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Nº 153 - Novembro 2018 - R$ 6,00 - www.suplementopernambuco.com.

br

HANA LUZIA

A amizade como força política em tempos de


crise, no clássico de Lygia Fagundes Telles

MACHADO POR HELOISA STARLING | PATRICIA HILL COLLINS | LITERATURA RUSSA NA ERA VARGAS
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PERNAMBUCO, NOVEMBRO 2018

C A RTA DOS E DI TOR E S E X PE DI E N T E


GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO
Governador
Paulo Henrique Saraiva Câmara
uando esta edição do Pernambuco diferentes como potência do tecido social brasileiro.
chegar às suas mãos, o Brasil terá Por meio da história de três jovens mulheres muito Vice-governador
Raul Henry
definido seu próximo presidente. distintas e unidas pela mesma geografia, Lygia nos
Construímos um jornal de literatura legou uma reflexão de alta voltagem política: em tempos Secretário da Casa Civil
André Wilson de Queiroz Campos
que busca sintonia com o tempo de crise, que possamos confiar na solidez das amizades. Os textos
presente, que discute literatura à de Ana Rüsche, Eric Becker e Ricardo Lísias deixam COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE
luz de questões do contemporâneo. Somos um jornal isso claro. Por fim, o crítico literário e escritor Silviano Presidente
do nosso tempo, com projeção para o futuro. Somos Santiago nos mostra o peso da revolta e da disciplina Ricardo Leitão
conhecidos pela pluralidade. E assim continuaremos. de Lygia em sua posição política e em sua literatura. Diretor de Produção e Edição
O momento exige que reafirmemos nossa proposta A isso se somam o artigo de Heloisa Starling, Ricardo Melo
e que nos posicionemos, também a partir de nossas em que se pensa um conto de Machado de Diretor Administrativo e Financeiro
escolhas editoriais, contra a liberalidade para Assis; a entrevista da socióloga e feminista negra Bráulio Meneses
atentados a populações fragilizadas, contra a ausência Patricia Hill Collins; a resenha da clássica HQ Fun
de base crítica comum para o debate público e diante Home; os bastidores do romance de Alexandre
de uma crise em que se privilegia a verossimilhança Vidal Porto (este de forma diferente por falar em
(o “parecer ser verdade”, em linhas gerais) à verdade assumir a homossexualidade). Por outro lado, há
Uma publicação da Cepe Editora
(“o fato”, também em linhas gerais). A isso se somam textos que suavizam o tom da edição, discutindo Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
apelos nacionalistas, discursos anticorrupção rasos outras nuances presentes no campo literário. Pernambuco – CEP: 50100-140
e incoerentes, e também o culto à personalidade. Esperamos que nossas leitoras e leitores estejam Redação: (81) 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
Assim, nada melhor que voltar, diante desse conosco neste momento crítico da história republicana
SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL
contexto, para As meninas, livro lançado por Lygia do nosso país. Luiz Arrais
Fagundes Telles há 45 anos e que já pautava a
EDITOR
necessidade de pensarmos a solidariedade entre pessoas Boa leitura a todas e todos! Schneider Carpeggiani
EDITOR ASSISTENTE
Igor Gomes

COL A BOR A M N E STA E DIÇ ÃO DIAGRAMAÇÃO E ARTE


Karina Freitas, Janio Santos, Luísa Vasconcelos
e Maria Júlia Moreira
Carol Almeida, Edma de Góis, Heloisa Murgel TRATAMENTO DE IMAGEM
crítica de cinema jornalista e pós- Starling, Agelson Soares
e quadrinhos, doutoranda historiadora e REVISÃO
doutoranda em em Literatura e politóloga, autora Maria Helena Pôrto
Comunicação (UFPE), Cultura (UNEB) de Ser republicano
COLUNISTAS
foi editora-assistente no Brasil Colônia Everardo Norões, José Castello e Wellington de Melo
do Pernambuco
PRODUÇÃO GRÁFICA
Júlio Gonçalves, Eliseu Souza, Márcio Roberto, Joselma Firmino
Alexandre Vidal Porto, escritor e diplomata; Ana Rüsche, pesquisadora, escritora e poeta; Cristhiano Aguiar, pesquisador e e Sóstenes Fernandes
professor (Universidade Mackenzie); Danielle de Luna, professora de literatura norte-americana (UFPB); Eric Becker, tradutor MARKETING E VENDAS
e pesquisador; Hana Luzia, designer, autora da capa desta edição; Ismar Tirelli Neto, poeta, tradutor e roteirista; Odomiro Igor Burgos, Rafael Chagas e Rosana Galvão
Fonseca Filho, tradutor, historiador e doutor em Literatura Russa (USP); Priscilla Campos, jornalista e mestra em Teoria E-mail: marketing@cepe.com.br
Literária (UFPE); Ricardo Lísias, escritor e pesquisador; Silviano Santiago, crítico literário, escritor, poeta e ensaísta Telefone: (81) 3183.2756
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PERNAMBUCO, NOVEMBRO 2018

BASTIDORES

De quando a
MARIA JÚLIA MOREIRA

ficção é um
jogo árduo
Tempo, idioma e questões
autobiográficas marcam o
novo romance de escritor
paulista a ser lançado neste
mês, em que trata de um
homossexual reprimido

Experimentei um desgaste emocional que não tinha


Alexandre Vidal Porto enfrentado nos meus livros anteriores. Constantino
e eu nascemos no mesmo ano. Ele era uma pessoa
Comecei a escrever meu terceiro romance, Cloro, que eu poderia ter sido, mas não fui.
em 2014, quando me mudei para São Paulo depois No entanto, todos os personagens do romance têm
de alguns anos vivendo em Tóquio. elementos autobiográficos meus nem sempre agra-
Fazia tempo que eu queria escrever sobre auto- dáveis de encarar. Muitas vezes, enquanto escrevia,
controle. Acho que o livro – cuja publicação pela era como se eu incorporasse o personagem e, depois
Companhia das Letras está prevista para este mês – é de compor uma passagem, me sentia tão exaurido
uma tentativa nesse sentido. Nele, conto a história que tinha de tirar uma soneca para me recuperar.
de Constantino Curtis, um homem de 50 anos que A terceira peculiaridade do Cloro em relação aos
morreu faz 10 horas em condições vexatórias. Cons- meus outros livros foi seu processo de edição.
tantino é um homossexual reprimido que se casou Como escritor, gosto de desenvolver uma relação
com a namorada de adolescência. É pai de dois filhos próxima com o editor. Meu processo criativo precisa
adultos e leva uma vida bem-estabelecida em São e se beneficia muito de que se estabeleça uma relação
Paulo. Depois de uma tragédia familiar inesperada, é de troca e cumplicidade. Tenho de ficar amigo, “cru-
confrontado com sua homossexualidade, passa a le- zar o santo”. Do contrário, não funciona para mim.
var uma vida dupla e apaixona-se por outro homem. Por contingências do destino, Cloro foi editado por
A história é contada em duas partes. Na primeira, três pessoas diferentes. Ou seja, tive de estabelecer
intitulada “Eu”, Constantino narra a um interlocutor essa relação íntima três vezes, de formas distintas.
imaginário episódios definidores de sua vida – da Podia ter dado errado, mas deu certo.
infância até a morte – enquanto espera no limbo, o Embora essas mudanças tenham tornado o pro-
que lhe caberá no pós-morte, Na segunda, intitulada cesso editorial mais trabalhoso para mim, porque
“Os outros”, sete amigos e familiares de Constantino tive que desenvolver três diálogos diferentes sobre
comentam sobre a relação que tiveram com ele e a o livro, o resultado é um texto depurado por três vi-
reação que tiveram diante da notícia de sua morte. sões editoriais distintas, que acabaram se tornando
O livro tem 31 capítulos curtos e um epílogo; 150 complementares. Cloro se beneficiou disso.
páginas no total. Mas, apesar de ter sido escrito sem constrangi-
Em relação aos meus livros anteriores (Matias na mentos de tempo, de falar de experiências que eu
cidade e Sergio Y. vai à América), Cloro tem pelo menos conhecia e de contar com a ajuda de três grandes
três peculiaridades importantes. editores, Cloro foi o livro meu livro mais árduo, mais
A primeira é que, dos meus três livros, ele é o sofrido, o que demorou mais para sair.
único inteiramente escrito no Brasil. Os anteriores É também o de que eu gosto mais, porque foi o
foram sempre escritos enquanto eu vivia no exterior, que mais me desafiou como escritor. Acho que Cloro
trabalhando como diplomata, tendo de me dividir me tornou um autor melhor. Começou como um
entre a literatura e o Itamaraty, quase sem tempo conto curto. Teve várias fases e passou por diversas
para escrever. Além disso, esses livros nasceram e concepções. Exigiu de mim um esforço de sinceri-
se desenvolveram cercados por línguas estrangeiras. dade total sobre questões que eu não sabia se estaria
Serviam, muitas vezes, como meu refúgio linguístico disposto ou preparado para enfrentar.
numa realidade dominada por idiomas estranhos Contei muito com a ajuda do Leandro Sarmatz
(espanhol e inglês no caso de Matias; japonês no para identificar essas questões inescapáveis, e com
caso de Sergio Y.) a da Rita Mattar para ajudar a estruturá-las. A Luara
Cloro, ao contrário, foi escrito no Brasil. Eu tinha França pegou o processo no final, mas foi instru-
entrado em uma longa licença sem vencimentos mental para dar um sentido ao todo.
do serviço público e, além de uma coluna semanal Mal comparando, foi como passar para uma nova
para a Folha de S.Paulo, o livro era minha única res- fase do video game, com desafios assustadores para
ponsabilidade. Foi a primeira vez que escrevi sem mim. Acho que sobrevivi. Continuarei jogando. Se-
constrangimentos de tempo. guirei em frente.
Além disso, foi escrito comigo ouvindo português
na rua, o tempo todo. Para mim, isso fez diferença em
como o livro soa. Em comparação com meus outros
dois, Cloro tem um ritmo mais fluido, com frases mais O LIVRO
longas. Acho que soa mais coloquial. Cloro
A segunda peculiaridade do livro é que se trata Editora Companhia das Letras
de meu trabalho mais autobiográfico. Nunca havia Páginas 152
escrito sobre um homem homossexual reprimido Preço R$ 49,90
– coisa que eu, por quase três décadas, fui. Contar
essa história me obrigou a revisitar várias experi-
ências intensas de minha infância, por exemplo.
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ARTIGO

Ideias sobre No início da década de 1870, qualquer pessoa que


circulasse pelo arruamento irregular daquele su-
búrbio carioca dificilmente iria se deixar seduzir – a

a República
chácara não impressionava ninguém. Tinha, talvez,
quintal de terra, um arremedo de pomar, canteiros
de horta, alpendre ao lado com gradil de ferro. No
casarão já velho, vários cômodos provavelmente
permaneciam vazios e fechados. Mas, uma vez lá

das aranhas
dentro, a chácara abria ao visitante seus segredos
e bruxarias. O proprietário, um cônego ambicioso
e pedante, num dia de sorte, se deparou com uma
espécie rara de aranhas, capaz do uso da fala.
Aranhas, em geral, levam uma existência insípida
Entre a ficção e a História, e medíocre, porém virtuosa: fiam, tecem e morrem.
Essa era uma espécie nova: grande dorso cor de

um conto de Machado de sangue atravessado por listras azuis, movimentos


rápidos, alegres, doidas por música. E ingênuas ao

Assis pensa a nossa política


ponto de se deixarem impressionar pelas roupas, pela
estatura e pela flauta de um cônego cuja aparição
provocou impacto considerável na colônia: egresso,
quem sabe, de algum Olimpo que se precipitara das
Heloisa Murgel Starling estrelas para intervir nos seus assuntos e beneficiá-
-las de alguma forma. A intenção do cônego era
outra: fazer uma revolução na ciência aliando-se à
teologia e manipulando a fé das aranhas para alcançar
a glória do conhecimento e do mando. O caminho
mais fácil e curto que ele encontrou para imitar a
potência de Deus e sobrepujar os rivais em prestígio
e poder incluía impor à comunidade das aranhas
uma forma de governo – decidiu-se pela República.
Machado de Assis publicou A sereníssima República
(conferência do cônego Vargas) no finalzinho do ano de
1882; está incluída entre os contos de Papeis avulsos.
Não sabemos se Machado conhecia um poema satí-
rico publicado anonimamente, em 1705, sob o título
A colmeia ruidosa; ou canalhas feitos honestos por Bernard de
Mandeville (1670-1733), um médico holandês radi-
cado na Inglaterra. Dez anos depois, o poema ganhou
roupa nova, foi rebatizado de A fábula das abelhas; ou ví-
cios privados, benefícios públicos e, quem sabe, essa versão
chegou às suas mãos. Ou talvez não. Seja como for,
uma coisa é certa: nos textos, seus autores fazem uso
da ironia como estratégia da linguagem para refletir
sobre a sociedade desenhada pelo horizonte de sua
época. E ambos tratam de assuntos que continuam
tendo algo a dizer a nós, hoje, como tinham a dizer,
em outro tempo e em outra circunstância, aos seus
contemporâneos.
Na origem grega da palavra, ironia é eironein, um
tropo retórico e uma técnica de discurso. Permite
ao autor interrogar um determinado tema dizendo
sobre ele menos do que aquilo que realmente pensa
ou fingindo ignorância sobre o assunto que foi apre-
sentado. Sua força política reside exatamente nisso:
a ironia remove a nossa certeza de que as palavras
significam apenas aquilo que elas dizem. No poe-
ma de Mandeville, o excesso de moralidade cívica
imposto a abelhas, na sua origem, autoindulgentes,
viciosas e trapaceiras, levou a uma colmeia abúlica
e estagnada. No conto de Machado, uma colônia de
aranhas operosas, eficientes e pragmáticas – ara-
nhas bem mais afeitas à rotina do que à aventura
– forçada a adotar um governo prescrito de cima e
de fora produziu uma república oligárquica, pouco
democrática e corrupta.
A sereníssima República é uma sátira feroz da socie-
dade brasileira tal como Machado a percebia. Ao
final do século XIX, o significado de “República”
foi remodelado entre nós a partir de duas pontas.
A primeira, por força do conteúdo produzido pelas
novíssimas doutrinas em voga desde a década de
1860: positivismo, evolucionismo, biologismo. Um
típico erudito da época, como o cônego Vargas, não
cultuava a ciência à-toa em sua chácara suburbana,
com fé quase sagrada. Ele simplesmente enxergava
na ideia de “República” uma espécie de ferramenta
política capaz de fornecer aos brasileiros a confiança
no potencial da ciência para equacionar os problemas
sociais e políticos do país.
É fácil identificar a segunda ponta desse processo
de remodelagem no Brasil Oitocentista. O modelo de
Veneza, escolhido por Machado, indicava a origem de
determinadas estruturas de poder favoráveis a uma
nova maneira de conceber a República entre as elites
brasileiras ao final do século XIX. Veneza conseguiu
a proeza de restringir a participação política e o pro-
vimento dos cargos públicos a um corpo numeroso,
mas limitado, de antigas famílias. Como consequên-
cia, a possibilidade de inclusão de novos personagens
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KARINA FREITAS

aos direitos da cidadania permaneceu fechada entre sentimento da crise e da incerteza política e o tempo
os membros dessas famílias tornando-se, com o cronológico parece estar se desconjuntando. Seu
tempo, praticamente um atributo hereditário – e alvo mais visível orienta-se de fato pela futilidade
esse foi um dos principais critérios utilizados por das alternativas eleitorais em um sistema político de
Maquiavel para desconfiar de Veneza e definir seu participação reduzida. Contudo, a narrativa segue
modelo de República como governo stretto, vale dizer, em frente e traz novo argumento: onde os direitos
de cidadania restrita. O resultado dessa engenharia políticos da cidadania estão restritos àqueles que as
constitucional conciliou um sistema eleitoral com elites julgam poder confiar sua preservação, o voto
uma forma de governo fortemente aristocrático – por pode ser torcido pelas chances de manipulação dos
obra dessa engenharia, Veneza forjou para si mesma resultados – aliás, como acontecia com frequência
o epíteto famoso de República Sereníssima. no país ao final do século XIX.
No conto de Machado, a base do sistema repu- Para Machado, portanto, o termo corrupção é mo-
blicano estava integralmente sustentada pelo ato tivo de preocupação diante da baixa qualidade da
eleitoral. Essa base tinha origem na antiga Veneza, cidadania – e o combate à sua prática não se resolve
servia como iniciação dos filhos da aristocracia no numa perspectiva moralista. Na República instalada
serviço do Estado e, entre as aranhas, era de exe- na chácara do cônego Vargas, havia quem se candi-
cução simples: metiam-se bolas com os nomes dos datasse pela necessidade de lucrar ou pela vontade
candidatos que provaram certas qualidades para o de esticar as margens do poder em benefício próprio
exercício da cidadania num saco caprichosamente e a votação estava viciada, mas as aranhas se limi-
tecido com os melhores fios e extraia-se anualmente taram a reduzir o político ao que ele não é – a moral
certo número de eleitos aptos desde então para as individual, a alternativa salvacionista. Denúncias
carreiras públicas. Machado podia até ter um olho foram feitas, a forma do saco eleitoral passou a ser
posto em Veneza e o outro espiando a chácara do modificada pacientemente a cada votação. Mas a
cônego Vargas, mas ele estava de fato investigando o coisa pública não se recuperou; ela continuou inexo-
contexto de passagem da Monarquia para a República ravelmente concentrada no mesmo padrão anterior
e esse sistema eleitoral respondia a duas questões de corrupção.
decisivas: quem pertence à comunidade política e Se prestarmos ouvidos à palavra corrupção ela mes-
onde se localiza a fonte de poder legítimo – respec- ma, desde sua origem, na Grécia antiga, fica mais
tivamente, o problema da extensão da cidadania e fácil perceber a complexidade do fenômeno que o
da origem da soberania. conto de Machado analisa. A palavra corrupção revela
Sem expansão significativa da cidadania, a Repú- que ocorreram dois movimentos complementares
blica, no Brasil, seria apenas um mecanismo político no caminho de uma sociedade: algo se quebra em
de aplicação prática, Machado parece nos dizer. Se um vínculo; algo se degrada no momento dessa
bem utilizado, iria desestabilizar de vez o Segundo ruptura. As consequências daquilo que se partiu e se
Reinado e propiciar um novo rearranjo de poder degradou são consideráveis para a República. Numa
capaz de substituir o pacto imperial. Um regime lasca, quebrou-se o princípio da confiança, o elo
republicano serviria para acomodar novas elites que permite ao cidadão associar-se para interferir
a postos também novos, viabilizaria uma agenda na vida de seu país. Na outra lasca, degradou-se o
de modernização e conseguiria regrar os conflitos sentido do público. Corrupção não é só um problema
intra-elites de modo a manter grau suficiente de de ladroagem. Ele é algo mais grave porque desata o
estabilidade política. Acertou na mosca. A Repú- processo que instala os mecanismos de dissipação da
blica que seria instalada em 15 de novembro trazia vida pública de um povo, suas instituições, regras e
princípios de convivência, agências de administração

Machado viu a e de governo. Pelos efeitos que produz, a corrupção


significa a morte para a República. E quando isso
acontece, está aberto o caminho para a tirania de

baixa qualidade da viés salvacionista.


Ao final, alguém sempre poderá argumentar – A
sereníssima República é apenas uma história. E histórias

cidadania no Brasil. não resolvem nenhum problema ou aliviam qualquer


sofrimento; elas não podem dominar o passado de

Para ele, o combate


uma vez por todas ou desfazê-lo em nenhuma de
suas partes. É verdade. Mas, elas podem manter vivo
no tempo o sentido dos acontecimentos, relatando-

à corrupção não
-os a nós mesmos e a outros, dizia Hannah Arendt.
Histórias servem para isso: lembrar-nos do brasileiro
que fomos e que deveríamos ou poderíamos ser.

passa por uma Refletir sobre tudo, questionar e recordar – para


pensar sobre o que estamos fazendo hoje.

visão moralista REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987
algo similar ao modelo adotado pelas aranhas. Não AVRITZER, Leonardo, BIGNOTTO, Newton,
tinha nenhuma intenção de assegurar pela lei o GUIMARÃES, Juarez, STARLING, Heloisa (org.).
compromisso com uma concepção de liberdade cuja Corrupção; ensaios e criticas. Belo Horizonte:
realização requer, por um lado, a efetiva participação Editora UFMG, 2012
dos indivíduos no processo de autogoverno de sua FONSECA, Eduardo G. Vícios privados, benefícios
comunidade política e, por outro, a garantia de que públicos? A ética na riqueza das nações. São Paulo:
todos os membros dessa comunidade desfrutem Companhia das Letras, 1993
direitos iguais. A Constituição de 1891, por sua vez, MACHADO DE ASSIS, J. M. A sereníssima
construiu o mecanismo que garantiu voto apenas República. In: ____. Papeis avulsos; obra completa.
a quem os vitoriosos de 15 de novembro julgavam Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. v. 2.
poder confiar a preservação da sociedade e deixou MANDEVILLE, B. de. The fable of the bees; or
boa parte da população brasileira do lado de fora private vices, public benefits. Oxford: Oxford
da República: excluiu libertos e pobres – pela exi- University Press, 1924.
gência de alfabetização, já que os analfabetos não MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira
poderiam votar –, além dos mendigos, mulheres, década de Tito Lívio. Brasília: Ed. UnB, 1982.
praças de pré1, membros de ordens religiosas, me- (especialmente, livro primeiro).
nores de 21 anos. HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Belo
É certo dizer que o conto de Machado dispõe de Horizonte: Editora UFMG, 2000.
enquadramento histórico – ou, como ele mesmo STARLING, Heloisa M. Ser republicano no Brasil
anotou ao final da primeira edição de Papeis avulsos, Colônia; a história de uma tradição esquecida. São
tem “sentido restrito” e trata “das nossas alterna- Paulo: Companhia das Letras, 2018.
tivas eleitorais”. Mas convenhamos: a implacável
normalidade com que os brasileiros convivem hoje NOTAS
com a natureza redutora e deficitária de sua Repú- 1. Praça de pré, cargo conhecido apenas como
blica tornaram o argumento do conto premonitório, “praça”, é o militar em posição inferior na hierarquia
sobretudo quando compartilhamos, no presente, o militar. Abarca, em geral, cabos e soldados.
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RESENHA

O vermelho A cor vermelha (krásni), para os russos, tem um


significado cativante e abrangente, uma vez que
em sua raiz etimológica ela também significa o

místico e
adjetivo “bonito” (krassívi). Diante dessa informa-
ção, um dos símbolos nacionais da Rússia, a Praça
Vermelha, ganha nova simbologia ao sabermos
que por séculos sua tradução ostentava o singelo
nome de Praça Bonita, adornada no século XIX por

revolucionário
tijolos brancos. Não é difícil imaginar o fascínio
provocado pela cor mais quente num país mer-
gulhado, por quase meio ano, na monocromática
paisagem invernal. No século XX, com a adoção
da cor pelos bolcheviques, o vermelho se tornou
Em livro, pesquisador estuda símbolo de tudo o que, no mundo da política se
associasse ao comunismo. A literatura russa, que

a recepção de autores russos crescia em popularidade entre o público brasileiro


desde seu advento na década entre as décadas de

no país durante a Era Vargas


1870 e 1880, viu-se envolta numa redoma política
que a colocava numa posição de perseguição e
mistério. A sedução da cor soviética permeou os
movimentos de afastamento e aproximação da
Odomiro Fonseca Filho crítica literária e produção editorial brasileira com
o texto russo durante o período varguista.
Em Dostoiévski na Rua do Ouvidor, Bruno Barretto
Gomide continua sua jornada a fim de mapear
detalhadamente a recepção do texto russo em
terras brasileiras, desta vez contemplando os 15
anos de governo ditatorial de Getúlio Vargas (1930-
1945). O pesquisador, tradutor e professor da USP
tem se lançado à missão de estudar a recepção da
literatura russa no Brasil, além de ser uma figura
de destaque na retomada de uma “febre” editorial
que se desencadeou a partir de 2000, quando a
Editora 34 publicou a tradução de Paulo Bezerra
para Crime e castigo1.
A pesquisa deste livro prossegue com o minucio-
so trabalho iniciado em Da estepe à caatinga: o romance
russo no Brasil (1887-1936), lançado em 2011, no qual
o autor investiga o desembarque das primeiras
naus literárias russas e sua familiarização entre
nossa intelectualidade. Se no primeiro estudo a
longa viagem entre portos periféricos da cultura
novecentista trazia o exotismo e o encantamen-
to dos intelectuais brasileiros diante dos afran-
cesantes Pouchkines (Púchkin) e Tourguenieffs
(Turguêniev), neste segundo livro, o protagonismo
geopolítico da estabelecida União Soviética será o
fiel da balança da repercussão do texto russo den-
tro de um totalitarismo tupiniquim escorregadio.
Durante a década de 1920, a literatura russa
gozou de uma liberdade editorial e de uma curiosi-
dade que permitiram rápida popularização de seus tropical, o escritor brasileiro que condensasse uma
gigantes entre os intelectuais locais; um misto de enorme capacidade de sintetizar o sofrimento
exotismo provocado pelos arroubos da enigmática pessoal e universal dentro de uma perspectiva
“alma russa”, pelos cenários orientais das estepes local. O romance Angústia, de Graciliano Ramos,
e montanhas caucasianas, somados à ausência de publicado em 1936, parece atender, segundo Bruno
censura ao texto vermelho e a curiosidade pelo Gomide, a essa ânsia da crítica nacional por um
novo sistema de governo socialista. Isso permitiu texto dostoievskiano.
o surgimento de uma verdadeira “febre” literária Porém, os intercâmbios literários entre o texto
no Brasil. Bruno Gomide divide esse movimento russo e a cultura brasileira foram abruptamente
em três partes: uma primeira “febre”, que traz interrompidos pela censura varguista, que elegeu
esse período de liberdade para a divulgação e de- Moscou como inimigo maior. Uma onda de russo-
bate sobre textos literários russos; um interstício fobia que retirou das estantes quase a totalidade de
em que a censura varguista, tendo o comunismo textos literários que ganharam espaço na primeira
como seu inimigo preferido, interdita ou coage febre. Carlos Drummond de Andrade, jocosamente,
qualquer tipo de associação à cultura vermelha; responde que “estavam nas prateleiras, mas um
e uma segunda “febre” motivada pela entrada do vento as levou”.2 Uma caça que não poupou nem
Brasil na Segunda Guerra Mundial, tendo a União os clássicos! Diante da incapacidade dos censores
Soviética como aliada, o que acarreta uma forte em julgar se os conteúdos eram pró ou antico-
reaproximação cultural do Brasil com a pátria de munistas, optaram por banir todos. Dostoiévski
Stálin. Em suma, os movimentos literários foram e Tolstói, por exemplo, tiveram apenas três livros
vigorosamente impactados pelos interesses polí- publicados, entre 1938 e 1941. Embora a produção
ticos do governo Vargas. de artigos e resenhas não tivessem diminuído
A primeira febre (1930-1936) é marcada por um tão drasticamente, o olhar sobre Dostoiévski, por
entusiasmo editorial em torno de autores russos exemplo, era de abordar sua cristandade mística,
clássicos, somados à chegada de soviéticos como evitando qualquer associação política explícita.
Gladkóv, Fadéiev, Pilniak, Ehrenburg, Avdeenko, Para a felicidade da literatura perseguida, os
que formavam um panorama eclético para o leitor rumos políticos do Estado Novo reaproximaram o
brasileiro, diversificando o cardápio cultural geral- Brasil da União Soviética, no mesmo panteão dos
mente tão afrancesado. Avolumara-se a ideia de Aliados, e uma ressignificação do texto vermelho
que Dostoiévski era peça-chave na formação de desencadeou uma segunda febre editorial (de 1942
caráter do jovem brasileiro: foi nesse período que até depois do fim do Estado Novo), que mostrava
nomes como Josué de Castro, Clarice Lispector, o país soviético sob um ponto de vista positivo,
Lúcio Cardoso e Nelson Rodrigues entraram em influenciado pelas encarniçadas notícias vindas
contato com o romancista russo. Também a crítica de Stalingrado. Os escritores e/ou personagens
literária produziu seu primeiro fruto: Dostoiewski, de eram frequentemente retratados como cientistas,
1935, escrito por Hamilton Nogueira (1897-1981). intelectuais, nacionalistas, valentes. “O russo era,
Havia, outrossim, entre a intelectualidade brasi- antes de tudo, um forte”, como bem sertaneja
leira a expectativa do surgimento do Dostoiévski Bruno Gomide. A segunda febre também marca o
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PERNAMBUCO, NOVEMBRO, 2018

MARIA JÚLIA MOREIRA

surgimento da primeira coletânea de obras com-


pletas de Dostoiévski, pela editora José Olympio,
em 1944. Aliás, este foi o ano do escritor russo no
A presença da publicados durante o período – e a lista é imensa!
Críticos literários como Jaime Adour da Câmara,
Valdemar Cavalcanti, Brito Broca, Costa Neves,
Brasil, em que três edições de Os irmãos Karamázov
saíram por editoras diferentes – uma delas, a da
Vecchi, contava com uma tradução direta de Bóris
literatura russa Álvaro Lins e Otto Maria Carpeaux fomentaram
o interesse editorial e criaram uma familiariaza-
ção tão grande da intelectualidade brasileira com
Solomônov, pseudônimo do iniciante tradutor que
posteriormente assinaria com seu nome real, Bóris no Brasil foi os escritores russos, que a distância geográfica e
cultural aparentava ser muito menor, como se os

vigorosamente
Schnaiderman (1917-2016). Importante crítico e russos estivessem entre nós, caminhando pela
tradutor, Schnaiderman também foi responsável machadiana Rua do Ouvidor.
pela chegada, neste período, dos primeiros poemas O Estado Novo termina em plena segunda febre,

afetada pelos
soviéticos, que tinham em Maiakóvski a sua figura deixando no leitor a curiosidade pela continuação
mais importante. deste estudo de recepção da literatura russa no
Para além da influência política sobre os matizes Brasil, ainda mais com a importação das políticas
vermelhos dos textos russos, Gomide explora o
interessante intercâmbio cultural entre intelectuais
brasileiros, como Jorge Amado e Tarsila do Amaral,
interesses políticos macartistas para os trópicos no período posterior ao
Estado Novo e na ditadura militar. A julgar pelo iní-
cio dos estudos em Da estepe à caatinga, imaginamos
com o tradutor, crítico e poeta David Vygódski
(1893-1943). Uma via de mão dupla, um abraço
transoceânico que permitiu que nomes imprová-
de Getúlio Vargas que Bruno Gomide algum dia nos presenteie com
a consolidação dos estudos eslavísticos no Brasil,
em que o próximo capítulo traga o amadurecimento
veis da literatura russa desembarcassem por aqui e ao interesse em sua terra natal. O regime soviético daquele que é o farol dos estudos sobre literatura
que levou poetas como Manuel Bandeira, Jorge de classificava-o como “perigoso” e desconfiava de russa no Brasil, o professor Bóris Schnaiderman.
Lima, Murilo Mendes, entre outros, para coletâneas seus temas que conduziam aos calabouços da alma
de literatura brasileira na União Soviética, além ou à conversão por meio da fé, tanto que nas trocas NOTAS
de permitir a tradução de novelas e romances de de materiais entre Vygódski e seus interlocutores 1. Bruno Barretto Gomide é professor do resistente
nomes como José Lins do Rego e Jorge Amado na brasileiros, a ausência de material sobre o gigante Departamento de Literatura e Cultura Russa da USP,
Rússia stalinista. russo causava estranhamento: não havia um texto fundado graças ao enorme esforço de Bóris Schnai-
Dostoiévski na Rua do Ouvidor também assinala a sequer sobre Dostoiévski na revista Literatura Inter- derman. É o único curso de pós-graduação do Brasil
presença inquebrantável do autor de O idiota em nacional 3, em que Vygódski trabalhava e enviava na área de eslavística, responsável pela formação de
todas as fases do período varguista. Por sua múltipla exemplares para a América Latina, a fim de divulgar vasta rede de tradutores e pesquisadores. Sua existência
possibilidade interpretativa e psicologizante, os os estudos literários de sua terra. está seriamente ameaçada pela falta de investimentos
textos que pensavam a obra do autor conseguiam Bruno Gomide divide o interesse pelos autores públicos e de autonomia.
driblar a censura estadonovista ressaltando os as- russos em três grandes blocos: o primeiro devotado 2. Carlos Drummond de Andrade, Livros assassinados,
pectos religiosos e místicos de sua narrativa, mesmo a Dostoiévski, Tolstói e Górki, os mais traduzidos e 9 jun. 1945.
nos períodos em que a censura tornara-se mais comentados; num segundo escalão, temos a pre- 3. Internatzionálnaia Literatura foi uma revista soviética
férrea: “Dostoiévski podia conduzir a Lênin, a Cristo sença de Turguêniev, Púchkin e Gógol, além da que buscava divulgar escritores da URSS para o mundo.
ou ao romance brasileiro”, diz Bruno Gomide. A chegada notória de Tchékhov durante a segunda Na América Latina, os textos eram traduzidos para o
centralidade do escritor no Brasil não se equivalia febre; num terceiro grupo, temos todos os outros espanhol – muitas vezes pelo próprio David Vygódski.
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PERNAMBUCO, NOVEMBRO 2018

ENTREVISTA
Patricia Hill Collins

Literatura e
ativismo para
segurar o mundo
Um dos principais nomes do feminismo negro fala
do fascismo, do empoderamento de mulheres negras
e do papel da ficção ante os desafios do presente
FOTO: DIVULGAÇÃO

guias, conhecemos o Movimento dos Sem


Terra (MST), uma comunidade criada perto
de um lixão, além do Museu Nacional do
Rio de Janeiro, incendiado recentemente.
Em 10 dias conclui que havia muito aqui
e eu precisava voltar, o que só aconteceu
11 anos depois, quando fui convidada
para falar no evento Latinidades. Fiquei
extasiada com aquele evento, porque estava
desesperançada, presa dentro da academia,
me perguntando o que ia acontecer com o
feminismo negro. Então vi a resposta naquilo
que estava acontecendo, um congresso
organizado por mulheres jovens que me
impressionaram e com quem aprendi muito.

Existe uma referência a Sueli Carneiro na


edição de Black feminist thought lançada em
2000. Quais narrativas de mulheres negras
ecoam nas suas pesquisas?
Não conheci grande parte das feministas
negras sobre quem eu escrevo. Eu não
conheci Sueli Carneiro, por exemplo. Por
isso valorizo a chance de escrever e publicar
porque há pessoas que eu jamais teria
chance de conhecer, assim como elas de me
conhecerem. Quero deixar algo para dizer a
de extrema direita em expansão no mundo, o elas mesmo que ache que não serei lida, assim
Entrevista a Edma de Góis papel do feminismo transnacional nesse cenário como algumas mulheres negras que estavam
e Danielle de Luna e da literatura, a partir da qual mulheres negras escrevendo no século XIX não tinham ideia
podem ler as histórias de outras e se fazer ouvir. que seus trabalhos seriam estudados. Uma
A professora de Sociologia da Universidade de história que me chamou atenção foi a de
Maryland e ativista negra, Patricia Hill Collins Como aconteceu sua aproximação uma mulher negra, que usou a pensão de
(Estados Unidos, 1948), uma das principais do Brasil e, em particular, do seu marido, morto na Guerra Civil, para
teóricas do feminismo negro internacional, ativismo negro aqui praticado? publicar suas próprias ideias. Casos assim
defende a maternidade de mulheres negras Quando estava revisando Black Ffminist caem na obscuridade e, anos mais tarde,
como espaço de poder e tem dedicado seus thought, procurei por trabalhos de mulheres pesquisadoras da literatura negra descobrem e
estudos mais recentes à interseccionalidade1. Sua negras transnacionais, então encontrei dão visibilidade.
principal obra, Black feminist thought, publicada Carolina Maria de Jesus e Lélia Gonzalez.
pela primeira vez nos Estados Unidos em 1990, Eram apenas pequenos fragmentos, porque Na mesma edição, você se refere ao
terá a primeira tradução para o português em muitos deles estavam em português. Fiz o feminismo no contexto transnacional. Ainda
breve. O ineditismo de sua obra traduzida, no que podia com o que encontrei, porque sei é possível falar em feminismo transnacional
entanto, não evitou que seu pensamento fosse que o Brasil é o quinto maior país do mundo, no momento atual, depois dos avanços das
conhecido e influenciasse o ativismo brasileiro cheio de pessoas negras. Minha primeira pautas dos grupos não hegemônicos?
ao lado dos nomes de bell hooks e Angela Davis. viagem ao Brasil foi em 2003, onde estive Claro que sim. O que é muito bom e diferente
De passagem pelo Brasil, onde participou, em em um seminário para docentes. Com um agora é que podemos ver as diferentes
outubro, da Festa Literária Internacional de Cachoei- grupo de 15 professores, viajei a São Paulo, expressões do feminismo negro. Sempre
ra (Flica), no Recôncavo Baiano, a professora Salvador e Rio de Janeiro. Fizemos um tour adotei a posição de que você escreve do seu
conversou com o Pernambuco sobre a onda numa favela que tinham crianças como próprio local de fala, de sua localização. A
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PERNAMBUCO, NOVEMBRO 2018

Pela literatura, A maternidade,


você está num para a mulher
lugar e pode se negra, é posição de
conectar com poder. A forma de
outros. Nenhum criar filhos é um
cientista social posicionamento
pode fazer isso para o futuro
primeira edição do livro (Black negras, não em todos os seus se pudesse ver o futuro. Tudo Unido, acredito que na Itália e na A literatura é maravilhosa
Feminist Thought), de 1990, foi aspectos, é uma posição de o que podemos fazer é ler Romênia. Não é algo peculiar a porque você pode dizer
sobre as particularidades das poder. Pode ser que isso não o presente baseado no que nenhum país específico. Como coisas na poesia, na ficção,
mulheres afro-americanas, seja reconhecido como tal, mas sabemos sobre o passado. A pesquisadora, eu responderia no teatro que se aproximam
que naquele tempo estavam como você cria seus filhos é um esquerda nos EUA imaginou que com outra pergunta: Quais são mais do espaço interno, de
tentando formatar um discurso posicionamento político para quando Barack Obama ganhasse as conexões entre esses diversos como as pessoas se sentem.
público sobre feminismo negro. as próximas gerações. Muito do a eleição o racismo estaria movimentos que chegam ao Certamente, pode educar com
As ideias já estavam lá há que eu escrevo é sobre essas morto e de alguma forma a poder neste momento histórico? esses mecanismos particulares,
muito tempo, mas não haviam mulheres negras comuns que América (Estados Unidos) estava mas não precisa estar restrito
sido sistematizadas. Foi muito vivenciam isso e para as quais caminhando para um futuro Toni Morrison, em entrevista a à ideia de mostrar exatamente
interessante para mim, depois a base de empoderamento glorioso. Mas os sinais contra pesquisadora Marsha J. Darling, os fatos. Como uma cientista
daquela primeira edição, ouvir tem sido instituições comuns Barack Obama estavam bem defendeu a necessidade de não social, tenho de ter cuidado com
que eu deveria falar de uma como maternidade, igrejas, claros durante os oito anos de se esquecer os horrores vividos o que digo, se estou pisando
perspectiva transnacional. O que vizinhanças ou partes da vida sua administração. As suas filhas no período da escravidão. em solo firme. Na literatura
me surpreende é como as ideias que essas mulheres controlam foram chamadas de macacas, Qual a importância de há mais espaço para criar e
de Black feminist thought viajaram verdadeiramente, que é sua esposa foi xingada e Donald levantar temas difíceis para mostrar outras possibilidades,
para além das mulheres negras, diferente apenas do trabalho. Trump afirmou que queria ativar a memória coletiva? não apenas de representação.
porque os argumentos são sobre Não estou dizendo que todas as ver a certidão de nascimento A literatura, por exemplo, pode A literatura atua na medida
como você se empodera com mulheres precisam ser mães de Obama, duvidando que colocar você no lugar desses em que lemos as histórias
suas próprias experiências, como para serem completas. É mais o presidente eleito fosse eventos particulares. Você pode dos outros e contamos nossas
você analisa as suas próprias uma investigação sociológica americano. A diferença entre a vivenciá-los de forma subjetiva, próprias histórias. Se você
experiências e desenvolve de como pessoas negras têm realidade sociológica e a retórica ao mesmo tempo em que acho está firme do seu lugar, você
uma voz independente, mas conseguido persistir e sobreviver ideológica associada a ela ajuda que há um perigo de visar apenas pode se conectar com outros.
que pode ser usada para porque as mulheres negras um regime como o fascismo. A os grandes exemplos como o Para mim, ações e ideias
estabelecer um diálogo com têm sido fundamentais para retórica é moldada para situações genocídio negro. Para mim, caminham juntas. Assim,
os outros. Isso não é algo que maternar seus próprios filhos e particulares como vemos no deve-se chamar atenção para as penso que a literatura pode
se encerra com as fronteiras também para garantir a própria Brasil, na Itália e aos Estados mortes institucionalizadas que fazer, em termos de ativismo,
de gênero ou raça. Então sobrevivência da comunidade Unidos. Você pode passar todo acontecem devagar, para as quais o que nenhum cientista social
sim, há muito espaço para o negra. Eu quis politizar a o tempo tentando rebater isso não olhamos. Eu costumava dizer do mundo pode fazer.
feminismo negro transnacional, maternidade, ao contrário de ou você pode desenvolver aos meus alunos de graduação
porque há mulheres negras vê-la como algo fora da esfera argumentos alternativos que que 2 mil bebês negros morrem NOTAS
em todos os lugares. política. Um candidato à vice- empoderem as pessoas. O todos os anos na nossa cidade. 1. A interseccionalidade considera
presidente que faz esse tipo de fascismo não serve as pessoas. Eles morrem porque têm um que as condições sociais e políticas
Em fala, um dos candidatos à declaração parte do princípio As pessoas servem ao Estado e à índice de mortalidade diferente são determinadas por diversos
vice-presidência da República2 de que há uma única e melhor elite. Eu diria que você não pode das crianças brancas. Eles sistemas de poder que atuam
relacionou violência e famílias maneira de ter uma família. prever as especificidades. Nos não chegam a completar um simultaneamente, formando uma
chefiadas por mães e avós. Seu Dizer algo assim para mulheres Estados Unidos foram 40 anos ano devido a uma série de intersecção de eixos. Questões
trabalho focaliza a maternidade negras desconsidera que elas para chegarmos a este momento. questões sociais e ninguém se como raça, gênero e classe
como local de empoderamento estão segurando o mundo. Não é que Trump veio do nada. importa com isso. Mas se eu se entrecruzam, por exemplo,
das mulheres negras. Como É mais uma questão sobre não levasse esses bebês para um para determinar a situação de
explicar esse empoderamento Considerando a experiência conseguir reconhecer que cada estádio de futebol e atirasse vulnerabilidade de mulheres
a partir da família? recente dos EUA, acredita que lado tem de estar vigilante. As neles na sua frente, você ficaria negras periféricas ou lésbicas.
No discurso feminista nós brasileiros poderíamos ideias do Trump não ficarão horrorizada. Não devemos 2. Em setembro último, o general
hegemônico, a maternidade ter visto o avanço da extrema para sempre. As ideias não vão esquecer o aqui e o agora. da reserva Hamilton Mourão,
é definida como um local de direita que põe em risco simplesmente embora quando candidato à vice-presidente
opressão, em que as mulheres nossa democracia? se perde uma eleição. O Brasil Você veio ao Brasil a convite de na chapa de Jair Bolsonaro
ficam aprisionadas no lar sendo É muito interessante pensar nas e os Estados Unidos parecem um evento literário. Como acha (PSL), disse que famílias sem
mães. Eu defendo o oposto: a mudanças que estão ocorrendo, viver momentos similares. Há que a literatura pode contribuir pai e avô são “fábrica” de
maternidade para mulheres mas eu só poderia responder tendências parecidas no Reino com o ativismo? elementos “desajustados”.
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PERNAMBUCO, NOVEMBRO 2018

Everardo
NORÕES
esnoroes@uol.com.br

A voz ao telefone chega de um longe brumoso. Como aprimoradas em guerras na Indochina e na África.
a própria imagem do general caolho, personagem Mesmo assim, todas perdidas. Inclusive a Guerra das

O jovem
sinistro da história de França. Malvinas, na qual seus discípulos portenhos, espe-
“Sim, fomos nós que matamos Audin”. Mataram- cialistas em reprimir compatriotas, logo se renderam
no à faca, para fingir que foi degolado pelos árabes. aos ingleses, numa das mais vergonhosas batalhas
É insinuação típica de uma guerra suja. Na Argélia, do continente.
era costume a degola de inimigos e traidores. “Matamos Audin.”

matemático da
O general francês costumava praticar “fugas” e A voz asquerosa esvaiu-se, enquanto ressurgia
“suicídios”, à frente de seus serviços de inteligência. a figura de sua vítima, tal como na foto do jornal.
Escondeu durante muito tempo as execuções de Maurice Audin, o jovem e brilhante matemático
conhecidos militantes nacionalistas, como Larbi francês, três filhos pequenos, um deles nos braços.

Place Audin
Ben Mehdi e Ali Boumendjel. Seus métodos foram Professor da Universidade de Argel, comunista, fa-
reproduzidos, depois, por discípulos latino-ameri- vorável à independência argelina, deixou inconclusa
canos. Os assassinatos de Vladimir Herzog, Rubens tese de doutorado de alta matemática. Era orientando
Paiva e José Jobim são exemplos. de Laurent Schwartz, o ganhador do prêmio Medalha
Matamos Audin, diz o general. Fui eu quem deu Fields pela elaboração da Teoria das distribuições. Audin
a ordem. Em tom jocoso, conclui: "É isso que você foi sequestrado em junho de 1957 e “desapareceu”
quer saber?" nas mãos de torturadores. Sob a supervisão do ge-
Um promissor intelectual Mas ninguém acredita muito no velho militar.
Sua medalha da Legião de Honra lhe foi arrancada
neral caolho.
Na hora do sequestro, a mulher de Audin per-

francês e a memória como após muitos abusos cometidos ao abrigo da farda. A


“pátria” francesa não precisa mais dele.
gunta aos militares quando o marido seria solto.
Respondem, curto e grosso. Dentro de uma hora,

instrumento político
Pouco tempo após o telefonema, ele se foi. Car- se for bem-comportado. Quanto a ela, que fosse
regando enigmas de quem comandou a morte e a cuidar das crianças.
tortura de milhares de pessoas. Como “herança”, Até pouco tempo, os registros oficiais rezavam
legou técnicas refinadas e brutais de interrogatório, que Maurice Audin fugiu sem deixar rastros quan-
REPRODUÇÃO

BIBLIOFOBIA
Wellington Autoritarismo e o medo dos livros
de Melo
Não é novidade que as Puntel, porque falava sobre
ditaduras nutrem pouca a ditadura — na verdade, o
simpatia pela difusão de livro é inspirado na vida do
conhecimento. Simpatia por jornalista José Maria Rabêlo,
livros, só quando propagam que, vejam só, foi perseguido
o ideário do regime. pela ditatura civil-militar do
Quando a bibliofobia se Brasil. Na Universidade de
dissemina pela sociedade, Brasília, livros sobre direitos
estamos diante das trevas. humanos foram rasgados

MERCADO Pais de alunos do Colégio


Santo Agostinho, no Rio
na biblioteca. Nem obras
sobre artistas renascentistas

EDITORIAL de Janeiro, pressionaram a


direção a não adotar o livro
escaparam da barbárie
medieval. A história insiste,
Meninos sem pátria, de Luiz dolorosamente, em repetir-se.
A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:

CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
LUÍSA VASCONCELOS
CONSELHO EDITORIAL
nias numa das famosas casas da morte de Argel.
Proibido pelo governo francês, o livro mobiliza os I Os originais de livros submetidos à Companhia
intelectuais mais importantes da França. Entre eles, Editora de Pernambuco -Cepe, exceto aqueles que a
o filósofo Jean-Paul Sartre. Diretoria considera projetos da própria Editora, são
“Um testemunho sóbrio, escrito no tom neutro analisados pelo Conselho Editorial, que delibera a
da História”. Assim se manifesta François Mauriac, partir dos seguintes critérios:
prêmio Nobel de Literatura. É que o narrador de La
question sobrepõe-se ao torturado. Sem comisera-
ções. E o leitor é dominado pela narrativa, desde 1. Contribuição relevante à cultura.
a primeira página, ao perceber que um livro assim
somente poderia ter sido escrito por alguém que 2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,
respondeu com o silêncio à ferocidade das torturas. que privilegia:
Henri Alleg narra seu último encontro com Mau-
rice Audin.
Torturado por dois paraquedistas, um deles, fu- a) A edição de obras inéditas, escritas ou
rioso por não conseguir fazer-lhe falar, pede ao traduzidas em português, com relevância
comparsa para ir buscar Audin. O jovem professor cultural nos vários campos do
entra na sala, arrastado, rosto macerado. conhecimento, suscetíveis de serem
O torturador grita: apreciadas pelo leitor e que preencham os
– “Vai, Audin, diz a ele o que vai acontecer! Evita
seguintes requisitos: originalidade,
que ele passe pelos horrores de ontem à noite!”
Maurice Audin apenas murmura: adequação da linguagem, coerência
– “É duro, Henri!”. e criatividade;
É levado. Desaparece.
Um paraquedista berra: b) A reedição de obras de qualquer gênero da
– “Aqui todo o mundo fala, seu filho da puta!
criação artística ou área do conhecimento
Fizemos a guerra da Indochina, que serviu pra
conhecer vocês! Aqui é a Gestapo!” científico, consideradas fundamentais para o
Uma filmagem mostra um Henri Alleg de volta a patrimônio cultural;
Argel mais de três décadas depois. A câmera foca
um velho baixinho no convés do navio. A chegada 3. O Conselho não acolhe teses ou dissertações
ao cais onde amigos o aguardam. A confraterni- sem as modificações necessárias à edição e que
zação do reencontro. O passeio de automóvel por
contemplem a ampliação do universo de leitores,
do era conduzido numa viatura. O Estado francês ruas conhecidas. Ele sorrindo ao comentar que
assumindo a mentira. no lugar onde morou foi depois erguido o Palácio visando à democratização do conhecimento.
Agora, em setembro de 2018, o presidente da da Presidência.
França discursa a responsabilidade do Estado no Grande angular sobre um casario, a cidade aos II Atendidos tais critérios, o Conselho emitirá parecer
episódio. Mais de meio século passado. Quase pré- pés. El Djezair. Argel, a Branca. sobre o projeto analisado, que será comunicado ao
-história. Personagens mortos, versões desencon- É sua volta ao lugar do martírio.
proponente, cabendo à diretoria da Cepe decidir
tradas. Funciona bem o véu estendido pelo Estado Sobe escadarias. As mesmas em que muitos pri-
sobre o passado para esconder sua violência. sioneiros foram arrastados. Avista a ribanceira onde sobre a publicação.
O caso de Maurice Audin reabre frestas no sub- homens eram jogados como animais imprestáveis.
consciente da França e um testemunho de fogo está Conversa com os moradores, comenta sobre o que III Os textos devem ser entregues em duas vias, em
registrado num livro de perturbadora grandeza, La aconteceu com o amigo Maurice Audin. Aponta papel A4, conforme a nova ortografia, em fonte
question. Henri Alleg, o autor, dirige, na ocasião, o o lugar de onde foi lançado o advogado Ali Bou- Times New Roman, tamanho 12, com espaço de
jornal Alger républicain, o mesmo em que colaborava mendjel. É uma das casas da morte de onde sumiu
uma linha e meia, sem rasuras e contendo, quando
Albert Camus. Brutalmente torturado, Henri Alleg Maurice Audin e milhares de argelinos.
consegue sobreviver. Transferido para a prisão Junto à Universidade de Argel, onde o jovem for o caso, índices e bibliografias apresentados
Barberousse, em Argel, depois levado à França, matemático dava aulas, avista a Place Audin (Praça conforme as normas técnicas em vigor.
condenado a 10 anos de trabalhos forçados. Foge da Audin). Fica no cruzamento de duas principais
prisão de Rennes. Em 1962, finda a guerra, regressa avenidas da cidade, a Rua Didouche Mourad e o IV Serão rejeitados originais que atentem contra a
a uma Argélia independente e reabre o jornal. Boulevard Mohamed V.
Declaração dos Direitos Humanos e fomentem a
Na prisão, um de seus advogados lhe sugere fazer Para quem vem de fora, pode parecer esquisito
o que seus companheiros analfabetos não conse- aquela placa com o nome de um francês. É um dos violência e as diversas formas de preconceito.
guem. Publicar seu testemunho. Escrevinha em principais pontos da capital do país, que perdeu
folhas de papel higiênico e os manuscritos vão quase um milhão de pessoas na guerra contra a V Os originais devem ser encaminhados à
sendo retirados aos poucos, escondidos nas pastas França. Presidência da Cepe, para o endereço indicado a
de seus advogados. Em 1958, La question sai do prelo. Para os argelinos, a Place Audin será sempre mais seguir, sob registro de correio ou protocolo,
Descreve a jornada do autor, submetido a ignomí- do que um lugar.
acompanhados de correspondência do autor, na
qual informará seu currículo resumido e endereço
para contato.

VI Os originais apresentados para análise não


serão devolvidos.

CENSURA GILVAN LEMOS


Companhia Editora de Pernambuco
Editoras perseguidas "Vai vendo o caiporismo" Presidência (originais para análise)
Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
As ditaduras não perseguem Em entrevista concedida ao por pressão dos militares. CEP 50100-140
livros, mas quem os produz. A Pernambuco nº 55, Gilvan A situação econômica se Recife - Pernambuco
editora Civilização Brasileira Lemos revelou que, a pedido degradaria até a editora ser
foi uma das mais fustigadas de Osman Lins, enviou seu comprada pelo BNDES em
pela ditadura no Brasil. O Emissários do Diabo a Ênio 1975, e absorvida em 1982
editor Ênio Silveira, filiado Silveira. A obra foi publicada por grupos portugueses.
ao PCB, foi vítima de uma em junho de 1968, às vésperas Emissários do Diabo hoje faz
cruzada que minou as finanças do AI-5, quando Ênio parte do catálogo da Cepe
da editora — atualmente acrescentaria outra prisão ao Editora. Luta pela terra,
um selo da Record, grupo seu currículo. Em 1970, um judiciário corrupto e abuso
abertamente controlado hoje “incêndio misterioso” destruiu policial estão no livro. Mais SECRETARIA
DA CASA CIVIL
por conservadores. Uma nova os escritórios da editora, atual que nunca. Este mês a
onda de autoritarismo repetirá que desde 1964 tivera suas editora relança Espaço terrestre,
esses eventos? linhas de crédito bloqueadas, de Gilvan. Resistiremos.
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PERNAMBUCO, NOVEMBRO 2018

CAPA

HANA LUZIA

Em tempos de crise, a
convicção da amizade
As meninas, de Lygia Há livros que parecem feitos sob medida para
momentos históricos. As meninas alcança-nos hoje
O livro dialoga com o presente, quando movi-
mentos de mulheres tomaram redes e ruas no grito

Fagundes Telles: há 45 anos,


com exatidão. Diante de mais um momento tenso #EleNão. Recebo um artigo escrito pela estaduni-
na história do Brasil, quando direitos assegurados dense Nancy Fraser com a brasileira Mayra Cotta:
há décadas podem se alterar a qualquer momento, “a resistência à escalada autoritária por meio da
uma leitura para a diferença o romance de Lygia Fagundes Telles é preciso. Ler
As meninas é receber, por um túnel do tempo, uma
organização de lutas feministas é uma realidade
global” (Folha S.Paulo, 01/10/2018). Segundo as duas
correspondência íntima do outrora ao agora. Com teóricas, “da África do Sul à Polônia, da Espanha
Ana Rüsche o carimbo estampado: “urgência”. à Argentina, do Irã aos Estados Unidos”, são mu-
O livro passou por alguns milagres até chegar a lheres que conseguem se unir para irem às ruas
nossas mãos. O primeiro é ter escapado da censura por democracias. A urgência de um acordo frágil
imposta pelo AI-5. Depois, resistiu ao esqueci- e transitório para se tentar assegurar vidas. Indo
mento, destino de tantas obras escritas por mulhe- adiante, o romance As meninas expõe um grau extra
res. Deslizo os dedos sobre a tela baça do e-reader, de complexidade histórica sobre relações entre
destaco trechos no leitor digital. Passar pela sua mulheres: como é ter a vida atravessada por um
leitura é escutar histórias de como mulheres se regime autoritário.
tornam amigas, mesmo com muitas divergências.
Histórias de como conseguem se ajudar, mesmo APARENTE DOCILIDADE: UMA POTÊNCIA
que discordem veementemente entre si. Há uma docilidade sugerida no título As meninas que
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PERNAMBUCO, NOVEMBRO 2018

amiga de Drummond, Veríssimo, Hilst e teve obras negra com pai alemão berlinense; segundo Lo-
analisadas por Candido e Carpeaux. Vestindo te- rena, “as proporções gloriosas herdou da mãe,
mas populares da literatura destinada a mulheres proporções e cabeleira de sol negro desferindo
com roupagem erudita, sua receita dialoga com raios por todos os lados”. É apaixonada por Miguel
uma geração de mulheres da classe média urbana, e, na adolescência, teve relação com uma garota.
majoritariamente brancas, com educação formal Lê milhares de jornais, faz recortes, participa ati-
e ávidas por desafios intelectuais. vamente da resistência política contra a ditadura.
Lygia Fagundes Telles soube fazer o que poucos Suas atividades ilegais são fruto de fantasia para
escritores brasileiros fizeram: vender livros e ser Lorena, que declara: “Bank of Boston. Acho de-
uma escritora querida pelo público. A aparente mais roubar um banco com esse nome.”
docilidade esconde uma potência, a da literatura O trio completa-se com Ana Clara, fonte ines-
que chega a quem precisa. gotável de histórias de sexo e drogas para Lorena.
A estudante de Psicologia, Ana Clara, Ana Turva,
A TRANÇA NARRATIVA: TRÊS NARRADORAS deprimida de infância miserável, vive em estado
NÃO CONFIÁVEIS lisérgico com seus olhos verdes, transando com
O romance apresenta uma lição sobre foco nar- caras em noitadas. Com 1,77m de altura, gaba-
rativo. Machado de Assis tinha prazer em nos -se ser do tipo capa de revista. Planeja casar-se
enganar com um narrador pouco confiável (Ben- com um cara rico e detestável, o Escamoso. Sua
tinho definitivamente não é a melhor testemunha sina é ser, ao mesmo tempo, uma mulher muito
de certos fatos, embora ainda hoje se insista em desejável e não conseguir sentir desejo.
organizar o malfadado “julgamento de Capitu” Justamente a virgem Lorena é quem retira exci-
sem escutá-la). Lygia Fagundes Telles tece uma tação das cenas mais cotidianas, o que termina por
armadilha mais complexa: temos não uma, mas conferir direções moralizantes à narrativa. Afinal,
três narradoras não confiáveis, as garotas do título. Ana Clara é quem vivencia cenas de sexo, mas não
A começar por não serem exatamente “meni- goza. Há ainda sugestões sobre a bissexualidade
nas”, termo ambíguo que sugere um traço infantil de Lorena, quem prepara banhos longos de ba-
ou inocente. Trata-se de três mulheres jovens com nheiras às amigas. Ainda tece insinuações sobre a
uma preocupação comum: assegurar a própria in- orientação sexual de Lia (usa o aumentativo “Lião”
dependência diante de pressões culturais, sexuais e depois se refere muitas vezes a seus pés, “deve
e políticas de um Brasil na ditadura. Não há nada calçar quarenta”), embora seja difícil afirmar se
pueril nessa pretensão. Assim, as três estudantes,
Ana Clara Conceição, Lia de Melo Schultz e Lorena
Vaz Leme, narram acontecimentos sobre os quais
se recordam ou divagam.
As meninas é
A autora faz uso do fluxo de consciência e de
monólogos interiores, procedimentos consoli-
dados em livros escritos por mulheres, como Mrs.
um aviso sobre o
Dalloway, de Virginia Woolf (1925) e A paixão segundo
G. H., de Clarice Lispector (1964). Em As meninas, valor de pensarmos
em conjunto
há uma camada extra de embaralhamento das
três vozes, cuja tessitura somente a leitura pode
traduzir. A cereja do bolo: nunca sabemos se o

mesmo diante dos


que dizem umas das outras é verdade.
Ana Clara, inclusive, é retratada como menti-
rosa contumaz por Lorena. Qual das duas estaria
com a verdade? Indo mais longe em hipóteses
delirantes sobre foco narrativo, se Lorena possui
inegável protagonismo, seria todo o romance uma
pactos frágeis entre
narração em que ela emula falar pelas outras duas
amigas? Não interessa muito descobrir. A aparente
falta de lógica faz com que o fundamental suba à
pessoas diferentes
esconde as características típicas da contracultura tona: examinar as possibilidades sociais para as em uma chave de preconceito ou de intimidade.
que invadem as páginas do romance. Prepare-se mulheres de classe média no período. Com o avançar da trama, tais insinuações perma-
para sexo, drogas e rock and roll. Com direito a cenas necem confusas dentro do jogo de três narradoras
gráficas de violência, tão à moda das distopias AS TRÊS MORADORAS DO PENSIONATO NOSSA em período histórico no qual nem divórcio existia.
feministas. Não falta Jimi Hendrix nem o clichê da SENHORA DE FÁTIMA Em As meninas, a vivência da sexualidade e mesmo
militante que esconde O capital em papel de pão. “Lião, uma comunista fabricante de bombas. Ana a do amor para as mulheres passa muito perto do
No ano de publicação, 1973, assistiu-se ao início Turva, uma viciada em rápido processo de pros- caminho que as coloca em perigo.
da ditadura no Uruguai e à ascensão de Pinochet tituição. Eu (Lorena), uma amoral, indolente e
no Chile, com o dramático bombardeio aéreo do parasita da mãe devassa.” A AMIZADE EM TEMPOS DE CRISE
Palácio de La Moneda. A trama intrincada narra passagens da vida de Durante os poucos dias que dura a narrativa, as
Ao deslizar os dedos pela tela de plástico do três moradoras do pensionato de freiras Nossa vidas das três se mesclam. Lia rói unhas em boa
e-reader, penso se não é esta aparente docilidade Senhora de Fátima durante uma greve estudantil: parte do tempo, hábito que ecoa o roque-roque
que fez com que o livro escapasse incólume das Ana Clara, Lia e Lorena. O romance faz alusão a das ratazanas dos pesadelos de Ana Clara. Embora
mãos do censor. Lygia nos pisca um olho e faz notícias da época, embora a indeterminação ao Lorena narre por mais tempo, ações perigosas são
piada com o feito: “o censor chegou até a página narrar esfumace quaisquer confirmações. Exem- protagonizadas por Ana Clara e Lia. Lorena faz de
72 e não foi adiante porque achou o livro chato” plo é o “sequestro de diplomata”, provável menção tudo para que as outras compartilhem sua com-
(Conspiração de nuvens, 2007, p. 65). Afinal, o que ao sequestro do embaixador alemão Von Holleben, panhia e histórias íntimas, oferece dinheiro cúm-
teria demais um livro com esse título água com cuja liberdade foi negociada em troca da soltura plice para Ana Clara comprar drogas e empresta
açúcar? de presos políticos que depois rumaram à Argélia seu carro para Lia fazer operações clandestinas.
Não nos enganemos, Lygia tinha experiência (para detalhes, ver Os romances de Lygia Fagundes Telles, No pensionato de freiras, as três criam laços
suficiente para saber do impacto de suas palavras à de Dina Teresa Chora). fortes de uma amizade pouco provável em outro
época do lançamento. As meninas foi publicado justo As três estão longe de serem as melhores ami- momento. A grande convicção de As meninas para
no ano em que a autora completava 50 anos, então gas do mundo. Desabafos deixam claro irritações os tempos atuais é refletirmos a respeito da im-
dona de uma carreira literária de três décadas. mútuas e desentendimentos. O aprendizado da portância da força mútua entre mulheres distintas,
Mulher branca com boa educação e vida confor- amizade dá-se pelo convívio e partilha de perigos entre pessoas de trajetórias diferentes.
tável, Lygia assegurou o teto todo seu e a possibi- reais, diante dos quais precisam se aliar. Diante de um Brasil de caminhos incertos, As
lidade de investir na escrita sendo procuradora no Lorena é magra, com seios pequenos e voz fina, meninas discute os pactos frágeis e transitórios
Instituto de Previdência do Estado de S. Paulo. Cursou estuda Direito. Encastela-se num quarto com entre pessoas diferentes. Sejam mulheres que vão
Educação Física e foi uma das poucas alunas mu- dourados e rosas, “pérola na ostra”. Aguarda te- às ruas por democracia ou pessoas que procuram
lheres na Faculdade de Direito da Universidade de lefone improvável de Marcus Nemesius, M. N., respirar em momentos mínimos de liberdade. A
São Paulo. Foi objeto de escândalo ao se separar ginecologista casado, peludo, mais velho e com leitura de As meninas nos devolve, por um túnel
do primeiro marido (no Brasil, a lei do divórcio cinco filhos. Será que ela inventa essa paixão pla- do tempo, um aviso sobre o valor de pensar em
é somente de 1977) — nascida Lygia de Azevedo tônica para se sentir segura, distante do desejo? conjunto, mesmo nas diferenças. Na capacidade
Fagundes, a mulher separada carrega o sobrenome Vangloria-se de sua virgindade; ao imaginar-se de compartilharmos afetos e histórias. O aviso de
do primeiro marido, Telles. mais velha, faz piada, “virgem acaba surda, aquela Lygia carrega o selo da urgência.
Com tais adereços, Lygia soube circular pelo história de Lião, fecham-se os orifícios”.
meio literário evitando ser reduzida a musa si- Lia, estudante de Ciências Sociais, é apelidada Agradeço a Drielle Alarcon, Hugo Maciel e Márcia
lenciada ou posar de intelectual inacessível. Foi de “comunista”. Corajosa, é filha de mãe baiana Fráguas pela leitura inicial deste texto.
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CAPA

Nada melhor
que ouvir
As meninas
Lygia e seu romance falam
sobre seguir a vida sem
abdicar de lutas e esperanças
Ricardo Lísias

São inúmeros os motivos que colocam As meninas, choques inicialmente fracos que foram se tornando
o principal livro de Lygia Fagundes Telles, em um cada vez mais fortes. Depois, obrigaram-me a tirar
lugar especial na literatura brasileira contempo- a roupa, fiquei nu e desprotegido. Primeiro me ba-
rânea. A precisão técnica e a força da denúncia teram com as mãos e em seguida com cassetetes,
são alguns deles, sem dúvida. Mesmo a questão principalmente nas mãos. Molharam-me todo,
cronológica, para a compreensão da importância do para que os choques elétricos tivessem mais efeito.
romance, é decisiva. Publicado em 1973, As meninas Pensei que fosse então morrer. Mas resistia e resisti
parece fornecer uma resposta à difícil questão que também às surras que me abriram um talho fundo
outro grande romance que o antecedeu, Quarup, em meu cotovelo. Na ferida o sargento Simões e
de Antonio Callado, colocou: como agir com as o cabo Passos enfiaram um fio. Obrigaram-me
consequências do golpe de 1964? Todas as opções então a aplicar os choques em mim mesmo e em
seriam delicadas e cheias de nuances, sem falar que meus amigos. Para que eu não gritasse enfiaram
inevitavelmente entrariam em choque. um sapato dentro da minha boca. Outras vezes,
Lygia Fagundes Telles responde, de forma ar- panos fétidos. Após algumas horas, a cerimônia
tisticamente notável, à pergunta no romance As atingiu seu ápice. Penduraram-me no pau-de-
meninas. Antes de discutir sua proposta, porém, -arara: amarraram minhas mãos diante dos joelhos,
vale também lembrar que o romance antecede atrás dos quais enfiaram uma vara, cujas pontas
justamente os livros que iriam, muitas vezes de eram colocadas em mesas. Fiquei pairando no
forma objetiva e corajosa, denunciar a violência ar. Enfiaram-me então um fio no reto e fixaram
com que o regime militar lidava com a oposição. outros fios na boca, nas orelhas e mãos. Nos dias
O que é isso companheiro é de 1979. Seis anos antes, seguintes o processo se repetiu com maior duração
porém, As meninas denuncia com bastante coragem e e violência. Os tapas que me davam eram tão fortes,
inequivocamente a tortura que o governo brasileiro que julguei que tivessem me rompido os tímpanos:
praticava contra os opositores do regime: mal ouvia. Meus punhos estavam ralados devido
“Ali me interrogaram durante 25 horas enquanto às algemas, minhas mãos e partes genitais com-
gritavam, traidor da pátria, traidor! Nada me foi pletamente enegrecidas devido às queimaduras
dado para comer ou beber durante esse tempo. elétricas. E etcétera, etcétera.”1
Carregaram-me em seguida para a chamada capela:
a câmara de torturas. Iniciou-se ali um cerimonial O trecho acima é a reprodução de um panfleto
frequentemente repetido e que durava de três a que a escritora recebeu em sua casa. Sem nenhuma
seis horas cada sessão. Primeiro me perguntaram alteração, ela o colou ao livro, antecipando também
se eu pertencia a algum grupo político. Neguei. o uso de documentos na ficção, que seria bastante
Enrolaram então alguns fios em redor dos meus comum alguns anos depois. Em entrevista recente,
dedos, iniciando-se a tortura elétrica: deram-me a autora explica o que a impulsionou:
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PERNAMBUCO, NOVEMBRO 2018

HANA LUZIA

Ela não é uma autora ingênua. É na forma, ainda


outra vez, que achamos a resposta. O livro tem uma
estrutura febril. Tudo é muito urgente, complexo
e carregado. No final, uma das mulheres acaba
não resistindo e morre. Não se trata da maneira
saudável de crescer e passar a juventude. As outras
duas conseguirão continuar a vida, depois que o
romance acaba. Lia vai ao encontro do namorado
guerrilheiro, que estava preso e foi trocado por um
embaixador. As “meninas”, portanto, seguem a
vida sem deixar de lado esperanças e lutas. Não
há nenhuma concessão.
O romance termina com duas das amigas ar-
mando um plano para que a trágica morte da
terceira não impeça que a vida delas, por mais
conturbada que esteja, continue. O ambiente é
praticamente onírico, mas o plano mirabolante é
colocado em prática e tudo indica que dará certo.
A morte não vai impedir a luta. É tudo o que se
pode vislumbrar em 1973, quando o romance é
lançado. Os amigos sumindo, quem continua
vivo precisa sair do país e com isso as amizades
vão se romper.
O final do livro parece justamente ser o auge da
febre que toma conta de todas as páginas. Pare-
ce que o tom acelerado terá que, dali em diante,
diminuir. A autora deixa claro, portanto, que a
doença política que abatia a sociedade brasileira
estava levando à morte. Evidentemente, a cura só
poderia chegar com um tratamento. A metáfora
médica aparece no livro inúmeras vezes. Para as
coisas voltarem ao normal, será preciso observar
os sintomas e esclarecer com clareza o que estava
acontecendo: a violência política impedia a con-

A obra propõe uma


solução para a vida
em meio à tensão:
as três mulheres
são diferentes e
conseguem se
apoiar, se escutar
“E então por essa época, querido, quando estava e dividem todo tipo de dificuldade, emoção e es- vivência, causava a morte e separava as pessoas.
escrevendo o livro, eu recebo um panfleto de um perança: “Ana Clara fazendo amor. Lião fazendo Ela é que precisava ser tratada. No caso, isso só
sujeito que eu não conhecia, se eu não me engano comício. Mãezinha fazendo análise. As freirinhas poderia ter sido feito com esclarecimentos formais
ele era um engenheiro que deve ter morrido por- fazendo doce, sinto daqui o cheiro quente de doce de culpas e procedimentos judiciais adequados.
que desapareceu, um panfleto contando a tortura de abóbora. Faço filosofia”.3 Como sabemos, o Estado brasileiro continuou
dele no DOI-Codi. Eu morava com o Paulo Emílio A proximidade entre elas causa choque, claro, matando depois da ditadura. A proposta de Lygia
na Rua Sabará, Rua Sabará, 400, perto da Polícia mas ao mesmo tempo oferece saídas. Às vezes Fagundes Telles não ecoou. Se o Brasil antes as-
Federal, onde diziam os vizinhos ouviam gemidos, é um acordo, outras é preciso se distanciar um sassinava os opositores da ditadura, agora são os
gritos nos porões, onde eram torturados os presos pouco para não piorar as coisas. Sempre porém pobres, sobretudo não brancos, que são mortos. A
políticos da ditadura militar. Quando eu recebi esse há a consciência de que elas precisam umas das polícia brasileira, herdeira do aparato repressivo da
panfleto, eu disse: ‘Paulo, eu recebi esse panfleto…, outras. Nessas passagens o romance assume um ditadura, é uma das mais letais do mundo. A doen-
e eu queria aproveitar esse panfleto no livro que forte tom lírico: “Chegou. A janela do seu quarto ça não foi sequer diagnosticada e foram levados à
eu estou escrevendo’, e ele disse: ‘Você aproveita, acabou de se acender, ah, Lião, acho que nunca sua justiça apenas os opositores da ditadura. Os crimes
mas cuidado porque o livro pode ser censurado’”2. presença foi tão desejada. Se não fosse tão tarde e cometidos pelo Estado brasileiro entre 1964 e 1985
Por essa mesma posição de centralidade, depois se Aninha não estivesse nesse estado gritaria com jamais foram julgados graças a uma lei de anistia
da ação e antes da denúncia da reação despro- todas as minhas forças, Lia de Melo Schultz! E você que já foi contestada inclusive por organismos de
porcional e ilegal por parte do Estado, dá para responderia: ‘Presente!’”.4 direito internacional, aos quais aliás o Brasil nunca
afirmar com segurança que um dos aspectos mais Muitas vezes é um elemento externo que ameaça respondeu adequadamente. O resultado é que não
interessantes do livro é seu lugar de mediação. É a convivência. A mãe fútil de uma, o vício da mais temos até hoje uma democracia de fato legítima.
provável que Lygia Fagundes Telles tenha notado “perdida” e a militância política da Lia, personagem É isso o que acontece com países que não dão a
que vivia um momento de preparo para a transição. icônica dos nossos anos 1970. Quando as meninas menor bola para seus grandes escritores.
Para ela estava claro que a ditadura consolidaria percebem que seu mundo está para explodir, arru-
seus interesses e depois os militares sairiam de mam planos para a sobrevivência. Nesse momento, 1. Cf. TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. São Paulo:
cena. Foi o que de fato começou a acontecer com a violência que toma conta do país invade a vida Companhia das Letras, 2009. Pág. 148.
muita lentidão em 1979, com a lei de anistia e, seis delas, mas não tira a esperança: “- Lião, Lião, você 2. A entrevista foi publicada na edição de abril
anos depois, com a eleição indireta e malograda está brincando! E a nossa festa de despedida? A de 2013 da revista Brasileiros. Nessa mesma
de Tancredo Neves à presidência da República. gente tinha combinado uma festa. – Não dá pé. entrevista, a propósito, a autora explica por
Ao unir três moças diferentes em um espaço Um dia a gente festeja que vai chegar o tempo de que o livro não foi censurado: o censor achou
confinado, a hospedagem de um convento, tendo festa, agora é arrumar a mala e tocar pro aeroporto, o livro tão chato, que não conseguiu passar
sempre uma freira responsável por seus cuida- ô que medo. Não sou nem passarinho nem nada – dá página 20. O panfleto está depois da 200.
dos, o livro deixa claro que a questão é mesmo a resmungou levantando a mala”.5 Agradeço a Nilton Resende a lembrança.
convivência. As meninas propõe uma solução para Não é o caso de dizer, porém, que Lygia Fagundes 3. Cf. TELLES, Lygia Fagundes. Op. cit. Pág. 191.
a vida em meio à tensão: as três podem ser muito Telles defende que a sociedade vai ter que conviver 4. Idem. Pág. 249
diferentes, mas se apoiam, ouvem umas às outras e dar um jeito de acomodar conflitos e diferenças. 5. Idem. Pág. 251
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CAPA

Quais as saídas
para os tempos
de cólera?
As meninas nos dá
protagonistas não heroicas
que são modelos de ação
Eric Becker

Mas Deus está deste lado? As meninas nos dias de hoje: com sua gama de vozes e
As meninas, Lygia Fagundes Telles circunstâncias variadas, tudo na construção da obra de
Lygia Fagundes Telles está na contramão dessa visão
Não estamos vivendo em 1973. Mas, de certa maneira, unívoca e limitadora propagada pela extrema direita.
estamos. Muita coisa nos separa daquele ano em que As meninas não é o primeiro romance no qual Telles
Lygia Fagundes Telles — uma contista, sobretudo— recorre a uma narração polifônica – alternando-se
publicou o livro que é geralmente considerado seu entre as perspectivas e vozes de três personagens
melhor romance, As meninas. O Brasil àquela altura se femininas. Ela havia ensaiado essa técnica de com-
aproximava de uma década debaixo da ditadura ins- posição quase 20 anos antes em Ciranda de pedra, livro
taurada pelo golpe de 1964, e o aparato do Estado estava que marcou sua estreia no romance. As meninas conta
no auge da repressão violenta contra qualquer um que a vida de três jovens estudantes que moram em um
ousasse contrariar sua visão autoritária-nacionalista. pensionato de freiras em São Paulo no ano 1969, AI-5
Quarenta e cinco anos depois, o Brasil e o mundo em pleno vigor: a primeira, Lorena, vem de família
se deparam com a ascensão de discursos fascistas. abastada e oscila entre ruminações artísticas e sonhos
As meninas é um romance para ser lido em qualquer de casamento com um certo M. N., que por sua vez já
época, e suas lições nem de longe se restringem a tem mulher e filhos; Lia, a segunda, filha de baiana
questões referentes a regimes autoritários, mas, em com alemão, faz parte dos movimentos de resistên-
tempos assim, de extrema direita, o livro parece par- cia à ditadura e tem namorado preso; a terceira, Ana
ticularmente relevante. Clara, se entrega à droga e a um traficante, mas nutre
Eu estava morando no Brasil em 2016, quando Do- ambições de casar com um misterioso noivo rico que
nald Trump foi eleito o 45º presidente do meu país. talvez exista, talvez não. Ela acaba morrendo.
Tendo acompanhado com um pequeno grupo de ami- De certa maneira, a convivência de três moças,
gos no meu minúsculo apartamento em Botafogo a vindas de situações familiares, sociais, e econômicas
apuração dos votos que resultaram em sua inesperada bem distintas – desde a tradicional família brasileira
ascensão à presidência dos Estados Unidos (ver essas à família nenhuma – já apresenta uma certa afron-
palavras juntas continua, quase dois anos depois, me ta à ideia de homogeneidade essencial aos projetos
provocando espanto), me acomete uma sensação de nacionalistas e autoritários. A crítica do romance a
desespero parecida ao saber que, quando este texto esse ideal não se faz por meio de uma desconstrução
chegar às mãos do leitor, existem boas chances de Jair argumentativa de valores autoritários, mas pela própria
Bolsonaro ser o 38º presidente do Brasil. Por isso, me maneira como a história se constrói e por aquilo que dá
parece essencial ressaltar que, à maneira de clássicos a ver ao leitor. A propósito desse último aspecto, penso
como Primo Levi ou Simone Weil, As meninas é um livro aqui, é claro, na conhecida inclusão no livro do relato
que pode iluminar um pouco esses tempos sombrios. de uma sessão de tortura perpetrada pelos agentes do
Mais do que a afinidade pela força bruta, o que apro- regime militar, relato registrado num panfleto que
xima os discursos opressores do passado e do presente chegou às mãos da autora e foi por ela transposto para
é a tentativa de nos vender uma visão nacionalista am- sua obra. Mas penso também em como As meninas expõe
parada na ideia de uma sociedade homogênea—“um as ramificações mais insidiosas do conservadorismo
povo só”— que não permite a dissonância ou a dife- autoritário que deu sustentação ao regime.
rença e, por isso, em nada corresponde à diversidade Lia é menos cativa das atitudes da sua época do que
constitutiva do mundo humano. Daí a importância de suas amigas, assumindo uma atuação política que a
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HANA LUZIA

além de uma questão da condição feminina numa


sociedade patriarcal. O desespero das três meni-
nas é pouco diferente do clamor dos trumpistas e
bolsonaristas — enfim, de quaisquer grupos que
busquem refúgio sob o manto do nacionalismo e
da xenofobia — por um salvador que, no final, nada
fará senão dar continuidade à sua marginalidade.

***
Acontece algo interessante quando investigamos o
modo como Telles constrói sua narrativa. Vale aqui
voltar ao ensaio de Wasserman, para quem a quarta
voz narrativa, impessoal, aparece no livro como um
contraponto que expande os limites de percepção de
Lorena, Lia, e Ana Clara. Ao longo do romance, as
meninas se misturam com freiras, traficantes, homens
de indústria, membros da guerrilha, acontecimentos
que, como aponta o mesmo ensaio, mobilizam outras
perspectivas e pontos de referência que complemen-
tam os das protagonistas. Mesmo quando estamos
seguramente dentro da perspectiva de uma só per-
sonagem, a claustrofobia predominante em certas
cenas nunca chega a extinguir os laços do leitor (e
das próprias personagens) com o mundo fora das
consciências delas.
Porém, não é só pela representação de uma socie-
dade complexa através de suas diversas protagonistas
que Lygia lança sua crítica ao Estado autoritário e à
sociedade. Nem tampouco por trazer à tona as várias
maneiras pelas quais essa mesma sociedade com-
promete as meninas. É pela adoção de uma narração
que muitas vezes recorre ao fluxo de consciência
que Lygia arma a última fase da sua desmontagem
das falsas normas. A história da literatura é cheia
de exemplos parecidos; para falar em só um deles,
olhemos para Allen Ginsberg e Jack Kerouac, em
cuja obra existe uma tradição de empregar o flu-
xo de consciência em prol de um projeto político-
-literário, o aparente sem-nexo e o delírio surgidos
desta narração (só superficialmente fora de controle)
que abrem uma ruptura na realidade arrumadinha
oferecida pelas autoridades e por aqueles que com-
pram esta realidade ilusória. Esta saída dos eixos, que
representa de uma vez uma quase-incapacidade
de comunicar-se em pensamentos lineares e uma
revolta contra as normas, ocasiona o desmorona-
mento de uma proposta para uma organização da
sociedade que depende de linhas retas e frases de
efeito — “Brasil: ame-o ou deixe-o,” “Make Ame-
retira, em parte, da posição de observadora passiva legia, ora as oprime. Ana Clara serve de arquétipo da rica Great Again.” Se olharmos para esta técnica
da sua própria vida. Mas a morte da Ana, a eventual mulher exaltada por uma sociedade conservadora: sua narrativa como representação de uma mentalidade
volta de Lorena para a casa de sua mãe e o exílio da arma principal é sua beleza, mas ela se encontra presa insalubre (ou de forma temporária ou permanente),
Lia reforçam a falta de mobilidade do grupo e das num redemoinho de dependência química e afetiva, não podemos deixar de condenar a sociedade que
mulheres em geral. Este é o mundo que resulta de um de abuso de drogas e relações amorosas destrutivas, produziu o distúrbio – penso aqui, especificamente,
sistema político e um projeto de sociedade que preza sua potência sempre atenuada pela fragilidade. Sob nas falas da Ana Clara sob efeito de drogas.
a autoridade acima de tudo. Apesar das conquistas este aspecto, lembra Marilyn Monroe, ícone da época Se reconhecermos nas meninas personagens que
dos últimos quase 50 anos — o período que separa a que imediatamente antecede a de Ana Clara. Embora muitas vezes fogem às nossas expectativas e nos-
trama do romance dos dias de hoje — o surgimento perdida, ela se mostra ciente da insuficiência de uma sas esperanças, é nisso que reside o que parece ser
de figuras como extrema direita, com suas atitudes felicidade que depende de fatores exteriores quando uma mensagem duradoura da autora, que em vez de
e comportamento agressivamente danosos à vida de confessa, em diálogo silencioso com seu amante Max: apresentar-nos heroínas de caráter inquestionável
qualquer que um se desvie da norma por eles ditada, “Não sinto nada nem com você, nem com ninguém.” oferece protagonistas comprometidos que possam,
assegura que o romance da Lygia permanece mais Incapaz de combater as forças que conspiram para ainda assim, servir de modelos.
atual do que nunca. seu declínio, ela não será simples testemunha da sua O desfecho do livro reforça esta intenção. Depois da
O grande paradoxo do romance é a coexistência própria desgraça. súbita morte de Ana Clara no pensionato de freiras,
de um desafio às atitudes da época e da reiterada Lorena, por sua parte, considera que a única possibi- Lorena toma uma decisão que mantém vivo o futuro.
decepção que o leitor sente, por outro lado, ao ver as lidade de uma vida feliz passa por um casamento com Ciente dos esforços das freiras do pensionato em prol
três meninas repetirem comportamentos e pontos de um homem que já é marido e que nunca irá deixar sua da proteção dos opositores à ditadura, Lorena reconhe-
vista que reforçam os preconceitos de então. Nesse mulher. “Preciso de um homem em tempo integral,” ce que chamar a polícia implica deixar as freiras sob
jogo de contraposições, está parte da genialidade do ela diz a certa altura. Nascida em berço esplêndido, suspeita, situação que daria à ditadura uma desculpa
romance de Telles. ela toma por si o papel de protetora de Ana Clara e Lia, para acabar com as intervenções de certos setores
As três narradoras (existe um quarto narrador, que oferecendo-lhes sempre perfumes, sais de banho, e da Igreja pela vida de presos políticos e movimentos
se utiliza da terceira pessoa e se insere em contra- outros marcadores do seu privilégio. Como assinala de resistência. Lorena troca as roupas de Ana Clara e
ponto à narração em primeira pessoa de cada uma Renata Wasserman1, Lorena representa a mulher ci- leva seu corpo até uma praça abandonada para fazer
das meninas) apresentam um repertório amplo de vilizada (e a civilização em geral), mas com suas boas parecer que a amiga morreu ao sair da festa. Evitando
atitudes ultrapassadas que persistem (ainda que em intenções acaba perpetuando o ideal da mulher “bela, assim qualquer consequência para as freiras, Lorena
menor grau) nos dias de hoje, a começar pelo desdém recatada, e do lar”. representa a possibilidade de até os cidadãos mais
que Lorena mostra por religiões afro-brasileiras. Os Mesmo Lia, que atinge uma certa independência e imperfeitos contribuírem para a saída de tempos es-
maiores desejos das três, além disso, estão sempre protagonismo no curso da sua vida, segue para a Argé- curos. É com este gesto que o livro chega ao seu fim,
indissociavelmente ligados à presença de um homem. lia atrás do namorado depois que ele é solto pelas forças acenando com alguma esperança de que mesmo os
As protagonistas de Lygia se encontram fadadas a da repressão. Existe, para o leitor que acompanha sua defensores do status quo se desfaçam da sua conivência
certas desvantagens devido às atitudes vigentes em trajetória, certa frustração de ver alguém evidente- e entrem na construção do amanhã.
sua época — até o título do romance remete a uma mente capaz de superar as limitações impostas ao seu
falta de protagonismo nas suas próprias vidas —, mas gênero, seguir, no final, um rumo convencional. Não 1. WASSERMAN, Renata R. M. The guerrilla in the
seria um equívoco tratá-las como vítimas. Elas evi- é de todo impossível que Telles estivesse criticando a bathtub: Telles’s “As meninas” and the irruption of
denciam ao mesmo tempo os perigos de uma volta falta de imaginação por parte de Lia em escolher não politics. Modern Language Studies, vol. 19, no. 1, 1989,
ao passado e as possibilidades que existem diante de superar estas limitações. pp. 50–65. Disponível em: www.jstor.org/stable/3195266.
sistemas opressores. Curioso é, nesta onda de líderes nacionalistas e
As jovens estudantes em torno das quais gira a trama autoritários, refletir sobre como esta fragilidade, Leia mais sobre Lygia Fagundes Telles nas páginas
do romance são espelho da sociedade que ora as privi- esta busca por um homem salvador, também vai 24 e 25 desta edição.
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ARTIGO

“Pervertidos” PRÉVIAS
Manoel Carlos Karam (1947–2007) foi um escritor
brasileiro nascido em Rio do Sul, Santa Catarina, que
trumental e veicular, tornando-se também ela espaço
expositivo, palco para o descontínuo, o baralhado. São

a fitar um baile
passou a maior parte de sua vida adulta em Curitiba. literaturas que não explicam, não iluminam, não con-
Alhures do Sul é um duplo curitibano de invenção do firmam o mundo, estabelecendo com ele outras relações.
autor. Seus três romances mais conhecidos – Fontes Nosso aparato crítico mostra-se sempre insuficiente
murmurantes, O impostor no baile de máscaras e Cebola – com- quando buscamos falar deles. Pode-se mesmo dizer
põem o que veio a se chamar Trilogia de Alhures do Sul. que suas obras contribuem ativamente para que as

de máscaras
Hilda Machado (1952 – 2007) foi uma cineasta, coisas permaneçam na desrazão.
pesquisadora, professora e poeta brasileira. Pratica- Nesse sentido, são mais realistas que os realistas.
mente inédita em vida, seus poemas foram recolhidos
no volume póstumo Nuvens, há pouco editado pela 34. NOTA SOBRE O REALISMO, A VEROSSIMILHANÇA E
OUTROS MALES QUE ASSOLAM AS NAÇÕES
Irradiações sobre literatura NUM ANO SEM ANIVERSÁRIOS
Manoel só com muita paciência
“São conhecidos esses enredos lineares do cinema
dito ‘enlatado’, onde não nos poupam nenhum elo

e olvido a partir de Manoel Manoel Carlos Karam, em Pescoço ladeado por parafusos na sucessão dos acontecimentos os mais previsí-
veis (...). Na verdade, nosso pensamento caminha

C. Karam e Hilda Machado


Remexo esse ano à procura de algum aniversário. mais depressa – ou ocasionalmente, mais devagar.
Viro de borco, caem seus conteúdos sobre a mesa. Seus passos são mais variados, mais ricos e menos
Dias e meses estridindo de encontro à superfície. tranquilizadores: pula trechos, registra com precisão
Abotoaduras, palitos, moedas de cruzado-novo. Não elementos ‘sem importância’, repete-se, recua. E
Ismar Tirelli Neto acho nada. é esse tempo interior que nos interessa, com suas
Mas foi por um triz. estranhezas, suas interrupções, suas obsessões, suas
Em 2017, ano em que teria completado 70 anos de regiões obscuras, uma vez que ele é o tempo de nossas
idade, o escritor Manoel Carlos Karam fez 10 anos de paixões, de nossa vida.”
falecido. Era solenizar, e a imprensa – pelo menos a (Alain Robbe-Grillet em sua introdução ao roteiro de
de Alhures do Sul – mostrou-se à altura da ocasião. O ano passado em Marienbad, tradução de Elisabeth Veiga).
Estamparam-se entrevistas, memoriais. Até mesmo
inéditos. E depois? CARTA DE UMA DESCONHECIDA
Fechou-se novamente a minúscula fenda através Karam,
da qual o Karam e tantos, tantos outros por vezes Sempre que me cai um texto seu nas mãos (há muitos
comunicam conosco. ainda por ler), costumo ter a impressão de estar diante
Existem autores que “assomam” apenas de onde de um autor que ama – quase cristãmente – as ficções;
em onde. Precisam de bobagens desse tipo, decenários, um autor que ama, nos outros, justamente sua capa-
centenários. É nessas ocasiões que tomam fôlego. O cidade de extrapolar. Posso estar enganado. Não seria a
suficiente para enfrentar o próximo estirão de es- primeira vez. Posso até aventar onde o erro começou
quecimento. – na altura em que emprego o verbo “amar”, de “um
Lamentamos, então, e em coro afinadíssimo, que autor que ama” em diante. Encontro, todavia, reforço
não sejam mais lidos e que não tenham recebido em para essa impressão numa crônica sua de nome Lenda,
vida o reconhecimento que mereciam. Agora, dizemos, que começa assim:
quem sabe agora o grande público não estará prepa-
rado para estes excêntricos, sabotadores, milagreiros Lenda.
de província? Taí uma coisa que me agrada.
Com efeito, quem sabe? Uma coisa se pode dizer Não é história que alguém viveu,
com justeza sobre nosso literariado – somos todos uns é história que alguém inventou.
otimistas incorrigíveis.
Subsídio para essa impressão encontro também na
EM QUE O AUTOR COMETE A DESELEGÂNCIA formidável confraria que habita seu O impostor no baile de
DE COMPARAR MANOEL CARLOS KARAM máscaras. Os personagens se exercitam constantemente
A UMA MARIA-MOLE na fabulação, no escambo de ficções extravagantes.
Manoel Carlos Karam integra um vasto rol de escritores Não tivessem nomes, arriscavam se fundir todos numa
que não pegam. Cada volume póstumo, cada reedição mesma entidade ficcional, numa mesma voz. Não se
de obra fora de catálogo, cada adaptação para teatro ou constata corpo para além do estritamente necessário.
cinema é um lance, tentativa tanto de fixação quanto de Corpos para sentar e falar invenções.
circulação. Mas são autores que desbotam por qualquer Essas ficções circuladas por suas criaturas, elas não
coisa. Marias-moles caindo da “parede da memória”. Não parecem estar a serviço de nada; apenas comprovam,
há prêmio ou honraria que os torne canônicos. circularmente, nossa capacidade de fazer ficções. Dão à
Este vasto rol de escapados, ele não para de crescer. boca dos nomes como bolhas, saem voando, resis-
Desconfio que isso não mudará tão cedo. Nosso merca- tem improvavelmente à garoa de Alhures do Sul. Por
do editorial não difere tanto assim do star system vigente resistirem, chegam mesmo a adquirir certa beleza
na Hollywood dos tempos “áureos” – preocupa-se moral, penso que diretamente proporcional à sua
mais em inventar fenômenos do que promover o falta de serventia.
trabalho de bons escritores. Alguns fenômenos ca- Penso que contar histórias – contá-las, interceptá-
lham de ser bons escritores, isso não está em questão. -las, persegui-las, dá igual – é coisa corriqueira em
O que se quer ressaltar aqui é o fato de que muitos seu universo ficcional. De seguida, penso que se trata
escritores igualmente bons – quiçá melhores – são de um universo ficcional onde o corriqueiro tem lugar,
condenados ao esquecimento por serem, por assim mas a realidade não.
dizer, invendáveis. Deve começar com o tom: voz mansa, quase neutra,
Juntos, estes autores vão construindo um sumiço. certamente inimiga do ornato e do difícil. As palavras
Um entorno negativo, um subterrâneo, uma vizinhan- de que você se vale para delirar são as mesmas que uso
ça de fama ingrata. São os ilustres desconhecidos por para pedir pão na padaria. Que utilidade veria o senhor
definição. E, se quase não deixam vestígio na cultura num “estridir”, num “traquinar”? Talvez gostasse,
em larga escala, vão pondo queimaduras abomináveis no entanto, da ideia de “um ano sem aniversários”.
num punhado de incautos. Colidir com eles de fato Você não parece reconhecer o sentido como uma
nos deforma, inverte os termos do jogo em definitivo. urgência.
Passamos a pensar: quantos outros autores excepcio- Penhorado, agradeço.
nais o cânone não absorveu? Que outras literaturas
não foram propriamente digeridas pelo tempo, pelo MISSÃO
gosto, pela circunstância? Visitar a praça de alimentação do Mercado Municipal
E aqui me lembro de que o grupo teatral com que de Curitiba – o setor que leva seu nome – que leva
Karam esteve envolvido pela maior parte da década seu nome errado – “Karan” em vez de Karam – fitar
de 1970 chamava-se, justamente, Margem. longamente a ausência da perninha do “m” na tabuleta.
Teimam na borda. São autores, o mais dos casos, que
praticam uma literatura de desacordo. Uma literatura “PERVERTIDOS”
capaz de – como disse o escritor Nelson de Oliveira Why must I have him for a friend?
a propósito de Karam – “enlouquecer e erotizar tudo Donald Barthelme, em The phantom of the opera’s friend
o que toca”. Estão o tempo inteiro traquinando com
nossas expectativas quanto ao que a literatura deve ser. Uma lenda, agora. Era uma vez uma mulher cha-
Em suas mãos, a linguagem excede seu caráter ins- mada Hilda Machado. Hilda foi minha professora
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KARINA FREITAS

durante minha meteórica passagem pela Escola de Ci- Claro, o obscuro tem sua sedução fácil, serve ainda incumbiram já de iniciar a conversa-Karam. De-
nema Darcy Ribeiro. como insígnia para algo. Mas penso que o pendor de vemos aos escritores Joca Reiners Terron, Marçal
Foram três ou quatro as ocasiões em que Hilda me Hilda para o obscuro nada tinha a ver com isso. Tinha Aquino e Nelson de Oliveira algumas observações
convidou até sua casa para ajudá-la a organizar suas a ver com justiça. definitivas sobre seu trabalho. Devemos à Kafka
estantes. Durante esses encontros, ao longo dos quais (Por um momento, cogito renomear esta subseção e à Arte&Letra, casas editoriais de Curitiba, a re-
muito pouco trabalho era de fato realizado, Hilda ia – chamá-la “Missão” também). edição de muitos livros seus que passaram anos
discorrendo com verve característica sobre autores Relaciono aquelas tardes em casa de Hilda à maneira fora de catálogo. Devemos aos idealizadores do
que a interessavam, não raro agrupando-os sob a como venho organizando minhas leituras de uns anos projeto Mesmas Coisas a realização de uma série de
alcunha de pervertidos. para cá: norteado pela impressão de que há literaturas eventos celebrando os textos de Karam ao longo de
Chamam-se Hilda também: Maura Lopes Cançado, que precisam de mim e outras tantas que passam bem 2017. Que fazer, no entanto, para que a conversa
Samuel Rawet, Victor Giudice, Campos de Carvalho, sem minha ajuda. continue? Para que deixe de começar, para que
Antônio Fraga, Zulmira Ribeiro Tavares, Cornélio Pena, As literaturas que passam bem sem minha ajuda continue?
Murilo Rubião, Valêncio Xavier, Rosário Fusco etc. não são, bem-entendido, más literaturas. São apenas Jamais ergueremos esses autores em palácios,
Todos uns pervertidos. as que ocupam mais espaço. Arquiteturas, sem sombra em inevitabilidades culturais ou históricas, mesmo porque
Hilda era uma incansável circuladora de autores – e de dúvida, grandiosas, fascinantes. a literatura que produzem não tem com o mundo
cineastas, artistas visuais etc. – não canônicos. Ela tra- Mas obstruem algo. relação polida e convencional. Podemos, no en-
zia estes nomes para a conversa cotidiana, para a curva, Dois exemplos concretos: 1) No jornal paranaense tanto, e cada qual à sua maneira, seguir o exemplo
minando nosso panteão. Mesmo quando se debruçava Nicolau (ano IV - número 30), uma resenha assinada de Hilda e continuar fazendo frente a seu desa-
sobre um autor canônico, buscava excentricizá-lo, por Raimundo Caruso do romance de estreia de Karam, parecimento, convocá-los à conversa geral com
não se demorava nos aspectos conhecidos de todos. Fontes murmurantes, na qual o crítico, antes de comparti- mais frequência, mais energicamente. Não perder
Esguelhava. Tudo a perder com o óbvio. Se o assunto lhar suas impressões, faz um extenso preâmbulo sobre nenhuma oportunidade de pôr essas literaturas
era Bilac, era falar de seu erotismo. Se Machado vinha como o livro não lembra o trabalho de Leminski. no rumo de alguém e, com isso, dar mostras concre-
à mesa, falava de seu teatro. 2) Uma entrevista concedida por Karam ao jorna- tas a todo o tempo de que “nossa” literatura é de
Foi Hilda quem tornou triunfante, a meu ver, o lista Sérgio Brandão em seu programa Persona (UFPR fato vária, plural, irredutível a uns poucos santos
trabalho do pesquisador. Do fuçador. Quanto mais ca- TV), emissão de aproximadamente 30 minutos, mui- padroeiros.
ótico, em desacordo com as instituições vigentes, tos inexplicavelmente dedicados a perguntas sobre Quem sabe agora o grande público não estará
melhor. Por conta de nosso breve convívio, passei Dalton Trevisan. preparado para estes excêntricos, sabotadores,
a ver esse ato (esse ethos) de plantar bombinhas de milagreiros de província? Com efeito, quem sabe?
cheiro pelas galerias de nossos grêmios literários como GRAN FINALE EDIFICANTE
coisa heroica. Ela era a memória trabalhando onde a Parece quase impossível continuar falando de certos Leia um conto de Manoel Carlos Karam na seção Iné-
memória falhara. escritores. Pode-se apenas começar. Muitos se ditos (pág. 27) desta edição.
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RESENHA

Uma linguagem Ao escrever sobre Fernanflor, romance que o cea-


rense Sidney Rocha publicou em 2015 pela editora
Iluminuras, o escritor português Gonçalo M. Tavares

para pensar
afirma que na obra de Rocha tudo é linguagem. O
mesmo pode ser dito de seu recém-lançado ro-
mance A estética da indiferença, publicado pela mesma
editora. A busca pela inventividade na linguagem é
um dos traços marcantes da obra de Sidney Rocha

as violências
desde a sua estreia, em 1994, com o romance Sofia
(Ateliê Editorial). O autor se dedica à crônica, ao en-
saio, ao roteiro, porém as duas expressões literárias
mais significativas da sua obra são sem dúvidas o
conto e o romance. Rocha conseguiu formular um
Dos bons desvios feitos por estilo imediatamente reconhecível que atravessa
tanto as suas narrativas longas, quanto as curtas.

Sidney Rocha em seu livro Mas um estilo – palavra sempre problemática, mas
ainda assim necessária – não é formado apenas

A estética da indiferença
de um cordão de palavras, e, sim, de uma visão de
mundo e de temáticas recorrentes. Dessa forma,
é possível identificar no que foi publicado desde a
década de 1990 um conjunto de temas recorrentes,
Cristhiano Aguiar bem como uma perspectiva sobre o humano e uma
formulação política a fundamentar a sua ficção.
Dependendo de qual gênero literário Sidney Ro-
cha escolha, as estratégias literárias que ele usa a
fim de abordar suas obsessões literárias mudam
sutilmente. Há uma homogeneidade ideológica e
estilística, como um todo, em seu trabalho, sem
dúvidas. Sidney não é o tipo de artista que assume
heterônimos, ou que pode ser entendido em termos
de fases de ruptura consigo próprio. No entanto, nos
contos dos livros Matriuska, O destino das metáforas e
Guerra de ninguém, há uma maior acentuação de uma
dimensão narrativa e irônica na sua linguagem. Com
isso, quero dizer que os contos de Sidney Rocha
investem no experimentalismo, sem deixar, porém,
de desenvolver uma mínima clareza de enredo e de
conflitos vividos por seus personagens. Além disso,
são contos que lançam mão não do humor de riso
solto, mas de um sorriso no canto do rosto. Sidney
Rocha é mais Dom Casmurro do que Auto da Compadecida.
Os seus romances, por outro lado, e me refiro a
Sofia, Fernanflor e agora a A estética da indiferença, abrem
mão quase por completo do desenvolvimento de um
enredo a ser contado e de uma abordagem tradicio-
nal de psicologia de personagem a ser trabalhada
– psicologia essa que tradicionalmente é pensada,
na história da formação do romance moderno, em
termos de pessoas em posição de conflito com o
Outro ou com o Mundo. Os protagonistas dos três
romances são menos personagens e mais pontos
de articulação de um tsunami linguístico que, em
seus melhores momentos, propicia a nós leitores
algumas das mais instigantes páginas do romance
contemporâneo brasileiro. Neste sentido, a estru-
tura de A estética da indiferença é semelhante à dos do Brasil em suas tragédias e em sua permanente
romances anteriores. crise de identidade, tópico fundamental da lite-
A partir de uma situação dada – a vida coti- ratura brasileira como um todo, e que se mantém
diana e o matrimônio em crise dos protagonistas na contemporaneidade talvez com menos força
Michi, o narrador do livro, e Hana, sua esposa –, do que no modernismo, tem peso menor em um
acontece uma justaposição de cenas poéticas, or- livro como A estética da indiferença. Da mesma forma,
ganizadas entre si, sem amarração rígida. O livro a ênfase nos conflitos da cidade fraturada social-
é divido em cinco partes. Embora a leitura linear mente, ou uma reflexão sobre raízes regionais, dois
seja a mais natural, o leitor poderia sem prejuízo temas recorrentes na nossa prosa de ficção, possuem
algum escolher ler cada parte na sequência que relevância menor aqui. As várias modalidades das
julgar melhor. Assim, A estética da indiferença bebe na escritas do “eu”, como a autoficção, por exemplo,
grande tradição dos romances experimentais, que ou o foco nos conflitos identitários de gênero e
vai do Vida e opiniões de Tristram Shandy, passando por raça, não são enfatizados em sua escrita. Michi, o
Memórias póstumas de Brás Cubas, Mrs Dalloway, O jogo da narrador-protagonista de A estética da indiferença, é
amarelinha ou Avalovara. Aos leitores cinéfilos, penso negro. Embora a crítica ao preconceito e ao racismo
que seria possível considerar A estética da indiferença se encontre no romance, o foco reside menos nas
como um romance aparentado com o cinema de implicações sociais da sua negritude e muito mais
autor da segunda metade do século XX. Me refiro a em outras questões, ligadas diretamente ao mundo
filmes como Acossado, de Godard, Hiroshima, meu amor, interior do personagem.
de Resnais, ou Amarcord, de Fellini. Isto posto, mi- Por dar menos peso à busca do nacional e do
nha preferência pessoal de leitura, contudo, pende regional, explica-se porque existe em livros como
mais ao equilíbrio dos elementos constituintes dos Guerra de ninguém, Fernanflor e A estética da indiferença uma
contos de Sidney Rocha, não obstante o fascínio que pluralidade de tempos históricos e espaços sociais.
um livro como A estética da indiferença me causa. Sou Os principais personagens de A estética da indiferença
irremediavelmente mais Hitchcock e Billy Wilder vivem em um condomínio fechado chamado Ama-
do que Godard. ravati, localizado em algum país turístico, ou em
A estética da indiferença aponta algo que reputo ser uma região turística de algum país que pode tanto
a primeira característica relevante da obra de Ro- ser europeu, quanto sul-americano. Há pouca “cor
cha na qual devemos prestarmos atenção: como local” no romance e seus principais espaços são o
tive oportunidade de escrever em outras ocasiões, típico lugar-nenhum onde vive parte das elites do
acredito que seus contos e romances sejam escritos mundo globalizado – uma vivência “nostálgico-
programaticamente na contramão de algumas im- -shopping center”; espacialidade construída por um
portantes tendências da literatura brasileira contem- Romero Brito em crise depressiva. Há um mapa-
porânea. Por exemplo, a busca de um entendimento múndi na obra de Sidney Rocha, fazendo com que
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KARINA FREITAS

a circunstância do “eu sou brasileiro” se posicione


nos bastidores da sua ficção. Sidney, nesse senti-
do, também escreve na contramão do Realismo,
Por dar menos pesadelo, o senhor está falando das torres caindo,
da lanchonete e a bomba e os terroristas, não, o se-
nhor me chamou pelo nome, policial, sim, chamei,
usando às vezes o fantástico, o insólito, o nonsense
e a paródia como estratégias de desnaturalização
da sua linguagem.
peso à busca Michi, de onde nos conhecemos, ele simplesmente
disse, fuja desse inferno antes que, Michi”.
Diante desse pessimismo, o amor é buscado pe-
Qual é então o grande tema que penso atravessar
a obra de Sidney Rocha como um todo? A perspec- do regional e do los personagens de Sidney Rocha como válvula
de escape, e isso se apresenta de maneira muito

nacional, Sidney
tiva pessimista, desencantada, de que as relações acentuada tanto em Sofia quanto em A estética da in-
sociais e em especial a política são fundamentadas diferença. A idealização da figura feminina feita pelos
na violência. Há pouca militância ou idealismo narradores masculinos de Rocha, idealização que

Rocha se debruça
político na ficção de Sidney Rocha, porque as nar- sempre compõe um retrato lírico e melancólico de
rativas utópicas, as ilusões, o projeto de fazer o bem mulheres ausentes, distantes, fugidias, é o antídoto
comum, embora existam em seus personagens e procurado por esses homens à sua própria tomada
não sejam negados de maneira cínica, esbarram
na realidade prática do confronto e da aspereza das
relações entre indivíduos e instituições. Aos poucos,
sobre vários tempos de consciência a respeito da crueza do mundo so-
cial. O ponto de fuga é o amor, o sexo e a obsessão
por “mulheres-pergunta”: sempre desconhecidas,
a fim de explorar esse seu tema, Sidney Rocha foi
desviando a lupa das classes mais humildes e das
classes médias, foco dos contos de Matriuska, a fim de
históricos e espaços mesmo quando próximas, como é o caso de Hana.
A estética da indiferença não desmonta totalmente a
idealização do feminino; pelo contrário, a utiliza
pensar a violência jogando a lupa nas classes mais “a carne de um animal que mato com as minhas enquanto plataforma lírica: “Noutro tempo-lugar,
favorecidas. É o caso de A estética da indiferença: Michi próprias mãos é duas vezes mais saborosa. Esta é eu abraçava Hana à beira-rio, enquanto a água
e Hana, assim como os personagens secundários, a melhor maneira de alguém conectar-se com a se esguichava diante da fonte do teatro. Tudo era
vivem uma rotina entediada de visitas, passeios e natureza, e, sem dúvida, a mais divertida; por isto muito nítido e vivo. Eu contava a ela de um sonho
programas culturais; sentimos que a tensão social tantas pessoas gostam de caçar”. A máscara pode que tivera, e éramos ao mesmo tempo os especta-
existe, no entanto ela está nas franjas da vida des- cair, em A estética da indiferença, pelas portas do delírio. dores e os personagens no palco que diziam, em
sas pessoas. A tensão da violência possível é, na Um dos melhores momentos do livro consiste em sua conversa: – A nossa vida é de segunda mão”;
verdade, uma das origens da infelicidade e do tédio uma alucinação na qual Michi enxerga um aten- ou “Olho para Hana e Hana é sempre Hana. Hana
vividos pelos personagens do livro. tado terrorista na cidade de Cromane, próxima ao entregue à sua música, Hana e sua flama inocente
No entanto, volta e meia o horror explode e mos- condomínio fechado onde se refugia: “Sentei-me mas nunca tola”.
tra sua cara. Ninguém representa melhor as forças ou caí enfim, e não poderia ser que tudo para mim É justamente na autonomia e concentração poé-
sublimadas da destruição como Tomás, perso- terminasse, não pare por nada, senhor, levante-se tica das cenas narrativas, cenas funcionando como
nagem de inclinações fascistas que é viciado em daí e corra, mas para onde, policial, para qualquer miniaturas, que encontramos os melhores momen-
matar porcos, personagem que diz coisas como isso: lado, Michi, mas não pare, corra para fora desse tos de A estética da indiferença.
HUMOR, AVENTURA E HISTÓRIA EM
LIVROS PARA ADULTOS E CRIANÇAS

O INQUISIDOR OS FILHOS DO DESERTO MIRÓ ATÉ AGORA


Ângelo Monteiro COMBATEM NA SOLIDÃO Miró
Lourenço Cazarré
Ângelo Monteiro, um dos expoentes Reúne livros de Miró, em que é possível
da Geração 65, é lembrado como um Cazarré retorna à época da escravidão enxergar o ritmo, a voz e seu gestual
“vulcão”, tal é a efervescência e o calor que no Brasil para contá-la através de um performático: dizCrição, Quase crônico,Tu
emanam de sua obra. Os poemas deste menino, feito prisioneiro na África para tás aonde?, Onde estará Norma?, Pra
livro ganham figuras e formas através do ser vendido a homens brancos no país. não dizer que não falei de flúor, Poemas
pano de fundo do regime militar do Brasil, Mas Kandimba torna-se protegido da para sentir tesão ou não, Quebra a direita,
provando que a alcunha atribuída ao poeta poderosa Dona Joana, uma rica mestiça segue a esquerda e vai em frente, Flagrante
faz todo o sentido. que, além de cuidar dele, vai apresentá- deleito, Ilusão de ética, São Paulo é
lo ao maravilhoso mundo da leitura. fogo e Quem descobriu o azul anil?
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Álvaro Filho NA OBRA MUSICAL DE CHICO
HQ baseada no livro A noiva da Revolução, BUARQUE DE HOLANDA
de Paulo Santos, com roteiro do autor e Vencedor do IV Prêmio Pernambuco de Alberto da Costa Lima
ilustrações de Pedro Zenival. Os fatos Literatura, apresenta um escritor que se
históricos são narrados pelo líder da envolve na narrativa, mesclando ficção e Um mergulho na obra de Chico Buarque,
Revolução Pernambucana, Domingos realidade. Com elementos fantásticos e tido como o grande intérprete da alma
Martins, e sua esposa, a portuguesa Maria muita autoironia, o autor brinca com os feminina e uma das maiores expressões da
Teodora da Costa. O amor dos dois, que clichês dos romances policiais noir, num MPB, que analisa a condição da mulher em
enfrentou preconceitos, acontece durante a jogo metanarrativo com a estrutura do suas músicas e identifica como o discurso ali
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GORDOS, MAGROS E GUENZOS JOSÉ PIMENTEL: ALÉM DAS OUTRO LUGAR


José Almino de Alencar PAIXÕES Luis S. Krausz
Cleodon Coelho
Miscelânea composta de crônicas, reflexões Vencedor do Prêmio Cepe Nacional de
literárias, pequenas narrativas, relatos Perfil do ator, diretor, escritor, poeta, professor Literatura em 2016, o romance de Luís
históricos e memórias de José Almino. e jornalista José Pimentel, memória viva Sérgio Krausz inicia com uma viagem a
Como uma variação do brilho de sua obra do teatro pernambucano desde os anos Nova York, numa narrativa vertiginosa
poética, as crônicas parecem transitar 1950, quando novas concepções cênicas rumo ao desconhecido. O livro é construído
entre poesia e prosa, sem que haja risco conquistaram o respeito do Brasil. Após através de palavras inacreditavelmente
na mudança de gênero, com refinada integrar a Paixão de Cristo de Nova conscientes, torpes, profundas e friamente
sensibilidade aos tipos populares ou Jerusalém por mais de 20 anos, encenou críticas ao homem, que buscam levar seu
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Memória Viva, o livro focaliza um dos episódios de violência
vida e obra de Ademir Araújo, imposta aos militantes de oposição
o Maestro Formiga, compositor, pela ditadura brasileira, quando seis
instrumentista, arranjador, regente componentes da Vanguarda Popular
e pesquisador que, com espírito Revolucionária foram encontrados com
inovador, muito tem contribuído sinais de execução sumária, entre eles a
para a cultura musical do estado, companheira do agente infiltrado Cabo
o que lhe fez conquistar o título de Anselmo, que teria comandado a trama.
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PERNAMBUCO, NOVEMBRO 2018

José
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MARIA JÚLIA MOREIRA

Dentro do capote
Uma famosa frase de Fiódor Dostoiévski Assim como Akáki pretende esconder a No gabinete do figurão, ele se vê frente a frente
ressoa em nossos ouvidos e, hoje mais que miséria sob o disfarce precário de um capote, com uma série de subalternos que, como má-
nunca, não deve ser esquecida: “Todos nós nosso mundo contemporâneo esconde, como quinas de duplicação, imitam uns aos outros.
saímos do capote de Gogol”. A referência a pode, qualquer sinal da pobreza e da presença Comenta o narrador, quase em desespero: “Pois
Nikolai Gogol, o grande pai da literatura russa, trágica dos pobres. Nada disso, desde Gogol, é, na Santa Rússia tudo está contaminado pela
e a Akáki Akákievitch, o protagonista de seu se alterou. Ao contrário: a paixão pelo disfarce imitação, cada um arremeda seu chefe e ban-
célebre relato O capote, de 1842, nos serve não e pela maquiagem parece ser uma marca das ca o chefe”. A luta pelos pequenos poderes,
só para pensar a literatura contemporânea, classes abastadas de nosso século XXI. Para ontem como hoje, é feroz. Também o figurão
mas, sobretudo, nosso perturbado mundo a feiura, os cosméticos e o photoshop. Para a encobre sua prepotência com um deficiente
contemporâneo. miséria, a negação e a cegueira. teatro: “Era um homem de maneiras e costumes
Como os leitores de Gogol já sabem, Akáki De posse do capote novo, e depois de muita graves, majestosos, mas não complicados”.
é um funcionário de baixa categoria do Estado relutância, Akáki aceita, quase à força, o Sua ostentação de poder mais notória é uma
czarista, conhecido na repartição pública por convite para uma reunião social na casa de frase que, ainda hoje, os prepotentes gostam
sua imobilidade e obscuridade. Passa os dias a um colega. Ainda é tudo muito precário, e de repetir: “Será que o senhor sabe com quem
fazer cópias de documentos, reconhecidos pelo aqui o próprio narrador não esconde suas está falando?”
rigor e aplicação. É quase um robô. Akáki tem incertezas: “O lugar exato em que morava Depois que o figurão o enxota, Akáki retorna
um velho capote, todo em frangalhos, com qual o funcionário que o convidara é coisa que mais uma vez para seu quarto. “Como des-
mal consegue se proteger dos velozes ventos infelizmente não sabemos”, ele admite. Nar- ceu a escada, como tomou a rua – nada disso
de São Petersburgo. “Akáki Akákievitch não rar – desde Gogol – se transformou em uma Akáki Akákievitch chegou a notar. Não sentia
se entregava a nenhum divertimento. Ninguém aventura de alto risco, na medida em que a os braços nem as pernas. Nunca fora tão forte-
podia dizer que algum dia já o tivesse visto em realidade se tornou instável, traiçoeira, e está mente repreendido.” Cai doente. Um médico
alguma festa”. Miséria e tristeza – não só no recoberta por muitas máscaras. Diz ainda o é chamado, mas não há esperança. Ele morre.
caso de Akáki, mas até hoje – se misturam e perplexo narrador, de acordo com a tradu- “Desapareceu e eclipsou-se um ser que nin-
se alimentam. Do mesmo modo, seu capote ção de Paulo Bezerra para a Editora 34: “não guém defendera, que ninguém estimara, por
provocava zombarias entre os colegas. “É pre- se pode penetrar na alma de um homem e quem ninguém se interessara, que não chamara
ciso dizer que o capote de Akáki Akákievitch descobrir tudo o que ele possa ter em mente”. a atenção de um naturalista”, descreve. O único
era também objeto de galhofas na repartição: Narrar também é mascarar, narrar também lampejo de felicidade em sua vida fora o capote
tiraram-lhe inclusive o nobre nome de capote, é, de alguma forma, cambalear. perdido. Akáki foi um ninguém, da mesma for-
substituindo-o por roupão.” Tarde da noite, atravessando uma praça ma que as favelas, os presídios, as calçadas estão
O abismo entre a pobreza e a riqueza marca escura, Akáki é assaltado. Levam-lhe o capote cheias de personagens eliminados pela dor.
o ambiente da Rússia czarista e se infiltra pela – que é quase tudo o que ele tem. Aflito, ele Não parece haver solução dentro dos limites
gola e pelas mangas bolorentas de Akáki. Algo volta para casa, abalado por tremores. “Akáki da realidade e, por isso, o conto de Gogol toma
parecido com esse miserável capote enco- saiu triste para o seu quarto, e só quem pode um rumo fantástico, única saída possível para
bre, muito mal, a miséria de hoje. Também imaginar minimamente a situação de outra uma história sem saída. Então, Akáki retorna
o mundo contemporâneo é feito de disfarces pessoa é capaz de julgar como ele passou a à Terra como um fantasma e passa a roubar
e de frágeis consolos. E como debochamos e noite.” A máscara e o consolo do triste Akáki capotes de transeuntes em busca do que perdeu.
desprezamos aqueles que andam em farra- caíram. Também como nos tempos de hoje, Visita, por fim, o figurão e, o agarra pela gola;
pos! Pois é desse personagem triste e de seu e depois de desistir dos caminhos legais, o homem se apavora ao ver o próprio Akáki,
surrado capote que Gogol retira seu grande lhe sugerem que procure certo figurão – uma “num uniforme velho e surrado”, que está de
relato. Na luta para superar a imagem infeliz prótese de autoridade – que, dizem, poderá volta para um acerto de contas. Akaki lhe rouba
e, sobretudo, para se proteger do frio, Akáki, resolver seu caso. De novo, em meio às trevas o capote – vinga-se do desprezo de um homem
depois de muita luta e de privações, consegue que o cercam, o narrador vacila: “Quem era que o tratara como uma mosca – e desaparece.
um pequeno dinheiro e convence o alfaiate exatamente esse figurão e que posto ocupa- Em um mundo fechado e sem saída, só o re-
Pietróvitch a lhe fazer um capote novo. A nova va é coisa que até hoje estamos por saber”. curso à fantasia, muitas vezes, traz a sensação
roupa não irá apenas aquecê-lo, mas também A franqueza desse narrador indigente con- enganosa de libertação. Sair do capote, deixar as
lhe devolver a dignidade. Vestindo-a (como a trasta com a onipotência dos narradores de máscaras para trás e enfrentar o real, contudo,
uma fantasia) voltará a existir. nossa literatura comercial. é o único caminho.
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PERNAMBUCO, NOVEMBRO 2018

INÉDITOS Silviano Santiago

Lygia, revolta e disciplina


1. palavras e, reminiscente das artimanhas do velho
No dia 25 de janeiro de 1977, a escritora Lygia Fa- DIP1, percebe o uso pelo arbítrio da tesoura e da
gundes Telles viaja a Brasília para entregar a Ar- mordaça. Ao final da carta citada, lamenta o exer-
mando Falcão, ministro da Justiça, um manifesto cício impune da serenidade e firmeza ministerial:
assinado por 1046 intelectuais e artistas brasileiros. “Incrível a mutilação do seu programa no Globo
Está acompanhada da colega Nélida Piñon e do Repórter!” E acrescenta: “Mesmo assim, o que sobrou
historiador Hélio Silva. No documento, pede-se o deu para se divulgarem algumas verdades. Gostei. E
fim das restrições à liberdade de expressão e dos ver você na TV é uma maneira de matar saudades”.
constrangimentos na criação artística. Estamos em Num século em que com frequência o gosto pela
pleno regime Geisel e, nos bastidores do Planalto, política na madureza asfixia o encanto juvenil pelas
sova-se o “Pacote de Abril”, a ser imposto à nação artes, é extraordinário que a destemida mensageira
por decreto. O ministro se mostra indiferente ao teor da classe seja defensora do artesanato artístico e
reivindicativo do manifesto e afirma que, “com se- uma apaixonada da arte literária. Com obra ficcio-
renidade e firmeza”, manterá o exercício da censura. nal admirada pelos pares e pelas novas gerações,
Poucos conhecem essa faceta pública da notável Lygia é ainda quem melhor soube se comunicar em
ficcionista paulista. público com o curioso das coisas literárias. Posso
No Rio de Janeiro, Carlos Drummond de Andrade lê atestar que, em auditórios localizados nos quatro
os jornais do dia e por eles espreita os passos atrevidos cantos do país e do mundo, sua presença física é
de Lygia. Em carta datada de 16 de fevereiro, o amigo luminosa e suas palavras, apesar de serem rigorosas
e admirador felicita-a pela coragem: “Estou acompa- e valentes, são apreendidas e sorvidas com espanto
nhando pelos jornais o movimento desencadeado pe- e deleite em virtude da paixão que as sustém. Ao
los escritores e artistas, no qual você desempenha um microfone ou em entrevista, não se esconde em
SOBRE O TEXTO papel de responsabilidade consciente, indo a Brasília evasivas. Oferece a espinhosa receita da iguaria que
para entregar o papel à fera”. Em seguida, o mineiro oferece: “Ler, ler, ler. Escrever, escrever, escrever,
No texto ao lado, Silviano matreiro matiza o ceticismo que lhe é proverbial (o e rasgar muito. Eu rasguei muito”. E, fincada nos
Santiago – escritor, poeta e poeta se abstivera de assinar o documento): “Era de mitos do dia, aconselha aos aspirantes ao estre-
um dos mais importantes se prever que o documento não modificasse a atitude lato: “Se você pretende ser dançarina, ou se você
críticos literários do país – do governo, mas um resultado positivo se alcançou: quiser ser a (atleta) Daiane dos Santos, vai ter que
discorre brevemente sobre ele se sentiu obrigado a explicar-se, percebeu a im- trabalhar muito”.
nuances da obra e política de portância do pronunciamento e pela primeira vez À participante política e defensora do trabalho
Lygia Fagundes Telles. Mais reconheceu a existência de uma opinião de classe de arte se soma a intelectual que reconhece o ca-
sobre a autora nos textos de contrária à censura”. ráter discricionário do “chamado à literatura”. Da
capa desta edição. No início daquele mesmo ano, Drummond acom- perspectiva de quem quer ser autor, repetia, “es-
panha a imagem de Lygia na telinha. Ouve suas crever é uma vocação”. Chamados haverá muitos,
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PERNAMBUCO, NOVEMBRO 2018

MARIA JÚLIA MOREIRA

alcançada pelas artes fidalgas do amor é o destino


da criação no planeta.
Lembremos Clarice Lispector, sua contemporâ-
nea e amiga: “Não ter nascido bicho parece ser uma
de minhas secretas nostalgias. Eles às vezes clamam
do longe de muitas gerações e eu não posso respon-
der senão ficando desassossegada. É o chamado”
Em Lygia, a nostalgia de não ter nascido bicho
tem como consequentes “a inquietação” e “a rai-
va”. Nesse alicerce dramático, a ficcionista ergue
a rebeldia instintiva e a disciplina do amor como
pilares da sua prosa. A rebeldia é a fome da nossa
memória ancestral carente de verdade humana. Ela
leva os humanos a competirem com a inclemência
dos poderes infernais e divinos que modelam tudo e
todos. Feita palavra, a rebeldia é motor da invenção
ficcional. Recria artisticamente o mundo. É criação,
no sentido absoluto do termo. “Lamber a cria, a
gente dizia no mundo dos cachorros e gatos”, gosta
de lembrar quando é inquirida sobre a natureza do
trabalho de arte. “Minha infância é inteira feita de
cheiros”, lê-se em As meninas (1973). Em Ciranda de
pedra, Virgínia descobre: “Mais importante do que
nascer é ressuscitar”.
Se em última instância a revolta instiga e fomenta
o caos na comunidade e no mundo, já a discipli-
na manifesta a soberania do amor no reajuste das
relações entre a natureza e os homens, entre estes
e ela e dos homens entre eles. Revolta e disciplina
intercambiam seus papéis e seus valores em tramas
ficcionais e se sucedem até na relação entre os vários
contos dentro duma coleção. Porque simbólicas são
definitivas as palavras que Lygia coloca à abertura
do livro A estrutura da bolha de sabão: “Fiz alterações
nos textos, sou uma inconformada. As ficções des-
garradas. Recolhidas e tosquiadas. O pastor junta
o seu rebanho”. O Evangelho, acrescento eu, nos
ensinou que a ovelha desgarrada é a única a inspirar
a compaixão do Senhor. Como escreveu Gregório
de Matos: “não queirais, Pastor divino, / Perder na
vossa ovelha a vossa glória”.
Cara: revolta. Coroa: disciplina. Revolta ou dis-
ciplina? Revolta e disciplina. A ambivalência. Em
depoimento, a romancista esclarece: “Quero que
meu leitor seja parceiro-cúmplice nessa ambigui-
dade que é o ato criador. Ato que é desespero e apa-
ziguamento. Ansiedade e celebração”. Parodiando
o poeta Murilo Mendes, digo que Lygia segura com
sobrenatural elegância o fio que conduz da arena de
rodeio ao Gólgota. Sem parodiá-lo, cito novamente
Murilo: “Um ouvido resistente poderia perceber /
o choque do tempo contra o altar da eternidade”.
A ficção de Lygia Fagundes Telles não tem essên-
cia a ser procurada pelo leitor. Há que se aprender
a conviver com ela, como se convive com um gato,
por exemplo. “O gato Astronauta me dava”, lemos
em As meninas, “aulas diárias de preguiça e luxúria.
Todo feito de delicadezas perigosas, o meu gato. Ou
Demônio?” Assim o livro de Lygia e seu leitor. Em
conferência em Paris, na Sorbonne, confidencia:
“Não espero ser compreendida, espero ser lida. Se
no entanto, poucos serão os escolhidos, reza a letra do feitio monologal e intimista” da escrita feminina. possível, amada – confessei a um leitor que parecia
do Evangelho. A vocação, manifestação obscura da Irônica ou autoirônica, a acadêmica acrescenta que preocupado, gostava dos meus livros, mas muita
humildade e da esperança humanas, abre e acelera o não há que se ter vergonha de a “mulher-goiabada” coisa não conseguia compreender”.
mistério que une o caráter do escritor e suas palavras ter sido estrela nas quermesses do interior paulista. Aparentemente excessiva, a demanda concreta
à sensibilidade e à mente do leitor. “Se não houvesse E menos vergonha deve sentir a escritora por ter da autora se explica. Existe na sua ficção, como
leitores, ainda assim você escreveria?” – pergunta- recebido dela a tradição de ensimesmamento no na filosofia de Albert Camus e na prosa de D. H.
-lhe Edla Van Steen em 1981. Lygia rebate. O leitor trato carinhoso com o alimento sob as chamas. Por Lawrence, um cristianismo sem Deus. Vale dizer:
e seu compromisso com a boa literatura são cria do pouco que a mulher-goiabada se distraísse, o doce a alma reside na carne, o espírito no sangue. Em
estofo do escritor, do sangue dele. Explica-se: “Se pegava no fundo do tacho. O trabalho doméstico depoimento, afirma: “Levanto a pele das perso-
o autor está oco ou desesperado, não vai conseguir fundamentou as invenções do olhar criativo da nagens que é a pele das palavras, quero o mais
a cumplicidade do seu próximo. Fará um trabalho mulher e as reenviava ao belo rosto afogueado pelo íntimo, o mais secreto, e nessa busca me encon-
esvaziado, morno”. Lygia se perfila com Nietzsche. calor da invenção literária. tro”. A escritora se encontra na pele que recobre a
No capítulo Ler e escrever, de Assim falava Zaratustra, está carne secreta da palavra ficcional e também a do
dito: “De tudo o que se escreve só gosto daquilo que 2. personagem. Ela conhece o quilate do vocábulo e da
se escreve com o próprio sangue. Escreve com o Causa espanto o sucesso das adaptações da obra cria e os reconhece como autênticos pelo que eles
teu sangue e descobrirás que o sangue é espírito”. literária de Lygia pelos meios de comunicação de têm de pele que pulsa ao ritmo do coração. Todas as
Ainda sobra alguma tinta na paleta do retratista, massa. Tanto nos contos quanto nos romances, ela sensações e paixões dos seres viventes estão a nu e
e não servirá para emprestar colorido apenas cir- traz para a literatura contemporânea brasileira o a descoberto na letra do livro. Estão à flor da pele.
cunstancial à figura humana, embora assim se goste sentido do texto escrito de acordo com as formas Na prosa de Lygia, a sensualidade felina pro-
de creditá-lo. Lygia é mulher que, em sociedade de espetáculo privilegiadas pelas classes populares. grama a criação de inúmeros e inesquecíveis per-
patriarcal, adota três profissões de homem. Advo- Herdeira confessa de Machado de Assis, para quem sonagens, de que a ficcionista, é inventariante
gada, escritora e membro da Academia Brasileira o espetáculo da ficção se passa no palco da corte, incorruptível e zelosa colecionadora. Lembremos
de Letras. Modesta, a promotora pública destaca a onde se agigantam as emoções do drama burguês uma vez mais Murilo Mendes. De versos do poema
preeminência das primeiras escritoras, elas, sim, ou a mímica abusiva da ópera, Lygia decide eleger, Ofício humano: “As harpas da manhã vibram suaves
“verdadeiras malditas a arrebentarem seus espar- à semelhança de peão afeito às lides agropecuárias, e róseas. / O poeta abre seu arquivo – o mundo −,
tilhos”. Perspicaz, a artista de sucesso lembra como a arena de rodeio para surpreender os personagens / Vai retirando dele alegria e sofrimento / Para que
se desgastou o tópico crítico que julgava a escritora humanos que, frente à fatalidade das forças espe- todas as coisas passando pelo seu coração / Sejam
brasileira narcisista, preocupada com a própria lhadas na fauna e na flora selvagens, se manifestam reajustadas na unidade”.
face, com o umbigo. O desgaste do desdém crítico por trejeitos de desordem interior e por palavras e
já transparece nas leituras consagradoras de Ciranda atos de rebeldia. O peão se faz, no entanto, pastor NOTAS
de pedra (1954) e não se justifica por a romancista para conduzir os rebeldes à mão caridosa do bem, 1. Criado pelo Estado Novo a fim de servir como cen-
ter adotado uma escrita objetiva, tradicionalmente que os tornará ordeiros, mansos e disciplinados. sor, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP)
masculina, mas por ela ter ido até as raízes históricas Revolta frente às intempéries desonrosas da vida existiu entre 1939 e 1945, sendo desativado após a
do patriarcalismo e por nelas ter encontrado “a razão é a condição do ser na comunidade. Disciplina ditadura Vargas.
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INÉDITOS
O PAIZ, RIO DE JANEIRO, 19 DE JANEIRO DE 1909 Certas qualidades, como a prudência e essa mesma
serenidade de ânimo aludida, raramente são naturais
Foi exatamente nos dias de agitação da última semana, nos indivíduos, mas obtidas pelo esforço próprio ou
em que a Polícia Militar efetuava com desassombro o pelo ensinamento e a boa disciplina.
sport da macabra caça ao homem pelas nossas praças Elas devem fazer parte importante do programa dos
e avenidas,1 que um telegrama da França civilizada quartéis policiais, visto que a civilização das cidades
veio consolar-me um pouco de certas ideias que ao se mede pela polícia que elas têm.
meu patriotismo melindrado sugeriam essas correrias Na nossa, entretanto, dá-se um fenômeno singular:
assassinas e desenfreadas. quando há desordens, arruaças ou revoltas populares,
Antes que a pena se me escorregue para o assunto nunca os homens pacíficos que as necessidades da
estrangeiro, deixem-me refletir um pouco sobre os vida obrigam a sair à rua temem os arruaceiros ou os
fatos caseiros que nos interessam. revoltosos, mas, sim, a polícia! É a polícia, justamente
Qual será o meio de civilizar nosso policial fardado encarregada e paga por eles para os defender, que lhes
e de lhe transformar os ímpetos nativos em ações mete medo. E não se diga que esse temor é pueril, pois
de prudência e de respeito alheio e próprio? Por que que ainda agora muita dessa gente pacífica tombou
processos conseguiu a Inglaterra aquela sua polícia ferida pelas balas dos soldados enfurecidos. Em um
modelar, que infunde a nacionais e estrangeiros, quer dos últimos dias dessa agitação, as autoridades pre-
estes vivam na sua capital a vida inteira, quer lhe veniram os cidadãos para que não andassem pelas
atravessem, em um dia apenas, as ruas tumultuosas, ruas da cidade depois das cinco horas da tarde, pois
uma tamanha confiança na justiça das autoridades e que elas iam “agir com energia”.
na ordem da sociedade? Como? Mas, se esta é uma cidade de trabalho,
Em que mão estará fechado o segredo da nossa não é uma vila balneária ou de pura vilegiatura;
tranquilidade de cidadãos? há dezenas de milhares de cidadãos a quem a vida
Tudo isso tem resposta imediata: a educação do obriga a andar pelas ruas da cidade depois daquela
povo, de que saiu o soldado analfabeto; o espírito de hora, e enquanto não tivermos abundante e barata
ordem nos superiores, que não é apanágio da raça e se viação aérea, assim terá de ser por muitos anos, e
adquire pelo domínio da razão e da boa disciplina; o exatamente para nos garantir contra os desordeiros
respeito à lei, o amor da humanidade e a imitação dos e malfeitores a qualquer hora do dia ou da noite é
meios que aperfeiçoaram classes idênticas em outros que pagamos a polícia.
países mais cultos. Como tolerar, então, que essa mesma polícia nos
Júlia Lopes de Almeida

Nós temos entre nós a prova de que o povo respeita venha dizer que não podemos sair à rua a tais ou tais
e obedece mais facilmente a quem procura convencê- horas, sob pena de sermos vítimas da sua energia?
-lo do que a quem procura ameaçá-lo. A Polícia Civil É indispensável que a nossa polícia se transforme,
criou já um prestígio que vale por uma dedução. Não que a tenhamos como uma garantia e não como uma
será talvez difícil achar-se a razão da sua superiorida- ameaça, que ela seja para nós uma defesa e não um
de para fazê-la imitada pela outra, a não ser que esta perigo, um elemento de vida e não uma possibilidade
outra desapareça. de morte. É preciso que não sejamos obrigados a fugir
Porque, em boa verdade, não sei para que uma cida- da polícia, mas para a polícia, quando nos julgarmos
de de trabalho, uma cidade ordeira, precise de polícia em perigo.
armada de carabinas e de lanças – ofensivas, mesmo Basta já que as turbas compostas de classes hete-
quando não estejam em atitude de agressão. Mas, rogêneas, as turbas movediças, nos assustem e en-
enfim, isto será talvez mal entender as coisas, e não tristeçam de longe em longe com certas selvagerias
insistirei nesta passagem para fazer outras perguntas: inesperadas e vexatórias, como as relatadas na última
- Haverá escolas nos nossos quartéis? semana por um telegrama da linda França civilizada,
- Os soldados que sejam analfabetos antes de en- e que dizia assim:
gajados conservar-se-ão analfabetos depois? “As quatro execuções capitais hoje efetuadas em
- Nessas escolas, a par do beabá, da tabuada, dos Béthune serviram de pretexto a uma espécie de festa
exercícios de caligrafia, haverá preleções sobre moral, popular. Das circunvizinhanças da cidade, chega-
sobre higiene, noções de geografia, narrações de feitos ram imensos curiosos para assistir ao sensacional
históricos e altruísticos, desdobramento de ideias que espetáculo. Os cafés e botequins estiveram abertos
aperfeiçoem os espíritos e deem aos homens mais a noite inteira.
simples uma noção ampla da justiça, do respeito in- O carrasco foi entusiasticamente aclamado pela
dividual e da vida? multidão.
- Teremos o direito de exigir que um descendente Os condenados acreditaram até a última hora que
de qualquer tribo indígena, nunca esclarecido pela seriam agraciados. As execuções duraram nove minu-
luz dos livros, tenha a correção e os sentimentos dos tos. O primeiro condenado, Dervo, chegou ao estrado
homens educados? já meio morto de pavor, sendo necessário carregá-lo
- Procurará o governo polir no quartel, que tantos nos últimos momentos; Vromant e os dois irmãos
bens sacrifica, a rudeza nativa desses homens desti- Pollet mostraram-se mais corajosos. Abel Pollet gritou,
nados a manter a ordem e o respeito nas ruas de uma antes do empurrão do carrasco: ‘Abaixo os padres!’.2
capital grande e complexa como é a nossa? A cada nova execução, redobravam freneticamente
- Poderemos ficar tranquilos, sentindo a nossa vida os aplausos dos espectadores.”
e a nossa propriedade garantidas por indivíduos mais Felizmente, são raras, mas há, infelizmente, horas na
instintivos que conscientes? vida em que uma criatura humana, mesmo mediocre-
Quem me responderá? mente boa ou mediocremente educada, sente vergonha
O tempo, e com urgência; porque é impossível que de ser gente. Que bárbara, horrível e tenebrosa cena
não se trate quanto antes de corrigir erros que nos essa narrada pelo telegrama da França!
aviltam e nos conservam em contínuo sobressalto.
Não podemos viver em uma cidade como quem 1. Alguns dias antes da publicação original deste texto, os
vive em uma floresta, ao acaso do encontro de animais jornais mostravam que as ruas do Rio de Janeiro haviam
ferozes. A polícia parece-me que não foi inventada sido tomadas por protestos contra o aumento da tarifa
SOBRE O TEXTO para punir sumariamente arruaceiros e desordeiros, dos bondes, o que levou a violentos confrontos entre os
Ao lado, um texto de Júlia mas para evitar que eles cometam depredações e as- manifestantes e a polícia.
Lopes de Almeida (1862–1934) saltos, e não (para) ser mantida pelo povo pacífico 2. Estima-se que mais de 50 pessoas foram mortas pela
extraído de sua coluna Dois para que ela o baleie e o alanceie nas suas crises de famosa “Gangue Pollet”, que atuava em pontos da fronteira
dedos de prosa, no jornal O arrebatamento. O organismo da polícia não pode ser entre França e Bélgica. Liderado pelos irmãos Abel e Au-
Paiz. Importante escritora da só constituído pela força física, mas também pela força guste Pollet, o grupo contava com dezenas de criminosos,
literatura brasileira, Almeida moral, que dá prestígio, que mantém a calma na cólera incluindo Canut Vromant e Théophile Dervo, também
foi uma das poucas mulheres e a serenidade diante das provocações. executados em 11 de janeiro de 1909.
a conseguir destaque na
imprensa na virada do século
XIX para o XX. A narrativa
integra o livro A realidade
estupenda, uma antologia
do jornalismo literário no
Brasil produzido entre 1908
e 1945, publicada neste
mês pela Três Estrelas.
MARIA JÚLIA MOREIRA
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PERNAMBUCO, NOVEMBRO 2018

KARINA FREITAS

INÉDITOS

Schoenberg,
Manoel Carlos Karam

Berg e Webern
Nós nos mudamos para Alhures do Sul no verão noite sem parar como parecia, mas impossível
de 77, vivemos lá até o outono de 83. Foi depois que fosse assim. Queríamos saber como era. Foi
de Relva e antes de Tartiiba. Meu pai, minha mãe, de madrugada que descobrimos a mulher tocan-
minhas duas irmãs. Meu pai trabalhava numa em- do piano. Percebemos nas visitas seguintes que o
presa instalando filiais. Filial instalada, mudança de casal se revezava para manter o piano ininterrup-
cidade. Alhures do Sul depois de Relva e antes de tamente em concerto, como disse um dia o filho
Tartiiba. Não tenho recordações de Relva e Tartiiba. do contador. Meu pai disse que o filho do contador
Tenho de Alhures do Sul. Com tantas mudanças, nós da filial estudava música, tocava piano e, mesmo
costumávamos descobrir que uma ou outra questão, muito jovem, já tinha dado concerto. Ele era dois
quando contada, estava trocada de cidade. Por isso anos mais velho que eu, mas naquele momento
não tenho completa certeza da falta de recordações não me passou pela cabeça que meu pai estivesse
de Relva e Tartiiba. Mas não tenho dúvida sobre a sugerindo que eu deveria fazer alguma coisa que ele
música do piano em Alhures do Sul. Ouvíamos a pudesse contar, como o contador da filial contava.
música do piano do vizinho, demoramos até perce- Convidamos o filho do contador para ouvir o piano
ber o que estava acontecendo. O piano do vizinho do vizinho. Um conhecedor de música esclarece-
tocava muitas horas por dia, foi o que pensamos. ria o que estava acontecendo. Schoenberg, Berg e
Erramos, o piano tocava ininterruptamente. Fi- Webern. Foi o que ele disse que estava acontecen-
zemos um revezamento para conferir, o piano do do. O piano do vizinho repetia peças, explicou. A
vizinho tocava 24 horas todos os dias. Uns dois ou Suíte de Schoenberg (opus 25) ele tocou três vezes.
três segundos de silêncio entre uma peça e outra. O músico retornou nos dias seguintes, o piano
Sabíamos que era piano e não disco porque eu e do vizinho continuava tocando Schoenberg, Berg
minhas irmãs espiamos pela janela do vizinho. A e Webern. De manhã, de tarde, de noite, a Sonata
cerca que separava os quintais era baixa. A janela de Berg (opus 1). O filho do contador dormiu lá em
da casa dele tinha cortina, mas sempre ficava uma casa algumas noites. Acordava de madrugada para
fresta. Ele tocava sentado de costas para a janela, ouvir o piano, muito repetidas também as Variações
podíamos espiar o pianista. Era como se ele estives- de Webern (opus 27). Foi em Alhures do Sul, depois
se num palco, a cortina da boca do palco com uma de Relva e antes de Tartiiba. Perdemos a conta do
pequena abertura. O pianista dando as costas ao piano do vizinho, daqueles muitos dias de música
público, não por desaforo, mas pelo hábito de quem sem parar. Um piano era algo tão distante de nós,
já foi maestro, explicou a minha mãe. Ela explicou que tivemos medo dele. Eu via no rosto do meu
quando viu por uma fresta da cortina do quarto da pai e da minha mãe que havia alguma forma de
nossa casa eu e as minhas irmãs pulando a cerca de susto, um receio que talvez tenha sido a causa de
volta após um concerto na casa do vizinho. Ela por nunca fazer amizade com os vizinhos. O que vinha
primeiro brigou conosco, por segundo perguntou o a calhar, sempre preferimos não nos envolver com
que nós vimos e por terceiro explicou do maestro a vizinhança porque logo estaríamos de mudança.
que fica de costas para a plateia. Por último a minha Quando viajamos para Tartiiba, no dia em que
irmã mais nova disse que queria ser pianista. Ela desocupamos a casa, o piano continuava tocando.
sempre dizia que ia crescer e ser da padaria. Acho A minha irmã mais nova aprendeu com o filho do
que foi ainda antes de Relva quando ela disse ser contador a identificar a música. Naquele nosso
SOBRE O TEXTO da padaria. Meu pai achou engraçado quando a último momento em Alhures do Sul, o piano na
minha irmã disse ser da padaria. Minha irmã mais casa vizinha, nas mãos do vizinho ou da vizinha,
Ao lado, uma breve ficção nova chorou. Ninguém riu quando ela disse que não sabíamos, o piano fechava o concerto para nós
de Manoel Carlos Karam, queria ser pianista porque o meu pai, o que mais com Schoenberg, Seis pequenas peças para piano (opus 19).
publicada originalmente ria lá em casa, estava no trabalho, instalando a filial O nosso último dia nos fez recordar o primeiro do
no livro Um milhão de velas de Alhures do Sul. Minha mãe ouvia o piano o dia vizinho. Ele se mudou para a casa ao lado da nossa
apagadas (2015, editora inteiro, eu e minhas irmãs só de tarde, tínhamos quando nós morávamos lá fazia uns dois anos. Nós
Kafka). Para mais sobre o escola de manhã, meu pai ouvia na hora do almoço nos lembrávamos de quando chegou a mudança do
autor, leia as páginas 18 e 19 e de noite, e nós todos a madrugada inteira. Às vizinho. Ninguém deixa de olhar para a mudança
desta edição. O Pernambuco vezes eu me virava na cama, ouvia um pedacinho que tem um piano. Mas só o piano estava na nossa
agradece a Bruno Karam pela de música e dormia novamente. Espiamos uma lembrança. Não tinha jeito de recordar como era a
cessão do texto. vez pela janela de madrugada, meu pai autorizou, cara do vizinho e da vizinha, muito menos se havia
queríamos saber se o vizinho tocava piano dia e alguma criança.
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PERNAMBUCO, NOVEMBRO 2018

RESENHAS
DIVULGAÇÃO

salto de trampolim. Mas o trecho do livro


Desde sua publicação em que a escolha visual
original, em 2006, Fun cai sobre nossos ombros
home teve uma trajetória como uma pedra tão
atípica para qualquer pesada quanto aquilo que
publicação em quadrinhos: se lê acontece justo quanto
além de ganhar o prêmio a autora faz duas páginas
Eisner, o “Oscar” das inteiras com um modelo
HQs, ganhou, pelo menos, superconvencional,
10diferentes traduções num estilo europeu de
no mundo, incluindo a disposição dos quadros,
versão brasileira, e chegou todos com o mesmo
aos palcos da Broadway tamanho, somando quatro
como uma adaptação tiras de três colunas. O
musical que levou que está em cena é uma
nada menos que cinco conversa que ela tem com
prêmios Tony em 2015. seu pai pouco antes deste
Apesar de ser tão morrer, dentro do carro
elogiada pelas demais dele. É talvez o diálogo
obras que assina, tanto mais tenso e aberto
no caso do livro sobre entre os dois, quando
mãe, na peça e nas suas finalmente a orientação
famosas tirinhas Dykes to sexual de ambos é dita em
watch out for, foi com Fun voz alta. E, no entanto,
home que Bechdel escalou essa abertura é tão estreita,
o mais alto degrau da que o ar, sentimos, se
combinação forma/ torna rarefeito nas páginas
conteúdo. A maneira muito bem-pensadas
como ela sutilmente se para que nelas também

Sobre deixar Dois personagens em


polos opostos de força:
“Eu era a espartana do
livro sobre o privilégio
que é poder deixar ser
realmente afetado pelo
usa dos recursos gráficos
dos quadrinhos para dar
textura sensível a essas
não houvesse brecha
para a contemplação.
Não há como abrirmos

se tocar pela
meu pai ateniense. A outro. Digo “privilégio” memórias é algo que vi a janela desse carro:
moderna do vitoriano. pois o recrudescimento sendo subestimado ao ficaremos durante essas
A masculina do afetado. do moralismo obediente longo dos anos. Numa duas páginas presas e

história do outro
A funcional do esteta”. fez um volume imenso mirada rápida, parece presos numa conversa de
Já aí está dado o truque de pessoas acreditar que Bechdel trabalha poucas confissões e longo
em Fun home, de Alison que essa capacidade de em cima de um grau silêncios constrangedores,
Bechdel (foto). A autora ser afetado deveria ser de controle bastante sem altos e baixos,
nos induz a uma escavação um item descartável linear e clássico sobre a sem grandes dramas
Afetos em polos opostos de de suas memórias mais no comércio dos bens errância da memória na ou rompantes, tudo tão
íntimas com seu pai a fundamentais, um luxo qual se fundaria o gênero trivial e monocórdico
força na relação entre pai e filha partir de uma investigação que poucos poderiam – literário dos diários. Mas quanto uma tabela bem-

marcam uma HQ clássica relacional entre ambos:


ela, a filha sapatão dele, a
e deveriam – se dar.
Eis então o grande
isso que ela dispõe sobre
as páginas como uma
desenhada de quatro
tiras e três colunas.
bicha enrustida. A proposta “privilégio” que essa colagem convencional de Não há como não
Carol Almeida analógica e comparativa obra-prima revela: deixar fragmentos e, por vezes comparar essa decisão
de ver o “outro” de acordo ser afetada ou afetado pela até didáticos e ilustrativos formal à própria índole
com os parâmetros sobre história de alguém que de algumas teses pré- do protagonista em
o qual o “eu” está sendo não procura um acerto formadas sobre seu pai e questão. Leitor obcecado
fundado é desde cedo de contas, ou mesmo um sobre ela mesma, trata- por James Joyce, o pai
estabelecida. Mas se ponto final que explique se, na verdade, de uma de Alison não era de
engana quem, nisso que ou dome seus disparos sofisticada arquitetura rompantes, seu amor
chamo de truque, imaginar criativos. Mas que no narrativa. À medida que por tudo aquilo que era
que essa relação é, de exercício de ficcionalizar a se avança no álbum, essa “afetado” se alimentava
fato, antagônica. Alison própria vida, envolvendo narrativa tende a pôr os de outros gestos: “Creio
Bechdel e Bruce Bechdel traumas e afetos tão personagens em xeque. que uma vida inteira
são dois personagens caros à memória privada Bechdel não precisa de que escondendo a própria
que se chocam a todo de uma família, nos dá confiemos em sua “versão verdade erótica pode ter
momento; mas dos atritos chance de encontrar da história”, porque ela tido um efeito renunciante
que há entre eles surge caminhos por nós mesma se abre às brechas cumulativo. A vergonha
muito mais ambiguidades esquecidos nessa infinita das criações que fazemos sexual é em si um tipo de
do que molduras, muito busca por acolhimentos quando construímos morte. Ulisses, é claro, foi
mais negociações afetivas sem culpa. E faz isso com memória. Os recursos banido durante anos por
do que determinações um exercício poético de gráficos que menciono pessoas que achavam sua
castradoras do que é criar distanciamentos ampliam a complexidade honestidade obscena”,
masculino ou feminino. estéticos que nos ajudam com que essas pessoas são escreve sua filha.
O livro que mais me fez a chegar mais perto: o descritas e desenhadas.
chorar em 2007, quando pai se colocando sempre Quando Bechdel, por
de sua primeira tradução como o F. Scott Fitzgerald exemplo, quer falar do
brasileira feita pela extinta do núcleo (o garoto da caráter provinciano de seu
Conrad Editora, está de fazenda que era, na pai, faz um círculo sobre o
volta em uma nova edição, verdade, um príncipe) e mapa da cidade e aponta
desta vez pela Todavia. No a mãe como a projeção exatamente onde, nesse
momento em que escrevo doméstica de um Henry mapa, ele nasceu, viveu,
sobre ele, tento respirar James (“uma americana morreu e foi enterrado,
enquanto penso que entre forte e idealista apanhada toda uma vida encerrada
2007 e agora as coisas numa armadilha”). Faz dentro dos limites de
começaram a ficar tão isso também sem medo uma cidade, ela mesma,
estranhas, que Fun Home, de abrir feridas que nunca provinciana: “um círculo
esse título irônico a fazer serão cicatrizadas, mas solipsista de si mesmo,
trocadilho entre casa e que, quando expostas, de autodidata a autocrata
uma diversão fúnebre da criam um certo tipo a autocida”. Um mapa QUADRINHOS
vida (fun simultaneamente de conciliação post desenhado sobre o papel
como “divertido” e como mortem que, em lugar já é, em si, o convite para Fun Home
“casa fúnebre”, onde de apaziguar, nos deixa uma viagem sem ponto Autora - Alisson Bechdel
essa família-personagem em suspenso no ar: as de partida ou chegada, Editora - Todavia
morava) me parece, infinitas possibilidades superfície que nega a Páginas - 240
cada vez mais, um de ser e amar num linearidade das coisas. Preço - R$ 54,90
29
PERNAMBUCO, NOVEMBRO 2018

Para os que voltam a imergir na noite PRATELEIRA


Em plena ditadura e já vida ou morte — / será arte? mas na leitura: o corpo A Companhia das À FLOR DA PELE
no exílio, Ferreira Gullar Mas e Dentro da noite que vive uma vida Letras tem devolvido Autobiografia de Maria de Lourdes Siqueira,
(1930-2016) lança em veloz? É livro marcado comum e sente o mundo é Gullar ao leitor de pesquisadora e militante dos movimentos
1975 a obra Dentro da noite pela consciência política, o corpo do sujeito poético forma atraente, graças negros cuja trajetória de vida é ímpar. Nascida
veloz, oportunamente como é, por exemplo, A e do leitor. A identificação ao trabalho da designer no Maranhão (onde vive atualmente), foi
republicada pela rosa do povo e Sentimento do deseja o engajamento: Elaine Ramos. Falta perseguida pela ditadura e teve que se exilar
Companhia das mundo, de Drummond. Sou um homem comum /de manter a qualidade nos no México. De volta ao Brasil, vai para o Rio
Letras neste ano. Mas, ao contrário deste, carne e de memória /de osso e prefácios: os de Miguel de Janeiro, onde entra para a VAR-Palmares.
Pouco depois do livro o povo em Gullar não esquecimento. (...) / Sou como Conde (A luta corporal) Foi presa pelos militares e posteriormente
citado, Gullar lançou o apenas atravessa o poema você / feito de coisas lembradas e Alcides Villaça (Na julgada e absolvida. É estudiosa do candomblé
famoso Poema sujo (1976). tal qual lâmina, mas / e esquecidas (...) / Sou um vertigem do dia) são bons, e diretora do bloco Ilê Aiyê, da Bahia.
Ambos não estão muito anda em paralelo com homem comum / brasileiro, esclarecedores; já os de
longe do livro Vanguarda ele, em mistura. O sujeito maior, casado, reservista, /e não Antonio Cicero (Poema
e desenvolvimento (1969) poético é parte do povo. vejo na vida, amigo, / nenhum sujo) e, especialmente,
– no qual, em linhas Não se trata mais de ter sentido, senão / lutarmos Armando Freitas Filho
gerais, o poeta advogava nas mãos o sentimento do juntos por um mundo melhor. (Dentro da noite veloz), são
que a busca por novas mundo, mas de sentir o Vertigem, velocidade, mais superficiais, deixam Autora: Maria de Lourdes
estéticas em países mundo em seu corpo. Um espanto: tudo transforma a desejar (Igor Gomes). Siqueira
vítimas do colonialismo mundo subdesenvolvido: a opressão em limite – Editora: Mazza
devem vir com a Do fundo de meu quarto, falo / à beira da morte / como Páginas: 136
busca pela libertação do fundo / de meu corpo / os vegetais / com seu motor Preço: R$ 38
política, econômica e clandestino / ouço (não vejo) de água, diz o último
social do humano. ouço / crescer no osso e no / poema do livro. Outro ARRUAR
A vertigem e a alta músculo da noite / a noite / a equipara literatura e Clássico de 1948 escrito pelo jornalista e
velocidade dos cruzos noite ocidental // obscenamente política: um poema / uma escritor Mario Sette, republicado pela Cepe –
entre memória, desejo acesa / sobre meu país dividido bandeira. Linguagem editora também reponsável pelo Pernambuco.
e espaço, criadas /em classes. Drummond comum em verso No livro, Sette resgata a memória de ruas,
a partir da vida no pôs em versos a ânsia livre não é novidade. bondes, praças, anúncios de jornais e outros
exílio, alcançaram mundial da Segunda Mas com o olhar que elementos documentais dos costumes e
uma potente poética Guerra; Gullar traduziu parte do momento tradições do passado social do Recife. Trata-se
que seria expressa, um mundo já polarizado, em que se percebe de uma reconstrução detalhada e afetiva da
segundo Alcides Villaça, uma América Latina o corpo confundido história da capital pernambucana, que abarca
no poema Traduzir- ao nível do fogo, porque com o mundo, e que quatro séculos de acontecimentos e mudanças.
se (publicado em Na grassada por ditaduras se lança a uma busca POESIA
vertigem do dia, de 1980): patrocinadas pelo pela conscientização e
Uma parte de mim / almoça imperialismo dos EUA. solidariedade, o poeta Dentro da noite veloz
e janta; / outra parte / se Talvez seja possível consegue alcançar Autor - Ferreira Gullar
espanta. (...) Traduzir-se dizer que a “busca pelo elevada força simbólica. Editora - Companhia das Letras
uma parte / na outra parte novo”, se é que existe, O livro fala diretamente Páginas - 120
/ — que é uma questão / de não ocorre na linguagem, ao nosso tempo fascista. Preço - R$ 44,90 Autor: Mario Sette
Editora: Cepe
Páginas: 472
Preço: R$ 35

Memória e navios Diante do espelho LÉVI-STRAUSS: LEITURAS BRASILEIRAS


Reunião de artigos sobre a importância da
obra do antropólogo belga Claude Lévi-Strauss
Svetlana Aleksiévitch é adversários, não inimigos. Concebido e editado ambas, é a mesma: são (1908-2009), um dos mais importantes
escritora que fala aos autos Ser brasileiro e ler esta obra pelo escritor Michel periódicos caros, que não intelectuais do século XX. Por meios de textos
da História. O foco de neste momento cria espaço Laub, o Anuário Todavia oxigenam (ou oxigenam de Eduardo Viveiros de Castro, Tânia Stolze
seus livros (ao menos os para que questionemos o traz textos de diversos pouco) as discussões Lima, Marcio Goldman e outros, vemos como
que chegaram no Brasil) momento antipolítico e as autores e autoras sobre por não trazerem a redescoberta do autor no Brasil foi feita de
são o saldo complexo apologias às violências – questões urgentes nomes diferentes. Pauta forma original, sutil e fecunda. A obra é uma
e doloroso da Segunda lembremos que a guerra, do presente – Brexit, abordagens pertinentes, reimpressão (edição original de 2013).
Guerra Mundial no Leste no Brasil é diária (é o país obscurantismo e mas não se preocupa
Europeu, mas de pontos que mais mata LGBTQ+, declínio da verdade, muito com a presença de
de vista deslocados, não mulheres e empreende o imaginário de outras epistemologias.
hegemônicos – as pessoas o genocídio de pessoas pessoas protestantes, Acaba trazendo olhares
comuns que foram pegas negras). Traz a nós a ficções que abordam já conhecidos. Ou seja,
de surpresa pelo fim do necessidade de voltarmos a periferia, o contato nada de novo: um Autor: Rubem Caixeta e
regime soviético, a sombra aos autos da História para entre diferentes balanço analítico dos Renarde Nobre (orgs.)
do medo das hecatombes entendermos o que ocorre (branco e indígena) temas do ano feito por Editora: UFMG
nucleares e a barbárie sob hoje e evitarmos repetições e outros assuntos. uma elite cultural para Páginas: 357
a ótica feminina. As últimas execráveis (I.G.). Além de textos, estão uma elite cultural (I.G.). Preço: R$ 58
testemunhas, publicado há presentes trabalhos
pouco, traz relatos dos visuais de elevada O INFERNO É VERDE
que eram crianças à época potência, assinados A partir das reivindicações pela cidadania
da Segunda Guerra. Em por artistas como francesa, em 2005, feita por jovens filhos de
entrevistas, elas e eles Nuno Ramos e imigrantes, Leslie Kaplan aborda a complexa
contaram à autora como Walmor Corrêa. O relação entre política e poesia. Aparecem
souberam do conflito pela material é como uma referências a Bob Dylan, Melville, Tom Jobim,
primeira vez. As histórias variação da revista Hannah Arendt e James Baldwin, além de
são dolorosas: as crianças Serrote, periódico uma inscrição vista pela autora em um muro
não apenas perdiam quadrimestral do no Recife: “o inferno é verde”. A tradução de
familiares, como eram Instituto Moreira Zéfere recria em português o jogo entre três
submetidas a toda sorte Salles que – em meio línguas que compõe os poemas do livro.
de humilhação. Ao fim do a narrativas traduzidas
livro, nos resta um poema de autoras e autores
de Ana Cristina Cesar: estrangeiros, ou
As mulheres e as crianças são MEMÓRIA textos assinados por REVISTA
as primeiras que desistem de intelectuais ou artistas
afundar navios. O coro de As últimas testemunhas brasileiros – pauta Anuário Todavia: apocalipse?
humilhados nos lembra Autor- Svetlana Aleksiévitch discussões pertinentes Autor - Michel Laub (org.) Autora: Leslie Kaplan
que se faz política para Editora - Companhia das Letras com razoável Editora - Todavia Editora: Luna Parque
não fazer guerra – com Páginas - 272 profundidade. Páginas - 160 Páginas: 52
a política elegem-se Preço - R$ 54,90 A questão, para Preço - R$ 69,90 Preço: R$ 20
30
PERNAMBUCO, NOVEMBRO 2018

RESENHAS
RENATO PARADA/ DIVULGAÇÃO

criativo e no qual Heringer


buscou certo tipo de
experimentalismo. São
latentes as referências a
Machado de Assis, Jorge
Luis Borges e outros
nomes consagrados para
o campo da literatura e
da filosofia, mas o texto
flui menos polido e mais
ferino do que no O amor
dos homens avulsos. Para
além dos espaços “reais”
representados, como o
Bairro da Glória, destaca-
se o Café Aleph, o fórum
virtual onde anônimos
adotam nomes da cultura
antiga e contemporânea
para dissertar sobre artes
e assuntos corriqueiros.
Um tipo de baile de
máscaras de pretensos
intelectuais online.
Escreve o narrador:
“A vantagem dos
edifícios virtuais é a
sua maleabilidade.
Os tijolos são todos
feitos de números 0 a 1
sequenciados, e a única
energia necessária para
erguer uma parede, uma
laje, uma igreja ou a torre
de Babel é a dos dedos.
O fato de resultarem
invisíveis a olho nu, não
parece incomodar seus
moradores e visitantes,

Do espaço que Nos estudos espaciais,


está posta, com
frequência, a relação
é como um exercício
contínuo do que se pode
tencionar entre espaço
outro, portanto, não se
configura exatamente
como matéria, mas
até porque, se duas ou
mais pessoas acreditam
que eles estão ali, de pé,

pode existir
entre a temática e os e linguagem. Lançando funciona para ancorar não há vivalma que as
processos de linguagem em 2012, pela 7Letras e, os deslocamentos e convença do contrário”.
e do discurso – alguns agora, em nova edição permanências ao longo da Nas descrições do Café

nesta paisagem
exemplos de teóricos que pela Companhia das narrativa. O apartamento Aleph, encontra-se um
reverberam tais noções: Letras, o livro tem como na Glória; a casa de d. exemplo final do quanto
Michel de Certeau, foco a vida da família Noemi, matriarca da Glória projeta linguagem e
Gaston Bachelard, Costa Oliveira, com família; o museu onde espaço nas contradições
Henri Lefebvre; destaque para os irmãos Benjamin trabalha, o sítio dos sujeitos e faz dos
O que dizem as geografias que correspondência que Abel, Daniel e Benjamin. de d. Letícia em Santa espaços de representação
torna a paisagem um Entre o Rio de Janeiro Maria Madalena são também paródia e
surgem no 1º romance de Victor resultado de sistemas e o município de Santa algumas chaves de leitura pastiche. “Se duas ou

Heringer, agora republicado de organização


representativa. Nesse
Maria Madalena, a relação
familiar é atravessada pelo
espacial que passam pela
personificação.
mais pessoas acreditam
que eles estão ali, de pé,
contexto, para Lefebvre, humor, pelo desgosto e Os núcleos familiares não há vivalma que as
Priscilla Campos existem algumas pela morte. como extensões de convença do contrário”
aplicações da atividade Glória aparece como bairros cariocas – – essa afirmação deixa
no espaço que são o início de um projeto fictícios ou concretos explícito que o espaço
consonantes ao alegórico, literário que passou – foi amplamente pode existir mesmo
entra elas, a ideia de a encontrar certa desenvolvido nos dois quando a paisagem é
espaços de representação. estabilidade em O amor romances. Os narradores delirante tanto quanto
De acordo com o dos homens avulsos (2016), de Heringer parecem as infâmias que rondam
filósofo francês, essa segundo e último compreender que a estes nossos tempos,
dimensão de produção romance de Heringer. Em representação do espaço como bem soube nos
espacial tem cunho ambos, a problemática e o ato da narrativa só são alertar Victor Heringer em
simbólico. São espaços espacial é pensada possíveis se existir alguns suas narrativas e poemas.
que fazem menção a minuciosamente, desde elos entre vida e morte,
outra esfera de signos e elementos alusivos como amor e ódio, ironia e
conectam-se a algum o mapa no quarto dos desgosto. Na catalogação
tipo de matéria. Tornam- pais dos três irmãos em e no desenvolvimento de
se, assim, plataformas Glória, até a descrição das percursos dos membros
transmissoras de lembranças da casa de da família Costa Oliveira,
significado, como os Camilo, no Queím, em existe a marca daqueles
elementos que formam O amor dos homens avulsos. que entendem: a atividade
uma cidade, por exemplo. Mas, em Glória, é possível no espaço se dá por
Narrar o espaço faz parte observar um esforço meio de inquietudes que
de uma construção que maior no trabalho de alcançam alguma imagem
se dá não por meio da inventividade daquele através da palavra. “O
linguagem, mas em universo e, ato contínuo, amor dá problema
progressões junto a ela. E é a vontade de Heringer em de memória”, afirma
nessa espécie de parceria dar elasticidade ao humor Benjamin e, justamente
entre espaço e discurso pela via do absurdo. por essas incongruências,
que se encontram alguns Dessa maneira, os o espaço surge como um ROMANCE
pontos de tensões. espaços de representação fator de delimitação que
A partir da chave dos aparecem no livro, a ajuda a suportar todos Glória
espaços de representação, princípio, mediados esses elos e suas falhas. Autor - Victor Heringer
Glória, primeiro romance pela construção dos Como já dito, Glória Editora - Companhia das Letras
do escritor carioca Victor vínculos entre os é um romance que se Páginas - 296
Heringer (1988-2018), personagens. O signo do fez atento ao processo Preço - R$ 49,90
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PERNAMBUCO, NOVEMBRO 2018

A sobrevivência atrelada a artifícios PRATELEIRA


Tal qual Sísifo, os Everest – “porque escalar a se aproximar de um ser revelado. Os mistérios A MULHER VENTRILOQUADA
personagens dos 3 contos dá sentido à sua vida, e diretor de teatro, que aqui são os fios soltos O ensaio de Guilherme G. Flores discute o
a compor Sebastopol, de é disso que no fundo as divide seu tempo entre e desconectados, que exercício da tradução. Ao expor impasses,
Emilio Fraia, tentam pessoas precisam, Lena, espetáculos que jamais insistimos em amarrar oferece um exemplo de autoquestionamento
levar o rochedo da vida eu sempre me digo isso, as irão para frente e o tesão diante de fatos que nada produzido no contato com a crítica feminista.
até o alto da montanha, pessoas precisam acreditar em stalkear desconhecidos teriam de especiais por si Questiona leituras delimitadas pelos estudos de
para depois vê-lo rolar em alguma coisa”, lembra pelas ruas, colando neles só. É que precisamos criar literatura greco-latina, em que a tradução tem
precipício abaixo. Se a narradora, Lena, de suas fantasias escapistas. uma mística qualquer, papel crucial e estruturante. O autor escreve
vivências concretas um conselho ouvido Cada uma dessas ficções para lidar com o banal de a partir da instabilidade do seu próprio olhar
não fazem sentido, a de uma amiga sobre o recebeu o nome de um corpos que se quebram, sobre a poesia de Arquíloco e toca nos limites
sobrevivência se ganha banal da sua motivação mês do ano, começando de memórias que éticos do trabalho de tradução. O texto está
a partir de um processo esportiva. O trauma da pelo fim, Dezembro, acreditamos apenas como disponível gratuitamente no site zazie.com.br.
de ficcionalização escalada, no entanto, é passando pela metade, nossas de tão intensas e
compulsório, do encontro ressignificado quando ela Maio, e encerrando por do súbito de pessoas que
com possíveis “duplos” e assiste ao vídeo de uma algo como um “lugar- entram na nossa vida e,
da evocação de fantasmas. artista gringa que parece nenhum”, Agosto – o puf!, se vão (Schneider
Sebastopol é uma obra sobre contar a história da sua mês que persistimos Carpeggiani).
a criação de artifícios. tragédia com a precisão em acreditar como o
A sobrevivência como do avesso do avesso típica dos maus presságios, Autor: Guilherme Gontijo Flores
exercício atrelado à dos espelhos, mas ainda talvez pela falta de Editora: Zazie
criação de artifícios. assim sua história. uma definição melhor Páginas: 103
Faz todo o sentido, No segundo, o diante de sua localização Preço: Gratuito
assim, que a cidade dono de uma pousada “perdida” na divisão
russa que nomeia o decadente no meio do precária dos calendários. APARELHO SEXUAL E CIA.
livro apareça não como nada procura um hóspede Sebastopol é o primeiro Livro de 2007 agora reimpresso graças a uma
acidente geográfico desaparecido, mas o livro solo de Fraia, que já polêmica criada por equivocada associação
propriamente dito, e, procura sabidamente em havia feito O verão de Chibo entre a obra e o material do governo federal,
sim, como um fajuto vão pelo fundo de uma (em parceria com Vanessa que visava ensinar gênero a crianças.
cartão-postal – mas um piscina cheia de lodo que Barbara), e a graphic novel Traduzida para 10 línguas, a narrativa aborda
cartão-postal daqueles já viveu dias melhores – Campo em branco (com questões práticas e não tão práticas sobre amor
que enviamos para nós lembremos que piscinas DW Ritbatski). Em sua e sexo de forma descontraída e clara – a leveza
mesmos, por falta de são o “cartão-postal” nova estreia, mostra-se é garantida pela associação entre ilustrações
destinatário ou de viagens das águas, mais um exímio na criação de uma e texto. O público alvo é o infantojuvenil,
reais. O importante é lembrete da coleção de atmosfera de mistério que CONTOS que, pela obra, pode ter contato com esses
recriar e assim ir seguindo. artifícios que o livro se toma as rédeas da atenção conteúdos sem clichês ou moralismos.
No primeiro conto, propõe a compilar. No do leitor. O mistério Sebastopol
uma garota reconta o último dos contos, a do qual falamos não Autor - Emilio Fraia
acidente que sofreu ao frustração dos primeiros necessariamente implica Editora - Alfaguara
tentar ser a esportista anos no mercado de resolução de algum caso Páginas - 120
mais jovem a escalar o trabalho leva uma garota ou de um grande segredo a Preço - R$44,90

Autora: Zep e Hèlene Bruller


Editora: Seguinte

Da ótima tradução Eis o Schwitters Páginas: 96


Preço: R$ 39,90

AGAMBEN: POR UMA ÉTICA


Rei ou Tirano? Talvez seja técnicos dos quais não Kurt Schwitters (aparente) delírio como DA VERGONHA E DO RESTO
a primeira dúvida que se pode fugir, mas nada (1887-1948) é mais recurso crítico: Dadá é A partir das ideias do filósofo Giorgio Agamben,
salta ao ver Édipo tirano, que uma busca simples conhecido por seus contra Política, pois é contra o livro busca entender porque o tempo presente
de Sófocles, peça que na internet não resolva. trabalhos visuais Loucura. / Política está no é marcado pelo apagamento das diferenças que
costuma ser traduzida Antunes imprime ótimo e seu pioneirismo núcleo mole do nosso tempo permitem discernir com clareza entre a lei e
como Édipo rei por aqui. ritmo, ainda que isso na execução de / Quem dera o próprio a vida, a norma e a exceção, o verdadeiro e o
Mas o tradutor Leonardo torne a leitura um pouco performances e núcleo amolecer logo e abrir falso. A vergonha possui, no livro, papel central
Antunes explica ao leitor mais trabalhosa para instalações artísticas. espaço ao nosso tempo. É por ser o sentimento que traz à tona o que há
suas escolhas: o “tirano” o leitor acostumado a Acaba de chegar impressionante que de mais íntimo no humano, e isso no mesmo
dá conta da fragilidade do traduções mais diretas, ao mercado o lado tenha sido, algum dia, gesto pelo qual se vela a nudez das origens.
poder de Édipo, que só como a de Mário Kury. poeta do autor, em considerado apolítico.
passa a ser chamado de Mas a exigência é tradução de Douglas O mérito da seleta é nos
“rei” após a descoberta instigante para o leitor Pompeu. A seleta trazer Schwitters bem-
de sua paternidade. e atesta a qualidade abrange diferentes situado e plural. Mais
A edição feita pela do tradutor (I.G.) períodos da vida do um ótimo lançamento
Todavia deste clássico autor, com a presença da Jabuticaba (I.G.)
incontornável é, como de alguns de seus Autor: Oswaldo Giacoia Jr.
se diz popularmente, mais famosos poemas Editora: n-1 edições
“um brinco de tão boa”: (como o Anna Blume). Páginas: 256
desde a capa de Rodrigo Vemos as repetições Preço: R$ 66
Visca, que consegue (muitas delas apenas
aliar melancolia e pronominais); a TESTO JUNKIE
vivacidade dentro da encenação irônica Um ensaio provocativo sobre o lugar que ocupa
ideia de ruína, de quebra, da voz alheia como o corpo, o sexo e a sexualidade na sociedade
afastando clichês como forma de ensejar contemporânea. As ideias são construídas a partir
arte figurativa ou o críticas sociais; de experimento empreendido pelo próprio autor
uso de vasos gregos; elementos desconexos em seu corpo – Preciado é homem trans e durante
passando pelos apensos que, unidos, fazem 236 dias administrou testosterona em si mesmo.
esclarecedores (sem do poema um lugar A partir disso, pensa a cultura farmacológica do
serem excessivos) de questionamento capitalismo e constroi uma
de Breno Sebastiani do olhar – seja ele história das tecnologias
e Maria Homem; e o social, artístico ou reprodutivas.
interessante o trabalho TEATRO mesmo amoroso. POESIA
criativo do tradutor Schwitters foi próximo
Leonardo Antunes. Este Édipo Tirano ao Dadaísmo, sem Por trás e pela frente primeiro
esclarece suas escolhas Autor - Sófocles vinculação expressa Autor - Kurt Schwitters Autor: Paul B. Preciado
aos leitores de forma Editora - Todavia a ele.Um de seus Editora -Jabuticaba Editora: n-1 edições
simples e, no geral, Páginas - 152 poemas nos alerta Páginas - 128 Páginas: 448
acessível – há termos Preço - R$ 33,90 para a potência do Preço - R$ 30 Preço: R$ 68
32
PERNAMBUCO, OUTUBRO 2018

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