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tatiana nascimento1
De presenças e ausências
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tatiana nascimento, brasiliense, poeta, cantautora, editora na padê editorial (livros artesanais de autoras
negras/lgbtqi). publicou "lundu,", primeiro livro de poemas seus, em 2016. edita o blog traduzidas, de
tradução clandestina de autoras lgbtqi e/ou negras. doutora em estudos da tradução pela universidade federal
de santa catarina. professora voluntária na universidade de brasília, ministra a disciplina feminismos e teoria
cuíer. E-mail: palavrapreta@gmail.com
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Quando escrevia isso vivia em Florianópolis e estava muito marcada pela prática
de tortura conhecida como “farra do boi” (para mim, sadismo humano em nome de
“tradição”). Também me impressionavam os pastos de concentração em que vacas,
bois, bezerrxs ficavam expostas enquanto o dia do assassinato delas não chegava, e
ouvir no ônibus a caminho de casa comentários acerca do bucolismo da cidade – os
matadouros ficam escondidos. Essa menção importa porque uma prática epistêmica de
feminismo antirracista precisa pensar também o que significa, em termos de dominação
e colonização interespécie, a fronteira entre o que é humano e o que não é.
Em 2000, a Revista Estudos Feministas – REF publicou uma tradução da teórica
negra feminista Kia Lilly Caldwell chamada “Fronteiras da diferença: raça e mulher no
Brasil”. A tradução é anônima, e quem-traduziu escolheu o termo “mulheres não
brancas” para traduzir a expressão “women of color”, justificando sua decisão em uma
nota de tradução. Sendo uma tradutora lésbica negra, reflito sobre essa escolha
tradutória pensando nos limites e possibilidades de uma política de tradução feminista
efetivamente antirracista e anticolonial.
Barbara Godard escreveu em 1989 um texto muito inspirador para pensar
tradução feminista como um encontro radical de diferenças; para ela, discurso e
tradução feministas são propostas de reconstrução de subjetividades mal
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Chela Sandoval, teórica feminista lésbica de cor, conta essas dúvidas no contexto
de práticas e subjetividades feministas quando postas em contato no contexto de uma
conferência: “Iria então nossa potencial união ser designada ‘terceiro-mundista’, ‘de
cor’, ou nenhuma dessas? O grupo não chegou a nenhuma resolução final [...]”, e conta
ainda que nesse momento primevo dos encontros de várias mulheres de cor em que
esses questionamentos pipocavam, “[...] o que estava escondido se revelava, os medos
se dissipavam, os esterótipos eram confrontados, e as dores e visões mútuas eram
compartilhadas. Esses foram os processos necessários a nos ajudar a compreender quem
éramos juntas, a condição presente de nossas similitudes e diferenças, e quais poderiam
ser nossas táticas para a criação de um ‘feminismo’ mais saudável” (1981/2006, p. 464,
traduções minhas). Para Mohanty, o uso é variável, e politicamente contextual:
“reinvindicar identidades raciais baseadas em história, localização social e experiências
é sempre uma questão de análise e política coletivas” (MOHANTY, 1986/2003, p. 135,
tradução minha).
Esse detalhamento conceitual esboça minha costura textual de um chão teórico
desde as autoras que mais me acompanham aqui para caminhar entre as interconexões
de subjetividades de mulheres de cor e/ou de mulheres terceiromundistas que são
majoritariamente afrodescendentes, e de práticas políticas feministas pós-coloniais e/ou
terceiromundistas que dizem respeito à minha própria percepção subjetiva enquanto
lésbica negra afrodiaspórica e terceiromundista, marcada colonialmente e que me
traduzo em termos de flutuações na borrada fronteira racial em que me insiro (negra de
pele clara) e impasses na prática de tradução feminista (traduzir do inglês ao pb, mas
raramente o inverso).
Eu prefiro aqui usar “feminismo pós-colonial” a “feminismo terceiromundista”
porque quero olhar para o contexto da tradução do artigo de Caldwell a partir da
particularidade de ser um texto escrito por uma teórica negra afrodiaspórica que vive
“no centro”, escrevendo sobre “a periferia”, e sendo traduzida nessa “periferia” de uma
maneira específica. Em seu artigo, Caldwell vai comparar a inserção de raça como parte
das análises na produção feminista feita no Brasil e aquela feita em dois países da
América do Norte (EEUU e Canadá) e na Inglaterra. E além de notar essa ausência
significativa do tema nas produções locais, ela também critica a baixa tradução de
teóricas negras para o português brasileiro – pb:
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Ochy Curiel mesma usa “não brancas”, que não quero demonizar como a
versão malévola que “mulheres de cor” deve heroicamente apagar, mas a
contextualização que oferece ao termo aponta as nuances do que estava em disputa
na constituição e uso de dele. E parte do que estava em disputa era visibilizar mulheres
de cor, seja na autodefinição, seja nas produções teóricas (poéticas ou em prosa).
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De qualquer forma, o tradutor fez uma pesquisa, mesmo não a tendo detalhado
como Curiel faz; e sua justificativa explicita que entende o contexto de autodefinição a
que “women of color” remete. Mas mesmo assim defende que “é preferível” usar “não
brancas”, porque no Brasil, “de cor” “[...] popularmente se restringe a negras e mulatas
[...]”, e assim tentar manter uma especificidade do original. A especificidade do original
é que o termo tem uma história político-geográfica, étnica e racial que “não brancas”
não evoca, porque o campo semântico de “women of color” tem uma marca textual em
sua superfície, em sua letra, como diz uma teoria de tradução famosa, e “não brancas”
não dá conta dessa conjugação.
Não dá conta porque “não brancas” não existe, no português brasileiro, como
letra que evoque uma semântica relacionada a um contexto histórico, geográfico,
político, étnico e racial de disputas textuais e políticas de grupos feministas,
acadêmicos ou não, em torno de uma ideia de branquitude que deixa um “o
feminismo” planificado. Existem críticas brasileiras às práticas racistas em contextos
feministas (Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, Jurema Werneck, Denise Botelho, ou
eu mesma, Djamila Ribeiro, Jéssica Hipólito, entre outras), mas elas não são cunhadas
em termos de “não branquitude”, e sim de negritude, em termos de raça ou etnia. O
etnocentrismo de dar “cor local” apagou a pele do termo traduzido, seja na “a
especificidade” “daqui” ou “de lá”.
Assim é que funciona a outra incoerência argumentativa. A falta de
posicionamento nítido entre um projeto de tradução como domesticação e um
estrangeirizante fez com que a tradução soe fora de contexto, des-localizada, não se
referindo a nenhuma experiência concreta, efetiva, fora dos limites da própria
textualidade. Porque tenta apagar o estranhamento que “women of color” em uma
tradução justa traria ao texto, sugerindo um outro uso que não o “popular” do Brasil, e
tenta criar um equivalente inexistente, e logo ininteligível, no contexto das críticas feitas
a práticas racistas no feminismo no Brasil.
Além disso tudo, há também um outro ponto que me parece muito
questionável. A noção de que “de cor” é usado “popularmente” no Brasil para fazer
referência a “negras e mulatas”. Aqui lembro os escritos de Maria Nascimento no jornal
O Quilombo, com sua coluna Fala a Mulher voltada às “Patrícias de cor”, o movimento
negro nos anos 1940/1950: o uso de “de cor” aqui me parece mais próximo do uso de
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Como peles negras podem emergir embaixo da pesada máscara branca que um
termo aparentemente simples como não-cor carrega? A branquitude é tão eficiente que,
mesmo no contexto da produção e recepção desse texto de Caldwell e sua tradução, ela
passa em branco? Quem traduziu essas mulheres de cor? Se eu soubesse quem ele é, se
soubesse se é negro ou não negro, se é gay ou não gay, se é trans ou não trans, se eu
soubesse seu nome e seu email, teria feito essas perguntas primeiro, ao invés de
escrever todas essas palavras marcadas, ao invés de supor o que sabia, não sabia ou
preferiu não saber ao traduzir Caldwell? E se ele me dissesse que não sabia? O
privilégio da leviandade seria mais irresponsabilizável em tradução?
REFERÊNCIAS
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LORDE, Audre. Self-definition and my poetry. In: BYRD, Rudolph; COLE, Johnnetta
Betsch; GUY-SHEFTALL, Beverly (Ed.). I am your sister: collected and unpublished
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______. Under western eyes: feminist scholarship and colonial discourses (1986/2003).
In: ______. Feminism without borders: decolonizing theory, practicing solidarity.
Durham: Duke, 2003.
MORAGA, Cherry; ANZALDÚA, Gloria (Ed.). This bridge called my back: writings
by radical women of color. Latham: Kitchen Table Women of Color Press, 1981.
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