e que
trabalha o barro, modelando objetos de argila (BARBOSA, 2006, p.
11).

Por fim, o prefácio traz uma avaliação muito positiva do romance, destacando as
questões econômicas, sociais e raciais presentes no enredo e comparando Evaristo, em
alguns aspectos, a Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. Segundo
Barbosa, Ponciá “é um romance que li de um só fôlego porque além de me prender a
atenção, me tomou pelos sentidos para percorrer com Ponciá os labirintos e as vias
tortuosas da memória (BARBOSA, 2006, p. 12).

The Color of Tenderness e L’Histoire de Poncia: um olhar sobre traduções em


contextos de recepção

A cor da ternura, de Geni Guimarães, foi traduzido para a língua inglesa por
Niyi Afolabi e publicado pela Africa World Press em 2013. Com sede na cidade de
Trenton, Nova Jersey, Estados Unidos, a editora foi fundada em 1983 com o objetivo de
“fornecer literatura de alta qualidade sobre a história, a cultura e a política da África e

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da diáspora africana”9. Nesse contexto, segundo o site da Africa World Press, The Color
of Tenderness se encontra na categoria “Women’s Studies” (Estudos de Mulheres), ao
lado de obras como Beyond Tradition: African Women and Cultural Spaces, organizado
por Toyin Falola e S. U. Fwatshak, e Black Women Feminism and Black Liberation:
Which Way?, de Vivian Gordon.
Com relação ao tradutor do livro, Niyi Afolabi é professor nos departamentos de
Espanhol e Português e de Estudos Africanos e da Diáspora Africana na Universidade
do Texas, nos Estados Unidos. Sua pesquisa se insere no campo dos Estudos Culturais
Afro-Brasileiros e tem oferecido importantes contribuições nessa área a partir da
publicação de livros como Afro-Brazilian Mind / A mente afro-brasileira:
Contemporary Cultural and Critical Criticism (2007), Cadernos Negros / Black
Notebooks: Afro-Brazilian Literary Movement (2008) e Cadernos negros / Black
Notebooks: Afro-Brazilian Literature (2008) e Afro-Brazilians: Cultural Production in
a Racial Democracy (2009), além de artigos como “Beyond the Curtains: Unveiling
Afrobrazilian Women Writers” e “The Myth of the Participatory Paradigm: Carnival
and Contradictions in Brazil”, de 2001. Nesse sentido, pode-se observar a relevância do
trabalho de Afolabi na divulgação da literatura e cultura afro-brasileiras no cenário
internacional.
No tocante a questões de recepção de The Color of Tenderness, mesmo que sites
como Amazon e Africa World Press tenham sido consultados, o único comentário
encontrado faz referência ao livro em português e está presente no Goodreads. Postado
por Julie em 18 de novembro de 2013, o relato esclarece que o livro traduzido em inglês
pode ser diferente da edição original lida por ela. Mesmo assim, ela recomenda sua
leitura. Soma-se ao comentário mencionado uma resenha escrita por Andreia Lisboa de
Sousa publicada em 2014 no site da Universidade do Texas, em Austin. Nesse texto,
além de trazer dados biográficos da autora, citar algumas de suas obras literárias e
apresentar um resumo do enredo, Sousa destaca a relevância de Geni Guimarães para as
discussões étnico-raciais referentes ao Brasil, afirmando o seguinte:

9
Texto original: “[...] provide high quality literature on the history, culture, politics of Africa and the
African diáspora” (tradução nossa). Disponível em: <http://africaworldpressbooks.com/about-us/> .
Acesso em: 21 dez. 2016.

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A recente tradução de A cor da ternura por Niyi Afolabi é de valor


inestimável. [...] Ter acesso a livros com imagens diversas, complexas
e positivas de personagens negros, tais como A cor da ternura na sua
versão em inglês, é uma oportunidade de estabelecer um diálogo
frutífero entre a literatura infantojuvenil do Brasil e dos Estados
Unidos10.

Diante desse cenário e tomando como base o pensamento de Even Zohar (1990)
de que a tradução é produzida com o intuito de atender às expectativas do polo receptor,
pode ser que a publicação de The Color of Tenderness tenha tido como um de seus
objetivos contribuir para a divulgação da literatura e cultura afro-brasileiras no exterior.
Tal ideia se baseia em fatores como: o perfil da editora, voltada para o lançamento de
obras vinculadas à diáspora africana; o perfil do tradutor, cuja pesquisa envolve o
estudo de questões concernentes ao universo afro-brasileiro; a introdução do livro,
intitulada “Magic of Words: Gender, History, and Afro-Memory”, escrita por Niyi
Afolabi, que apresenta a literatura de Geni Guimarães como vinculada ao contexto
cultural afro-brasileiro e de suma importância para as reflexões acerca de gênero,
história e memória africana; o destaque dado ao Prêmio Jabuti concedido à autora por A
cor da ternura, em 1990.
É interessante ressaltar que, de acordo com Toury (1995), os aspectos que se
conservam em uma tradução se relacionam com a sua significância para o contexto de
chegada. No caso analisado, a manutenção das ilustrações de Saritah Barbosa bem como
o tom de oralidade ao longo do livro podem ser citados como exemplos desses aspectos.
Ainda assim, tendo em vista que a tradução é uma reescrita embasada em diversos
fatores sociais, culturais, econômicos, de patronagem, entre outros (BASSNETT;
LEFEVERE, 1990), nota-se que The Color of Tenderness parece ter mais acadêmicos e

10
Texto original: “Niyi Afolabi’s recent English translation of The Color of Tenderness is invaluable.
[…] Having access to books with diverse, complex, and positive images of black characters, such as The
Color of Tenderness in its English version, is an opportunity to establish a fruitful dialogue between
children’s and young adult literature from Brazil and the United States” (tradução nossa). Disponível em:
<http://www.dwrl.utexas.edu/orgs/e3w/volume-14-spring-2014/exploring-the-land-of-oz-young-adult-
and-childrensliterature/andreia-lisboa-de-sousa-on-the-color-of-tenderness-a-cor-daternura>. Acesso em:
14 fev. 2017.

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pessoas interessadas em questões da cultura afro-brasileira como público-alvo do que


propriamente crianças e jovens, como ocorre com a obra em português. Essa
particularidade ilustra a seguinte visão de Toury (1995): o texto traduzido, no âmbito de
recepção, pode não ter uma posição análoga à do texto de partida no sistema de origem.
Isso não se trata de uma deformidade, mas sim de uma representação da escritora e de
sua obra que esteja de acordo com determinados valores vigentes no contexto de
chegada.
A publicação de The Color of Tenderness, além de traduções como a do conto
“Questões de afinidade” (2008) e de poemas que se encontram no livro Enfim... nós:
escritoras negras brasileiras contemporâneas / Finally... Us: Contemporary Black
Brazilian Women Writers (1994), demonstra uma certa abertura do polo receptor não só
para a literatura de Geni Guimarães, mas sobretudo para um conjunto de produções
ainda pouco valorizadas em nosso país. E essa é uma realidade destacada pelo próprio
Niyi Afolabi, já que, de acordo com ele, “escritores afro-brasileiros como Miriam
Alves, Geni Guimarães, Esmeralda Ribeiro e Cuti são mais conhecidos e reconhecidos
por suas obras fora do Brasil do que dentro do país” (AFOLABI, 2013, p. xiv) 11. O
mesmo acontece com Conceição Evaristo e sua obra.
Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, foi traduzido para a língua francesa por
Patrick Louis e Paula Anacaona e publicado pela editora Anacaona em 2015, editora
interessada em literaturas não canônicas e não divulgadas por grandes editoras,
principalmente aquelas provenientes da periferia. Segundo Paula Anacaona, tradutora e
dona da editora, em entrevista concedida ao Jornal do Commercio online, a Anacaona
surgiu de “um pequeno projeto de levar obras alternativas às livrarias do seu país”
(GUEDES, 2015, s.n.p.). A tradutora afirma: “[n]ão achei que ia ficar rica, claro, mas vi
que havia uma lacuna, com muitos livros bons que não eram traduzidos. Na França não
se falava nada da literatura marginal e nem se tinha aqui um movimento parecido”
(GUEDES 2015, s.n.p.). O catálogo da editora Anacaona inclui obras de escritores
como Ferréz, Eliane Brum, Ana Paula Maia, Marcelino Freire, Marçal Aquino, João

11
Texto original: “[...] Afro-Brazilian writers such as Miriam Alves, Geni Guimarães, Esmeralda Ribeiro,
and Cuti, are better known and recognized for their works outside of Brazil than within Brazil” (tradução
nossa).

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Luiz Carrascoza, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego. As obras são em sua grande
maioria selecionadas e traduzidas pela própria Paula Anacaona.
Até a realização do Salão Internacional do Livro de Paris, que aconteceu em
março de 2015, pouco se ouvia falar sobre a tradução do romance de Conceição
Evaristo para a língua francesa. Em pesquisas na internet e em outras mídias, tinha-se
acesso apenas à informação de que o Brasil seria o convidado especial do evento e que a
escritora Conceição Evaristo estaria compondo a delegação de autores brasileiros
selecionados para participar do evento representando o nosso país. Porém, durante o
Salão Internacional do Livro de Paris de 2015, o quase anonimato em relação à
publicação do romance de Evaristo em francês deu lugar a matérias e notas sobre a
surpreendente acolhida de sua publicação: “[e]la é um dos nomes brasileiros mais
assediados até agora no salão. Depois de falar numa mesa, no sábado, deu autógrafos,
tirou fotos e conversou com leitores por quase uma hora” (NEVES, 2015, s.n.p.).
A própria escritora Conceição Evaristo afirma que foi surpreendida com o
grande assédio no Salão Internacional do Livro de Paris e com o reconhecimento que
teve por conta de seu romance Ponciá Vicêncio. Em entrevista ao jornal Folha de São
Paulo em 23 de março de 2015, Evaristo afirma que “[seu] caso chama a atenção
porque não é muito comum uma escritora brasileira negra participar de uma feira
internacional” (EVARISTO, apud NEVES, 2015, s.n.p.).
No que diz respeito à recepção de L’histoire de Poncia, ainda não há muito
material disponível sobre a recepção crítica da tradução, porém é possível termos acesso
a diversas matérias publicadas em jornais e em diferentes fontes na internet por conta do
Salão do livro de Paris, ocasião do lançamento do livro, além de algumas resenhas e
avaliações do romance em sites como o “Babelio”12, e o da própria editora
“Anacaona”13, que reserva espaço para que o leitor comum poste sua avaliação. É
importante ressaltar que tais resenhas acabam funcionando como espaços formadores de
opinião, já que um possível leitor que decide fazer uma busca online antes de decidir
pela leitura do livro, facilmente terá acesso a essas avaliações. Nota-se que o leitor que
buscar referências na web sobre L’Histoire de Poncia encontrará, até o momento, uma

12
http://www.babelio.com/livres/Evaristo-Lhistoire-de-Poncia/699424
13
http://www.anacaona.fr/boutique/l_histoire_de_poncia_conceicao_evaristo/

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avaliação bastante positiva para a obra de Evaristo publicada na França em tradução. No


site “Babelio”, o romance recebeu seis avaliações e, de cinco estrelas possíveis, foi
avaliado com cinco estrelas por quatro leitores, com quatro estrelas por um leitor e por
três estrelas por um leitor, o que mostra uma recepção positiva. É interessante notar que
mesmo nas duas avaliações em que o romance recebeu as suas menores notas, três e
quatro estrelas, as resenhas apresentadas pelos leitores são positivas. A resenha do leitor
que avalia o romance com três estrelas, menor nota conferida no site, termina com um
agradecimento à editora Anacaona por ter possibilitado a leitura do romance em francês:
“Agradeço muito a Paula e às edições Anacaona por essa viagem ao coração do Brasil e
da saudade”14.
É interessante que todas as resenhas apresentadas no site “Babelio” ressaltam a
forma bela com que Evaristo tratou das questões raciais em nosso país, em seu romance,
como podemos ver em uma outra resenha “[u]m magnífico pequeno romance que evoca
com sobriedade e muita poesia a discriminação racial no Brasil, a migração dos
camponeses para as cidades pela voz vibrante de uma mulher em busca de sua
identidade e de suas raízes”15.
No site da editora Anacaona, o romance de Evaristo recebeu seis avaliações.
Delas, quatro leitores avaliaram o livro com cinco estrelas e dois leitores avaliaram
L’Histoire de Poncia com quatro estrelas. Na primeira avaliação apresentada, em abril
de 2015, o leitor Jean-Francis B afirma que o livro é apaixonante e maravilhoso e elogia
ainda o prefácio, que é uma fala da escritora Conceição Evaristo traduzida para o
francês: “Ponciá é um livro APAIXONANTE E MARAVILHOSO... O texto do
prefácio é incrível! Obrigado”16.

14
Texto original: “Un grand merci à Paula et aux éditions Anacaona pour ce voyage au coeur du Brésil et
de la saudade” (tradução nossa). Disponível em: <https://www.babelio.com/livres/Evaristo-Lhistoire-de-
Poncia/699424>. Acesso em: 10 fev. 2017.
15
Texto original: “[u]n magnifique petit roman qui évoque sobrement et avec beaucoup de poésie la
discrimination raciale au Brésil, la migration des paysans vers les villes par la voix vibrante d'une femme
en quête de son identité et de ses racines” (tradução nossa). Disponível em:
<https://www.babelio.com/livres/Evaristo-Lhistoire-de-Poncia/699424>. Acesso em: 10 fev. 2017.
16
Texto original: “Poncià est un livre PASSIONNANT ET MERVEILLEUX…. Le texte mis en préface
est grandissime! Merci” (tradução nossa). Disponível em: <
http://www.anacaona.fr/boutique/l_histoire_de_poncia_conceicao_evaristo/>. Acesso em: 20 fev. 2017.

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Em outros sites como o da FNAC e da “Amazon”17, o último sendo um grande


formador de opiniões, o livro também vem sendo avaliado positivamente. Na
“Amazon”, L’Histoire de Poncia recebeu apenas duas avaliações, porém ambas
conferindo a nota máxima para o romance.
Embora a acolhida de L’Histoire de Poncia esteja se mostrando bastante positiva
até o momento em que a presente pesquisa foi concluída (fevereiro de 2017), percebe-se
que ainda há pouco material para que possamos avaliar a recepção da obra de forma
mais consistente na França, até mesmo pelo seu pouco tempo de publicação e por não se
tratar de uma publicação de uma grande editora, com mais facilidade de circulação. No
Brasil, Ponciá Vicêncio vem atraindo mais olhares na academia, principalmente nos
estudos de gênero e afrodiaspóricos, como já apontamos, assim como tem acontecido
com a sua tradução para a língua inglesa, publicada em 2007 e que tem recebido
considerável atenção em contextos que se ocupam das diásporas africanas 18. Na França,
porém, ainda não encontramos trabalhos acadêmicos se ocupando da publicação em
questão. Até o momento, o material encontrado falando sobre a recepção da obra é
composto basicamente por resenhas e materiais publicados na mídia por conta do evento
em que a tradução foi lançada. Ainda assim, podemos ver que L’Histoire de Poncia
vem sendo lido e bastante elogiado em seu contexto de recepção.

Considerações finais

Após a discussão aqui proposta, acreditamos estar evidente que as escritoras Geni
Guimarães e Conceição Evaristo são importantes representantes da literatura afro-
brasileira e que as traduções de suas obras permitem que suas escritas alcem voos ainda
mais altos, dando voz a esse sistema de literatura não canônica em nosso país. Embora o
próprio campo da literatura afro-brasileira seja ainda controverso, como argumentamos,

17
http://www.amazon.fr/L-histoire-Poncia-Conceicao-Evaristo/dp/2918799750
18
Para informações sobre a recepção da tradução para a língua inglesa, consulte o artigo: VALENTE, M.
I.; SILVA, L. M. Narrativas no espelho: algumas considerações sobre a recepção de O olho mais azul, de
Toni Morrison, e Ponciá Vicencio, de Conceição Evaristo. Caderno de Letras (UFPEL), v. 23, p. 109-
138, 2014.

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sendo considerado por diferentes ângulos (DAMASCENO, 1988; BERND, 1988;


LOBO, 1989; PROENÇA FILHO, 1988; DUARTE, 2008), com o passar dos anos tal
campo vem cada vez mais se consolidando e seus escritores, pouco a pouco, vêm
conseguindo maior visibilidade, embora em contextos ainda bastante restritos.
Indubitavelmente, as traduções de obras como as de Guimarães e Evaristo também
contribuem bastante para essa visibilidade.
O fato de tais obras, não muito conhecidas em seu país de origem, terem sido
selecionadas para serem traduzidas também é um fator que merece especial atenção.
Tomando como pressuposto os Estudos Descritivos da Tradução, acreditamos que a
tradução não é uma tarefa simplesmente linguística, realizada em um vácuo, mas sim
uma prática histórica, cultural e socialmente contextualizada. Além disso, conforme
Toury (1995), ela é um fato característico da cultura-meta, incluindo a seleção dos
textos a serem traduzidos (ou vistos como traduções), os procedimentos adotados pelo
tradutor, a função que as traduções exercem em dado contexto cultural. Sendo assim, a
tradução tem como objetivo responder às demandas e aos interesses do contexto de
recepção (EVEN-ZOHAR, 1990).
Portanto, certamente as escolhas das editoras Africa World Press e Anacaona não
foram aleatórias, já que a tradução é uma forma de reescrita e “como todas as
(re)escritas nunca é inocente. Há sempre um contexto em que a tradução ocorre, sempre
uma história da qual um texto emerge e para a qual um texto é transposto”
(BASSNETT; LEFEVERE, 1990, p. 11). Da mesma maneira, o fato de A cor da ternura
e de Ponciá Vicêncio serem lidos e/ou estudados principalmente com o foco nas
questões raciais e de gênero também não é um fenômeno ocasional.
Assim, embora Guimarães e Evaristo não sejam escritoras canônicas em nosso
sistema literário e apesar de suas obras enfrentarem certa dificuldade de circulação nos
países em que foram publicadas (Brasil, Estados Unidos e França), até mesmo por terem
sido publicadas por editoras pequenas (Mazza, Anacaona, Africa World Press, FDP), as
escritoras vêm sendo lidas e estudadas, tornando-se referências no que diz respeito aos
estudos de questões relacionadas a gênero e, principalmente, a negritude em nosso país,

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indo além das barreiras nacionais através de suas traduções para as línguas inglesa e
francesa.

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163p. Tese de Doutorado – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro.
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sobre a recepção de O olho mais azul, de Toni Morrison, e Ponciá Vicencio, de
Conceição Evaristo. Caderno de Letras (UFPEL), v. 23, p. 109-138, 2014.

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ORALIDADE INVEROSSÍMIL E ROMANCE GRÁFICO:


A TRADUÇÃO BRASILEIRA DE AYA DE YOPOUGON

Marcos Bagno*

RESUMO: Com base nos conceitos de oralidade fingida, oralidade (in)verossímil e


hibridismo de normas, empreende-se uma análise crítica da tradução brasileira do
romance gráfico Aya de Yopougon. Para tanto, recorre-se ao amplo volume de pesquisa
sociolinguística empreendida sobre o português brasileiro nos últimos quarenta anos para
confrontar a realidade dos usos linguísticos na fala normal com as opções feitas na
tradução, ainda muito subservientes a um padrão normativo obsoleto.

PALAVRAS-CHAVE: oralidade fingida; romance gráfico; hibridismo de normas;


tradução; português brasileiro.

ABSTRACT: By applying the concepts of fictional orality, (un)plausible orality and


hybridity of norms, we put under critical analysis the Brazilian translation of the graphic
novel Aya de Yopougon. For that, we exploit the vast amount of sociolinguistic research
undertaken about Brazilian Portuguese along the last fourty years in order to confront the
reality of language uses in normal speech to the choices made in the translation, still too
much attached to an obsolete normative language pattern.

KEYWORDS: fictional orality; graphic novel; hybridism of norms; translation;


Brazilian Portuguese.

Introdução: oralidade e ficção

A tradução de romances gráficos é um terreno muito fértil para investigações de natureza


teórica e prática muito diversificadas, dada a própria natureza multissemiótica desse
gênero artístico. As complexas relações entre o material linguístico e o material pictórico;
a produção da obra por uma única pessoa (responsável pelo texto e pelo desenho) ou por
mais de uma, e suas consequências para a noção de autoria; os incontornáveis aspectos
de ordem cultural e seus desafios para a tradução; a transposição gráfica de obras
literárias; a análise do discurso consubstanciado no texto e nas imagens – esses são alguns
dos muitos focos importantes sob os quais se poderia empreender estudos da tradução de
romances gráficos.

Aqui, no entanto, vamos trabalhar numa perspectiva sociolinguística, que levará em conta
exclusivamente o texto verbal, ou seja, a língua em suas propriedades sintático-

*
Professor do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB), colaborador do Programa de Pós-
Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal Fluminense (UFF), autor, entre outros, de
Gramática pedagógica do português brasileiro (2012) e Dicionário crítico de sociolinguística (2017).
Endereço eletrônico: bagno.marcos@gmail.com.

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semântico-pragmáticas, conforme as perspectivas já clássicas das teorias linguísticas


rotuladas genericamente de funcionalistas (Neves, 1997). Será sociolinguística porque se
interessará por questões como a relação entre fala e escrita, os registros (ou estilos) e seu
grau de monitoramento, o emprego de variantes diastráticas (isto é, usos linguísticos que
variam de acordo com a classe social), as dinâmicas da interação no uso da língua etc. É
também sociolinguística – em sentido mais amplo e, por isso, mais próximo da chamada
sociologia da linguagem – ao recorrer à noção de norma, fundamental para o
entendimento das relações de controle social por meio da linguagem.

A sociolinguística é uma disciplina eminentemente empírica, ou seja, trabalha com dados


da língua falada obtidos em campo, por meio de gravação em mídias mecânicas e/ou
eletrônicas, junto a informantes previamente selecionados e de acordo com uma rigorosa
metodologia de coleta. Seu trabalho gira em torno de dois eixos – a variação e a mudança
– e das imbricações entre eles, tendo como pano de fundo a estrutura da sociedade.
Embora mais recentemente a investigação dos fenômenos de variação e mudança também
venha se concentrando nos usos escritos (cf. Bagno, 2000; 2001), a fala continua a ser
privilegiada nos estudos feitos nessa perspectiva.

No caso de um romance gráfico, como o que nos ocupa aqui, é evidente que o texto a ser
analisado não é uma fala autêntica, mas, sim, uma representação da fala, uma tentativa
de recriação artística – com finalidades puramente estéticas e nunca de documentação fiel
– de um universo social específico. Trata-se do que Carsten Sinner designa pelo termo
oralidade fingida, que ele assim define (Sinner, 2011: 224, nota 3):

Entendemos por oralidade fingida o tipo de oralidade criada por um autor num
romance, conto, história em quadrinhos etc., por um roteirista numa obra fílmica ou
radiofônica, pelo tradutor e adaptador na dublagem de filmes etc. Não coincide com
a língua oral real já que não pode ser considerada como simples modelagem da
linguagem coloquial, mas evoca contextos orais mediante a seleção de determinados
traços típicos da oralidade ou de recursos convencionalmente usados para
representar a oralidade na ficção. É costume seguir-se, portanto, uma tradição de
modelagem da oralidade fingida.

Convém ressaltar que o adjetivo fingida, que qualifica oralidade nesse conceito, não
pretende emitir nenhum julgamento pejorativo, como em seus sinônimos habituais
“falsa”, “dissimulada”, “enganadora” etc. Fingida equivale, aqui, a ficcional – são termos
derivados do verbo latino fingĕre:

1. Modelar em barro; formar como qualquer substância plástica; formar; representar;


esculpir. 2. Fazer; criar; produzir, compor (uma obra literária). 3. Reproduzir os
traços de; representar. 4. Tocar de leve; acariciar. 5. Apertar; ajustar; adaptar; dispor.
6. Imaginar; fingir; disfarçar; supor; dissimular; inventar; meditar; preparar; aprestar.
7. Fazer; tornar. 8. Formar; instruir; dominar; vencer. (Torrinha, 1984: 337)

Como se vê, na evolução do latim para as línguas românicas, o sentido abstrato, que, no
dicionário, aparece somente como sexto conjunto de acepções, tomou a dianteira e se
tornou o mais usual naquelas línguas, como o português/espanhol/catalão fingir, o francês
feindre, o italiano fingere etc. O particípio passado desse verbo latino é fictus, e é dessa

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raiz fict- que surgiram, em português, ficção, ficcional, fictício etc. Da mesma família
morfológica é a raiz fig-, que comparece em figura e toda a sua vasta derivação.

Decerto, foi com a consciência do significado mais remoto de fingir que Sinner associou
oralidade fingida a “modelagem”, termo que escolhemos para traduzir plasmación,
empregado no texto-fonte, escrito em espanhol.

A oralidade fingida pode não ser – aliás, não tem como ser – uma representação fiel das
práticas reais de uso da fala em interações sociais autênticas. No entanto, para cumprir as
chamadas condições de felicidade† da teoria dos atos de fala, ela precisa atingir o mais
alto grau possível de verossimilhança. Por isso, neste trabalho, vamos associar a tradução
da oralidade fingida, consubstanciada no texto de partida, à oralidade (in)verossímil,
plasmada no texto de chegada. O grau de (in)verossimilhança da oralidade representada
na tradução será medido com base nos conhecimentos acumulados pela pesquisa
sociolinguística que, há mais de quarenta anos, vem promovendo uma descrição cada vez
mais acurada e precisa do português brasileiro (doravante PB) em suas mais diversas
variedades (regionais, sociais, etárias, profissionais etc.). Esses conhecimentos advindos
da pesquisa empírica serão contrastados com a representação de norma que transparece
no texto traduzido.

1. Aya de Yopougon

O objeto de nossa análise serão os dois volumes de Aya de Yopougon, referidos a seguir
como AY-1 e AY-2, publicados no Brasil por L&PM Editores, respectivamente em 2011
e 2012.

Capas das edições francesas que Capas das edições brasileiras que
utilizamos utilizamos

Aya de Yopougon é uma série de romances


gráficos com texto de Marguerite Abouet (nascida na Costa do Marfim em 1971 e
atualmente radicada na França) e desenho de Clément Oubrerie (francês, nascido em
1966). Na França, a série foi lançada inicialmente em seis fascículos, mais tarde reunidos
em dois volumes com a integralidade da obra. No Brasil, até o momento, só os dois


Na teoria dos atos de fala de John Austin (1962), as condições de felcidade são os critérios que precisam
ser satisfeitos para que um enunciado performativo seja bem-sucedido. Atos de fala como promessa,
ameaça, solicitação etc. precisam estar formatados adequadamente, em termos linguísticos e
extralinguísticos, para que possam ser corretamente interpretados como tais pelo interlocutor a quem são
dirigidos.

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primeiros fascículos foram traduzidos e publicados. De todo modo, esse lançamento


representou uma abertura, ainda que mínima, à produção de uma mulher, negra e africana
no universo dos romances gráficos, dominado quase integralmente por homens, brancos,
europeus ou estadunidenses. As edições francesas que nos serviram de fonte são Aya de
Yopougon 1 (2005) e Aya de Yopougon 2 (2006), ambas publicadas por Gallimard/Folio‡.

A história se passa em Abidjan, maior cidade da Costa do Marfim, situada no litoral


atlântico, e antiga capital do país (transferida em 1983 para Yamoussoukro, no interior),
com foco no bairro de Yopougon, apelidado Yop City por seus moradores, uma zona
residencial de classe média baixa, com um setor industrial, conhecida por suas centenas
de maquis, restaurantes ao ar livre onde também se pode dançar e que participam como
cenário recorrente do romance gráfico. A ação começa a se desenrolar no ano de 1978, o
que explica a ausência de elementos da vida contemporânea como telefones celulares e
computadores, mas se abre com a primeira campanha publicitária transmitida pela
televisão na Costa do Marfim. O país, na época, ainda estava sob a presidência de Félix
Houphouët-Boigny (1905-1993), responsável pela independência da ex-colônia francesa,
e que governará a Costa do Marfim de 1960 até sua morte. Figura de destaque na política
africana, tido como uma espécie de “pai da pátria” pelos marfinenses, Houphouët-Boigny
é citado diversas vezes em Aya de Yopougon como fonte de sabedoria, por meio de ditos
sentenciosos atribuídos a ele, e como homem rico e poderoso.

A heroína-epônima, Aya, é uma jovem de 19 anos que vive na casa dos pais, com um
irmão pré-adolescente, Fanfana, e uma irmã pequena, que está aprendendo a falar, Akissi.
Também mora na casa Félicité, uma jovem de 22 anos, vinda do interior, e que serve de
babá para as crianças menores. A narrativa é conduzida em primeira pessoa por Aya, o
que levaria a esperar que ela somente relatasse os eventos e situações que testemunhou
pessoalmente, mas não é o caso: o foco narrativo se desloca para vários outros ambientes
em que Aya não está presente e envolve diversos personagens alheios à família dela e a
seu círculo de amizades.

As aventuras são vividas por Aya e por duas de suas melhores amigas, Bintou e Adjoua,
da mesma faixa de idade, bem como pelos núcleos familiares das três jovens, todos
residentes em Yopougon. Ao contrário de Bintou e Adjoua, que não dão importância aos
estudos e que só vislumbram seu futuro como mulheres casadas vivendo à sombra dos
maridos, Aya tem pretensões de se tornar médica e faz todos os esforços para ter sucesso
na escola. As três jovens são muito bonitas e atraem o interesse dos homens de todas as
idades. Esse, por sinal, é um tema recorrente no romance gráfico: o verdadeiro assédio
que as jovens sofrem na rua da parte não só de homens de sua idade, como também de
homens mais velhos, casados e pais de família. Bintou e Adjoua já experimentam uma
vida sexual ativa, enquanto Aya não menciona nenhum relacionamento de qualquer tipo
em que esteja envolvida, mais preocupada com os estudos, em cuidar da família e ajudar
as amigas a se livrarem das sucessivas confusões em que se metem.


Aya de Yopougon também recebeu uma versão cinematográfica, realizada pelos próprios autores (M.
Abouet e C. Oubrerie), lançada em 2013 em DVD e premiada com o César de melhor filme de animação
de 2012.

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No que diz respeito à oralidade fingida presente em Aya de Yopougon, é possível dizer
que Marguerite Abouet foi bem-sucedida na produção de um texto de fácil acesso para
os leitores nativos de língua francesa e, ao mesmo tempo, temperado com pitadas de
vocabulário marfinense, vocabulário que é elucidado num glossário no final de cada
fascículo na edição francesa e que, na tradução brasileira, mereceu notas de rodapé a cada
ocorrência das palavras. O principal recurso da autora para caracterizar suas personagens
como habitantes de Abidjan é o emprego das interjeições dêh e kêh, que aparecem
praticamente a cada página e na fala de quase todas as pessoas, juntamente com ô. Essas
interjeições foram reproduzidas, inclusive em sua grafia, na tradução brasileira, uma
opção que, a nosso ver, não se justifica: para um leitor de língua francesa, dêh e kêh
podem causar uma dose de “estranhamento” e “cor local”, desejável para que o texto se
firme em sua recepção como produzido fora da França, num país francófono da África,
enquanto que para leitores brasileiros o uso dessas interjeições não tem como obter o
mesmo efeito e poderiam ter sido substituídas por interjeições características brasileiras.

No que diz respeito à competência linguística das personagens, Marguerite Abouet tenta
mostrar as diferenças que existem, no domínio do francês, da parte das diferentes camadas
sociais de Abidjan. Embora seja a língua oficial do país, o francês não é a língua materna
da maioria dos marfinenses, sobretudo os que vivem longe dos grandes centros urbanos.
Segundo dados da OIF (Organisation internationale de la francophonie)§, pouco mais de
um terço da população total do país (21,5 milhões em 2010) têm domínio pleno da língua
francesa (34%, ou seja, 7,2 milhões). Em Abidjan, porém, essa porcentagem sobe para
69% da população da cidade (7,35 milhões em 2014). Existem mais de cem línguas
diferentes faladas na Costa do Marfim, das quais as mais utilizadas são o diúla, o senufo,
o baulê e o betê. A taxa de analfabetismo do país é de 56,8%, mas ela cai para 30% em
Abidjan. Uma vez que o francês é língua oficial, mas não língua materna, sua aquisição
depende em ampla medida da escolarização formal. Segundo dados da Unesco** (2015),
a alfabetização na Costa do Marfim alcançava somente 43,2% da população maior de 15
anos de idade, com uma diferença gritante entre homens e mulheres: desses alfabetizados,
67,3% eram do sexo masculino contra 32,7% do feminino. É fácil supor que em 1978,
época em que se situa a história de Aya de Yopougon, essas taxas e essas disparidades
deviam ser ainda mais dramáticas.

Em alguns momentos da narrativa, o domínio do francês aparece como elemento que põe
em confronto as personagens. Aya, por exemplo, que tem apreço pelos estudos, exibe
uma excelente competência da língua, enquanto suas amigas Bintou e Adjoua, ao
contrário de Aya, só ambicionam seguir o que chamam de série C: “coiffure, couture et
chasse au mari” (“Série C: cabelo, costura e caça ao marido”, na tradução brasileira).
Elas acusam Aya de usar esse conhecimento para humilhá-las ou dificultar o
entendimento do que ela pretende dizer, como se vê abaixo (AY-1, p. 49)††:

§
http://www.francophonie.org/Cote-d-Ivoire-100.html, acesso em 23 de janeiro de 2017.
**
http://uis.unesco.org/en/country/ci, acesso em 23 de janeiro de 2017.
††
A numeração das páginas é idêntica nas publicações francesa e na brasileira, de modo que as indicações
valem para ambas.

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A tradução brasileira preferiu contornar essa questão, substituindo a competência em


língua francesa por um conhecimento de natureza meramente lexical (“vocabulário”):

O domínio menos proficiente do francês aparece sobretudo nas falas de Félicité, uma
jovem vinda do interior que trabalha de babá na casa de Aya, e de Hervé, primo
adolescente de Bintou que mora na casa dela. Félicité frequenta a escola, ao passo que
Hervé é totalmente iletrado. Numa das falas de Félicité aparece a forma grafada kekun,
tentativa de reproduzir uma pronúncia incorreta do pronome indefinido quelqu’un
(“alguém”) (AY-1, p. 51). Esse detalhe passou despercebido na tradução brasileira, em
que a palavra kekun se repete, como se fosse o nome de uma pessoa ainda desconhecida
do leitor que, no final, é simplesmente Adjoua, uma das personagens principais da
história.

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As falas em francês truncado de Félicité não mereceram tratamento especial na tradução


brasileira. Ao contrário, como se discutirá mais adiante, a oralidade inverossímil
modelada na tradução ocorre na fala de todas as personagens, sem distinção de classe
social ou nível de instrução.

Quanto a Hervé, sua paixão pouco dissimulada por Aya acaba por levá-lo a acatar as
sugestões que ela lhe faz de procurar um emprego: ele se torna mecânico numa oficina
de conserto de automóveis. Seu trabalho ali é tão bom que o proprietário, velho e doente,
decide fazer de Hervé seu sócio. Para isso, no entanto, Hervé terá de aprender papier de
blancs (“papel de brancos”), isto é, a ler e a escrever. Ele recorre então a Aya, que aceita
alfabetizá-lo.

2. Língua, norma e representação de norma: o hibridismo inevitável

Para um bom entendimento do que se segue, é fundamental ter em mente uma distinção
terminológica referente ao conceito de norma linguística. Os estudiosos da dinâmica
social da linguagem se esforçam há bom tempo por delimitar o que é do domínio do
normativo e o que é do domínio do normal. Esse esforço já estava presente, por exemplo,
num artigo hoje clássico de Alain Rey, publicado em 1972:

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Antes de toda tentativa de definir a “norma”, a consideração lexicológica mínima


descobre por trás do termo dois conceitos, um atinente à observação, o outro à
elaboração de um sistema de valores; um correspondente a uma situação objetiva e
estatística, o outro a um feixe de intenções subjetivas. A mesma palavra, utilizada
sem precaução, corresponde ao mesmo tempo à ideia de média, de frequência, de
tendência geralmente e habitualmente realizada, e à de conformidade a uma regra,
de juízo de valor, de finalidade designada. (Rey [1972], 2001: 116).

A partir dos anos 1990, linguistas brasileiros também começaram a se empenhar nessa
delimitação terminológica (cf. Lucchesi, 1994; Mattos e Silva, 1995; Britto, 1997; Bagno,
2003; Faraco, 2008), considerada por eles incontornável para a adequada análise das
dinâmicas linguísticas da sociedade brasileira e, principalmente, para um planejamento
realista do ensino de língua na escola. Para isso, fizeram o termo norma se acompanhar
de dois qualificativos diferentes:

1. norma-padrão: modelo idealizado de língua “correta”, inspirado no uso dos


escritores consagrados, sem consideração de outros usos possíveis da língua,
sobretudo os usos falados; não corresponde a nenhuma variedade linguística
empiricamente coletável; vem descrito e prescrito nos compêndios gramaticais
produzidos por filólogos fundamentados na doutrina gramatical tradicional.
2. norma culta: conjunto de variedades linguísticas reais, empregadas pelos falantes
classificados de cultos, isto é, com elevado grau de letramento (ensino superior
completo) e vivência urbana; apresenta variação geográfica, mas também exibe
alto grau de homogeneidade; é apreendida sobretudo nos usos falados menos
monitorados, mas também influencia a escrita de gêneros textuais mais
monitorados.

Não se pode confundir, portanto, norma-padrão e norma culta, embora essa confusão
reine no discurso do senso comum sobre a língua e, infelizmente, também no de pessoas
que, vinculadas ao campo da língua e seu ensino, não buscam fundamentação teórica mais
atualizada no trabalho dos pesquisadores que se dedicam a essas questões.

Um exemplo basta para demonstrar essas diferenças. O uso do pronome oblíquo te em


correferência com o pronome sujeito você é veementemente censurado pelas instâncias
da norma-padrão, que classificam esse uso pejorativamente de “mistura de tratamento”.
Uma afirmação como “você sabe que eu te amo” é condenada como erro naquelas
instâncias. As pesquisas sociolinguísticas já provaram e comprovaram, no entanto, que
essa correferência constitui a prática preferencial no PB (Duarte; Ramos, 2015: 187), ao
lado da correferência você → lhe, em variedades específicas em que o pronome lhe é
utilizado (como objeto direto tanto quanto indireto). Com isso, podemos dizer sem
equívoco que “você sabe que eu te amo” pertence à norma culta brasileira contemporânea.
A forma prevista pela norma-padrão, “você sabe que eu o/a amo”, tem probabilidade nula
de ocorrência na fala brasileira de qualquer indivíduo, independentemente de classe
social, idade, origem geográfica, profissão etc.

Por ser um construto sociocultural e nunca uma variedade linguística real, a norma-padrão
é reconhecida pelos falantes, mas nunca totalmente conhecida por eles, até porque mesmo
entre os gramáticos normativistas as prescrições apresentam graus variados de maior ou
menor tolerância. O caráter eminentemente anacrônico do padrão faz que ele seja antes

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de mais nada contraintuitivo, isto é, refratário à intuição linguística do falante nativo,


pleno conhecedor da verdadeira gramática de sua língua, gramática intrinsecamente
diferente das regras prescritas no padrão. Essas regras prescrevem, sempre, como únicas
formas “corretas”, precisamente os usos menos comuns, menos habituais, menos
normais.

Com isso, entre a norma-padrão e a norma culta surge uma zona de tensão na qual todos
os falantes, e mais intensamente os falantes urbanos letrados, se veem pressionados por
duas forças opostas. O resultado é que, desconhecendo em sua integralidade o aparato
normativo e, ao mesmo tempo, sujeitos à força inelutável de sua intuição linguística, esses
falantes acabam por criar, cada um deles, uma representação da norma que é, sempre,
um compósito híbrido, em que o normal e o normativo se interpenetram e se mesclam.

NORMA-PADRÃO

representação da norma

NORMA CULTA

Essa norma híbrida, nem inteiramente normal nem inteiramente normativa, aparece nos
seguintes exemplos, entre outros, da tradução brasileira de Aya de Yopougon:

(1) “É que, mamãe, tem uma garota, aí, dizendo que a engravidei” (AY-1, p. 69) →
Trata-se de uma fala de Moussa, um rapaz de seus 19 anos, filho de um homem rico,
que leva uma vida de playboy, sem preocupação com estudos ou trabalho. O uso do
verbo ter no lugar de haver é censurado pela norma-padrão prescritiva tradicional, e
seu emprego nessa fala de Moussa poderia servir para caracterizar o modo de falar
de um jovem ao se dirigir à mãe. No entanto, o uso do clítico a em “a engravidei”
configura essa fala como extremamente artificial, pois nenhum jovem brasileiro –
aliás, como se verá adiante, nenhum brasileiro – empregaria esse pronome em tal
situação. Além disso, a ausência do pronome-sujeito eu também descaracteriza os
usos mais autênticos do PB, uma língua em que a realização fonológica do sujeito já
se tornou praticamente obrigatória. Mais verossímil, e sem hibridismos, seria algo
como: “É que, mamãe, tem uma garota, aí, dizendo que eu engravidei ela”.

(2) “Mas você o está alimentando bem! Veja como está gordo!” (AY-2, p. 73) → Quem
fala aqui é Mamadou, um rapaz muito bonito, de família pobre, namorador mas nada
disposto a compromissos, sem trabalho fixo. Ele se dirige a Adjoua, a jovem que deu
à luz Bobby, filho de ambos, fruto de uma relação casual. Aqui, como no exemplo
anterior, o emprego do clítico o torna inverossímil a fala de um jovem com essas
características sociais. E, também como em (1), o apagamento do sujeito impede a
modelagem de uma fala mais próxima da realidade dos usos. Outro aspecto é o

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emprego de está que, como se sabe, no registro espontâneo sempre se realiza como
tá. Essa fala se aproximaria mais da realidade dos usos se fosse, por exemplo: “Mas
você tá alimentando ele bem! Veja como ele tá gordo!”.

(3) “Eu sei, mas é só o tempo de a situação se restabelecer. Por que você está tão
irritado?” (AY-2, p. 91) → É uma fala de Fanta, mãe de Aya, dirigida ao marido,
Ignace. A suposta obrigação de não aglutinar a preposição de e o artigo definido
diante de verbos no infinitivo é contestada até mesmo por um gramático de perfil
conservador como Evanildo Bechara (1999: 536). Já em 1985, porém, Cunha e Cintra
(1985: 203) registravam em seu compêndio que “é aconselhável que os dois
elementos fiquem separados, embora não faltem exemplos de sua aglutinação na
prática dos melhores escritores”. Representar a fala íntima de uma mulher ao marido
com a não aglutinação é submeter-se injustificadamente a uma prescrição que é
relativizada até mesmo pelos gramáticos normativistas.

(4) “Por favor, não o deixe fazer isso!” / “Espere eu ligar.” (AY-1, 61) → São duas falas
do mesmo personagem, Moussa, dirigidas à mesma interlocutora, Adjoua, num único
diálogo. Quando se emprega um verbo causativo-sensitivo (mandar, fazer, sentir,
deixar, ouvir, ver etc.) seguido de um infinitivo ou de um gerúndio, a norma-padrão
prescreve o uso de pronomes no caso oblíquo: mande-o entrar; deixa-me sair; vi-a
bebendo etc. No entanto, no PB, e há muito tempo, é muitíssimo mais usual que
apareçam os pronomes no caso reto: mande ele entrar; deixa eu sair; vi ela bebendo
etc. A tradução brasileira segue a norma-padrão na primeira ocorrência – “não o
deixe fazer isso!” –, mas opta por uma forma não normativa na segunda – “espere
eu ligar”. Essa segunda ocorrência contraria todas as regras prescritivas: o verbo
esperar não faz parte da categoria dos causativos-sensitivos clássicos; para empregá-
lo “corretamente” seria preciso dizer: “espere que eu ligue”. Ou seja, normas híbridas
convivendo na mesma página.

3. Da tradução à publicação: a diversidade de agentes normatizadores

No que diz respeito às representações de norma no campo da prática tradutória, é


importante nunca esquecer que, entre a tradução entregue à editora e a chegada de um
livro (ou outra forma de suporte) à publicação (impressa ou on-line), o texto passa por
diversas etapas de retextualização, constituídas pelos trabalhos de revisão, preparação,
copidescagem, diagramação etc. É muito frequente também que cada editora tenha seu
próprio manual de redação, com regras explícitas acerca do que pode ou não pode figurar
em seus produtos. Em cada uma dessas etapas estará em ação, inevitavelmente, a
representação de norma particular a cada um desses profissionais:

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TRADUTOR/A [norma1]

PREPARADOR/A [norma2]

REVISOR/A [norma3]

DIAGRAMADOR/A [norma4]

[ ... ] [normas da editora?]

TEXTO PUBLICADO [norman]

Embora a pessoa cujo nome figura como tradutora de uma obra publicada seja
considerada, por esse simples fato, como responsável única e última pelo texto traduzido,
é injusto que somente ela seja alvo das eventuais críticas positivas ou negativas que o
trabalho venha a receber: a interferência dos outros agentes normatizadores ao longo da
cadeia de produção também responde em grande medida pelo produto final que chega a
público.

A não ser em raras situações, em que o tradutor goza de algum prestígio pessoal (como
escritor, pesquisador ou jornalista de renome), a prática mais comum, nas casas editoriais,
é interferir no texto entregue pelo tradutor sem nenhum aviso prévio nem pedido de
autorização. Não é nada infrequente que um tradutor não reconheça seu próprio trabalho
quando vai ler a obra publicada ‡‡ . Por esse motivo é que sempre nos referiremos à
tradução brasileira de Aya de Yopougon, usando esse rótulo coletivo para abarcar todos
os agentes normatizadores responsáveis pelo texto final.

O primeiro volume da edição brasileira de Aya de Yopougon dá crédito de tradução a Julia


da Rosa Simões, e a Elisângela Rosa dos Santos como revisão. O segundo volume, por
seu turno, traz novamente Julia da Rosa Simões na tradução, mas Elisângela Rosa dos
Santos desta vez na preparação, enquanto a revisão é creditada a Guilherme da Silva
Braga.

4. A oralidade inverossímil na tradução brasileira

Conforme dito acima, a oralidade fingida plasmada por Marguerite Abouet em seu
romance gráfico pode ser considerada exitosa também no que diz respeito à sua
verossimilhança. Além de empregar interjeições e vocabulário característicos do francês
falado em Abidjan, a autora também se vale de formas próprias do francês informal, como

‡‡
Como tradutor de mais de uma centena de livros publicados, posso dar testemunho pessoal dessa situação,
em que muitas de minhas traduções, quando publicadas, exibiram opções sintáticas ou lexicais que jamais
me ocorreriam; isso para não mencionar os erros puros e simples introduzidos à minha revelia em textos
creditados a mim como tradutor. Tratei disso em Bagno (2009).

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y a (por il y a, “há”) ou t’es e t’as (por tu es, “você é”, e tu as, “você tem”), e sinaliza o
conhecimento menos proficiente da língua na fala de personagens com pouca ou nenhuma
instrução formal.

O efeito obtido na obra-fonte, porém, se perdeu quase por completo na tradução brasileira,
na qual se modelou uma oralidade fingida inverossímil. Isso se deve, primordialmente, a
uma subserviência irrefletida à norma-padrão tradicional, numa atitude que sacrifica a
naturalidade e a espontaneidade das falas em favor da obediência a convenções
gramaticais que, postas na boca das personagens do romance gráfico, soam de uma
artificialidade a toda prova.

São muitos os fatos linguísticos que poderíamos elencar para demonstrar essa
inverossimilhança. Já mencionamos acima a presença exclusiva, no texto, das formas
plenas do verbo estar, quando se sabe que, no colóquio informal brasileiro (e português
também, diga-se de passagem), o que realmente se diz e se ouve são formas como tô, tá,
tão, tava, tive etc. Destaque-se também o uso do pronome oblíquo nos, de uso raríssimo
na fala espontânea, junto com seu alomorfe conosco. Aliás, o pronome a gente, que
caracteriza o PB atual em todas as suas variedades como o mais empregado para expressar
a primeira pessoal do plural, tem uma única ocorrência (AY-2, 70), enquanto em todo o
resto dos dois volumes se dá o emprego exclusivo de nós e sua morfologia verbal. No
entanto, “com base na produção científica dos últimos 30 anos, é possível afirmar que o
processo de substituição de nós por a gente no PB se encontra em avançado estágio, na
língua oral”, de modo que “tal fenômeno é amplamente caracterizado como mudança
linguística” (Vianna; Lopes, 2015: 130). Uma concessão, mínima porém, à oralidade
autêntica é o emprego, na tradução brasileira, da forma pra em lugar de para – são, no
entanto, apenas dez ocorrências de pra nos dois volumes, contra várias dezenas de para.

Para sustentar, no entanto, de forma mais eloquente nossa afirmação da inverossimilhança


da oralidade fingida presente na tradução brasileira de Aya de Yopougon, vamos examinar
os seguintes fenômenos linguísticos: (1) o possessivo seu no lugar de dele; (2) futuro
simples vs. futuro perifrástico; (3) uso de ter por haver; (4) modo imperativo + clítico, e
(5) clíticos de 3a pessoa.

4.1 O possessivo seu no lugar de dele

As formas possessivas seu/sua/seus/suas podem se referir, teoricamente, a uma


pluralidade de possuidores previamente enunciados: você, vocês, ele, ela, eles, elas, a
gente... Para evitar as ambiguidades possíveis, os falantes de PB passaram a se valer – na
fala – de outros recursos: o uso das formas dele/dela/deles/delas para a 3a pessoa, com
reserva de seu/sua/seus/suas exclusivamente para referência à 2a pessoa do singular
(você), e de de vocês para a 2a do plural. A única exceção é o emprego de seu/sua em
construções do tipo cada um, como em “nada de trabalho em grupo: cada um faz o seu”.
Fora isso, “está praticamente enterrada na língua oral a forma seu para terceira pessoa,
[...] reservando-se a forma seu para a segunda pessoa semântica” (Oliveira e Silva, 1986:
180; ênfase nossa).

A tradução brasileira de Aya de Yopougon, no entanto, optou preferencialmente pelo uso


de seu e flexões como possessivo de 3a pessoa na língua falada: são 25 ocorrências contra

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12 de dele e flexões. Isso gera diálogos de probabilidade nula no PB autêntico, como este
(AY-1, 10):

A fala de Mamadou – “Sim, sou seu primo” – é inverossímil porque, como sabe qualquer
falante de PB, a resposta mais óbvia seria: “Sim, sou primo dela”.

Outra situação em que o uso de seu em lugar de dele pode gerar ambiguidade de
interpretação é:

A mãe de Moussa está furiosa porque o filho engravidou uma moça pobre, a quem ela
qualifica de plebeia. Sem saber o que o termo significa, Moussa diz: “Seu emprego não
é esse, mamãe!”. Da forma como está publicado, o leitor pode supor que Moussa está
dizendo que o emprego de sua mãe não é esse, ou seja, que sua mãe não é uma plebeia.
Se a opção tivesse sido por “o emprego dela não é esse, mamãe”, o humor se preservaria
e não haveria risco de ambiguidade de leitura. Aliás, melhor do que emprego seria sem
dúvida profissão.

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Ambiguidades também podem surgir na leitura dos seguintes balões:

A jovem Bintou foi vista pelo pai a dançar num maquis com um homem casado, ninguém
menos do que o pai de Adjoua. Furioso, o pai de Bintou mandou que Hervé, seu primo,
mantivesse cerrada vigilância sobre ela. É disso que falam Aya e Adjoua. No entanto, o
uso de “seu velho” em lugar de “o velho dela” corre o risco de gerar uma leitura
equivocada, até porque, em seguida, Aya diz: “ela estava com o seu pai, Adjoua”, isto é,
com o pai de Adjoua. No entanto, com o uso indiferenciado de seu para expressar tanto o
que é dela quanto o que é de você, a confusão está sempre à espreita. E quando Adjoua
se refere a “suas histórias”, é justo que o leitor fique na dúvida: histórias de quem? De
Bintou? Do pai de Adjoua? Da mãe de Adjoua?

O emprego de seu em lugar dele não se sustenta num texto que pretende ser a modelagem
de uma oralidade fingida, a menos que se entenda fingida aqui em seu sentido de “falsa”,
“mentirosa” etc.

4.2 Futuro simples vs. futuro perifrástico

Segundo pesquisa de Poplack (2011), 99% das expressões do futuro em português falado
se realizam por meio da perífrase ir + infinitivo: eu vou viajar; ele vai dormir; elas vão
trabalhar etc. A morfologia do futuro simples do indicativo – cantarei; dormirá;
chegaremos etc. – se restringe aos gêneros escritos mais monitorados ou ao discurso oral
com elevado grau de formalidade.

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No que diz respeito a esse tempo verbal na tradução brasileira de Aya de Yopougon,
parece ter havido uma mudança de opção normativa entre a produção do primeiro e a do
segundo volume. No primeiro, com exceção de 4 ocorrências da foram perifrástica, todas
as demais aparecem no futuro simples, como no exemplo abaixo (AY-1, p. 26):

É uma cena de violência doméstica, em que o pai de Bintou bate na filha por tê-la
encontrado num maquis dançando com um homem mais velho, casado (o pai de Adjoua).
A mãe intervém em defesa da filha. Nada sugere um contexto de interação formal, de
modo que o emprego predominante do futuro simples torna essa oralidade fingida
altamente inverossímil.

No segundo volume, no entanto, é o oposto que se dá: são 64 futuros que se fazem pela
construção perifrástica, contra apenas dois usos do futuro simples. Essa mudança
contribui, evidentemente, para conferir maior autenticidade ao discurso falado.

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4.3 Uso de ter por haver

O emprego do verbo ter com sentido “existencial” (ou “apresentacional”) em lugar de


haver caracteriza não só o PB como também as variedades africanas de português. Isso
significa que esse emprego existiu também no português que foi levado para fora da
Europa no período colonial (cf. Bagno, 2012: 625). É uma das principais características
que diferenciam os usos brasileiros e portugueses da língua. Na língua falada no Brasil,
haver como apresentacional se restringe a fórmulas cristalizadas do tipo “o que é que
há?”. O emprego de ter nessas situações é praticamente categórico. E desde que Carlos
Drummond de Andrade publicou, em 1925, seu célebre poema “No meio do caminho”, a
barreira que impedia o uso de ter na literatura foi definitivamente rompida.

Isso não impediu, porém, que a tradução brasileira de Aya de Yopougon optasse 9 vezes
pelo uso de haver contra 6 pelo uso de ter. Tal como nos demais casos, o verbo haver
ocorre na fala de personagens de todas as classes sociais e graus de escolarização e
independentemente da maior formalidade da interação. Por exemplo, ao comentar sobre
o comportamento estranho da amiga Bintou, Adjoua diz a Aya: “Ela anda estranha
ultimamente. O que ela tem?”. Ao que Aya responde: “Não sei, ô. Deve haver um cara
por trás disso tudo”. Uma jovem brasileira como Aya, em conversa íntima com uma
amiga, muito provavelmente diria “deve ter um cara por trás disso tudo”. O uso
simultâneo de haver e de cara explicita, mais uma vez, o hibridismo de normas.

4.4 Modo imperativo seguido de clítico

Uma das mais conhecidas (e condenadas) características do PB é o emprego de clíticos


(os chamados “pronomes oblíquos”) em começo de frase (próclise absoluta): “Me
disseram que você queria falar comigo”. É um emprego documentado na língua falada
no Brasil há séculos (cf. Ribeiro, 1933: 11) e, mais uma vez, uma herança do português
colonial. Foram as mudanças ocorridas na língua falada em Portugal, na virada do século
XVIII para o XIX, que provocaram o favorecimento da ênclise em detrimento da próclise.
A próclise absoluta é regra única em espanhol e italiano e, tal como no PB, se explica por
fenômenos de natureza fonotática.

Quando se trata de verbos no imperativo, a próclise é praticamente a única possibilidade


de ocorrência dos clíticos no PB falado: “Me larga!” / “Te cuida!” / “Se vira!”.
Construções como “larga-me!”, “cuida-te!” ou “vire-se!” soam, no mínimo,
pernósticas, quando não ridículas. A tradução que nos ocupa aqui, no entanto, não se
importou em estampar construções desse tipo, o que só contribui para acentuar a
inverossimilhança da oralidade representada no texto. A jovem Bintou, no chão após ter
sido espancada pelo pai, diz: “Mate-me!” (AY-1, p. 26). A mãe de Aya, querendo
examinar a filha para saber se está grávida, diz, duas vezes: “Deite-se!” (AY-1, 53). A
mãe de Moussa, dirigindo-se à empregada doméstica, diz: “Aminata, deixe-nos” (AY-1,
70). A mãe de Adjoua, dirigindo-se ao marido, exclama: “Hyacinthe, acalme-se!” (AY-
2, 24). Um jovem, na rua, ao ver passar Bintou, se dirige ao companheiro e lhe diz:
“Vamos, deixe-a para mim”. São todas situações em que, sem dúvida alguma, uma
oralidade fingida mais verossímil registraria os pronomes oblíquos em próclise. E, claro,
no último caso, uma construção como “deixe ela pra mim” soaria muito mais verossímil.

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No segundo volume há 4 ocorrências de formas no imperativo com o pronome me em


próclise: “Me dê uma cadeira” (p. 19); “me dê isso” (p. 20); “me faça fiado” (p. 33) e
“me dê aqui” (p. 35). São formas muito mais próximas de uma fala brasileira autêntica.

4.5 Clíticos de 3a pessoa

Deixamos propositadamente por último o fenômeno linguístico que, a nosso ver,


contribui da forma mais eloquente para aguçar o grau de inverossimilhança da oralidade
fingida da tradução brasileira de Aya de Yopougon. Trata-se do emprego dos clíticos
o/a/os/as como objeto direto de 3a pessoa: ele ocorre, salvo engano, 57 vezes nos dois
volumes e é a estratégia quase exclusiva de retomada anafórica de complemento direto
de 3a pessoa – as raras exceções, 4 no total, dizem respeito ao uso da forma reta
ele(s)/ela(s): “infelizmente, só tenho ele” (AY-1, 33); “levo ela de volta, tia” (AY-1, 85);
“é a senhora quem vai pagar eles” (AY-1, 88); “deixe ele, vamos dançar” (AY-1, 92).

A opção pelos clíticos é prejudicial à modelagem de uma oralidade fingida verossímil


porque “os trabalhos realizados em diferentes regiões apontam grande semelhança no que
diz respeito à quase extinção dos clíticos o(s)/a(s) e lhe na língua oral” (Duarte; Ramos,
2015: 193, ênfase nossa). As autoras, para chegar a essa conclusão, fazem em seu artigo
uma revisão exaustiva das pesquisas empreendidas no PB sobre as estratégias de retomada
anafórica de objeto direto de 3a pessoa desde finais da década de 1970. A tabela a seguir,
adaptada de Duarte e Ramos (2015: 180) sintetiza os resultados de algumas dessas
investigações, empreendidas com informantes dos três níveis de escolaridade
(fundamental, médio e superior) em quatro estados diferentes:

Duarte, 1986 Luize, Averbug, Mendonça,


Tipo de estratégia
(SP) 1997 (SC) 1998 (RJ) 2004 (AL)
Clítico:
Eu comprei o livro, mas não o 4,9% 1% 0,3% 10%
trouxe hoje.
Pronome reto:
Eu comprei o livro, mas não 15,4% 9% 15,1% 20%
trouxe ele hoje.
Sintagma nominal:
Eu comprei o livro, mas não 17,1% 36% 41,5% 30%
trouxe o livro hoje.
Objeto nulo:
Eu comprei o livro, mas não 62,6% 54% 43,1% 40%
trouxe [ø] hoje.
TOTAL 100% 100% 100% 100%

Esses e outros resultados da pesquisa sociolinguística nos permitem afirmar sem risco de
equívoco que os pronomes o(s)/a(s) não fazem parte da língua materna da população
brasileira em geral, isto é, eles não são apreendidos pelas crianças em seu processo de
aquisição natural da língua junto a seus familiares e a sua comunidade expandida: de fato,
a aquisição desses pronomes depende integralmente do letramento explícito, de modo que
só entram em contato com eles as pessoas que frequentam a escola e se apropriam da
leitura e da escrita. Isso se comprova também na investigação empírica: na fala de

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analfabetos plenos, os clíticos simplesmente nunca ocorrem (Omena, 1978; Pará, 1997).
Desse modo, esses pronomes são marca registrada da fala mais monitorada e,
evidentemente e mais ainda, da escrita de gêneros mais monitorados. Na fala espontânea,
íntima, cotidiana é praticamente nula a probabilidade de ocorrerem, mesmo entre falantes
altamente letrados.

O não emprego dos clíticos e a opção predominante pelo objeto nulo – comprei o livro,
mas não [ø] trouxe – é um fenômeno morfossintático que diferencia radicalmente o
português brasileiro, não só do português europeu, como também de todo o conjunto
maior das línguas românicas. É uma das mudanças linguísticas mais extraordinárias
ocorridas no PB e, por isso mesmo, alvo de intensa reflexão teórica da parte de linguistas
brasileiros e estrangeiros.

Diante disso, optar pelo uso praticamente exclusivo dos clíticos para construir uma
representação da língua falada – como se dá na tradução brasileira dos romances gráficos
que nos ocupam aqui – é uma estratégia fadada desde o início à inverossimilhança mais
flagrante, principalmente quando esses clíticos aparecem nas falas de personagens com
pouca ou nenhuma instrução formal, como é o caso da jovem Félicité, babá dos irmãos
de Aya, que se exprime, no texto-fonte, num francês que poderíamos chamar de truncado,
mas que, na tradução brasileira, diz coisas como: “Bobby chora sem parar. Está com
fome, ô. Aya disse para você alimentá-lo” (AY-2, 31).

Outro exemplo de oralidade fingida inverossímil é o que aparece na fala de uma mulher
que, na praça do mercado, oferece seus serviços de curandeira tradicional. Quando
Adjoua, sabendo-se grávida e desejando abortar, lhe diz que procura um remédio para
eliminar a gravidez, a mulher responde (AY-1, 54): “Hé! Ça là, y a pas ce médicament,
ma fille”. A isso Adjoua retruca que lhe disseram que a mulher curava tudo, ao que esta
responde: “Mais, ma fille, ça là, c’est pas maladie”. Para moldar sua oralidade fingida,
a autora optou por formas como y a pas em lugar de il n’y a pas (“não há”) e c’est pas
maladie em lugar de ce n’est pas une maladie (“não é uma doença”). Ora, na fala dessa
mesma mulher, na tradução brasileira, encontramos (AY-1, 55): “Bom... como você corre
o risco de morrer, vou ajudá-la”. Conforme observamos mais acima, a correferência mais
habitual no PB é você → te (“vou te ajudar”) ou, em algumas variedades regionais, você
→ lhe (“vou lhe ajudar”). A opção por ajudá-la, na fala de uma mulher do povo que
exerce ofício de curandeira no mercado, resulta, mais uma vez, em patente
inverossimilhança.

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Conclusão

A página que reproduzimos acima (AY-2, 14) demonstra bem, esperamos, o que temos
classificado até aqui de oralidade fingida inverossímil. A cena reúne as três amigas –
Aya, Bintou e Adjoua – em conversa sobre temas muito pessoais, um tipo de interação
que favorece o emprego das variantes linguísticas mais habituais na fala, menos sujeitas
ao monitoramento estilístico. No entanto, diversas opções de tradução conferem aos
diálogos, devido à subserviência prescritiva e ao hibridismo de normas, um caráter
artificial, já que três jovens brasileiras de idade e condição social semelhantes decerto
nunca se expressariam desse modo numa interação autêntica:

1. o uso do futuro do pretérito (apareceria) em lugar do imperfeito (aparecia), ou


do futuro do pretérito perifrástico (me apoiaria → ia me apoiar);
2. os clíticos -lo e -la em reconhecê-lo e entendê-la;
3. o verbo haver em lugar de ter;

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4. o clítico nos, característico de interações formais, em lugar do mais provável a


gente (nos deu → deu pra gente);
5. o possessivo seu no lugar de dele (seu neto → neto dele).

O caso da tradução brasileira de Aya de Yopougon, no entanto, está muito longe de ser
isolado. Já criticamos em outra oportunidade (Bagno, 2009), e até em tom de desabafo, a
barreira que muitos profissionais do texto – editores, tradutores, preparadores, revisores
etc. – levantam contra as características próprias do português brasileiro, tratando ainda
como “erros a evitar” opções morfossintáticas presentes há quase dois séculos na nossa
melhor literatura (desde o Romantismo e, mais ainda, a partir do Modernismo), muitas
delas abonadas por gramáticos e dicionaristas conceituados. É uma tentativa desesperada
de ser “mais realista do que o rei” e preservar a todo custo um padrão linguístico muito
distante da realidade autêntica dos usos, incluindo os usos escritos mais monitorados.
Esse padrão irreal e irracional é o que Faraco (2008) rotula, ironicamente, de norma curta,
uma representação distorcida da verdadeira norma culta brasileira contemporânea,
representação guiada pela ideologia normativa intolerante que tem caracterizado a cultura
linguística brasileira desde sempre. É, nas palavras do autor,

o discurso ofensivo e debochado sobre fatos da língua, que teve e, infelizmente,


continua tendo seguidores no Brasil. Um discurso que não procura entender e
explicar os fatos que anota, mas se contenta apenas em condená-los — o mais das
vezes sem fundamento e até em franca contradição com a própria tradição normativa
registrada em dicionários e gramáticas, e com o uso culto corrente. É o discurso a
que dei o nome de norma curta — categórico, dogmático, que se compraz em
ridicularizar o falante, numa prática gratuita, desagradável e, em alguns momentos,
até repugnante de violência simbólica. Espantoso é que seus juízos prevaleçam
socialmente (no discurso da mídia, da escola e do senso comum em geral) sobre os
instrumentos normativos fundados no estudo filológico e linguístico. Essa
prevalência é, por si só, um sintoma dos descaminhos que nossa cultura tem
percorrido no trato da língua e de seu ensino, descaminhos que acabam por dar
espaço ao charlatanismo gramatical. (Faraco, 2016: 205)

A norma curta se torna ainda menos aceitável quando aparece num texto, como a
tradução de Aya de Yopougon, que se inscreve num gênero específico, o romance gráfico,
cuja materialidade linguística é toda ela moldada na forma de diálogos, isto é, de fala, de
interações orais. O valor literário do romance gráfico está precisamente na sua busca por
produzir uma oralidade fingida que, voltamos a sublinhar, não é “falsa” nem “mentirosa”,
mas fictícia, no sentido mais positivo do termo: inventiva, criativa, artística.

A transposição para o Brasil do relevante trabalho de Marguerite Abouet e Clément


Oubrerie poderia ter contribuído muito mais ainda para a difusão entre nós da cultura
urbana moderna de um país africano, a Costa do Marfim, se tivesse optado por uma
oralidade fingida menos inverossímil. Na capa do primeiro volume da edição brasileira
vem estampado o seguinte convite: “Esqueça tudo o que você ouviu sobre a África. Este
livro vai lhe dar uma outra visão”. Infelizmente, a tradução brasileira tomou a decisão
de tentar fazer o leitor se esquecer também da língua que circula no cotidiano da nossa
sociedade, o autêntico português brasileiro contemporâneo, ao prestar subserviência a

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uma norma curta que não corresponde sequer aos usos cultos mais monitorados dos dias
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DA NEGRITUDE CESARIANA À ANTILHANIDADE


GLISSANTIANA: O CAMINHO PARA CRIOULIDADE E A
TRADUÇÃO COMO PRÁTICA MESTIÇA1

Dyhorrani da Silva Beira2

RESUMO: Este artigo busca traçar um paralelo entre os conceitos de Negritude,


desenvolvido por Césaire, e o de Antilhanidade, de Édouard Glissant, como um caminho
para o desenvolvimento da Crioulidade de Bernabé, Chamoiseau e Confiant como um
movimento engajador na busca da identidade antilhana descrita no livro Éloge de la
créolité (1993). Dessa forma, apresentamos os motivos pelos quais a Negritude não só
abriu o caminho para outros movimentos, mas deu lugar, voz e senso crítico para esses
movimentos no seio social e literário. Por fim, apresentamos a tradução como prática
mestiça.

PALAVRAS-CHAVE: Negritude, antilhanidade, crioulidade, literatura, identidade.

ABSTRACT: This article seeks to draw a parallel between the concepts of Negritude,
developed by Césaire, and of Antilhanité, by Édouard Glissant, as a way for the
development of the Crioliness of Barnabé, Chamoiseau and Confiant as an engaging
movement in the search for the Antillean identity described in the book Éloge de la
créolité (1993). In this way, we present the reasons why Negritude not only opened the
route for other movements, but gave place, voice and critical sense to these movements
in the social and literary sphere. Finally, we present the translation as a mestizo practice.

KEY-WORDS: Negritude, antilhanité, creoleness, literature, identity.

Introdução
Aimé Césaire juntamente com Léon-Gontron Damas e Léopold Sédar Senghor
são considerados os fundadores do movimento da Negritude, eles se enquadram como
alguns dos primeiros intelectuais que buscaram uma reflexão sobre a questão da
identidade antilhana. Assim, o termo “Negritude” aparece como conceito em 1933 na

1
Este artigo faz parte da dissertação de mestrado Éloge de la créolité: para uma tradução crioula, de
Dyhorrani da Silva Beira, defendida em março de 2017, junto ao Programa de Pós-graduação em Estudos
da Tradução da Universidade de Brasília, orientada pela professora Alice Maria de Araújo Ferreira.
2
Dyhorrani Beira é Graduada em Letras-Tradução Francês e Mestre em Estudos da Tradução pela mesma
Universidade. Atua como professora substituta no Departamento de Letras e Tradução (LET) da
Universidade de Brasília – UnB.

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publicação do jornal L’etudiant noir editado pelo mesmo trio de autores. Enquanto
movimento, a Negritude reivindica a manutenção da cultura negra africana, visando a
afirmar a própria identidade, à manutenção da luta contra o colonialismo europeu, o
eurocentrismo, à valorização do negro e das contribuições históricas do ponto de vista
cultural, condição que foi aos poucos depreciada pelos valores ocidentais. De maneira
geral, a ideia dos jovens escritores era promover soluções para os povos negros
explorados e de, certo modo, formular uma nova visão de mundo que concebesse e
valorasse a história dos negros e as suas origens africanas, rejeitando a ideia de exploração
de uma raça pela outra, deflagrada em parte pela imposição cultural.

Segundo Chamoiseau, Bernabé e Confiant (1993), autores do Éloge de la créolité


a Negritude criou uma adequação da sociedade crioula e, restaurando sua dimensão
africana, pôs fim ao mimetismo que causava, de certo modo, uma superficialidade na
escrita, nas representações daquele povo. Dessa forma, a Negritude surge na visão dos
autores, para acabar com dois “monstros tutelares”: a Europeanidade e a Africanidade.
Cada um deles, a sua maneira, habitavam os povos antilhanos com sua exterioridade
sufocando valores e inserindo seus códigos. A Negritude coloca-se, então, como uma
resistência a domiciliar essa cultura antilhana negada e renegada, considerada um
batismo, “o ato primeiro” (CHAMOISEAU; BERNABÉ; CONFIANT, 1993, pg. 18) da
restituição da dignidade. Foi ela que abriu caminho para Antilhanidade e para
Crioulidade.

O conceito torna-se controverso quando o movimento é acusado de promover o


racismo, contrariando assim seus reais princípios, que configuravam, e ainda configuram,
um movimento de ideologia de libertação política e literária. Esse sentimento de retomada
da identidade cultural fortifica, por um lado, os laços entres os negros e faz com que se
reconheça a importância histórica de todo processo reconhecimento identitário, mas, por
outro lado, a Negritude falha, na visão de Édouard Glissant (2005), quando pensa em
voltar ao passado a partir de uma visão quase que estritamente africana, forjando dessa
forma um certo esquecimento do presente e limitando, mesmo que perifericamente, a
identidade negra.

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1. Negritude e Antilhanidade

Aimé Césaire define a Negritude “como tomada de consciência da diferença, como


memória, como fidelidade e como solidariedade”3 (CÉSAIRE, 2004, p. 83, tradução
nossa), o que configura a Negritude não apenas como um movimento político engajado,
mas também como uma cinesia poética que funciona como um ato de denúncia do
conceito de exterioridade forjado a partir de falsos estereótipos. Ela se instaura como
emergência de mudança da ideologia, na valorização da mestiçagem e da cultura negra e
como um resgate da dignidade do que foi massacrado e traumatizado pelos períodos da
escravidão e da colonização. Entretanto, esse movimento é criticado pelos autores de
Éloge de la créolité (1993), pois ao mesmo tempo em que reivindicava a valorização do
negro, bem como da literatura negra, a escrita desse projeto dava-se a partir da língua e
dos valores do colonizador. Os autores reconhecem que a Negritude de modo geral
funcionou como um mecanismo funcional para abrir o caminho para a construção de uma
identidade que não se apoiasse nos padrões europeus:

Com Édouard Glissant recusamos nos trancar na Négritude, soletrando a


Antilhanidade7 que pertencia mais à visão do que ao conceito. O projeto não
era somente abandonar as hipnoses da Europa e da África. Era necessário
manter alerta a clara consciência das contribuições de uma e de outra: em suas
especificidades, suas dosagens, seus equilíbrios, sem nada obliterar, nem
esquecer das outras fontes entrelaçadas a elas4 (BERNABE; CHAMOISEAU;
CONFIANT, 1993, p. 21, tradução nossa).

Assim, a Negritude passa a ser considerada pelos autores como um movimento


necessário, mas que precisava aprimorar suas reivindicações na tentativa de olhar mais
precisamente para os valores martinicanos e antilhanos. Dessa forma, seria possível
compreender a sociedade antilhana a partir dos próprios antilhanos, sem que fossem
sempre assimilados a outras culturas.

René Depestre (1980) afirma que o conceito de Negritude, na medida em que era
entendido como ideologia e até mesmo como ontologia, passou a ter vários sentidos

3
«La Négritude au premier degré peut se définir d’abord comme prise de conscience de la différence,
comme mémoire, comme fidélité et comme solidarité ».
4
Avec Édouard Glissant nous refusâmes de nous enfermer dans la Négritude, épelant l'Antillanité qui
relevait plus de la vision que du concept. Le projet n'était pas seulement d'abandonner les hypnoses d'Europe
et d'Afrique. Il fallait aussi garder en éveil la claire conscience des apports de l'une et de l'autre : en leurs
spécificités, leurs dosages, leurs équilibres, sans rien oblitérer ni oublier des autres sources, à elles mêlées.

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ambíguos até chegar à seguinte incongruência: “formulado para despertar e alimentar o


amor próprio, a confiança em suas próprias forças em tipos sociais que a escravidão tinha
rebaixado ao estado de animais de tração, a Negritude diluiu esses tipos sociais em uma
metafísica somática” (DEPESTRE, 1980, p. 82, grifos do autor), oferecendo mais de um
sentido ao movimento e deturpando, de algum modo os ideais da Negritude, fazendo com
que surgisse uma espécie de concepção de mundo exclusiva em que os valores vão muito
além do que um simples movimento social. O “surgimento” do movimento como
libertação artística e cultural não se deu de maneira espontânea, o processo histórico como
núcleo fundador impulsionou de maneira constitutiva o verdadeiro passado dos povos
negros, que sofreram durante o processo de escravidão, das plantations e tantas outras
formas desumanas de arrancar a identidade de um povo.

Mesmo sendo sobrecarregados com inúmeras críticas, os escritores da Negritude


abriram as portas para os seus seguidores aprimorarem e/ou criticarem suas situações
sociais e até mesmo o próprio conceito de Negritude. Édouard Glissant e René Depestre,
dentre outros autores, têm criticado a noção essencialista do movimento, ou seja, a ideia
de que realmente existe uma diferenciação, uma essência negra e uma branca. Esses
autores propõem outras alternativas para a compreensão das sociedades afrodescendentes
ou das Antilhas. Glissant (2005), por exemplo, foi um dos intelectuais de maior destaque
ao tentar fazer entender e introduzir o termo Antilhanidade como um “melhoramento” do
conceito de Negritude. Nesse contexto, o termo Antilhanidade, entendido como o
reconhecimento e a aceitação de uma identidade plural, aberta, não é criado em oposição
ao do termo Negritude, mas como uma forma de reconhecer as Antilhas como um todo,
dentro das suas grandezas, dos valores intrínsecos que ainda permanecem preservados
por uma tradição da mestiçagem. Figueiredo (1998) afirma que Glissant torna-se crítico
da Negritude por perceber que esse movimento se afastava da realidade para se dirigir a
outro lugar, a África, não focalizando de maneira direta as Antilhas, mesmo que as ideias
fossem desenvolvidas naquele lugar por Aimé Césaire.

2. A passagem pelo nativismo

Said (1995) reconhece o período da Negritude como uma etapa necessária. Ele a
chama de “nativista”, ressaltando que o nativismo “reforça a distinção mesmo quando
valoriza o lado mais fraco ou servil” (SAID, 1995, p. 288). O nativismo também é

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entendido como um estágio necessário para que se possa atingir um patamar de


desenvolvimento maior, porém ele se torna danoso quando é aceito como resultado final,
porque:

aceitar o nativismo é aceitar as consequências do imperialismo, as divisões


raciais, religiosas e políticas impostas pelo próprio imperialismo. Deixar o
mundo histórico à metafísica de essências como a négritude [...] é abandonar
a história em favor de essencializações que têm o poder de instaurar a cizânia
entre os seres humanos (SAID, 1995, p. 288, grifos do autor).

Para Said não basta apenas passar por esse nativismo, mas é preciso também superá-
lo. Suplantá-lo não significa abandonar o passado histórico, mas utilizá-lo para que se
possa prosseguir evoluindo nesse processo de construção identitária e também pensar a
identidade local como algo que não esgota as suas múltiplas construções. Dessa maneira,
Said elenca três caminhos possíveis para tentar combater esse nativismo:

a) “Descobrir um mundo que não é construído a partir de essências em


conflito;
b) A possibilidade de um universalismo que não seja limitado nem
coercitivo, coisa que ele é ao acreditar que todo povo tem apenas uma
única identidade;
c) Superar o nativismo não significa abandonar a nacionalidade, e sim pensar
a identidade local como algo que não esgota a identidade do indivíduo ou
do povo” (SAID, 1995, p. 289).

Esses caminhos relacionados aos conceitos de nacionalidade, nacionalismo e


nativismo, na visão de Said, operam num grau crescente de coerção, porque, para ele, em
países como a Argélia e o Quênia, por exemplo, é possível observar uma resistência
heróica “de uma comunidade parcialmente surgida da inferiorização colonial, levando a
um prolongado conflito cultural e armado com as potências imperiais” (SAID, 1995, p.
289). É nesse sentido que Figueiredo (1998) afirma que tanto a palavra poética de Césaire
como a expressão da Negritude são, para Glissant, um desvio necessário e que a etapa
seguinte seria a “volta” ao real antilhano e não apenas uma volta à África como busca de
um passado que não faz referência direta às Antilhas.

Foi pensando que a negritude não resolvia de maneira certeira os problemas da


sociedade antilhana que Glissant desenvolve o conceito de Antilhanidade que surge como
uma “oposição” ao conceito de negritude. Glissant nunca se prendeu a universalismos,
percebendo que as necessidades do povo antilhano eram outras. Não havia necessidade
para se voltar para a Europa ou para África, quando, na realidade, a Martinica se

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encontrava presa, rodeada pelo mar. Ele acreditava que a identidade do povo antilhano
apresenta características que não se resumem às raízes africanas e que não se tratava de
negar a funcionalidade e a importância do movimento negro, como vimos acima, mas de
entender a negritude como um processo, como uma fase necessária para chegar-se
realmente ao cerne do problema antilhano, o reconhecimento da Antilhanidade. Tentando
ir além, o conceito busca ser mais do que um engajamento político e cultural. Em 1981,
é publicado o Discours antillais, ainda sem tradução no Brasil, em que podemos perceber
a luta por um fazer poético conjunto com todas as outras demandas sociais que ele
acreditava serem necessárias para o povo da Martinica. A identidade surge, então, de uma
realidade questionada e que precisa rever seus ideais mesmo que utópicos.

Esse tipo de pensamento busca, a partir de uma análise antropológica, sociológica,


histórica e literária, compreender as influências que a corrente de pensamento da
Negritude deixou. Desse ponto de vista, Glissant (2005) acredita que a sociedade
antilhana está alienada (de certa forma pelas influências de Fanon, mas sobretudo pelo
processo traumático da colonização) e que para sair desse frenesi ela deve buscar sua
verdadeira identidade, aquela que se propõe a ser aberta e plural. De modo geral, a
antilhanidade busca o reconhecimento de uma identidade antilhana, a valorização da
cultura, dos valores nascidos nas Antilhas, a consideração de um povo autônomo
culturalmente, capaz de deixar de lado a assimilação e de recusar uma imposição cultural
reconhecendo como verdadeiros seus valores. Essa antilhanidade seria composta a partir
da ideia, também desenvolvida por Édouard Glissant de identidade múltipla ou identidade
rizoma, isto é, uma sociedade/identidade aberta às várias influências do mundo
colocando, dessa forma, todos os povos em contato ou em Relação, para utilizar o termo
do próprio autor.

O principal ponto de divergência entre Negritude e Antilhanidade consiste nessa


busca do eu antilhano. Enquanto a Negritude se voltava para fora, Glissant percebia que
os antilhanos estavam esquecidos, não eram pensados nas suas completudes, mas em
pedaços-espaços da sua história. A somatória desse processo era entendida apenas com
uma visão exterior, voltada sempre para o outro, deixando de lado a visão interior do povo
antilhano. A prática da mimese, que aqui colocamos como um processo cultural, usual

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entre as sociedades que foram colonizadas e buscaram imitar seus colonos, não só
contribuiu para a superação do nativismo, mas também do mimetismo, principalmente do
relacionado aos valores europeus. Apesar de, nessa perspectiva, a Negritude ser
considerada incompleta, ela desempenhou e ainda desempenha um importantíssimo papel
na conquista dos valores africanos e antilhanos e dos povos negros do mundo. Sob esse
prisma, ela é vista apenas como um movimento incompleto. Entretanto, seu papel
desencadeou uma série de acontecimentos positivos não só nas Antilhas, mas também em
todo o mundo.

3. Crioulidade

A Crioulidade tornou-se um movimento no final dos anos oitenta com a publicação


do Éloge de Créolité (1993), na Martinica. Publicado em 1989, por três escritores
martinicanos, Jean Bernabé, Patrick Chamoiseau e Raphaël Confiant, no manifesto, eles
desenvolveram um projeto de escrita propondo o conceito de crioulidade como “o mundo
difratado, mas recomposto”, um turbilhão de significados em um só significante: uma
Totalidade”. (BERNABE; CHAMOISEAU; CONFIANT, 1993, 27, tradução nossa,
grifos do autor)5. De um lado, esse pensamento busca se distanciar da relação de
dominação entre colonizador e colonizado que, durante anos provocou um mimetismo na
escrita crioula e transfigurou essa cultura em valores que não correspondiam diretamente
à ancestralidade crioula. Por outro lado, busca ir de encontro à noção de identidade,
constituída de elementos verdadeiros, fundamentados na vivência do povo crioulo, a
partir de uma herança vinculada à arte e à identidade múltipla como vetores de propulsão
dessa sociedade e dessa escrita. O movimento é muitas vezes entendido como uma
resposta à Negritude, compreendida como inapropriada para transcrever a realidade
antilhana na sua diversidade. Também no final dos anos oitenta, como contrapartida ao
conceito de crioulidade, Édouard Glissant propõe o conceito de antilhanidade para propor
uma identidade antilhana, não se baseando apenas na vivência dos descendentes de
escravos africanos, mas integrando toda a contribuição antilhana.

A Crioulidade é definida como uma atitude interior através da qual o escritor


antilhano, consciente de seu ser e de seu meio, pode construir seu mundo. Ela seria,

5
« Monde diffracté mais recomposé, un maelström de signifiés dans un seul signifiant : une totalité »

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segundo Figueiredo (1998), uma “visão interior” da Antilhanidade proposta por Glissant
em Le discours antillais (1981), ou seja, a autora sugere que se a Antilhanidade é uma
concepção geopolítica e a Crioulidade visa a acentuar o aspecto mais cultural e mais
antropológico. A Crioulidade, nesse sentido, visaria a valorizar a cultura tradicional
crioula através dos contos, dos ditos populares, de provérbios. Essa continuidade daria-
se pela manutenção da língua crioula composta por tantos outros elementos heterogêneos.
Ela instituiu-se como um movimento teórico-literário. Engendrada a partir das ideias de
Antilhanidade e Crioulização de Édouard Glissant, a Crioulidade teve o mérito de
formular novas maneiras de observar e vivenciar a identidade caribenha:
Durante três séculos, as ilhas e as áreas do continente que este fenômeno afetou
foram verdadeiras forjas de uma humanidade nova, onde línguas, raças,
religiões, costumes, maneiras de ser de todas as faces do mundo, encontraram-
se brutalmente desterritorializadas, transplantadas em um contexto onde
tiveram que reinventar a vida. Nossa crioulidade nasceu, portanto, desse
formidável "migan" que tratou rapidamente de reduzir a seu único aspecto
linguístico ou a um só dos termos de sua composição. Nossa personalidade
cultural carrega ao mesmo tempo os estigmas desse universo e os testemunhos
de sua negação. Nós nos forjamos na aceitação e na recusa, portanto no
questionamento permanente, em total familiaridade com as ambiguidades mais
complexas, fora de todas as reduções, de toda pureza, de todo empobrecimento.
Nossa História é uma trança de histórias (BERNABE; CHAMOISEAU;
CONFIANT, 1993, p. 26, tradução nossa)6.

O pensamento da Crioulidade faz com que os espectadores da cultura antilhana sejam


não apenas observadores, mas coautores e fundadores de acontecimentos. Para exprimi-
la é necessário expressar a não-síntese, não apenas uma miscigenação. É necessário
exprimir uma totalidade “caleidoscópica”, ou seja, “a consciência não totalitária de uma
diversidade preservada” (BERNABE; CHAMOISEAU; CONFIANT, 1993, p. 28,

6
La Créolité est l’agrégat interactionnel ou transactionnel, des éléments culturels caraïbes, européens,
africains, asiatiques, et levantins, que le joug de l’Histoire a réunis sur le même sol. Pendant trois siècles,
les îles et les pans de continent que ce phénomène a affecté, ont été de véritables forgeries d’une humanité
nouvelle, celles où langues, races, religions, coutumes, manières d’être de toutes les faces du monde, se
trouvèrent brutalement déterritorialisées, transplantées dans un environnement où elles durent réinventer la
vie. Notre Créolité est donc née de ce formidable « migan » que l’on a eu trop vite fait de réduire à son seul
aspect linguistique ou à un seul des termes de sa composition. Notre personnalité culturelle porte tout à la
fois les stigmates de cet univers et les témoignages de sa négation. Nous sommes forgés dans l’acceptation
et le refus, donc dans le questionnement permanent, en toute familiarité avec les ambiguïtés les plus
complexes, hors de toutes réductions, de toute pureté, de tout appauvrissement. Notre Histoire est une tresse
d’histoires (BERNABE ; CHAMOISEAU ; CONFIANT, 1993, p. 26).

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tradução nossa)7 e para que isso ocorra é necessário considerar todos os componentes
daquela cultura, até mesmo aqueles que contribuíram de forma impositiva.
O conceito de Crioulidade, como foi dito anteriormente, não trata de um movimento
essencialmente literário, mas de um conceito relativamente ontológico, que busca
explicar o mundo antilhano através de uma concepção mestiça. O movimento rejeita a
unicidade, o universal e o puro. Propõe a diversidade cultural e literária e não nega os
conceitos de Antilhanidade e Negritude que o antecederam. A Crioulidade defende como
cerne o uso de uma língua mestiça, denominada crioulo para que, através dela, os valores
antilhanos sejam reconhecidos. Não se trata apenas de irromper a modernidade através
do crioulo, ou do reconhecimento de que, na verdade toda língua é crioula, mas de partir
do pressuposto que toda língua é política e carrega consigo todo o peso de uma sociedade
que busca ser reconhecida através dos seus valores culturais.
4. Identidade

O resgate da cultura-identidade surge não só de um auto reconhecimento do passado


e da manipulação que sofreram durante anos por parte dos colonizadores franceses, mas
de um reconhecimento de que a Crioulidade é o elemento central da identidade dos povos
crioulos porque ela se faz e se percebe a partir dos mais diversos elementos que tocaram
essa cultura durante anos. Ela nada mais é do que o resgate de uma identidade tida como
falida pelos colonizadores, é a aceitação de uma resultante, de um composto
completamente heterogêneo que se prefigura na escrita do povo e nas suas manifestações
sociais.

Segundo Junior (2006), a discussão antilhana da constituição identitária estabelece a


questão da alteridade, herdada do histórico pós-colonial dos povos colonizados do Caribe
marcados por uma exterioridade: “a que os fez ver o mundo pelo filtro dos valores
ocidentais. Tornados exóticos pela visão francesa que assimilaram, veem, nessa condição
estranha, os valores próprios com o olhar do Outro” (JUNIOR, 2006, p. 566). É nesse
sentido que a Crioulidade surge como negação não só desse filtro impositivo, mas de um
mundo que transformou sua maneira de pensar. De acordo com os próprios autores do
Éloge de la Créolité (1993), todo o povo antilhano foi marcado por um certo grau de

7
La conscience non totalitaire d’une diversité préservée (BERNABE ; CHAMOISEAU ; CONFIANT,
1993, p.28)

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exterioridade. Essa significância da negação surge, sobretudo, em uma parte da


população, aquela que consegue perceber o quão exotizada foi, e continua sendo, pelo
processo de imposição cultural. A outra parte continua alheia a esse processo, não
percebendo a existência de uma lente pela qual o dominante impõe suas crenças e valores
como melhores.

A relação identitária que se estabelece dentro desse manifesto é, como afirma Glissant
(2005), a necessidade única do mundo. Estar em relação, nesse sentido, é poder
compreender todo o potencial que cada um apresenta e, ao mesmo tempo, reconhecer o
outro enquanto outro sem que ele me usurpe e vice-versa. Desse modo, o manifesto se
configura dentro da relação com o outro e ao mesmo tempo estabelece o seu lugar de fala,
delimitando o seu espaço e simultaneamente reconhecendo que foi constituído por outros
espaços, poéticas e valores. De modo geral, a história contada no Éloge de la créolité se
assemelha com a História do Brasil – do princípio ao fim – e da mesma forma que eles
precisaram compreender a relação entre colonizador e colonizado, mímica e
autenticidade, nós precisamos compreender que se (des) mimetizar do outro não significa
ser inferior, significa valorar contatos múltiplos que se fazem inegavelmente ricos e
mestiços.

Perceber a identidade como um conceito múltiplo nos leva a pensar na ideia de


identidade-rizoma de Glissant inspirado pelos trabalhos de Deleuze e Guattari que busca
formular a noção de identidade múltipla, heterogênea, ambígua e em processo
permanente. Glissant (2005) opõe identidade à raiz única, a identidade-raiz, à identidade-
rizoma, ligada aos povos mestiços e aos fenômenos da crioulização e das migrações.
Aplicada ao conceito de identidade que evoca toda identidade fundada sob um
pertencimento ancestral de uma cultura, ao passo que a identidade-rizoma admite uma
identidade múltipla, nascida não do passado, mas de relações que são tecidas no presente.

A literatura é frequentemente um dos meios mais eficazes de expressão identitária e


foi por esse viés que muitos escritores, como, por exemplo, Edward Said e os próprios
escritores do L’Éloge de la créolité, conseguiram criticar suas realidades e a realidade do
mundo como um todo. Apesar do tema sobre a identidade ser bastante amplo, o que fará
com que sempre façamos referências a outros domínios de estudo, nesse trabalho, nos
restringiremos à identidade nos parâmetros defendidos por Laplantine & Nouss (2002),

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em que a identidade cultural é entendida como o resultado de cruzamentos, mistura,


memórias e, sobretudo, esquecimentos. Basta observar a escrita de algumas obras para
perceber que a maioria dos escritores antilhanos, sobretudo, dos anos sessenta em diante
escreviam com um objetivo comum de dar voz à sua identidade social, aos fatores
históricos que conduziram à Antilhanidade ou mais precisamente a sua Crioulidade.

Se antes os livros de alguma forma pretendiam enraizar sua gênese nas outras
comunidades, de modo a querer germanizar ou anglicizar outras literaturas, hoje
percebemos que as literaturas são compósitas e estão em relação acompanhando um falar
multilíngue, e, desse modo, plural. Esse pensamento do múltiplo pode ser justificado pelo
pensamento rastro/resíduo em que se supõe que todos os povos apresentam resquícios,
marcas do seu processo histórico. É um ato em construção, é a representação constante
do novo porque o rastro e o resíduo estarão sempre presentes em todas as relações com o
mundo. A língua como representação da identidade também é tocada pela noção do
rasto/resíduo porque sempre se encontra em contato, como afirma (GLISSANT, 2005,
p.71): “as línguas crioulas são rastro/resíduos singrados na grande bacia do Caribe e do
oceano índico. Quando fugiram paras as matas, os rastros/resíduos que seguiram não
supunham nem o abando nem o desespero, e nem tampouco o orgulho ou a vaidade de si
mesmo”. Esse pensamento busca de modo geral refutar a possessão e configura a noção
de que tudo é tocado pelo outro e por nós mesmos.

5. A tradução como prática mestiça

Glissant (2005) considera como uma das futuras artes mais importantes a tradução. O
que a tradução sugere em seu princípio é a soberania de todas as línguas do mundo. Para
ele, a tradução é uma verdadeira execução da Crioulização, a mestiçagem inevitável. É a
arte da fuga de uma língua a outra, sem a renúncia de ambas, porque, nos nossos dias,
acompanha toda a malha de traduções possíveis em toda e qualquer língua, ou seja, a
tradução é fuga, renúncia que corresponde à maneira de pensar que apenas toca (de leve),
não agride e nos ensina o imprevisível como prática do rastro/resíduo8. Assim, ele
ressalta: “como a absoluta limitação do ser, a arte da tradução contribui para acumular a
extensão de todos os sendos e todos os existentes do mundo. Rastrear nas línguas significa

8
Conceito desenvolvido por Édouard Glissant que supõe que todos os povos apresentam resquícios,
marcas do seu processo histórico.

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rastrear dentro do imprevisível de nossa – doravante – condição comum” (GLISSANT,


2005, p. 50), aproximando-se, por assim dizer, do célebre Walter Benjamin (2008), na
questão da tradução enquanto fuga.

Quando definimos a tradução como prática mestiça, inserimo-nos no campo das


possibilidades, do múltiplo, da viabilidade de uma tradução que acolhe, que permite
aceitar a estranheza do outro, que considera não só a identidade, mas também a alteridade
que todos os indivíduos e sociedades possuem. A mestiçagem na tradução de maneira
geral não se trata de um conceito, mas de uma predisposição a aceitar que uma cultura é
feita de diversas partes e, com a tradução, não poderia ser diferente, sobretudo, porque
ela continua sendo uma construção da sociedade. Hoje, mais do que nunca, como bem
ressalta Édouard Glissant (2005), deve-se buscar essa vinculação de aproximação entre
as línguas e culturas. Acima de tudo, porque, ao contrário do que se pensa, a proximidade
entre os povos é mais visível na língua e nos seus hábitos, e não no fator sanguíneo como
querem fazer acreditar os biólogos.

Apesar de ser uma nova noção de tradução, considerada por algumas correntes até
mesmo idealista, a tradução mestiça pode ser encontrada em todos os textos existentes no
mundo, porque, mesmo que ela queira se fantasiar de “belles infidèles”, ela carregará
consigo as marcas da mestiçagem que são intrínsecas a todo texto, tradução ou original.
Entretanto, é preciso lembrar também que essa ideia de uma relação aberta com o outro
não é perfeitamente pacífica e/ou perfeitamente aceitável, ela se prefigura em sua maioria
como um ideal. É preciso lembrar disso para não esquecer que os processos de tradução
nunca foram pacíficos, eles sempre estiveram permeados de questões hegemônicas,
étnicas e éticas.

A tradução mestiça não busca se apropriar da língua de chegada, ou vice-versa, ela se


perfaz dentro de um devir mestiço que se configura em um fluxo que nunca chegará a
uma síntese. Não se trata de um processo incompleto ou que a tradução nunca consiga se
realizar por completo, como pregam alguns teóricos, como Bassnett (2005) quando
afirma que a “tradução é perda” (BASSNETT, 2005, p. 38), mas trata-se de um
transformar-se contínuo como bem define Deleuze (2011), em Lógica do sentido:

O paradoxo deste puro devir, com a sua capacidade de furtar-se ao presente, é


a identidade infinita: identidade infinita dos dois sentidos ao mesmo tempo, do

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futuro e do passado, da véspera e do amanhã, do mais e do menos, do


demasiado e do insuficiente, do ativo e do passivo, da causa e do efeito. É a
linguagem que fixa os limites (por exemplo o momento em que começa o
demasiado), mas é ela também que ultrapassa os limites e os restitui à
equivalência finita de um devir ilimitado (DELEUZE, 2011, p. 2).

Essa relação de continuidade mestiça jamais significou perda ou ausência de


concretude. O contínuo aqui é estabelecido como uma evolução desmedida, ou seja, nega-
se a noção da métrica como fim único das somatórias. Para Glissant (2005) trata-se de
uma desmedida, no mesmo sentido deleuziano, porque desmedida não significa ser
anárquico, mas denota que “não existe mais a pretensão à profundidade, a pretensão ao
universal, mas apenas a pretensão a diversidade” (GLISSANT, 2005, p. 95). Não só a
tradução como a literatura como mestiçagem operam nesse espaço que se define e ao
mesmo tempo não se define na concretude, são processos infinitos que se renovam a cada
contato, a cada novo elemento adicionado ou retirado.

Considerações finais

As relações que se estabeleceram entre Negritude, Antilhanidade e Crioulidade


sustentam de um modo geral a necessidade de repensar o local de fala e as trocas
constantes a que toda identidade está sujeita. As reivindicações de cada movimento
preenchem os espaços através da História e sustentam a necessidade constante de traçar
novos olhares diante de conceitos que se estabelecem. A formação da identidade de todos
os povos é permeada por relações de complementariedade que se estabelecem de forma
branda ou violenta. A trajetória das Antilhas é certamente marcada por uma série de
questões sociais e identitárias que se transformam e se refletem na escrita dos escritores
antilhanos. Esse reflexo não faz surgir apenas uma autorreflexão sobre a construção
identitária, mas também uma crítica sobre como esse processo afeta a vida cotidiana e a
cultura local. Com o reconhecimento da Crioulidade, os autores buscaram também um
reconhecimento estético de si mesmos, dos martinicanos, dos antilhanos e do mundo
como um composto, como um conjunto de histórias (até então entendidas como
minoritárias) que não podem ser deixadas para trás.

É nessa busca por valores próprios que observamos que tanto a Negritude quanto a
Antilhanidade entram em cena para tentar estabelecer um lugar de fala que seja
propriamente antilhano ou que se baseie em uma das suas origens, a África. Os dois

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movimentos intentam, de maneira geral, um desejo de renascimento e não propriamente


um desejo de voltar ao passado, mas de resgatar valores considerados importantes para a
manutenção do povo antilhano. Mesmo que, em alguns momentos, as duas noções se
coloquem como opostas, elas representam a luta e, ao mesmo tempo, a afirmação de
existência desse povo. Segundo Glissant (2005, p. 102), “um povo impossibilitado de
refletir sobre sua função no mundo é, com efeito, um povo oprimido” e é dessa noção de
opressão que a escrita antilhana ou marcadamente martinicana tem procurado se
desvencilhar, optando por uma escrita que busque reconhecer tanto as suas feiuras quanto
a suas belezas.

Os três movimentos apresentam posições singulares, porém todos eles tentaram se


definir a partir da experiência e da situação de opressão das Antilhas, da África e de todos
os lugares onde os povos se encontram marginalizados e descriminalizados, reunir os
valores e preservá-los para não serem mais assimilados aos ideais ditos universais-
europeus. A Negritude não só abriu as portas para que outros movimentos se
instaurassem, mas ampliou a própria dimensão do negro no mundo, fazendo com que suas
reivindicações alcançassem a sociedade e a literatura. Por muito tempo foi imputada à
condição do negro um sentimento de negação, de inferiorização de preceitos causando
uma recusa incorporada a um mimetismo, a uma cópia de valores. A abertura,
inicialmente feita pela Negritude e posteriormente pela Antilhanidade e Crioulidade,
criou o sentimento de recusa da velha assimilação, dando lugar assim à valoração e ao
reconhecimento de que não existe no mundo negro nada que seja pequeno, feio, inútil e
pobre. Toda a riqueza é reconhecida e valorada, sendo colocada em questão e sendo,
acentuadamente, reconhecida como bela.

De modo geral, devemos pensar na tradução e na escrita antilhana como uma abertura,
uma relação que se estabelece inicialmente pela marca definida por Glissant (2005) como
rastro/resíduo que se insere e transforma os espaços preenchidos pelos outros e não é
mais entendida como uma alteridade agressiva, mas uma que contribui intrinsecamente.
Do mesmo modo, a tradução se insere como propulsora dessas correntes de poéticas que
buscam alcançar o mundo, o devir tradutório insere-se na possibilidade de jamais ceder à
rigidez, de sempre se abrir e de renovar todos os dizeres possíveis, fazendo jus assim à
ideia de identidade-rizoma.

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A tradução, nesse contexto, deve tentar abarcar as singularidades que esses textos
apresentam. Assim como observam Laplantine & Nouss (2002), o pensamento da
mestiçagem “é claramente o pensamento da mediação, que se exerce no intermediário, no
intervalo e nos interstícios a partir dos cruzamentos e das trocas” (LAPLANTINE;
NOUSS, 2002, p. 83), sendo para eles impossível que ele se reduza ao pensamento do
entre ou entremeios porque estes se reduzem a categorias espaciais. Para os autores,
pensar a tradução como heterogênea, como se pensa a forma, é ainda estar preso às ideias
antigas que, do nosso ponto de vista, não conseguiriam abarcar as peculiaridades do texto
antilhano, por exemplo.

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POLÍTICAS DE TRADUÇÃO E ESCRITA LITERÁRIA NEGRA

Valeria Lima de Almeida1

RESUMO: A tradução, como instrumento de política cultural, é parte de um construto mais


amplo da cultura nacional, sendo um elemento de construção de identidades nacionais. No
Brasil, o povo negro enfrenta uma subalternização persistente, tanto no aspecto material
quanto no da representação. Tendo em vista estes fatos e as recentes políticas de incentivo à
tradução de literatura brasileira como divulgação internacional da cultura, o presente texto
analisa o lugar (ou não-lugar) do negro, inclusive da mulher negra, nas representações da
cultura e da sociedade brasileira que emergem a partir da produção tradutória recente de obras
nacionais, sobretudo no que tange à escrita de autoras e autores negros.

PALAVRAS-CHAVE: Tradução, Política Cultural, Representação, Negro, Mulher Negra.

ABSTRACT: As an instrument of cultural politics, translation is part of a broader national


culture construct, being an element of the construction of national identities. In Brazil, black
people face persistent subalternity, both in material status and in representation. In light of
these facts and recent policies to encourage the translation of Brazilian literature as an
international dissemination of culture, the text analyzes the place (or non-place) of black
people, including that of black women, in the representations of Brazilian culture and society
which emerge from the recent translations of national literature, especially regarding of black
authors’ works.

KEYWORDS: Translation, Cultural Politics, Representation, Black People, Black Women.

1. Introdução

A Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e


Intolerância Correlata, realizada em Durban, no ano de 2001, aprovou diversas resoluções a
serem efetivadas pelos Estados signatários, entre eles o Brasil. Tais resoluções visam o
fomento à produção cultural de mulheres e das chamadas minorias étnicas. No Brasil, embora
a população negra não seja minoritária – trata-se de um grupo que perfaz 54% da população –
a mesma enfrenta, ainda hoje, um legado de subalternização em diversos âmbitos, o que se
reflete na visibilidade de sua produção cultural.

1
Tradutora, residente no Rio de Janeiro, Graduada em Letras: Português-Inglês pela Universidade
Cândido Mendes e Pós-Graduanda em Tradução pela Universidade Estácio de Sá. E-mail:
trad.valeria@gmail.com.

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Tendo em vista o caráter da tradução como instrumento de mediação cultural e as


iniciativas recentes de incentivo à tradução de literatura brasileira como parte de uma política
de afirmação da cultura nacional no exterior, procuraremos analisar a seguir o lugar (ou não-
lugar) do negro, inclusive da mulher negra, nas representações da cultura e da sociedade
brasileira que emergem a partir da produção tradutória recente de obras nacionais, sobretudo
com as políticas de incentivo supracitadas, especificamente a partir da década de 1990. De
particular relevância para a discussão dessas representações é a incidência da escrita de
autoras e autores negros como objeto de tradução, a saber, em que grau a produção literária
negra está presente nesse conjunto de obras traduzidas.

2. A tradução como ato de mediação e as políticas de tradução

Nas últimas décadas, os estudos teóricos da tradução têm enfocado o caráter de


mediação cultural da prática tradutória. Este viés transparece diferentes procedimentos que o
tradutor pode adotar em sua reescrita, porém não é neste sentido que falamos aqui de tradução
como ato de mediação cultural.
A tradução como mediação cultural, para os fins deste estudo, é o aspecto político
da atividade tradutória, tanto no que diz respeito à seleção dos textos quanto à forma de
traduzi-los, tendo em vista que essas traduções servirão a fins específicos, que podem ser de
difusão de conhecimentos, divulgação de culturas nacionais, ou mesmo de intervenção
política cultural. Nesse sentido, no que tange aos países da América Latina, por exemplo,
segundo Esteves (2014), aludindo à obra de Sérgio Gabriel Waisman, Borges y la traducción,
“um dos principais traços das literaturas latino-americanas é sua constante preocupação em
definir seu lugar entre outras tradições ocidentais.(...)” e, ainda, referindo-se à situação da
literatura argentina da época de Borges, afirma que “as questões básicas que se colocavam na
época eram referentes a desenvolver apenas temas locais ou incluir o universal e como
produzir uma literatura que não fosse subsidiária do centro e nem condenada a repetir o
imperialismo cultural” (p. 313).

Estas questões e outras estão localizadas no âmbito geral das políticas culturais e de
representação, e a tradução desempenha um papel relevante na configuração dessas políticas.
Assim, existe uma ligação íntima entre as políticas de tradução – aqui compreendidas como os

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fatores que levam à tradução (ou à divulgação da tradução) de certos textos em um dado
momento e local histórico – e as políticas de cultura e representação em voga, bem como a
correlação internacional de forças.

3. Cultura nacional

A fim de compreender como se constrói a representação do negro na nossa


produção literária visibilizada no exterior, isto é, traduzida, é necessária uma discussão mais
ampla sobre a formação de uma cultura nacional e a influência desta na construção das
políticas de tradução.
Hall (2014) afirma que

As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de
símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir
sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós
mesmos (ver The Penguin Dictionary of Sociology, verbete “discourse”). As culturas
nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais podemos nos
identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas histórias que são
contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens
que dela são construídas (p. 31).

Ou seja, as culturas nacionais são tessituras de instituições, símbolos e


representações, que juntas compõem um discurso que produz identidades. Estas, por sua vez,
também produzirão sentidos a partir de suas relações com outros elementos também
componentes dessa cultura. Em se tratando das relações entre elementos hegemônicos e não-
hegemônicos dentro de uma cultura nacional, esta também será um lócus de disputas de
significado, evidentemente marcadas pela desigualdade. Em contextos politicamente mais
democráticos, essas disputas serão mais visíveis, enquanto em momentos autoritários as
narrativas não-hegemônicas serão mais apagadas.
No contexto das disputas de sentido presentes no âmbito da cultura nacional
residem duas questões relevantes para este trabalho, a saber, a questão da representação e a da
produção de conhecimento. No que tange à última, esta ocorre justamente no seio de práticas
sociais, existentes no interior de relações sociais que engendrarão, portanto, epistemologias
próprias. E serão justamente essas relações sociais que tomarão como válido, ou não, certo

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conhecimento. A questão da validade do conhecimento é, portanto, eminentemente social e


política.
A expansão global do capitalismo trouxe, no âmbito de uma série de mudanças nas
práticas e relações sociais, uma epistemologia própria, com pretensões de universalidade e
objetividade, que veio a desembocar na ciência moderna. Importa ressaltar que isto só foi
possível como resultado de uma “intervenção política, econômica e militar do colonialismo e
do capitalismo modernos (...) aos povos e culturas não-ocidentais e não-cristãos” (SANTOS,
MENESES e NUNES, 2005) e que esta intervenção veio a desacreditar ou suprimir as
práticas sociais de conhecimento que lhe fossem teleologicamente contrárias. Boaventura de
Sousa Santos se refere a esse fenômeno como epistemicídio, “ou seja, a supressão dos
conhecimentos locais perpetrada por um conhecimento alienígena” (SANTOS, 1998, apud
SANTOS, 2010).
Ora, como desdobramento de um processo colonial cujas repercussões persistem
nos aspectos epistemológico e da representação (entre outros), a presença do negro, como
elemento não-hegemônico na cultura nacional, sofrerá um achatamento nas representações
culturais dominantes, tendo em vista que estas são construídas de forma praticamente
exclusiva a partir do olhar de outrem, a saber, da elite brasileira, herdeira do colonizador
europeu.
Dito de outra forma, o processo colonial, globalmente considerado, produziu
mundialmente relações estruturais de dominação entre culturas, nas quais elementos, saberes e
práticas hegemônicas - o que, desde a expansão colonial europeia e, sobretudo, com a
consolidação mundial do capitalismo, equivale a dizer práticas culturais europeias – são tidas
como detentoras exclusivas de validade, enquanto as culturas não-hegemônicas têm seus
saberes invisibilizados ou considerados irrelevantes.
Como diz Edward Said em sua obra Orientalismo:

(...) isso já aconteceu muitas vezes com o “Oriente”, esse constructo semimítico que, desde
a invasão do Egito por Napoleão, no fim do século XVIII, já foi feito e refeito um sem-
número de vezes, sempre pela força agindo por intermédio de um tipo expediente de
conhecimento cujo objetivo é asseverar que tal ou qual é a natureza do Oriente, e que
devemos lidar com ele condizentemente. No processo, os inúmeros sedimentos de
história que incluem incontáveis histórias e uma variedade estonteante de povos,
línguas, experiências e culturas, tudo isso é desqualificado ou ignorado, relegado ao
monturo, juntamente com os tesouros esmigalhados até formar fragmentos
insignificantes – como é o caso dos tesouros retirados das bibliotecas e museus de Bagdá.
Em minha opinião, a história é feita por homens e mulheres, e do mesmo modo ela também

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pode ser desfeita e reescrita, sempre com vários silêncios e elisões, sempre com formas
impostas e desfiguramentos tolerados, de modo que o “nosso” Leste, o “nosso” Oriente
possa ser dirigido e possuído por “nós”. (p. 14, grifo nosso).

Como é possível observar, as questões da representação, da produção de


conhecimento e da subjetividade estão relacionadas e intimamente ligadas ao poder. Quem
detém o poder econômico/ militar deterá também a fala dominante sobre a produção de
conhecimento e as formas de representação dos diferentes sujeitos.
É também característico dos discursos oficiais a naturalização dessa colonização
epistemológica, neles representado como missão civilizadora. Como diz Said,

todos os impérios que já existiram, em seus discursos oficiais, afirmaram não ser como os
outros, explicaram que suas circunstâncias são especiais, que existem com a missão de
educar, civilizar e instaurar a ordem e a democracia (p. 17)

Ora, se cabe a apenas um ator social (etnia, classe, grupo, sexo) a fala sobre todos
os outros componentes de uma cultura nacional, esta representação será construída a partir de
um único ponto de vista, o do “sujeito” – aquele de posse “da palavra”, vale dizer, da
capacidade (socialmente outorgada) de conferir sentidos. Enquanto isso, os indivíduos e/ou
grupos não-hegemônicos estarão presentes apenas mediante a representação que lhes atribui o
grupo dominante, ou seja, um estereótipo. Hall (2016) sustenta que

A estereotipagem enquanto prática de produção de significados é importante para a


representação da diferença racial. Mas o que é um estereótipo? Como funciona de verdade?
Em seu ensaio “Stereotyping” [“Estereotipagem”], Richard Dyer (1977) faz uma distinção
importante entre tipificação e estereotipagem. Ele argumenta que, sem o uso de tipos, seria
difícil, senão impossível, extrair sentido do mundo. Entendemos o mundo ao nos referirmos
a objetos individuais, pessoas ou eventos em nossa cabeça por meio de um regime geral de
classificação em que – de acordo com a nossa cultura – eles se encaixam. Assim, nós
“decodificamos” um objeto plano com pernas sobre o qual colocamos coisas como uma
“mesa”. Talvez nunca tenhamos visto certo tipo de “mesa”, mas temos um conceito geral
ou categoria de “mesa” em nossa cabeça e, nele, fazemos “caber” os objetos particulares
que encontramos ou percebemos(...).
Richard Dyer argumenta que estamos sempre “dando sentido” às coisas em termos de
algumas categorias mais amplas. Assim, por exemplo, “sabemos” algo sobre uma pessoa ao
pensarmos a respeito dos papéis que ele ou ela executam: a pessoa é um(a) pai (mãe), um(a)
filho(a), um(a) trabalhador(a), um(a) amante, um(a) chefe ou um(a) aposentado(a)?
Atribuímos-lhe a associação a diferentes grupos, de acordo com a classe, sexo, grupo etário,
nacionalidade, “raça”, grupo linguístico, preferência sexual e assim por diante. (...). Em
termos gerais, então, um tipo é qualquer caracterização simples, vívida, memorável,
facilmente compreendida e amplamente reconhecida, na qual alguns traços são promovidos
e a mudança ou o ‘desenvolvimento’ é mantido em seu valor mínimo” (Dyer, 1977:28).
Assim, qual o diferencial de um estereótipo? Estes se apossam das poucas características
“simples, vívidas, memoráveis, facilmente compreendidas e amplamente reconhecidas”

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sobre uma pessoa; tudo sobre ela é reduzido a esses traços que são, depois, exagerados e
simplificados. Este é o processo que descrevemos anteriormente. Então, o primeiro ponto é
que a estereotipagem reduz, essencializa, naturaliza e fixa a “diferença”. (p. 191)

4. Políticas de tradução e identidade nacional: dois momentos

Para analisar o papel da tradução enquanto prática epistemológica capaz de incidir


na construção de uma representação nacional, dois momentos chamam a atenção. Ambos são
períodos históricos em que a construção de uma autoimagem está na ordem do dia entre a
intelectualidade pátria como parte da inauguração de um projeto específico de país.
O primeiro momento a ser abordado aqui é a primeira metade do século XX. Do
ponto de vista da história da tradução, um reflexo interessante foi a tradução e adaptação de
diversas obras da literatura europeia para o português por Monteiro Lobato, e a criação da
Companhia Editora Nacional, em 1925. Na época, a República brasileira era jovem e a elite
intelectual de então buscava uma nova configuração de país; um projeto modernizador estava
em curso em diversas esferas. A discussão identitária tinha um viés europeizante; no
imaginário desta elite, a Europa era associada ao progresso, enquanto a herança africana e a
indígena figuravam entre as causas do atraso do país.
Com a década de 1930, adveio o fim da República Velha e, com ele, a ascensão de
um novo projeto de Estado e de nação, engendrado no seio da elite intelectual do país. Esta
nova construção identitária que então se formava, tinha como representação ideal um Brasil
moderno, industrializado, e, sobretudo, europeizado. É no marco desse projeto de nação com
caráter branqueador que a intelectualidade brasileira dirigiu seu olhar para a herança étnica
africana do povo, o que se refletiu em diferentes âmbitos. Se, desde a segunda metade do
século XIX até então o racismo científico desfrutava de grande influência entre os intelectuais
brasileiros, ao ponto em que alguns de seus expoentes defendiam a eugenia, entendida aqui
como a defesa de uma intervenção no acervo genético da população, mais tarde essa
mentalidade deu lugar a uma concepção “leve” de eugenia, que propunha uma modificação
cultural/ comportamental. O ideal eugênico constituía-se, assim, no ideário modernizador das
elites brasileiras da primeira metade do século XX, não apenas em um fenótipo, mas num
conjunto que incluía também um ethos no qual as práticas culturais aceitas e legítimas eram
apenas as europeias (DÁVILA, 2002).

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Se, por um lado, estes intelectuais tinham a Europa como referência de


autodefinição, ideias e cultura, por outro, adotaram um discurso de que a mistura de raças
seria algo positivo na formação do povo brasileiro. Esta contradição permeou e permeia as
concepções de raça vigentes até hoje e está na reprodução de hierarquias inclusive no âmbito
acadêmico, notadamente no que tange aos saberes considerados válidos e, portanto,
merecedores de visibilidade.
Um segundo momento relevante para analisarmos a questão da construção da
autoimagem pode ser entendido a partir da década de 1990, com a consolidação do processo
aberto com o final da ditadura militar e emergência das reivindicações de diversos setores da
sociedade civil. No que concerne às relações étnico-raciais e à educação, vem da década de
1990 o início das discussões sobre a adoção de cotas raciais nas universidades, e a adoção da
lei que institui o ensino da história e da literatura africanas e afro-brasileiras é do ano de 2003.
Essas mudanças não são casuais. Nilma Lino Gomes (2010) relata que a partir dessa época

as pesquisas acadêmicas e oficiais começam a considerar com mais seriedade outras


dimensões e categorias para além dos aspectos socioeconômicos. Esse processo não
significa apenas uma mudança do olhar da ciência sobre a realidade. Representa, entre
outros fatores, o resultado da pressão dos movimentos sociais de caráter identitário e os
seus sujeitos sobre o campo da produção acadêmica (p. 494).

Essa nova conjuntura irá atuar, ainda que de forma incipiente, na forma que a
intelectualidade do país pensa a questão da identidade brasileira, o que incidirá também sobre
as questões relacionadas à produção e visibilidade da literatura brasileira. Se no início do
século XX essas políticas visavam romper com o atraso do país, fazendo com que o Brasil
figurasse no rol das nações modernas – e para isso diversas traduções de obras europeias
foram editadas, já que o referencial máximo era a cultura europeia, detentora de uma validade
que a elite não via nas matrizes africana e indígena – agora, com o restabelecimento do
regime democrático, o Brasil visava mostrar ao mundo que já fazia parte do grupo de países
“civilizados”. Começou, assim, a tomar impulso a tradução de obras literárias brasileiras no
exterior.

6. O negro, esse “outro”... Literatura negra brasileira

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No cânone literário brasileiro, a presença negra é exceção; os nomes visíveis da


literatura produzida por afrodescendentes no país são Machado de Assis, Cruz e Sousa e Lima
Barreto. Na verdade, essa invisibilidade do negro como produtor de literatura é um sintoma da
invisibilidade da produção intelectual negra, condição que persiste na atualidade.
Embora já houvesse literatura produzida por negros, inclusive a dos autores acima
citados, precursores, em diversos aspectos, do discurso literário negro, a literatura negra como
gênero surgirá no século XX, como escrita de si: é a experiência negra transfigurada em texto;
Conceição Evaristo, doutora em Literatura Comparada e profícua escritora negra, nos diz que
essa escrita é uma voz quilombola, “um lugar de transgressão ao apresentar fatos e
interpretações novas a uma história que antes só trazia a marca, o selo do colonizador”.
Essa literatura passa a existir no momento em que o negro deixa de ser objeto para
uma literatura que não lhe pertence e assume o lugar de sujeito enunciador; no momento em
que o negro deixa de ser estereótipo e se torna construtor de sua narrativa.
Mas não basta ser negro para produzir literatura negra. Conceição Evaristo reafirma
que “não é somente a cor da pele do escritor que vai definir, situar o seu texto como literatura
negra, mas também a sua postura ideológica, a maneira como ele vai viver em si a condição e
a aventura de ser um negro escritor”. É uma literatura que assume uma postura ideológica,
posto que elege como tema a história e a situação do negro, bem como as relações raciais na
sociedade brasileira.
É interessante observar que o conceito de literatura negra dialoga com o que Nilma
Lino Gomes denomina “intelectuais negros”. E quem são eles? São aqueles que

No seu discurso, na sua produção escrita, na sua intervenção social, literária e acadêmica
esses intelectuais expressam um olhar marcado não só pela sua condição de classe, mas,
também, pela raça. E mais, a raça na sua intermediação com o gênero, a idade e demais
lugares sociais dos quais participam. São também sujeitos que não estão obrigados a
somente produzir conhecimento sobre o negro, mas que dentro de qualquer campo do
conhecimento onde estiverem, indagam a sociedade, a universidade e a ciência do lugar da
raça, ou seja, não têm receio de expressar que já nascemos em um espaço/tempo racializado
e até em um pensamento social racializado (...) (p. 502).

E ainda

irrompem contra essa alteridade forjada em contextos de poder. A diferença étnico-racial


que deveria ser suprimida no projeto moderno ou que é produzida em outros moldes no
atual processo de globalização do capital adquire outro tipo de visibilidade. O ‘outro da
razão’ passa a ocupar os lugares da racionalidade científica desafiando-a por meio de uma

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outra racionalidade que não se dissocia da corporeidade, da musicalidade, das narrativas, da


vivência da periferia, das culturas negras, das formas comunitárias de aprender.

Dessa forma, o escritor negro engendra, na arte, de forma análoga ao intelectual


negro categorizado por Nilma Lino Gomes, um aquilombamento artístico. O uso do termo
não é casual: a literatura negra é um lócus de criação da identidade e de reelaboração da
estética e da ética africanas a partir da vivência diaspórica. Fazer isso em uma sociedade
fundada e orientada por valores brancos é inerentemente transgressor; significa produzir outra
leitura histórica e social, contrapondo ao estereótipo uma imagem multifacetada da
experiência negra. A analogia com o quilombo se dá na medida em que este era, também, um
lugar de resistência cultural, fortalecimento e luta identitárias, organização, enfrentamento e
contra-hegemonia. Conceição Evaristo, novamente ela, intelectual negra e escritora, nos
aponta:

Podemos pensar o quilombo como um espaço de vivência marcado pelo enfrentamento,


pela audácia de contradizer, pelo risco de contraviver o sistema.
O quilombo não garantia ao escravo a liberdade. Era escravo e escravo fugido redobrando
assim a sua exclusão social. O quilombola era o marginal, o fora-da-lei, como observa Zila
Bernd (1988, p.80).
Distingo ainda quilombo de senzala, porque quilombo é um lugar de escolha, senzala, como
gueto, guarda um sentido de lugar vivido por imposição. Entretanto, a senzala subverte
também a ordem, na medida em que é a oposição da casa-grande, constituindo-se um pólo
ameaçador.
A mística do quilombo vai estar presente em várias criações da literatura negra brasileira. O
fato-símbolo da resistência negra, Quilombo dos Palmares, vai ser reverenciado. Zumbi é o
herói e a vítima do cotidiano.

O fato de a literatura negra ter se originado fora do cânone literário brasileiro, por
intelectuais cujo perfil artístico se encontra conjugado a uma postura ideológica frente às
relações raciais interfere, de forma evidente, na forma de difusão dessa literatura. Essa
produção literária, como elemento discursivo contra-hegemônico, terá como principais vias de
divulgação outros canais que não o mercado editorial: os saraus, principalmente os de
periferia, bem como as publicações independentes de coletivos de escritores negros e, mais
recentemente, editoras voltadas para a temática negra. É evidente que não se tratou de mera
escolha desses escritores, tendo em vista que o preconceito existente no mercado editorial
impede a visibilidade dessa escrita junto ao grande público; mas, em se tratando de um gênero
literário que propõe e se propõe como lócus de resistência e recriação, é coerente que sua
difusão, originariamente, tenha se dado em locais nos quais a arte é, em si, também militância.

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7. Divulgação internacional da produção literária brasileira

Desde a década de 1990, diversas iniciativas de divulgação internacional da


produção literária brasileira, tanto públicas quanto privadas, vêm sendo estruturadas. A
participação brasileira em feiras literárias internacionais, a promoção de eventos como a Festa
Internacional de Paraty, bem como programas da Biblioteca Nacional, a saber: o Programa de
Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros, o Programa de Intercâmbio de
Autores Brasileiros no Exterior e o Programa de Residência de Tradutores Estrangeiros,
compõem o quadro das políticas de divulgação da literatura brasileira. Sendo assim, através
de uma amostragem da produção literária do país, produzem um discurso sobre a identidade
nacional. Cabe indagar o lugar, ou não-lugar, da escrita negra nesse discurso.

7.1 Políticas públicas: os programas da Biblioteca Nacional

A Biblioteca Nacional dispõe de três programas de fomento à divulgação da


produção literária brasileira. São eles: o Programa de Intercâmbio de Autores Brasileiros no
Exterior, o Programa de Residência de Tradutores Estrangeiros e o Programa de Apoio à
Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros, sendo os dois últimos de interesse para o
presente estudo.

O Programa de Residência de Tradutores Estrangeiros, segundo o site da Biblioteca


Nacional, “visa difundir a cultura e a literatura brasileiras no exterior, por meio da concessão
de bolsas a tradutores estrangeiros para apoiar o custeio de períodos de residência no Brasil” e
existe desde 2012. As bolsas são concedidas a “tradutores profissionais estrangeiros que
estejam traduzindo do português para qualquer outro idioma uma obra literária brasileira,
publicada previamente no Brasil, e que já possuam um contrato editorial para a tradução”.

Já o Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros é o mais


antigo dos programas aqui citados, tendo surgido em 1991, e se destina a apoiar editoras
interessadas em publicar obras de autores brasileiros. Podem concorrer projetos de traduções
inéditas ou de reedições de obras já traduzidas.
Tanto no Programa de Residência de Tradutores quanto no de Apoio à Tradução e
Publicação de Autores Brasileiros, verifica-se que as obras contempladas são, em sua quase

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totalidade, de autores brancos, com exceção de Daniel Munduruku, indígena, e de dois dos
três escritores negros canônicos: Lima Barreto e Machado de Assis. A presença de mulheres
brancas é minoritária e a de mulheres negras, inexistente. Com efeito, é interessante constatar
que o resgate da imagem de Machado de Assis como escritor negro é bastante recente, e sua
obra não é abordada sob esse prisma no cânone literário.

7.2 Outras iniciativas

Entre outras iniciativas para a divulgação da literatura brasileira figuram a Festa


Literária Internacional de Paraty (FLIP), a participação brasileira em eventos literários
internacionais como a Feira do Livro de Frankfurt e o Salão do Livro de Paris. Nestes eventos
a participação de escritoras e escritores negros brasileiros ainda é rara.
Um caso considerado excepcional foi a presença de Conceição Evaristo no Salão do
Livro de Paris de 2015, assim como o foi a presença de Paulo Lins na Feira do Livro de
Frankfurt de 2013. Ambos se pronunciaram sobre a escassa presença de negros na delegação
brasileira para os respectivos eventos.
Conceição Evaristo, em fala breve mas precisa, pontuou a questão da representação
da mulher negra na cultura brasileira e sua incidência na divulgação da literatura brasileira no
exterior:

não é muito comum uma escritora brasileira negra participar de um evento internacional. A gente
fica como fruta rara. E não é que não tenhamos escritoras negras. Geni Guimarães, Miriam Alves,
Ana Maria Gonçalves, Lia Vieira, são só algumas”. “(...) a presença da negra fora das instâncias em
que se está acostumado a vê-la causa furor”: “Não seria a mesma coisa se isto aqui [o salão] fosse
um festival de gastronomia em que baianas estivessem preparando acarajés (Jornal Folha de São
Paulo, 23/03/2015).

8. Considerações finais

Na introdução deste trabalho, mencionamos a Conferência de Durban, realizada em


2001, na qual foram aprovadas resoluções que visavam o estímulo à produção cultural de
mulheres e das chamadas minorias étnicas. Embora não se possa dizer que o povo negro no
Brasil seja minoritário - mais da metade da população é negra e somos o país com maior

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contingente negro em toda a Diáspora africana – a subalternização dos negros brasileiros


persiste, não somente do ponto de vista material como também no âmbito da representação.
A tradução, como instrumento de política cultural, desempenha um papel na
configuração de um construto mais amplo da cultura nacional, incidindo na forma que esta
cultura aparece perante as outras. Assim, ela também é um elemento de construção de
identidades nacionais.
No caso brasileiro, há uma lógica colonial e epistemicida que ainda não foi
rompida; a tradição literária (e, de modo geral, epistemológica) ocidental é a única
considerada integralmente válida e relevante. A definição de uma identidade brasileira tem se
construído historicamente mantendo a tradição europeia como referencial, tendo sido
desprezados, nesse processo, tanto os saberes nativos indígenas quanto os trazidos pelos
africanos escravizados.
Nesse processo, tudo o que não era branco – e, no que tange ao objeto específico
deste trabalho, africano – tornou-se estereótipo, isto é, uma exagerada simplificação e redução
do universo psíquico, social e cultural do universo negro, já que, pela própria lógica colonial,
ao negro não era facultado produzir um discurso sobre si mesmo. Não é casual que embora
houvesse escritores negros já no século XIX e início do XX, alguns dos quais, mesmo como
exceção, parte do cânone literário brasileiro, não é antes da segunda metade do século XX que
surge a literatura negra, posto que antes a plena assunção ideológica de um escritor como
produtor de literatura negra não era objetivamente possível.
Assim, a tradução, como parte de uma política cultural e identitária, orientou-se, na
primeira metade do século XX, no sentido de alçar o Brasil à categoria dos países “modernos”
e/ou “adiantados”: foram traduzidas diversas obras da literatura de língua inglesa com a
finalidade de torná-las mais acessíveis ao público brasileiro; paralelamente, no que tange às
relações étnico-raciais, a presença negra, como também a indígena, foi vista como entrave ao
progresso nacional. É interessante observar que, corroborando esse fato, se até então
escritores negros brasileiros chegaram ao cânone literário, notadamente Machado de Assis,
Lima Barreto e Cruz e Sousa, dessa época em diante sobreveio uma invisibilidade total da
escrita produzida por afrodescendentes.
A emergência da literatura negra, ou seja, da plena assunção ideológica do escritor
negro como tal, falando de si e fazendo de sua literatura um lugar de reelaboração das culturas
africanas em plena Diáspora, de contraposição aos estereótipos atribuídos e de resistência, se

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dá enfrentando a invisibilidade imposta pela lógica racista da sociedade e buscando sua


difusão em espaços nos quais a arte também se configura como forma de militância.
Com a redemocratização do país, as políticas de tradução se orientam no sentido da
divulgação internacional da literatura brasileira; não obstante a existência de políticas para
essa difusão, o que também ocorre a fim de propagar uma imagem positiva do Brasil no
exterior, a presença negra na produção literária divulgada no exterior continua praticamente
inexistente, salvo raríssimas e pontuais exceções. Ora, se o Brasil é signatário de resoluções
internacionais que preconizam o estímulo à produção cultural de suas minorias, é coerente
que se elaborem políticas públicas particulares para este fim. Não é admissível que a cultura
literária negra permaneça invisível, no Brasil ou no exterior. É importante que haja, a exemplo
das iniciativas já existentes para o estímulo à tradução de obras da literatura brasileira,
políticas específicas para a tradução de obras de nossa literatura negra. Romper a
invisibilidade da produção literária negra é imprescindível para um país que se quer
democrático, e é tarefa urgente para uma política cultural inclusiva.

9. Referências bibliográficas

Biblioteca Nacional. https://www.bn.gov.br/explore/programas-de-fomento/programa-


residencia-tradutores-estrangeiros-brasil

DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil – 1917 – 1945.
São Paulo, Ed. UNESP, 2006.

ESTEVES, Lenita Maria Rimoli. Atos de tradução: éticas, intervenções, mediações. São
Paulo, Humanitas/ FAPESP, 2014.

EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma voz quilombola na literatura brasileira.


Disponível em http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/aladaa/evaris.rtf

GOMES, Nilma Lino. Intelectuais negros e produção do conhecimento: algumas reflexões


sobre a realidade brasileira. In SANTOS, Boaventura de Sousa e MENESES, Maria Paula
(orgs). Epistemologias do Sul, São Paulo, Cortez, 2010.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, Lamparina,


2014.
___________. Cultura e representação. Rio de Janeiro, Ed. PUC-Rio: Apicuri, 2016.

LAJOLO, Marisa. A figura do negro em Monteiro Lobato. Disponível em


http://www.unicamp.br/iel/monteirolobato/outros/lobatonegros.pdf

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NOTA DE REPÚDIO PELA AUSÊNCIA DE ESCRITORES NEGROS NA LISTA


DOS 70 AUTORES BRASILEIROS FEITA PELO MINISTÉRIO DA CULTURA DO
BRASIL PARA A FEIRA DE FRANKFURT 2013. In:
http://www.buala.org/pt/mukanda/ausencia-de-escritores-negros-brasileiros-na-feira-de-
literatura-de-frankfurt

SAID, Edward W. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo,


Companhia das Letras, 2007, 1. ed.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs). Epistemologias do sul. São
Paulo, Cortez, 2010.

SANTOS, José Henrique de Freitas. Reflexões sobre o conceito de literatura-terreiro


(entrevista). Disponível em http://www.inventario.ufba.br/14/Entrevista_Henrique.pdf

Reportagens:

“Em carta aberta, professoras da UFRJ acusam Flip de promover ‘Arraiá da


Branquidade’”. In:
http://oglobo.globo.com/cultura/livros/em-carta-aberta-professoras-da-ufrj-acusam-flip-de-
promover-arraia-da-branquidade-19600181

“Negra em Salão do Livro causa furor, diz autora brasileira”. In:


http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/03/1606652-negra-em-salao-do-livro-causa-
furor-diz-autora-brasileira.shtml

“Paulo Lins diz que há racismo na lista da Feira de Frankfurt”. In:


http://oglobo.globo.com/cultura/paulo-lins-diz-que-ha-racismo-na-lista-da-feira-de-frankfurt-
10280069

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TRADUÇÕES TRANSGRESSORAS: A IMPORTÂNCIA DA


TRADUÇÃO NÃO OFICIAL SOCIAL1 DE TEXTOS DE AUTORIA
NEGRA PARA O AMBIENTE ACADÊMICO

Adélia Mathias2

RESUMO: Existe, no Brasil, uma carência de traduções de autores negros da diáspora e


essa defasagem desfavorece a pluralidade epistêmica da academia que, por sua vez,
continua seguindo padrões eurocêntricos e hegemônicos. A entrada de um maior
contingente de estudantes negras/os nas universidades públicas brasileiras vem
impulsionando um diálogo cada vez maior com teorias e literaturas africanas e
afrodiaspóricas. Com isso, questões sobre tradução, empoderamento e contribuições
acadêmicas desses novos agentes e suas demandas são trabalhadas no presente artigo.

PALAVRAS-CHAVE: autoria negra; tradução social; empoderamento; literatura da


diáspora; diversidade.

ABSTRACT: There is a need for translations of black diaspora authors in Brazil, and this
void undermines the epistemic diversity of the academy, which in turn continues to follow
Eurocentric and hegemonic patterns. The admission of a significant group of black
students into Brazilian public universities pushes for an ever greater dialogue with
African and Afro-Portuguese theories and literatures. Thus this paper addresses issues
about translation, empowerment and academic contributions of these new agents and their
demands.

KEYWORDS: black authorship; diaspora literature; diversity; empowerment; social


translation.

Introdução

O tema deste artigo remete a um problema estrutural brasileiro: o racismo. Quando


pesquisadoras e pesquisadores abordam temas nos quais o sujeito racializado está em

1
A Tradução não oficial social é entendida neste artigo como tradução utilizada sem fins comerciais,
lucrativos ou de publicação. É feita por pessoas que apenas desejam difundir saber entre seus pares e
objetivam compartilhar conhecimento de forma pontual, visando ao empoderamento de pequenos grupos
de estudos.
2
Doutoranda em Literatura e Práticas Sociais pela Universidade de Brasília, pesquisa sobre a Literatura
Afro-Brasileira contemporânea, trabalha especialmente com a autoria de mulheres. Membro do Grupo de
Estudos Calundu sobre religiões afro-brasileiras e do Grupo de Pesquisa Vozes Femininas UnB/CNPq.
Email: adeliamathias@gmail.com

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pauta, não é possível se furtar da abordagem do racismo enquanto força estrutural e


estruturante na/da sociedade brasileira. Segundo a Organização das Nações Unidas
(ONU, 2013), “As injustiças históricas continuam afetando profundamente a vida de
milhões de afro-brasileiros e estão presentes em todos os níveis da sociedade brasileira.
Os negros do país ainda sofrem racismo estrutural, institucional e interpessoal”. Embora
minha área de atuação seja a literatura, escrever esse artigo é importante porque evidencia
a necessidade primária de traduções, para o português brasileiro, de textos literários e
também de textos teóricos que fazem tanta falta no ambiente acadêmico, seja para
alicerçar as demandas cada vez maiores de uma episteme negra nas universidades, seja
para ampliar a diversidade de saberes dentro deste espaço uni(di)verso que deveria ser a
universidade.
Abordar a escassez desses textos não significa dizer que não existiram projetos e
traduções de livros com autoria negra e/ou com temas caros para a população afro-
brasileira, pois, ainda que pontuais, elas figuram no mercado editorial. Para reconhecer a
existência dessas iniciativas podemos citar a experiência da editora Ática, que traduziu
obras de autoria negra dos anos de 1979 até o início dos anos 1990; a editora Nova
Fronteira, que publicou alguns romances africanos; a tradução de alguns dos romances de
Toni Morrison e até mesmo romances contemporâneos de autoria mais popular, como os
de Chimamanda Adichie e Uzodinma Iweala; ou, então, obras teóricas como O Atlântico
negro, de Paul Gilroy, Os condenados da terra e Pele negra, máscaras brancas, de Frantz
Fanon que, além de terem suas obras já esgotadas e sem reedições, seus exemplares são
difíceis de encontrar mesmo em sebos. Entretanto, é preciso levar em consideração o
quanto esses são projetos pontuais. Uma vez terminados, deixaram uma grande lacuna
nas demandas e evidenciam uma característica do modo operacional da academia
brasileira: se traduzem algumas poucas obras da diáspora negra para que se possa dizer
que elas existem e o trabalho de traduzi-las também, mas não mantêm constância nem
atualização das traduções para que elas tenham força o bastante para modificar o modo
como conduzem o mercado de produção e a disseminação de saberes no Brasil.
Os apontamentos e as possibilidades com os quais trabalho neste artigo pedem um
pouco mais de publicidade das questões que vêm afetando estudantes negras/os no
desenvolvimento de suas pesquisas, as quais habitualmente exigem delas/es um
investimento pessoal mais robusto e exaustivo, nem sempre necessário para quem

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trabalha com a produção de saberes hegemônicos, pois teorias que corroboram a


hegemonia são mais fáceis de serem encontradas e, graças à história educacional da
população negra no Brasil, estudantes afro-brasileiros têm menor contato com idiomas
estrangeiros durante sua vida estudantil (Gonçalves; Silva, 2000). Também não é objetivo
deste texto fechar um raciocínio perfeito, mas levantar questões inquietantes, adversas,
desafiantes e pouco compartilhadas nos espaços oficiais de debates acadêmicos: a
escassez das traduções de textos escritos de teoria e de literatura de autoria negra.

Pesquisa acadêmica: um lugar de não-negros

A despeito dos últimos 15 anos em que se pode falar sobre um projeto do Estado
brasileiro de inserção efetiva de estudantes negras/os no ensino superior, as universidades
e as pesquisas desenvolvidas pelos sujeitos nelas inseridos apontavam para uma gama de
diversidade extremamente limitada. Teorias, críticas e mesmo o corpus de análise de
grande parte das diferentes áreas de produção de saber vinham ganhando um tom
uníssono, muitas vezes incômodo para as/os próprias/os pesquisadoras/es. Na área de
literatura, da qual faço parte, por exemplo, a pesquisadora e professora Regina
Dalcastagnè alerta:

Ao interromper suas atividades e abrir um romance, o leitor


busca, de alguma maneira, se conectar a outras experiências de
vida. Pode querer encontrar ali alguém como ele, em situações
que viverá um dia ou que espera jamais viver. Mas pode ainda
querer entender o que é ser o outro, morar em terras longínquas,
falar uma língua estranha, ter outro sexo, um modo diferente de
enxergar o mundo. O romance, enquanto gênero, promete tudo
isso a seus leitores – que podem ser leitoras, que têm cores,
idades, crenças, instrução, contas bancárias, perspectivas sociais
muito diferentes entre si. Portanto, a promessa de pluralidade do
romance, um sistema de “representações de linguagens”, nos
termos de Bakhtin, envolve não só personagens e narradores(as),
mas também seus(suas) leitores(as) e autores(as). Reconhecer-se
em uma representação artística, ou reconhecer o outro dentro
dela, faz parte de um processo de legitimação de identidades,
ainda que elas sejam múltiplas. Daí o estranhamento quando
determinados grupos sociais desaparecem dentro de uma
expressão artística que se fundaria exatamente na pluralidade de
perspectivas. Assim, esta pesquisa tem início com um sentimento
de desconforto diante da literatura brasileira contemporânea,
desconforto causado pela constatação da ausência de dois

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grandes grupos em nossos romances: dos pobres e dos negros


(2005, p. 14).

A pesquisa realizada por Dalcastagnè aponta para o caráter hegemônico da


literatura brasileira: de 165 autoras/es, 72,7% dos autores são homens; 93,9% são
brancas/os; 78,8% têm nível superior e 90,3% são das capitais, sendo que mais de 60%
estão no Rio de Janeiro e São Paulo. Esses dados já indicam o problema da falta de
diversidade. Ainda assim, estes não deveriam ser definidores da falta de diversidade das
personagens, uma vez que o poder de se imaginar como o outro, independentemente das
problemáticas que daí poderiam surgir, é um pressuposto da literatura. Entretanto, os
dados das personagens ratificam o que os dados de autoria apresentam: das 1.245
personagens, 62,1% (773 em números totais) são homens e 79,8% (994) são brancas.
O trabalho como um todo é bastante consubstancial e nos encaminha para algumas
considerações importantes: seja como autoras/es, personagens e/ou pesquisadoras/es, o
número de agentes negras/os neste campo é invisibilizado, pois, em pesquisas 3 sobre os
Cadernos Negros4, é possível ver uma literatura com autoria afro-brasileira relevante e
volumosa, centrada nas diferentes histórias de personagens negras, que revelam a
pluralidade e diversidade desses sujeitos e isso, por sua vez, interrompe a ideia de que as
poucas personagens negras presentes na literatura tradicional são alegorias perfeitas para
estereótipos de toda população afro-brasileira. Essa questão, nesse sentido, interessa a
pesquisadoras/es negras/os de áreas distintas, como literatura, análise do discurso,
comunicação social, ciências sociais e ciência política, por exemplo.
Em sua pesquisa, também em andamento, Liliam Ramos da Silva, apresenta dados
consonantes com os encontrados por Dalcastagnè:

Segundo dados preliminares da pesquisa Vozes negras no romance


hispano-americano [...] no decorrer do século XIX foram publicados
16 romances que apresentavam protagonistas negros. Destes 16, a
produção cubana predomina com 9 textos abolicionistas e, no Brasil,
apenas em 2015 será lançada a primeira tradução do primeiro texto
publicado: Autobiografia do poeta-escravo por Juan Francisco

3
Como a que tenho desenvolvido no doutorado na área de Literatura e Práticas sociais da Universidade
de Brasília, ainda em andamento, com o foco na autoria de escritoras brasileiras negras e contemporâneas.
4
Os Cadernos Negros são uma série que publicam poesias e contos escritos por afro-brasileiros há quase
quatro décadas. Cada edição conta com a colaboração de diferentes escritoras/es, em um formato de
produção coletiva. Os Cadernos são um importante referencial de escritoras/es, bem como se configuram
como um espaço propício ao surgimento de novos talentos da Literatura Afro-Brasileira.

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Manzano. Textos importantes como Sab (1841), de Gertrudis Gómez


de Avellaneda e Cecilia Valdez (1882), de Cirilo Villaverde, referências
obrigatórias em pesquisas sobre o tema, parece que ainda não
despertaram o interesse em tradutores e/ou editoras brasileiras (2016, p.
80).

Além disso, constata que, para ser traduzidas para o português brasileiro, obras de
argentinos/as, caribenhos/as ou cubanos/as precisam passar primeiro por grandes centros
globais, de modo que, antes de virem para um país geograficamente tão próximo, como
é o Brasil, a obra precisa passar por Estados Unidos, Espanha ou França, por exemplo,
seguindo uma lógica de mercado empobrecedora para leitores/as brasileiros/as, pois,
muitas vezes, nos furta de uma tradução direta do idioma nativo da obra. Partindo do
princípio de que quanto menos interferência de tradutoras/es, mais próximos do texto
original e menos intervenções ideológicas estarão presentes, ter a possibilidade de
traduzir textos que passam primeiro por essas grandes potências culturais nos deixa a
mercê de modos de ver o mundo muito diferenciados do que poderia ser o de um
compartilhamento de epistemologias do sul, para exemplificar, pois nem sempre essa
perspectiva e suas sutilezas são captadas por quem vive na Europa ou é uma potência
mundial, como os Estados Unidos.
No quesito pesquisadoras/es brasileiras/os negras/os, sujeitos que mais procuram
a produção de saber de intelectuais negras/os da diáspora e, por sua vez, trazem essas
diferentes maneiras de compreender o mundo para o ambiente acadêmico, o número de
estudantes negras/os no nível superior era muito reduzido e ainda hoje não condiz com
seu número na sociedade brasileira. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), de 2004, apontam que o número de negras/os entre 18 e 24 anos na
universidade era de 16,7%; depois das ações afirmativas, dentre as quais figuravam as
cotas raciais em universidades públicas, esse número cresceu exponencialmente para
45,5% em 2014 entre o mesmo grupo. Embora tais dados sejam muito relevantes,
precisamos lembrar que a desigualdade no nível superior permanece, pois nesse mesmo
período o número de brancas/os, entre a mesma faixa etária, nas universidades era de
57,9% e avançou para 71,7%.
Por um exercício de analogia, se para Dalcastagnè a ausência de negras/os na
literatura costuma ser creditada à invisibilidade delas/es na sociedade brasileira –
fazendo-nos chegar à conclusão de que os grupos sociais hegemônicos são

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autorreferenciais e dão prioridade para o falar de si, de suas experiências e suas


problemáticas –, penso que o contingente de estudantes brancas/os da universidade
também tenha tais preferências e se utilize apenas do material teórico de seus pares. Na
minha dissertação comprovo que o número de grupos de literatura voltados para o sujeito
negro é irrisório, embora já existam.

Ao procurar o termo “literatura” na grande área de Linguística,


Letras e Artes5, constatei que, dos 770 grupos do diretório
nacional, sete grupos (0,90%) apresentam em sua descrição o
estudo de literaturas africanas e afro-brasileiras sem
especificação de gênero, um grupo não está atualizado (0,10%) e
dois grupos (0,25%) têm como objetivo a literatura de afro-
brasileiros/as de um modo geral, também sem especificação de
gênero; o grupo não atualizado tem uma descrição e isso não nos
permite saber precisamente seu campo de atuação; e não existe
ainda nenhum grupo de pesquisa literária voltado
especificamente para a mulher negra brasileira, nem no âmbito
da representação, muito menos no âmbito da autoria. Os dez
grupos de pesquisa encontrados correspondem a 1,29% do total
de 100% (770) grupos analisados, uma representação ínfima
(Mathias, 2014, p. 12).

Esse fragmento não ignora que autoras negras têm sido estudadas em grupos de
pesquisas de escritoras brasileiras, ou que escritoras negras não sejam estudadas nos dois
grupos de literatura afro-brasileira; apenas constata a marginalização da mulher negra no
campo do simbólico.
Seguindo ainda esta linha de raciocínio, é possível notar o porquê de a tradução
de autoras/es negras/os não ter sido um problema tão urgente quanto é neste momento,
em que o aumento de estudantes negras/os na graduação e pós-graduação nunca foi tão
grande. Para isso, preciso trazer o empirismo do sujeito negro acadêmico que sou e inserir
no artigo uma episteme da experiência.
Enquanto pesquisadora negra que atua em uma área cujas bases são diversas e
podem se apoiar em múltiplas teorias, tenho dificuldade de encontrar textos de teóricas/os
negras/os em português brasileiro na sociologia, na história, na teoria literária, na
filosofia, na educação, mesmo existindo autoras que produziram uma robusta
contribuição para essas áreas e, para exemplificar, cito mulheres negras teóricas, como

5
À época, tal consulta foi realizada na Plataforma da Capes.

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Audre Lorde, bell hooks, Patricia Hill Collins, Barbara Smith, Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí,
Grada Kilomba, dentre tantas outras. Noto a carência destas traduções de experiências de
sujeitos negros, especialmente de mulheres negras, que poderiam auxiliar em nossas
perspectivas e produções acadêmicas. Certamente, tais constatações são compartilhadas
com tantas/os outras/os pesquisadoras/es, sobretudo negras/os.
Enquanto leitora de literatura tenho grande dificuldade de encontrar livros de
autoria negra, sobretudo da América Latina, traduzidos, mesmo sabendo que essas obras
têm se destacado como grandes potências para uma literatura a partir do local de
enunciação de afrodescendentes, dentre as quais cito Juan Francisco Manzano, com sua
Autobiografía de un esclavo6, e Shirley Campbell Barr, com sua poesia feminista negra
bem representada pelo poema Rotundamente negra, de livro homônimo, publicado em
2013.
Entretanto, entendo que há um processo histórico que faz pesquisadoras/es
negras/os buscarem por essa autoria quase invisível nas universidades, chamado de busca
das raízes identitárias, bem ilustrada pelo movimento artístico negro da década de 1970
(Souza, 2005). Esse processo é viabilizado por pessoas negras porque é no saber empírico
de seu apagamento enquanto sujeito que se pode supor a existência de um mundo
ignorado ou silenciado por espaços majoritariamente brancos. Então, o que não fazia falta
nas universidades hoje é buscado como possibilidade de fôlego novo para revisar teorias
inadequadas para processos sociais brasileiros, uma vez que ignoravam, e muitas ainda
ignoram, um dos grupos raciais mais importantes na formação e no desenvolvimento do
país, os sujeitos negros, a saber, africanos/as e afro-brasileiros/as.
Pensando que na história educacional de negras/os brasileiras/os a dificuldade de
acesso ao ensino básico de qualidade é um problema histórico, uma vez que nossa
educação formal era majoritariamente voltada para a qualificação mínima de mão de obra
trabalhadora (Gonçalves; Silva, 2000). O domínio de língua estrangeira, por exemplo,
não fez parte, durante muitas décadas, do plano de ensino público, o maior reduto de
educação formal de afro-brasileiras/os e, quando finalmente se tornou disciplina no
ensino público, tinha como objetivo principal facilitar o manuseio de maquinário

6
Obra possivelmente escrita entre 1835 e 1839, que somente teve sua primeira tradução para o português
brasileiro em 2015, por Alex Castro. É um marco para a literatura de testemunho de escravizados na
América Latina e, a despeito de sua importância para a literatura do continente americano, levou quase dois
séculos para ser traduzido.

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estrangeiro. Por conseguinte, as/os estudantes que conseguiram chegar às universidades


encontravam e ainda encontram uma dificuldade a mais a ser sanada neste momento de
sua qualificação. Chegar ao ensino superior com tal defasagem faz a maioria das/os
estudantes investir individualmente na proficiência de línguas estrangeiras que lhes
permitam ler o cânone exigido pela academia e, muitas vezes, lhes furta a possibilidade
de enveredarem por descobertas outras, além do que lhes é apresentado na graduação.
Como as possibilidades nunca podem ser esgotadas há sempre um grupo que
consegue reunir os requisitos para seguir outros caminhos para além do que oferece
academia, criando novos percursos que acabam sendo o exercício de uma nova forma de
produzir saber. Não por acaso, ainda hoje grande parte das teorias de autoria negra ou não
ocidentais - leia-se de origem não europeia ou norte americana -, que chegam à
universidade, vêm de estudantes que apresentam para suas/seus professoras/es toda uma
riqueza de pensamentos ignorados por pesquisadores experientes. Com isso, o que
pretendo dizer é que estudantes de graduação negras/os estão produzindo além do que se
espera de um/a graduando/a porque trazem consigo necessidades com as quais a
universidade não está preparada para lidar e, em uma instância mais elevada, esta acaba
por ser uma grande contribuição para oxigenar o processo de pesquisa e descobertas de
novas possibilidades de ver, viver, experienciar e produzir saberes sobre o mundo.
Para não permanecerem como ilhas de saber, estudantes negras/os aptas/os para
lerem com qualidade, principalmente textos do inglês, francês e espanhol, ou as traduções
para essas grandes línguas-polo de difusão de teorias, começaram a criar estratégias de
tradução pessoal, muitas vezes não autorizadas, mas com o intuito de difundir os saberes
com maior facilidade por seus pares com menor domínio dos idiomas estrangeiros.

A tradução social como estratégia de resistência na pesquisa acadêmica

Chegar em um espaço institucionalmente elitizado e racialmente moldado como


ainda são as universidades brasileiras causa um grande impacto na subjetividade de
estudantes negras/os, pois historicamente este não é o Lugar de negro (livro), como bem
pontuam Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg (1982).
Empiricamente, posso dizer que a universidade é um dos espaços mais
desafiadores e opressores e, ao mesmo tempo, mais propulsores de mudanças radicais na

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vida de um indivíduo afro-brasileiro, em razão da lógica que opera nas universidades,


extremamente branca, em que o pensamento de alijamento é muito maior do que o de
pertencimento, uma vez que em nenhum dos grandes papéis se espera, ou até mesmo se
deseja, a presença de um corpo negro. Com a devida tradução cultural, West apresenta
esse dilema nos EUA:

A academia e as subculturas letradas contemporâneas apresentam mais


obstáculos para jovens negros intelectuais hoje do que há décadas atrás.
Isso acontece por [...] razões básicas. Primeira: as atitudes de
acadêmicos brancos na academia diferem daquelas dos seus pares do
passado. É muito mais difícil para estudantes negros, especialmente
estudantes da graduação, ser levados a sério como intelectuais e
acadêmicos em potencial. Contribuem para isso, o ethos administrativo
de nossas universidades e faculdades (em que menos tempo é gasto com
os estudantes) e as percepções vulgares (racistas), estimuladas pelos
programas de ação afirmativa que contaminam as relações entre
estudantes negros e professores brancos [...]
A tragédia da atividade intelectual negra é que o apoio institucional para
tais atividades ainda está engatinhando. A quantidade e a qualidade da
troca entre intelectuais negros nunca esteve tão ruim desde a Guerra
Civil. Não há um grande jornal acadêmico negro, não existe uma
grande revista intelectual negra ou um grande periódico, voltados para
intelectuais negros, nem tampouco um grande jornal negro de
circulação nacional (1995, p. 3-4).

No Brasil, a questão parece ser um pouco mais sensível porque não existiu um
tempo menos difícil para ser intelectual no país. Foi no início dos anos 2000 que um
número expressivo de afro-brasileiras/os teve a oportunidade de conseguir o
reconhecimento formal de sua intelectualidade. Antes disso, ainda que o movimento
negro e as irmandades negras produzissem seus intelectuais, ainda que as/os griots
continuassem a passar seus saberes por meio da oralidade, essas pessoas nunca foram
socialmente reconhecidas como pessoas dotadas de saber e conhecimento o bastante para
serem respeitadas e consideradas importantes agentes sociais, ainda que efetivamente o
fossem, ao fomentarem o estudo formal, a alfabetização em massa e o empoderamento
do movimento organizado de afro-brasileiras/os.
Dentre os desafios já apresentados, cuja raça se mostra o componente essencial, o
sentimento de não pertencimento leva estudantes negras/os universitárias/os a
aprenderem outras línguas para acompanharem as leituras hegemônicas. O
empoderamento de dominar outro idioma, somado à dupla consciência dos sujeitos

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diaspóricos do Atlântico Negro (Gilroy, 2001), os fazem buscar outras bibliografias para
além do que a academia oferece. Nessa busca pessoal, para encontrar textos que não
constam nas historiografias oficiais, ou no circuito privilegiado da produção de saber,
esses novos agentes trazem para a universidade novas possibilidades, perspectivas e até
mesmo epistemologias.
É a partir de questionamentos individuais que uma nova dinâmica se instaura
diante da possibilidade de trazer para o debate teorias não traduzidas e desconhecidas pela
universidade em seus trabalhos, dissertações e teses. Nessa perspectiva, percebe-se a
postura de que a tradução das citações diretas é parte importante para o público leitor do
trabalho. Assim, estudantes que começaram aprendendo a ler teoria para embasar suas
argumentações passam, aos poucos, a se tornarem tradutores, ainda que limitadamente e
sem dominar a teoria da tradução necessária e compatível com o grau de complexidade
exigido nas traduções oficiais. Os idiomas mais traduzidos são os dos grandes centros já
citados, portanto, inglês, francês e espanhol. Obviamente, algumas vezes não se tem
contato com o idioma original de determinadas obras escritas, mas é possível encontrar
traduções para uma dessas línguas e, a partir daí, fazer suas próprias traduções com
objetivos específicos e pontuais.
Se, durante séculos, a população afro-brasileira foi objeto de estudos, sem
possibilidade nenhuma de falar por si nos espaços universitários, ao fazer parte desse jogo
social, falar sobre si, seu grupo, suas histórias e suas perspectivas tem se mostrado um
trabalho muito elaborado por estudantes negras/os, um dado fácil de notar devido ao
aumento no número de teses e dissertações com temática racial nos bancos de dados das
universidades que adotam o sistema de cotas raciais.
Na busca pelo entendimento de si enquanto sujeito, as mulheres negras, maioria
nas universidades, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2014),
encontraram nos feminismos e nos Estudos Culturais as teorias com maior consonância
com o que buscavam, pois derivam delas os estudos revisionistas e propostas de busca e
releitura de clássicos à luz de novas perspectivas.
Uma vez aberta essa possibilidade de atuação, as mulheres negras se depararam
com um mundo de teorias afro-estadunidenses dos feminismos e, junto com mulheres não
negras, conseguiram negociar espaços de traduções para pequenos grupos de estudos
cujos objetivos eram capacitar as integrantes com o que existia acerca do assunto sem que

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fossem necessárias tantas décadas, ou mesmo séculos, para que brasileiras tivessem
acesso às teorias de pessoas negras da diáspora, sobretudo de mulheres. Os grupos
secretos que crescem exponencialmente nas redes sociais ilustram tal afirmação:
mulheres tem traçado e desenvolvido estratégias alternativas e cuidadosas de se
empoderarem, fortalecendo-se mutuamente e multiplicando formas de circular e trocar
saberes não hegemônicos.
Nestes grupos de estudos autoras/es como Deborah King, Stuart Hall, Shirley
Campbell Barr, Frantz Fanon, Angela Davis, Audre Lorde, Cornel West, bell hooks,
Patricia Hill Collins, Barbara Smith, autores/as das Antilhas e de Cuba, assim como
francófonas/os, etc, começaram a ser traduzidos com fins não comerciais. Com a ideia de
livre circulação de saber, essas iniciativas que pareciam isoladas cresceram em tal
proporção que grupos feministas de fora do ambiente acadêmico, mas dentro da militância
social, passaram também a se apropriar desse material. As personagens condutoras desse
trânsito são mulheres e homens negras/os, que têm transitado tanto em espaços de lutas
sociais do movimento negro quanto nos espaços acadêmicos. Diante do crescimento da
demanda e da ferramenta extremamente útil que é a internet, espaços virtuais de
compartilhamentos dessas traduções começaram a pulular e quem aprendeu a lidar com
essa novidade teve finalmente a possibilidade de ler e armazenar materiais que antes
levavam até 100 anos para serem disponibilizados - isso quando eram traduzidos. Há,
então, uma espécie de tradução social, com objetivo limitado de acessos a traduções que
não se querem comerciais, nem de grande alcance ou duração, pois, na maioria das vezes,
esse trabalho importa apenas a um grupo de estudos.
A partir de então, motes empoderadores de Audre Lorde, como “as ferramentas
do senhor nunca desmantelarão a casa grande” (e outras variações de traduções livres) ou
“não há hierarquia de opressão” são reproduzidos com o mesmo eco nos diferentes
sujeitos afro-brasileiros que os encontram pela primeira vez, apesar do passar dos anos,
na internet. O conceito de imagens de controle ou imagens controladas, cunhado por
Patricia Hill Collins (2000), que explica a importância dos papéis simbólicos das
mulheres negras nas artes para a manutenção da sociedade racista e quais as estratégias
utilizadas para combatê-las; ou, ainda, o mais recente debate, feito no livro da filósofa
nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (2011), que coloca conceitos tradicionais do feminismo
ocidental em questionamento, são facilmente encontrados na própria web, citados em

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trabalhos acadêmicos e também em conversas menos formais em ambientes onde grupos


negros se reúnem. Tais avanços quanto às teorias de autoria negra só aconteceram graças
a esses movimentos individuais e coletivos de tradução acontecendo simultaneamente.
Entretanto, em um dado momento, pessoas não negras começaram a submeter
traduções desses textos às revistas acadêmicas. Capítulos de livros teóricos e ensaios de
autoras/es negras/os começaram a ser publicados com traduções feitas por um público
não negro e tradutoras/es negras/os começaram a notar que, mesmo diante de uma
situação em que não procuravam reconhecimento, seus textos estavam sendo apropriados
por outras pessoas e seus trabalhos enquanto sujeitos negros eram apagados também.
Essa situação ainda deixa alguns/mas tradutores/as autônomos/as em situação
desconfortável, pois a atitude política de pontuar a existência de negras/os capazes de ler
e traduzir textos de outros idiomas com qualidade específica, muitas vezes compartilhada
apenas pelos afrodescendentes da diáspora, se perde e, mais uma vez, a população afro-
brasileira não toma como seu um lugar importante em um ambiente tão eurocentrado.
Nesta situação também estão envolvidos outros aspectos, como a autoconfiança e a
autoestima, tão minadas cotidianamente nas relações raciais. Por medo ou certa timidez,
muitas das nossas traduções não são publicadas, ou não são pleiteadas. Assim, a história
oficial mantém os sujeitos brancos como grandes propagadores e multiplicadores do
saber, mesmo este que advenha de perspectivas negras.
Tatiana Nascimento, uma das melhores tradutoras de autoras racializadas como
bell hooks e Audre Lorde, fala sobre isso em sua tese:

Aconteceu que publiquei um texto traduzido por uma ativista de


Brasília, e por algum motivo apaguei os créditos da tradutora. Ela veio
me perguntar porque eu tinha feito aquilo, um ato meio automático (já
que eu não assinava minhas próprias traduções e garantia o máximo de
distanciamento e não responsabilização usando a alcunha “tradução
livre” em nota de rodapé), e me disse como era importante que o
trabalho das mulheres negras não fosse invisibilizado.
Assim foi que comecei a pensar mais metodológica e
epistemologicamente como tradução – a partir da compreensão de que
um texto traduzido é uma retessitura, uma retextualização, feita por
alguém, feita desde algum lugar, algum contexto político, histórico,
étnico, sexual, generado... Do aspecto coletivo das produções de
tradução que eu fazia, fui migrando para uma dimensão mais autoral,
em que os textos não só eram traduzidos por mim – mas traduziam
muito de quem eu era, de como eu me constituía (2014, p. 19-20).

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Diante do que ela nos apresenta, o processo de tradução nos parece ser também
um processo no qual as/os tradutoras/es negras/os se reconhecem nos textos, se
comunicam com o original e podem passar essa subjetividade que, enquanto sujeitos
negros da diáspora, nos é constantemente negada. O religare proposto pelas religiões
pode ser também exercido nessa prática que conecta diferentes sujeitos da diáspora negra
espalhados pelo Atlântico Negro e que carregam consigo um fio condutor em comum. O
processo de circulação do texto entre autor/a, tradutor/a e leitor/a negro/a carrega consigo
uma carga semântica muito diferente do processo tradicional de tradução, pois
compartilha histórias e (re)constrói uma relação de ancestralidade a partir de uma relação
bastante inusitada, mas que comunica todo um processo de silenciamento histórico, o qual
somente pessoas negras da diáspora conseguem alcançar graças à história de colonização
sofrida pelo imperialismo.
Um exemplo de que essa tradução se dá de forma diferente, conforme os sujeitos
responsáveis pela tradução e, por isso pode ter resultados diferentes, é apresentado por
Jéssica de Jesus quando ela fala sobre a tradução domesticadora do livro Jubiabá (1935),
de Jorge Amado, para o castelhano:

[...] a tradução domesticadora dos itens gastronômicos (acarajé e abará)


que se tornaram “bolo” e “doce de arroz”. Ninguém soube dizer o que
virou o que, já que ambos os termos se afastam muito do que, de fato,
são os pratos típicos da capital baiana. As escolhas tradutórias se
justificam no contexto de facilitação da leitura para o público alvo que,
por sua vez, também perdem a oportunidade se encontrarem com a
diversidade culinária do mundo. Entretanto, o que mais me chamou a
atenção foi a inclusão do adjetivo “primitivos” para descrever os
instrumentos musicais. Não há no excerto de Amado essa
caracterização, pois entende-se que tais itens estão presentes em
contexto brasileiro. Pode-se compreender o grande desafio que a
tradução de uma obra tão marcada culturalmente se constitui para o
tradutor, porém, ao escolher incluir a palavra “primitivos” ao texto de
Jorge Amado, o mesmo revela uma mentalidade exotificadora e racista,
uma vez que opta por descrever instrumentos musicais de origem
africana e indígena através da marcação da inferioridade no jogo binário
e vertical ocidental entre “elaborado”, “avançado” versus “primitivo”,
“atrasado”. Assim a tradução acaba reforçando estereótipos de que
sujeitos negros estariam mais próximos do rústico, do ultrapassado etc.
O tradutor é europeu e não foge à tradição europeia de “traduzir” seu
“outro” sempre a partir de seu sistema de valores, re-produzindo ad
nauseum dicotomias nas quais o que é europeu é superior e o diferente
dele mesmo sempre, inferior (2016, p. 4).

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Desse modo, podemos ver que a tradução pode apoiar a formação de identidades
e/ou estereótipos, tanto por meio da seleção dos textos estrangeiros que serão traduzidos
quanto através da adoção de estratégias discursivas para traduzi-los.
Como todo processo social, a tradução de autores negros é complexa, tem seus
percalços e não segue de forma linear, entretanto, o mais importante a dizer neste
momento é que, assim como o quilombismo, de Abdias do Nascimento (1980), a ideia
primeira de resistência em conjunto tem norteado as práticas de tradução de textos
acadêmicos. Aprendemos historicamente o quanto a atividade coletiva tem força em
nossa história, seja pelos próprios Quilombos, pelos Cadernos Negros, pelas traduções
coletivas e compartilhadas em grupos de estudos, pelos movimentos de mulheres negras,
ou pelo Movimento Negro Unificado.
Para os sujeitos negros inseridos na universidade, esta é mais uma forma de
resistência a um mundo racializado, que já está dado desde quando nascemos e que é
extremamente cruel, deixando poucas alternativas de interação que não pareçam
opressivas aos sujeitos não brancos nem nos deixem sempre em situação de inferioridade
em relação ao nosso outro. Leitura, compartilhamento e (re)criação de novas perspectivas
epistêmicas a partir de outros sujeitos que também vivem literalmente na pele essa
condição fazem com que trazer autoras/es negras/os para o ambiente eurocêntrico, que
ainda é a universidade brasileira, seja nossa agência dentro de um legado de melhoria de
condições de vida para as futuras gerações afro-brasileiras. Simultaneamente, esse
processo transforma a nós mesmas/os pela experiência de viver algo proporcionado pelas
gerações negras anteriores, cujos trabalhos resultaram, finalmente, em nossa presença em
um importante espaço da elite intelectual brasileira.
Traduzir não oficialmente textos de autoria negra para fins acadêmicos tem sido
de grande importância como ato de resistência ao racismo epistêmico, tão tradicional no
modo de produzir e reconhecer como legítimos determinados saberes em detrimento de
tantos outros, forçadamente silenciados, como bem ilustra Kilomba (2016), em sua
analogia sobre a máscara de flandres imposta à escrava Anastácia e tantas/os outras/os
escravaizadas/os, sob o pretexto de evitar o consumo de alimentos, mas que encontra seu
intuito mais importante em silenciar de forma extremamente violenta o povo colonizado.

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Um cenário em reconfiguração

Quando se procura referências em bibliotecas universitárias brasileiras, físicas ou


virtuais, quando se pede às/aos professoras/es destes espaços alguma outra teoria com
perspectiva distinta da teoria hegemônica e/ou canônica, já se sabe que a dificuldade de
encontrá-la é muito grande, mesmo que não sejam de autoria negra, mas apenas de
sujeitos racializados7, pois há uma história na consolidação do que é reconhecido como
saber legítimo. Essa história não é natural como muitos tendem a acreditar, uma vez que
é racionalizada por um saber que se sobrepôs a outros, mas que, de tão repetida e
praticada, foi naturalizada a ponto de parecer que a produção e a aceitação do saber
sempre foram assim.
Ainda que tenham insights de que há algo muito ruim em um espaço acadêmico
que privilegia pessoas brancas que, por sua vez, se autorreferenciam, professoras/es e
pesquisadoras/es brasileiras/os começam agora a se imporem o bastante com vozes
marginais e a reconhecerem que não são tão equivocadas para ficarem de fora de suas
análises. Não coincidentemente, essa nova percepção não se dá apenas em virtude de
tempos nos quais a entrada massiva de estudantes negras/os na universidade se tornou
uma realidade, mas também porque esses sujeitos trazem questionamentos e demandas
novas para o então grupo dominante desse espaço elitizado. Uma vez que este não tinha
como responder aos questionamentos e muito menos dar conta do que lhe era
apresentando, os sujeitos da universidade, estudantes e professoras/es, têm se alertado
para o que a pesquisadora Grada Kilomba escreve:

Quem pode falar? Quem não pode? E acima de tudo, sobre o que
podemos falar? Por que a boca do sujeito Negro tem que ser calada?
Por que ela, ele, ou eles/elas têm de ser silenciados/as? O que o sujeito
Negro poderia dizer se a sua boca não estivesse tampada? E o que é que
o sujeito branco teria que ouvir?
Existe um medo apreensivo de que, se o/a colonizado/a falar, o/a
colonizador/a terá que ouvir e seria forçado/a a entrar em uma
confrontação desconfortável com as verdades do ‘Outro’. Verdades que
supostamente não deveriam ser ditas, ouvidas e que “deveriam” ser
mantidas "em silêncio como segredos". Gosto muito dessa expressão,
“mantidas em silêncio como segredos”, pois ela anuncia o momento em
7
Sujeitos racializados são todas as pessoas que não fazem parte da branquitude que, por sua vez, tem o
privilégio de ser compreendida como regra, como norma. Desse modo, qualquer pessoa não pertencente a
esse grupo que se autodenomina a medida de todas as coisas é um sujeito racializado.

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que alguém está prestes a revelar algo que se presume não ser permitido
dizer (o que se presume ser um segredo). Segredos como a escravidão.
Segredos como o colonialismo. Segredos como o racismo.
O medo de ouvir o que possivelmente poderia ser revelado pelo sujeito
Negro pode ser articulado com a noção psicanalítica de repressão, uma
vez que a repressão “consiste em afastar algo e mantê-lo à distância do
consciente.” (Freud 1923, p. 17). Este é o processo pelo qual certas
verdades só podem existir (na profundidade do oceano, bem lá no
fundo) no inconsciente, bem longe da superfície – devido à ansiedade
extrema, culpa ou vergonha que elas causam. Imaginem um iceberg
flutuando na água azul, todas as verdades reprimidas ainda estão lá,
porém imersas e reprimidas na profundidade. Ou seja, o sujeito sabe,
mas quer tornar (e manter) o conhecido, desconhecido. (2016, p. 2,
grifos da autora).

Quando lidamos com a (não) tradução de autoras/es negras/os na universidade


brasileira, temos que reconhecer a existência de mais um aspecto da colonização racial, o
racismo epistêmico. Este tem deixado de fora um número cada vez maior de autoras/es
negras/os de suas pesquisas, percepções, trabalhos institucionais e, com isso, tem deixado,
há décadas, de atender a demandas sociais importantes, pois ignora mais da metade dos
sujeitos brasileiros, como se eles não existissem ou não tivessem necessidades
diferenciadas.
Entretanto, estudantes negras/os e as questões existenciais que trazem para a
universidade têm apontado o quão equivocado e inadequado é o estágio da recusa em
reconhecer o preconceito racial na produção de saber, não pelas vias do embate sobre
quem está certo ou errado, mas por meio de suas experiências de silenciamento em todos
os outros espaços. Essas pessoas desconfiam das teorias já postas e vão atrás de outras
abordagens capazes de dar conta de suas experiências e perspectivas. Por meio disso,
acabam diversificando os saberes, renovando o próprio processo de produzir
conhecimento e circulá-lo e, por fim, apresentam uma nova postura diante de teorias e
literaturas ignoradas por falta de interesse ou desconhecimento.
É verdade que o sujeito da branquitude, isto é, pessoas brancas que aproveitam de
sua brancura para torná-la um status de normatização social, muitas vezes não se interessa
em nada além do que lhe mantém como elite de um sistema social, mantendo a hegemonia
já posta pelo processo de colonização. Acontece que toda sociedade se transforma no
espaço e no tempo e, nesse sentido, discursos contra-hegemônicos que, em outros
momentos, eram descartados ou silenciados não podem mais ser contidos, pois cada vez

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mais os sujeitos racializados, sobretudo negros, têm se qualificado. Por meio de


interações cada vez mais globais, eles têm se qualificado para não mais serem retratados
como objetos de estudo sem capacidade de organização e/ou transformação de si, como
a visão romântica da donzela que espera ser salva por alguém. Assim, começam a serem
finalmente reconhecidos como agentes de suas próprias histórias e agora dotados do poder
de serem ouvidos e ouvidos com respeito, como Spivak (2010) diz: é preciso o subalterno
ser ouvido para que efetivamente o processo de comunicação seja efetivado com êxito.
Há uma mudança no cenário das traduções de autoria negra e, se em outro
momento, era possível negar a existência dessa autoria ou se recusar a traduzir autoras/es
negras/os, a entrada de estudantes afro-brasileiras/os nas universidades que o fazem sem
precisar da autorização ou tutela de pesquisadores/as e professores/as evidencia a
necessidade de uma reconfiguração no modo estrutural de as universidades, sobretudo
públicas, incluírem diferentes perspectivas de sujeitos não eurocentrados. Esses sujeitos
têm muito a contribuir na problematização e na busca de soluções às novas demandas que
elas/es mesmas/os trazem, por serem sujeitos que outrora tinham suas existências e
questões ignoradas, como se não existissem ou não fossem importantes o bastante para
merecerem ter suas complexidades estudadas como indivíduos compositores de uma
comunidade não exotizada.

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TOBIAS BARRETO, AGENTE NEGRO DE TRADUÇÃO

Roch Duval1

RESUMO: “Tobias Barreto, agente negro de tradução” visa destacar a contribuição do


filósofo, tradutor e visionário mestiço, natural do estado de Sergipe, não só na história da
tradução no Brasil como também na formação de um pensamento identitário tipicamente
brasileiro. Neste sentido, mostra-se que o qualificativo “agente de tradução” convém
perfeitamente a Tobias Barreto. O que há de particular em seu trabalho é que ele próprio se
implicou em todas as etapas do processo tradutório, seja pela tradução stricto sensu — como
transferência linguística — até a difusão de suas obras — enquanto produto material, objeto
reificado —, passando pela confecção material destas — a impressão, a paginação etc. A
partir da década de 1870, o projeto tradutório de Barreto toma uma direção essencialmente
voltada para a promoção do germanismo. O artigo apresenta os suportes e as consequências
dessa posição ideológica.

PALAVRAS-CHAVE: Tobias Barreto, agente de tradução, germanismo, transferência


linguística

RESUME: « Tobias Barreto agente negro de tradução » vise à mettre en relief l’apport du
philosophe, traducteur et visionnaire métis, natif de l’État du Sergipe, dans l’histoire non
seulement de la traduction au Brésil mais également dans la formation d’une pensée
identitaire typiquement brésilienne. En ce sens, il ressort que l’épithète « agent de traduction
» convient parfaitement à Tobias Barreto. Ce qu’il y a de particulier chez lui, c’est qu’il a été
impliqué dans toutes les étapes du processus traductif lui-même, soit de la traduction stricto
sensu - comme transfert linguistique – jusqu’à la diffusion de ses œuvres – en tant que produit
matériel, objet réifié – en passant par la confection matérielle – l’impression, la mise en page,
la pagination, etc. – de ces dernières. À partir de la décennie des années 1870, le projet
traductif de Barreto prend une direction essentiellement vouée à la promotion du
germanisme. Le présent article présente les tenants et les aboutissants de cette position
idéologique.

MOTS-CLÉS: Tobias Barreto, Agent de traduction, germanisme, tansfert linguistique.

1
Tradutor e agente psicossocial especialista em prevenção do suicídio e em suicidiologia. Tem Doutorado em
Filosofia pela Université de Montréal (1994), Mestrado em tradutologia (2007) e, em 2015, defendeu a tese de
Doutorado em tradutologia pela Université de Montréal. O tema da tese foi uma análise da influência do filosofo
alemã Max Bense sobre a teoria de tradução de Haroldo de Campos. Foi leitor em tradutologia nos cursos de
graduação e pós-graduação na Université de Montréal.

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Wir sehen auf den ersten Blick, dass wir einen Mulatten
vor uns haben, wie man deren in allen amerikanischen
Ländern mit gemischter europäischer und afrikanischer
Bevölkerung viele trifft und ihre Intelligenz zu bewundern
vielfach Gelegenheit findet. Die ungewöhnlich hohe
Stirn, das geistvolle Auge, der entschlossene Zug um den
Mund lassen uns nicht lange unklar darüber bleiben,
dass sich auch hier eine Summe von Intelligenz verkörpert,
hat, der wir unser Interesse, unsere Achtung nicht
versagen können.können.

(Wäldler 1879b, 703).2

O presente ensaio tem como objetivo primeiro apresentar o papel fundamental


desempenhado pelo afro-brasileiro Tobias Barreto de Menezes (1839-1889) na introdução
de uma nova mentalidade na espitémê – na acepção foucaltiana do termo – vigente na
segunda metade do século XIX no Brasil. Uma tal tarefa de renovação intelectual e cultural
sem precedentes, que poderíamos mesmo chamar de “ruptura epistemológica”, iniciada pelo
filósofo sergipano, teria sido impossível sem seu papel de mediador intercultural entre a
civilização brasileira e a alemã. Forçosamente, apesar de sua origem social e étnica, é preciso
admitir que Tobias Barreto ganha plenamente o direito de ser mencionado na historiografia
da tradução no Brasil não só como tradutor hors pair ou inigualável, mas também como
agente de tradução, isto é, como fabricante entusiasta do seu próprio sucesso. No seu tempo,
tendo em conta o seu conhecimento da língua alemã, Barreto estava entre alguns poucos afro-
brasileiros – ou até mesmo entre os brasileiros de ascendência europeia – que tinham
conseguido elevar-se ao nível de agente de tradução. Neste sentido, o “mulato” de condição
social humilde – digníssimo representante da chamada “fulgurante plebe intelectual”3,
segundo a expressão consagrada do político e ensaísta Gilberto Amado (1887-1969) – foi

2
“Logo ao primeiro olhar, era visível que, diante de nós, se encontrava um mulato, como em todos os países
do Novo Mundo onde ocorre com frequência uma miscigenação entre a população europeia e africana. Além
disso, tivemos muitas vezes a oportunidade de admirar a sua inteligência. A fronte excepcionalmente alta, o
olho sagaz, a boca bem desenhada não deixam dúvidas sobre o fato de que uma riqueza de conhecimentos está
concentrada aqui e isso não escapou a nossa curiosidade e a nossa atenção”. (Todas as traduções são minhas
salvo indicação em contrário. Para facilitar a leitura, a ortografia foi atualizada segundo a norma atual).
3
“A expressão ‘fulgurante plebe intelectual’ é exata e feliz para caracterizar os bacharéis, tantos deles de origem
humilde e vários, negroides, que, com a fundação dos cursos jurídicos, foram aparecendo na sociedade brasileira
como nova e considerável elite, compensada pela cultura intelectual e jurídica nas deficiências de sua posição
social e na inferioridade de sua condição étnica” (FREYRE, 1977, p. 626). Ver também (CORDEIRO, 1997, p.
65); (COSTA, 2006, p. 239); (ALMEIDA, 2008, p. 57-65).

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um despertador de consciência cujo mérito é conveniente recordar aqui, para que ele não caia
no esquecimento.

1. Tobias Barreto, agente de tradução


Sem qualquer dúvida, Tobias Barreto foi a personificação paradigmática e avant la
lettre do que poderíamos designar hoje como “um agente de tradução”. Nosso objetivo é
demonstrar que a influência da práxis dos chamados agentes de tradução está
indissociavelmente ligada a meios físicos e materiais especialmente concebidos e
desenvolvidos para servir como canais ou vetores de propagação com vista a realizar um
projeto tradutológico concreto, determinado e bem definido. No caso de Tobias Barreto, sua
tarefa tradutológica teria sido inconcebível sem a criação de meios impressos particulares –
nomeadamente jornais e revistas publicados muitas vezes às suas próprias custas – de um
determinado tipo que serve para assegurar a materialidade do texto, segundo a expressão de
Barbara Folkart (FOLKART, 1989). Para tal propósito, como escreveu o jornalista e
historiador Luiz Antônio Barreto (1944-2012):

Poucos intelectuais brasileiros se valeram tanto e de forma tão íntima e definitiva da imprensa como
Tobias Barreto. Foi redator, editor, diretor, colaborador de jornais e de revistas, deixando seu nome
em pelo menos 32 periódicos pernambucanos (BARRETO, 1987b, p. 3).4

A história nos ensina que foi em princípios de 1871, depois de vários insucessos tanto
pessoais quanto profissionais, que Barreto resolveu mudar-se para Escada, zona da mata sul
de Pernambuco, a cerca 60 quilômetros do Recife. Segundo Hermes Lima (1902-1978), esta
decisão foi “o ato mais calculado da vida de Tobias’’ (LIMA, 1939, p. 21). Para confirmar
esta afirmação do político, jornalista e ensaísta baiano há que fazer menção de alguns fatos
significativos. Em primeiro lugar, importa salientar que foi em Escada que nosso sergipano
aprofundou, como autodidata5, seu conhecimento da língua e da cultura alemã (PAIM, 1999,

4
Ao número dos 32 jornais pernambucanos devem ser acrescentadas 11 publicações exclusivamente de
responsabilidade do próprio Barreto – algumas das quais foram de curta duração – além de 3 jornais editados
em língua alemã (igualmente precários). Ver (Barreto 1987b, 3). Ver também (Carvalho 1908). “Dos 32
periódicos listados, apenas 23 podem ser encontrados” (Barreto 1987b, 3).
5
O autodidatismo de Barreto foi concomitantemente uma força e uma fraqueza: “Tobias padeceu de todos os
males do autodidatismo. [...] Faltou-lhe viver num meio em que o saber se movesse objetivamente” (LIMA,

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p. 102). Como observa o falecido Luiz Antônio Barreto (1940-2012)6, foi em Escada que o
filósofo sergipano “se lança ao domínio da língua e da cultura alemã” (BARRETO, 1994, p.
87). O que impressiona em seu aprendizado da língua alemã é o fato de Tobias Barreto ter
conseguido produzir textos adequados em estilo elevado de acordo com o estilo acadêmico
da época.

Ele nos comunicou que nunca saiu do Brasil, e é um autodidata no verdadeiro sentido da palavra, visto
como não recebeu aqui instrução alguma quanto ao alemão. Tanto mais maravilhosa é a perseverança
com que ele apropriou-se, não só do uso da língua estrangeira, mas também do grande tesouro da
ciência alemã, de que dão testemunho seus trabalhos literários (NASCIMENTO, 1966, 19).

Assim, não é por acaso que o filósofo sergipano publicou vários escritos (ou seja,
cartas, livros, ensaios) em alemão. A esse respeito podemos mencionar, segundo uma ordem
cronológica, as obras alemãs seguintes: o jornal Der Deutscher Kaempfer7 [O lutador
alemão] (1875); Brasilien wie es ist in Literarischer hinsicht betrachtet [O Brasil tal como é
do ponto de vista literário] (1876); Ein offener Brief an die Deutsche Presse [Carta Aberta à
Imprensa Alemã] (1878). Cabe aqui notar também que Tobias Barreto publicou artigos
(redigidos em alemão) no Koseritz Deutsche Zeitung de Carlos von Koseritz, em Porto
Alegre, e no jornal Germânica, de São Paulo8.
É de todo conveniente insistir na inclusão de Tobias Barreto entre os agentes de tradução.
Mas o que significa exatamente o termo “agente de tradução”? De modo geral, na língua
usual, um agente designa uma pessoa singular ou uma entidade coletiva (BRATMAN, 2009)
que opera, que atua, ou o que é capaz de executar tanto uma ação quanto uma alteração
material em um estado de coisas (matter of facts). Em outras palavras, um agente é a causa
principal ou o princípio motor ou eficiente (para utilizar aqui um termo da filosofia de

1939, p. 108). “Tal deficiência é o fruto de seu autodidatismo em meio intelectual desprovido de uma
comunidade científica e de instituições apropriadas para o desenvolvimento da erudição e cultura filosóficas”
(SUCUPIRA, 1994, p. 116). Um dos pontos fracos do domínio da língua alemã em Tobias Barreto era a
expressão oral: “Os problemas só apareciam no momento da comunicação verbal... ” (COSTA, 2006, p. 239).
6
Luiz Antônio Barreto, antigo ocupante da Cadeira número 28 da Academia Sergipana de Letras, nasceu no
munícipio de Lagarto (Sergipe) e foi o fundador e diretor do Instituto Tobias Barreto (ITB), localizado no
segundo andar da biblioteca central da Universidade Tiradentes, na Farolândia (bairro de Aracaju). A diretora
atual do ITB é Raylane Andreza Dias Navarro Barreto, viúva de Luiz Antônio Barreto.
7
Citamos textualmente o título do jornal. De acordo com as normas atuais, a grafia é Deutscher Kämpfer.
8
Em 1883, no Diário de Pernambuco, Barreto publicou cartas de apoio de diversos autores alemães que
elogiaram seu trabalho intelectual.

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Aristóteles)9 de uma mudança intencional (ou seja, desejada ou planificada) numa coisa ou
no estado do mundo. Do ponto de visto filosófico, um “agente” designa o princípio ou sujeito
de uma ação. Assim, um agente é considerado essencialmente responsável por um
determinado ato. Agora, temos de especificar o que é um “agente tradutor”. Segundo a
definição de Juan Carlos Sager, um agente de tradução designa todo indivíduo que se
encontra “in an intermediary position between a translator and an end user of a translation”
(SAGER, 1994, p. 321). Embora seja verdade que existe em Tobias Barreto uma certa
superposição dos papéis de tradutor stricto sensu e de difusor/editor de sua própria obra, seu
exemplo permite definir melhor as características do termo “agente de tradução” e definir
com maior clareza o seu âmbito de aplicação. Assim, de maneira geral, um agente de
tradução designa um intermediário ou qualquer outro vetor que tem um caráter instrumental
– mas essencial – na divulgação, na difusão ou na preservação (conservação) de uma obra
em que uma tradução foi usada como forma especifica para alcançar e influenciar uma
cultura-alvo e, do mesmo modo, promover os interesses literários, políticos, estéticos e/ou
pessoais de todos os intervenientes no processo de transferência. “These agents may be text
producers, mediators who modify the text such as those who produce abstracts, editors,
revisors and translators, commissioners and publishers” (MILTON e BANDIA, 2009, p. 1).
Em outras palavras, os agentes de tradução são mediadores cuja atividade principal visa
transferir “sapere in movimento” [saber em movimento] (CANGEMI, 2012, 96).

2. Estratégia de apropriação da cultura alemã pela tradução


Tendo em conta as considerações acima, não há duvida de que em Tobias Barreto o
papel de agente de tradução assumiu contornos característicos. Devemos mencionar, em
primeiro lugar, que Tobias Barreto desempenhou um papel ativo no processo de tradução de
obras alemãs no último quarto do século XIX. Para entender a singularidade de Barreto no
panorama tradutológico brasileiro propomos que se utilize uma distinção estabelecida por
Cay Dollerup. O tradutólogo argentino de origem dinamarquesa estabelece uma diferença
entre, por um lado, translation as imposition [tradução como imposição] e, por outro lado,

9
Andrew Chesterman fez referência à tipologia aristotélica – dentro do chamado modelo causal (Causal model)
— e defendeu sua aplicação em tradutologia. Ver em particular (CHESTERMAN, 2017, p. 123-136).

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translation as requisition [tradução como apropriação]10. Segundo Dollerup, uma tradução


como imposição designa um tipo de (projeto) de tradução que, deliberadamente, tem origem
numa cultura-fonte e que é realizada independentemente da cultura-alvo. Nesse sentido, a
realização de um projeto de tradução é essencialmente e unilateralmente apresentado,
estabelecido, decretado ou imposto por uma cultura-fonte sobre uma cultura-alvo sem prestar
atenção à especificidade desta. Em outras palavras, a cultura-alvo se comporta como um
receptor passivo do processo de tradução. Em contrapartida, ainda de acordo com Dollerup,
uma tradução como apropriação designa um tipo de tradução em que o texto traduzido é
sempre ativamente desejado, cobiçado ou até mesmo apropriado pela cultura-alvo. Dollerup
escreve:

‘Imposition’ is normally deliberate, it is always driven by the source culture, often with little regard for
the receptor culture, and therefore pays much attention to the intention or intentionalities behind the
original text manifestation; ‘requisition’ springs from the target culture and therefore implies a more
relaxed attitude (perhaps out of ignorance) towards the sender’s intentionality (DOLLERUP, 1996, 46)

Pelas características da chamada “tradução-apropriação” – que acabamos de mencionar


– torna-se evidente que este tipo de tradução constitui a mais importante expressão de um
desejo de autonomia frente a uma cultura-fonte que representa frequentemente uma potência
colonial (CAMPOS, 2016). Desta forma, o uso da tradução-apropriação permite a legítima
expressão de um desejo de fugir de uma situação subalterna ou de um estado de sujeição.
Consequentemente, é assim que deve ser compreendido o papel de agente de tradução de
Tobias Barreto. A transferência cultural entre o Brasil do último quarto do século XIX e a
Alemanha – um modelo a imitar por emulação e não a macaquear de modo estúpido – tornou-
se possível por meio da tradução.
Em que sentido podemos falar aqui de uma estratégia de apropriação por Tobias
Barreto? Não só ele assumiu a missão concreta de mediador intercultural entre a cultura
brasileira e a alemã como o que realmente caracteriza seu papel de agente de tradução, no
sentido nobre do termo, foi sua independência de espírito perante os intelectuais
(intelligentsia) e as instituições dominantes, não apenas no seu próprio território (Sergipe),

10
Preferimos traduzir requisition por “apropriação” em vez de por “requisição”.

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mas também em todas as partes do Brasil. O papel de agente de tradução de Barreto foi muito
especial porque ele contribuiu diretamente para a conscientização e a difusão da cultura
alemã – definida segundo seus próprios critérios programáticos a fim de permitir criar uma
nova espitêmé – para os brasileiros através de suas traduções de alguns trechos de obras de
diversos pensadores alemães, seja de pensadores mais influentes ou de outros menos
conhecidos. Um excelente exemplo de apropriação pelo filósofo brasileiro foi a gestão
integral do processo tradutório desde o início – a tradução em si, ou seja, a transferência
linguística – até o fim, ou seja, a divulgação ou distribuição das traduções como “objeto
reificado”, passando pela produção material, isto é, a impressão das traduções. A gestão
integral do processo de tradução surgiu em 1874, em Escada. Em 1954, o jornalista Junot
Silveira escreveu no jornal A Tarde que Tobias Barreto, “para poder publicar muitas de suas
produções, teve de fundar jornais, que ele redigia, compunha, revisava, paginava e
imprimia...” (NASCIMENTO, 1994, 26). Com efeito, foi mais precisamente a partir do mês
de julho daquele ano que Barreto publicou às sua próprias custas seu primeiro jornal: Um
signal dos tempos. Este jornal – como os outros que ele publicou em Escada – saíram da
Tipografia Comercial que se localizava na Rua da Cadeia, 22, em Escada (Pernambuco), e
que era de propriedade de Tobias Barreto. A publicação do jornal Um signal dos tempos foi
de curta duração (dez números), mas também suficientemente longa para trazer à cena da
cultura brasileira o nome de David Friedrich Strauss (1808-1874), e principalmente o de
Eduard von Hartmann (1842-1906)11. Neste sentido, podemos dizer que a temporada de
Barreto em Escada – entre 1871 e 1881 – foi a incubadora perfeita para o desenvolvimento e
o aperfeiçoamento do seu germanismo. Um signal dos tempo foi substituído rapidamente por
A Comarca de Escada em 1875 (num total de cinco números) e pelo Devaneio Literário
(1875)12. Uma manifestação marcante do germanismo como posição teórica nítida e forte foi
claramente a publicação do Deutscher Kämpfer em 1875 (BARRETO, 1994, 247)13. O

11
A filosofia de Eduard von Hartmann foi apresentada no artigo intitulado “O Capítulo do Amor na Filosofia
do Inconsciente” na edição número 8 de 31 de outubro de 1874.
12
Publicação bissemanal de 15 de junho de 1875 a 27 de julho de 1875 num total de 12 números. Em dezembro
de 1875, teve uma décima terceira publicação.
13
O Deutsche Kämpfer foi publicado de 2 de agosto até 12 de setembro de 1875, num total de 5 números
(NASCIMENTO, 1966, 19). O Deutscher Kämpfer era impresso na Tipografia Mercantil do brasileiro de

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próprio Tobias Barreto, no entanto, definia o seu jornal como um “periódico literário e
acidentalmente político, destinado à expansão do germanismo no norte do País.” Para grande
espanto de todos14, Tobias Barreto redigiu este jornal em alemão, uma língua em grande
medida desconhecida da maioria dos brasileiros (BARRETO, 1994, 367)15. Dessa forma,
Barreto contrariava voluntariamente todos os intelectuais brasileiros que aclamavam
servilmente a cultura e a filosofia francesas. Para Barreto, o futuro era outro; a chamada
germanidade foi percebida como uma tábua de salvação, pois a ciência e a razão em vigor na
filosofia alemã prevaleciam finalmente sobre o escolasticismo caduco e tomista que
petrificava a vida intelectual brasileira.
A publicação do Deutscher Kämpfer deu início a uma série de textos (jornais, ensaios,
panfletos, artigos) redigidos em alemão. Em conformidade com a firme convicção intelectual
de que a cultura alemã era superior à francesa, mas sobretudo devido a sua perseverança neste
projeto, não surpreende que alguns de seus contemporâneos tenham sucumbido ao seu
programa de fortalecimento da cultura alemã pela infusão do espírito alemão no Brasil. Mas,
então, quais eram precisamente os motivos políticos, ideológicos e/ou tradutológicos que
nortearam o germanismo de Tobias Barreto?

3- Uma mudança sistêmica a favor da germanidade (Deutschtum)


É importante sublinhar que, no Brasil, a quase totalidade das traduções eram feitas de
obras originalmente em francês, escritas por autores franceses ou, em menor grau, de
traduções francesas de obras que foram originalmente escritas em outras línguas por variados
autores estrangeiros (por exemplo, ingleses, italianos, alemães, russos). Portanto, a principal

origem alemã Carl Eduard Muhlert, no Recife (NASCIMENTO, 1966, 19; BARRETO, 1994, 367; SCHMIDT,
2009, 44). A Tipografia Mercantil era localizada na Rua do Torres, no 10.
14
“Para irritar o burguês com uma nota mais ostensiva de superioridade, abria frequentemente seu luminoso
leque de pavão – o germanismo. Um dos periódicos redige-o mesmo em alemão, o Deutscher Kämpfer. Era um
luxo, uma extravagância. Mas era igualmente uma maneira de reagir, de não se deixar absorver” (LIMA, 1939,
44). Por sua vez, Nelson Werneck Sodré qualificou de “curiosíssima” a publicação em alemão do Deutscher
Kämpfer (SODRÉ, 1998, 1994, 225) Esta preocupação intelectual particular de Barreto fez dele o alvo de toda
uma geração. Foi por essa razão que Sílvio Romero escreveu “Tobias Barreto é, [...], não o mais desconhecido
escritor da nova geração, porém certamente o mais odiado!” (ROMERO, 187, 137).
15
Na verdade, o Deutscher Kämpfer teve grande repercussão nas colônias alemãs do sul do Brasil,
especialmente no Rio Grande do Sul, no jornal alemão de Koseritz, o Deutsche Zeitung (NASCIMENTO, 1966,
19).

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característica das traduções de obras estrangeiras no Brasil era o fato de serem traduções de
traduções feitas através do espelho distorcido ou do filtro ideológico da língua francesa.
Invariavelmente, essas obras traduzidas eram totalmente dependentes dos imperativos
culturais, ideológicos e estéticos vigentes na França. Claramente, isso significa que a
totalidade do ethos cultural brasileiro era fortemente dependente da cultura francesa em todas
as suas formas.
Totalmente insatisfeito com a dependência, a sujeição intelectual e ideológica do
Brasil para com a França, o filósofo sergipano se esforçou então por escolher, promover e
disseminar as ideias adequadas para uma obra de renovação, ou seja, de vivificação e de
fortalecimento da cultura brasileira. Ao ecletismo representado pelo espírito francês e à
escolástica, desacreditada e decadente, ainda vigente no Brasil, contrapuseram-se as
tendências monistas dos filósofos alemães como Ludwig Büchner, Jacob Moleschott e mais
particularmente Ernst Haeckel e Ludwig Noiré, entre outros. Segundo Tobias Barreto, a
salvação intelectual e cultural do Brasil estava na adoção dessas novas correntes alemãs
monistas, materialistas e antiescravistas que contrabalançavam as deficiências da filosofia e
da cultura francesas.
No mesmo período, já havia exemplos na Europa de proeminentes pensadores que se
deixaram influenciar pela cultura germânica. O Brasil, entretanto, ainda parecia ser imune a
essa influência em nítida progressão na Europa. Por exemplo, na Inglaterra, o ensaísta
Thomas De Quincey (1785-1859) traduziu do alemão para o inglês obras de Johan Paul
Friedrich Richter (1763-1825) – mais conhecido como Jean-Paul –, Immanuel Kant (1724-
1804), Ludwig Tieck (1773-1853) e Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), entre outros.
Thomas Carlyle (1795-1881), sempre na Inglaterra, tinha traduzido obras escritas em alemão,
especialmente os fragmentos de Novalis. Na Itália, a filosofia de Hegel influenciou de forma
significativa os filósofos Francesco de Sanctis (1817-1883) e Bertrando Spaventa (1817-
1883). Este último, digno representante da chamada esquerda hegeliana, escreveu “il far
intendere Hegel all'Italia, vorrebbe dire rifare l'Italia” [“fazer a Itália entender Hegel
significaria refazer a Itália”]. Refazer e consertar o Brasil com a ajuda intencional da
filosofia alemã – selecionando e adaptando os melhores elementos que poderão crescer de

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uma maneira idiossincrática –, este foi o verdadeiro projeto reformador de Tobias Barreto na
busca de uma identidade brasileira.
A França também foi varrida por um vento de mudança no mundo das ideias,
especialmente após a derrota francesa frente a Bismarck na Guerra Franco-Prussiana de 1870.
Assim, Ernest Renan, na França, viu na vida intelectual alemã o refúgio da razão e da ciência
desinteressada. Barreto assumiu a mesma posição de Renan, quando este, ao analisar a
vitória prussiana de 1866 em Königgrätz, escrevera:

Quem venceu em Sadow foi a ciência alemã, foram as virtudes alemãs, foi o protestantismo, foi a
filosofia alemã, foi Lutero, foi Kant, foi Fichte e foi Hegel (BARRETO 1990, 269).

Além disso, Hyppolite Taine dizia que houve uma ânsia, uma sofreguidão pela ciência
alemã, pela literatura alemã, pela cultura alemã simplesmente para contrabalançar a
hegemonia da cultura francesa. No Brasil, o movimento não deixará de voltar-se também
para a cultura germânica a fim de recolher as armas necessárias à renovação desejada. Clovis
Bevilacqua, companheiro constante e dedicado à causa do germanismo no Brasil e aliás
relacionado com a chamada Escola do Recife – e naturalmente com seu líder, Tobias Barreto
–, declarou no final do século XIX: “Nós, os brasileiros, fomos levados a olhar, a estimar e
a estudar os livros alemães, reconhecendo que, além de Portugal e da França, havia muito
que aprender” (MERCADANTE e PAIM, 1972, 155).
Deve-se observar o que significava o epíteto “alemão” para Barreto. Um elemento de
resposta tem de ser encontrado no prefácio de Estudos Alemães:

O epíteto de alemães, que dou aos escritos aqui prometidos, não serve para indicar o momento objetivo
do meu programa, visto como não tenho em mira fazer da Alemanha, em todas ou qualquer das relações,
em que ela possa e deve ser considerada, o assunto obrigado das minhas indagações; mas esse epíteto
indica, sem exceção alguma, o momento subjetivo da coisa, quero dizer, põe logo a descoberto o meu
ponto de partida, a minha intuição, as pressuposições necessárias do meu escrever e criticar. Isto é um
mal, eu o reconheço, que pode até dar em resultado um desgosto antecipado, uma prevenção
desfavorável à obra que empreendo. As ideias ditas alemãs ainda são entre nós umas hóspedes
importunas, e os poucos, bem poucos adeptos, que elas contam, continuam a passar, se não de todo por
uns tipos irrisórios, ao menos por extravagantes, que insistem no propósito irrealizável de implantar no
espírito nacional o gosto das coisas germânicas (BARRETO, 1991, 45).

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O fascínio de Tobias Barreto pela cultura alemã era inigualável. Irritava-o a obsessão
dos brasileiros pela França, cunhando a máxima: “A Alemanha ensina a pensar – a França
ensina a escrever.” (BARRETO, 1990, 274). Deve-se destacar aqui que seu entusiasmo pelo
germanismo nunca implicou o endosso incondicional e cego por tudo o que se pensava e se
escrevia na Alemanha. Por exemplo, ele criticou duramente a posição do judeu-alemão Adolf
Jellinek (1821-1893) num artigo de 1874 intitulado A alma da mulher (um texto reeditado
nos Estudos Alemães). Barreto investiu também contra os positivistas alemães, que
considerava como tão dogmáticos quanto seus correlatos franceses que empunhavam uma
bandeira de progresso e tentavam impedi-la a todos os povos. Aliás, ele não poupou crítica a
muitos prussianos que, a partir da década de 70 do século XIX, passaram a fazer um discurso
imperialista que denominavam de pangermanismo. Na verdade, de modo geral, Tobias
Barreto vê na Alemanha a possibilidade de identificar um contraponto à enorme influência
que a cultura francesa exercia no Brasil. Na sua opinião havia a necessidade de deixar de
receber de Paris todas as novidades, indicando ser possível ver o mundo através de outras
lentes que não as exclusivamente francesas. Tobias Barreto nunca escondeu essa
característica da sua maneira de pensar: “não fiz nem faço segredo do meu
Franzosenfressenthum” (BARRETO, 1888, 42), aversão que se traduz em exacerbado
entusiasmo pela cultura alemã que, todavia, não empana a sua lucidez no que tange ao
emaranhando de contradições das posições políticas assumidas pelos alemães. Sobre isso,
Barreto escreveu em Estudos de Direito:

Os pensadores alemães, em quase todos os domínios da inteligência, andam dez anos pelo menos, adiante
dos franceses. Não sei se deva executar o domínio político. A política alemã não me é totalmente
simpática (BARRETO, 2000, 19).

Por outro lado, os sentimentos patrióticos de Tobias Barreto para com a cultura alemã
não podem ser negados. Como alegava Miguel Reale, a temática patriótica incitou o
sergipano a traduzir o poema Minha Pátria [Mein Vaterland (Fallersleben)] (1840) de
Heinrich Hoffmann (1809-1894), publicado na versão original alemã e na tradução, no seu
jornal O Americano, em 1870 (REALE, 1991, 66). Então, podemos especular que o uso da
língua alemã foi encarado por Barreto como um verdadeiro protesto lançado contra as

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tendências dominantes no Brasil naquela época. A pretensão do intelectual sergipano era


chamar a atenção dos brasileiros e interessá-los quanto ao debate que ocorria no mundo
intelectual alemão. Infelizmente, como a maioria de suas pequenas obras autoeditadas não
foram conservadas, decorre desse fato que é muito difícil hoje encontrar exemplares de suas
obras alemãs – ou obras que veiculavam ideias que promoviam o conceito da germanidade
como panaceia para curar o Brasil do seu atraso intelectual – publicadas por conta do autor.
É possível encontrar de vez em quando e aqui e ali raros exemplares impressos, mas a edição
completa da totalidade de suas publicações por conta própria parece perdida. Por isso é
importante fazer uma reconstrução racional do pensamento de Barreto consultando seus
outros trabalhos intelectuais – ou seja, revistas, artigos de jornais, cartas, e mesmo diversos
comentários sobre suas obras escritas pelos outros membros da Escola do Recife.
Como devemos então interpretar esta atração, esta afinidade visceral não só para com a
cultura alemã, mas particularmente com o idioma alemão? Estava essa afinidade sujeita a um
mero capricho ou, pelo contrário, determinada por uma agenda política ou ideológica
específica? Felizmente, o prefácio de Brasilien, wie es ist in literarischer Hinsicht [Brasil,
de uma perspectiva literária] (BARRETO 1876) fornece um elemento de resposta a essa
interrogação. Barreto escreveu:
Man sieht wohl, dass dies ein Protest ist, den ich gegen die in meinem Vaterlande herrschenden
Tendenzen, gegen unser „Régime mental,, wie sich ein französischer Positivist ausdrücken dürfte, mit
der klaren Absicht niederschreibe, die Aufmerksamkeit der einzig Berechtigten auf unser elendes
geistiges Leben zu lenken, und somit würde der Gebrauch des Portugiesischen ebenso verkehrt sein, wie
wenn ein Brasilianer in Berlin mit den vaterländischen papierenen Milreis (brasilianisches Geld) ein
Buch oder andere Ware kaufen wollte. Dort hat beides keinen Kurs (BARRETO 1876).
[Podemos ver claramente que [o uso da língua alemã] é um gesto de protesto contra a tendência
predominante na minha terra natal, contra nosso “regime mental”, como diria um positivista francês,
com a clara intenção, utilizando a escrita, de direcionar a atenção das pessoas em causa para a nossa
miserável vida intelectual. Portanto, o uso da língua portuguesa seria tão impróprio quanto um brasileiro
em Berlim que quisesse comprar um livro ou quaisquer outros bens com uma moeda brasileira de mil-
réis. Na Alemanha, os dois não valem nada.]

Depois de ter demonstrado a importância da língua alemã na forma mentis de Barreto,


devemos mencionar, a partir de fontes externas e objetivas (na medida do possível), citações
que atestam a qualidade – ou não – do seu domínio da língua alemã.
Barreto escrevia em alemão numa linguagem culta e em prosa fluente, conforme
testemunham os textos originais republicados em edição bilíngue em 1876 em Monografias

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em alemão (existe uma reprodução desta monografia numa nova edição de 1990). Um exame
superficial do texto escrito em alemão revela imediatamente erros grosseiros na escrita ou na
tradução do português para o alemão. Por exemplo, Barreto escreveu na apresentação do Der
Deutsche Kämpfer “Von Tage zu Tage” (De dia a dia) em vez de escrever “Vom Tage zu
dem Tage”. Em outra sentença escreveu: “und Wissenschaft und Philosophie aussahen, wie
eigentlich französisch Waren die man sich um jeden Preis ankaufen möchte” (“e a Ciência e
a filosofia pareciam propriamente mercadorias francesas, as quais se podia comprar por
qualquer preço”). O erro gramatical aqui é o seguinte: precisamos escrever “Wisenschaft und
Philosophie aussehen” em vez de “aussahen”.
Barreto escrevia e lia bem, embora alguns textos produzidos nos primeiros anos de
manejo do idioma apresentem problemas. Todavia, dominou as obras clássicas e científicas
alemãs. Contudo, sua pronúncia era quase incompreensível. Sua condição de autodidata no
idioma o impediu de resolver determinados problemas fonéticos que tornavam ininteligível
aos alemães aquilo que ele dizia, ao expressar-se oralmente. Assim, os problemas de Barreto
com a língua alemã só apareciam no momento da comunicação verbal: “tão somente na sua
pronúncia, não chegou a vencer, como autodidata, uma estranha acentuação, de tal modo que
os alemães tinham suas dificuldades em entendê-lo” (OBERACKER, 1990, 269). O
intelectual sergipano Sílvio Romero, seu amigo de longa data, lembra-nos como Barreto foi
iniciado na língua e na cultura alemã:

Foi, então, em 1870 que Tobias Barreto se decidiu pelos germânicos. Com aquele ardor que ele punha
em tudo, com aquela enorme capacidade de aprender que o impelia, comprou um dicionário e uma
gramática alemães, e pediu ao livreiro que lhe mandasse buscar na Europa a Geschichte des Volkes
Israels, de Ewald. Foi este o primeiro livro alemão que o poeta sergipano possuiu. No intervalo, entre a
encomenda e a chegada da célebre obra, o nosso patrício ficou estudando a língua alemã consigo mesmo
(ROMERO. 1905, 122-123).

Conclusão
Ao optar pelo germanismo, Tobias Barreto, agente de tradução, fez mais do que
demonstrar sua inclinação pessoal por uma determinada cultura. Quando sua obra é vista em
conjunto, e não isoladamente, sem preconceitos, é possível perceber que havia toda uma
motivação no cenário brasileiro, presente na totalidade das investigações da Escola do Recife.
A busca frenética diante da necessidade de assumir as tendências que àquele grupo de

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intelectuais parecia ser a mais avançada e mais adequada ao tempo. Daí ser fundamental
submeter ao crivo crítico, como fez toda a produção intelectual do seu tempo. Muitas vezes
há dificuldade em se perceber isso, diante da falta de unidade natural em uma obra dispersa
e produzida esparsamente em diversos meios impressos de grande, média e pequena tiragem
ao longo de muitos anos.
O problema tradutológico que nos interessa precisamente aqui envolve a avaliação da
qualidade das traduções do alemão para o português feitas por Tobias Barreto. Assim,
precisamos localizar nos textos de Tobias Barreto todas as referências e as citações – diretas
e/ou indiretas (ou oblíquas) – dos autores alemães para garantir a precisão, a fidelidade ou,
quando aplicável, a manipulação envolvida em suas traduções. Esta dimensão do problema
tradutológico é muito importante porque um de seus mais fiéis colaboradores, Sílvio Romero,
no inicio do século XX, foi acusado de ter traduzido autores alemães a partir de traduções
em francês. O conhecimento comprovado que Barreto tinha da língua alemã provavelmente
serve como prova para livrá-lo de quaisquer suspeitas. Nesse sentido, seguindo Antoine
Berman em Pour une critique des traductions: John Donne, precisamos distinguir entre uma
tradução e uma translation. Esta última muitas vezes acontece de modo diacrônico: o
encontro com a obra estrangeira numa língua estrangeira, a adaptação, a primeira tradução
(às vezes parcial e explicativa) e finalmente a tradução total e crítica da obra. A translation
inclui a tradução, mas também a critica e numerosas formas de transformações textuais (e às
vezes não-textuais). Portanto, acreditamos que uma crítica das traduções de Barreto é
inevitável. Precisamos também destacar o papel exato desempenhado pelos impressos neste
processo tradutório.
Polemista, destruidor, mata-mouros de velhas crenças enraizadas na cultura brasileira
retrógrada e conservadora do fim do século XIX, Tobias Barreto acumulou mais desafetos
do que amigos. Despediu-se do mundo doente e miserável, proferindo do leito de morte seu
último pedido: “Erguei-me! Quero morrer como soldado prussiano!” (BARRETO 1990,
277).16 Chegou a hora de examinar as suas traduções e avaliar o seu papel como agente de
tradução sem quaisquer preconceitos.

16
Como relatado por João Luiz Barreto (1872-1950) – um dos nove filhos de Tobias Barreto – foram
aparentemente as últimas palavras do filosofo brasileiro em seu leito de morte. Cabe observar que existe também

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PODE O TRADUTOR FALAR? UMA ANÁLISE DA TRADUÇÃO DA


AUTOBIOGRAFÍA DE JUAN FRANCISCO MANZANO NO BRASIL SOB
A ÓTICA DOS ESTUDOS CULTURAIS

Liliam Ramos1

RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar a Autobiografia do poeta-escravo Juan
Francisco Manzano, única obra latino-americana conhecida escrita por um homem negro ainda
em situação de escravidão em Cuba. Com tradução publicada no Brasil em 2015 pelo escritor,
pesquisador e tradutor Alex Castro, propõe-se uma discussão do texto traduzido sob a ótica dos
Estudos Culturais. Os teóricos dos Estudos Culturais utilizados no ensaio – Gayatri Spivak,
Stuart Hall e Boaventura Sousa Santos – sustentam que o sujeito pós-colonial é alguém que se
posiciona entre duas culturas e que constantemente desenvolve estratégias de tradução cultural
entre diferentes povos. As pesquisadoras dos Estudos da Tradução Susan Bassnet e Rosemary
Arrojo inserem os textos traduzidos em uma perspectiva intercultural, na qual o tradutor não
pode eximir-se tampouco invisibilizar-se. A reflexão abordará a presença do tradutor no
processo de tradução intercultural de um texto escrito no século XIX de acordo com a proposta
de Castro que realizou uma Tradução (adaptação ao português contemporâneo) e uma
Transcriação (criação de um Manzano lusófono fictício, cujo texto mantém os desvios de
gramática e as estruturas sintáticas presentes na versão de 1835), além de 342 notas explicativas
relacionadas ao contexto escravocrata da época e à escrita dialética de Manzano. Discutiremos
o papel do tradutor que transcodifica textos incluídos em uma perspectiva pós-colonial e sua
mediação na tradução linguística e cultural.

PALAVRAS-CHAVE: Estudos da Tradução. Estudos Culturais. Escravidão na América


Latina. Autobiografia de Juan Francisco Manzano. Alex Castro.

RESUMEN: Este texto tiene como objetivo analizar la Autobiografia do poeta-escravo Juan
Francisco Manzano, única obra latinoamericana conocida escrita por un hombre negro todavía
en situación de esclavizado en Cuba. Con traducción publicada en Brasil en 2015 por el escritor,
investigador y traductor Alex Castro, se propone una discusión del texto traducido bajo la óptica
de los Estudios Culturales. Los teóricos de los Estudios Culturales utilizados en el ensayo –
Gayatri Spivak, Stuart Hall y Boaventura Sousa Santos – sostienen que el sujeto postcolonial
es alguien que se ubica entre dos culturas y que constantemente desarrolla estrategias de
traducción cultural entre diferentes pueblos. Las investigadoras de los Estudios de Traducción
Susan Bassnet y Rosemary Arrojo insertan los textos traducidos en una perspectiva
intercultural, en la cual el tradutor no puede eximirse tampoco invizibilizarse. La reflexión
abordará la presencia del traductor en el proceso de traducción intercultural de un texto escrito

1
Professora de Língua Espanhola, Literatura Hispano-americana e Tradução Português/Espanhol no
Instituto de Letras/UFRGS; graduada em Letras - Bacharelado Português/Espanhol (UFRGS); Mestre e
Doutora em Letras (UFRGS); coordenadora do projeto Tradução e Legendagem na UFRGS vigência 2014-
2016; desde 2012 coordena o projeto Vozes negras no romance hispano-americano.
Contato: liliam.ramos@ufrgs.br

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en el siglo XIX de acuerdo con la propuesta de Castro que realizó una Traducción (adaptación
al portugués contemporáneo) y una Transcriación (creación de un Manzano lusófono ficticio,
cuyo texto mantiene los desvíos de gramática y las estructuras sintácticas presentes en la versión
de 1835), además de 342 notas explicativas relacionadas al contexto esclavista de la época y a
la escritura dialéctica de Manzano. Discutiremos el papel de traductor que transcodifica textos
incluidos en una perspectiva postcolonial y su mediación en la traducción lingüística y cultural.

Palabras-clave: Estudios de Traducción. Estudios Culturales. Esclavitud en América Latina.


Autobiografía de Juan Francisco Manzano. Alex Castro.

Preliminares
A tradução é um processo intercultural cujo resultado permite analisar o modo como uma
determinada sociedade recebe uma obra, um(a) autor(a), uma literatura, uma cultura diferente
da sua. As diversas reflexões sobre a tradução (e suas práticas, abordagens teóricas, recepção)
que tiveram como consequência a constituição dos Estudos da Tradução como uma disciplina
independente têm se consolidado para pensar a tradução além da transposição semiótica com
foco nos processos linguísticos. O ato de traduzir envolve um conjunto complexo de critérios
extralinguísticos que se aprofundam em uma dimensão cultural muito mais abrangente: o
tradutor assume um papel que ultrapassa o de mediador linguístico, constituindo-se também em
mediador cultural entre textos e culturas distintas.
Tomando de empréstimo o título do ensaio Can the subaltern speak? (1988)2, da
intelectual indiana Gayatri Spivak, no qual a especialista em crítica literária questiona a real
abertura de espaço para as vozes dos indivíduos cujas culturas e representações são
consideradas subalternas e que convivem com a opressão e o silenciamento em contextos
patriarcais e pós-coloniais, a presente reflexão pretende questionar o quanto a participação do
tradutor nas obras incluídas na perspectiva pós-colonial será determinante na (re)produção de
um texto que precisa transpor à cultura de chegada muito mais do que aquilo que está registrado
graficamente no papel. Neste caso específico, proporemos uma discussão sobre a obra
traduzida A autobiografia do poeta-escravo Juan Francisco Manzano, com organização,
tradução e notas de Alex Castro, escritor e pesquisador atento ao tratamento dado aos menos
privilegiados (sócio e economicamente) como mulheres, negros e homossexuais e questionador
das situações de exclusão, como pode ser conferido em sua página www.alexcastro.com.br. Os

2
Utilizaremos como referência a tradução brasileira de 2010.

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processos tradutórios realizados por Castro passaram por etapas como compreender
integralmente um texto manuscrito por um escravizado alfabetizado informalmente, inserido
em seu contexto de escritura no século XIX; também, foi necessário transpor à língua
portuguesa toda a significação que um texto como esse pode apresentar ao leitor, primeiro em
uma escritura arcaica e, após, em uma linguagem contemporânea. Utilizaremos as reflexões de
Arrojo (2007) sobre o Texto de Chegada (TC) ser uma representação do Texto de Partida (TP),
e o quanto o ato interpretativo do tradutor é relevante nesse processo.
O protagonismo do negro na literatura começou a ser retratado desde a época colonial,
manifestando-se, principalmente, nos círculos intelectuais de Cuba. A literatura cubana de
temática escravagista desenvolvida no século XIX era, em grande parte, publicada a partir de
encomendas vindas da Europa realizadas por intelectuais como Domingo del Monte, crítico
literário e fundador da Academia Cubana de Literatura. Del Monte e os demais ideólogos
abolicionistas da época acreditavam que para solucionar o problema da escravidão era de suma
importância que argumentos a favor do antiescravismo viessem também das vítimas. Dessa
forma, a criação de tertúlias para discussões sobre a temática emerge de maneira a promover a
cultura criolla de raiz africana altamente influenciada pelos ideais abolicionistas da Inglaterra
e dos Estados Unidos. É nesse contexto que o escravizado Juan Francisco Manzano, conhecido
pelas declamações de poemas em reuniões e saraus poéticos, é convidado a escrever a sua
história. De acordo com Castro (2015), o convite não surgiu apenas pela admiração que os
participantes sentiam por sua oratória; devemos recordar que, no início do século XIX, ocorrera,
no Haiti, a primeira revolução de independência nas colônias americanas, um risco ainda vivo
e real à época da escrita da Autobiografía. A encomenda do texto, portanto, se inseriu no projeto
de desviar o olhar do temido “perigo negro” e mostrar aos interessados no tema um escravizado
submisso, religioso e obediente que seguia os códigos brancos.
Somente no ano de 2015 o leitor brasileiro pôde contar com a tradução da obra
Autobiografía de Juan Francisco Manzano, escrita em Cuba por volta do ano de 1835 por
Manzano e que se tornaria o texto precursor do gênero autobiografia na América Latina. Texto
que circula, primeiramente e por muito tempo, somente em versão traduzida: patrocinado pelo
abolicionista Richard Madden, foi publicado pela primeira vez no ano de 1940, na cidade de
Londres, em tradução para a língua inglesa sob o título de Life of the negro poet, texto que

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retornaria a Cuba um século depois, publicado em língua espanhola na ilha apenas em 19373.
Nesse entretempo, Manzano obteve sua liberdade em 1836, publicou uma peça de teatro, Zafira,
em 1842, e continuou escrevendo poemas até 1843. Em 1844 foi preso durante a repressão da
Conspiración de la Escalera mas, com o fuzilamento de outros poetas negros acusados de
conspiradores, como Plácido, Manzano passou seus últimos anos sem escrever. Para Castro
(2015), “a repressão não matou o homem mas calou o poeta” (p.145), visto que Manzano
percebeu que o destaque literário poderia ser um perigo para os afrodescendentes naqueles
tempos.
O livro divide-se em três partes: na primeira, com prefácio de Ricardo Salles (professor
de História da UNIRIO, especialista em século XIX) e apresentação de Alex Castro, o leitor
brasileiro tem a oportunidade de compreender o contexto da publicação do relato. A segunda
parte da obra apresenta os dois trabalhos de transposição da Autobiografia à língua portuguesa
realizados por Castro: uma tradução e uma transcriação. O texto traduzido tem como objetivo
alcançar estudantes do ensino médio e o público em geral na medida em que apresenta o texto
quebrado em parágrafos, atualiza a pontuação e ortografia, simplifica as construções truncadas
e substitui os vocábulos fora de uso. A intenção foi aproximar o texto ao leitor contemporâneo
e, de certa forma, conseguir publicá-lo por uma grande editora para que tenha circulação
nacional. Para tanto, a adaptação à norma culta da língua portuguesa tornou-se inevitável.
Surpreendentemente, chama a atenção a transcriação realizada por Castro. Com auxílio
do músico e tradutor Pablo Zumarán, Castro cria a voz de um Manzano lusófono fictício, dando
fidelidade à voz do escravizado, à sua sintaxe, à sua escolha de palavras, ao ritmo das frases e
à peculiar pontuação, mantendo os desvios à norma culta em português na mesma proporção
do espanhol escrito por ele em 1835. Vale lembrar que Castro buscou, como original, o texto
mais autêntico que se conhece, o manuscrito que se encontra na Biblioteca Nacional José Martí,
autógrafo, com a caligrafia de Manzano, que apresenta uma tentativa de utilização da norma
culta, com ortografia e sintaxe idiossincráticas e pontuação inexistente. Verifica-se, portanto, o
árduo trabalho de Alex Castro em recriar essa construção linguística para a língua portuguesa e
também o quanto se sente mais à vontade nesta parte já que, para ele, corrigir os erros
ortográficos, gramaticais e sintáticos de Manzano significou “apagar sua trajetória, silenciar seu

3
Referência à publicação do texto na íntegra. Trechos da autobiografia foram publicados em 1878 na antologia
Poetas de Cor, organizada por Francisco Calcagno. Atualmente, há dois manuscritos na Biblioteca Nacional José
Martí, em Cuba: uma versão autógrafa de Manzano (utilizada por Castro para a tradução) e uma versão corrigida
por Anselmo Suárez y Romero, de 1839. Há, também, uma cópia da versão corrigida na Biblioteca de Yale, EUA.

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sofrimento e rasurar sua vida” (p.18). Na terceira parte da obra, Castro nos brinda com
iconografias, sugestões de leitura para os brasileiros que se interessam pelo tema, bibliografia
extensa de pesquisa, os estudos para a criação da voz lusófona do Manzano fictício, além do
epílogo “Réquiem para Manzano”, do historiador cubano Urbano Martínez Carmenata citado
na Autobiografia.
As citações retiradas do texto autobiográfico de Manzano utilizadas neste artigo seguirão
a norma da transcriação proposta por Alex Castro. Dessa forma, esperamos manter o respeito e
a admiração do tradutor pelo escravizado que tentaram calar por tantas vezes e cuja voz
permanece ecoando até os dias de hoje, lembrando a todos nós as atrocidades praticadas pelos
senhores de escravizados e a conivência da sociedade com o tipo de tratamento dado a eles.

Memórias afro-cubanas de uma sociedade escravocrata


A relevância da circulação do texto de Manzano se dá pelo fato de que os testemunhos
escritos por escravizados eram muito raros à época da escravidão; segundo Castro (2015), ao
contrário dos Estados Unidos, as Américas hispânica e portuguesa não cultivaram a tradição
abolicionista de incentivo à escrita e publicação de pessoas recentemente saídas da condição
de escravizadas. Se nos EUA contamos com 101 memórias de escravizados publicadas até o
ano de 1865 como, por exemplo, a narrativa Doze anos de escravidão, de Solomon Northup,
adaptada para o cinema e ganhadora do Oscar de melhor filme em 2014, na América Latina os
dois únicos relatos históricos narrados em primeira pessoa que repercutiram fora de Cuba são a
Autobiografia e Biografía de un cimarrón (1963) narrado pelo escravizado Esteban Montejo e
redigido pelo escritor Miguel Barnet, em tradução brasileira Memórias de um cimarron4 (1986)
por Beatriz A. Cannabrava. Ambos os textos, em diferentes níveis, são controlados,
manipulados ou restringidos por parte de segundos autores: Barnet transformou a entrevista
realizada com Montejo, já centenário e livre, em narrativa biográfica; já Manzano certamente
teve seu texto recortado e reescrito pois o escreveu enquanto escravizado, sendo que o filho de
sua proprietária era um dos incentivadores e patrocinadores do texto, assim como de sua
libertação.
No entanto, em se tratando do gênero testemunho, um dos livros cubanos mais traduzidos
é a biografia escrita por Barnet. De acordo com Castro (2015), a história de Montejo correu o

4
Em texto de apresentação à tradução, a tradutora explica que decidiu manter a palavra cimarron (sem acento) por
trata-se de um termo específico.

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mundo e acabou se tornando a referência ao falar-se sobre a escravidão em Cuba, visto que os
revolucionários de 1959 o escolhem por seu espírito inquieto e insatisfeito com a situação, ao
contrário de Manzano, considerado demasiado manso e conservador. Ainda segundo o tradutor,
a Autobiografia é muito mais lida e discutida fora da ilha e, nas livrarias cubanas, encontram-
se vários exemplares das Memórias e nenhum da Autobiografia, esta com última edição de
1972. Em fevereiro de 2016, Castro lançou uma edição comentada da Autobiografía em Cuba
pela editora Matanzas, o que comprova que foi necessário o interesse de um escritor não cubano
em reativar a impressionante história de Juan Francisco Manzano.
A existência do texto de Manzano é insólita para a época já que a maioria dos escravizados
era analfabeta, com qualquer acesso ao ensino vedado pelos proprietários. No entanto, Manzano
se apropria do proibido, ensinando-se a si mesmo como ler e escrever, escondido, copiando e
transcrevendo poemas que haviam sido escritos por outros poetas. Embora seu texto sirva como
um testemunho dos horrores que sofreu como escravizado, foi seu reconhecido talento poético
que provocou o respaldo que recebeu do abolicionista Domingo del Monte, que o converteu em
seu protegido literário, conseguindo sua liberdade em 1836. E é justamente por este motivo, por
ter um padrinho dentro do mais respeitado círculo literário de Cuba, adjunto ao fato de que
homens da elite cubana participavam de tais reuniões literárias, que é possível notar uma clara
moderação em seus relatos, principalmente quando se refere à sua ama, a Marquesa del Prado
Ameno, já que ele escrevia a autobiografia em troca de dinheiro para comprar sua liberdade.
Quem se disponibiliza a traduzir um texto como a autobiografia de Manzano certamente
precisa compreender muito mais que a transposição das línguas espanhol/português nos
contextos dos séculos XIX e XX: é preciso detectar as nuances dos silêncios do escravizado de
forma a manter o ritmo que ele desenvolveu no texto de partida para que se possa compreendê-
lo na contemporaneidade. Retomando a noção de texto traduzido como um palimpsesto, Arroyo
(1996) afirma que o signficado original não é fixo ou estável e depende do contexto em que
originalmente ocorre: o texto se apaga, “em cada comunidade cultural e em cada época, para
dar lugar a outra escritura (ou interpretação, ou leitura, ou tradução) do ‘mesmo’ texto” (p.23-
24). A pesquisadora defende a inevitabilidade da interpretação e do viés inscritos em toda a
tradução reafirmando o protagonismo do tradutor, que reivindica seu espaço fugindo da
inferioridade incômoda e da transparência impossível. Através da conscientização de uma
responsabilidade autoral por parte do tradutor, este se torna componente essencial e participante
ativo na criação de significados. No caso de Castro, tradutor e escritor politicamente engajado,

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ele assume sua interferência e tem consciência de que a tradução “faz alguma coisa”
(ARROYO, 1996), deixando claro quais são suas posições políticas e ideológicas,
características essenciais para interpretar e traduzir um texto como a autobiografia de Manzano.

A tradução intercultural e seus aportes às teorias pós-coloniais


Pode-se afirmar que, de certa forma, a Autobiografía de Manzano e as Memórias de
Montejo, apesar da distância temporal entre as duas publicações, equivalem a textos pós-
coloniais que abrem espaço para a palavra dos marginalizados. Conforme Hall (2003),

(...) o termo “pós-colonial” não se restringe a descrever uma determinada


sociedade ou época. Ele relê a “colonização” como parte de um processo global
essencialmente transnacional e transcultural – e produz uma reescrita descentrada,
diaspórica ou “global” das grandes narrativas do passado, centradas na nação.
(p.109)

De acordo com Hall (2003), as diferenças entre a cultura colonizadora e colonizada


permanecem profundas, mas estas nunca operam de forma absolutamente binária; o autor
descreve essa relação como um movimento que parte de uma concepção de diferença para
différance, tomando de empréstimo o termo cunhado por Jacques Derrida (1972), o que nos
obriga a reler “os binarismos como formas de transculturação, de tradução cultural, destinadas
a perturbar para sempre os binarismos culturais do tipo aqui/lá” (p.109). A différance impede
que qualquer sistema se estabilize em uma totalidade inteiramente suturada; as estratégias
surgem nos vazios e aporias que constituem espaços potenciais de resistência, intervenção e
tradução. O sujeito pós-colonial, portanto, é o produto das novas diásporas criado pela
migração, e precisa aprender a conviver com, no mínimo, duas identidades, a falar duas línguas
culturais, a traduzir e a negociar entre elas, tornando-se, dessa forma, um tradutor cultural. No
caso específico da tradução, concordamos com Arroyo (1996) ao afirmar que pensar a
différance “(...) tem permitido o abandono de perspectivas cientificistas e do desejo impossível
de sistematizar e tornar asséptica a tarefa de traduzir” (p.62), com destaque para o papel do
tradutor, peça chave na recepção de uma obra literária no TC.
Bassnett (1999), pesquisadora das relações entre literatura pós-colonial e tradução
intercultural, afirma que a tradução não acontece no vácuo e sim em um contínuo, não sendo
um ato isolado, mas parte de um processo de transferência intercultural. O tradutor passa então
a ser um sujeito que participa de maneira efetiva na transformação e produção de significados,

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promovendo uma espécie de dupla tradução. Desse modo, podemos considerar a língua materna
e a língua estrangeira como complementares, e não antagônicas, já que os focos da tradução
intercultural e das literaturas pós-coloniais estão muito próximos pois se ocupam, além da
transcodificação linguística, da transmissão de elementos culturais. No caso da obra analisada,
citamos a nota 44 à página 151. No texto autobiográfico, Manzano utiliza adjetivos com teor
exagerado para referir-se à sua senhora: “mas aquella bondadozíssima senhora fonte
inesgotavel de graças (44) tornou á renovar hum documento offerecendo-le a liberdade do outro
ventre nacece o qᵉ. nacece” (p.94-95), e, na nota explicativa, Castro aproxima os países Brasil
e Cuba e as suas narrativas da escravidão: Nota 44: “Ainda cativo e escrevendo para um público
de literatos brancos escravistas, o quase-brasileiro Manzano demonstra sempre não apenas
‘saber seu lugar’ como também ‘saber com quem está falando” (p.151).
Para o intelectual Boaventura de Sousa Santos (2009), a tradução cultural tem como tarefa
recuperar as experiências cognitivas perdidas pelo epistemicídio massivo das nações do Norte
que vigiam as fronteiras dos saberes. Arroyo (1996) chama a atenção para a proximidade da
tradução e da colonização: características ainda defendidas por estudiosos da tradução que se
apoiam em uma ética dominante se referem à transparência e ao respeito incondicional ao
“original” (poderoso, sagrado), traços também encontrados na colonização como
supremacia/superioridade do colonizador como pretexto para sobrepujar a cultura e a identidade
do colonizado. Nesse caso, há o apagamento da diferença e o destaque para as relações
assimétricas com o Outro. O tradutor, portanto, deve estar consciente da relevância do texto
que está traduzindo:

Embebidas em diferentes culturas ocidentais e não-ocidentais, estas experiências


não só usam linguagens diferentes, mas também distintas categorias, diferentes
universos simbólicos e aspirações a uma vida melhor. (SANTOS, 2009, p.52)

Para Santos (2009), a tradução deve operar em dois níveis, o linguístico e o cultural.
Através da tradução intercultural, chega a ser possível identificar preocupações comuns,
enfoques complementares e, também, contradições inultrapassáveis; por esse motivo, a
tradução cultural será uma tarefa desafiadora a filósofos, cientistas sociais, tradutores e
pesquisadores do século XXI. Por exemplo, nas literaturas conhecidas como de minorias, o
aspecto intercultural da tradução não somente é necessário como indispensável pois esses textos
estão carregados de fatores políticos, culturais e ideológicos e têm um forte papel social em
suas comunidades. Se no TP há o reconhecimento da diversidade de experiências, saberes e

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práticas existentes dos povos em questão, a interpretação e a tradução por meio de olhares
desconstruídos, que conheçam e que respeitem as culturas alvo e fonte, certamente resultará em
um produto mais conveniente e adequado à proposta do TP.
Gayatri Spivak (1990) define a tradução como transmissão de textos literários e culturais
através de uma forma - outra - de imaginarmos culturas de maneira mais compreensiva e mais
responsável como estímulo para um (re)pensar de nós mesmos pelo olhar dos povos
emergentes. Asseverando as afirmações de Hall, Bassnet e Santos, para a intelectual indiana,
os desafios do tradutor não se resumem às dificuldades específicas relativas à transposição dos
idiomas, e sim se ampliam na transmissão das marcas culturais peculiares de determinadas
regiões à cultura de chegada, além da complexidade de enredos e personagens e, também, o
forte papel social deste tipo de literatura. É nessa linha que a tradução da Autobiografía
realizada por Alex Castro está posicionada. Além da importância da reativação da narrativa,
Castro, como tradutor e organizador das notas que acompanham o texto transcriado, pretende
contestar algumas impressões deixadas por Manzano em seu texto em uma leitura menos atenta.
Por exemplo, as características de “manso e conservador” que Manzano poderia ter apresentado
ao descrever sua vida e comentar sobre suas impressões de homem negro escravizado é refutada
pelo pesquisador quando questiona sobre a real permissão para falar que lhe fora concedida:

Para Manzano, então ainda escravizado, a redação de sua autobiografia foi um


empreendimento temerário, repleto de dificuldades práticas e políticas. O quanto
falar? O quanto silenciar? O quanto aqueles homens brancos e ricos,
aparentemente tão tolerantes, eram capazes de ouvir e aceitar? Sua autobiografia
é um texto de lacunas gritantes, elipses conspícuas, entrelinhas prolixas. É
necessária uma leitura cuidadosa para decifrar seus silêncios. (CASTRO, 2015,
p.16)

Castro afirma que a Autobiografia não é prosa espontânea já que houve reflexão, escolha
de episódios e construção narrativa, pois continuamente Manzano menciona episódios que
decide não contar: “(...) estive a pique de perder a vida em maõs do sitado Silbestre mas
pasemos em silencio o resto d’esta sena doloroza pasado este tempo com otra multidaõ de
soffrimentos semeliantes (...)” (p.107). Castro expõe em nota: “Em Manzano, todo clímax é
seguido de um silêncio ainda mais estrondoso, um silêncio intencional que simultaneamente
revela e ofusca” (p.162). Além dos silêncios, o tradutor também analisa as rasuras do
manuscrito: “No manuscrito, depois de ‘mas’, Manzano escreveu ‘a última’, rasurou e
substituiu por ‘a vez pª. mim mais memorável qᵉ. todas’. Quantas cenas terríveis de tortura e

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castigo Manzano não deveria estar equilibrando em sua memória para fazer esse tipo de
autocorreção?” Também chamam a atenção os interstícios temporais escolhidos por ele: “Desde
meus doze anos dou hum salto até a de quatorze deixando em seu inter médio algumas
passagens em qᵉ. se virifica como minha fortuna era instavel” (p.97). Os “privilégios” de
Manzano também são evidenciados. Um exemplo destacado por Castro é a oportunidade de o
escravizado ter conhecido sua família e ter convivido com ela, exposto em opinião pessoal nas
notas explicativas:

Manzano, mais uma vez, demonstra ser uma pessoa escravizada privilegiadíssima.
O que, naturalmente, só aumenta o nosso próprio terror ao ler seu relato: se a vida
das pessoas escravizadas privilegiadas era assim, como seria a vida das outras cuja
voz nunca chegou até nossos ouvidos? (CASTRO, 2015, p.182)

A construção de um Manzano poeta é destacada pelo tradutor. Ao comentar sobre o receio


do escravizado de recitar seus versos – “(...) pois ninguem sabia esplicar o genero dos meus
versos nem eu nunca me atrevi a resitar hum embora duas vezes me custou huma boa surra (...)”
(p.101) – Castro afirma que um dos motivos para seus castigos físicos era justamente a
subversão de suas décimas: seu tom inovador, sua capacidade de dar prazer às pessoas da casa
(inclusive às escravizadas) e seu talento, borbulhante e incontrolável, inaceitável para um
moleque na sua condição de escravizado. Manzano, por sua vez, sabia dos riscos que corria ao
declamar suas poesias para os senhores da casa grande, mesmo quando solicitado por eles.
Castro observa que Manzano percebe a poesia como se fosse uma doença manifestando-se em
seu corpo e, ao enfatizar na Autobiografia os momentos em que é reconhecido como poeta e
artista, acaba por subverter as expectativas do grupo literário de del Monte, que estimulava o
relato do escravizado com foco nas atrocidades da sociedade escravocrata, especialmente nos
castigos físicos. Por este motivo, na tradução em língua inglesa realizada por Madden, tais
trechos foram suprimidos ou significativamente diminuídos, pois, na visão dos abolicionistas,
não serviam a seus fins ideológicos.
É importante relembrar que a obra A autobiografia do poeta-escravo Juan Francisco
Manzano é mais que uma tradução: Castro realizou um trabalho minucioso de pesquisa do
contexto de sua publicação e deu espaço para as interpretações necessárias tanto sobre a
sociedade da época quanto sobre suas decisões tradutórias nas notas explicativas, com estudos,
posicionamentos ideológicos e discussões, espaço este que um tradutor/transcodificador não
costuma ter a não ser através de notas de rodapé que nem sempre são aceitas pelas editoras por

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questões ideológicas e econômicas5. Também deve-se observar o quão desafiador é, na proposta


de Castro, expor-se como tradutor, pesquisador e formador de opiniões em uma luta clara contra
as reações extremistas que vêm acontecendo em várias partes do mundo, fazendo, inclusive,
uma dura crítica a atitudes de intolerância e violência:

Ao ler a autobiografia e visualizar as suas piores cenas, às vezes é fácil perder de


vista que a pessoa sofrendo tantos castigos é um franzino pré-adolescente. Uma
criança. Dessas que hoje as ditas ‘pessoas de bem’ chamam de pivete, cruzam a
rua para evitar e até amarram em postes (CASTRO, 2015, p.165).

A seguir, apresentaremos duas tabelas com alguns exemplos de decisões tradutórias


realizadas por Castro que unem a tradução linguística e a cultural, e de como a etapa de
transcriar para a linguagem do século XIX revela ao leitor contemporâneo o processo tradutório
envolvido na recriação do texto da Autobiografía.

Os processos tradutórios na Autobiografia do poeta-escravo Juan Francisco Manzano


O posicionamento do tradutor já é possível de ser analisado na tradução do título da obra.
Sem um título fixo no TP, originalmente citado como Autobiografía, Autobiografía de un
esclavo, Autobiografía de Juan Francisco Manzano, Castro optou por manter o que ele
considera palavras-chave na composição da obra: autobiografia, poeta e escravo, palavras que
normalmente não seriam encontradas juntas em uma mesma sentença. De acordo com Salles
(2015),

As palavras autobiografia, poeta e escravo, todas muito frequentes no século XIX,


raramente, se não nunca, conjugaram-se em um mesmo vocabulário ficcional,
poético, historiográfico e político. Essa foi a proeza que Manzano e sua escrita
estiveram tão perto, e tão longe, de atingir. Tivesse vivido na sociedade norte-
americana, atravessada pelo mais poderoso regime escravista moderno, mas
também por um intenso e combativo movimento abolicionista, ele teria alcançado
a notoriedade e o status do líder abolicionista negro Frederick Douglass, ex-
escravo, evadido de uma plantation no Sul, autor de um dos ícones das slave
narratives. Se não política, a notoriedade de Manzano teria sido certamente
literária. Mas a história não foi assim. (p.10-11)

Conforme afirmado anteriormente pelos teóricos dos Estudos Culturais, os focos da


tradução intercultural e das literaturas pós-coloniais estão muito próximos pois se ocupam, além

5
O professor e pesquisador da USP John Milton publicou texto discutindo o fator econômico na circulação de
textos traduzidos: A importância de fatores econômicos na publicação de traduções: um exemplo do Brasil, em
2010, disponível em <file:///C:/Users/user/Downloads/40284-47600-1-PB.pdf> Acesso em 28.fev.2017

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da transcodificação linguística, da transmissão de elementos culturais. Na tradução da


Autobiografía, é possível perceber o processo tradutório segundo tabela comparativa abaixo
(grifo nosso):

Tabela 1: Tradução linguística com nota explicativa cultural e nota interpretativa


Texto transcrito do TP
(...) la misma señora D. Joaquina q. me trataba como a un niño ella me bestia peinaba
y cuidaba de q. no me rosase con los otros negritos (66) de la misma mesa como en
tiempo de señora la Marqueza Justis se me daba mi plato q. comia a los pies de mi
señora la Marqueza de Pr. A. (67) toda esta epoca la pasaba yo lejos de mis
padres. (p.83)
Nota 66: "señor" "doña" "niño" - expresiones exclusivas para personas blancas.
Nota 67: No es una figura del lenguaje: es muy probable que comiera, literalmente,
a los pies de la marquesa de Prado Ameno.
Texto transcriado
(…) a mesma sinhá Dna. Joaquina q. me tratava como menino ela me vestia
penteava e cuidava q. eu naõ me rosace com os outros negrinhos (60) da mesma
meza tal como no tempo da senhora Marquesa Justis me davaõ meu prato q.ͤcomia
ao pé de minha sinhá a Marquesa de Pʳ. A. (61) toda esta época pasei longe de
meus pais. (p.97)
Nota 60: “senhor” “dona” “menino” – expressões exclusivas para pessoas brancas.
Nota 61: Não é uma figura de linguagem: o menino Juan devia mesmo comer
literalmente aos pés da marquesa de Prado Ameno.
Texto traduzido/adaptado
(...) a mesma sinhá Dona Joaquina, que me tratava como um sinhozinho: ela me
vestia, me penteava e cuidava para que eu não me roçasse com os outros negrinhos.
Da mesma mesa, tal como no tempo da Senhora Marquesa Jústiz, me davam meu
prato, que comia ao pé de minha sinhá, a Marquesa de Prado Ameno. Toda essa
época passei longe de meus pais.
Fonte: A autora (2017)

No trecho citado à Tabela 1, é possível identificar dois pontos importantes na tradução: o


primeiro trata da explicação linguística da palavra niño, segundo a RAE, “que está en la niñez”,
“que tiene pocos años”, “que tiene poca experiencia”, todos contextos semânticos relacionados
à infância e à ingenuidade dos indivíduos. Foi necessário, por parte de Castro, adequar a palavra
ao contexto da escravidão do século XIX: naquela época, os escravizados africanos não eram
considerados cidadãos, nem seres racionais, portanto, não poderiam ser apenas crianças ou
meninos. No texto transcriado, Castro optou por utilizar a palavra menino porque tinha o auxílio
da nota explicativa cultural para explicar que ser considerado um menino equivalia a ser
considerado alguém, uma pessoa, um ser humano. Já na tradução adaptada, ele simplifica a

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questão e opta pelo termo sinhozinho, pois neste caso não havia o benefício das notas e
precisava decidir por uma palavra que desse conta de contextualizar o vocabulário da
escravidão ao sentido que ele desejava demonstrar ao leitor: “As palavras são
‘multimoduladas’. Elas sempre carregam ecos de outros significados que elas colocam em
movimento, apesar de nossos melhores esforços para cerrar o significado” (HALL, 2003a,
p.41). Acreditamos que foi uma boa opção do tradutor, porém ler o texto transcriado e as notas
nos revela muito mais sobre a perspectiva da sociedade escravocrata e faz com que a
decodificação se aproxime do texto de Manzano.
O segundo ponto trata das observações de Manzano que, primeiro, elogia sua sinhá
argumentando que ela era muito cuidadosa com o menino, porém, em uma mesma frase sem
pontuação (próprio do texto), como se não quisesse deixar escapar o que realmente acontecia
no momento das refeições, ele era tratado como um cachorro, com a comida jogada aos seus
pés, e logo comenta sobre a saudade que sentia de seus pais e sobre a tristeza de viver longe de
sua família. Segundo Castro (2015, p.147), “O episódio é característico da prosa de Manzano:
depois de tecer mil elogios à pretensa bondade de uma pessoa branca, ele sorrateiramente sugere
que as coisas não eram bem assim”.

Tabela 2: Literatura/voz poética


Texto transcrito do TP
(...) pero como la melancolia estaba en sentrada en mi alma y abia tomado en mi
fisico una parte de mi esistencia yo me complasia bajo la guasima (93) cuyas raises
formaba una especie de pedestal al q. pescaba en componer algunos versos de memoria
y todos eran siempre tristes los cuales no escrivia por ignorar este ramo p.ͬ esto
siempre tenia un cuaderno de versos en la memoria y a cualquier cosa improvisaba
(…) (p.86-87)
Nota 93: Árbol silvestre, a menudo asociado a los ahorcamientos de cimarrones. (Ver
el glosario de Biografía de un cimarrón, de Miguel Barnet).
Texto transcriado
(…) mas como a melancholia estava ja instalada em minh’alma e avia tomado em
meu phyzico huma parte de minha ezistencia eu me alegrava em baixo de uma
guaxiúma (87) cujas rahizes formava huma especie de pedestal onde eu pescava
compondo alguns versos de memoria e todos eraõ sempre tristes os coaes eu naõ
escrevia por ignorar esse ramo p.ͬ isto sempre trazia hum caderno de versos de
memoria e por coalquer couza improvizava (...) (p.101)
Nota 87: Árvore silvestre de Cuba, frequentemente associada aos enforcamentos de
pessoas escravizadas fugidas. Ver o glossário de Memórias de um Cimarrón –
Testemunho, de Miguel Barnet, publicada no Brasil pela editora Marco Zero em 1986,

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a única outra narrativa de uma pessoa escravizada cubana, da qual se falará mais
adiante.
Texto traduzido/adaptado
Mas, como a melancolia já estava instalada em minha alma e havia tomado em
meu físico uma parte de minha existência, eu me sentava embaixo de uma
guaxiúma, cujas raízes formavam uma espécie de pedestal, e me alegrava compondo
alguns versos de memória, todos eram sempre tristes, que eu não escrevia por ignorar
esse ramo. Por isso, sempre trazia um caderno de versos na memória e, por qualquer
coisa, improvisava. (p.41-42)
Fonte: A autora (2017)

A linguagem poética aparece em partes do texto como uma expressão triste e melancólica
de Manzano que se vê um desafortunado por ter o dom poético mas não poder expressá-lo da
forma como gostaria. É possível que, no texto escrito pelo escravizado, houvesse outras partes
relacionadas às formas literárias utilizadas por ele, mas que foram suprimidas pelos tradutores
à língua inglesa por não interessar ao público-alvo, que ansiava pelas narrativas de violência.
Percebe-se, novamente, uma adequação da nota explicativa direcionada ao leitor brasileiro,
buscando uma aproximação entre as histórias de escravidão ocorridas nos dois países. É ponto
interessante que ele ficasse embaixo de uma guaxiúma, descrita em nota como uma árvore
associada aos enforcamentos dos escravizados cimarrones, que se transforma em um espaço de
ressignificação para o escravizado que elaborava versos de memória por medo de escrevê-los e
ser castigado por isso, conforme havia acontecido diversas vezes (e viria a acontecer). Castro
observa que

(...) para Manzano, escrever era um ato criador de liberdade, mas também de
subjugação às vontades e objetivos políticos dos literatos brancos: de
reivindicação de sua subjetividade de ser humano e de poeta, mas também de
contínua e reiterada humilhação. (CASTRO, 2015, p.154)

O texto traduzido – direcionado a um público mais amplo, precisou de maiores adaptações


à linguagem contemporânea, o que se justifica pelo TP haver sido escrito no século XIX e serem
necessárias mudanças gramaticais e lexicais significativas. A linguagem tornou-se simplificada,
porém os significados do TP não se perdem por completo visto que a obra também apresenta a
transcriação e as notas explicativas. Certamente o processo de transcriação foi trabalhoso,
demandou mais pesquisas, no entanto, qualificou o trabalho de tradução, deixando possível ao
leitor acompanhar o passo a passo do processo tradutório. Já as notas emitem referências,
posicionamentos ideológicos, pesquisas, atingindo um leitor mais exigente que se interessa pelo

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tema da escravidão e aceita a obra autobiográfica escrita por um escravizado. Castro, ao


relacionar as histórias da escravidão com nossa realidade brasileira, configura a tradução da
Autobiografía como um importante material de literatura e cultura afrodescendente no Brasil
ao aproximar os idiomas espanhol e português em contextos de escravização.

Considerações finais
Retomando a pergunta inicial de Spivak (2010) ao questionar se, realmente, o subalterno
está em uma posição na qual pode falar e pode ser ouvido, salientamos que a voz de Manzano,
embora hoje considerada relevante por se tratar de um documento único na história da literatura
latino-americana, foi tolhida pelos próprios incentivadores da sua escrita. Para Castro, os
componentes do grupo delmontino talvez até pudessem desejar a abolição da escravidão,
porém, sua própria concepção de mundo e a posição que ocupavam na sociedade cubana não
concebiam a possibilidade de existência de um intelectual negro: “nunca houve espaço para
Manzano falar, escrever ou mesmo existir, seja como intelectual ou artista” (CASTRO, 2015,
p.146).
E podemos ouvir o subalterno? Devemos, no mínimo, exercitar nossa capacidade de
compreensão e interpretação dos sujeitos silenciados e, no caso da Autobiografía, o tradutor é
a peça chave na articulação dos discursos transpostos. Neste ponto, é necessário destacar a
pesquisa minuciosa de Castro em suas 342 notas que, além de esclarecer o contexto da
publicação e trazer informações diversas ao leitor, ressaltam também os silêncios de Manzano,
gritantes em alguns momentos do relato. Castro explica: “Em se tratando de textos antigos,
especialmente escritos por pessoas em posição subalterna, só o que temos são conjecturas. Com
base nelas, fazemos o melhor trabalho possível” (p.25). Nas notas, posicionadas ao final do
texto transcriado, Castro se solta: questiona, induz, sugere, afirma, duvida, levando o leitor a
participar do jogo dialógico de Manzano. No texto introdutório, Castro orienta que a leitura do
texto transcriado seja realizada em voz alta, permitindo que o leitor se desprenda das normas
de escritura (estruturas sintáticas, gramática, pontuação, etc.), possibilitando que o texto fale
em seus próprios termos e que possamos nos aproximar da voz silenciada de Manzano:

Toda linguagem, mesmo quando opressora, é sempre dialógica: se lermos com


cuidado, as brechas cavadas pela fala e pela prática das pessoas oprimidas nos
permitem ouvir até mesmo quem não tem voz. Nesse sentido, o esforço da
oralidade que estou propondo é bem mais que um exercício de autenticidade:
É um exercício de alteridade. (CASTRO, 2015, p. 23)

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É possível afirmar, portanto, que a tradução de Castro foi bastante respeitosa com a voz
de Manzano, abrindo espaços para que o escravizado pudesse relatar os acontecimentos
ocorridos em sua vida, especialmente no texto transcriado, com o auxílio das notas explicativas.
Obviamente, muitas informações se perderam durante os anos subsequentes à escrita da
Autobiografía, já que pouco se oficializou com relação às histórias da escravidão e, o que se
tornou oficial, foi escrito por homens brancos que ocupavam posições de autoridade nas
sociedades coloniais e que adaptaram os acontecimentos aos seus pontos de vista. As notas
explicativas deixam claro qual a posição ideológica de Castro, que pode ser conferida na leitura
dos demais textos do escritor. Muitos leitores poderão se sentir incomodados com a presença
gritante do tradutor, no entanto, consideramos que, no caso de traduzir um texto produzido às
margens do sistema, a tomada de posição é inevitável. Arroyo (1996) chama esse processo de
perda da inocência nos estudos da tradução, quando ocorre o reconhecimento por parte do
tradutor de que não há uma ética dissociada dos interesses a que inevitavelmente serve. Se o
tradutor não interfere, não toma partido e mantém o texto asséptico, configura-se também uma
tomada de posição. Com relação aos tradutores,

Quanto mais conscientes estiverem dessa realidade e do papel que exercem sobre
e a partir dela, menos hipócrita e menos ingênua será a intervenção linguística,
política, cultural e social que inescapavelmente exercem. (ARROYO, 1996, p.64)

Há uma diversidade de aspectos sociais, linguísticos e culturais a serem analisados na


tradução da Autobiografia, texto indispensável no (re)contar das histórias da escravidão na
América Latina.

Referências
ARROJO, R. Oficina de tradução: a teoria na prática. 5.ed. São Paulo: Ática, 2007.
______. Os estudos da tradução na pós-modernidade, o reconhecimento da diferença e a perda
da inocência. In: Cadernos de Tradução, v.1, n.1, Florianópolis, 1996. Disponível em
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/5064/4567> Acesso em
28.fev.2017
BASSNET, S. Post-colonial translation: theory and practice. Brighton: Routledge, 1999.
CAMPUZANO, B.S. Revelaciones y silencios: Autobiografía de un esclavo, de Juan Francisco
Manzano y Biografía de un cimarrón, de Miguel Barnet. In: Mitologías hoy. Universitat

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Autònoma de Barcelona. V.12, 2015. Disponível em


<http://revistes.uab.cat/mitologias/article/view/v12-campuzano> Acesso em 25.fev.2017
GIRON, L.A.; FINCO, N. A escravidão como ela foi. In: Revista Época. 21.02.2014.
Disponível em <http://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/02/b-escravidaob-como-ela-
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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da
Silva e Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2003a.
______. Da diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Organização de Liv Sovik. Tradução
de Adelaine La Guardia Resende et al. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação
da UNESCO no Brasil, 2003.
SANTOS, B.S.; MENESES, M.P. (orgs.) Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina
S/A, 2009.
SPIVAK, G.C. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos
Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.
______. The Post-Colonial Critique. In: HARASYM, Sara. (org.) The Post-Colonial Critique,
Interviews, Strategies, Dialogues. Nova Iorque: Routledge, 1990.

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CALÇOS E PERCALÇOS NA ÁREA DE BABEL:


ESBOÇO DE UMA ANTROPOLOGIA DA TEXTUALIDADE

ALAIN, Ricard. Le sable de Babel, traduction et apartheid: esquisse d’une


anthropologie de la textualité. Paris: CNRS EDITIONS, 2011, 447p.

Yéo N’gana1

O desconhecimento da(s) literatura(s) africana(s) – que foram por muito tempo


negligenciada(s), vilipendiada(s) e, por fim, deixada(s) esmorecer no estômago do tempo,
à mercê do suplício criado pela desavença entre a oralidade e a escrita – vem afastando
cada vez mais a África da humanidade e dificultando a compreensão da África pela
humanidade. Em Le sable de Babel, traduction et apartheid : esquisse d’une
anthropologie de la textualité [“A areia de Babel, tradução e apartheid: esboço de uma
antropologia da textualidade2”, tradução literal], obra de 447 páginas dividida em 14
capítulos com uma extensa introdução, Alain Ricard leva o/a leitor/a a uma viagem, ao
mesmo tempo sensacional, com contos de fadas e mitologias, e tensa, com choques
culturais, históricos e político-ideológicos desde a revolução haitiana até a libertação de
Nelson Mandela.
Alain Ricard nasceu em 1945. Foi professor e diretor emérito de pesquisa no
Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS - Centro Nacional de Pesquisas
Científicas), pesquisador no Institut de Recherche pour le Développement (IRD), diretor
do CREDU hoje Institut français de recherche en Afrique (IFRA - Instituto Francês de
Pesquisa na África), redator chefe e diretor da revista Politique Africaine. Além de ter
sido fundador da Association Pour l’étude des Littératures Africaines (APELA –
Associação para o estudo das Literaturas Africanas), foi membro/pesquisador da Les
Afriques dans le monde (LAM - As Áfricas no mundo). Ganhou, em 2002, o prêmio

1
Doutorando em Estudos de Tradução, possui Graduação em Letras (Português) pela Universidade Félix
Houphouët Boigny (UFHB – 2010) e Mestrado em Letras (Sociolinguística) pela Universidade Félix
Houphouët Boigny (UFHB – 2014). Especialização em Desenvolvimento Sustentável e Gestão Ambiental
pelo Centre de Recherches et d’Action pour la Paix (CERAP). Tem experiência em ensino de inglês (Centro
Cultural americano – American Corner CIRES). Atualmente é Membro do Núcleo de Pesquisa História da
Tradução (CNPq/UFSC). Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. E-mail: nganayeo@gmail.com.
2
A tradução dos títulos e citações neste trabalho é da nossa autoria.

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Humboldt pelo conjunto da obra sobre as literaturas africanas. Faleceu em agosto de 2016.
Já na introdução de Le sable de Babel, Ricard faz questão de definir conceitos –
revolução, babel, apartheid, missão de Paris, texto e textualidade, e o possível nexo entre
tradução “dialógica” e “subliminal” – que lhe parecem essenciais para mergulhar na
viagem que o texto propicia. Para tanto, sua abordagem foi a chamada “antropologia da
textualidade”. A partir de exemplos variados e estendidos no tempo (num período de
aproximadamente 200 anos) e no espaço (do leste passando pelo sul e centro até a região
subsaariana da África), Ricard busca mostrar historicamente a relação línguas-discursos-
genética textual. Entre suas preocupações, nos deparamos com as seguintes perguntas:
“De onde vem (esse discurso)? Como chegou nas nossas mãos? Será que é o original?
Como textualizá-lo, isto é, o processo que, através de discursos duráveis e traçáveis,
produz textos?” (p. 39). A traçabilidade do discurso é capital (Toulabor, 2013), pois
permite ao fragmento do texto “ser assinalável a uma instância específica, identificável
no campo dos discursos, situado numa sequência cronológica que possibilita rastrear sua
gênesis.” (Ricard, 2011, p. 39) Tendo o apoio financeiro de diversas instituições de
pesquisa, Ricard vem retraçando o destino pouco comum desses discursos textualizados
partindo de 1800 até hoje. O autor destaca a importância dos trabalhos de monges tanto
de La Mission de Paris (Eugene Casalis, 1812-1891; Victor Ellenberger, 1879-1972)
quanto da London Missionary Society (Robert Moffat, 1795-1883; Hinrich Lichtenstein,
1780-1857) preocupados em entender as línguas e mentes africanas para posteriormente
traduzir a Bíblia nesses idiomas, e assim introduzir e expandir as culturas coloniais
eurocêntricas. Ricard também tem consciência do quão fundamental a tradução é num
projeto de tal envergadura. Por isso, procurou neste livro explorar a complexa relação da
prática da tradução como ponte com o apartheid3. Poliglota, Ricard leu e comparou
diversas obras tais como as de Thomas Mofolo (Moeti Oa Bochabela, 1907; Pitseng,
1910; Chaka, 1925) originais na língua sesoto e suas traduções para o inglês sem ficar no
labirinto semântico de um tradutor/intérprete, e conversou também com Ebrahim
Hussein, o mais notório dos escritores em Swahili e do teatro tanzaniano.
Bem escrito e fluido, o texto é agradável de ler especialmente pelo caráter
instigador e convidativo dos títulos de seus capítulos, a saber: Chapitre premier:
Interprètes et philologues: Comprendre des langues inconnues (Interpretes e filólogos:

3
Instituição regida por um conjunto de [pre]conceitos e leis que privilegiam a separação racial.

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compreender línguas desconhecidas); Chapitre 2: La traduction dialogique (A tradução


dialógica); Chapitre 3: La textualisation du terrain (A textualização do campo); Chapitre
4: Orientalisme et Africanisme (Orientalismo e Africanismo), Chapitre 5: Un espace
d’avant l’Apartheid (Um espaço anterior à Apartheid); Chapitre 6: L’émergence de la
figure de l’écrivain (A emergência da figura do escritor) Chapitre 7: Des écrivains à la
Mission (Escritores na Missão); Chapitre 8: Le partage des langues (A divisão das
línguas); Chapitre 9: La traduction est aussi une lutte (Traduzir é também lutar); Chapitre
10: La traduction inutile? (Seria a tradução inútil?); Chapitre 11: La traduction comme
principe créateur (A tradução como orto da criação); Chapitre 12: Traduction et
Tradition (Tradução e Tradição); Chapitre 13: La traduction comme (re)configuration
(A tradução como [re]configuração) e Chapitre 14: La traduction subliminale (A
tradução subliminal).
Em Le sable de Babel, percebe-se a preocupação, embora implícita, de Ricard, e
seus esforços, pelo menos intelectualmente, para moldar o cenário e descolonizar as
mentes europeias e/ou eurocentristas que continuam enxergando a África e as produções
africanas com condescendência, como exóticas. Isso levanta os velhos questionamentos
tais como: “O que é literatura?”, “O que é literário?”, “Quem determina a literariedade de
um texto?” Alain Ricard não está convencido acerca desse conceito cujo significado, além
de instável, é uma concepção de cada leitor, a qual está sujeita à sua cultura e à sua
história. Por isso, não acredita na literariedade dos textos, mas [sim] nos usos literários
que se faz deles (p.37). A ética humanista do autor fez com que percebesse que no
contexto africano, uma categorização desse tipo seria um genocídio cultural, linguístico,
literário ou simplesmente civilizacional. Neste trabalho, Ricard se remete, e convida o/a
leitor/a, à textualização, a seleção de fragmentos de discursos duráveis transformados em
textos: o que importa, aqui, é a memória. A própria textualização ou metamorfose do
discurso apresenta-se como uma forma de interpretação, de tradução principalmente
quando vindo de bardos basoto, zulo, xhosa, etc, cujas produções combinam contos,
cantos e performances..
A tradução foi e continua sendo, para alguns, uma missão. No caso da África
Austral, conforme foi apresentado na obra, a tradução revelou-se uma afiliada do
apartheid, [re]construindo a Torre de Babel, impondo barreiras, espacializando e
classificando línguas que até então conviviam. Ela foi naturalizada e passou do estatuto

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de mediadora para o de divisora. Ao invés de romper ou amenizar os estorvos linguísticos


e assim possibilitar o encontro, a tradução foi usada pelo sistema colonial para exterminar
culturas locais, desorganizar os sistemas educacionais existentes e vilipendiar tradições.
Como dizia Jean-Marie Adiaffi, escritor marfinense:

Se você quer alcançar um povo na sua mais profunda intimidade, se você quer
desenraizar um povo, se você quer desesperar, desequilibrar um povo, se você
quer tornar um povo vulnerável para abatê-lo com uma facilidade pueril, isto é,
se você quer assassinar infalivelmente um povo, se você quer matá-lo de uma
ciência exata: destrua sua alma, profane suas crenças, suas religiões. Negue sua
cultura, sua história, queime tudo que ele adora e o objetivo será alcançado, sem
que você mesmo perceba. O que vale um povo que não sabe mais interpretar
seus próprios signos? Que força moral, que solidez pode ter um povo que perdeu
a significação de seus próprios mitos, de seus símbolos? Um estrangeiro para si
mesmo. (1980, p.39; tradução nossa)

Para falar em tradução dialógica, Ricard aposta na importância das trocas com os
nativos tanto linguisticamente, como na negociação dos significados. Enfatiza a
necessidade de se haver um percurso bilateral, até multilateral, no que tange à escolha dos
próprios discursos e/ou textos e dos autores a serem traduzidos. O que o tradutor quer é
alcançar o mundo, e o que o escritor busca é ir até o mundo. E nessa inevitável meta que
ambos têm em comum, textualizar é produzir um discurso para o mundo. Por isso, Alain
Ricard traz à luz as reflexões da Antje Krog, escritora e tradutora sulafricana, sobretudo
pela visão desconstrutivista que ela tem do fazer tradutório. Traduzir, na concepção de
Krog, é interferir nas relações entre as línguas, é dar um peso político e verbal às línguas
dominadas (in Ricard, p.394). Isso significa, um tradutor intervencionista ciente da sua
tarefa e com um escopo bem definido. Ideia essa que Ricard abraçou ao longo do seu
trabalho quando diz que “a tradução é conversação, discurso dialógico, diálogo entre
línguas e pessoas, na utopia da igualdade formal entre os falantes e as línguas” (Ricard,
2011, p.161). Pois, a “democracia impõe a traduzibilidade generalizada: uma voz
equivale à outra, uma língua equivale à outra” (idem).
Em Le sable de Babel, traduction et apartheid : esquisse d’une anthropologie de
la textualité, o autor examina sincronica e diacronicamente o impacto da tradução do
imaginário e/ou mitos em línguas africanas para as línguas europeias e vice-versa. No
entanto, quanto ao resultado, Ricard permanece cuidadoso ao dizer que “a arrogância
cultural é a característica dominante nas relações [do ocidente, nossa ênfase] com as
línguas do Sul, da Índia ou da África. Isto deveria nos levar a refletirmos sobre os limites

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dos processos de mundialização” ( p.17). Talvez frutos da midialização? O autor chama


a atenção para o fato de que a colocação das línguas europeias como modelos vêm
influenciando muitos escritores africanos – que escreviam nas línguas locais e cujos
trabalhos eram desprezados, arquivados e dificilmente publicados pela administração
colonial / apartheid. Esses autores passaram a praticar o que Ricard denominou “estratégia
de ostentação e autenticação” para ambos reconhecimento4 e ganha-pão.
Na última parte do livro, Alain Ricard deplora o fato de a tradução das línguas
africanas ter sido um projeto mal compreendido e, por vezes, visto como “inútil”. A
reação dos escritores pelo viés da textualização subliminal à imagem do marfinense
Ahmadou Kourouma e camaronês Ferdinand Léopold Oyono, segundo Ricard, vem
invertendo o jogo e criando um tipo de normas nessa neoBabel [nossa ênfase]
nomeadamente com o sucesso de suas obras. Outros aspectos importantes que Ricard
problematiza são a autotradução (Ngugi wa Thiong’o), a relexificação (Chantal Zabus) e
seu impacto político (Alexis Kagame, Okot p’Bitek, etc.).
Resumindo, Ricard defende a ideia de se produzir uma literatura em línguas
africanas e a necessidade de promoção desses textos. É desse projeto que poderia surgir
o diálogo intercultural e interpessoal que levaria para uma intercompreensão entre os
povos, O que exige uma conversação entre autores, literatos, tradutores e editores. Alain
Ricard deixa aberta à reflexão ao afirmar que a história da discriminação tem ocorrido no
campo linguístico que continua sendo uma passarela perfeita para outras questões.
Portanto, “as questões linguísticas sendo presas nas correntes de relações de poder, pode
a tradução desempenhar um outro papel, a não ser o de um “ato desesperado para se saber
o que é novo na nova África do Sul?” (p. 393) Ou na África como um todo? Pelo menos,
para Mandela, a tradução propiciaria a convivência.
Este é um livro para todo pesquisador ou leitor, tout-court, interessado pela
temática “África” e, sobretudo, pela história da(s) literatura(s) africana(s). Rico em
detalhes sobre o percurso das formações linguísticas e societais conforme mostra a
extensão da bibliografia utilizada, este importantíssimo livro já foi resenhado duas vezes
em francês por Maria Chiara Miduri e Bernard De Meyer; e três vezes em inglês por
Françoise Ugochukwu, Moradewun Adejunmobi, e Phyllis Taoua.

4
Esta questão do reconhecimento também levantada por Paul Bandia em ͞Orality and Translation͟ e
͞Post-colonial Literatures and translation͟.

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REFERÊNCIAS:

ADIAFFI, J-M. La carte d’identité. Abidjan: CEDA, 1980.

RICARD, Alain. Le sable de Babel, traduction et apartheid : esquisse d’une


anthropologie de la textualité. Paris : CNRS EDITIONS, 2001, 447 p.

___. Entrevista pela Valérie Marin la Meslée. Paris: lepoint.fr. Disponível em:
http://afrique.lepoint.fr/culture/pour-saluer-alain-ricard-page-2-02-09-2016-
2065490_2256.php

TOULABOR, Comi M. A. Ricard, Le sable de Babel : traduction et apartheid. Compte-


rendu paru dans « La revue des livres », Politique africaine 1/2013 (N° 129).
http://polaf.hypotheses.org/291

LES AFRIQUES DANS LE MONDE. “Alain Ricard : Hommage”. Disponível em :


http://lam.sciencespobordeaux.fr/users/alain-ricard

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A ANÁLISE DAS LITERATURAS FRANCÓFONAS E DA


MUNDIALIZAÇÃO NO LIVRO DE NADÈGE VELDWACHTER

VELDWACHTER, Nadège. Littérature Francophone et mondialisation. Éditions


Karthala. Collection dirigée par Henry Tourneux, Paris: 2012.

Kall Lyws Barroso Sales1

O livro Littérature francophone et mondialisation2 foi escrito pela professora


Nadège Veldwachter, intelectual negra, doutora em Estudos Francófonos, maître de
conférences em literaturas francófonas na Universidade de Purdue, Indiana, Estados
Unidos. Nascida em Guadalupe, a pesquisadora fez seus estudos universitários na
França, depois na Universidade do México para em 2005 defender sua tese intitulada:
Políticas literárias: jogos de espelho, paratexto e traduções do discurso antilhano na
França e nos Estados Unidos3, discussão que também encontra seus desdobramentos na
presente obra. Perceber seu percurso acadêmico ajuda-nos a observar que durante suas
reflexões teremos a presença de leituras americanas que são relacionadas com autores
da Teoria Francesa, particularmente Derrida e Foucault, e com teóricos antilhanos tais
como Glissant e Confiant.
Como sua área de expertise são os estudos pós-coloniais, sociologia da cultura,
tradutologia e cultura francesa contemporânea, ela apresenta uma leitura das literaturas
de expressão francesa dentro de seus sistemas de recepção e de comercialização na
francosfera. Dessa forma, ao começar seu estudo com a clássica pergunta “o que é a
literatura?” a autora decide dialogar com o modelo de literatura proposto por Jean-Paul

1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução na Universidade Federal de Santa
Catarina e Mestre em Estudos da Tradução também pela mesma Universidade. Foi professor de Língua
Francesa e Literatura Francesa na Universidade Estadual do Ceará e professor das disciplinas de Francês
do Curso de Hotelaria do IFCE. Tem especialização em Estudos da Tradução pela Universidade Federal
do Ceará. Graduado em Letras com habilitação em português, francês e respectivas literaturas.
2
Literatura Francófona e mundialização. [a obra ainda não possui um tradução para o português, portanto
todas as traduções sem referência serão do autor desta resenha].
3
Politiques littéraires: jeux de miroir, paratextes et traductions du discours antillais en France et aux États-
Unis.

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Sartre, fazendo uma discussão sobre a questão literária sob um viés material e
sociológico, ou seja, da literatura como elemento indissociável de seu suporte: o livro.
Ao citar Leenhardt, percebemos que seu estudo versará sobre a discussão entre livro,
obra literária e leitura como componentes essenciais para a existência da literatura.
Com o avanço das tecnologias, o início dos anos 80 mostrou que a comunicação
se globalizou e que movimentos que rompem a clássica fronteira nacional e as novas
atividades econômicas da indústria da comunicação foram responsáveis pela união do
som, da imagem e do texto. Por isso, em sua introdução, a autora deixa evidente que seu
livro se propõe a estudar as ambiguidades que afetam a articulação entre as leis do
mercado que ditam os interesses globais, nacionais e locais, ao mesmo tempo em que
defende a noção de diversidade e, para tanto, se vale do estudo da literatura em dois
vieses: o primeiro de entender o texto como forma discursiva, metafórica e simbólica, e
o segundo de apresentar os fatores exteriores ao texto dando ênfase aos métodos de
fabricação e seu valor de mercado. Assim, nesse cenário de fronteiras opacas, entram
em jogo na literatura dinâmicas identitárias complexas através das noções de hibridação
que, entretanto, não acompanham de forma satisfatória a consciência do Outro, pois
muitas vezes as forças globalizantes e capitalistas não se engajam em um verdadeiro
sentido de coabitação.
Ao utilizar o conceito de “tecnologias do reconhecimento” de Shu-mei, a autora
apresenta que a lógica de produção de literatura vem imbricada em uma constelação de
discursos, em práticas institucionais, em produção acadêmica e em outras formas de
representação que criam e sancionam conceitos, fazendo com que os sistemas de centro
sejam entendidos como agentes de reconhecimento enquanto que o “restante” periférico
seja entendido como objeto a ser reconhecido4.
Assim, no primeiro capítulo, intitulado: a edição nas Antilhas e em África
subsaariana francófona: um mapa dos lugares5, a autora apresenta as duas vertentes da
palavra mundialização. O texto faz uma diferença entre usar o termo Globalização e
Mundialização, pois ambos têm conceitos distintos. Para a autora, ao citar Michel

4
Ao citar o texto de Shu-Mei a autora cita a passagem de seu texto em que apresenta um jogo de palavras
entre “West” [Ocidente] como agente de reconhecimento e “the Rest” [o Resto] os países entendidos
como periféricos que são objetos de reconhecimento.
5
L’édition aux Antilles et en Afrique francofone subsaharienne: un état des lieux.

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Gillou, a mundialização deve ser entendida como o processo neutro de extensão das
tecnologias modernas, dos meios de comunicação e de suas técnicas enquanto que a
globalização seria a utilização do processo de mundialização pelos Estados Unidos e
pelas potências anglófonas para expandir seu conceito de mundo, seu comércio, cultura
e língua. (Tece também uma) crítica à cocacolonização, ou seja, ao imperialismo do
consumo que submete o planeta ao modo de vida e de mercado dos países do Norte,
atacando as culturas não hegemônicas. Há uma hierarquia também linguística entre as
línguas europeias e as não europeias, fazendo com que aquelas sejam confundidas com
a produção de comunicação e de conhecimento e as outras “simples criadoras de
folclores e culturas” (2012, p.39).
A autora, portanto, faz uma discussão de termos como “mestiçagem”,
“hibridação cultural” e “glocalização”, sendo este último uma palavra que engloba o
global e o local, um processo de globalização que tem limites e deve se adaptar às
realidades locais, mais do que ignorá-las ou destruí-las. Para tanto, faz uma análise das
editoras insulares da América Central, começando pelo Haiti depois pela Guiana, que é
incluída por necessidades de categorização do trabalho, Guadalupe, Martinica. Também
um levantamento da produção nas ilhas do Caribe, elencando a importância da criação
da Université des Antilles-Guyane nos anos 70 que favoreceu o surgimento das edições
universitárias. Também apresenta a década de 90 como fundamental para o surgimento
e difusão do mercado do livro por Jean-Louis Malherbe na Guiana em 1995, Guadalupe
em 1998 e em 2000 na Martinica.
Ao apresentar uma entrevista com Malherbe, a autora evidencia a problemática
articulação na vendagem de livros no Caribe, pois, segundo Malherbe, somente autores
conhecidos são bem vendidos, e isso se deve mais ao nome do autor do que
propriamente da qualidade do texto. Outro problema no território recortado das ilhas é
que um autor conhecido em Guadalupe não será vendido nem na Guiana e nem na
Martinica e vice-versa. O uso do crioulo na produção literária também gerou impasses
na produção da literatura, não só na produção de textos, mas também na quase
inexistência de leitorado para os romances, estudos, gramáticas, dicionários de língua
crioula. O arquétipo do leitor antilhano é predominantemente francófilo (2012, p.53).
Depois apresenta as edições francófonas na França, fazendo uma distinção entre
as editoras dos generalistas, das vozes autorizadas, e das editoras especializadas e como

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os autores não-europeus entram nessa máquina das edições, já que o escritor africano
está confinado a um horizonte bem definido, tanto sobre a natureza de sua temática
quanto de seus escritos e a urgência dessa literatura engajada é, segundo as palavras de
Fanon, um “convite à ação, de se engajar de corpo e alma no combate nacional”. Ao
final, percebemos que a ideia das editoras de criar uma categoria para a literatura de
outros países francófonos, ou “de criar uma coleção específica de literatura negra” é
uma forma de guetizar e de marginalizar a produção literária.
No segundo capítulo intitulado: a literatura-mundo em francês, para além da
Francofonia?6 temos uma apresentação da Literatura-Mundo produzida em língua
francesa e uma análise do que a autora chama de Mercado das Línguas segundo o
conceito de Wallerstein, que observa nesse mercado uma lógica que apresenta uma
língua hiper-central, o inglês, que corresponde a mais ou menos a metade de todos os
livros traduzidos. Depois temos as línguas centrais, francês e alemão, que representam
10 e 12% do mercado mundial das traduções. Em seguida, temos oito línguas que
ocupam uma posição semiperiférica como, por exemplo, o espanhol e o italiano, com
uma parte nesse mercado que varia de 1 a 3%. As outras línguas que correspondem a
menos de 1% das produções nesse mercado são consideradas periféricas, mesmo que
representem grandes grupos de falantes como, por exemplo, o chinês, o árabe e o
japonês.
Para ampliar essa força da língua no panorama geopolítico da literatura,
Promoveu-se a exportação das edições francesas para o mundo, fazendo com que as
exportações dos livros valessem, em 2008, 695 milhões de euros com uma difusão dos
livros nos 5 continentes. Essa análise propriamente econômica do mercado de venda e
exportação de livros mostra que a produção literária francesa é consumida em sua
maioria pela união europeia ou pelos países da francofonia do Norte. A partir dessas
informações, a autora apresenta um manifesto intitulado Pour une littérature-monde en
français publicado em 2007 que buscava o fim da francofonia e o nascimento de uma
Litreatura-Mundo. A discussão desse manifesto consistia em desconstruir as barreiras
estipuladas pelo pensamento dicotômico entre centro e periférico que existe dentro do
conceito da francofonia. Logo depois, surge o livro Pour une Littérature-Monde

6
La littérature-monde en français, au-delà de la francophonie?

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organizado por Jean Rouaud e Michel Le Bris, que prolonga os ideais do manifesto.
Mesmo buscando uma diferença metodológica e conceitual da francofonia, o manifesto
recebeu alguma crítica como a de Abdou Diouf, secretário geral da Organização da
Francofonia, que acrescentava uma confusão existente dentro do manifesto ao confundir
francofonia com francocentrismo, defendendo a força de uma francofonia aberta e
diversa, ao entender que o francês não pertence apenas aos franceses, mas a todos
aqueles que aprenderam, estudaram e escolheram o francês como língua para criar
culturas, imaginários e difundir seus talentos.
A autora termina o segundo capitulo falando sobre a tradução dos autores
antilhanos e a importância das editoras universitárias para a produção e divulgação dos
textos literários do Caribe, principalmente as editoras no meio anglófono. Dentro desse
mercado de produção universitária, mais uma vez a autora faz uso do texto de Casanova
para usar a terminologia financeira de “capital literário” da autora e evidenciar o papel
da tradução num mercado inegável como fenômeno linguístico e cultural de distribuição
de produtos literários o que ela chama de “operações de tradução”. Percebemos, então,
que a tradução se torna um espaço sociológico e econômico transnacional que circula e
que tem a função de consagrar um campo literário.
Em seu terceiro capítulo intitulado O avesso das capas: da exposição ao
espetáculo7 a autora apresenta uma análise minuciosa sobre a produção de livros e
analisa o que ela chama de “máquina editorial”, atendo-se a análise das capas e da
apresentação de paratextos das obras francófonas das Antilhas e de África francófona.
Para sua análise, ela apresenta um interessante diálogo entre textos de Michel Foucault,
Homi Bhabha e o texto Paratextos Editoriais de Gérard Genette, para conceituar e
analisar a produção dos paratextos e das paratraduções. Após apresentar conceitos e
textos teóricos, a autora seleciona os romances da escritora Maryse Condé publicados
na França e suas traduções para outras línguas, analisando a lógica das relações de
poder que existem entre edição e discurso sobre a produção de literatura negra.
Antes de começar a análise dos paratextos literários, a autora faz uma reflexão
sobre a representação da população negra na França, nos Estados Unidos e na
Alemanha. Ela evidencia como a manifestação histórica do racismo dessas comunidades

7
L’envers des couvertures: de l’exposition au spectacle.

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foi um importante elemento na constituição e interpretação da literatura de autores


negros. Dessa forma, sua análise começa com a introdução das performances negras nos
circuitos das grandes metrópoles da Europa do começo do século XX, onde o exotismo
e a cultura do espetáculo consumiam as culturas não-europeias. A autora analisa
exemplos como a marca “Y’a bon, Banania”, as apresentações de comunidades
humanas em galerias de arte e a performer e dançarina Josephina Baker, conhecida
como “Vênus Negra”. Assim a autora faz uma relação entre o fenômeno do exotismo na
arte com o exotismo na produção e difusão da literatura ao analisar os paratextos de
edições dos romances de Maryse Condé e também de suas traduções para países
anglófonos e germanófonos.
Em seu último capítulo intitulado Marronage littéraires: quand l’Autre se fait
hôte a autora usa o termo “marronage” termo utilizado no período colonial para se
referir às pessoas escravizadas que fugiam das fazendas nas quais eram exploradas.
Nesse capítulo a autora faz um trabalho específico de análise de tradução fazendo um
diálogo entre os textos clássicos de Benjamin, Meschonnic e Venuti sobre tradução.
Com relação à tradução de literatura, outra discussão interessante da autora é questionar
o conceito de traduzibilidade e intraduzibilidade em um sentido político, pois durante
muito tempo e principalmente pelo texto de Walter Benjamim, A tarefa do tradutor, a
noção de intraduzibilidade era analisada, em grande parte, pelo seu sentido estético,
deixando de lado a sua função instrumental e o nível político da noção de
intraduzibilidade. Por isso, a recepção de uma literatura nômade, uma literatura
traduzida, é extremamente complexa e, segundo a autora, só pode ser apreendida ao se
determinar os contextos sócio-político-econômicos da escrita, da publicação e da leitura
de maneira concomitante.
Dessa forma, este capítulo também dedica uma análise da tradução e da estética
do escritor Raphaël Confiant que produz obras literárias em crioulo e em francês. No
capítulo, podemos perceber que o autor, segundo Veldwachter transcende a dimensão
dicotômica de texto de partida e de texto de chegada o que exige do seu leitor uma
simultaneidade na leitura da obra literária, ora escrita em francês, ora em crioulo. O uso
do crioulo na produção literária também gerou impasses na produção da literatura, não
só na produção de textos, mas também na quase inexistência de leitorado para os
romances, estudos, gramáticas, dicionários de língua crioula. O arquétipo do leitor

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antilhano é predominantemente francófilo (2012, p.53). Não se pode negar que o livro
hoje é exclusivamente controlado pelos estados, financiadores e multinacionais do
Norte. Para afirmar o texto apresenta uma tabela com dados de 2011 sobre as
Exportações para a África francófona em milhares de euros, mostrando um crescimento
na exportação de 2007 até 2010 e a evolução média da arrecadação de 21 países de
África. (2012, p.59). Mesmo assim, Confiant parece mostrar que é possível se abrir ao
outro sem se renegar e se apropriar de sua identidade sem permanecer enclausurado
nela, representando em sua literatura uma dupla perspectiva de se e do outro, do local e
do global.

REFERÊNCIAS:

HALEN, Pierre. "Aucun titre". In: Études littéraires africaines 34. Traductions
postcoloniales Numéro 34, 2012. p. 116-118.

ZAMBO, Claude Éric Owono. Note de Lecture. Disponível em:


http://www.latortueverte.com/Note%20de%20Lecture%20Claude%20E%20Owono%20
Nadege%20VELDWACHTER.pdf Acesso 10 jan. 2017.

VELDWACHTER, Nadège. Littérature Francophone et mondialisation. Éditions


Karthala. Collection dirigée par Henry Tourneux, Paris: 2012.

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“O DESTRUIDOR”,1 DE FRANK MARTINUS ARION

Daniel Dago2

RESUMO: Frank Martinus Arion (1936-2015) nasceu em Curaçao. Foi poeta e


romancista. Seu principal romance, Jogo duplo (Dubbelspel, 1973), é considerado um
clássico contemporâneo das letras holandesas. O presente conto faz parte do livro O cão
eterno (De eeuwige hond, 2001).

ABSTRACT: Frank Martinus Arion (1936-2015) was born in Curaçao. He was a poet
and a novelist. His main novel, Double Play (Dubbelspel, 1973), is considered a
contemporary classic of Dutch literature. The present short story is part of the book The
eternal hound (De eeuwige hond, 2001).

PALAVRAS-CHAVE: Frank Martinus Arion, De eeuwige hond, De Nozem, Literatura


Negra, Literatura Negra Caribenha.

KEYWORDS: Frank Martinus Arion, O cão eterno, O destruidor, Black Literature,


Caribbean Black Literature.

1
Comentário do tradutor: esse conto possui um título bastante difícil de traduzir. "Nozem", em holandês,
literalmente, é "jovem delinquente". Também poderia ser "brigão" ou "arruaceiro". Preferimos "destruidor"
pelo contexto, pois o filho destrói a vida de diversas pessoas.
2
Daniel Dago é tradutor de holandês. Traduziu diversos clássicos da Holanda, como Max Havelaar, de
Multatuli; Sobre pessoas velhas e coisas que passam..., de Louis Couperus; entre muitos outros. Organizou
e traduziu a primeira antologia do conto holandês feita em língua portuguesa e na América Latina, Contos
holandeses (1839-1939) [editora Zouk, 2017].

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De Nozem
Frank Martinus Arion

Wie treft de schuld dat hij zo is?


Vader is de deugd in eigen person: een betrouwbare man, die tevreden is omdat
hij nooit meer wil dan wat het leven geeft. Hij houdt van Vader, vooral van Vaders ogen,
die grijs zijn en diep onder het voorhoofd staan. Altijd schijnen die ogen waker te zijn,
zelfs waneer Vader slaperig is.
Hij houdt ook van moeder, maar op een heel andere manier.
Van Vader houdt met bewondering, van moeder met medelijden, want moeder is
zwak.
Hij denkt aan zichzelf. Hij zal waarschijnlijk nooit te weten komen wiens schuld
het is dat hij zo is; dat hij, hoezeer hij ook het rechte pad op wil, toch altijd weer aan de
verkeerde kant van het juiste belandt. Daarom is hij van school gestuurd, vroeger, omdat
ze daar ook niet begrepen dat hij met alle geweld het goede wilde doen maar altijd bij het
verkeerd uitkwam. Daarom is hij in een tuchtschool terechtgekomen: hij was achttien en
reed op de eenzame buitenterreinen van zijn stad waar men bezig was nieuwe flats te
bouwen.
Hij reed maar wat te dwalen op zijn fiets, zich afvragend waarom hij was zoals hij
was. Want met die vraag was hij altijd bezig. Toen zag hij het meisje. De weg was lang
en verlaten. Heel in de verte brandden de stadslichten.
Het meisje liep hem tegemoet. Hij reed haar voorbij bij een straatlantaarn en zag
dat ze er aantrekkelijk uitzag. Hij groette niet; hij zei niets tegen haar; hij reed haar
voorbij. Honderd meter verder zag hij de man. De man liep hem tegemoet. Hoj groette
niet; hij zei niets tegen de man; hij reed de man voorbij, maar zag dat het gezicht van de
man erg gespannen was.
Honderd meter verder dacht hij nog steeds aan het meisje en de man, aan het
gespannen gezicht van de man.
De weg was verlaten, heel verlaten. Wat zou er met het meisje gebeuren als de
man iets kwaads in de zin had? Bij die gedachte stapte hij af, zette zijn fiets aan de kant
van de weg en keerde te voet terug, de man en het meisje achterna. Hij was van plan iets

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goeds te doen. Hij was in ieder geval van plan te voorkomen dat er iets kwaads
plaatsvond.
Het meisje liep van de hoofdweg af. Door een labyrint van nog niet geheel
aangelegde wegen ging ze verder. Ze keek niet om. De man volgde haar. Hij volgde de
man. Nu zou Vader hein eens moeten zien, nu hij wilde helpen zoals Vader altijd hielp…
De man haalde het meisje langzaam maar zeker in. De man was nu heel dicht bij het
meisje. Hij volgde de man. Hij was nu heel dicht bij de man. De man keek niet om. De
man zag hem niet. Hij was woedend op de man en tegelijkertijd was hij blij dat het geweld
van ergens boven of onder hem, dat hem altijd dwarsboomde, hem nu de kans gaf om iets
goeds te doen.
De man liep nu bijna tegen het meisje aan, Hij haalde de man in. Hij greep de man
vast. Hij wierp de man op de grond. De man had dit verwacht, daarom kon hij ook niet
veel terugdoen. In een opwelling van vreugde, vreugde om het goede dat hij bezig was te
doen door de kwade opzet van de man te verhinderen, sloeg hij de man, sloeg hij de man...
Naar het meisje dal vliegensvlug wegrende keek hij niet om. Hij reed naar huis, met
vreugde in zijn hart. De stadslichten leken hoger te zijn opgeklommen, de stadslichten
blonken als echte sterren.
De man klaagde hem aan: de man was de bewaker van de bouwterreinen. De man
zei dat hij het meisje had willem aanranden en dat de man het meisje juist had gered. De
man maakte er een heel verhaal van. Men geloofde het meisje en de man en niet hem,
vooral toen de man en het meisje bekenden dat ze op weg waren naar hun liefdesnest in
een van de in aanbouw zijnde huizen. Hem stuurde men naar tuchtschool, omdat hij altijd
verkeerde dingen deed...

Vader heeft toen niets gezegd, Hij heeft zijn zoon alleen maar aangekeken
hopeloze blik in zijn grijze ogen. Moeder heeft bitter gehuild: zij geloofde haar jongen:
haar jongen is niet slecht, haar jongen wil altijd het goede doen. Heeft zijn moeder hem
geloofd omdat zij de enige is die weet hoe hij is, hoe zij zelfs is…? Omdat het misschien
háár schuld is dat hij zo is?
Daarna, na zijn twee jaar tuchtschool, heeft hij andere dingen gedaan; steeds goede
bedoelingen, steeds op een verkeerde manier.

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Hij denkt aan Vader. Hij ligt op bed in zijn eigen kamer. Zijn Vader zal binnen
zitten, zal bezig zijn met de krant. Hoe zullen de ogen van Vader nu kijken? Wakker?
Zullen ze nog die verre glans van tevredenheid hebben?
Neen, de grijze ogen van Vader zullen nu hulpeloos, hopeloos wanhopig over de
letters van de krant, omdat Vader weet, zoals hij weet, dat moeder, moeder die Vader zo
gelukkig wil maken, Vader bedriegt! Moeder is zo lief; Moede goed, maar ook zo zwak.
Zoals hij. Beiden willen ze Vader steeds gelukkig zien, beiden bedreigen ze steeds het
geluk van Vader. Moeder is zoals hij, precies zoals hij. Nu ze zich klaarmaakt om naar
haar minnaar te gaan, daar in de kamer naast de zijne, nu zal zij ook de strijd voeren die
hij zo vaak met zichzelf heeft gevoerd, en zoals hij bijna altijd deze strijd verloren heeft,
zo zal ook moeder nu haar strijd verliezen.
Ze zal de kamer uit komen, naar vader gaan en hem zeggen dat ze gaat bridgen.
Dan zal zij Vader een zoen geven op zijn voorhoofd. Vader zal haar een zoen geven op
haar voorhoofd en haar met die vergevende glimlach aankijken. Dan zal moeder de deur
uit gaan; naar haar minnaar. Maar ze zal zich niet de verliezer voelen omdar ze denken
zal: ik wil het eigenlijk niet. Ik wil hem niet bedriegen. Hij is zo goed, zo in-goed... En
toch zal ze op de tram stappen en Vader gaan bedriegen.

Hij houdt van Vader; intens veel; dat ondervindt hij de laastste weken elke avond
weer wanneer moeder is weggegaan. En hij lijdt omdat hij ziet dat moeder het geluk van
Vader bedreigt op een manier waarop hijzelf dit nooit heeft gedaan.
Hij bekijkt de kleine revolver in zijn hand. Hij staat op en voelt zicht heel zeker
van zichzelf. Haast onfeilbaar zeker weet dat dit het grote goede is dat hij altijd heeft
willen doen, dat dit onaanvechtbaar juist is. Hij heeft er lang over nagedacht. Dit is het:
dit is de enige manier waarop hij Vaders geluk kan behouden en moeder helpen kan.
Ze is weg nu. Hij loopt zijn kamer uit en naar Vader. Hij biedt Vader een sigaret
aan. Vader kijkt op en neemt de sigaret aan. Hij haalt zijn aansteker te voorschijn en steekt
de sigaret aan voor Vader. Hij ziet weer die blik in de diep onder het voorhoofd liggende
ogen…
Hij gaat het huis uit. Hij zal er zijn vóór moeder. Hij fietste hard, heel hard! Hij
voelt de wind niet en de sterren ziet hij niet.

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Het adres van de minnaar van zijn moeder is een symbool voor hem geworden.
Een wit symbool, een alles dekkend symbool, een symbool van het winnende goede.
Dit is de straat. Hij zet zijn fiets op de hoek van de straat; de straat is ook een
symbool. Hij gaat te voet verder; hij kijkt niet naar nummers. Hij wéét waar het is. Een
lantaarnpaal staat pal voor het huis van de minnaar van zijn moeder, dat is nummer
genoeg voor hem. Hij twijfelt even, want de lantaarnpaal staat niet pal voor één deur, mas
eigenlijk tussen twee deuren in. Hij rukt toch aan de bel. Een man doet open. Hij kijkt
niet naar het gezicht van de man. Hij loopt de man voorbij, het huis in. De man loopt hem
achterna. De man is verbaasd, verrast. De man begint hem uit te schelden. Hij grijpt de
man aan.
Hij vraagt niets, vraagt niets, zegt niets, zegt niets.
Hij werpt de man op de vloer. De man heeft dit niet verwacht, daarom kan de man
ook niet veel terugdoen. Vader moest hem nu eens kannen zien. Zouden de grijze ogen
nu wel weer wakker staan en vol van tevreden, diepe verten? In een opwelling van
vreugde, vreugde om het goede dat hij bezig is te doen, slaat hii de man, slaat hij de man!
Daarna drukt hij de revolver tegen het hoofd van de man en schiet.
Dan gaat hij vlug naar buiten. Hij kijkt niet om naar de man. Hij zal zijn moeder
opwachten en haar meenemen naar huis, terug naar Vader…
Net op tijd is hij klaar: moeder komt aan. Hij drukt zichzelf plat tegen de deurpost.
Hij zal wachten tot moeder heel dicht bij hem is. Moeder zal hem dan zien; moeder zal
weten dat hij haar geholpen heeft en moeder zal blij zijn. Ze heeft altijd het goede gewild
maar meestal het kwade gedaan, omdat zij evenals hijzelf het kwade niet alléén aankan,
omdat niemand het kwade allen aankan.
Moeder is dicht bij hem nu. Hij kan het parfum van haar haren ruiken. Ze zal hem
herkennen, het is niet al te donker. Ze zal hem herkennen… Maar… moder, moeder,
moeder! Moeder loopt hem voorbij!
De sterren staan laag aan de hemel, alsof ,mensenhanden, die niet hoog reiken, ze aan de
hemel hebben geplant… Moeder loopt hem voorbij, is hem voorbij en belt al aan de deur
naast de deur die hije is ingegaan om haar minnaar neer te schieten. Een man in kamerjas
doet open. Moeder en de man in kamerjas gaan lachende naar binnen.

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O destruidor
Frank Martinus Arion

Quem leva a culpa que ele tem?


O Pai é a virtude em pessoa: um homem confiável, que estava feliz, pois não
queria mais do que a vida podia dar. Ele gostava do Pai, em especial de seus olhos,
acinzentados e afundados sob a testa. Parecia que aqueles olhos sempre estavam
acordados, até mesmo quando o Pai dormia.
Ele também gostava da mãe, mas de uma maneira totalmente diferente. Gostava
do Pai com admiração, gostava da mãe com pena, pois ela era fraca.
Ele pensa em si mesmo. Realmente, nunca saberia de quem era a culpa por ele
ser assim; que ele, por mais que quisesse tomar o caminho certo, sempre acabaria do lado
errado. Por isso tinha sido mandado à escola, no passado, pois não compreendiam que ele
queria usar toda aquela violência para o bem, mas sempre acabava de forma errada. Por
isso ele terminou no reformatório: aconteceu quando tinha dezoito anos e foi às áreas
solitárias da cidade, onde construíam novos blocos de moradias.
Ele estava só passeando de bicicleta, perguntando-se porque era como era. Sempre
ficava pensando nessa pergunta. Então viu a moça. A estrada era extensa e abandonada.
Bem ao longe, via-se as luzes da cidade.
A moça foi em sua direção. Ele passou por um poste e viu que ela parecia atraente.
Ele não a cumprimentou; não disse nada à ela; passou por ela. Cem metros adiante viu o
homem. O homem foi em sua direção. Ele não o cumprimentou; não disse nada ao
homem; passou pelo homem, mas viu que seu rosto estava bastante tenso.
Cem metros adiante ele ainda estava pensando na moça e no homem, no rosto
tenso do homem.
A estrada estava abandonada, bem abandonada. O que aconteceria com a moça se
o homem tivesse bolado algo de mau? Ao pensar nisso, ele colocou a bicicleta num canto
da estrada e foi a pé, seguir o homem e a moça. Planejava fazer algo de bom. Em todo
caso, planejava evitar que algo de mau acontecesse.

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A moça saiu da rodovia. Continuou andando por uma estrada labiríntica ainda em
construção. Não olhou para trás. O homem a seguiu. Ele seguiu o homem. O Pai tinha
que vê-lo agora, ele só queria ajudar alguém, assim como o Pai sempre ajudava... O
homem alcançou a moça, lento mas certeiro. Agora o homem estava bem perto da moça.
Ele seguiu o homem. Agora estava bem perto. O homem não olhou para trás. Ele estava
furioso com o homem e, ao mesmo tempo, contente que a violência, de certo modo, estava
ao seu redor, ele sempre a resistia, mas agora tinha a chance de fazer algo bom.
O homem estava quase rente à moça. Ele alcançou-o. Agarrou-o. Jogou-o no chão.
O homem não esperava tal ato, por isso não pôde retrucar muito. Num acesso de alegria,
alegria pelo bem que estava tentando praticar, ao impedir sua intenção maliciosa, bateu
no homem, bateu no homem, bateu no homem... Não olhou para moça, que correu em
disparada. Ele foi para casa com alegria no coração. As luzes da cidade pareciam ascender
cada vez mais, as luzes da cidade brilhavam feito estrelas de verdade.
O homem deu queixa dele; era vigia de um canteiro de obras. Disse que ele queria
estuprar a moça e que a tinha salvado. O homem contou toda uma história. Acreditaram
na moça e no homem, não nele, especialmente quando eles disseram que tinham feito
uma residência agradável perto da estrada, numa das casas ainda em construção.
Enviaram-no ao reformatório, pois sempre fazia tudo errado...

O Pai, então, não disse nada. Deu apenas uma olhada no filho, olhar
desesperançoso nos olhos grises. A mãe chorou amargamente; acreditou no rapaz: o rapaz
não era mau, o rapaz sempre queria praticar o bem. A mãe acreditou nele apenas porque
sabia como ele era, como ela era...? Pois talvez tivesse tanta culpa quanto o filho?
Posteriormente, depois de doze anos de reformatório, ele tinha feito outras coisas;
sempre com boas intenções, sempre de maneira errada.

Ele pensa no Pai. Deita na cama do quarto. O Pai vai entrar e ler o jornal. Como
os olhos do Pai vão vê-los? Acordados? Terão o distante brilho de satisfação?
Não, os olhos grises do Pai estarão desesperançosos, desesperançosos, o desespero
passará pelas letras do jornal, pois o Pai sabe, assim como ele sabe, que a mãe, a mãe que
deixa o Pai tão contente, o engana! A mãe é tão doce; a mãe é tão boa, mas também é
fraca. Assim como ele. Ambos querem ver o Pai feliz, ambos sempre ameaçam a

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felicidade do Pai. A mãe é como ele, exatamente como ele. Agora, ali no quarto ao lado,
ela se prepara para ir ver o amante, vai seguir na luta que ele tantas vezes lutou, e que,
assim como ele, sempre perdeu, agora a mãe também vai perder essa luta.
Ela vai sair do quarto, dirigir-se ao pai e dizer-lhe que vai jogar bridge. Depois
vai dar um beijo na testa do Pai. O Pai lhe dará um beijo na testa e a olhará com um sorriso
indulgente. Então a mãe vai abrir a porta; vai ver o amante. Mas ela não vai se sentir
fracassada, pois vai pensar: não quero. Não quero enganá-lo. Ele é tão bom, tão bom...
Então pega o bonde e vai enganar o Pai.

Ele gosta do Pai; até demais; é isso o que ele tem vivenciado nas últimas semanas,
toda noite, quando a mãe vai embora. E sofre, pois vê a mãe ameaçar a felicidade do pai
de uma maneira que ele mesmo nunca fez.
Olha o pequeno revólver na mão. Levanta-se e se sente confiante. É a quase
infalível certeza de que vai fazer um bem enorme, que sempre quis fazer, que é
incontestável. Ele pensa nisso há muito tempo. É isso; essa é a única maneira na qual a
felicidade do Pai pode ser mantida e a mãe pode ser ajudada.
Ela já foi embora. Ele sai do quarto e dirige-se ao Pai. Oferece-lhe um cigarro. O
Pai o olha e apanha o cigarro. Ele pega o isqueiro e acende o cigarro para o Pai. Ele vê
novamente aquele olhar na profundidade, sob a testa...
Ele sai da casa. Vai procurar a mãe. Pedala muito, muito! Não sente o vento nem
vê as estrelas.
O endereço do amante da mãe torna-se um símbolo para ele. Um símbolo branco,
um símbolo coberto, um símbolo de que é bom ganhar.
Essa é a rua. Coloca a bicicleta num canto da rua; a rua também é um símbolo.
Vai a pé; nem olha os números. Ele sabe qual é. Há um poste na frente da casa do amante
da mãe, só esse identificador já é o suficiente. Ele hesita, pois o poste não está na frente
de uma porta, mas sim entre duas portas. Toca a campainha. Um homem abre a porta. Ele
não olha para seu rosto. Passa-lhe e entra na casa. O homem o segue. Está espantado,
surpreso. Começa a repreendê-lo. Ele o agarra.
Não pergunta nada, não pergunta nada, não fala nada, não fala nada.
Joga-o no chão. O homem não esperava tal ato, por isso não pôde retrucar muito.
O Pai deveria tê-lo visto. Será que os olhos grises estariam bem abertos e cheios de

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felicidade, profundamente distantes? Num acesso de alegria, alegria pelo bem que estava
tentando praticar, bate no homem, bate no homem, bate no homem...
Depois pega o revólver, aponta na cabeça do homem e atira.
Então sai correndo da casa. Não olha o homem. Vai esperar pela mãe e levá-la
para casa, de volta ao Pai....
O tempo passa logo: a mãe chega. Ele se comprime no umbral da porta. Vai
esperar até que a mãe passe por ele. A mãe vai vê-lo; a mãe vai saber que ele a ajudou e
vai ficar contente. Ela sempre quis fazer o bem, mas geralmente dava errado, já que, assim
como ele, ela não conseguia lidar sozinha com o mal, pois ninguém consegue lidar
sozinho com o mal.
A mãe aproxima-se dele. Ele consegue sentir o perfume de seus cabelos. Ela vai
reconhecê-lo, ainda não escureceu. Vai reconhecê-lo... Mas... mãe, mãe, mãe! A mãe
passa por ele!
As estrelas estão baixas no céu, como mãos humanas, não alcançam altura, estão
plantadas no céu... A mãe passa por ele, passa por ele, e bate na porta ao lado da porta em
que ele entrou e atirou no amante. Um homem de roupão abre a porta. A mãe e o homem
de roupão entram rindo.

BILIOGRAFIA

ARION, Frank Martinus. De eeuwige hond. Amsterdam: Bezige Bij, 2001.


__________. Dubbelspel. Amsterdam: Bezige Bij, 1973.

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CONECTANDO PETINA GAPPAH COM OS LEITORES BRASILEIROS: UMA


TRADUÇÃO COMENTADA DE “MISS MCCONKEY OF BRIDGEWATER
CLOSE”

Cibele de Guadalupe Sousa Araújo 1

“[Being a writer] means always failing. But it also means, in the


rare moments of success, connecting with readers through a
work of the imagination. That part is marvellous. It is magic.”2
Petina Gappah (2015)

Apresento, neste texto, a tradução de um conto da escritora zimbabuense Petina


Gappah, cuja internacionalmente premiada e reconhecida obra, composta por duas
coletâneas de contos e um romance, não recebeu ainda tradução para o português
brasileiro. Gappah nasceu em 1971, nove anos antes da independência do Zimbábue, mas
já em meio à II Chimurenga, a guerra pela liberação do domínio colonial branco. Ela
nasceu propriamente na Zâmbia, para onde seus pais mudaram-se por alguns meses à
procura de emprego. No entanto, antes de ela completar um ano de idade eles já haviam
retornado à Rodésia, o atual Zimbábue.
Com a independência e a reorganização da sociedade, estritamente segregada até
então, sua família mudou-se para Harare, a capital do país, e Gappah foi uma das
primeiras crianças negras a integrar uma das escolas antes reservadas aos brancos.
Experiência que a autora explora vívida e habilmente no conto em tradução. Falante de
shona e de inglês, Gappah formou-se em direito ainda no Zimbábue e recebeu no exterior
os títulos de mestre e doutora em direito comercial, passando a atuar como advogada, na
área de direito internacional, em Genebra.
Sua relação com a escrita remonta sua juventude. Aos quatorze anos já publicara
uma narrativa, mas apenas em 2009 sua primeira obra completa, escrita em inglês, foi
publicada. Trata-se da coletânea de contos An Elegy for Easterly (2009), que aborda a
resiliência de diferentes personagens comuns vivenciando os caóticos anos do Zimbábue

1
Cibele de Guadalupe Sousa Araújo é doutora em Letras e Linguística, com concentração em Estudos
Literários, pela UFG. Leciona Inglês da Rede Municipal de Educação de Goiânia. E-mail:
guadalupe.sousa@gmail.com.
2
“[Ser uma escritora] significa falhar sempre. Mas também significa, em raros momentos de sucesso,
conectar-se com os leitores por meio de um trabalho da imaginação. Esta parte é maravilhosa. É mágico.”.

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pós-independente, mergulhado em crises financeiras e escândalos de corrupção. Tal


coletânea foi finalista em diversas premiações importantes, como o Prêmio Frank
O’Connor International, e venceu o Prêmio Literário do jornal The Guardian. Foi
também traduzida para outras línguas, como o Chinês, o Holandês, o Finlandês, o
Francês, o Japonês, o Norueguês, o Sérvio e o Sueco.
Para preparar sua segunda publicação, seu primeiro romance, Gappah retornou ao
Zimbábue, em 2010, permanecendo no país por três anos. Publicado em 2015, The Book
of Memory focaliza uma mulher albina chamada Memory, que cumpre pena no corredor
da morte pelo assassinato de seu pai adotivo. Sua terceira e mais recente publicação,
lançada ao final de 2016, foi Rotten Row, uma coletânea de contos que tematiza o crime,
suas causas e efeitos, e a natureza da justiça, por meio da discussão das barreiras de classe,
gênero, políticas sexuais no Zimbábue. Atualmente, Gappah trabalha em seu próximo
romance, provisoriamente intitulado The Last Journey.
Além das obras referidas, Gappah conta também com publicações esparsas de seus
contos, em jornais, revistas e coletâneas. Para esta tradução, tomei como referência a
primeira publicação do conto intitulado “Miss McConkey of Bridgewater Close”,
veiculada no diário britânico The Guardian, em cinco de dezembro de 2009. Privei-me
aqui de reproduzir o texto original e as ilustrações a ele associadas, os quais podem ser
acessados na página digital do jornal, e apresento apenas minha proposta de tradução para
o mesmo, bem como este breve texto introdutório. Saliento, todavia, que o conto foi
publicado também, a posteriori, em uma coletância de contos editada por Irene Stauton,
intitulada Writing Free (2011), pela editora Weaver Press.
Em “Miss McConkey of Bridgewater Close”, o leitor acompanha o reencontro de
uma antiga aluna, já adulta no tempo principal da narrativa, e sua ex-diretora. O que
poderia passar como uma ocasião trivial, ganha densidade ao adentrar-se as teias das
relações de opressão e humilhação vivenciadas pela menina na escola previamente
reservada a alunos brancos em que foi uma das primeiras alunas negras a ingressar, sob a
regência da então diretora. Para além disso, se no contexto de sua infância a relação das
duas foi marcada pela posição de superioridade da ex-diretora branca, garantida pelo fator
racial, no momento do encontro a ex-aluna negra é quem se vê em posição de vantagem,
sem, no entanto, voltar-se contra sua ex-diretora com ressentimento ou hostilidade, mas
oferencendo-lhe ajuda em um momento de necessidade.

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Acerca do conto “Miss McConkey of Bridgewater Close”, Petina Gappah revela


que:

At the heart of my story, ‘Miss McConkey of Bridgewater Close’, is an exploration


of the social burdens that came with Zimbabwe’s freedom, with its Independence,
particularly the burdens borne by the black children who were the first to go to
formerly ‘whites only’ schools and thus integrated these schools. I was one of those
children. The sharpest memory I have of those days is the constant fear that I had done
or said something wrong, something that would expose me to the stares and
humiliating comments of my classmates. While the nation was celebrating its
independence, while black parents were celebrating the opening up of educational
opportunities that had been closed children were experiencing freedom as agony.
However, my story is also about another kind of being free, it is about the freedom
that comes from forgiveness, the freedom that comes with letting go of the memory
of pain. (GAPPAH, 2011, p. ix-x). 3

Para esta tradução, as decisões tradutórias pautaram-se no objetivo central de


“conectar” Gappah com os leitores brasileiros sem apagar o que de estrangeiro há no
texto. O estrangeiro, neste caso, passa pela conflituosa relação entre colonizador e
colonizado no complexo, mas muito esperado, momento de transição, de libertação deste.
Libertação que, no entanto, teve significados diferentes para as personagens envolvidas,
negras e brancas, adultas e crianças. De início, ressalto que, em alguns momentos, me
desobriguei de traduções mais diretas para dar fluência ao texto, especialmente nos
diálogos, para que soassem mais coloquiais.
Já para as referências factuais da narrativa, sejam elas intertextuais, geográficas,
históricas ou culturais, mantive-as, o mais das vezes, no texto traduzido sem qualquer
intervenção, mesmo em forma de notas explicativas. Desta forma, não logrei traduzir
nomes de personagens e narrativas mencionadas no conto, como a “Mallory Towers”, que
conta com versão portuguesa intitulada “O Colégio das Quatro Torres”. Tampouco
adaptei os nomes de regiões, ruas, e estabelecimentos, como o centro comercial
“Mabelreign” e a “Harare / Salisbury Drive” ou o nome de eventos festivos da escola,

3
“No coração de minha história, ‘Miss McConkey of Brigdewater Close’, está uma exploração dos fardos
sociais que vieram com a libertação do Zimbábue, com sua Independência, particularmente os fardos
carregados pelas crianças negras que foram as primeiras a ir para as escolas previamente reservadas apenas
aos brancos e assim integraram essas escolas. Eu fui uma destas crianças. A memória mais viva que tenho
daqueles dias é o medo constante de ter feito ou dito algo errado, algo que me exporia aos olhares e
comentários humilhantes de meus colegas de sala. Enquanto a nação estava celebrando sua independência,
enquanto os pais e mães negros estavam celebrando a abertura de oportunidades educacionais que haviam
sido fechadas, as crianças estavam experimentando a liberdade como agonia. No entanto, minha história
também é sobre outro tipo de liberdade, é sobre a liberdade que vem com o perdão, a liberdade que vem
com desfazer-se da memória da dor” (GAPPAH, 2011, p. ix-x).

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como o “Civvies Day” ou a “Prizegiving Night”. Uma exceção à esta diretriz deu-se em
relação às referências a “Marmite”, “polony” e “Smarties”, os quais busquei indicar, por
acréscimo, tratarem-se de alimentos, ainda que tenha tido dificuldade em encontrar um
exato correspondente e que tenha acabado por adaptá-los. Outra dificuldade foi a tradução
de “Roan”, que, por falta de termo mais exato, acabei por verter por “equitação”, e de
“widths” e de “lengths”, que, apesar de referirem-se a medidas, verti por “mergulhos” e
“braçadas”.
Não atentei qualquer intervenção também nos trechos em que a língua autóctone
das personagens negras era utilizada, pois no texto original esses trechos também chegam
ao leitor sem mediação e, além disso, acredito que eles cumprem uma importante função
na narrativa aprofundando o embate cultural e identitário no contexto colonial e pós-
colonial, sem prejudicar a compreensão da tradução. Por outro lado, fiz a adaptação dos
pronomes de tratamento empregados ao português brasileiro, visando também à fluência
do texto traduzido. Também por questões de fluência, com vistas a evitar truncamentos,
interferi, em alguns casos na pontuação textual, sem adaptá-la por completo às normas
vernáculas.
Por fim, apresento a seguir o texto traduzido, logrando mediar uma primeira
conexão, por meio de sua escrita literária, entre Petina Gappah, esta proeminente escritora
zimbabuense, e o leitor brasileiro, que ainda não dispunha de tradução de sua obra, mesmo
que tão capsular, como esta apresentada neste Dossiê, o qual visa justamente ao
estreitamento das complexas e relevantes relações entre a Tradução e a Diáspora Negra.

A Srta. McConkey da Bridgewater Close


Petina Gappah

Quando a vi ontem, a Srta. McConkey parecia vívida e frágil ao mesmo tempo, como um
cruzamento entre Doris Lessing e a pobre e assassinada Cora Lansquenet. Ela estava na
fila para o único caixa dentro do supermercado OK, que substituiu o Bom Marché, no
centro comercial Mabelreign. Ela sustentava sua cabeça como sempre fizera, levemente
inclinada para a esquerda, e seu cabelo, todo branco agora, estava apinhado em um grande
coque no topo da cabeça. Quando eu era uma garotinha, seu cabelo lembrava-me o de
Mam'zelle em Mallory Towers. Não Mam’zelle Rougier, que era magra e amarga e nunca

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nada divertida, mas Mam’zelle Dupont, que era roliça e alegre. Seus olhos, diferente dos
de Mam’zelle Dupont, que nunca foram estáticos e brilhavam e cintilavam atrás dos
binóculos de teatro, não luziam atrás de seus óculos redondos. Mesmo com todo o tempo
que se passara, eu a teria reconhecido em qualquer lugar, e, além disso, pode-se contar
em apenas oitos dedos o número de pessoas brancas que sobraram ao todo, de Mabelreign,
de Sentosa a Bluff Hill, de Meyrick Park a Cotswold Hills.

Ela levou uma quantia de tempo imoderada para colocar suas coisas no balcão: açúcar, e
macarrão, extrato de tomate, um pacote de cebola e duas latas de leite condensado, suco
concentrado de laranja Mazoe, um pão, uma cartela de ovos, sete caixas de vela e três
pacotes de ração Irvine's Chik. “São setenta e cinco bilhões, trezentos milhões e
seiscentos mil dólares”, o caixa disse.

Ela pegou quatro maços de notas, despelou algumas de um deles e entregou o resto. O
caixa retirou as ligas dos maços e colocou o dinheiro no contador de cédulas.

Quando o som zumbente parou, e o botão vermelho piscou para indicar a quantia, o caixa
disse: “Faltam quinhentos milhões.”.

“Não pode ser”, a Srta. McConkey disse. “Sua máquina deve estar estragada. Eu acabei
de vir do banco neste exato instante.”.

O caixa contou o dinheiro nota por nota, empilhando as notas em pequenas pilhas de
bilhões e milhões por cima do balcão. Agora a fila de clientes segurando suas compras,
principalmente pacotes de velas sobre as quais havia rumores de que estariam disponíveis
apenas no OK de Mabelreign, estava murmurando motins. A contagem continuou. A
máquina não estava estragada.

“Você tem o suficiente?”, perguntou o caixa.

“O quê?”, disse a Srta. McConkey.

O caixa franziu as sobrancelhas e suspirou e disse: “Dinheiro. Você tem dinheiro


suficiente?”.

“Mais dinheiro”, a Srta. McConkey disse.

“Perdão?”, disse o caixa.

“Mais, não suficiente. Você tem mais dinheiro?”

“Você tem mais dinheiro?”, o caixa repetiu em voz alta.

“Não há necessidade de gritar dessa forma”, a Srta. McConkey disse. “Espere.”

Ela remexeu em sua bolsa para encontrar as notas que despelara, mas estas somadas com
as outras falharam em inteirar os setenta e cinco bilhões, trezentos milhões e seiscentos
mil dólares.

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“Talvez você possa voltar ao banco e perguntar”, sugeriu o caixa.

“Está fechado agora, não está?”, disse a Srta. McConkey, “E de que adiantaria?”

“Podemos devolver algumas coisas”, o caixa disse.

Ela alcançou a ração.

“Vou pensar, obrigada”, a Srta. McConkey disse.

"Kanotofidha imbwa mari kasina", disse uma voz atrás de mim.

Movi-me para frente até a caixa registradora.

“Eu a conheço”, eu disse para o caixa em shona, e em inglês, para a Srta. McConkey, eu
disse: “Eu ficaria muito feliz em ajudá-la a pagar por suas compras.”

“Não, muito obrigada”, a Srta. McConkey disse sem olhar para mim.

“Srta. McConkey”, eu disse.

Ela olhou para mim então.

“Você mora em Brigdewater Close”, eu disse, “No número dezessete. Eu conheço a sua
casa e eu poderia pegar o dinheiro depois”.

Ignorei os murmúrios vindos detrás de mim e continuei: “Você foi minha diretora na
HMS Junior”. Então contei-lhe meu nome. Ela pareceu não entender, e não era de se
admirar, eu havia lhe dado meu verdadeiro nome. Contei-lhe meu nome da escola.

“Claro”, ela disse. “Você estava em Kudu”.

“Você tem uma boa memória”, eu disse.

Dei-lhe o dinheiro para suas compras, paguei pelas minhas, e, depois de uma peleja, ela
concordou que eu poderia carregar suas sacolas até o carro. Seu carro estava estacionado
do outro lado da Stortford Parade, de frente ao mercado e à igreja. Era um Datsun 120Y,
lembrei-me, o carro que fazia meu coração disparar ao vê-lo passar.

“Não fui diretora por muito tempo depois de você entrar lá, fui?”

Ela olhou diretamente para mim, e eu era uma criança novamente, o velho medo agarrou
meu coração, e eu pensei que ela devia saber que foi por minha causa que ela não esteve
mais em cena no corredor, flanqueada entre os dois murais de mérito e todos de HMS
Junior, da série KG1 até a 7Blue, respondendo com uma só voz e dizendo: “Bom Dia
Srta. McConkey.”

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Sempre estivemos em primeiro lugar nas coisas que importavam para meus pais. Então
não foi surpresa para ninguém quando meus pais se mudaram para Cotswold Hills,
quando eu tinha sete anos, o ano em que as pessoas brancas que governavam nosso país
abriram as áreas que haviam fechado para os negros.

Meu pai trabalhava para um banco na cidade. Nossa família foi a primeira da rua a possuir
um carro, um Citroen amarelo chamado de bambadatya no distrito por causa de sua forma
de sapo acocorado. Eu fui a primeira criança que conheci a viajar de avião, para a Victoria
Falls, não para ver as cataratas mas meu pai, que trabalhou por lá brevemente por seis
meses.

Por anos depois daquilo, minha mãe manteve os bilhetes presos proeminentemente em
um álbum de fotos, próximo a uma foto nossa de pé ao lado da aeronave da Air Rhodesia.
Quando visitas pediam para ver o álbum de fotos, e perguntavam o que eram os bilhetes,
minha mãe, em uma voz muito trabalhada para ser casual, dizia: “Ah, esses são só os
bilhetes de avião da vez em que fomos a Vic Falls.”. Ela fazia questão de chamá-las de
Vic Falls porque foi assim que o capitão chamou quando aterrissamos: “Bem-vindos a
Vic Falls”, ele disse, “neste dia brilhante e ensolarado”, e ela nunca mais as chamou de
qualquer outro modo depois daquilo.

Pouco depois da viagem de avião, mas muito depois de ele comprar o carro, nós nos
mudamos de Specimen para Glen Norah B, para um dos apartamentos inteligentes que
eram em uma rua do distrito, onde nós não erámos os primeiros a ter um carro, mas
erámos os primeiros a ter tanto um telefone quanto uma televisão. Meu pai não se
contentava em morar nos distritos africanos, em Mbare e Highfield, Mabvuku e Glen
Norah; nem serviam para ele os subúrbios africanos de Westwood, apenas uma rua de
Kambuzuma, ou Marimba Park, dez passos afastado de Mufakose. Nos domingos, após
a igreja, ele nos levava para longos passeios de carro ao longo da Salisbury Drive e
apontava para Borrowdale, Cotswold Hills, Marlborough e Mount Pleasant, Highlands,
Avondale, Bluff Hill, lugares cujos meros nomes evocavam vidas maravilhosas que
estavam fechadas para nós porque o primeiro ministro decretara que nem em mil anos
pessoas negras governariam a Rodésia.

Nós nos mudamos no ano do povoamento interno. As casas eram tranquilas em ruas sem
poeira. Havia árvores, flores e gramados por toda parte. Havia cercas vivas e portões
baixos com placas em que a silhueta de um cão rosnava para um homem com os dizeres
“Cuidado com o cão, bassopo la inja". O leiteiro depositava as garrafas de leite com
tampas douradas e prateadas do lado de fora, e ninguém as roubava. Na nossa sala de
estar, com uma lareira e um carpete marrom sob medida, nós assistíamos anúncios de
televisão da Solo, a margarina para famílias com um apetite pela vida, da Pro-Nutro, o
equilíbrio da natureza, e da Luz do Sol para aquela limpeza fresca e eficaz. Naquele Natal,
meus pais deram uma festa para todos os nossos parentes. Meu pai rodopiou minha mãe
para lá e para cá enquanto David Scobie cantava “Gypsy Girl”. Todos os convidados
gritavam enko enko enko então na hora em que fui dormir naquela noite, eu já sabia todas
as palavras da canção e o tanatana tanatana tanatana do refrão teceu seu caminho até
meus sonhos.

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Em janeiro, comecei em minha nova escola. Chamava-se Henry Morton Stanley Junior
School, mas todos chamavam-na de HMS Junior. Na manhã de meu primeiro dia, conheci
a Srta. McConkey. “Não consigo pronunciar Zvamaida”, ela disse, enquanto anotava meu
nome. “Ela não teria outro nome?”

De fato eu tinha, meu segundo nome, Hester, o nome da irmã falecida de meu pai, um
nome que eu odiava. Tive sorte, suponho, Lucia na série 3Red não tinha nenhum outro
nome além de Chioniso, então sua mãe arrancou Lucia do nada na sala da Srta.
McConkey. Às vezes ela esquecia seu novo nome e se metia em encrenca.

Eu deixei Zvamaida para trás em Glen Norah, e Hester tomou seu lugar, uma Hester que
sentia falta da velha escola, onde as vozes de crianças em uníssono podiam ser ouvidas
entoando a tabuada de doze vezes ou "Sleep baby mine, the jackals by the river are calling
soft across the dim lagoon where tufted rows of mealies stand aquiver under a silver
moon."4

Em março, todas as cincos crianças negras que haviam começado na escola no mesmo
dia foram chamadas à sala da Srta. McConkey. Um livro desaparecido fora encontrado
na mochila de Gary da série 5Red que era Garikai em casa. Um de nós havia sido
descoberto por ser um ladrão e um mentiroso, ela nos disse. Ela deu um longo sermão
sobre padrões, e quando nós olhamos para baixo para nossos pés, à maneira de crianças
africanas respeitosas treinadas para não olhar adultos nos olhos, ela falou sobre a
importância de não ser dissimulado.

O roubo de Gary veio a definir nosso relacionamento um com o outro. Até que mais
crianças negras entrassem na escola muito tempo depois, os cinco de nós estávamos
conectados pela dura realidade de nossa cor, mas separados pelos golfos maiores de sexo
e idade, e acima de tudo, por uma necessidade urgente de mostrar que não erámos todos
uns iguais aos outros. Queríamos amigos brancos, eles tinham todas as coisas boas,
tinham coisas diferentes em seus sanduíches, como manteiga Marmite e patê polony e
queijo. Eles iam para a África do Sul nas férias, e traziam de volta confetes de chocolate
Smarties. Eles sabiam todas as piadas com Van e o que você conseguia quando cruzava
um canguru com um novelo de barbante o que era preto e branco e todo vermelho, o que
o biscoito disse depois de ser ultrapassado, por que o homem maneta atravessou a rua. De
Natal, eles não ganhavam roupas da promoção do cabide vermelho da Edgars, que
vestiriam na escola no Civvies Day, eles tinham anuários, como o Misty and Jacky, e o
The Beano e o Whizzer and Chips. Eles tinham cubos mágicos da Rubik, e ioiôs, e
Monopoly e Ludo. Eles podiam segurar a respiração por dois mergulhos embaixo d’água,
e às vezes, como Evan Smith, por duas braçadas. Eles tinham seus próprios tacos de
hóquei, raquetes de tênis, e bastões de críquete, e não usavam aqueles velhos e

4
“Durma meu bebê, os chacais às margens do rio estão chamando macio pela lagoa sombria onde fileiras
adornadas de milho tremulam sob a lua prateada.”.

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desgastados da escola. Suas mães compravam seus crachás na Barbours; elas não os
costuravam com mãos desiguais. E os rádios de seus pais não diziam nditaki nzvee
kwaAmato wandiona ou tinham as exortações de Jarzin Man para comprar na Jarzin kune
zvekudya zvine mitengo yakaderera.

As únicas crianças brancas que fizeram amizade conosco, ao menos naquele primeiro e
solitário ano, foram as desajustadas e proscritas, as crianças cuja companhia todos os
outros evitavam. Gary agarrou-se a Keith Culverton, cuja família era grande o suficiente
para ser africana, cujos dois cães eram afamados por ter raiva, e que muitas vezes vinha
para escola vestindo bermudas grandes de seu irmão mais velho. Depois da mãe de Ian
Moffat fazer uma cena na escola, quando seu marido fugiu para viver com a Srta.
Adamson, que lecionava na série 5Red, Ian Moffat transformou-se pela humilhação e
tornou-se amigo de Vusani. E quando Antonia de Souza derrubou o bastão e fez Kudu
chegar em último lugar na corrida interclasse, ninguém mais brincava com ela, porque
ela corria como uma espática (e além disso, disse Stacey Collins, ela não era europeia de
verdade, apenas portuguesa), ela falava principalmente com Lucia, que tinha feito Eland
chegar em primeiro na mesma corrida, mas que só recebeu o troféu compartilhado muito
depois de termos esquecido que fora ela que conduzira Eland à vitória.

Eu tinha Lara, Lara Van Tonder, a única Van em uma turma viciada em piadas de van,
Lara a gorda a quem todos começaram a chamar de Blubber - Oléo de Baleia, após a Sra.
Crowther nos contar sobre as baleias. Ela era muito gorda para correr ou nadar e quando
andava rápido sua respiração vinha rapidamente em pequenos assobios. Lara gostava que
eu penteasse seu cabelo com cem escovadas no parquinho da escola, e ela me fazia contar
cada uma delas. “Se você escovar o suficiente, ao menos três vezes ao dia”, ela dizia, “ele
se tornará dourado, como o da Pauline Fossil". Eu não acreditava nisso de verdade, mas
eu o fazia mesmo assim, porque Lara tinha uma piscina em casa em que não podia nadar,
então ela sentava com as pernas penduradas na piscina, enquanto eu mergulhava e
apanhava moedas no fundo da piscina, e eu ficava feliz porque nós erámos iguaizinhas a
Darrel e Mary-Lou em Mallory Towers.

A Srta. McConkey morava a duas ruas de nossa casa, em Bridgewater Close, e ela muitas
vezes passava por mim em seu Datsun 120Y. Eu tratava de endireitar meus ombros
quando via seu carro ou quando passava por sua casa para atalhar o caminho de minha
casa. Uma vez, enquanto eu passava pela Pat Palmer descalça e aproveitava o forte calor
da estrada sob meus pés, vi seu carro e me escondi na vala até ela passar.

Na escola, eu a via todo dia na acolhida, e nos corredores quando ela nos via andando em
grupos ela dizia, fila única, crianças. Apenas no terceiro bimestre, com a chegada da
Prizegiving Night, eu a vi frequentemente. Era uma tradição escolar, fomos informados,
para HMS Junior, celebrar naquela noite a descoberta de David Livingstone por HM
Stanley. Havia um poema que a escola recitava, um poema longo e ativo em que havia
um Livingstone e um Stanley, muitas pessoas preocupadas na Inglaterra imaginando o

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que acontecera com Livingstone e muitas nativos fazendo danças e nomeando todos os
lugares que Livingstone descobrira.

A estrela era Keith Timmons, o capitão de equitação. Ele era Stanley, em um chapéu de
explorador, e declamou, em uma voz alta e exaltada: “Ah, onde está o Dr. Livingstone,
Dr. David Livingstone, que partiu para a África para pisar a trilha invicto?". Então vinte
crianças, que supostamente seriam o povo na Inglaterra, diziam: "Nós não recebemos
nenhuma carta já faz tanto tempo, talvez devêssemos enviar o Sr. HM Stanley, apenas
para saber se ele foi comido."

"E cantem comigo em coro", disse Stanley, "enquanto os nativos fazem uma algaz-arra".
Os cinco de nós, as cinco crianças negras, tínhamos de estar em coro e com vozes altas,
entoamos: "Nyasa e Zambesi e Cabango e Kabompo, Chambese e Ujiji e Ilala e Dilolo,
Shapanga e Katanga, sem esquecer de Bangweolo!". Nós dançamos e pisamos duro e
batemos nossos tambores como se nossas vidas dependessem disso. Lucia e eu
adicionamos um pequeno floreio tentando ulular como tínhamos visto nossas mães
fazerem. “Muito bem crianças”, a Srta. McConkey disse. Nós fomos os melhores nativos
que a escola já havia visto, ela disse.

Foi meu tio Gift que mudou tudo. Ele havia lutado na guerra como Camarada White
Destroyer e retornado com pouca paciência para o que ele chamava de elementos
renegados duros de matar. Ele trabalhava no Departamento de Assuntos da Juventude e
Criação de Empregos e contou a seu chefe sobre nosso poema, e seu chefe ligou para
alguém no Herald, e a Srta. McConkey foi parar nas notícias e então ela não era mais a
diretora. Havia outro diretor, um homem de cor chamado Sr. Marchand, e os professores,
meus pais disseram, não trabalhariam sob suas ordens então iriam para a África do Sul.
Tio Gift disse que não havia lugar para pessoas como aquelas no país, mas minha mãe
estava preocupada com a partida dos professores brancos, porque ela queria que eu tivesse
um bom sotaque.

Nunca mais fui chamada à sala da Srta. McConkey novamente, porque ela não tinha mais
uma sala. Ela permaneceu, lecionando aulas de reforço para os aprendizes lentos, até que
não houvesse sobrado nenhum dos professores brancos na escola e apenas um punhado
de crianças brancas. Eu tomei tanto medo da Srta. McConkey que passei a trilhar o
caminho mais longo para casa, pela Pat Palmer e pela Cotswold Way, e assim consegui
evitar a Bridgewater pelo resto da minha vida na HMS Junior. Quando parti para a escola
secundária, ela ainda estava lecionando as aulas de reforço, sem nunca saber que fora eu
que mudara sua vida para sempre. Não a vi novamente até ontem, quando lhe faltou
dinheiro no OK.

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Carreguei as sacolas de compras para ela e a acompanhei até o carro.

“Está vivendo no exterior então, não está?”, ela disse.

“Moro na Austrália agora, Srta. McConkey”, eu disse. “Em Melbourne.”

Pensei que ela diria mais alguma coisa e esperei, mas ela não disse nada enquanto entrava
no carro. Ela fechou a porta e disse: “Trate de vir e buscar seu dinheiro”.

“Sim, Srta. McConkey”, eu disse.

“Vá embora agora”, ela disse.

“Adeus, Srta. McConkey”, eu disse.

Ela ligou o carro sem dar outra palavra, e dirigiu para a Stortford Parade, passou a
policlínica que costumava ser o hospital veterinário, e passou a Wessex Drive. Eu a assisti
até seu carro virar à esquerda na Harare Drive, a antiga Salisburry Drive ao longo da qual
meu pai nos levara para passear há uma vida atrás. Eu a assisti até que ela desapareceu de
minha vista.

Referências bibliográficas:

GAPPAH, Petina. “Miss McConkey of Bridgewater Close”. Sítio do jornal The Guardian.
Disponível em: <https://www.theguardian.com/books/2009/dec/05/petina-gappah-
awardwinner-short-story> Acessado em: jan. 2017.

_________. In: Stauton, Irene. Writing Free. Weaver Press: Harare, 2011. p. ix-x

_________. Entrevista. In: “Q&A with author Petina Gappah”. Sítio do jornal Financial
Times. Disponível em: <https://www.ft.com/content/4f1bf308-58a5-11e5-9846-
de406ccb37f2> Acessado em: fev. 2017.

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SAUDADES DO BENIM:
SETE POEMAS DE EURYDICE REINERT CEND

Dennys Silva-Reis1

RESUMO: São apresentados nesta tradução sete poemas da escritora Eurydice Reinert
Cend, autora contemporânea de língua francesa do Benim. Todos os poemas fazem
parte de sua coletânea L'Afrique en poésie (2013) e mostram o sentimento de saudade,
bem como a relação da poesia escrita com a tradição da literatura oral africana.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Francófona; Literatura traduzida; Eurydice Reinert


Cend, Benim; Tradição Africana

ABSTRACT: Seven poems are presented in this translation. They were written by
Eurydice Reinert Cend, a contemporary French-language author of Benin. All the
poems are part of her collection L'Afrique en poésie, (2013), and show the feeling of
longing, as well as the relation between the written poetry and the tradition of African
oral literature.

KEYWORDS: Francophone Literature; Translated Literature; Eurydice Reinert Cend;


Benin; African Tradition.

1
Doutorando em Literatura (POSLIT) e mestre em Estudos da Tradução (POSTRAD) pela Universidade
de Brasília. Seus principais eixos de trabalho são: Literatura Francófona, História da Tradução e Tradução
intersemiótica. Igualmente é tradutor e cronista em seu blog Historiografia da tradução no Brasil
(http://historiografiadatraducaobr.blogspot.com.br). E-mail: reisdennys@gmail.com. Brasília, Brasil.

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Eurydice Reinert Cend2 nasceu em 1969 em Capo-Chichi, pequena cidade do Benim.


Estudou em Nova York e mora na França desde 1991. Dedica-se à escrita desde os
quatorze anos e explora diversos gêneros literários: poesia, conto, novela, romance e
ensaio. Também é membro das associações literárias CEPAL, ADILL (Association de
Défense & d'Illustration de la Littérature en Lorraine), SOFIA (Société française des
intérêts des auteurs de l'écrit), Sacem (Société des auteurs, compositeurs et éditeurs de
musique) e Société des Auteurs Francophones. Em 2012 foi escolhida como membro da
Fundação SNCF na luta contra o analfabetismo.

É autora de mais de 20 obras, com destaque para a poesia [Maman, comme un doux
chant (2012); La vie en poésie; Parfums d'éternité (2007); Elle, ode à l'amour et à la
femme (2007); Les chansons d'Eurydice (2006); L'oeil (2005)] e os romances Les
amazones du Knoryl: L'escapade rituelle e Les amazones du Knoryl: Souviens-toi,
publicado em 2014. Para esta que é a primeira publicação brasileira de seu trabalho,
foram escolhidos sete poemas da coletânea L’Afrique en poèsie (2013).

L’Afrique en poésie é composto de 22 poemas dedicados à nostalgia do modo de vida


africano, com destaque para paisagens, a mulher africana, as virtudes do povo africano,
os animais e as plantas tipicamente naturais da região. A obra demonstra uma espécie de
saudade do eu lírico por estar longe de sua terra natal, uma homenagem e uma
celebração ao ser africano e ao estar na África.

Os poemas de Eurydice Reinert Cend são em versos livres heterométricos com muitas
rimas sonoras ao final e no meio dos versos. São poemas, por vezes, muito descritivos
que configuram uma imagem visual ou ambiências psicológicas e sentimentais, recursos
que nos remetem à literatura oral africana. Vale a pena destacar que, nessa obra em
especial, há diversas aquarelas de Marc Filior3 que acompanham os poemas, ora como
ilustração, ora como fusão da poesia imagética verbal com a visual disposta logo ao
lado do poema.

Os sete poemas aqui traduzidos dão uma dimensão desta obra poética da autora. A
proximidade das línguas (francês e português), no que concerne à maioria das rimas,
auxiliou muito para manter a mesma sonoridade e, por vezes, oralidade da poesia.
Optamos por não colocar notas nos vários atributos lexicais de referência ao contexto
africano, a fim de que se atice no leitor a curiosidade pela palavra depositada em frasco
poético que é cada poema aqui traduzido.

Nas palavras da poeta, que...


Os doces eflúvios de hibiscos e de casuarinas
Perfumem o ar com uma surpreendente mistura de aromas

2
Agradeço imensamente à autora por ceder os direitos de tradução dos poemas aqui apresentados.
3
Agradeço ao pintor por ceder as imagens dos poemas para esta publicação.

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Je suis un géant – Marc Fillior

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[1] Je suis un géant Sou um gigante


Je suis un géant Sou um gigante
Qui n’aime rien du néant. Que não gosta de nada do nada.
J’offre à l’intelligence de l’homme Ofereço à inteligência do homem
Mon charme et ma force énorme Meu encanto e imensa força
Pour qu’il se sente, aussi, grand ! Para que ele se sinta, também, grande!

Je suis beau, je suis fort Sou bonito, sou forte


Et, avec mes blanches défenses, E, com minhas defesas brancas,
Je révèle de beaux défis avec grande Detecto bons desafios com grande imponência!
prestance !
Ailleurs, sur les bords du Gange, bien des Lá longe, às margens do Ganges, muita gente
gens se pressent se apinha
Pour honorer Ganesh. La grande déesse Para honrar Ganesha. A grande deusa
Aux oreilles ballantes et à la trompe De orelhas balançantes e tromba poderosa!
puissante !
Enaltecendo o encanto de minha bela espécie,
Magnifiant le charme de ma belle espèce, Na planície como na mata,
Dans la plaine comme dans la brousse, Aqui, faço tremer o solo com meus passos de
Ici, je fais trembler le sol de mes pas de géant gigante

E todos, ao me aproximar, se afastam e com


Et tous, à mon approche, s’écartent et avec respeito empurram-se
respect se poussent Para me ver passar, com muito elegância!
Pour me voir passer, avec grande élégance !
De vez em quando, com bela preguiça
De temps à autre, avec belle nonchalance, Em torno de um galho bem frondoso
Autour d’une bonne branche bien feuillue Enrolo minha grande tromba para de lá pegar
J’enroule ma grande trompe pour en saisir O alimento que muito afaga meus sentidos
L’aliment qui flatte tant mes sens gulosos!
gourmands !
Você já adivinhou, com certeza,
Sou o elefante, rei dos grandes espaços terrosos
Tu l’as déjà deviné, assurément, Que me esperam, serenamente!
Je suis l’éléphant, roi des grands espaces
bruns
Qui m’attendent, sereinement !

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Je m’en vais — Marc Filior

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[2] Je m’en vais Vou-me embora


Je m’en vais, Vou-me embora,
Je m’en vais quérir en la vie ses faveurs Vou-me embora buscar na vida seus favores
Mander au sort un peu de bonheur Convocar para o destino um pouco de
Et réclamer au temps quelques lenteurs ! felicidade
E solicitar ao tempo algumas lentidões!
Je m’en vais,
Je m’en vais quérir auprès du marigot quelque Vou-me embora
fraîcheur, Vou-me embora buscar perto do brejo algum
Mander auprès des djinns du désert frescor
Un trésor sans valeur pour le sot qui rit ou Convocar junto aos djinns do deserto
s’énerve Um tesouro sem valor para o tolo que ri ou se
Selon qu’il veut ou ne veut plus d’une chose, irrita
sans plus ! Segundo o que quer ou já não quer de uma
coisa, sem mais!
Je m’ne vais,
Je m’en vais quérir un peu de tendresse Vou-me embora
Et me perdre dans les belles tresses Vou-me embora buscar um pouco de ternura
De ma belle au doux regard aussi profond que E me perder nas belas tranças
la nuit, De minha bela de doce olhar tão profundo
Aussi chaud que l’ardeur qui embrase sans un quanto a noite,
bruit, Tão quente quanto o ardor que queima sem
Aussi doux que le cœur du palmier qui frémit barulho,
à l’étreinte de la brise ! Tão doce quanto o coração da palmeira que
estremece no abraço da brisa!
Je m’en vais
Je m’en vais dans le murmure du temps Vou-me embora
Me perdre dans les invisibles filets du vent Vou-me embora no murmúrio do tempo
En sachant qu’aujourd’hui vaut déjà Me perder nas invisíveis tramas do vento
Bien plus que l’incertain lendemain aux flous Sabendo que hoje já vale
appas Bem mais que o incerto amanhã dos charmes
Dont je suis déjà las, avant d’en saisir les indefinidos
contours ! Dos quais estou cansado, antes de abraçar seus
contornos!
Je suis là, c’est déjà ça, et la vie ne viendra
pas se plaindre Estou aqui, e já é tudo, e a vida não virá se
Que j’étais ailleurs quand elle me voulait ici, queixar
tout simplement ! De que eu estava longe quando ela me queria
aqui, simplesmente !

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Je parle au vent — Marc Filior

[3] Je parle au vent Falo ao vento


Je parle au vent et, chemin faisant, Falo ao vento e, ao longo do caminho,
Je chante tes hommages et ton courage Canto tuas homenagens e tua coragem
J’embrasse tes espoirs les plus fous, tu vois, Beijo tuas mais loucas esperanças, vês,
Je les porte plus loin que ne porte la voix Levo-as mais longe que a voz
Je caresse tes pensées les plus insensées Acaricio teus mais insanos pensamentos
Je me noie dans tes plus beaux rêves Afogo-me nos teus mais belos sonhos
Et, sur le lit de tes illusions perdues, E, sobre a cama de tuas ilusões perdidas,
J’érige un fabuleux vaisseau invisible Ergo um fabuloso navio invisível
Pour les emporter dans l’espace inaccessible Para levá-los no espaço inacessível
Où se déploient les ondes sympathiques ! Onde se desdobram as ondas simpáticas!

Je suis l’Afrique, depuis toujours, dans ton Sou a África, desde sempre, no teu coração
cœur
A l’écoute de tes secrets, à l’affût de tes A escutar teus segredos, a espreitar tuas
regrets saudades
Para te poupar da amargura, a imbebível seiva
Pour t’épargner de l’amertume l’imbuvable
sève E te oferecer a doçura e o calor do dia que se
Et t’offrir la douceur et la chaleur du jour qui levanta!
se lève !

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Rencontre — Marc Filior

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[ 4 ] Rencontre Encontro
Dans la fraîcheur du tiède matin No frescor da tépida manhã
La rose perlante reluit, offrant encore son A rosa perolada reluz, oferecendo ainda um
doux festin doce festim
A tous, partout dans la belle et mystérieuse A todos, por toda parte na bela e misteriosa
savane ensoleillée ! savana ensolarada!

Les doux effluves d’hibiscus et de filaos Os doces eflúvios de hibiscos e de casuarinas


Embaument l’air d’un surprenant mélange de Perfumam o ar com uma surpreendente mistura
parfums ! de aromas

Mon ami Amadou savoure aussi cet instant Meu amigo Amadou saboreia também este
unique instante único
Quand nos pas se rapprochent dans ce Quando nossos passos se aproximam nesse
nouveau jour, timide ! novo dia, tímido!

Une franche poignée de mains scelle nos Um franco aperto de mãos sela nossos
retrouvailles enjouées reencontros divertidos
Et, de salamalec en salamalec, sur tout et sur E, de salamaleque a salamaleque, sobre tudo e
rien nous devisons, heureux ! sobre nada conversamos, felizes!

Sur ce chemin de terre où nos routes à Neste caminho de terra onde nossas rotas de
nouveau se croisent, novo se cruzam,
Les regards, les sourires et les exclamations Os olhares, os sorrisos e as exclamações
fascinantes fascinantes
Transportent nos joies, nos peines et nos Transportam nossas alegrias, nossas penas e
espoirs encore rayonnants nossas esperanças ainda radiantes
Vers le blond désert étouffant où, souvent, se Em direção ao louro deserto sufocante, onde,
perdent nos humaines pensées ! muitas vezes, se perdem nossos pensamentos
humanos!

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Le vieil homme marche dans le vent — Marc Filior

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[ 5 ] Le vieil homme marche dans le vent O velho caminha no vento


Le vieil homme marche dans le vent, O velho caminha no vento,
Le pas léger et la démarche alerte O passo leve e o caminhar alerta
Le bleu du turban voilant ses pensées O azul do turbante velando seus pensamentos
secrètes ! secretos!

Seus temores se misturam ao sopro do ar,


Ses craintes se mêlent au souffle de l’air, muitas vezes,
souvent, E vagueiam através das dunas do Sahel
Et voguent à travers les dunes du Sahel Em direção ao oceano e bem além, talvez
Vers l’océan et bien au-delà, peut-être aussi, também, para Babel
vers Babel ! Seu bubu branco envolve todos as suas vivas e
Son boubou blanc enveloppe tous ses vifs et magras esperanças
maigres espoirs Colocando-as ao abrigo dos olhares indiscretos
Les mettant à l’abri des regards indiscrets nas suas dobras irrisórias
dans ses plis dérisoires !
Ele caminha para seu improvável destino
Il marche vers son improbable destin O velho, sem mais sede nem fome,
Le vieil homme, sans plus soif ni faim, Mas ele vai, certamente, rumo a seu incerto
Mais il va, sûrement, vers son incertain festin, festim,
Abraçando já o amanhã e seu próximo fim!
Embrassant déjà demain et sa prochaine fin !
A vida não passa de um movimento sem fim
La vie n’est qu’un mouvement sans fin Do qual ele terá animado um ciclo mais ou
Dont il aura animé un cycle plus ou moins menos sereno.
serein. Então, sem nostalgia nem choro, apesar das
Alors, sans regret ni pleur, malgré les joies et alegrias e penas de ontem,
les peines d’hier, O homem parte para se perder no eterno refrão
L’homme s’en va se perdre dans l’éternel do universo
refrain de l’univers E lá fundir-se, infinitamente, como uma gota de
Et s’y fond, infiniment, telle une goutte de chuva solitária
pluie solitaire, Caída no imenso oceano, simples retorno ao
Tombée dans l’immense océan, simple retour mar, Mãe!
à la mer, Mère !

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Femme africaine — photo d’une peinture dont l’auteur n’est pas identifiable

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[ 6 ] Souviens-toi ! Lembra-te!
Si dans le bel élan Se no belo impulso
Que te donne la vie Que te dá a vida
Les hommes et le temps Os homens e o tempo
De toi parfois rient De ti por vezes riem

Souviens-toi Lembra-te
Que tu n’es qu’un murmure Que não passas de um murmúrio
Qui s’envole et danse Que voa e dança
Dans la mouvance de l’existence No movimento da existência
Avec ou sans armure ! Com ou sem armadura

Quand tu t’emploies Quanto te dedicas


A la démesure À desmesura
Et souvent ploies E geralmente te curvas
Sous les injures Sob as injúrias
Des hommes et du sort Dos homens e do destino
Qui, partout, t’assomment Que, em todo lugar, te atordoam

Souviens-toi Lembra-te
Que tu n’es qu’un murmure Que não passas de um murmúrio
Dans la rumeur du vent No rumor do vento
Qui t’emporte si souvent Que te leva muitas vezes
Là où tu rases les murs Lá onde raspas os muros
De peur de n’être plus De medo de não ser mais
Qu’un triste souvenir Do que uma triste lembrança
Dans les mémoires liquides ! Nas memórias líquidas!

Et quand gronde l’océan E quando brame o oceano


Dans une violence qui t’offense Numa violência que te ofende
Oui, souviens-toi Sim, lembra-te
Que tu n’es qu’un murmure Que não passas de um murmúrio
Survolant l’écume qui s’échoue Sobrevoando a espuma que encalha
Et sur la plage enfin se couche E sobre a praia enfim repousa
Par-dessus celle avant, sans armure, Por cima da anterior, sem armadura,
Epousant les silencieuses dunes ! Desposando as silenciosas dunas!

Oui, souviens-toi Sim, lembra-te


Souviens-toi Lembra-te
Souviens-toi Lembra-te
Que tu n’es qu’un murmure Que não passas de um murmúrio
Qui s’envole et qui danse Que voa e que dança
Dans la mouvance de l’existence No movimento da existência
Qui souvent t’offre une chance Que muitas vezes te oferece uma chance
Pour affiner et parfaire ta nature Para purificar e perfazer tua natureza
Malgré toutes les offenses Apesar de todas as ofensas
Qui te trouvent sans défense ! Que te encontram sem defesa!

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Oui, souviens-toi Sim, lembra-te


Que telle une feuille détachée de sa branche Que assim como uma folha desprendida de seu
ramo
Souvent charriée ou ballotée en tous sens Geralmente carregada ou sacudida em todos os
sentidos
Dans les tumultueux cours de l’existence Nos tumultuosos cursos da existência
Tu n’es qu’un murmure Não passas de um murmúrio
Qui s’affole, puis s’envole et danse Que se assusta, voa e dança
Dans la belle mouvance de la prime essence, No belo movimento da prima essência,
Reine ou roi dans la démence, Rainha ou rei na demência,
Implorant la douce Clémence, Implorando a doce Clemência
Ou saisissant ses véritables chances ! Ou agarrando suas verdadeiras chances!

Chuuuuuuuuuuuuuuuut…, Pssssssssssssssss...,
Dans le silence du jour qui déjà fuit No silêncio do dia que já se vai
Comme dans le murmure de la nuit qui, Como no murmúrio da noite que,
Inévitablement, le suit Inevitavelmente, o segue
Oui, souviens-toi de tout, souviens-toi de toi Sim, lembra-te de tudo, lembra-te de ti e sê
et sois toujours toi ! sempre tu!

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Photo sans titre — Eurydice Reinert Cend

[ 7 ] Ma belle terre Minha bela terra


Ma belle terre Minha bela terra
Pavée de belles vérités Recoberta de belas verdades,
Que foulent les esprits insensés, Que os espíritos insensatos pisoteiam,
Alertes, au pas cadencé, Alertas, com passo cadenciado,
Parlant bien souvent Falando quase sempre
Pour ne rien dire Para nada dizer
Criant à tous vents Gritando a todos os ventos
Pour mieux médire Para melhor maldizer
De ceux qu’ils avilissent matin et soir Daqueles que eles corrompem manhã e noite
Pour que l’injustice puisse mieux s’asseoir Para que a injustiça possa melhor se assentar
Où donc est passée ton authenticité ? Para onde foi tua autenticidade?
Je voudrais tes artères Eu queria tuas artérias
Non pas rouge de la colère Não vermelha da cólera
De tous ceux contre qui l’on te dresse De todos esses contra quem te erguem
Mais lumineuse de la belle ardeur Mas luminosa do belo ardor
De ceux qui, en toi, se redressent De todos que, em ti, se reerguem
Et chantent ici et là ta valeur, E cantam aqui e lá teu valor,
Toi qui les entoure d’une saine chaleur Tu que os envolves de um sadio calor
Et les nourrit d’une ample et vivre ferveur ! E os alimentas de um amplo e vivo fervor
Sois belle ! sois noble et soit toujours juste Sê bela! Sê nobre e sê sempre justa
Et tu seras dite fille de majesté auguste ! E te dirão filha da majestade augusta !

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BIBLIOGRAFIA

CEND, Eurydice Reinert. L’Afrique en poésie. Serrouville, Frace: Eryuniverse


éditions, 2013.

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RELATO DO PROJETO “LITERATURA DE REFÚGIO:


EXPRESSÕES HAITIANAS”

João Arthur Pugsley Grahl1


Luciano Ramos Mendes2
Rei Seely3
Emerson Pereti4
Carla Cursino5
Rafaela Tschoke Santana6
Glaucia dos Santos Abreu7

RESUMO: Como parte do projeto de extensão universitária PBMIH (Português Brasileiro


para Migração Humanitária) da UFPR, em 15 de setembo de 2016, no Sesc Paço da
Liberdade, em Curitiba, foi promovido o evento Literatura de Refúgio: Expressões
Haitianas. Foi a segunda edição de um evento que por enquanto teve cinco edições. O evento
promoveu a literatura haitiana através de traduções de Frankétienne (Dialecte de Cyclones);
Jacques Roumain (Sales Nègres, Bois d’Ebène); Georges Castera (Pitit Malere); Dany
Laferrière (Pays sans Chapeau); Dominique Batraville (Les Flâneries du Voyant); Jeanie
Bogart (le Cri). As traduções foram feitas por alunos da UFPR e professores, e recitadas no
idioma original (créole, francês) por um poeta haitiano que vive em Curitiba, e em português
por um aluno da Universidade. A apresentação dos escritores, com uma pequena biografia,
foi feita pelo apresentador do evento. O relato procurará adaptar o evento mostrando os textos
originais e as traduções além de mostrar também um depoimento em prosa poética e dois
poemas do autor haitiano Rei Seely que vive em Curitiba e participou do evento recitando
seus poemas. Dará também o depoimento do editor brasileiro, Luciano Mendes, de poesia
haitiana.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Haitiana; Literatura de refúgio; Migração; Tradução;


Diáspora.

ABSTRACT: In 2016, at the Sesc Paço da Liberdade, in Curitiba, the event “Literatura de
Refúgio: Expressões Haitianas” was promoted as part of the project PBMIH (Português
Brasileiro para Migração Humanitária) of the UFPR. This was the second time that the event
was promoted of five so far. In the event it was shown translations and the originals by
1
Doutorando em Estudos Literários na Universidade de Brasília. E-mail: joarthur@gmail.com
2
Mestrando em Estudos Literários na Universidade Federal de Santa Catarina.
3
Poeta haitiano graduado em filosofia e letras.
4
Professor de língua e literatura na Universidade Federal da Integração Latino-Americana.
5
Graduanda em letras francês e mestranda em estudos linguísticos na Universidade Federal do Paraná.
6
Graduanda em letras francês na Universidade Federal do Paraná.
7
Graduanda em letras francês na Universidade Federal do Paraná.

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Franketienne (Dialecte de Cyclones); Jacques Roumain (Sales Nègres, Bois d’Ebène);


Georges Castera (Petit Malere); Dany Laferriere (Pays sans Chapeau); Dominique Batraville
(Les Flâneries du Voyant); Jeanie Bogart (le Cri). The translations were made by students
and professors. They were recited in kreyòl and french by a haitian poet and in portuguese
by a student of the University. The presentation of the poet with a little biographie was made
by the presenter of the event. This present text will adapt the event in the paper form showing
the originals and the translations and also testimony of a haitian poet Rei Seely which lives
in Curitiba and writes in portuguese. The paper will also show the testimony of the editor of
haitian poetry in Brazil, Luciano Mendes.

KEYWORDS: Haitian literature; Refugee literature; Imigration; translation; Diaspora.

INTRODUÇÃO
No fim de 2013, na UFPR, o Celin UFPR (Centro de línguas da UFPR) foi
procurado por uma professora da prefeitura da cidade de Curitiba e pela ONG CASLA (Casa
Latino-Americana) para tratar de um problema bastante atual: o ensino de português dos
migrantes, sobretudo sírios e haitianos que chegam ao Brasil como indica Marcio Oliveira
(2016). Dessa data até hoje, diversos alunos e professores do curso de letras, e centenas de
haitianos e refugiados de diversas nacionalidades passaram pelo projeto PBMIH da UFPR
(Português Brasileiro para Migração Humanitária) como foi historicizado por Bruna Ruano
et al (2016).
No mês do migrante de 2016, foi cedido aos participantes do projeto pelo Sesc Paço
da Liberdade o espaço para a feitura de um evento. Junho é o mês do migrante. Os
participantes do projeto decidiram que iriam buscar textos literários de diversas culturas e
línguas, tendo como eixo comum a temática do refúgio, exílio e diáspora. O evento foi
marcado para 21 de junho. Cahier de Retour à un pays Natal, de Aimée Césaire, autor
martinicano e um dos fundadores do movimento da negritude; Pan Cogito, de Zbigniewa
Herbert, poeta polonês; Flüchtlingsgespräche, de Bertolt Brecht, dramaturgo e poeta alemão;
Peregrino, de Luis Cernuda, poeta espanhol; Tout ce qu’on ne te dira pas, Mongo, de Dany
Laferrière (ver biografia abaixo), escritor haitiano exilado no Canadá; Melovivi, de
Frankétienne, escritor e artista plástico haitiano (ver biografia abaixo); Nous les exilés, de
Maram Al-Masri, poetisa francófona síria; e um poema sem título de Adonis, poeta sírio que

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vivem entre o Líbano e a França, foram traduzidos e declamados na língua original, para
causar estranhamento, e em português. O evento mobilizou estudantes, professores e, por ser
localizado fora da universidade, pessoas não necessariamente iniciadas no mundo literário
participaram dele (cerca de 60 pessoas).
O presente artigo trata da segunda edição do evento de 15 de setembro de 2016. Para
esse, dedicamos todo o tempo (uma hora e meia) à literatura haitiana, pois a maior parte de
nossos alunos do curso de português são dessa origem.
Começamos com uma música em kréyol haitiano e projetamos a letra da canção/
poema em Power Point. Tratava-se de Pitit Malere de Georges Castera (ver biografia mais
abaixo). Seguimos com Jacques Roumain, mostrando a foto do escritor e as transcrições do
original e da tradução com uma pequena biografia (de maneira a valorizar a língua com a
qual o texto foi escrito e situar o autor). O objetivo era ser superficialmente didático e colocar
mais em evidência o contato do público com as línguas e a emoção vinculada pelos textos.
Os textos e traduções reproduzidos aqui não estão disponíveis nem no mercado editorial nem
na internet.
Os títulos seguintes do artigo mostram um texto do editor da tradução de Jacques
Roumain, e em seguida um texto do poeta haitiano que declamou seus poemas no dia do
evento, e que também falou um pouco sobre o Haiti, e cujo livro de poemas será editado pelo
mesmo editor supracitado, logo após serão mostradas as traduções tal como foi no dia do
evento. O texto dá assim uma boa ideia de como as “Expressões Haitianas” foram
apresentadas.

A VOZ DO EDITOR LUCIANO MENDES


Editar literatura haitiana. Era algo que, confesso, jamais me havia passado pela
mente. O Haiti, aliás, era para mim uma terra incógnita: tinha uma noção muito superficial
de sua cultura e história, sabia que havia sido o palco das grandes revoluções negras. Havia
lido, na adolescência, algo sobre o vodu - que era algo como um candomblé. Sabia sobre a
presença de militares brasileiros no país. E só. Nada além de um amontoado de clichés e
curiosidades superficiais.

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Mas eu decidira tornar-me um editor. Editei, por algum tempo, junto a dois amigos,
uma revista-blog chamada ‘Sinuosa’: buscávamos, na literatura, os caminhos tornos, difíceis.
Publicamos trabalhos autorais e algumas traduções de poetas lituanos, romenos, israelenses.
Mas essa primeira experiência acabou naufragando, por conta de inúmeros
compromissos acadêmicos e profissionais meus e dos colegas. Alguns meses depois seguia
inquieto com o estado das coisas. Incomodava-me a lógica excessivamente mercadológica
das grandes editoras que atuavam (e atuam) no território nacional. A falta de espaço a que
eram forçadas algumas manifestações literárias que não pertencessem a certo cânone.
Foi assim que fundei a Editora Dybbuk. Sem a menor ideia de como tocar uma
editora, é verdade. Não sabia onde conseguiria autores, tradutores, textos. Tinha em mente
publicar algumas traduções de poetas poloneses e iídiches, de minha autoria. Publicar alguns
autores que conhecia pessoalmente. Mas eu queria ir além disso, usar a editora como uma
espécie de amplificador para as vozes que não costumamos ouvir na literatura que se torna a
oficial.
Nesse tempo, pelos corredores da universidade, um de meus grandes interlocutores
ao falar de poesia era o João Arthur Grahl. Certa feita comentou a respeito de seu trabalho
com o ensino de língua portuguesa aos haitianos e sua aproximação com a cultura desse país.
Leu para mim sua tradução do poema de Jacques Roumain, Negros Sujos.
A partir da leitura desse poema, tão cheio de rancor, de raiva, mas, acima de tudo,
de beleza e solidariedade, cheio de um clamor por liberdade, eu resolvi publicá-lo. Foi nossa
primeira publicação - um pequeno livreto com esse e mais alguns poemas de Roumain, bem
como um ensaio do autor, todos em tradução de João Arthur.
O tempo segue, a editora publica mais alguns volumes. E, através do blog-revista
Escamandro, entrei em contato com a obra de Rei Seely, a quem contatei através das redes
sociais - algo que me havia sido recomendado por alguns conhecidos em comum.
Estamos, atualmente, nos preparativos finais para a publicação de Poesia sem
folhas/ Refugiado feijoada, primeiro livro de Seely. Escrito em português, este é um
testemunho sensível do mundo em que vivemos. Ele ocupa o lugar do poeta deslocado,
retirado de seu lugar de origem por força das circunstâncias históricas.

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A publicação da obra desse poeta me parece essencial, haja vista a missão que
postulei para minha atividade de editor. É dar voz a alguém que os grandes gostariam de ver
silenciado, é um modo de amplificar o grito que - se hoje é dos haitianos e dos sírios, ontem
foi dos meus antepassados judeus. É lutar contra as barreiras - impostas pela burocracia e,
acima de tudo, pelo preconceito - que tenta nos separar, quando a verdade é que, já diz o
próprio poeta mais abaixo:

“A história dos povos não é uma ficção


Porque nós somos todos os produtos de importação.”

A VOZ DO POETA HAITIANO REY SEELY


Rei Seely chegou ao Brasil em 2014. Nasceu em Gonaïves, Haiti. É professor de
francês e em três anos já escreve como um poeta lusófono como mostra nos dois primeiros
textos abaixo. Uma prosa poética de revolta, um poema de revolta em quadras e um poema
em francês, na melhor tradição de Jacques Roumain: a revolta.

Poema em prosa “Todos são Haiti, ninguém é Haiti”

Nasci em um país de Sujos ao Preço. Aí a democracia ocorre com a demagogia, com


políticos canalhas pegos em sua mente. Eles são como coveiros com a ordem da interferência
estrangeira no país. O que é este país para esses políticos de bolso?
Entretanto as crianças da rua são sujas à cinza com a ajuda da UNICEF, os jovens
mais decrépitos, sem emprego após gritar Fora à ditadura de Duvalier (Papa doc). Os idosos
são como exumados ambulantes depois de desperdiçar a juventude em um sono letárgico por
um futuro traiçoeiro. Por isso, o povo chafurda no grito da miséria como adeptos que oram à
Santa Mudança. Além disso, este país está mais perto que a América, na América. É o país
de feriados das ONG’s e da ONU, para lavar o dinheiro da ajuda humanitária nas suas belas
praias tropicais.
Após o terremoto de 12 janeiro de 2010, o meu país tem experimentado um inferno
sem fogo, a esperança é no sol da noite. Naquele dia, era como uma chuva de poeira, tudo

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pareceu a mesma, nenhuma diferença. A única música que gemeu no coração de todos; foi
como uma sinfonia, uma sinfonia que provou que nós somos todos iguais.
As almas dos meus irmãos falecidos viajados ficaram na tranquilidade otimista sob
os escombros anárquicos. E para nós, os sobreviventes esquizofrênicos, foi a bênção de uma
mudança, em nosso sono do meio-dia para uma nova sociedade. Às vezes após a chuva é o
belo sol, como a taxa da miséria do povo foi na escala magnitude oito da FAO 8. No entanto,
todos os países tinham os olhos em nós, mesmo a Somália, por um gesto humanitário de
queixas, grandes ou pequenas, todos enviando suas doações.
Os anos perdidos nos discursos e as entranhas do cataclismo esquecido ficam no
coração dos órfãos e dos amputados. Antes pensei que este mal foi um bem, esqueci
completamente que vivo em um hemisfério selva, donde a doutrina de James Monroe está
em vigor. As ONGs vieram com seus projetos sociais de sanguessuga, elas foram formadas
como templos religiosos, vestindo a Boa Notícia para uma nação em perigo, é sempre assim
seu propósito no mundo...
Sou um povo explorado e marginalizado, desde o esperma da vida me deu luz, neste
mundo do princípio de contrário. Aqui, é por isso que a farsa da imprensa nos cumprimenta,
e nos embeleza como negros sujos. Uma ironia estúpida sem fundamentos, com críticas para
aquele que é humanista, que pode ler; ler no sentido de conhecer o outro sem o marginalizar.

Poema “Para você, cabeça de vento”9


Eu estou falando com você Eu sou a mãe, mãe da Liberdade
Você que não fez a história Abandonada pela ignorância de desigualdade
Eu venho de um país de pé E destruída pela Casa Grande
Saqueado pelo Galo e a Águia Em um mundo implacável de dificuldade

Eu não sou nem cristão, nem católico Eu tenho raízes humanistas da minha infância
Que causou a guerra de cem anos Sem compromisso e com coração
Nem a metrópole da religião capitalista Eu mostrei-lhe o caminho da razão
Pregando resiliência, fabricando miséria Nós éramos inseparáveis na época

8
Food and Agriculture Organization of the United Nations.

9
Os dois poemas seguintes estão no prelo para serem publicados por Luciano Mendes da Dybbuk editora (ver
texto do editor acima).

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Eu sei que minha vida é guerra Para construir suas cidades de beleza
Você aprecia a força de meus filhos Você é sanguessuga com sua ajuda
Tratando-os bons trabalhadores como humanitária
escravos
Com trabalhos pesados por um salário de Filhos de povoamento privilegiados!
miséria Filhos de exploração marginalizados!
A história dos povos não é uma ficção
Eu não sou nem lixeira da América Porque nós somos todos os produtos de
Se você utilizar minha pobreza importação

Poema “Je pense sans panser”

Déjà presqu´une décennie sous les décombres 2010 venait du Diable. Merci au peuple
où Haiti reste toujours dans l´ombre haitien qui croit en VIVE ou ABA pour
la misère nous affecte plus panser Haiti.
et notre espoir fleurit pus. Merci à tous nos politiciens resquilleurs et
Merci à la Croix Rouge Internationale. Merci parlementaires antillais qui pensent à Haiti.
à la Foundation Clinton. Merci à la Caritas Derechef une pensée, un lyrisme, un
Internationale. Merci à l´USAID.Merci à pamphlet et une épitaphe pour mes soeurs et
l´Oxfam. Merci à toutes les ONG’s qui ont frères défunts qui ont cru en l´avenir d’Haiti,
contribué à la reconstruction Haiti avec ce mais hélas!
plan de fiction. Merci à la Minustah (ONU) Jusqu’à présent les jours sont crus.
pour le choléra. Merci à tous les “Qui croit en la voie des sans-voix ne voit
missionnaires qui ont prié pour Haiti qui nous
jamais la croix”
faisaient croire que le séisme du 12 janvier

AS TRADUÇÕES
O critério principal de escolha dos textos era de mostrar a temática do refúgio e
exílio. Houve um poema em língua Kreyòl 10, textos dos autores mais conhecidos para que se
achem mais facilmente (Frankétienne, Laferrière), uma mulher (Bogart), um “clássico”
(Roumain). Também um que pudesse servir de mote para falar da história do Haiti
(Batraville). O Primeiro poema foi apresentado na forma de canção como encontrado no site
de TV511. A música ecoou sem a foto, somente com a tradução projetada como forma de
preparação para o evento. Os textos subsequentes foram projetados tal como se encontram
abaixo: com a foto e uma pequena nota biográfica mostrada pelo apresentador do evento.
Cada nota bibliográfica foi adaptada a partir de textos achados em sites na internet

10
Ou Criolo haitiano. Língua oficial do Haiti, falada por toda a população.
11
Logo após o terremoto de 2010, tv5 propôs em seu site um dossiê sobre diversos escritores:
http://www.tv5monde.com/TV5Site/lettres-haiti/

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(Wikipedia, TV5, Ile en Ile, por exemplo), por Carla Cursino, que é jornalista e traduziu o
texto de Georges Castera logo abaixo. Após o texto original foi lido por Rei Seely, a tradução
em seguida foi lida pelo estudante de letras e ator “Victor” Hugo Simões. Após a tradução,
para este texto colocamos os depoimentos dos alunos falando sobre a experiência de traduzir.

Georges Castera
O evento foi aberto com esse poema/canção “Pitit malere” de Castera. Iniciou-se o
evento sem nenhuma introdução ou preparação, como forma de encantar o público através
do Kreyòl. O texto pode ser lido logo abaixo. Não foi projetada nenhuma foto de Castera,
somente o poema e a tradução.

Pitit malere O filho dos pobres, tradução de Carla


Cursino
Sa ou vle nèg-la fè? O que vocês querem que ele faça?
madanm-li ap pase rad, Sua mulher passa a roupa
li minm l-ap pase tray Ele, ele passa e repassa
pitit li kouche pelo buraco de uma agulha
tou rèd tou plat Seu filho está deitado
kon nap joudlan. estendido, de barriga pra cima,
yon ti moun si zan como uma toalha de ano novo.
tou chèchkò.
wa di you bwadan Uma criança de seis anos
seren fi-n souse, muito magra
wa dj you vye chalimo Parecia um palito
fronmi ap pote ale. que o orvalho da noite
vwazinay koumanse sanble secou,
lan kay-la, Parecia um monte de palha
yo chita lan plenyen : levado pelas formigas.
apa yè, mezanmi,
ti nonm-la t-ap pase la-a... Os vizinhos se reúnem
Hey! katye-a tankou dentro de casa
you bout bra e se sentam em meio às plantas:
ki pa kenbe anyen. Não faz muito tempo, meus amigos,
Maladi lan san, o menino passava por lá… Ai!
osnon maladi san non? A vizinhança
- Non madanm, é como um braço quebrado
se grangou k-ap pote-l ale, que nada pode segurar.
maladi lamizè
ki kanpe lan tout kay-la Será que ele tinha uma doença sanguínea

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lan mitan tout bagay. ou uma dessas enfermidades


desconhecidas?
Sa ou vlé nèg-la fè? - Não, senhora,
madanm-li ap pase rad, foi a fome que o levou,
li menm l-ap pase tray, essa doença miserável
l-ap vanse je fèmen, que se apodera das nossas moradas
li pa konnen sa pou-l fè, e que se esconde nos mínimos detalhes.
li tankou you vye revèy
ki rete sou midi: O que vocês querem que ele faça,
vant-li vid, este homem?
bouch-li ap kimen. Sua mulher passa a roupa,
Li pa touche depi twa mwa, ele, ele passa e repassa
pitit-1i kouche tou rèd pelo buraco de uma agulha.
epi-l tande
lantèman pou ka trè. Ele move os olhos fechados
Ele não sabe o que fazer
(site TV5 Lettres d’Haiti, 2016)
Ele é como um relógio velho
parado no meio-dia:
Sua barriga está vazia,
sua boca amarga e espuma,
Nem um tostão já faz três meses
Deitado, rígido e morto seu filho
E vejam o que lhe repetem:
«O enterro será às quatro.».

Discussão da tradução pela aluna Carla Cursino


Nunca pensei em mim como tradutora. E ainda não penso. O “Literatura de Refúgio
– Expressões Haitianas”, porém, foi um convite a esta aventura. Estudo a língua crioula do
Haiti em minha pós-graduação e, assim, encarei o desafio de traduzir o poema “Pitit
Malere”, de Georges Casteras, diretamente do crioulo haitiano. Confesso que minha maior
preocupação não foi a manutenção de elementos mais técnicos de um poema, como rima e
ritmo. Apostei, portanto, em uma tradução mais livre. Contudo, tentei ser fiel ao meu
principal objetivo: manter as imagens do poema original de Casteras, essenciais para que o

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leitor compreenda a realidade social que o poeta apresenta e para a reflexão proposta pelo
“Literatura de Refúgio”.

Jacques Roumain
Jacques Roumain (1907-1944) foi um escritor e político haitiano. É um dos
principais nomes da cultura haitiana; teve um papel fundamental na luta
contra a ocupação americana do Haiti (1915-1934). Fundou o Partido Comunista
do Haiti, razão pela qual foi condenado ao exílio em 1934. Volta ao país natal em
1941 e torna-se político. Jacques Roumain, o “filósofo da Negritude”, é o escritor
haitiano mais conhecido no mundo e um dos principais artistas do país a lutar
Foto 1: Site Île-en-île
pela cultura e pela identidade haitiana. Os dois poemas declamados no evento
(Madeira de Ébano e Negros Sujos) podem ser encontrados em Roumain (2015)
ou no site scribd: https://www.scribd.com/document/330475538/Negros-Sujos-
Dybbuk-1. (Texto adaptado do site http://ile-en-ile.org/bibliographie-de-jacques-
roumain-par-genres/).

Frankétienne
Nasceu em 1936. É poeta, dramaturgo, pintor, músico e professor haitiano.
Durante a era Duvalier, a situação política do Haiti torna-se insuportável para os
intelectuais do país e muitos deles buscam exílio no Canadá, na França e na África.
Frankétienne, contudo, decide permanecer no Haiti para lutar. Sua obra é um
verdadeiro retrato da história haitiana contemporânea e testemunha a vida de
milhares de jovens que se sentem forçados a deixar o país sem esperança nem desejo
de retorno. Este “poema” a seguir é um fragmento do prólogo da obra Mûr à crever,
Foto 2: Site Wikipedia
de Frankétienne (2006), e serve como uma espécie de síntese da poética do
espiralismo, proposta por ele, René Philoctète e Jean-Claude Fignolé. (Texto
adaptado por Emerson Pereti e Carla Cursino da obra Mûr à crever e do site ile-en-
ile.org/franketienne).

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Dialect des Cyclones Dialeto dos Ciclones, traduzido por


Emerson Pereti
Chaque jour, j'emploie le dialecte des A cada dia eu uso o dialeto dos lunáticos
cyclones fous. furacões
Je dis la folie des vents contraires. Digo a loucura dos ventos contrários
Chaque soir, j'utilise le patois des pluies A cada tarde eu uso o patoá das chuvas
furieuses. furiosas
Je dis la furie des eaux en débordement. Digo a fúria das águas que inundam
Chaque nuit, je parle aux îles Caraïbes A cada noite eu falo com as ilhas do
le langage des tempêtes hystériques. Je Caribe na linguagem das tempestades
dis l'hystérie de la mer en rut. histéricas.
Dialecte des cyclones. Patois des pluies. Eu digo a histeria dos oceanos em cio.
Langage des tempêtes. Déroulement de Dialeto dos furacões. Patoá das chuvas.
la vie en spirale. Linguagem das tempestades. Processo
Fondamentalement la vie est tension. da vida em espiral.
Vers quelque chose. Vers quelqu'un. Vers Fundamentalmente a vida é tensão. Em
soi-même. Vers le point de maturité où direção a algo. A alguém. A si próprio.
se dénouent l'ancien et le nouveau, la Ao ponto de maturidade onde se
mort et la naissance. Et tout être se desenlaçam o velho e o novo, a morte e
réalise en partie dans la recherche de o nascimento. E cada ser se percebe em
son double, recherche qui se confond à parte na busca de seu outro, a busca que
la limite avec l'intensité d'un besoin, se confunde com o limite da força de
d'un désir et d'une quête infinie. uma necessidade, de um desejo, de uma
Des chiens passent - j'ai toujours eu inquietude sem fim...
l'obsession des chiens errants - ils Os cães passam - sempre tive a obsessão
jappent après la silhouette de la femme dos cães errantes - eles latem seguindo o
que je poursuis. Après l'image de vulto da mulher que persigo. Seguindo a
l'homme que je cherche. Après mon imagem do homem que busco. Seguindo
double. Après la rumeur des voix en meu outro. Seguindo o rumor das vozes
fuite. Depuis tant d'années. On dirait em fuga. Faz tantos anos. Diríamos 30
trente siècles. séculos.
La femme est partie, sans tambour ni A mulher se foi, sem tambor nem
trompette. Avec mon coeur désaccordé. trompete. Com meu coração
L'homme ne m'a point tendu la main. desacordado. O homem não me
Mon double est toujours en avance sur estendeu a mão. Meu outro está sempre
moi. Et les gorges déboulonnées des à minha frente. E as gargantas
chiens nocturnes hurlent effroyablement destroçadas dos cães noturnos uivam
avec un bruit d'accordéon brisé. terrivelmente como o ruído de um
C'est alors que je deviens orage de mots acordeão quebrado.
crevant l'hypocrisie des nuages et la É então que me torno tempestade de
fausseté du silence. Fleuves. Tempêtes. palavras cavando a hipocrisia das
Éclairs. Montagnes. Arbres. Lumières. nuvens e a falsidade do silêncio. Rios.
Pluies. Océans sauvages. Emportez-moi Tempestades. Relâmpagos. Montanhas.

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dans la moelle frénétique de vos Árvores. Luzes. Chuvas. Oceanos


articulations. Emportez-moi ! Il suffit selvagens. Levem-me para a medula
d'un soupçon de clarté pour que je convulsa de suas articulações. Levem-
naisse viable. Pour que j'accepte la vie. me! Basta uma suspeita de luz para que
La tension. L'inexorable loi de la eu engendre o que há de viável. Para que
maturation. L'osmose et la symbiose. eu aceite a vida. A tensão. A inexorável
Emportez-moi ! Il suffit d'un bruit de lei da maturação. A osmose, a simbiose.
pas, d'un regard, d'une voix émue, pour Levem-me! Basta um barulho de passos,
que je vive heureux de l'espoir que le um olhar, uma voz embargada, para que
réveil est possible parmi les hommes. eu viva plenamente na esperança de que
Emportez-moi! Car il suffit d'un rien, o despertar é possível entre os homens.
pour que je dise la sève qui circule dans Levem-me! Pois basta um nada para que
la moelle des articulations cosmiques. eu diga a seiva que circula na medula
Dialecte des cyclones. Patois des pluies. das articulações cósmicas.
Langages des tempêtes. Je dis le Dialeto dos furacões. Patoá das chuvas.
déroulement de la vie en spirale. Linguagem das tempestades. Eu digo o
(FRANKETIENNE, 2006) processo da vida em espiral.

Dany Laferrière

Dany Laferrière, nascido em 1953 em Porto Príncipe, é escritor e


um dos principais nomes da cena intelectual do Haiti. A situação política
do Haiti durante o governo de Papa Doc força o escritor a deixar seu país
natal e partir para o Canadá, onde vive até hoje. O exílio é uma das
principais marcas de sua obra. Seus principais romances, Como fazer
Foto 3: Site Wikipedia amor com um negro sem se cansar e País sem chapéu, foram publicados
no Brasil pela Editora 34. O fragmento de tradução lido no evento, País
sem Chapéu, provém de uma dissertação de mestrado de Heloisa Caldeira
Alves Moreira (2006:112-113). (Texto adaptado do site: http://ile-en-
ile.org/).

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Dominique Batraville
Dominique Batraville, escritor, poeta e jornalista haitiano, nasceu em
1962, em Porto Príncipe. Durante a ditadura de Papa Doc e Baby Doc,
Batraville se exila na Europa. Volta para seu país natal em 1986. Suas obras
retratam, sobretudo, a cultura haitiana e o imaginário caribenho. Abaixo pode-
se ver que o poema engloba geografia e história do Haiti com relação ao
mundo. (Texto adaptado do site http://ile-en-ile.org/ e
Foto 4: Site île-en-île http://www.tv5monde.com/TV5Site/lettres-haiti/).

Les Flâneries du Voyant O Vaguear do Profeta traduzido pela


aluna Glaucia dos Santos Abreu
Moi, Frantz Dominique Batraville, je suis Eu, Frantz Dominique Batraville, nasci no
né le 20 février 1962 à la clinique du dia 20 de fevereiro de 1962 na clínica
Docteur Beaubœuf, à la rue Capois, dans le Beauboeuf, rua Capois, centro histórico de
centre historique de Port-au-Prince, capitale Porto Príncipe, capital do Haiti.
d'Haïti.
Em 1962, Duvalier se autointitulava
En 1962, Duvalier se prenait pour Dessalines com a intenção de dominar o
Dessalines, afin de maîtriser l'espace Haiti. E Garrincha (também em 62), sem se
haïtien. Et Garrincha [toujours en 62], comparar a Pelé – impressionava os fãs da
brillant footballeur brésilien – sans se bola ao redor do mundo.
comparer à Pelé – éblouissait les fans du
ballon rond à travers toute la planète. A terra gira e a bola rola!

La terre tourne et le ballon roule !

Comme natif-natal de Port-au-Prince, j'ai Como filho de Porto Príncipe, aprendi a


appris à observer Compère Général Soleil et respeitar o Compère Général Soleil e me
je me suis mis à scruter les pages de mon pus a examinar a tela do meu monitor da
écran-ordinateur, nommé: HU–RA–KHAN. marca HU – RA – KHAN.

Je compte me promener dans les nouvelles Espero passear pelas novas bibliotecas do
bibliothèques du Nouveau Monde. Novo Mundo.
J'entends revisiter mes textes en arawak et Quero revisitar meus textos em aruaque e
écrire mes formules cabalistiques en maya escrever minhas fórmulas cabalísticas em
Question de mathématiser mille lunes et maia.
trois soleils géants.

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Questão de matematizar mil luas e três


Comme voyant, je me voile devant Vishu, imensos sóis.
de peur de provoquer sa colère et Como profeta, sinto-me constrangido
d'engendrer une lumière altérante à son perante Vishu, de medo de desencadear sua
troisième œil, fermé, toujours fermé. cólera e produzir uma luz que alteraria seu
terceiro olho, fechado, sempre fechado.
Je poursuis mon exercice oral et même
électronique, auquel je me livre depuis Continuo meu exercício oral e mesmo
toujours comme Quetzalcoatl, protecteur du eletrônico, ao qual eu me submeto sempre
Golfe du Mexique. Quetzalcoatl veille, sur como Quetzalcoatl, protetor do Golfo do
toute l'Amérique – sur toutes les Amériques México. Quetzalcoatl vigia toda a América
– grâce au poisson-radar du mage haïtien – todas as Américas – graças ao peixe
Antoine Langommier. radar do mago haitiano Antoine
Langommier.
Oyez ma voix, léger écho du grand matin
des scribes bleus, roux, jaunes selon la Escutem minha voz, breve eco do longo
lumière du jour. amanhecer dos escribas azuis, vermelhos,
amarelos conforme a luz do dia.
Avec quoi, vais-je réécrire mon chant ultime
sur les murs de Babylone ? Com o que reescreverei meu canto último
nos muros da Babilônia?
Captez seulement un de mes versets: « Ô
Babylonie que j'ai créée ! ». Gravem apenas um dos meus versos: Óh
Voilà, le Dictant a parlé... Babilônia que eu criei!
Aí está... o ditador falou...
J'habite aujourd'hui les chars du premier
Bouddha… (site TV5 lettres d’Haiti, 2016)
Hoje habito todas as formas de Buda.

Discussão da tradução pela aluna Glaucia dos Santos Abreu


Para mim a experiência da tradução do poema Les Flâneries du Voyant
pode ser expressa como a construção de uma janela – diante da qual me curvo
- num esforço em direção ao outro de senti-lo e compreendê-lo, tendo como
resultado um vislumbre de sensações a partir de mim.
Jeanie Bogart
Jeanie Bogart (1970) é poeta e jornalista. A autora é considerada um dos
principais nomes femininos da poesia contemporânea haitiana e sua obra leva
Foto 5: Site île-île

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visão feminina sobre o Haiti para o mundo como pode ser visto no poema
abaixo. (Texto adaptado do site http://ile-en-ile.org/bogart/).

Le Crie O Grito traduzido pela aluna Rafaela


Santana
Enfant des tropiques Menina dos trópicos
fille d’esclaves suis-je filha de escravos eu sou
ce n’est pas une plainte isso não é uma queixa
ni une lamentation nem um lamento
c’est un cri é um grito
un cri um grito
pour que survive la mémoire para que sobreviva a memória
pour que reste l’image para que permaneça a imagem
des chaînes das correntes
que j’ai cassées de ma poésie que eu rompi de minha poesia
brisées de mes peurs bani de meus medos
arrachées de mes limitations arranquei de minhas limitações
abolies de mes discours aboli de meus discursos
pour que les chaînes soient symboles para que as correntes sejam símbolos
de ce qui ne sera jamais plus daquilo que nunca mais será
enfant des tropiques menina dos trópicos
fille d’esclaves filha de escravos
mon pays s’inscrit en lettres de feu meu país se inscreve em letras de fogo
dans des yeux d’enfants nos olhos de crianças
la mer emporte les soupirs o mar leva os suspiros
mon grand-père meu avô
s’était lacéré les mains lacerou as mãos
sur les feuilles de cannes à sucre nas folhas da cana-de-açúcar
grand-mère avó
d’une goutte de clairin sur ma langue com uma gota de cachaça em minha língua
me souhaita la bienvenue me desejou as boas vindas
le jour de ma naissance no dia do meu nascimento
Martinique-Haïti Martinica-Haiti
caraïbe de mes afflictions caribe de minhas aflições
identité rebelle identidade rebelde
aïeux des horizons lointains ancestrais de horizontes longíquos
je vous berce encore eu os embalo ainda
par les mélodies de ma mémoire pelas melodias de minha memória
sur ce bateau sobre este barco
dont le nom m’est devenu hostile cujo o nome se tornou para mim hostil
le destin o destino
vous avait déjà emboité le pas já tinha seguido o passo

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sur cette terre aux parfums d’épices sobre esta terra de perfumes de especiarias
la vie s’était figée a vida foi sedimentada
et belle fut-elle au soleil e bela ela era ao sol
somnolant à la tombée du jour sonolento ao cair do dia
colorée fut-elle de créoles colorida era ela de crioulos
à la peau de toutes les nuances de pele de todas as nuances
ma mémoire me frappe la poitrine minha memória me golpeia o peito
elle la gonfle de fierté ela o infla de orgulho
j’associe le sang à la canne à sucre eu associo o sangue à cana de açúcar
celui de mon grand-père que je n’ai pas o de meu avô que não conheci
connu avô
grand-père derrubado sob o chicote do colono
écroulé sous le fouet du colon a África e sua mata
l’Afrique et sa brousse ficaram enclausuradas em minha alma
me sont resté cloîtrées dans l’âme eu mudo de pele
je change de peau eu mudo de cor
je change de couleur à mercê de minha memória
au gré de ma mémoire que se quer história
qui se veut histoire que se quer porvir
qui se veut avenir em meus olhos
dans mes yeux uma lágrima salgada
une larme salée Haiti-Martinica
Haïti-Martinique azul ilusão
bleu fantasme o passado enlaça a alma
le passé nous ficelle l’âme o grito revém
le cri revient sempre com força
toujours en force a me rebentar a garganta
à me péter la gorge o sangue de meu avô
le sang de mon grand-père derramado por nada?
versé pour rien? a carne esmagada dos negros
la chair broyée des nègres misturada à poeira
mélangée à la poussière meu país morre
mon pays se meurt a independência soa como uma farsa
l’indépendance a l’air d’une farce o homem parece perder a memória
l’homme semble perdre la mémoire o homem
l’homme de quatro
à quatre pattes lambe as botas dos colonos modernos
lèche les bottes des colons modernes eu berro
je hurle arrebentando as cordas vocais
à me briser la corde vocale a honra se vende
l’honneur se vent em punhados de mãos verdes
par poignées de mains vertes a honra se troca
l’honneur s’échange por um Nike um Armani um Dior
contre un Nike un Armani un Dior a identidade crioula desprezada

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l’identité créole vilipendée meu avô assassinado


mon grand-père assassiné uma segunda vez
une seconde fois Não!
Non! não retornarei aos campos de cana
je ne retournerai pas aux champs de cannes me tornarei Governador Geral
je deviendrai Gouverneur Générale commo Michaëlle Jean
comme Michaëlle Jean me tornarei presidente
je deviendrai président como Obama
comme Obama para dirigir os colonos
pour diriger les colons para educar os colonos
pour éduquer les colons o sonho se torna realidade
le rêve devient réalité que assim seja!
ainsi soit-il! (site ILE EN ILE, 2016)

Discussão da tradução pela aluna Rafaela Santana


Traduzir o poema Le cri de Jeanie Bogart para o Literatura de Refúgio foi tarefa
imbuída de grande inquietude pois, ao mesmo tempo em que se almejava despertar empatia
no leitor para com aquele quadro que se apresentava no poema, e sobre o qual se considera
ser tão importante a reflexão, se tinha a consciência de que aquela situação relatada pela
autora era e continua sendo tão particular de um povo, que a subjetividade da tradutora não
poderia compreender em sua plenitude as ideias ali expressas. Optou-se, portanto, por realizar
uma tradução sem tanta preocupação com a estrutura formal, mas com foco em significados,
na tentativa de minimizar esta limitação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O evento teve uma ótima recepção do público e do Sesc, que é entusiasta para que
continue. O terceiro evento tratou de escritores árabes do Oriente Médio, que pode ser
sumarizado pela coluna, publicada pelo jornal Gazeta do Povo, do jornalista José Carlos
Fernandes (2016), que relata o evento de maneira belíssima. No terceiro evento os alunos e
professores continuaram traduzindo os textos (por tradução indireta do francês, inglês e
espanhol pois ninguém falava árabe).
A fórmula do evento mudou um pouco aparentemente para melhor: continua-se com
um evento de no máximo uma hora e meia. Principalmente os alunos do curso de letras

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traduzem os poemas (Pois descobrimos uma função pedagógica interessante na tradução e


após em sua elocução. Algo que remete a cultura oral e ao mesmo tempo questiona como
traduzir o pathos evocado por essa literatura de refúgio, é um desafio e uma oportunidade
única). O que mudou para este terceiro evento foi o fato de os tradutores/alunos recitarem
eles mesmos suas traduções, pois teoricamente conhecem o texto como ninguém mais.
Houve além desses mais dois eventos: literatura de refúgio feita por mulheres e
também um, mais recentemente, sobre a literatura chinesa, japonesa e coreana (esse último
numa livraria de mangás da cidade de Curitiba chamada Itiban, pois o ideal é que o evento
ocorra fora da universidade, para não “pregar aos convertidos”, ao mesmo tempo em que se
dialoga com outro tipo de público da cidade).
Acredita-se que o evento, além de dar importância à temática de refúgio, exílio,
diáspora, também permite aos alunos terem contato com a prática da tradução e com um tipo
de empatia literária possibilitada pela performance. Percebe-se também que a prática
tradutória se abre ao público da cidade, que pode a princípio estranhar as línguas de origem,
mas que rapidamente se acostuma a esta prática (que tem algo de encantatória). A princípio
a língua diferente parece afastar o público, mas não. Há uma espécie de curiosidade
despertada, de algo diferente, que vem de longe e que pode também gerar encantamento ou
repulsa. Mas a tradução mostra que aquilo que parecia longe e diferente pode na verdade ser
compartilhado, entendido e sentido.

REFERÊNCIAS
FRANKÉTIENNE, Jean-Pierre Basilic Dantor. Mûr à crever. Bordeaux: Ana Editions,
2006.
GRAHL, João Arthur Pugsley. Literatura Francófona da África da Diáspora. In: DIAS, L.;
FERREIRA, V. (orgs.). O tempo muda: estudos étnico-raciais diacrônicos e sincrônicos.
Volume III da coleção cadernos do NEAB-UFPR. 2016. Disponível em:
https://issuu.com/neabufpr/docs/livro_neab-ufpr_-_o_tempo_muda/1. 04/06/2017.
MOREIRA, Heloísa Caldeira Alves. Traduzindo uma obra crioula : Pays sans chapeau
de Dany Laferrière. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, 2006. Dissertação de Mestrado em Língua e Literatura Francesa,

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p. 112-113. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8146/tde-08082007-


144718/pt-br.php. 04/06/2017.
OLIVEIRA, Marcio. Imigrantes hatianos no estado do paraná em 2015. In: GEDIEL, J. A.
P. ; GODOY, G. G. Refúgio e Hospitalidade. Curitiba: Kairós edições, 2016. 249-276.
ROUMAIN, J. Negros sujos. Tradução de João Arthur Pugsley Grahl. Curitiba: Dybbuk,
2015. Disponível em: https://www.scribd.com/document/330475538/Negros-Sujos-
Dybbuk-1. 04/06/2017.
RUANO, Bruna Pupato; GRAHL, João Arthur Pugsley; PERETI, Emerson. Português
Brasileiro para Migração Humanitária (PBMIH): construindo um projeto de integração
linguística, cultural e social. In: RUANO, B. P; SANTOS, J. P; SALTINI, L. (Orgs.) Cursos
de Português como Língua Estrangeirano Celin-UFPR: práticas docentes e
experiências em sala de aula. Curitiba: Editora UFPR, 2016, pp. 291-320.

Sites consultados:
Bouchotte, Giscard. Dominique Batraville. 2016. http://ile-en-ile.org/batraville/. 28/05/2017.
Fernandes, José Carlos. A Revolução Cultural da Síria. 2016.
http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/colunistas/jose-carlos-fernandes/a-
revolucao-cultural-da-siria-aj6mk1y061r50q3vpt1kmlxo0. 29/05/2017.

Hoffmann, Léon-François. 2016. http://ile-en-ile.org/bibliographie-de-jacques-roumain-par-


genres/. 28/05/2017.
Ile en Ile. Jeanie Bogart. 2016. http://ile-en-ile.org/bogart/. 28/05/2017.
Jonassaint, Jean. Frankétienne.2016. http://ile-en-ile.org/franketienne. 28/05/2017.
Spear, Thomas. Dany Laferriere. 2016. http://ile-en-ile.org/laferriere/. 28/05/2017.
________. 2016. Lettres d’Haiti.http://www.tv5monde.com/TV5Site/lettres-haiti/.
28/05/2017.

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POESIA, CRÍTICA E TRADUÇÃO: ENTREVISTA COM RONALD AUGUSTO

Ronald Augusto1
Dennys Silva-Reis2
C. Leonardo B. Antunes3

Neste número 13 da Translatio, temos a satisfação de entrevistar o poeta, músico,


crítico, letrista e ensaísta Ronald Augusto, nascido em Rio Grande em 1961 e autor de
uma extensa e longeva obra criativa que abarca desde o mais experimental das poesias
concreta e marginal ao rigor da forma fixa. Organizou, em edição crítica, a Obra
Reunida de Oliveira Silveira (2012). Seus ensaios foram reunidos recentemente no livro
Decupagens assim (2012). No mesmo ano, sua produção poética, até aquele momento,
foi reunida em Cair de costas (2012). Além de escrever letras para diversos artistas,
entre eles Marcelo Delacroix e Simone Rasslan, mantém um longo trabalho com a
banda Os poETs junto dos poetas-músicos Alexandre Brito e Ricardo Silvestrin.

C. Leonardo B. Antunes (LA): Antes de mais nada, Ronald, gostaria de dizer que é
uma honra, uma alegria e um privilégio poder entrevistá-lo para esta edição
especial da Translatio: uma honra porque você é, para mim e para muitos, o maior
poeta gaúcho da atualidade e certamente um dos nomes mais importantes da
poesia brasileira; uma alegria porque você é tão grande poeta quanto amigo; e um
privilégio porque, nesse ínterim, acabei eu próprio me tornando tradutor seu ao
traduzir três poemas d’À Ipásia que o espera, seu belíssimo e mais recente livro,
que possui uma comunicabilidade incomum em relação ao restante de sua obra,
em especial aos poemas mais antigos.

1
Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983),
Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro
(2007), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012) e À Ipásia que o espera (2016).
2
Doutorando em Literatura (POSLIT) e mestre em Estudos da Tradução (POSTRAD) pela Universidade
de Brasília. Seus principais eixos de trabalho são: Literatura Francófona, História da Tradução e Tradução
intersemiótica. Igualmente é tradutor e cronista em seu blog Historiografia da tradução no Brasil
(http://historiografiadatraducaobr.blogspot.com.br). E-mail: reisdennys@gmail.com. Brasília, Brasil.
3
Mestre e Doutor em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo, é professor de Língua e Literatura
Grega na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde realiza um trabalho de reconstrução rítmica e
musical da poesia grega antiga.

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Ronald Augusto (RA): Para mim também é uma satisfação pôr em movimento esse
diálogo com você, Leonardo. Pois é, esses três poemas que você traduziu se configuram
numa parceria que há tempos eu queria fazer contigo, tamanha foi a identificação que se
estabeleceu entre nós (espero que seja recíproco: risos) desde o momento em que me
tornei seu aluno de grego antigo. Fiz três semestres. De fato, esses poemas de À Ipásia
que o espera são menos ásperos em termos de comunicabilidade, ainda que o Claudio
Cruz (prefaciador do conjunto) tenha notado que há momentos em que uma certa
“cerebração” perturba um ou outro poema. Isto é, a “obscuridade” segue rondando aqui
e ali. Essa comunicabilidade aparentemente estranha ao grosso da minha poesia é
resultado desse projeto em particular e que precisava ser mais envolvente, digamos
assim. São poemas em que quero falar ao desejo e à sensibilidade da Denise, mas isso é
feito na perspectiva de também generalizar as imagens e os discursos. Ampliar o campo
de sentidos das senhas amorosas. Em certa medida, a tradição literária circunscreve ou
disciplina o eros que transfiguro nesse livro. Trata-se de uma tentativa de traduzir para o
mundo (a recepção) aquilo de mais íntimo e indecoroso que sussurrei à minha musa,
que também é poeta.

LA: Nesse processo de escolhermos alguns poemas seus para traduzir para o
Inglês, você inicialmente sugeriu o “Homem ao rubro apócrifo”, tarefa da qual eu
prontamente me esquivei, pela evidente dificuldade, senão impossibilidade, de uma
tradução adequada. Como confessa, em nota de rodapé, a própria tradutora de
uma primeira tentativa de verter esse poema para Inglês, a sua poesia, em especial
a sua produção mais antiga, é tida como “difícil”. Sei que você é extremamente
avesso a facilitar a compreensão de sua poesia para seus leitores. Entretanto, isso
às vezes se faz necessário no processo de tradução. Como você lida com essa
dificuldade ao auxiliar o tradutor em sua tarefa? É possível vencer essa
dificuldade, ou melhor, recriá-la em outra língua?

RA: A tendência é reclamarmos do “difícil”. Talvez por isso mesmo, hoje em


dia, e graças a alguns profissionais e/ou proxenetas do mundo dos negócios, aceitemos o
conceito de facilitador, “aquele que torna o processo fácil”. Eu não estou aqui para criar
dificuldade aos processos de sentido do leitor, nem, pelo contrário, para facilitar a coisa

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toda num gesto de comiseração ao leitor. Não me programo para fazer o “difícil”. Meus
poemas são “assim” porque, de alguma maneira, as formas artísticas que sempre me
interessaram perseguem isso que, em algum lugar, o Augusto de Campos chamou de a
“beleza do difícil”. Além do mais, o leitor não precisa ser tutelado. Há duas formas de
tutela: (a) avisar ao leitor que ele está diante de um “texto difícil”, que ele deve tomar
cuidado, que o texto “não tem sentido” e assim por diante; e (b) que é preciso ser mais
comunicativo de modo a conquistar o leitor como uma espécie de seguidor de redes
sociais. Em primeiro lugar sobre (a): é o leitor que, no corpo a corpo com o texto, irá
julgar da dificuldade ou não do texto e o repertório de que dispõe é fundamental nessa
equação; e quanto a (b): o leitor não é bobo, ele precisa assumir sua responsabilidade de
intérprete diante de uma espécie de partitura (Joan Brossa dixit) que é o poema, isto é,
essa partitura parece aberta, no entanto, há uma séria de indicações implícitas que levam
o leitor a interpretá-la dessa ou daquela maneira. Há um contrato tenso entre a liberdade
do leitor e a estrutura formal e significativa do poema. No prólogo a Don Quijote
Cervantes se refere ao executante de sua obra como um “desocupado lector”. Com esse
expediente o narrador coloca o leitor no centro da história. O qualificativo,
“desocupado”, denuncia, em tom metalinguístico, o estatuto ético-estético a que está
submetido o fruidor desse texto literário, é mesmo uma espécie de chave léxica para
uma compreensão provisória da obra. Entra-se no âmbito da leitura-interpretação pela
vereda da errância e da vadiação, trata-se de valorizar a leitura desinteressada, leitura de
prazer. Grosso modo, esse leitor não se acha imbuído de um desejo de ilustração. Evoca
a metáfora do leitor na rede, “este objeto da preguiça”, e não do leitor de lápis em
punho, discípulo aplicado, obediente.

LA: Às vezes, ao que me parece, sua poesia flerta com o incomunicável, com uma
constelação de referências, palavras e imagens tão próprias à sua trajetória pessoal
e ao seu imaginário, que o leitor se sente propositalmente fechado à possibilidade
de sentido: tem-se uma experiência de sons, imagens e referências cujo nexo muitas
vezes parece ser premeditadamente negado ao leitor. Pode ser apenas uma leitura
equivocada de minha parte, mas sempre me pareceu que essa era uma
característica importante de seu trabalho de mais longa data: uma espécie de
barreira simbólica ao leitor, que impossibilita uma compreensão – digamos –

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tradicional dos signos, mas que aponta para uma compreensão de outra ordem, a
da exclusão ao sentido. Como foi o processo para recriar essa constelação de signos
tão peculiares em outras línguas, como o Inglês, o Francês e o Alemão?

RA: Para começar, um depoimento pessoal a propósito da suposta barreira


simbólica que esse ou aquele poeta impõe ao leitor. A primeira vez que li João Cabral
não gostei, quase desisti. À época me pareceu algo completamente sem poesia, duro,
opaco. Resolvi deixar pra lá. Mas o problema é que o meu repertório, as leituras e
minha concepção de poesia não suportavam aquele tipo de linguagem; depois fui
ampliando meu estoque de vozes e dicções poéticas e, por fim, pude entender e fruir a
proposta da poesia do pernambucano. Sei que o exemplo é pessoal demais, mas talvez
sirva para explicar a importância do conhecimento, amplo o quanto possível, da
diversidade de propostas de linguagem para o tópico do texto fechado/aberto. Ao
contrário do que se imagina, as portas do poema aparentemente impenetrável estão
sempre abertas. Mas só o desocupado lector sabe disso. O leitor obediente, com o
objetivo de superestimar seus esforços, encarece o suposto hermetismo do texto. Com
efeito, há poemas que, a par de sua relativa incomunicabilidade, atormentam a
sensibilidade do leitor. Esses poemas causam tal efeito porque são menos aderentes a
uma vocação mimética ou referencial. De maneira geral, os poemas desta vertente são
entendidos como peças mal resolvidas e/ou herméticas. Na realidade, poemas com tais
características indicam apenas uma forma de representação do signo estético-literário.
Representam uma sua dimensão ou possibilidade. As linguagens às vezes se apresentam
mais ou menos opacas. A opacidade mais radical transmite uma informação estética
diferente e que é específica a esta condição (ou tensão) da linguagem, isto é, trata-se de
um trobar clus em relação a um trobar, por assim dizer, mais aberto à esperança do
leitor. Se essa pequena distinção não for levada em consideração, então a poesia do
Mallarmé de Un Coup de Dés (1897) poderá ser considerada de menor importância, por
exemplo, em relação à poesia de Morte e Vida Severina (1967) de João Cabral de Melo
Neto. Entretanto, nenhum desses modos discursivos é superior/inferior ao outro. Apenas
nos deparamos frente a duas tendências de agenciamento da função estética da
linguagem.

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Com relação às traduções de meus poemas para o inglês, francês e alemão,


preciso dizer que fiquei satisfeito. Tive a sorte de poder dialogar com os tradutores
ajudando na compreensão de alguns sentidos mais complicados. Dos cinco só me
encontrei pessoalmente com um deles, Niyi Afolabi (professor nigeriano da
Universidade do Texas) que esteve no Brasil em 2007, se não me engano. Junto com
Afolabi, a brasileira Isis B. Costa (professora na Universidade Estadual de Ohio) e
Reetika Vazirani (1962-2003) formam o grupo de tradutores que verteram meus poemas
para o inglês. Desde de 1991 até aqui, a revista Dichtungsring4 vem publicando meus
poemas (principalmente os visuais). Ines Hagemeyer, editora de revista, traduziu alguns
poemas meus (os verbais, naturalmente) para o alemão. Graças a um largo tempo em
que Ines viveu no Uruguai – portanto aprendeu a falar espanhol –, é que foi possível nos
comunicarmos. E sempre através de cartas e emails. Com Ines Hagemeyer revivo essa
experiência maravilhosa de escrever cartas. Às vezes ela me envia cartões postais. E
recentemente, tive a imensa alegria de ver alguns poemas meus, traduzidos por Patrick
Quillier, em Retendre la corde vocale: anthologie de poésie brésilienne vivante (2016).
A obra foi organizada e traduzida por Patrick Quillier, poeta e ensaísta. Quillier, além
de Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Nice, é organizador e um dos
tradutores de Œuvres poétiques (2001) de Fernando Pessoa lançada na coleção La
Pléiade da editora Gallimard. Conversei e converso com Quillier sempre através do
facebook messenger. Uma pessoa muito gentil. Tradutor rápido e inteligente.

LA: Fiquei feliz ao ler seus poemas em outras línguas e sentir que, de modo geral, a
poesia continua ali. Os ritmos às vezes são outros; às vezes se perde algum jogo de
palavras; mas, de alguma forma, a potência dos recursos poéticos (o som, as
imagens, a interação entre as várias mudanças de voz e de narrativa) colabora
para que a poesia renasça em outra língua, ainda de modo poderoso. Algo que
notei, entretanto, foi que se trata de traduções que buscam ao máximo, dentro do
que é possível sem comprometer os efeitos poéticos do texto, atingir a literalidade.
É curioso, de certa forma, que sua poesia, tão experimental e inovadora, seja
traduzida de uma maneira quase acadêmica. Ao mesmo tempo, é compreensível
que se prefira, ao traduzir pela primeira vez um texto para uma língua

4
https://dichtungsring.org/

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estrangeira, oferecer para o leitor uma tradução informativa, literal, não ousada.
Porém, vencido esse momento inicial, como você imagina uma boa tradução de sua
poesia? Quais os elementos que você julga necessários para serem mantidos?
Quanto seria possível alterar, na forma e no conteúdo, para se produzir uma
experiência análoga, conquanto distinta em seus signos?

RA: Pode ser, sim, que algumas traduções carreguem essa característica de serem pouco
ousadas, mas eu atribuo isso ao fato de que elas cumprem uma função mais de
divulgação, de primeiro contato do leitor estrangeiro com minha poesia. São sempre
poemas esparsos que são traduzidos. Um apanhado, algo como um aceno: “preste
atenção nesse poeta”. Como eu imagino uma boa tradução: em primeiro lugar, uma boa
tradução de minha poesia, me parece, deveria abarcar um conjunto mais significativo de
poemas, deveria ser um livro completo. A tradução não pode perder de vista os valores
formais, as hesitações de som e sentido, de minha poesia: buscar as equivalências na
língua de chegada. Gosto de um aforismo sobre a tarefa tradutória do Roman Jakobson,
diz ele que é: “algo que envolve duas mensagens equivalentes em dois códigos
diferentes”. A “mensagem” é uma espécie de aroma que surtirá desse novo arranjo do
código. Quanto é possível alterar na forma e no conteúdo? Não sei muito bem. Acho
que isso vai depender muito da capacidade e da sensibilidade poética do tradutor; o
tradutor sabe que vai entrar nesse jogo para perder aqui e ganhar acolá e vice-versa. No
meu caso, se ele não perder muito no que toca às questões da forma, ficarei satisfeito.

LA: Pensando na tradução de modo mais amplo, a partir da perspectiva


ricoeuriana de tradução como também uma função interna à própria língua, que
pode se traduzir de modo perifrástico e dizer a “mesma coisa” de formas
diferentes, às vezes penso na análise, na interpretação e na crítica também como
formas de tradução. O crítico tem a oportunidade de conduzir o leitor pelas zonas
mais elusivas de um texto e ajudá-lo a fazer uma travessia análoga à almejada pelo
tradutor, ainda que por vias diferentes. Você tem uma longa carreira como crítico
ensaísta e é sempre procurado para escrever a respeito das obras de poetas tanto
novos quanto já consagrados. Algo que penso ser bastante peculiar da sua crítica é
que você, também ali, não facilita o caminho do leitor, dando respostas; mas, antes,

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parece preocupar-se em apontar os terrenos incertos, as perguntas veladas pelas


quais um leitor incauto passa desapercebido. Em suma, nessa tarefa, ao que me
parece, você torna conspícuas as camadas de sentido do texto sem, contudo,
simplificá-las ou solucioná-las. Estou perto ou passei longe do alvo? Como é sua
relação com essa tarefa de traduzir os outros por meio crítica?

RA: Do meu ponto de vista você acertou na mosca. Não vou conferir agora, mas
estou quase certo de que Augusto de Campos, a propósito das ideias de Pound (1885-
1972) acerca da arte da tradução, diz algo parecido. Segundo o poeta concreto, Ezra
Pound considerava a tradução como um tipo especial de crítica e do mesmo modo
considerava possível fazer crítica via música, isto é, um poema pode ser testado em sua
eficiência estética quando tentamos colocar música em seu andamento. Resumidamente,
se música e poema se ajustarem bem, então o poema é bom. Parece que Pound fez
experiências desse tipo com poemas de Guido Cavalcanti (1255-1300). O que isso quer
dizer? Em primeiro lugar que as formas críticas são múltiplas. Em algum sentido a
adaptação (a tradução) fílmica de um romance é sempre crítica da poética da demora
que caracteriza esse gênero. Porque a síntese visual, a rapidez do cinema se interessa
apenas pelos momentos de máxima intensidade da obra transposta, sugerindo o restante
do entrecho narrativo. Em segundo lugar, porque a crítica é dialógica, aproximativa e
provisória como a tradução. A próxima leitura, a próxima tradução, desvelarão, na
medida em que se colocarem em relação com as demais leituras e versões, outras
camadas sígnicas da obra-objeto. Embora o exercício da crítica literária – que não é
senão uma forma de fazer relações sígnicas e de interlocução parcial a partir de um
objeto verbal construído, seja sob que motivação social, individual ou metafísica, enfim,
desde os contornos de uma objetividade em perspectiva ou, ainda, desde uma
subjetividade tornada precisa: o poema mesmo, coesão fundo-forma –, enfim, embora
essa crítica me interesse muito, sei que se trata de um texto-gesto segundo, subsidiário,
uma forma discursiva circunscrita a margear os rastros da linguagem do poeta (se não
soasse retrô eu poderia dizer genericamente “do artista”, envolvendo outros modos de
expressão). Talvez me acusem de reducionismo, mas, encurtando o caminho, prefiro
concordar com a ideia de que a crítica é tão-só mais uma forma de paratexto, ou seja, no
sentido em que, segundo Gérard Genette, “o ‘paratexto’ consiste em toda série de

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mensagens que acompanham e ajudam a explicar determinado texto – mensagens como


anúncios, sobrecapa, títulos, subtítulos, introdução, resenhas, e assim por diante” (apud
Umberto Eco). Anoto à margem: o paratexto ajuda tanto a explicar, como a enublar
determinado texto ou evento. Com isso quero dizer que a crítica (o mesmo vale para a
tradução) não precisa (ou nem consegue) ser sempre desanuviadora ou capaz de pôr
tudo às claras na economia significante do texto. Meu livro Decupagens assim (2012)
constitui a primeira reunião do meu exercício crítico. Hoje já tenho material para um
próximo conjunto de ensaios, espero publicar tudo tão logo seja possível.

LA: Ainda sobre crítica, qual é sua relação com a crítica feita a seus trabalhos? Ela
tem ajudado a fazer essa travessia do leitor entre texto e sentido(s possíveis)? Você
vê alguma diferença notável entre a crítica que recebe dentro do país e a que
recebe no exterior? Onde sente que sua obra é melhor traduzida em forma crítica?

RA: Ser criticado é como ser lido, quase a mesma coisa; a crítica trata-se de um modo
mais focado de ler. Sim, meu trabalho tem sido objeto de estudos e de críticas e isso me
deixa muito contente, principalmente pela qualidade das abordagens. Um exemplo disso
é estudo de Prisca Agustoni, professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF), que recebeu o Prêmio Capes de Teses pela tese de doutorado:
“O Atlântico em Movimento: travessia, trânsito e transferência de signos entre África e
Brasil na poesia contemporânea em Língua Portuguesa”. Prisca analisou, na produção
poética de autores africanos e brasileiros contemporâneos, elementos diaspóricos. Seu
trabalho destaca como a estética da diáspora negra interfere na produção poética
contemporânea de alguns poetas de língua portuguesa. Prisca analisou tanto a minha,
como produção do Ricardo Aleixo, Edimilson de Almeida Pereira; além dos angolanos
Paula Tavares e Ruy Duarte de Carvalho; e do moçambicano: Luís Carlos Patraquim.
Mas, se considerarmos o sentido fraco com que o senso comum entende a crítica, ou
seja, no sentido em que “crítica” sugere algo de desfavorável, devo dizer que ainda não
sei o que significa isto. Não estou sendo arrogante. Até agora, quando alguém me
“critica”, isso tem a ver com minha atividade crítica; os autores reagem defensivamente
e com certa revolta, como se eu fosse um traidor da irmandade. Fazer crítica apontando
problemas se limita, hoje em dia, com o gesto reativo do sujeito que ficou com o

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orgulho ferido. Esse escritor medíocre faz beicinho e sai da sala para chamar a atenção.
Fora do país, a recepção crítica ao meu trabalho é boa, não posso me queixar. Os
estudos, leituras e análises se restringem ao âmbito acadêmico, universidades dos
Estados Unidos, Alemanha e França. Nos últimos anos comecei uma bela interlocução
com alguns poetas e leitores argentinos. Deixo o trabalho falar por si mesmo: o tempo
das leituras: tanto a de prazer, como a de lápis em punho. Não sou de fazer o jogo do
toma lá dá cá.

Dennys Silva-Reis (DSR): Alguma obra sua já foi adaptada para outra arte/mídia?
Se sim, poderia nos dizer como foi essa “tradução” e sua percepção a respeito
dela?

RA: Meu livro Homem ao Rubro (1983) ganhou uma transposição cênica, virou uma
montagem híbrida de dança e teatro. O bailarino Robson Duarte e a atriz Ligia Rigo
performatizaram oral e corporalmente os poemas. A direção geral foi de Camilo de
Lélis. Fiquei muito contente com o resultado. Isso aconteceu no início da década de
1990.

DSR: Ronald, em que medida você acha que é possível ver a tradução como uma
prática da diáspora negra?

RA: Não tenho uma ideia muito precisa a respeito dessa questão. Mas posso ensaiar
algo. Falamos em “diáspora negra” como se soubéssemos o que de fato isso significa.
Confesso que eu não nunca estudei o assunto o suficiente. Acho que é bastante
complexo: o drama ou a aventura da diáspora interfere no e transfigura o ambiente de
chegada, isto é, o diaspórico não é algo que se aclimata para, por exemplo, apenas fazer
sobreviver um essencialismo ou uma nostalgia de partida. Se interpretarmos “tradução”
em sentido bem amplo, então talvez a questão faça algum sentido, pois a experiência
diaspórica supõe transações, transes, transas – metáforas da operação tradutória. Com
esses termos também evoco o título de um livro de poemas traduzidos do poeta José
Lino Grünewald. Entretanto, eu recomendaria, a propósito do tema, a leitura de
Traduzindo no Atlântico negro: cartas náuticas afrodiaspóricas para travessias

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literárias (Editora Ogum’s Toques Negros, 2017), obra organizada pela tradutora e
pesquisadora Denise Carrascosa que enfeixa uma série de estudos dedicados à prática
teórico-política da tradução no contexto das literaturas afrodiaspóricas.

DSR: Alguns estudiosos têm se queixado ultimamente a respeito das políticas


públicas de tradução no exterior, especialmente a da Biblioteca Nacional [a saber,
Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior].
Uma das queixas é que a literatura tem sido representada majoritariamente por
autores não-negros – sendo Machado de Assis o único autor negro traduzido neste
âmbito da esfera pública. Em contrapartida, uma autora como Carolina de Jesus
já foi traduzida em mais de 13 línguas. Como você vê esse embate público “quase”
político-ideológico?

RA: Entendo que Machado de Assis, no que diz respeito à recepção estrangeira de sua
obra, ainda não é encarado como um escritor negro, isto é, isso parece ser algo
secundário. Ele é um novo clássico da América do Sul que começa a ser exportado a um
público mais refinado. Sua condição de negro será considerada aos poucos. É como vem
acontecendo no Brasil; os especialistas machadianos são muito conservadores. O
fenômeno Carolina de Jesus funciona, para a audiência de outros países, como uma
espécie documento da vida na favela, um entretenimento à curiosidade do estrangeiro
médio.

DSR: Percebe-se que no domínio da tradução audiovisual e, especificamente, nos


domínios culturais do cinema e romance gráfico – duas áreas com ampla
receptividade no Brasil e com mais de 80% de material traduzido – poucos são os
autores e cineastas negros conhecidos do público brasileiro, especialmente,
oriundos da própria América Latina. Em que medida você como crítico cultural
poderia ou não ver nesse âmbito da tradução uma falta de prática da diáspora?

RA: Eu vejo isso como mais uma forma de apagamento e exclusão das possibilidades
criativas e intelectuais que os negros podem oferecer ao pensamento brasileiro. Mais do
que uma “falta de prática” do que quer que seja, trata-se antes de um impedimento

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veladamente arquitetado de toda e qualquer prática intelectual-inventiva levada a cabo


por negros.

DSR: Abdias do Nascimento em sua obra O quilombismo: documentos de uma


militância pan-africanista (1980) entre seus muitos questionamentos destacou a
ausência de uma literatura da intelligentsia negra no Brasil. Sabe-se que no Brasil
os discursos de intelectuais negros chegam majoritariamente de forma indireta -
via escritos acadêmicos, discursos orais ou textos midiáticos que os referenciam.
Ultimamente, alguns textos começaram a ser disponibilizados na íntegra e em
português, mas mesmo assim por editoras pequenas ou engajadas na causa
diaspórica. Além do racismo de pele, é possível notar algum racismo intelectual no
Brasil? Qual seu ponto de vista?

RA: Racismo de pele versus racismo intelectual, como assim? Estamos falando de
racismo anti-negro e ponto. O racismo não é apenas epidérmico, ele é epistêmico. Há
um continuado epistemicídio do ser e/ou do vir-a-ser negro. Há tão somente variantes
do mesmo.

DSR: Tanto na história quanto no presente mercado da tradução, encontrar


agentes negros atuantes nesse domínio aqui no Brasil parece ser algo ainda não
recorrente. Você conhece tradutores e/ou intérpretes negros? Se sim, saberia
elucidar algum fato ou apreciação sobre eles que ao seu ver é marcante?

RA: A professora Denise Carrascosa, já mencionada em resposta acima, coordena


projeto de pesquisa na Universidade Federal da Bahia cujo objetivo é cartografar
narrativas da diáspora negra a serem traduzidas.

DSR: Ronald, você se considera um intelectual negro? Qual a importância dessa


constatação para você pessoalmente?

RA: Um intelectual de verdade se sente implicado nos logros e nas contradições que ele
investiga e/ou denuncia. Além disso, ele não deve temer pensar nos limites de suas

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capacidades; é importante pensar contra si mesmo: arte e pensamento são riscos. O


predicado que vem após à minha concepção de intelectual, isto é, “negro”, “gaúcho”,
“latino-americano”, não é irrelevante, mas apenas secundário.

DSR: Se você pudesse ditar as próximas traduções de uma editora, quais seriam as
mais urgentes para o público brasileiro e porquê?

RA: Eu gostaria de ver um conjunto significativo de traduções dos poemas de Langston


Hughes e de Guido Cavalcanti. Porque são excelentes poetas.

LA: Ronald, agradecemos imensamente sua disponibilidade para esta entrevista,


que termino abrindo espaço para você comentar a respeito de algo que tenhamos
deixado passar batido ao longo de nossa conversa sobre tradução.

RA: Não tenho nada a acrescentar, Leonardo. Dizem que mesmo um show muito bom
pode ser encurtado em 15 minutos. Espero que o leitor concorde que fizemos um bom
show. Brincadeira. Só posso agradecer pela oportunidade de debater com você essas
questões que me interessam desde sempre. Foi um prazer.

Referências

AUGUSTO, Ronald. À Ipásia que o espera. Salvador: Editora Ogum’s Toques, 2016
_____. Cair de Costas. Poesia reunida. Porto Alegre: Editora Éblis, 2012.
_____. Confissões Aplicadas. Porto Alegre: Editora Ameop, 2004.
_____. Decupagens assim. Porto Alegre: Letras Contemporâneas, 2012.
_____. Homem ao Rubro. Porto Alegre: Edição Grupo Pró-texto, 1983.
_____. Kânhamo. Porto Alegre: Ronald Augusto, 1987,
_____. No assoalho duro. Porto Alegre: Editora Éblis, 2007.
_____. (org.) Oliveira Silveira: Obra Reunida. Organização, introdução e notas. Porto
Alegre: Corag, 2012.
_____. Vá de Valha. Porto Alegre: Coleção Petit Poa (SMC), 1992.

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SER INTÉRPRETE E NEGRO NO BRASIL E NA VENEZUELA:


ENTREVISTA COM AMAURY WILLIAMS DE CASTRO*

Luciana Carvalho†

RESUMO: Como é ser intérprete e negro no Brasil e na Venezuela? Nesta entrevista,


Amaury Williams de Castro revela preciosidades de sua carreira como intérprete de
conferências. Ele nos conta como começou a trabalhar na área, ao lado de nada menos
que sua mãe, professora de tradução e interpretação da Universidad Central de Venezuela
(UCV). Tendo nascido em São Paulo e sido criado em alguns países hispano-americanos,
Amaury nos oferece uma rica perspectiva sobre como é ser intérprete e negro no Brasil e
em outros países da América Latina. Nesse sentido, o relato de Amaury nos conduz a
diversas reflexões sobre a profissão. Reflexões essas que intérpretes não-negros
raramente alcançam, seja por nunca terem vivido situações semelhantes, seja por não
terem consciência da complexidade envolvida em ser um profissional negro em ambientes
quase que exclusivos para brancos, como são os hotéis de luxo, nos quais a maioria dos
eventos e conferências é realizada. O relato de Amaury nos informa, nos inquieta e nos
transforma.

PALAVRAS-CHAVE: interpretação de conferências, Brasil, Venezuela, intérprete,


raça, racismo.

ABSTRACT: What is it like to be a black interpreter in Brazil and in Venezuela? In this


interview, Amaury Williams de Castro talks about how he became a conference
interpreter. He had a unique start in the area by working alongside his mother, a professor
of translation and interpretation at the Universidad Central de Venezuela (UCV). Having
been born in São Paulo and raised in a number Spanish-speaking countries, Amaury
provides us with a rich perspective on what it is like to be an interpreter and a black person
in Brazil and in other Latin American countries. Thus, Amaury's account leads us to
several reflections about the profession, reflections that non-black interpreters rarely
achieve either because they have never experienced similar situations or because they are
not aware of the complexity involved in being a black professional in almost all-white
spaces, such as are the luxury hotels in which most of the events and conferences are held.
Amaury's account will inform, trouble, and transform us.

KEYWORDS: conference interpreting, Brazil, Venezuela, interpreter, race, racism.

*
Meus agradecimentos às alunas Amanda Bittencourt e Isabela Martins do Bacharelado em Tradução da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) pela transcrição da entrevista.

Professora doutora do Departamento de Inglês e do Curso Sequencial de Formação de Intérpretes da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e professora orientador pleno do programa de pós-
graduação em Tradução da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo (TRADUSP). luciana.carvalho@tradjuris.com.br

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Introdução

Por ocasião deste número especial da Translatio, cujo tema é Tradução e Diáspora
Negra, os organizadores me sugeriram que realizasse uma entrevista com um intérprete
negro. Tendo em vista minha atuação como intérprete e meu interesse por questões de
gênero, as quais nunca podem ser tratadas dissociadas das questões de raça, aceitei
prontamente.

O colega de profissão entrevistado foi Amaury Williams de Castro. Nosso


encontro foi na Livraria Cultura da Avenida Paulista e durou intensas três horas, durante
as quais Amaury traçou um panorama sobre a formação de intérpretes na Venezuela e
todo o contexto educacional daquele país, sua trajetória profissional e vivência pessoal
relativas às questões que inspiram este volume.

Amaury também revela preciosidades de sua carreira como intérprete. Ele nos
conta como começou a trabalhar na área, ao lado de nada menos que sua mãe. Professora
de tradução e interpretação da Universidad Central de Venezuela (UCV) e ex-funcionária
da embaixada brasileira em Caracas, Cleusa de Castro Williams, ficava muito à vontade
de formar seu filho on the fly e lhe dar broncas se precisasse em plena cabine de
interpretação!

Formado em Estudos Internacionais com Especialização em Relações


Internacionais Contemporâneas (Diplomacia) pela UCV, Amaury é membro da
Associação Profissional de Intérpretes de Conferência (APIC), tradutor e intérprete
simultâneo desde 1988 na combinação linguística espanhol e português. Tendo nascido
em São Paulo e sido criado em alguns países hispano-americanos, Amaury, que possui
nacionalidade brasileira e venezuelana, nos traz, além dos aspectos da construção de sua
carreira como intérprete de conferência, uma rica perspectiva sobre o que é ser intérprete
e negro no Brasil e em outros países da América Latina.

Nesse sentido, o relato de Amaury nos conduz a diversas reflexões sobre a


profissão que intérpretes não-negros não alcançam, seja por nunca terem vivido situações

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semelhantes, seja por não terem consciência da complexidade envolvida em ser um


profissional negro em ambientes quase que exclusivos para brancos, como são os hotéis
de luxo, nos quais a maioria dos eventos e conferências é realizada. O relato de Amaury
nos informa, nos inquieta e nos transforma.

Como sabemos, as disparidades raciais entre negros e não-negros no Brasil estão


refletidas nas taxas de: expectativa de vida, mortalidade infantil, mortalidade materna,
homicídios, violência urbana, acesso à habitação, consumo de bens duráveis, inclusão
digital etc. Não há aspecto de nossa sociedade em que as diferenças socioeconômicas
entre negros e não-negros não sejam sentidas e em que as condições da população
afrodescendente não seja inferior. Segundo o IBGE, os brancos ganham, em média, duas
vezes mais do que os não-brancos (IBGE, 2010).

Afrodescendentes brasileiros famosos denunciam que a segregação racial de fato


existente no Brasil é comparável ao regime de apartheid sul-africano e que existem dois
Brasis: um das áreas exclusivas para brancos, representada pelos hotéis de luxo – habitat
natural dos intérpretes de conferência – e outro das favelas e ruas, onde habita a
população negra (HERNÁNDEZ, 2017, p. 85).

O racismo velado no Brasil dá origem a distorções como, por exemplo, o resultado


de uma pesquisa realizada pelo Instituto Data Popular (IDP), segundo a qual 92% dos
brasileiros acreditam que há racismo no país, mas somente 1,3% se consideram racistas
(POMPEU, 2014). Em outras palavras, 92% provavelmente não acreditam que exista de
fato uma democracia racial, mas tampouco são capazes de enxergar o racismo em si
mesmos.

A ideia de que o Brasil é uma democracia racial decorre de um discurso


estrategicamente construído para fins hegemônicos, fazendo com que o Brasil permaneça
em um estado que Hernández (2017) chama de inocência racial, ou seja, por se considerar
‘racialmente inocente’ – como reflete a pesquisa supracitada – o Brasil se considera isento
de abordar a questão racial de forma explícita.

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Nesse sentido, por razões históricas e pela ausência de políticas de afirmação e


reparação, a população de afrodescendentes no Brasil é impedida de alcançar a
visibilidade, encontra dificuldades em construir e consolidar sua identidade,
permanecendo oprimida, vulnerável, socioeconomicamente prejudicada e espacialmente
segregada. Consequentemente, a população de afrodescendentes é sub-representada nas
universidades e, em decorrência, nas profissões de maior escolaridade, em cargos altos,
em posições políticas, na televisão e também em hotéis e shopping centers. Na
interpretação de conferência, não é diferente.

Trabalho como intérprete faz quase vinte anos. Nesse período todo, fui
companheira de cabine de apenas uma colega que se autodeclara negra. Também sou
professora de interpretação e, ao longo de toda minha carreira, não devo ter tido dez
alunos negros. Atualmente, tenho uma turma com duas mulheres negras. Em quinze anos,
é a primeira vez que isso acontece. Portanto, nem é preciso dizer que para realizar esta
entrevista foi um desafio encontrar colegas que, além de se autodeclarem negros,
estivessem dispostos a conceder uma entrevista sobre o tema relacionado à profissão.
Gostaria de expressar minha gratidão e afirmar a honra e o privilégio que senti ao
entrevistar Amaury Williams de Castro.

Por fim, após ler o que Amaury tem a dizer e de conhecer os desafios e
preconceitos sofridos por nossos colegas intérpretes afrodescendentes, o leitor perceberá
que não nos é possível des-conhecer. Já não somos – nós, intérpretes de conferência –
racialmente inocentes.

Entrevista

Luciana Carvalho Fonseca (LCF): Muitas pessoas dizem que a interpretação não é
uma profissão de escolha, mas uma profissão que nos escolhe. Como você se tornou
intérprete?

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Amaury Williams de Castro (AWC): Eu fiz o curso de Relações Internacionais e


Diplomacia na Universidad Central de Venezuela (UCV), apesar de a UCV ter sido a
primeira e única universidade no continente americano a ter um curso de bacharelado em
línguas com interpretação simultânea, criado na década de 70. Um bacharelado de cinco
anos, sendo que nos três primeiros os alunos eram obrigados a estudar, no mínimo, duas
ou três línguas. Duas estrangeiras além do espanhol. Era obrigatório mesmo, não havia
outra opção. Após o terceiro ano, o aluno escolhia se ia fazer interpretação simultânea e
tradução, tradução e magistério ou magistério e pesquisa. Logicamente, quase ninguém
pegava interpretação simultânea, porque, quando chegavam a uma cabine, percebiam o
real desafio de interpretar simultaneamente. Sem falar da consecutiva, que os alunos
pensavam que seria mais fácil e não é, não é mesmo?

LCF: Não mesmo. Por essa e outras razões, os cursos de formação de intérprete
despertam muito interesse por parte dos pesquisadores e professores que leem a
Translatio. Você poderia falar um pouco mais sobre esse bacharelado? Quais eram
as línguas oferecidas? Havia português?

AWC: Os alunos podiam optar entre francês, italiano, russo, inglês, alemão e português.
Havia cátedras de cada uma das línguas e, quando foram abrir para o português, houve
uma situação um pouco delicada, pois a UCV entrou em contato direto com o governo do
Brasil para apoiar a abertura dessa cátedra. Minha mãe, que trabalhava na embaixada do
Brasil, acabou sendo chamada pela UCV para se encarregar da Cátedra de Português.
Porém, o governo brasileiro não demonstrou o menor interesse em mandar professor
brasileiro para trabalhar na UCV e abriram para a embaixada a possibilidade de que
brasileiros que já moravam na Venezuela ocupassem a vaga.

LCF: Tendo em vista a falta de interesse do governo brasileiro, como então se deu a
abertura da cátedra de português na Universidad Central de Venezuela?

AWC: Como o Brasil não demonstrou interesse, apesar de ter fronteira com a Venezuela,
fazendo todo sentido que o português ensinado fosse o brasileiro, a UCV contatou a
embaixada de Portugal. Em menos de um mês, Portugal instalou não apenas uma Cátedra,

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mas todo um escritório de apoio. Portugal enviava professores do Instituto Camões de


Portugal para a Venezuela para darem as aulas de português e essas primeiras turmas,
conforme iam se formando, enviavam os melhores alunos com uma bolsa de estudo para
passar um ano em Portugal.

LCF: Então o português falado pelos intérpretes venezuelanos era o de Portugal?

ACW: Sim. O português foi incluído só na década de 80 pelo governo de Portugal. O


Brasil, só depois de muitos anos, já quase em 2000, achou que fazia sentido oferecer
português brasileiro, pois todos os intérpretes nos eventos internacionais da região
falavam português com sotaque de Portugal. Então era até engraçado os latino-
americanos falando aquele português. Por outro lado, a Venezuela é um dos países que,
antes da entrada do Hugo Chávez, tinha a segunda maior população portuguesa do mundo,
de imigrantes portugueses, principalmente da Ilha da Madeira.

A maioria desses alunos era filha de portugueses e acharam o máximo poderem falar o
português correto já que os pais não falavam, pois emigraram para a Venezuela com
escolaridade de segunda série, no máximo. Consequentemente, não falavam o português
corretamente e ainda tiveram que enfrentar o espanhol. Acabavam falando portunhol.

LCF: E filhos de imigrantes com baixa escolaridade tinham acesso ao bacharelado


da UCV?

ACW: Sim e era muito interessante que a princípio eram esses os alunos de português. A
Venezuela é um país que, vou dizer era, que passou por uma mudança muito drástica.
Mas, naquela época, era um país – provavelmente o único no continente – que tinha uma
maior mobilidade social. Qualquer filho da Dona Maria, empregada doméstica com 10
filhos, um de cada pai, conseguia colocar, pelo menos, 6 filhos em uma universidade com
status da USP. E todos tendo prestado e sido aprovados no equivalente ao vestibular. Ela
matriculava todos na escola pública e, da escola pública, eles conseguiam prestar o exame
para uma USP da vida, que, no caso, seria a UCV ou outras universidades públicas. Essas
universidades são ótimas.

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A UCV estava listada no livro da UNESCO, em terceiro lugar da América Latina. Em


primeiro, a USP e em segundo, a Universidad Autónoma de México, juntamente com
outra universidade argentina, não me lembro se a de Buenos Aires. E, como eu disse, em
terceiro estava a da UCV com uma, duas ou três a mais, eu acho que eram colombianas.
Uma delas a Universidad Javeriana de Bogota, que é de tirar o chapéu até hoje. Então,
era assim: mesmo sendo pessoas de baixos recursos econômicos, conseguiam ir para a
faculdade e fazer carreiras em medicina, engenharia, carreiras consideradas caras. A de
Estudos Internacionais, que foi o que eu estudei, ou Diplomacia, também era cara.

LCF: E os outros grupos de imigrantes? Conseguiam o mesmo acesso à educação?

ACW: A educação pública de qualidade fazia com que todas as raças na Venezuela
tivessem oportunidades. E essas raças são a indígena, local, e a negra, trazida no mesmo
processo de escravatura do Brasil.

LCF: Mas não em uma proporção tão grande quanto para o Brasil, não é? E quais
eram os outros grupos populacionais na Venezuela?

ACW: Não. A Venezuela é um país pequeno, tem mais ou menos o tamanho de Minas
Gerais. A proporção de negros que chegou foi muito grande, mas claro que me refiro em
termos proporcionais à população. Até hoje o país possui uma grande população negra e,
obviamente, os espanhóis, portugueses, italianos foram chegando já após a
independência. Emigraram também os árabes, os turcos e chineses. Por outro lado, até
hoje não temos uma população japonesa na Venezuela. Há também uma população do
Caribe, logicamente, os cubanos, as pessoas da República Dominicana, Aruba, Curaçao,
Bonaire, Trinidade e Tobago, que eram ilhas que pertenciam à Venezuela e que depois
foram tomadas pela Inglaterra. Havia também colombianos, equatorianos e peruanos.
Eesses eram os únicos da cordilheira andina. Na Venezuela, não se via bolivianos, por
exemplo. Chilenos chegaram apenas com a ditadura de Pinochet e conforme acabou a
ditadura também saíram. Nem voltaram, foram para os Estados Unidos [risos]. Então, a
Venezuela não tinha um grande problema racial em relação às carreiras universitárias.

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LCF: Interessante.

ACW: O venezuelano também sempre gostou de estudar línguas, porque Miami fica a
duas horas e meia de voo de Caracas. Uma passagem para Miami nunca custou mais do
que duzentos dólares, ida e volta. A mobilidade social permitia que uma empregada
doméstica pudesse juntar seu dinheirinho durante o ano e depois passar duas semanas nos
Estados Unidos, pagando hotel, comida e levava no bolso em torno de dois mil, três mil
dólares para ela gastar. Então, é muito comum você encontrar, hoje, uma ex-empregada
doméstica que tenha 60, 70 anos de idade e ela vai te falar sobre Nova York. Vai te falar
das ruas e vai te falar das grandes lojas. Ela provavelmente começou indo como babá e,
de repente, ela deixou de trabalhar naquela casa, mas pegou o gosto e percebeu que não
era tão caro.

LCF: E o impacto dessa mobilidade geográfica e social certamente tinha efeito nos
filhos dessa mulher.

AWC: Sim, ela tinha essas condições e os filhos também pegavam gosto e percebiam
que, para poder viajar, era necessário falar outra língua. Então, a Venezuela é um país
onde as pessoas gostam de estudar línguas. Estudar inglês é básico.

LCF: E outros idiomas? E o português?

AWC: Com a chegada das novelas brasileiras na década de 70, chamou muita atenção o
português. Apesar de as novelas serem dubladas, as músicas eram em português. As
pessoas começaram a conhecer a MPB, Ivan Lins, Chico Buarque de Holanda, Maria
Bethânia. Inspirados pela música e pela vontade de entender o que estavam cantando, os
venezuelanos iam para o Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil, do qual
a minha mãe foi diretora. Fazia-se um ano de estudo de Língua Portuguesa e, ao longo do
curso, vários alunos, que estavam finalizando o segundo grau, tinham a possibilidade de,
por meio de um convênio cultural, entre Brasil e Venezuela – aliás, o convênio era entre
o Brasil e todos os países da América Latina, estudar aqui. Essa é uma das razões porque

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não dava para entender o porquê de o governo do Brasil não ter mostrado interesse na
cátedra de língua portuguesa na UCV.

LCF: Certamente sua mãe teve uma influência ou inspiração na sua carreira de
intérprete. Você poderia falar sobre o trabalho da sua mãe? Qual o nome da sua
mãe?

ACW: Seu nome é Cleusa de Castro Williams. Além de fundadora e diretora do Centro
de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil em Caracas, foi professora da UCV de
Interpretação Simultânea, Interpretação Consecutiva e Tradução Especializada de
português.

LCF: Então você é filho de peixe! E como era o trabalho de intérpretes de português
na Venezuela? Você começou a trabalhar lá?

ACW: A escassez de intérpretes de português, mesmo porque até então não existia a
Língua Portuguesa como matéria dentro da carreira, gerou uma situação na qual só
existiam três intérpretes de Português – entre eles a minha mãe. Aliás, três. Houve um
grande evento no qual me lançaram. Antes, eu falava português que nem marinheiro:
falava, falava, falava, mas não escrevia. Resultado, minha mãe me obrigou a fazer um
curso de português para eu aprender a escrever. Em seguida, comecei a fazer traduções
para o Sistema Econômico Latino Americano (SELA), cuja sede era em Caracas. Nesse
grande evento, houve a necessidade de intérpretes de português. Fui então intimado pela
minha mãe [risos] a ser intérprete. Ela, sentada do meu lado. E até hoje interpretamos
juntos.

Quando comecei, era ela que me corrigia, me ajudava, dava todas as dicas. De vez em
quando, eu também apanhava na cabine quando cometia erros desnecessários que ela já
havia corrigido [risos].

LCF: Que experiência singular! Mas em casa, só retomando, em casa você disse que
falava português. Com quem?

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ACW: Com a minha mãe e com meu pai [Pedro Williams Greene]. Apesar de meu pai
ser venezuelano, ele estudou aqui no Brasil mais de dez anos. Ele estudou medicina na
USP, se formou nos anos 60. Depois ele fez a pós-graduação em cardiologia. Meu pai
tem 82 anos e minha mãe, 80. E só ela que é intérprete e ela deu aula na Universidade
Central da Venezuela até novembro do ano passado. Agora, meus pais estão morando
aqui no Brasil.

LCF: Sua mãe é um tesouro. Será que ela ainda teria interesse em dar aula?

ACW: Acredito que não [risos]. Ela me disse que iria curtir a cidade, seu país mesmo.
Mas eu a intimei, porque logo que ela chegou havia um evento e minhas colegas, que já
conhecem toda a minha história falaram que minha mãe tinha que ir. Nessa ocasião, ela
trabalhou comigo e depois disse que faria interpretação três, quatro vezes por ano para
não perder o pique. Ela é ótima. Ótima intérprete, realmente.

LCF: Ambos, você e sua mãe, trabalham na combinação espanhol e português? Você
fala ou interpreta também em outras línguas?

ACW: Estudei na Inglaterra. Mas, como tenho extremo respeito pelas línguas e pelos
meus colegas falantes de inglês, apesar de falar, prefiro não trabalhar com o inglês, por
saber que a qualidade nunca vai ser a mesma. Agora, eu acho um desrespeito com meus
colegas fazer isso, assim como acho desrespeitosa a atitude de que todo intérprete
brasileiro sabe espanhol.

LCF: Tendo morado em vários países que falam espanhol e sendo nativo, a dimensão
que você tem dessa atitude é ainda mais rica, não é?

ACW: No meu caso, eu sou considerado nativo porque de fato em espanhol eu não tenho
sotaque. E ainda posso, no caso, caso necessário, interpretar o sotaque, por exemplo, da
Espanha, do México, do Cone Sul, principalmente, do Estuário de la Plata, né, do Caribe,
da Venezuela, de Cuba e da Colômbia. O espanhol, além de ser uma língua muito rica,

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está representado em uma produção cinematográfica, musical e de novela em todo o


grupo de países hispano-americanos.

Se você está, por exemplo, em qualquer país hispano-americano, você vai assistir a filmes
da Colômbia, do Peru, da Espanha, do México. Desde criança, você começa a acostumar
o ouvido não apenas aos sotaques, mas às palavras.

LCF: Tendo trabalhado como tradutor e intérprete na Venezuela, como foi a sua
chegada no Brasil? Como você entrou para a Associação Profissional de Intérpretes
de Conferência (APIC)?

ACW: A minha chegada aqui foi muito fácil. Não apenas pelo fato de ser brasileiro, mas
porque eu já era membro da Associación Venezolana de Intérpretes de Conferencia
(AVINC). Vários de meus colegas da AVINC também eram da Associação Internacional
de Intérpretes e Conferência (AIIC), portanto, quando me mudei, meus colegas
venezuelanos se comunicaram com seus respectivos colegas no Brasil dizendo que
estavam me perdendo e me apresentando.

Quando eu cheguei, fui muito bem recebido pelo pessoal da APIC que era meu grande
contato. Entrei na APIC imediatamente e era chamado para eventos e tudo mais. Como
sabemos, as associações de intérpretes nada mais são do que isso, uma associação de
intérpretes. Elas não são head hunters. Então, não são obrigadas a te chamarem, né? Você
tem que fazer o teu caminho. Os intérpretes novatos cometem um erro ao pensar: “Ah, eu
entrei em tal associação, mas eles não me chamam”. Mas os associados não têm o dever
de te chamar. Você entrou porque isso te oferece uma credencial, que corresponde a
“Olha, essa pessoa é boa porque faz parte dessa associação”.

LCF: Nós marcamos essa conversa para falar também de sua experiência como
intérprete profissional e negro no Brasil. Quais foram suas experiências nesse
sentido? Você deve ter uma visão interessante da questão racial no Brasil por tudo
aquilo que você já falou da Venezuela e também por você ter morado em muitos
países.

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ACW: De fato, já aconteceram situações que eu não posso esquecer até hoje, porquê... é
interessante o que ocorre, pois como já morei em vários países tenho uma perspectiva
bem ampla. Já morei na Venezuela, na Inglaterra, nos Estados Unidos, no México. E é
muito duro quando você mora em países que não têm, por exemplo, uma grande
população negra ou que essa população negra não tem maiores oportunidades, e você não
sofreu racismo nesses países.

E, em seguida, você chega e volta ao Brasil que é um país que tem a maior população
negra depois da África e você não entende. Você não entende as situações em que pessoas
com traços indígenas, mistura de português, de espanhol e tal, se veem como arianas. E,
portanto, se sentem no direito de pisotear. É muito duro.

Eu tive um evento, vou lembrar dele perfeitamente, porque eu acabava de chegar de


trabalhar na Suíça em uma exposição mundial de joias na Basileia. Peguei o avião na
Basileia para Londres, fiz conexão e cheguei cinco horas da madrugada em Guarulhos.
Às sete e meia da manhã, eu já estava em um dos grandes hotéis de São Paulo para fazer
interpretação simultânea.

A interpretação era às oito e, lógico, eu com medo de chegar tarde, cheguei com mala e
tudo às sete horas da manhã. Uma moça que era organizadora do evento, quando me viu
entrando, simplesmente me atravessou na porta, me olhou de cima pra baixo e falou: “Pois
não?”. Eu respondi: “Ah, bom dia eu vou trabalhar nesse evento, nessa sala.”. “Como
assim trabalhar? Este aqui é um evento particular.”. Eu respondi: “Pois é, eu sou um dos
intérpretes simultâneos, eu sou um dos intérpretes de espanhol”. Ela deu um passo pra
trás, me olhou de cima pra baixo e disse assim: “Intérprete?! Você?!”.

LCF: E quais foram os desdobramentos dessa situação de nítido preconceito racial?


Você ou algum colega seu respondeu de alguma forma?

ACW: Ela não teve outra alternativa senão me liberar a entrada. Só que aquilo foi
consumindo a moça durante todo o dia e ela entrava a cada vinte minutos e olhava pra

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cabine. Foi bem desagradável. No dia seguinte, e eram quatro dias de evento, um pouco
antes do intervalo eu saí da sala e perguntei para uma funcionária do mesmo hotel onde
era o café para eu ir comprar um café. A moça, que estava próxima de nós, ouviu a minha
pergunta e disse que o coffee break não iria sair ainda e que se eu fosse beber café, seria
depois de que todos os convidados bebessem.

Eu falei: “Acho que não me expliquei. Eu estou procurando o café do hotel para eu ir e
comprar o meu café”. Depois que ela percebeu a gafe cometida, já era muito tarde. Fui
beber meu café e quando eu voltei, ela já tinha falado com a coordenadora dos intérpretes
que ela não queria que eu estivesse mais no evento. Então, eu fui expulso do evento no
segundo dia.

Já na tradução, isso não vai acontecer, porque a tradução hoje é contratada pela internet e
por telefone.

LCF: Em outros países que você trabalhou como intérprete você nunca passou por
isso?

ACW: Em outros países, eu jamais passei por esse tipo de situação. Nem na Inglaterra,
nem nos Estados Unidos. É muito difícil, pois quando você para e reflete, você percebe
que é justamente aqui, no Brasil.

Outro fator que não está relacionado à cor da pele é o sotaque. Durante toda a minha vida,
fui o homem mais brasileiro do mundo, porque eu não morava aqui. E aí quando eu voltei
definitivamente para morar, eu descobri que eu não era brasileiro. Conforme eu ia abrindo
a boca as pessoas perguntavam da onde eu era. Cheguei a ouvir frases dantescas e tristes.
Uma vez, em um táxi indo para um evento, o taxista me ouviu falar pelo celular. Falei em
espanhol e depois eu tive que falar em inglês com outra pessoa e ele falou assim: “Bom,
está na cara que o senhor não é brasileiro, né?”. Antes de eu interrompê-lo para falar que
era sim, ele completou: “É, porque negro brasileiro não presta. E o senhor é um doutor.”.

LCF: Imagino que seu sotaque cause certa dissonância cognitiva nos brasileiros.

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ACW: Estando no Brasil, passei a perceber uma série de detalhes. Percebi, por exemplo,
que, se eu quero sair para comprar uma roupa social, eu tenho que me vestir socialmente
para entrar nessa determinada loja para, no mínimo, não ser perseguido. Já entro e começo
a falar e começo a falar até para tranquilizar as pessoas. Como falo com sotaque, viro
gringo, e gringo é dólar, então não vão achar que vou roubar. É muito duro.

Hoje, eu dou graças a Deus de que eu não tenho filhos, porque não gostaria que fossem
criados aqui sob essas condições. Como é que eu ia explicar pra eles aquilo que eu te
falei? O país que tem a maior população negra no mundo depois da África e é racista? É
racista.

LCF: Você falou de seu trabalho em São Paulo. Você passou por situações
semelhantes em outras cidades?

ACW: A interpretação simultânea, quando fora da cidade de São Paulo, percebi que tem
muito menos pressão a nível racial. Muito menos pressão. No interior de São Paulo, no
Rio de Janeiro. Eu, assim, eu adoro trabalhar no Rio de Janeiro, provavelmente por isso.
Nos outros estados do país, é muito agradável.

LCF: Na questão do Brasil, a que você atribui aqui o preconceito ser maior do que
nos outros países que você mencionou?

ACW: O caso do Brasil possui raízes profundas. Fui professor de história nas Relações
Internacionais aí tive que estudar muito sobre a questão. O tráfico dos escravos para o
Brasil foi o mais sanguinário. Ocorreram situações horríveis já no transporte. A Inglaterra
já tinha acabado com o comércio de escravos, que passaram a proibir. Os ingleses
confiscavam os navios que estavam trazendo negros para o Brasil. Quando o navio estava
prestes a ser capturado, o capitão preferia perder a carga, porque era isso que o negro era
naquela época. E perder a carga era perder a carga viva, jogando no fundo do mar. Quando
você escuta esse tipo de coisa, é chocante, né? As coisas que aconteceram aqui no Brasil
foram muito mais violentas. Muito mais sanguinárias.

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Quando chegaram aqui os escravos de várias regiões da África, foi muito duro porque
eles não podiam nem se comunicar entre eles. Em seguida, eram vendidos. E nem todos
tinham o mesmo preço. Por exemplo, nos países hispânicos, havia os negros Mandingas,
que eram muito altos, quase dois metros, às vezes ultrapassavam dois metros, fortes
demais. Eles não eram usados para a lavoura, eles eram sementais. Um negro desses valia
em torno de mil dólares, mil dólares e mil setecentos. Além dos sementais, você tinha o
negro da casa, o negro da casa normalmente era filho do senhor.

Este tinha a pele mais clara pela mestiçagem, mas também pelo fato de passar o dia inteiro
dentro da casa. Mesmo dois filhos do mesmo dono, se um estivesse na lavoura e o outro
não, um seria muito mais escuro do que o outro. Com base na cor, o negro da casa tinha
um valor mais alto. Quer dizer, normalmente o que tinha valor mais baixo era o da
lavoura. E ele era mais descartável. Isso já criou, dentro da própria população negra, um
sentimento de que os negros mais claros eram melhores que os mais escuros, porque o
valor dos primeiros era maior.

A pele, por ser mais clara, representava que tinha uma mistura com o branco. Daí veio o
terrível termo mulato, que nada mais é do que mula. E esse processo todo foi muito
violento e por que existe racismo no Brasil até hoje? Bom, porque a abolição foi em 1888.
Foi ontem.

LCF: Você é associado da APIC. Há outros intérpretes negros?

ACW: No geral, não, até onde eu saiba. Eu acho que conheço mais dois colegas negros,
mas eles têm a pele bem clara.

LCF: Você saberia dizer se esses colegas se autodeclaram negros?

ACW: Acho que sim, mas não tenho certeza. Essa é uma situação complexa no Brasil.

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LCF: No seu caso, sua ascendência negra é paterna e materna?

ACW: Principalmente de pai. Meu avô era da chamada Guiana Inglesa e morreram
britânicos e faziam alarde de que tinham passaporte britânico. A minha avó era da ilha de
Barbados, nas Antilhas, e eu me lembro que a minha vó achava terrível o inglês dos
Estados Unidos e ela fazia questão de falar ou de dizer que ela falava the queen’s English.
Então, eu cresci numa casa onde a minha avó me levava para a Igreja anglicana, onde o
serviço era em inglês, e, na época, eu não falava inglês, mas tive que aprender porque a
bíblia estava em inglês. Era também uma época na qual os avós podiam bater nos netos,
motivo pelo qual acabamos todos fazendo faculdade.

Mas minha ascendência é negra tanto do lado da minha mãe quanto do lado do meu pai.
E por nos considerarmos negros havia piadas tão suportáveis dentro da família como:
“tira tua cara negra de dentro da minha cozinha”, da qual todo mundo vai rir, porque não
é em tom de agressão. Uma coisa que eu também percebi aqui no Brasil é que a palavra
negro já é uma agressão.

Nos países hispânicos, na própria Argentina, onde não há uma grande população negra, e
nos países hispânicos em geral, imagine uma família. Vamos supor, pai e mãe holandeses,
todos são claros. Mas tem um filho com o cabelo escuro. Esse filho será chamado de
negro e pronto. Ele pode ter olhos azuis, mas ele é chamado de negro.

Já com o próprio negro, eles vão te chamar negro também, mas de um modo diferente.
Em Cuba, por exemplo, na Venezuela e na Colômbia, sou chamado de el negro Amaury.
Quando se referem a mim, podem dizer: “Eu estava na casa de el negro Amaury”. Com
meu pai, nos ambientes formais ele é Doutor Williams, mas entre as amizades, el negro
Williams. Eu mesmo, ao telefone, falaria “Hola, aqui que fala é el negro Amaury”.

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LCF: Nos círculos em que você cresceu, se formou e viveu, havia outros negros?
Imagino que no universo da diplomacia você não tenha conhecido muitos
afrodescendentes.

ACW: No curso de Diplomacia que fiz, não havia. Já nas demais carreiras da UCV, sim.
Em Medicina, em Direito nem se fale. Quando eu estudava na Inglaterra, tinha colegas
venezuelanos também e havia poucos negros. Mas, pensando bem, eu acho que eu não
ficava procurando, pois você não busca as pessoas por cor de pele, você busca o coração,
o intelecto.

LCF: E no âmbito familiar? Você e sua família sofreram experiências racistas que
você gostaria de compartilhar?

ACW: Minha mãe se refere a si como negra, mas aqui no Brasil, as pessoas, quando me
veem com ela na rua – nós nos divertimos muito com isso, tendem a achar que, por ela
ser mais velha que eu, ela é uma velha ordinária que está bancando o negão. Pensam:
“Mas que negão safado, se aproveitando da coitada da velha”.

Minha mãe viveu muitas situações quando eu e meus dois irmãos eram crianças. Nós três
somos negros e estávamos num parque em Caracas. Ela tava sentada lendo um livro e
nós, brincando. Passou o carrinho de sorvete e eu fui até ela e disse: “Mãe, me compra
um sorvete?”. Havia uma senhora, de cerca de 65, toda religiosa, cheia do terço na mão e
tudo mais, que olhou pra minha mãe e disse: “Mãe? Não filha, pelo amor de Deus, você
sabe que você morreu, vai direto pro céu. Porque Deus está vendo essa obra de caridade
que você está fazendo, imagine, cuidar de pretinhos, e três…”.

LCF: Você se recorda dessa experiência? O que experiências como essa despertam
em você?

ACW: Nesse caso, minha mãe conta que os olhos da senhora encheram-se de lágrimas e
que ela percebeu que a senhora estava tão emocionada, mandando tantas vibrações

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positivas que ela preferiu não retrucar. Minha mãe riu e essa história ela conta e reconta.
É uma das nossas anedotas divertidas.

Porém, há situações que chocam de verdade. Como aquele caso do hotel que eu falei
antes. Houve uma outra situação, a mais recente. Foi duro. Eu estava viajando de Lima
pra o Brasil e fui embarcar. Todo mundo já estava fazendo fila e cheguei no balcão para
fazer uma pergunta para a moça. Mencionei que já tinha trabalhado na British Airways e
ela me disse: “Ah, colega, fica por aqui mesmo”. Na hora do embarque, embarquei na
frente. Havia um grupo de brasileiros que estava viajando pelo Peru, faziam parte do
Lions Club. Estávamos todos viajando na classe executiva e acabou sendo muito
desagradável, pois a primeira coisa que eu ouvi veio do senhor que se sentou do meu lado.
Eles eram de Curitiba, era um homem que obviamente era caucasiano. Ele ficou um bom
tempo olhando para os lados para ver se de fato ele teria que sentar ali, eu estava na janela
e ele não tinha outra alternativa. Ele ficava no corredor, olhou para o comissário, acho
que ele não teve coragem de falar nada e se sentou. Mas toda postura dele conseguiu me
intimidar.

Pensei que isso nunca fosse me acontecer, que pudessem chegar a me intimidar. Mas,
aquilo me intimidou. Eu me senti muito pequeno. Depois de sentado, ele ficou muito duro
e então colocou o braço e deixou bem claro que não era para eu encostar o braço ali. Em
seguida, ele abriu o livro dele.

O chefe da tripulação, que já sabia que eu tinha trabalhado na British, falou comigo em
espanhol na hora do serviço de bordo. Logo depois, se dirigiu ao senhor na mesma língua,
e ele não entendeu. Eu, ingenuamente, fui procurar ajudar e disse “Ele está perguntando
isso, isso e isso”. O cara olhou pra mim e disse: “Eu entendi claramente”.

LCF: Claramente... que não.

ACW: Pensei comigo: “Eu não vou viajar três horas e meia com isso”. E falei: “Não, não
entendeu, porque a sua resposta foi totalmente absurda em relação ao que o comissário
lhe perguntou. Na verdade, eu peço desculpas por eu ter me metido nesse assunto, mas o

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senhor está incomodando o comissário, que já foi colega meu, porque eu já fui tripulante.
O senhor está atrapalhando o trabalho dele, pois ele tem que atender mais passageiros.
Ele não pode passar a noite toda aqui esperando o senhor entender o que ele está falando”.

Depois de eu ter reagido, não se passou mais nada com ele e senti que esfriou a situação.
Mas, eu também ia te contar outra coisa. Do grupo dele, depois que ele se sentou,
chegaram os outros membros do grupo falando assim: “Olha só, e ainda sentado aqui na
frente, tá se achando todo, todo, esse aí”.

LCF: Para você ouvir?

ACW: Sim, muito alto pra eu ouvir. Isso acontece muito. Eu já ouvi de colegas intérpretes
quando se comenta que alguém vai embarcar no aeroporto de Congonhas, dizer que
Congonhas deixou de ser aeroporto e virou um terminal de ônibus, uma rodoviária.

Só que esse discurso, pelo que eu percebi, está mais voltado para o povo Nordestino do
que para o negro. Porque o negro ainda não é o que mais viaja de avião. Não é um
problema de raça. Eu acho que é um problema basicamente econômico e geográfico
também.

Por exemplo, quando digo: “Não, porque nós os negros”, muitas pessoas falam: “Não,
imagina, como que você se chama assim? Você não é negro, você é moreno!”. E então,
eu percebo que para ela eu sou moreno porque ela sabe que eu viajo. Logo, a relação de
negro, na verdade, tem tudo a ver com pobreza, marginalidade. Conforme esses elementos
vão se afastando e a pessoa vai tendo mais recursos, as outras pessoas te veem mais
branco. Na verdade, ela não está conseguindo te enxergar como negro. Ela está te vendo
como uma pessoa morena.

LCF: Eu uso um livro com meus alunos do curso de Letras da PUCSP que se chama
“Whistling Vivaldi: how stereotypes affect us and what we can do” do psicólogo
americano negro, Calude M. Steel. Ele é também professor universitário e, além de
apresentar fundamentos científicos da questão racial e das consequências nefastas

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dos estereótipos, ele também fala da experiência pessoal dele. Um episódio de vida
que me chamou muita atenção foi quando ele, criança, nos Estados Unidos, se
descobriu negro. Foi quando ele percebeu que não podia frequentar as piscinas
públicas em qualquer dia da semana, ou seja, que havia um dia certo pra ele ir pra
piscina pública. Era quarta-feira. Às quartas, os negros podiam ir na piscina
pública. Ele tinha seis anos ou sete anos. Já, na minha vida, eu morei em Bracknell,
na Inglaterra, dos 8 aos 12. Um certo dia, eu devia ter uns 9 anos, uma criança
inglesa que queria o meu balanço, quando percebeu que eu não iria ceder, me
chamou de paki. Eu não sabia o que era e quando cheguei em casa, perguntei a
minha mãe, que me explicou que era paquistanês. Eu nem sabia onde era o
Paquistão, mas comecei a observar os paquistaneses e notei que a pele deles era mais
escura que a minha e tomei consciência de que a minha pele era mais escura que a
dos ingleses, para quem eu não era branca. Aos nove anos, caí em mim e percebi que
não sou branca e também não sou negra.

ACW: Isso é muito interessante, pois no Brasil você é considerada branca. A minha mãe
é considerada loira.

LCF: Pois é. E como foi para você?

ACW: No meu caso, demorou muito mais. Eu não tinha percebido como seria
maravilhoso se morrêssemos sem perceber. Eu fui perceber por causa dos vizinhos que
moravam dois ou três quarteirões de casa. Foi na Venezuela. Lembro que a senhora era
viúva e dois dos filhos dela estudavam comigo e brincávamos no meu prédio. Era um
prédio com jardins e tinha uma área maravilhosa. Mas um dia, fui brincar na casa deles,
que era uma casa mais simples com um pequeno jardim.

Quando chegou a mãe, eu tava brincando e eu senti um clima estranho, pois ela chamou
o filho e o filho veio me dizer que iam jantar. Eu percebi que estava muito cedo para
jantar, mas peguei minha bicicleta para ir embora. A mãe dele saiu correndo atrás de mim
e falou assim: “Aonde você acha que está levando a bicicleta do meu filho?”. A minha
bicicleta era idêntica a dele, então, eu respondi: “Não, essa bicicleta é minha”. Ela

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continua: “Tá vendo, você está me chamando de mentirosa, está vendo porque que vocês
não podem… ”. Foi pela bronca que ela depois deu nos filhos que eu percebi que tinha
alguma coisa comigo que não estava fluindo com ela.

Fiquei muito chocado, muito triste. Mas até aquele dia, eu não percebia que era isso. E
quando cheguei em casa, eu me lembro de nem ter contado para minha mãe, porque, às
vezes, a gente tinha medo de contar por medo de apanhar. Mas depois comentei com
amigos e um adolescente disse: “Ela é conhecida. Ela não gosta de negros”.

LCF: Esse adolescente nomeou a situação.

ACW: Exato. Quando ele falou: “Não gosta de negro, porque ela é racista”, eu fiquei
pensando sobre a palavra racista, que eu provavelmente já tinha ouvido, mas que, até
então, nada tinha a ver comigo.

Então esse momento eu acho que não é o pior dos momentos, esse é um grande momento
quando você se depara com essa realidade. O problema é que a partir dali, você acaba de
me falar, é quando a gente começa a se testar e a ver o mundo ao redor. O mundo que até
então era livre.

A partir daí, comecei a ler os olhares e a perceber porque, em determinados locais, eu não
me sentia à vontade. Compreendi: “Ah, então era isso”.

Bibliografia

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de Indicadores Sociais: uma


análise das condições de vida da população brasileira, 2010. Disponível em:
<http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv66777.pdf> Recuperado em: 8 de
maio de 2017.

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Hernández, Tanya Katerí. Subordinação racial no Brasil e na América Latina: o papel


do Estado, o Direito Costumeiro e a nova Resposta dos Direitos Civis. Tradução:
Arivaldo Santos de Souza e Luciana Carvalho Fonseca. Salvador: EDUFBA, 2017.

Medeiros, Étore & Pompeu, Ana. Correio Braziliense. Brasileiros acham que há racismo,
mas somente 1,3% se consideram racista. 25 de março de 2014. Disponível em:
<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2014/03/25/internas_polbraec
o,419288/brasileiros-acham-que-ha-racismo-mas-somente-1-3-se-consideram-
racistas.shtml> Recuperado em: 8 de maio de 2017.

Steele, Claude M. Whistling Vivaldi: how stereoptypes affect us and what we can do.
New York&London: W.W. Norton & Company, 2010.

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