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Dossiê: Tradução e Feminismos negros

Cibele de Guadalupe Sousa Araújo


Luciana de Mesquita Silva
Dennys Silva-Reis (orgs.)
v. 27, n. 1 (2019)
Sumário
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Dossiê: Tradução e Feminismos negros


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Introdução
Estudos da Tradução & Mulheres Negras à luz do feminismo PDF
Cibele de Guadalupe Sousa Araújo, Luciana de Mesquita Silva, Dennys Silva-Reis 2-13
Translation Studies & Black women in the light of feminism PDF (English)
Cibele de Guadalupe Sousa Araújo, Luciana de Mesquita Silva, Dennys Silva-Reis 14-24

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Artigos
Sobre tradução e ativismo intelectual PDF
Patricia Hill Collins 25-32
Negofeminismo: Teorizar, Praticar e Abrir o Caminho da África PDF
Obioma G. Nnaemeka 33-62
Revolução do feminismo negro! PDF
Elsa Dorlin 63-88
Construindo pontes: diálogos a partir do/com o feminismo negro PDF
Mercedes Jabardo Velasco 89-114
Translating Yvonne Mété-Nguemeu’s Femmes de Centrafrique: Âmes vaillantes au PDF
cœur brisé from a Feminist Perspective (English)
Ngozi O. Iloh 115-131
Translating Black Feminism: The Case of the East and West German Versions of PDF
Buchi Emecheta’s The Joys of Motherhood (English)
Omotayo I. Fakayode 132-143

A tradução de mulheres negras no conjunto de suas ações políticas PDF


Israel Victor Melo 144-157
Frantz Fanon no Brasil: Uma releitura da sua recepção pelo Pensamento Negro PDF
Feminista 158-
Rosânia do Nascimento 181
Feminismo negro estadunidense e sua (in)visibilidade no cenário brasileiro: PDF
questões de tradução 182-
Luciana de Mesquita Silva 205

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Entrevistas
A linha da cor: entrevista com Rane Souza PDF
Luciana Carvalho Fonseca 206-221
Black Feminist Thought and Translation Studies: interview with Patrícia Hill PDF
Collins (English)
Patrícia Hill Collins, Dennys Silva-Reis 222-228
Pensamento feminista negro e estudos da tradução: Entrevista com Patrícia Hill PDF
Collins 229-
Patrícia Hill Collins, Dennys Silva-Reis 235
Pensar la Traducción y el Feminismo Negro: Entrevista con Ochy Curiel PDF (Español
Ochy Curiel, Dennys Silva-Reis (España))
236-240
Pensar a tradução e o feminismo negro: entrevista com Ochy Curiel PDF
Ochy Curiel, Dennys Silva-Reis 241-245
Thinking Negofeminism in Translation: Interview with Tomi Adeaga PDF (English)
Tomi Adeaga, Dennys Silva-Reis 246-250
Pensar o Nego-Feminismo na Tradução: Entrevista com Tomi Adeaga PDF
Tomi Adeaga, Dennys Silva-Reis 251-255
Estudos da Tradução & Mulheres Negras à luz do feminismo

O feminismo negro teve sua ascensão nos anos de 1970 e 1980, a partir de uma
revisão da crítica feminista como um todo e, consequentemente, a conclusão de que
na categoria “mulher” a representação do grupo em questão era predominantemente
branca. A situação de invisibilidade da mulher negra era gritante, em particular,
no mundo universitário, no qual o feminismo acadêmico ignorava as reflexões do
feminismo negro. O feminismo hegemônico – branco e cisgênero1 – de alguma forma
excluía os outros feminismos. Mesmo após ser identificada a existência de outros
feminismos, como o feminismo negro, é preciso ressaltar que a categoria “mulher
negra” não é unívoca e universal. Essa categoria é heterogênea e tem diferenças e
contradições no tempo e no espaço em que esses corpos femininos de cor existem ou
existiram. Thomas Bonnici (2007), ao analisar as obras de Zora Neale Hurston, Alice
Walker e Toni Morrison, afirma que a mulher negra é sempre apresentada como uma
depositária de memória coletiva (ancestralidade e escravidão), munida de habilidades
específicas (parteira, conhecedora de ervas medicinais, entre outras) e duplamente
abusada por homens (pai e marido).
Susan Willis (1990), por sua vez, menciona que o que diferencia fortemente
a mulher negra da mulher branca é a constante reconciliação que a primeira tenta
2 continuamente fazer com o presente por meio de três aspectos: a comunidade
(uma busca pela restauração da identidade de seu grupo étnico), a passagem (o
reconhecimento de que há um caminho coletivo percorrido por todas as mulheres
negras da África para o Novo Mundo) e a sexualidade (a distorção da experiência
sexual da mulher negra devido aos padrões hetero-patriarcais e do feminismo
hegemônico branco cisgênero). O reconhecimento analítico e reflexivo dos diversos
tipos de feminismos negros, com a premissa das características apontadas por
Susan Willis (1990), foi e ainda é motivo de tomada de posicionamento e também de
imposição da voz da mulher negra. O ecoar da voz da mulher negra é, para além da
demarcação de um lugar de fala, um modo de resistência – entendido por bell hooks
(1989) como uma forma de oposição ao feminismo hegemônico branco cisgênero.
O não-reconhecimento das diferenças dos corpos femininos de mulheres
brancas e mulheres negras leva ao que Adrienne Rich (1976) nomeia como cegueira

1 Termo que se se refere à concordância de identidade sexual do indivíduo com sua genitália e
configuração hormonal de nascença.

Cibele de Guadalupe Sousa Araújo


Doutora em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás e professora de Português e de
Inglês do Instituto Federal de Goiás (campus Cidade de Goiás). E-mail: guadalupe.sousa@gmail.com
Luciana de Mesquita Silva
Doutora em Letras – Estudos da Linguagem (PUC-Rio) e professora de Português e Inglês no CEFET/
RJ (campus Petrópolis). E-mail: luciana.cefetrj@gmail.com
Dennys Silva-Reis
Doutor em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: reisdennys@gmail.com

ISSN: 1807 - 8214


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de cor, em que há a supressão da realidade individual para a construção de uma
hegemonia total. Por isso, é urgente pensar nas questões de colorismo2, nas histórias
das mulheres negras e suas representações discursivas, culturais, políticas e sociais
– tudo o que representa a pluralidade da categoria “mulher negra”. E é nesse sentido
que a tradução, em suas diversas modalidades, é empregada como micropolítica de
poder (Foucault, 2003) feminista negro.
Com os avanços da sociolinguística (Bagno, 2017), que comprovam a
existência de uma diferença entre a escrita masculina e a escrita feminina, fica
evidente igualmente que existe uma diferença na escrita (e também na tradução dos
escritos) da mulher negra. As categorias de gênero e raça não são somente sociais,
mas igualmente categorias de análises linguístico-culturais. Como nenhum uso da
palavra é neutro e sempre implica uma espécie de performance (Carlson, 2010), a
leitura de textos (e posteriormente suas traduções) é um momento de elocução e de
manifestação de vozes. Os textos de mulheres negras são a encenação de suas falas,
verdadeiras performances linguísticas de seus corpos e vivências. Por isso, traduzir
não é somente uma transposição de material linguístico de uma língua para outra,
mas sim uma transvivência3.
A importância da tradução é fundamental na construção e circulação de
pensamentos e epistemologias feministas, antirracistas e decoloniais, em um
mundo no qual ainda prevalece, nos mais diversos campos de conhecimento, uma
hegemonia branco-eurocêntrica, patriarcal, cisgênera e (neo)colonialista. Nesse
cenário, especificamente no que diz respeito à América Latina, a miscigenação 3
característica de seus povos é decorrente da violência colonial sobre mulheres negras
e indígenas. Sueli Carneiro (2011: 1), intelectual e feminista negra brasileira, esclarece
que tal miscigenação “está na origem de todas as construções de nossa identidade
nacional, estruturando o decantado mito da democracia racial latino-americana, que
no Brasil chegou até as últimas consequências”. Acerca do mito da democracia racial
brasileira, Lélia Gonzalez (1984: 224), referência fundamental do feminismo negro
no país, assevera que ele afeta sobremaneira a mulher negra brasileira, a quem cabe
enfrentar cotidianamente a dupla opressão constituída pela articulação do racismo
e do sexismo, a qual “produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular”.
Assim, desde a colonização, o lugar da mulher negra foi violentamente forjado no
mais raso degrau da estrutura social, estando ela, quanto a sua raça, abaixo de
homens e mulheres brancas e, em relação a seu gênero, abaixo de homens negros.
Nesse contexto, a mulher negra torna-se o Outro do Outro, na medida em que
ela está situada em um terceiro espaço: “um debate sobre racismo no qual o sujeito
é o homem negro; um discurso de gênero no qual o sujeito é a mulher branca; e um
discurso sobre classe no qual ‘raça’ não tem lugar algum” (Kilomba, 2012: 56, tradução

2 Conceito que abarca, grosso modo, as formas de discriminação relativas à pigmentação da pele de
uma pessoa. Mesmo entre os grupos étnicos considerados negros ou afrodescendentes, a questão do
colorismo refere-se à distinção de tratamento, vivências e oportunidades que depende do quão escura
é a pele da pessoa.
3 O termo é baseado no vocábulo “escrevivência”, cunhado por Conceição Evaristo.

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nossa)4. Esse lugar de subalternização estrutural, de raça e de gênero, orientou e
continua a orientar, como novos e atualizados contornos e funções, a organização
social vigente na América Latina, mesmo em âmbitos como o feminismo hegemônico,
visto que nesse cenário as realidades vivenciadas por mulheres negras e indígenas
têm sido historicamente deixadas à margem. É nesse ensejo que o movimento de
mulheres negras brasileiras empreendeu o tão necessário projeto de enegrecer o
movimento feminista no Brasil. Nas palavras de Carneiro (2003: 118):

[e]negrecendo o feminismo é a expressão que vimos utilizando


para designar a trajetória das mulheres negras no interior do
movimento feminista brasileiro. Buscamos assinalar, com ela, a
identidade branca e ocidental da formulação clássica feminista,
de um lado; e, de outro, revelar a insuficiência teórica e prática
política para integrar as diferentes expressões do feminino
construídos em sociedades multirraciais e pluriculturais. Com
essas iniciativas, pôde-se engendrar uma agenda específica que
combateu, simultaneamente, as desigualdades de gênero e
intragênero; afirmamos e visibilizamos uma perspectiva feminista
negra que emerge da condição específica do ser mulher, negra e,
em geral, pobre, delineamos, por fim, o papel que essa perspectiva
tem na luta anti-racista no Brasil.

4 Além de Sueli Carneiro, Lelia Gonzalez alertou para a relevância da constituição


de um feminismo afrolatinoamericano, pautado não só nas experiências de mulheres
negras e indígenas relativas ao racismo, ao sexismo e ao colonialismo, como também
nos processos de resistência por parte delas a sistemas sociais marcados pela
supressão de suas vozes e reivindicações. Em suas obras, Gonzalez também ressaltou
a importância do processo de subversão da linguagem padrão, mecanismo que se
configura como uma forma de poder. Na visão da autora, faz parte do processo de
ruptura de barreiras nos paradigmas sociais dominantes o reconhecimento de que o
“pretuguês” é a língua que constitui a cultura brasileira:

É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que


é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente
fala errado. E de repente ignoram que a presença desse r no lugar
do l nada mais é que a marca linguística de um idioma africano,
no qual o l inexiste. Afinal, quem que é o ignorante? Ao mesmo
tempo acham o maior barato a fala dita brasileira, que corta os
erres dos infinitivos verbais, que condensa você em cê, o está em
tá e por aí afora. Não sacam que tão falando pretuguês. (Gonzalez,
1984: 238, grifos da autora)

4 “[...] a debate on racism where the subject is Black male; a gendered discourse where the subject is
white female; and a discourse on class where ‘race’ has no place at all” (Kilomba, 2012: 56).

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Atualmente, essa especificidade da língua ou consciência sobre a africanidade
da língua portuguesa (Lucchesi, Baxter, Ribeiro, 2009; Bagno, 2019), para a qual
Gonzalez chamou atenção já na década de 1980 sob a alcunha de pretuguês, ganha
destaque nos estudos de educação linguística por meio do conceito ideologia racial
linguística. Para Nelson Flores e Jonathan Rosa (2015, p. 150-151):

[...] a construção ideológica e o valor das práticas linguísticas


normatizadas se ancoram naquilo que denominamos ideologias
racial-linguísticas, que vinculam certos corpos racializados a
deficiências linguísticas sem nenhuma relação com práticas
linguísticas objetivas. Ou seja, ideologias racial-linguísticas
produzem sujeitos falantes racializados que são percebidos como
linguisticamente desviantes mesmo quando empenhados em
práticas linguísticas consideradas normativas ou inovadoras se
produzidas por sujeitos brancos privilegiados.

Esta perspectiva racial-linguística se baseia na crítica do


olhar branco [white gaze] – um modo de ver que privilegia
perspectivas dominantes brancas acerca das práticas linguísticas
e culturais de comunidades racializadas –, crítica que é central
para as reivindicações em prol de uma pedagogia culturalmente
fortalecedora.5 (tradução nossa)

5
Uma vez reconhecendo que as práticas sociais linguísticas são racializadas
e igualmente interseccionadas por gênero, geração e sexualidade, percebe-se que
a tradução, enquanto prática linguístico-cultural, compõe igualmente esse bojo.
Somado a isso, ao tratar especificamente das reverberações da atuação do movimento
feminista negro brasileiro na mídia, Carneiro (2003) ressalta a predominância, não
ocasional, da exclusão simbólica, da não-representação e das distorções da imagem
da mulher negra nos veículos de comunicação em massa. Paralelamente, Conceição
Evaristo (2009) denuncia a não-representação ou a representação negativizada das
pessoas negras em geral, e em especial da mulher negra, no cânone literário brasileiro.
Os efeitos da exclusão simbólica ou da representação negativizada da mulher negra
tanto na mídia quanto na literatura são nefastos.
Do ponto de vista da tradução, a situação não é diferente. As obras literárias
e os diferentes produtos culturais estrangeiros (tais como músicas, filmes, seriados,
novelas) traduzidos para o português brasileiro, principalmente por grandes

5 “[…] the ideological construction and value of standardized language practices are anchored in what
we term raciolinguistic ideologies that conflate certain racialized bodies with linguistic deficiency
unrelated to any objective linguistic practices. That is, raciolinguistic ideologies produce racialized
speaking subjects who are constructed as linguistically deviant even when engaging in linguistic
practices positioned as normative or innovative when produced by privileged white subjects. This
raciolinguistic perspective builds on the critique of the white gaze—a perspective that privileges
dominant white perspectives on the linguistic and cultural practices of racialized communities—that
is central to calls for enacting culturally sustaining pedagogy” (Flores, Rosa, 2015: 150-151).

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editoras, com vistas a serem recebidos pelo público nacional, assim como as obras
literárias e os produtos culturais brasileiros traduzidos para línguas estrangeiras, a
fim de serem recebidos em outras culturas, não apresentam, mormente, personagens
femininas negras, para além daquelas secundárias, ocupando papéis sociais
estereotipados. Nesse sentido, a escolha da obra a ser traduzida pode equilibrar
o leque de representações femininas, restituindo à mulher negra o direito de se
reconhecer positivamente na literatura e nos produtos culturais que consome, desde
a infância. Como exemplos disso, no âmbito de traduções de obras estrangeiras no
Brasil, podemos citar as publicações, pela Editora Companhia das Letras, de obras
da escritora afro-americana Toni Morrison, tais como Compaixão (2009), Amada
(2007/2011/2018), entre outros, e da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie,
entre as quais encontram-se Americanah (2014) e No seu pescoço (2017), para citar
apenas duas.
Para além da representação simbólica da mulher negra, suas contribuições
epistêmicas também são alvo de um processo de silenciamento tradutório que
dificulta o diálogo, o compartilhamento de experiências e a articulação solidária
entre grupos de mulheres de minorias étnicas ao redor do mundo, enfrentando,
localizadamente, conflitos interseccionais similares. Nesse sentido, podemos ecoar
o questionamento de Spivak (2010), acerca do sujeito subalternizado, perguntando:
pode a mulher negra ser traduzida? Na tentativa de responder positivamente a essa
pergunta, tem ocorrido um movimento político-ideológico de editoras e periódicos
6 acadêmicos para a tradução de textos de escritoras e feministas negras. No Brasil, por
exemplo, a editora Boitempo tem publicado obras traduzidas da intelectual feminista
afro-americana Angela Davis e periódicos acadêmicos como Estudos Feministas e
Cadernos Pagu têm disponibilizado traduções de textos não só de Davis como
também de bell hooks, Patricia Hill Collins e Grada Kilomba. Já no exterior, no que
diz respeito à circulação de obras de feministas negras brasileiras, podem ser citados,
como exemplos, os livros de Djamila Ribeiro Chroniques sur le féminisme noir e La
place de la parole noire, lançados recentemente na França, pela editora Anacaona.
É importante ressaltar que embora haja um trânsito dos feminismos negros via
tradução na contemporaneidade, ele ainda é pequeno e restrito a espaços específicos.
Diante desse quadro, assim como tem ocorrido no campo da reversão da
lógica da representação feminina nos meios de comunicação em massa, tem surgido
uma nova gama de frentes de atuação pelas quais mulheres negras tradutoras têm
se engajado. Entre esses movimentos de resistência, que visam a romper barreiras
editoriais, está o chamado ciberfeminismo6. Um dos propósitos de tal movimento
é fazer circular, por meio da Internet, a produção intelectual de mulheres negras,
tanto das estrangeiras no Brasil quanto das brasileiras no exterior. Entre alguns casos
em que a resposta ao questionamento supracitado foi sim – a mulher negra pôde

6 Conceito que diz respeito à utilização feminista do ciberespaço e que tenta libertar a internet das
amarras da construção de gênero, bem como uma forma de unir o corpo e a máquina no mundo
contemporâneo. É uma das formas de uso da tecnologia que lida com as questões de discriminação,
sexualidade e gênero racializadas ou não (Nakamura, 2013).

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ser traduzida pelo posicionamento e a ação politicamente engajada de tradutoras
conscientemente atuando como mediadoras culturais – podem ser mencionadas as
traduções de textos da feminista afro-americana Audre Lorde como “As ferramentas
do sinhô nunca vão derrubar a casa-grande”, traduzido por Tatiana Nascimento e
divulgado no site “Traduzidas”7. Embora as questões tradutórias de ciberferminismo
venham se apresentando cada vez mais no Brasil, e na América Latina como um
todo, é urgente refletir que ele é apenas um elo do modo tradutório da nova geração
de traduções de textos negros e de tradutoras negras. Isso significa dizer que a
reflexão sobre tradução e feminismos negros está relacionada igualmente a questões
racializadas de geração, sexualidade, geografia e simbolismo, conforme abordaremos
a seguir.
Ao mencionarmos a questão da geração (descendência e ascendência)
de mulheres negras, estamos lidando tanto com a história quanto com os
comportamentos dessa categoria do feminismo. De fato, os novos estudos históricos
sobre mulheres negras têm trazido à tona nomes de mulheres negras importantes
para a história mundial e local. No que tange à história da tradução no Brasil, por
exemplo, sabe-se que Maria Firmina do Reis, Lelia Gonzalez e Ruth Guimarães
foram tradutoras. Entretanto, o ofício dessas mulheres negras até pouco tempo
ainda era invisibilizado. É a partir dessa nova história – para não dizer lacuna –
da tradução que as novas gerações de pesquisadores negros e pesquisadoras negras,
mas também de pesquisadores racializados, propõem um novo olhar para a história
dos tradutores negros e das tradutoras negras. A partir dessa consciência histórica 7
é que novos comportamentos tanto acadêmicos quanto não-acadêmicos surgem sob
a forma ativista de feminismo negro. Por exemplo, atualmente no Brasil está em
andamento na ABRATES (Associação Brasileira de Tradutores) o projeto Abrates
Afro, desenvolvido pela intérprete de conferência Rane Souza, que tem por objetivo
“estimular a entrada, permanência e representatividade de profissionais negros nos
mercados de tradução e interpretação simultânea no Brasil” (Souza, 2018: 22).
No que tange à sexualidade, é preciso não qualificar o conceito “mulher negra”
apenas dentro do âmbito cisgênero. A sexualidade das mulheres negras é diversa, assim
como a das mulheres não-negras. E isso também está ligado à tradução, uma vez que
discursos de diferentes mulheres negras viajam para as diferentes localidades e são, de
alguma forma, reapropriados. Por exemplo, recentemente, no Brasil, foi lançada uma
coletânea de Estudos Queer africanos intitulada Traduzindo a África Queer (Editora
Devires, 2018). O livro foi organizado por Caterina Rea, Clarissa Goulart Paradis e
Izzie Madalena Santos Amancio, todas professoras e pesquisadoras da Universidade
da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). A coletânea foi
originalmente escrita em língua inglesa, publicada em 2013, em Dakar, no Senegal, e
organizada pelas feministas africanas Sokari Ekine e Hakima Abbas. Ela foi traduzida
parcialmente no Brasil justamente por ser um livro que apresenta “textos escritos por
autorxs africanxs que se declaram abertamente como queer ou que se solidarizam

7 Disponível em: https://traduzidas.wordpress.com/about/.

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com a pauta da dissidência sexual” (Rea, Paradis, Amancio, 2018: 7). Além disso, as
organizadoras da coletânea em português mencionam na introdução do volume que
o objetivo da tradução desses textos é cooperar para acabar com o mito de que na
África não há homossexualidade (masculina e feminina). E acrescentam:

Acreditamos, assim, que com estas traduções do Queer African


Reader seja possível fortalecer o diálogo Sul-Sul a partir da
perspectiva dos Estudos de Gênero, Feministas e Estudos sobre
Sexualidades, permitindo uma releitura descolonizada deste
campo. Muitas questões, contudo, ainda permanecem em aberto
e precisam de um ulterior aprofundamento, entre elas, a da
escolha dxs autorxs do Reader ​​de utilizarem termos como ‘gay’,
lésbica’, ‘bissexual’ ou ‘trans’, que remetem à história ocidental das
identidades sexuais e de gênero. Como soaria a chamada ‘sopa de
letrinhas’, se ao invés das categorias ocidentais, fossem colocadas
as expressões africanas que marcam a dissidência sexual e de
gênero, nos diferentes contextos deste continente? (Rea, Paradis,
Amancio, 2018: 22).

Com efeito, a tradução é uma micropolítica de exposição, reflexão e difusão


sobre o pensamento antipatriarcal cisgênero e colonialista da sexualidade da mulher
negra. Projetos de tradução como o acima referido começam a ganhar cada vez mais
visibilidade. O Grupo Latinoamericano de Formación y Acción Feminista (GLEFAS)
8
traduziu para o espanhol, em 2017, a obra The Invention of Women: Making an African
Sense of Western Gender Discourses, da socióloga nigeriana Oyèrónkẹ ́ Oyěwùmí. Essa
obra é de grande importância para desmistificar o pensamento africano ocidental
colonizador de hierarquização do gênero e, em particular, da mulher negra. Esses
tipos de tradução têm uma relação profunda com a geografia ou a localização de onde
são realizados. Para a América Latina e para o Brasil, textos como os apresentados
anteriormente têm sentido em serem traduzidos devido à estreita relação histórica
e étnica que as mulheres negras brasileiras e latino-americanas possuem com a
mulheres negras africanas. Mesmo que as situações geográficas sejam culturalmente
circunscritas e localizadas, a sororidade entre as mulheres negras difundida via
tradução soa como letramento, testemunho e política cultural feminista negra – uma
espécie de política da relação entre mulheres negras. E é por conta dessa política
da relação, ou dessa abertura para a outra mulher negra, que surge a questão do
simbolismo.
Se de uma parte o corpo da mulher negra já é, por si só, símbolo concreto de
antirracismo, de resistência feminista e representatividade, analogicamente, a linguagem
e as práticas de linguagens são capitais simbólicos da relação entre os feminismos negros
e a tradução. Percebe-se isso, claramente, quando: 1) se discute e se reflete a respeito de
determinado texto ou determinada produção negra de uma autora, artista, pensadora
(Como traduzir? O que ela queria dizer? Que solução dar?); 2) se tenta chegar a uma
solução tradutória satisfatória que respeite dado conceito de uma comunidade de

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mulheres negras8 (como no caso do womanism / mulherismo); 3) se realiza um projeto
tradutório visando ao intercâmbio de comunidades de mulheres negras.
A tradução, enquanto ferramenta decolonizadora do feminismo hegemônico
e enquanto movimento regulador dos feminismos negros, pode ser concebida, nos
termos dos Estudos Pós-coloniais (Ashcroft, Griffiths, Tiffin, 2013), como: cartografia,
limiar, sinergia e transculturação. A cartografia é uma representação gráfica fruto
da observação da terra. A tradução na qualidade de cartografia é uma forma de
descoberta do outro, de reforço de sua existência, de maestria simbólica e letramento,
ou seja, uma tradução não é somente um processo de produção e de disponibilização
de um dado pensamento em língua portuguesa. Ela significa também o domínio de
determinado conhecimento, um capital simbólico de letramento para determinado
público e a existência simbólica de discursos e vozes consoantes aos das mulheres
negras locais, em língua vernácula.
A tradução na qualidade de limiar serve tanto como ferramenta de transculturação
de saberes como elemento de descoberta identitária e étnica. Se é fato que uma
tradução contribui para a partilha de saberes entre mulheres negras das mais diversas
culturas, também se constata que o conhecimento da outra auxilia no processo de
autoconhecimento. Logo, uma vez conhecendo os pontos comuns das mulheres negras,
também se conhecem os pontos de diferenciação e de individualidade entre elas. Isso
porque os discursos, as formas de comunicação e os modos de ser das comunidades
de mulheres negras de determinada zona geográfica não são os mesmos. E, por conta
disso, ocorrem as transculturações de saberes e informações em que o contato com 9
textos traduzidos referentes a todos os âmbitos – políticos, sociais e culturais – são uma
maneira de auxiliar, ratificar e ampliar o posicionamento, o pensamento e as atitudes
feministas negras de dada localidade. Na forma de dispositivo de forças, a tradução é
vista como sinergia por ser capaz de reunir no seu ato e em seu produto a união de vozes
e a copresença de discursos. Uma vez que a tradução seja realizada por tradutoras negras
ou para mulheres negras, as escolhas tradutórias e o planejamento do projeto tradutório
são fortes indícios de polifonia e de sinergia de vozes e, consequentemente, da existência
material em língua vernácula de uma enunciação feminista negra – uma vez que o ato
de ler é um evento que põe em presença do leitor a voz e as ideias do autor do texto
(Marcuschi, 2008).
Mesmo que a tradução feita por e para mulheres negras tenha significativos
respaldos e positivas recepções, parece ser necessário alertar que o uso de uma
mesma fonte de discurso traduzido em um dado lugar pode conduzir a uma
tentação de homogeneização do pensamento feminista negro. E, como se sabe, cada
feminismo negro é único, singular e localizado. Se de um lado, as traduções ajudam
na construção de uma emancipação do pensamento feminista local, por outro lado,
o excesso da mesma fonte pode induzir ao abandono do diálogo com outras mulheres

8 Patrícia Hill Collins (2017), em seu texto “Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade
e política emancipatória”, chama a atenção para esse aspecto ao dissertar sobre como conceitos
“estritamente” norte-americanos seriam úteis ou serviriam de espelho para outras mulheres negras em
outros países e continentes.

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negras feministas locais ou vizinhas. Daí as perguntas: Até que ponto a tradução de
somente uma língua/uma mesma autora contribui para a emancipação do pensamento
feminista das mulheres negras? Por que pouco se conhece do discurso das mulheres
negras latino-americanas e caribenhas (as vizinhas do Brasil)? Que agendas
tradutórias feministas seriam necessárias para uma pluralidade de conhecimentos e
a formação de um pensamento feminista independente, emancipatório e identitário?
As atuais traduções de mulheres negras realizadas na América latina e, em particular,
no Brasil, corroboraram para a verdadeira emancipação das ações do pensamento
feminista negro-brasileiro?
Precisaríamos, certamente, de mais tempo para analisar o impacto dessas
traduções e tentar responder com mais precisão aos questionamentos acima.
Entretanto, parece-nos coerente a proposta de Obioma Nnaemeka (2004) sobre o
negofeminismo. Na formulação da autora:

Primeiro, o negofeminismo é o feminismo da negociação;


segundo, negofeminismo significa feminismo do “não ego”. Na
fundamentação de valores compartilhados em muitas culturas
africanas estão os princípios da negociação, dar e receber,
compromisso e equilíbrio. Aqui, negociação tem o duplo sentido
de “dar e receber/troca” e de “lidar com sucesso/dar a volta”. O
feminismo africano (ou o feminismo como o vi sendo praticado
na África) desafia por meio de negociações e de acordos.
10 Ele sabe quando, onde e como detonar as minas terrestres
patriarcais; também sabe quando, onde e como contornar as
minas terrestres patriarcais. Em outras palavras, ele sabe quando,
onde e como negociar com ou negociar em torno do patriarcado
em contextos diferentes. Para as mulheres africanas, o feminismo
é um ato que evoca o dinamismo e as mudanças de um processo
oposto à estabilidade a à reificação de um constructo, uma
estrutura. Meu uso de espaço – o terceiro espaço – propicia o
terreno para o desdobramento do processo dinâmico. Além
disso, o negofeminismo é estruturado por imperativos culturais e
moldado por exigências globais e locais em constante mudança9
(Nnaemeka, 2004: 377-378 - tradução publicada no presente
Dossiê)

9 “First, nego-feminism is the feminism of negotiation; second, nego-feminism stands for “no ego”
feminism. In the foundation of shared values in many African cultures are the principles of negotiation,
give and take, compromise, and balance. Here, negotiation has the double meaning of “give and take/
exchange” and “cope with successfully/go around.” African feminism (or feminism as I have seen it
practiced in Africa) challenges through negotiations and compromise. It knows when, where, and
how to detonate patriarchal land mines; it also knows when, where, and how to go around patriarchal
landmines. In other words, it knows when, where, and how to negotiate with or negotiate around
patriarchy in different contexts. For African women, feminism is an act that evokes the dynamism and
shifts of a process as opposed to the stability and reification of a construct, a framework. My use of
space—the third space— provides the terrain for the unfolding of the dynamic process. Furthermore,
nego-feminism is structured by cultural imperatives and modulated by evershifting local and global
exigencies” (Nnaemeka, 2004: 377-378).

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Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 2-13
O feminismo tanto na tradução quanto entre as mulheres negras precisa ser
negociável e negociado. De um lado, não pode haver egos e, de outro, os feminismos
negros precisam dialogar constantemente e traduzir-se um ao outro para uma melhor
compreensão e recepção de cada um deles, considerados os imperativos culturais e as
exigências globais e locais envolvidos. Ainda à semelhança do que propõe Nnaemeka
(2004: 382), o cruzamento de fronteiras, possibilitado pela tradução, no contexto
dos feminismos negros, deve se pautar pelo caminhar do camaleão, isto é, “orientado
por seu objetivo, cauteloso, obsequioso, adaptável e aberto para visões diversas”10
(tradução nossa).
À guisa de conclusão, a partir do exposto até aqui, ressaltamos que o dossiê
“Tradução e Feminismos Negros”, composto por diferentes contribuições das mais
variadas localidades e áreas de conhecimento, constitui uma primeira tentativa de
unir algumas reflexões do campo interdisciplinar dos Estudos de Tradução à realidade
palpável da existência dos feminismos negros. Cumpre-nos agradecer às editoras
da Revista Ártemis, professoras Dra. Loreley Gomes Garcia e Dra. Liane Schneider,
pela disponibilidade, atenção e compreensão ao longo do trabalho desenvolvido.
Agradecemos também aos mais de trinta pareceristas que colaboraram com a
qualidade deste Dossiê por meio de seu tempo, leitura atenta e valiosas sugestões.
Somos gratos, ainda, às tradutoras e aos tradutores que se dedicaram à seleção e
tradução de textos pertinentes que engrandecem sobremaneira a discussão proposta.
E, por fim, nossos agradecimentos vão para os pesquisadores que ofereceram
contribuições relevantes para o Dossiê por meio de seus textos originais e inéditos. 11
Sem o comprometimento de cada um de vocês, editoras, pareceristas, tradutores e
pesquisadores, essa publicação não seria possível.
Aos nossos interlocutores, desejamos uma boa, proveitosa e provocativa
leitura!

Referências

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10 “[…] goal-oriented, cautious, accommodating, adaptable, and open to diverse views” (Nnaemeka,
2004: 382).

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13

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Translation Studies & Black women in the light of feminism1
Black feminism emerged in the 1970s and 1980s from a revision of feminist
critique as a whole, and, consequently, the conclusion that in the category “woman”
the representation of the group in question was predominantly white. The situation
of the invisibility of black women was striking, particularly in the university world,
where academic feminism ignored the thinking of black feminism. Hegemonic
feminism – white and cisgender2 – somehow excluded other feminisms. Even after
identifying the existence of other feminisms, such as black feminism, it must be
emphasized that the category “black woman” is not univocal and universal. This
category is heterogeneous and contains differences and contradictions in the time
and space in which these female bodies of colour exist or have existed. Thomas
Bonnici (2007), when analysing the works of Zora Neale Hurston, Alice Walker and
Toni Morrison, affirms that black women are always presented as a depository of
collective memory (ancestry and slavery), with specific skills (midwife, medicinal
herbs, among others) and doubly abused by men (father and husband).
Susan Willis (1990), in turn, mentions that what strongly differentiates black
women from white women is the constant reconciliation that the former continually
tries to make with the present in three aspects: community (a quest for the restoration
of identity of her ethnic group); the passage (the recognition that there is a collective
path travelled by all black women from Africa to the New World); and sexuality (the
14
distortion of black women’s sexual experience due to hetero-patriarchal patterns and
white hegemonic cisgender feminism). The analytical and reflexive recognition of the
various types of black feminism, with the premise of the characteristics pointed out
by Susan Willis (1990), was and still is a motive of positioning and also of imposition
of the voice of black women. The echoing of the voice of black women, beyond the
demarcation of a place of speech, is a mode of resistance – understood by bell hooks
(1989) as a form of opposition to white hegemonic cisgender feminism.

1 This paper was originally written in Brazilian Portuguese as an introduction to the Dossier “Translation
and Black Feminisms”. The text was translated into English by Dr. John Milton, professor at FFLCH-
USP.
2 A term that refers to the sexual identity agreeing with the individual’s genitals and the hormonal
configuration at birth.

Cibele de Guadalupe Sousa Araújo


PhD in Language, Literature and Linguistics from the Universidade Federal de Goiás and teacher of
Portuguese and English at the Instituto Federal de Goiás (City of Goiás campus). E-mail: guadalupe.
sousa@gmail.com
Luciana de Mesquita Silva
PhD in Language and Literatures —Language Studies, PUC-Rio, and teacher of Portuguese and English
at CEFET/RJ (Petrópolis campus). E-mail: luciana.cefetrj@gmail.com
Dennys Silva-Reis
PhD in Literature from the Universidade de Brasília (UnB). E-mail: reisdennys@gmail.com

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The non-recognition of the differences between the female bodies of white
women and black women leads to what Adrienne Rich (1976) calls color blindness, in
which there is the suppression of the individual reality for the construction of a total
hegemony. Therefore, it is urgent to think about the issues of colourism in stories of
black women and their discursive, cultural, political and social representations – all
that represents the plurality of the category “black woman”. And it is in this sense
that translation, in its various modalities, is employed as a micropolitics (Foucault,
2003) of black feminist power.
With the advances in sociolinguistics (Bagno, 2017), which prove the existence
of a difference between male writing and female writing, it is equally clear that there
is a difference in the writing (and also in the translation of the writings) of black
women. The categories of gender and race are not only social but also categories of
linguistic-cultural analysis. As no use of a word is neutral, and a kind of performance
is always implied (Carlson, 2010), the reading of texts (and later their translations) is
a moment of utterance and voicing. The texts of black women are the staging of their
speeches, actual linguistic performances of their bodies and experiences. Therefore,
translating is not just a transposition of linguistic material from one language to
another, but rather a transvivência3.

The importance of translation is fundamental to the construction and
circulation of feminist, antiracist and decolonial thinking and epistemologies in
a world where a white-Eurocentric, patriarchal, cisgender and (neo)colonialist
hegemony prevails in the most diverse fields of knowledge. In this scenario, specifically 15
with regard to Latin America, the characteristic miscegenation of its peoples derives
from colonial violence against black and indigenous women. Sueli Carneiro (2011: 1),
Brazilian intellectual and black feminist, clarifies that such miscegenation “is at the
origin of all constructions of our national identity, structuring the decanted myth of
Latin American racial democracy, which in Brazil reached its final consequences”. On
the myth of Brazilian racial democracy, Lélia Gonzalez (1984: 224), a fundamental
reference for black feminism in Brazil, affirms that it affects black Brazilian women,
who are daily faced by the double oppression constituted by the link between racism
and sexism, which “produces violent effects on black women in particular”. Thus,
since colonization, the place of black women has been violently forged on the lowest
step of the social structure, and they are, in terms of their race, below white men and
women, and, in relation to their gender, below black men.
In this context, black women becomes the Other of the Other, insofar as they
are situated in a third space: “a debate on racism in which the subject is the black man;
a gender discourse in which the subject is the white woman; and a class discourse in
which ‘race’ has no place at all” (Kilomba, 2012: 56). This place of structural, racial
and gender subalternity has guided and continues to guide, as new and updated
contours and functions, current social organization in Latin America, even in areas
such as hegemonic feminism, since in this scenario the realities experienced by black

3 The term is based on “escrevivência”, coined by Conceição Evaristo.

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and indigenous women have historically been left in the margin. It is at this point
that the Brazilian black women’s movement undertook the much-needed project of
blackening the feminist movement in Brazil. In the words of Carneiro (2003: 118):

[and] blackening feminism is the expression we have been using


to designate the trajectory of black women within the Brazilian
feminist movement. Thus we seek to emphasize the white and
Western identity of the classical feminist formulation, on the
one hand; and, on the other, reveal the theoretical and political
insufficiency to integrate the different expressions of the feminine
constructed in multiracial and multicultural societies. With these
initiatives, a specific agenda could be created that simultaneously
combated gender and intra-gender inequalities; we affirm and
visualize a black feminist perspective that emerges from the
specific condition of being a woman who is black, and, in general,
poor. Finally, we outline the role that this perspective has in the
anti-racist struggle in Brazil.

In addition to Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez has warned of the importance of


forming an Afro-Latin American feminism, based not only on the experiences of black
and indigenous women related to racism, sexism and colonialism, but also on their
resistance to social systems marked by the suppression of their voices and claims. In
16 her work, Gonzalez also emphasizes the importance of the process of subversion of
the standard language, a mechanism that is configured as a form of power. In her
view, the recognition that the “pretuguês”4 is the language that constitutes Brazilian
culture is part of the process of breaking barriers in the dominant social paradigms:

It’s funny how they make fun of us when we say it’s Framengo.
They call us ignorant saying that we speak wrong. And suddenly
they ignore that the presence of this r in the place of the l is
nothing more than the linguistic mark of an African language,
in which the l does not exist. So who is ignorant? They also laugh
at Brazilian speech, which cuts the rs off the infinitives of verbs,
which shortens você into cê, está into tá, and so on. They don’t
understand that they are speaking pretuguês (Gonzalez, 1984:
238, author’s emphasis).

Currently, this specificity of the language or awareness of the Portuguese


language’s Africanness (Lucchesi, Baxter, Ribeiro, 2009; Bagno, 2019), to which
Gonzalez drew attention already in the 1980s by using the term pretuguês, is
highlighted in studies of language education through the concept of linguistic racial
ideology. For Nelson Flores and Jonathan Rosa (2015: 150-151):

4 pretuguês: preto (black) + português (Portuguese).

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[…] the ideological construction and value of standardized language
practices are anchored in what we term raciolinguistic ideologies
that conflate certain racialized bodies with linguistic deficiency
unrelated to any objective linguistic practices. That is, raciolinguistic
ideologies produce racialized speaking subjects who are constructed
as linguistically deviant even when engaging in linguistic practices
positioned as normative or innovative when produced by privileged
white subjects.

This raciolinguistic perspective builds on the critique of the white


gaze – a perspective that privileges dominant white perspectives on
the linguistic and cultural practices of racialized communities – that is
central to calls for enacting culturally sustaining pedagogy (Flores, Rosa,
2015: 150-151).

Once recognizing that social linguistic practices are racialized and also
intersected by gender, generation and sexuality, it can be seen that translation, as
a linguistic-cultural practice, is also an important part of this core. In addition,
in dealing specifically with the reverberations of the performance of the Brazilian
black feminist movement in the media, Carneiro (2003) highlights the frequent
predominance of symbolic exclusion, non-representation and distortions of black
women’s image in mass communication. Conceição Evaristo (2009) also denounces
the non-representation or negative representation of black people in general, and 17
especially black women, in the Brazilian literary canon. The effects of symbolic
exclusion or negativized representation of black women in both the media and
literature are nefarious.
From the point of view of translation, the situation is no different. Literary
works and different foreign cultural products (such as songs, films, serials, soap
operas) translated into Brazilian Portuguese, mainly by large publishers, with a
view to being received by the Brazilian public, as well as Brazilian literary works
and cultural products translated into foreign languages, in order to be received in
other cultures, do not present, in general, black female characters, except secondary
ones, occupying stereotyped social roles. In this sense, the choice of the work to be
translated can balance the range of female representations, restoring to the black
woman the right to recognize herself positively in the literature and in the cultural
products she consumes from childhood. As examples of this, in the area of translations
of foreign works in Brazil, we can cite the publications by Companhia das Letras
of works by the African American writer Toni Morrison, such as A Mercy (2009),
Beloved (2007/2011/2018), among others, and the Nigerian writer Chimamanda Ngozi
Adichie’s Americanah (2014) and The Thing Around Your Neck (2017), to mention only
two.
Beyond the symbolic representation of black women, their epistemic
contributions are also the subject of a process of a translational silencing that hampers
dialogue, the sharing of experiences, and solidarity between ethnic minority women’s

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groups around the world, and they face similar local intersectional conflicts. In this
sense, we can echo Spivak’s (2010) question about the subalternized subject, asking:
can black women be translated? In an attempt to respond positively to this question,
there has been a political-ideological movement of academic publishers and journals
towards the translation of texts by black women writers and feminists. In Brazil, for
example, Boitempo has published translated works by the African American feminist
intellectual Angela Davis, and academic journals such as Estudos Feministas and
Cadernos Pagu have published translations of texts not only by Davis but also by bell
hooks, Patricia Hill Collins and Grada Kilomba. In terms of the circulation of works
by Brazilian feminist black women outside Brazil, the examples of Chroniques sur
le féminisme noir and La place de la parole noire, by Djamila Ribeiro, have recently
been published in France by Anacaona. It is important to note that although there is
a movement of black feminisms via translation in the contemporary world, it is still
limited and restricted to specific spaces.
In view of this situation, in a similar way to what has happened in the field of
the reversal of the logic of female representation in mass media, a new range of fronts
has emerged in which black female translators have been engaged. Among these
movements of resistance, which are aimed at breaking editorial barriers, is the so-
called cyberfeminism5. One of the purposes of such a movement is to circulate, through
the Internet, the intellectual production of black women, both of non-Brazilians in
Brazil, and Brazilian women abroad. Of a number of cases where the answer to the
18 above question was yes – black women could be translated by the positioning and the
politically engaged action of conscientious translators acting as cultural mediators
– we can mention the translations of texts by the African-American feminist Audre
Lorde such as “As ferramentas do sinhô nunca vão derrubar a casa-grande” (The
Master’s Tools Will Never Dismantle the Master’s House), translated by Tatiana
Nascimento and published on the site “Traduzidas” (“Translated”)6. Although the
translating issues of cyberfeminism are increasingly appearing in Brazil, and in Latin
America as a whole, it should be said that it is only a link in the translational mode
of the new generation of translations of black texts and black female translators. This
means that thinking on translation and black feminisms is also related to racialized
issues of generation, sexuality, geography and symbolism, as we shall now discuss.
When we mention the issue of generations (forefathers and ancestry) of black
women, we are dealing with both the history and the behaviours of this category
of feminism. In fact, new historical studies on black women have brought to the
fore names of black women important to world and local history. In the history
of translation in Brazil, for example, it is known that Maria Firmina do Reis, Lélia
Gonzalez and Ruth Guimarães were translators. However, the work of these black

5 A concept that refers to the feminist use of cyberspace and tries to free the internet from the bonds of
gender construction, as well as a way of uniting the body and the machine in the contemporary world.
It is one of the ways of using technology that deals with issues of discrimination, sexuality and gender
whether racialized or not (Nakamura, 2013).
6 Available at: https://traduzidas.wordpress.com/about/.

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women has been invisible until recently. It is from this new, not to say incomplete,
history of translation that the new generations of black male and female researchers,
but also of racialized researchers, propose a new look at the history of black male
and female translators. And through this historical awareness new academic and
non-academic behaviours arise in activist form of black feminism. For example,
the Abrates Afro project, developed by conference interpreter Rane Souza, is
currently underway at ABRATES (Brazilian Association of Translators), whose aim
is to “encourage the entry, permanence and representation of black professionals in
translation and conference interpretation in Brazil” (Souza, 2018: 22).
With regard to sexuality, it is necessary not to qualify the concept “black
woman” only within the cisgender scope. The sexuality of black women is diverse, as
is that of non-black women. And this is also linked to translation, since discourses
of different black women travel to the different localities and are, somehow,
reappropriated. For example, in Brazil, a collection of African Queer Studies entitled
Traduzindo a África Queer (Translating Africa Queer) (Devires, 2018) was recently
launched. The book was organized by Caterina Rea, Clarissa Goulart Paradis and
Izzie Madalena Santos Amancio, all professors and researchers at the Universidade
da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). The collection
was originally written in English, published in 2013 in Dakar, Senegal, and organized
by African feminists Sokari Ekine and Hakima Abbas. It has been partially translated
in Brazil precisely because it is a book that presents “texts written by African authors
who openly declare themselves as queer or who are in solidarity with the pattern of 19
sexual dissent” (Rea, Paradis, Amancio, 2018: 7). In addition, the organizers of the
collection in Portuguese mention in the introduction to the volume that the purpose
of the translation of these texts is to cooperate to end the myth that in Africa there
is no (male and female) homosexuality. And they add:

We believe that with these translations of the Queer African


Reader it is possible to strengthen the South-South dialogue from
the perspective of Gender Studies, Feminists Studies and Studies
on Sexualities, allowing a decolonized re-reading of this field.
Many questions, however, remain open and need further study,
including the choice of the authors in the Reader to use terms such
as ‘gay’, ‘lesbian’, ‘bisexual’ or ‘trans’, which refer to the Western
history of sexual and gender identities. What would the so-called
‘alphabet soup’ sound like if, instead of Western categories, the
African expressions that marked sexual and gender dissent were
placed in the different contexts of this continent? (Rea, Paradis,
Amancio, 2018: 22).

Indeed, translation is a micropolitics of exposition, reflection, and diffusion


on the cisgender, antipatriarchal, and colonialist thinking of the sexuality of black
women. Translation projects like this have begun to gain more and more visibility.
The Grupo Latinoamericano de Formación y Acción Feminista (Latin American Group

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of Formation and Feminist Action – GLEFAS) translated into Spanish in 2017 the work
The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses,
by the Nigerian sociologist Oyèrónkẹ Oyěwùmí. This work is of great importance
to demystify West African thought colonizing the hierarchy of gender and, in
particular, black women. These kinds of translations have a deep relationship with
the geography or the location where they were carried out. For Latin America and
Brazil, texts such as those presented above have a meaning in being translated due to
the close historical and ethnic relationship that black Brazilian and Latin American
women have with black African women. Even though geographical situations are
culturally circumscribed and localized, the sorority between black women diffused
via translation sounds like literacy, testimony, and black feminist cultural politics – a
sort of politics of the relation between black women. And it is because of this politics
of the relationship, or of that openness to the other black women, that the question
of symbolism arises.
If on the one hand the bodies of black women are in themselves a concrete
symbol of anti-racism, feminist resistance and representativeness, analogically,
language and the practices of languages are symbolic capital of the relation between
black feminisms and translation. This is clearly seen when: 1) this is discussed and
reflected in a given text or a certain black production of an author, artist, thinker
(How to translate? What did she mean?); 2) we try to reach a satisfactory translation
solution that respects the concept of a community of black women (as in the case
20 of womanism); 3) a translation project is carried out aiming at the exchange of
communities of black women.
Translation, as a decolonizing tool of hegemonic feminism and a regulating
movement of black feminisms, can be conceived, in terms of Postcolonial
Studies (Ashcroft, Griffiths, Tiffin, 2013), as: cartography, threshold, synergy and
transculturation. Cartography is a graphic representation which is a result of the
observation of the earth. Translation as a cartography is a way of discovering the
other, reinforcing its existence, symbolic mastery and literacy, that is, a translation
is not only a process of production and availability of a given thought in Portuguese.
It also means the dominance of certain knowledge, a symbolic capital of literacy for a
particular audience, and the symbolic existence of speech and voices consonant with
those of local black women in the vernacular.
Translation as a threshold serves as both a tool for transculturation of
knowledge as an element of identity and ethnic discovery. If it is a fact that a
translation contributes to the sharing of knowledge between black women of the
most diverse cultures, it can also be verified that the knowledge of the other helps
in the process of self-knowledge. Therefore, once knowing points black women have
in common, the points of differentiation and individuality between them are also
discovered. This is because the speech, the forms of communication, and the ways of
being of the communities of black women of a certain geographical area are not the
same. And because of this, there are transculturations of knowledge and information
in which contact with translated texts referring to all spheres – political, social and

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cultural – which are a way to help, ratify and broaden the feminist positioning,
thinking and attitudes of a given locality. In the form of a device of forces, translation
is seen as synergy by being able to bring together in its act and in its product the
union of voices and the co-presence of discourses. Once the translation is made by
black translators or for black women, the translation choices and the design of the
translation project are strong indications of polyphony and synergy of voices and
consequently of the vernacular material existence of a black feminist enunciation –
since the act of reading is an event that puts in the presence of the reader the voice
and ideas of the author of the text (Marcuschi, 2008).
Even if the translation made by and for black women has significant backing
and a positive reception, it seems to be necessary to warn that the use of the same
source of discourse translated in a given place may lead to a temptation to homogenize
black feminist thinking. And, as is known, every black feminism is unique, singular
and localized. If, on the one hand, the translations help in the construction of an
emancipation of local feminist thinking, on the other, the excess of the same source
can induce the abandonment of the dialogue with other local or neighbouring
black feminists. Hence the questions: To what extent does the translation of only
one language/author contribute to the emancipation of feminist thinking of black
women? Why is little known about the discourse of Latin American and Caribbean
black women (the neighbours of Brazil)? What feminist translation agendas would
be required for a plurality of knowledge and the formation of an independent,
emancipatory, and identitary feminist thinking? Do the current translations of black 21
women carried out in Latin America, and particularly in Brazil, corroborate for the
true emancipation of black-Brazilian feminist thinking?
We would certainly need more time to analyse the impact of these translations
and try to respond more accurately to the above questions. However, Obioma
Nnaemeka’s (2004) proposal on nego-feminism seems coherent. In the author’s
formulation:

First, nego-feminism is the feminism of negotiation; second,


nego-feminism stands for “no ego” feminism. In the foundation
of shared values in many African cultures are the principles of
negotiation, give and take, compromise, and balance. Here,
negotiation has the double meaning of “give and take/exchange”
and “cope with successfully/go around.” African feminism (or
feminism as I have seen it practiced in Africa) challenges through
negotiations and compromise.

It knows when, where, and how to detonate patriarchal land


mines; it also knows when, where, and how to go around
patriarchal landmines. In other words, it knows when, where,
and how to negotiate with or negotiate around patriarchy in
different contexts. For African women, feminism is an act that
evokes the dynamism and shifts of a process as opposed to the

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stability and reification of a construct, a framework. My use of
space—the third space— provides the terrain for the unfolding of
the dynamic process. Furthermore, nego-feminism is structured
by cultural imperatives and modulated by evershifting local and
global exigencies (Nnaemeka, 2004: 377-378).

Feminism in both translation and among black women needs to be negotiable


and negotiated. On the one hand, there can be no egos, and, on the other, black
feminisms need to constantly dialogue and translate one another for a better
understanding and reception of each one, considering the cultural imperatives
and the global and local demands involved. As Nnaemeka (2004) proposes, the
crossing of frontiers, made possible by translation, in the context of black feminisms,
must be guided by the walk of the chameleon, that is, “[…] goal-oriented, cautious,
accommodating, adaptable, and open to diverse views” (Nnaemeka, 2004: 382).
By way of a conclusion, from what has been said, we emphasize that the
“Translation and Black Feminisms” Dossier, made up of different contributions from
the most varied localities and areas of knowledge, constitutes an initial attempt to
bring together some thoughts in the interdisciplinary field of Translation Studies
with the palpable reality of the existence of black feminisms. We are grateful to the
editors of the Revista Artemis, Dr. Loreley Gomes Garcia and Dr. Liane Schneider, for
their availability, attention and understanding throughout the work developed. We
22 are also grateful to the more than thirty referees who helped to ensure the quality
of this Dossier through giving their time, and making careful readings and valuable
suggestions. We are also grateful to the translators who have dedicated themselves
to the selection and translation of pertinent texts that greatly enhance the proposed
discussion. And, finally, our thanks go to the researchers who have made important
contributions to the Dossier through their original and unpublished texts. Without
the commitment of each one of you, publishers, referees, translators and researchers,
this publication would not be possible.
And we hope you, our interlocutors, will enjoy and be provoked by the reading
of the Dossier!

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Sobre tradução e ativismo intelectual1 2
RESUMO

Esta é uma tradução do prefácio escrito por Patricia Hill Collins para a obra Feminist
Translation Studies: Local and Transnational Perspectives (2017). A partir de vivências
pessoais e de sua trajetória acadêmica e intelectual, Collins expõe sua perspectiva
sobre as relações entre tradução e feminismo. Desse modo sua argumentação é
dividida em dois momentos: no primeiro, a pessoa da tradutora como uma mediadora
entre línguas, pensamentos, culturas e pessoas é focalizada; e, no segundo, o foco
recai sobre como a interpretação do pensamento de uma dada comunidade de
mulheres pode ser entendida igualmente como um ato de tradução. Para a autora,
a tradução dentro desses dois pontos de vista é uma prática ativista e uma ação de
confiança naquela que traduz.

Palavras-chave: ativismo, feminismo negro, tradução, mediadora, confiança.

ABSTRACT

This is a translation of the preface written by Patricia Hill Collins for the book Feminist
Translation Studies: Local and Transnational Perspectives (2017). Both from personal
experiences and from her academic and intellectual trajectory, Collins exposes her
perspective on the relations between translation and feminism. Accordingly, her
exposition is divided into two moments: firstly, the person of the translator as a 25
broker for languages, thoughts, cultures and people is focused; and secondly, the
focus lies on the interpretation as an act of translation. According to Collins, inside
these two points of view, translation is perceived as an activist praxis and an action
of trust in the person who translates.

Key-words: activism, Black feminism, translation, broker, trust.

1 Texto originalmente publicado com o título de “On Translation and Intellectual Activism” em CASTRO,
Olga; ERGUN, Emek (Orgs.). Feminist Translation Studies: Local and Transnational Perspectives. Nova
York/Londres: Routledge, 2017, p. xii-xvi. Permissão de tradução adquiridos pelos tradutores da
Routledge/Taylor and Francis Group LLC Books. Tradução de Cibele de Guadalupe Sousa Araújo,
Dennys Silva-Reis e Luciana de Mesquita Silva.
2 Agradecemos à professora Patrícia Collins e à professora Olga Castro pela gentileza e presteza
demonstrada na negociação dos direitos autorais da presente tradução brasileira, e também ao professor
Marcos Bagno pelo auxílio na solução de alguns questionamentos.

Patricia Hill Collins


Socióloga negra, estadunidense e feminista. Leciona atualmente na Universidade de Maryland. É
reconhecida internacionalmente por discutir questões relativas a raça, gênero, classe, representação
e feminismo na comunidade afro-americana Algumas de suas principais obras publicadas são: Black
Feminist Thought: Knowledge, Consciousness and the Politics of Empowerment (2000), From Black
Power to Hip Hop: Racism, Nationalism, and Feminism (2006) e On Intellectual Activism (2002).

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Os diálogos colaborativos que são necessários para a teoria e a práxis feministas
raramente ocorrem entre iguais. Como eu gostaria de ser fluente em todas as línguas,
estilos comunicacionais e culturas do mundo que me habilitassem a me comunicar
com qualquer um/a. Como eu gostaria de ter as habilidades para falar com todo
mundo e entendê-los/as da forma como gostariam de ser entendidos/as. Mas eu não
sou. Nenhum/a de nós é, então, consequentemente, dependemos de outros/as para
traduzirem para nós. Ainda assim, como nossos esforços para entender os/as outros/
as e para nos fazer entendidos/as ocorrem em um mundo caracterizado por relações
hierárquicas de poder, por mais que desejássemos que fosse o contrário, há limites
em relação ao que cada um/a de nós pode ver e dizer a partir de nossos lugares
sociais específicos.
Sinto-me honrada por escrever um prefácio para este livro, porque sua ênfase
no feminismo, na tradução e no poder ressoa em duas linhas de meu trabalho.
Primeiro, a tradução é central para a práxis feminista. Indivíduos que servem como
tradutores/as não apenas interpretam os significados variantes através de cenários
sociais, políticos e intelectuais diferentes: eles/as criam novo conhecimento em
espaços fronteiriços. O ato da tradução é visível; por exemplo, a menina de nove anos
de idade que traduz suas perguntas para a mãe e vice-versa, porque ela é o elo bilíngue
entre o inglês falado na escola e o espanhol falado em casa3. Ainda assim, a menina de
nove anos de idade faz mais do que traduções literais, palavra por palavra. Como ela
pondera e antecipa as necessidades tanto de sua mãe quanto de sua professora, nos
26 dois lados do intercâmbio, ela cria novos entendimentos e possibilidades políticas.
Segundo, este livro tem uma importância especial no meu entendimento de
ativismo intelectual. Possuir o poder de uma língua, de uma cultura, de um estilo
de comunicação é a marca de poder por si só, tanto dentro de nossas comunidades
intelectuais específicas quanto para além delas. Como eu vejo meu trabalho
intelectual tanto falando a verdade para os poderosos quanto falando a verdade
para o povo, a tradução tem sido importante para o meu ativismo intelectual. Ser
capaz de me mover entre diversas comunidades interpretativas, que, por si sós, são
situadas politicamente, tomar decisões estratégicas sobre o que se traduz, se se deve
realmente traduzir e sobre como as coisas podem ser traduzidas tem sido essencial
para o meu trabalho.
Esse foco duplo nas políticas de tradução dentro de hierarquias sociais
específicas e as políticas de interpretação que a tradução engendra na criação de um
novo conhecimento recai no coração dos estudos de tradução feminista assim como
daqueles de qualquer projeto progressista. Dentro das políticas de um mundo em
processo de decolonização, a tradução é a ferramenta que catalisa o novo conhecimento
que possivelmente fundamenta uma nova práxis política. Portanto, quando se trata
3 Nota dos tradutores: Nesse exemplo, Collins faz referência ao contexto estadunidense de mulheres
hispânicas que imigraram para os Estados Unidos possuindo pouco, ou nenhum, domínio do idioma
inglês. Já suas filhas e filhos, nascidos no país, são falantes bilíngues, tendo o inglês como língua
materna, utilizada em contextos formais como a escola, e o espanhol como língua de herança, utilizada
principalmente no contexto familiar. Tais crianças acabam atuando como intérpretes, mediadoras
entre os dois contextos: o formal e o familiar.

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de ativismo intelectual, aperfeiçoar habilidades de tradução constitui-se tanto como
um desafio intelectual importante quanto como uma necessidade política.

Tradução e práxis feminista

Em 1994, fui à Europa pela primeira vez para apresentar um trabalho intitulado
“Is the Personal Political Enough? African American Women and Feminist Praxis”
(1996) [“O pessoal é político o suficiente? Mulheres afro-americanas e práxis feminista”]
na conferência “Racisms and Feminisms: An International Conference” [“Racismos
e feminismos: uma conferência internacional”] realizada em Viena. Percebendo
que os/as participantes da conferência não falavam uma língua em comum, os/as
organizadores/as providenciaram traduções para os trabalhos preparados para e/ou
apresentados na conferência que estava ocorrendo. Traduzir o texto escrito de uma
comunidade interpretativa para o texto oral ou escrito de uma outra comunidade
constituiu-se como um primeiro passo importante para possibilitar que as ideias
viajassem. Como a conferência foi encarregada de desenvolver uma agenda feminista
para levar à Conferência sobre Racismo das Nações Unidas, nós precisávamos ser
capazes de falar um/a com o/a outro/a. Como essa era minha primeira conferência
internacional, fiquei estarrecida com o número de pessoas que eu não entendia, ou que
não conseguiam me entender. Nós falávamos tantas línguas diferentes que tínhamos
dificuldade em falar diretamente uns/umas com os/as outros/as, em conversas 27
abertas e relaxadas. Acima de tudo, eu vi bem claramente como os/as tradutores/as
também serviam como mediadores/as de poder para o modo como as ideias formais
da conferência se desdobrariam. Eles/as faziam traduções literais dos trabalhos
assim como traduziam os estilos comunicacionais e critérios epistemológicos que os/
as participantes da conferência traziam consigo.
Mais tarde, naquele mesmo dia, um jantarzinho informal perto do local da
conferência com outros/as três participantes trouxe a importância da tradução para
seu mais alto relevo. Um/a de meus/minhas companheiros/as de jantar era uma
mulher muçulmana da Bósnia que pediu asilo em Viena para escapar da guerra na
Iugoslávia. Ela falava bósnio e um pouco de alemão, mas como ninguém na mesa falava
bósnio, ela se apoiava em seu alemão. Um/a segundo/a participante do jantar falava
apenas alemão fluente. Como eu falava apenas inglês, não podia me comunicar com
nenhum/a deles/as, nem eles/as comigo. Nossa última companheira de jantar falava
tanto alemão quanto inglês, e três outras línguas que descobri depois, nenhuma das
quais era bósnio. Consequentemente, ela se tornou uma tradutora não oficial para
nós três porque ela era a única pessoa na mesa que conseguiu ter uma conversa com
cada pessoa na mesa. Até hoje, eu permaneço grata e impressionada pela habilidade
e autorreflexividade de nossa companheira de jantar multilíngue. Como ela podia
falar com todo mundo na mesa, ela tinha o melhor acesso à conversa significativa.
Mas como ela também servia como a tradutora não oficial para a mesa, ela não podia

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simplesmente dizer a primeira coisa que vinha a sua cabeça e esperar para que outra
pessoa traduzisse. Em vez disso, ela tinha que refletir sobre o que outras pessoas
diziam, sobre seus próprios pensamentos e suas interpretações dos significados que
todos/as nós queríamos transmitir.
Que lições podem ser tiradas para o feminismo a partir da organização
formal da conferência assim como dos trabalhos informais no jantar? Primeiro, tanto
a conferência quanto o jantar destacaram a importância dos/as tradutores/as como
mediadores/as de poder dentro das fronteiras linguísticas e culturais que organizam
as relações de poder. Consequentemente, em uma situação de desigualdade social
marcada por diferentes valorações atribuídas às línguas, tradutores/as sempre serão
mediadores/as de poder. A pergunta é: de que tipo? Eu desconfio que presenciei
muitas situações em que tradutores/as de outras línguas, por exemplo, aprendendo o
jargão acadêmico que permanece sendo o preço de entrada nas disciplinas, possam
ter compartilhado comigo apenas aquelas ideias que pensaram que pudessem me
interessar, e/ou ser valiosas para mim, ou, mais frequentemente, servir aos seus
interesses. Mais ameaçador do que isso é o fato de tais tradutores/as poderem ter
omitido informações que poderiam ter me beneficiado. Nesses cenários, tradutores/
as servem como mediadores/as de poder tanto dos interesses de grupos dominantes
ou oportunamente de seus próprios interesses – guardas de fronteira que decidem
quais ideias merecem ser traduzidas nos dois lados do poder. Em contrapartida,
experiências dialógicas em cenários feministas onde pessoas progressistas se
28 esforçam para entender o ponto de vista umas das outras para além de diferenças
de nacionalidade, idade, sexualidade, classe e/ou raça podem se assemelhar àquelas
daquele jantar. Para mim, nossa colega multilíngue interpretou e exercitou seu papel
como uma mediadora de poder dentro do contexto do ativismo intelectual. Ela viu
a tradução como sendo essencial para o tipo de diálogos e colaborações intelectuais
requisitados pelo conhecimento e pela práxis feministas.
Segundo, tradutores/as com histórias diferentes de ativismo intelectual podem
se deparar com o confronto de um/a com o/a outro/a no mesmo espaço interpretativo.
Apesar de a tradução parecer ser uma simples reiteração de um conjunto de verdades
na língua do/a outro/a, o processo é profundamente enredado em relações de poder
desiguais. Não é uma simples transferência de uma língua para outra. Ao contrário,
a natureza da tradução reflete o suposto valor das ideias nos diferentes lados de
uma divisão cultural, na qual aqueles/as em cada um dos lados não têm outro modo
de ter engajamento dialógico (eles/as poderiam se comunicar certamente, talvez
violentamente e sem compreensão mútua) a não ser por meio de mediadores/as
de língua. Tradutores/as experientes que estão comprometidos/as com o ativismo
intelectual frequentemente se vêem confrontando mediadores/as de poder que
trabalham para manter relações de poder e/ou seu próprio carreirismo. Para além de
simples oposição à desigualdade, tradutores/as progressistas frequentemente usam
seu lugar social como mediadores/as de poder para construir espaços subversivos
e transgressivos entre pessoas que compartilham interesses e línguas diferentes.

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Tradutores/as que reconhecem as complexidades do poder e a importância de o
processo de tradução atuar eticamente naquele espaço.
Terceiro, a tradução tem implicações epistemológicas importantes para o tipo
de conhecimento feminista que emerge da práxis feminista. O espaço da tradução
não é um espaço vazio, uma função que pode ser ocupada por qualquer um/a, onde
verdades são construídas pelo mapeamento linear de um conjunto de ideias dentro
daquelas de uma outra. Em vez disso, porque a tradução facilita a comunicação,
espaços de tradução possibilitam que as ideias ressaltem umas às outras. Ainda
assim, compartilhar ideias via tradução requer confiança. No jantar, por exemplo,
como eu não falava nem alemão nem bósnio, não tinha como saber se qualquer um/a
na mesa estava falando a verdade, incluindo a tradutora da mesa. Por mais que eu
confiasse na minha companheira de jantar, não havia outro modo de verificar os
significados sociais compartilhados a não ser adicionar mais pessoas à conversa. E
esse é exatamente o ponto de construção do conhecimento dialógico que é necessário
a relações de decolonização e facilitado por tradutores/as que abraçam o ativismo
intelectual. Nesse caso, como o jantar surgiu de um evento feminista mais amplo que
era dedicado ao antirracismo, eu confiei em meus/minhas companheiros/as. Para
mim, nossa mesa de jantar constituiu-se como uma efêmera zona de fronteira para a
escuta ativa e não simplesmente falar para ou por cima um/a do/a outro/a. Havia um
elemento de confiança entre pessoas desconhecidas, com um diálogo subsequente
que felizmente energizou cada um/a de nós. Espaços de tradução são zonas de
fronteira epistemológica, onde o conhecimento é construído via confiança. 29

As políticas de interpretação: tradução e estudos acadêmicos


feministas

Eu estou atualmente envolvida em vários projetos que me demandam refletir


retrospectivamente sobre Black Feminist Thought4 [Pensamento feminista negro],
um esforço interessante que requer uma tradução temporal de outrora para agora.
Mesmo que eu não tenha tido acesso aos estudos de tradução feminista quando
escrevi Black Feminist Thought (1990), o que me impressiona é quão importante a
tradução foi para aquele projeto. Eu enfrentei um desafio difícil ao elaborar esse livro
– como eu poderia escrever um livro sobre a produção intelectual das mulheres afro-
americanas que fosse aceito pelo público acadêmico que tinha excluído e depreciado
as mulheres afro-americanas por um longo período de tempo? Por outro lado, como
eu poderia escrever um livro que falasse diretamente às mulheres afro-americanas
que elas achassem confiável, ainda assim evitando o risco de ser desconsiderado pelo
público acadêmico (que controlava os recursos de publicação)?

4 Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness and the Politics of Empowerment foi publicado
originalmente em 1990, e ainda não conta com tradução completa e/ou oficial no Brasil. Sua publicação
em língua portuguesa está prevista para o ano de 2019, pela editora Boitempo.

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Black Feminist Thought exigiu que eu aguçasse minhas habilidades de tradução,
sobretudo porque eu estava escrevendo em uma zona de fronteira que percorria
comunidades linguísticas, culturais e epistemológicas que não eram iguais. As
mulheres afro-americanas tinham claramente sido usadas como dados para agendas
acadêmicas, úteis apenas quando serviam aos tropos dominantes. Como análises por
e sobre mulheres negras naquele tempo eram tão novas e eu era uma acadêmica
desconhecida, eu sabia que meu livro tinha poucas chances de ser publicado a não
ser que passasse pelo escrutínio acadêmico. Ainda assim, o escrutínio acadêmico era
e continua sendo uma relação de poder que convida certos materiais a viajar para
dentro das arenas acadêmicas enquanto considera outros materiais não merecedores
de investigação. Eu também tinha que encontrar modos de ver se os argumentos que
eu desenvolvia alinhavam-se com os significados que as mulheres afro-americanas
expressariam sobre suas vidas.
Eu enfrentei vários desafios ao escrever Black Feminist Thought, um de
inteligibilidade, ou de construir ideias que pudessem viajar e fazer sentido nos
dois âmbitos; e um de clareza, ou de garantir que eu nem compreendesse mal
nem representasse mal as ideias em comunidades interpretativas que raramente
comunicavam-se umas com as outras como iguais; e um de legitimação, mais
precisamente, garantir que meus argumentos seriam convincentes dentro de
diferentes padrões de avaliação. Compreendendo meu papel como uma mediadora
de poder nesse contexto, tive que encontrar modos para me comunicar com
30 diversas comunidades interpretativas sem reinstalar as hierarquias de poder que
subordinavam uma à outra. Para solucionar esse dilema, eu me engajei em uma
metodologia dialógica ou uma maneira de ler as ideias de diversas comunidades
interpretativas. Eu via a escrita de meu livro como uma forma de falar diversas
línguas, variações do inglês que eram usadas e validadas por diversas comunidades
interpretativas. Quando olho para trás, vejo que me engajei em uma estratégia dupla
de falar a verdade para os/as poderosos/as por meio da referência ateorias sociais
reconhecidas e pesquisa empírica dentro de Black Feminist Thought, assim como de
falar a verdade para o povo, que eram os sujeitos de meu manuscrito.
Falar a verdade para os/as poderosos/as era muito perigoso. Como uma recém
acadêmica, eu era bastante cuidadosa sobre como eu compartilhava meu trabalho,
esperando até eu ganhar estabilidade antes de procurar um contrato editorial. Eu
achei que estivesse preparada para a crítica de meus/minhas colegas acadêmicos, mas
percebi com o tempo que muitos de meus/minhas colegas mais velhos/as possuíam a
base de conhecimento e o conjunto de habilidades para compreender a complexidade
de meu projeto. Por exemplo, após eu terminar uma apresentação de Black Feminist
Thought em uma conferência acadêmica feminista, uma participante levantou a
mão, recitou uma lista de obras de feministas brancas proeminentes e perguntou
por que eu não as tinha citado. Ela parecia insinuar que meu livro melhoraria se eu
incorporasse mais teoria feminista. Em resposta, assinalei que eu certamente estava
familiarizada com as obras canonizadas, mas que tinha deliberadamente escolhido
não citá-las. As teóricas feministas brancas que ela citou não precisavam de mais

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valorização vinda de mim – elas já tinham pessoas como ela para traduzi-las e
defender suas causas. Em vez disso, eu queria convidar para a conversa mais pessoas
no espaço de fronteira, nesse caso, as mulheres afro-americanas que tinham sido
excluídas pelas mesmas táticas que minha crítica usou naquele mesmo momento.
Falar a verdade para o povo acabou sendo a parte mais jubilosa desse projeto.
Minha maior preocupação era que as mulheres negras que eram os sujeitos de
meu livro não se sentissem como objetos do conhecimento quando elas lessem
Black Feminist Thought. Eu também usei minha docência para “traduzir” teorias
antirracistas, feministas e outras teorias sociais progressistas para meus/minhas
alunas, muitos/as dos/as quais estavam com sede de novas ideias. Eu coloquei as
ideias de uma gama de intelectuais afro-americanos/as, artistas e críticos/as culturais
em diálogo com as de meus/minhas alunos/as, “traduzindo”, assim, para eles/as e a
partir deles/as as ideias mais robustas. Ao preparar o manuscrito final, compartilhei
vários capítulos com graduandas afro-americanas e as questionei sobre suas
reações ao manuscrito. As ideias em Black Feminist Thought “soavam verdadeiras”
para elas? Elas conseguiam pensar em exemplos de suas próprias experiências que
ilustrassem e/ou contradissessem as ideias principais do livro? Quão efetivamente
as explicações e interpretações que eu ofereci, muitas das quais foram tiradas de
teorias sociais acadêmicas, falavam sobre suas realidades vividas? O material que
elas acharam irrelevante simplesmente não se traduzia para elas, não importando o
quanto os círculos acadêmicos o retratassem como verdade. Paralelamente, minhas
alunas questionavam-me rotineiramente sobre os temas que não apareciam no livro, 31
pedindo-me para escrever mais sobre eles.
Black Feminist Thought está escrito em diversos registros, um voltado para
o público acadêmico e o outro visando à leitura geral, ainda que heterogênea, das
mulheres afro-americanas. Meu trabalho como acadêmica recai no aperfeiçoamento
da arte da tradução de perspectivas tão diversas no mundo para além dessas diferenças
de cultura, de experiência, mas, sobretudo, de poder.

***

O mundo não nos pertence para que o agarremos e o entendamos como


transparente, terminado e pronto para levar. Dentro de uma conjuntura ocidental,
o desejo por conhecer catalisou a crença de que a ciência pode revelar tudo que é
conhecível se seguirmos as regras e que o desconhecido tipicamente não merece
ser conhecido. Nesse contexto, é difícil aceitar um processo de tradução perpétua
que revele camadas de significado que nós nunca poderemos conhecer enquanto
indivíduos. Ainda assim, não há um modo de conhecer nosso mundo sem cruzar
fronteiras linguísticas, culturais e epistemológicas, de assumir riscos tanto em
conversas quanto dentro de nossa produção intelectual. Nós nunca podemos requerer
ou vivenciar as experiências de outras pessoas, ou mesmo os sentidos que as pessoas
fazem delas, sem violentar suas realidades. Nesse contexto, trabalhar dialogicamente
e aperfeiçoar habilidades de tradução é um ato de confiança – em nossas próprias

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habilidades e naquelas de outros em acertar, ou ao menos chegar o mais perto disso
quanto puderem.

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Negofeminismo: Teorizar, Praticar e Abrir o Caminho da África1
RESUMO

O presente artigo irá explorar, entre outras questões, o entrelaçamento do momento


colonial, das políticas de trabalho de campo, e as políticas de representação nos
estudos feministas e nos estudos de desenvolvimento, revisando os processos de
elaboração teórica e a construção de conhecimento em um ambiente de relações
de poder desiguais e a diferença cultural. Os diferentes aspectos e métodos de
engajamento feminista na África serão utilizados para propor o que eu chamo de
negofeminismo (o feminismo da negociação; não ego feminismo) como um termo que
nomeia os feminismos africanos. Ciente de uma prática (feminismo na África) que
é tão diversa quanto o continente mesmo, proponho negofeminismo não para ocluir
a diversidade, mas para argumentar que um aspecto recorrente em muitas culturas
africanas pode ser usado para nomear a prática. Para além disso, por meio de uma
breve discussão do início de um programa de estudos femininos na África, irei
abordar questões de fronteiras disciplinares, pedagogia, e construção institucional
em uma atmosfera de intensas atividades de ONGs limitadas e estruturadas por
interesses de doadores, condicionalidades e políticas. Ademais, irei advogar em favor
do questionamento e do reposicionamento de duas questões cruciais nos estudos
feministas – posicionalidade e interseccionalidade. Por fim, vislumbro também uma
mudança modulada no foco da interseccionalidade de raça, gênero, classe, etnicidade,
sexualidade, religião, cultura, origem nacional, e assim por diante, de considerações
ontológicas (estando lá) para imperativos funcionais (fazendo o que lá) e pretendo 33
endereçar questões importantes de igualdade e reciprocidade na intersecção e no
cruzamento de fronteira.

Palavras-chave: estudos feministas, negofeminismo, posicionalidade,


interseccionalidade, África.

1 O artigo de Obioma G. Nnaemeka, “Nego-feminism: Theorizing, Practicing, and Pruning Africa’s


Way,” foi publicado originalmente na revista Signs: Journal of Women in Culture and Society (2004), vol
29, no. 2, pp. 357-386. Tradução de Cibele de Guadalupe Sousa Araújo e Giovana Bleyer. Agradecemos
à professora Obioma G. Nnaemeka pela gentileza e presteza demonstrada na concessão dos direitos
autorais da presente tradução brasileira.

Obioma G. Nnaemeka
Acadêmica negra, nascida na Nigéria, e residente, atualmente, nos Estados Unidos da América.
Nnaemeka é professora de Francês, Estudos Femininos e Estudos Africanos da Universidade de
Indiana. Entre seus principais interesses de pesquisa estão: escritoras negras, teoria feminista,
feminismos transnacionais, literaturas francesa e francófonas, literaturas orais e escritas de África ou
da diáspora africana, gênero e desenvolvimento e direitos humanos. Entre suas principais publicações
estão as obras: (editora) The Politics of (M)Othering: Womanhood, Identity and Resistance in African
Literature (Routledge 1997) e Feminisms, Sisterhood and Power: From Africa to the Diaspora (Africa
World Press 1998).

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ABSTRACT

In this article I will explore, among other issues, the intertwining of the colonial
moment, the politics of fieldwork, and the politics of representation in feminist
scholarship and development studies by revisiting the processes of theory making and
knowledge construction in an environment of unequal power relations and cultural
difference. I will use the different features and methods of feminist engagement in
Africa to propose what I call nego-feminism (the feminism of negotiation; no ego
feminism) as a term that names African feminisms. Aware of a practice (feminism
in Africa) that is as diverse as the continent itself, I propose nego-feminism not to
occlude the diversity but to argue that a recurrent feature in many African cultures
can be used to name the practice. Moreover, I will address issues of disciplinary
boundaries, pedagogy, and institution building in an atmosphere of intense NGO
activities bound and structured by donor interests, conditionalities, and politics.
Ultimately, I will plead for the interrogation and repositioning of two crucial issues
in feminist studies—positionality and intersectionality. Finally, this paper will also
envisage a modulated shift in focus of the intersectionality of race, gender, class,
ethnicity, sexuality, religion, culture, national origin, and so forth, from ontological
considerations (being there) to functional imperatives (doing what there) and speak
to the important issues of equality and reciprocity in the intersecting and border
crossing.

Keywords: feminist studies, nego-feminism, positionality, intersectionality, Africa.

34
Deslocar e desfazer aquela oposição mortal entre o texto
estritamente concebido como texto verbal e o ativismo estritamente
concebido com algum tipo de engajamento irracional.
— Gayatri C. Spivak (1990: 120–21)

Estudiosos africanos, e especialmente mulheres, devem trazer


seu conhecimento para apresentar uma perspectiva africana
sobre perspectivas e problemas para as mulheres em sociedades
locais. Estudiosos e pessoas engajadas no planejamento e na
implementação de pesquisa de desenvolvimento devem prestar
atenção às prioridades de desenvolvimento como percebidas
pelas comunidades locais.
— Achola A. Pala (1977: 13)

Em 1999, fui convidada para falar em uma conferência internacional organizada


pelo “Projeto Mulheres empreendendo a Paz”, na Escola Kennedy, da universidade
de Harvard, que atraiu participantes de algumas das zonas de conflito de nosso
planeta conturbado – Irlanda do Norte, República Democrática do Congo, Sudão,
Serra Leoa, Ruanda, Bósnia, Oriente Médio, Burundi, Angola, entre outros. Uma das
convidadas para se apresentar para o público foi Martha Nussbaum, uma filósofa
que tinha ganhado grande visibilidade e reconhecimento substancial desenvolvendo
estudos pela articulação da “abordagem das capacidades humanas”, cunhada na área

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da economia do desenvolvimento por Amartya Sen, ganhador do prêmio Nobel em
economia2.
Após uma breve apresentação da abordagem das capacidades humanas,
Bussbaum mal havia se sentado quando foi verbalmente atacada. O ataque foi
inesperado por sua rapidez, visceral em seu conteúdo e vociferante em sua articulação.
A primeira a falar foi uma afro-americana que vive na vizinhança de Harvard. Em
um discurso comovente, ela se queixou amargamente, primeiro, sobre não ter tido
conhecimento de que um evento com alta representação de irmãs africanas residentes
na África estava acontecendo em sua vizinhança e, segundo, sobre as dificuldades
que ela teve para fazer seu caminho até a sala de conferência. Quando ela chegou
ao Centro Kennedy, praticamente todas as portas de entrada estavam trancadas. Ao
forçar uma das portas trancadas, ela foi abordada por um policial que a questionou
sobre o que “[ela] estava fazendo lá”. A próxima “queixosa” foi uma participante
africana residente na África que falou com uma “voz comunal”3, afirmando que ela
preferiria que lhe dissessem/mostrassem o que tinha sido feito para amenizar a
situação em sua parte do mundo do que ser bombardeada com discursos irrelevantes
e teorização vazia. Obviamente, a teorização é “vazia” precisamente por causa de
sua inabilidade para se conectar com ou referir-se às realidades em ambientes com
os quais a queixosa se identificava. Em meio da argumentação acalorada, Nussbaum
empoleirou-se silenciosamente em sua cadeira e não emitiu resposta. Eu me levantei
não para defender Nussbaum (ela é suficientemente capaz para se defender), mas
para emitir uma mensagem de advertência para as mulheres de cor (especialmente 35
aquelas vivendo e trabalhando na África) enquanto lhes assegurava que eu entendia
e me identificava com sua frustração e raiva por ter que sentar ouvindo “discursos”
intermináveis, enquanto o imediatismo, a desordem, a brutalidade crua de suas
pátrias cheias de conflito pesavam em suas mentes.
Eu fiquei impressionada, no entanto, pela falta de engajamento com a essência
da apresentação de Nussbaum. Ela foi desconsiderada por oferecer teorização
irrelevante ao invés de um roteiro claro para ação. Apesar de ser simpática à
centralidade da prática no trabalho de desenvolvimento, desconfio de uma postura
que seja tão firmemente anti-teoria que não deixe espaço para qualquer engajamento
com a teoria. A teoria tem um papel central em ajudar a escrutinar, decifrar, e
nomear o cotidiano, mesmo que seja a prática do cotidiano que informe a elaboração
da teoria. Pode-se argumentar sobre o uso/abuso e as políticas da teoria, como
eu irei argumentar na próxima seção, mas dispensar a teoria como sendo sempre
irrelevante não é útil. Pelo contrário, a maioria dos africanos com quem eu trabalhei

2 Dedicado a Françoise Lionnet por muitos anos de colegialidade e colaboração.


De acordo com Nussbaum, a abordagem das capacidades humanas focaliza “o que as pessoas são de fato
capazes de fazer e de ser… as capacidades em questão devem ser buscadas por cada e por toda pessoa,
tratando cada uma como um fim e ninguém como uma mera ferramenta dos fins de outros; assim eu
adoto um princípio da capacidade de cada pessoa, baseado em um princípio de cada pessoa como um
fim” (Nussbaum, 2000: 5).
3 Muitas participantes africanas apoiaram com interjeições como “continue, minha irmã”, “eu concordo cem
porcento com você”, “fale por nós, minha querida”, “diga a ela que não foi pra isso que viemos aqui” etc.

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dentro e fora do continente argumentam não pela morte da teoria, mas contra seu
uso e abuso; particularmente, eles interrogam os caminhos pelos quais a teoria,
como local de conflito político, suscita preocupações sobre “invenção”, adequação
e aplicabilidade. Isso me leva a acreditar, então, que a objeção à apresentação de
Nussbaum não foi, provavelmente, contra a teoria per se, mas contra a falha da
palestrante em ancorar sua teorização na realidade de qualquer forma relevante ou
significante para as “queixosas”. A fama e a posição social privilegiada de Nussbaum
são epistemicamente salientes no sentido de autorizar suas visões e publicações,
mas elas também podem ser discursivamente perigosas em termos do impacto que
suas visões/publicações têm em moldar as vidas das mulheres em nome de quem
ela intervém4. Eu adverti minhas irmãs de cor para não dispensarem Nussbaum
pela simples razão de que os indivíduos e instituições estrangeiras/internacionais
responsáveis por fazer políticas que afetam as vidas de mulheres de cor no chamado
terceiro mundo leem Nussbaum e modelam algumas de suas políticas de acordo com
suas visões, conclusões e publicações. A melhor forma de se envolver com Nussbaum
é ler suas publicações sobre gênero e desenvolvimento, expor terrenos contestados
(que são muitos) e oferecer argumentos e caminhos alternativos.
O incidente acima, transcorrido em Harvard, expõe o dublo apartheid em
evolução de exclusões sociais e epistemológicas que está no cerne da exposição de
Arjun Appadurai sobre as disjunções purulentas entre diversos públicos dentro de
e entre nações em um mundo globalizado. A globalização, com suas mudanças e
36 voltas, produziu ansiedades não apenas na academia onde certezas disciplinares são
rompidas, mas também fora da academia onde diferentes preocupações abundam:

O que a globalização significa para os mercados de trabalho e


salários justos? Como ela irá afetar chances de empregos reais e
recompensas confiáveis? O que ela significa para a habilidade das
nações em determinar os futuros econômicos de suas populações?
Qual é o dote escondido da globalização? Cristianismo?
Proletarização cibernética? Novas formas de ajustamento
estrutural? Americanização disfarçada de direitos humanos ou
de MTV?... Entre os pobres e seus defensores as ansiedades são
ainda mais específicas: O que as grandes agências globais de ajuda
e desenvolvimento irão fazer? O Banco mundial está realmente
comprometido a incorporar valores sociais e culturais em sua
agenda desenvolvimentista? A ajuda do Norte realmente permite
às comunidades locais estabelecerem suas próprias agendas?...
Poderá a mídia se voltar para os interesses dos pobres? Nas esferas
públicas de muitas sociedades há preocupação quanto aos debates
de políticas ocorrendo em torno do comércio mundial, direitos
autorais, meio ambiente, ciência e tecnologia que preparam o
palco para decisões de vida e morte para pequenos agricultores,
vendedores, moradores de favelas, comerciantes e populações
urbanas (Appadurai, 2000:1-2).
4 Para uma discussão sobre saliência epistêmica, conferir Alcoff (1995).

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O crescente divórcio entre os debates paroquiais “sobre tais assuntos
como representação, reconhecimento, o ‘fim’ da história, os espectros do capital
etc.” (Appadurai, 2000: 2) na academia por um lado e os discursos vernaculares
e as realidades de públicos fora da academia por outro lado demandam novos e
imaginativos modos de ver e conduzir a pesquisa, um dos quais consiste em globalizar
a pesquisa de baixo5 com a força de um elemento usualmente identificado com a
escrita criativa e as artes – a imaginação. Meu extenso trabalho na última década com
organizações não-governamentais (ONGs) e públicos de base na África – variando
de literatura, saúde e direitos humanos, na Nigéria, Senegal, Sudão e Madagascar
até etnicidade, paz e resolução de conflito em Ruanda, Burundi, Serra Leoa e
República Democrática do Congo – me levou a repensar o lugar e o papel da teoria,
da pesquisa e do conhecimento acadêmico e a reconhecer a potência e a utilidade da
força da imaginação, mencionada acima. Meu trabalho com públicos para além da
academia ilumina e torna pertinente meu trabalho na academia. Esse artigo reflete
o que eu aprendi com homens e mulheres com quem trabalhei no espaço robusto e
dinâmico onde a academia encontra o que está além dela. Esta junção onde mundos
se encontram é o que eu chamo de “terceiro espaço de engajamento” (engajamento,
no sentido sartreano da palavra) O terceiro espaço não é o local de estabilidade do
ultimato do um ou outro; é o espaço do ambos/e, onde o território sem fronteira e o
movimento livre autorizam a capacidade para simultaneamente teorizar a prática,
praticar a teoria e permite a mediação da política. O terceiro espaço, que permite a
coexistência, a interconexão, e a interação de pensamento, o diálogo, o planejamento, 37
e a ação, constitui a arena onde eu testemunhei o desdobramento dos feminismos na
África.

Neste artigo, irei explorar, entre outras questões, o entrelaçamento do
momento colonial, das políticas de trabalho de campo, e as políticas de representação
nos estudos feministas e nos estudos de desenvolvimento, revisando os processos de
elaboração teórica e a construção de conhecimento em um ambiente de relações de
poder desiguais e a diferença cultural. Utilizarei os diferentes aspectos e métodos
de engajamento feminista na África para propor o que eu chamo de negofeminismo
(o feminismo da negociação; não ego feminismo) como um termo que nomeia os
feminismos africanos6. Ciente de uma prática (feminismo na África) que é tão diversa
quanto o continente mesmo, proponho negofeminismo não para ocluir a diversidade,
mas para argumentar, como faço na discussão de “construindo sobre os autóctones”

5 Essa não é uma estratégia exclusivista que muda poder e foco dos privilegiados para os subalternos.
Ao invés disso, ela deve ser um engajamento no qual o privilégio é difundido para permitir um fluxo de
vozes multilateral e interativo (de cima e de baixo simultaneamente).
6 Discutindo o feminismo na África em um trabalho anterior, notei que “seria mais preciso argumentar
não no contexto de um monólito (feminismo africano), mas ao invés disso no contexto de um pluralismo
(feminismos africanos) que captura a fluidez e o dinamismo dos diferentes imperativos culturais, forças
históricas e realidades locais condicionando o ativismo feminino/movimentos na África... a inscrição
de feminismos... sublinha a heterogeneidade do pensamento e o engajamento feminista africano como
manifestados em estratégias e abordagens que são, às vezes, complementares e solidárias e, às vezes,
concorrentes e adversárias” (Nnaemeka, 1998a: 5).

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na última seção deste artigo, que um aspecto recorrente em muitas culturas africanas
pode ser usado para nomear a prática. Não obstante a diversidade do continente
africano, há valores compartilhados que podem ser usados como princípios de
organização nas discussões sobre a África, como Daniel Etounga-Manguelle (2000:
67) apropriadamente observa:

A diversidade – o vasto número de subculturas [em África] – é


inegável. Mas há uma fundação de valores compartilhados,
atitudes, e instituições que liga as nações ao sul do Saara, e de
muitas formas aquelas ao norte também.

Por meio de uma breve discussão do início de um programa de estudos


femininos na África, irei abordar questões de fronteiras disciplinares, pedagogia,
e construção institucional em uma atmosfera de intensas atividades de ONGs
limitadas e estruturadas por interesses de doadores, condicionalidades e políticas.
Por fim, irei advogar em favor do questionamento e do reposicionamento de duas
questões cruciais nos estudos feministas – posicionalidade e interseccionalidade.
Esse processo irá implicar um questionamento constante do posicionamento de
alguém em todos os níveis – do social ao pessoal até o intelectual e político – como
um local subjetivo ativo de reciprocidade inconstante onde o significado é construído
e não um local essencializado onde o significado é descoberto. Finalmente, prevê-se
38 também uma mudança modulada no foco da interseccionalidade de raça, gênero,
classe, etnicidade, sexualidade, religião, cultura, origem nacional, e assim por diante
de considerações ontológicas (estando lá) para imperativos funcionais (fazendo o que
lá) e endereçar questões importantes de igualdade e reciprocidade na intersecção e no
cruzamento de fronteira7. Eu defendo que se vá além da historicização da intersecção
que nos limita a questões de origem, genealogia e ascendência para focarmos mais
na história do agora, o momento de ação que captura tanto sendo quanto tornando-
se, tanto ontologia quanto evolução. A discussão procederá em três movimentos:
a segunda seção abordará o uso/abuso da teoria e a marginalização das mulheres
africanas no processo; a terceira examinará a importância da cultura e a diferença
em debates sobre teoria e desenvolvimento; a quarta argumentará pela necessidade e
pela prudência de “construir sobre os autóctones” na construção da teoria feminista
africana.

7 Para uma boa discussão de interseccionalidade, conferir Crenshaw (1991).

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Habitando/duelando possibilidades: debater teoria, conhecimento
e engajamento

Nos estudos africanos, como em outros ramos da pesquisa social


e humanística, a subordinação de problemas sociais e humanos a
tendências disciplinares proclamou efeitos negativos que minam
a integridade e a utilidade social do conhecimento acadêmico.
— Richard Sklar (1995: 20)

Teóricos e seus métodos e conceitos constituem uma comunidade


de pessoas e significados compartilhados... Por que nos engajamos
nessa atividade e qual efeito pensamos que deva ter? Como
Helen Longino questionou: “‘Fazer teoria’ é apenas um ritual
de união para acadêmicas ou mulheres feministas privilegiadas
educacionalmente?” Novamente, a quem nossa elaboração de
teoria serve?
— María C. Lugones & Elizabeth V. Spelman (1986: 28)

Uma aproximação entre teoria e engajamento requer abrir terreno para habitar/
duelar não apenas sobre o que a teoria é, mas, mais importante, sobre o que a teoria
faz, pode ou não pode fazer, e deve ou não deve fazer. As disciplinas nas quais meu
trabalho se situa – estudos africanos, estudos femininos, estudos literários, estudos
culturais e estudos do desenvolvimento – são afetadas por ou implicadas nestes 39
processos. Teorizar em um contexto transcultural é carregado de questões éticas,
políticas e intelectuais: a questão da procedência (de onde vem a teoria?); a questão
subjetividade (quem autoriza?); a questão da posicionalidade (que locais e posições
[sociais, políticas e intelectuais] ela autoriza?). A natureza imperial da formação
de teoria deve ser questionada para permitir um processo democrático que criará
espaço para intervenção, legitimação e validação de teorias formuladas “alhures”.
Em outras palavras, a elaboração de teoria não deveria ser permanentemente um
empreendimento unidirecional – sempre emanando de um local específico e aplicável
a qualquer local – com efeito, permitindo a um constructo localizado impor uma
validade e aplicabilidade universais. Eu defendo, como alternativa, as possibilidades,
a desejabilidade e a pertinência de uma abertura de espaço que permita uma
multiplicidade de enquadramentos, diferentes mas relacionados, de locais diferentes
para tocar, cruzar e alimentar-se um do outro de um modo que acomode realidades e
histórias diferentes. A preocupação de Nussbaum (2000: 40) sobre a aplicabilidade de
um enquadramento universal e único é igualmente pertinente aqui: “[e] precisamos
também questionar se o enquadramento que propomos, se um único e universal,
é suficientemente flexível para nos permitir fazer justiça à variedade humana que
encontramos”. Acima de tudo, a teoria deveria ser usada para elucidar, não para
obscurecer e intimidar.

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Como outros discursos, supostamente, marginais, o discurso feminista
levanta questões cruciais sobre o conhecimento, não apenas como sendo, mas como
se tornando, não apenas como um constructo, mas como uma construção, não apenas
como um produto, mas como um processo. Em outras palavras, o conhecimento como
um processo é uma parte crucial do conhecimento como um produto. Ao injetar as
questões da subjetividade e do local nos debates epistemológicos, o conhecimento
acadêmico feminista procura, por assim dizer, colocar um rosto humano no que
é chamado de corpo de conhecimento e, no processo, desmascara esse corpo
presumivelmente sem rosto. Ao focalizar na metodologia (e às vezes na intenção),
o conhecimento acadêmico feminista traz à tona para escrutínio a agência humana
implicada na formação do conhecimento e no gerenciamento de informação. Não
podemos admitir pensamento crítico sem fazer perguntas cruciais sobre o que
está sendo pensado criticamente e sobre quem o está pensando criticamente. Mas
o feminismo ocidental também é alcançado em sua ambivalência: ao lutar pela
inclusão, ele instala exclusões; ao advogar por mudança, ele resiste à mudança; ao
reivindicar movimento, ele resiste a mover-se.
A lgumas décadas atrás, quando littérature engagée estava em voga (ao menos,
na França), a escrita estava ligada ao engajamento social. Mas em contextos pós-
estruturalistas, escritores e intelectuais ergueram muros discursivos que os isolaram
da ação social (engajamento) necessário para promover mudança social. O surgimento
da teoria pós-estruturalista como “teoria” e o papel que ela veio a assumir em moldar
40 não apenas a vida intelectual feminista, mas também os caminhos investigativos de
críticos literários e culturais e de outros intelectuais da esquerda têm implicações
para a ação/mudança social. O pós-estruturalismo é “um beco sem saída para o
pensamento progressista”, como Barbara Epstein (1995: 85-86) argumenta em sua
contenda com “pós-estruturalismo-como-radicalismo” e suas reivindicações teóricas
que têm pouco a ver com políticas progressistas:

[t]ambém estou consternada pela subcultura que se desenvolveu


em torno do feminismo pós-estruturalista e o mundo intelectual
com o qual se cruza. Nesta arena, a busca por status e a veneração
à celebridade tornou-se penetrante, provavelmente muito mais do
que em qualquer outro lugar na academia. O discurso intelectual
veio a ser governado por modismos alteráveis rapidamente.
O trabalho é julgado mais por sua sofisticação do que pela
contribuição que possa fazer em direção à mudança social.
Sofisticação é entendida como significando agilidade dentro de
uma estrutura intelectual complexa, a capacidade para engajar-
se pirotecnia teórica, para intimidar os outros por meio de uma
ostentação de erudição (EPSTEIN, 1995: 85-86).


O “nominalismo” do pós-estruturalismo, a negação da habilidade do
sujeito para refletir sobre o discurso social e desafiar sua determinação, a tese da
indecidibilidade e a afirmação da “função negativa” dos conflitos políticos levaram

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Linda Alcoff (1988) a colocar questões cruciais e pertinentes sobre a ameaça potencial
do pós-estruturalismo ao feminino em si mesmo8:

[a]dotar o nominalismo cria problemas significativos para o


feminismo. Como podemos adotar o plano de Kristeva apenas para
o conflito negativo? Como a esquerda já deveria ter aprendido, você
não pode mobilizar um movimento que é apenas e sempre contra;
você deve ter uma alternativa positiva, uma visão para um futuro
melhor que possa motivar as pessoas a sacrificarem seu tempo
e sua energia para sua realização. Como podemos fundamentar
uma política feminista que descontrua a subjetividade feminina?
O nominalismo ameaça aniquilar o feminismo em si mesmo
(Alcoff, 1988: 418–419).

O foco pós-estruturalista no discurso e estética ao invés da ação social encoraja


o egocentrismo e o individualismo que minam a ação coletiva. A atomização da
comunidade intelectual e o isolamento do trabalho intelectual permitem, na melhor
das hipóteses, o surgimento de “estrelas”, mas produzem, na pior das hipóteses,
uma família disfuncional e ineficaz que não é completamente equipada para ir ao
encontro dos desafios da transformação societal. Os estudos africanos e os estudos
femininos não são imunes a essas tendências disciplinares. O foco dos estudos
africanos na ideia de África ao invés de na realidade da África imita o destaque dos
estudos femininos sobre a noção da mulher africana ao invés de na humanidade das 41
mulheres africanas. No conhecimento acadêmico feminista, teóricas de diferentes
convicções estão atoladas na mirada centralizadora, intelectual e teorizante que
as isola da ação social e enfraquece a relevância. As feministas africanas trazem à
tona para escrutínio a relação com e a resistência às políticas e teorização feministas
endêmicas que consagram a irrelevância social e inviabilizam o engajamento
verdadeiro – das exclusões epistemológicas e sociais feministas para desconexão do
conhecimento acadêmico feminista da utilidade social.
De fato, com a redefinição e o realinhamento de minha trajetória intelectual
e profissional nos últimos anos, tendo a ser menos enfeitiçada e intimidada e mais
alienada e desdenhosa da ginástica intelectual e teorização vazia no conhecimento
acadêmico feminista, como evidenciado por minha incessante gravação de “e
daí?” como notas marginais em minhas releituras de textos feministas que me
amedrontaram e rebaixaram como graduada e como recém professora universitária9.
Mais importante, como professora, eu me preocupo com as implicações desse estado
das coisas para as próximas gerações de professoras e pesquisadoras feministas –

8 Conferir Alcoff (1988) para uma discussão do que ela chama de “nominalismo” do pós-estruturalismo;
e também a tese da indecidibilidade de Jacques Derrida (1978) e a “função negativa de Julia Kristeva
(1981: 166).
9 Não estou sozinha nisso. Não faz muito tempo, uma estudiosa/ativista feminista de muito tempo
me informou que ela tinha encerrado sua assinatura de um dos principais periódicos dos estudos
femininos, por causa de “sua filosofia que perdera contato com a realidade”.

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nossas estudantes de pós-graduação – que sabem menos sobre a essência dos textos
obrigatórios e mais sobre jargões da moda, como resultado disso elas produzem
respostas pré-estruturadas para questões diferentes e não relacionadas. Mais
especificamente, eu me preocupo com minha orientanda de pós-graduação e suas
obsessões sazonais com os jargões “pós” (pós-estruturalista, pós-colonial, pós-
modernista”). Em algum momento, era um “simulacro” que ela via em toda parte.
Aquilo durou alguns meses. Então, chegou um que se recusou a partir – “clivagem”.
Este monstro onipresente foi imbuído com significados que se metamorfoseavam
perpetuamente – do sagrado ao profano. Frustrada com a celeridade com a qual a tese
dela estava crescentemente “marcada” por este monstro, eu emiti um aviso severo:
“Se eu vir essa ‘clivagem’ em outra página dessa tese, eu irei retirá-la da minha lista
de orientandas”. A clivagem curvou-se à ameaça, a sanidade reinou e a tese avançou.
Até mais pertinente para a situação das mulheres africanas com relação à
elaboração de teoria é a necessidade urgente de abrir-se uma conversa não sobre o
desafio à impossibilidade de uma teoria (una), mas sobre o benefício de explorar-se
as possibilidades da teoria (múltipla). Como Judith Butler (1990: 5) apropriadamente
observa:
pode ser a hora de cogitar uma crítica radical que busque libertar
a teoria feminista da necessidade de ter que construir uma
fundamentação única ou permanente que é invariavelmente
contestada por aquelas posições identitárias ou posições anti-
42 identitárias que ela invariavelmente exclui.

Quando Barbara Christian (1995) manifestou-se uma década atrás contra a


“disputa de teorias”, ela trouxe para escrutínio a ligação entre posições identitárias
e teoria feminista ao insistir que pessoas de cor sempre teorizaram, mas de modo
diferente:

[e]stou inclinada a dizer que nossa teorização (e eu


intencionalmente uso o verbo ao invés do substantivo) está
frequentemente em formas de narrativa, nas histórias que
criamos, nas advinhas e nos provérbios, no brincar com a língua,
já que ideias dinâmicas, e não fixas, parecem ser mais do nosso
gosto (Christian, 1995: 457).

Em questão aqui está a personalização da formação de teoria no ocidente


(cartesiana, por exemplo) como oposta ao anonimato de uma voz comunal que
articula reivindicações de conhecimento em formas narrativas e provérbios africanos
(que na terra Igbo são frequentemente precedidas por “ndi banyi si/nosso povo
disse”). Como sujeitos coloniais, uma das dificuldades que encontramos em nossa
absorção no mundo colonial de aquisição de conhecimento foi sermos requisitados
nas escolas coloniais a memorizar e identificar corretamente as citações onipresentes
e as seguintes perguntas de quatro partes que nos torturavam na hora das avaliações

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– quem disse, para quem, quando e onde? (identifique a voz que autoriza, a
passividade que a legitima, a temporalidade que a marca, e o local do tráfego de mão
única de uma “transação”). Nós esquecemos tais inanidades no risco de nosso avanço
educacional. Ninguém se dava ao trabalho de nos perguntar como nós víamos o
conhecimento, sua formação e articulação; ninguém se dava ao trabalho de descobrir
se desenhávamos molduras para o conhecimento (enquadramento); ninguém se
importava com descobrir se nossa jornada com e para dentro do conhecimento é um
caso de amor sem limites e em constante evolução que nos varre junto com nossos
vizinhos, nossos ancestrais e aqueles que nós não conhecemos ou “lemos” (“ndi banyi
si/nosso povo disse” não “ndi banyi delu/nosso povo escreveu”)10.
O local das mulheres africanas (como produtoras de conhecimento e sujeitos/
objetos para a produção de conhecimento) em querelas epistemológicas feministas
é tanto específica quanto complexa. A crítica das mulheres africanas de teorias
feministas prevalentes vai além de questões de relevância, adequação e propriedade
para incluir questões cruciais sobre representação e alocação/compartilhamento
de tarefas. Em sua resenha de três obras editadas sobre gênero e direitos humanos
internacionais, J. Oloka-Onyango e Sylvia Tamale (1995) louvam as tentativas das
obras de incorporarem vozes diversas do, assim chamado, terceiro mundo em oposição
a coletâneas internacionais anteriores que, na melhor das hipóteses, marginalizam e,
na pior das hipóteses, silenciam as vozes do “terceiro mundo”11.
Mas uma sondagem adicional dessas três obras louváveis revela sua
cumplicidade (alguns são mais culpáveis do que os outros) no padrão endêmico de 43
colocar em quarentena as vozes do “terceiro mundo” em seções específicas marcadas
por noções predeterminadas das fronteiras intelectuais e epistemológicas de sujeitos
conhecedores do “terceiro mundo”. As supostas obras internacionais usualmente
excluem de sua “seção teórica” as vozes e a presença de mulheres do “terceiro mundo”
(ausentes como produtoras de conhecimento como criadoras de teoria, mas, às vezes,
presentes para “re-materializar”12 ou concretizar a abstração de posições teóricas).
Essas publicações tendem a exilar mulheres do “terceiro mundo” para estudos de
caso e seções de países específicos, insinuando, claro, que essas mulheres podem
falar apenas sobre as questões pertencentes a países específicos de onde elas veem
e não têm a capacidade de explorar complexidades da teoria como uma abstração
como uma intelectual, abstração científica que requer poder cerebral para moldar e
compreender. Escondidas no funcionamento interno dessa suposição ou raciocínio
estão as questões não ditas de raça e localização social. Além disso, esta alocação
de tarefas para sujeitos de pesquisa e seu posicionamento como objetos é colonial
tanto na intenção quanto na execução. Do mesmo modo com a África produziu
matérias primas que a metrópole transformou em produtos manufaturados, as

10 Aquelas cujas jornadas epistemológicas são guiadas pela oralidade (ndi banyi si) não pela escrita (ndi
banyi delu) são levados a teorizar de modo diferente.
11 Os livros resenhados são Center for Women’s Global Leadership (1994); Cook (1994); e Peters; Wolper
(1995).
12 Conferir Smith (1989: 44–46).

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mulheres africanas (como pesquisadoras/estudiosas e como pesquisadas) são
instrumentalizadas: como pesquisadoras/estudiosas, elas são instrumentos para
coletar dados não tratados com os quais estudiosas estrangeiras manufaturam o
conhecimento; como as pesquisadas, elas são os instrumentos por meio dos quais o
conhecimento acadêmico é produzido e carreiras são construídas. Frequentemente
em trabalhos genuinamente colaborativos, as pesquisadoras ocidentais não incluem
as africanas como colaboradoras ou coautoras (no máximo, elas são reconhecidas e
agradecidas como “informantes”).
A s duas últimas décadas viram o aumento de ONGs africanas apoiadas e
financiadas principalmente por ONGs estrangeiras e por instituições e fundações
internacionais. Como Aili Mari Tripp observa em seu estudo sobre o novo ativismo
político na África, o aumento da participação feminina na sociedade civil e governança
deve-se à intervenção de “doadores [que] apoiam os esforços femininos para participar
na educação cívica, na reforma legislativa e constitucional, no treinamento de
liderança, e que fundaram programas para parlamentares femininas” (Tripp, 2001:
144). No entanto, as atividades de ONGs na África levantam questões sérias sobre
a coleta de informações e a construção de conhecimento. Com o empobrecimento
e colapso do sistema de educação superior em muitos países africanos e com a
crescente prática de doadores e ONGs estrangeiros de financiar ONGs locais (não
indivíduos) para projetos, há uma pressão aumentada sobre acadêmicas e estudiosas
africanas para formar e juntar-se a ONGs a fim de receberem financiamento para
44 projetos de pesquisa. Além da acusação usual (e legítima) de que o foco da pesquisa
é frequentemente ditado pelo doador (testemunhe a explosão do número de ONGs
africanas trabalhando na acalorada questão dos anos 90 – a chamada mutilação genital
feminina), há questões mais preocupantes com relação à natureza, aos relatórios e ao
arquivamento da “pesquisa” e a questão mais ampla da responsabilidade. A falta de
reciprocidade entre ONGs do hemisfério norte e suas contrapartes do sul baseia-se
em relações desiguais, em que os primeiros exigem transparência e responsabilidade
dos últimos, mantendo sigilo e não se responsabilizando, em troca. Tal estado das
coisas levou Tandon Yash (1991) a advertir os africanos sobre serem vigilantes e
demandarem de seus parceiros do norte uma “aliança” (e não uma “solidariedade”
unilateral):
O fato de as ONGs ocidentais fornecerem dinheiro para o
“desenvolvimento”... concede-lhes um acesso fácil às ONG
africanas. Periodicamente, as ONGs ocidentais exigem que
seus “parceiros” abram seus livros e seus corações para explicar
o que andaram fazendo com “seu dinheiro”. Isso é chamado de
“avaliação”... As ONGs africanas não têm um tal acesso privilegiado
aos corações e às mentes (e às contas) das ONGs ocidentais das
quais recebem dinheiro. Existe uma lei não escrita que diz que,
onde o dinheiro é gasto, ele deve ser “contabilizado”, mas onde a
informação é fornecida (como as ONGs africanas fazem às ONGs
ocidentais), não é necessária nenhuma prestação de contas sobre
como essa informação é usada. A doutrina da responsabilidade

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financeira é legítima; a doutrina da responsabilidade informacional
não é (Yash, 1991: 74).

Este modelo desequilibrado de responsabilização tem enormes implicações


nos níveis intelectual e epistemológico. Muitas vezes, as informações coletadas pelas
ONGs do sul vêm na forma de dados brutos espremidos em relatórios cujo objetivo é
mostrar os gastos e justificar o uso de fundos. Em tudo isso, pouco ou nenhum esforço
é feito para encorajar as ONGs do sul a transformar suas descobertas e dados em um
empreendimento intelectual. Reivindicando a propriedade total das descobertas e
relatórios, as ONGs do norte (como financiadoras) exercem os direitos de propriedade
de usar (até mesmo abusar) e descartar os materiais entregues, exigindo que as
ONGs do sul (os produtores dos dados) busquem e obtenham sua permissão antes
de usar as descobertas para outros fins. Mas como e por quem os dados são usados​​
é de grande importância. Apesar dos parâmetros restritivos das ONGs, um pequeno
número de acadêmicas e estudiosas africanas afiliadas a ONGs conseguiu produzir
relatórios para satisfazer as condicionalidades de financiamento e, ao mesmo tempo,
usar as descobertas de forma criativa para produzir conhecimento que é disseminado
por meio de publicações acadêmicas – revistas, obras editadas, e assim por diante.
Para participar plenamente na formação do conhecimento sobre a África, as ONGs
africanas não deveriam hesitar em morder o dedo que as alimenta. Especificamente,
elas deveriam estar preparadas para desafiar as instituições doadoras e exigir delas
prestação de contas e responsabilidade, quando necessário, mesmo quando elas 45
buscam seu apoio financeiro. As ONGs deveriam caminhar na linha tênue entre se
beneficiarem das corporações e serem por elas incorporadas.
Em seu ensaio sobre o imperialismo cultural e as exclusões da teoria feminista,
María Lugones e Elizabeth Spelman (1986: 28) também levantam a questão da
responsabilidade da parte de teóricas feministas:

Quando nós falamos, escrevemos e publicamos nossas teorias,


para quem pensamos que devemos responsabilidade? As
preocupações que temos em sermos responsáveis para com “a
profissão” em desacordo com as preocupações que temos em
sermos responsáveis para com aquelas sobre quem teorizamos?...
Por que e como pensamos que teorizar sobre as outras provê a
compreensão delas?

A s preocupações de Spelman e Lugones sobre responsabilização e modos


de ver/saber deveriam ser parte da teorização feminista? Um colega africano uma
vez me disse que a literatura africana, por causa de sua natureza subversiva e
desconstrutiva e de sua posição sobre subjetividade, voz e representação, pode apenas
ser conceitualizada e teorizada no contexto do pós-modernismo: “Apenas a teoria
pós-modernista pode domar e explicar esse gorila de mais de 200 quilos”, ele opinou
com sua risada inimitável dispersada ao meu redor. Minha resposta foi, se esse gorila

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é verdadeiramente africano, deve ter alguns contextos e formulações autóctones
gorilísticas que possam nos guiar para uma conceitualização e teorização melhor e
mais compreensível: “Que tal ‘teoria nmanwu’ ou ainda mais especificamente uma
‘teoria atakata’?”, eu respondi, apanhando e redirecionando a risada dispersa de meu
colega de volta para ele. Na terra Igbo (no sudeste da Nigéria), nmanwu (mascarado)
e iti nmanwu (mascarar-se) são tanto espirituais quanto mundanas. Nmanwu, em sua
indeterminação (um espírito em forma humana), caminha como um pato, grasna
como um pato, mas não é um pato. Nmanwu é um espírito que assume a forma
humana por meio de uma expressão artística que embaça a fronteira entre arte
“alta” e “baixa”. Por meio de sua complexa incorporação e tessitura de prosa, poesia
e “barulho”, o nmanwu cruza fronteiras de gêneros com facilidade. Seu pastiche de
uma narrativa vai de encontro com uma grande narrativa. Indeterminado e ambíguo
em sua conceitualização (espírito em forma humana), brincalhão em sua atitude,
simultâneo em sua promulgação de gêneros diferentes, desconstrutivo em seus
movimentos, multi-perspectivista em seu funcionamento, essa bricolagem de uma
forma de arte (nmanwu) arqueia em direção à formulação “pós-modernista” (mas
não nos esqueçamos que mascarar-se na terra Igbo precede o surgimento do pós-
modernismo no século passado). O akataka, com sua energia e agilidade, é o mais
disruptivo, “fragmentador” e subversivo dos mascarados. Em sua conceitualização,
construção, funcionamento interno/externo e aparição na cena, o akataka
“desconstrói” e descentraliza tudo, enviando subjetividades, multivocalidade e
46 representação voando em todas as direções possíveis. Os Igbo dizem “adiro akwu
ofuebe enene nmawu/ não se pode ficar em um ponto para assistir a uma mascarada” –
um provérbio que levanta significativamente questões de perspectiva e subjetividade.
Enquanto meu colega defende o uso de reflexões teóricas e abstrações do
pós-modernismo para re-materializar ou dar forma à literatura africana, eu advogo
por “construir sobre o autóctone” (conferir a quarta seção) argumentando que, com
efeito, as cosmovisões e pensamentos africanos são capazes de fornecer cabideiro
teórico para pendurar a literatura africana. Pode a teoria akataka ser mais útil para os
produtores de literatura africana (especificamente, Igbo) para entender e explicar a
literatura para si mesmos e para o resto do mundo? Pode o pós-modernismo entender e
explicar-se a si mesmo e ao resto do mundo por meio da teoria akataka? Os requisitos
institucionais e disciplinares, as políticas de publicação e a sobrevivência profissional
podem permitir a intrusão da teoria akataka na fertilização cruzada da elaboração
de teorias? Em suma, por que uma mistura de vozes não se levanta para formular
teoria no contexto da fertilização cruzada de ideias, conceitos e preocupações? A
cultura (como uma força negativa) continua sendo uma questão central nos discursos
feministas (ocidentais), desenvolvimentistas e coloniais sobre o “outro”. A “outra”
cultura pode ser vista de outro modo? Seus conceitos são traduzíveis para a teorização
convencional?

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Cultura, desenvolvimento e feminismo (ocidental)

O discurso do desenvolvimento é parte de um processo imperial


por meio do qual outros povos são apropriados e transformados
em objetos. É uma parte essencial do processo por meio do
qual países “desenvolvidos” gerenciam, controlam e até mesmo
criam o Terceiro Mundo economicamente, politicamente,
sociologicamente e culturalmente. É um processo por meio do
qual as vidas de alguns povos, seus planos, suas esperanças, suas
imaginações são moldadas por outros que frequentemente não
compartilham nem seus estilos de vida, nem suas esperanças,
nem seus valores.
—Vincent Tucker (1999: 1)

O verdadeiro desenvolvimento dos seres humanos envolve


muito mais do que crescimento econômico. Em seu cerne,
deve haver um sentido de empoderamento e de realização
interior. Por si só, isso garantirá que valores culturais e humanos
permaneçam primordiais... Quando isso é atingido, a cultura e
o desenvolvimento irão coalescer naturalmente para criar um
ambiente em que todos são valorizados e todo tipo de potencial
humano pode ser percebido.
—Aung San Suu Kyi (1995: 18)
47
Como processos de relações de poder desiguais, o colonialismo, o
desenvolvimentismo e até mesmo a chamada globalização em curso focalizam mais
no material e menos no humano. O foco do colonialismo em recursos naturais,
instituições e enquadramento é equiparado por foco do desenvolvimentismo em
economia, instituições e processos. O mesmo vale para “o mundo em movimento”
nessa era de globalização, em que recursos, capital e habilidades estão mais “em
movimento” do que certas categorias de humanos – principalmente os pobres, os sem
qualificação e pessoas de cor do chamado terceiro mundo (políticas de imigração de
muitas nações ocidentais são designadas para regular e gerenciar o fluxo). Eu acho a
palavra francesa para globalização (la mondialisation) mais pertinente para a questão
que desejo levantar sobre humanidade e materialidade. La mondialisation, derivada
de le monde com seu significado duplo de mundo físico (materialidade) e pessoas
(humanidade), captura tanto a materialidade quanto a humanidade da globalização.
A humanidade que é na melhor das hipóteses minimizada e na pior das hipóteses
ignorada nos discursos e práticas da globalização em geral toma o centro do palco
nos discursos e práticas que vejo evoluindo na África.
Do colonialismo até o desenvolvimentismo e a globalização, o Ocidente
armou persistentes (e algumas vezes equivocadas) insurgências contra os “regimes
estranhos” que formam as culturas “inaceitáveis” em muitas partes do chamado
terceiro mundo. Utilizando os “regimes estranhos” como justificativa para rebaixar

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os praticantes das culturas abaixo do nível humano, o Ocidente defende que
exorcizar estes sub-humanos de seus “regimes estranhos” os re-humanizará e guiará
para os portões da civilização. Arrogando-se a responsabilidade moral para intervir
para resgatar vítimas mulheres dos “regimes estranhos”, feministas ocidentais
trouxeram à tona debates intensos sobre a concepção de bom, da justiça social e da
responsabilidade moral, nos quais, infelizmente, a humanidade daquelas a serem
resgatadas é relegada ao segundo plano. O ensaio de Susan Moller Okin (1999) sobre
poligamia entre imigrantes africanos na França é instrutivo. O ensaio de Okin fala
eloquentemente dos conflitos entre liberalismo, multiculturalismo e feminismo.
Ela argumenta pela obrigação da democracia liberal de intervir na resolução desses
conflitos, particularmente nas chamadas minorias culturais não responsivas quanto
aos direitos das mulheres. No entanto, defendendo a intervenção universalista, o
ensaio apoia-se principalmente na seguinte assertiva de Okin:

No final de 1980, por exemplo, uma controvérsia pública aguda


irrompeu na França sobre se as garotas Magrébin podiam ir à
escola usando os lenços de cabeça tradicionais mulçumanos
resguardados como vestuário apropriado para jovens mulheres
pós-pubescentes... Ao mesmíssimo tempo, no entanto, o público
estava praticamente calado sobre um problema vastamente mais
importante para muitas imigrantes mulheres africanas e árabe
francesas: a poligamia (Okin, 1999: 9 – grifo meu).
48
Mas aqueles de nós que fizeram trabalhos sobre/com as comunidades
imigrantes na França sabem bem que para elas os problemas “vastamente mais
importantes” são le racisme (o racismo) e le chômage (o desemprego). La polygamie
(a poligamia) surge em uma distante terceira linha ou até mais abaixo. Okin culpa
a poligamia pelos conflitos conjugais debilitando as famílias imigrantes africanas
amontoadas em um espaço de habitação inadequado13. Não devemos esquecer de
que numerosas famílias imigrantes africanas monogâmicas também enfrentam o
mesmo problema da inadequação do espaço de habitação. Como as famílias sempre
querem o melhor para si mesmas, pode-se argumentar que famílias imigrantes
africanas (monogâmicas e poligâmicas) compartilham espaços habitacionais porque
é isso que podem pagar. Parece-me que deveria se propor um argumento econômico
nesta instância. Mas o ensaio de Okin salta de lenços mulçumanos para a poligamia
(os chamados símbolos de opressão cultural e religiosa pelos quais o Ocidente não
é responsável), passando por cima do racismo (no qual o Ocidente está implicado)
para abrir terreno para debates sobre culturas mulçumanas e africanas, relativismo
cultural, multiculturalismo, universalismo e responsabilidade moral, por um lado, e,
por outro lado, para assertivas infinitas sobre “culturas minoritárias” (leia-se culturas
não Ocidentais) e “culturas majoritárias” (leia-se culturas Ocidentais). Muitos

13 Se espaço habitacional é a chave para casamentos harmoniosos, a taxa de divórcios em Beverly Hills
(com suas numerosas mansões) seria uma das mais baixas no mundo!

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estudiosos proeminentes juntaram-se ao debate para produzir um livro do mesmo
título sem qualquer tentativa séria de questionar a afirmativa fundamental em que
o ensaio de Okin se apoia. Quando políticas e práticas de imigração equivocadas
juntam forças com o racismo para produzir uma subclasse para as famílias imigrantes
desempregas e pobres, nós culpamos sua cultura (poligamia) ao invés de culparmos
sua situação socioeconômica14! O ultraje moral dos intervencionistas universalistas
não deveria ser igualmente dirigido para o que aflige os imigrantes – o racismo e o
desemprego?
Mas quando certos atos se tornam “cultura”? Assassinatos de cônjuges (por
armas de fogo, facadas, injeção letal, atropelamento com carro etc.) são excessivos
nos Estados Unidos e são frequentemente descritos pelos americanos como “crimes
passionais”. Mais mulheres são estupradas nos Estados Unidos do que na maioria dos
países africanos, mas os americanos descrevem o problema como “violência contra
as mulheres”, não como “cultura”. Em março de 2003, 171 países (cerca de 90 porcento
dos membros das Nações Unidas) tomam parte na Convenção da Eliminação de Toda
Discriminação contra as Mulheres, de 1979, e os Estados Unidos é um dos poucos
países que não ratificaram a convenção. É de se pensar porque os participantes
das conferências da ONU (de Nairóbi a Pequim) não se mobilizaram para ajudar
as mulheres americanas endereçar a não ratificação da convecção pelos E.U.A. ao
mesmo tempo em que se mobilizaram para discutir poligamia, casamento infantil,
entre outros. As mulheres do “terceiro mundo” têm a responsabilidade moral para
intervir em favor das mulheres oprimidas dos Estados Unidos? As mulheres “terceiro- 49
mundistas” podem ser alistar ou obter permissão para se convidarem a exercitar essa
obrigação moral? Mulheres em muitas partes do “terceiro mundo” contestam a ideia
da intervenção unidirecional. Intervenções deveriam ter permissão para cruzar e
recruzar fronteiras no espírito de um verdadeiro “feminismo global”.
Frequentemente, as intervenções (morais e outras) não pretendem salvar
as “vítimas”, mas ao invés disso transformá-las na imagem das intervencionistas,
como a narrativa de Mark Beach acerca da “impossibilidade” de tirar uma fotografia
“individual” em um vilarejo (Piela) em Burquina Faso demonstra. Beach, um fotógrafo
americano da Pensilvânia, viajou para Burquina Faso para tirar fotos “individuais”
para um projeto fotográfico intitulado Sonhos de Nossos Vizinhos, comissionado
pelo Comitê Central Menonita (CCM), em 1995. No entanto, as coisas não deram
muito certo quando chegou a hora de ele tirar fotos “individuais” de Sibdou Ouada,
uma enfermeira pediátrica e esposa de um pastor local, que nunca foi questionada se
ela gostava de posar para fotografias “individuais”:

14 A situação de imigrantes africanos na França é muito mais complexa do que a explicação cultural que
é oferecida aqui. Utilizando o mantra “minha cultura me fez fazer isso” para contextualizar e explicar a
situação dos povos do “terceiro mundo” não é mais aceitável. Não surpreendentemente, um dos ensaios
nesta obra carrega esse mantra como título.

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Quando o momento de fotografar finalmente chegou, pedi a
Sibdou para ficar onde a luz ambiente natural era particularmente
atrativa. Sibdou concordou; então, prontamente chamou seus
quatro filhos, os gêmeos e um filho e filha mais velhos, para
rodearem-na. Como eu queria apenas Sibdou na foto, me vi
confrontado por um problema. Como compromisso, fiz várias
imagens da família e algumas com crianças ao fundo enquanto
planejava a próxima locação onde eu poderia ter sucesso em fazer
um retrato individual. Sibdou concordou em ficar no vão da porta
de sua varanda para a próxima série de imagens. Pedi que apenas
ela estivesse na foto. Ela sorriu e prontamente chamou seus filhos
para rodearem-na. Em um esforço tolo para isolar Sibdou no
enquadramento, movi minha câmera levemente, esperando que
pudesse cortar os filhos fora quando imprimisse a fotografia na
câmara escura. Ao mover da câmera, Sibdou e seus filhos todos
moveram-se em conjunto. Primeiro de um jeito e então de volta
ao anterior. Sibdou finalmente posicionou os gêmeos a sua frente.
Fui vencido. Talvez tenha sido o calor seco de Burquina Faso ou os
longos dias fazendo fotografias e entrevistas, mas eu finalmente
entendi que uma fotografia de Sibdou significava uma fotografia
de sua família. Não havia distinção. Sibdou sabia disso. Ela estava
apenas esperando que eu também entendesse isso. Quando
finalmente tirei duas fotografias de Sibdou sozinha, elas eram
imagens solitárias. Sibdou permaneceu desconfortavelmente em
50 frente da câmera (Beach, 1995: 1–2).

Duas questões pertinentes surgem desse encontro entre Mark Beach (o centro)
e uma mulher em um vilarejo distante e remoto na África, Sibdou Ouada (a margem).
Primeiro, em colisão estão, por um lado, a noção de Sibdou sobre self, de identidade e
de lugar no esquema de coisas e, por outro lado, o desejo de Beach de refazer Sibdou
de acordo com sua percepção de ser – individual, de pé sozinha, tendo um espaço
pessoal. Segundo, o relato do evento alega que Beach aprendeu sobre individualismo
ao fotografar uma enfermeira na África Ocidental. Mas isso não é o que essa história
ensinou a Beach. Era ele quem estava ensinando Sibdou sobre individualismo e
Sibdou, em troca, o ensinou sobre comunidade, aliança e conexão. Dizer que Beach
aprendeu sobre individualismo é conformar o que nós já sabemos – que imperialistas
e colonialistas nunca aprendem com os colonizados: eles os ensinam. Eles não fazem
perguntas; eles fabricam respostas em busca de perguntas. Cruzar fronteiras tem
seus perigos, sua sedução, sua imprevisibilidade, seus momentos humildes, mas
também tem suas recompensas enriquecedoras. Cruzar fronteiras propicia aprender
sobre o “outro”, mas, mais importante, também deveria propiciar aprender com o
outro. Aprender sobre é um gesto que é frequentemente tingido de arrogância e de
um ar de superioridade; aprender com requer uma dose maior de humildade tingida
com civilidade. Aprender sobre frequentemente produz interrogadores arrogantes;
aprender com requer ouvintes humildes.

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A cultura, como uma arena de conflito ideológico e político, precisa de
escrutínio rigoroso e constante para separar a realidade da invenção ou traçar
a transformação da invenção em realidade. A cultura é dinâmica no sentido de
que deriva seus significados, evolução e reformulação dos encontros com e das
negociações das pessoas nela no contexto dos imperativos históricos. A validade de
linhas claras traçadas entre as culturas é seriamente testada, particularmente nessa
era de globalização. A observação de Christopher Miller (1993: 216) de que “culturas,
nações, e esferas como ‘o Ocidente’ não existem em isolamento”, mas em constante
contato com outras esferas por milênios é apoiada pela articulação eloquente de
James Clifford (1986: 24) sobre como “poesis e políticas culturais” participam na
“constante reconstituição dos eus e dos outros por meio de exclusões específicas,
convenções e práticas discursivas”. Ao escrever sobre culturas, etnógrafos também
escrevem culturas; ao revelar, explicar e associar significados a culturas, etnógrafos
criam culturas:

[c]omo discurso profissional que elabora sobre o significado


de cultura para prestar contas, explicar e entender a diferença
cultural, a antropologia acaba também construindo, produzindo
e mantendo a diferença. O discurso antropológico ajuda a dar à
diferença cultural (e à separação entre grupos de pessoas que ela
implica) o ar de auto evidente (Abu-Lughod, 1993: 12).

51
Lila Abu-Lughod propõe que uma reificação mitigada de cultura seja
realizada através da “escrita contra cultura” que focaliza as interconexões entre a
posicionalidade do pesquisador e pesquisado e um afastamento dos sujeitos coletivos
para as “etnografias do particular”15 . O discurso e a prática do desenvolvimento têm
a ganhar com o desenvolvimento do particular. Até que o desenvolvimento assuma
uma face humana e individual, em vez do anonimato do coletivo (os pobres, os
necessitados), ele permanecerá uma meta irrealizável no “terceiro mundo”.
O objetivo será alcançado por meio de um esforço honesto para humanizar
os processos de desenvolvimento e não assumindo que o crescimento econômico
garante o desenvolvimento. A verdade da questão é que as pessoas necessitadas são
seres complexos como a maioria das outras pessoas – comem, trabalham, amam,
fazem compras, dançam, riem, choram, vão passear, abraçam os filhos e assim por
diante. Despojá-los de sua complexidade é negar-lhes sua humanidade. Impulsionados
por considerações humanistas, as organizações filantrópicas e as agências de
desenvolvimento, bem-intencionadas em sua maioria, desumanizam sua tentativa de
humanizar. Como argumentei em outro lugar (Nnaemeka, 1997), a cultura não deve
ser descartada como um fator negativo ou neutro no desenvolvimento; em vez disso,
devem ser feitas tentativas para descobrir de que maneiras a cultura é uma força
positiva que pode servir bem ao desenvolvimento. Como Aung San Suu Kyi (1995)

15 Conferir Abu-Lughod (1991: 149–157).

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enfaticamente argumenta, o homem não deveria ser uma ferramenta econômica
para o desenvolvimento:

[q]uando a economia é considerada como a chave mais importante


de todas as fechaduras de todas as portas, é apenas natural que
o valor do homem venha a ser decidido em grande parte, até
mesmo integralmente, pela sua eficácia como instrumento
econômico. Isto está em desacordo com a visão de um mundo
onde as instituições econômicas, políticas e sociais trabalham
para servir ao homem em vez do contrário; onde a cultura e o
desenvolvimento coalescem para criar um ambiente no qual o
potencial humano possa ser plenamente realizado (Kyi, 1995: 13).

Nas últimas décadas, o processo de desenvolvimento na África foi marcado


pelos pontos cegos em sua conceituação e pelas deficiências em sua articulação e
implementação. O processo de desenvolvimento, como é projetado de fora e “ de
cima”, arrastou os africanos, deixando para trás os ideais africanos de humanidade,
responsabilidade, compromisso e verdadeira parceria no coração dos valores
democráticos que teriam suavizado as arestas do chamado desenvolvimento na
teoria e na prática. É para a questão de construir sobre os autóctones nos processos
de desenvolvimento que eu me volto agora.

52
Medi(A)ções africanas: Negofeminismo, construir sobre o autóctone
e (re)clamar o terceiro espaço

Quando algo se põe de pé, algo se põe a seu lado.


—Provérbio Igbo

Uma pessoa é uma pessoa por causa de outras pessoas!


—Provérbio Sotho

Uma cabeça não pode entrar em consenso.


—Provérbio Ashanti

O céu é vasto o bastante para todos os pássaros voarem sem


colidir.
—Provérbio Iorubá

O espaço ocorre como o efeito produzido pelas operações que o


orientam, o situam, o temporalizam e o fazem funcionar em uma
unidade polivalente de programas conflitantes ou proximidades
contratuais... Em oposição ao lugar, ele não tem, portanto,
nada da univocidade ou da estabilidade de um “próprio”.
—Michel de Certeau (1984: 117)

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Ao documentar as características do feminismo africano, observei em outro
lugar que:

para explicar de forma significativa o fenômeno chamado


feminismo africano, é preciso fazer referência não ao feminismo
ocidental, mas sim ao ambiente africano. O feminismo africano
não é reativo; é proativo. Tem uma vida própria que está enraizada
no ambiente africano. Sua singularidade emana da especificidade
filosófica e cultural de sua procedência (Nnaemeka, 1998ª: 9).

Armada com o conhecimento da visão de mundo africana como inscrita


nos provérbios (conferir acima) e enriquecida por muitos anos de colaboração
com estudiosas e ativistas baseadas na África em processos de desenvolvimento e
movimentos sociais, tentarei aqui usar as práticas de estudiosas/ativistas africanas
para formular e nomear uma estrutura que descreva seu engajamento, uma vez
que este está enraizado nos autóctones. Eu defendo que a teoria feminista africana
deveria ser construída sobre os autóctones, da mesma forma que Claude Ake (1988)
defende que para o desenvolvimento fazer algum progresso na África, maior atenção
deve ser dada para “construir sobre o autóctone”:

Não podemos avançar significativamente no desenvolvimento


da África, a menos que levemos a sério as sociedades africanas 53
como elas são, não como deveriam ser ou como poderiam ser;
que o desenvolvimento sustentável não pode ocorrer a menos que
construamos sobre os autóctones. Agora, o que é o autóctone e
como podemos construí-lo? O autóctone não é o tradicional, não
há existência fossilizada do passado africano disponível para a
qual voltarmos, há apenas novas totalidades, ainda que híbridas,
que mudam a cada dia que passa. O autóctone refere-se a o que
quer que as pessoas considerem importante em suas vidas, o
que quer que resguardem como uma expressão autêntica de si
mesmas. Construímos sobre o autóctone, ao determinar a forma
e o conteúdo da estratégia de desenvolvimento, ao garantir que a
mudança desenvolvimentista se adapte a essas coisas, sejam elas
valores, interesses, aspirações e/ou instituições sociais que são
importantes na vida das pessoas (Ake, 1988: 19).

A distinção que Ake faz entre o tradicional e o autóctone é importante,


porque nos liberta da noção reificada de cultura ao ser evocada pela “tradição”
para abrir espaço para o funcionamento do agora e do então, do aqui e do lá – um
dinâmico híbrido em evolução de diferentes histórias e geografias. Construir sobre
o autóctone cria o sentimento de propriedade que abre a porta para um processo
democrático e participativo, onde a imaginação, os valores e as visões de mundo das

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partes interessadas são levadas em consideração ao mitigar a alienação das partes
interessadas, que poderia resultar na invalidação de seus valores e visões de mundo.
Na minha opinião, o trabalho das mulheres na África localiza-se na fronteira
onde a academia encontra o que está além de si, um terceiro espaço onde o imediatismo
das experiências vividas dá forma à teoria, permite o gesto simultâneo de teorizar
a prática e de praticar a teoria e antecipa a mediação da política, assim rompendo a
noção de academia e de ativismo como lugares estáveis. Minha escolha por espaço
e não por lugar ou local ao mapear o que chamo de terceiro espaço é informada
pela distinção que Achille Mbembe (2000) faz entre lugar e território em seu ensaio
sobre fronteiras, territorialidade e soberania na África. Ao mapear seus argumentos,
Mbembe retoma o trabalho de Michel de Certeau sobre espacialidade, A invenção do
quotidiano (A prática da vida cotiana):

Um lugar, como aponta Michel de Certeau, é uma configuração


instantânea de posições. Ele implica uma estabilidade. Já um
território é fundamentalmente uma intersecção de corpos
moventes. É definido essencialmente por um conjunto de
movimentos que tomam lugar dentro dele. Visto dessa forma,
é um conjunto de possibilidades a que atores historicamente
situados resistem ou que realizam constantemente (Mbembe,
2000: 261).

54
Na minha opinião, o espaço apresenta uma noção expansiva de terreno
que permite a interação de resistências e realizações no cerne da fronteira e do
engajamento crítico que eu chamo de negofeminismo – o ramo do feminismo que eu
vejo se desdobrar na África.
Mas o que é o negofeminismo? Primeiro, o negofeminismo é o feminismo
da negociação; segundo, negofeminismo significa feminismo do “não ego”. Na
fundamentação de valores compartilhados em muitas culturas africanas estão os
princípios da negociação, dar e receber, compromisso e equilíbrio. Aqui, negociação
tem o dublo sentido de “dar e receber/troca” e de “lidar com sucesso/dar a volta”. O
feminismo africano (ou o feminismo como o vi sendo praticado na África) desafia
por meio de negociações e de acordos.
Ele sabe quando, onde e como detonar as minas terrestres patriarcais;
também sabe quando, onde e como contornar as minas terrestres patriarcais. Em
outras palavras, ele sabe quando, onde e como negociar com ou negociar em torno
do patriarcado em contextos diferentes. Para as mulheres africanas, o feminismo é
um ato que evoca o dinamismo e as mudanças de um processo oposto à estabilidade
a à reificação de um constructo, uma estrutura. Meu uso de espaço – o terceiro
espaço – propicia o terreno para o desdobramento do processo dinâmico. Além disso,
o negofeminismo é estruturado por imperativos culturais e moldado por exigências
globais e locais em constante mudança. A teologia da proximidade fundada no
autóctone instala o feminismo na África como uma performance e como um ato

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altruísta16. As mulheres africanas fazem feminismo; feminismo é o que elas fazem
para si mesmas e para os outros17. O restante desta seção examinará como as mulheres
africanas negociaram espaços pedagógicos e disciplinares e ainda abordaram
questões de gênero, língua e prática.
A aula de estudos femininos no Ocidente (nos Estados Unidos, especificamente)
funciona em um ambiente feminizado (todas/quase-todas-mulheres) em oposição ao
contexto com gênero (uma mistura saudável entre mulheres e homens) em vigor nas
aulas e conferências de estudos femininos na África 18. Uma sala de aula homogênea
(em termos de sexo, ao menos) que é anestesiada pelo conforto do familiar/“lar”
precisa da “estranheza” que desafia e promove a auto avaliação; ela precisa do
diferente, do fora do comum, que desfamiliariza ao promover perspectivas múltiplas
e desafios enraizados na heterogeneidade.
Uma análise da diferença entre o desenvolvimento dos estudos femininos como
uma disciplina na África e no Ocidente (nos Estados Unidos, por exemplo) é útil para
abordar as questões de negociação e utilidade social do conhecimento acadêmico que
levantei acima. Um exemplo será suficiente. A inauguração e o desenvolvimento do
Departamento de Estudos Femininos na Universidade de Makerere, em Uganda, são
devidos a uma combinação de forças internas e externas – por um lado, o movimento
global de mulheres e a comunidade internacional de desenvolvimento, e, por outro
lado, os esforços coletivos e individuais de estudiosas e ativistas ugandenses assim
como as ONGs locais como a Action for Development/Ação para o Desenvolvimento
(ACFODE) e a Ugandan Association of University Women/Associação Ugandense 55
de Mulheres Universitárias (UAUW). Sensíveis a perspectivas diversas (nacional,
regional e internacional) sobre as questões femininas, o comitê da Universidade
de Makerere encarregado de elaborar o currículo do programa convidou para
participação especialistas da Zâmbia, do Zimbábue e dos Estados Unidos. De seu
início, nos anos 1990 – com cinco membros docentes e treze estudantes de mestrado
– a 1995, o departamento matriculou em seu programa de mestrado cinquenta e
quatro estudantes, seis dos quais eram homens. O programa de estudo inclui quatro
semestres de disciplinas, seguidos por pesquisa de campo e submissão de dissertação
(Mwaka, 1996).

16 Tome, como exemplo, o provérbio Igbo, ife kwulu, ife akwudebie/quando algo se põe de pé, algo se
põe a seu lado. A atitude de Sibdou Ouda durante a “seção de fotos” (de acenar para seus filhos se porem
ao lado dela) é uma encenação vívida desse provérbio.
17 Conferir Nnaemeka (1998a: 5) Conferir também nota 2, acima, em que uma das participantes africanas
exclamaram “diga a ela [Nussbaum] que não foi para isso que viemos aqui”. Uma participante africana
fez um comentário semelhante quando a luta por supremacia irrompeu entre feministas, mulheristas
e mulheristas africanas na primeira conferência Mulheres na África e a Diáspora Africana (WAAD).
Conferir Nnaemeka (1998a: 31, n. 3).
18 Na primeira conferência internacional WAAD que organizei em Nsukka, Nigéria, em 1992, cerca de 30
porcento dos participantes eram homens. Aproximadamente a mesma porcentagem participou da Terceira
conferência WAAD, em Madagascar. A conferência Mundo das Mulheres acontecida em Kampala, Uganda,
em 2002, também atraiu muitos participantes/palestrantes homens. Na primeira conferência WAAD, algumas
participantes estrangeiras reclamaram da presença de homens (conferir Nnaemeka 1998b: 363–64). Ouvi a
mesma reclamação do mesmo público na conferência de Kampala, em 2002.

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O programa em Makerere é iniciado e mantido por um sentido forte de utilidade
social do conhecimento acadêmico e a necessidade de inclusão (particularmente em
termos de gênero), e essas considerações são responsáveis pelas diferenças entre esse
programa e programas nos Estados Unidos. Mais importante, os programas em estudos
femininos nos Estados Unidos não se iniciam como programas de pós-graduação;
normalmente, eles começam como programas interdisciplinares sem titulação antes
de adquirirem o status de “departamento” que os permitem conceder o título de
bacharelado e subsequentemente de os títulos de pós-graduação. O Departamento
de Estudos Femininos em Makerere começou com um programa de mestrado devido
a sua missão de conectar o trabalho acadêmico à política, à advocacia e a outros
empreendimentos do desenvolvimento. Sensíveis à utilidade social do trabalho
acadêmico, o programa procurou produzir pessoal que sensibilize a sociedade sobre
questões de gênero, apoiar o trabalho de ONGs e prover pessoal para o Ministério de
Gênero e Desenvolvimento Comunitário. Em tudo isso, a exclusão de gênero não foi
lançada como uma barreira para obstruir a colaboração significativa entre mulheres
e homens. Apesar de nem todos os programas em estudos femininos na África serem
moldados com o exemplo ugandense, eles normalmente arqueiam em direção à
inclusão de gênero e à relevância social.
A s negociações que são feitas em nível de gênero e língua também são
enraizadas no autóctone:

56 [p]adrões africanos de feminismo podem ser vistos como tendo


se desenvolvido dentro de um contexto que vê a vida humana de
uma perspectiva total, ao invés de uma dicotômica e exclusiva.
Para as mulheres, o homem não é ‘o outro’, mas parte do mesmo
humano. Cada gênero constitui a metade crítica que faz a inteireza
humana. Nem sexo é totalmente completo em si mesmo. Cada
um tem e precisa de um complemento, apesar de possuir aspectos
únicos próprios (Steady, 1987: 8).

A disposição e a prontidão das mulheres africanas para negociar com e


contornando os homens mesmo em circunstâncias difíceis é bastante penetrante.
Como a escritora camaroniana, Calixthe Beyala (1995, p. 7), coloca no início de seu
livro, Lettre d’ une Africaine à ses soeurs occidentales, “Soyons clairs: tous les hommes
ne sont pas des salauds” (Vamos admitir, todos os homens não são cretinos). Vou
interpretar que isso significa que alguns homens são cretinos! Mas vamos nos ater ao
fraseamento mais benevolente da questão elaborado por Beyala. Um outro exemplo
é também de uma escritora africana francófona, Mariama Bâ, do Senegal, que
dedicou seu belo romance, Une si longue lettre (1980), a muitos públicos, incluindo
“aux hommes de bonne volonté” (para os homens de boa vontade). Isso, é claro,
exclui os cretinos entre eles! Ao não lançar uma mortalha sobre os homens como
um monólito, as mulheres africanas são mais inclinadas a buscar e trabalhar com
os homens alcançando objetivos estabelecidos. Políticas sexuais eram enormes no

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feminismo ocidental cerca de duas décadas atrás, mas seria impreciso sugerir que as
políticas não existem mais; elas não são passé. Na minha perspectiva, o feminismo
ocidental abaixou o volume quanto às políticas sexuais, mas os resíduos são ainda
uma força motriz. A resistência em instituições nos Estados Unidos (incluindo a
minha) em mudar programas de estudos femininos para programas de estudos de
gênero está enraizada principalmente no argumento de que as questões femininas
serão relegadas ao banho-maria em programas de estudos de gênero19. Não vejo um
argumento similar florescendo na África20. A língua do engajamento feminista na
África (colaborar, negociar, comprometer) vai de encontro à língua do engajamento
e do conhecimento acadêmico feminista ocidental (desafiar, romper, desconstruir,
implodir etc.), como exemplificado no excelente livro de Amy Allen (1999) sobre a
teoria feminista, na qual a autora afirma que as feministas estão interessadas em
“criticar, desafiar, subverter e fundamentalmente em derrubar os eixos múltiplos de
estratificação que afetam as mulheres” (Allen, 1999: 2). O feminismo africano desafia
por meio da negociação, da acomodação e do compromisso.
A negociação com espaços privados de Sibdou Ouada é indicativa das
negociações das mulheres africanas com a prática cotidiana. As mulheres africanas
estão trabalhando para a mudança social construída sobre o autóctone ao definir e
moldar seus conflitos feministas com deferência para imperativos locais e culturais.
Por exemplo, quando informadas de que alguns governos estaduais se recusaram a
implementar a política governamental federal de dar subsídios habitacionais para
servidoras públicas casadas, Ifeyinwa Nzeako, a Presidente do Nigerian National 57
Council of Women’s Societies/Nacional do Conselho Nacional Nigeriano de
Sociedades de Mulheres (NCWS), ao invés de brigar sobre a desigualdade de gênero
na alocação dos benefícios adicionais, emitiu uma declaração apontando que políticas
discriminatórias ferem as mulheres ao privá-las dos benefícios para sustentarem seus
filhos. Sabendo como negociar espaços culturais, a liderança do Conselho deslocou o
argumento da igualdade de gênero para o bem-estar familiar/das crianças e atingiu
seus objetivos. Em Burquina Faso, a prática do “ je retiens/eu me contenho” ajudou as
mulheres a levantar capital inicial para empreendimentos empresariais21.

19 Algumas instituições negociaram um acordo – um programa de estudos de gênero e femininos.


20 Um dos centros mais proeminentes na África (em Cape Town, África do Sul) para o estudo de
mulheres assumiu o nome de Instituto Africano de Gênero, sem ambiguidades.
21 Essa é uma prática pela qual as mulheres retêm parte de sua economia doméstica para construir
capital suficiente para investir em um empreendimento de negócios que beneficiará a elas e a suas
famílias. Primeiro, elas negociam com/contornando o patriarcado para levantar capital, e, depois, elas
negociam espaços privados e públicos ao colocarem o capital em uso. Muitas das mulheres investem
dinheiro em um quiosque ou uma loja de frente a suas casas o que lhes permite serem donas de casa e
mulheres de negócios simultaneamente.

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Conclusão: cruzar fronteiras e o caminhar do camaleão

Desfiguraram o legado dos anos 1960… o que eu quero dizer


com os legados dos anos 1960 em termos políticos tradicionais
são ativismo político e engajamento em nome de igualdade,
democracia e tolerância.

—Wini Breines (1996: 114)

O negofeminismo na África está vivendo aqueles legados na teoria, na prática


e nas questões de políticas. O engajamento das mulheres africanas ainda nutre o
compromisso e a esperança necessários para construir uma sociedade harmoniosa.
Quanto à teoria, Barbara Christian (1995) corretamente observou que pessoas de
cor teorizam de modo diferente. Mas pode a teoria feminista criar o espaço para o
desdobramento da teorização “diferente” não como um engajamento isolado fora da
teoria feminista, mas como uma força que pode ter um poder desfamiliarizador sobre
a teoria feminista? Em outras palavras, ver a teorização feminista por meio dos olhos
da “outra”, do “outro” lugar, por meio da visão de mundo da “outra” tem a capacidade
de desfamiliarizar a teoria feminista como a conhecemos e ajudá-la não apenas a
interrogar, compreender e explicar o não-familiar, mas também a desfamiliarizar
e refamiliarizar o familiar de maneiras mais enriquecedoras e produtivas. Assim,
58 o foco será não no que a teoria feminista pode fazer em termos de explicar outras
vidas e outros lugares, mas em como a teoria feminista é e pode ser construída.
Nesta instância, os ocidentais são guiados através de fronteiras de modo que possam
cruzar de volta enriquecidos e desfamiliarizados e prontos para fazer o familiar de
uma nova maneira. Como lidamos com a teorização emanando de outros centros
epistemológicos no chamado terceiro mundo? Como entramos em acordo com a
multiplicidade de centros ligados por coerência e deciframento e não perpetuamente
interrompidos por diferenças infinitas?
Em minha percepção das questões levantadas neste artigo sobre intervenção,
cruzamento de fronteiras, turfism, interseccionalidade, compromisso e acomodação,
concluirei com um conselho de meu tio-avô. Na véspera de minha partida para cursar
a pós-graduação em obodo oyibo (a terra dos brancos), meu tio-avô me chamou
em seu obi (quarto privado) e entoou essa nota de cautela: “Minha filha”, ele disse,
“quando você for para obodo oyibo, ande como o camaleão”22 . De acordo com meu
tio-avô, o camaleão é um animal interessante para se observar. As it walks, it keeps
its head straight but looks in different directions. Ele não se desvia de seu objetivo e
fica mais sábio por meio do conhecimento recolhido das diferentes perspectivas que
22 É importante observar que ele não me aconselhou a ser como o camaleão, mas, ao invés disso, a
caminhar como o camaleão. A indeterminação implicada em ser como um camaleão não está perdida
para o meu povo (Igbo) que denuncia o comportamento de camaleão em humanos – ifu ocha icha, ifu
oji ijie (quando você vê branco, você se torna branco; quando você vê preto, você se torna preto). Ao
me aconselhar a caminhar como um camaleão, meu tio-avô leva a metáfora do camaleão a direções
diferentes.

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absorve ao longo do caminho. Se vir uma presa, ele não salta sobre ela imediatamente.
Primeiro, ele lança sua língua. Se nada acontecer com sua língua, ele avança e agarra
sua presa. O camaleão é cauteloso. Quando chega a um novo ambiente, toma a
cor do ambiente sem dominá-la. O camaleão se adapta sem se impor. Do que quer
que escolhamos chamar nosso feminismo é prerrogativa nossa. No entanto, nessa
jornada que é o engajamento feminista, precisamos caminhar como o camaleão –
orientadas pelo objetivo, cautelosas, obsequiosas, adaptáveis e abertas para visões
diversas. Negofeministas dariam atenção ao conselho de meu tio-avô.

Estudos Femininos/Franceses
Universidade de Indiana, Indianápolis

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Revolução do feminismo negro!1
RESUMO

Este texto, que serviu de introdução a uma coletânea de textos fundadores do


feminismo negro estadunidense, faz um percurso historiográfico das diversas etapas
desse movimento, as chamadas “ondas”, desde a primeira delas, surgida na década de
1850 e promovida pelos movimentos de abolição da escravatura nos Estados Unidos,
passando pela segunda, representada pelas grandes correntes ativistas e teóricas da
década de 1970, até a atual “terceira onda”, em que se faz um questionamento crítico
da heteronormatividade ainda muito presente nas primeiras fases do feminismo que
foram, essencialmente, feminismos brancos. A autora faz uma detalhada análise
crítica da terminologia que, desde sempre, tem sido empregada para qualificar ou,
antes, desqualificar a mulher negra na sociedade estadunidense, com a criação de
pesados estereótipos a respeito da sexualidade supostamente exacerbada, não só do
homem negro, mas principalmente da mulher negra. Elsa Dorlin passa em revista as
importantes contribuições do coletivo Combahee e de autoras como Laura Alexandra
Harris, Beverly Guy-Shefall, Patricia Hill Collins, Kimberly Springer, Michele Wallace,
Barbara Smith, Audre Lorde, Hazel Carby, Angela Davis e bell hooks.

Palavras chave: feminismo; feminismo negro; Estados Unidos.

ABSTRACT
63
This paper, which was an introduction to an anthology of seminal texts of the
American Black feminism, draws a historiographical trajectory of the many phases of
this movement, the so-called “waves”, since the first one, in the 1850’s, when women
stuggled for the abolition of slavery in the US, through the second wave, in the 1970’s,
with its great activist and theoretical currents, until the present day’s third wave, in
which the heteronormativity still present in the precedent phases, essentially white
women’s feminism, is questioned. The author presents a detailed critical analysis
of the terminology that, since the beginning, has been used to qualify or, rather,
disqualify the Black women in the American society, though heavy stereotypes about
the supposedly abnormal sexuality of not only Black men but especially Black women.
Elsa Dorlin reviews the important contributions of the Combahee River Collective
and of authors such as Laura Alexandra Harris, Beverly Guy-Shefall, Patricia Hill
Collins, Kimberly Springer, Michele Wallace, Barbara Smith, Audre Lorde, Hazel
Carby, Angela Davis e bell hooks.

Keywords: feminism; Black feminism; United States.


1 Texto introdutório da obra Black Feminism. Anthologie du féminisme africain-américain, 1975-2000
(2008), organizado por Elsa Dorlin. Agradecemos à autora por ceder os direitos de tradução do presente
texto. Tradução brasileira de Dennys Silva-Reis e Marcos Bagno.

Elsa Dorlin
Filósofa francesa e professora Universitária. Dentre suas obras, pode-se citar: Sexe, genre et sexualités :
introduction à la théorie féministe (2008), La matrice de la race : généalogie sexuelle et coloniale de la
nation française (2006) e Se défendre : une philosophie de la violence (2017).

ISSN: 1807 - 8214


Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88
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Esta coletânea de textos do pensamento e do movimento feministas africanos-


americanos (1975-2000) é a primeiro do gênero na França. Enquanto nos estudos e nos
movimentos feministas franceses contemporâneos as referências ao Black feminism
têm se tornado cada vez mais frequentes desde o início dos anos 2000 (Bessière,
2003; Dorlin, 2003/2004; Cahiers du Genre, 2005; Poiret, 2005; Benelli, Delphy,
Falquet, Hamel, Hertz, Roux, 2006), a ausência de tradução dos textos fundamentais
dessa corrente limitava seu acesso. Passagem agora obrigatória das problemáticas
feministas, de gênero e de sexualidade na França, o corpus do feminismo africano-
americano, como o do feminismo chicana2 ou indiano (Haase-Dubosc, John, Marini,
Melkote, 2003), constitui um recurso teórico e político indispensável, no momento
em que a questão da articulação entre sexismo e racismo caracteriza, entre outras
coisas, aquilo que convém chamar de terceira onda do feminismo francês (Bessin,
Dorlin, 2005/2006). Se o feminismo negro norte-americano se tornou o hóspede
incontornável de nossos textos universitários, e até de nossos panfletos, de nossos
imaginários teóricos e políticos, em que pé está o feminismo negro “francês”? Assim,
as referências ao feminismo africano-americano evidenciam ao mesmo tempo a
ausência, a ignorância e a emergência de um feminismo negro na França3.

64 Do uso correto da tradução

A expressão Black feminism, traduzida nos textos por “ féminisme Noir”


[“feminismo negro”], recobre o pensamento e o movimento feministas africano-
americanos na medida em que diferem do feminismo estadunidense “em geral”,
precisamente criticado e reconhecido por seu “solipsismo branco” (Rich, 1979),
herdeiro a contragosto da famosa “linha de cor” produzida pelo sistema escravagista,
e em seguida segregacionista ou discriminatório, ainda em vigor na sociedade
americana contemporânea. Ao contrário dos textos, se o título deste volume
conservou a expressão Black feminism tal e qual, como provisoriamente intraduzível,
foi porque nos pareceu importante apresentar primeiramente o feminismo africano-
americano em sua especificidade da história política da qual ele emergiu, manter
em sua língua sua força de interpelação, frente a uma sociedade anglo-saxã dividida
pelo racismo: “White woman, listen!” – “Mulher branca, escute!” (Carby, 2000). O
feminismo negro representou uma verdadeira revolução política e teórica para o
conjunto dos feminismos norte-americanos e, em menor medida, europeus.

2 Ver os trabalhos de Sabine Masson ou de Jules Falquet, por exemplo.


3 O coletivo das Feministas Indígenas, por exemplo, abriu seu manifesto, lançado em janeiro de
2007, sob “o alto amadrinhado de Solitude, heroína da revolta dos escravos guadalupenses contra
o restabelecimento da escravidão por Napoleão”: http://www.indigenes-republique.org/spip.
php?article667 (acesso em dez. 2007).

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Em matéria de tradução, um precedente parece se impor de imediato ao
olhar do pensamento feminista e de suas travessias transatlânticas: o termo genre
[“gênero”]. No âmbito do feminismo francês, sabe-se o quanto o termo gender
suscitou de resistências, de debates, de polêmicas para encontrar uma tradução
(Varikas, 2003) – genre –, que numerosas intelectuais e militantes, e quase sempre
com razão, consideravam há quinze anos ainda como uma eufemização de “sexo” ou
“relações sociais de sexo”. Ora, o conceito de gênero, graças a um verdadeiro processo
de aclimatação política e cultural, se tornou uma ferramenta crítica que, ao deslocar
ou ao reformular as problemáticas e as agendas feministas (a distinção entre sexo e
gênero, a questão das masculinidades, a relação entre os gêneros e as sexualidades,
enfim, a articulação entre os estudos sobre o gênero e os estudos pós-coloniais),
acompanhou tanto a institucionalização de um campo de estudos feministas na
França – sem dúvida ainda demasiadamente precário – quanto uma renovação das
práticas e engajamentos feministas. No meio universitário ou, mais amplamente,
intelectual, hoje em dia é frequentemente em nome de uma pretensa “especificidade
francesa” que o gênero permanece ainda, para algumas/alguns, como um termo
intraduzível porque sem objeto no contexto político, histórico e social francês. O
gênero seria um americanismo que importou para a França o “assédio sexual”, “a
guerra do sexo” (prostituição, pornografia etc.), ou outros debates nocivos aos olhos
do comércio refinado dos sexos “à francesa”. É que a chegada do gênero, longe de
tomar o lugar das outras ferramentas críticas que permitem a análise e a contestação
das lógicas de dominação heterossexistas, marca a historicidade de um pensamento 65
e de um movimento feministas em suas necessárias renovações geracionais (não
tanto no sentido de faixas etárias quanto daquilo que se poderia chamar de “gerações
de combate”).
Assim, ao dar conta da chegada das problemáticas do Black feminism na
França, e ao propor alguns de seus textos fundamentais, esta obra marca a passagem
do intraduzível ao traduzível, do impensado ao pensável. A tradução nunca é uma
simples importação semântica, ela também permite colocar novas questões ou
deslocar os próprios termos de questões antigas nas quais tropeçávamos. Na tradução
“ féminisme Noir” existe, portanto, sem dúvida uma parte de deformação da história
e da especificidade do Black feminism estadunidense, que participa do processo de
aculturação de todo pensamento: o que tomamos, retiramos e reconstituímos dos
questionamentos do feminismo africano-americano é sempre finalizado por um
questionamento aqui e agora. Longe de “exoticizar” essa corrente do feminismo, longe
de colocá-lo à distância, interpondo entre ele e o feminismo francês a estrangeiridade
de uma língua, trata-se bem mais de marcar a ausência de um pensamento e de um
movimento comparáveis na França. Não houve “feminismo negro” na França. Essa
constatação não prejulga a atualidade do feminismo, muito pelo contrário. Como
se tem colocado e se coloca a questão do sujeito político do movimento feminista
francês? (Lépinard, 2005) Quem é este “Nós, as mulheres” do movimento? Ele é
“branco”? É ignorante de sua própria “branquitude”? Em que termos emergem as
questão da articulação do sexismo e do racismo na França? O que poderia significar

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um “feminismo negro”: um feminismo africano? Um feminismo antilhano?... Raras
contribuições têm pontuado essas três últimas décadas na matéria. Em 1978 se publica
o livro de Awa Thiam, La Parole des négresses, pouco citado nos trabalhos de estudos
feministas contemporâneos na França. Awa Thiam (1978) trata ali da poligamia, da
clitoridectomia e da infibulação, da iniciação sexual ou do embranquecimento da
pele. Num capítulo consagrado a “Feminismo e revolução”, ela lembra o quanto a
analogia entre sexismo e racismo teve como consequência invisibilizar as mulheres
negras, considerando que elas se encontram numa tripla exploração (sexismo,
racismo e relação de classe). Pouco crítica em relação aos movimentos feministas
europeus em geral, e francês em particular, ela lembra, entretanto, que a condição
das mulheres africanas difere da das mulheres dos países industrializados.
Nos anos 1970, a questão das mulheres negras (designando as “mulheres
africanas”) permanece um problema longínquo, e raras são as referências às
mulheres antilhanas (de ultramar ou da metrópole): a exceção notável é a carta do
MLAC (Mouvement pour la liberté de l’avortement et de la contraception [Movimento
pela Liberdade do Aborto e da Contracepção]) que, em meados da década de 1970,
reivindica “a supressão das desigualdades de uma contracepção que é reprimida na
metrópole, em particular para as menores, e favorecida por uma política racista e
malthusiana nos departamentos e territórios ultramarinos” (Charte du MLAC).
No que diz respeito às mulheres antilhanas, embora existam alguns trabalhos em
estudos feministas sobre a história delas ou sua condição (Alibar, Lembey-Boy,
66 1981/82; Gautier, 1985; Nouvelles Questions Féministes, 1985), não existe pesquisa
recente sobre os movimentos femininos ou feministas nas Antilhas, na Guiana ou na
ilha da Reunião4. Redes caribenhas – de ação ou de pesquisa – feministas emergem,
entretanto, nestes últimos anos, principalmente sob o impulso das ilhas anglófonas5.
Se nos voltamos para a literatura antilhana, uma figura como Maryse Condé se recusa
terminantemente a ser qualificada de feminista. No entanto, autoras como Maryse
Condé, Simone Schwartz Bart, Lucie Julia, Gisèle Pineau trabalharam constantemente
personagens de mulheres que participam de uma verdadeira consciência feminista
antilhana que nos resta ainda tanto por descobrir – aqui na metrópole – quanto por
(re)construir nos departamentos ultramarinos.

Nas fontes do feminismo africano-americano

A história do feminismo africano-americano está indissociavelmente marcada


pela história da escravidão norte-americana, cuja especificidade é o desenvolvimento

4 A maioria dos movimentos de mulheres nos departamentos e territórios ultramarinos foram


historicamente conduzidos pelo Partido Comunista. Podemos citar, por exemplo, Gerty Archimède,
primeira advogada negra, deputada de Guadalupe em 1945, fundadora da União das Mulheres de
Guadalupe.
5 Podemos citar o CAFRA (Association caribéenne pour la recherche et l’action féministes), http://
www.cafra.org/?lang=fr (acesso dez. 2007).

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de um sistema plantocrático de envergadura no solo mesmo dos Estados Unidos,
diferentemente dos Estados escravagistas europeus modernos (França, Grã-Bretanha,
Espanha, Dinamarca, Holanda). Essa diferença sozinha poderia explicar em parte
por que o feminismo negro se desenvolveu principalmente nos Estados Unidos e não
na Europa; salvo que, como veremos nesta coletânea com o texto de Hazel Carby
(2000), o caso da Grã-Bretanha dá testemunho da emergência de um feminismo
negro na Europa, comparavelmente herdeiro da experiência da escravidão. Contudo,
a característica do feminismo negro dos Estados Unidos se deve à genealogia mesma
das mobilizações feministas no século XIX: genealogia inextricavelmente ligada aos
movimentos abolicionistas.
A partir dos anos 1830, nos Estados Unidos, muitas associações femininas
se mobilizaram ativamente em favor da abolição da escravidão6, entre as quais a
Ladie’s New York Anti-Slavery Societies (fundada em 1835) e a Female Anti-Slavery
Society (fundada em 1833). Essa importante sociedade – nascida da American Anti-
Slavery Society, com base em Boston e na Filadélfia – enuncia em seus estatutos que
é composta de mulheres brancas e negras, membros de diversas igrejas (quacres,
presbiterianas, batistas, unitaristas etc.) (Yellin, Horne, 1994; Bolt, 2004). Muitas
de suas sócias participam do famoso Underground Railroad7, rede clandestina que
organizava a fuga dos escravos dos estados sulistas para o Norte do país. As mulheres
engajadas na luta abolicionista fazem, portanto, o aprendizado da ação política –
reuniões públicas, tomadas de palavra, ações diretas, panfletos, cartazes – e elaboram
progressivamente reivindicações feministas: é da mobilização abolicionista que 67
nasceu o movimento sufragista estadunidense. Logo em seguida, muitas associações
decidem conduzir uma única e mesma campanha pelo sufrágio dos negros e pelo
sufrágio das mulheres. Durante o primeiro comício pelos direitos das mulheres após
a Guerra de Secessão, em maio de 1866, os delegados da Convenção pelos Direitos
das Mulheres decidem criar uma Associação pela Igualdade de Direitos que lutaria
ao mesmo tempo pelo direito de voto dos negros e pelo direito de voto das mulheres.
No entanto, essa estratégia é bem depressa contestada por uma parte dos militantes
abolicionistas e feministas. Como aceitar que as esposas dos cidadãos “da raça
anglo-saxã”, segundo os termos da feminista Elizabeth C. Stanton, fossem relegadas
a mais baixo que os negros, ex-escravos, ou que os imigrantes irlandeses, recém-
desembarcados? Algumas grandes associações feministas se fraturam e se dividem
então sobre a questão perversa da preeminência “legítima” das mulheres e esposas
“brancas” sobre os negros e por conseguinte sobre as mulheres “negras”.

Desde o início dos anos 1860-1870, Susan B. Anthony [outra


grande figura do feminismo] se apercebeu do potencial da
causa do sufrágio feminino para atrair as mulheres do Sul. Por

6 Em 1807, os Estados Unidos proclamaram a abolição do tráfico negreiro e, em 1865, a da escravidão.


7 Uma das organizadoras mais importantes do Underground Railroad é Harriet Tubman (1820-
1913). Nascida na escravidão, ela conseguiu fugir em 1849 e se tornou uma das figuras do movimento
abolicionista (Clinton: 2004).

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oportunismo, menosprezando toda lealdade e justiça, ela pediu
ao apoiador feminista de sempre, Frederik Douglas, que não
comparecesse à convenção da Associação Nacional Americana
para o Sufrágio das Mulheres [NAWSA], que se realizava em
Atlanta (Hooks, 2000: 377).8

Em 1869, a Associação pela Igualdade dos Direitos realizava sua assembleia


anual – de fato, será a última – e adotava finalmente a 14ª emenda estipulando que
só os cidadãos masculinos tinham direito de votar. Mesmo tendo sempre defendido
o sufrágio feminino, Frederik Douglas finalmente se aliou à posição de que o direito
de voto dos negros era prioritário. Para ele, tratava-se de uma questão de vida ou de
morte:

Quando as mulheres forem arrancadas de suas casas,


simplesmente porque são mulheres; quando forem penduradas
em postes; quando seus filhos forem raptados para terem suas
cabeças esmagadas na calçada; quando forem insultadas em todas
as esquinas; quando correrem o risco a todo momento de ver suas
casas incendiadas desabar sobre suas cabeças; quando se impedir
que seus filhos entrem na escola, então será urgente outorgar-lhes
o direito de voto (DAVIS, 1983: 103).

68 Exatamente do mesmo modo como, após a Guerra de Secessão, inúmeros


republicanos que tinham defendido o sufrágio feminino voltam atrás em sua postura
e afirmam que os negros são “prioritários”, já que estes representavam dois milhões
de votos potencialmente a favor daquele partido. Por isso, os democratas do Sul,
majoritariamente racistas, tenderam a apoiar as associações feministas como as de
Susan B. Anthony para se contrapor ao apoio dos republicanos ao voto dos negros.

Se Elizabeth Stanton e Susan B. Anthony tivessem analisado


mais seriamente a situação política do pós-guerra, teriam talvez
refletido antes de associar o célebre George Francis Train à sua
campanha. ‘A mulher primeiro, o negro por último, eis meu
programa’, este era o slogan daquele democrata racista e cínico.
Quando Elizabeth Stanton e Susan B. Anthony encontraram Train
durante a campanha de 1867 no Kansas, ele se ofereceu para cobrir
todas as despesas de uma grande turnê de conferências comuns
(DAVIS, 1983: 102).9

8 Frederik Douglas (1817-1895): nascido escravo, tornou-se jornalista e foi uma das maiores figuras do
movimento de emancipação e do direito do voto dos negros, do qual foi o orador (Terborg-Penn, 1998).
9 Aqui se vê bem, na fala de Train, de que modo “mulheres” significa apenas as mulheres brancas e,
igualmente, como as “negras” parecem não ter nenhuma identidade de gênero.

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A questão do racismo no interior dos grupos e associações feministas é
complexa. Ela tem a ver simultaneamente com a extrema pregnância da ideologia
segregacionista dos estados do Sul, e de sua difusão no conjunto da sociedade, mas
também do jogo perigoso de algumas líderes do movimento que, na virada do século
XIX para o XX, adotam uma estratégia política que consiste em reunir as mulheres
do Sul em detrimento das mulheres descendentes de escravas, embora a maioria das
representantes feministas dos clubes e grupos de mulheres africanas-americanas10
tivessem estado na origem do movimento. Excluídas ou proibidas nos clubes de
mulheres “brancas”, figuras tão importantes quanto Mary Church Terrell, presidenta
da Associação Nacional das Mulheres de Cor (fundada em 1896), ou Josephine Ruffin,
vice-presidenta da mesma associação, representante da organização New Era Club e
editora do primeiro jornal feito por e para mulheres africanas-americanas (Woman’s
Era), são não somente alvo do racismo de certas militantes feministas, como
também do sexismo destas. Numerosas mulheres pertencentes a associações sulistas
pelo sufrágio das “mulheres” (entenda-se: só das mulheres “brancas”) se recusam
efetivamente a se aliar às militantes negras, evocando a moralidade duvidosa destas
e mobilizando, por conseguinte, um topos da ideologia sexista e racista moderna que
tem autorizado algumas das práticas mais violentas dessa história. A fabricação de
uma norma da feminidade se efetuou, portanto, em oposição às mulheres negras,
consideradas lúbricas, violentas, toscas, “mães ruins” ou “matriarcas” abusadoras.
Assim, diante de um jornalista do Chicago Tribune, a presidenta da Federação Geral
dos Clubes de Mulheres, Mrs. Lowe, justifica a decisão de sua federação de não 69
aceitar Josephine Ruffin entre seus membros, nestes termos: “Mrs. Ruffin pertence a
seu próprio povo. Lá ela será uma líder e poderá fazer muito bem, mas entre nós só
poderá criar problemas” (Hooks, 2000: 379). A categoria política “mulheres”, ou seja,
a do sujeito político do feminismo, implode portanto literalmente sob o efeito do
racismo de algumas militantes feministas. Ao considerar que as “mulheres” seriam
prioritárias com relação aos negros, supõe-se que todas as mulheres são “brancas” e
que todos os negros são “homens”: All the women are white, all the Blacks are men,
but some of us are brave...11. No início do século XX, nos Estados Unidos, o discurso
feminista dominante sustentado pelas principais dirigentes das grandes associações
e federações pelo sufrágio feminino fez nitidamente a escolha pela exclusão das
mulheres negras da categoria das ladies, negando-lhes assim os privilégios da
feminidade, fazendo desta uma essência, uma norma racizada – todas as mulheres
são “brancas”. Pois é justamente em nome dessa feminidade branca, ou melhor, dessa
norma racizada da feminidade, que os defensores do sufrágio feminino vão combater
pelos direitos civis. As esposas modelos da classe dirigente encarnam então o sujeito
10 Utilizo a expressão “africanas-americanas” e não “afro-americanas” segundo o uso contemporâneo.
Há anos, de fato, “afro-americanas/os” tem sido amplamente criticado pelas/os intelectuais ou
militantes negras/os, pois esta expressão tende a minimizar a herança e a identidade africanas em
proveito da herança e da identidade americanas.
11 É o título de uma obra fundadora dos estudos feministas negros estadunidenses organizados por
Gloria Hull, Patricia Bell Scott, Barbara Smith All the Women are White, all the Blacks are Men but
Some of Us are Brave: Black Women’s Studies (1982).

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do feminismo, esta mulher considerada doce, de moral irrepreensível, pia, sensível,
pudica e maternal.
Ocultado por muito tempo, esse episódio da históriA [herstory]12 das mulheres
e do feminismo estadunidense se revelou um ponto de tensão entre as feministas
da segunda onda. Nos anos 1970, o princípio de sororidade que anima o Women’s
Lib é posto em xeque pelas feministas africanas-americanas que denunciam a
ignorância ou a indiferença do movimento para com a condição das mulheres de
cor e sua experiência da opressão patriarcal, que é estreitamente condicionada por
um racismo ligado, contudo, à história do movimento feminista. Em 1969 surge um
dos textos fundadores do feminismo negro estadunidense, “An argument for Black
women’s liberation as a revolutionary force”, redigido por Mary Ann Weathers. Ali
estão enunciadas as duas grandes problemáticas que animaram o movimento durante
os anos 1970 e 1980: a da relação entre o movimento negro e o movimento feminista
branco – e a questão do separatismo feminista ou, ao contrário, do separatismo “racial”,
da lealdade com os homens negros que dele deriva –; e a do mito do “matriarcado
negro” e do que se poderia chamar de estereótipos da “feminidade negra indigente”13.
As duas problemáticas, evidentemente, estão estreitamente ligadas já que o mito
do “matriarcado negro” e os estereótipos da “feminidade negra indigente”, tal como
foram fomentados e veiculados pela ideologia racista, mas também por um certo
discurso feminista ou anti-racista, desde o período escravagista e segregacionista até
hoje, têm permitido manter o sexismo e o racismo numa lógica comum de efetuação
70 e de perpetuação. Esse texto fundador de Weathers (1969) é particularmente
importante pois proclama claramente uma opressão comum das mulheres, brancas,
“negras, índias, mexicanas, portorriquenhas, orientais”, ricas ou pobres... É em
nome dessa opressão comum que as mulheres podem “construir e transformar a
força revolucionária que começamos a acumular”14. A sororidade fundadora do
feminismo é assim articulada à mobilização de todas as mulheres contra o sexismo.
Ora, essa sororidade será amplamente questionada por muitos textos posteriores,
principalmente pelo Black Women’s Manifesto ou pelos escritos de bell hooks. Uma
das hipóteses para explicar essa evolução é a análise mesma da relação de dominação
sofrida pelas mulheres negras. Ao passo que Weathers (1969) pensa em termos de
“opressões múltiplas” (de sexo, de cor, de classe etc.), que se acrescentam uma à
outra, o que lhe permite concluir que o sexismo é a relação de dominação comum a
todas as mulheres, as análises posteriores criticarão essa abordagem aditiva, em prol
de outros modelos explicativos: o Combahee River Collective falará, por exemplo, de

12 A tradução de herstory por históriA tenta dar conta do jogo de palavras sobre history e herstory,
maneira irônica para as feministas anglófonas de “se apropriar” de sua história (Sochen, 1974).
13 Voltarei a essas duas temáticas mais demoradamente na última parte deste texto.
14 Mary Ann Weathers, “An argument for Black women’s liberation as a revolutionary force”, No More
Fun and Games: A Journal of Female Liberation, v. 1, n. 2, 1969; disponível on-line no site da biblioteca
universitária da Duke University, que reuniu numerosos arquivos do movimento de libertação das
mulheres estadunidenses, entre os quais muitos documentos do movimento feminista negro: http://
www.scriptorium.lib.duke.edu/wlm/fun-games2/argument.html (acesso em dez. 2007, tradução
minha).

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“opressões simultâneas” e pregará uma política de coalizão, em vez de uma sororidade
de princípio, entre feministas negras e feministas brancas, entre mulheres negras e
homens negros, etc. Em 1970 se publica o texto soco-no-estômago do coletivo Third
World Women’s Alliance, Black Women’s Manifesto: “A mulher negra está exigindo
um novo conjunto de definições de mulher e um reconhecimento dela mesma como
cidadã, companheira e confidente, e não uma vilã matriarcal ou um instrumento
de fazer bebês” (Third World Women’s Alliance, 1970). A partir daí, o feminismo
negro se vincula à experiência vivida da dominação das mulheres negras e levanta
a questão de sua autodeterminação: para uma parte das feministas negras, ficam
tensas as relações com as feministas brancas assim como com os partidos e os
movimentos negros, pois elas consideram que, num caso como no outro, as mulheres
negras permanecem numa posição de heteronomia absoluta, perfeitamente descrita
pelo relato de Michele Wallace (1982), traduzido neste volume: “Uma feminista
negra em busca de sororidade”. Narrando sua infância, sua adolescência e seus anos
de universidade, Wallace descreve as injunções contraditórias às quais estavam
submetidas as meninas e as mulheres negras nos anos 1960 e 1970: as normas
estéticas da feminidade (penteado afro ou cabelos alisados e desfrisados, e o temor
da chuva) – e da masculindade –, os códigos sexuais patriarcais, os engajamentos
políticos dilacerados entre os movimentos negro e feminista, o sexismo e o racismo
brancos ou negros...
Em 1973, em Nova York, feministas africanas-americanas julgam necessário
formar um grupo separado, que se tornará a National Black Feminist Organization 71
(NBFO), que desaparece já em 1975. Por Black feminism não se deve entender as
feministas “negras”, mas uma corrente de pensamento político que, no âmbito do
feminismo, tem definido a dominação de gênero sem jamais isolá-la das outras relações
de poder, a começar pelo racismo ou pela relação de classe, e que podia compreender,
nos anos 1970, feministas “chicanas”, “nativas americanas”, “sino-americanas” ou do
“terceiro mundo”15. Esse ponto de vista dá lugar a lutas, a uma apreensão das relações
de força e a uma construção da identidade política e feminista, diferentes das de
outros grupos. Um dos exemplos entre os mais emblemáticos é provavelmente o do
Combahee River Collective, cujo manifesto está traduzido neste volume16. Trata-se de
um dos grupos mais ativos do feminismo negro dos anos 970. Foi fundado em Boston
em 1974 principalmente por Barbara Smith, Cheryl Clarke e Gloria Akasha Hull,
todas feministas e/ou militantes pelos direitos civis, pelo nacionalismo negro ou pelo
Black Panther Party (Joseph, 2006). O texto se abre com uma referência às grandes
figuras femininas do movimento abolicionista: Sojourner Truth, Harriet Tubman,
Frances E. W. Harper, Ida B. Welles Barnett e Mary Church Terrell... inscrevendo
nitidamente a gênese do feminismo negro na históriA das mulheres escravas, ex-
escravas e descendentes de escravas (Collins, 1989).

15 Todas as mulheres sendo incluídas na categoria de “colored women”.


16 Podemos consultar também Falquet, Lada, Rabaud (2006) e Falquet (2006).

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Coletivo feminista lésbico radical (Smith, 1983), o Combahee River Collective
abandona a NBFO por volta de 1974, considerando a organização “feminista-burguesa”
demais (Wallace, 1982), mas também se distancia de outros grupos de lésbicas em
razão de uma divergência de fundo sobre a questão do patriarcado e da chamada ao
separatismo. Segundo o Combahee River Collective, o separatismo lésbico não é nem
“uma análise, nem uma estratégia política viáveis” (Wallace, 1982), diante da situação
das lésbicas africanas-americanas, precisamente em razão de sua experiência do
racismo. Solidárias da comunidade negra à qual pertencem e cuja experiência das
discriminações racistas diárias compartilham, elas não negam o sexismo dos homens
negros, mas consideram que a história da escravidão e da segregação teve efeitos
sobre a construção normativa da feminidade e da virilidade, em particular sobre a
dos homens negros, e portanto sobre a própria relação de gênero. Para o Collective, o
separatismo lésbico define a opressão das mulheres como essencialmente de gênero,
negando por isso mesmo os fatores de classe e a estrutura racista da sociedade que
modelam e moldam a discriminação sexista (Wallace, 1982). Dizer que um escravo,
vivendo no início do século XIX, ou que um negro do Mississippi nos anos 1940, é
ativo, que detém o poder, que é autônomo e que a sociedade é feita à sua imagem,
é algo que parece eminentemente problemático (Spelman, 1988). Para o Combahee
River Collective, proclamar que as mulheres são discriminadas porque são “mulheres”
é algo que tem a ver com um privilégio de mulheres “brancas”, já que historicamente
as mulheres “negras” não foram, propriamente falando, consideradas como
72 “verdadeiras” mulheres e sim, bem mais, como “babás”, “matriarcas”, “Sapphires”17a,
“putas”, “sapatonas caminhoneiras”. O texto do Combahee rejeita, portanto, qualquer
essencialização, qualquer biologização (do sexo, da cor) das “políticas de identidade”,
em prol de uma análise antes de tudo político-econômica dos/das dominados/
dominadas. A política de identidade feminista africana-americana do Combahee
exemplifica, neste sentido, aquilo que Patricia Hill Collins chamará alguns anos
mais tarde de “ponto de vista das mulheres negras”. Referindo-se à corrente das
“epistemologias do ponto de vista” ou do “posicionamento”, tal como desenvolvido
pelas feministas marxistas Hilary Rose ou Nancy Hartstock, Collins propõe em 1989
uma contribuição, que permanece como um dos textos principais das “epistemologias
do ponto de vista”:

Este ponto de vista é caracterizado por duas problemáticas


estreitamente ligadas. Primeiramente, o status econômico
e político das mulheres negras as confronta a uma série de
experiências que as leva a perceber a realidade material segundo
uma perspectiva diferente da dos outros grupos. O trabalho,
remunerado ou não, que elas efetuam, os tipos de comunidades
em que vivem, os diferentes modelos de relações que elas mantêm
com outrem constituem particularidades que sugerem que as
africanas-americanas vivem uma outra realidade que não a

17a Sapphire (literalmente, “safira”): estereótipo muito presente na sociedade estadunidense para
representar as mulheres negras como “naturalmente” atrevidas, grosseiras e mal-humoradas (NT).

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daquelas e daqueles que não são negras/negros nem mulheres.
Em segundo lugar, essas experiências particulares estimulam
uma tomada de consciência feminista negra específica. Em outros
termos, não somente um grupo subordinado faz a experiência de
outra realidade que não a do grupo dominante, como também
pode interpretar essa realidade de outra maneira (Collins, 1989:
s/p).

As grandes problemáticas

Os dez anos que separam a publicação do manifesto do Combahee River


Collective (1979) da do texto de Patricia Hill Collins (1989) constituem um momento-
chave no desenvolvimento do feminismo negro, no sentido de que ele passou de uma
lógica de grupo de consciência à lógica de grupo de reflexão, de estudo e de ação
(segundo uma lógica de coalizão, principalmente sobre a questão da violência feita
às mulheres negras (Falquet, 2006)). “Grupo de consciência” ou de fala, o Combahee
permitiu, por exemplo, que as feministas negras engajadas se reapropriassem de
sua própria identidade na solidariedade, pela autodeterminação, pela autoestima e
pelo amor de si e de sua própria força de agir. Todavia, longe de se limitar a um
grupo de consciência, o feminismo negro se transformou em grupo de reflexão
e de estudo: tratava-se então de ressituar sua própria experiência vivida, numa
73
históriA das mulheres negras. Isso consiste não somente em reconhecer seu destino
pessoal como uma condição comum de dominação das mulheres negras nos Estados
Unidos, mas também como uma posição, um ponto de vista pertinente, permitindo
iluminar de outra maneira a históriA das mulheres “em geral”, principalmente
aquela quase exclusivamente escrita pelas mulheres e pelas feministas universitárias
brancas. Assim, ao se engajar numa verdadeira política de publicação, o Combahee,
e sobretudo uma de suas principais animadoras, Barbara Smith (1982), abriu um dos
campos mais importantes do feminismo negro: a revisão da historiografia feminista,
mas também da teoria feminista em geral, assim como de suas metodologias, tal
como estas começavam a ser ensinadas nos departamentos de Women’s Studies nos
Estados Unidos.
Assim, o texto de Barbara Smith (1982), nascido de uma comunicação feita
durante um colóquio de estudos feministas e sobre as mulheres, tem o aspecto de
uma verdadeira injunção dirigida aos estudos feministas: o pensamento feminista
deve assumir suas responsabilidades com relação ao racismo e a seu próprio racismo.
O racismo não é só “problema” das mulheres ou das feministas negras, e não deve ser
apenas evocado e discutido nos seminários dedicados à teoria feminista negra: ele diz
respeito a todas as feministas. A problemática do racismo tanto no pensamento como
no movimento feministas não se limita a trabalhar sobre ou com as mulheres de cor,
mas a reconsiderar seu próprio racismo. Isso supõe ao menos três temáticas principais:
primeira, que os estudos feministas façam a história dos vínculos do feminismo com

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o racismo (a escravidão, a segregação ou a discriminação) – ainda que as feministas
brancas não tenham tirado “materialmente” as mesmas vantagens do racismo que
os homens brancos; segunda, que os estudos feministas não limitem a questão
do racismo às “mulheres negras” ou às mulheres do “terceiro mundo”, mas que se
empenhem em articular juntamente sexismo, racismo e relação de classe, inclusive
no que diz respeito à condição das mulheres brancas (sendo o “branco” uma cor
que é socialmente construída como uma marca dos/das dominadores/dominadoras,
assim como o “negro” é uma cor socialmente construída como uma marca das/dos
dominadas/dos); enfim, terceira, que os estudos feministas não se refugiem por trás
de uma metodologia pretensamente “objetiva”, por trás de um academicismo que
historicamente tem permitido invisibilizar a história dos grupos mais dominados,
qualificando suas experiências, suas resistências ou seus pensamentos e culturas
como inexistentes, insignificantes ou excessivamente militantes. O texto de Barbara
Smith (1982) identifica, além disso, dois pontos cegos dos estudos feministas que
constituem verdadeiros obstáculos à emergência de um campo feminista realmente
anti-racista – coisa que ele deveria ser: a questão do pretenso antifeminismo das
mulheres do “terceiro mundo”, que deve ser analisado como uma reação ao racismo
de uma parte das feministas brancas; e a questão da lesbofobia, que agrupa feministas
brancas e feministas do “terceiro mundo” numa aliança, numa coalizão nefasta.
Sobre esse último ponto, é mais amplamente a questão do “sujeito do feminismo”
que está em causa e, portanto, a da “sororidade”. Sujeito político do feminismo – quem
74 é este “Nós” de “Nós, as mulheres”? –, que o feminismo negro contribuiu amplamente
para interrogar e (re)problematizar, anunciando sem contestação a terceira onda do
feminismo estadunidense nos anos 1990.
A análise clássica da dominação de gênero define o sexismo como a única
relação de poder transversal para todas as mulheres, seja qual for sua classe, sua
sexualidade, sua cor, sua religião etc., fazendo da luta contra o sexismo uma luta
prioritária relativamente às outras relações de dominação. É portanto essa experiência
comum do sexismo que permite a constituição e a coesão do próprio sujeito político
do feminismo – “Nós, as mulheres”–, ameaçado de desintegração se viéssemos a
diferenciar radicalmente as mulheres segundo as múltiplas relações de poder que
elas sofrem. Ora, embora todas as mulheres tenham, sim, a experiência do sexismo,
apesar dessa comensurabilidade da experiência não existe, porém, experiência
“idêntica” do sexismo, de tal modo as outras relações de poder que informam o
sexismo modificam suas modalidades concretas de efetuação e, portanto, as vivências
das mulheres. Nos Estados Unidos, por exemplo, as mulheres africanas-americanas
têm sido historicamente vítimas de esterilizações forçadas ou abusivas, enquanto
as mulheres “brancas” eram submetidas a gravidezes sucessivas não desejadas e
eram empurradas para os abortos clandestinos (Davis, 1983: 255-278). Recordando
as experimentações forçadas de que foram vítimas as mulheres caribenhas por
ocasião da comercialização dos contraceptivos orais, ou os casos de esterilizações
impostas às mulheres negras, a historiadora feminista inglesa Hazel Carby (2000)
analisa as modalidades diferentes do sexismo, estreitamente ligadas às políticas

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eugenistas racistas conduzidas nos séculos XIX e XX. Essas modalidades diferentes
de uma mesma dominação geraram assim experiências diferenciadas que tiveram
consequências sobre a própria agenda dos movimentos feministas americanos e
europeus (Carby, 2000). A análise de Carby é particularmente útil para compreender
a contribuição do feminismo negro estadunidense ao feminismo europeu, inclusive
contemporâneo, apesar de uma história escravagista diferente, já que os impérios
coloniais europeus desenvolveram sistemas escravagistas fora de seus territórios
metropolitanos e frequentemente paralelos a uma ideologia republicana igualitária
(como é o caso na França):

Não eram somente as senhoras das plantações de chá, de algodão


ou de açúcar as favorecidas pelos benefícios da pela branca;
todas as mulheres na Grã-Bretanha tiraram proveito – em graus
variáveis – da exploração econômica dos colonizados. A atitude
pró-imperialista de muitas feministas e sufragistas, do século XIX
e início do XX, ainda não foi reconhecida em suas implicações
racistas. Ora, deixando de lado essa tarefa históricA, a pesquisa
sobre o racismo contemporâneo no movimento das feministas
brancas ainda não começou. A teoria feminista na Grã-Bretanha
é quase inteiramente eurocêntrica e, embora não ignore a
experiência das mulheres negras ‘em casa’, ela traz para a frente
do palco e faz estardalhaço das ‘mulheres do terceiro mundo’
como vítimas das práticas ‘bárbaras’ e ‘primitivas’ de sociedades
75
‘bárbaras’ e ‘primitivas’. É preciso ressaltar que muitos trabalhos
feministas sofrem da presunção de que é somente através do
desenvolvimento de um estilo ocidental do capitalismo industrial
e da entrada das mulheres no mercado de trabalho assalariado
resultante dele que o potencial de liberação das mulheres pode
aumentar (Carby, 2000: s/p).

O feminismo negro, portanto, critica essa tendência do feminismo – e de suas


teorizações – a se restringir implicitamente a uma compreensão da dominação que
toma a situação de algumas mulheres como a situação de todas as mulheres enquanto
modalidade universal de seu assujeitamento. Essa tendência pode ser resumida na
expressão tornada célebre de Adrienne Rich: o “solipsismo branco” (Rich, 1979)
do feminismo. Esse modo de pensamento reforça uma compreensão simplista da
historicidade da dominação ao reduzi-la a um modelo de oposições binárias (homem/
mulher, masculino/feminino, força/fraqueza, produção/reprodução, público/
privado, razão/sentimento etc.), por um lado, e ao pensar as dominações de maneira
cumulativa, “aditiva” (sexismo + racismo + classe etc.), por outro. A política feminista
remete desde logo a um sujeito autocentrado sobre uma experiência particular que ele
tende a absolutizar e, portanto, ela renaturaliza a relação de gênero ao universalizar
uma de suas modalidades históricas (Dorlin, 2005). Segundo bell hooks (1986), o
fato de isolar o sexismo das outras relações de poder que o informam impõe, além

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disso, uma representação das mulheres como “vítimas”. Em outras palavras, isso gera
uma consciência de si deformada que tem dificuldade em pensar posições de poder
em que ninguém se representa exclusivamente como alvo do poder, mas sempre
também como retransmissor deste. É então o conceito mesmo de sororidade que se
torna problemático.

A partir do momento em que se definiam como uma associação


de ‘vítimas’, as feministas não se viam obrigadas a enfrentar a
complexidade de sua própria experiência” (Hooks, 1986). Assim,
a solidariedade entre todas as mulheres carrega o peso histórico
da participação mais ou menos ativa de algumas mulheres nos
racismos e nos colonialismos. Essa categoria de vítima produz,
além disso, um problema importante. Retomar uma categoria
ideológica da “natureza feminina”, que pensa as mulheres como
“vítimas” passivas de sua condição é negar a elas todo poder de
ação, inclusive na história de sua própria liberação (Hooks, 1986:
s/p).

O feminismo negro produziu um eletrochoque no pensamento feminista


ao longo de toda a década de 1980: assim, muitas intelectuais brancas foram não
somente forçadas a repensar o que até então parecia evidente (aquele “Nós” de
“Nós, as mulheres”) mas também, e mais fundamentalmente, a se descentrar
76 de sua posição dominante, e portanto de sua posição de referência por definição
“neutra”, elucidando a posição desde a qual elas tomaram ou tomam a palavra, em
nome de quem elas tomaram ou tomam a palavra, assim como os silêncios que suas
palavras têm recoberto. Conforme escreve Linda Alcoff (1988), se o pensamento e o
movimento feministas conseguiram desconstruir ou transcender de forma crítica a
categoria essencialista “A Mulher”, a posição desde a qual os movimentos feministas
históricos lutavam, “Nós, as mulheres”, também encontrou seus limites: “Hoje, o
dilema que as teóricas feministas enfrentam é que nossa própria autodefinição se
baseia num conceito [‘as mulheres’] que devemos desconstruir e desessencializar em
todos os seus aspectos” (Alcoff, 1988: 406). Em outras palavras, não basta apenas
enunciar de onde eu falo para que, como que por encanto, as relações de poder no
interior do feminismo se evaporem: isso significaria confundir nossas “diferenças”
e nossas “posições de poder”. Quando feministas afirmam, num prelúdio intimista
a suas contribuições, a suas intervenções universitárias ou militantes, que elas são
“brancas”, “oriundas de um ambiente burguês” etc. e iniciam suas análises, é possível
duvidar da eficácia de semelhante atitude: “Eu não tenho nenhum uso criativo da
culpabilidade, a sua ou a minha [...]. A culpabilidade é só outra maneira de nos
tratarmos como objeto” (Lorde, 2003: 144-146), escreve Audre Lorde. A questão é
bem menos a elucidação solidária de seus privilégios – inclusive dos privilégios que a
minoria (de gênero, de sexualidade, de cor, de religião, de classe etc.) conferiria – do
que a reflexividade necessária sobre seus próprios valores e instrumentos cognitivos

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(por exemplo, a relação entre sujeito e objeto de conhecimento ou de discurso, ou a
hierarquia implícita dos tipos de discurso) e políticas. Quanto a este último ponto,
trata-se certamente de reconhecer, de exprimir e de admitir os conflitos, as tensões
e as cóleras no interior do feminismo, na medida em que não prejudicam a unidade
do sujeito político do feminismo, mas nos obrigam a não encerrá-lo dentro de uma
identidade “mulheres” declinada segundo o gênero, a sexualidade, a cor, a religião, a
classe... ao sabor de nossas lutas, de nossas reflexões ou de nossos interesses pessoais
ou coletivos. A obra magistral de Audre Lorde é, quanto a isso, exemplar.

E quando as palavras das mulheres gritam para serem ouvidas,


nós devemos, cada uma, assumir a responsabilidade de buscar
essas palavras, de lê-las, de compartilhá-las e de apreender sua
pertinência para nossas vidas. Não devemos nos esconder por trás
dos simulacros de divisões que nos foram impostas, e que com
tanta frequência tornamos nossas. Do tipo: ‘Não posso realmente
ensinar a literatura das mulheres negras, a experiência delas é
tão distante da minha’. No entanto, há quantos anos você ensina
Platão, Shakespeare ou Proust? Ou então: ‘É uma mulher branca,
o que realmente ela pode ter a dizer?’ (Lorde, 2003: s/p).

Audre Lorde trabalhou longamente sobre o uso da cólera contra o ódio racista,
cólera que ela não só exprimiu, mas também dirigiu às mulheres brancas, e que
ela articula não como uma força destrutiva da unidade do feminismo, mas para o 77
desdobramento desta, naquilo que ela chama de metamorfose das “diferenças de
potência” (Lorde, 2003: 145). Lorde mostra de que modo o racismo no interior do
feminismo constrangeu as mulheres ao silêncio e que esses silêncios, de ambos os
lados, nos matam: os silêncios das mulheres negras historicamente obrigadas sob
ameaça a se manter fora dos discursos dizíveis e audíveis, silêncios que elas se
extenuam por romper (Harris, 1996), os silêncios das mulheres brancas que são
prisioneiras das estruturas mesmas da dominação que elas interiorizaram e que
permanecem numa mudez culpada quando só o amo se exprime nelas.

Enquanto mulheres, devemos extirpar os esquemas opressivos


ancorados no mais fundo de nós se quisermos ir para além de uma
mudança social superficial. Devemos desde já aceitar as diferenças
entre as mulheres – que são nossas iguais, nem inferiores nem
superiores – e imaginar novas maneiras de nos apropriarmos
dessas diferenças a fim de enriquecer nossas visões do futuro e
nossas lutas comuns (Lorde, 2003: 135).

Essa questão da unidade do feminismo – e não de sua homogeneização,


segundo os termos da própria Lorde – será amplamente retomada por Teresa de
Lauretis, Judith Butler ou Gayatri C. Spivak, durante os anos 1990, numa reflexão de
envergadura sobre a crítica da essencialização das identidades políticas – sexuadas,

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racializadas ou sexuais – operada pelos movimentos feministas, gays ou lésbicos.
Em referência ao feminismo negro ou chicana, o feminismo universitário da terceira
onda, assim como os movimentos queer ou trans, têm optado amplamente por uma
política não fundacionalista da identidade política, no sentido de que a identidade
política não deve, e não pode, constituir um pré-requisito à ação política, mas deve
se constituir – inclusive na conflitualidade inerente a toda coalizão – no devir dos
movimentos. De igual modo, “Nós, as mulheres” está em constante redefinição,
articulando a ação, não com a questão “quem somos nós?”, mas com a questão “por/
contra quê/quem combatemos?”, isto é, sobre nossa vontade ou, melhor, nosso poder
de ação (Butler, 1992).
Audre Lorde, lésbica, feminista, poeta caribenha-estadunidense, também foi
uma das figuras da escrita das mulheres negras nos Estados Unidos. Gênero literário
maior, ao qual pertencem escritoras antilhanas francófonas – admiradas “lá” e
frequentemente ignoradas “aqui” –, a escrita das mulheres negras dá testemunho
desta posição fora do discurso dominante e de seus cânones, herdeira do racismo
institucionalizado das sociedades outrora escravagistas. Escrita poética, crioulizada
(Moraga, Anzaldúa, 1980) ou barroca – penso aqui na obra de Toni Morrison, por
exemplo –, marcada pela experiência da escravidão, este gênero literário e político
marcou a teoria feminista ao renovar a prática do discurso na primeira pessoa, por
um lado, e a importância do erotismo, por outro. Sendo as duas estreitamente ligadas
no sentido de que o erotismo, e mais amplamente a questão das sexualidades, nos
78 impõe sempre um discurso no “eu”, uma reflexividade sensual sobre a história de
seus próprios desejos e prazeres – inclusive sobre a longa história dos desejos e dos
prazeres de nossas avós, mães, tias e irmãs. É conhecido o uso que Lorde faz do
erotismo em seu pensamento, uso magnificamente renovado pelo texto de Laura
Alexandra Harris (1996: s/p):

Este ‘eu’ não representa sem dúvida um caso único de passagem


pelos feminismos. Não é uma especificidade de meu ser fem18b de
pele clara. A passagem, com efeito, tem a ver com níveis muito
diversos, tanto o do gênero quanto o da classe social, da origem
étnica, da situação econômica, da instrução, e é tomada dentro de
uma estrutura que, frequentemente, contém e sufoca a diferença
que ela, a estrutura, parece exprimir.

Harris mostra a convergência entre o feminismo negro e aquilo que se chama


comumente de Teoria Queer. Ela vai mesmo mais longe, e no meu entender com
razão, mostrando de que modo foram as feministas negras que criaram o feminismo
queer. Ela mostra que a essencialização do gênero, contra o qual a cultura queer tem
se levantado amplamente, eludiu a política sexual, ao mesmo tempo que a “raça” e a
classe. Para Laura Alexandra Harris, feminista, queer, negra, fem, o fato de se considerar

18b Fem (ou femme) é termo empregado para designar a lésbica com aparência mais “feminina”, ao
contrário da butch, considerada mais “masculina” (NT).

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comumente que uma lésbica negra só pode ser butch – o que é testemunhado pelas
representações estereotipadas das lésbicas negras – é duplamente característico de
uma concepção essencialista do gênero que funciona de modo binário (masculino/
feminino, ativo/passivo...), em concordância com uma política racial e sexual, que
exclui as mulheres negras das normas da feminidade e atribui às identidades de
gênero posições fixas e heterossexistas.

“Tornou-se flagrante no feminismo lésbico, quando o desejo butch-


fem, desejo de polaridade de gênero entre lésbicas, foi decretado
inaceitável pois modelado na dinâmica de poder heterossexual.
Não somente isso equivalia mais uma vez a requalificar o gênero
em dado anatômico inato, mas era também fazer pouco caso das
clivagens de classe e de raça, particularmente pronunciadas lá
onde essa cultura podia se exprimir” (Harris, 1996: s/p).

Ser fem, quando se tem a pele muito clara como Laura A. Harris, é sempre ser
“negra” demais, e, portanto, necessariamente butch, ou “branca” demais, e, portanto,
necessariamente heterossexual. Como as mulheres negras têm sido historicamente
racializadas por sua exclusão das normas binárias de gênero, a força crítica
desencadeada pelas teóricas feministas lésbicas negras constitui a base teórica e
política das práticas do queer. O feminismo negro-queer de Laura Alexandra Harris
constitui a “terceira onda” da politização radical do erotismo, apregoada por Audre
79
Lorde.

A terceira onda do feminismo negro

A genealogia negra do queer redigida por Harris (1996) recoloca em novos


termos a questão da “terceira onda” do feminismo africano-americano. Os dois
últimos textos do presente volume que a debatem (Springer, 2002; Guy-Sheftall, 2002)
retornam aos últimos ensaios, romances, manifestos amplamente autobiográficos
publicados por mulheres africanas-americanas, herdeiras dos combates, das lutas e dos
instrumentos teóricos do feminismo negro, mas que não se filiam necessariamente a
ele. A questão dos estereótipos da feminidade negra e a da sexualidade das mulheres
negras permanecem como dois dos percalços dessa escrita negra contemporânea.
É sintomático que seja Kimberly Springer, especialista da história do feminismo
negro dito da “segunda onda”, a interrogar a renovação geracional atual apoiando-
se em três jovens autoras africanas-americanas (Joan Morgan, Lisa Jones e Veronica
Chambers). Springer (2002) começa por criticar o modelo historiográfico das “ondas”
do feminismo, crítica que ela toma emprestada justamente de Beverly Guy-Sheftall
(2002), que discutirá seu texto. Springer mostra, portanto, como a repartição em
três ondas está centrada na história das mulheres e feministas brancas. Embora se
admita normalmente que a primeira onda do feminismo estadunidense começou

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pela mobilização abolicionista dos anos 1850, muitas mulheres negras já estavam
mobilizadas anteriormente àquela data enquanto negras e mulheres. Springer
(2002) concorda, porém, que a expressão “ondas do feminismo” constitui um desafio
político em torno das redefinições voluntaristas das palavras de ordem e da agenda
do feminismo, e permanece “útil como instrumento de crítica interna” (Springer,
2002) ao movimento. Springer se interessa assim por aquilo que “a geração hip-
hop, pós-direitos civis, pós-feminista, pós-soul, com outros ritmos”, como escreve
Joan Morgan, faz ao feminismo. Por “pós-feminista” não se deve entender uma
rejeição do feminismo, já que essas autoras prestam homenagens mais ou menos
entusiastas à geração precedente, cujos escritos elas descobriram na universidade.
Segundo Springer (2002), o que fica marcado dessas leituras é que, embora todas
examinem com olhar crítico e revoltado a renovação dos estereótipos da feminidade
negra, veiculados seja pelo establishment branco, seja pela cultura negra, nenhuma
delas desenvolve uma análise dos pressupostos heterossexistas de tais estereótipos.
Em outras palavras, todas permanecem particularmente silenciosas acerca da
sexualidade, e mais particularmente acerca da sexualidade das mulheres negras
em geral e de sua própria sexualidade em particular – diferentemente de Michele
Wallace, Barbara Smith, Alice Walker ou Audre Lorde, que tinham desenvolvido
toda uma reflexão sobre o silêncio imposto às mulheres negras em matéria de
política sexual e racial, desconstruindo os estereótipos racistas que circulam sobre
a sexualidade das mulheres negras, proibindo-as de se reapropriar de seu próprio
80 corpo, de sua própria fala assim como de seus próprios desejos e prazeres. A “geração
hip-hop” parece recomeçar do zero, como se aquela estética erótica revolucionária
do feminismo negro tivesse escapado do legado político. Uma das hipóteses, a meu
ver a mais pertinente, é não tanto um antagonismo geracional próprio do feminismo,
porém bem mais uma reconfiguração dos mais eficazes dentre os dispositivos sexistas
e racistas. Todavia, em seu comentário de Springer, Guy-Sheftall (2002) não deixa
de lamentar o esquecimento, pela pretensa terceira onda, de certos fundamentos
feministas defendidos por suas antecessoras; e, sobretudo, uma certa complacência
para com o heterossexismo.
Tal como evoquei no início desta introdução, nos Estados Unidos, durante o
período escravagista e segregacionista, se desenvolveu uma concepção do “matriarcado
negro”, que se encontra hoje ao mesmo tempo nos discursos neoconservadores
da direita estadunidense, e também em certas pesquisas antropológicas sobre a
matrifocalidade pretensamente característica das sociedades antilhanas ou africanas.
Desde o período escravista se construiu esse mito do “matriarcado negro”: uma forma
de organização social literalmente monstruosa, na qual a ordem “natural” dos sexos
é invertida. Uma organização social em que as mulheres negras são apresentadas
como mães “ruins”, mulheres abusadoras e castradoras. Na literatura racista, a figura
da mulher negra de poder castrador funciona então como a exteriorização de uma
modalidade paradigmática do poder colonial, pois uma das práticas características
dos sistemas plantocráticos ou escravagistas assim como dos governos coloniais
era a emasculação – simbólica e efetiva – do escravo e do colonizado (Paris,

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Dorlin, 2006)19. Em sua versão contemporânea, o mito do “matriarcado negro” foi
amplamente difundido pelo relatório The Negro Family redigido por Moynihan em
196520, para quem o matriarcado que reina na família negra constitui um “nó de
patologias” morais, sociais e políticas: “ciclo da pobreza” e da delinquência e, por
causa da dependência com relação ao Estado social, ruína deste (Robinson, 2003).
O matriarcado negro se articula em torno de uma figura emblemática: a da welfare
mother ou welfare Queen21c. Essa figura é eminentemente sexual, ao mesmo tempo
supererotizada e supervirilizada – o que permite assegurar a perenidade de seu efeito
castrador sobre os homens negros, a quem ela proíbe que se tornem “verdadeiros”
patriarcas, isto é, “verdadeiros” dominantes. Sua sexualidade é também vinculada
a sua fertilidade: “a welfare mother representa uma mulher que não tem moral, de
sexualidade desenfreada, fatores identificados como a causa de sua condição precária
[...]” (Collins: 2000, p. 84)22. O que torna esse matriarcado ainda mais monstruoso
é o fato de sintetizar as duas faces antinômicas de uma feminidade normativa: a
mamãe e a puta. Como sublinha perfeitamente Patricia Hill Collins, a BBM (Bad Black
Mother) é ainda hoje uma representação onipresente dos discursos racistas e sexistas,
amplamente difundida por figuras emblemáticas da cultura africana-americana
contemporânea. Bitch (ou ho) designa uma jovem mulher sexualmente insaciável
e predadora. Aqui também, essa pretensa imoralidade das mulheres negras é uma
concepção remanescente das ideologias racistas escravagistas e segregacionistas.
Nas plantações do Sul dos Estados Unidos, assim como nas habitações das colônias
francesas de ultramar, ela permitiu amplamente desculpar, limpar os brancos dos 81
estupros sistemáticos perpetrados sobre as mulheres negras, em nome da lubricidade
e da imoralidade delas. Ora, o termo bitch [“cadela”] tal como é promovido sobretudo
pelo gangsta rap23 ou mesmo pelo rap “bling bling”24 também faz referência à
animalidade e compara as mulheres negras a cadelas, e seus filhos a uma ninhada. Essa
representação infamante ora BBM ora bitch é extremamente perniciosa na medida
19 Esse procedimento de efeminação vai paradoxalmente conjugado com o “mito do negro violento”
(Davis, 1983).
20 Daniel Patrick Moynihan, professor em Harvard, intelectual liberal que trabalhou para os governos
de Kennedy e Johnson, autor em 1965 do relatório The Negro Family: The Case for National Action, que
se tornou em seguida um dos representantes mais influentes dos neoconservadores e o braço direito de
Nixon sobre as questões raciais.
21c Welfare se refere ao “bem-estar” em “Estado do bem-estar”, isto é, os dispositivos sociais que o
Estado destina aos cidadãos para que possam viver dignamente (auxílios de diferentes tipos, salário-
desemprego, vale-alimentação, subsídios etc.). A welfare mother ou welfare Queen seria a suposta
matriarca negra que vive às custas desses dispositivos estatais (NT).
22 Há outros estereótipos: a “mammy”, a “jezabel”, a adolescente depravada, a “hoochie” (a “gostosona”
dos clips de gangsta rap).
23 Ver a polêmica em torno dos textos do grupo 2 Live Crew nos Estados Unidos e a resposta de Queen
Latifah nos anos 1990. Na França, muitos grupos de rap são os mais complacentes em matéria de
representações, de posições ou de discursos sexistas, como atestam as chamadas à ordem de algumas
rappers como Bams.
24 É o rap “brega”, despolitizado, até mesmo complacente com a sociedade de consumo ou os ideais
neoconservadores, que tem somente as aparências do gangsta sem a radicalidade e a raiva deste. Na
França, é representado pelo rapper Booba.

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em que faz desaparecer o estereótipo enquanto estereótipo. Em outras palavras, para
ser reconhecida em sua feminidade “negra” – feminidade racializada que responde
à feminidade dominante, igualmente racializada, das brancas e das burguesas –, é
preciso encarná-lo totalmente.
O mito do “matriarcado negro” funciona enfim como uma ideologia
incapacitante, pois neutraliza, deformando-a, tudo o que se parece com uma afirmação
das mulheres negras: uma vez que a autonomia e o poder são privilégio dos homens,
apoderar-se desses atributos tipicamente “masculinos” implica necessariamente
a efeminação dos homens negros e a virilização das mulheres negras. Em outras
palavras, os estereótipos que pesam sobre as mulheres negras são estereótipos que
põem em cena mutações de gênero (mulheres que se tornam homens, homens que
se tornam mulheres). Os estereótipos racializados de gênero obrigam as mulheres
a desempenhar traços tipicamente masculinos (o poder econômico, a autoridade
sobre os filhos, a independência, mas também a iniciativa sexual), enquanto os
homens são efeminados (dependentes, passivos, inativos). Conforme lembra Michele
Wallace (1978), sempre em nome do matriarcado negro, alguns/algumas alegaram
assim que as mulheres africanas-americanas não precisavam do feminismo, pois
elas se beneficiavam de alguns privilégios de gênero negados às mulheres WASP25
(Wallace, 1978). Por causa dessa desvalorização sistemática da maternidade negra
(matriarcado monstruoso, lúbrico, castrador, parasita), da exclusão dos benefícios
sociais e simbólicos da feminidade, a feminidade/maternidade se torna um desafio:
82 para ter acesso ao reconhecimento, é preciso parar de desempenhar esse estereótipo
e desempenhar a norma dominante, norma generizada e racista. Trata-se de imitar
a identidade sexual branca para ter acesso a seus privilégios. É preciso, portanto,
recolocar o patriarcado em seu lugar. Foi assim que nos anos 1960 e 1970 os líderes
negros reivindicaram claramente uma certa identidade virilista fazendo a promoção
de seu papel de dominante no interior do patriarcado, já que a virilidade sexista – nos
moldes da sociedade estadunidense – era o sinal inegável de seu acesso à igualdade
(igualdade dos homens entre si). Michele Wallace (1978) recorda em seu texto esta
injunção do líder dos Black Panthers, Carmichael Stokely: o lugar das mulheres no
movimento é “de bruços” (prone). Imensas figuras femininas do movimento pelos
direitos civis aceitaram assim submeter-se a uma divisão sexual extremamente
tradicional e conservadora dos papéis, conforme testemunham as palavras desta
militante:
Penso que a mulher deve se manter por trás do homem. O homem
deve estar na frente da mulher, pois a mulher negra tem estado
historicamente acima do homem negro neste país. Ainda que não
seja por culpa delas, as mulheres negras conquistaram melhores
empregos e melhor status. Elas não ficaram iguais aos homens
brancos nem sequer às mulheres brancas, mas estiveram acima
dos homens negros. E agora que a revolução está socialmente
em marcha, creio que as mulheres negras não devem ser postas à

25 WASP: White Anglo-Saxon Protestant [branco, anglo-saxão, protestante].

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frente na vida. Creio que deveriam ser os homens negros, porque
os homens representam o símbolo das raças (apud Hooks, 1981:
182).

De modo mais geral, mulheres negras, jovens, educadas, oriundas da classe


média idealizaram essa norma vitoriana da feminidade e consentiram em não combater
em pé de igualdade ao lado dos homens negros. Em 1970, Mary Ann Weathers (1969:
s/p) escreveu: “É de fato enojante ouvir mulheres negras falar de devolver aos homens
negros sua masculinidade, ou de deixá-los retomá-la. É não somente degradante
para as outras mulheres negras como também insultante para os homens negros
(em todo caso, deveria ser)”. Todavia, a situação das feministas negras é inextricável.
Num artigo de referência para o movimento feminista africano-americano, Frances
Beal analisa perfeitamente aquilo que, alguns anos mais tarde, será conceitualizado
por Kimberle William Crenshaw sob o termo “interseccionalidade” (Beal, 1970).
Ela mostra como as mulheres negras são instrumentalizadas pelo racismo: bodes
expiatórios, são forçadas a ficar um passo atrás de “seus” homens (maridos, pais,
irmãos, filhos). Confinadas à esfera doméstica, essa posição constitui também, para
numerosas mulheres negras, o reconhecimento de seu papel de esposa e de mãe, por
tanto tempo negado. No entanto, como escreve Beal (1970), trata-se, para os homens
negros tanto quanto para as mulheres negras, de uma “posição contrarrevolucionária”
(Beal, 1970), que os sustentadores do racismo têm todo o interesse de apresentar como
“a” solução para o racismo, quando de fato ela assegura, pelo contrário, a perenidade 83
deste. A lógica é implacável: pensar o patriarcado como uma das condições da
supremacia branca faz dele um instrumento de igualização das condições entre
brancos e negros, mantendo a divisão das mulheres negras e dos homens negros,
tanto quanto das mulheres negras e brancas, estas últimas apoiando-se no sexismo
“visceral” dos negros. Conforme escreve bell hooks em 1981:

“As mulheres negras de hoje que sustentam a dominação patriarcal


mantiveram o status quo sobre a questão de sua submissão por
causa do contexto da política racial e sustentaram que estavam
prontas a aceitar um papel subordinado em suas relações com os
homens negros para o bem da raça” (Hooks, 1981: 183-184).

O compromisso é historicamente custoso. Para bell hooks (1981), como para


muitas feministas africanas-americanas, tal configuração das relações de dominação
é uma verdadeira armadilha política. Entre a solidariedade das mulheres negras
como as feministas brancas – contra o sexismo dos homens negros – e a lealdade das
mulheres negras a “seus” homens negros – contra o racismo das mulheres brancas
–, o feminismo negro desenvolveu uma terceira via, aberta pela reflexão sobre as
sexualidades das mulheres negras. Compreende-se, desde logo, a força revolucionária
desse erotismo feminista negro.

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Em 1988, o jornalista Salim Muwakkil publicou um artigo que pergunta:
“Are Black males an endangered species?” (Charlery, 2007) [“Os homens negros são
uma espécie ameaçada?”], ao qual faz referência Kimberle Springer em seu artigo.
Na esteira de Muwakki (1988), o tema do desaparecimento progressivo dos homens
negros nos Estados Unidos é complacentemente retomado pelas autoridades oficiais,
inclusive no nível federal: assim, em 1991, a Comissão do Senado dos Bancos, da
Habitação e das Questões Urbanas organiza um encontro em torno da situação dos
homens negros no ambiente urbano. Em 1992 e 1993, os estados da Califórnia e de
Indiana instalam comissões permanentes sobre o status social do homem negro.
Todas essas iniciativas se concentram sobre o lugar e o papel do homem negro na
família africana-americana, não sobre os problemas socioeconômicos da população
negra e as discriminações racistas de que ela sempre foi objeto, e obrigam ao silêncio
as líderes femininas do movimento negro. Algumas figuras intelectuais africanas-
americanas, como o filósofo africano-americano Cornell West, intervêm no debate
para denunciar a manipulação das autoridades – brancas ou negras – que alimentam
esse novo mito do “patriarcado negro” como a única solução para o racismo. O ponto
culminante é atingido em 1995, por ocasião da One Million Man March, organizada
em Washington D.C. pela Nation of Islam. Marcha do orgulho masculino negro,
as mulheres e os homossexuais foram excluídos ou proibidos no palanque. Aqui
novamente, o patriarcado não é bem menos uma questão da Nation of Islam do
que da própria sociedade estadunidense. Com efeito, a adesão zelosa de uma parte
84 do movimento negro a um ideal heterossexista confirma a pregnância e a validade
desse ideal para a sociedade estadunidense em geral, em que os privilégios brancos
são percebidos como indissociavelmente ligados a uma “ordem sexual”. A lógica
racista incita os grupos a uma paródia grotesca. Se o sexismo e a homofobia são
abandonados no caminho das lutas de liberação negra, há razão para desconfiança.
A “ordem racial” assegura duplamente as condições de sua reprodução: manter o
“patriarcado branco” como norma dominante, da qual se desvia o olhar agarrando-se
à violência do “patriarcado negro” que o parodia – desqualificando assim eficazmente
as reivindicações de igualdade dos homens negros, estigmatizados como “sexistas”.
A “geração hip-hop” do feminismo negro da década 1990-2000, tal como
desenhada por Springer (2002), certamente não é representativa do conjunto dos
engajamentos feministas negros destes últimos anos – conforme demonstra o texto
de Laura A. Harris (1996), sobretudo, que apregoa um feminismo negro-queer, um
novo erotismo feminista negro. Todavia, é a esta geração que cabe lutar dia a dia
numa situação perigosamente cheia de armadilhas; dilacerada entre raiva e silêncio.
Mais uma vez, essa responsabilidade cabe igualmente ao movimento feminista por
inteiro, o que é demonstrado pelos incontáveis trabalhos universitários, bem como
pelos múltiplos movimentos sociais contemporâneos, que constroem além-Atlântico
um feminismo realmente hétero-descentrado e decolonizado.

Pois as ferramentas do senhor nunca vão desmantelar a casa do


senhor. Elas podem nos permitir temporariamente vencê-lo em

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seu próprio jogo, mas nunca nos habilitarão a promover a mudança
genuína. E esse fato só é ameaçador para aquelas mulheres que
ainda definem a casa do senhor como seu único ponto de apoio
(Lorde, 2003: 121).

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Construindo pontes: diálogos a partir do/com o feminismo
negro1
RESUMO

Este artigo passa em revista o pensamento de diversas teóricas do feminismo negro,


especialmente as estadunidenses, consideradas centrais nesta vertente do feminismo,
como Sojourner Truth (1852), Angela Davis (2016), Audre Lorde (1984) e bell hooks
(1981). Discute-se desde a origem da vertente, a partir do questionamento de Truth
(1852) de “E eu não sou uma mulher?”, passando pelas suas bases conceituais com
Collins (2000a), até as contribuições mais recentes do feminismo negro britânico e
sua relação com o pós-colonialismo, com Carby (1982) e Pramar (1990). Evidencia-se,
desse modo, a multiplicidade de ideias dentro do feminismo negro, demonstrando
sua complexidade em diferentes contextos socioculturais.

Palavras-chave: Feminismo Negro. Gênero e raça. Lutas sociais.

RESUMEN

Este artículo revisa el pensamiento de diversas teóricas del feminismo negro, en


especial las estadunidenses, consideradas centrales en esta vertiente del feminismo,
como Sojourner Truth (1852), Angela Davis (2016), Audre Lorde (1984) e bell hooks
(1981). Se discute desde el origen de la vertiente, partiendo del cuestionamiento de 89
Truth (1852) de “¿Acaso no soy mujer?”, pasando por sus bases conceptuales con Collins
(2000a), hasta las contribuciones más recientes del feminismo negro británico y su
relación con el post colonialismo, con Carby (1982) y Pramar (1990). Se evidencia, de
este modo, la multiplicidad de ideas dentro del feminismo negro, demostrando su
complejidad en diferentes contextos socio-culturales.

Palabras-clave: Feminismo Negro. Género y raza. Luchas sociales.

Nós acreditamos que a política da sexualidade sob este sistema


patriarcal se assenhora das vidas das mulheres negras tanto como
a política de classe e raça. Também encontramos difícil separar a
opressão racial da classista e da sexual porque em nossas vidas as
três são uma experiência simultânea.
(The Combahee River Collective, 2012)

1 Este texto, originalmente publicado em espanhol sob o título “Indroducción. Construyendo puentes:
em diálogo desde/con el feminismo negro”, faz parte da Antologia de textos Feminismos negros: una
antologia, organizada por Mercedes Jabardo em 2012. Agradecemos à autora pela concessão de direitos
autorais deste texto. Tradução em língua portuguesa de Liliam Ramos da Silva e Adriana Kerchner da
Silva (UFRGS).

Mercedes Jabardo Velasco


Professora de Antropologia Social, Universidade Miguel Hernández de Elche (Alicante, Espanha).

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O feminismo negro possui as características dos movimentos que estão em
processo de construção de seu programa de luta e de emancipação a partir de diversas
e superpostas estruturas de dominação. Inclusive conflitivas, por vezes. Falar de
gênero e de “raça”2 como elementos de desigualdade é, em certo sentido, reducionista
se não estiver demarcado nas condições em que ambos os critérios emergiram
como veículos de opressão. O movimento feminista negro surgiu na confluência
(e tensão) entre dois movimentos: o abolicionismo e o sufragismo, em uma difícil
intersecção. Mesmo tendo uma presença relevante em ambos, a combinação de
racismo e sexismo terminou excluindo as mulheres negras dos dois. Tal fato não
paralisou seu impulso emancipador, muito pelo contrário. As feministas negras
foram, desde o princípio, extraordinariamente lúcidas na hora de se posicionarem e
fortes na hora de estabelecerem alianças: com os homens de sua própria “raça” nas
antigas comunidades de escravizados, com as mulheres brancas na luta pelo sufrágio
feminino e, sobretudo, com todas as mulheres negras quando o racismo contaminou
o movimento sufragista estadunidense e quando a emancipação incorporou as
diferenças de gênero nas comunidades negras.
Aquilo que desde o feminismo pós-moderno tem sido traduzido por
teoria da interseccionalidade está na base genealógica do feminismo negro afro-
estadunidense.3 Remontamos ao discurso “E não sou eu uma mulher?” de Sojourner
Truth na Convenção dos Direitos da Mulher em Akron de 1852 e à explosão de escritas
de mulheres negras na década de 1890 na qual, além dos textos de Ida Wells, foram
90 produzidas obras como A voice from the South by a Black Women from the South de
Anna Julia Couper (1982) e, posteriormente, A Coloured Women in a White World de
Mary Church Terrel (1940) (Ritzer, 2003).

Pioneiras do feminismo negro

Destacar duas entre centenas de vozes resgatadas nesse período não é uma
tarefa fácil. No entanto, Ida Wells e Sojourner Truth são sem dúvida duas das mais
significativas. E o são tanto por suas posições teóricas (no caso de Wells) quanto pela
coragem e lucidez de uma mulher iletrada (como Sojourner Truth). Elas assentaram
as bases do que seria o pensamento feminista negro (a clara ligação da reflexão teórica
às estratégias de mobilização) e também são o reflexo da forma coletiva de produção
do conhecimento do feminismo negro. Diferentemente do feminismo branco,
que tem seu momento fundacional no Iluminismo e reproduz a racionalidade do
2 No Brasil, há discussões sobre a utilização dos termos “raça” e “etnia”. Enquanto “raça” se referiria
ao fenótipo, “etnia” contemplaria características socioculturais. No texto-fonte, a autora emprega a
palavra raza (raça) sempre entre aspas. Para preservar a ideia controversa que o conceito apresenta,
optamos por manter o termo “raça” entre aspas. (Nota das tradutoras)
3 Como latino-americanistas e pesquisadoras de literatura afro-americana que contempla a produção
de autoria negra na América enquanto continente, traduzimos afro-americano (e suas variáveis de
gênero e número) por afro-estadunidense na intenção de marcar a nacionalidade em questão. (Nota
das tradutoras)

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pensamento ilustrado, o feminismo negro surge em um contexto escravista. Nesta
reflexão, pretendemos romper com a construção individual do pensamento filosófico
ilustrado, apostando na inclusão de distintos saberes, lógicas e atrizes sociais.
Se tivéssemos que fazer referência a um “texto” fundacional do feminismo
negro, seria o discurso “E não sou eu uma mulher?” de Sojourner Truth na
Convenção dos Direitos da Mulher em Akron em 1852. Encontramos nele algumas
das características que permitem compreender o caráter contra-hegemônico desse
movimento. Em primeiro lugar, a oralidade do relato frente à racionalidade da
escrita dos textos fundacionais do feminismo branco. A oralidade, como também a
oratória aprendida e praticada nos púlpitos das igrejas. Ambas foram ferramentas de
resistência dos grupos subalternos. Em segundo lugar, o próprio caráter da oradora:
Sojourner Truth foi a primeira de uma importante leva de intelectuais negras que,
sem o apoio de uma obra escrita, conectaram os interesses e as lutas das mulheres
negras (COLLINS, 2000a). Em terceiro lugar, por ser um texto produzido em situação
de colonialidade. Nesse contexto, com uma linguagem própria que não se vê refletida
no espelho imposto, Sojourner Truth desconstrói a categoria (hegemônica) de mulher
– uma categoria negada a ela – reivindicando sua própria identidade enquanto
mulher. A intersecção da “raça” com o gênero, que fez com que o sistema hegemônico
construísse a ideia de mulheres negras como não mulheres, reaparece no discurso
de Sojourner de forma inclusiva. Por trás do seu “E não sou eu uma mulher?”, por
trás das lutas de outras ex-escravizadas como Harriet Jacobs, aparece um desejo que
luta por ressignificar o termo mulher. Sua aspiração era serem livres, não somente da 91
opressão racista, mas também da dominação sexista.
As contribuições de Sojourner Truth ao movimento sufragista (invisibilizadas
pelo feminismo branco) e ao pensamento feminista negro (resgatadas nos anos 80 do
século XX) têm sido amplamente difundidas (inclusive em língua espanhola) nas últimas
décadas. Estamos orgulhosas de que esse texto fundacional abra a presente antologia.
Na década de 1890, quando aparecem obras de referência das primeiras
acadêmicas negras, a distância entre mulheres negras e mulheres brancas, que se
tornara visível dentro do movimento sufragista, era ainda mais profunda. A abolição
da escravidão, que a comunidade negra recebeu com esperança, somente transformou
a superfície da sociedade de castas que dividia as pessoas entre amos e escravizados.
Logo, a discriminação racista substituiu a escravidão como “moderno” critério de
desigualdade. Em 1894, já haviam sido estabelecidos a privação do voto das pessoas
negras do Sul, o sistema jurídico segregacionista e a vigência da lei Lynch (Wells,
2012). Inclusive, algumas sufragistas assumiram proposições eugenistas e a ideologia
da domesticidade.4 As palavras de Belle Kerney, retomadas por Angela Davis, são um
fiel reflexo do clima em que se respirava:
4 Angela Davis resgata as palavras de Elizabeth Cady Station, uma das pioneiras do sufragismo
estadunidense: “Quando o sr. Downing me faz a pergunta: você está disposta a ver o homem de cor
obter o direito ao voto antes das mulheres? eu digo que não; eu não confiaria a ele meus direitos;
desvalorizado, oprimido, ele poderia ser mais despótico do que nossos governantes anglo-saxões já são.
Se as mulheres ainda devem ser representadas pelos homens, então eu digo: deixemos apenas o tipo
mais elevado de masculinidade assumir o leme do Estado” (Davis, 2016, p. 100).

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A concessão do direito de voto às mulheres garantiria a imediata e
duradoura supremacia branca, alcançada de modo honesto; pois, como
indicam dados oficiais inquestionáveis, “em todos os estados do Sul, com
exceção de um, há mais mulheres instruídas do que todos os eleitores
analfabetos, brancos e negros, nativos e estrangeiros, somados” (Davis,
2016, p. 139).

Assim se apresentava o sufrágio feminino branco como o meio mais adequado


para alcançar a supremacia racial. Deixando de lado aspectos tais como a solidariedade,
a luta pelos direitos das mulheres ou a igualdade política, o incipiente movimento
feminista se converteu em um mero baluarte da superioridade racial das pessoas
brancas. O movimento sufragista ficou fatalmente impregnado de racismo, o que não
somente abriria uma brecha irreparável no feminismo estadunidense (feminismo
branco versus feminismo negro), mas também se transformaria em um instrumento
(a mais) no processo de objetificação da mulher negra. Ao assumirem para si mesmas
o papel de “guardiãs e protetoras naturais do lar”, ao reivindicar o voto feminino a
partir de seu papel de mães dos futuros cidadãos, as mulheres brancas excluíam as
mulheres negras do voto, da categoria de mãe e, portanto, de mulher.
O primeiro clube de mulheres negras foi organizado em resposta à desenfreada
onda de linchamentos e ao abuso sexual indiscriminado que elas sofriam. Ida B. Wells
foi uma de suas fundadoras; ambas as questões eram ao mesmo tempo objeto de suas
pesquisas e motor de suas reivindicações. Tanto Wells quanto Anna Julia Cooper,
92
outra socióloga afro-estadunidense, em posições sociais diferentes, se inspiraram
conscientemente em suas experiências de vida como mulheres afro-estadunidenses
para desenvolver uma consciência sistemática da sociedade e das relações sociais.5
Não são, nesse sentido, muito diferentes de outros pensadores que surgiram entre os
subalternos.
Ida Wells, célebre intelectual, jornalista e ativista negra, canalizou suas energias
na luta contra os linchamentos sistemáticos que sofria a população negra depois de
constatar que as vítimas não eram culpadas pelos crimes dos quais eram acusadas
(na maioria das vezes, pelo ato de estupro). Ela chegou a essa conclusão de forma
dramaticamente fortuita, quando três de seus amigos mais íntimos foram linchados,
acusados desse delito. Essa circunstância a levou a investigar de forma sistemática
todos os atos de linchamento cometidos no Sul, utilizando uma metodologia que só
recentemente teve reconhecimento científico. Utilizou as únicas fontes que existiam
– as do opressor – para, a partir delas, descobrir questões subjacentes à dominação.
Partindo dos relatos dos linchamentos, escritos em jornais de pessoas brancas,
analisou as fontes secundárias do Chicago Tribune e fez trabalho de campo logo após
os atos arbitrários. Elaborou e publicou estatísticas arrasadoras: mostrou que entre
1880 e 1891 em torno de 100 negros foram linchados; que no ano de 1892, quando
mataram seus amigos, outros 160 homens também foram linchados, a maioria por

5 Assim destacava o eminente sociólogo Ritzer (2005) em sua mais recente recuperação das sociólogas
afro-estadunidenses.

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assassinato (58) e por estupro (46). Denunciou que os atos eram utilizados para
conter a possível ascensão social da população negra no Sul. Apontando as lógicas a
partir das quais se denunciava como estupro qualquer contato (às vezes, meramente
verbal) entre um homem negro e uma mulher branca, Wells introduziu um dos
temas que seria central no feminismo negro: a forma como a interseccionalidade
entre “raça” e gênero constrói de maneira desigual a sexualidade da população branca
e da população negra. Fez isso destacando os mecanismos através dos quais são
demonizadas as relações raciais entre homens negros e mulheres brancas – usando o
termo estupro para qualquer tipo de contato ou aproximação entre eles – e a maneira
como é naturalizada qualquer forma de agressão sexual (estupro) de homens brancos
a mulheres negras.
Angela Davis retoma esse assunto:

O nó histórico que ata as mulheres negras (sistematicamente abusadas


e violadas por homens brancos) aos homens negros (mutilados e
assassinados devido à manipulação racista das acusações de estupro)
apenas começou a ser reconhecido de modo significativo. Sempre que as
mulheres negras desafiaram o estupro, elas expuseram simultaneamente
o uso das acusações falsas de estupro enquanto arma mortal do racismo
contra seus companheiros (Davis, 2016, p. 189).

A aliança racial entre homens e mulheres negras crescia paralelamente à


93
grande brecha que se abriu no movimento sufragista. Os clubes de mulheres negras
foram extintos e até mesmo nas grandes passeatas pelo sufrágio feminino as líderes
(brancas) do movimento assumiram a política segregacionista obrigando as mulheres
negras a caminharem separadamente. Essa convivência constante com o racismo,
incluindo a das intelectuais negras dos grupos abastados, serviu, desde o princípio,
como nexo de união com as mulheres negras da classe trabalhadora, criando assim
um vínculo interclassista que vem diferenciando o feminismo negro do feminismo
branco de origem burguesa e que, além disso, está na base da sororidade [sisterhood]
que reclamam para si as teóricas do feminismo negro.

Bases conceituais do feminismo negro

Enquanto o feminismo moderno/ilustrado se desenvolveu a partir de Simone


de Beauvoir e sua afirmação “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, os discursos
de gênero no feminismo negro partem de uma negação, de uma exclusão, de uma
interrogação, o que bell hooks (1981) retoma de Sojourner Truth em um dos primeiros
textos do pensamento feminista negro: “E não sou eu uma mulher?”
Não é um título escolhido ao acaso. A interrogação resgatada por bell hooks
é a expressão de um sentimento coletivo que responde de forma irônica às teorias
feministas de gênero surgidas da tese de Simone de Beauvoir, teorias que serviram

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para compreender que a identidade coletiva e pessoal é reconstruída socialmente
de maneira precária e constante (Haraway, 1995). A partir do feminismo negro, a
identidade da mulher é simultaneamente reclamada e reconstruída. Frente aos
exercícios “construtivistas” do feminismo branco, o feminismo negro parte de uma
não categoria (não mulher). A única estratégia possível na negação é um exercício
de desconstrução. Destruir a negação na qual as mulheres negras foram excluídas
da categoria de mulheres para assim avançarem, repensarem-se e reconstruírem-
se em outras categorias; re-conhecerem as imagens de não mulher como estratégia
de hegemonia e dotarem-se das ferramentas adequadas para sua revelação e sua
superação. Ferramentas que, nas palavras de Audre Lorde (1984), não poderão ser as
ferramentas do amo: “As ferramentas do amo nunca vão desmantelar a casa-grande.
Talvez nos permitam obter uma vitória passageira seguindo as regras do jogo, porém
nunca nos valerão para efetuar uma autêntica mudança”6. Para deixarem de ser
constituídas como objetos e pensarem-se enquanto sujeitos, tiveram que tomar a
palavra, recuperar a voz e gerar um novo discurso. Definitivamente, criar uma nova
epistemologia.

O discurso duplo dos grupos dominados. Patricia Hill Collins

Os primeiros textos de teoria feminista negra foram publicados nos Estados


94 Unidos na década de 80 do século XX quando se forjava o que seria denominado
a segunda onda do feminismo. Desde diferentes enfoques teórico-práticos – que
tiveram uma leitura em termos de feminismo liberal, feminismo radical e feminismo
socialista –, foram se ramificando os eixos teórico-políticos do que foi o movimento
feminista da segunda metade do século XX, cujas sequelas seguem presentes nos
discursos do feminismo hegemônico. Sánchez, em uma interessante revisão do(s)
feminismo(s) na Espanha, faz uma articulação em torno de dois grandes temas: o
primeiro, representado no lema “o pessoal é político”, queria chamar a atenção para
os conflitos e problemas que as mulheres enfrentam no âmbito privado; o segundo
estruturaria a análise das causas da opressão, na qual o conceito de patriarcado
desempenharia um papel fundamental, reformulado por algumas autoras segundo
o sistema de sexo-gênero (Álvarez, 2001; Sánchez, 2001). Foi precisamente o sistema
de sexo-gênero o que as feministas negras primeiro puseram em questão. Uma das
premissas centrais desse sistema, tal e qual o formulou Rubin em um profícuo artigo
em 1975, explica a complementaridade dos sexos e a opressão das mulheres pelos
homens através do intercâmbio das mulheres dentro do sistema de parentesco.

6 No texto de partida: “Las herramientas del amo nunca desmontan la casa del amo. Quizá nos permitan
obtener una victoria pasajera siguiendo sus reglas del juego, pero nunca nos valdrán para efectuar
un auténtico cambio” (tradução nossa). É possível acessar à tradução completa do texto no par de
línguas inglês-português realizada por Tatiana Nascimento em <https://www.academia.edu/11277332/
LORDE_Audre_-_As_ferramentas_do_mestre_nunca_v%C3%A3o_desmantelar_a_casa-grande>,
acessado em 10.mar.2019

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Hazel Carby (1987), Aída Hurtado (1989) e Hortense J. Spillers (1987), entre outras,
questionaram a universalidade desse princípio. Elas se perguntaram: o que ocorre
quando as mulheres não se encontram nas mesmas posições com relação à instituição
do parentesco? O que ocorre com a ideia de gênero se grupos inteiros de homens e
mulheres estão situados juntos, fora da instituição de parentesco, mas relacionados
com a instituição de parentesco de um grupo dominante? E as três voltaram ao período
da escravidão de onde, através de uma análise de corte historicista, mostraram como
as mulheres negras não foram inseridas na sociedade estadunidense da mesma
maneira que as mulheres brancas. Não foram as únicas. Os eixos teórico-práticos
foram amplamente contestados por parte das feministas negras (Davis, 2016; Hull,
Bell Scott, Smith, 1982; hooks, 1981, 1984). O que elas denunciavam era o próprio
conceito de gênero, na medida em que fazia parte do sistema de relações hierárquicas
de “raça”. Com a denúncia, começaram a escutar a sua própria voz, uma voz que havia
estado obscurecida em um sistema de dominação que havia sido construído com as
ferramentas dos grupos hegemônicos. Assim grita bell hooks:

Meu desejo de encontrar fontes que pudessem explicar a


experiência negra (especialmente minha presunção de que os
livros escritos por brancos poderiam conter tal explicação) é
precisamente um reflexo da socialização dos grupos oprimidos
e explorados em uma cultura de dominação. Nós aprendemos
que não temos poder para definir nossa própria realidade ou
para transformar as estruturas opressivas. Nós aprendemos a
95
buscar naquelas capacitadas pelos sistemas de dominação, que
nos ferem e nos são daninhas; procuramos ser liberadas e nunca
conseguimos isso. Para nós, é necessário fazer o trabalho por nós
mesmas se quisermos conhecer mais sobre nossa experiência, se
quisermos ver essa experiência desde perspectivas inconformadas
com a dominação (hooks, 1984, tradução nossa).

É preciso sair, portanto, das lógicas do discurso da dominação, afastar-se das


formas que já foram pensadas. Para o feminismo negro, a geração de pensamento
passava por um exercício de desconstrução e reconstrução. Nessa tarefa, a obra de
Patricia Hill Collins tem um grande protagonismo. Em primeiro lugar, por seus
aportes no campo da epistemologia, naquilo que ela estabelece como terceira via
(entre as ideologias científicas da objetividade e os relativismos) e que faz referência
a uma epistemologia alternativa que se sustenta na conexão entre conhecimento,
consciência e políticas de empoderamento:

1. Na medida em que se constrói a partir da experiência vivida e não de uma


posição teoricamente “objetiva”, o conhecimento se desenvolve dialogicamente.
Diante da linguagem objetiva e distante de outras formas de aproximação
do conhecimento, nas epistemologias alternativas a autora é central e está

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presente no texto. Na epistemologia feminista negra, a história é contada e
preservada em forma de narrativa e não de uma posição analítica.

2. A questão ética é colocada no centro da produção de conhecimento com o


reconhecimento de que todo o pensamento está carregado de valor. Não cabe,
portanto, uma distância objetiva com relação à realidade investigada, nem a
ruptura binária entre intelecto e emoção que rege a perspectiva eurocêntrica.
Pelo contrário, o conhecimento deverá ser testado pela presença de empatia
e emoções.

3. A epistemologia feminista negra requer um acerto de contas pessoal. O


pesquisador e a pesquisadora não estão separados, distanciados da verdade. A
forma de produzir conhecimento dos grupos subjugados se dá em um sistema
de conhecimento preexistente onde toda informação encontra sua existência e
“verdade”, e onde sua própria forma de produzir conhecimento “gera” verdade.
Por isso tem uma maior carga de responsabilidade moral sobre ele.

Em segundo lugar, por suas contribuições ao pensamento feminista negro


em particular e ao feminismo no geral. Todo o essencial está sistematizado em
um livro escrito em 1990 e que se transformou em um clássico do pensamento
96 feminista negro: Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness and the Politics
of Empowerment. O capítulo que retiramos desse livro para a presente antologia
sintetiza as características-chave. Com respeito à epistemologia alternativa, Collins
defendia que epistemologia e conhecimento não são separáveis, tampouco alheios
aos valores políticos nem às crenças individuais. A forma como nos aproximamos
do conhecimento e o próprio conhecimento têm um significado em termos de
empoderamento. Conhecimento, (auto)consciência e empoderamento são termos
que aparecem constantemente interrelacionados em seu pensamento. “Escrevi
Black Feminist Thought com o fim de ajudar no empoderamento das mulheres afro-
estadunidenses”, escreveu Collins (2000b) no prefácio da segunda edição de seu livro.
“Eu sabia que uma mulher negra, ao experimentar uma mudança de consciência
com relação à sua própria vida, pode se empoderar”. Hill Collins interrelacionava
pensamento feminista negro e empoderamento em torno de três eixos.
No plano teórico, ela redefine o conceito de opressão em termos de
interseccionalidade incorporando o que denomina “matriz de dominação”7 e adota a
“teoria do ponto de vista” para caracterizar as bases do pensamento feminista negro,

7 A matriz de dominação faz referência à organização total de poder em uma sociedade. Há duas
características em qualquer matriz: 1) cada matriz de dominação tem uma particular disposição dos
sistemas de intersecção da opressão; e 2) a intersecção dos sistemas de opressão está especificamente
organizada através de quatro domínios de poder interrelacionados: estrutural/disciplinário/
hegemônico/interpessoal. A intersecção de vetores de opressão e de privilégio cria variações tanto nas
formas quanto na intensidade na qual as pessoas experimentam a opressão (Collins, 2000b, p. 299,
tradução nossa).

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enfatizando a perspectiva das mulheres negras sobre sua própria opressão. Tudo
isso gera uma tensão entre as mudanças coletivas e as experiências individuais que
Collins resolve a partir de um duplo posicionamento: negando a possibilidade de um
ponto de vista homogêneo e estabelecendo a formação de um ponto de vista coletivo.
Da mesma forma, mostra a articulação entre conhecimento e empoderamento.
Como acontecia no movimento de mulheres brancas, no feminismo negro a
crescente sensibilidade da diversidade no que é comum se conecta com a diversidade
nas formas de ativismo que, no caso das mulheres negras, reverbera na criação
de espaços sociais onde as mulheres falam por muito tempo. Collins identifica no
texto três desses espaços sociais: a) o das relações das mulheres negras entre si; b)
a tradição das cantoras de blues e c) as teóricas afro-estadunidenses. Enquanto que
o primeiro espaço está fixado no dia a dia das mulheres negras, os dois últimos são
os que historicamente deram voz às mulheres que não tinham voz. A importância
desses espaços se estabelece na medida em que proporcionam oportunidades para a
autoidentificação, que é o primeiro passo para o empoderamento. Se um grupo não
se define a si mesmo, então será definido por e em benefício de outros.
Collins também situa a luta pela autoidentificação das mulheres negras
enquanto coletivo de luta em um diálogo entre ação e pensamento. “Mudanças no
pensamento” – afirma – “podem alterar condutas e as condutas alteradas podem
produzir mudanças no pensamento”. Ela vê essa mudança como um processo de
rearticulação, mais que de criação de consciência, entendendo a rearticulação como
um veículo para re-expressar uma tomada de consciência que já aparece nas ruas 97
com uma certa frequência.
É difícil apontar brevemente as contribuições de Patricia Hill Collins não
somente com relação à epistemologia feminista negra ou a dos grupos subjugados
como também à teoria social geral. Apresentar a teoria e a prática de Collins como
um solilóquio afrocentrado obscureceria a implicação teórica de seus aportes. De
fato, Collins trata de colocar as mulheres negras estadunidenses no centro de suas
análises. No entanto, ela faz isso sem privilegiar essas experiências. Para concluir
com suas próprias palavras:

Apesar do enorme potencial das mulheres afro-estadunidenses


para iluminar a matriz de dominação, o ponto de vista delas
é somente um ângulo de visão. O pensamento feminista negro
representa uma perspectiva parcial. A matriz de dominação geral
acolhe múltiplos grupos, cada um com variadas experiências de
provações e de privilégios que geram perspectivas correspondentes
parciais, conhecimentos situados e, para grupos subordinados
claramente identificáveis, conhecimentos subjugados [...]
Esse enfoque feminista afrocêntrico permite às mulheres afro-
estadunidenses levar o ponto de vista das mulheres negras a
diálogos epistemológicos mais amplos relativos à matriz de
dominação. Eventualmente, tais diálogos podem levar a um ponto

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no qual todas as pessoas apreendam o core em outra experiência.
(Collins, 2000b, p. 229, tradução nossa)

Os rostos da resistência. As mulheres negras do blues de Angela


Davis
Sob a máscara, no gueto da comunidade das mulheres negras,
na sua família, e mais importante, na sua psique, há e sempre
houve outro mundo, um mundo no qual ela opera – às vezes com
vergonha, mas frequentemente com verdadeiro deleite – fazendo
o que fazem as mulheres negras “normais”.
(O’Neale, 1986, p. 139)

Estamos enraizadas na linguagem, casadas, nosso ser são as


palavras. A linguagem é também um lugar de combate. O combate
dos oprimidos em relação à linguagem para nos recuperarmos
a nós mesmas – para reescrever, reconciliar, renovar. Nossas
palavras não carecem de importância. São um ato – de resistência.
A linguagem também é um lugar de combate.
(hooks, 1989, p. 28)

James C. Scott afirma, no livro que fez com que nos aproximássemos de forma
98 diferente das lógicas ocultas dos grupos subalternos:

Primeiro, o discurso oculto é um produto social e, portanto,


resultado das relações de poder entre subordinados. Segundo:
como a cultura popular, o discurso oculto não existe na forma de
pensamento puro; existe somente na medida em que é praticado,
articulado, manifestado e disseminado dentro dos espaços sociais
marginais. Terceiro: os espaços sociais nos quais cresce o discurso
oculto são por si mesmos uma conquista da resistência, que se
ganha e se defende nas entranhas do poder. (Scott, 2003, p. 175,
tradução nossa)

O que Angela Davis nos apresenta nesse texto é um dos espaços sociais onde
crescia o discurso oculto das mulheres negras, aquele de onde respondiam, resistiam
às construções ideológicas que, no poder, moldavam sua sexualidade como primitiva
e exótica. Esse espaço, que Patricia Hills Collins incluiu em uma categoria mais ampla
como espaço social e cultural, é o das cantoras negras de blues da primeira parte do
século XX. Angela Davis não é a primeira nem a única entre as feministas negras que
explorou esse espaço. As cantoras de blues exerceram um forte fascínio nas feministas
negras, sobretudo estadunidenses, já desde os primeiros textos literários.8 No entanto,
8 Ver, entre outras, Toni Code Bambara, Gayl Jones, Sherley Anne Williams, Alice Walker, Mary Helen
Washington, Toni Morrison, Alexis De Veaux e Jessica Hagedorn. Nos anos 80 do século XX iniciam
as explorações feministas do blues com os trabalhos de Rosseta Reitz, Sandra Leib e Daphne Duval
Harrison.

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foi outra feminista da diáspora negra, Hazel Carby, quem introduziu as cantoras de
blues nos primeiros vinte anos do século XX como as autênticas representantes da
cultura popular. Fez isso em um texto no qual enfrentou as diferentes visões da
sexualidade das mulheres negras que se espelhavam nas escritas das intelectuais
e escritoras da classe média negra e as que apareciam nas letras, nas vidas e nos
movimentos das cantoras de blues. Nelas aparecem as contradições nas quais são
confrontadas as imagens estereotipadas que o discurso hegemônico concebe sobre
as mulheres negras. Entretanto, cada grupo o enfrenta de uma maneira diferente.
Enquanto nos textos literários são assumidas as categorias do discurso hegemônico
que definem a sexualidade feminina negra como primitiva e exótica e são buscadas
vias de redenção na negação do desejo e na repressão da sexualidade,9 as mulheres
do blues, como as grandes “Ma” Rainey ou Bessie Smith, desafiam o patriarcado
com maior liberdade. Criam um “discurso” que articula luta cultural e política sobre
as relações sexuais; uma luta que se posiciona diretamente contra a objetificação
da sexualidade das mulheres em uma ordem patriarcal, mas que ao mesmo tempo
reclama os corpos das mulheres como sujeitos sensuais e sexuais. Carby outorga a
essas mulheres o papel de intelectuais orgânicas, no sentido gramsciano do termo.
Não somente faziam parte da comunidade sujeito de sua música, como também eram
produto do movimento rural-urbano. Carby analisa a partir desse contexto social as
migrações rurais-urbanas (sul-norte), a forma como as atuações e os discos refletiram
e marcaram as relações sexuais dentro da comunidade negra, assim como o terreno
cultural no qual as diferenças sexuais eram disputadas e redefinidas (Carby, 1986). 99
Angela Davis parte do trabalho de Carby e de sua obra anterior Mulheres,
raça e classe para buscar no blues feminino dos anos 1920 os rastros e rostos de
uma tradição secreta de um feminismo de classe trabalhadora, que coexiste junto
a uma tradição de classe média negra, mas cujos códigos e formas de expressão
eram completamente distintos. Frente à obra (escrita) das intelectuais do feminismo
negro, referentes tradicionais do movimento feminista negro, os textos (não escritos)
do blues feminino aparecem como o veículo de expressão das ideias produzidas
nas e pelas mulheres pobres de classe trabalhadora, aquelas que nunca poderiam
acessar os textos escritos e aquelas que não se reconhecem – salvo nas categorias
de exclusão – em suas imagens que são projetadas tanto pelo sistema hegemônico
(branco) quanto pela classe média negra. Nesse sentido, o blues é o herdeiro das
canções de trabalho e dos rituais na época da escravidão. Músicas que conseguiam
traduzir os desejos e os lamentos da população negra em uma expressão de caráter
coletivo, em um discurso que, na medida em que era inacessível para os grupos
dominantes, funcionava como uma expressão comunitária da experiência de ser
negro. No entanto, enquanto a música da escravidão – ambas, a secular e a religiosa
– era a quintessência da música coletiva no sentido de que era coletivamente criada
e refletia o desejo da comunidade pela liberdade, o blues – a forma musical afro-
estadunidense predominante no período pós-escravidão – articulou um novo valor

9 Hazel Carby analisa as obras de Zora Neale Hurston, Jessie Fauset e Nella Larsen.

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das diferentes aspirações e necessidades emocionais. O nascimento do blues era uma
prova estética de novas realidades psicossociais entre a população negra. Diante dos
referentes coletivos do período anterior, foram incorporadas duas características
do sistema hegemônico: a individualidade e a diferenciação sexual. Angela Davis já
havia argumentado em trabalhos anteriores que a população negra havia conseguido
durante a escravidão a façanha prodigiosa de transformar a igualdade negativa que
emanava do fato de sofrer a mesma opressão como escravizados10 de forma positiva:
a igualdade nas relações sociais (Davis, 2016). Nesse texto, ela introduz dois dos
aspectos que, com a emancipação, transformaram radicalmente a vida da população
afro-estadunidense: a viagem e a exploração livre da sexualidade. E demonstra como
esse duplo exercício da liberdade individual está presente em todas as composições
de blues da época, tanto nas dos homens quanto nas das mulheres. Embora apareça
de distintas formas, isso ocorre de tal maneira que essas duplas vivências apontavam
trajetórias genericamente diferenciadas na população negra. Os homens e as mulheres
do blues compartilhavam a linguagem e a experiência do trem e da sexualidade. No
entanto, havia significados diferentes para cada um.
O discurso hegemônico – que estava também representado nas vozes
masculinas – diferenciava entre quem viajava (os homens) e quem sentia o desamparo
do abandono (as mulheres), como expressava uma das canções de Peetie Wheststraw
trazida por Angela Davis no texto que apresentamos:

100 When a woman gets the blues, she hangs her head and cries.

When a man gets the blues, he flags a freight train and rides. 11

As cantoras negras de blues resistiram em exprimir em suas letras trajetórias


femininas marcadas pela resignação e pela impotência. Pelo contrário, suas letras
estavam cheias de referências sobre a independência feminina, o controle dos
seus desejos e o exercício livre de sua própria sexualidade. Não eram somente as
letras. Suas trajetórias de vida estavam matizadas por esses cenários construídos
à margem da moral dominante; cenários que se transformaram, finalmente, em
referentes para as mulheres pobres ou de classe operária que o discurso hegemônico
colocava no papel de vítimas ou no estereótipo de jezzabel, mulheres dominadas por
seu apetite sexual e vítimas de seus excessos. Porque era assim que se traduzia, na
percepção da moral dominante, a recém-adquirida (e praticada) liberdade sexual das
mulheres negras. O que Angela Davis propõe nesse sugestivo texto é que cantoras
de blues como “Ma” Rainer ou Bessie Smith, em cujas letras ela desentranha as

10 O patriarcado branco havia anulado a possibilidade da existência de um patriarcado negro entre os


escravizados: “Assim como as mulheres negras dificilmente eram ‘mulheres’ no sentido corrente do
termo, o sistema escravista desencorajava a supremacia masculina dos homens negros.” (Davis, 2016,
p. 26).
11 “Quando uma mulher fica deprimida, inclina a cabeça e chora/Quando um homem fica deprimido,
toma um trem de mercadorias e vai embora” (Tradução nossa).

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origens do pensamento feminista negro, desempenharam nos anos 1920 o papel de
intelectuais no sentido que Collins confere às feministas negras: aquelas mulheres
que são capazes de traduzir as necessidades de outras mulheres em um discurso
que permite e/ou possibilita seu empoderamento. As cantoras de blues tinham essa
capacidade porque, como dizia Carby, elas mesmas faziam parte desse grupo, por
isso eram capazes de entender as lógicas a partir do lugar de atuação, sentimento e
sofrimento das mulheres negras de classe operária. A partir daí, com um código que
compartilhavam e que, com o tempo, as distanciava dos grupos dominantes, elas
eram capazes de estabelecer uma espécie de comunhão através das letras de suas
canções como também por sua maneira de estar, de se deslocar, de chegar até elas.
Aquilo que na perspectiva hegemônica da sociedade era visto como excesso, no blues
era compreendido pela capacidade de agência. As mulheres negras não estavam
dominadas por seu apetite sexual; escolhiam praticar sua sexualidade livremente,
à margem do imaginário do amor romântico ligado ao matrimônio imposto pela
sociedade branca. O blues feminino funcionava, nesse sentido, como linguagem de
resistência, capaz de articular em um discurso comum os interesses coletivos de um
grupo subjugado.

Redefinir o conceito de família: o valor do parentesco. Um diálogo


com Carol Stack
101
Confesso que quando li pela primeira vez All our Kin, a maravilhosa monografia
na qual se baseia o texto que apresentamos nesta antologia, pensei que Carol Stack
era negra. Depois soube que ela mesma se sentiu e se percebeu assim nos três anos
que morou no gueto (Stack, 1972). Já existiam pesquisas pioneiras nas comunidades
negras como a que Du Bois (1899) realizou no começo do século, mas desde os
anos 1930 as aproximações haviam sido realizadas a partir de dados quantitativos.
Algumas, inclusive, foram especialmente tóxicas para a imagem da comunidade
negra nos Estados Unidos. Carol Stack faz referência àquela que foi, sem dúvidas, a
mais influente política e socialmente: o Informe Moynihan (1965).
Trata-se de um texto de assessoramento político, redatado pelo sociólogo
que lhe dá nome, no qual é descrita e diagnosticada a “família negra” a partir de
critérios elaborados sobre a base de um modelo de família nuclear que universaliza
o modelo de família de classe média branca estadunidense. Tomando como referente
de normalidade o matrimônio heterossexual, aponta como anomalias as práticas da
família negra: “Um quarto dos casamentos estão desfeitos, aproximadamente um
quarto dos nascimentos são ilegítimos; pelo menos um quarto das famílias tinha
como chefe uma mulher”, características essas que, segundo o autor, permitem falar
da “desintegração da família negra” e derivar como consequências de tal ruptura
“a crescente dependência das políticas assistenciais públicas” e o empobrecimento
da comunidade negra. O Informe Moynihan ia mais além. Destacava que a causa

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para essa situação tinha raízes históricas, localizadas na prática escravista e nos
posteriores deslocamentos massivos em direção às cidades. O diagnóstico? Uma
espécie de patologia da família negra que tinha, inclusive, um nome: matriarcado.
O efeito desse relatório na comunidade negra foi muito daninho. As imagens
estereotipadas das mulheres negras as distanciavam do ideal de feminilidade que
acompanhava tradicionalmente a família “ideal” e que se apoiava na imagem de
uma determinada mulher que possuía as quatro virtudes cardinais: piedade, pureza,
submissão e domesticidade (Collins, 2000b, p. 72). Através desses estereótipos
femininos, demonstrava-se a desestruturação das famílias negras e se explicava, a
partir dela, os índices de pobreza, de marginalidade e inclusive de violência entre as
comunidades negras.
Pensadores, políticos e também cientistas sociais se apoiaram no Informe
para caracterizar uma “subclasse” [underclass] e formular, tomando-o como base
empírica, discursos, programas e medidas políticas. Uma das ideias de maior
ressonância dentro da política de “ajuda assistencial” é a que tende a identificar as
mulheres negras, chefes de família monoparentais, como as principais preceptoras
do salário social. Isso gerou um novo estereótipo, que Collins (2000b) define como
“a mãe dos serviços sociais” [Welfare Mother], uma imagem que define a mulher
como alguém com pouco interesse em ascender e manter um emprego e que, em
troca, engravida com frequência com o fim de conseguir mais dinheiro dos cofres
do Estado. Ao mesmo tempo, é retratada como uma mãe incapaz de socializar seus
102 filhos nos valores cívicos e de impor a eles padrões normativos para que valorizem
e aceitem a ética do trabalho, o que acaba perpetuando a situação de pobreza que
parece envolver toda a família. Quer dizer, são responsabilizados pela situação
crônica de pobreza nas margens internas do gueto negro os indivíduos que sofrem
tudo isso, além das próprias mulheres.
O trabalho de Carol Stack foi um dos primeiros em romper com essa
imagem. Anos antes, outro antropólogo, Elliot Liebow, havia indagado as lógicas
internas do gueto através dos olhos, olhares e vozes dos homens negros. Seu estudo,
Tally’s Corner (1967), foi uma das primeiras respostas da antropologia ao Informe
Moynihan. No entanto, esse olhar penetrante, na medida em que se centrava quase
que exclusivamente nos homens e considerava de forma periférica as famílias, não
atingiu o coração da comunidade. Carol Stack, por outro lado, ao situar as mulheres no
centro e dar relevância ao seu ponto de vista, pôs o foco nos lares – que se formavam
ao redor das mulheres – e nas redes que elas articulavam. A partir desse emaranhado
que ela desembaraça, passam a ser visíveis as lógicas comunitárias que sustentam
as redes. Atendendo às vozes das mulheres negras lutando para criar seus filhos no
gueto, Stack mostrou que as condutas que a sociedade dominante condenava como
patológicas eram realmente estratégias das próprias mulheres para manter a coesão
e satisfazer suas necessidades econômicas.
O trabalho de Carol Stack teve um rápido e amplo reconhecimento no campo
disciplinar da antropologia social como exemplo de estudo etnográfico sobre a
pobreza e a desigualdade social. Por sua vez, o feminismo negro havia retomado seus

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aportes etnográficos como base para a reconceitualização da família e da comunidade.
“Colocando as mulheres afro-estadunidenses no centro da análise” – afirma Hill
Collins (2000b) –, “Stack não somente revela que são necessárias mais informações
sobre as experiências das mulheres como também questiona as perspectivas
eurocêntricas e masculinas sobre a família”. Ao estudar o papel das mulheres
negras na luta e na sobrevivência do grupo, revela-se um modelo (afrocêntrico) de
comunidade que, em contraste com a definição de comunidade implícita no modelo
de mercado, estruturada fundamentalmente pela competição e pela dominação, é
construída sobre as conexões, o cuidado e a responsabilidade pessoal (hooks, 1989).
Entendo que esta colaboração justificaria a inclusão de Carol Stack em
qualquer antologia de feminismo negro. No entanto, esta compilação é uma das
primeiras a fazer isso. Talvez seja porque, como ela mesma afirmou, apesar de,
nos anos em que viveu no gueto, ter esquecido em muitas ocasiões a cor da sua
pele, nunca teve a ilusão de ser uma habitante daquele lugar (Duneier, 2007). Teve
a suficiente capacidade para entender as outras mulheres com seus códigos e, ao
mesmo tempo, ser consciente da diferença entre ela e seus sujeitos. O trabalho de
Carol Stack é um trabalho comprometido que se encaixaria bem na trilogia com a qual
Hill Collins sintetizava o papel das intelectuais negras (conhecimento/consciência/
empoderamento). Poucos trabalhos teóricos atingiram o nível de penetração nas
lógicas da comunidade negra como a aproximação etnográfica de Carol Stack; a
tal ponto que Gilroy e hooks demandavam um trabalho com essa capacidade de
introspecção para descobrir e mostrar como funciona atualmente a comunidade 103
negra em contextos marginais (Gilroy, 1993). A única coisa que diferencia Carol
Stack de outras autoras que apresentamos nesta antologia é a sua desvinculação com
o movimento político; efetivamente, não se pode dizer que Carol Stack seja uma
feminista negra. No entanto, sua obra contribuiu de forma substancial para a criação
do pensamento negro e isso também merece um reconhecimento.

Segunda Onda do pensamento feminista negro. Diáspora e estudos


culturais.

Ao colocar o racismo no epicentro da desigualdade das mulheres negras, o


feminismo negro estadunidense abriu a porta para outros feminismos. No contexto
europeu, o feminismo negro britânico tomou a dianteira. Frente à vivência da
escravidão, vital no discurso afro-americano, as britânicas negras incorporaram
situações e/ou vivências do pós-colonialismo, as migrações e os deslocamentos.
Fizeram-no partindo de outra categoria de “negro”. Avtar Brah o explica da seguinte
forma:

Na medida em que mulheres negras compreendiam uma


categoria altamente diferenciada em termos de classe, etnia e

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religião, e incluíam mulheres que tinham migrado da África, do
subcontinente asiático e do Caribe, tanto como aquelas nascidas
na Grã-Bretanha, o negro do “feminismo negro” inscrevia uma
multiplicidade de experiências, ainda que articulasse uma
posição particular de sujeito feminista. Além disso, ao trazer para
o primeiro plano uma ampla gama de experiências diaspóricas em
sua especificidade tanto local quanto global, o feminismo negro
representava a vida negra em toda sua plenitude, criatividade e
complexidade (Brah, 2006, p. 357).

Ligadas ao movimento intelectual britânico da New Left [Nova Esquerda] e com


vínculos teóricos com a diáspora negra, as feministas negras britânicas construíram
um discurso identitário frente às posições da esquerda e do feminismo branco. As
autoras que apresentamos nesta antologia, Hazel Carby e Pratibha Parmar são, nesse
sentido, representativas de um movimento que teve seu centro de operações no grupo
Raça e Política do Center for Contemporary Cultural Studies (CCCS) da Universidade
de Birmingham.
O CCCS foi criado em 1964 dentro do que foi o movimento da New Left.
Esse movimento aglutinou membros relevantes da intelectualidade pós-colonial e
anticolonialistas sem espaço nem acolhimento dentro das instituições dominantes da
esquerda britânica. Um deles, talvez hoje o mais canonizado de seus pais fundadores,
é o sociólogo e crítico Stuart Hall (Morley; Chen, 1996), talvez porque se encontre
104 entre a primeira geração, mais centrada nas tradições e resistências do proletariado
britânico (representada nas obras de Hoggart, Williams ou E. P. Thomson), e a
segunda, que incorpora como questões centrais a “raça” e o feminismo. De fato,
quando Hazel V. Carby e Pratibha Parmar, junto com Valerie Amos ou Paul Gilroy, se
incorporaram à Universidade de Birmingham, o CCCS era liderado por Stuart Hall
e já havia iniciado o que o próprio Hall qualificaria como a virada da classe para a
“raça” e o gênero, para o que, sem dúvida nenhuma, contribuíram os e as integrantes
do grupo Raça e Política. Tanto é assim que o texto de Carby que selecionamos, White
Women Listen! Black Feminism and the Boundaries of Sisterhood, na ocasião um dos
referenciais teóricos do feminismo negro, foi publicado pela primeira vez em um dos
livros de referência dos Estudos Culturais, The Empire Strikes Back (1981); neste volume
também participou Pratibha Parmar com o capítulo Gender, Race and Class. Asian
Women in Resistence. Com o trabalho de ambas, ao qual se deveria somar também
o texto que Pratibha Pramar escreveu junto com Valerie Amos (1984), o gênero foi
incorporado ao CCCS partindo da/na intersecção com a “raça”, distinguindo-se e
diferenciando-se da primeira onda feminista, completamente alheia à questão racial
(Brundson, 1996).
Segundo aponta Grossberg, o projeto dos Estudos Culturais era construir uma
história política do presente e fazer isso de uma forma particular, de uma maneira
contextualista. Ele pretende evitar reproduzir os universalismos que contribuíram –
como prática dominante de produção de conhecimento – para forjar certas relações

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de dominação, desigualdade e sofrimento; e busca práticas capazes de abranger a
complexidade e a contingência, assim como evitar qualquer espécie de reducionismo
(Grossberg, 2006). O trabalho de Carby e de Parmar se desenvolve dentro dessas
tendências. No caso de Hazel Carby, ademais, deve-se apontar a estreita relação que
estabelece intelectualmente com Paul Gilroy, o outro grande teórico da diáspora
negra no CCCS. Como ele, Carby move-se entre dois pilares teóricos: a tradição pós-
colonial dos Estudos Culturais britânicos, personificada na figura de Stuart Hall, e
os pensadores e intelectuais afro-estadunidenses que tentaram recuperar a tradição
histórica e literária da comunidade negra, oculta pelo véu do racismo na sociedade
estadunidenses. Gilroy incorpora, além disso, o conceito de Atlântico Negro dos afro-
caribenhos, britânicos e americanos. Em seu livro The Black Atlantic12 ele apresenta
uma cultura diaspórica negra diversa que transcende os limites das identidades
nacionais e/ou étnicas. Este mapa/narrativa coloca em primeiro lugar as histórias de
cruzamento, migração, interconexão e viagem. Partindo desse ponto, dessas zonas
de contato, reescreve a história do Atlântico Negro e a de algumas de suas figuras
mais emblemáticas.
A produção teórica de Hazel V. Carby discorre também nesse território amplo,
de cruzamentos, interconexões e viagens, que é o Atlântico Negro, e contribuiu
substancialmente para a geração do pensamento negro.13 O texto apresentado nesta
antologia, White Women Listen! Black Feminism and the Boundaries of Sisterhood
(1982), se enquadra nesse tipo de produção gerada no CCCS nos anos 1980, trabalho
intelectual de alto nível, mas com evidente vocação de transformação política. Carby 105
também queria contribuir para a transformação política do feminismo. Em primeiro
lugar, denunciou os vazios, as lacunas existentes, que apareciam no movimento
hegemônico desde os anos 1970. Posicionou-se junto às feministas negras que,
em ambos os lados do Atlântico, partindo de diferentes posições, e por meio de
distintas estratégias, exigiam que se reconhecesse a existência do racismo como
um traço estrutural de suas relações com as feministas brancas. Em segundo lugar,
criticou e questionou supostos conceitos universais centrais na teoria feminista, que
demonstrou problemáticos ao serem aplicados nas vidas das mulheres negras, como
“família”, “patriarcado” e “reprodução”. Carby assentava, assim, as bases para uma
sistematização do conhecimento construído pelas feministas negras em contextos
afro-estadunidenses, asiáticos e africanos. Em terceiro lugar, ela abriu uma via
para uma possível interpretação do feminismo por diferentes grupos de mulheres
a partir de posições igualitárias. Para isso, são necessários conceitos que permitam
especificidade e, ao mesmo tempo, provenham de pontos de referência transcultural.
Carby aposta no conceito de “sistemas sexo-gênero” de Gayle Rubin (1975), que, por
um lado, oferece a oportunidade de ser histórica e culturalmente específico e, por
outro, indica a posição de autonomia relativa da esfera sexual, possibilitando que a
subordinação das mulheres seja vista como um “produto das relações que organizam
12 No Brasil: GILROY, P. O Atlântico Negro: Modernidade e Dupla Consciência. Tradução de Cid Knipel
Moreira. São Paulo: Editora 34, 2001.
13 Ver, por exemplo, Carby (1987, 1998, 1999).

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e produzem o sexo e o gênero”. Partindo desse marco teórico, qualquer relação
familiar deve ser entendida e explicada pela lógica própria de um sistema sexo-
gênero específico, e qualquer padrão de subordinação deve ser historicizado, em vez
de depreciado como um produto de uma estrutura familiar patológica.
A publicação de White Woman Listen! alimentou um corpus teórico crítico
com o feminismo branco por parte de feministas negras britânicas – incluindo o
volume que a revista Feminist Review dedicou ao tema em 1984, Many Voices,
One Chant: Black Feminist Perspectives – que sublinha as teorias e práticas
etnocêntricas do feminismo branco.14 Isso gerou, entre as feministas socialistas, um
questionamento de seus pressupostos teóricos. O artigo Ethnocentrism and Socialist-
Feminist Theory de Barret e McIntosh (1985) sintetiza essa resposta, reflexo, por sua
vez, das contradições do próprio movimento feminista na Inglaterra. De um lado, os
autores reconheciam as limitações do conceito de patriarcado como uma dominação
masculina invariável, independente da classe e do racismo; mas, de outro, não foram
capazes de ver que as estruturas de classe, racismo, gênero e sexualidade não podem
ser tratadas como “variáveis independentes” porque a opressão de cada uma está
inscrita dentro da outra – é constituída por e constitutiva das outras. O problema,
que também se percebe no artigo, é – como apontaria Avtar Brah (2011) – a tendência
a tratar as questões de desigualdade centrando-se nas vítimas: “Os debates sobre o
feminismo e o racismo frequentemente se centram na opressão das mulheres negras
ao invés de explorarem como o gênero tanto de mulheres brancas como de mulheres
106 negras se constrói por meio da classe e do racismo”. Kum-kum Bhavnani e Margaret
Coulson também reagiram àquele texto:

O racismo atua de uma maneira que situa as diferentes mulheres


em diferentes relações com as estruturas de poder e de autoridade
na sociedade [...]. Não é que apenas haja diferenças entre os
distintos grupos de mulheres, mas sim que essas diferenças são,
frequentemente, cenário de um conflito de interesses (Bhavnani,
Coulson, 2004).

O texto de Pratibha Parmar, Black Feminism: The Politics of Articulation (1990),


escrito posteriormente a esta efervescência teórica e política do feminismo negro
britânico, situa-se já em outro momento, quando começa a tornar-se visível sua
“desintegração”. O trabalho que apresentamos abarca, com extraordinária lucidez,
este momento de incerteza para o próprio movimento. Mas não se limita a isso.
Partindo da análise e do diagnóstico da situação – a dissolução de um pensamento
(e ação) coletivo na luta pelo reconhecimento de (diversas e sobrepostas) identidades
oprimidas –, inicia um novo itinerário para, a partir desse espaço, dar outro salto em
direção à busca de um novo caminho, de um “novo tipo de sonhos”.

14 Ver, entre outras, Amos, Parmar (1984), Parmar, Miza (1981), Brah, Minhas (1985), Lewis, Parmar
(1983), Bryan, Dadzie, Scafe (1985), Visram (1989), Bhachu (1988), Phoenis (1988), Parmar (1990), Brah
(2011).

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Pratibha Pramar incorpora neste texto diferentes formas expressivas. Começa
em um formato mais acadêmico, formulando o que sem dúvida é a força e a fraqueza
do feminismo negro britânico, isto é, a articulação de múltiplas autoidentidades (as
mulheres britânicas negras são parte de muitas diásporas) com uma consciência
coletiva que fortaleça mulheres que, como negras, como feministas, como lésbicas,
habitam posições de marginalidade e resistência. O feminismo negro conseguiu
realizar isso na década de 1980, mas as políticas identitárias diluíram esta potência
ao falar de “experiências subjetivas autênticas”. O problema que Pramar indica para o
feminismo negro britânico, mas que não se limita a este movimento, é que a releitura
em termos de identidade de subjetividades compartilhadas em contextos de opressão
acaba sendo colocada como uma hierarquia de opressões e que, portanto, enfatiza
a acumulação de uma coleção de identidades oprimidas. Dessa maneira, desvia-se o
olhar de metas que contribuam realmente para a mudança social.
Pramar se propõe a reorientar esse olhar. E é aqui que incorpora e ensaia
novas formas estilísticas. Primeiro, agregando novas vozes a seu discurso e, depois,
por meio de imagens. É muito sugestivo o uso que ela faz do texto dialogado. Como
referente intelectual inclui a poeta, artista e pensadora June Jordan. Com ela pensa,
constrói pensamento, alinhava estratégias de ação. Mostra, com as imagens, como
se pode gerar um novo discurso, um discurso visual que explore a complexidade e
harmonize as diferenças. Abre caminho para que, a partir da fotografia, as políticas
de representação convivam com as estratégias de desconstrução e decodificação e
gerem movimentos de reconstrução e recodificação. 107

Novas narrativas. Discurso pós-colonial e identidades diaspóricas

O debate que Pratibha Pramar deixou aberto em Black Feminism: The Politics of
Articulation está no centro das novas contribuições que as experiências pós-coloniais
e diaspóricas dão ao feminismo negro. As categorias raciais fechadas e binárias
sobre as quais se construiu o pensamento feminista negro são problemáticas em
tempos pós-modernos. A questão da identidade – dizia Pramar – adquiriu um peso
colossal para aquelas de nós que somos migrantes pós-coloniais habitando histórias
de diáspora. Mas, como se define hoje a identidade? Stuart Hall (2000), o “intelectual
da diáspora”, como foi denominado por Kuan-Hsing Chen (2011), discute o tópico nos
seguintes termos:

Não estou sugerindo que todas essas conotações devam ser


importadas em bloco e sem tradução para o nosso pensamento
sobre a “identidade”; elas são citadas aqui para indicar os novos
significados que o termo está agora recebendo. O conceito de
identidade aqui desenvolvido não é, portanto, um conceito
essencialista, mas um conceito estratégico e posicional. Isto é, de
forma diretamente contrária àquilo que parece ser sua carreira

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semântica oficial, esta concepção de identidade não assinala
aquele núcleo estável do eu que passa, do início ao fim, sem
qualquer mudança, por todas as vicissitudes da história. Esta
concepção não tem como referência aquele segmento do eu
que permanece, sempre e já, “o mesmo”, idêntico a si mesmo ao
longo do tempo. Ela tampouco se refere, se pensarmos agora na
questão da identidade cultural, àquele “eu coletivo ou verdadeiro
que se esconde dentro de muitos outros eus – mais superficiais
ou mais artificialmente impostos – que um povo, com uma
história e uma ancestralidade partilhadas, mantém em comum”
(Hall, 1990). [...] Essa concepção aceita que as identidades não
são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada
vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca,
singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos,
práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas. As
identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando
constantemente em processo de mudança e transformação.
[...] Elas têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos
recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção
não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos.
Têm a ver não tanto com as questões “quem nós somos” ou “de
onde nós viemos”, mas muito mais com as questões “quem nós
podemos nos tornar”, “como nós temos sido representados” e
“como essa representação afeta a forma como nós podemos nos
108 representar a nós próprios” (Hall, 2000, p. 107-109).

No feminismo negro, quem colocou em questão as identidades essencializadoras


foram mulheres que, partindo de posições diaspóricas e pós-coloniais, sentiram o vazio
da não representação. Foram também elas que, demandando um reconhecimento
à margem das categorias de representação impostas – dos grupos dominantes e
daqueles que o sistema hegemônico reconhece (e se reconhecem) como dominados
–, se autorrepresentaram, criando seu próprio não espaço, como diria Ifekwunigwe,
ou seus espaços de (des)localização, como diria Magdalene Ang-Lygate; territórios
in-explorados onde residem os significados variáveis da diáspora. Trinh T. Minh-ha
(1986) utiliza este intangível espaço intermediário e desenvolve sua teoria do “outro
inapropriado / inapropriável” como uma imagem da mulher pós-colonial, aquela que
resiste às definições da outridade impostas e insiste em definir a diferença partindo
de sua própria perspectiva. Posição que faz dela uma pessoa incômoda, duplamente
problemática.
Em When the Mirror Speaks: The Poetics and Problematics of Identity
Construction for Métisse Women in Bristol, Jayne Ifekwunigwe (1999) evidencia a
dureza do território no qual habitam as mulheres mestiças, começando pelo uso de
uma categoria, métisse, que não tem fácil acomodação na língua inglesa. Ifekwunigwe
apresenta seis relatos de mulheres que se enfrentam com a tensão de serem mestiças e
se transformarem em negras. E o faz por meio de suas narrativas, que se transformam,

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simultaneamente, em recurso metodológico e espaço identitário. No texto, a
identidade aparece como relato, ao mesmo tempo real e fictício, vivido e construído.
As identidades se constroem nas representações e não fora delas, dizia Stuart Hall.
E Ifekwunigwe entra em cheio no espaço – teatral, dramático – das representações.
Suas seis narradoras (às quais ela dá o nome de griottes – griôs –, relacionando-
as às tradições africanas) representam um papel, representam-se através desse jogo
que a linguagem oferece em um cenário duplo, no domínio privado (onde elas se
constroem identitariamente em um jogo complexo de identidades poliétnicas) e no
público, onde lhes é devolvida a imagem de uma identidade essencializada. Através do
narrativo, emerge a construção que as mestiças fazem de si mesmas e as contradições
do discurso racializado; assumindo a visibilidade em seu papel como griottes, essas
mestiças narram o que é “real” (como vivido) e o que é “ficção” (como construído) no
discurso racial (Mirza, 1997).
Magdalene Ang-Lygate em Charting the spaces of (un)location. On theorizing
diaspora (1997) também se situa nesse espaço problemático no qual se evidenciam
as contradições dos sujeitos pós-coloniais. A vivência da pós-colonialidade de Ang-
Lygate não é a de uma mestiça, mas de uma mulher que construiu sua identidade
com os referentes do colonizador. Seu nome, seu idioma, sua cultura são inglesas;
mas nenhum desses pontos faz dela uma cidadã britânica. Migrante não é uma
categoria transitória na Inglaterra: não há uma categoria british-born immigrant na
qual possam se reconhecer as migrantes pós-coloniais que vivem no país. Existe a
categoria “negra”, na qual a sociedade britânica insere todas as mulheres que não são 109
brancas. Mas nem Ang-Lygate nem as mulheres que aparecem como sujeitos em suas
pesquisas – migrantes que como ela vêm da China, Malásia, Filipinas – se encaixam
nesta categoria. Talvez por essa difícil fixação em uma identidade racial que não
compartilha (e da qual é excluída), ela percebe com maior agudeza as limitações
dessa categorização na qual, por outro lado, sentem-se tão cômodos aqueles grupos –
entre os quais Ang-Lygate inclui o feminismo negro – que usam o critério racial como
estratégia política. Como ela expõe no texto que apresentamos: “O que realmente me
preocupa é que, quando se joga esse tipo de jogo, somos cúmplices de uma estrutura
que se construiu desde o princípio sobre um dualismo binário que inevitavelmente
desfaz a possibilidade de diferença” (Ang-Lygate, 2012, p. 297-298, tradução nossa).
Como ocorria com a mestiça, a mulher pós-colonial que é Ang-Lygate
questiona essas formas de outridade reconhecidas como apropriadas e toleradas, e
reivindica outras formas de outridade que, ao sair dos confins entre os quais foram
definidos os limites identitários dominantes, são percebidas como subversivas e,
como tais, rechaçadas ou reprimidas. Como fazia Ifekwunigwe, Ang-Lygate também
explora, dessa posição, o conceito de identidade diaspórica, sobre a qual Stuart Hall
teorizou de forma tão acertada, em relação às migrantes chinesas, que são sujeitos
de sua pesquisa. Desde esse conceito – que entende as identidades “fragmentadas e
fraturadas; [...] multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições
que podem se cruzar ou ser antagônicas” (Hall, 2000, p. 108) – ela entende e explica
esses “espaços de silêncio”, onde se situam essas outras formas de outridade não

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reconhecidas pelos discursos hegemônicos, experiências de diáspora. Lendo-as
como tal, conseguimos visibilizá-las, “para reconhecer finalmente que nossa própria
invisibilidade não é estado natural de ninguém” (Ang-Lygate, 2012, p. 311, tradução
nossa).

E para terminar

Até aqui vai meu diálogo pessoal com as autoras selecionadas nesta antologia.
A partir de agora, apenas suas vozes. São seus textos que realmente convidam
para um diálogo.
Pessoalmente, sinto-me feliz de estar em tão grata companhia.

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Translating Yvonne Mété-Nguemeu’s Femmes de Centrafrique:
Âmes vaillantes au cœur brisé from a Feminist Perspective
ABSTRACT

This article discusses some practical challenges encountered in the course of


translating Yvonne Mété-Nguemeu’s novel, Femmes de Centrafrique, âmes vaillantes
au coeur brisé (2008) into English from a feminist perspective. To effectively tackle
these challenges, the approach taken is that of a feminist translation because
Mété-Nguemeu is a feminist writer. The grammatical differences between the two
languages are major sources of challenge in translating Mété-Nguemeu’s feminist
discourse. The peculiarity of the African women’s experiences is easily understood
and immediately translated from, not only, an empathized perspective as a woman,
but also as an African feminist translator in particular. A feminist translator translates
better a feminist novel or a feminist author.

Keywords: Central African Republic. Challenges. Feminist Translation. Translator.


Women.

RÉSUMÉ

Cet article aborde quelques défis pratiques rencontrés lors de la traduction anglaise
du roman d’Yvonne Mété-Nguemeu, Femmes de Centrafrique, âmes vaillantes au
115
cœur brisé (2008) d’un point de vue féministe. Pour relever efficacement ces défis,
l’approche adoptée est celle d’une traduction féministe parce que Mété-Nguemeu
est une écrivaine féministe.  Les différences grammaticales entre les deux langues
sont des sources majeures de défis dans la traduction du discours féministe de
Mété-Nguemeu. La particularité des expériences vécues par les femmes africaines
est facilement comprise et immédiatement traduite non seulement d’un point de
vue empathique en tant que femme, mais aussi en tant que traductrice féministe
africaine en particulier. Une traductrice féministe traduit mieux un roman féministe
ou une auteure féministe.

Mots-clés: République centrafricaine. Défis. Traduction féministe. Traductrice.


Femmes.

Introduction

This article deals with the practical experience of translating Yvonne Mété-
Nguemeu’s novel, Femmes de Centrafrique, âmes vaillantes au coeur brisé (2008),
which is still currently being translated into English. The feminist affinity and the

Ngozi O. Iloh
Department of Foreign Languages. Faculty of Arts. University of Benin, Benin City, Nigeria. Email:
ngozi.iloh@uniben.edu, iloh214@gmail.com

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conditions of women narrated in the novel are feminist dispositions that drew my
attention in translating the novel. The peculiarity of the African women’s experiences
is easily understood and immediately translated from, not only, an empathized
perspective as a woman, but also as an African feminist translator in particular. A
feminist translator translates better a feminist novel or a feminist author. African
writers writing in ‘inherited languages’ write from a multi-linguistic context which
must be taken into consideration in translation. As an African, the mother tongue and
other African languages cannot be wished away easily as transliteration becomes an
integral part of African creative work, which has to be equally displayed in translation.
As an African translator with an African language as a mother tongue, and English as
the official language and means of translation, there is also a dual or multi-linguistic
context, which is also the point of departure of the author. Africanisms are better
understood and adequately interpreted by an African translator. The translator’s
audience includes not only the international audience, but must carry along the
local audience, especially the African. The English translation, will keep the African
and international audience in view by ensuring the local color is maintained, while
broadening this knowledge and also exposing the plights of women faced with
military violence and rape that is threatening to wipe out the female generation
through HIV/AIDS. The African female translator is in a better position to transmit
the cultural traits and loan words from the original version of a fellow female writer
into the target language without necessarily losing the pragmatic essence of the
116 source language.
Mété-Nguemeu, in this first book, narrates in an autobiographical manner the
analysis of violence experienced by young girls and women in Central African Republic
(CAR). Through a retrospective narration, and a feminist analysis, she writes about
three generations of Central African women. The writer traces her radical feminism
to her childhood and to her father. The author shows the bravery and courage of the
women in the novel despite the sinister conditions they find themselves in.
Being a core feminist novel, based on her discourse, a feminist perspective
is taken in the translation of the author’s feminist disposition. The main aim of
this article is to transmit and to popularize Central African women literature in
the English translation by ensuring to retain the feminine discourse of the author
through her linguistic and stylistic innovations in the book. Secondly, the translator
seeks to ensure that the innovations found in the book are not only retained and
reflected, but that the pragmatic feeling is equally attained if not retained in the
translation. Majority of the characters in the book are of the feminine gender, as a
result, their discourses are filled with feminist linguistic innovations. The translation
of this work is strictly from a feminist perspective and perception. The perspective
of the feminist discourse recognizes and reveals the feminist commitment of the
writer in her use of feminization of common nouns, professions, titles, grades and
functions.
No known critic has actually worked on the book, apart from the author of this
article, who has been doing some research on Mété-Nguemeu (Iloh 2013, 2015a, 2015b,

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2016, 2018). Touati (2010) is the only one who had carried out an earlier interview
with Mété-Nguemeu in French. Who then is this feminist writer or author?
The author in question here is Yvonne Mété-Nguemeu, a dual national from
Central African Republic (CAR) and France. The author is not only from Africa but
she is also ‘black’; this distinguishes her from ‘white Africans’. She was born on the
10th of December, 1956 in Sibut, which is about 185km from the capital territory of
Bangui. Having schooled in Catholic Primary School and College in Lycée Pie XII in
Bangui, the capital of CAR, she obtained her baccalauréat B (Advance Level) in 1979
and a scholarship to study in France where she obtained her first degree in Food and
Nutrition. She shuttles between Besançon, where she lives in France and Central
African Republic (CAR), her country of origin. She has two surviving children out
of three due to the civil war in CAR in 2014. She is the Founder and President of the
Non-Governmental Organization Centrafrique Sans Frontières with headquarters in
Besançon, France. She is a radical feminist, philanthropist and writer. The current
novel is her only published book. Others are in the offing according to her.
Mété-Nguemeu was encouraged to write by penning some of her numerous
experiences in the course of her humanitarian work in CAR. She knows very little
or nothing about the Central African literature. This notwithstanding, the literature
of her African country, CAR is not well known to the world. Usually, there is always
confusion in both English and French when the country is mentioned. There is
always that confusion distinguishing the country CAR or République Centafricaine
(RCA), its equivalence in French, from the Central Region of Africa! Central Africa 117
as a region that should not be misunderstood as Central African Republic, which is
a country located in Central Africa. The same goes for the region and the country in
French. This must have contributed to the poor knowledge of the country.
If the country is hardly known, the writers are also hardly known. The country,
which was formerly known as Ubangui-Chari, was situated in the former French
Equatorial Africa and obtained its independence in 1960. It is a country that has
passed through innumerable political and socio-economic turbulence especially civil
wars since independence. The first and only female president was Catherine Samba-
Panza (2014-2016). Today, the current president is Faustin-Archange Touadéra who
came into power in March 2016. The country is still struggling to stand on its feet.
This constitutes the first and primary audience of the writer. One can understand
the author’s concentration on the conditions of the women in the country that is
bedeviled with socio-economic and political crises.

Author’s audience/target

The author of the book in question is first an African and secondly a


Francophone; it is expected that her primary audience will also be Francophone and
African. By virtue of her dual nationality, her audience equally extends to France

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and may not necessarily be the entire Francophone world, which should have been
the case. Living in a global village which the world has turned out to be, from the
interview carried out with her, she equally targets the international audience; not
just the Francophone International world, but meeting her through internet facilities
established her desire to get across to the Anglophone world.
A writer, despite the current trend of events world-wide, targets a local,
national, regional and continental audience, thus attaining an international and
multinational audience. As part and parcel of a society, her representations from that
same environment must consciously or unconsciously portray the society. This is not
far from what Mété-Nguemeu has done in her book. One can say that her audience
is limited or restricted because of her language, but the French language is a major
international language. This limitation has necessitated the translation of the book
in order to access a wider audience.
The African female writer is a translator in her own right by her multiple
linguistic disposition and context. Following this, writing in an “inherited colonial
language” is a double-bind, for the writer, as well as the translator. Reaching out
completely to the readership or audience involves getting to the level of understanding
as Africans and secondly as women. Communicating the native plight of the characters
to an international audience is a commitment on both author and translator. By
multiple audiences, one implies both the metropolitan (colonial masters) of both
Anglophone and Francophone and the new world represented by America. It also
118 opens the channel for future translations into other languages.

Translator’s audience/target

Much as the author wishes to reach out to the world, as the translator of her
book, I maintain a similar goal as well. The affinity between author and translator
usually most often merge mission and goal. The choice of translating this author,
for me, is borne out of the admiration of the feminist strategy and style of the
author. Apart from just broadening people’s knowledge of the situation in CAR, this
translation of local women issues will also serve to situate the existence of feminist
tendencies among the uneducated as portrayed by the author, which contradicts the
opinion that feminism is only a modern issue.
The main target of the translation being done is an international audience,
but the choice of the English variety depends not only on the translator but on the
publishers as well. However, my choice of the variety of English is determined by
the mission of attaining a wider coverage. My primary concern is the activity or
the intervention of the translation since my disposition is equally multi-linguistic in
context, given the colonial experiences of assimilation and association, despite the
existence of the African languages, which form the basic mother tongues for both
author and I as the translator. The similarities of historical experiences make the

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African feminist translator better equipped historically, linguistically and culturally.
The difference between the writer and the translator is the linguistic differences of the
languages of expression. The writer may not be able to read her work in translation,
but she would have acquired a wider coverage in the dissemination of her literary
commitment. It is important at this juncture to state that the translation of the book
is still on-going. I started translating in 2013 but health challenges slowed down the
work. I have resumed the translation of the book but the theme of the call for paper
from this journal made it imperative to share some practical experiences acquired
in the cause of the translation. Just like the British Dorothy Blair, as a university
scholar combining teaching and research, so am I combining to produce an English
translation of Mété-Nguemeu’s novel. The translation is being carried out in Nigeria,
in Africa. I cannot talk of its publication until after the complete translation.

Representation of Black African female voices in the translation


field

It is worthy of note that the works of African female writers have come to stay,
even though despite being late in entering the literary world. Before the entrance
of African female writers on the scene, which had been pre-dominated by the men
whose numerous works were read in translations without the readers having any
strange feelings because they were good translations, there were very few female 119
translators. It is however worthy of note that, among these male authors, their works
were majorly translated by the male folks. One really got fascinated coming across
two female translators among them that were equally outstanding. They are Dorothy
Blair and Katherine Wood.
Dorothy Sara Blair (née Greene), a British, is a renowned female translator who
had earlier caught my attention since I have read translated works of African authors
either from French to English or vice-versa. Among her numerous translations are the
Senegalese Birago Diop’s Tales of Amadou Koumba, translated in 1966, the Guinean
Alioum Fantouré’s Tropical Circle (1981), and the Beninese Olympe Bhely-Quenum’s
Snares without End (1981). But of paramount interest to me are her translations of the
African female authors of which are notably three from Senegal: Aminata Sow Fall’s
The Beggars’ Strike (1981), Nafissatou Diallo’s A Dakar Childhood (1982) and Mariama
BÂ’s Scarlet Song (1995). I have restricted myself to only African authors.
The Scottish, Katherine Wood (née Kostenuk) translated the Senegalese
Cheikh Hamidou Kane’s Aventure ambigu as Ambiguous Adventure (1963) and could
be said to be Blair’s contemporary. Despite not being Africans, these two female
translators must be commended on their translations.
Of paramount interest in this article are African female translators of African
female writers. African female translators are on the rise. However, the likes of Irène
A. D’Almeida (Beninese) and Olga Mahougbé Simpson’s (Beninese) translation of the

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Nigerian Chinua Achebe’s Arrow of God as La Flèche de Dieu is worthy of mention.
Interestingly too is Modupe Bode-Thomas’ (Nigerian) translation of Mariama Bâ’s
So Long a Letter (1980). Of all the female translators’ works, I had searched for an
African feminist translator, but have not found one yet in Africa. It is pertinent to
note that feminist translation is a new discovery that is yet to be explored fully in
Africa. It is amazing that feminist translation studies have advanced in other parts of
the world. The Australian female translator Alison Anderson’s question in 2013 had
been a great challenge when she asked, “Where are the women in Translation?” And
I ask, “Where are the African women in Translation? And where, specifically, are the
African feminist translators?”
The female translators so far mentioned above did not necessarily set out to
translate because of feminist inclinations, but were out to do justice to their knowledge
intellectually. However, two African female writers had attracted my attention
with their feminist discourses: the late Ivorian Fatou Fanny-Cissé and the Central
African, Yvonne Mété-Nguemeu, whose’ book is being translated into English. As a
trained translator and a passionate feminist, my empathy for Mété-Nguemeu’s book
was borne out of the desire to ensure her feminist discourse, which was one of the
attractions, is reflected in the translation. Without necessarily trying to search for
documentation on feminist translation, I had written an article on Mété-Nguemeu’s
feminist discourse (Discours féministe dans Femmes de Centrafrique: Ȃmes vaillantes
au cœur brisé de Mété-Nguemeu), which is my primary attraction to justify the choice
120 for translating the book.
This article is therefore hinged on literary translation and specifically on
prosaic translation of an autobiographical narration of the author’s childhood and
humanitarian service to her country, Central African Republic. The said country is
on the brink of extinction as a result of socio-economic, political exploitation and
oppression.
Eugene Nida’s definition of translation (1964:10) is retained here that translation
“consists in producing in the receptor language (also called the target language) the
closest natural equivalent of the message of the source language, first in meaning
and secondly in style”. The three main types of translation, which are intra-lingual
(has to do with reformulation); inter-lingual (translation from one language to
another) and inter-semiotic (the use of signs and symbols in communication),
have been classified by Jakobson (1959:233), Kelly (1978:19) and Nida (1964: 3-4). Of
interest to us is inter-lingual translation or what some other translation specialists
classify as inter-linguistic translation. In Newmark’s (1988:5) definition, translation
is “rendering the meaning of a text into another language in the way that the author
intended the text”.
Much as the African Canadian, Bandia (2006: 8), in his paper, “African
European-Language Literature and Writing as Translation: Some Ethical Issues”,
while explaining the translation between “colonial” European languages and
theorizing African translation practice, is of the opinion that, “the theorizing of
African translation practice is still quite undeveloped, probably due to the fact that a

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comprehensive history of translation in Africa is yet to be written”. This shows that
many critics still look at African writers as translators due to their multiple linguistic
backgrounds. The Nigerian, Timothy-Asobele’s Translation Studies in Africa is handy
but not comprehensive enough as it does not really cover the whole of Africa as it
appears in the title and, also, it lacks historical grounding. Perhaps, the practical
experiences of African translators would have gone a long way in distinguishing
between African writers as translators and the literary translators. Our emphasis is
from a translator’s view-point.

African feminism and feminist translation

Yvonne Mété-Nguemeu is a feminist and does not hide it. In the interview1
we had, she affirms that she is a feminist whose wings were clipped too early and
as a result, got frightened and did not know how to take off in order to write about
the happenings in her country; she believes that the courage will come from the
women folks. She believes that women from her country are great feminists on their
own, especially given their fighting spirit in trying to combat the ills of their society,
and especially fighting to get them liberated from the jaws of masculine chauvinism
characterized by exploitation and oppression.
Themes explored by Mété-Nguemeu include: female genital cutting-otherwise
known as female circumcision, everyday domestic lives of the average Central African 121
woman and girl-child marriage, bride price syndrome, repudiation, widowhood
practices, rape as a weapon of war, which all make up the practical experiential
narration of Yvonne (narrator) and the Central African girl-child and women.
What type of feminism is Mété-Nguemeu talking about? Much as I will not
like to prolong this write-up, it will however be pertinent to expound a little on
feminism here since there exist varieties or variants of feminism.
Davies (2007) recognizes the existence of African feminism that examines
the societies and various institutions of importance to the African women. This is
the feminism that will be explored and the variant of radical feminism that insists
that women should not be hidden and the feminine social gender should not be
subsumed in masculine or neutral genders. This is because notable African female
authors have in the past denied being feminists. In this group fall writers like
Ken Bugul (Senegalese), Aminata Sow Fall (Senegalese), Flora Nwapa (Nigerian)
and Buchi Emecheta (Nigerian) (see Umeh, 1996). I recognize Werewere Liking
(Cameroonian) and D’Almeida’s (1993: 49) ‘misovire’, Clénora Hudson-Weems, Alice
Walker and Chikwendu Okonjo-Ogunyemi’s ’Africana Womanism’ (see Hudson-

1 Interview with Mété-Nguemeu in Mété-Nguemeu & Iloh (2013: 15), Je suis une féministe dont les ailes
ont été brulées trop tôt et qui a eu peur de prendre son envol afin d’écrire un pan de l’histoire de son pays.
[…]. Mais je continue à croire en la force des femmes…. (I am a feminist whose wings were clipped too
early and as a result got frightened from writing a little of my country’s history. […]. But I still believe in
the power of women…). (The English translation is mine).

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Weems, 1993), Komguem et Samin’s (2005) French Senegalese’s ‘famillisme’, which is
an equivalence of ‘African womanism’ propagated by the likes of Kolawole (1997) or
Ogundipe-Leslie’s (1994) Stiwanism.
Luise Von Flotow, a Canadian specialist on Translation and Gender (cited
by McRae, 2006), attests to the fact that feminist translation is characterized by
“the practice of prefacing and footnoting, among other approaches that increase the
visibility of the translator”. Flotow (1991) highlighted four major trends in feminist
translation as supplementation, prefacing, footnoting and hijacking. I actually
supplement but to an extent the African audience can tolerate. Prefacing for me is a
welcoming idea, as I plan to write a preface in the translation and possibly maintain
a repertory of glossary with explanations. A glossary takes the place of footnoting,
because I don’t believe in distorting an original work to suit my taste. Hijacking is
therefore completely out of the way. Much as I believe in the translator’s visibility, it
does not call for hijacking of an author’s creativity. Just like Gentzler (1998), I believe
in the documentation of the translation process.
Mété-Nguemeu is not just a female writer but a feminist writer who displays
her feminist tendencies in her discourse. Due to this affinity, it is not enough to be
a female translator but one who also believes in feminist discourse. I believe that
women should be heard and seen as indicated in the article published in 2011 on the
need for the feminization of the French grammar, which previously did not have
words for certain female gender like, ‘écrivain’, ‘médecin’, ‘auteur’, ‘professeur’, etc.
122 (see Iloh, 2011). Today, a female writer can be addressed to as ‘une écrivaine’, author as
‘auteure’, professeur as ‘professeure’ but médecin as ‘femme médecin’. The translator
of a feminist writer must have the same affinity for the feminist discourse, and hence
should also be a feminist, not simply a female translator.

Translation experience

The translation activity is interesting but full of challenges, which form part
of this study. I will highlight the major challenges which cut across the book in
question. What English? If one may ask. Meanwhile, the work is currently being
translated into British English which could subsequently be adapted or rendered into
American English for a wider coverage. Mété-Nguemeu is a radical feminist, who
chooses not only to fight for the liberation of the women in Central African Republic,
but practically displays it in the choice of her vocabulary. This will be examined in
this paper. We shall take a look at the feminist vocabulary and the author’s linguistic
innovation through the use of proverbs and metaphors as well as specific feminist
discourse. Most African female writers are blunt and go straight to the points without
mincing words. As a female African translator, I will maintain the same strategy of
bluntness.

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Feminization of vocabulary

To be able to translate Mété-Nguemeu, one must take time to read and


understand her selective choice of vocabulary, which displays her feminist position.
The feminist vocabulary is filled with an abundance of feminist lexis, especially
what I call feminist creation or feminist neologisms. Thus, Mété-Nguemeu’s choice
of vocabulary is what I call a collection or selection of researched repertoire or
inventory or vocabulary. Thus, the novel displays influence from current feminist
trends, especially the use of feminized grammatical gender seen in the author’s
choice of profession/vocation, titles, proverbs, metaphors, etc. It should be noted that
the writer most often puts her neological creations or the neologisms in inverted
commas. These creations will be cited in italics. Let us begin from the title of the
book.

Translation of the title of the novel

The title of Mété-Nguemeu’s novel reveals to a great extent her feminist


posture. The title, Femmes de Centrafrique, âmes vaillantes au cœur brisé borders on
the courage of women of Central African Republic and exposes the feminist discourse
of the author. Mété-Nguemeu believes that her mother and grandmother and other
123
Central African women are feminists in their own merit. “Women of Central African
Republic: Valiant Souls with Broken Hearts”. This translation is not the final as one is
exploring the word valiant, which could also be translated as ‘Brave’, Bold’, ‘Fearless’,
‘Gallant’, and the word brisé is such that they cannot gather their pieces again – this
results in ‘Shattered lives or broken hearts’. The title speaks about the women and
must be retained.
In the translation of a literary work, it is always better to translate the title last.
Much as I have temporarily penned it as ‘Women of Central African Republic, Valiant
Souls with Broken Hearts”, this is not the final translation, especially given Peter
Newmark’s (1988: 57) classification of titles, which are either ‘descriptive’ or ‘allusive’.
The title is descriptive and must be so in the target language. In contemporary
literary translation, the title of a work is an essential part of the translation. The
original version of the title of a work must be considered in correspondence with
the principles of empirical analysis of the translation so as not to encounter shifts,
alterations or changes. This is so because the title of a text gives the readers clues
to the contents of the work. There could be a shift in the meaning of the title of
a literary work that could necessitate a renovation of the translation, especially
as translations get out dated after a period of time and as language continues to
develop. At the moment, Mété-Nguemeu shows her feminist inclination, which must
also be displayed in the target language. A noun is either masculine or feminine in
French. The gender sensitivity is higher in French. This enriched the work of Mété-

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Nguemeu that it is such that her linguistic exploitation of feminism is extraordinary.
The challenges are such that I have to keep up with the pace of feminist creation in
the translation by compensation as the English language has no such grammatical
gender at all. Only personal pronouns show gender like he/she/it. This is where the
main challenge is in translating feminization of common nouns from French into
English.
• La défenseuse des causes perdues (23) – The defender of lost human rights

It can be seen that the defender in French has a feminine gender, which is
lost in the translation. I equally jotted down “human right activist” and also ‘women
human right activist’ to reflect the French feminine gender. The entire narration will
definitely show the feminization of the characters.
Female circumcision is a theme of paramount interest to most African writers,
especially the female writers. Gordon (1997) traces its origin to over 2,500 years.
Mété-Nguemeu can be compared with many writers like Kourouma in Les Soleils
des indépendances (The Suns of Independence), who narrates Salimata’s harrowing
experience, but Mété-Nguemeu succeeds in explaining to her audience without
giving any specific case. According to Gordon (1997), female circumcision is practiced
in most African countries and some other countries of the world.
Below are some examples of the author’s innovations of the feminist language
or discourse, which became major challenges to me in the course of the translation.
124 • Quelques jours avant l’opération, les exciseuses professionnelles, femmes
mûres du village, passaient régulièrement de maison en maison pour
sélectionner les fillettes prêtes à subir l’ablation (27).
• Some days before the operation, the professional female circumcision
practitioners, matured women from the village, were moving from house
to house selecting young girls ripe to undergo ablation (mutilation,
amputation).
• Les exciseuses (27)
• Female circumcision practitioners

Is it necessary to insert the qualifying adjective ‘female’ since the context of the
narration already shows that the female circumcision requires female practitioners,
as the circumcision of the males is carried out by only the male folk? But, in order to
feel the presence of the women, I had to insert ‘female’
• Avant d’arriver à notre maison, il y avait deux familles avec des filles, et mes
sœurs et moi, la mort dans l’âme, suivions la progression de ces recruteuses
du mal (28).
• Before we got home, there were already two families with their daughters,
then my sisters and I, holding our hearts in our hands, we followed the
advancement of these recruiters of evil/bad omen.

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Although the context already shows that it’s about female practitioners of
circumcision, the African audience will not accept the superfluity. I will settle for the
most conventional.
Recruteuses and visiteuses both refer to exciseuses. The absence of grammatical
gender in English makes it hard to see the beauty of what Mété-Nguemeu portrays.
The author’s play on feminization of noun is evident here but may be superfluous in
English. My major challenge is the pre-mature existence of a feminist translation in
Africa. Supplementation in feminist translation is necessary but must not be seen to
be superfluous.
• Pendant qu’elle tentait de convaincre mon père, je me mis à genoux dans un
coin de la maison, cachée de nos visiteuses, … (30)
• While she was making effort to convince my father, I knelt down at one
corner of the house, hidden from our visitors, …
• Visitors is applicable to both the masculine and female genders.
• La coresponsable (30)
• Co-team leader (It is all about female group, no need to specify)
• La maîtresse du culte (31)
• The Matron of Operation
• Ses coéquipières (32)
• Her team mates
• Le malheureux (ou la malheureuse) (67)
• The unfortunate boy or girl 125
• Le petit livreur (ou de la petite livreuse) (67)
• the bearer/(S)he

The literary commitment of the author, which must be kept in view, is to see
that female circumcision is discouraged. She made a lot of jest out of her deliberate
use and choice of feminized vocabulary, which gives the book a feminist outlook.
Much as in French, gender is mandatory because of the language grammar. It is
impossible in French to talk about women without feminine words but where I
commend the author in her choice of words is where she goes beyond the generic use
of some nouns and ‘creates’ a non-existent feminine gender. She also capitalized on
that by her deliberate choice of aggressive words that portray and show the pains,
agony and suffering girls undergo in the process of circumcision such as: Ablation
(27), opération (27), douleur (30), acte d’amputation (30), souffrance (32), épreuve
(32). These, I translated respectively as: Ablation, operation, pain, act of amputation,
suffering, test.
Similarly, the following words all end with the suffix euse:
Exciseuses  (27) - Circumcision pratitioners
Recruteuses (28) - Recruiters
Visiteuses (30) - Female visitors
Réveilleuse (35) - Alarm (waker)
Voleuses (41) - Thieves

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Livreuse (67) - Messenger
Preneuse, lépreuse (102) - Taker, Leper
Meneuse (111, 112) - Undertaker
Menteuse (143) - Liar
Mangeuse - Eater
Prétencieuses (51) - Pretenders, hypocrites
Agresseuses (57) - Aggressors, Assailants, Provokers,
Invaders, Attackers, Trouble makers
Guerisseuse (81) - Healer, Priestess
“Provoqueuse” (54), Provocatrice (54) - Ringleader in the instigation, lead
initiator of trouble
The author’s juxtaposition of provoqueuse (54) and ‘provocatrice’ (54) shows
her linguistic exploration and exploitation in her play on words and feminization of
words. There is no equivalence for ‘provoqueuse’ in my translation for now because it’s
simply a mockery of the inconsistency of French feminization of words: the speaker
as well as the learner could be confused with the suffix ‘euse’ or ‘trice’. This is what I
consider as a feminist writing or discourse where the author selectively plays on the
gender formation in French. It is a bit difficult attaining the same equivalent play on
words and getting the same pragmatic effect. This is one of the major challenges in
the course of the translation. The musical rendering and the beauty of –euse in the
formation of the feminine gender, which the author uses as a play on words, could
126 not be maintained in the English translation for now because that beauty is a major
challenge in the English translation.
The context of the narration may not require the gender visibility, as it is also
implied with the following examples:
• Une responsable (35) - Leader
• gardienne des chaussures (40) – Shoe keeper
• The composition of words could be ambiguous in the choice of words in
the translation of:
• Jeune mère-célibataire (129) - Young single/unmarried mother

The use of proverbs

The author was also creative in her choice of proverbs which she builds around
the feminine gender. For instance:
• Une bonne calebasse ne traîne jamais sur l’eau ou une bonne calebasse ne
dérive pas longtemps sur la rivière sans trouver preneuse (74)
• A good calabash never stays long in the river or a good calabash is never
neglected in the river without attracting attention.

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The French ends with preneuse, which is implicit in the English version. It
is believed in the African culture that it is women or girls who need calabashes for
fetching water or for keeping their jewelries. This is well taken in the French, but it’s
hidden in English which seems to be more generic and patriarchal. The author took
pains to narrate in the novel. The example below confirms that:
• Aucune femme censée ne songerait à se débarrasser d’une calebasse encore
utile (75)
• No sensible woman would think of getting rid of a useful calabash.

Metaphors

The author’s use of metaphors is worth noting too.


• Elles étaient devenues des « mères courage », se battant pour la survie de
leurs enfants (94).
• They became “Mother Courage”, battling for the survival of their children
• Lionnes en fureur (112)
• Furious lionesses
• « Fille prodigue » (130)
• “Prodigal daughter”
• Femmes vaillantes (177)
• Brave/Gallant/Bold/Courageous/Valiant women (only one will be selected) 127

Conclusion

Translating a feminist writer is challenging but very interesting, as the writer’s


feminist creativity is better admired when exposed to translation. The emergence of
women literature does not necessarily make it a feminist literature. There are traits
in a feminist write-up that one can look out for. Translating a feminist text is another
ball game. It is as challenging as translating poetry because it is an innovation yet
to be appreciated. Feminism is a commitment. African Feminist translation is a
mirage for now given the historical development, and as such, is still being operated
under post-colonialism. Being a feminist translator is not acquired by reading but
by one’s disposition and revolutionary challenges that go on in one’s mind. It was
not until recently that I discovered that there is truly feminist translation. I have
often challenged the absence of the feminine gender in some French nouns like
chauffeur (driver), now chauffeure or chauffeuse or can be modeled after un professeur/
une professeur; un chauffeur/une chauffeur. The conventional use of the generic is still
in vogue especially in French France. The major challenge comes from the fact that
most writings in Francophone Africa are modeled after the French in France, so also
the French in Anglophone Africa.

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I have always wished that translators of the 60s, 70s, 80s and 90s of African
literature, either from English to French or vice-versa, took cognizance of the
feminization of language. African radical feminist translations like that of Calixthe
Beyala’s should be studied to ascertain the level of feminist rendition they portray.
Yvonne Mété-Nguemeu is not only a writer; she is feminist writer with a specific
mission. Her novel is not just autobiographical in nature; it is a novel that displays
feminist discourse reinforced with feminist vocabulary, enriched and embellished
with innovations in her choice of metaphors, comparisons and proverbs. From the
title to the epilogue, the narratives and descriptions are all feminist discourse. The
author displays a linguistic and stylistic creativity. Translating a feminist author
requires empathy and feminist activism.
As a feminist translator, more space should be given to translators. Their
names should appear on the cover page of the translated work in a conspicuous
corner, but not necessarily hijacking the work of the author. The idea of searching
for the translator’s name in the title page is demeaning. Feminist translation should
not be mixed up with feminist interpretation. There should be a clear-cut distinction
between translation and interpretation.
African feminism will come of age but should be given time. Africa has always
been 50 years behind in many developments. As African feminism is taking shape and
translation is fast developing, languages are being challenged with current trends in
globalization, as feminist writings improve and increase in Africa so will feminist
128 translation begin to take shape and take its rightful place. With the emergence of
African feminism, I wonder what future holds for African feminist translation.

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Translating Black Feminism: The Case of the East and West
German Versions of Buchi Emecheta’s The Joys of Motherhood
ABSTRACT

Feminism in Translation Studies has received a considerable amount of attention


in the West, most especially in Canada from where it emanated. Also, studies in
translation and Black Feminism have been carried out by scholars such as Silva-Reis
and Araujo (2018) and Amissine (2015). There has, however been few studies focusing
on the translation of literary texts by African feminist writers into German. This study
therefore examined how Womanism in Buchi Emecheta’s The Joys of Motherhood
was transferred into German. Against this backdrop, the two translations published
during the division of Germany into two states by different political ideologies were
analyzed. In doing this, Postcolonial Theory of translation as conceived by Spivak
(2004) was employed. The study aimed at determining how translation mechanisms
have influenced the manner in which black feminist activism is represented in a
distinct socio-cultural environment. This is with the focus to indicate how Womanism
is represented differently in the two German translations of the African novel.

Keywords: Feminism. Womanism. Translation. Ideology. East and West Germany.

RESUMO
132 Os estudos sobre feminismo em tradução têm recebido considerável atenção no
Ocidente, especialmente no Canadá, de onde ele se irradiou. De igual modo, estudos
sobre tradução e feminismo negro têm sido empreendidos por pesquisadores como
Silva-Reis e Sousa de Araujo (2015) e Amissine (2015). Há, no entanto, poucos estudos
centrados na tradução de textos literários de autoras feministas africanas em alemão.
Este artigo portanto examina como o mulherismo de The Joys of Motherhood, de
Buchi Emecheta, foi translado para o alemão. Contra esse pano de fundo, analisaram-
se as duas traduções publicadas, sob diferentes ideologias políticas, durante a divisão
da Alemanha em dois Estados. Visou-se determinar de que modo os mecanismos de
tradução influenciaram a maneira como o ativismo feminista negro é representado
num ambiente sociocultural específico. O objetivo é mostrar como o mulherismo
está representado de maneiras diferentes nas duas traduções alemãs deste romance
africano.

Palavras-chave: feminismo, mulherismo, tradução, ideologia, Alemanha ocidental


e oriental.

Omotayo I. Fakayode
Department of Linguistics and Language Practice. University of Free State, Bloemfontein, South Africa.
Email: omotayo2004@gmail.com

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Introduction

One of the most popular Nigerian female writers, Buchi Emecheta, who
lives in Britain empathizes with women in her works and is highly “respected for
her imaginative and documentary writing about African women’s experiences”
(Olawoyin 2017). She has been described as one of the most important female
authors to emerge from postcolonial Africa and is distinguished for her vivid
description of female subordination and conflicting cultural values in modern
Africa (Sougou 2002). In addition, Emecheta is “highly regarded for introducing
an authentic female perspective to contemporary African literature” (Essay 2018).
In her novels, she engages the injustice of traditional male-oriented African social
customs that relegate women to a life of child-bearing, servitude and victimization.
Due to her preoccupation with feminine issues, amongst others women/girls as
protagonists, motherhood and marriage (an important cultural tradition for African
women), Emecheta has been classified as a feminist writer. However, in an essay on
contemporary literary criticism, it was noted that:

Emecheta differentiates her own Afrocentric perspective from


that of her Western counterparts by describing herself as ‘an
African feminist with a small f’ (Essay 2018).

133
Whatever she opines with her own type of feminism with the small “f ” could
probably be deduced from her writings. This could be based on the fact that she still
recognizes African culture and traditions in her works. She eulogizes the female
character and is preoccupied with the injustice and inequalities girls and women suffer
in the African society. She sees marriage as perpetuating a woman’s powerlessness
and motherhood compounding her disability. This in a way aligns with the notion of
Western feminism but departs from the radical feminism of Western culture.
Emecheta has published several works and the most published of them is The
Joys of Motherhood. This work portrays a tale of a conventional African lady Nnu Ego
– a personality who knows her character and its completion in having numerous kids
particularly the male. In spite of poverty, she defines herself as rich for she has three
sons. In terms of Ibuza tradition, she thought she would experience an agreeable
seniority because of the assistance of her children. Having described Nnu Ego’s
excruciating life in Lagos, a colonized city, the novel concludes with her shocking
death. A desolate passing on without a child to hold her hand and no companion
to converse with her. She had never truly made numerous companions as she was
occupied with delights of motherhood. Describing the novel, Marie Umeh states:

In Buchi Emecheta’s novel, The Joys of Motherhood, one


witnesses the collapse of these glorifying images of the African
mother. As a literary artist preoccupied with promoting change,

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author Emecheta, an iconoclast, breaks away from the prevalent
portraitures in African writing in which motherhood is honorific…
The title of the book, which is taken from Flora Nwapa’s novel,
Efuru is then significant and bitterly ironic… Here Emecheta
constructs a completely different set of economic socio-political
and cultural imperatives which diverge from the existing literary
models. (Umeh 1982: 40)

From the above, it can be deduced that although the title of the novel
seems to romanticize motherhood, the theme of the novel contradicts the essence
of the title. The title of the novel is appealing, especially to an African feminist,
since it encapsulates motherhood and “appears to be part of the significant body of
feminist literature concerned with women’s experience of motherhood in patriarchal
cultures” (Maclean 2003: 1). The irony of the title, The Joys of Motherhood does not
however imply that the feminist writer, Emecheta, jettisons the need to be a mother
in the African society. She, as a matter of fact, does not align herself to the notions
of radical feminism, but rather to the need for African women to reject traditional
stereotypes and to opt for a radical change of their situation in society. In view of the
above, the following section reviews the relevant concept of black feminism, namely
Womanism.

134 Womanism and Emecheta’s The Joys of Motherhood

African feminist theorists, observing that Western feminism excludes the


experience of the black woman informed the development of black feminist theories,
such as Stiwanism, motherism and womanism, which account for black women’s
experiences. In the 1980s, Chikwenye Okonjo Ogunyemi and the African-American
Alice Walker proposed the first version of African feminism, namely Womanism.
The philosophy of Womanism differed from Western feminism as it appeals to
unity rather than separateness. Furthermore, it celebrates the ideals of black life and
incorporates racial, cultural, national, economic and political considerations in the
plight to defend women. According to Ogunyemi (1988), Womanism is

Black centred; … unlike radical feminism, it wants meaningful


union between black women and black men and black children
and will see to it that men begin to change from their sexist stand
(Ogunyemi 1988 cited in: Alkali et al. 2013: 240).

Womanism is a reasoning that praises African roots, the beliefs of African life,
while giving a clear presentation of the African woman liberation. Its ultimate aim
is black solidarity where each African individual has some form of power (Adesanmi
2004 cited in: Alkali 2013: 241).

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The womanist consciousness cannot be excluded from Emecheta’s The Joys of
Motherhood in view of the fact that the author conceives her own type of feminism
to be Womanism (Barfi & Alaei 2015: 12). The author’s womanist position can be
investigated through Ogunyemi’s womanist theory, which extends beyond sexism
to incorporate national, political, social and economic considerations. According to
Collins Amartey (2013: 76), this is a project to demand an holistic change in the lives
of African women.
In view of this, Emecheta’s novel could be considered as a womanist novel by
scrutinizing the title and chapter titles. Although the titles eulogize the feminine
personality, they include references to the male counterpart and children as well.
Chapters 2, 3 and 18, for example, focus on the mother (women): The Mother’s Mother,
The Mother’s Early Life and A Canonised Mother. As a womanist, the author includes
men and children in her chapter titles. Chapters 13, 16 and 17 refer to children, A
Good Daughter, A Mother of Clever Children and A Daughter’s Honour, while chapters
6, 7 and 12 includes the role of men, A Man is Never Ugly, The Duty of a Father and
Men at War.
Apart from the social aspect stated above, the national, political and economic
aspects visible in the chapter titles of the womanist novel are The Rich and the Poor
(chapter 8), A Mother’s Investment (chapter 9), Men at War (chapter 12) and The
Soldier Father (chapter 15). From the foregoing, since black feminism has been evident
through the title of the novel and its chapter titles it is pertinent to examine the role
different ideologies play in their transfer into German. In order to achieve this, there 135
is the need to consider the different ideologies of the former East and West Germany,
which led to the publication of two different German translations of Emecheta’s The
Joys of Motherhood.

Ideology in the former East and West Germany

For years, Germany was dominated by different political and economic systems
and two worldviews with different ideologies emerged, namely liberal democracy
or capitalism in West Germany and socialist democracy or communism in East
Germany. The difference between these ideologies lies in the fact that West Germany
favored the ideology of liberalism or private property, which lead to a philosophical,
economic and political current that aspired individual freedom or individualism as a
normative basis of the social and economic order. East Germany saw the development
of an ideology of socialism, which referred to a communist model of private property.
The aim of the East Germany ideology was to change the existing social relations to
ensure social equality and justice, as well as a social order organized according to
these principles. During this period of division, relations between the two German
states were reserved and sometimes hostile. A socialist dictatorship was put into
place in East Germany, the press was censored and the economy was owned and

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controlled by the state. In East Germany, the state also controlled the publishing of
literary works and the translation of novels from other languages into German. The
state owned two publishing houses, Verlag Neues Leben and Verlag Volk und Welt,
which were to publish translations of African literature. As such, the translation of
literary works in West Germany was not permitted in the East.
The hegemony the two German states imposed on African literature resulted
in the production of different German translations of many African literary works,
particularly those by Ngugi wa Thiong’o and Chinua Achebe. Emecheta’s The Joys
of Motherhood is the only Anglophone feminist novel, which was translated in
both East and West Germany (Kolb 2010: 282). The East German translation was
published by Verlag Neues Leben, while the West German translation was published
by a publishing house for women writers, namely Frauenbuchverlag.
The following analysis considers the way in which the different ideologies,
capitalism, liberalism, individualism, socialism and communism crystalized in the
two German translations of the novel. Against this backdrop, it would be exigent
to gain insight into how the different ideologies affected the lives of women in the
two German states which existed at that time and how this issue influenced the
representation of black feminism in the German translations of Emecheta’s The Joys
of Motherhood.

136 Women’s Lifestyles in the former East and West Germany

According to Haug (2018), socialist feminism insists that in the modern world,
the oppression of women is inextricably linked to the history of capitalism and that
feminist demands for change must therefore address the structural links between
patriarchy and capitalism. In East Germany where socialism existed, Marxist terms
were adopted and corollary to this, women were encouraged to reproduce. Women
in the German Democratic Republic (GDR) were also actively involved in the work
force. There were kindergartens and crèches to take care of their children and their
husbands typically took part in the house chores.
In contrast to this, women in Federal Republic of Germany (FRG) were
typically housewives. They looked after children and did the house chores while
their husbands went to work and therefore, were the breadwinners. This is a major
point of critique of the mode of production of capitalism, which involves women’s
oppression in the form of the acquisition of unpaid labour and the use of women in
gender-typical division of labour needs. In view of this, there were more laws in the
GDR that favoured reproduction rights for women than in the FRG. One of this was
the “Muttipolitik” (Myra 1992). On the other hand, the FRG was far less generous in
its social policy for working mothers than the GDR. FRG laws were equally based on
gender-specific requirements and the availability of the mother after lengthy school
hours and so forth. These laws were less based on the compatibility of professional life

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activities and motherhood. It was required that the mother be available throughout
the day to offer unpaid work for the maintenance of her family. Having considered
the effect of political ideologies on the lives of women in both states, it is pertinent
to highlight the relevant theory in analyzing the German translations of Emecheta’s
feminist novel considered in this study. The choice of this theory is informed by the
objective of this article. This is not to compare how ideological differences resulted
into two translations but to examine how different versions influenced by ideologies
have represented black feminism in translation.

Spivak’s Postcolonial Theory of Translation

Munday (2010) opines that the central intersection of Translation Studies and
Postcolonial theory is that of power relations. Postcolonial theory aims to account
for the ideological consequences of the translation of “Third World” literature into
European languages and the distortion it entails. Spivak (2004), for example, spoke
out against Western feminists who expect feminist writings from outside Europe to
be translated into the language of power, English. According to Munday (2010), such
translation in Spivak’s view, is often expressed in “translatese”, which eliminates
the identity of the politically less powerful individuals and cultures. Postcolonial
Translation Theory, linking colonization and translation, “is accompanied by the
argument that translation has played an active role in the colonization process and 137
in disseminating an ideologically motivated image of colonized peoples” (ibid: 132).
Spivak goes further to describe a kind of “politics of translation” whereby translation
gives prominence to “hegemonic” languages (of ex-colonizers). In this vein, she
admonishes Western feminism by saying that feminists from hegemonic countries
should show real solidarity with women in postcolonial contexts by learning the
language in which those women speak and write.
The assertion of Spivak on Postcolonial theory and her critique of feminism
in the postcolonial context is vital to this study. Her idea of politics of translation
is used to evaluate to what extent German translators have been able to assimilate
African feminism in the target texts. In the following, an analysis of the two German
translations of the selected novel shall be carried out.

The East and West German Translations of Emecheta’s The Joys of


Motherhood

In this section, I first analyze the respective translations of the novel’s title
and thereafter the analysis of the translations of the chapter titles in the book.

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The Title(s)

It is worthy to note that the author emphasizes a crucial aspect of Igbo culture
through the title of the novel. Marriage is very important in the lives of Igbo women,
so also is motherhood (Akujobi 2011). In fact, motherhood crowns a woman’s marriage
in Igbo culture and it is symbolic to the essence of marriage. Therefore, the author
depicts this cultural belief as “Joys” and thus, “Joys of Motherhood”.
The GDR translator transferred the title into German as closely as
possible. Even though the word “motherhood” was translated as “Mutter” and not
“Mutterschaft” in this translation, the source text author’s concept of “Motherhood”
is still communicated to a large extent. The GDR version of the title reads Die Freuden
einer Mutter.
On the other hand, the individualistic nature, which is corollary to liberalism
in a capitalist society can be deduced from the West German translation of the title as
Nnu Ego. Zwanzig Säcke Muschelgeld (Nnu Ego. Twenty Bags of Cowries). In this title,
the translators emphasize the heroine of the novel, Nnu Ego. This is individualistic
and not part of the intention of the author. The translators also further state the
meaning of the name Nnu Ego as “Zwanzig Säcke Muschelgeld” [Twenty bags of
cowries]. Being a capitalist society interested in economic profits, the meaning of the
heroine’s name is quite important for the West German translators. More specifically,
they attempt to present the theme of the novel as only focused on the individual and
138 in so doing emphasize her economic value. Thus, the communal life of an African
woman in relation to her family, husband and children, is overlooked. Besides,
reframing the title in this case underestimates African feminism, which emphasizes
motherhood as a joyous experience.

The Chapter Titles

The novel has 18 chapters, of which seven refer to “the mother”, six focus
on men, two on girls, one on children and two on economy. Of the 18 chapters,
the East and West translators translated nine of them the same way and nine of
them differently. Ideological undertones can however be deduced from the different
translations. In the similar translations, the translators maintained a close equivalent
to the source text, for example:

Chapter 1 – The Mother (JOM p. 1)


Die Mutter (GDR p. 5; FRG p. 5)
Chapter 2 – The Mother’s Mother (JOM p. 5)
Die Mutter der Mutter (GDR p. 9; FRG p. 9)
Chapter 5 – A Failed woman (JOM p. 58)
Eine gescheiterte Frau (GDR p. 67; FRG p. 62)

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Chapter 6 – A Man is Never Ugly (JOM p. 66)
Ein Mann ist niemals häßlich (GDR p. 75; FRG p. 70)
Chapter 8 – The Rich and the Poor (JOM p. 89)
Die Reichen und die Armen (GDR p. 97; FRG p. 91)
Chapter 12 – Men at War (JOM p. 157)
Männer im Krieg (GDR p. 168; FRG p. 159)
Chapter 14 – Women alone (JOM p. 174)
Frauen allein (GDR p. 186; FRG p. 176)

It is worthy to note that the two translators translated some chapter titles not
exactly, probably due to differences between English and German. For example:

Chapter 9 – A Mother’s investment (JOM p. 112)


Die Investition einer Mutter (GDR p. 120; FRG p. 113)
Chapter 17 – A Daughter’s Honour (JOM p. 223)
Die Ehre einer Tochter (GDR p. 239; FRG p. 227)

There are however two examples of such a case from which ideological
undertones could be inferred. In these cases, an indefinite article was replaced
by a definite one. The ideological implication of the replacement of an indefinite
with a definite article can be understood in the context of communality versus
individualism. The use of “a/an” could be communal referring to anyone while “the” is
more particular. The communal or socialist ideology versus liberal or individualistic 139
one can be deduced from the differences between the East and West translations of
the following titles:

Chapter 4 – First Shocks of Motherhood (JOM p. 40)


Erste Schrecken einer Mutter (GDR p. 47)
Erste Erschütterungen für die Mutter (FRG p. 44)
Chapter 7 – The Duty of a father (JOM p. 77)
Die Pflicht eines Vaters (GDR p. 85)
Vaterpflicht (FRG p. 80)

Chapter 18 which is titled “A Canonised Mother” (JOM p. 239) is translated as


“Die heiliggesprochene Mutter” in GDR (p. 256) translation. This is a more general
view of women and also more communal than the FRG version, namely “Die Mutter
wird heiliggesprochen” [The mother is canonized] (p. 244). The FRG version is more
individualistic focusing on the exaltation of a personality.
Also in chapter 15, “The Soldier Father” (JOM p. 190), the GDR version reads
“Vater, der Soldat” [Father, the soldier] (p. 203), while the FRG version reads “Der
Vater als Soldat” [The father as soldier] (p. 193). The East German translation refers
to a figure who defends his country and the West German translation depicts it as
being the choice of the individual.

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Furthermore, the choice of the word “Jugendzeit” [early life] in GDR’s version
of the title of chapter 3 inculcates a life involving others and other things, whereas
FRG’s translated the word as “Mädchen” [girl] focuses on the individual. The source
and target texts read:

The Mother’s Early Life (JOM p. 27)


Die Jugendzeit der Mutter (GDR p. 33)
Vom Mädchen zur Mutter (FRG p. 31)

In a few cases, there are inferences to socialist ideology in the West German
translation and liberalism in the East German translation. For example, the title
of chapter 11 which reads “Sharing a Husband” (JOM p. 140) is translated as “Ein
Mann für zwei Frauen” [A man for two women] (p. 149) in GDR’s version and as
“Zwei Frauen teilen sich einen Mann” [Two women share a man] (p. 141) in FRG’s
translation. Despite the fact that the notion of sharing is more paramount in a social
economy like that which existed in East German at the time, the East German
translator completely reframed the title in a capitalist way. He omitted the word
“share” whereas in contrast to this, in the West German translation, the word “share”
(teilen) is emphasized as the translator chose to be more explicit than the author
herself.
A similar scenario played out in chapter 16 where the East German translator
140 omitted the indefinite article in his translation, making the translation more
individualistic. The West German translators translated as close as possible to the
original and by doing so (adding “eine”), the idea presented in the title is less specific.
The title of the chapter and its translations read:

A Mother of Clever Children (JOM p. 211)


Mutter von tüchtigen Kindern (GDR p.226 )
Eine Mutter von klugen Kindern (FRG p. 215)

Conclusion

From the foregoing, it has been shown that there are considerable differences
between the East and West German translations of Emecheta’s The Joys of Motherhood
title and chapter titles, which have resulted in variations in the representation of
Black African Feminism to the target reader. It has also been discussed that the
author’s own feminism, which is Womanism, is different from the radical feminism
from the West. In line with Postcolonial Theory, which describes how Western
ideologies tend to colour translations from third world countries, Spivak criticizes
the Western feminist and postulates the need to show solidarity with women in
postcolonial contexts by learning what is theirs and representing it accordingly. The

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solidarity advocated by Spivak can be minimally inferred from the analysis of the
East and West German translations of the title and chapter titles of Emecheta’s The
Joys of Motherhood carried out above.
Nonetheless the different ideologies of the then East and West German states,
which conditioned the situation of women in the respective areas have serious
implications for the translation of black feminism as indicated in the target texts
used for the study. For instance, the situation of women in FRG looked more like
that of the African woman because in both cases, women stayed at home to care
for their children and to take responsibility of house chores, while the man was the
breadwinner. However, the individualism and capitalist system in FRG is projected
in the translation and it is at variance with the kind of black feminism presented in
the source text. The kind of feminism in the source text is more communal, involving
the society – men and children – and this makes the socialist system, the communal
life which operated in East Germany and is evident in the GDR translation more
appropriate in representing black feminism i.e. the experience of the black woman.

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A tradução de mulheres negras no conjunto de suas ações
políticas
The translation of black women in the set of their political actions

RESUMO

Se avaliarmos o contexto de produção de conhecimento no âmbito de epistemologias


feministas negras, chegaríamos à enumeração de determinadas configurações sociais
que dificultam a interação entre movimentos políticos de mulheres negras em um
âmbito global. Em princípio, a primeira configuração social que dificulta chegar a
esse objetivo concentra-se na realidade multilinguística. Assim, perde-se no contexto
nacional brasileiro em não se falar as línguas espanhola, francesa, inglesa, indígenas
e autóctones, pois, o que mulheres negras produzem em língua estrangeira ganham
menor projeção no âmbito de suas ações políticas em larga escala e, igualmente, o que
se produz fora do Brasil. Torna-se indispensável a tradução de suas epistemologias,
tanto no âmbito teórico-acadêmico quanto no âmbito literário-ficcional, uma vez
que, parafraseando Sonia E. Alvarez (2009, 2014), a tradução é teórica e politicamente
essencial para construir alianças políticas feministas. O intuito é de, nesse ensaio,
apresentar uma breve avaliação dos contornos de tradução, publicação e edição de
textos produzidos por mulheres negras, em especial, no Brasil.

144 Palavras-chave: Mulheres negras. Tradução. Epistemologias negras. Movimentos


político-intelectuais.

ABSTRACT

If we evaluate the context of knowledge production within the framework of black


feminist epistemologies, we would come to a list of certain social configurations
that hinder the interaction between political movements of black women in a global
scope. In principle, the first social configuration that makes it difficult to reach this
goal is focused on the multilingual reality. Thus, it is lost in the Brazilian national
context in which the Spanish, French, English, Indigenous and Native languages
are not spoken, since what black women produce in a foreign language attains less
prominence in their large-scale political actions and also what is produced outside
of Brazil. It becomes indispensable the translation of the epistemologies produced
by black women, both in the theoretical-academic scope as in the literary, since,
paraphrasing Sonia E. Alvarez (2009, 2014), translation is theoretically and politically
essential to construct feminist political alliances. The purpose of this essay is to
present a brief evaluation of the contours of translation, publication and editing of
texts produced by black women, especially in Brazil.

Keywords: Black women. Translation. Black epistemologies. Political-intellectual


movements.

Israel V. de Melo
Universidade de Brasília (UnB), Brasil. E-mail: israelvictor398@gmail.com

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Alguns fatos circundam as ações de escrita, leitura e produção intelectual de
mulheres negras no Brasil e geram obstáculos para acessarmos amplamente suas
produções epistemológicas. Gostaria de avaliar esses fatos utilizando como critério,
inicialmente, a demonstração dos contornos sociais inerentes à produção intelectual
de mulheres para procurar entender as causas dos empecilhos e o impacto da
tradução de mulheres negras nas formações de movimentos políticos insurgentes.
De imediato, é possível vislumbrar o modo pelo qual uma elite intelectual branca
age em negação às produções epistemológicas de mulheres tendo por objeto os
campos do jornalismo e das instituições culturais e científicas, no Brasil, como
apresenta Rita Terezinha Schmidt em seu ensaio “Refutações ao feminismo: (des)
compassos da cultura letrada brasileira”, publicado em 2006 na Revista de Estudos
Feministas (UFSC), e cujo resultado é aquilo que Sueli Carneiro (2005) qualifica
como epistemicídio1, ou a invalidação, depreciação e deslegitimação sumária de
produções epistemológicas de determinados grupos, em especial, a das populações
negras. Schmidt propõe em seu estudo o exame da força do discurso antifeminista no
Brasil, levando em conta a problematização da negação do feminismo, que, em suas
palavras, “como práxis transformadora parece tão fora dos hábitos do país” (Schmidt,
2006: 765). Para isso, ela avalia o discurso de descrédito ao feminismo nos âmbitos
do jornalismo cultural e dos estudos literários. Seu ensaio é minucioso e essencial
para os estudos feministas no país, no entanto, faço destaque ao apontamento
elencado pela autora que nos possibilita articular sua teoria à nossa proposição.
Ela julga que, para desempenhar um papel fundamental à produção, empreende-se 145
à crítica feminista uma condição sine qua non: a compreensão da história cultural de
dominação e de poder no Brasil articulada nos planos de classe, gênero e raça:

A compreensão interdisciplinar da história brasileira e uma


consciência histórica dos processos sociais no contexto político
de privilégios e de relações de dominação parecem-me ser
uma condição sine qua non para que a crítica feminista possa
desempenhar um papel importante na produção de uma forma
nova de pensar a cultura e a literatura à luz das intersecções de
classe social, gênero e raça. Todavia, muitos dos estudos de textos
de autoria de mulheres contemplam análises em um quadro
interclasse dominante em que gênero aparece como categoria
isolada de outras determinações de pertencimento que, embora
presentes de forma subjacente, não são investigadas e integradas
ao foco das análises. Nesse contexto, a reivindicação de uma
política de inclusão condicionada, na base, por um pertencimento
de classe pode ser mais uma atualização do conceito de política
liberal-burguesa, que coloca a igualdade de certas mulheres
perante a lei, ou perante a ordem simbólica, como limite para o
projeto feminista, o que colide frontalmente com o sentido do

1 Segundo a própria autora, o conceito de epistemicídio aparece anteriormente em Boaventura Sousa


Santos (1997), para quem ela faz referência em seu trabalho de tese de doutoramento e cujo título é “A
construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser” (Universidade de São Paulo, 2005).

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político construído no feminismo e que está radicado em uma
crítica radical dos discursos dominantes. Embora constitua
uma atividade de corte acadêmico, a crítica feminista não deixa
de ser um tipo de movimento social, pois pode contribuir para
a desestabilização de categorias ou de paradigmas tradicionais,
segundo definição de Sandra Harding (1986). Para nós, da
literatura, que trabalhamos com sistemas estéticos/cognitivos/
simbólicos/textuais – pois é desse lugar que posso falar – o
exercício da crítica literária através de uma política interpretativa
sustentada por estratégias textuais que possam decodificar os
regimes de verdade incrustados nos textos da cultura, deslocar
suas hierarquias e abrir espaços para as diferenças é a forma mais
importante de construir novos conhecimentos sobre quem somos
nós. Não se trata de produzir conhecimentos sobre determinados
sujeitos, mas de articular um projeto epistemológico através de
uma prática discursiva intervencionista que produza reflexões
sobre os sentidos da dominação e as práticas domésticas de
colonização, inclusive a intelectual. Esta é, no meu entender, a
maior contribuição que a crítica feminista pode oferecer: produzir
um deslocamento em relação ao modelo de democracia instalada
no país e que levou Sérgio Buarque de Holanda a afirmar que
a democracia entre nós é “um lamentável mal-entendido”.
(Schmidt, 2006: 795)

146 Seria significativo elencar as contribuições de uma teoria articulada nos


planos de raça, classe e gênero aos estudos feministas e não feministas, contudo,
o que parece ser mais imprescindível é destacar o ostracismo da Academia e das
instituições culturais frente à intelectualidade feminista no país. A partir disso e
em razão da demonstração desse ostracismo e de outros, a intelectual paulista Sueli
Carneiro defende a teoria do epistemicídio – lexema formado a partir dos radicais
de episteme (επιστήμη), referente a “conhecimento”, e do sufixo cídio, associado
a “morte” ou “extermínio”. Segundo sua teoria, um modo eficaz de subjugar uma
população é negar os seus conhecimentos e práticas científicas, assim como impedir
o seu acesso pleno:

(...) O epistemicídio se constituiu e se constitui num dos


instrumentos mais eficazes e duradouros da dominação étnica/
racial, pela negação que empreende da legitimidade das formas
de conhecimento, do conhecimento produzido pelos grupos
dominados e, consequentemente, de seus membros enquanto
sujeitos de conhecimento. (Carneiro, 2006: 96)

No Brasil, por exemplo, há alguns fatos que nos possibilitam perceber o


fenômeno do epistemicídio. O décimo terceiro capítulo do código penal de 1890,
promulgado em 11 de outubro, trazia como crime a capoeira – importante expressão

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cultural de luta trazida pelos negros africanos escravizados no país – praticada em
sua maioria por negras e negros brasileiros. A pena para quem fosse pego praticando
a capoeira seria de “prisão cellular por quinze a trinta dias” e, caso fosse estrangeiro,
seria deportado para seu país de origem. Apenas em 1935 a capoeira deixa de ser
crime no Brasil. Outro exemplo ainda frequente diz respeito à violência contra
os terreiros e espaços religiosos de matriz africana, sobre os quais o julgamento
é ainda mais violento e para os quais ainda não se direcionou uma política de
fortalecimento dos conhecimentos de matriz africana – em especial os iorubanos2
– nos estabelecimentos de ensino formal – nos quais constam a disciplina de ensino
religioso. Ao longo do percurso histórico brasileiro, as expressões culturais e os
conhecimentos compartilhados pelas comunidades negras e africanas pouco ou quase
nunca foram difundidos nos estabelecimentos de ensino e na historiografia oficial
brasileira, embora haja a obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura Afro-
Brasileira nos estabelecimentos de Educação Básica, possível por meio da lei número
10.639, promulgada pelo então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, em
09 de janeiro de 2003. Se ampliássemos o nosso campo de avaliação, poderíamos
perceber como a ação de epistemicídio se realiza no âmbito das Instituições de
Ensino Superior, atribuindo-o como elemento das relações nesses espaços a partir do
racismo estrutural3, cuja realização da violência racial é exercida pelos instrumentos
de negação de uma determinada estrutura social que, no plano de nossa análise,
faz referência à Academia. A despeito da recente entrada de estudantes negras e
negros nas universidades públicas e da lei de acesso aos cursos de Graduação nas 147
universidades por ações afirmativas, ainda temos a dificuldade de inclusão de autoras
e autores negros nos programas de cursos de Graduação e Pós-Graduação fora do
eixo dos estudos étnico-raciais.
Demonstrados os processos dos fenômenos de negação e depreciação de
epistemologias feministas e negras no Brasil, gostaria de associar subsequentemente
o impacto da tradução como guinada ao epistemicídio e como elemento de interação
política entre os movimentos políticos empreendidos em um plano global.

2 As contribuições das culturas africanas no contexto brasileiro não se restrigem unicamente à dinâmica
iorubana. Ainda que seja possível elencar a formação das religiões de matriz africana tendo por base
o conjunto de elementos culturais iorubanos, outros conjuntos de grupos culturais influenciaram
fortemente as relações socioculturais brasileiras. A saber, grupos proveninentes, em maior escala, da
África Ocidental: em registro, os povos Bantus, os Mandingas, os “Malês”, que, embora não constituissem
uma etnia, agrupavam os muçulmanos escravizados. Nei Lopes, em Dicionário escolar afro-brasileiro
(2006), Enciclopédia da Diáspora africana (2004) e Bantus, Malês e identidade negra (1988) apresenta
dados consubstanciais a respeito da formação das identidades afro-brasileiras a partir de uma dinâmica
de orientação africana. É igualmente pertinente o trabalho da historiadora estadunidense Gwendolyn
Midlo Hall, notadamente, Escravidão e etnias africamas nas Américas (2005).
3 Ver ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural?. São Paulo: Letramento, 2018.

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Contextos tradutórios

Considerando os fatos de o Brasil ser o único país lusófono da América Latina


e de ele abrigar o maior número de pessoas negras diaspóricas – processo decorrente
do tráfico da população estimada em três milhões de africanas e africanos durante
quase quatrocentos anos –, concebemos a tradução como etapa indubitável dos
processos políticos empreendidos pelas populações negras no país. Um obstáculo de
interação entre os movimentos negros de origem e destino brasileiros são as muitas
línguas faladas pelas diferentes populações negras globais. Essas circunstâncias
evidenciam a dificuldade de se estabelecer diálogos entre grupos políticos e
linguísticos dissemelhantes – incluo e enfatizo a interação a partir de línguas não-
europeias, sobretudo, as indígenas ameríndias e africanas. O fato não é que não haja
interação entre esses grupos dissemelhantes, e sim, que há um obstáculo linguístico
para esse fim.
Um caminho que propiciaria uma mudança no paradigma político-linguístico
do país seria o ensino amplo e gratuito de línguas estrangeiras nos estabelecimentos
de ensino, contudo, a difusão das Línguas Estrangeiras Modernas (LEM) avança a
passos lentos no Brasil. Segundo Vilson Leffa (1999), durante o Brasil imperial, o
ensino de Línguas Estrangeiras existia e se limitava às línguas clássicas europeias –
o grego e o latim – à medida que, a partir da reforma de 1855, “o currículo da escola
secundária começou a evoluir para dar ao ensino das línguas modernas um status
148 pelo menos semelhante ao das línguas clássicas” (Leffa, 1999: 14). Para o autor, é
a partir das Leis de Diretrizes e Bases para a Educação (LDB) de 1961, 1971 e 1996
que o ensino de LEM passa a tomar novas dimensões, ainda que a resposta seja
sutil naquilo que diz respeito à aprendizagem eficaz de línguas estrangeiras e aos
comportamentos linguísticos da população brasileira.
Ainda que o ensino de LEM não tenha obtido resultados satisfatórios em uma
amplitude de mudança de paradigmas sociolinguísticos, os comportamentos de
leitura em línguas estrangeiras no país poderiam reorganizar esse padrão linguístico-
político-social. Avaliando o contexto de subdesenvolvimento social brasileiro e
latino-americano naquilo que se refere aos comportamentos de leitura e ao consumo
de produções culturais, o crítico, sociólogo e professor Antonio Candido (1918-2017)
conclui que a ausência de algumas condições tidas como fundamentais impede
comportamentos de leitura diferenciados e em maior escala no nosso contexto
nacional. Para o autor:

Com efeito, ligam-se ao analfabetismo as manifestações de


debilidade cultural: falta de meios de comunicação e difusão
(editoras, bibliotecas, revistas, jornais); inexistência, dispersão
e fraqueza dos públicos disponíveis para a literatura, devido ao
pequeno número de leitores reais (muito menor que o número já
reduzido de alfabetizados); impossibilidade de especialização dos
escritores em suas tarefas literárias, geralmente realizadas como

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tarefas marginais ou mesmo amadorísticas; falta de resistência
ou discriminação em face de influências e pressões externas.
(Candido, 2000: 143)

As duras críticas de Candido nos levam a refletir sobre a necessidade de


mudança dos paradigmas de leitura e de alfabetização no Brasil – não apenas no
tocante ao processo final de leitura, mas ainda naquilo que se conjura à aquisição
e à difusão de livros no país. Tomando por base a difusão de livros (literários e
não literários) produzidos por mulheres negras (brasileiras e não brasileiras), a
necessidade é maior ainda.
Dito isto, nos questionamos: por que traduzir, se as circunstâncias ainda são
insatisfatórias? A resposta vem do modo como encaramos o impacto da tradução
para um público leitor que, socialmente, se distancia do texto. Mulheres e homens
negros e distanciam socialmente de determinados textos não por incapacidade, mas
por não terem os instrumentos político-sociais que lhes possibilitem esse objetivo,
os quais existem a partir das unidades do racismo estrutural – vale lembrar de igual
modo o contexto de epistemicídio a que estão sujeitos e sujeitas. Ademais, a tradução
deve ser visualizada não apenas como a limitação do exercício de tradução da palavra,
mas também a tradução do conceito, da ideia em torno de determinada cosmogonia
ontológica, o que aproxima realidades ontológicas afro-brasileiras às africanas, por
exemplo.
Traduzir produções intelectuais e artístico-literárias de mulheres negras 149
implica alguns fatores de reconstituição social. Quer dizer, em primeiro plano,
naquilo que corresponde, no Brasil e no contexto das Américas, à privação de acesso
a espaços formais de educação das populações negras – compreendendo, assim,
as mulheres e homens negros que tiveram suas experiências políticas desde então
negadas em detrimento da defasagem racializada de escolarização. Segundo dados
do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), enquanto a média nacional
de anos de estudos da população negra era, em 2015, de 7,4 – sendo 7,2 a média da
população negra masculina e de 7,7 a média da população negra feminina – a da
população branca era de 9.
Em segundo plano, a tradução da produção feminina negra toca os fatores
de reconhecimento e inter-relação entre mulheres negras existentes em diferentes
contextos sociolinguísticos. No prefácio à tradução livre de 2013 do livro Mulheres,
raça e classe (1982), da intelectual e ativista negra Angela Davis, o grupo de tradutoras
assim define os parâmetros e objetivos da ação, coordenada pela organização
antirracista portuguesa Plataforma Gueto:

Porque buscamos a nossa história para que possamos conhecer


o papel das mulheres negras e assim destruir a colonização da
nossa mente e construirmos de forma autodeterminada os nossos
pensamentos e comportamentos, começamos por definir como
nos reconhecemos como mulheres negras. (s/n, 2013: 3)

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Para reconhecer-se negra, é preciso, ao menos, o conhecimento do papel
desempenhado pelas mulheres negras – em sua pluralidade – e, assim, destruir a
colonização mental, historicamente forjada às populações negras, para construir de
forma autodeterminada – autônoma – suas ações e comportamentos. Estreitar as
relações entre o que mulheres negras produzem a respeito das condições de mulheres
negras a partir do continente e fora dele é estabelecer mecanismos de reconhecimento
e de interação autodeterminada entre si. Isto é, a tradução se realiza como uma das
etapas de construção de mecanismos de interação entre movimentos de mulheres
negras distintos, no país e fora dele.
Ora, a tradução nos parece até aqui desempenhar pelo menos dois papeis: o
de reorganizar os contornos sociais da educação no Brasil e o de contribuir para a
agência política autônoma das populações negras.

A agência política de mulheres negras

Não somente às mulheres negras e aos homens negros interessam as


epistemologias e as ações políticas de mulheres negras, uma vez que a autonomia de
suas ações políticas não impede o fortalecimento e a mudança de outras estruturas
sociais. Em conferência na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 2017, Angela
Davis afirmou: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade
150 se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide
social onde se encontram as mulheres negras, muda-se a base do capitalismo”.
As contribuições de mulheres negras para os debates de emancipação social de
mulheres não-negras parecem, recentemente, ter tomado outro espaço nas lutas
feministas. Historicamente, o feminismo teve uma feição que eliminava mulheres
negras. Parafraseando bell hooks (1952-), em Feminism is for everybody (2000), há
um problema constante ao definirmos uma historiografia do movimento feminista
no mundo, sobre a qual a determinação é de que o feminismo parece ser propriedade
(ownership) de mulheres brancas. Hooks (2000) não hesita em dar ênfase ao fato de
que mulheres negras sempre contribuíram e agiram em movimentos feministas.
No âmbito histórico, os projetos feministas liderados por mulheres negras se
diferenciaram daqueles liderados por mulheres brancas. A pesquisadora Luciana de
Mesquita Silva, em seu ensaio “Diáspora negra em contexto de tradução: discutindo a
publicação de Mulheres, raça e classe, de Angela Davis, no Brasil” (2018), exemplifica
a partir da teoria de Davis determinada mudança de paradigma do diálogo entre
os movimentos de mulheres negras e de mulheres brancas no processo de luta
abolicionista no século XIX:

Angela Davis demonstra que a união de mulheres brancas e negras


no século XIX em prol da abolição da escravidão e do direito dos
afro-americanos à educação aos poucos foi sendo substituída
pelo distanciamento entre elas em contextos como a luta pelo

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direito ao voto, que privilegiaria apenas mulheres brancas e das
classes média e alta. (Silva, 2018: 207).

De um lado, o movimento abolicionista aproximou um projeto feminista


negro ao projeto feminista branco, mas naquilo que faz referência aos direitos ao
voto, o projeto feminista branco se distanciou do projeto feminista negro. Poderia
reinterpretar a teoria de Angela Davis (1982) naquilo que concerne às contribuições
do feminismo branco durante o século XIX para a abolição do regime escravocrata e
seu declínio de participação nas lutas raciais posteriores e dizer que a partir do final
da segunda metade do século XX, os movimentos feministas (brancos) contribuíram
mais ou menos com lutas antirracistas no país. Se pudesse determinar alguns fatores
que determinaram esses novos espaços ocupados pelos movimentos políticos de
mulheres negras, destacaria, para além de sua evidente e constante participação nos
movimentos feministas, a compreensão da teoria interseccional (Crenshaw, 1978),
com a qual o diálogo em torno dos mecanismos de interação política feminista se
torna mais consistente:

A interseccionalidade conecta dois lados de produção de


conhecimento, a saber, a produção intelectual de indivíduos
com menos poder, que estão fora do ensino superior, da mídia
de instituições similares de produção de conhecimento, e o
conhecimento que emana primariamente de instituições cujo 151
propósito é criar saber legitimado. (Collins, 2017: 7).

Por outro lado, embora possamos avaliar os movimentos feministas


diferentemente em determinados períodos histórico-sociais, ainda não teremos
respostas satisfatórias às necessidades de interação entre mulheres de movimentos
políticos emancipatórios distintos. A questão que se põe à frente são os contextos
de autodeterminação dos movimentos políticos de mulheres negras e, assim, o
distanciamento de um paradigma político eurocêntrico – lembremos a colonização
mental recentemente apresentada. A autodeterminação de movimentos políticos
de mulheres negras surge como consequência dos contornos de um feminismo
eurocêntrico que procura responder aos enfrentamentos específicos de mulheres não-
euro-estadunidenses atribuindo-lhes uma ótica universalista euro-estadunidense:

Pesquisadoras feministas usam gênero como o modelo explicativo


para compreender a subordinação e opressão das mulheres em
todo o mundo. De uma só vez, elas assumem tanto a categoria
“mulher” e sua subordinação como universais. Mas gênero é antes
de tudo uma construção sociocultural. Como ponto de partida
da investigação, não podemos tomar como dado o que de fato
precisamos investigar. Se o gênero predomina tão largamente
na vida das mulheres brancas com a exclusão de outros fatores,
temos que perguntar: por que gênero? Por que não alguma outra

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categoria, como raça, por exemplo, que é vista como fundamental
por afro-americanas? Porque gênero é socialmente construído,
a categoria social “mulher” não é universal, e outras formas de
opressão e igualdade estão presentes na sociedade, questões
adicionais devem ser feitas: Por que gênero? Em que medida uma
análise de gênero revela ou oculta outras formas de opressão? As
situações de quais mulheres são bem teorizadas pelos estudos
feministas? E de que grupos de mulheres em particular? Até
que ponto isso facilita os desejos das mulheres, e seu desejo de
entender-se mais claramente? (Oyěwùmí, 2004: 3-4).

Os questionamentos apresentados pela intelectual iorubana Oyèrónké


Oyèwùmí (1957-) podem ser recuperados a partir da dinâmica de autodeterminação
dos movimentos de mulheres negras. No campo do embate de autonomia
epistemológica e política, testemunhamos a formação do mulherismo africana, cujo
resultado é o subsídio para debates além-gênero, numa compreensão da dinâmica de
interação entre homens e mulheres negras, uma vez que, para estabelecer relações de
equidade das populações negras, a ação político-social negra masculina não pode ser
descartada. Trazendo para o contexto brasileiro, seria difícil avaliar o modo como o
epistemicídio se realizou nas populações negras se levássemos em conta apenas as
realidades de mulheres negras. De igual modo, seria complexo eliminar os homens
negros quando avaliássemos a não-inserção nas universidades públicas e os contextos
152 de trabalho e subemprego aos quais os homens negros também estão sujeitos.
No âmbito da produção artístico-literária, as formas de compreensão do mundo
e o estabelecimento de interação social ficcionalizadas por mulheres negras podem
fornecer elementos consubstanciais para um rearranjo político. Isso significa que
passar a conhecer ontologias e epistemologias políticas a partir da ficção abre campo
para discussões tangentes à dinâmica não-ficcional. Se, por exemplo, mulheres negras
de língua francesa tivessem acesso ao projeto político-estético de Carolina Maria de
Jesus, certamente elas teriam acesso a outros modos de compreensão da dinâmica
social e racial do Brasil. A autora foi publicada em língua francesa, no entanto, há
contradições em sua tradução. Em 1962, Quarto de despejo aparece na França sob
o título Le dépotoir e, mais tarde, os manuscritos de Um Brasil para os brasileiros,
publicado na França sob o título de Le journal de Bitita, em 1982, será publicado no
Brasil como Diário de Bitita. Há entre as edições brasileiras de Quarto de despejo e
Diário de Bitita uma mudança de paradigma estético, provocado pela disparidade
do descuido editorial à primeira edição do segundo título, que é francesa. Germana
Henriques Pereira de Sousa (2011) avalia a perda de conteúdos estéticos fundamentais
da obra de Carolina nas edições em língua francesa, pois, segundo a autora:

A singularidade da obra não reside na espetacularização da


miséria, como a mídia insiste e também alguns críticos (Sousa,
2004); ao contrário, está em seu valor estético, que consiste na
visão interna e de baixo, nas repetições, no caráter imitativo da

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linguagem literária acadêmica, e, finalmente, na língua oral. O
que a autora chama de português clássico é a imitação de modelos
e de obras que não mais correspondiam ao gosto em voga. O
testemunho de Carolina é contundente e incomum em nossas
letras, mas o valor estético de sua obra está além de seu conteúdo.
O valor estético está na forma. A contradição que essa linguagem
compósita representa é constitutiva da obra e, consequentemente,
produz seu valor e seu efeito estético particular. (Sousa, 2011: 125)

Reconhecer o projeto estético de Carolina Maria de Jesus é reconhecer a


precarização de alfabetização e educação submetida à população negra no Brasil.
Ler Carolina é, de um modo ou de outro, ler o Brasil a partir de uma mãe preta
semianalfabeta testemunhando seu desespero diante da fome das filhas e filhos da
miséria de um povo.
Não obstante, a tradução de romances escritos por mulheres africanas
continentais ainda é tímida. O romance Une si longue lettre, da senegalesa Mariama
Bâ (1929-1981), foi publicado na França em 1979, e é considerado um dos primeiros
textos literários que toma como foco as realidades de mulheres negras senegalesas.
Esse importante documento feminista contribuiria, no Brasil e em outros países de
diáspora africana, para as lutas de emancipação e equidade de gênero. No Brasil, o
romance somente começou a ser traduzido em 2017, por um grupo de pesquisadoras
da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Se de um lado temos as epistemologias de mulheres negras de língua não 153
brasileira difusas de modo tímido, temos ainda as epistemologias de mulheres
negras brasileiras pouco difusas no exterior. As contribuições de ambos os lados
são axiomáticas. Posto que os contextos não estão favoráveis à difusão da produção
intelectual negra nas academias e nas demais instituições de conhecimento, há ao
menos movimentos e experiências de agência política que fortalecem a transmutação
do cenário intelectual. Patrícia Hill Collins, em seu ensaio recentemente traduzido
sob o título “Epistemologia feminista negra”, classifica os movimentos sociais dos
anos de 1950 a 1970 como fatores de mudança de paradigma intelectual:

Os movimentos sociais dos anos 1950, 1960 e 1970 impulsionaram


mudanças no clima intelectual e político dos Estados Unidos.
Em comparação com o passado, muitas mulheres negras
estadunidenses tornaram-se agentes legítimas do conhecimento.
Deixando de ser objetos passivos manipulados pelos processos
dominantes de validação do conhecimento, nós, mulheres afro-
americanas, passamos a reivindicar nossa própria voz. (Colllins,
2018: 160-1)

A autora ainda classifica a geração de mulheres e homens negros intelectuais


como unidade de formação para outro dispositivo epistemológico. No Brasil,
instituições e movimentos sociais negros do século XX (Frente Negra Brasileira,

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Movimento Negro Unificado, Geledés, dentre outros) estimularam a consolidação
de um projeto negro intelectual autônomo, à medida que as gerações pós- ações
afirmativas constituem um rearranjo das produções intelectuais negras no país –
possíveis em boa medida graças aos esforços dos movimentos sociais negros para a
aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, promulgado em 20 de julho de 2010, o
qual consolidaram como entrave as políticas de ações afirmativas no Legislativo.

Conclusão

A negação do conhecimento e da contribuição das populações negras para


a História e a cultura nacionais constitui o apagamento sumário do povo negro
no Brasil. O epistemicídio daquilo que produziu o povo negro elimina intelectuais
negras e negros de um eixo fundamental aos dispositivos de poder e impossibilita
o encerramento dos ciclos de dominação, como demonstra Sueli Carneiro (2005).
Desconhecer na mesma medida aquilo que se produz fora do país e em línguas não
acessíveis às populações-alvo de determinadas ações políticas é também parte do
processo de epistemicídio. A tradução firma assim uma possibilidade de saída ao
fenômeno de negação intelectual.
Se pensarmos nos desafios de ensino e aprendizagem de mecanismos político-
linguísticos, reconheceremos o modus operandi de dominação racial no Brasil, ao
154 perceber que a limitação linguística é também uma limitação política. Não ter acesso
à leitura não se define nos moldes da habilidade de leitura, e sim, nos contornos sociais
que possibilitam a aquisição, a difusão, a compreensão e a aplicação do conteúdo lido.
Todos esses processos são intrínsecos aos caminhos da educação brasileira – que,
racializada, eliminou uma parcela da população, em especial, a negra e periférica.
Rediscutir a tradução é rediscutir o acesso aos mecanismos de poder, possibilitando,
contudo, a realização de um projeto racial autodeterminado.
Do mesmo modo que as epistemologias de mulheres negras não interessam
apenas às mulheres negras, a interseccionalidade não é exclusividade dos movimentos
feministas:

Apesar da centralidade dos estudos de mulheres para a


interseccionalidade, seria um erro considerar a interseccionalidade
como um projeto exclusivamente feminista ou como uma variante
da teoria feminista. A interseccionalidade é muito mais ampla
que isso. Na academia norte-americana, os ganhos dos estudos de
raça / classe / gênero e interseccionalidade têm sido substanciais.

Apesar do significado da pesquisa, o verdadeiro trabalho de


estabelecer um campo reside na construção de uma base de
estudantes de graduação e pós-graduação, garantindo assim que
a próxima geração de profissionais irá emergir. (Collins, 2017: 13)

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Assim, a agência política de mulheres negras contribui à formação de
outras gerações e provoca a alteração dos elementos estruturantes das opressões
sociais. Ampliar a interação entre os movimentos de mulheres negras em acordo
às suas diferentes realidades sociais e linguísticas é um fim a que os estudos de
tradução, tradutoras e tradutores poderiam recorrer, pois, a partir disso, também se
beneficiariam.
Por fim, vale ressaltar que compreendo epistemologias de mulheres negras
não apenas aquilo que envolve uma teoria feminista negra, mas também aquilo que
mulheres negras produzem estético-artisticamente sobre suas realidades e sobre seus
projetos de ação política. Logo, traduzir literaturas negras produzidas por mulheres
negras não perde espaço frente às suas produções teórico-intelectuais.

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Frantz Fanon no Brasil: Uma releitura da sua recepção pelo
Pensamento Negro Feminista
Frantz Fanon in Brazil: A re-reading of his reception by Feminist Black Thought

RESUMO

Este artigo propõe uma releitura da recepção de Franz Fanon no Brasil em dois
períodos específicos entre 1960-1970 e 1980-1990. Em suma, os aportes metodológicos
deste escrito se baseiam em buscas no Google Scholar, os resultados obtidos foram
organizados em dois quadros, por um lado, novas abordagens foram introduzidas
ao longo das últimas cinco décadas desde a recepção de Frantz Fanon no cenário
brasileiro, por outro lado, Lélia González e Neusa Santos Souza, por exemplo, não
foram identificadas como autoras citadas pelos principais comentadores de Fanon.
A ideia de tradução aqui é utilizada em chave ampliada, no entanto, não limita a
nossa compreensão de que trata-se de um campo hegemonicamente masculino
e sexista, e ao assumi-la como uma prática política buscamos refletir sobre os
dividendos patriarcais e racistas do campo editorial e acadêmico. Na análise deste
artigo, fundamentada no pensamento negro feminista e/ou das intelectuais negras,
confirmamos que há uma genealogia masculinista em disputa pelos fanonismos
que invisibiliza as intelectuais negras. Afinal, se Lélia González e Neusa Santos
Souza dialogam com o pensamento fanoniano desde a tradução dos livros Peau
158 Noire, Masques Blancs (Pele Negra, Máscaras Brancas) e Les Damnés de la Terre (Os
Condenados da Terra), quais são as razões para não associá-las às teorias políticas em
voga nos movimentos sociais negros e/ou nos discursos acadêmicos?

Palavra-chaves: Frantz Fanon. Tradução. Pensamento Negro Feminista. Mulheres


Negras.

ABSTRACT

This article proposes a re-reading of the reception of Franz Fanon in Brazil in two
specific periods between 1960-1970 and 1980-1990. In short, the methodological
contributions of this paper are based on searches in Google Scholar, the results
obtained were organized in two frames, on the one hand, new approaches were
introduced over the last five decades since the reception of Frantz Fanon in the
Brazilian scenario, for On the other hand, Lélia González and Neusa Santos Souza,
for example, were not identified as authors cited by Fanon’s main commentators.
The idea of ​​translation here is used in an enlarged key, however, it does not limit
our understanding that it is a hegemonically male and sexist field, and in assuming
it as a political practice, we seek to reflect on the patriarchal and racist dividends
of the editorial and academic field. In the analysis of this article, based on Black

Rosânia do Nascimento
Bacharela em Antropologia pelo Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (DAN/
ICS/UnB) e Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/DAN/UnB).
E-mail: rosaniaoliveira01@gmail.com

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Feminist Thought and/or Black intellectuals, we confirm that there is a masculinist
genealogy in dispute for the fanonisms that invisible Black intellectuals. After all,
if Lélia González and Neusa Santos Souza talk with Fanonian thinking since the
translation of the books Peau Noire, Masques Blancs (Black Skin, White Masks) and
Les Damnés de la Terre (The Damned of the Earth), what are the reasons for not
associate them with the political theories in vogue in Black Social Movements and/
or academic discourses?

Keywords: Frantz Fanon. Translation. Female Black Thought. Black Women.

Neste artigo propomos uma releitura da recepção da tradução do martinicano


Frantz Fanon no Brasil em dois momentos específicos entre 1960 a 1970 e 1980 a 1990
a fim de afirmar a sua influência no pensamento crítico da filósofa Lélia González e
da psicanalista Neusa Santos Souza. Ao perceber que há uma genealogia masculinista
em disputa pelos fanonismos no Brasil, demonstramos que essas duas intelectuais
negras estiveram em diálogo com Fanon, pois havia versões para o português brasileiro
e espanhol dos livros de Frantz Fanon em circulação entre os movimentos sociais
negros e o movimento de mulheres negras. Assim, a ausência destas intelectuais
brasileiras nesses debates entre as décadas de 1980 a 1990 confirmam o racismo e o
sexismo operante nas disputas pelos Estudos Pós-coloniais e Decoloniais.
Desde a década de 1990, diversas autoras têm desvelado o processo do
silenciamento das vozes femininas negras no Movimento Négritude, em especial,
Tanella Boni (2014) em Femmes en Négritude: Paulette Nardal et Suzanne Césaire, 159
afirma que erroneamente tal movimento é associado a ideia dos “pais” como se fosse
um acaso o encontro, em Paris, do martinicano Aimé Césaire, do senegalês Léopold
Sédar Senghor e do guianense Léon-Gontran Damas. Assim, ao alinhar também
nossas análises com a estadunidense Tracy Denean Sharpley-Whiting autora de
Femme Négritude: Jane Nardal, La Dépêche Africaine, and the francophone New Negro,
buscamos evidenciar o sexismo dos comentadores e interlocutores fanonianos no
Brasil. Esta análise pauta-se pelo diálogo com o pensamento negro feminista e/ou
das intelectuais negras, pois “só reivindica comida quem tem fome, e, dificilmente
essa problematização seria levada a cabo por um homem, o qual muitas vezes não
percebe a ausência de mulheres por estar ocupando a posição de privilégio” (ROCHA,
2018: 33).
Esta releitura da recepção de Frantz Fanon no Brasil propõe desvelar as
lacunas em relação a associação masculinista dos comentadores e acadêmicos
brasileiros na recepção do pensamento africano ou diaspórico. Dito desta forma,
nosso estudo não está alinhado aos Estudos da Tradução e Estudos de Gênero, campo
interdisciplinar construído por tradutoras feministas e demais estudiosas. Como
advertido por Monique Pfau (2012), a tradução feminista tem sido uma estratégia
profícua para dialogar de imediato com intelectuais brasileiras e estrangeiras, afinal,
a internacionalização da tradução feminista deve ser “representada através da ‘língua
franca’; ou seja, o discurso deve conseguir ser publicado em uma língua de amplo

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acesso, conseguindo assim conquistar seu ‘visto’ para ser universalmente lido por
diversas culturas diferentes além do lugar onde nasceu” (PFAU, 2012: 56). Neste
artigo o sentido de tradução segue em chave ampliada, no entanto, não limita a nossa
compreensão de que trata-se de um campo hegemonicamente masculino e sexista,
e ao assumi-la como uma prática política buscamos refletir sobre os dividendos
sexistas do campo editorial e acadêmico.
Em contrapartida, quando se refere ao pensamento de mulheres africanas ou
diaspóricas observa-se um silenciamento agudo, muitas vezes, o movimento destas
mulheres ou a participação de algumas delas em círculos e movimentos artísticos-
culturais e filosóficos não é mencionada ou lembrada. Em diálogo com Tanella Boni
(2014: 63) algumas indagações ressoam, afinal, “o que aconteceu? Elas escrevem, elas
pensam, mas elas não são ouvidas?”1. Já faz algum tempo que intelectuais negras
têm refletido sobre o enigma sexista nos movimentos sociais negros e acadêmico em
âmbito internacional e nacional. Algumas reflexões são emergentes nesse campo,
afinal, quais são os sentidos ou lógicas nas falhas na comunicação e transmissão da
tradução de autoria feminina negra no Brasil? É curioso que o leitor fanoniano tome
o sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2008) como a principal referência e
não perceba a reprodução de uma genealogia masculina. Aliás, o próprio Guimarães
(2008) cita uma coletânea organizada por Tracy Denean Sharpley-Whiting em
coautoria com Lewis Gordon e Renée White, mas ao que nos parece até o momento
é que as intelectuais têm sido negligenciadas no “mapa panorâmico dos fanonismos”,
160 expressão usada pelo sociólogo Deivison Faustino (2015: 22).
Ao mesmo tempo, se o leitor se atentar às notas de rodapé de Guimarães (2008)
notar-se-á que tal produção se insere nas reflexões do Colloque Penser aujourd’hui à
partir de Frantz Fanon, acontecido em 2007, na França. O evento reuniu entre outras
convidadas, por exemplo, a antropóloga argelina Tassadit Yacine-Titouh e Mireille
Fanon-Mendès-France, jurista e filha de Frantz Fanon, o não conhecimento dessas
intelectuais confirma, mais uma vez, a reprodução da transmissão do pensamento
fanoniano e da tradução dos seus clássicos pelo crivo sexista. Por outro lado identificar
em que contexto político os autores considerados “especialistas” em Frantz Fanon
se inserem nos possibilita melhores compreensões investigativas e analíticas para
afirmar os seus dividendos patriarcais.
Ao sistematizar nossas reflexões, observamos que realizar uma revisão teórica
não seria o suficiente para atingir nosso objetivo principal, pois não faltam textos
produzidos em português sobre a intersecção do pensamento e práxis revolucionária
de Frantz Fanon com os demais pensadores, políticos, intelectuais, como, por
exemplo, Jean-Paul Sartre, Paulo Freire, Clóvis Moura, Amílcar Cabral, e agora mais
recentemente, aos nomes masculinos dos Estudos Decoloniais e ao filósofo camaronês
Achille Mbembe (Cf. BERNARDINO-COSTA et. al., 2018). Os aportes metodológicos
adotados compreendem dois momentos a fim de subsidiar a revisão teórica proposta;
o primeiro, foram feitas pesquisas avançadas no sistema eletrônico Google Acadêmico
1 No original, “Que s’est-il donc passé? Elles écrivent, elles pensent, mais sont-elles entendues?” (BONI,
2014: 63).

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classificadas pelo idioma (português brasileiro), relevância (número de vezes em que
os resultados aparecem citados em artigos relacionados) e períodos específicos (entre
1960-1970 e 1980-1990). O critério destes dois períodos específicos, em especial,
converge com a data da primeira tradução do livro de Frantz Fanon, em 1968, e
com o desenvolvimento dos movimentos sociais negros e movimentos de mulheres
negras no decorrer dos anos 1970 e 1980, ou seja, mesmo lapso temporal da atividade
intelectual de Lélia González e Neusa Santos Souza.
No segundo momento, a organização dos dados obtidos ilustra o corpo
deste artigo estão agrupados em dois quadros segmentados em três colunas,
respectivamente, referentes às abordagens conceituais, aos dados das publicações, e
a última coluna demarca as áreas de interesses a fim de entender como Frantz Fanon
foi apropriado ao longo dos últimos cinco decênios por estudos interdisciplinares.
Assim como a revisão teórica, o sistema de pesquisas Google Acadêmico não foi
pensado como um filtro imparcial ou com total acuidade, estamos cientes das
limitações dessa metodologia como a restrição ao lastro acadêmico que exclui, na
maioria das vezes, a produção militante ou ativista de Lélia González e a produção
técnica (clínica) de Neusa Santos Souza, a segunda limitação é que muitas obras
publicadas no decorrer dos períodos analisados não estão disponíveis online ou são
edições esgotadas, mimeografadas ou digitalizadas.
A nossa intencionalidade política reflete a “lupa” adotada no processo de
buscas no referido sistema eletrônico, os dados levantados e organizados se encerram
em nomes masculinos ou em acadêmicos brancos. Assim, compreendemos que a 161
produção dessas autoras negras passa duplamente despercebida pelos recortes
adotados; primeiro, por não ser facilmente localizada no sistema supracitado; e
segundo, por não ser mencionada pela literatura sistematizada a partir dos resultados
obtidos. Para suplementar essas ausências ou lacunas, a revisão teórica apoia-se em
discussões advindas das estudiosas e ativistas negras, como, por exemplo, Luiza
Bairros (2000) Raquel Andrade Barreto (2005), Elisabeth Viana (2006), Alex Ratts
e Flávia Rios (2010), tributárias (os) e/ou contemporâneas (os) de Lélia González e
Neusa Santos Souza.
Os fanonismos no Brasil têm se destacado como um campo profícuo nas
ciências sociais conforme o mapeamento2 contemporâneo realizado pelo sociólogo
Deivison Faustino (2015), mas ainda sim, essa recepção tem sido marcada pela
literatura de língua inglesa e, no Brasil, por expoentes masculinos das ciências
sociais como Guimarães (2008) e Ortiz (2014). Frantz Fanon tem retornado à cena
acadêmica, no entanto, quais são as outras figuras que estão por detrás da figura
deste intelectual que projetamos somente um portrait vestido de terno escuro, em
geral, em uma única imagem em preto e branco? As intelectuais negras brasileiras

2 Esse importante mapeamento também foi realizado “em buscas nos bancos virtuais de trabalhos
acadêmicos, a saber: a biblioteca de periódicos da Capes e do Scielo” (FAUSTINO, 2015: 24) durante
o seu doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia na UFSCar, orientado pelo professor
Valter Silvério, intelectual negro e militante histórico.

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dialogam com este martinicano? As intelectuais negras brasileiras estão em diálogo
com outras pesquisadoras fanonianas?
Ao final, confirmamos que a disseminação dos discursos das intelectuais
negras sofre um embargo duplo; o primeiro, a produção de teorias sociais no seu país
de origem (nos países africanos, na Diáspora ou na Europa), haja vista depreende-se
que os movimentos políticos, artísticos e intelectuais são associados diretamente aos
chamados “pais fundadores” que, por sua vez, negam ou silenciam tais intelectuais
conforme nos alerta Tanella Boni (2014: 63), e quando essas obras chegam ao Brasil
são marcadas “por uma política (colonial) de tradução que insiste em não incentivar
amplas traduções de trabalhos de pessoas negras” (ROCHA, 2018: 50).

Os anos de 1960 a 1970: Fanon sob vistas grossas da ditadura civil-


militar?

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2008) e Deivison Faustino (2015)


têm tecido reflexões salutares sobre a recepção de Fanon no Brasil. Conforme os
autores, o primeiro momento da recepção de Frantz Fanon se deu pela via terceiro-
mundista com enfoque político no clássico Os Condenados da Terra traduzido, em
1968. Atualmente, Frantz Fanon é associado às tradições dos Estudos Culturais, Pós-
coloniais, Decoloniais e African Studies desenvolvidos nos Estados Unidos, Europa e
162 África que, segundo Faustino (2015), corresponde em âmbito internacional a quarta
tendência dos estudos fanonianos vigentes desde os anos 1980. Assim, os chamados
estudos fanonianos ou fanonismos têm repercutido nas discussões acadêmicas, em
movimentos sociais negros e nos programas das esquerdas brasileiras, além disso,
muitos eventos e publicações internacionais e nacionais na perspectiva decolonial
são tributários do pensamento de Frantz Fanon (Cf. MACÊDO, 2016; BERNARDINO-
COSTA; GROSFOGUEL, 2016; BERNARDINO-COSTA et al., 2018).
Em razão duas observações são levantadas por Faustino (2014), o curto lapso
de vida do psicanalista martinicano não corresponde ou limita a complexidade do seu
pensamento, é possível constatar diferenças notáveis entre o pensamento fanoniano,
sua práxis revolucionária e os chamados fanonismos. Dessa forma, esse campo deve
ser cartografado no plural a fim de aproximar as contribuições de Frantz Fanon às
emergências desses novos estudos. Para compreender a recepção do martinicano
e a capilaridade da sua influência nos estudos brasileiros, passaremos a análise do
Quadro 1 a seguir que reúne os primeiros resultados encontrados no sistema Google
Acadêmico entre 1960 a 1970. Esse primeiro lapso compreende-se como a “primeira
fase da embocadura terceiro-mundista que vigorou do final dos anos 1950 até os anos
1970, abrigando autores liberais como Hannah Arendt” (FAUSTINO, 2015: 91).

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Quadro 1. Frantz Fanon entre 1960 a 1970 no Brasil

Abordagens Publicações Áreas de Interesses


• FANON, Frantz. L’An V de la Révolution Algérienne.
Tradução e Ed. François Maspero. Paris, 1959. Resenha Crítica
comentários das por Fernando Albuquerque Mourão (1962). Revista Ciências Sociais
primeiras obras de de História (USP).
Frantz Fanon no • FANON, Frantz. (1968). Os Condenados da Terra.
Brasil Trad. José Laurêncio de Melo. Rio de Janeiro-RJ:
Civilização Brasileira.
• ZOLBERG, Aristides R (1968). “A estrutura do
conflito político nos novos estados da África
Discussões sobre
Tropical”. Revista de Ciência Política, FGV, abril/
as independências
junho, pp. 56-98.
africanas; crítica Ciência Política (Estudos
• BELTRAN, Luis. (1969) “A Problemática dos Estudos
ao colonialismo, Políticos), Ciências
Africanistas”, 27 Revista Brasileira de Estudos
tendências Sociais e Administração.
Políticos 71.
pós-coloniais e
• RICHERS, Raimar. (1970). “Desenvolvimento:
anticolonial.
um desafio social”. Revista de Administração
de Empresas, Rio de Janeiro, 10 (2): 41-69 abr./jun.
Discussão filosófica
• ARENDT, Hannah. (1970). Da Violência. Tradução
sobre a violência e 163
de Maria Cláudia Drummond Trindade. Brasília- Filosofia
crítica a Sartre, Sorel e
DF: Editora UnB.
Fanon.
Fonte: Do Nascimento, 2018.

O destaque do quadro acima é para as traduções do livro Os Condenados da


Terra do martinicano Frantz Fanon, e para a tradução do livro Da Violência da filósofa
Hannah Arendt (1970). Os primeiros direitos autorais para o português brasileiro do
clássico fanoniano Os Condenados da Terra foram adquiridos pela editora Civilização
Brasileira (FANON, 1968). A capa, assinada por Marius Laurltzen Bern, reflete o forte
apelo ideológico desde a gradação das cores (vermelha e preta) até a projeção das
personagens que ilustram metaforicamente a condição política dos condenados à
terra. Como afirma Carina Naufel (2012), a editora foi fundada em 1925 por Monteiro
Lobato e Octalees Marcondes Ferreira, mas passou a ser presidida em 1948 pelo editor
Ênio Silveira. Depois da entrada deste editor, o catálogo editorial foi modificado
e, pela primeira vez, editava-se autores marxistas. Como corroborado por Sandra
Reimão (2014), Ênio Silveira foi alvo predileto de apreensões, coações e censuras do
Ministério da Justiça (MJ) por meio do Serviço de Censura de Diversões Públicas
(SCDP) e do setor do Departamento de Censura de Diversões Públicas (DCDP).
No entanto, parece-nos que ainda não foi explorado quais foram os interesses
que motivaram a recepção de um escritor negro como Frantz Fanon para além da

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sua possível associação ao marxismo. Em contrapartida, as parcas citações de Frantz
Fanon no Brasil durante o lapso de 1960 a 1970, em certa medida, põe em relevo
a negligência das suas contribuições para a agenda política das esquerdas latino-
americanas. Segundo Guimarães (2008) e Ortiz (2014), Fanon seguiu como autor
desconhecido pelos ativistas e intelectuais negros e no mundo acadêmico branco até
a década de 1970. Nos dados organizados neste escrito, notamos que Fanon aparece
citado entre 1960 a 1970 a partir da chave-conceitual do anti-colonialismo que
fundamentou a emergência das novas identidades nacionais africanas, é importante
ressaltar a participação do martinicano no Movimento Pela Libertação da Argélia
(MPLA), a produção dessa época foi organizada no livro intitulado Pour la Révolution
Africaine (FANON, 2006).
Mas há aqui uma questão sobre as entrelinhas editoriais brasileiras, de fato,
Fanon passou despercebido diante da conjuntura política da ditadura civil-militar,
ou apenas foi ignorado por ser um intelectual negro, um revolucionário desde a
Argélia? O prefácio escrito pelo filósofo Jean-Paul Sartre jamais foi esquecido entre a
comunidade acadêmica brasileira, por outro lado, Faustino (2015) nota que Fanon teve
um crescente reconhecimento na medida em que foi apropriado pelos movimentos
sociais e intelectuais negros. Guimarães (2008) argumenta que o desconhecimento
deste grande teórico no interior das esquerdas brasileiras relaciona-se às condições
políticas da tradução realizada no auge ditadura civil-militar, ou seja, época de
profunda repressão à contraviolência de líderes, guerrilheiros, pensadores, ativistas
164 perseguidos ou condenados à clandestinidade3.
Os sociólogos Guimarães (2008) e Ortiz (2014) concordam que as idéias de
Fanon entram no Brasil depois da visita dos filósofos franceses Jean-Paul Sartre e
Simone de Beauvoir em razão da ampla circulação da filosofia existencialista nos
círculos acadêmicos e militantes do pós-guerra, momento em que se estreitou os laços
intelectuais entre este filósofo francês e os pensadores afrodiaspóricos e africanos. Na
visita ao Brasil, Sartre não se encontrou com nenhum pensador negro ou pensadora
negra, por outro lado, Guimarães (2008) afirma que o texto sartreano Orfeu Negro
já havia sido publicado no jornal Quilombo ligado ao Teatro Experimental do Negro
(TEN)4.

3 Como discutido com profundidade por Karin Sant’Anna Kössling (2005), o complexo repressivo
acionado pela polícia política da ditadura civil-militar dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro também
perseguiu os movimentos sociais negros, inclusive, Frantz Fanon, W.E.B Du Bois e Marcus Garvey eram
autores do corpo político-teórico negro, o que chamou a atenção dos órgãos repressivos da época.
4 Há referências importantes sobre a formação dos movimentos sociais negros Cf. CUTI, (Luiz Silva).
(1992). E assim disse o velho militante José Correia Leite. São Paulo: Noovba e PEREIRA, Amauri Mendes;
SILVA, Joselina da. (2009). O Movimento Negro brasileiro: escritos sobre os sentidos de democracia e
justiça social no Brasil. Belo Horizonte-MG: Editora Nandyala.

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Há uma disputa acadêmica que põe em relevo se Jean-Paul Sartre5 exerceu
tanta influência no pensamento de Frantz Fanon ou não. No Brasil, Renato Ortiz
(2014: 427) afirma que o editor da revista L’Esprit, Jean Marie Domenach, considera o
pensador martinicano um discípulo sartreano, em suas palavras, “o existencialismo
de Fanon carrega um elemento de radicalização do marxismo”. Ao nosso ver, essa
associação deve ser compreendida a partir da análise do próprio pensamento de
Frantz Fanon que, segundo o sociólogo Deivison Faustino (2015), pode ser considerado
como um conjunto de premissas políticas e filosóficas que inaugura um novo campo
denominado fanonismos. Esse peso atribuído ao Sartre evidencia a existência de
uma cartografia hegemônica do conhecimento que privilegia o circuito francês e,
por seu turno, compromete o diálogo ou correspondência deste referido pensador
com outros autores dos circuitos árabes e latino-americanos, há que se lembrar que
Fanon era caribenho e construiu o seu arcabouço político-teórico sobre/na Argélia.
O espectro sartreano apontado por Guimarães (2008) está sublinhado no
escopo de Da Violência da filósofa Hannah Arendt que se detém ao prefácio de Jean-
Paul Sartre e não propriamente as teses do martinicano Frantz Fanon. Para o pensador
martinicano, Orfeu Negro até pode ser considerado um marco no intelectualismo do
existir negro, no entanto, a participação dos intelectuais brancos na agenda política,
literária e filosófica anticolonialista perpassa por críticas precisas.

E que não nos acusem de anafilaxia afetiva; o que queremos dizer


é que não há razão para que André Breton diga que Césaire: “É 165
um negro que maneja a língua francesa como nenhum branco
a maneja nos dias de hoje”. E mesmo que Breton exprimisse a
verdade, não vejo onde residiria o paradoxo, ou algo a salientar,
pois, afinal de contas, Aimé Césaire é martinicano e professor
da universidade. Mas, retrucarão os negros, é uma honra para
nós que um branco como Breton escreva coisas como essas.
Continuemos... (FANON, 2008: 50-51).

Os circuitos acadêmicos e políticos seja francês ou inglês são responsáveis por


eclipsar diversas mulheres do escopo da vida e obra de Frantz Fanon, muitas vezes,
para minimizar a influência ou a participação na sua atividade militante e intelectual,
como, por exemplo, Josie Fanon, jornalista francesa e sua esposa, recuperada
tardiamente pelo estadunidense Christian Filostrat (2017), organizador da coletânea
intitulada Le Dernier Jour de Frantz Fanon. A difusão de Fanon pela chamada epidemia
sartreana produziu outros efeitos, em grande medida, considerando a hegemonia do
pensamento ocidental nota-se que diversos autores negros passaram a reconhecer

5 Para Katleen Gyssels (2005), poetas e escritores negros sejam guianenses, martinicanos, haitianos e
africanos foram tributários do existencialismo sartreano. O francês foi autor de prefácios como Orphée
Noir, de 1948, para a Anthologie de la poésie nègre et malgache, organizada pelo senegalês Léopold
Sédar Senghor; o ensaio introdutório, escrito em 1956, para a primeira edição de Les Damnés de la terre,
do martinicano Frantz Fanon e, por conseguinte, outro ensaio escrito, em 1957, para a obra Portrait du
colonisé… do tunisiano Albert Memmi.

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Jean-Paul Sartre como o prefaciador-mor de todos os principais textos inaugurais da
Négritude ou dos panafricanismos. Ademais, o reconhecimento deste movimento
por filósofos e artistas brancos implicou na formação de uma genealogia masculina
que, por sua vez, tem no seu cerne o silenciamento da produção artística, intelectual e
acadêmica de Paulette Nardal, a pensadora da “consciência da raça”, Suzanne Roussi-
Césaire, a defensora do Surrealismo caribenho, Jane Nardal, a editora do jornal La
Dépêche Africaine, martinicanas pouco lembradas pelos autores das literaturas
negro-africanas (SHARPLEY-WHITING, 2000; BONI, 2014).
Voltando para a análise do Quadro 1, neste período de 1960 a 1970, foi possível
localizar a resenha crítica do livro L’ An V de la Révolution Algérienne6 do martinicano
Frantz Fanon escrita por Fernando Albuquerque Mourão para a Revista de História
da Universidade de São Paulo (USP) anterior, inclusive, a tradução de Os Condenados
da Terra. No preâmbulo, há uma breve apresentação biográfica e política do autor,
o curioso é que a resenha crítica de Fernando Albuquerque Mourão (1962) não foi
identificada no escopo do artigo de Guimarães (2008).

A morte de Frantz Fanon, recentemente ocorrida numa clínica


nos Estados Unidos, vítima de câncer, ocorreu posteriormente
à leitura deste trabalho na Sociedade de Estudos Históricos.
Frantz Fanon nasceu na Martinica, tendo seguido seus estudos
superiores na Faculdade de Medicina de Paris, onde foi assistente
de psiquiatria, e nos hospitais civis, trabalhando depois nos
166 hospitais da Argélia, onde, em contato direto com as realidades
e chocado com a brutalidade da luta, ingressa no FNL. Reparte
o seu tempo entre as missões ao estrangeiro, procurando obter
auxílio para os refugiados argelinos em Marrocos e na Tunísia, e
na assistência médica aos combatentes, quer no front, quer nas
suas bases na Tunísia (MOURÃO, 1962: 270).

Interessante notar também que Fernando Albuquerque Mourão (1962) faz


referências substanciais aos desdobramentos sociais e psicanalíticos do povo argelino,
atualmente, analisados pelas chaves-conceituais do mapeamento contemporâneo
organizado por Deivison Faustino (2015), porém, o referido livro segue sem
tradução para o português brasileiro. As restrições e perseguições das editoras de
esquerda, assim como aos intelectuais, guerrilheiros e políticos foi um traço dos
regimes autoritários ressaltado com veemência por Sandra Reimão (2014), mas se
os livros de Che Guevara e José Martí, por exemplo, aparecem nas listas dos livros
mais censurados, por outro lado, o desconhecimento do martinicano Frantz Fanon
confirma-se dado o racismo operado pelas próprias revoluções latino-americanas e
pelo mercado editorial nacional. Da mesma forma, podemos aplicar tal raciocínio

6 Atualmente, Heitor Loureiro e Raphaël Maureau (2014) publicaram a tradução do terceiro capítulo
deste livro intitulado La Famille Algérienne. Curiosamente, as três versões apresentam diferenças no
título. Originalmente, em francês, intitula-se L’an V de la révolution algérienne, em inglês, A Dying
Colonialism, em espanhol, Sociologie de una Revolución.

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a rarefeita divulgação do pensamento das várias mulheres racializadas na América
Latina e Caribe, líderes, ativistas, guerrilheiras, políticas ou intelectuais deste
período, por outro lado, tal gesto corrobora a misoginia dos circuitos revolucionários
e da tradição dos estudos negros.

Os anos 1980 e 1990: Lélia González e Neusa Santos Souza leitoras


de Frantz Fanon?

No primeiro lapso entre 1960 a 1970 constatamos a vigência da tradição


masculina na recepção da produção fanoniana como ilustrado no corpo da seção
anterior. A discussão ou menção ao martinicano Frantz Fanon realizada por uma
mulher deu-se no escopo da obra da filósofa Hannah Arendt (1970). As observações
realizadas a partir dos resultados do Google Acadêmico e sistematizados no Quadro
2 a seguir confirmam a introdução de novas abordagens fanonianas entre 1980
a 1990, período este correspondente à atividade intelectual e ativista de Lélia
González e Neusa Santos Souza. Em âmbito internacional anglófono, os anos
1980 corresponde a quarta fase dos estudos fanonianos conforme o mapeamento
organizado pelo sociólogo Deivison Faustino (2015). A crítica que se faz aos chamados
estudos fanonianos ou fanonismos é a ausência ou presença rarefeita de mulheres
na biografia de Frantz Fanon, sua mãe Eléonore Félicia Médélice e a esposa dele,
a jornalista francesa Marie-Joséphe Dublé Fanon, das críticas negras, feministas, 167
escritoras contemporâneas a Fanon, como, por exemplo, a escritora martinicana
Mayotte Capécia presa às notas de rodapé ou sublinhada com depreciação por este
martinicano (Cf. DO NASCIMENTO, 2017).
No Brasil, vários comentadores se interessam pela personagem Jean Veneuse7
do romancista guianense René Maran, ao mesmo tempo, as discussões do mundo
acadêmico brasileiro baseiam-se em premissas psicanalíticas e filosóficas que
buscam solucionar a questão retórica proposta por Fanon: “que quer o homem
negro?” (FANON, 2008: 26). A interlocução com as demais autoras para além das
ondas ou fases sobre o pensamento de Frantz Fanon não nos parece ser somente uma
questão de tradução, aliás, como defendido pela filósofa brasileira Aline Matos Rocha
(2008: 50), perpassa os critérios de quem merece tradução nos debates acadêmicos

7 Personagem do livro Batouala do antilhano René Maran, considerada a primeira obra escrita por
um autor negro ganhadora do Prix Goncourt, em 1921. Frantz Fanon (2008) afirma que trata-se de um
gênero autobiográfico que denuncia pela perspectiva de um antilhano negro como o racismo afeta as
subjetividades do homem negro. Por outro lado, os leitores (grafados no masculino para afirmar as suas
benesses patriarcais) têm verdadeiro desinteresse pela personagem Nini, da também antilhana Mayotte
Capécia, o livro que enquadra-se no gênero autobiográfico é intitulado Je suis Martiniquaise, e trata do
enlace de uma mulher negra com um homem branco (francês), porém, pareceu pouco interessante aos
olhos masculinistas. No Brasil, essa discussão é bastante conhecida tanto no rol das ciências sociais e
pelos movimentos sociais das mulheres negras que, por sua vez, afirmam como o mito da democracia
racial e a ideologia do embranquecimento provocaram desvantagens afetivas e econômicas para este
grupo.

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brasileiros, o que “contribui para que a maioria dessas produções [das demais autoras
diaspóricas e africanas] permaneçam disponíveis apenas em francês ou inglês”.
Antes de adentrar a análise do quadro propriamente dito é importante uma
ponderação metodológica e analítica, relacionar Lélia González, Neusa Santos Souza
e Frantz Fanon não implica, necessariamente, assumir a posição corrente nos circuitos
negros anglófonos e francófonos, pois o que se percebe, muita vezes, é uma hierarquia
que privilegia Frantz Fanon como uma das principais referências dos Estudos Pós-
coloniais e os intelectuais negros (as) brasileiros (as) como seus intérpretes terceiro-
mundistas. Da mesma forma, este artigo poderia ser uma interlocução direta entre
essas duas intelectuais e Virgínia Bicudo, haja vista as três são intelectuais negras
e brasileiras. Além disso, ambas têm suas trajetórias acadêmicas marcadas pela
dedicação, em menor ou maior grau, à psicanálise. Virgínia Bicudo foi uma socióloga
e psicanalista com profunda atividade intelectual nas ciências sociais na mesma fase
marcada pelos nomes de Florestan Fernandes, Octávio Ianni e Roger Bastide. No
mapeamento dos fanonismos, o sociólogo Deivison Faustino (2015) cita a psicanalista
Virgínia Bicudo dada a sua proximidade teórico-conceitual8 com o sociólogo Guerreiro
Ramos e com o psiquiatra Frantz Fanon, mas a intelectual é lembrada como um
“destaque destoante do grupo” crítico da branquidade (FAUSTINO, 2015: 208).
As trajetórias de Lélia González e Neusa Santos Souza são percorridas por fios
esparsos, rarefeitos ou organizados a partir das memórias dos militantes e ativistas
mais velhos. A literatura mais recente tem demonstrado a dedicação teórico-conceitual
168 dos mais novos em disputar a incorporação dessas autoras no cânone acadêmico,
ou seja, são educadores (as) e intelectuais tributários (as) das gerações militantes
anteriores que têm chegado desde os últimos dois decênios aos programas de pós-
graduação e às cadeiras da docência universitária. Em especial, a biografia de Lélia
corresponde a própria memória política e afetiva dos militantes, artistas e ativistas, a
sua vida e obra confunde-se com o histórico da luta política dos Movimentos Sociais
Negros e do Movimento de Mulheres Negras em âmbito nacional e latino-americano
e caribenho como acordado por Luiza Bairros (2000), Alex Ratts e Flávia Rios (2010)
e Catalina González Zambrano (2017).
Sobre Neusa Santos Souza há muito pouco escrito sobre a sua história de vida
ou sobre o alcance da sua atuação como psicanalista, não que ela não seja mencionada
por outras autoras, apenas não tem sido o foco central como Frantz Fanon para
Deivison Faustino (2015) e Virgínia Bicudo para Damaceno Gomes (2013). Era uma
mulher negra, baiana radicada no Rio de Janeiro, que estudou medicina com ênfase
em psiquiatria e dedicou-se à psicanálise lacaniana, além desses fios biográficos
coletados em veículos negros9, diante disso, não conseguimos reunir outras
8 O período de atividade intelectual da psicanalista Virgínia Leone Bicudo analisado por Janaina
Damaceno Gomes (2013) compreende os anos de 1945 a 1955, ou seja, antecede o primeiro período da
recepção de Frantz Fanon no Brasil. O foco deste trabalho são Lélia González e Neusa Santos Souza,
por uma razão muito clara, ambas foram influenciadas diretamente pela versão espanhola e português
brasileiro das obras Pele Negra, Máscaras Brancas e Os Condenados da Terra.
9 “Morre Neusa Santos Souza”, no Portal da Fundação Cultural Palmares. Disponível em: <http://www.
palmares.gov.br/?p=3166> Acessado em 28 de dezembro de 2018.

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informações. Notamos apenas alguns ruídos da sua solidão afetiva e intelectual, em
alguns excertos ela é descrita como uma mulher que não deixava filhos, que não era
casada,10 e que aos 60 anos despedia-se como mais uma vítima do racismo. Para
não cair na dicotomia entre Lélia González, a militante, e Neusa Santos Souza, a
psicanalista de consultório, é importante sinalizar que esta última também é descrita
pela geração das ativistas da década de 1990 como uma das “guardiãs” do Movimento
Negro e do Movimento de Mulheres Negras e, por sua vez, Lélia González também
era multidiplomada (em História e Filosofia) como ressaltado por Raquel de Andrade
Barreto (2005).
Houve um lapso temporal de quase uma década após a morte de Lélia
González, ocorrida em 1994, até que as primeiras produções surgissem em âmbito
acadêmico, em geral, foram desenvolvidas por pesquisadoras do ativismo antirracista
da década de 1990 como Raquel de Andrade Barreto (2005) e Elisabeth Viana
(2006). Atualmente, a organização da coletânea Primavera para as Rosas Negras
(GONZALEZ, 2018), iniciativa das organizações pan-africanistas de São Paulo, abre
precedentes para novos olhares sobre a produção leliana, muitas vezes, seus textos
sequer são conhecidos por um público mais amplo ou mais jovem, talvez, seja esse o
tributo que falta para Neusa Santos Souza.
Sobre a produção de Neusa Santos Souza foram localizados textos raros
referentes a sua atividade profissional; capítulos de livros sobre psicanálise e
coorganização no Seminário X de Lacan, tais produções encontram-se esgotadas no
mercado editorial. As demais obras de caráter clínico-profissional já são analisadas 169
há algum tempo pela psicóloga Maria Aparecido Bento (2002), ou seja, o pensamento
de Neusa Santos Souza (1983) pode ser apreendido pela sua autonomia de possuir um
discurso sobre si mesma, ou por uma prática política e profissional coerente com a
sua condição racial e de gênero como corroborado na abertura do seu livro Tornar-se
Negro: vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social.

Este livro representa o meu anseio e tentativa de elaborar um


gênero de conhecimento que viabilize a construção de um
discurso sobre o negro, no que tange à sua emocionalidade. Ele
é um olhar que se volta em direção à experiência de ser-se negro
numa sociedade branca. De classe e ideologia dominantes
brancas. De estética e comportamentos brancos. De exigências
e expectativas brancas (SOUZA, 1983: 17).

Depois dessas breves digressões biográficas, faz-se necessário a análise teórica


da produção de Lélia González e Neusa Santos Souza à luz das abordagens conceituais
identificadas e organizadas no Quadro 2 abaixo em três grupos (i) literatura negra
diaspórica e africana e panafricanismos; (ii) estudos sobre racismo à brasileira;
10 “Neusa Santos Souza”, as poucas notícias sobre sua morte, escritas por amigos, colegas e por um
coletivo negro da UERJ, foram organizadas pelo Memorial Lélia González. Disponível em: <http://
leliagonzalez-informa.blogspot.com/p/neusa-santos-souza.html> Acessado em 29 de dezembro de
2018.

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identidade negra; formação dos movimentos sociais negros e críticas ao mito da
democracia racial e (iii) críticas ao capitalismo, ao imperialismo e ao colonialismo
no contexto das independências asiáticas e africanas. Dessa forma, se a leitora
observar atentamente o Quadro 2 a seguir notar-se-á que os textos das brasileiras
Lélia González e Neusa Santos Souza estão identificadas com ícones diferentes em
relação aos demais autores, em linhas gerais, mantemos tais autoras incorporadas
às abordagens conceituais para não cometer novamente um duplo apagamento ou
deixá-las à parte dos demais autores (as) ou em seções menos prestigiosas.
Quadro 2. Frantz Fanon entre os anos de 1980 a 1990 no Brasil

Áreas de
Abordagens: Publicações
interesse

• BROOKSHAW, David. (1983) Raça & Cor na Literatura Brasileira. Vol. 7.


Mercado Aberto.

• FANON, Frantz. (1983). Pele Negra, Máscaras Negras. Tradução Adriano


Caldas. Rio de Janeiro: Fator. Letras

• BERND, Zilá. (1988). Introdução à Literatura Negra. Editora Brasiliense.


Literatura negra
• SANTILLI, Maria Aparecida. (1987). “Literaturas de língua portuguesa: com
diaspórica
“as” da África entre nós”. Boletim Bibliográfico, 48: 29.
e africana;
• LIMA REIS, Eliana Lourenço. (1988). “Descentrando a crítica: a literatura
panafricanismos
170 das minorias”. Estudos Germânicos, vol. 9: 22-29. Ciências
• CARNEIRO, João. (1981). “Négritude e América Latina”. Revista de Sociais
Antropologia. Vol. 24 (1981), pp. 75-84

• JACKSON, K. David. (1990). “Bibliografia Oswald de Andrade”. Revista de


Letras: 53-81.

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Áreas de
Abordagens: Publicações
interesse

• MOURA, Clóvis. (1983). Brasil: Raízes do Protesto Negro. Vol. 28. Global
Editora.

• MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio; ZICCARDI, Alícia. (1980). “Notas para


uma Discussão sobre Movimentos Sociais Urbanos”. Cadernos 13, 79-95.
Estudos sobre
• CALDEIRA, Maria Isabel. (1980). “All Colored People Sing: do estereótipo à
racismo à
identidade”. Revista Crítica de Ciências Sociais. 4/5, pp. 157-18.
brasileira;
identidade • BALTHAZAR, Paula Renata; RODRIGUES, Carlos Benedito. (1988). “O Ciências
negra; formação Negro no Maranhão: sob as regras da democracia racial”. Caderno Pesquisa Sociais
dos movimentos São Luís 4.1, pp. 110-119.
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críticas ao mito In: SILVA, Luiz Antônio Machado et alii. Movimentos Sociais Urbanos,
da democracia minorias étnicas e outros estudos. Brasília-DF, ANPOCS, pp. 223-244. Psicanálise
racial • ii. GONZÁLEZ, Lélia. 1988 [2018]. “A categoria político-cultural da
amefricanidade”. In: Tempo Brasileiro, 92/93, jan./jun, pp. 69-82.

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Jornal, 20, out./nov./dez., p. 5.

• iv. SANTOS, Neusa Souza. (1983). Tornar-se Negro: as vicissitudes da


identidade do negro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal.
171
• NEVES, Marcelo. (1989). “Da Necessidade de uma Nova Ordem
Internacional”. Revista Brasileira Estudos Políticos, v. 69, p. 7.

• ALMEIDA DINIZ, Arthur José. (1984). “Hoje Vivemos o Medo”. Revista da


Faculdade de Direito da UFMG, vol. 29.26-27, pp.: 80-93.
Críticas ao
• LIMA, Bertúlio, LÚCIA, Dora. (1988). “Apartheid: racismo e/ou capitalismo?”.
capitalismo, Direito
Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos, 9.16: 116-123.
imperialismo
• LIMA BASTOS, HERZILA Maria. (1987). “Aspectos culturais de povos
e colonialismo Ciências
desenvolvidos e subdesenvolvidos como caracterizadores dos seus contatos
no contexto das Sociais
com línguas estrangeiras: uma correlação possível”. Estudos Germânicos, v.
independências
8, n. 2, p. 40-44. Política
asiáticas e
africanas • STUDER, Caren Elisabeth. (1989). Escola, estrangeiro e violência cultural:
uma contribuição para o entendimento de neocolonialismo cultural.
Dissertação (Mestrado em Metodologia de Ensino). Programa de Pós-
Graduação em Educação, Faculdade de Educação da Unicamp, Campinas,
mimeo.

Fonte: Do Nascimento, 2018.

Para Luiza Bairros (2000), Racismo e sexismo na cultura brasileira é o texto


mais emblemático do pensamento leliano. Ainda conforme a socióloga, o que atribui
peso nas reflexões de Lélia González é “o uso de categorias propostas por Freud e

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Lacan que também aparecem em seus trabalhos posteriores, e resulta da tentativa
de desvendar o que fica sem explicação no racismo à brasileira” (BAIRROS, 2000:
353). Em contrapartida, A categoria político-cultural da amefricanidade e Uma viagem
à Martinica são produções advindas da agenda latino-americana e caribenha entre
1980 a 1990 como assinalado por Alex Ratts e Flávia Rios (2010), pois interrelacionam
as lutas dos negros das Américas às ideologias vivificadas durante as libertações
africanas e afro-diaspóricas.
Dessa forma, ao disputar a presença nesses espaços, Lélia González
demonstra se situar politicamente em dois movimentos quais sejam, a busca pela
inserção das intelectuais brasileiras nas agendas transnacionais, historicamente,
inauguradas pelos encontros de negros diaspóricos e africanos, e por outro lado a
filósofa compreende a importância de alinhar a escala regional (América Latina e
Caribe) a nacional (Brasil) para concretizar os interesses dos Movimentos Sociais
Negros e do Movimento de Mulheres Negras (ZAMBRANO, 2017). A necessidade de
afirmar as contribuições de Lélia González e Neusa Santos Souza ou pensá-las como
leitoras de Frantz Fanon (1968 e 2008), é propor uma reflexão sobre a importância da
circulação das traduções deste martinicano no país, e afirmar que trata-se de uma
agenda política protagonizada por mulheres negras que desenvolveram teoricamente
os debates raciais no Brasil no período de 1980 a 1990.

A referência a Frantz Fanon foi constante nos movimentos


172 negros de Brasil e Estados Unidos e revelam a consciência global
do racismo. A importância do autor, entre outras coisas, esteve
em criticar uma sociedade centrada no branco e na obsessão
pela brancura, ao mesmo tempo, destacar os dois pólos de uma
relação colonial: o colonizador e o colonizado. Fanon buscou
compreender os mecanismos de dominação na formação da
consciência do povo colonizado (BARRETO, 2005: 86).

Deivison Faustino (2015) afirma que as versões de Pele Negra, Máscaras


Brancas circulava desde 1970 em duas versões português e castelhano, esta última
curiosamente intitulada !Escucha, Blanco. Conforme Elisabeth Viana (2006), Lélia
González participava desde a década de 1960 do mundo acadêmico como tradutora e,
mais tarde, como professora universitária. Desse modo, é importante salientar que a
filósofa ambientou-se com as discussões psicanalíticas antes mesmo da tradução dos
clássicos fanonianos para o Brasil, ao seu currículo soma-se cerca de quatro traduções
de compêndios da área como Freud e a Psicanálise do francês Octave Mannoni, fato
que confirma o seu know-how na formação teórico-conceitual dos movimentos
sociais negros, além, é claro, dos cargos ocupados durante a sua vida como professora
e coordenadora do curso de Ciências Sociais.

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Segundo um importante manual11 da área da Psicanálise, Pele Negra, Máscaras
Brancas (FANON, 2008):

Era uma resposta à Psicologia da Colonização, obra do psicanalista


francês Octave Mannoni, publicada em 1950. Mesmo julgando
“sincero” o procedimento de seu adversário, Fanon o acusava
de psicologizar a situação colonial e reduzir os conflitos entre
o homem branco e o homem negro a um jogo sofisticado, que
levava a manter o colonizado na dependência do colonizador.
(ROUDINESCO E PLON, 1998: 222).

Desse modo, conforme Monique Pfau (2012: 61) a tradução implica na


transcodificação, ou seja, “os [as] tradutores [as] devem ter em mente e claramente
compreendido os discursos dos autores dos textos originais”, e no caso de Lélia
González além da sua fluência em francês trata-se também de uma das mais
importantes intelectuais negras. Dessa forma, a sua aproximação com autores negros
da francofonia como Cheik Anta Diop e Frantz Fanon, deve-se a sua excelência
acadêmica notada nas suas análises grandiloquentes, sua atividade profissional como
tradutora e sua aproximação crítica nos chamados estudos das relações raciais. Outro
ponto diferencial desta filósofa foi a sua consciência multiescalar (transnacional,
regional e nacional) em relação a Diáspora e o continente africano, afinal, a experiência
colonial entremeou-os historicamente, no entanto, havia a emergência anticolonial
173
da identidade negra representada por trocas políticas e culturais.
Em contrapartida, a atividade profissional Lélia González não se encerra
no campo da psicanálise, a filósofa também se interessou por autores canônicos
ocidentais, bem como autores africanos e diaspóricos. Lélia González foi leitora de
Marx, Cheik Anta Diop, George C. M. James, Ivan Van Sertima, Walter Rodney e
Simone de Beauvoir, esta última partilhada pelas mesmas leituras da psicanalista
Neusa Santos Souza. Entretanto, ao amadurecer os seus pressupostos filosóficos e,
principalmente, após suas atuações como ativistas em organizações negras ou de
mulheres negras, ambas perceberam que a agenda feminista hegemônica (classe
média branca) diferencia-se da realidade vivenciada pelas mulheres negras (RATTS
E RIOS, 2010).
Os quadros apresentados no decorrer deste artigo são importantes para refletir
sobre a (não) inserção do pensamento de Lélia González e Neusa Santos Souza no
escopo das abordagens conceituais em voga nos chamados estudos fanonianos. Dessa
forma, o pensamento das intelectuais negras brasileiras não têm sido sistematizado
em “fases” como notado em relação ao martinicano Frantz Fanon, este detalhe
não atende aqui o antagonismo que se faz entre o ativismo antirracista/feminista
e a produção acadêmica, mas desvela a lógica sexista que busca homogeneizar os
11 Com a colaboração dos estudos desenvolvidos por Françoise Vergès sobre o movimento antipsiquiátrico
inaugurado por Fanon, Roudinesco e Plon (1998) identifica que o psiquiatra utilizava os conhecimentos
da psicanálise para rejeitar o freudismo em nome de uma política anticolonial, ou seja, o seu legado até
hoje tem sido desenvolvido naquilo que se denomina de etnopsicanálise ou antropologia psicanalítica.

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processos intelectuais individuais e coletivos das mulheres negras ou reduzi-los em
seções menos prestigiosas no rol dos “Estudos Raciais” ou dos “Estudos de Gênero”.
Frantz Fanon também produziu a sua obra a partir da sua práxis revolucionária
(como Lélia González) e da sua experiência profissional como psiquiatra (Neusa
Santos Souza também o era), mas, atualmente, não é visto como militante ou
simplesmente revolucionário. Frantz Fanon é o Autor ou o próprio marco conceitual
de um campo, o que se percebe é a complexificação das suas contribuições na medida
em que é recuperado e partilhado por diversos autores/gerações (inclusive brancos/
acadêmicos) no escopo de novos estudos do Norte e Sul Global que, mormente, ainda
excluem o Brasil dessa nova (ou velha?) cartografia do conhecimento.
A marfinense Tanella Boni (2014) questiona o consenso que há no circuito
internacional negro e no mundo acadêmico, pois ambos associam o marco temporal
do Movimento Négritude às obras inaugurais dos homens negros. Ao transpor
tal crítica para nossa proposta, é possível demonstrar a vigência da genealogia
masculinista também no Brasil que, por seu turno, tem previsto a participação das
mulheres negras nas demandas das agendas políticas ou nas produções acadêmicas
a partir das categorias de “gênero” ou “feminismos”. Negar que a práxis política
destas mulheres não têm fundamento teórico-conceitual ou limitá-las em certos
debates implica, mais uma vez, em hierarquizá-las na cartografia hegemônica
do conhecimento da qual situam-se sempre na “periferia” em relação à produção
masculina ou branca (sinônimo de centro/cânone). Ou seja, as mulheres negras têm
174 a sua atuação em movimentos sociais transformada em estratégias pedagógicas para
ensinar o (a) branco (a) ou o homem sobre os seus privilégios na sociedade, enquanto
os homens operam a produção do pensamento social e político que, por conseguinte,
institucionaliza-se como teoria social.
Nesse simulacro, a lógica sexista reproduz a origem das teorias canônicas
ou ditas de vanguarda à imagem e semelhança dos autores masculinos, neste caso,
associados sempre a figura do “pai” da teoria x ou y. Notamos que são os autores que
gozam do mérito de ser reconhecidos com os “pais” deste ou daquele movimento
ou teoria, inclusive, eles só aceitam dividir esse poder com outros homens. Como
afirmado por Tracy D. Sharpley-Whiting (2000) artistas, escritoras e pensadoras
negras são eclipsadas mesmo que elas estejam na vanguarda filosófica, cultural e
artística do mesmo movimento. Se se inverter a lógica algo parece fugir a fluidez
deste texto, afirmamos que Suzanne Roussi-Césaire, Jeanne Nardal e Paulette Nardal
são as “mães” do Movimento Négritude, e que Lélia González e Neusa Santos Souza
são as “mães” dos fanonismos no Brasil, algo soa estranho? O contrário em relação
aos homens é tomado como verdadeiro, os leitores (assinado em masculino e no
plural para evidenciar os seus grupos) sequer desconfiam que nessa relação bilateral
os “pais fundadores” jamais atribuem a devida importância às “mães”.

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Considerações Finais

Ao longo deste artigo, buscamos trazer à tona a importância das novas


abordagens sobre a produção da filósofa Lélia González e da psicanalista Neusa
Santos Souza a partir da interface com os fanonismos no Brasil. Duas questões
centrais incitaram o nosso debate; a primeira, as intelectuais negras brasileiras
estão em diálogo com o martinicano Frantz Fanon? Essa questão é positiva para
as leitoras e interlocutoras que se atenta às discussões filosóficas e psicanalíticas
dessas duas intelectuais brasileiras. Podemos afirmar também que o pensamento
do martinicano teve ressonância porque tratou-se de uma leitura partilhada por
diversas ativistas (individualmente ou coletivamente) que privilegiaram a práxis
revolucionária nos programas das organizações negras entre 1970 a 1990. Em razão,
a “excepcionalidade” para Frantz Fanon aqui marca o seu crescente interesse nas
discussões acadêmicas anglófonas e francófonas, ao final, são introduzidas no Brasil
pela via da genealogia masculinista. Repensar o silenciamento das pensadoras
negras em âmbito internacional, regional e nacional é se comprometer, de fato, com
o processo de descolonização do conhecimento, e não cristalizar esse círculo vicioso
que recupera somente nomes masculinos.
Se nos atentarmos para o trânsito dessas teorias políticas em âmbito
internacional podemos esboçar um modelo que não obedece uma lógica linear, mas
que evidencia as regras da cartografia do conhecimento operada pelos marcadores
da língua, nacionalidade ou grupo de pessoas (mulheres negras brasileiras, por 175
exemplo): Frantz Fanon (francês) - Comentadores/Teóricos (inglês e francês) - Teorias
tributárias (inglês e espanhol). Agora se invertermos o modelo pela lógica territorial
ou identitária temos o seguinte: Frantz Fanon (Martinica-Antilhas/Argélia-África) -
Comentadores/Teóricos (África, Ásia, Estados Unidos e Europa)- Teorias Tributárias
(América Latina, África e Ásia). Logo, em termos de escala regional, Lélia González
e Neusa Santos Souza não se encontram tão distantes do martinicano por questões
históricas, raciais, culturais e políticas, afinal, são duas latino-americanas e um
caribenho, mas se distanciam em razão do gênero (mulheres negras e homem negro),
além de outros marcadores.
Essa digressão não busca reivindicar benesses ou culpas ao martinicano
Frantz Fanon, não buscamos individualizar sujeitos oprimidos pela mesma estrutura
colonial-imperialista. O intuito é instigar o exercício crítico que confirma como o
racismo e o sexismo afetam grupos heterogêneos do mesmo espectro de maneiras
diversas. A segunda questão inicial deste artigo, as intelectuais negras brasileiras estão
em diálogo com outras pensadoras fanonianas (ou suas críticas)? Pelo mapeamento
contemporâneo organizado por Faustino (2015) percebemos que muito pouco tem
refletido nos debates brasileiros, em geral, os artigos mais citados no Google Acadêmico
são assinados por uma autoria masculina ou agrupadas a partir de temas específicos
como os Estudos Pós-Coloniais e Decoloniais. A predominância dessas referências
contribui para que os fanonismos seja uma prerrogativa exclusiva para pesquisadores

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que alcançam os doutorados sanduíches no exterior ou em intercâmbios intelectuais
em estágios pós-doutorais em universidades estrangeiras, por exemplo. Ao retornar
ao Brasil, esses pesquisadores têm ampla abertura em periódicos nacionais, mas
raramente citam as autoras negras do circuito internacional, ademais, os estudos
comparativos também excluem as referência negras brasileiras.
À guisa das considerações finais, pontuamos a questão da tradução/recepção
da produção diaspórica e africana. A nova tradução espanhola de Pele Negra, Máscaras
Brancas (FANON, 2009), por exemplo, é realizada na íntegra e coletivamente por
mulheres12. No Brasil, a segunda versão desta mesma tradução têm os seus direitos
reservados para a editora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) que, de certa
forma, minimiza a hegemonia acadêmica e editorial centrada no eixo Centro-Sul Ao
desvelar a genealogia masculinista em disputa pelos fanonismos no Brasil, espera-
se que haja reflexões pertinentes sobre uma possível inserção dos debates propostos
por Tracy Denean Sharpley-Whiting, afinal, essa intelectual também tem produções
críticas sobre Frantz Fanon desde os anos 1990 em parceria com outras acadêmicas.
Não é para duvidar que ainda não haja o reconhecimento desta pensadora e das
intelectuais brasileiras ou das tradutoras negras?

Agradecimentos: Sou grata as cientistas sociais Hellen Rodrigues e Maysa Camelo


e a filósofa Ana Carolina Magalhães Gonzaga pelas primeiras sugestões e críticas, em
especial, agradeço pelo incentivo em tornar este texto público.
176

Referências bibliográficas

ALMEIDA DINIZ, Arthur José. (1984). “Hoje Vivemos o Medo”. Revista da Faculdade
de Direito da UFMG, vol. 29.26-27, pp.: 80-93.

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ARENDT, Hannah. (1970). Da Violência. Tradução Maria Cláudia Drummond


Trindade, Brasília-DF: Editora UnB.

BALTHAZAR, Paula Renata; RODRIGUES, Carlos Benedito. (1988). “O Negro no


Maranhão: sob as regras da democracia racial”. Caderno Pesquisa São Luís 4.1, pp. 110-
119.

12 Respectivamente a listagem das tradutoras da última edição espanhola, Iría Álvarez Moreno pelos
textos da filósofa Judith Butler e Sylvia Wynter; Paloma Monleón Alonso pelos textos de Lewis R.
Gordon e Nelson Maldonado-Torres e, por fim, Ana Useros Martín pelos textos de Frantz Fanon, Samir
Amin e Immanuel Wallerstein.

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BARRETO, Raquel Andrade. (2005). Enegrecendo o Feminismo ou Feminizando a
Raça: Narrativas de Libertação em Angela Davis e Lélia Gonzalez. Dissertação de
Mestrado (História Social da Cultura), Departamento de História da PUC - Rio, Rio
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Feminismo negro estadunidense e sua (in)visibilidade no cenário
brasileiro: questões de tradução
Black American feminism and its (in)visibility in Brazilian scenario: translation issues

RESUMO

Este artigo visa a abordar a tradução, no contexto brasileiro, de obras e textos não-
ficcionais de intelectuais afro-americanas que discutem questões de gênero e raça.
Primeiramente, apresenta-se uma discussão sobre feminismo negro no âmbito
dos Estados Unidos, a partir do trabalho de pensadoras como Angela Davis, bell
hooks e Patricia Hill Collins. Em seguida, é proposto um breve panorama sobre
o que tem sido traduzido no Brasil em relação à escrita das autoras em questão,
com informações como títulos das obras e textos traduzidos, anos de publicação,
nomes dos/as tradutores/as, editoras e periódicos envolvidos e títulos e anos das
obras e textos no contexto de partida. Posteriormente, são feitas reflexões sobre esse
cenário, no qual ainda prevalece pouca visibilidade da produção das autoras citadas,
especialmente em relação ao grande mercado editorial brasileiro. Como arcabouço
teórico, são utilizados os trabalhos de Lefevere (1992), Toury (1995), Collins (2000),
entre outros.
 
Palavras-chave: Feminismo negro estadunidense. Tradução. Textos não-ficcionais.
182
ABSTRACT

This article aims to address the translation, in the Brazilian context, of nonfiction
works and texts by African-American women intellectuals who discuss gender and
race issues. Firstly, there is a discussion of Black feminism in the United States,
considering the work of scholars such as Angela Davis, bell hooks and Patricia Hill
Collins. Secondly, a brief overview on what has been translated in Brazil regarding the
writings of the authors in question is presented. This overview includes information
such as the titles of translated works and texts, the years of publication, the names of
translators, the publishers and journals involved and the titles and years of works and
texts in the source context. Subsequently, reflections on that scenario, in which there
is still little visibility of the production of the referred authors, especially in relation
to the mainstream Brazilian publishers, are proposed. As theoretical framework, the
works of Lefevere (1992), Toury (1995), Collins (2000), among others, are used.

Keywords: Black American feminism. Translation. Nonfiction texts.

Luciana de Mesquita Silva


Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ), Brasil. E-mail: luciana.
cefetrj@gmail.com

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Primeiras palavras

A proposta deste artigo é um desdobramento de minha comunicação na


mesa redonda “Perspectivas sobre tradução e gênero: um olhar sobre os trabalhos
de mulheres tradutoras no contexto brasileiro”, ocorrida no âmbito do IV Colóquio
Internacional de Literatura e Gênero, realizado de 5 a 7 de setembro de 2018, na
Universidade Estadual do Piauí, em Teresina-PI. Nessa mesa redonda, composta por
mim e pelos pesquisadores Dennys Silva-Reis (UnB) e Fabíola do Socorro Figueiredo
Reis (UNIFAP), utilizamos como referência os contextos literário e cultural brasileiros
para discutir possíveis articulações entre os Estudos da Tradução e os Estudos de
Gênero, por meio de questões como o papel de mulheres tradutoras, os diferentes
gêneros traduzidos por elas, as estratégias tradutórias adotadas e as contribuições que
elas têm trazido para os/as leitores/as através de suas traduções. Para tanto, tomamos
como base as ideias de Lefevere (1992), segundo o qual a tradução é uma reescrita
que exerce grande poder sobre a construção das imagens de um/a autor/a, de uma
obra e de uma cultura, e de Bassnett (1992), que propõe o seguinte pensamento:

Se nós aceitamos que o/a tradutor/a não é, e nunca poderia ser,


um filtro transparente pelo qual o texto passa, mas sim uma
fonte muito poderosa de energia criativa transitória (e essa é a
premissa fundamental dos intelectuais vinculados aos Estudos da
Tradução), então, pensando em termos de gênero, o/a tradutor/a 183
serve para aumentar a conscientização das complexidades textuais
tanto no papel do/a escritor/a, quanto no do/a leitor/a. (Bassnett,
1992: 70, tradução minha)1

Na minha comunicação, especificamente, procurei aliar os Estudos da


Tradução não só a questões de gênero, como também de raça, já que as ligações
entre esses distintos campos de estudo fazem parte da minha trajetória acadêmica,
incluindo projetos de pesquisa, apresentação de trabalhos em congressos e publicação
de artigos em periódicos científicos, e profissional, já que atuo como docente em um
programa de pós-graduação interdisciplinar, o Mestrado em Relações Étnico-Raciais
do CEFET/RJ. Nesse contexto, desde 2016, tenho ministrado a disciplina “Literaturas
afro-americana e afro-brasileira em contextos de tradução”, cujo objetivo é fazer uma
introdução aos Estudos da Tradução, abordando aspectos linguísticos, culturais e
ideológicos, bem como levantar reflexões sobre a tradução de literaturas da diáspora
negra, especialmente a literatura afro-brasileira em tradução nos Estados Unidos e a
literatura afro-americana em tradução no Brasil.

1 “If we accept that the translator is not, and never could be, a transparent filter through which a text
passes, but is rather a very powerful source of creative transitional energy (and this is the fundamental
premise of Translation Studies scholars), then thinking in terms of gender serves to heighten awareness
of textual complexities in the roles of both writer and reader.”

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Com relação à literatura afro-americana traduzida no Brasil, que dialoga com a
proposta do presente artigo, de acordo com Álvaro Hattnher em “Presença de autores
afro-americanos no Brasil: as traduções” (1998), o primeiro texto afro-americano
traduzido para o português brasileiro foi a autobiografia de Booker T. Washington
Up from Slavery (1901), lançado no Brasil em 1940. Com o título de Memórias de
um negro, esse livro de Washington foi traduzido por Graciliano Ramos e publicado
pela Companhia Editora Nacional. No campo da poesia, há um pequeno número de
autores representados, e seus poemas costumam ser encontrados de forma dispersa,
em diferentes antologias. Entre eles estão Langston Hughes, LeRoi Jones e Claude
McKay, sendo que Hughes é o mais traduzido.
Quanto aos romances, esse é o gênero que predomina nas traduções, e fatores
comerciais exercem um papel preponderante nesse aspecto. Segundo Hattnher
(1998:30), “a prosa tem, inegavelmente, maior penetração e aceitação entre o público
leitor brasileiro”. A primeira tradução de um romance afro-americano no Brasil foi a
de Native Son (1940), de Richard Wright, realizada por Monteiro Lobato e publicada
em 1941 com o título de Filho nativo: tragédia de um negro americano. Outros autores
como Chester Himes, James Baldwin e Alex Haley, além das escritoras Alice Walker,
Maya Angelou e Toni Morrison, também têm tido obras de sua autoria publicadas no
Brasil. É o caso, por exemplo, dos livros A cor púrpura (2009), tradução de The Color
Purple (1982), de Alice Walker, realizada por Betulia Machado, Peg Bodelson e Maria
José Silveira e publicada pela editora José Olympio e, mais recentemente, Mamãe
184 & eu & mamãe (2018), tradução de Mom & Me & Mom (2013), de Maya Angelou,
feita por Ana Carolina Mesquita e lançada pela editora Rosa dos Tempos. Quanto
à literatura de Toni Morrison, foram publicados no Brasil, até o momento, dez de
seus onze romances: O olho mais azul (2003), A canção de Solomon (1977), Pérola
negra (1987), Amada (1989/1993 e 2007/2011/2018), Jazz (1992/2009), Paraíso (1998),
Amor (2005), Compaixão (2009), Voltar para casa (2016) e Deus ajude essa criança
(2018). Ou seja, apenas Sula (1973) não foi traduzido. Por outro lado, Beloved e Jazz
receberam diferentes traduções e edições.
Segundo Lauro Maia Amorim, a tradução da literatura afro-americana no
Brasil se configura de forma peculiar, visto que “não representa necessariamente
a veiculação de uma literatura estritamente marginal, nem propaladamente
hegemônica” (Amorim, 2012: 113). Dessa forma, em nosso país, a literatura afro-
americana poderá ser vista sob diferentes perspectivas: como representativa da
literatura estadunidense em geral ou como produto de um campo literário focado em
questões raciais, principalmente levando-se em consideração a origem étnica dos/
as seus/suas autores/as. No caso de Alice Walker e Toni Morrison, por exemplo, é
importante ressaltar pontos como estes: o livro The Color Purple inspirou um filme
com um mesmo título dirigido por Steven Spielberg, que acabou sendo conhecido
pelo público em geral no Brasil na década de 80 do século XX, e a tradução brasileira
do livro tem escrito em sua capa “vencedor do prêmio Pulitzer”. Isso também ocorre,
de certa forma, em traduções de livros de Toni Morrison no Brasil como Amada (2007),
que apresenta em sua capa a frase “o melhor livro de ficção norte-americano dos

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últimos 25 anos” e faz parte da coleção Prêmio Nobel, da Companhia das Letras, a qual
reúne obras de autores que ganharam o Prêmio Nobel de Literatura. Toni Morrison,
nesse caso, foi agraciada com o Nobel em 1993, tendo sido a primeira mulher negra
– e até os dias de hoje a única – a conquistar essa importante premiação no campo
literário. Além disso, no que diz respeito a Mom & Me & Mom, uma autobiografia que
retrata a relação entre Maya Angelou e sua mãe Vivian Baxter, sua tradução no Brasil
foi publicada pela Rosa dos Tempos, que se define como a primeira editora feminista
brasileira.
Diante desse cenário, surge a seguinte reflexão: Será que se Alice Walker e
Toni Morrison não fossem autoras de sucesso no contexto estadunidense e em âmbito
mundial, elas teriam seus romances selecionados por grandes editoras para serem
traduzidos no Brasil? E, no caso específico de The Color Purple, se o romance não
tivesse inspirado um filme dirigido por Spielberg, ele teria sua tradução cogitada para
ser feita e lançada no contexto brasileiro? Se a Rosa dos Tempos não tivesse como
propósito a divulgação de obras feministas, Mom & Me & Mom teria sido escolhido
para ser publicado? E quanto aos gêneros a que esses livros pertencem: o fato de
serem narrativas em prosa pode ter sido determinante na decisão de traduzi-los?
Como base para tais questionamentos estão alguns pressupostos teóricos
como a teoria dos polissistemas e os Estudos Descritivos da Tradução. A teoria dos
polissistemas foi desenvolvida por Itamar Even-Zohar na década de 1970 e aprimorada
nos anos de 1990. Segundo o autor, o acréscimo do prefixo “poli” à palavra “sistema”
teve como objetivo enfatizar a multiplicidade de relações entre diferentes sistemas 185
literários e extraliterários, demonstrando, com isso, que uma obra literária não deve
ser estudada de forma isolada. Sendo assim, um polissistema “[...] é um sistema
múltiplo, um sistema com vários sistemas que se cruzam e se sobrepõem parcialmente,
utilizando opções diferentes simultaneamente, mas funcionando como um conjunto
estruturado, cujos membros são interdependentes” (Even-Zohar, 2005: 3, tradução
minha)2. Nessa concepção, fenômenos como cultura, língua e literatura são vistos
como sistemas heterogêneos e dinâmicos que se interconectam e são organizados
hierarquicamente.
Uma das características da teoria dos polissistemas é a análise das relações
entre os diversos sistemas, permitindo uma compreensão mais abrangente de suas
configurações. Por exemplo, no estudo da imagem considerada “oficial” de uma cultura
também são levadas em conta as culturas “não-oficiais” e, no estudo da variante culta,
são abordadas outras variedades linguísticas. Essas estratégias se vinculam à hipótese
polissistêmica de que julgamentos de valor – a partir dos quais o que se propõe como
“oficial” ou “culto” geralmente é visto como superior em comparação a outras formas
de língua ou cultura – não são usados como critérios para uma seleção apriorística
dos objetos de estudo. Outro ponto que merece ser destacado tem a ver com a escolha
dos objetos de estudo: ao se tomar como referência a teoria dos polissistemas, há

2 “[…] a multiple system, a system of various systems which intersect with each other and partly overlap,
using concurrently different options, yet functioning as one structured whole, whose members are
interdependent”.

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a possibilidade de dar visibilidade a sistemas frequentemente desconsiderados ou
relegados a uma condição de marginalidade em relação àqueles vistos notadamente
como canonizados e, por esse motivo, geralmente mais valorizados.
No contexto de suas teorias, Even-Zohar levantou discussões em torno do
papel da tradução na literatura, tópico frequentemente ignorado pelos demais teóricos
literários à sua época. Com isso, ele ampliou as formas de se pensar a seleção de textos
para serem traduzidos, bem como a função da literatura traduzida dentro de um
polissistema específico. De acordo com Mark Shuttleworth, em “Polysystem Theory”
(1998), em tal abordagem não-prescritiva, os textos traduzidos deixam de ser associados
a fenômenos isolados e passam a ser considerados produtos modelados conforme o
polissistema literário de chegada (Shuttleworth, 1998: 178). Dessa forma, lançando luz
sobre as características inerentes a cada cultura, Even-Zohar apresentou uma visão de
tradução não como uma atividade meramente linguística e realizada em um vácuo, mas
sim como uma prática histórica e culturalmente contextualizada. Maria Tymoczko, no
livro Enlarging Translation, Empowering Translators (2007), reitera esse pensamento ao
afirmar que Even-Zohar trouxe à tona “[...] a noção de tradução como parte de um sistema
literário, que, por sua vez, está inserido em outros sistemas culturais [...] colocando a
tradução em contextos culturais mais amplos do que aquilo que havia sido proposto
anteriormente” (Tymoczko, 2007: 40, tradução minha)3.
Ideias como as de Even-Zohar contribuíram para fundamentar a teorização
de Gideon Toury no âmbito da abordagem descritivista dos Estudos da Tradução.
186 Conforme o autor, no livro Descriptive Translation Studies and Beyond (1995),
a tradução é um fato característico da cultura que recebe a tradução (cultura de
chegada ou cultura-meta), que engloba desde a seleção de determinados textos a
serem traduzidos (ou vistos como traduções), os procedimentos seguidos pelo/a
tradutor/a e a posição que as traduções ocupam em determinada conjuntura cultural.
Além disso, existem regularidades nas relações entre o lugar sistêmico ocupado pela
tradução no polo de chegada (função), o seu formato final (produto) e as estratégias
tradutórias adotadas (processo). Na medida em que a função de uma tradução na
cultura-meta é determinante em todas as etapas do processo tradutório, visto que
objetiva atender a demandas ou preencher lacunas em um contexto literário e cultural
específico, determinadas características do texto-fonte são conservadas na tradução
não porque são intrinsecamente importantes, mas sim devido à sua relevância na
cultura receptora (Toury, 1995: 12). Somam-se ao pensamento de Toury as visões
de Susan Bassnett e André Lefevere de que a tradução é uma forma de reescrita e
“[...] como todas as (re)escritas nunca é inocente. Há sempre um contexto em que
a tradução ocorre, sempre uma história da qual um texto emerge e para a qual um
texto é transposto” (Bassnett & Lefevere, 1990: 11, tradução minha4). Sendo assim,

3 “[…] the notion of translation as part of a literary system, with the literary system in turn embedded
in other cultural systems [...] thus setting translation in much broader cultural contexts than had been
done earlier”.
4 “[…] like all (re)writings [translation] is never innocent. There is always a context in which the
translation takes place, always a history from which a text emerges and to which a text is transposed.”

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para Bassnett e Lefevere, a tradução é um processo que ultrapassa a transposição
de sentidos de uma língua para outra, visto que nele estão envolvidos aspectos
históricos, culturais, sociais, ideológicos e econômicos.
Além disso, Lefevere (1992) aponta para o fato de a tradução ser realizada
a serviço do poder, na medida em que está submetida a mecanismos de controle
internos ou externos que atuam no sistema literário e desempenham um papel
essencial na construção do produto final. No que diz respeito aos mecanismos de
controle internos, eles são representados por reescritores/as – tradutores/as, críticos/
as, professores/as de literatura e revisores/as – os/as quais tendem a manipular as
obras literárias de acordo com a poética e a ideologia dominantes em dada cultura,
em dado momento histórico. Os mecanismos de controle externos, por sua vez, estão
ligados à patronagem. Trata-se de indivíduos ou instituições com autoridade para
regular a produção, a divulgação, a leitura e a reescrita da literatura. Entre eles se
encontram partidos políticos, associações religiosas, editoras e veículos midiáticos.
Além disso, a patronagem é constituída por um componente ideológico, que atua
restringindo a escolha e o desenvolvimento tanto da forma quanto do conteúdo; um
componente econômico, por meio do financiamento dos trabalhos de escritores/as e
reescritores/as e um componente de status, a partir do qual submeter-se à patronagem
significa integrar-se a um grupo e a um estilo de vida.
Retornando à literatura afro-americana traduzida no Brasil, com relação aos
ensaios – gêneros não-ficcionais – eles têm pouca representatividade em nosso
país pela via da tradução. Nas palavras de Hattnher, esse tipo de produção “parece 187
não despertar o interesse dos editores brasileiros” (Hattnher, 1998: 305). Mais de
vinte anos se passaram após a publicação do artigo em questão, mas pouco parece
ter mudado em relação ao quadro abordado por Hattnher. Entre alguns exemplos
existentes no Brasil podem ser mencionados Os negros na América Latina (2014), do
professor de Harvard e intelectual Henry Louis Gates Jr., traduzido por Donaldson
M. Garschagen e publicado pela Companhia das Letras e Entre o mundo e eu (2016),
do jornalista Ta-Nehisi Coates, traduzido por Paulo Geiger e também publicado pela
mesma editora. E com relação às obras de intelectuais afro-americanas que tratam
de questões de gênero e raça? O que tem sido traduzido e publicado no polissistema
literário brasileiro?
Considerando-se o cenário apresentado, o presente artigo tem como foco a
abordagem da tradução de textos não-ficcionais de pensadoras afro-americanas, tais
como June Jordan, Audre Lorde, Angela Davis, bell hooks e Patricia Hill Collins.
Para tal, primeiramente, será realizada uma breve discussão sobre feminismo negro
estadunidense. Em seguida, será elaborado um breve panorama de obras completas e
textos, em seus mais diversos gêneros não-ficcionais, escritos por essas intelectuais,
que têm sido traduzidos e publicados no Brasil. Nesse sentido, serão disponibilizados
dados como nomes das autoras, anos de publicação das obras e dos textos traduzidos,
títulos, nomes dos/as tradutores/as, locais de publicação, editoras e periódicos
acadêmicos, bem como títulos e anos de publicação da primeira edição dos livros ou
textos no contexto de partida. Posteriormente, nessa mesma seção, será apresentada

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uma reflexão sobre as informações encontradas, com o objetivo de compreender o
cenário relativo à tradução de escritas das autoras em questão.

“Não sou eu uma mulher?” Algumas considerações sobre feminismo


negro no contexto estadunidense

A pergunta que abre o título desta seção é uma tradução de parte do discurso
de Sojourner Truth (“Peregrina da verdade”), proferido em 1851, em uma convenção de
mulheres em Akron, Ohio, nos Estados Unidos. Nascida na condição de escravizada
em Swartekill, Nova York, no ano de 1797, ela fugiu em busca de sua liberdade em 1826
e chegou à cidade de Nova York em 1829. Em 1843, Truth decidiu sair de Nova York
e, um ano depois, associou-se à organização abolicionista Northampton Association
of Education and Industry, em Massachusetts. Alguns anos mais tarde, começou a se
aproximar do movimento de direitos das mulheres.
Quanto à convenção mencionada, nela estavam sendo discutidas questões
como o sufrágio feminino. Depois da fala de um homem que defendeu a ideia de que
as mulheres eram fisicamente inferiores e, por esse motivo, fracas para desempenhar
trabalhos braçais, além de totalmente dependentes dos homens para realizarem
atividades cotidianas como pular uma poça d’água ou entrar em uma carruagem,
Truth, a única mulher negra e ex-escravizada presente na convenção, surpreendeu a
188 todos ao levantar a sua voz. Isso ocorreu mesmo após as próprias mulheres ligadas
à convenção tentarem impedi-la de falar, temendo que ela deslocasse o foco das
reivindicações de direito ao voto. Tal fato por si só ilustra a predominância do racismo
dentro do movimento sufragista feminino. Um trecho das palavras de Truth, nesse
contexto, encontra-se em Mulheres, raça e classe (2016), de Angela Davis:

Arei a terra, plantei, enchi os celeiros, e nenhum homem podia


se igualar a mim! Não sou eu uma mulher? Eu podia trabalhar
tanto e comer tanto quanto um homem – quando eu conseguia
comida – e aguentava o chicote da mesma forma! Não sou eu uma
mulher? Dei à luz treze crianças e via maioria ser vendida como
escrava e, quando chorei em meu sofrimento de mãe, ninguém,
exceto Jesus, me ouviu! Não sou eu uma mulher? (Truth apud
Davis, 2016: 71)

O discurso de Truth trouxe uma lição para os homens, que defendiam a


supremacia masculina, bem como para as mulheres do movimento feminista,
uma vez que lançou luz ao fato de nem todas as mulheres serem brancas e terem
os privilégios de pertencerem a uma camada social favorecida. Ao relatar sua
própria experiência de vida, Truth desconstruiu ideias como as de fragilidade e de
submissão, geralmente vinculadas às mulheres, e demonstrou que ser negra e pobre,
diferentemente das demais mulheres naquela convenção, não excluía sua condição

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de mulher e, do mesmo modo, não tornava suas reivindicações menos legítimas.
Segundo Ribeiro (2017), “esse discurso de Truth, ainda no século XIX, já evidencia
um grande dilema que o feminismo hegemônico viria a enfrentar: a universalização
da categoria mulher” (Ribeiro, 2017: 21). Em Sister Outsider, a escritora Audre Lorde
já apontava para essa observação feita por Ribeiro, destacando o fato de que ignorar
as diferenças entre as mulheres constitui-se como uma grave ameaça ao movimento
feminista coletivo:

Como as mulheres brancas ignoram seu privilégio inerente de


branquitude e definem mulher exclusivamente com base em suas
próprias experiências, então as mulheres de cor5 são transformadas
em “outras”, as estranhas cuja experiência e tradição é muito
“alheia” para ser compreendida.  [...] Negar o reconhecimento
das diferenças torna impossível enxergar os diversos problemas
e perigos que nós enfrentamos como mulheres. (Lorde, 2007: 115-
116, tradução minha)6 

Nesse caso, pode-se observar que há uma tendência por parte das feministas
brancas em insistir nas opressões relativas a gênero, deixando de lado outros tipos de
opressão, tais como a de raça.
É importante ressaltar que, na década de 1980, muitas mulheres de cor
estadunidenses ligadas a movimentos sociais passaram a ingressar na academia
seja como estudantes de pós-graduação, seja como docentes. No caso de mulheres 189
negras, elas acabaram levando ideias do feminismo negro para a universidade e
contribuíram para os estudos de raça, gênero e classe. Segundo a cientista social
e professora universitária Patricia Hill Collins, nesse cenário surgiram importantes
publicações:

As principais obras de mulheres negras afro-americanas, que


estabeleceram as bases para o que veio a ser conhecido como
interseccionalidade, incluem Civil Wars, de June Jordan (Jordan,
1981); o clássico Sister Outsider (Lorde, 1984) de Audre Lorde; e o
inovador Mulheres, Raça e Classe de Angela Davis (Davis, 1981).
(Collins, 2017: 9)

5 “Mulheres de cor” está sendo utilizado como tradução de women of color que, no contexto dos
Estados Unidos, refere-se a mulheres de ascendência asiática, latino-americana, indígena e africana.
Mesmo que no Brasil possam ser encontrados termos como “mulheres não-brancas”, “mulheres de
minorias étnicas” e “mulheres racializadas” como traduções de women of color, neste artigo optou-se
pelo uso de “mulheres de cor” com o objetivo de ressignificar positivamente um termo historicamente
considerado ofensivo, assim como fez o movimento negro brasileiro nos anos 40 e 50 do século XX. Para
mais informações sobre esse assunto, ver o artigo “Quem nomeou essas mulheres “de cor”? Políticas
feministas de tradução que mal dão conta das sujeitas negras traduzidas”, de Tatiana Nascimento,
publicado na revista Translatio (2017), n. 13, p. 127-142.
6 “As white women ignore their built-in privilege of whiteness and define woman in terms of their own
experience alone, then women of Color become “other,” the outsider whose experience and tradition is
too “alien” to comprehend. […] Refusing to recognize difference makes it impossible to see the different
problems and pitfalls facing us as women.”

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Com relação às autoras citadas por Collins, June Jordan (1936-2002) foi
poeta, professora, ativista no movimento feminista e pelos direitos civis. Entre suas
publicações encontram-se Who Look at Me (1969), New Days: Poems of Exile and
Return (1974), On Call: Political Essays (1985), Affirmative Acts: Political Essays (1998)
e Some of Us Did Not Die: New and Selected Essays (2002). Quanto a Civil Wars (1981),
trata-se de uma coletânea de ensaios na qual Jordan discute temas como direitos
das crianças, Estudos Afro-Americanos, sexualidade, linguagem e poder. Sobre
esse último tópico, ela afirma: “Como poeta e escritora negra, eu odeio palavras que
cancelam o meu nome e a minha história e a liberdade sobre o meu futuro: eu odeio
as palavras que condenam e recusam a língua do meu povo nos Estados Unidos”
(Jordan, 1981: 68, tradução minha7). Segundo Collins (2017), Jordan se engajou na luta
pela liberdade não só para os afro-americanos, como também para outros grupos de
pessoas submetidas a sistemas de opressão, uma vez que, para ela, as mulheres negras
nunca seriam totalmente livres se apenas lutassem pelos seus próprios interesses.
No que diz respeito a Audre Lorde (1934-1992), ela costumava se identificar
como “negra, lésbica, mãe, guerreira e poeta”8 e abordar temas como raça, gênero e
sexualidade em suas obras. Ao mesmo tempo em que contribuiu para os campos de
Estudos Feministas, Estudos Críticos de Raça e teoria queer, ela tratava de assuntos
pessoais e políticos em sua escrita, buscando celebrar as diferenças entre as pessoas.
Estas são algumas de suas coletâneas de poemas: The First Cities (1968), Cables to
Rage (1970) e From a Land Where Other People Live (1972). Além disso, ela escreveu
190 a obra The Cancer Journals (1980), em que discorre sobre questões feministas ao
relatar sua luta contra um câncer de mama; o romance Zami: A New Spelling of My
Name (1982); a já citada compilação de artigos e discursos Sister Outsider, publicada
pela primeira vez em 1984, entre outros. É relevante destacar que, em 1980, Lorde
e a escritora Barbara Smith fundaram a editora Kitchen: Women of Color Press,
com o objetivo de ampliar a publicação de obras de mulheres de cor. Entre os livros
lançados pela editora podem ser mencionados This Bridge Called My Back: Writings
by Radical Women of Color (1984), de Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa, Home Girls:
A Black Feminist Anthology (1984), de Barbara Smith, e I Am Your Sister: Black Women
Organizing Across Sexualities (1986), de Audre Lorde.
Sobre Angela Yvonne Davis, nascida em 1944, ela é ativista, escritora,
professora aposentada e palestrante e tem contribuído amplamente para o debate
acerca de temas como feminismo, racismo, luta anticapitalista e sistema prisional
estadunidense ao longo dos anos. Suas publicações englobam obras de diferentes
gêneros, entre as quais estão Angela Davis: An Autobiography (1974), Violence Against
Women and the Ongoing Challenge to Racism  (1985), Women, Culture & Politics
(1990), Are Prisons Obsolete? (2003) e The Meaning of Freedom: And Other Difficult
Dialogues (2012). Especificamente em relação a Women, Race & Class (1981), Davis
faz um panorama dos movimentos feministas nos Estados Unidos desde o século
7 “As a Black poet and writer, I hate words that cancel my name and my history and the freedom of my
future: I hate the words that condemn and refuse the language of my people in America.”
8 Disponível em: <https://www.poetryfoundation.org/poets/audre-lorde>. Acesso em: 01 fev. 2019.

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XIX até a década de 80 do século XX, mostrando o quanto as mulheres brancas e das
classes média e alta envolvidas nesses movimentos, com foco no direito pelo sufrágio
feminino, privilegiavam seus próprios interesses em detrimento das demandas
de outras mulheres. Segundo Davis, “na condição de mulheres que sofriam com
a combinação das restrições de sexo, raça e classe, elas [mulheres negras] tinham
um poderoso argumento pelo direito ao voto. Mas o racismo operava de forma tão
profunda no interior do movimento sufragista feminino que as portas nunca se
abriram de fato às mulheres negras” (Davis, 2016: 149). Para além desse contexto,
mesmo que não estivessem oficialmente submetidas ao sistema de escravidão após
1863, as mulheres negras continuaram a ser oprimidas em outras situações tais
como as pouquíssimas oportunidades de trabalho, em geral no âmbito doméstico,
e os abusos sexuais cometidos por seus patrões. Women, Race & Class, como o
próprio título sugere, é uma importante contribuição para as discussões relativas ao
feminismo e à interseccionalidade de raça, gênero e classe, tópico que será tratado
adiante.
Além das autoras e obras mencionadas por Collins (2017), outra importante
ativista, feminista e professora que merece ser destacada é bell hooks. Nascida em
1952, hooks adotou esse pseudônimo em homenagem à bisavó materna, grafando-o
em letras minúsculas com o objetivo de chamar atenção para as suas ideias e não
para a sua subjetividade. Uma de suas principais publicações é Ain’t I a Woman?
Black Women and Feminism, cujo título foi inspirado no discurso de Sojourner Truth
anteriormente citado. Lançado em 1981, mas tendo seu primeiro rascunho escrito 191
nos anos de 1970, o livro trata de questões como o impacto do racismo e do sexismo
nas mulheres negras, a marginalização e inferiorização das mulheres negras, o
sistema patriarcal e supremacista branco e o apagamento das reflexões sobre raça
e classe no movimento feminista. Em uma de suas passagens, hooks ressalta que
“nenhum outro grupo nos Estados Unidos tem tido a sua identidade tão socializada
fora da existência quanto as mulheres negras...Quando se fala de pessoas negras, o
foco tende a ser em homens negros; e quando se fala de mulheres, o foco tende a ser
em mulheres brancas” (hooks, 2014: 7, tradução minha9). No conjunto de mais de
30 livros publicados até os dias de hoje, incluindo diferentes gêneros, encontram-
se  Feminist Theory: From Margin to Center (1984), Talking Back: Thinking Feminist,
Thinking Black (1989), Yearning: Race, Gender, and Cultural Politics (1990), Black
Looks: Race and Representation (1992), Teaching to Transgress: Education as the
Practice of Freedom (1994), Feminism is For Everybody: Passionate Politics (2000) e
Writing Beyond Race: Living Theory and Practice (2013).
Após os estudos feministas negros ganharem reconhecimento acadêmico na
década de 80 do século XX – e mais uma vez é importante enfatizar o trabalho de
autoras como June Jordan, Audre Lorde, Angela Davis e bell hooks nesse sentido –
nos anos de 1990, Kimberlé Crenshaw, advogada e professora universitária na área de

9 “No other group in America has so had their identity socialized out of existence as have black women...
When black people are talked about the focus tends to be on black men; and when women are talked
about the focus tends to be on white women.”

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Estudos Raciais, publicou o texto “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity
Politics, and Violence against Women of Color” (1991), no qual defende a ideia de que
as experiências das mulheres negras não podem ser consideradas de forma isolada
nas categorias de raça e gênero, mas sim de modo interseccional. Collins, no livro Black
Feminism Thought (2000), também trata dessa questão no capítulo “Towards a Politics
of Empowerment”. Em seu ponto de vista, a interseccionalidade é uma “[...] análise que
afirma que os sistemas de raça, classe social, gênero, sexualidade, etnia, nação e idade
formam-se mutuamente, construindo características de organização social que moldam
as experiências das mulheres negras e, por sua vez, são moldados por mulheres negras”
(Collins, 2000: 299, tradução minha10). Nesse caso, conforme Collins, os diferentes
mecanismos de opressão operam simultaneamente na produção de injustiças sociais.
Além da interseccionalidade, a autora traz a concepção de matriz de dominação,
segundo a qual, independentemente dos tipos específicos de opressão referentes
a determinada situação, eles estão envolvidos em domínios de poder estruturais,
disciplinares, hegemônicos e interpessoais. No domínio de poder estrutural, está
implícita a ideia de que o modo pelo qual instituições sociais como educação, governo
e mídia são organizadas tem um papel atuante na subordinação das mulheres negras
ao longo dos tempos. Já o domínio de poder disciplinar se relaciona com a maneira
como as instituições desenvolvem mecanismos de controle, supervisão e vigilância
que visam a mascarar o racismo e o sexismo. Quanto ao domínio de poder hegemônico,
ele visa a justificar as práticas dos outros domínios de poder: “ao manipular ideologia
192 e cultura, o domínio hegemônico atua como uma ligação entre instituições sociais
(domínio estrutural), suas práticas organizacionais (domínio disciplinar) e o nível de
interação social diária (domínio interpessoal)” (Collins, 2000: 284, tradução minha11).
O domínio de poder interpessoal funciona por meio de práticas rotineiras sobre como
as pessoas tratam umas às outras. Ao mesmo tempo em que as experiências de vida
de mulheres negras estadunidenses ilustram como esses quatro domínios de poder
moldam a matriz de dominação, elas demonstram como esses domínios podem
ser usados como motivação para ações de resistência e empoderamento. Com esse
pensamento, Collins aponta para o fato de que, uma vez que a matriz de dominação
está estruturada em categorias como raça, gênero, sexualidade e nação e atua através
de domínios de poder que estão interconectados, a relação entre opressão e ativismo
passa a se mostrar dotada de uma complexidade.
Ainda em Black Feminism Thought, no capítulo “Epistemologia feminista
negra” , Collins aborda o pensamento feminista negro nos Estados Unidos. De acordo
12

10 “[…] analysis claiming that systems of race, social class, gender, sexuality, ethnicity, nation, and age
form mutually constructing features of social organization, which shape Black women’s experiences
and, in turn, are shaped by Black women.”
11 “By manipulating ideology and culture, the hegemonic domain acts as a link between social
institutions (structural domain), their organizational practices (disciplinary domain), and the level of
everyday social interaction (interpersonal domain).”
12 Nesse caso, será utilizado o capítulo traduzido por Ana Claudia Jaquetto Pereira e publicado no livro
Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico (2018), organizado por Joaze Bernardino-Costa, Nelson
Maldonado-Torres e Ramón Grosfoguel.

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com a autora, diante da supressão das mulheres negras no âmbito de instituições
sociais coordenadas majoritariamente por homens brancos, elas procuraram outros
meios como a música e a literatura para que suas vozes pudessem ser ouvidas e,
posteriormente, passaram a utilizar os espaços da universidade para a divulgação
e validação de ideias feministas. No entanto, essas mulheres têm que encarar o
desafio de lidar com uma estrutura de conhecimentos considerados predominantes
e ligados a um sistema branco e patriarcal. Além disso, “acadêmicas negras que
persistem na tentativa de rearticular um ponto de vista de mulheres negras também
se deparam com a potencial rejeição, em termos epistemológicos, daquilo que
afirmam ser conhecimento” (Collins, 2018: 145). Ainda assim, as experiências de vida
e visões de mundo das mulheres afro-americanas servem de base para a proposição
do que Collins denomina de epistemologia feminista negra, composta por quatro
dimensões. A primeira dimensão é a valorização da sabedoria, uma vez que ela é
necessária para a própria sobrevivência das mulheres negras nos Estados Unidos; a
segunda é o diálogo com outros membros da comunidade, vistos como importantes
para a construção de novos conhecimentos; a terceira é a ética do cuidado, na qual
fatores como a expressividade pessoal, as emoções e a empatia são fundamentais
no processo de validação do conhecimento; a quarta é a ética da responsabilidade
pessoal, a partir da qual espera-se que o indivíduo tenha relação direta com suas
próprias ideias e se responsabilize pelas suas afirmações. Com isso, “a existência do
ponto de vista das mulheres negras que utilizam a epistemologia feminista negra
desafia o que é normalmente tomado como verdade e, ao mesmo tempo, questiona o 193
processo através do qual tal verdade é produzida” (Collins, 2018: 167).
Levando-se em consideração a relevância do pensamento de intelectuais
afro-americanas como June Jordan, Audre Lorde, Angela Davis, bell hooks e Patricia
Hill Collins, para além do contexto estadunidense, em um mundo globalizado na
contemporaneidade, surgem os seguintes questionamentos sobre a divulgação de suas
vozes por meio da tradução: Que obras e textos têm sido traduzidos e publicados no
Brasil? Quem são os/as tradutores/as? Quais são as editoras e periódicos acadêmicos
envolvidos? Quais são os contextos de publicação? Nesse sentido, na seção seguinte,
serão apresentados um breve panorama da produção não-ficcional das referidas
autoras que se encontra disponível e, após isso, uma discussão sobre esse quadro no
âmbito do polissistema literário brasileiro.

Breve panorama da produção de feministas afro-americanas


traduzida no Brasil

Nesta seção, serão fornecidos dados das traduções brasileiras de obras e textos
não-ficcionais de pensadoras afro-americanas, contendo os nomes das autoras em
ordem alfabética, os anos de publicação (em ordem cronológica), os títulos das obras
traduzidas, os nomes dos/as tradutores/as, os locais de publicação, as editoras e os

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periódicos, além dos títulos e anos da primeira edição dos livros e textos no contexto
de partida. Por fim, será proposta uma análise do panorama em questão.

Obras completas:

COLLINS, Patricia Hill. (2019 – a ser lançado13). Pensamento feminista negro. Sem
nome do/a tradutor/a. São Paulo: Boitempo. (Tradução de Black Feminist Thought:
Knowledge, Consciousness, and the Politics, 1990)

DAVIS, Angela. (2009). A democracia da abolição: para além do império, das prisões
e da tortura. Tradução de Artur Neves Teixeira. Rio de Janeiro: Difel. (Tradução de
Abolition Democracy: Beyond Empire, Prisons, and Torture, 2006)

DAVIS, Angela. (2016). Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani.
São Paulo: Boitempo. (Tradução de Women, Race & Class, 1981)14

DAVIS, Angela. (2017). Mulheres, cultura e política. Tradução de Heci Regina Candiani.
São Paulo: Boitempo. (Tradução de Women, Culture & Politics, 1989)

DAVIS, Angela. (2018). A liberdade é uma luta constante. Tradução de Heci Regina
194 Candiani. São Paulo: Boitempo. (Tradução de Freedom is a Constant Struggle:
Ferguson, Palestine, and the Foundations of a Movement, 2015)

DAVIS, Angela. (2018). Estarão as prisões obsoletas? Tradução de Mariana Vargas. Rio
de Janeiro: Difel. (Tradução de Are Prisons Obsolete? 2003)

DAVIS, Angela. (2019). Uma autobiografia. Tradução de Heci Regina Candiani. São
Paulo: Boitempo. (Tradução de An autobiography, 1974)

hooks, bell. (2013). Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade.


Tradução de Marcelo Brandão Cipola. São Paulo: WMF Martins Fontes. (Tradução de
Teaching to Transgress: Education as the Practice of Freedom, 1994)

hooks, bell. (2018). O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Tradução
de Ana Luiza Libânio. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. (Tradução de Feminism is for
Everybody: Passionate Politics, 2000)

13 Esse livro será lançado ainda no ano de 2019. Não foi divulgado, até o momento, o nome do/da
tradutor/a.
14 Para informações sobre essa tradução, ver o artigo de minha autoria “Diáspora negra em contexto
de tradução: discutindo a publicação de Mulheres, raça e classe, de Angela Davis, no Brasil” na revista
Trabalhos em Linguística Aplicada (2018), v. 57, n. 1, p. 205-228.

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hooks, bell. (2019). Olhares negros: raça e representação. Tradução de Stephanie
Borges. São Paulo: Elefante. (Tradução de Black Looks: Race and Representation, 1992)

hooks, bell. (2019). Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Tradução
de Catia Maringolo. São Paulo: Elefante. (Tradução de Talking Back: Thinking
Feminist, Thinking Black, 1989)

Textos publicados em/como livros:

COLLINS, Patricia Hill. (2015). “Em direção a uma nova visão: raça, classe e
gênero como categorias de análise e conexão”. Tradução de Júlia Clímaco. In:
MORENO, Renata (Org.). Reflexões e práticas de transformação feminista. São
Paulo: SOF, 2015. p. 13-42. Disponível em: <https://br.boell.org/sites/default/files/
reflexoesepraticasdetransformacaofeminista-1.pdf>. Acesso em: 01 fev. 2019. (Tradução
da palestra “Toward A New Vision: Race, Class and Gender as Categories of Analysis
and Connection”, 1989, realizada no Center for Research on Women, Memphis State
University)

COLLINS, Patricia Hill. (2017). “Epistemologia feminista negra”. Tradução de


Ana Claudia Jaquetto Pereira. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO- 195
TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón. (Orgs.). Decolonialidade e pensamento
afro-diaspórico. Belo Horizonte: Autêntica. p. 139-170. (Tradução do capítulo “Black
Feminist Epistemology”, do livro Black Feminist Thought, 2000, p. 251-271)

DAVIS, Angela. (2018). Educação e libertação: a perspectiva das mulheres negras.


Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo. E-book Kindle. (Tradução
do capítulo “Education and Liberation: Black Women’s Perspective”, do livro Women,
Race & Class, 1981, p. 99-109)

DAVIS, Angela. (2018). Estupro, racismo e o mito do estuprador negro. Tradução de


Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo. E-book Kindle. (Tradução do capítulo
“Rape, Racism and the Myth of the Black Rapist”, do livro Women, Race & Class, 1981,
p. 172-201)

DAVIS, Angela. (2018). Racismo no movimento sufragista feminino. Tradução de Heci


Regina Candiani. São Paulo: Boitempo. E-book Kindle. (Tradução do capítulo “Racism
in the Woman Suffrage Movement”, do livro Women, Race & Class, 1981, p. 70-86)

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hooks, bell. (2017). “O olhar oposicional: espectadoras negras”. Tradução de Raquel
D’Elboux Couto Nunes. In: BRANDÃO, Izabel; CAVALCANTI, Ildney; COSTA;
Claudia de Lima; LIMA, Ana Cecília Acioli. (Orgs.). Traduções da Cultura: perspectivas
críticas feministas (1970-2010). Florianópolis: EDUFAL; Editora da UFSC. p. 484-509.
(Tradução do capítulo “The Oppositional Gaze: Black Female Spectators”, do livro
Black Looks: Race and Representation, 1992, p. 115-131)

Textos publicados em periódicos acadêmicos:

COLLINS, Patricia Hill. (2016). “Aprendendo com a outsider within: a significação


sociológica do pensamento feminista negro”. Tradução de Juliana de Castro Galvão
e revisão de Joaze Bernardino Costa. Sociedade e Estado, n. 1: 31, p. 99-127, jan.-abr.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/se/v31n1/0102-6992-se-31-01-00099.pdf>.
Acesso em: 01 fev. 2019. (Tradução do artigo “Learning From the Outsider Within: The
Sociological Significance of Black Feminist Thought”, publicado em Social Problems,
1986, n. 6: 33, p. 14-32, Oct.-Dec.)

COLLINS, Patricia Hill. (2017). “O que é um nome? Mulherismo, feminismo negro


e além disso”. Tradução de Angela Figueiredo e Jesse Ferrell. Cadernos Pagu, n.
196 51, s.n.p., dez. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n51/1809-4449-
cpa-18094449201700510018.pdf> . Acesso em: 01 fev. 2019. (Tradução do ensaio
“What’s in a Name? Womanism, Black Feminism, and Beyond”, publicado em The
Black Scholar, 1996, n. 26: 1, p. 9-17)

COLLINS, Patricia Hill. (2017). “Se perdeu na tradução? Feminismo negro,


interseccionalidade e política emancipatória”. Tradução de Bianca Santana. Parágrafo,
São Paulo, n. 1: 5, p. 7-17, jan.-jun. Disponível em: <http://revistaseletronicas.fiamfaam.
br/index.php/recicofi/article/view/559/506>. Acesso em: 01 fev. 2019. (Tradução da
palestra “Lost in Translation? Black Feminism, Social Justice and Intersectionality”,
2012, realizada no Plenary Address, Collegium of Black Women Philosophers,
Pennsylvania State University)

DAVIS, Angela; DENT, Gina. (2003). “A prisão como fronteira: uma conversa sobre
gênero, globalização e punição”. Tradução de Pedro Diniz Bennaton e revisão de
Susana Bornéo Funck e José Renato de Faria. Estudos Feministas, n. 11:2, p. 523-531,
jul.-dez. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ref/v11n2/19136.pdf>. Acesso em:
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Shaping Feminist Theory”, do livro Feminist Theory: From Margin To Center, 2000, p.
1-15)

O panorama apresentado conduz a algumas reflexões sobre a tradução de


obras e textos não-ficcionais de intelectuais afro-americanas no Brasil. No que tange
à publicação de livros completos, foram encontrados seis de Angela Davis e quatro de
bell hooks, sendo que nem todos tratam especificamente de questões de raça e gênero.
Além disso, está previsto o lançamento de um dos livros de Patricia Hill Collins.
Quanto a June Jordan e Audre Lorde, verificou-se uma ausência de obras na íntegra
traduzidas no contexto brasileiro. Sobre as editoras, a Difel tem em seu catálogo
livros de referência e ensaios na área das ciências humanas, bem como biografias
de grandes personalidades, tendo sido fundada em 1999 após pedidos de leitores/as,

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sobretudo do meio acadêmico. A Boitempo, por sua vez, estabeleceu-se no mercado
editorial em 1995 e tem como foco a publicação de livros no âmbito das ciências
humanas, abordando temáticas como indústria cultural, capitalismo, comunismo,
marxismo e questões de gênero. A WMF Martins Fontes iniciou seus trabalhos na
década de 1970, com o objetivo de divulgar obras nos campos de filosofia, sociologia,
psicologia e literatura. Já a Rosa dos Tempos, como foi mencionado anteriormente,
vem se dedicando à propagação de escritas sob a ótica feminista desde 1990, quando
foi inaugurada. Quanto à Elefante, fundada em 2011, seu propósito é publicar livros
que tenham relevância social, política e cultural.
Com relação às autoras Angela Davis e bell hooks, pode-se notar que, mesmo
que elas tenham tido seus primeiros livros publicados no contexto estadunidense
durante os anos de 1970, no Brasil, isso só começou a ser feito recentemente. Tal fato
pode estar relacionado ao reconhecimento, por parte de editoras como a Boitempo,
de que existe um público leitor, no polissistema literário brasileiro, que se interessa
por escritas afrodiaspóricas que abordem questões de gênero e raça. Para ilustrar
essa ideia, Maurício Meireles traz a seguinte afirmação sobre o livro Mulheres, raça e
classe, no texto “Do comercial ao ‘cabeça’, editoras do país exploram livros feministas”
(2017), publicado no jornal Folha de São Paulo:
De todo modo, a expansão dos estudos de gênero no meio universitário –
ainda que tímida – favorece livros com outro perfil. A editora de esquerda Boitempo,
que publica obras do segmento, viu “Mulher, raça e classe”, da ativista negra Angela
198 Davis, vender mais que o esperado, 14 mil até agora. A tiragem inicial apostava
modestos 6.000. (Meireles, 2017)
A respeito dos/as tradutores/as, destaca-se a sua variabilidade nas publicações,
sendo que a maior parte é formada por mulheres. Especificamente no caso das obras
de Angela Davis lançadas pela editora Boitempo, tem-se mantido o trabalho da
mesma tradutora, Heci Regina Candiani, que é jornalista, cientista social e doutora
em Ciências Sociais pela Unicamp.
Quanto aos textos publicados como livros, é interessante notar que a
Boitempo lançou três capítulos de Mulheres, raça e classe como e-books. Nesse
caso, o/a leitor/a pode ter acesso a partes da obra em questão, pagando um preço
mais baixo e utilizando o meio virtual. Sobre os textos publicados em livros, foram
encontrados dois de Patricia Hill Collins e um de bell hooks. Enquanto um dos
textos de Collins se situa no contexto de uma publicação voltada para o pensamento
decolonial e afrodiaspórico, o outro está presente em uma obra, disponível online,
sobre feminismos em geral. O texto de hooks, por sua vez, encontra-se em uma
coletânea de escritas traduzidas, vinculadas a uma conjuntura feminista ampla e
diversa. Sendo assim, nenhum dos textos em questão está inserido em um livro
dedicado especificamente à interseccionalidade de raça e gênero. Além disso,
todos eles foram publicados há poucos anos. Ainda nesse contexto, estão ausentes
obras e textos de June Jordan e Audre Lorde. Sobre as editoras, a SOF – Sempreviva
Organização Feminista – é uma organização não-governamental que faz parte do
movimento de mulheres no Brasil e em âmbito internacional, com atuação desde os

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anos de 1980. A Autêntica foi fundada em 1997, para atender ao público acadêmico.
Com esse mesmo objetivo, a EDUFAL e a editora da UFSC têm publicado obras em
diferentes áreas do conhecimento. Quanto às tradutoras, todas elas têm no mínimo
a titulação de mestre, sendo que, no caso de Ana Claudia Jaquetto Pereira, doutora
em Ciência Política pela UERJ, ela desenvolve pesquisas com temáticas relacionadas
a raça e gênero.
A s traduções de textos publicados em periódicos acadêmicos proporcionam
uma disponibilidade maior das escritas de Angela Davis, bell hooks e Patricia Hill
Collins no Brasil. Ao mesmo tempo, reforça-se a invisibilidade das vozes de June
Jordan e Audre Lorde, cujas escritas não foram observadas no presente contexto.
Nesse cenário, destacam-se aspectos como: os textos de hooks têm sido traduzidos
em maior número e por um maior período de tempo; o texto de Davis, em conjunto
com Gina Dent, foi o único a ser traduzido; os textos de Collins têm sido traduzidos
de uns anos para cá; a maior parte dos textos traduzidos dessas autoras aborda
questões feministas. Quanto aos periódicos envolvidos, Sociedade e Estado (UnB)
é dirigido a publicações na área de Ciências Sociais; Revista Brasileira de Ciência
Política (UnB), como o próprio título sugere, divulga textos na área de ciência
política; Parágrafo (FIAM-FAAM) tem como foco artigos pertinentes ao campo do
jornalismo. Já Cadernos Pagu (Unicamp) e Estudos Feministas (UFSC) são periódicos
interdisciplinares voltados aos estudos de gênero. Sendo assim, percebe-se o quanto
periódicos como os citados têm contribuído para a divulgação do pensamento de
intelectuais afro-americanas no Brasil a partir da tradução. Acerca dos/as tradutores/ 199
as, eles/as são variados/as e, em sua maioria, tiveram suas traduções feitas e/ou
revisadas em conjunto com outras pessoas.
Em geral, percebe-se que está havendo um crescimento de publicações de
textos traduzidos de Angela Davis, bell hooks e Patricia Hill Collins por editoras
como a Boitempo, que tem publicado traduções de livros de Davis e lançará a tradução
de uma das obras de Collins ainda em 2019. Além disso, os periódicos acadêmicos
têm exercido um papel importante na divulgação do trabalho das intelectuais em
questão. Mesmo diante desse cenário que vem se ampliando ao longo dos anos,
ainda há pouco material de pensadoras afro-americanas traduzido no Brasil. E quais
poderiam ser os motivos para isso?
Os pensamentos de Toury (1995) de que a tradução é um fenômeno próprio da
cultura-meta, que determina sua função, seu processo e seu produto, e de Bassnett &
Lefevere (1990), para quem a tradução é uma reescrita submetida a questões culturais,
sócio-históricas, ideológicas e de patronagem, ajudam em uma reflexão sobre o
cenário apontado. Soma-se a isso esta declaração de Sonia E. Alvarez e Claudia de
Lima Costa, no texto “A circulação das teorias feministas e os desafios da tradução”
(2013):
É bem sabido que os textos não viajam através de contextos linguísticos sem
um ‘visto’. Seu deslocamento pode acontecer somente se também houver um aparato
material organizando sua tradução, publicação e circulação. Este aparato – que, ao
mesmo tempo que é constituído pelos contextos de recepção, também os constitui

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– influencia de maneira significativa quais teorias/textos são traduzidos e (re)
significados para ajustar-se melhor às agendas intelectuais locais. (Alvarez; Costa,
2013: 581)
Sendo assim, a escassa visibilidade das escritas não-ficcionais de intelectuais
afro-americanas no Brasil pode estar ligada a fatores como a suposição de que há um
número reduzido de leitores/as com demanda para textos vinculados ao feminismo
negro, à necessidade de concessão de direitos autorais, à matriz de dominação
proeminente em determinadas instituições, marcadas pelo racismo estrutural, entre
outros. Percebendo essa falta de abertura do mercado editorial brasileiro para a
tradução de textos de autoras negras, estadunidenses e de outras nacionalidades,
e enxergando a possibilidade de utilizar espaços alternativos que resistam a esse
mecanismo de poder, alguns sites como “Despatriarcalize”15, “Traduzidas”16 e “Preta,
nerd & Burning Hell”17 têm contribuído para a ampliação dessas vozes por meio da
tradução.
Quanto aos referidos sites, o “Despatriarcalize” se propõe como um espaço
para a divulgação de traduções de textos feministas, definindo-se da seguinte forma:
“Somos as mulheres que os homens nos alertaram”. Os textos traduzidos disponíveis,
englobando o período de fevereiro de 2014 a abril de 2015, são trechos e capítulos
de livros, artigos e ensaios. Entre eles encontram-se dois textos de Audre Lorde: o
discurso “As ferramentas do mestre nunca vão desmantelar a casa-grande”, realizado
em uma conferência feminista na universidade de Nova York em 1984 e o ensaio “Não
200 há hierarquias de opressão”, parte de um capítulo do livro Eu sou sua irmã: escritos
coletados e não-publicados de Audre Lorde, lançado em 2009. Enquanto o primeiro
texto é uma crítica de Lorde ao fato de ela ter sido uma negra lésbica feminista
convidada a falar no único painel em que a perspectiva das negras feministas lésbicas
esteve representada, no contexto de um país onde racismo, sexismo e homofobia
são inseparáveis, o segundo texto reflete o que se encontra em seu próprio título.
Nesse caso, os textos traduzidos de Lorde apontam para a interseccionalidade de
raça e gênero no conjunto de múltiplas opressões. Eles foram publicados no site
“Despatriarcalize” por Fabiana Serra e não há informação sobre quem os traduziu.
Já o site “Traduzidas” apresenta “traduções feministas clandestinas: feminismos
de cor, lesbianos, piratarias, feministas lésbicas negras, pessoas cuír/queer de cor
(queer of color people – QCP) y más!”, feitas por Tatiana Nascimento. Nascimento é
tradutora, poeta, editora e fundadora da Padê editorial, que produz artesanalmente
livros de escritoras negras e LGBT, além de doutora em Estudos da Tradução pela
UFSC. Sua tese de doutorado, intitulada “Letramento e tradução no espelho de
Oxum: teoria lésbica negra em auto/re/conhecimentos” e defendida em 2014, traz
importantes contribuições para os estudos que relacionam questões de tradução,

15 Disponível em: <https://catsfordestroypatriarchy.wordpress.com/>. Acesso em: 04 fev. 2019.


16 Disponível em: <https://traduzidas.wordpress.com/about/>. Acesso em: 04 fev. 2019.
17 Disponível em: <http://www.pretaenerd.com.br/p/blog-page.html>. Acesso em 04 fev. 2019.

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raça e gênero, visto que apresenta propostas de traduções de textos das feministas
negras lésbicas estadunidenses Audre Lorde, Cheryl Clarke e Doris Davenport.
O site “Traduzidas” contém textos publicados entre janeiro de 2011 e março de
2018, os quais abrangem artigos, ensaios, poemas e entrevistas. Entre eles podem ser
citados alguns de autoras afro-americanas: o poema “Mulher de duas cabeças”, de
Doris Davenport, o ensaio “Mas algumas de nós somos lésbicas corajosas: a ausência
da literatura negra lésbica” (2005), de Jewelle Gomez e um trecho da entrevista em
vídeo de Toni Morrison em que ela trata de questões de raça em sua escrita. O site
também apresenta textos traduzidos de Audre Lorde, sendo eles o poema “Mulher”, os
ensaios “Poesia não é um luxo” (1977), “Usos do erótico: o erótico como poder” (1984)
e “Autodefinição e minha poesia” (2009), além do discurso “As ferramentas do sinhô
nunca vão derrubar a casa-grande”, o mesmo que foi traduzido e disponibilizado
no site “Despatriarcalize”, como mencionado anteriormente. É interessante observar
que, nesse caso, a tradutora optou por não traduzir o termo “master” por “mestre”. Ao
fazer isso, ela silenciou a ideia de poder contida nesse termo, optando por substituí-lo
pelo vocábulo “sinhô”, forma de tratamento que as pessoas escravizadas utilizavam
para se referir aos donos das terras nas quais eram obrigados a trabalhar durante o
período colonial brasileiro. Ao fazer isso, Nascimento demonstra ter realizado uma
“tradução ativista”. Segundo Maria Tymoczko, professora de Estudos da Tradução na
universidade de Massachussetts, “[...] as traduções ativistas são performativas – elas
são atos dentro de campos mais amplos de programas de ação ideológicos e políticos
específicos e sua eficácia é uma função de sua natureza performativa” (Tymoczko, 201
2010: 252, tradução minha)18.
Diferentemente dos sites “Despatriarcalize” e “Traduzidas”, o site “Preta, Nerd
& Burning Hell” não é um site específico de traduções, mas sim “um espaço virtual
onde é possível discutir um modo de consumo (nerdiandade) tendo em vista a
simultaneidade dos recortes de raça, gênero, classe”, bem como “explorar os caminhos
que têm sido negados historicamente à população negra, em especial, às mulheres
Negras”. Entre as traduções disponibilizadas no site, entre janeiro de 2015 a fevereiro
de 2017, encontra-se “Idade, raça, classe e sexo: mulheres redefinindo a diferença”, de
Audre Lorde, que havia sido publicado no contexto estadunidense como um capítulo
do livro Sister Outsider (1984). O nome de quem fez essa tradução está ausente.
Portanto, diante desse breve panorama de obras e textos não-ficcionais de
intelectuais afro-americanas, observa-se que, embora a publicação de traduções
desse material ainda seja pequena, existe um movimento de resistência, a partir
da produção de traduções que se autointitulam “clandestinas”. E é por causa de
movimentos como esse que vozes como as de Audre Lorde ultrapassam as barreiras
do silenciamento que ainda imperam no polisistema literário brasileiro, marcado
pela matriz de dominação, especialmente no que diz respeito ao grande mercado
editorial.

18 “[...] activist translations are performatives – they are acts within broader fields of specific political
and ideological programs of action and their effectiveness is a function of their performative nature.”

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Considerações finais

Segundo Even-Zohar (2005), Bassnett & Lefevere (1990) e Toury (1995), a


tradução é muito mais do que um processo de transferência de material linguístico
de uma língua para outra, na medida em que nela estão envolvidos aspectos
culturais, sociais, históricos e econômicos. Além disso, o sistema de chegada tem
um papel atuante na seleção dos textos que serão traduzidos, na definição dos/as
tradutores/as que serão responsáveis por esse processo e na configuração do produto
final. Tendo em vista todo esse mecanismo de poder, este artigo buscou verificar que
obras e textos não-ficcionais de intelectuais afro-americanas estão disponíveis no
polissistema literário brasileiro.
Para tanto, foram feitas discussões acerca do feminismo negro estadunidense
e sua luta contra o racismo e o sexismo, mesmo dentro do movimento feminista,
liderado por mulheres brancas das classes média e alta. Nesse sentido, o discurso
de Sojourner Truth, proferido em 1851, foi extremamente importante para o
reconhecimento de demandas específicas das mulheres negras, inspirando o trabalho
de outras pensadoras e ativistas afro-americanas como June Jordan, Audre Lorde,
Angela Davis, bell hooks e Patricia Hill Collins nos séculos XX e XXI. Na produção
dessas autoras, é reforçada a ideia de que o feminismo negro tem suas especificidades
em comparação a outros tipos de feminismo. Isso porque as mulheres negras sofrem
uma dupla opressão – a de raça e a de gênero – que se interrelacionam. Além disso,
202 Collins, especificamente, enfatiza a atuação de uma matriz de dominação sobre a
vida de mulheres afro-americanas. Essas, por sua vez, ao estarem submetidas aos
diferentes domínios desse sistema hegemônico, têm demonstrado um movimento de
resistência e empoderamento.
Em seguida, foi apresentado um breve panorama de obras e textos não-
ficcionais das autoras mencionadas que foram traduzidos no Brasil e publicados por
editoras e periódicos acadêmicos. A partir das observações realizadas, levando-se
em conta os diferentes dados coletados, percebeu-se que ainda há pouco material
traduzido. Por um lado, foram encontrados alguns livros e textos de Angela Davis,
bell hooks e Patricia Hill Collins. Por outro lado, no que se refere a June Jordan e
Audre Lorde, não foi localizada nenhuma tradução de livros e textos de suas autorias
publicados por editoras ou periódicos acadêmicos. Tendo em vista essa ausência,
sites como “Despatriarcalize”, “Traduzidas” e “Preta, nerd & Burning Hell” vem
disponibilizando textos de intelectuais feministas negras por meio da tradução.
Mesmo que se tratem de “traduções clandestinas”, elas têm exercido uma
função ativista no que diz respeito à promoção de vozes como as de Lorde, hooks
e Davis e, com isso, contribuído de forma muito importante para a divulgação de
obras de feministas afro-americanas no Brasil. Mas até quando será preciso quebrar
barreiras editoriais, até mesmo burlando leis como a de direitos autorais, para que
sejam visibilizadas as produções de autoras negras? Diante desse cenário, espera-se
que o espaço da tradução possa ser utilizado cada vez mais, em diferentes meios,

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para fazer com que epistemologias feministas negras, historicamente suprimidas
e marginalizadas, sejam amplamente divulgadas. E, para além disso, que elas
contribuam para uma ruptura de paradigmas racistas e sexistas, a partir de uma
perspectiva anti-patriarcalista e antirracista.

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A linha da cor

Entrevista com a intérprete Rane Souza


The color line: interview with Rane Souza

RESUMO
Nesta entrevista, a terceira de uma série com intérpretes negros (Carvalho Fonseca, 2017, 2018),
Rane Souza, mulher negra e intérprete de conferências, nos conduz pelo racismo estrutural
no Brasil pensando sua existência, resistência e ativismo. Idealizadora e coordenadora do
Programa Abrates Afro da Associação Brasileira de Tradutores, Rane visa promover não
apenas a reflexão, mas também uma maior presença negra na profissão de tradutor e
intérprete. Por meio da Abrates Afro, Rane cria possibilidades para que outros intérpretes
atravessem a linha da cor e nomeia uma realidade que até pouco tempo seguia invisível na
profissão de intérpretes de conferência, cujo perfil ‘tradicional’ é o de pessoas brancas que
não só frequentaram os melhores cursos particulares de línguas estrangeiras, mas também
tiveram oportunidades de morar no exterior. Quantos intérpretes de conferências há cujas
famílias não tiveram condições de arcar com um curso de inglês? Até conhecer Rane, eu não
havia conhecido nenhum.

Palavras-chave: Interpretação de conferências. Intérprete. Mulher negra. Racismo


estrutural.
206
ABSTRACT
In this interview, the third in a series with black interpreters (Carvalho Fonseca, 2017,
2018), Rane Souza, a black woman conference interpreter, patiently guides readers through
structural racism in Brazil, while thinking-aloud about her existence, resistance and
activism. Rane aims to promote not only awareness, but also a greater black presence in
the translation and interpreting profession. By creating and organizing Abrates Afro, Rane
opens doors for potential black interpreters to cross the color line and attaches a name
to a reality that until recently remained invisible in conference interpreting, a profession
whose “traditional” profile is that of whites who not only benefitted from private language
courses, but also had opportunities to live in the geographeis of their working languages.
How many conference interpreters are there in Brazil whose families could not afford an
English language course? Until I met Rane, I knew none.

Keywords: Conference Interpreting. Interpreter. Black women. Structural racism.

Luciana Carvalho Fonseca


Universidade de São Paulo (USP). Professora doutora do Departamento de Letras Modernas da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. E-mail: lucianacarvalhof@usp.br

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Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 206-221
Introdução

“Aqui, uma mulher negra não vale nada”. A frase ficou ecoando na cabeça
da premiada escritora ruandesa Scholastique Mukasonga após recente visita ao
Brasil. Mukasonga ressalta o número de vezes em que fora alertada sobre a falta de
segurança no Brasil e como ser mulher negra implica ser alvo de racismos e racistas
em todo lugar (Mukasonga, 2019).
No país com índice de representatividade de mulheres (todas) no parlamento
comparável ao do Oriente Médio – 9,5% contra 22,5% da média mundial (Chade, 2015)
e onde a igualdade de gênero no executivo só deve ser atingida no ano de 2038 para
o cargo de prefeita e só em 2068 para o cargo de governadora (Ranking de presença
feminina no poder executivo - PMI 2018, 2018: 3), em termos de representatividade,
as mulheres negras são a minoria da minoria. O racismo estrutural faz com que
mulheres pretas e pardas sejam mantidas na base da pirâmide política, social e
econômica brasileira.
Politicamente, apenas 0,18% dos prefeitos eleitos são mulheres negras, apesar
de as mulheres negras representarem 21% dos votos válidos na última eleição
presidencial (idem :3).
Socialmente, em relação a taxa de homicídio, enquanto a de mulheres brancas
recuou 10% entre 2003 e 2013, a de mulheres não-brancas aumentou mais de 50%
(Silveira & Sito, 2018). As mulheres pretas e pardas são também as que mais são
vítimas de violência e morte no parto: 60% das vítimas de mortalidade materna são 207
pretas e pardas (Laura, 2018).
No âmbito econômico, as mulheres não-brancas, apesar de serem as primeiras
a ingressar no mercado de trabalho – na condição de empregadas domésticas –, são
as últimas a se aposentar e as que recebem o menor salário. Com um bolo tributário
composto por impostos sobre o consumo (ao contrário do dos países com menores
inídices de desigualdade social, onde se tributa a renda em oposição ao consumo),
a mulher negra é a que proporcionalmente mais paga imposto no Brasil, já que é
obrigada dispor de praticamente toda sua renda para sobreviver – comprar alimentos
e gêneros de subsistência.
Rane Paula Morais Souza, conhece muito bem a realidade brasileira: “Sou
perseguida por agentes de segurança – policiais e seguranças particulares –  to-
dos os di-as em lojas e estabelecimentos comerciais.”, disse durante o IX Congresso
Internacional da Associação Brasileira de Tradutores (Abrates) realizado em
junho de 2018 no Rio de Janeiro. Única intérprete mulher negra associada à
Abrates (Dorali, 2018), Rane Souza foi convidada a falar sobre representatividade.
Para ela, falar na Abrates representou uma oportunidade de “propor uma reflexão
coletiva sobre o impacto do racismo institucional na nossa profissão” (Rissatti &
Souza, 2018: 20).
Rane compartilhou o palco com outro tradutor negro, Petê Rissatti. Cientes
da dimensão de sua missão, no seio de um grupo de profissionais majoritariamente

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brancos no contexto de um país com mais de 500 anos de história racista. Diante
dos dados apresentados sobre a população negra no Brasil, na plateia, “o silêncio
se instalou” (Rissatti & Souza, 2018: 20). O perfil “tradicional” dos intérpretes
de conferência no Brasil é o de pessoas que não só frequentaram os melhores
cursos particulares de línguas estrangeiras, mas também tiveram oportunidades
de realizar intercâmbio e/ou morar no exterior com a família por períodos
significativos.
Quantos intérpretes de conferências há cujas famílias não tiveram condições
de arcar com um curso de inglês? Até conhecer Rane, não tinha conhecido nenhum.
Rane Paula Morais Souza, nascida em abril de 1983, teve que estudar inglês
por conta própria valendo-se de sua criatividade durante o ensino fundamental.
Mais tarde, formou-se em Letras pela PUC Minas em 2006. O primeiro curso
de tradução que fez foi o Daniel Brilhante de Brito no Rio de Janeiro (2008-
2009). A formação em interpretação veio um pouco depois, em 2011, no Brasilis.
Desde a graduação, é professora de inglês e de português para estrangeiros e
continua investindo na carreira de intérprete para “fazer a transição definitiva
para tradução e interpretação”.
Esta entrevista ocorreu no início de julho de 2016 na Livraria Cultura do
Conjunto Nacional, na Av. Paulista, em São Paulo, no intervalo do EPIC English, curso
de prática de cabine e língua para intérpretes oferecido por David Coles e Ulisses
Carvalho, com organização da Lingua Franca, comandada por Marília Aranha e
208 Renato Geraldes.
Faz cinco anos que Rane começou a trabalhar de forma mais consistente com
tradução e interpretação, em inglês e português. Para todos os intérpretes iniciantes,
a progressão pela demanda de serviços de interpretação não costuma ocorrer da noite
para o dia. Rane já passou pelo crivo dos primeiros cinco anos e agora está trilhando
o caminho do próximo quinquênio para se tornar uma intérprete experiente.
Além dos dois cursos de interpretação mencionados, Rane também fez o
HIIT em Curitiba, ministrado por Raquel Schaitza e pretende fazer o i2b de Marcelle
Castro no Rio. Segundo Rane, a formação continuada é necessária pois representa
profissionalização: “Negro precisa ser mais qualificado para ‘evitar’ questionamentos.
É uma estratégia de sobrevivência”.
Outra estratégia de sobrevivência é o Programa Abrates Afro, idealizado e
coordenado por Rane Souza, com o objetivo criar possibilidades para que outros
intérpretes atravessem a “linha da cor’” (Du Bois, 1903; Franklin, 1993) ao menos
profissionalmente, promovendo maior presença negra na profissão de intérprete,
pois “se não se nomeia uma realidade, sequer serão pensadas melhorias para uma
realidade que segue invisível” (Ribeiro, 2017)
Este impulso de Rane ecoa a célebre frase de Angela Davis: “Eu não estou mais
aceitando aquilo que eu não posso mudar. Estou mudando aquilo que não posso
aceitar”.

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Nesta entrevista, a terceira de uma série com intérpretes negros (Carvalho
Fonseca, 2017, 2018), Rane nos conduz pelo racismo estrutural compartilhando e
elaborando as complexidades de sua existência e resistência e ativismo.

LCF: Como você aprendeu inglês?

RS: Quando eu era criança, eu tinha muita curiosidade em aprender inglês. Eu falava
com a minha mãe que queria aprender e ela respondia: “Filha, não tem como pagar o
curso de inglês”. Então, respondi: “Ah, mãe, vou dar um jeito e vou aprender”. Como
eu estudava em uma escola onde meus amigos frequentavam cursos de inglês mas não
gostavam muito, eu pegava os livros deles, com as fitas cassettes e fazia o dever de casa.
Uma amiga fazia aulas às terças e quintas, me entregava o livro dela na segunda, eu
estudava, fazia o dever e devolvia. Ela levava pra aula na terça, na quarta me entregava
de novo. Foi assim até a oitava série.

LCF: E durante o ensino médio?

RS: No ensino médio, continuei a estudar por conta própria, mas eu já estava em uma
escola que tinha uma biblioteca fantástica: o Centro Federal de Educação Tecnológica
(CEFET). Hoje o CEFET é um Instituto Federal. Fiz o ensino médio e o curso técnico
de edificações. Gostei muito do técnico, mas acabei não me firmando na área. Como
209
eu tinha demanda por trabalho dando aulas de inglês, acabei fazendo Letras um
ano depois de concluído o ensino médio, porque fui fazer o estágio técnico. Gostava
muito da área, mas o estágio foi em 2001, um ano muito difícil na economia brasileira.
Não tinha demanda de trabalho para técnico de edificações, na área da construção
civil. Em 2003, eu já estava fazendo Letras e feliz com a escolha. A construção civil
voltou a se movimentar em 2008, foi o auge. Eu me senti tentada a talvez voltar, mas
acabou que eu foquei mesmo em continuar trabalhando com idiomas.

LCF: Qual foi a sua primeira experiência como intérprete simultânea? Como
foi?

RS: Foi na Rio +20 e eu estava começando. Minha companheira de cabine e eu fomos
contratadas por uma empresa que venceu a concorrência por menor preço. Eu tinha
acabado de me formar no curso de interpretação da Brasilis e ela estava no início da
formação. Éramos duas intérpretes inexperientes.

LCF: Esta entrevista faz parte de uma série com intérpretes negros e parte
da metodologia empregada é pedir indicações de outros intérpretes para as
próximas. Você conhece outros intérpretes que se identificam como negros?

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RS: Sim. Henrique Cotrim, daqui de São Paulo, Petê Rissati também. Gabriela Nunes
de Brasília. No caso do Petê Rissati, ele é tradutor e trabalha com inglês, português,
espanhol e alemão. Ele foi adotado por uma família branca e começou a se reconhecer
como negro por volta dos 20 anos. Diferentemente de mim, ele é um negro de pele
clara e isso pode fazer com que a pessoa não se identifique como negra.

LCF: Como é ser mulher negra no Brasil?

RS: Em uma conversa com um colega sobre racismo nos vários estados, falamos das
nossas impressões no meio. O Rio sendo pior que São Paulo, no sentido de acharem
que você necessariamente está fazendo um trabalho que sempre foi negado aos negros,
um trabalho que demanda menos formação. Eu não conheço tão bem São Paulo,
mas comparado a Minas Gerais, Belo Horizonte, onde fiz ensino médio e faculdade
o Rio é muito mais tranquilo. Eu passei por situações de cuspirem em mim na rua,
em Minas. No Rio não, ali o racismo aparece de outras formas. Principalmente em
estabelecimentos comerciais. Sempre que vou a uma loja, ao supermercado, há um
segurança te observando. Isso é diário.

Quando preciso ler um rótulo na farmácia, por exemplo, às vezes vem um


fiscal me observar. Atualmente, eu vou e entrego o produto pra ele e peço pra ele ler
pra mim os ingredientes. Eu até falo, “Então, vamos aproveitar que o senhor está me
210 seguindo pra fazer alguma coisa para ajudar, né? O senhor poderia ler o rótulo pra
mim?”. É muito cansativo mas, faz parte. Em Minas, como eu já disse, acontecem
coisas piores como em alguns supermercados, onde você precisa deixar suas coisas
num guarda volumes se for entrar.
Eu tenho ainda outro problema: me encaixo no estereótipo de ‘mulata tipo
exportação’. Em Copacabana, já aconteceu de eu estar pagando uma conta nas lojas
Americanas e um gringo atrás de mim me oferecer um programa. Ir a praia sozinha
no Rio é um problema também. O racismo se manifesta de muitas formas. Outra
vez em Copacabana, eu estava dando uma entrevista pra um jornalista dinamarquês
sobre racismo e alguns funcionários do restaurante acharam que eu tava usando
o restaurante como ponto de programa. Quando o entrevistador foi ao banheiro,
um garçom veio me chamar atenção, falou:  “Olha, isso aqui não é pra isso não.”
Respondi, “Moço do que você está falando?” e ele “Ó, vai rodar a bolsinha em outro
canto”. Em seguida eu falei, “Eu estou dando uma entrevista”.

LCF: Ninguém mais fez nada?

RS: Metade dos funcionários do restaurante eram negros. Além disso, todo mundo
em volta já estava olhando a interação na minha mesa. Contei ao jornalista que me
entrevistava e ele disse “É difícil de acreditar”. Na mesa ao lado, havia outro rapaz
dinamarquês que tava com a esposa brasileira, e a família da esposa. Este dinarmaquês
puxou assunto com o jornalista porque o viu falando ao telefone em dinamarquês.

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O jornalista então perguntou ao dinamarquês na outra mesa: “Eu percebi que vocês
todos estavam olhando muito pra cá. Por quê?”. A resposta foi: “Minha esposa e a mãe
dela estavam achando que você tinha contratado uma prostituta”. Portanto, a cena
foi percebida da mesma forma não só pelos funcionários negros mas pelos próprios
clientes.

LCF: Você mencionou Minas Gerais algumas vezes. Quanto tempo você morou
lá?

RS: Eu cresci em Coronel Feliciano, Vale do Aço, em Minas Gerais, onde morei até os
15 anos. Dos 15 aos 25, morei em Belo Horizonte para onde me mudei com meu irmão
para estudar no CEFET. Depois que me formei pela PUC-MG, fiquei ainda mais dois
anos na cidade. Eu já tinha vontade de trabalhar como tradutora só que me faltavam
as ferramentas e eu trabalhava em uma escola de inglês lá, onde só me deixavam dar
aula para alunos de nível básico. Nunca me ofereciam as aulas de nível intermediário.
Quando me formei, já estava trabalhando com professora de inglês há dois anos e
meio e percebi que enquanto eu estivesse naquela escola e em Belo Horizonte eu ia ser
a eterna professora de criancinha. Pensei, já que eu quero ver coisas diferentes, fazer
coisas diferentes, eu preciso sair de Belo Horizonte. Lá eu ainda fiz o processo seletivo
da Cultura Inglesa várias vezes. Eu passava na prova, passava na entrevista, mas na
hora de conseguir turma, não me davam retorno.
211
LCF: Você foi aprovada em mais de um processo seletivo?

RS: Sim. Passava todo o processo, todas as vezes: foram três vezes.

LCF: Você atribui isso ao racismo?

RS: É uma possibilidade, mas eu não tenho provas materiais para apontar que foi
racismo. Uma vez chegaram a me convidar para o treinamento, o qual eu fiz, mas
depois nunca entraram em contato. Por outro lado, quando cheguei ao Rio, fui
aprovada no primeiro processo seletivo da Cultura Inglesa e comecei a trabalhar
na sequência. Depois de um tempo, acabei saindo para trabalhar em uma escola
de Business English que pagava um pouquinho melhor e eu conseguia conciliar
com o curso de tradução. Depois, passei a dar aula particular e a investir na área
da tradução mesmo.

LCF: Em uma conversa prévia, você mencionou um colega de profissão que


passou a se identificar como negro após os vinte anos de idade. E você? Quando
você se descobriu negra?

RS: Houve um breve momento que eu tentei negar a minha identidade. Foi aos seis
anos. Viajamos à praia. Foi a primeira vez que fui à praia e lá ficava sentada na areia,

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tomando sol o dia inteiro. Sem sol, meu tom de pele é amarelado assim. Mas depois
que eu voltei do Espírito Santo, eu estava naturalmente muito mais escura. Estava
uns cinco tons mais escura que esse tom agora. Ao me ver, uma amiguinha me disse:
“Nossa, você está tão preta!”. Eu respondi: “Não sou preta, estou queimadinha de sol”.
Cheguei em casa e comentei com a minha mãe. Na hora, ela me disse: “Filha, você
é preta, sim”. Como minha mãe é uma mulher de pele muito escura e por mais que
eu tenha a pele um pouco mais clara, tenho todas as características de negro muito
marcadas: o cabelo, o nariz, os lábios, portanto, eu nunca, mesmo quando eu queria
fugir dessa identidade não me foi possível.

LCF: E como era na escola?

RS: Minha mãe fazia questão de pagar uma escola particular para a gente. A escola
que eu e meu irmão estudamos era particular e de 300 crianças, 4 eram negras. No
CEFET havia cerca de 10 alunos negros na turma de 40. Lá era um pouco melhor,
mas mesmo quando eu queria fugir dessa identidade, na escola, havia todo tipo de
apelido: “macaca”, na adolescência por causa da acne, os apelidos eram “anticristo”,
“choquito”. Havia também as músicas. Todo dia alguém cantava para mim uma música
do Chiclete com Banana que fala em “meu cabelo duro”.

LCF: Como você lidava com a situação?


212
RS: Eu era muito brava quando pequena, então eu batia em todo mundo. Minha mãe
falava, “É, fez muito bem.”. Por conta disso, quando pequena, não desenvolvi estratégia
inteligente para lidar com o racismo. Foi na adolescência e na juventude que passei a
desenvolver estratégias melhores. O que eu fazia principalmente na adolescência e no
início da faculdade era ler muito a respeito do racismo. Percebia que alguns dos colegas
negros com quem eu convivia em sala tinham consciência racial zero. Eu sempre corri
atrás de leituras e através delas me firmei.

LCF: Essas leituras tiveram a participação de sua mãe também?

RS: Nem tanto. Apesar de minha mãe sempre ter tido uma postura muito forte
de combate ao racismo, foi mesmo na faculdade que desenvolvi pesquisa sobre
literatura afro-brasileira e literatura africana. Durante a pesquisa, lidamos com
vários textos dissecando o racismo, as peles negras, as máscaras brancas. Em 2003,
comecei a fazer essas leituras. Uma marcante foi O Atlântico Negro de Paul Gilroy
(2001) que analisa o mundo pós-colonial. Essas leituras estavam vinculadas a meu
projeto de pesquisa de Iniciação Científica em literatura afro-brasileira e literatura
africana.

LCF: O que você pesquisou na Iniciação Científica?

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RS: Minha pesquisa foi sobre a representação no negro na literatura do século 19.
Verifiquei que a representação da época era completamente estereotipada e que
pouco difere da representação que hoje assistimos na tv. Ou seja, mudou a mídia que
naquela época eram os jornais, folhetins e romances, mas não mudou a representação
da pessoa negra.

LCF: Quais livros você indicaria a um(a) jovem intérprete negro(a)?

RS: “Um defeito de cor” (2006), da Ana Maria Gonçalves, um romance de mais de
900 páginas. É um livro muito bom principalmente para aqueles que se consideram
mestiços, pardos, e para aquela pessoa que pensa “É, eu não sou tão negro assim” ou
ainda “Eu não preciso lidar com essa questão.” No Brasil, a gente tem a tendência de
achar que o racismo é uma questão com a qual apenas os negros têm que lidar, mas
se trata de uma questão com a qual todos nós, como sociedade, temos que lidar. A
situação do racismo é tão grave, e eu digo que é grave porque já se passaram 130 anos
do fim da escravidão e, em termos de estrutura social, a mudança foi muito pequena.
Há uma pesquisa da Oxfam que prevê que negros e brancos vão ter equiparação de
renda em 2089 se nada mudar. Ou seja, diante da gravidade todos nós precisamos de
iniciativas, políticas públicas e iniciativas institucionais também, da sociedade civil,
das associações...

LCF: Você foi recentemente convidada pela direção da Associação Brasileira 213
de Tradutores (Abrates) para falar do racismo no Brasil no XI Congresso
Internacional, ocorrido no Rio em 2018. Como foi a experiência? O que você
considerou importante destacar?

RS: O convite partiu do Ricardo Sousa, atual presidente da Abrates, e do Willian


Casemiro, presidente anterior.

Ricardo Sousa em uma ocasião se aproximou de mim e disse: “Eu reparo que
nas redes sociais você tem uma postura muito militante com relação ao combate
ao racismo. Você não gostaria de falar sobre o assunto no próximo congresso da
Abrates?”. Respondi que adoraria. O convite oficial foi feito juntamente com o Willian
e fui convidada para falar sobre a interface do racismo com o nosso mercado e sobre
a situação em que o intérprete – ou tradutor – é contratado por ser negro ou porque
vai trabalhar com um público negro. Fiquei sabendo que eu falaria juntamente com
outro tradutor negro, Petê Rissati, com o qual me reuni para alinharmos nossos
recortes. Petê estruturou sua fala em três pilares básicos: intolerância religiosa,
discriminação a LGBTs e racismo institucional. Ele falou muito de empatia e que
para sermos capazes de superar o racismo a empatia é chave, empatia na profissão
como um todo, empatia com os novatos.
Na minha fala optei por abordar o racismo institucional, porque eu teria a
possibilidade de usar dados de várias instituições pra dar suporte ao meu argumento.

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Comecei falando que o racismo estrutural está em todos os cantos, na padaria a
que você vai todo dia, nas aulas de capoeira que você faz, na sua família. Procurei
demonstrar que precisamos combater o racismo que está nas estruturas do governo,
operando para que o negro não atinja uma inserção saudável na sociedade. Me vali de
minha experiência pessoal e relatei que quando eu era pequena sempre pensava, por
que o problema continua se a escravidão “acabou”. Quanto mais fui estudando sobre
a persistência do racismo tanto estrutural quanto institucional, passei a perceber que
o Estado e a sociedade como um todo trabalham para que as estruturas não mudem.
Na sequência, mencionei que a abolição foi feita em 13 de maio de 1888, mas em
1890 quando foi lançado o código civil, a prática da capoeira era crime, assim como
a prática das religiões afro-brasileiras. A capoeira foi criminalizada até 1937, ou seja,
expressões da cultura afro-brasileira eram utilizadas como estratégia para prender e
criminalizar negros após o “fim” da escravidão.
Abordei também a eugenia como política de estado usando um trecho de
uma das constituições brasileiras. Citei o caso dos meus pais, pois sou filha de
pessoas que, na escola, por serem crianças negras, tinham que sentar atrás das
crianças brancas. Minha mãe frequentou escola pública no interior de Minas,
em Mesquita. Já o meu pai morava muito longe da escola e ia a pé para a escola.
Meu pai tem 68 anos e é analfabeto funcional. Ele assina o nome dele mas lê
com muita dificuldade. Recentemente, visitei meus pais em maio e fiz uma lista
de compras para o meu pai. Com a letra cursiva, escrevi alho e ele trouxe milho.
214 Quando ele era mais novo, tenho a impressão de que ele memorizava, nem lia a
lista, trazia tudo certinho.

LCF: Quais as outras histórias seus pais relatam da escola que frequentaram?

RS: Meu pai conta que as professoras davam as respostas paras crianças brancas e
não davam para as crianças negras. O mais grave aconteceu com a minha mãe que
quando ela chegou ao final da quarta série, ela queria continuar estudando, mas a
diretora da escola falou que só podia matricular no quinto ano filho de fazendeiro.
Ela parou de estudar e só voltou a estudar aos 24 anos. Minha mãe teve filhos mais
tarde, porque se ela tivesse tido filhos mais cedo ela não teria voltado a estudar,
não teria mesmo.

LCF: Que outros dados que você considera importantes em relação ao racismo
estrutural no Brasil?

RS: Como a imigração europeia foi estimulado em detrimento da presença dos


africanos que já estavam no Brasil. As políticas de branqueamento durante a
ditadura militar. As políticas de assimilação refletidas em, por exemplo, uma
música do Martinho da Vila que diz “Ah, se você é preto casa com uma branca, se
você é branca casa com um negro’. Os dados sobre a disparidade de renda: a renda
dos negros é 57% da renda dos brancos, que 63,7% das pessoas desempregadas são

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negras, pretas ou pardas e dentro desse universo a grande maioria são mulheres
negras. E são essas mulheres que muitas vezes são responsáveis pelo sustento da
família. Tudo isso é resultado das questões estruturais. Há reflexos do racismo até
nos índices de transplante de pâncreas: 93% das pessoas que recebem transplante
de pâncreas no Brasil são brancas e se você considera que a população brasileira
é composta por 54% de pretos e pardos, percebe-se que há algo de muito errado.
Na saúde, as consultas de mulheres negras no pré-natal são mais curtas que a
de mulheres brancas, as mulheres negras recebem menos anestesia, a violência
obstétrica é maior, a mortalidade materna é maior. No quesito violência: 77%
das pessoas assassinadas são homens negros entre 15 e 24 anos, a chance de uma
pessoa negra ter uma morte violenta é 158% maior que de uma pessoa branca.
Há dados mais positivos. Hoje, 34% das pessoas ingressando em uma faculdade,
esse número é de 2016, se consideram negras. Nos últimos anos, o governo do
Partido dos Trabalhadores tem tomado iniciativas para tentar possibilitar acesso
da população negra à educação superior. A lei das cotas é um exemplo exitoso.
O estatuto da equidade racial, aprovado em 2010, também é exemplo. A lei da
obrigatoriedade do ensino da história afro, africana e afro-brasileira é outro. Há
várias iniciativas positivas também, mas é necessário adesão da sociedade e das
instituições como um todo1.

LCF: E o que uma instituição como a Abrates poderia fazer?


215
RS: Tenho um projeto que ainda está em estágio embrionário. Abrates Afro é uma
iniciativa que contribuirá para divulgar a profissão de intérprete que ainda é muito
desconhecida do grande público. A ideia seria divulgar a profissão para estudantes
de ensino médio e estudantes de graduação em Letras. É muito comum as pessoas
associarem a faculdade de Letras exclusivamente à formação de professores. Assim,
divulgar a profissão por meio de palestras, oficinas, workshops para o público negro
que tenha interesse em se tornar tradutor ou intérprete, de modo a fomentar que esses
profissionais possam no futuro ser os tradutores dos conteúdos que lhes interessa.
Por exemplo, a Netflix tem algumas séries que trabalham muito a questão negra. Não
conheço a equipe de legendadores envolvida, mas será que há legendadores negros
envolvidos? E os demais autores negros que chegam ao Brasil? Quem traduz? Por
exemplo, a Chimamanda Ngozi Adichie é traduzida por uma tradutora do Rio, eu
não a conheço pessoalmente mas ela é uma tradutora branca. Não estou julgando a
qualidade da tradução dela, mas apenas questionando a falta de representatividade de
tradutores negros em trabalhos de autores negros, decorrente do racismo estrutural
que não permite – ou dificulta ao extremo – que negros se formem tradutores ou
intérpretes.
1 Vale ressaltar que esta entrevista ocorreu no início de julho de 2018, portanto, antes do impeachment
da Presidenta Dilma Rousseff. No contexto atual, o governo federal comandado por Jair Bolsonaro,
acaba de assinar decreto liberando a posse de armas para a população brasileira. Especialistas apontam
para a probabilidade de aumento de mortes violentas no país que contabiliza 30,3 mortes por 100 mil
habitantes, número trinta vezes mais alto que o europeu (Atlas da Violência, 2018).

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LCF: Essas ações que você menciona são todas voltadas para fora da Abrates,
como se a associação já tivesse uma consciência de que há racismo, há
preconceito. Você acha que essa consciência já existe por partes dos colegas?

RS: Acho que os membros da diretoria com quem eu conversei possuem a abertura
necessária para pautar a inclusão racial, mas não podemos ser ingênuos a ponto
de considerar que todos os associados vão aplaudir a iniciativa. Por outro lado,
há colegas fora da associação que podem ser parceiros em potencial e podem
contribuir para a formação de intérpretes negros. A iniciativa irá precisar de
recursos. Este curso que estou fazendo hoje, EPIC da Lingua Franca, sou mais uma
vez a única intérprete negra de cerca de 15 inscritos. Seria interessante se no futuro
próximo a Abrates Afro pudesse oferecer uma bolsa de 50% pra que um intérprete
negro pudesse fazer o curso.

LCF: Talvez seja interessante entrar em contato com aqueles que oferecem o
curso para ver se há a possibilidade de doar ou disponibilizar uma gratuidade2
para um intérprete negro indicado pela Abrates Afro, por exemplo.

RS: Sim, isso seria também uma possibilidade, mas considerando que haja resistência,
que a iniciativa também possa arcar.

216 LCF: Você espera resistência?

RS: Vai haver resistência certamente. Uma pessoa que eu conheço, um tempo após
minha fala da Abrates, me falou por WhatsApp que considerou minha atitude vitimista.
Perguntei em que parte. Pensei que tivesse sido quando eu me emocionei ao comentar
que nunca tinha feito intercâmbio. Em uma situação normal eu jamais teria chorado
ao falar sobre isso, mas a oportunidade de falar a meus colegas de profissão mexeu
muito comigo. Mas, não, ela disse eu fui vitimista quando mostrei os dados e a história.
Respondi que os fatos, as estatísticas e a história são comprovados e que se ela não foi
capaz de perceber como as pessoas negras são afetadas por eles até hoje é melhor nem
continuarmos a conversa. Em seguida, ela me acusou de ser oportunista, que eu estava
querendo me promover e entrar no mercado por causa da minha fala. Felizmente sei
que me estabelecer é uma questão de tempo e que tenho condições de continuar a
desenvolver minhas habilidades. Agora, para as outras pessoas negras como eu que
ainda consideram a tradução e a interpretação um sonho, são essas as pessoas que
precisam de ajuda. Pessoalmente, estou encaminhada. Em outra situação, o nome
Abrates Afro foi criticado por uma colega negra. Ela mesma relata sofrer preconceito
de colegas brancos, afirmando que os colegas a tratam como se fosse “empregada
doméstica”. Na opinião dela, o nome Afro geraria mais divisão e seria melhor algo
como Abrates Diversidade. Infelizmente, penso que um nome desses apenas tapa o

2 Interessados em apoiar o Programa Abrates Afro, entrar em contato com a entrevistada pelo email
ranemoraissouza@hotmail.com

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sol com a peneira. Pois, o termo afro reconhece a validade histórico-social do termo
raça – diferentemente de reconhecer a existência de raças humanas – e valoriza nossa
ancestralidade.

LCF: Apesar desse relato de resistência, soube que sua fala foi muito bem
recebida. Quais foram os pontos positivos?

RS: De fato, conversei com outras pessoas que assistiram que me disseram que
gostaram muito. Uma colega de BH disse: “Mesmo para uma pessoa branca que se
tenta ter uma atitude progressista não foi fácil ouvir aquilo”. Para mim, também não
foi fácil falar.

LCF: Ainda em relação à Abrates Afro, quando você fala que nunca fez
intercâmbio eu percebo sua dor, mesmo porque praticamente todos nossos
colegas intérpretes tiveram alguma experiência no exterior, em muitos casos
quando jovens. Essa oportunidade está muito distante da população negra.
Assim, como atrair negros para a profissão se não tiverem a oportunidade de
estudar uma língua estrangeira?

RS: Uma das barreiras que os negros enfrentam é de fato a falta de acesso. Falta de
acesso às coisas básicas em muitos casos. Para evidenciar as barreiras, na minha
fala na Abrates fiz o jogo do privilégio antes de apresentar os números, pois os 217
números são frios. Como eu sabia que a plateia que ia me ouvir seria 90% branca,
adaptei o jogo do privilégio e pedi que dessem um passo a frente ou um passo atrás
a cada comando. O jogo completo aborda questões de gênero, econômicas, raciais
e mais. Fiz apenas o recorte racial com dez voluntários e apenas 20 comandos em
vez dos 50 originais. Dos 20 comandos, 10 seriam para dar um passo a frente e 10
um passo atrás. Antes de começar, dentre os voluntários, pedi que pelo menos dois
fossem pessoas negras.

Durante o jogo, uma colega do rio, neta de político, dos 10 comandos de um


passo a frente, deu 10 e dos 10 comandos de um passo atrás, não deu nenhum. Entre
os comandos estavam: se você cresceu numa casa com uma biblioteca com mais de
50 livros, dê um passo a frente; se você cresceu em uma casa de um cômodo, dê um
passo atrás; se você ganhou viagens ou intercâmbios de presente da sua família, dê
um passo a frente. Neste último, todos os voluntários brancos deram um passo a
frente.

LCF: Nenhum dos negros deu passo a frente?

RS: Um deles deu, o outro não. Outros comandos foram: se você pode contar com a
ajuda da sua família no caso de dificuldade financeira, dê um passo a frente; se você já

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passou por uma situação de discriminação no trabalho em que fizeram piada do seu
cabelo ou da sua pele, dê um passo atrás. Neste último comando, só os negros deram
um passo atrás. No meio do jogo, Maria Paula estava emocionada.

LCF: Havia negros na plateia?

RS: Cheguei a brincar com este assunto. Falei que iríamos fazer o teste do pescoço.
Coloquei a foto do congresso da Abrates de 2013 que foi em Belo Horizonte. A única
negra na plateia era eu. Em seguida, convidei todos a olhar para a plateia de 2018 e
perguntei quem se considerava negro. Cerca de três pessoas levantaram a mão. Foram
os intérpretes de LIBRAS. Entre os intérpretes de LIBRAS, os negros são maioria
segundo um pequisador da Universidade Federal de Pelotas.

LCF: Imagino que por se tratar de um congresso de uma associação profissional


não houvesse tantos acadêmicos na plateia. Havia?

RS: Havia alguns, mas não eram maioria. Interessantemente, um pesquisador


do Mato Grosso mencionou comigo que sentiu falta de teoria crítica na minha
fala. Como eu conhecia bem o perfil do público, respondi que precisava criar uma
estratégia pra atingir o púbico que estava lá e que não seria adequado usar termos
como feminismo marxista ou feminismo interseccional, por exemplo. Ou ainda
218 falar algo como “a luta contra o racismo é estratégia da luta contra o capitalismo”.
As pessoas não iriam me ouvir e iriam desligar na hora. Já o jogo do privilégio toca
todos em sua experiência e a partir dela cada um consegue perceber a diferença, ou
seja, o racismo que não sofrem.

LCF: Uma última pergunta em relação à Abrates Afro. Trata-se de uma iniciativa
só para intérpretes negros ou intérpretes brancos que apoiam a causa podem
fazer parte?

RS. No momento, a maioria das pessoas que demonstraram interesse em apoiar


a iniciativa são pessoas brancas e agradeço todas. Porém, é importante que o
protagonismo seja e permaneça com os negros.

LCF: Fica então o convite às pessoas que leram esta entrevista e que tenham
condições de apoiar a iniciativa e/ou se identificam com ela entrarem em
contato com você.

RS: Reitero o convite. É um caminho bom porque, a identificação identitária é algo


muito pessoal. Não são todas as pessoas de pele parda ou preta que se identificam
como negros, portanto em relação aos colegas a Abrates Afro não irá atrás de colegas
negros, mas estará de portas abertas a recebê-los.

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LCF: Rane, preciso te agradecer pela disponibilidade. Esta entrevista está
acontecendo no intervalo de um curso que você veio fazer em São Paulo.
Portanto, para irmos encerrando a entrevista, pergunto com que intuito você
busca fazer cursos na área da interpretação?

RS: Na área da tradução e da interpretação há muitas pessoas que se tornam


profissionais por acaso, sem formação na área e passam a carreira sem ter feito nenhum
curso formal. Entretanto, quando você é negro as pessoas duvidam que você é capaz
de fazer um bom trabalho. Isso vale para qualquer área. É preciso estar muito bem
qualificado para fazer aquilo a que você se propõe. Só neste ano de 2018, fiz o HIIT
no início do ano e o EPIC agora. No ano que vem, pretendo fazer o HIIT novamente e
explorar outros cursos também.

LCF: A profissionalização e a formação continuada seriam ‘estratégias de


sobrevivência’?

RS: Sim. Quer na área acadêmica ou não. São importantíssimas porque um profissional
negro em qualquer área é mais questionado e precisa demonstrar todos os dias que é
competente. A formação vai além da questão da inserção no mercado. Trata-se de uma
estratégia de sobrevivência sim, pois todos os dias da sua vida profissional vão duvidar
de você por você ser negro.
219
Palavras finais

É preciso trazer à tona algo que a versão escrita desta entrevista não capta.
Não foram recuperadas as sutilezas racistas do contexto da entrevista, feita no café
da Livraria Cultura do Conjunto Nacional, São Paulo. Os olhares vindos das demais
mesas, os olhares das pessoas na fila do café e sobretudo os olhares lancinantes
projetados sobre Rane pelos transeuntes na Avenida Paulista enquanto andávamos
até a Rua Pamplona. Todos os olhares acusavam que ela não pertencia àquela
geografia. Todos os olhares declaravam o apartheid que existe no Brasil. Se há
limitações territoriais, se há espaços em que determinados grupos não frequentam
ou não são bem-vindos, – pouco importa se se trata de uma política oficial explícita
ou implícita –, há segregação, há racismo, há apartheid. Não é mais possível “tapar o
sol com a peneira”.

Referências

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221

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Black Feminist Thought and Translation Studies - interview with
Patrícia Hill Collins
Pensamento feminista negro e os estudos da Tradução:
entrevista com Patrícia Hills Collins

Dennys Silva-Reis [D.S-R.]: Yours would be a very important contribution to


Translation Studies in Brazil and a stimulus for our work in anti-racism in the academy
and in the translation field. I believe that your reflections on these topics would be
very fruitful in our debates on them, given that few Black women scholars talk about
these subjects.

Patricia Hill Collins [P. H. C.]: Thank you for this invitation to discuss how aspects
of my work might inform Translation Studies. While I am less familiar than I would
like to be with Translation Studies a field of formal study, I have thought a great deal
about issues of translation within my own work. So, my answers reflect my sense of
how issues of translation play out in my intellectual production.

[D.S-R.]: What are the dynamics of sexism and racism through language?

222 [P. H. C.]: Sexism and racism are not just ideologies but also encompass tangible social
practices. As systems of power, they organize unjust social institutions and practices.
In my own work, I return to the idea of community as one important site that organizes
the connections between unjust social institutions and the ideological discourses that
reproduce them. Community can also serve as an important site for generating anti-
racist and feminist analyses of social injustice. In this sense, community is a specific
site where language as a set of ideas and of communicative practices occurs.

W hen it comes to communication and language, I further distinguish between


a linguistic community and an interpretive community. A linguistic community is
often seen a site of social equality where speaking a shared language ostensibly fosters
similar values, ideas and a common worldview. This understanding of language itself
as the bedrock linguistic communities underlies commonsense understandings of
translation. Here one need only translate Portuguese into English or vice versa for

Patrícia Hill Collins


Distinguished University Professor of Sociology Emerita at the University of Maryland, College
Park. Her award-winning books include Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the
Politics of Empowerment (1990, 2000) and Black Sexual Politics: African Americans, Gender, and the
New Racism (2004). Her most recent book Intersectionality as Critical Social Theory is scheduled to
be published in 2019.
Dennys Silva-Reis
PhD in Literature from the Universidade de Brasília (UnB). E-mail: reisdennys@gmail.com

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the members of each linguistic community to access the worldview of the other.
This perspective overlooks the political implications of the terms of belonging to a
particular linguistic community. In this sense, linguistic communities are apolitical
– the power dynamics that affect all aspects of communication fall from view. It is
adequate to plug ideas into Google Translate and see what comes out of the other
end.
In contrast, my sense of an interpretive community makes power relations
more central to the act of communication and translation. Power relations within
an interpretive community regulate who gets to speak, who is listened to and what
knowledge comes to represent that community to outsiders. Power relations shape
who is silenced and who is heard. Racism and sexism work within particular linguistic
communities, generating patterns of silencing and being heard that contribute to
social relations of racism and sexism. Systems of power such as these turn apolitical
linguistic communities into interpretive communities with differential degrees of
power to speak on behalf of or represent a worldview. For example, in the United
States, Black people, Latinos/as and indigenous peoples who oppose racism are
routinely silenced. Similarly, when women speak out against sexual violence and
sexual assault, they are disbelieved and often ridiculed. The large number of English-
speakers in the U.S. context may constitute a linguistic community, but it is one where
racism and sexism permeate values, ideas and worldview of what it means to belong
to the American interpretive community. Globally, the dominance of English as the
language of scholarship means that authors like me who speak, write and publish in 223
English have access to being heard while equally if not more talented people whose
work has not yet been translated into English remain relatively unknown.
In this sense, power relations among interpretive communities, with linguistic
communities as the public face of an interpretive community, map on to social
relations of racism, sexism and the like. Within the U.S., for example, Black people,
Latinos/as, and indigenous peoples constitute interpretive communities that have
long advanced counter discourses to the dominant American ideology. Relationships
among interpretive communities influence why certain knowledges are legitimated
whereas others remain unknown. Whether academic disciplines or nation-states,
power relations shape similar patterns of silencing and being heard.

[D.S-R.]: Do you see the canonical texts of the human sciences as inherently
sexist and racist? Or have they simply been used that way?

[P. H. C.]: Canonical texts within the human sciences illustrate these patterns of
varying interpretive communities exercising different degrees of power in shaping what
counts as knowledge. In this case, the texts are artifacts of decisions that were made
at the time they were initially created and accepted, as well as the history of varying
interpretive communities using them in particular ways for particular purposes. If
the original written texts are sexist and racist, either via their clearly identifiable
assumptions concerning race and gender or via framing assumptions that simply don’t

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see race and gender as important, subsequent interpretation of those texts reinforces
these ideas. For example, the canonical texts of classical sociological theory, my own
discipline, simply position race and gender outside the field itself, thereby seeing them
as secondary concerns. Instead, when it comes to social inequality, class constitutes
the central object of investigation. In this sense, canonical texts can be racist and
sexist without appearing to be so at all.

Here the idea of interpretive communities becomes especially significant.


Over time, if canonical knowledge becomes decontextualized and travels as a taken-
for-granted truth within a field of study, it sets the boundaries for the field. In this
sense, knowledge of and acceptance of canonical texts serve as gatekeepers for who
can enter that field and who cannot. Often the work performed by canonical texts
in reproducing racism and sexism within a field are invisible. Canonical texts often
have a lifespan with an influence that stretches far beyond their initial intent. Such
texts become canonical, not exclusively due to their content, but through the power
of dedicated interpretive communities (disciplines) to legitimate them as canonical
texts.
W hen it comes to racism and sexism, in this context, the question is less
whether we should read canonical texts in our respective fields but how we should
read them. I find much of value in canonical texts, if I read them through the lens
of a sociology of knowledge that is aware of their production and consumption. I
224 can take what’s useful and leave the rest behind. Sometimes, it is useful to criticize
canonical texts, identifying the negative effects they have had in how people have
taken up their ideas. In other cases, it’s enough to question their utility for thinking
through racism and sexism.
It honors the intellectual labor of an author to take his/her ideas seriously. But
doing so requires attending to the political economy of how a text is produced. The
fundamental question for any author is this -- who is your audience? As a scholar of
racism and sexism who also is an author, it has been important for me to know my
audiences and to distinguish among them. I read the canonical texts in my field in
light of their authors and intended audiences; it matters when such texts were written,
by whom, and in what political contexts. Moreover, I always give other authors the
benefit of the doubt to see how effectively their texts achieve their stated purposes.
Obviously, if I disagree with an author’s expressed aim, e.g., a right-wing treatise on
Black women’s inferiority, I don’t give that the benefit of the doubt. Instead, I analyze
such texts to see how the author constructed his/her argument and the evidence that
he/she used in support of it. This gives me insight into how to anticipate and counter
such arguments, or better yet, write my own arguments in ways that already refute
such work. But we also must read canonical texts that we like, critically.
W hen it comes to canonical texts that were created under colonialism, I think
we need to think outside the canonical boxes of tradition and become authors of
new traditions. For example, what will be the canonical texts of Black feminism?
This field is still so new, both in the United States and in a global context that its

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contributions to anti-racist and anti-sexist inquiry and practice continue to unfold.
Will such texts be texts in the traditional sense of the word? Will they be visual
or oral? Can a You Tube video serve as a canonical text? The rapidly changing,
networked communications framework of the web is a game changer for the ability
of interpretive communities to police the boundaries of fields of study. In this sense,
when it comes to racism and sexism, the days of celebrating canonical texts may be
ending.

[D.S-R.]: What is your sense of how sexism and racism are organized and
operate in the translator/interpreter profession field?

[P. H. C.]: I’m not sure I can speak directly to the specific issues in the field of
Translation Studies. But I do think that issues that I face in doing intellectual
work, especially theoretical work, illustrate how racism and sexism inform broader
issues of interpretation. Because I move among so many different interpretive
communities, I find myself constantly thinking about how best to say what I want
to say within each community as well as what they might say to one another if direct
lines of communication were available. In essence, for me, theoretical work involves
constantly negotiating one set of ideas in terms of another, making sure that I am
accountable to multiple communities for translations that make my work possible.
For example, when it comes to Black feminist thought, since traveling to Brazil, I ask
myself how I might understand and interpret the similarities and differences between 225
Black feminism in Brazil, in the U.S., and throughout the African Diaspora?

I see my scholarship itself as a dual act of translation and interpretation.


Because I am an African American woman with a particular set of educational,
professional and life experiences, my work on Black women reflects this perpetual
moving among interpretive communities of academia, family, and living as a Black
woman in U.S. society. I see my theoretical work in Black Feminist Thought and in
Black Sexual Politics as one translating one form of language into another, from
everyday speech into a specialized academic language and vice versa. My book On
Intellectual Activism gathers together many of the same ideas that I examine in
my academic publications, making not just the ideas themselves accessible outside
specialized academic language, but also the backstage thinking about doing this
kind of intellectual work.
Thinking of my work as translation and interpretation among multiple
interpretive communities has made two things clear. First, not all ideas translate.
Some are actually untranslatable because they come from and are meaningful within
particular interpretive communities. Efforts to “translate” indigenous worldviews into
terms that are understandable within Western scholarship often produce caricatures
of the holistic philosophies of indigenous peoples. Translating the terms of a non-
Western worldview into a Western one continues the epistemic violence that has
been part of colonization. We must realize the limits of translation.

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Second, power relations influence what is seen as being worth translating and
what simply doesn’t exist because it hasn’t been translated. Basically, some topics
never come into public view because more powerful groups are simply uninterested
in seeing such ideas translated. For years, there was little interest in the world view
of African American women, primarily because Black women were assumed to have
little of value worth saying. Fortunately, an on-going effort of Black women to speak
the truth of Black women’s lives changed that situation.

[D.S-R.]: How might translation contribute to the dissemination of non-


hegemonic feminist and anti-racist theories?

[P. H. C.]: I’m actually more interested in the mechanisms of how we develop non-
hegemonic feminist and anti-racist theories than in how we might disseminate
theories that emerge from traditional ways of doing theory or theorizing. Within
Western cultures, theory is highly rationed, available to a select few who manage to
acquire the literacy and credentials that enable them to get theory jobs. And once
within those jobs, disciplinary conventions limit what one can say and do. This is a
pragmatic description of theory, one that must be taken into account with any efforts
to disseminate theory that is created under these social conditions. At the same time,
academic gatekeeping is eroding, creating new possibilities for more democratic ways
of theorizing whereby more ideas actually get to the theory table.
226
That’s a project that has been at the center of my attention for some time. In
your questions, you quite rightly distinguish between racism and sexism. I think
that we need that kind of analytical clarity, especially in analyzing how racism and
sexism have been organized within different national settings. To me, they are not
the same, and taking the time to learn about each is invaluable. Moving too quickly
to an imagined alliance between racism and sexism under the banner of a bigger
concept that erases these differences, e.g., social justice, not only is inaccurate but
can be politically ineffective.
Translation studies maintain the integrity of these distinctions by requiring
that scholar-activists of racism and sexism do the work of translating their ideas for
audiences that typically are not their primary concern. It’s different writing feminism
for an assumed audience of white women than feminism for Black men. How
differently anti-racist work sounds when it is written for Black audiences and white
ones. Doing the work of translation sees racism and sexism as interconnected and
independent, creating a pathway for seeing anti-racism and feminism as connected
as well.
My work on intersectionality is very much an act of translation. I see
intersectionality as a critical social theory that is less about dissemination of what has
already been decided – this is the aforementioned canonical knowledge that merits
criticism – but a collaborative project of constructing knowledge across differences.
Translation highlight similarities but it also identifies important differences. As

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a knowledge project, intersectionality inherently rests on the foundation of good
translations.
I’ve just finished a book titled Intersectionality as Critical Social Theory (Duke
University Press, 2019) that, while I do not make translation an explicit theme, my
argument rests on translation as a process for doing such theory. I spend considerable
time discussing dialogical engagement as essential for building such a critical
social theory that is adequate for addressing racism, sexism and broader forms of
oppression. And dialogical engagement is the bedrock of translation.

[D.S-R.]: In what ways do you see the act of translation as feminist and anti-
racist activism?

[P. H. C.]: Translation is never politically neutral. It’s one thing to translate the
language and ideas of dominant groups into terms that subordinated groups can
understand. This kind of translation is accepted as business as usual. It assumes that
the ideas of dominant groups are inherently worthwhile, and that translating them
into terms that all others can understand is fundamentally a good idea. Activism here
consists of translating documents so that Black women and similarly subordinated
groups can know their rights, for example, the legal protections that may be available
to them in law. Teaching can be a terrain of activism, translating texts that may not be
available to one’s students or helping students understand the specialized language
of academia. Because so much of Western knowledge is inherently sexist and racist, 227
working with the assumptions that underlie such knowledge and translating their
canonical texts into a language that enable subordinated people to read and critically
assess them can be an act of anti-racist and feminist activism.

Yet what about translating from the other side of power, namely, the ideas,
analyses and knowledge produced by subordinated groups? Here, translation and
activism require a different set of translation skills that are attentive to the political
costs and benefits of translation. Many of us who aim to speak to, for and with
people who are subordinated within intersecting systems of power engage in a more
sophisticated form of translation that is context specific. Translating the ideas of
women, Black people and indigenous peoples into language that dominant groups
can understand may help our individual careers in the academy. But at what cost to
ourselves and to the people whose ideas that we translate? The risk we run is that
making certain anti-racist and feminist knowledge public may make it easier for
dominant groups to manage subordinated groups. What appears to be translation as
activism to make subordinated people more respectable can be a form of selling out.
I see much of my work as situated in this in-between space of translating
dominant discourse into a form that is useful for social justice projects and translating
the ideas of subordinate groups for one another so they can better communicate with
one another. One of the more difficult tasks is to develop self-defined knowledge that
enables Black women and people from similarly subordinated groups to speak with

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one another. Just as there is no one essential Black women who is typical of all, there
is no one message that reflects the diverse experiences of Black women.
Creating these spaces of safe and free speech, spaces where translation need
not labor across differences in power is hard. In writing Black Feminist Thought, I
had to decide how much I could say about Black women’s lives in public, and what
should be keep private. Sometimes secrecy is essential not just to feminist and
anti-racist activism, but to the very survival of Black women. It makes no sense to
publicize Black women’s oppositional knowledge if the increased visibility granted
such knowledge increases Black women’s vulnerability. Such public translations may
feel activist, but they can harm Black women. It is difficult to remove assumptions
of whiteness, masculinity, wealth and compulsory heterosexuality that are so central
to Western discourse from honest conversations among ourselves. But we must try,
hoping that by honing sophisticated skills of translation, we can craft interpretive
communities that empower us.

228

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Pensamento feminista negro e estudos da tradução – Entrevista
com Patrícia Hill Collins1
Dennys Silva-Reis [DSR]: Sua contribuição seria muito importante para os estudos da
tradução no Brasil e um estímulo para nosso trabalho sobre antirracismo na academia
e no campo da tradução. Acredito que suas reflexões sobre esses temas seriam muito
frutíferas em nossos debates sobre eles, visto que poucas mulheres negras acadêmicas
falam desses assuntos.

Patricia Hill Collins [PHC]: Obrigada por este convite para discutir de que modo
aspectos do meu trabalho poderiam contribuir para os estudos da tradução. Embora
eu esteja menos familiarizada do que gostaria com os estudos da tradução, tenho
pensado muito sobre questões de tradução dentro do meu próprio trabalho. Assim,
minhas respostas refletem minha percepção de como questões de tradução afetam
minha produção intelectual.

[DSR]: Quais são as dinâmicas do sexismo e do racismo por meio da linguagem?

[PHC]: O sexismo e o racismo não são apenas ideologias, mas também abarcam práticas
sociais tangíveis. Como sistemas de poder, eles organizam instituições e práticas sociais
injustas. Em meu trabalho, volto à ideia de comunidade como um locus importante 229
que organiza as conexões entre instituições sociais injustas e os discursos ideológicos
que as reproduzem. A comunidade também pode servir de locus imporante para gerar
análises antirracistas e feministas da injustiça social. Neste sentido, a comunidade é
um locus específico onde ocorre a linguagem como um conjunto de ideias e de páticas
comunicativas.

Quando se trata de comunicação e linguagem, faço a distinção posterior entre


uma comunidade linguística e uma comunidade interpretativa. Uma comunidade
linguística é frequentemente vista como um lugar de igualdadee social onde falar uma
língua compartilhada encoraja ostensivamente valores e ideias semelhantes e uma
visão de mundo comum. Esse entendimento da língua mesma como o fundamento
das comunidades linguísticas subjaz às ideias do senso comum sobre tradução. Aqui,
basta traduzir do português para o inglês ou vice-versa para que os membros de cada
comunidade linguística tenham acesso à visão de mundo dos outros. Essa perspectiva
1 Tradução de Marcos Bagno (UnB). E-mail: bagno.marcos@gmail.com

Patrícia Hill Collins


Professora Emérita da Universidade de Maryland, College Park. Entre seus livros premiados se incluem
Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics of Empowerment (1990, 2000) e
Black Sexual Politics: African Americans, Gender, and the New Racism (2004). Seu livro mais recente,
Intersectionality as Critical Social Theory está programado para publicação em 2019.
Dennys Silva-Reis
Doutor em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: reisdennys@gmail.com

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Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 229-235
negligencia as implicações políticas do que significa pertencer a uma comunidade
linguística particular. Nesse sentido, as comunidades linguísticas são apolíticas – as
dinâmicas de poder que afetam todos os aspectos da comunicação desaparecem.
Basta introduzir ideias no Google Translate e ver o que sai do outro lado.
Em contrapartida, minha concepção de comunidade interpretativa torna as
relações de poder mais centrais para o ato de comunicação e tradução. As relações de
poder dentro de uma comunidade interpretativa regulam quem pode falar, quem é
ouvido e que conhecimento passa a representar essa comunidade para os forasteiros.
As relações de poder moldam quem é silenciado e quem é ouvido. O racismo e o
sexismo operam dentro de comunidades linguísticas particulares, gerando padrões
de silenciamento e de escuta que contribuem para as relações sociais de racismo e
sexismo. Sistemas de poder como esses transformam comunidades linguísticas em
comunidades interpretativas com graus diferenciados de poder falar em nome de
uma visão de mundo ou representá-la. Por exemplo, nos Estados Unidos, as pessoas
negras, latinas e indígenas que se opõem ao racismo são rotineiramente silenciadas.
De igual modo, quando as mulheres falam contra a violência sexual e o assédio sexual,
elas são desacreditadas e frequentemente ridicularizadas. O grande número de
falantes de inglês no contexto dos Estados Unidos pode constituir uma comunidade
linguística, mas é uma comunidade em que o racismo e o sexismo permeiam valores,
ideias e visões de mundo sobre o que significa pertencer à comunidade interpretativa
estadunidense. Globalmente, a dominância do inglês como a língua da academia
230 significa que autores como eu que falam, escrevem e publicam em inglês podem
ser ouvidos, ao passo que pessoas igualmente talentosas, senão mais, cujo trabalho
ainda não foi traduzido em inglês permanecem relativamente desconhecidas.
Nesse sentido, as relações de poder entre comunidades interpretativas, com
comunidades linguísticas como a face pública de uma comunidade interpretativa,
configuram as relações sociais de racismo, sexismo etc. Dentro dos Estados Unidos, por
exemplo, pessoas negras, latinas e indígenas constituem comunidades interpretativas
que há muito tempo formulam contradiscursos à ideologia estadunidense dominante.
Os relacionamentos entre comunidades interpretativas influenciam por que certos
conhecimentos são legitimados enquanto outros permanecem desconhecidos. Seja
em disciplinas acadêmicas ou em Estados-nações, as relações de poder moldam
padrões semelhantes de ser silenciado e de ser escutado.

[DSR]: Você considera os textos canônicos das ciências humanas como


inerentemente sexistas ou racistas? Ou eles simplesmente têm sido usados
desse modo?

[PHC]: Os textos canônicos dentro das ciências humanas ilustram esses padrões
de diversas comunidades interpretativas exercendo diferentes graus de poder na
formatação daquilo que conta como conhecimento. Nesse caso, os textos são artefatos
de decisões que foram tomadas na época em que eles foram criados e aceitos, assim
como a história das diversas comunidades interpretativas que os usam de modos

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particulares para propósitos particulares. Se os textos escritos originais são sexistas e
racistas, seja por seus pressupostos claramente identificáveis acerca de raça e gênero,
seja ao configurar pressupostos que simplesmente não veem a raça e o gênero como
importantes, a interpretação subsequente desses textos reforçam essas ideias. Por
exemplo, os textos canônicos da teoria sociológica clássica, minha própria disciplina,
simplesmente colocam raça e gênero fora do próprio campo, vendo-os assim como
preocupações secundárias. Ora, quando se trata de desigualdade social, a classe
constitui o objeto central de investigação. Nesse sentido, os textos canônicos podem
ser racistas e sexistas sem aparentar sê-lo.

Aqui a ideia de comunidades interpretativas se torna especialmente importante.


Com o tempo, se o conhecimento canônico se torna descontextualizado e viaja como
uma verdade tomada como ponto pacífico dentro de um campo de estudo, ele traça
as fronteiras para o campo. Nesse sentido, o conhecimento e a aceitação dos textos
canônicos servem de sentinelas cuidando de quem pode entrar no campo e quem não
pode. Frequentemente, é invisível o trabalho desempenhado por textos canônicos na
reprodução do racismo e do sexismo dentro de um campo. Textos canônicos muitas
vezes têm um tempo de vida com uma influência que se desdobra para muito além de
suas intenções iniciais. Esses textos se tornam canônicos, não exclusivamente devido
a seu conteúdo, mas através do poder de comunidades interpretativas (disciplinas)
dedicadas a legitimá-los como textos canônicos.
Quando se trata de racismo e sexismo, neste contexto, a questão não é tanto se 231
devemos ler os textos canônicos em nossos respectivos campos mas como devemos
lê-los. Eu encontro muito valor em textos canônicos se os leio através de lentes de
uma sociologia do conhecimento que é consciente da produção e do consumo desses
textos. Posso tomar o que é útil e deixar o resto para trás. Às vezes, é útil criticar textos
canônicos, identificar os efeitos negativos que têm tido no modo como as pessoas
têm assumido suas ideias. Em outros casos, é suficiente questionar sua utilidade para
a reflexão sobre o racismo e o sexismo.
Honramos o trabalho intelectual de um autor/a levando suas ideias a sério. Mas
fazer isso exige levar em conta a economia política de como um texto é produzido.
A questão fundamental para qualquer autor/a é: quem é seu público? Como uma
estudiosa do racismo e do sexismo que também é autora, tem sido importante para
mim conhecer meus públicos e distinguir entre eles. Leio os textos canônicos do meu
campo à luz de seus autores e de seus públicos visados; é importante saber quando
tais textos foram escritos, por quem, e em que contextos políticos. Além disso, sempre
concedo a outros autores o benefício da dúvida para ver como efetivamente seus textos
alcançaram seus propósitos declarados. Obviamente, se discordo do objeto expresso
de um autor, por exemplo, um tratado de direita sobre a inferioridade das mulheres
negras, não lhe concedo o benefício da dúvida. Ao contrário, analiso esses textos
para ver como o/a autor/a construiu seu argumento e as evidências que usou para
apoiá-lo. Isso me dá insight sobre como antecipar e me contrapor a tais argumentos

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ou, melhor ainda, escrever meus próprios argumentos de modo que já refutem tal
obra. Mas também devemos ler os textos canônicos que apreciamos, criticamente.
Quando se trata de textos canônicos que foram criados sob o colonialismo, penso que
precisamos pensar fora das caixas coloniais da tradição e nos tornar autoras de novas
tradições. Por exemplo, quais serão os textos canônicos do feminismo negro? Esse
campo ainda é tão novo, tanto nos Estados Unidos quanto num contexto global, que
suas contribuições à pesquisa e à prática antirracista e antissexista continuam a se
desdobrar. Esses textos serão textos no sentido tradicional da palavra? A rapidez da
mudança das comunicações em rede no quadro da web é um desafio para a capacidade
das comunidades interpretativas de patrulhar as fronteiras dos campos de estudo.
Nesse sentido, quando se trata de racismo e sexismo, os dias de celebração de textos
canônicos podem estar acabando.

[DSR]: Qual a sua percepção de como o sexismo e o racismo se organizam e


operam no campo profissional da tradução/interpretação?

[PHC]: Não tenho certeza de poder falar diretamente das questões específicas
no campo dos estudos da tradução. Mas penso que questões que enfrento ao fazer
meu trabalho intelectual, especialmente o teórico, ilustram de que modo o racismo
e o sexismo configuram questões mais amplas de interpretação. Pelo fato de me
movimentar entre tantas comunidades interpretativas diferentes, frequentemente
232 me vejo pensando sobre qual o melhor modo de dizer o que quero dizer dentro de
cada comunidade, bem como o que elas poderiam dizer umas às outras se tivessem à
sua disposição linhas diretas de comunicação. Essencialmente, para mim, o trabalho
teórico envolve negociar constantemente um conjunto de ideias em termos de outro,
garantindo que eu possa responder a múltiplas comunidades pelas traduções que
tornam meu trabalho possível. Por exemplo, quando se trata de pensamento feminista
negro, desde que viajei ao Brasil, me pegunto como eu poderia entender e interpretar
as semelhanças e diferenças entre o feminismo negro no Brasil, nos Estados Unidos e
através da diáspora africana.

Vejo meu próprio trabalho acadêmico como um ato duplo de tradução e


interpretação. Pelo fato de ser uma mulher afro-americana com um conjunto
particular de experiências educacionais, profissionais e de vida, meu trabalho
sobre mulheres negras reflete esse movimento perpétuo entre comunidades
interpretativas da academia, da família e da vida como uma mulher negra na
sociedade estadunidense. Vejo meu trabalho teórico em Black Feminist Thought e em
Black Sexual Politics como uma tradução de uma forma de linguagem em outra, da
fala cotidiana em uma linguagem acadêmica especializada e vice-versa. Meu livro
On Intellectual Activism reúne várias das mesmas ideias que examino em minhas
publicações acadêmicas, tornando acessíveis não só as próprias ideias para fora da
linguagem acadêmica especializada, mas também os bastidores de como fazer esse
tipo de trabalho intelectual.

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Pensar sobre meu trabalho como tradução e interpretação entre múltiplas
comunidades interpretativas deixou claras duas coisas. Primeiro, nem todas as ideias
se traduzem. Algumas são de fato intraduzíveis porque provêm de comunidades
interpretativas particulares e são significativas dentro delas. Os esforços por
“traduzir” visões de mundo indígenas em termos que são compreensíveis dentro do
pensamento ocidental frequentemente produzem caricaturas das filosofias holísticas
dos povos indígenas. Traduzir os termos de uma visão de mundo não-ocidental para
uma visão de mundo ocidental faz prosseguir a violência epistêmica que tem sido
parte da colonização. Precisamos nos dar conta dos limites da tradução.
Em segundo lugar, as relações de poder influenciam o que é visto como digno
de se traduzir e o que simplesmente não existe porque não foi traduzido. Basicamente,
alguns tópicos nunca chegam aos olhos do público porque grupos mais poderosos
simplesmente não têm interesse em ver tais ideias traduzidas. Durante anos, houve
pouco interesse na visão de mundo das mulheres afro-americanas, principalmente
porque as mulheres negras eram consideradas como tendo pouca coisa de valor a
dizer. Felizmente, um esforço permanente das mulheres negras de falar a verdade
sobre as vidas das mulheres negras mudou essa situação.

[DSR]: De que modo a tradução poderia contribuir para a disseminação de


teorias feministas e antirracistas não hegemônicas?

[PHC]: Eu de fato estou mais interessada nos mecanismos do modo como 233
desenvolvemos teorias feministas e antirracistas não hegemônicas do que em como
poderíamos disseminar teorias que emergem de modos tradicionais de fazer teoria ou
teorização. Dentro das culturais ocidentais, a teoria é altamente racionada, disponível
para uns poucos seletos que conseguem adqurir o letramento e as credenciais que
lhes permitem obter empregos de teóricos. E uma vez dentro desses empregos,
as convenções disciplinares limitam o que alguém pode dizer e fazer. Essa é uma
descrição pragmática da teoria, que precisa ser levada em conta junto com quaisquer
esforços por disseminar teorias criadas sob tais condições sociais. Ao mesmo tempo, a
vigilância acadêmica está se erodindo, criando novas possibilidades para modos mais
democráticos de teorizar por meio dos quais mais ideias realmente chegam à mesa
teórica.

É um projeto que tem estado no centro da minha atenção há algum tempo. Nas
suas perguntas, você distingue com razão racismo de sexismo. Creio que precisamos
desse tipo de clareza analítica, especialmente ao analisar como o racismo e o sexismo
têm sido organizados dentro de contextos nacionais diferentes. Para mim, eles não
são a mesma coisa, e é importantíssimo dedicar tempo para aprender sobre cada um.
Mover-se depressa demais rumo a uma aliança imaginária entre racismo e sexisto
sob a bandeira de um conceito maior que apaga essas diferenças, por exemplo, a
justiça social, não só é errado como pode ser politicamente ineficaz.

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Os estudos da tradução mantêm a integridade dessas distinções ao exigir
que os atividades acadêmicos do racismo e do sexismo façam o trabalho de traduzir
suas ideias para públicos que tipicamente não são seu alvo principal. É diferente
escrever sobre feminismo para uma suposta plateia de mulheres brancas do que
sobre feminismo para homens negros. Como soa diferente o trabalho antirracista
quando escrito para públicos negros ou brancos. Fazer o trabalho de tradução é ver
o racismo e o sexismo como interconectados e independentes, criando um caminho
para ver o antirracismo e o feminismo como igualmente interconectados.
Meu trabalho sobre interseccionalidade é em boa medida um ato de tradução.
Vejo a interseccionalidade como uma teoria social crítica que tem menos a ver
com disseminação do que já tem sido decidido – isto é, o conhecimento canônico
mencionado antes, que merece crítica – do que com um projeto colaborativo
de construção de conhecimento através das diferenças. A tradução enfatiza as
semelhanças, mas também identifica diferenças importantes. Como projeto de
conhecimento, a interseccionalidade se apoia inerentemente nas bases das boas
traduções.
Acabo de concluir um livro intitulado Intersectionality as Critical Social
Theory (Duke University Press, 2019) no qual, embora não faça da tradução um tema
explícito, meu argumento se fundamenta na tradução como um processo para fazer
tal teoria. Dedico um tempo considerável à discussão do engajamento dialógico
como essencial para construir essa teoria social crítica que é adequada para tratar do
234 racismo, do sexismo e de formas mais amplas de opressão. E o engajamento dialógico
é o alicerce da tradução.

[DSR]: Em que medida vê o ato de tradução como ativismo feminista e


antirracista?

[PHC]: A tradução nunca é politicamente neutra. Uma coisa é traduzir a língua e


as ideias de grupos dominantes em termos que os grupos subordinados possam
entender. Esse tipo de tradução é aceito como uma prática habitual. Ela supõe que
as ideias de grupos dominantes têm valor inerente e que traduzi-las em termos que
outros possam compreender é fundamentalmente uma boa ideia. O ativismo aqui
consiste em traduzir documentos de modo que mulheres negras e grupos igualmente
subordinados possam conhecer seus direitos, por exemplo, as proteções legais que
podem estar à sua disposição nas leis. O ensino pode ser um terreno para o ativismo,
traduzindo-se textos que podem não estar disponíveis aos seus estudantes ou ajudando
os estudantes a entender a linguagem especializada da academia. Dado que grande
parte do conhecimento ocidental é inerentemente sexista e racista, trabalhar com
os pressupostos que subjazem a esse conhecimento e traduzir seus textos canônicos
numa linguagem que permita às pessoas subordinadas lê-los e avaliá-los criticamente
pode ser um ato de ativismo antirracista e feminista.

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Mas como fica traduzir desde o outro lado do poder, ou seja, as ideias,
análises e conhecimentos produzidos por grupos subordinados? Aqui, a tradução
e o ativismo exigem um conjunto diferente de habilidades tradutórias que estejam
atentas aos custos e benefícios políticos da tradução. Muitos de nós que objetivamos
falar para, por e com pessoas que são subordinadas dentro de sistemas de poder
interseccionados nos engajamos numa forma mais sofisticada de tradução que é
específica ao contexto. Traduzir as ideias das mulheres, das pessoas negras e dos
povos indígenas numa linguagem que os grupos dominantes compreendam pode
nos ajudar em nossas carreiras acadêmicas. Mas a que custou para nós mesmos e
para as pessoas cujas ideias traduzimos? O risco que corremos é o de que tornar
público determinado conhecimento antirracista e feminista pode deixar mais fácil
para grupos dominantes controlar grupos subordinados. O que parece ser a tradução
como ativismo para tornar mais respeitáveis os grupos subodinados pode ser uma
forma de entregar de bandeja.
Vejo muito do meu trabalho como situado nesse espaço intermédio de
traduzir o discurso dominante numa forma que seja útil para os projetos de justiça
social e traduzir as ideias de grupos subordinados uns para os outros de modo que
possam se comunicar melhor entre si. Uma das tarefas mais difíceis é desenvolver
conhecimento autodefinido que permita às mulheres negras e a outras pessoas de
grupos igualmente subordinados falar entre si. Assim como não existe nenhuma
mulher negra essencial que seja típica de todas, não existe nenhuma mensaem que
reflita as experiências diversas das mulheres negras. 235
É difícil criar esses espaços de fala seguros e livres, espaços em que a
tradução não precise batalhar através das diferenças de poder. Ao escrever Black
Feminist Thought, tive de decidir o quanto poderia dizer em público sobre as vidas
das mulheres negras, e o que deveria permanecer privado. Algumas vezes o sigilo é
essencial, não só para o ativismo feminista e antirracista, mas para a sobrevivência
mesma das mulheres negras. Não faz sentido publicizar o conhecimento contraditório
das mulheres negras se a crescente visibilidade concedida a esse conhecimento
aumentar a vulnerabilidade das mulheres negras. Se é difícil remover das conversas
honestas entre nós mesmas os pressupostos de branquitude, masculinidade, riqueza
e heterossexualidade compulsória que são tão centrais no discurso ocidental. Mas
devemos tentar, esperando que, refinando técnicas sofisticadas de tradução, possamos
moldar comunidades interpretativas que nos empoderem.

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Pensar la Traducción y el Feminismo Negro – Entrevista con
Ochy Curiel
Dennys Silva-Reis [D.S-R.] ¿Tiene usted alguna experiencia com la práctica de
traducción feminista?

Ochy Curiel [O.C.] Si. Con Jules Falquet tradujimos los aportes de las feministas
materialistas francesas Colette Guillaumin, Paola Tabet y Nicole Claude Mathieu,
condensada en el texto El Patriarcado al desnudo, tres feministas materialistas, que
salió publicado en el año 2005 a través de la editorial independiente Brecha lésbica.

Posteriormente el Grupo Latinoamericano de Formación y Acción Feminista


(GLEFAS), colectivo del cual formo parte, tradujo el texto La invención de las
mujeres. Una perspectiva africana sobre los discursos occidentales del género” de la
nigeriana Oyèrónkẹ ́ Oyěwùmí en el año 2017, a través de nuestra editorial, también
independiente, en la frontera.

[D.S-R.] ¿Cree que la profesión de traductora e intérprete es sexualizada?


¿Cuales serían las causas y las consecuencias de ello?

236 [O.C.] Cómo sucede en toda la sociedad occidental, las relaciones sociales son
generalmente sexistas, racistas y clasistas. Tiene que ver con las jerarquías que se
han construido desde los inicios de la colonización que continua en la colonialidad
contemporánea y la traducción no escapa de esto. Es parte del sistema modero/
colonial. Los conocimientos más validados son los que producen los hombres blancos
con privilegios de clase, aunque también algunas mujeres con estos privilegios
también. Eso significa que esos conocimientos son los que también se validan para
que sean reconocidos en muchas partes del mundo a través de la traducción que se
hace de sus obras.

Ochy Curiel
La profesora Ochy Curiel,
Nació en República Dominicana, luego de vivir en México, Brasil y Argentina, actualmente vive en
Colombia. Doctora en Antropología Social. Es docente-investigadora de la Universidad Nacional y de
la Universidad Javeriana en Bogotá, Colombia y es también consultora independiente.
Es activista del movimiento lésbico-feminista, antirracista, del feminismo autónomo y del feminismo
decolonial y también cantautora. Es miembra del Grupo Latinoamericano de Estudios, Formación y
Acción Feminista (GLEFAS), de la Tremenda Revoltosa, batucada feminista y del Colectivo Globale
Bogotá, festival de documentales críticos. Tiene varias publicaciones en la que imbrica la raza, el sexo,
la clase, la sexualidad y le geopolítica en la que se destaca su libro: La nación heterosexual, Análisis del
discurso jurídico y el régimen heterosexual desde la antropología de la dominación (2013).
Dennys Silva-Reis
Doctor en Literatura (Universidad de Brasília - UnB). E-mail: reisdennys@gmail.com

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[D.S-R.] ¿En su opinión, hasta qué punto la noción de género de una dada
cultura se puede traducir a otra cultura?

[O.C.] Tal como los explicó la argentina Maria Lugones a través de su concepto
colonialidad del género, el género es una categoría moderna colonial pues se reconoce
el diformismo sexual entre hombres y mujeres, desde las experiencias de mujeres
y hombres blancos/as y burgueses/as, por tanto, no es universal. En muchas otras
culturas no existe el género, ni siquiera las categorías de hombres y mujeres. Un
ejemplo de ello es lo que explica Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí en su texto La invención de
las mujeres en torno la sociedad Yorùbá del suroeste de Nigeria. El género no existia
en estas sociedades antes del contacto con occidente, fue impuesto a través de la
colonización europea.

[D.S-R.] ¿Le parece que haya una distinción entre traducción femenina y
traducción feminista?

[O.C.] Por supuesto. Lo femenino es una cualidad resultado de la diferenciación


que trae consigo la heterosexualidad que se asume la tienen las mujeres, lo cual es
un error, pues los hombres también pueden tener cualidades que se asumen como
femeninas. Al final son construcciones sociales. Una traducción feminista implica una
postura política, aunque esto también es problemático porque no existe solo un tipo
de traducción feminista. Todo depende en cual corriente del feminismo se inscribe la 237
traducción.

[D.S-R.] ¿Cuál sería la importancia de la traducción de teorías feministas en el


mundo contemporáneo?

[O.C.] Creo que muchos feminismos han aportado a complejizar los análisis de las
relaciones sociales. Hay feminismos, como el feminismo negro, el feminismo decolonial
que permite contextualizar la situación de grupos a quienes no solo les afecta el
género, sino también la raza, la clase, la sexualidad, la geopolítica de forma imbricada
de acuerdo a contextos específicos. La traducción de estas teorías son importantes
precisamente para no generalizar ni universalizar las experiencias, que ha sido el error
del feminismo hegemónico que ha sido blanco en sus teorías y conceptos y que solo
toma como centro del análisis el género desde las experiencias de las mujeres blancas,
generalmente del Norte.

[D.S-R.] ¿Cuál es su opinión acerca de traducción y activismo (intelectual o no)?

[O.C.] Creo que es fundamental para poder fortalecer las coaliciones transnacionales.
Los y las activistas debemos hacer traducción de obras y propuestas que nos ayuden
a comprender mejor la complejidad de las relaciones sociales. Creo importante
traducir no solo las obras con una visión crítica desde al Norte hacia Sur, sino del

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Sur hacia el Norte. Por ejemplo, hemos conocido las producciones de las feministas
afronorteamericanas porque han sido más traducidas que las que hemos producido las
afrolatinas y afrocaribeñas, y eso se debe a que Estados Unidos sigue siendo un centro
privilegiado del saber, lo cual responde a la geopolítica del conocimiento, aunque sea
desde grupos subalternos. En el Norte deben conocer nuestras propuestas, como una
forma de descolonizar el saber.

[D.S-R.] ¿La circulación de ideas feministas por medio de traducción


impulsiona la emancipación de otros grupos de mujeres?

[O.C.] Por supuesto. Y no solo de mujeres, sino de otros grupos subalternizados. En


la medida que conocemos las experiencias de otros grupos en muchas latitudes, eso
ayuda a tener una mejor comprensión de las experiencias diversas, y también de las
luchas y resistencias que se hacen en muchos lugares y eso aporta para la coalición
transnacional, como dije antes.

[D.S-R.] ¿Está de acuerdo com que solo mujeres blancas pueden traducir a
mujeres blancas y solo mujeres negras pueden traducir a mujeres negras?

[O.C.] No. Considero que, aunque las mujeres negras debemos hacer mayor
traducciones de otras mujeres negras, no se trata de esencializar este ejercicio. Existen
238 pensamientos, teorías, conceptos tanto de mujeres negras y mujeres blancas que
son críticos e interesantes para nuestros proyectos políticos y que son importantes
traducir. Lo que creo es que las mujeres blancas tienen mayores accesos y privilegios y
muchas veces toman las experiencias de las mujeres negras como meros testimonios o
materias primas para sus créditos académicos, por eso es importante que las mujeres
afrodescendientes e indígenas hagamos traducción de la producción de nuestras
compañeras para evitar la utilización y la instrumentalización de nuestras experiencias
y pensamientos.

[D.S-R.] ¿Cree que hombres (feministas o no) son sensibles y aptos para traducir
textos femeninos y feministas? Cuales serían los retos y las potencialidades
involucradas en este caso?

[O.C.] Mi respuesta a esta pregunta es similar a la pregunta anterior. Depende de


cuáles hombres. Hay hombres que tienen privilegios de raza, clase, sexualidad,
geopolítica, pero hay otros que no, como la mayoría de hombres afros e indígenas
de nuestro continente y en ese sentido pueden ser nuestros aliados, sobre todo si
tienen posiciones políticas parecidas a las nuestras. Lo importante es saber cuál es la
intensión de la traducción que tienen.

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[D.S-R.] ¿Acaso existen, en su opinión, agendas feministas compatibles con
estructuras de publicación editorial? Como se podría buscar una equidad de
género en este campo?

[O.C.] Creo que existen políticas editoriales feministas diversas. No hay una sola línea
editorial y no creo que todas se limiten a buscar la equidad de género. Hay propuestas
feministas que son antirracistas, descoloniales, como existen otras, diría que la
mayoría, que no lo son.

[D.S-R.] ¿En la historia de la traducción se conocen a pocas traductoras e


intérpretes mujeres, sobre todo negras. ¿Conoce usted algunos nombres?
¿Nos podría hablar de ellas?

[O.C.] Creo que hay muy pocas, sobre todo negras y afros. Quienes hemos hecho
traducciones, lo hacemos desde el activismo, no como parte de un ejercicio profesional.

[D.S-R.] ¿Acaso habría, en su opinión, una “culpa de la traducción” por haber


más teoría feminista blanca difundida en el mundo?

[O.C.] Considero que no se trata de “culpa de traducción”, sino de las posibilidades y


el acceso. La mayoría de las mujeres negras, afros, indígenas de nuestro continente no
tienen suficiente dinero, ni tiempo, para priorizar la traducción de textos. Tampoco 239
existen muchas editoriales interesadas en traducir sus obras. Creo más bien que es
una cuestión estructural que tiene que ver con al colonialidad del saber, aunque por
suerte, cada vez más algunas entendemos la importancia de traducir textos de la gente
negra e indígena para dar a conocer sus pensamientos y luchas.

[D.S-R.] ¿Puede la traducción contribuir a la renovación de la literatura


canónica feminista en las distintas áreas de las humanidades?

[O.C.] Por supuesto, sobre todo si son traducciones de las obras de la gente
subalternizada. Es lo que va a contribuir a descolonizar el saber feminista y de las
ciencias humanas a nivel general.

[D.S-R.] ¿Acaso conoce proyectos de traducción feminista no-hegemónicos?


En caso positivo, nos podría decir cuales son y como funcionan?

[O.C.] Pues uno de ellos es lo que estamos haciendo en el GLEFAS, desde nuestra
editorial en la frontera, y lo que ha hecho Brecha Lésbica. Ambas son editoriales
independientes.

[D.S-R.] ¿Que consejos daría para un lenguaje (traductorio) menos sexista?

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[O.C.] Pues buscar maneras de escritura que no reflejen la ideología de la diferencia
sexual, el binarismo de género, pero igual hay que hacerlo desde una postura decolonial,
eso significa evitar categorías, conceptos, palabras racistas, coloniales, heterosexuales
y sobre todo que sea una traducción apegada a los significados que quien produce y no
una sustitución de palabras y conceptos occidentales. El lenguaje también es político.

[D.S-R.] ¿Cuál sería una buena metáfora para la traducción feminista (negra)?

[O.C.] La amefricanidad de Leila González.

[D.S-R.] ¿Es posible enseñar a traducir el feminismo o a hacer una traducción


feminista?

[O.C.] Sí, pero todo depende de qué tipo de feminismo. No todos son iguales y una
traducción puede ser feminista, pero puede ser bastante racista. Creo que es posible
desarrollar metodologías que permitan una traducción decolonial.

240

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Pensar a tradução e o feminismo negro – entrevista com Ochy
Curiel1
Dennys Silva-Reis [DSR]: Tem alguma experiência com a prática de tradução
feminista?

Ochy Curiel [OC]: Sim. Com Jules Falquet traduzimos as contribuições das feministas
materialistas francesas Colette Guillaumin, Paola Tabet e Nicole Claude Mathieu,
condensadas no texto El Patriarcado al desnudo, tres feministas materialistas, que saiu
publicado no ano 2005 através da editora independente Brecha Lésbica. Posteriormente,
o Grupo Latinoamericano de Formación y Acción Feminista (GLEFAS), coletivo de
que faço parte, traduziu o texto “La invención de las mujeres. Una perspectiva africana
sobre los discursos occidentales del género” da nigeriana Oyèróké Oyewùmí em 2017,
através da nossa editora, também independente, en la frontera.

[DSR]: Acredita que a profissão de tradutora e intérprete é sexualizada? Quais


seriam as causas e as consequências disso?

[OC]: Como se passa em toda a sociedade ocidental, as relações sociais são geralmente
sexistas, racistas e classistas. Tem a ver com as hierarquias que se foram construindo
desde os inícios da colonização e que continuam na colonialidade contemporânea, e a 241
tradução não escapa disso. Faz parte do sistema moderno/colonial. Os conhecimentos
mais valorizados são os produzidos por homens brancos com privilégios de classe,
embora também por algumas mulheres com esses privilégios. Isso significa que esses
conhecimentos também são os valorizados para que sejam reconhecidos em muitas
partes do mundo através da tradução que se faz de suas obras.

[DSR]: Em sua opinião, até que ponto a noção de gênero de uma dada cultura pode ser
traduzido em outra cultura?

1 Tradução Marcos Bagno (Universidade de Brasília - UnB)

Ochy Curiel
A professora Ochy Curiel,
Nasceu na República Dominicana e, depois de viver no México, no Brasil e na Argentina,
vive atualmente na Colômbia. Doutora em Antropologia Social. É docente-pesquisadora da
Universidad Javeriana em Bogotá e também consultora independente. É ativista do movimento
lésbico-feminista, antirracista, do feminismo autônomo e do feminismo decolonial e também
cantautora. É membra do Grupo Latino-americano de Estudos, Formação e Ação Feminista
(GLEFAS), da Tremenda Revoltosa, batucada feminista e do Coletivo Globale Bogotá, festival
de documentários críticos. Tem várias publicações nas quais mescla raça, sexo, classe,
sexualidade e geopolítica. Em sua produção se destaca o livro La nación heterosexual. Análisis
del discurso jurídico y el régimen heterosexual desde la antropología de la dominación (2013).
Dennys Silva-Reis
Doutor em Literatura (Universidade de Brasília – UnB). E-mail: reisdennys@gmail.com

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Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 241-245
[OC]: Tal como explicou a argentina María Lugones por meio de seu conceito de
colonialidade do gênero, o gênero é uma categoria moderna colonial, pois se reconhece
o diformismo sexual entre homens e mulheres, desde as experiências de mulheres
e homens brancos/as e burgueses/as, portanto, não é universal. Em muitas outras
culturas não existe o gênero, nem sequer as categorias de homens e mulheres. Um
exemplo disso é o que explica Oyeronke Oyewumi em seu texto “La invención de las
mujeres” na sociedade iorubá do sudoeste da Nigéria. O gênero não existia nessas
sociedades antes do contato com o Ocidente, foi imposto através da colonização
europeia.

[DSR]: Acredita que há uma diferença entre tradução feminina e tradução


feminista?

[OC]: Sem dúvida. O feminino é uma qualidade resultante da diferenciação que traz
consigo a heterossexualidade que se assume que as mulheres têm, o que é um erro,
pois os homens também podem ter qualidades que se assumem como femininas. Ao
final, são cosntruções sociais. Uma tradução feminista implica uma postura política,
embora isso também seja problemático porque não existe só um tipo de tradução
feminista. Tudo depende de em que corrente do feminismo a tradução se inscreve.

[DRS]: Qual seria a importância da tradução de teorias feministas no mundo


242 contemporâneo?

[OC]: Creio que muitos feminismos têm contribuído para complexificar as análises
das relações sociais. Há feminismos, como o feminismo negro, o feminismo decolonial
que permitem contextualizar a situação de grupos que não são afetados somente pelo
gênero, mas também pela raça, classe, sexualidade, geopolítica de forma imbricada
segundo contextos específicos. A tradução dessas teorias é importante precisamente
para não se generalizar nem universalizar as experiências, o que tem sido o erro do
feminismo hegemônico, que tem sido branco em suas teorias e contextos e que só
toma como centro de análise o gênero desde as experiências das mulheres brancas,
geralmente do Norte.

[DSR]: Qual a sua opinião sobre tradução e ativismo (intelectual ou não)?

[OC]: Creio que é fundamental para poder fortalecer as coalizões transnacionais. Os e


as ativistas devemos fazer tradução de obras e propostas que nos ajudem a compreender
melhor a complexidade das relações sociais. Considero importante traduzir não só as
obras com uma visão crítica do Norte para o Sul, mas do Sul para o Norte. Por exemplo,
temos conhecido as produções das feministas afro-norte-americanas porque têm sido
mais traduzidas que as que nós afrolatinas e afrocaribenhas temos produzido, e isso
se deve ao fato de os Estados Unidos continuarem sendo um centro privilegiado do
saber, o que corresponde à geopolítica do conhecimento, ainda que parta de grupos

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subalternos. É preciso que conheçam nossas propostas no Norte, como uma forma de
descolonizar o saber.

[DSR]: A circulação de ideias feministas por meio de tradução incentiva a


emancipação de outros grupos de mulheres?

[OC]: Sem dúvida. E não só de mulheres, mas de outros grupos subalternizados. Na


medida em que conhecemos as experiências de outros grupos em muitas latitudes,
isso ajuda a ter uma compreensão melhor das experiências diversas, e também das
lutas e resistências que se fazem em muitos lugares, o que contribui para a coalização
transnacional, como disse antes.

[DSR]: Concorda que só mulheres brancas podem traduzir mulheres brancas e


só mulheres negras podem traduzir mulheres negras?

[OC]: Não. Considero que, embora nós mulheres negras devamos fazer mais traduções
de outras mulheres negras, não se trata de essencializar este exercício. Existem
pensamentos, teorias, conceitos tanto de mulheres negras e mulheres brancas que
são críticos e interessantes para nossos projetos políticos e que é importante traduzir.
O que creio é que as mulheres brancas têm maior acesso e privilégio e muitas vezes
tomam as experiências das mulheres negras como meros testemunhos ou matérias
primas para seus créditos acadêmicos, por isso é importante que as mulheres afro- 243
descendentes e indígenas façamos tradução da produção de nossa companheiras para
evitar a utilização e a instrumentalização de nossas experiências e pensamentos.

[DSR]: Acredita que homens (feministas ou não) são sensíveis e estão aptos
para traduzir textos femininos e feministas? Quais seriam os desafios e as
potencialidades envolvidas neste caso?

[OC]: Minha resposta a esta pergunta é semelhante à da pergunta anterior. Depende


de quais homens. Há homens que tem privilégios de raça, classe, sexualidade,
geopolítico, mas há outros que não, como a maioria dos homens de origem africana e
indígena de nosso continente, e nesse sentido podem ser nossos aliados, sobretudo se
tiverem posições políticas parecidas às nossas. O importante é saber qual é a intensão
da tradução que eles têm.

[DSR]: Existiriam, em sua opinião, agendas feministas compatíveis com


estruturas de publicação editorial? Como se poderia buscar uma igualdade de
gênero neste campo?

[OC]: Creio que existem políticas editoriais feministas diversas. Não há uma só linha
editorial e não creio que todas se limitem a buscar a igualdade de gênero. Há propostas

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feministas que são antirracistas, decoloniais, como existem outras, diria que a maioria,
que não são.

[DSR]: Na história da tradução são poucas as tradutoras e intérpretes mulheres


conhecidas, sobretudo negras? Conhece alguns nomes? Poderia nos falar
sobre elas?

[OC]: Creio que há muito poucas, sobretudo negras e africanas. Aquelas que temos
feito traduções, fazemos desde o ativismo, não como parte de um exercício profissional.

[DSR]: Haveria por acaso, em sua opinião, uma “culpa da tradução” por haver
mais teoria feminista branca difundida no mundo?

[OC]: Creio que não se trata de “culpa da tradução”, mas das possibilidades e do
acesso. A maioria das mulheres negras, afros, indígenas de nosso continente não
têm suficiente dinheiro, nem tempo, para priorizar a tradução de textos. Também
não existem muitas editoras interessadas em traduzir suas obras. Acredito, bem mais,
que é uma questão estrutural que tem a ver com a colonialidade do saber, embora,
felizmente, cada vez mais algumas de nós entendem a importância de traduzir textos
das pessoas negras e indígenas para dar a conhecer seus pensamentos e lutas.

244 [DSR]: A tradução pode contribuir para a renovação da literatura canônica


feminista nas diferentes áreas das ciências humanas?

[OC]: Sem dúvida. Sobretudo se forem traduções das obras das pessoas subalternizadas.
É o que vai contribuir para decolonizar o saber feminista e das ciências humanas em
nível geral.

[DSR]: Conhece projetos de tradução feminista não hegemônicos? Em caso


afirmativo, poderia nos dizer quais e como funcionam?

[OC]: Um deles é o que estamos fazendo no GLEFAS, a partir de nossa editora en la


frontera, o que tem feito Brecha Lésbica. As duas são editoras independentes.

[DSR]: Que conselhos daria para uma linguagem (tradutória) menos sexista?

[OC]: Buscar maneiras de escrita que não reflitam a ideologia da diferença sexual, o
binarismo de gênero, mas também é preciso fazer isso desde uma postura pós-colonial,
o que significa evitar categorias, conceitos, palavras racistas, coloniais, heterossexuais
e sobretudo que seja uma tradução apegada aos significados de quem produz e não
uma substituição de palavras e conceitos ocidentais. A linguagem também é política.

[DSR]: Qual seria uma boa metáfora para a tradução feminista (negra)?

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[OC]: A amefricanidade de Lélia Gonzalez.

[DSR]: É possível ensinar a traduzir o feminino ou a fazer uma tradução


feminista?

[OC]: Sim, mas tudo depende de que tipo de feminismo. Nem todos são iguais, e
uma tradução pode ser feminista, mas pode ser bastante racista. Creio que é possível
desenvolver metodologias que permitam uma tradução decolonial.

245

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Thinking Negofeminism in Translation - Interview with Tomi
Adeaga
Dennys Silva-Reis [D.S-R.] Do you have any experience with feminist translation
practices? If you do, could you report?

Tomi Adeaga [T. A.] Over the years, I have found out and have been quite critical
of the way African feminine literature is being translated into German for example.
African women are often portrayed in Western media including the German media as
underdeveloped, helpless women suffering under patriarchal yoke. This perception
along with the xenophobic approach to the African continent has also affected the
way African and African diaspora feminist authors’ books are translated into German.

[D.S-R.] Do you believe that the profession of translator and interpreter is


sexualized? If you do, what could be in your opinion the causes and consequences
of that?

[T. A.] In a way I believe it is and this is irrespective of the translator and interpreter’s
race. This is because most authors already feel that they are much more important
than the translator/interpreter. They even become more aggressive when they see
that they are dealing with feminist translators/interpreters. But the point they are 246
missing is that the translator is the one that unlocks the doors of foreign languages
and cultures to them. Also, they have a symbiotic relationship, which means that one
cannot exist without the other. They therefore have to respect each other’s work.

A third party in this is also the publisher. The publisher is often the one
who looks for and engages the services of the translator. However, if there is lack of
collaboration between them, which happens if the author is unable to work with the
female translator and the book is nevertheless translated and published, it may have
to be taken off the market.

Tomi Adeaga
Professor Tomi Adeaga teaches African literature at the Department of African Studies, Faculty of
Philological and Cultural Studies of the University of Vienna, Austria. She is the author of Translating
and Publishing African Language(s) and Literature(s): Examples from Nigeria, Ghana and Germany
(2006). She has published an article called “Problems of Translating two Nigerian Novels into German”
In: Acta Scientarum Journal of Language and Culture, Vol. 30, No. 1, (2008). She translated Olympe
Bhêly – Quénum’s C’était à Tigony into As She Was Discovering Tigony (2017). Her areas of interest
include African literature studies, African Diaspora and transnational studies, translation studies as
well as Afro-European studies. She has gathered experiences as the founding secretary of the Translation
Caucus of the African Literature Association (TRACALA), the African Literature Association Executive
Council, and a host of others.
Dennys Silva-Reis
PhD in Literature from the Universidade de Brasília (UnB). E-mail: reisdennys@gmail.com

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[D.S-R.] Do you believe there is a connection between translation (cultural and
discursive) and gender?

[T. A.] Yes, there is a connection between them, especially if the author is a feminine
author who is trying to enunciate the dynamics of feminism in her culture and the
foreign translator tries to diminish it because it does not conform with his and his
society’s notion of the author’s society.

[D.S-R.] In your opinion, to which extent (if any) the notion of gender of one
given culture could be translated into another given culture?

[T. A.] I have always strongly believed that translators do not just translate an author’s
book, but they also translate her culture. If the translator does not take the time to
inform himself on the culture from which the author’s work has been written, it may
lead to false translations. This is the reason why some dedicated publishers send their
translators not just to talk to the author but also to visit society that produced the author.
It helps to reduce or minimize the possibilities of intercultural misunderstandings.

[D.S-R.] Is there, in your opinion, a difference between feminine translation


and feminist translation?

247 [T. A.] There is a difference between feminine translation and feminist translation. If I
were to use the African example, I would say feminine translators, irrespective of their
gender, are those who pay close attention to the source text during the translation
process. Feminist translators, which have been, based on my own experience, mainly
Western translators. They are those who believe that they know what the author is
thinking and feel the need to change the contents of the source text.

[D.S-R.] Which would be the importance of translating feminist theories in the


contemporary world?

[T. A.] There is a great importance of translating diverse feminist theories in the
contemporary world because it allows the readers to see that there is no such thing as
one size fits it all for feminist theories. What may be the norm in one feminist society
may be a taboo in another society.

[D.S-R.] What is your opinion about translation and activism (intellectual or


other)?

[T. A.] Translation and activism go hand in hand for several reasons. One of the key
reasons is that translation has not been taken as seriously as it should be over the last
few decades. Despite the fact that translation theories have been developed over the
last few centuries, translated books are still not perceived in the same light as original

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books. This is where activism comes in. A translator must play an active role in the
promotion of the work he or she has translated so as to ensure that they do not collect
dust on the bookstore shelves.

[D.S-R.] Does the circulation of feminist ideas through translation impel the
emancipation of other groups of women?

[T. A.] I would not say so because it all depends on the kind of activities that these
other women’s groups are engaged in.

[D.S-R.] Do you agree that only white women can translate white women and
only black women can translate black women?

[T. A.] Definitely wrong. Everything depends on how good the translator is, irrespective
of her race and even gender.

[D.S-R.] Do you believe that men (feminist or not) have the sensibility and
aptitude to translate feminine and feminist texts? What would be the challenges
and the potentialities involved in this case?

[T. A.] Yes, I do believe that men, irrespective of their race and feminist believes have
the sensibility and aptitude to successfully translate feminine and feminist texts. The
248
challenges involved in this are such that they have to be willing and ready to work with
the texts and the author, if she is available. The potentialities of such collaborations
are such that the finished production will be a reflection of both the author’s and the
translator’s joint endeavor.

[D.S-R.] Are there, in your opinion, feminist agendas compatible with editorial
policies and structures? How to seek for some gender equity in this field?

[T. A.] In my opinion, I believe they are because there are more feminist writers of
African descent who are actively engaged in the field of translation and transnational
studies these days that cannot be overlooked. Gender equity within this framework is
thus easier to achieve today than it was in the 1960s as the field of African literature
was dominated by male authors.

[D.S-R.] In the history of translation few women translators and interpreters


are known, let alone black women. Do you know any names? Could you talk
about them?

[T. A.] There are indeed fewer women translators and interpreters because women
needed to catch up with their male counterparts. In terms of African women, which
as you must know is not just about sub-Saharan African women, we also have female

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translators and interpreters from the Maghreb countries: Tunisia, Morocco, and
Algeria. There are also others from Egypt. One black translator stands out and her
name is Wangui wa Goro, a veteran Kenyan translator who translated the Kenyan
author, Ngugi wa Thiong’o’s Matigari from Kikuyu into English almost thirty years
ago. She has been at the forefront of promoting African language translations both on
the African continent and in the African diaspora.

[D.S-R.] In your opinion, whose is the “guilt” (if any) for the existence of more
translations of white feminist theory divulged around the world?

[T. A.] I put the blame on colonialism in most parts of the African continent. The
adoption of the former colonial languages in most parts of the former colonized
African countries stunted the growth of translation in most parts of the African
continent. Apart from East Africa where the first post-independent president of
Tanzania, Mwalimu Julius Nyerere installed Kiswahili as the national language in
Tanzania, which is also the mother tongue in Kenya, the lingua franca in Burundi,
Uganda, the Eastern part of the Democratic Republic of Congo, and Rwanda; other
parts of postcolonial Africa have not been that lucky. A large number of the local
languages do not have written traditions and therefore, this has retarded the growth
of translations done by African women.

249 [D.S-R.] Can translation contribute to the revival of canonical feminist


literature in the fields of humanities?

[T. A.] Yes, it can. If there are more African women and women of color translating
books written by our foremothers in particular and the rest of the world in general,
then it will contribute to the revival of feminist literature as a whole.

[D.S-R.] Do you have knowledge about any projects of non-hegemonic feminist


translation? If you do, could you please tell us which they are and how they
function?

[T. A.] No, I am not aware of any. This is due to the fact that given the very small pool
of African women and women of color translators and interpreters, they mainly work
with translators and interpreters from all over the world.

[D.S-R.] In your opinion, could translation projects contribute to synergies


involving nationalism and feminism simultaneously?

[T. A.] Yes, it is possible, at least with female African translators and interpreters. This
is in part because African feminists work with grassroots women and when it is time
to come together for a female cause, it makes easier to work together and collaborate
on various issues.

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[D.S-R.] What would you suggest to achieve a less sexist language in translation?

[T. A.] Female translators tend to be quite sensitive to the usage of sexist language in
the source language. It always helps to work with the author (if available) to minimize
the use of sexist language in the target language.

[D.S-R.] Do you believe it is possible to identify some textual typologies related


to gender? If you do, in what way? If you don’t, why not?

[T. A.] From my experience in reading narratives on the African people written by
Western, or more specifically former colonists, there is a pattern in the way black
gender is portrayed that is different from the way blacks portray themselves.

[D.S-R.] What could be a good metaphor for (black) feminist translation?

[T. A.] A good metaphor should be the one used by the African feminist theorist,
Obioma Nnaemeka called: NEGOFEMINISM. That is No- Ego feminist translation.

[D.S-R.] Is it possible to learn how to translate feminism or how to do a feminist


translation?

[T. A.] Apart from the fact that the source text dictates the way the translation is
250
carried out, one can also translate feminism by being sensitive to the implications of
the words chosen during the translation process.

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Pensar o Nego-Feminismo na Tradução – Entrevista com Tomi
Adeaga1
Dennys Silva-Reis [DSR]: Tem alguma experiência com práticas tradutórias
feministas? Se sim, poderia relatá-la?

Tomi Adeaga [TA]: Ao longo dos anos, tenho percebido e criticado bastante o modo
como a literatura feminina africana é traduzida, por exemplo, em alemão. As mulheres
africanas são frequentemente retratadas na mídia ocidental, incluindo a alemã, como
subdesenvolvidas, desamparadas, que sofrem o jugo do patriarcado. Essa percepção,
junto com a abordagem xenófoba do continente africano, também tem afetado o modo
como os livros de africanos e da diáspora feminista africana são traduzidos em alemão.

[DSR]: Acredita que a profissão de tradutor e intérprete é sexualizada? Caso


afirmativo, quais poderiam ser em sua opinião as causas e as consequências
disso?

[TA]: De certo modo acredito, e isso é indiferente à raça do tradutor ou intérprete.


É porque a maioria dos autores já sente que são muito mais importantes do que o
tradutor/intérprete. E se tornam ainda mais agressivos quando veem que estão lidando
com tradutoras/intérpretes feministas. Mas o que deixam de ver é que o tradutor 251
destrava as portas das línguas e culturas estrangeiras para eles. De igual modo, eles
têm uma relação simbiótica, o que significa que um não existe sem o outro. É preciso
portanto que um respeite o trabalho do outro.

Uma terceira parte da situação é também o editor. O editor é com frequência


aquele que busca e contrata os serviços do tradutor. No entanto, se houver uma falta
de colaboração entre eles, o que ocorre se o autor for incapaz de trabalhar com uma
tradutora mulher e o livro ainda assim for traduzido e publicado, pode ser necessário
retirá-lo do mercado.

1 Tradução Marcos Bagno (Universidade de Brasília – UnB).

Tomi Adeaga
A Profa. Tomi Adeaga ensina literatura africana no Departamento de Estudos Africanos, na Faculdade
de Estudos Filológicos e Culturais da Universidade de Viena, Áustria. É autora de Translating and
Publishing African Language(s) and Literature(s): Examples from Nigeria, Ghana and Germany (2006).
Publicou um artigo intitulado “Problems of Translating two Nigerian Novels into German” in Acta
Scientarum Journal of Language and Culture, v. 30, n. 1 (2008). Traduziu a obra C’était à Tigony, de
Olympe Bhêly-Quénum, como As She Was Discovering Tigony (2017). Suas áreas de interesse incluem
estudos de literatura africana, diáspora africana e estudos transnacionais, estudos da tradução bem
como estudos afro-europeus. Tem acumulado experiência como secretária fundadora do Translation
Caucus of the African Literature Association (TRACALA), o African Literature Association Executive
Concuil, e vários outros.
Dennys Silva-Reis
Doutor em Literatura (Universidade de Brasília – UnB). E-mail: reisdennys@gmail.com

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[DSR]: Acredita haver uma conexão entre tradução (cultural e discursiva) e
gênero?

[TA]: Sim, existe uma conexão entre eles, especialmente se for uma autora que
está tentando enunciar as dinâmicas do feminismo em sua cultura e se o tradutor
estrangeiro tentar diminuir isso porque não se conforma com sua noção e a noção que
sua sociedade tem da sociedade da autora.

[DSR]: Em sua opinião, em que medida, se for o caso, a noção de gênero de uma
dada cultura poderia ser traduzida em outra dada cultura?

[TA]: Sempre acreditei firmemente que os tradutores não traduzem simplesmente o


livro de um autor, mas também traduzem sua cultura. Se o tradutor não se dispuser a
se informar sobre a cultura a partir da qual a obra do autor foi escrita, isso pode levar
a traduções falseadas. Por isso é que alguns editores sensíveis enviam seus tradutores
não só para conversar com o autor as também para visitar a sociedade que produziu
o autor. Isso ajuda a reduzir ou minimizar as possibilidades de mal-entendidos
interculturais.

[DSR]: Existe, em sua opinião, uma diferença entre tradução feminina e


tradução feminista?
252
[TA]: Existe uma diferença entre tradução feminina e tradução feminista. Para usar
o exemplo africano, eu diria que os tradutores femininos, não importa seu gênero
???, são os que prestam mais atenção ao texto fonte durante o processo tradutório.
Tradutores feministas, que têm sido, com base em minha própria experiência,
sobretudo tradutores ocidentais. São os que acreditam que sabem o que o autor está
pensando e sentem a necessidade de mudar os conteúdos do texto fonte.

[DSR]: Qual seria a importância de traduzir teorias feministas no mundo


contemporâneo?

[TA]: É muito importante traduzir diversas teorias feministas no mundo


contemporâneo porque isso permite aos leitores ver que não existe nada semelhante
a um modelo único para todas as teorias feministas. O que pode ser a norma numa
sociedade feminista pode ser tabu em outra sociedade.

[DSR]: Qual a sua opinião sobre tradução e ativismo (intelectual ou outro)?

[TA]: Tradução e ativismo vão de mãos dadas por diversas razões. Uma das razões
principais é que a tradução não tem sido levada tão a sério quanto deveria nas últimas
décadas. Embora as teorias da tradução tenham se desenvolvido nos últimos séculos,
os livros traduzidos a inda não são avaliados sob a mesma luz que os originais. É aí que

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entra o ativismo. Um/a tradutor/a desempenha um papel ativo na promoção da obra
que traduziu para garantir que não fique juntando poeira nas prateleiras das livrarias.

[DSR]: A circulação de ideias feministas por meio da tradução estimula a


emancipação de outros grupos de mulheres?

[TA]: Não diria isso, porque tudo depende do tipo de atividades em que esses outros
grupos de mulheres estão engajados.

[DSR]: Acredita que só mulheres brancas podem traduzir mulheres brancas e


só mulheres negras podem traduzir mulheres negras?

[TA]: Definitivamente não. Tudo depende da competência do/a tradutor/a,


independentemente de sua raça e até do gênero.

[DSR]: Acredita que há homens (feministas ou não) com sensibilidade e


aptidão para traduzir textos femininos e feministas? Quais seriam os desafios
e as potencialidades envolvidos neste caso?

[TA]: Sim, acredito que há homens, independentemente de raça e de crenças


feministas, com sensibilidade e aptidão necessárias para traduzir exitosamente textos
femininos e feministas. Os desafios envolvidos são o de estarem dispostos e prontos
253
para trabalhar com os textos e com a autora, se ela estiver disponível. As potencialidades
dessas colaborações são tantas que a produção final poderá ser um reflexo do esforço
conjunto do tradutor e da autora.

[DSR]: Existem, na sua opinião, agendas feministas compatíveis com políticas


e estruturas editoriais? Como buscar alguma igualdade de gênero no campo?

[TA]: Minha opinião é a de que existem, porque há mais escritoras feministas de


ascendência africana que estão ativamente comprometidas no campo da tradução
e dos estudos transnacionais hoje em dia que não podem ser desconsideradas. A
igualdade de gênero dentro desse contexto é portanto mais fácil de conquistar hoje
do que nos anos 1960, quando o campo da literatura africana era dominado por
autores homens.

[DSR]: Na história da tradução, poucas mulheres tradutoras e intérpretes são


conhecidas, muito menos mulheres negras. Conhece alguns nomes? Poderia
falar delas?

[TA]: Realmente, há menos mulheres tradutoras e intérpretes porque as mulheres


precisam vencer a concorrência com seus concorrentes masculinos. Em termos de
África que, como você sabe, inclui não apenas a África subsaariana, também temos

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tradutoras e intérpretes dos países do Maghreb: Tunísia, Marrocos e Argélia. Também
há outras do Egito. Uma tradutora negra se destaca e seu nome é Wangui wa Goro,
uma veterana tradutora queniana que traduziu o autor queniano Ngugi wa Thiong’o’
do kikuyu para o inglês há cerca de trinta anos. Ela tem estado na linha de frente da
promoção de traduções em línguas africanas no continente africano e na diáspora
africana.

[DSR]: Em sua opinião, de quem é a “culpa” (se existe alguma) pela existência
de mais traduções da teoria feminista branca divulgada mundo afora?

[TA]: Ponha a culpa no colonialismo na maior parte do continente africano. A adoção


das línguas dos ex-colonizadores na maior parte dos países africanos colonizados
impediu o crescimento da tradução na maior parte do continente. Com exceção da
África oriental, onde o primeiro presidente pós-independência da Tanzânia, Mwalimu
Julius Nyerere oficializou o suaíli como língua nacional do país, língua que também é
materna no Quênia, língua franca em Burundi, Uganda, na parte oriental da República
Democrática do Congo, e em Ruanda; outras partes da África pós-colonial não tiveram
essa sorte. Um grande número de línguas locais não têm tradições escritas e, portanto,
isso atrasou o crescimento de traduções feitas por mulheres africanas.

[DSR]: A tradução pode contribuir para a revivescência da literatura feminista


254 canônica no campo das humanidades?

[TA]: Sim, pode. Se houver mais mulheres africanas e mulheres negras traduzindo
livros escritos por nossas predecessoras, e o resto do mundo em geral, isso contribuirá
para a revivescência da literatura feminista como um todo.

[DSR]: Sabe de algum projeto de tradução de feministas não hegemônicas? Em


caso afirmativo, poderia nos dizer do que se trata e qual sua função?

[TA]: Não tenho conhecimento de nenhum. Isso se deve ao fato de que, devido ao
número reduzido de mulheres africanas e mulheres negras tradutoras e intérpretes,
elas trabalham principalmente com tradutores e intérpretes de todas as partes do
mundo.

[DSR]: Em sua opinião, projetos de tradução poderiam contribuir para sinergias


envolvendo nacionalismo e feminismo simultaneamente?

[TA]: Sim, é possível, ao menos com tradutoras e intérpretes africanas. Em parte


porque as feministas africanas trabalham com mulheres do povo e, quando se trata de
se agrupar por uma causa feminina, isso torna mais fácil trabalhar juntas e colaborar
em vários aspectos.

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[DSR]: O que sugeriria para alcançar uma língua menos sexista na tradução?

[TA]: As tradutoras tendem a ser bastante sensíveis ao uso de linguagem sexista na


língua fonte. Sempre ajuda trabalhar com o autor (quando possível) para minimizar o
uso de linguagem sexista na língua alvo.

[DSR]: Acredita ser possível identificar algumas tipologias textuais relacionadas


a gênero? Em caso afirmativo, de que modo? Em caso negativo, por que não?

[TA]: Pela minha experiência na leitura de narrativas do povo africano escritas por
ocidentais, ou mais especificamente por ex-colonizadores, existe um padrão no modo
como o gênero negro é retratado que é diferente do modo como os negros se retratam
a si mesmos.

[DSR]: Qual seria uma boa metáfora para a tradução feminista (negra)?

[TA]: Uma boa metáfora seria a usada pela teórica feminista africana Obioma
Nnaemeka: NEGOFEMINISMO, que é tradução NÃO-EGO feminista.

[DSR]: É possível aprender a traduzir o feminismo ou a fazer uma tradução


feminista?
255
[TA]: Além do fato de que o texto fonte dita modo como a tradução é empreendida,
também é possível traduzir o feminismo ficando sensível às implicações das palavras
escolhidas durante o processo tradutório.

ISSN: 1807 - 8214


Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 251-255

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