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VERDES ANOS

Colette
Colecção Livros de Bolso Europa América
nº 311
***
Colecção Livros de Bolso Europa América
1 - Esteiros, Soeiro Pereira Gomes
2 - O Músico Cego, Vladimiro Korolenko
3 - Frei Luís de Sousa, Almeida Garrett
4 - A Oeste nada de Novo, Erich Maria Remarque
5 - A Missão, Ferreira de Castro
6 - Mar Morto, Jorge Amado
7 - A Um Deus Desconhecido, John Steinbeck
8 - O Valente Soldado Chveik, Jaroslav Hasek
9 - A Cidade do Sossego e O Capote, Nicolau Gogol
10 - O Monte dos Ventos Uivantes, Emily Bronte
11 - Gaibéus, Alves Redol
12 - Cartas do Meu Moinho, Alphonse Daudet
13 - O Médico e o Monstro, R. Stevenson
14 - O Homem e o Rio, William Faulkner
15 - Sementes de Violência, Evan Hunter
16 - O Retrato de Ricardina, Camilo Castelo Branco
17 - Serões da Província, Júlio Dinis
18 - As Desencantadas, Pierre Loti
19 - Domingo à Tarde, Fernando Namora
20 - Germinal, Emílio Zola
21 - Manhã Submersa, Vergílio Ferreira
22 - Bel-Ami, Guy de Maupassant
23 - Morreram pela Pátria, Mikail Cholokov
24 - O Príncipe, Nicolau Maquiavel
25 - As Mãos Sujas. Jean-Paul Sartre
26 - Viagens na Minha Terra, Almeida Garrett
27 - O Eleito, Thomas Mann
28 - O Grande Meaulnes, Alain-Fournier
29 - O Pregador, Erskine Caldwell
30 - Polikuchka, Leão Tolstoi
31 - Gente de Hemsõ, August Strindberg
32 - filha de Labão, Tomás da Fonseca
33 - Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, Alexandre Sóljenitsin
34 - A Ciociara, Alberto Moravia
35 - Os Homens e os Outros, Elio Vittorini
36 - O Fogo e as Cinzas, Manuel da Fonseca
37 - Albergue Nocturno, Máximo Gorki
38 - Revolta na «Bounty», Sir John Barrow
39 - Recordações da Casa dos Mortos, Fedor Dostoievski
40 - O Autómato, Alberto Moravia
41 - Vinte e Quatro Horas da Vida de Uma Mulher, Stefan Zweig
42 - Morte dum Caixeiro Viajante, Arthur Miller
43 - A Rua do Gato que Pesca, Yolanda Fõldes
44 - Os Fidalgos da Casa Mourisca, Júlio Dinis
45 - A Ponte, Manfred Gregor
46 - A Noite Roxa, Urbano Tavares Rodrigues
47 - Melodia Interrompida, Boris Pasternak
48 - Nana, Emílio Zola
49 - Utopia, Thomas More
50 - Engrenagem, Soeiro Pereira Gomes
51 - A Religiosa, Diderot
52 - Noites Brancas, Fedor Dostoievski
53 - O «Barão» e Outros Contos, Branquinho da Fonseca
54 - Z, Vassilis Vassilikos
55 - Os Autos das Barcas, Gil Vicente
56 - Os Sequestrados de Altona, Jean-Paul Sartre
57 - Iracema, José de Alencar
58 - A Morgadinha dos Canaviais, Júlio Dinis
59 - Tartarin nos Alpes, Alphonse Daudet
60 - O Balio de Leça, Arnaldo Gama
61 - Elogio da Loucura, Erasmo
62 - O Chapéu de Três Bicos, Pedro António de Alarcón
63 - Cândido, Voltaire
64 - A Mulher de Trinta Anos, Honoré de Balzac
65 - Os Cavalos também Se Abatem, Horace McCoy
66 - O Lobo do Mar, Jack London
67 - A Casa de Bernarda Alba, Frederico Garcia Lorca
68 - O Satiricon, Petrónio
69 - A Filha do Regicida, Camilo Castelo Branco
70 - Guerra e Paz (vol. 1) Leão Tolstoi
71 - Guerra e Paz (vol. II) Leão Tolstoi
72 - O Denunciante, Liam O'Flaherty
73 - A Mãe, Máximo Gorki
74 - Uma Vida, Guy de Maupassant
75 - Helena, Machado de Assis
76 - Escola de Mulheres e Dom João, Molière
77 - Anátema, Camilo Castelo Branco
78 - O Sol de Cobre, André Kedros
79 - Pescador de Islândia, Pierre Loti
80 - A Cela da Morte. Caryl Chessman
81 - Memórias Dum Sargento de Milícias, Manuel António de Almeida
82 - Um Herói do Nosso Tempo, Lermontov
83 - Spartacus, Howard Fast
84 - A Arte de Amar, Ovídeo
85 - O Sonho. Emílio Zola
86 - Contos, Hans Christian Andersen
87 - As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift
88 - O Deserto do Amor. François Mauriac
89 - O Apelo da Selva, Jack London
90 - Cartas Portuguesas, Soror Mariana Alcoforado
91 - Duelo ao Sol, Niven Busch
92 - Paulo e Virgínia, Bernardin de Saint-Pierre
93 - As Pupilas do Senhor Reitor, Júlio Dinis
94 - Tarass Bulba, Nicolau Gogol
95 - O Contrato Social, Jean-Jacques Rousseau
96 - O Pão da Mentira, Horace McCoy
97 - Lolita, Vladimir Nabokov
98 - Noivas de Ninguém, Henry de Montherlant
99 - Quo Vadis?, Henryk Sienkiewicz
100 - Constantino, Guardador de Vacas e de Sonhos, Alves Redol
101 - A Lei, Roger Vailland
102 - O Exorcista, William Peter Blaity
103 - Os Conquistadores, André Malraux
104 - Tristão e Isolda
105 - Kama Sutra, Vaisyayana
106 - Sonetos, Camões
107 - A Princesa de Clèves, Madame de La Fayette
108 - Robinson Crusoé, Daniel Defoe
109 - Sátiras Sociais, Gil Vicente
110 - O Drama de João Barois, Roger Martin du Gard
111 - O Nó de Víboras, François Mauriac
112 - A Estepe, Tchekhov
113 - O Gavião Louco, Jean Carrière
114 - A Metamorfose, Franz Kafka
115 - Orgulho e Preconceito, Jane Austen
116 - Piedade para as Mulheres, Henry de Montherlani
117 - O Guarani, José de Alencar
118 - A República, Platão
119 - O Barbeiro de Sevilha, Beaumarchais
120 - Grandes Esperanças. Charles Dickens
121 - O Amor do Soldado. Jorge Amado
122 - Menina e Moça, Bernardim Ribeiro
123 - A Letra Escarlate, Nathaniel Hawthorne
124 - A Grande Muralha da China, Franz Kafka
125 - Uma Noite em Lisboa, Erich Maria Remarque
126 - A Pequena Fadette, George Sand
127 - O Macaco Louco, A. S. Gyorgyi
128 - As Bodas de Fígaro, Beaumarchais
129 - O Jardim Perfumado, Xeque Nefzaui
130 - O Demónio do Bem, Henry de Montherlant
131 - Dez Dias Que Abalaram o Mundo, John Reed
132 - Cem Anos de Solidão, Gabriel Garcia Márquez
133 - A Náusea, Jean-Paul Sartre
134 - A Ponte do Rio Kwai, Pierre Boule
135 - As «Jóias» Indiscretas. Diderot
136 - Os Deuses Têm Sede, Anatole France
137 - O Processo, Franz Kafka
138 - Este É o Bom Governo de Portugal, Tomás Pinto Brandão
139 - Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, Vicente Blasco Ibáñez
140 - Discurso sobre a Origem e Fundamentos da Desigualdade entre os
Homens, Jean-Jacques Rousseau
141 - vinho e Pão, Ignazio Silone
142 - O Bisturi, Horace McCoy
143 - As Aventuras de Huckleberry Finn, Mark Twain
144 - A Filha do Arcediago, Camilo Castelo Branco
145 - As Leprosas, Henry de Montherlant
146 - História de Uma Revolução, Fernão Lopes
147 - Chamado do Mar, James Amado
148 - O Arco de Sant'Ana. Almeida Garrett
149 - Discurso do Método, Descartes
150 - A Montanha Morta da Vida, Michel Bernanos
151 - Fanny Hill - Memórias Duma Prostituta, John Cleland
152 - A Pérola, John Steinbeck
153 - O Anticristo, Friedrich Nietzsche
154 - Uma Família Inglesa, Júlio Dinis
155 - Amor Numa Rua Escura, Irwin Shaw
156 - A Besta Humana, Emílio Zola
157 - O Obelisco Negro, Erich Maria Remarque
158 - Tratado da Política, Aristóteles
159 - A Cabana, Vicente Blasco Ibáñez
160 - América, Franz Kafka
161 - Mulherezinhas, Louisa May Alcott
162 - Alice no País das Maravilhas, Lewis Carroll
163 - A Dama das Camélias, Alexandre Dumas-Filho
164 - A Face da Justiça, Caryl Chessman
165 - Romeu e Julieta, Shakespeare
166 - Esplendores e Misérias das Cortesãs - I, Balzac
167 - Esplendores e Misérias das Cortesãs - II, Balzac
168 - O Banquete, Platão
169 - Tempo para Amar e Tempo para Morrer, Erich Maria Remarque
170 - A Família Bellamy, John Galswworth
171 - A Família Bellamy - II. Segredos de Família. John Galswworth
172 - A Família Bellamy - III. Os Novos Tempos, Mollie Hardwick
173 - A Família Bellamy - IV. A Guerra para Acabar com as Guerras, Mollie
Hardwick
174 - A Família Bellamy - V. A Dança Continua, Michael Hardwick
175 - A Família Bellamy - VI. Fins e Princípios, Michael Hardwick
176 - A Ilha dos Pinguins, Anatole France
177 - A Escrava Isaura, Bernardo Guimarães
178 - Morte em Veneza, Thomas Mann
179 - Assim Falou Zaratustra, Friedrich Nietzsche
180 - Pensamentos, Pascal
181 - Alice do Outro Lado do Espelho, Lewis Carroll
182 - O Dia Cinzento e Outros Contos, Mário Dionísio
183 - O Moinho à Beira do Rio - I, George Eliot
184 - O Moinho à Beira do Rio - II, George Eliot
185 - Bela de Dia, Joseph Kessel
186 - Alcorão - Parte I
187 - Alcorão - Parte II
188 - A Vida Amorosa de Molly Flanders, Danid Defoe
189 - Lord Jim, Joseph Conrad
190 - De Angola à Contra costa - 1, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens
191 - De Angola à Contra costa - II, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens
192 - O Canto e as Armas. Manuel Alegre
193 - O Castelo, Kafka
194 - As Aventuras de Tom Sawyer, Mark Twain
195 - Os Infortúnios da Virtude, Marquês de Sade
196 - Madame Bovary, Gustave Flaubert
197 - O Inferno, Dante Alighieri
198 Aventuras de Pinóquio, Collodi
199 - West Side Story («Amor sem Barreiras), Irving Shulman
200 - Praça da Canção, Manuel Alegre
201 - A Ingénua Libertina, Colette
202 - Ana Karenina - I, Leão Tolstoi
203 - Ana Karenina - II, Leão Tolstoi
204 - 20 000 Léguas Submarinas, Júlio Verne
205 - Os Carros do Inferno, Sven Hassel
206 - A Vagabunda. Colette
207 - Dois Anos de Férias. Júlio Verne
208 - O Zero e o Infinito, Arthur Koesder
209 - Moby Dick - A Baleia Branca - I, Herman Melville
210 - Moby Dick - A Baleia Branca - II, Herman Melville
211 - Dona Bárbara. Rómulo Gallegos
212 - O Macaco Nu, Desmond Morris
213 - Catecismo Positivista, Augusto Comte
214 - Avieiros. Alves Redol
215 - Viagem ao Centro da Terra, Júlio Verne
216 - Como Eu Atravessei a África - I, Serpa Pinto
217 - Como Eu Atravessei a África - II, Serpa Pinto
218 - A Queda Dum Anjo, Camilo Castelo Branco
219 - A Cidade e as Serras, Eça de Queirós
220 - O Natal do Sr. Scrooge e Os Sinos de Ano Novo, Charles Dickens
221 - Lendas e Narrativas, Alexandre Herculano
222 - O Mandarim, Eça de Queirós
223 - Cinco Semanas em Balão, Júlio Verne
224 - Contos, Eça de Queirós
225 - A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queirós
226 - Doze Casamentos Felizes, Camilo Castelo Branco
227 - Os Lusíadas, Luís de Camões
228 - Os Canhões de Navarone, Alistair MacLean
229 - Os Maias, Eça de Queirós
230 - Histórias Extraordinárias - I, Edgar Allan Poe
231 - Novelas do Minho - I, Camilo Castelo Branco
232 - Lendas e Narrativas - II, Alexandre Herculano
233 - A Ilha Misteriosa - I. Os Náufragos do Ar, Júlio Verne
234 - As Minas de Salomão (de Rider Haggard), Eça de Queirós
235 - Eurico, o Presbítero, Alexandre Herculano
236 - O Último Dia Dum Condenado, Vítor Hugo
237 - O Livro de Cesário Verde
238 - O País das Uvas, Fialho de Almeida
239 - A Honra Perdida de Katharina Blum, Heinrich Böll
240 - Coração, Cabeça e Estômago, Camilo Castelo Branco
241 - Folhas Caídas, Almeida Garrett
242 - A Ilha Misteriosa - II. O Abandonado, Júlio Verne
243 - O Crime do Padre Amaro, Eça de Queirós
244 - Os Meus Amores, Trindade Coelho
245 - Contra Mar e Vento, Teixeira de Sousa
246 - Mães e Filhas - I, Evan Hunter
247 - A Velhice do Padre Eterno, Guerra Junqueiro
248 - A Relíquia, Eça de Queirós
249 - A Brasileira de Prazins, Camilo Castelo Branco
250 - Mães e Filhas - II, Evan Hunter
251 - O Primo Basílio, Eça de Queirós
252 - Amor de Perdição, Camilo Castelo Branco
253 - Só, António Nobre
254 - A Ilha Misteriosa - III. O Segredo da Ilha, Júlio Verne
255 - Diálogos III, Platão
256 - A Correspondência de Fradique Mendes, Eça de Queirós
257 - A Harpa do Crente, Alexandre Herculano
258 - Eusébio Macário, Camilo Castelo Branco
259 - Até à Eternidade - I, James Jones
260 - Odisseia, Homero
261 - O Conde de Abranhos, Eça de Queirós
262 - A Corja, Camilo Castelo Branco
263 - Até à Eternidade - II, James Jones
264 - O Bobo, Alexandre Herculano
265 - Campo de Flores - I, João de Deus
266 - Novelas do Minho - II, Camilo Castelo Branco
267 - O Regimento da Morte, Sven Hassel
268 - O Raio Verde, Júlio Verne
269 - Os Pescadores, Raul Brandão
270 - A Cartuxa de Parma - I, Stendhal
271 - Contos Populares Portugueses, Antologia
272 - Dicionário de Milagres, Eça de Queirós
273 - A Cartuxa de Parma - II, Stendhal
274 - O Último Voo da Arca de Noé, Chás Carner
275 - História Trágico-marítima - I, Bernardo Gomes de Brito
276 - A Tulipa Negra, Alexandre Dumas
277 - A Felicidade não Se Compra, Hans Hellmut Kirst
278 - História Trágico-Marítima - II, Bernardo Gomes Brito
279 - Histórias Extraordinárias - II, Edgar Allan Poe
280 - Robur. o Conquistador, Júlio Verne
281 - Alves & C.ª, Eça de Queirós
282 - Deus Dorme em Masúria, Hans Hellmut Kirst
283 - Campo de Flores - II, João de Deus
284 - Sonetos, Florbela Espanca
285 - Uma Vez não Basta, Jacqueline Susann
286 - Amor de Salvação, Camilo Castelo Branco
287 - In illo Tempore, Trindade Coelho
288 - Os Possessos - I, Dostoievski
289 - Os Possessos - II. Dostoievski
290 - Os Possessos - III, Dostoievski
291 - A Capital, Eça de Queirós
292 - A Mulher Fatal, Camilo Castelo Branco
293 - O Senhor do Mundo, Júlio Verne
294 - As Viagens de Marco Pólo
295 - O Conde de Monte Cristo - I, Alexandre Dumas
296 - A Freira no Subterrâneo, Camilo Castelo Branco
297 - O Conde de Monte Cristo - II, Alexandre Dumas
298 - Um Conto de Duas Cidades. Charles Dickens
299 - Sonetos Completos, Antero de Quental
300 - O Monge de Cister - I, Alexandre Herculano
301 - Ensaio sobre o Princípio da População, Thomas R. Malthus
302 - Oliver Twist, Charles Dickens
303 - O Livro
304 - Sensibilidade e Bom Senso, Jane Austen
305 - Noites de Lamego, Camilo Castelo Branco
306 - A Ilíada, Homero
307 - A Volta ao Mundo em 80 Dias, Júlio Verne
308 - Monge de Cister - II, Alexandre Herculano
309 - Decâmeron - I, Giovanni Boccaccio
310 - A Eneida, Virgílio
311 - Verdes Anos, Colette
COLETTE
VERDES ANOS
Publicações Europa América
Título original: Le Blé en Herbe
Tradução de Manuel da Moita Cardoso
Capa: estúdios P. E. A. © Flammarion
Direitos reservados por Publicações Europa-América, L.da,
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pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica do livro. Esta
excepção não deve de modo nenhum ser interpretada como sendo
extensiva à transcrição de textos em recolhas ontológicas ou similares
donde resulte prejuízo para o interesse pela obra. Os transgressores são
passíveis de procedimento judicial
Editor: Francisco Lyon de Castro
Edição nº 40 8113127
Execução técnica:
Gráfica Europam, Lda.,
Mira - Sintra - Mem Martins
NOTA INTRODUTÓRIA
Vida e obra
Sidonie-Gabrielle Colette nasceu em 28 de Janeiro de 1873, em Sainí-
Sauveur-en-Puisaye fYonne). O pai relacionava-se com Henry Gauthier-
Villars, romancista conhecido pelo pseudónimo de Willy. A jovem
provinciana deixa-se rapidamente seduzir, aos vinte anos, por esse
parisiense libertino, catorze anos mais velho. Casam-se e instalam-se em
Paris.
Gauthier- Villars possuía algum talento. Mas, segundo um costume vulgar
na altura, pagava a outros para escreverem obras que depois publicava
como suas. Colette, entretanto, desiludida com a vida da capital e pouco
agradada com os meios um tanto fúteis que o seu marido frequentava,
começa a escrever cadernos com recordações de infância, reflexo da
saudade que sentia da Borgonha. A frescura e a espontaneidade das
evocações que faz de Saint-Sauveur e da vida escolar levam o marido a
incitá-la a romancear essa experiência. Por sua vez, Gauthier- Villars
corrige o trabalho e introduz nele elementos escabrosos ou apimentados.
Sob o nome de Willy, saem os primeiros romances: Claudine à Pécole
(1900); Claudine à Paris (1901), Claudi-ne em ménage (1902) e Claudine
s'en va (1903).
Apesar das alterações feitas pelo marido e por alguns dos seus
colaboradores, um elemento surgia e que não era fruto de nenhum deles:
a feminilidade. De tal modo que, num encontro com um escritor amigo,
este volta-se para Colette e afirma: «É você a autora de Claudine...»
Na verdade, a heroína desses romances era a própria Colette e, não
obstante serem assinados por Willy, as obras eram quase inteiramente
dela.
Estes romances obtêm um grande sucesso. Em 1906, porém, Colette
divorcia-se. E se Claudine é uma personagem célebre e que dá dinheiro
aos editores, a sua verdadeira criadora está sem recursos. O divórcio,
todavia, fora providencial. Se tivesse continuado a escrever para Willy, que
pretendia apenas contentar o público, Colette acabaria por sobrevalorizar o
aspecto picante dos seus livros. Desta forma, fica entregue à sua própria
natureza e à sua própria criação, sem interferências alheias. O ex-marido
tivera, contudo, um mérito: ainda que pareça estranho, esta mulher para
quem escrever se tornou uma actividade quase tão natural como respirar,
e que em meio século iria publicar cerca de oitenta obras, tivera
necessidade de um estímulo externo. Agora, entregue a si própria, e por
necessidades do dia-a-dia, Colette alterna a profissão de escritora com a
de dançarina de music-hall durante quase dez anos. Três belos livros
reflectem essa experiência: La Vagabonde (1910), L'entrave e L'envers du
music-hall (1913).
Entretanto, Colette refaz a sua vida e casa-se com Henry de Jouvenel.
Quando rebenta a guerra, abandona a actividade teatral e, de 1913 a
1923, torna-se jornalista, colaborando no Matin.
Com Chéri (1920), Colette escreve pela primeira vez um romance em que
a principal personagem é algo diferente da escritora. Com a colaboração
de Léopold Marchand, adapta a obra ao teatro, desempenhando ela
própria o papel de Léa.
Ao lerem-se as páginas de Colette, sente-se que são ditadas por um
profundo instinto que sabe encontrar sempre a forma e o estilo mais
felizes, transmitindo numa linguagem pura e límpida as subtilezas do
sentimento e da realidade. O mundo que Colette exprime de modo tão
perfeito é, porém, singularmente limitado: é o mundo das sensações. Dir-
se-ia que procura reencontrar a sua juventude na eterna juventude das
coisas. Na realidade, Colette não faz mais do que escrever, durante
cinquenta anos, o mesmo romance: o encontro, a intensa chama erótica, a
separação.
E o facto de saber antecipadamente que a separação é inevitável, acaba
por envolver a aventura dos sentidos numa aura melancólica. É disso
prova La naissance du jour (1928), quando a escritora se aproxima dos
sessenta anos. Nele confessa que o amor é uma coisa
10
triste, porque ninguém se pode libertar dele, porque ninguém pode
esquecer os ilusórios paraísos terrestres da paixão. Em La Chatte (1933),
Duo (1934) e Le Képi (1943), obras que se podem colocar entre as suas
melhores, regressa com maior insistência ao tema da tristeza, tida como
inseparável companheira de vida sentimental demasiado intensa.
Durante a segunda guerra mundial, um severo golpe abala o seu espírito e
o seu corpo: o marido é preso pela Gestapo. As preocupações e a
ansiedade debilitam-na fisicamente.
Em 1945 é eleita para a Academia Goncourt, por unanimidade. Falece em
1954.
11
CAPÍTULO I
- Vais à pesca, Vinca?
Com um menear altaneiro da cabeça, Pervenche, a Vinca dos olhos cor de
chuva primaveril, respondeu que sim, que, realmente, ia à pesca. A sua
camisola desbotada e salpicada de passagens, as suas alpergatas,
encorreadas pelo sal, testemunhavam a afirmação. E todos sabiam que
aquela saia, de quadrados azuis e verdes, velhas de três épocas, era
acessório indispensável para a captura de camarões e caranguejos. E
aqueles dois camaroeiros, equilibrados sobre o ombro, e aquele gorro de
lã, eriçado de borbotos e azulado como um cardo das dunas, era ou não
verdade que faziam parte de um todo, da sua panóplia de pesca?
Ela ultrapassou aquele que a chamara. Desceu a caminho dos rochedos,
nas grandes passadas das suas pernas magras e bem torneadas, cor de
greda cozida. Philippe via-a a andar, comparando uma e outra: a Vinca
deste ano e a Vinca das últimas férias. Teria ela já acabado de crescer?
Vai sendo tempo de parar. Ela não está mais carnuda do que no ano
passado. Os seus cabelos, curtos e rebeldes, dispersam-se como
pequenos caules de palha dourada e inflexível que ela deixa crescer há
mais de quatro meses, mas que não consegue en-
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trançar ou enrolar. Ela tem as faces e as mãos bem queimadas pelo sol e
o ar salgado; o pescoço, branco como o leite na raiz dos cabelos; o sorriso
é discreto, mas o riso brilhante, irresistível. E se ela procura esconder um
colo de adolescente no disfarce de blusões e camisolas, não hesita, para
entrar na água, em levantar até onde pode a saia ou os calções,
naturalmente, com a serenidade de um qualquer rapazito...
O companheiro que a espiava deitado na duna, aqui e ali ponteada pelos
tufos de vegetação da areia, aninhava o queixo, que uma covinha fendia,
entre os dois braços cruzados. Ele tinha dezasseis anos e meio, enquanto
Vinca completara há pouco os seus quinze anos e meio. A infância unira-
os, a adolescência separara-os. Ainda no ano passado, trocavam frases
sarcásticas, um ou outro tabefe sorrateiro. Agora é o silêncio, um silêncio
que, constantemente, pesa entre ambos, tão denso que os leva a
preferirem o arrufo ao esforço da conversação. Mas Philippe, subtil por
natureza, insistente e enganoso, mascara de mistério o seu mutismo,
procurando, inclusivamente, motivos que o enfadam. Esboça atitudes
descabidas, arrisca frases, «Para que serve... Não, tu não podes
compreender...», enquanto Vinca apenas sabe ocultar e, simultaneamente,
sofrer pelo que oculta, porque ela quereria saber defender-se contra o
precoce, imperioso, instinto de tudo dar, contra o receio de que Philippe,
mudando de dia para dia, mais forte cada hora que passa, quebre a frágil
amarra que o leva, todos os anos, de Julho a Outubro, ao bosque cerrado
que se debruça sobre o mar, aos rochedos enfeitados de bodelha negra.
Agora, ele adoptou uma nova maneira de olhar para a sua amiga,
fixamente
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mas sem a ver, como se Vinca fosse transparente, fluida, insignificante...
Será talvez para o ano que ela cairá a seus pés, que proferirá, para ele, as
suas primeiras palavras de mulher: «Phil!, não sejas mau... Amo-te, Phil,
faz de mim o que quiseres... Fala comigo, Phil...» Mas este ano ela
conserva ainda a dignidade arisca das crianças, resiste, e Phil não aprecia
essa resistência.
Ele não deixava de fitar aquela graciosa rapariga, de corpo esguio, que,
àquela hora, descia a caminho do mar. Não sabia se desejava mais
acariciá-la ou bater-lhe, mas queria-a confiante, prometida só para ele e
disponível com todos aqueles tesouros que o faziam corar - pétalas secas,
berlindes de ágata, conchas, sementes estranhas, imagens, aquele
relógiozinho de prata...
- Espera por mim, Vinca! Vou contigo à pesca! - gritou-lhe.
Ela afrouxou o passo sem se voltar. Ele alcançou-a em meia dúzia de
passadas e pegou num dos camaroeiros.
- Porque trouxeste dois?
- A rede mais pequena é para os buracos estreitos, o outro é o meu
camaroeiro, como de costume.
Ele mergulhou nos seus olhos cor da chuva primaveril o mais suave dos
seus olhares:
- Então não era para mim?
Ao mesmo tempo, ofereceu-lhe a mão para a ajudar a atravessar aquele
difícil corredor entre os rochedos, e o sangue ruborizou as faces de Vinca,
sobrepondo-se ao queimado da pele. Um gesto novo, um novo olhar,
bastavam para a confundir. Ainda ontem, batiam as
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falésias, exploravam todas as concavidades rochosas lado a lado - cada
um arriscando-se por si... Tão desembaraçada como ele, não se lembrava
de alguma vez ter pedido ajuda a Phil...
- Um pouco de amizade, Vinca! - pediu ele, sorrindo, pois ela retirara a
mão bruscamente, num gesto que se diria anguloso. - Tens alguma coisa
contra mim?
Ela mordeu os lábios, gretados pelos mergulhos diários, e continuou a
caminhar sobre os rochedos, eriçados de bolotas do mar. Reflectindo,
sentia-se vogar num mar de dúvidas, que se passará com ele? Ei-lo
atencioso, encantador, acabando de lhe oferecer a mão, como o faria a
uma senhora... Lentamente, ela mergulhou a bolsa de rede numa cavidade
onde a água do mar, imóvel, transparente, deixava ver holotúrias,
pequenos peixes que eram todos cabeça e barbatanas, caranguejos
negros de olhos vermelhos e camarões... A sombra de Phil obscureceu a
poça ensolarada.
- Sai daí, vamos! A tua sombra faz fugir os camarões... e, além disso, esta
poça pertence-me!
Ele não insistiu e ela continuou a pescar sozinha, impaciente, menos hábil
do que de costume. Dez camarões, vinte camarões, conseguiram fugir ao
golpe da sua rede, demasiado brusco, escondendo-se nas fendas das
rochas, deixando apenas ver as suas barbas compridas, zombando da
rede.
- Phil! Chega aqui, Phil! Está cheio de camarões e eles não querem deixar-
se apanhar!
Ele aproximou-se, indolente, curvando-se sobre o pequeno buraco aberto
na rocha, pululante de vida:
- É natural! És tu que não sabes...
16
- Sei muito bem - retorquiu ela, em tom azedo -, só o que me falta é
paciência.
Phil mergulhou o camaroeiro na água transparente, conservando-o imóvel.
- Nesse buraco da rocha - murmurou Vinca, curvando-se sobre o ombro do
seu companheiro - há muitos, lindos, lindos... Não estás a ver-lhes os
corni-chos?
- Não, mas isso não tem importância. Eles hão-de aproximar-se.
- É o que tu pensas!
- Certamente. Repara!
Ela debruçou-se mais e os seus cabelos afloraram, como uma asa curta e
prisioneira, a face do seu companheiro - Ela recuou, para logo retornar,
num movimento instintivo, e voltar a recuar. Ele pareceu não se dar conta
daqueles movimentos, mas a sua mão livre foi pousar no braço nu,
crestado do sol e salgado, de Vinca.
- Olha, Vinca... o maior e mais bonito de todos aproxima-se...
O braço de Vinca, que ela esquivava, deslizou até ao pulso na mão de
Phil, como uma pulseira, pois ele não o apertava...
- Não o apanhas, Phil... ele voltou a fugir... Para acompanhar melhor as
manobras do camarão,
Vinca deixou deslizar o seu braço, até ao cotovelo, na mão entreaberta. Na
água verde-amarelada, o grande camarão cor de ágata cinzenta, tacteava
com a extremidade das patas, a ponta das barbichas, o rebordo do
camaroeiro. Teria bastado um movimento súbito do pulso e... Mas o
pescador esperava, atardava-se, talvez
17
que saboreando a imobilidade do braço oferecido à sua mão, o peso de
uma cabeça coroada de cabelos louros e rebeldes, apoiando-se, vencida
por um instante, no seu ombro, mas que, logo, se afastava, arisca...
- Rápido, Phil, rápido, levanta a rede!... Oh! Deixaste-o fugir! Porque o
deixaste ir embora?
Phil respirou fundo, concedeu à sua amiga um olhar onde estavam
presentes o orgulho, a admiração e, até, o desprezo pela sua vitória; soltou
o braço magro e alongado, que de modo algum reclamara a sua liberdade;
com o camaroeiro fez agitar, violentamente, a água da poça clara:
- Oh! Não tem a menor importância... ele voltará... Bastará esperar...
18
CAPÍTULO II
Nadavam os dois, lado a lado; ele, com a pele mais branca, a cabeça
negra e redonda sob os cabelos molhados. Ela, queimada como uma
loura, coberta a cabeça com um lenço de seda azul. O banho quotidiano,
alegria silenciosa e completa, proporcionava às suas idades difíceis a paz
e a juventude, ambas em perigo. Vinca deitou-se, boiando, sobre a onda,
lançando água para o alto, como uma pequena foca. O lenço torcido
descobria-lhe as orelhas, rosadas e bem lançadas, que os cabelos,
durante o dia, não deixavam ver. Clareiras de pele branca mosqueavam-
lhe as fontes, que somente recebiam a carícia do sol na hora do banho.
Ela sorriu para Philippe e, naquele sol incomparável das onze horas, o azul
delicioso dos seus olhos verdejou ao receber o reflexo das águas do mar.
O seu companheiro mergulhou bruscamente, agarrou um pé de Vinca e
puxou-a para debaixo da vaga. Mergulharam ambos, reapareceram ao
lume de água cuspindo o «pirolito» tomado inesperadamente, assoprando
e rindo como se esquecendo, ela os seus quinze anos atormentados de
amor pelo seu companheiro de infância, ele os seus dezasseis anos
dominadores, a sua superioridade de rapaz bonito e as suas exigências de
proprietário precoce.
19
- Até ao rochedo! - gritou ele, cortando a água. Mas Vinca não o
acompanhou, dirigindo-se para a
praia.
- Vais-te embora, já?
Ela arrancou o lenço, como se fosse um escalpo, e sacudiu os seus
cabelos indomáveis:
- Hoje vem cá almoçar um senhor! O pai disse para me vestir!
Ela começou a correr, toda encharcada, grande e arrapazada, mas
esbelta, de músculos compridos e discretos. Uma pergunta de Phil fê-la
parar.
- Vais vestir-te? E eu? Então nem sequer poderei almoçar com uma
camisa aberta?
- Certamente que sim, Phil! Como tu quiseres! Aliás, ficas muito melhor
sem gravata!
O rosto molhado e crestado pelo sol, os olhos de Pervenche, logo
manifestaram a angústia, a súplica, um desejo, impertinente, de ver
aprovada a sua sugestão. Ele calou-se, com uma expressão fechada, e
Vinca galgou a duna, que as saudades da areia floriam.
Phil falava entre dentes, sozinho, batendo na água com os pés. Pouco lhe
importava as preferências de Vinca. «Para ela, estou sempre bem... Aliás,
este ano ainda a não vi satisfeita!»
E a aparente contradição das suas observações fê-lo sorrir. Mergulhou na
primeira onda, deixando a água salgada encher-lhe os ouvidos,
provocando-lhe uma sensação de silêncio rumorejante. Lá no alto, uma
pequena nuvem tapou-lhe o Sol, por instantes; Phil abriu os olhos e viu
passar, sobre ele, os ventres escuros, os grandes bicos afilados e as patas
sombrias, dobradas em pleno voo, de um casal de maçaricos reais.
20
«Raio de ideia», dizia Philippe para consigo. «Mas, que se passa com ela?
Parece-me um macaquito vestido de gente. Tem todo o aspecto de uma
mulata que vai comungar...»
Ao lado de Vinca, a irmãzinha, muito parecida com ela, exibia os seus
olhos azuis bem abertos, num rosto redondo e queimado, encimado por
cabelos louros e ásperos, apoiando na toalha, de ambos os lados do prato,
os punhos semicerrados de menina bem-educada. Dois vestidos brancos,
iguais, enroupavam a maior e a mais nova, passados e repassados a ferro,
adornados com folhos de organdi branco.
«Um domingo em Taiti», ironizou para consigo. «Nunca a vi tão feia.»
A mãe de Vinca, o pai de Vinca, a tia de Vinca, Phil e os seus pais, o
parisiense de visita, todos emolduravam a mesa de blusas verdes,
casacos de praia, com riscas, vestidos de seda. A vivenda, todos os anos
alugada pelas duas famílias amigas, cheirava, naquela manhã, a pão
quente e a soalhos de madeira bem lavados. O homem, vindo de Paris,
cujos cabelos começavam a embranquecer, representava, entre aqueles
banhistas de trajos coloridos e variegados e aquelas crianças tisnadas
pelo sol, o estranho delicado, pálido e bem vestido.
- Como tu mudaste, querida Vinca! - disse ele à jovem.
- Começa a ofensiva - murmurou Phil, impertinente.
O forasteiro inclinou-se para o lado da mãe de Vinca, para lhe afirmar
quase em surdina:
- Está encantadora! Deslumbrante! Mais dois anos... vai vê-la!
21
Vinca ouviu, os seus olhos brilharam num relâmpago de feminilidade, e
sorriu para o visitante. A boca, vermelha, entreabriu-se, deixando ver um
belo plano dos seus dentes, muito brancos. As pupilas, azuis como a flor
de que ela usava o nome, velaram-se sob os cílios louros. E até Phil, ele
próprio, se confessou, para consigo , deslumbrado. «Eh!... mas que se
passa com ela?»
Na entrada, numa mesa colorida por uma toalha de linho, sob o toldo,
Vinca serviu o café, aprumada e à vontade, numa quase acrobacia plena
de elegância e encanto. Porque uma rajada de vento fizera estremecer a
mesa, frágil, Vinca segurou com o pé uma cadeira que tombara, com o
queixo um napperon de renda, que levantava voo, continuando a servir o
café, impecavelmente, sem deixar cair uma só gota, desde o bico da
cafeteira até à chávena.
- Reparem nela! - extasiava-se o visitante. Apelidando-a de «tanagra»,
convenceu-a a provar a
chartreuse, perguntou-lhe o nome dos admiradores que ela desiludia no
casino de Cancale...
- Ah! Ah! O casino de Cancale! Mas... nós não temos casino em Cancale...
Ela ria e sorria, mostrando o semicírculo sólido de todos os seus dentes,
volteando, grácil como uma bailarina, nas biqueiras das suas alpargatas
brancas. Esboçava, muito ao de leve, breves apontamentos de malícia e
garridice; nunca os seus olhos procuraram Philippe, que, sombrio, por
detrás do piano e do grande ramalhete de alcachofras meio mergulhado
num balde rústico de cobre, a contemplava.
«Tinha-me enganado», dizia para consigo. «Ela é bem bonita. Essa é que
é a verdade!»
22
Como o visitante tivesse proposto a Vinca ensinar-lhe o balancello 1,
gravado num disco que ele trazia, Philippe deslizou pela porta da varanda,
correu para a praia e foi cair num buraco da areia da duna, onde se deixou
ficar, sentado, a cabeça sobre os braços e estes apoiados nos joelhos.
Uma nova Vinca, consciente da sua insolência voluptuosa, surgia-lhe sob
as pálpebras fechadas, numa imagem persistente, uma Vinca plena de
garridice, atacando e defendendo com as suas armas de sedução, cujos
contornos anatómicos se encontravam subitamente alterados, uma Vinca
mordaz e rebelde que se desejava...
- Phil! Querido Phil! Andava à tua procura... Que tens tu?
A sedutora, ofegante, estava junto dele; ingenuamente, puxava-lhe pelos
cabelos com a mão, para o forçar a levantar a cabeça.
- Não tenho nada - respondeu-lhe ele, com voz rouca.
Um tanto atemorizado, Phil abriu os olhos. Ajoelhada na areia, Vinca
amarrotava os dez folhos de organdi do seu vestido, comportando-se
como uma jovem pele-vermelha.
- Phil!, peço-te, não estejas zangado... Fiz alguma coisa mal feita... Phil?
Sabes muito bem que gosto mais de ti do que todos os outros. Fala
comigo, Phil!
Olhando-a, ele procurava nela qualquer vestígio daquele esplendor
efémero que o irritava, mas apenas
Nota 1: O balancello é uma das mais populares e graciosas danças do rico
folclore napolitano dos finais do século XVIII. (N. do T.)
23
encontrava uma Vinca abatida, uma adolescente carregada, cedo de mais,
de humildade, uma desajeitada encerrando-se na morna obstinação do
verdadeiro amor... E foi preciso ele afastar a sua mão, que ela beijava de
mansinho.
- Deixa-me! Tu não podes compreender... nunca compreendes nada!
Levanta-te, então!
E Phil procurava, alisando-lhe o vestido amarrotado, refazendo-lhe o laço
de fita que lhe adornava a cintura, afagando-lhe os cabelos rebeldes,
remodelar a imagem do belo pequeno ídolo entrevisto...
24
CAPÍTULO III
- As férias estão arrumadas, mais um mês e meio e pronto, acabam!
- Um mês - observou Vinca. - Sabes muito bem que a 20 de Setembro
estarei em Paris.
- Porquê? Teu pai está sempre livre até ao dia 1 de Outubro, todos os
anos.
- É verdade, mas a mãe, eu e a Lisette, nós não dispomos de muito tempo,
de 20 de Setembro a 4 de Outubro, para os primeiros trabalhos do Outono
- um vestido para ir às aulas, um casaco, um chapéu para mim, e outro
tanto para a Lisette... Quero dizer, nós, as mulheres, enfim...
Deitado de costas, Phil atirava mãos-cheias de areia para o ar.
- Oh!, lá, lá!... «Vós, as mulheres...» Vocês complicam tudo!
- Era o que me faltava ouvir... Tu... tu encontras sempre o teu fato a
postos, limpo e engomado, em cima da cama. Só te preocupas com os
sapatos, porque os compras numa loja onde teu pai te proibiu de entrares;
o resto, tudo te aparece feito. Bem cómodo, para vocês, os homens!...
25
Pronto a responder ao remoque, Philippe sentou-se, com um golpe de rins.
Mas Vinca ficou impassível. Cosia, bordando uma grinalda cor-de-rosa
num vestido de crepe da cor dos seus olhos. Os seus cabelos louros,
cortados à Joana d'Arc, haviam crescido lentamente. Por vezes, ela
dividia-os, na nuca, entrelaçando em fitas azuis dois pequenos tufos cor de
trigo, sabiamente dispostos um sobre cada face. Depois do almoço, Vinca
perdera uma das suas fitas, pelo que metade do seu cabelo tremulava,
qual cortina solta ao vento, na metade do seu rosto.
Philippe franziu as sobrancelhas:
- Deus meu! Que mal penteada estás, Vinca!
Sob a sua pele, tostada pelo sol das férias, ela corou, ao mesmo tempo
que o fitava com um olhar de humilde desculpa e dispunha os cabelos
rebeldes para detrás da orelha.
- Sabes perfeitamente... enquanto os cabelos estiverem curtos, nunca
poderei pentear-me. Aliás, este penteado é de transição...
- Para ti, a fealdade temporária é-te indiferente - afirmou ele, com dureza.
- Juro-te que não, Phil.
Envergonhado perante tanta doçura e humildade, ele calou-se. Ela
levantou para ele os olhos, admirada, pois não esperava tamanha
benevolência. Phil, ele próprio, acreditou numa trégua passageira das
susceptibilidades, aprontando-se para receber as censuras, os sarcasmos
infantis, tudo quanto ele classificava de «humor primário» da sua jovem
companheira. Mas Vinca sorriu melancólica, um sorriso errante voltado
para o
26
mar calmo, para o céu azul, onde o vento, lá no alto, desenhava com as
nuvens estranhos arabescos.
- Muito pelo contrário, Phil, asseguro-te que tenho muita vontade de ser
bonita. A mãezinha diz-me que ainda o poderei conseguir, mas precisarei
de ter paciência.
Os seus quinze anos, altivos e desajeitados, habituados às corridas,
salgados, duros, magros e sólidos, igualavam-na muitas vezes a uma
varinha fustigante e flexível, mas os seus olhos, de um azul sem par, a sua
boca, simples e sadia, eram obras-primas acabadas da graça feminina.
- Ter paciência... ter paciência!...
Phil levantou-se. Com a biqueira da sua alpergata esgaravatou a areia
seca da duna, semeada de pequenas cascas de caracóis, vazias.
Paciência! A palavra odiada acabara de envenenar a sua sesta feliz de
liceal em férias, cujos dezasseis anos vigorosos se haviam acomodado
àquela ociosidade e apatia, mas a quem a simples ideia de espera, de
evolução passiva, exasperava. Estendeu os braços e cerrou os punhos,
arqueou o peito seminu e desafiou o mundo:
- Ter paciência! A mesma palavra na boca de todos! Tu, o meu pai, os
meus «profs»... Ah!, meu Deus!...
Vinca interrompeu a costura para admirar o seu companheiro, harmonioso,
que a adolescência não deformara. Moreno, branco, de estatura mediana,
crescia lentamente e parecia, desde a idade de catorze anos, um homem
pequeno e bem modelado, um pouco maior em cada ano.
27
- E que outra coisa poderemos fazer, Phil? É preciso. Julgas sempre que
estender os braços e exclamar «Ah!, meu Deus!» poderá alterar a ordem
das coisas. Não podes ser diferente dos outros. Chegarás ao teu último
ano e, se tiveres estudado, terminarás a tua licenciatura ...
- Cala-te! - gritou-lhe ele. - Falas precisamente como a minha mãe!
- E tu como uma criança! Com a tua impaciência, que esperas tu alcançar,
meu pobre rapaz?
Pela expressão dos olhos negros de Philippe, ele odiava-a. Não lhe
chamara ela «meu pobre rapaz»?
- Não espero nada! - exclamou ele, quase trágico. - Sobretudo, nunca
esperarei que me compreendas! Estás para aí com a tua grinalda cor-de-
rosa, à espera da reabertura das aulas, do teu curso, da tua pequena
rotina... A mim preocupa-me constantemente a ideia de que tenho quase
dezasseis anos e meio...
Os olhos da Pervenche, cintilantes de lágrimas de humilhação,
conseguiram compor uma expressão de sorridente ironia:
- Ah!, sim? Sentes-te rei do mundo apenas porque tens dezasseis anos,
não é verdade? É o cinema a causa desse efeito?
Amo e senhor, Phil pôs-lhe as mãos nos ombros e sacudiu-a:
- Vê lá se te calas! Cada vez que abres a boca é para dizeres asneiras...
Enfureço-me, compreendes, fico furioso só com a ideia de que ainda só
tenho dezasseis anos! Os anos que vão agora seguir-se, os anos que
faltam para o bacharelato, anos de exames, do instituto profissional, estes
anos de hesitações, de apalpadelas,
28
quando, por vezes, temos de recomeçar porque falhámos, tornar a
mastigar, ruminar o que não conseguimos digerir... e por isso reprovámos.
Estes anos que ainda faltam e durante os quais, perante a mãe e o pai,
somos forçados a interessarmo-nos por uma carreira, só para os não
contristar, sabendo de antemão que eles próprios se esforçam por parecer
infalíveis quando, na realidade, não sabem mais a meu respeito do que eu
próprio... Ah!, Vinca, Vinca, quanto eu detesto esta fase da minha vida!
Porque não poderei eu ter já vinte e cinco anos?
Philippe resplandecia de intolerância e do seu inconformismo tradicional. A
pressa de envelhecer, o desprezo pelo tempo necessário para o
desabrochar da sua alma e do seu corpo, transformavam em herói
romântico aquele adolescente, filho de um pequeno industrial parisiense.
Sentando-se aos pés de Vinca, prosseguiu no seu coro de lamentações:
- Tantos anos ainda, Vinca, tantos, durante os quais serei apenas um
quase homem, quase livre, quase enamorado!
Suavemente, ela colocou a sua mão naqueles cabelos negros que o vento
fustigava à altura dos seus joelhos, afagando-os num gesto que significava
em si duas das interrogações que preocupavam o seu instinto feminino.
«Um quase enamorado? Pode-se, portanto, não ser mais do que um
quase enamorado?...»
Num movimento rápido, Phil voltou-se para a sua jovem amiga.
- Tu, tu, que aguentas tudo isto, tu, que pensas fazer?
Ante a expressão inquiridora daqueles olhos negros
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que a fitavam, ela retomou o seu papel, humilde, inseguro:
- Não seguirei o mesmo caminho do que tu, Phil... Não faço o bacharelato.
- Para seres o quê? Resolves-te, ou não, pelo Desenho Industrial? Ou pelo
curso de Farmácia?
- A mãezinha disse...
Ele estremeceu, colérico como um galo de combate, mas sem se levantar:
- «A mãezinha disse!...» Oh!, que escravidão! Que é que ela disse, a
«mãezinha»?
- Disse - repetiu Vinca, com doçura - que tem os seus ataques de
reumatismo, que Lisette tem apenas oito anos e que, sem ir procurar mais
longe, terei muito com que me ocupar na nossa casa, que dentro em breve
tomarei conta das despesas, que cuidarei da educação da Lisette, das
criadas, tudo, enfim, quanto é obrigação de uma dona de casa...
- Tudo isso?! Três vezes nove vinte e sete!
- ...Que me casarei...
Ela corou, a sua mão afastou-se dos cabelos de Philippe... Vinca parecia
esperar por uma palavra que ele não proferiu.
- ...Enfim, diz que, até me casar, terei muitas coisas para me ocuparem...
Ele voltou-se... mediu-a de alto a baixo, desdenhoso.
- E esse programa basta-te? Chega-te para... vejamos, cinco, seis anos,
talvez mais?
Os olhos azuis vacilaram, mas não se desviaram.
- É verdade, Phil, à espera... Porque apenas tenho quinze, dezasseis
anos... Porque é forçoso esperar...
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Ele recebeu o choque da palavra detestada e cedeu. Uma vez mais, a
simplicidade da sua pequena companheira e a submissão que ela ousara
confessar, aquela maneira, tão feminina, de respeitar os lares antigos e
modestos, deixaram-no mudo, desiludido, mas vagamente acalmado. Teria
ele aceite uma Vinca exuberante, rosto voltado à aventura e escarvando
qual eguazita rebelde perante o obstáculo, ante a longa e dura passagem
da adolescência?...
Phil apoiou a cabeça, encostando-a ao vestido da sua companheira de
infância. Os joelhos, finos, estremeceram e uniram-se, e Philippe recordou,
num relâmpago de entusiasmo o encantador modelado daqueles joelhos.
Depois, fechou os olhos, afastou o peso, confiante, da sua cabeça e ficou
assim, à espera...
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CAPÍTULO IV
Phil foi o primeiro a alcançar o caminho - dois trilhos de areia enxuta,
móvel como uma onda, limitados por um talude, onde aqui e ali brotavam
ervas, raras e encarquilhadas pelo sal -tornado rota invariável das carroças
ocupadas na recolha dos sargaços depois das marés vivas. O rapaz
apoiava-se nas varas compridas dos dois camaroeiros, trazendo, em
bandoleira, os dois cestos destinados a recolher os camarões, mas deixara
a cargo de Vinca os dois croques recobertos de engodo e o seu casaco de
pesca, um farrapo de grande estimação ao qual amputara as mangas.
Autorizando-se um pequeno período de descanso, que considerava bem
merecido, concedeu esperar ali pela sua constante companheira, fanática
como ele, que acabara de abandonar naquele deserto de rochas, charcos
e de algas, que as marés vivas de Agosto deixavam a descoberto.
Procurou-a com os olhos e, depois, deixou-se escorregar para baixo, na
direcção das cavernas que emolduravam o percurso. Lá no fundo, na praia
em declive, entre os revérberos dourados de centenas de poças de água
brilhando ao sol, ele descobriu um barrete de lã azul, desbotada como um
cardo do mar, assinalando o lugar onde Vinca, obstinada, procurava
camarões.
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- Se aquilo a diverte... - murmurou Philippe. Deixou-se deslizar, gozando o
prazer do contacto do seu tronco nu com a areia seca dos trilhos do atalho.
Muito perto da sua cabeça, escutou, vindo dos cestos, o sussurro húmido
de um punhado de camarões e o arranhar, dir-se-ia inteligente, das pinças
de um grande caranguejo, na procura da liberdade contra a tampa que o
aprisionava...
Philippe suspirou, possuído de uma felicidade imprecisa e sem mancha, na
qual a fadiga agradável, a vibração dos seus músculos, ainda tensos pelo
esforço da escalada, a cor e o calor de um princípio de tarde bretão
carregado de emanações salinas, participavam em comunhão de bens.
Sentou-se, os olhos deslumbrados pela luminosidade daquele céu leitoso
que ambos haviam contemplado, e voltou a admirar, com surpresa, o novo
bronzeado das suas pernas, dos seus braços - braços e pernas de
dezasseis anos, delgados mas já enformados, nos quais o músculo, seco,
ainda não surgia, mas que tanto poderiam orgulhar uma moça adolescente
como um rapaz da sua idade. Enxugou, com a mão, a canela que
sangrava, esfolada, e cuspiu, na mão, a saliva que iria misturar o sal do
sangue e o da água do mar no tornozelo.
A brisa, soprando de terra para o mar, tinha o aroma do restolho das
searas, dos estábulos, da hortelã-pimenta; uma tonalidade rósea,
poeirenta, quase ao nível do mar, substituíra pouco a pouco o azul
imutável que predominara desde pela manhã. Philippe não soube traduzir
o momento em palavras: «Há poucas horas na vida nas quais o corpo
contente, os olhos satisfeitos e o coração leve, batendo quase vazio,
recebem num só
34
momento tudo quanto eles podem conter - e eu recordar-me-ei de que
esse é o momento que estou vivendo»; mas, no entanto, bastou-lhe
escutar um chocalho rachado e o balir da cabrita que o trazia ao pescoço
para que os cantos da sua boca estremecessem de angústia e lágrimas de
prazer lhe aflorassem os olhos. Não se voltou, contudo, para os rochedos
onde vagabundeava a sua jovem amiga, nem da pureza da sua emoção
emergiu o nome de Vinca - uma criança de dezasseis anos não saberia
chamar, em reforço de uma delícia inesperada, uma outra criança, talvez
que igualmente sensibilizada...
- Eh!, rapaz!...
A voz que o fez acordar do sonho era jovem, autoritária. Phil voltou-se,
sem se levantar, para uma mulher, toda vestida de branco, que, talvez a
dez passos dele, enterrava os saltos altos dos seus sapatos e a ponta de
uma bengala no piso arenoso do atalho dos sargaços.
- Dize-me lá, rapaz, não posso ir mais além com o meu carro por este
caminho, pois não?
Por delicadeza, Philippe levantou-se, aproximando-se, e não corou senão
quando, já de pé, sentiu no seu tronco nu o vento refrescante e o olhar da
senhora de branco, que sorria e mudava a inflexão da voz.
- Desculpe-me, senhor... tenho a certeza de que o meu motorista se
enganou. Bem o tinha avisado. Este caminho acaba num atalho que vai
até à beira-mar, não é verdade?
- Exactamente, minha senhora. É o caminho do sargaço...
- Do Sargaço? E a que distância fica Sargaço?
35
Phil não conseguiu dominar uma gargalhada, que a senhora de branco
imitou, por condescendência.
- Disse qualquer coisa que o divertiu? Escute, vou passar a tratá-lo por tu:
quando te ris, não pareces ter mais do que doze anos.
Mas ela fitava-o nos olhos, como se ele fosse um homem...
- Minha senhora, o sargaço não é o Sargaço, é... são os sargaços...
- Brilhante explicação - comentou a senhora de branco -, pela qual te fico
muito obrigada.
Ela troçava dele de uma maneira dir-se-ia viril, condescendente, que ia
bem com a sua expressão tranquila, e Philippe sentiu-se, de súbito,
fatigado, numa posição falsa e fraca, paralisado por uma crise de
feminilidade, daquelas que por vezes se apossam de um adolescente
perante uma mulher.
- A pescaria foi boa, senhor?
- Não, minha senhora, nem por isso... Isto é... Vinca tem mais camarões
do que eu...
- Quem é a Vinca? Sua irmã?
- Não, é uma amiga.
- Vinca... um nome estrangeiro?
- Não... Isto é... diminutivo de Pervenche.
- Uma amiga da sua idade?
- Ela tem quinze. Eu já fiz dezasseis.
- Dezasseis anos... - repetiu a senhora de branco. Não fez qualquer
comentário e, momentos depois,
acrescentou:
- Tem a cara suja de areia.
Phil limpou a face, quase com exaltação, apressado; depois deixou cair o
braço ao longo do corpo. «Já
36
nem sinto os braços», pensou ele. «Creio que não me sinto bem...»
A senhora de branco concedeu a Philippe um dos seus olhares tranquilos
e sorriu:
- Aí está a Vinca - disse ela, apontando para a curva do caminho, por onde
vinha a rapariga, rebocando uma rede com moldura de madeira e o casaco
de Philippe. - Até à vista, senhor...
- Phil - respondeu ele, maquinalmente.
Ela não lhe estendeu a mão, saudando-o, contudo, com uma inclinação de
cabeça três vezes repetida, como uma mulher que responde «sim, sim,
sim» a um pensamento reservado. Ainda ela não desaparecera da vista,
quando Vinca surgiu.
- Phil! Quem é aquela senhora?
Com um menear de ombros e a expressão dos seus olhos, ele deu a
entender que não o sabia de todo.
- Não a conheces e estavas a falar com ela?
Phil olhou, altaneiro, para a sua amiga, sentindo renascer nele a malícia, e
sacudiu, insensivelmente, um arrepio passageiro. Simultaneamente, não
sem muita alegria, dava-se conta da sua idade, da sua amizade
perturbada, do seu próprio despotismo e da devoção fiel, impertinente, de
Vinca. Encharcada, ela exibia os joelhos martirizados de S. Sebastião, no
entanto perfeitos sob a sua epiderme maltratada; as suas mãos de
jardineiro-ajudante ou de criada; um lenço esverdeado, amarrado,
negligentemente, no pescoço, rematava-lhe o blusão de lã, cheirando a
marisco cru. A sua velha boina de lã azul desistira de fazer concorrência ao
azul dos seus olhos ansiosos, ciumentos, eloquentes. Vinca assemelhava-
se a uma colegial, mascarada para uma ré-
37
cita escolar. Phil desatou a rir e Vinca bateu o pezito, atirando-lhe com o
casaco à cara.
- Respondes-me ou não?
Indolente, Phil passou os braços nus pelas mangas do casaco,
endireitando-as.
- Bem, vá lá! É uma senhora que tem automóvel e cujo motorista se
enganou no caminho. Mais uns metros e o carro atolava-se na areia. Lá
lhe dei umas indicações e ela safa-se.
- Ah!...
Sentada, Vinca sacudia as alpergatas, das quais saltavam grãos de areia
molhada.
- E porque se foi ela embora precisamente quando
eu cheguei?
Philippe fez uma pausa antes de responder. Só para si, secretamente,
voltou a saborear aquela segurança sem gestos, o olhar firme da
desconhecida e o seu sorriso de meditação. Recordou-se de que ela o
chamara de «senhor», gravemente. E lembrou-se, também, que ela
dissera «Vinca», e mais nada, de um modo talvez familiar e um tanto
injurioso. Franziu as sobrancelhas e o seu olhar dirigiu-se, protector, para a
desordem inocente da sua jovem amiga. Pensou, durante uns breves
instantes, e encontrou uma resposta, ambígua mas que satisfazia,
simultaneamente, o seu gosto pelo segredo romanesco e a sua pudicícia
de jovem burguês. - Acho que ela fez bem! - respondeu ele.
38
CAPÍTULO V
Ele tentou, então, a súplica:
- Vinca! Olha para mim! Dá-me a tua mão e pensemos noutras coisas!
Ela voltou-se para a janela e, suavemente, retirou a mão:
- Deixa-me... sinto-me abatida...
As marés vivas de Agosto haviam transportado em si a chuva que
encharcava as janelas da casa. A terra acabava ali, na fronteira do prado
arenoso. Mais uma rajada de vento, mais uma elevação daquela extensa
planura sulcada pelas linhas paralelas da espuma, e a casa, seria certo,
vogaria nas águas, como uma arca... Mas Phil e Vinca conheciam bem as
águas vivas de Agosto e o seu monótono trovejar, as marés de Setembro e
os seus cavalos brancos, atropelando-se de crinas ao vento. Sabiam que
aquela extremidade da pradaria continuaria intransponível e que os seus
verdes anos, em todas as férias, haviam desafiado aquelas fitas escu-
mantes, que volteavam, impotentes, no limite marcado do império dos
homens.
Phil reabriu a porta, envidraçada, logo a fechando a custo, enfrentou o
vento e estendeu a face, oferecendo-a à chuva miudinha joeirada pela
tempestade, aque-
39
la querida chuva marítima, um tanto salgada, que vogava no ar qual leve
bafo de vapor. No terraço, apanhou as bolas cravejadas de pontas de aço
e o taco de buxo, ali abandonados pela manhã, os tamborins e as bolas de
barracha. Arrumou, numa caixa, todos aqueles jogos, que tinham deixado
de o interessar, como quem arruma fatos de máscara, que não irão servir
por muito tempo. Atrás da janela, os olhos de Vinca acompanhavam os
seus movimentos e as gotas de água, escorrendo ao longo dos vidros,
pareciam brotar daqueles olhos angustiados, de um azul que não
encontrava correspondência nem na cor de estanho marchetada do céu,
nem no esverdeado-chumbo do mar.
Phil dobrou as cadeiras de madeira, voltou a mesa de vime. Nem um
sorriso esboçou ao passar junto da sua jovem amiga. Para se agradarem,
desde há muito haviam deixado de sentir necessidade de sorrir, e nada,
hoje, os incitava a alegria.
«Alguns dias ainda, três semanas», murmurou Phil para consigo. Limpou a
areia das mãos num tufo de serpilho, molhado da chuva, carregado de
flores e botões, que esperavam o primeiro raio de sol para desabrochar.
Aspirou, nas palmas das mãos, aquele perfume fresco, casto, resistindo a
uma onda de fraqueza, de doçura, a uma tristeza de criança de dez anos.
Olhou para a janela e viu, entre as lágrimas da chuva nos vidros e as
corolas meio desfeitas das campainhas, o rosto de Vinca, aquele rosto de
mulher que ela só a ele desvendava, que ela escondia de todos, atrás dos
seus quinze anos de rapariguinha alegre e bem comportada.
Um relâmpago brilhou na clareira aberta entre as nuvens, rasgando acima
do horizonte uma chaga lumi-
40
nosa, da qual brotava um leque de raios de luz cor de branco-sujo. A alma
de Philippe projectou-se para além das trevas, rumo à claridade, na busca
da tranquilidade, do repouso que os seus dezasseis anos atormentados
ingenuamente reivindicavam. Mas, voltado para o mar, ele sentia atrás de
si e da janela fechada a presença de Vinca, apoiando o seu rosto de
encontro à vidraça.
«Alguns dias ainda», repetiu ele, «e estaremos separados. Que fazer?»
Nem sequer se recordou de que no final das férias, no ano anterior, fizera
dele um adolescente infeliz, só depois tranquilizado pelo regresso a Paris e
às aulas, resignado às limitações dos encontros dominicais. No ano
anterior, Philippe tinha quinze anos; cada aniversário afasta para um
passado confuso e insignificante tudo quanto não seja Vinca e ele. Ama-a
ele, então, até esse ponto? Interroga-se e não encontra outra que não seja
a palavra «amor». Quase com raiva, afasta os cabelos da testa.
«Talvez aconteça que eu não goste dela assim tanto. Mas ela é minha! Aí
está!»
Volta-se para a vivenda e atira com as palavras ao vento:
- Vinca! Vem cá! Já não chove!
Ela abre a porta e detém-se no umbral, como uma doente, levantando um
ombro até junto da orelha, uma expressão de timidez no rosto.
- Então, vem! A maré já desce e levará consigo a chuva!
Vinca esconde os cabelos sob um lenço branco ata-
41
do na nuca, o que lhe dá o aspecto de uma rapariga ferida.
- Ao menos, vamos até ao Nez; ali, no rochedo, não deve haver água.
Ela segue-o, sem dizer uma palavra, pelo atalho em cornija que contorna a
falésia. Esmagam folhas de orégãos e aspiram fundo os derradeiros
odores da erva-cidreira. Abaixo deles, o mar chicoteia os obstáculos que
se lhe levantam e vai lamber, depois, as rochas mais afastadas. A sua
força lança, até ao cimo da falésia, nuvens de espuma morna, que
transportam em si o cheiro a maresia e os aromas da terra, trazidos das
pequenas fendas, onde o vento e as aves semeiam, voando, os grãos
fecundos.
Alcançaram, por fim, o seu abrigo, seco, protegido por uma proa de
rochedos, caverna sem rebordos, ninho que lhes proporcionava a ilusão de
vogarem no mar alto. Philippe sentou-se ao lado de Vinca, que apoiou a
cabeça no seu ombro. Ela parecia exausta e cerrou instantaneamente as
pálpebras. As suas faces morenas, rosadas e arredondadas, salpicadas de
sardas, aveludadas de uma penugem loura de suavidade vegetal, tinham
empalidecido desde pela manhã, assim como os seus lábios frescos,
sempre um tanto gretados como frutos sazonados pelo calor do Verão.
Depois do almoço, em lugar de contrapor aos reparos do seu «enamorado
do berço» o seu bom senso habitual de pequena burguesa inteligente,
obstinada e meiga, Vinca desfizera-se em lágrimas, em recriminações
desesperadas, em comprovações amargas que a levavam a odiar a sua
juventude, o futuro e a sua espera, a fuga impossível, a resignação
inaceitável... Ela grita-
42
ra: «Amo-te!», como se pode gritar «Adeus!», e «Jamais poderei
abandonar-te!», com uma expressão de horror marcada nos seus olhos. O
amor, aumentando, crescendo sempre, encantara a sua infância e
protegera a sua adolescência das amizades equívocas. Menos ignorante
do que Dáfnis, Philippe respeitava Vinca, mas, simultaneamente, tratava-a
rudemente, como irmão, amando-a, todavia, tal como se ambos, ao modo
oriental, houvessem sido prometidos desde o berço...
Vinca suspirou, reabriu os olhos sem levantar a cabeça:
- Não estou a cansar-te, Phil?
Ele fez-lhe sinal de que não, admirando, tão perto dos seus, aqueles olhos
azuis, cujo azul, cada vez mais querido ao seu coração, palpitava entre os
maravilhosos cílios de extremidades douradas.
- Repara - disse ele -, a tempestade está a amainar. Temos ainda a maré
viva das quatro da manhã... Creio, no entanto, que o tempo vai ficando
mais claro e, para esta noite, conto com uma bela lua cheia.
Por instinto, Phil falava calma e tranquilamente, conduzindo Vinca através
de imagens de serenidade. Mas ela continuou sem lhe dar resposta.
- Vens amanhã jogar ténis em casa dos Jallon?
Ela meneou a cabeça, negativamente, os olhos fechados, subitamente
encolerizada, como se se recusasse, definitivamente, a beber, a comer, a
viver...
- Vinca! - pediu Philippe, com severidade. - É preciso. Temos de ir!
Ela entreabriu a boca, passeou no horizonte um olhar de resignação.
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- Está bem, vamos, é preciso - repetiu. - Porque havemos de ir? E porque
não ir? Nada alterará coisa nenhuma...
E, imediatamente, ambos se imaginaram no jardim dos Jallon, no ténis, na
merenda. Pensaram, eles, amantes puros e exaltados, no jogo que os
transformaria, amanhã novamente, em crianças brincalhonas.,. E sentiram-
se extenuados.
«Mais alguns dias apenas e ficaremos separados», disse Philippe para
consigo. «Não tornaremos a acordar sob o mesmo tecto e só voltarei a ver
a Vinca ao domingo, em casa de seu pai, na minha ou no cinema. E tenho
dezasseis anos. Dezasseis e cento e um. Centenas e centenas de dias...
Alguns meses de férias, é verdade, mas cujo final é terrível... E, todavia,
ela é minha... Ela é minha...»
Ele então notou que Vinca escorregava do seu ombro. Com um movimento
suave, insensível e voluntário, ela deixava-se descair, de olhos fechados,
ao longo do declive da pequena plataforma das rochas, tão estreita que os
pés de Vinca balouçavam já no vazio... Ele compreendeu e ficou tranquilo.
Avaliou a oportunidade do que a sua jovem companheira tentava e apertou
mais o seu braço em torno dos rins de Vinca, para não se separar dela.
Experimentou, apertando-a de encontro ao seu corpo, a realidade bem
viva, elástica, a vigorosa perfeição daquele corpo de adolescente, pronta a
obedecer-lhe na vida, pronta a arrastá-lo na morte...
«Morrer? Para quê?... Ainda não. Seria necessário embarcar para o outro
mundo sem, efectivamente, ter possuído tudo daquilo que nasceu para
mim?»
44
Naquele rochedo inclinado, ele sonhou na posse, como pode sonhar um
adolescente tímido, mas também como o pode fazer um homem exigente,
um herdeiro ambiciosamente resolvido a gozar os bens que o tempo e as
leis humanas lhe destinaram. Pela primeira vez, ele foi senhor de
determinar o destino da sua companheira, senhor de abandonar às ondas
ou de a fixar melhor naquela saliência rochosa, como semente obstinada
que, de pouco se alimentando, teima em dar flor.
Reforçando ainda mais o seu abraço em redor da cintura de Vinca,
procurou içar aquele corpo grácil, que se fazia pesado, e despertou a sua
amiga num breve chamamento:
- Vinca! Então, vamos!
Ela observou-o, melhor, admirou-o, de pé, num nível físico superior ao seu.
Encontrou-o resoluto, impaciente, e compreendeu que a hora de morrer
passara. Com indignado enlevo, reencontrou o clarão do sol-pôr nos olhos
negros de Philippe, os seus cabelos revoltos, a sua boca e a sombra, em
forma de asas abertas, que desenhava sobre os seus lábios uma penugem
viril. E então ela gritou:
- Tu não me amas bastante, Phil! Tu não me amas bastante, meu amor!
Ele tentou falar, mas calou-se, pois não tinha qualquer nova confissão a
fazer-lhe. Corou e curvou a cabeça, culpado de -no momento em que ela
deslizava para o lugar onde terminam os tormentos de amor e as suas
vitórias não se celebram antes de tempo - ter tratado a sua amiga como
um destroço, coisa perdida da qual só interessa o segredo, e recusado
Vinca à morte.
45
CAPÍTULO VI
Havia já alguns dias que, pela manhã, os aromas de Outono, vindos da
terra, deslizavam até ao mar. Ao romper de alva, à hora a que a terra,
aquecida, deixa a brisa fresca do mar levar para longe os aromas
dos sulcos abertos pelos arados, do trigo batido nas eiras, dos adubos
orgânicos fumegantes, a essa hora, as manhãs de Agosto pressagiam já
Outono. Tenaz, o orvalho cintilava junto aos troncos das sebes que
orlavam os caminhos, e se Vinca colhesse, ao meio-dia, uma folha de faia
caída na estrada antes de chegada a sua hora, veria que o reverso branco
dessa folha ainda verde ressumava uma humidade diamantina.
Cogumelos húmidos saíam da terra e os aranhiços dos jardins, prescientes
da frescura das noites, regressavam, antes do sol-pôr, ao compartimento
onde se guardavam jogos e cadeiras de lona, dispondo-se a passar a
noite, tranquilamente, no tecto.
Mas, ao meio das tardes, a natureza esquivava-se aos enganos das
brumas outonais, aos filamentos do linho da Virgem que se alongavam sob
os silvados prenhes de amoras bravias, e a estação mais parecia retomar
o seu caminho para trás, para Julho. Das alturas do céu, o sol evaporava o
orvalho, putrefazia o cogu-
47
melo que aflorara no solo, polvilhava de abelhas e vespas as vinhas mais
antigas e os seus bagos de uva amadurecidos. Vinca e Lisette, ambas
afastavam para longe as alegres casaquinhas de malha que protegiam,
desde o pequeno-almoço, os seus ombros e pescoços nus, emergindo,
numa cor saudável de bronze-dourado da claridade dos vestidos leves.
Houve, assim, uma série de dias imóveis, sem vento, sem nuvens, excepto
os «rabos-de-gato» leitosos, lentos, que surgiam no céu perto do meio-dia
e se desvaneciam: dias tão maravilhosamente iguais uns aos outros que
Vinca e Philippe, calmos, quase poderiam acreditar ter-se o ano detido no
seu mais belo instante, dir-se-ia que forçado a parar por um mês de Agosto
que jamais teria fim.
Vencidos pela felicidade física, pensaram menos na separação de
Setembro, pondo de parte o seu humor dramático de adolescentes já
envelhecidos, aos quinze e dezasseis anos, pelo amor prematuro, o
segredo, o silêncio e a amargura periódica das separações.
Alguns jovens vizinhos, seus companheiros do ténis e. da pesca, trocaram
o mar pela Touraine; as vivendas localizadas mais perto estavam
fechadas; Philippe e Vinca ficaram sozinhos junto ao mar, naquela grande
casa, cuja sala de entrada, forrada de madeira envernizada, cheirava a
barco. Saborearam uma solidão perfeita, apenas acompanhados pelos
pais, com quem se cruzavam a todo o instante, mas que quase não viam.
Vinca, apesar do muito tempo dedicado a Philippe, não se furtava às suas
obrigações de futura dona de casa; cortava, no jardim, belos ramos de
briónias e clematites peludas para as jarras da sala de jantar; no pomar,
colhia as primeiras pêras e as últimas groselhas; servia
48
o café, sem se esquecer de chegar um fósforo aceso aos cigarros de seu
pai, ao pai de Philippe; cortava e cosia vestidos simples para Lisette e
vivia, entre aqueles pais-fantasmas de cuja presença mal se apercebia,
uma vida estranha; suportava a semi-surdez e a semi-cegueira agradáveis
do começo de um desfalecimento. Lisette, a sua irmãzinha, escapava
ainda ao destino comum e brilhava, radiosa, num festival de cores. Aliás,
Lisette parecia-se tanto com Vinca como um cogumelozinho pequeno se
assemelha a outro cogumelo maior.
- Se eu morrer - dizia Vinca a Philippe - terás sempre a Lisette...
Mas Philippe encolhia os ombros e não ria: os amorosos de dezasseis
anos não aceitam nem a troca, nem a doença, nem a infidelidade; e a
morte já- mais tem lugar nos seus desígnios, excepto se lhe outorgam
valor de recompensa ou exploram como solução de acaso, porque não
conseguiram encontrar outra.
Numa bela manhã de Agosto, Phil e Vinca resolveram abandonar a mesa
familiar e levarem, para uma pequena enseada que consideravam própria,
os seus almoços, os seus fatos de banho e Lisette. Nos anos
antecedentes, muitas vezes se tinham oferecido o prazer de almoçarem
sozinhos, aqui ou ali, nas cavernas das falésias; prazer banal, prazer
agora estragado pela inquietação e os escrúpulos. Mas o fascínio daquela
maravilhosa manhã rejuvenescia até aquelas crianças perturbadas e que
muitas vezes se voltavam, saudosas, para a porta invisível que se abrira,
para lhes dar passagem ao saírem da sua infância. Philippe caminhava à
frente, pelo atalho da alfândega, levando os camaroeiros, para a pescaria
da tarde, e a rede, onde tilintavam
49
as garrafas de cidra espumante e da água mineral. Lisette, de blusa e fato
de banho, balouçava o pão, ainda morno, envolto num guardanapo. E
Vinca fechava o cortejo, vestindo uma blusa de lã azul e calções brancos,
carregada de cestos como um burro africano. Nas curvas mais
acidentadas do percurso Philippe gritava, sem se voltar:
- Um momento, eu levo um dos cestos!
- Não vale a pena - respondia, invariavelmente, Vinca.
E ela encontrava sempre maneira de encaminhar Lisette, quando os fetos,
altos, escondiam a sua cabecita, ornada de rijos cabelos louros.
Finalmente, escolheram a sua enseada, uma falha entre dois rochedos,
que as marés haviam deixado coberta de areia muito fina, e se abria em
crescente até ao mar. Abandonando as sandálias, Lisette foi divertir-se
com milhares de conchas vazias, que polvilhavam a areia. Vinca tirou os
calções brancos, rolando-os ao longo das pernas esguias e bronzeadas, e
atravessou a areia molhada, debaixo de uma rocha, para enterrar as
garrafas num lugar fresco.
- Queres ajuda? - perguntou Philippe, indolente. Vinca não se dignou
responder e olhou-o com um
sorriso irónico. O azul raro dos seus olhos, as suas faces ensombradas
pela maquilhagem quente da penugem dourada que somente encontramos
na pele dos pêssegos bem maduros, a dupla fieira curva dos seus dentes,
brilharam por um instante com uma força de cor inexprimível, forçando
Philippe a sentir-se como que ferido. Mas foi a duração do relâmpago. Ela
voltou-se, e ele viu-a continuar, imperturbável, retroceder, baixar-se
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agilmente, livre e descuidada no vestir como um garoto.
- Evidentemente, já se sabia que não trazias mais do que a boca para
comer! - exclamou Vinca. - Ah! estes homens!
O «homem» de dezasseis anos aceitou o remoque e a homenagem.
Chamou Lisette, com severidade, quando a mesa estava posta, comeu as
sanduíches que a sua companheira barrara de manteiga, bebeu a cidra
pura, temperou de sal a alface e os cubos de queijo fresco, lambeu os
dedos, lambuzados pelo sumo das pêras maduras. Vinca cuidava de tudo,
como uma boa dona de casa, presos os cabelos louros por uma faixa azul.
Para Lisette, tirou a espinha às sardinhas de conserva, doseou a bebida,
pelou as frutas; depois, apressou-se a cuidar de si, fazendo funcionar
regularmente as duas fileiras dos seus dentes muito brancos - A maré, na
vazante, sussurrava baixinho a poucos metros; uma debulhadora zumbia,
lá no alto, recortando-se no cume da falésia, debruado de ervas e de
florinhas amarelas, destilando, perto deles, uma água sem sal, que
cheirava a terra...
Philippe deitou-se, apoiando a cabeça no braço, dobrado.
- Está-se bem aqui – murmurou.
Vinca, de pé, as mãos ocupadas na limpeza dos copos e das facas,
dispensou-lhe o clarão azul do seu olhar. Ele nem se mexeu, escondendo-
o avaro, o prazer que sentia quando a sua companheira o admirava.
Sentia-se belo naquele momento, as faces escaldantes, a boca lustrosa, o
rosto emoldurado na desordem harmoniosa dos seus cabelos negros.
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Sem proferir palavra, Vinca retomou as suas tarefas de dona de casa, e
Philippe cerrou os olhos, embalado pelo murmúrio do mar sereno, o som
alegre e longínquo dos sinos, a canção infantil que Lisette trauteava. Sobre
ele abateu-se uma sombra de sono, de sono leve, de sesta, interrompido
por cada ruído, mas servindo-se desse mesmo ruído para alimentar um
sonho insistente: deitado naquele suave declive de areia dourada depois
de uma merenda de crianças, sentia-se, simultaneamente, um Phil muito
antigo e selvagem, desprovido de tudo, mas originariamente rico, pois que
possuía uma mulher...
Um grito mais alto obrigou-o a entreabrir as pálpebras: junto ao mar, que o
clarão do meio-dia e a luz, a pino, privavam da sua cor, Vinca, debruçada
sobre Lisette, tratava-a de qualquer arranhão, extirpava uma falha ou uma
espinha, da pequena mão que se lhe estendia, confiante... A imagem não
perturbou o sonho de Philippe, que fechou os olhos:
«Uma filha... É precisamente o que nós temos, uma filha...»
O seu sonho viril, no qual o amor, antecipando-se à idade do amor, se
deixava distanciar pelos seus subjectivos generosos e simples, orientava-
se para lugares solitários, dos quais ele era senhor. Ultrapassou uma gruta
- uma rede suspensa de fibras envolvendo uma forma nua, um fogo
avermelhado que batia as asas aflorando o solo, e depois perdeu o seu
sentido divinatório, a sua força de voo, soçobrou e foi embater na
profundidade macia do mais negro repouso.
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CAPÍTULO VII
- É inacreditável como os dias já estão mais curtos!
- Inacreditável porquê? Dizes todos os anos o mesmo nesta época. Não
serás tu quem modificará em qualquer coisa o solstício, Marthe.
- Alguém te falou em solstício? Não lhe peço nada, a ele, a esse tal
solstício; pois só pretendo que ele me trate do mesmo modo.
- Muito curiosa a incapacidade das mulheres para a compreensão de
determinados conhecimentos. Tu és uma a quem já expliquei mais de vinte
vezes o sistema das marés e continua impermeável a aprender o que é a
sizígia!
- Auguste, pelo facto de seres meu cunhado, não te escutarei a ti mais do
que aos outros...
- Senhor Deus! Como compreendo agora a razão por que não te casaste,
Marthe! Querida mulherzinha, queres fazer-me o favor de empurrar esse
cinzeiro para aqui?
- E, depois, onde vai Audebert despejar as cinzas do cachimbo?
- Sr.a Ferret, não se preocupe, temos por aí bas-
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tantes conchas, que os meninos andaram a espalhar por cima das mesas.
- A culpa é toda tua, Audebert. No dia em que lhes disseste: «São bonitas,
estas conchas, davam uns belos cinzeiros, artísticos e decorativos»,
transformaste a sua vadiagem pelas rochas em missão exploratória de
confiança. Não é verdade, Phil?
- Exacto, Sr. Ferret.
- Foi mesmo para cumprir essa missão que a tua filha, Ferret, abandonou
a sua primeira empresa comercial. Vinca inventara, imaginas o quê?,
entrar em contacto com o Carbonieux, esse grande comerciante de aves e
sementes, propondo-se fornecer-lhe os ossos de choco para os canários,
engaiolados, afiarem os bicos! Vinca, diz se estou a mentir!
- Certamente que não, Sr. Audebert.
- Essa espertalhona é mais comerciante do que poderíamos imaginar. Por
vezes, censuro-me...
- Então Auguste, vais recomeçar?
- Recomeçarei se julgar que devo recomeçar. Ora aí tens uma criança que
tu pretendes reservar para os misteres da casa. E com que irás alimentar
as suas actividades morais e físicas?
- Receberá o mesmo alimento que eu recebi. Creio que não são muitas as
vezes em que me vês de pernas estendidas, sem fazer nada. Ou estarei a
exagerar? Depois... hei-de casá-la. E é tudo. Acabou-se.
- A minha irmã é ainda pelas velhas tradições.
- Não são nunca os maridos que se queixam.
- Muito bem dito, Sr.a Ferret. O futuro de uma filha... Sei perfeitamente que
ninguém corre a foguetes. Quinze anos... Vinca tem ainda muito tempo
para des-
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cobrir uma vocação. Eh!, Vinca!, estás a ouvir? Acusada, tem alguma coisa
a dizer em sua defesa?
- Nada, Sr. Audebert.
- «Nada, senhor Audebert!» Ah! Irritas-me! Positivamente, os nossos filhos
estão a troçar de nós, Ferret! E esta noite estão tão calados!...
- Têm levado uma vida um tanto ou quanto irresponsável. Vinca, por assim
dizer, ainda não largou as suas cuecas da pesca.
- Marthe!
- «Marthe!», porquê? Porque falei de cuecas? Não somos ingleses!
- Diante de um rapaz!
- Não é um rapaz, é Phil. Que estás tu para aí a desenhar, meu caro Phil?
- Uma turbina, Sr. Ferret.
- Os meus cumprimentos ao futuro engenheiro... Audebert, já viste a lua
surgir sobre o Grouim? Há quinze Verões que a vejo levantar-se do mar,
esta lua de Agosto, e nunca me canso do espectáculo. Quando pensamos
que há quinze anos Grouin era um descampado e que foi o vento, sozinho,
o semeador de todas aquelas arvorezitas...
- Contas-me isso como se eu fosse um turista, Ferret! Há quinze anos,
procurava eu um recanto nesta costa onde pudesse empregar as primeiras
notas economizadas...
- Já quinze anos! O Philippe ainda não andava sozinho... Mulherzinha
querida, vem ver a Lua, diz-me só se, nestes quinze anos, alguma vez a
viste desta cor? ela é... meu Deus, é verde!, absolutamente verde!
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Philippe levantou até Vinca os seus olhares inquiridores. Acabara de se
evocar uma época em que ela não era ainda visível para ninguém e, no
entanto, já vivia um pouco ... Aliás, ele não guardava em si qualquer
recordação clara do tempo em que ambos haviam andado aos tropeções
na areia dourada das férias: essa pequenina figura, musselina branca e
carne morena, evolara-se. Mas, quando ele dizia, lá bem no fundo do seu
coração: «Vinca!», esse nome evocara, inseparável da sua amiga de
infância, a recordação da areia da praia, aquecendo-lhe os joelhos,
esgueirando-se das pequeninas palmas das suas mãos ...
Os olhos azuis da Pervenche reencontraram os de Philippe e, impassíveis
como os dele, depressa se afastaram.
- Vinca, não vais para cima deitares-te?
- Se não te importas, mãezinha, ainda demoro um pouco. Queria acabar
este bordado, o maior, na bata para a Lisette.
Ela falou com uma tonalidade de voz suave, depois repeliu para longe de
si e de Philippe as Sombras, mortiças, que mal haviam aflorado o círculo
familiar. Phil, tendo desenhado uma turbina, o hélice de um avião, o
mecanismo de uma batedeira, acrescentou às pás da hélice os grandes
olhos sombreados que podemos admirar nas penas dos pavões, algumas
patas, delicadas, e antenas. Depois traçou um V maiúsculo e deformou-o
até o tornar parecido, com a ajuda do lápis azul, a um olho azul, orlado de
longos cílios - o olho de Vinca.
- Olha, Vinca.
Ela inclinou-se, foi descansar sobre o papel a sua
56
mão de selvagem, castanho-escura como madeira rija, e sorriu:
- És inconveniente...
- Que fez ele agora? - exclamou o Sr. Audebert. Os dois jovens imprimiram
às suas vozes uma entonação de estranheza um tanto altaneira.
- Nada, pai - disse Philippe. - Divagações. Desenhei patas na minha
turbina para ela se mover melhor...
- Meu Deus! No dia em que tiveres o juízo todo, mando repicar os sinos!
Não são dezasseis anos que ele tem, são seis, seis anos!
Vinca e Philippe sorriram, jovens bem educados, afastando uma vez mais
do seu convívio as Sombras, que jogavam as cartas ou bordavam junto
deles. Escutaram ainda, como se muito para além do murmúrio de uma
cascata, alguns remoques acerca da «vocação» de Philippe, orientada
para a mecânica e as aplicações da electricidade, e sobre o tema familiar
do casamento de Vinca. De súbito, os risos alcançaram uma tonalidade
mais forte em redor da grande mesa - alguém falara em unir Philippe e
Vinca...
Ah!, ah!, como se uníssemos irmão e irmã! Seria o mesmo, conhecem-se
demasiado bem um ao outro!
- O amor, Sr.a Ferret, o amor é imprevisto ou paixão que irrompe súbita e
violenta!
- L'amour est enfant de Bohême...l
Nota 1: «O amor é filho de Boémia...», frase de uma ária da ópera Boémia,
do compositor italiano Giacomo Puccini. (N, do T.)
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- Marthe!, não cantes! Nós que estávamos todos aqui tão satisfeitos,
gozando, finalmente, a calma do vento e o brilho do sol!
...Esponsais entre Vinca e ele? Philippe sorriu, numa expressão de
piedade condescendente. Casamento... para quê? Vinca pertencia-lhe,
como ele lhe pertencia. Prudentemente, eles já haviam calculado como o
noivado oficial, combinado a longo prazo, poderia perturbar o perfume da
sua grande paixão. Já previram as graças quotidianas, os risos
intoleráveis, e também a desconfiança...
...Fecharam, ambos, o postigo através do qual, entrincheirados no seu
amor, comunicariam algumas vezes com a realidade da vida. Invejaram,
também, a puerilidade de seus pais e familiares, a sua propensão para o
riso, a sua confiança inabalável num futuro tranquilo.
«Como eles são alegres!», comentou Philippe para consigo. Procurou, na
fronte grisalha do seu pai, o vestígio de uma chama ardente, ao menos a
marca de uma queimadura. «Oh!», decretou ele, arrogante, «o pobre
homem nunca amou...»
Vinca fez um esforço na tentativa de evocar a época em que sua mãe,
jovem como ela era agora, sofreria talvez de amor de silêncio. Observou-
lhe os cabelos, precocemente embranquecidos, as suas lunetas de ouro, e
aquela magreza, que fazia da Sr.a Ferret uma mulher tão distinta...
Vinca corou, reivindicou só para ela o pudor de amar, os tormentos do
corpo e da alma, e abandonou as Sombras quiméricas, para ir ter
novamente com Philippe num caminho onde escondiam os seus rastos e
on-
58
de sentiam correr o perigo de transportar um fardo demasiado pesado,
demasiado rico e demasiado cedo conquistado.
59
CAPÍTULO VIII
Passado o cotovelo da pequena estrada, Phil saltou da bicicleta, atirando a
máquina para um lado e deixando cair o corpo para o outro, sobre as
plantas do talude barrento.
«Apre! Basta, basta! Rebento! Porque me fui eu oferecer para trazer
também o telegrama?»
Desde a vivenda a Saint-Malo, os onze quilómetros não lhe tinham
parecido muito duros. A brisa do mar ajudara-o e as duas extensas
descidas haviam-lhe colado ao peito seminu uma almofada fresca de ar
agitado. Mas o calor de Verão, a bicicleta e a obrigatoriedade
ensombravam-lhe a perspectiva de regressar. Agosto extinguia-se em
chamas. Philippe encarniçou-se, com ambos os pés, pisando uma planta
já amarelecida, e lambeu os lábios para lhes tirar a poeira fina das
estradas. Deixou-se cair de costas, os braços cruzados sob a nuca. A
congestão passageira ensombrava de negro as suas pálpebras inferiores,
como se ele tivesse acabado de terminar um combate de boxe, e as suas
duas pernas de bronze, nuas e saindo dos curtos calções desportivos,
contavam, em pequenas cicatrizes brancas, em minúsculas feridas negras
ou vermelhas, as suas semanas
61
de férias e as suas manhãs de pesca na acidentada costa rochosa.
«Deveria ter trazido a Vinca», troçou ele. «Tinha sido divertido!»
Mas, nele, um outro Philippe, o Philippe apaixonado por Vinca, o Philippe
encerrado no seu amor precoce como um príncipe órfão num palácio
monumental, respondeu ao Philippe maldoso: «Bastaria um queixume de
Vinca e levá-la-ias às costas até à vivenda...»
«Não é tanto assim», protestou o Philippe perverso... E, desta vez, o
Philippe amoroso nem sequer ousou discutir...
Ele continuava deitado, junto a um muro, coroado pelos pinheiros verdes e
as faias brancas. Desde que aprendera a andar com os seus pés e a rolar
sobre duas rodas que Philippe conhecia a costa de cor. «É a Ker-Anna.
Ouve-se bem o gerador da luz. Só não sei é a quem estará alugada este
Verão.» Atrás do muro, um motor imitava, ao longe, a respiração ofegante
do asmático, enquanto as folhas das faias prateadas balouçavam com a
brisa, quais pequeninas ondas de um ribeiro. Já calmo, Phil fechou os
olhos.
- Ganhou bem o direito a um copo de laranjada, Sr. Phil - fez-se ouvir,
perto deles, uma voz tranquila.
Entreabrindo os olhos, Phil viu lá em cima, invertido como se visto num
espelho de água, um rosto de mulher, que se curvava para ele. Este rosto,
ao contrário, exibia o queixo ligeiramente gordo, uma boca realçada pelo
batom, a zona inferior do nariz marcada pelas narinas apertadas, irritáveis,
e dois olhos sombrios que, vistos daquele ângulo, assumiam o contorno de
dois decrescentes. Todo o rosto, de uma tonalidade de âmbar
62
luminoso, se abria para ele num sorriso de familiaridade amiga. Philippe
reconheceu a Senhora de Branco, afundada com o seu automóvel nas
areias do caminho do sargaço, a senhora que o chamara, tratando-o
primeiro, por «Eh!, rapaz!», e, logo depois, por «Senhor...» Apoiando-se
nos pés, Phil levantou-se, cumprimentando-a, bem-educado. Ela apoiou as
duas mãos nos seus braços cruzados, nus, surgindo num agradável
contraste dos cortes do seu vestido branco, e mediu-o de alto a baixo, da
cabeça aos pés, como da primeira vez.
- Senhor - interrogou-o ela, gravemente -, é por promessas, ou tendência,
que não se veste, ou se veste tão pouco?
O sangue, já arrefecido, afluiu rápido às orelhas, às faces de Philippe, que
se sentiu escaldar.
- De modo nenhum, minha senhora - quase gritou ele, numa tonalidade um
tanto azeda -, apenas tive de trazer ao telégrafo um telegrama para um
cliente de meu pai e não havia ninguém lá em casa para o fazer; Vinca,
evidentemente, não poderia vir, nem Lisette, com o calor que está!
- Não tente comover-me - retorquiu-lhe a Senhora de Branco. - Sou muito
sensível e, por um nada de nada, debulho-me em pranto...
As suas palavras e o seu olhar inflexível, no qual flutuava um toque de
ironia, magoaram Philippe. Levantou a bicicleta pelo guiador, como quem
levanta rudemente uma criança que caiu, por um braço, e fez menção de
montar no selim.
- Venha tomar um copo de laranjada, Sr. Phil. Asseguro-lhe...
63
Phil ouviu ranger um portão de ferro num canto do muro e a sua tentativa
de evasão foi, precisamente, levá-lo até uma porta aberta, uma alameda
debruada de hortênsias cor-de-rosa, extremamente belas, e da Senhora
de Branco.
- Chamo-me Sr.a Dalleray - disse-lhe ela.
- Philippe Audebert - replicou-lhe precipitada-
mente -, Phil.
Ela esboçou um gesto de indiferença e proferiu um «Ah!...» que
significava: «E isso que me interessa?...»
Ela caminhava a seu lado e sofria, sem um queixume, o calor do sol,
reflectindo-se nos seus cabelos negros, esticados e brilhantes. A ele
começou a doer-lhe a cabeça, julgou-se vítima de uma insolação,
reencontrando junto da Sr.a Dalleray a esperança e o receio de um
desfalecimento que o libertasse da obrigação de pensar, de escolher e de
obedecer.
- Totote!, a laranjada! - gritou a Sr.a Dalleray. Phil estremecia, acordado:
«Está ali o muro», dizia
para consigo. «Não é muito alto. Salto-o e... Dominou-se para acabar,
mentalmente: «... e estou salvo.» Enquanto ele tentava, penosamente,
recuperar-se perante aquele vestido branco, atrás do qual se via uma
escada bem lançada, dominou-o toda a insolência dos seus dezasseis
anos: «E então? Ela não me vai comer!... Se ela quer por força oferecer-
me da sua laranjada!...»
Decidiu-se e entrou, julgando perder o pé ao cruzar, a ombreira que dava
acesso àquela sala negra inacessível aos raios solares e às moscas. A
temperatura, muito fresca, que lhe asseguravam as persianas e os
repostei-ros corridos, cortou-lhe a respiração. Foi bater com um
64
pé num móvel fofo, deslocando uma almofada e escutando uma risadinha
demoníaca, vinda de uma direcção indefinida, pequenos nadas que quase
o fizeram chorar, de angustiado. Um copo, gelado, tocou na sua mão.
- Beba-o devagar - fez-se ouvir a Sr.a Dalleray. - Totote, que ideia mais
disparatada essa de pores gelo no copo. A cave já é, por si, bastante fria.
Uma mão branca mergulhou três dedos no copo, retirando-os
imediatamente. A cintilação de um diamante brilhou, reflectida no cubo de
gelo apertado entre os três dedos. Com a garganta apertada, Philippe
bebeu, cerrando os olhos, dois pequenos golos, nos quais nem sequer se
apercebeu do gosto ácido da laranja. Mas, quando descerrou as
pálpebras, os seus olhos, já habituados ao ambiente, distinguiram o
vermelho e o branco dos cortinados, o negro e o ouro suaves dos
reposteiros. Uma mulher, que ele não vira antes, desaparecia da cena,
levando consigo uma bandeja tilintante. Uma arara, vermelha e azul, no
seu poleiro, abriu as asas, emitindo um ruído de leque, para mostrar as
suas axilas cor de fogo ...
- É linda - afirmou Phil, com voz rouca.
- Tanto mais bela ainda quando sabemos que é muda - disse a Sr.a
Dalleray.
Ela sentara-se afastada de Philippe, e a coluna vertical de um perfume que
ardia numa taça de bronze derramava aromas de resina e gerânio no
espaço que os separava. Philippe cruzou, uma sobre a outra, as suas
pernas nuas, e a Senhora de Branco sorriu, para aumentar mais a
sensação de pesadelo, de detenção arbi-
65
trária, de rapto equívoco, que levavam Phil a perder todo o seu sangue-
frio.
- Os seus pais vêm então todos os anos para a costa, não é verdade? -
disse, finalmente, com a sua voz viril, a Sr.a Dalleray.
- Sim ... - suspirou ele, oprimido.
- É, de facto, uma região encantadora, que eu não conhecia de todo. Uma
Bretanha calmante, não muito característica, mas repousante. E a cor do
mar é incomparável .
Philippe não respondeu. Tudo quanto restava da sua lucidez se encontrava
ocupado na observação do seu próprio enfraquecimento progressivo,
aguardando o momento de ouvir caírem sobre o tapete, a espaços
regulares, abafados, as derradeiras gotas de um sangue que lhe
abandonava o coração.
- Gosta dela, não é verdade?
- De quem? - perguntou ele, sobressaltado.
- Desta costa cancalesa.
- Sim ...
- Sr. Phil, não está a sentir-se mal? Não? Óptimo. Aliás, eu sou uma boa
enfermeira... Mas, com o tempo que faz, o senhor tem muita razão: mais
vale ficar calado do que falar. Vamos, pois, calar-nos.
- Não foi isso que eu disse...
Desde que haviam entrado naquela sala tão escura, ela não fizera o menor
movimento, nem arriscara uma só palavra que não fosse perfeitamente
banal. Todavia, a tonalidade da sua voz, cada vez que a fazia ouvir,
provocava a Philippe uma espécie indefinível de traumatismo, que, no
entanto, se transformou em terror, com a ameaça de silêncio duplo. A sua
saída foi ridí-
66
cula e desesperada. Bateu com o seu copo, violentamente, numa
bugiganga qualquer da pequena mesa, proferiu algumas palavras que nem
ele mesmo conseguiu ouvir, levantou-se, encaminhando-se para a porta
como um náufrago que alcança a praia vencendo as vagas e as rochas
invisíveis, acabando por encontrar a luz com a satisfação do quase
asfixiado recuperando o ar.
- Ah!... - murmurou ele, a meia voz.
Num gesto patético, foi colocar a mão sobre o mamilo esquerdo, naquele
lugar onde todos julgamos que nos bate o coração.
Depois, subitamente, retomou a consciência da realidade, riu-se com uma
expressão de idiota, abanou, positivamente, a mão da Sr.a Dalleray,
montou na sua bicicleta e partiu. No cimo da última subida, encontrou
Vinca, inquieta, que o esperava:
- Que te aconteceu, para te demorares tanto, Phil? Desceu e foi beijar,
através das pálpebras que lhe
azulavam a cor das pupilas, os olhos maravilhosos da sua amiguinha, a
quem respondeu com invulgar exuberância:
- Que aconteceu? Tudo; senão, vejamos! Fui atacado numa curva da
estrada, fechado a cadeado numa cave, ensopado de poderosos
estupefacientes, amarrado a um poste, completamente nu, vergastado,
interrogado ...
Vinca ria, apoiando-se no seu ombro, enquanto Philippe sacudia a cabeça
com força, para fazer saltarem das suas pestanas duas lágrimas filhas dos
nervos, e pensava:
«Se ela soubesse quanto de verdade há naquilo que lhe disse...»
67
CAPÍTULO IX
Desde que a Sr.a Dalleray lhe oferecera um copo de laranjada, Phil sentia
nos lábios e nas amígdalas o choque, a queimadura da bebida gelada.
Pensava, também, que jamais na vida bebera, nem beberia no futuro, uma
laranjada tão ácida.
«E, no entanto, quando a bebi nem lhe senti o gosto... foi só depois...
muito tempo depois...» Aquela visita, que escondera a Vinca, ficara na sua
memória como uma recordação aguda e sensível, que lhe precipitava, ou
acalmava, ataques de febre benigna.
A vida de Philippe continuava a pertencer, como sempre, a Vinca, a sua
grande amiga do coração, nascida perto dele, doze meses depois dele, a
ele ligada como uma gémea ao seu irmão gémeo, ansiosa como uma
amante que terá amanhã de perder o seu amante. Mas o sonho, como o
pesadelo, não dependem da vida real. Um mau sonho, rico de sombras
glaciais, de vermelho sombrio, de veludos negro e ouro, invadia a vida de
Philippe, diminuía, em espaços de eclipse, as horas normais do dia, desde
que na sala de Ker-Anna, num princípio de tarde tórrido, ele bebera o copo
de laranjada servido pela imperiosa e grave Senhora de Branco. O
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fogacho do diamante no rebordo do corpo... o cubo de gelo, faiscando
entre três dedos pálidos... A arara azul e vermelha, muda no seu poleiro, e
o reverso da sua asa, branca e rósea como a carne dos peixes... O
adolescente descria da sua memória, repisando estas imagens de um
colorido ardente e falso, cenário criado, talvez, pelo sono, que força até ao
azul o verde vivo da folhagem e dá a certas tonalidades a expressão de
um sentimento...
A sua visita não lhe proporcionara qualquer prazer. A simples recordação
do perfume que se evolava de uma taça de cobre paralisava,
simultaneamente, o seu apetite, provocando-lhe aberrações nervosas:
- Vinca, não tens a impressão de que os camarões cheiram e sabem, hoje,
a benjoim?
Prazer, entrar numa sala fechada, tactear obstáculos macios e
aveludados? Prazer, a fuga desajeitada, o sol, de súbito, batendo-lhe em
cheio nos ombros? Não, não, nada de tudo isto se assemelha ao prazer,
mas antes ao doentio, ao tormento de uma dívida a pagar...
«Devo-lhe uma explicação», disse Philippe para consigo uma bela manhã.
«Nada me obriga a passar por uma pessoa grosseira. Preciso de lhe
deixar algumas flores lá em casa, e depois não penso mais no caso. Mas
que flores?»
As rainhas-margaridas do quintal e as bocas-de-lobo pareceram-lhe
desprezíveis. Agosto acabava, desflorando as madressilvas silvestres e as
dorothy-perkins que se enrolavam nos troncos das faias. Mas uma encosta
da duna, entre a vivenda e o mar, coberta de lês a lés de cardos da areia,
com as suas bravias flores azuis e
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os seus caules quebradiços cor de malva, bem merecia o direito de ser
chamada «o espelho dos olhos de Vinca».
«Cardos azuis... vi-os, num vaso de cobre, em casa da Sr.a Dalleray...
Oferecem-se cardos azuis? Penduro o ramo na grade do portão... Não
entrarei...»
Com a sagacidade dos seus dezasseis anos, esperou o dia em que Vinca,
fatigada, talvez adoentada, abatida e arrepiada, uma sombra acentuando-
lhe os olhos azuis, se estendeu à sombra, recusando o banho e o passeio.
Cortou e enfeixou os mais belos cardos, arranhando furiosamente as mãos
na sua folhagem dura e agressiva. E partiu na sua bicicleta, naquele suave
dia bretão, que velava a terra de nevoeiro levíssimo, que no mar assumia
uma tonalidade leitosa, imaterial. Rolava, incomodado pelas suas calças
de flanela branca e pelo seu melhor blazer. Chegou até ao muro de Ker-
Anna, apeou-se e dirigiu-se, curvado, para o portão de ferro, desejoso de
atirar para o jardim o seu ramo de cardos, como culpado que pretende ver-
se livre de prova acusadora. Pensou duas vezes, escolheu o ponto do
muro mais perto da vivenda, imprimiu ao braço o movimento de uma
funda, e o ramo voou. Philippe ouviu um grito, passos de alguém
caminhando na alameda arenosa, e uma voz, marcada pela cólera, que
reconheceu...
- Se apanho o idiota que fez isto... Sentindo-se insultado, desistiu da fuga,
e a Senhora
de Branco, irritada, foi encontrá-lo junto ao portão. Vendo-o, mudou de
atitude, desfranziu as sobrancelhas enrugadas, encolheu os ombros:
- Quem havia de imaginar - disse ela. - Não foi por mal.
71
Ela esperava uma desculpa que não chegou, pois Phil, ocupado como
estava, admirando-a, agradecia-se a si próprio de a voltar a ver vestida de
branco, as faces discretamente acentuadas pela maquilhagem, os lábios
desenhados pelo bâton, um halo castanho em redor dos olhos. Ela levou a
mão ao rosto.
- Repare, estou a sangrar!
- Eu também - retorquiu-lhe Philippe com rudeza.
E estendeu-lhe as mãos feridas. Ela curvou-se, esmagou com o dedo uma
pequenina pérola do seu sangue e foi depositá-la na palma da mão de
Phil.
- Colheu-os para mim? - perguntou-lhe ela, indolentemente.
Respondeu-lhe com um aceno de cabeça, saboreando a sua atitude, de
tratar uma mulher amável e bem-educada com frieza. Todavia, ela não
pareceu zangada nem surpresa.
- Quer entrar uns momentos?
Retorquiu-lhe do mesmo modo, e o seu «não» mudo agitou-lhe os cabelos
em redor do rosto, embelezado por uma severidade estranha e destituído
de qualquer expressão.
- São de um azul... de um azul indefinível... Vou pôr o ramo no meu vaso
de cobre...
O rosto de Phil descontraiu-se um tanto:
- Foi o que eu pensei - disse. - Ou talvez num vaso de barro cinzento.
- Sim, se o prefere... Num vaso de barro cinzento. A doçura que emanava
da voz da Sr.a Dalleray maravilhou Philippe. Ela apercebeu-se, fitou-o bem
nos
72
olhos, retomou o seu sorriso agradável e quase masculino e mudou de
tom:
- Diga-me, Sr. Phil... Uma simples pergunta... Estes lindos cardos azuis
apanhou-os para mim, para me dar prazer?
- Foi...
- Encantador. Para me dar prazer. Mas, diga-me, pensou mais no meu
prazer em os receber -compreenda-me bem! - do que no seu prazer de os
colher para mim e de mos oferecer?
Ele mal a ouvia, vendo-a falar como se fosse um surdo-mudo, a sua
atenção amarrada ao desenho da sua boca e ao bater das suas longas
pestanas. Não compreendeu, respondendo ao acaso:
- Pensei que lhe seria agradável recebê-los... E, depois, ofereceu-me uma
laranjada...
Ela retirou a mão, que pousara no braço de Phil, e abriu, de par em par, o
portão semicerrado do jardim.
- Bem, meu rapaz, é preciso que se vá embora e não volte mais.
- Como?...
- Ninguém lhe pediu que me fosse agradável. Esqueça, portanto, a
preocupação de retribuir que o trouxe hoje aqui para me bombardear com
cardos azuis. Adeus, Sr. Phil. A não ser que...
Ela apoiou o rosto, altaneiro, à porta imediatamente fechada entre os dois
e olhou Philippe de alto a baixo, desdenhosa, enquanto ele permanecia,
imóvel, na estrada.
- A não ser que eu volte a encontrá-lo neste lugar, vindo não para pagar,
com um ramo cheio de espinhos, a minha laranjada, mas por uma outra
razão...
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- Uma outra razão...
- Como a sua voz se assemelha à minha, Sr. Philippe! Dessa vez veremos
se é a minha satisfação ou a sua que estão em jogo. Só gosto dos
mendigos e dos esfomeados, Sr. Phil. Se voltar, volte de mão estendida...
Vá, vá-se embora, Sr. Phil!...
Ela abandonou o portão e Philippe partiu. Escorraçado, expulso mesmo,
levava consigo muito de arrogância masculina, na qual predominava a
recordação do arabesco negro da grade de ferro do portão coroando,
como um ramo de loureiro, um rosto feminino, tatuado por um sinal
vermelho de sangue fresco.
74
CAPÍTULO X
- Atenção! Vais cair, Vinca, a fita da tua alpergata está desatada. Espera...
Phil baixou-se rapidamente, pegou nas duas fitas de tecido branco e
cruzou-as num tornozelo moreno, fremente, seco, perna de animal de
raça, feita para a corrida e o salto. Uma epiderme endurecida a que
numerosas cicatrizes não tiravam os atractivos. Ausência quase absoluta
de carne sobre a ossatura, a quantidade apenas exacta de músculo para
assegurar a classe do torneado; a perna de Vinca não despertava o
desejo, mas a admiração e a exaltação que sentimos ante a pureza de um
estilo.
- Espera, já te disse! Não posso atar-te as fitas se continuas a andar!
- Não, deixa!
O pé nu, calçado de lona, escorregou entre as mãos que o seguravam,
ultrapassando, como se em voo, a cabeça de Phil, ajoelhado. Ao seu
olfacto chegou o aroma lavado de alfazema, de tecidos engomados e de
algas marinhas, mistura de odores que compunham o perfume de Vinca, e
deu por ela a três passos de distância. Ela fitava-o de alto a baixo,
derramando sobre ele a luz ensombrada e perturbadora dos seus olhos,
cujo
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azul se recusava imitar as tonalidades alternantes do mar.
- Que temos agora? Caprichos! Creio saber atacar uma sandália! Garanto-
te, Vinca, assim estás a tornar-te impossível!
A atitude cavalheiresca de Phil ficava-lhe mal ao seu rosto ofendido de
deus latino, bronzeado, coroado de cabelos negros, apenas perturbado na
sua perfeição pela sombra - pêlos rijos amanhã, penugem de veludo ainda
hoje - do futuro bigode.
Vinca não se aproximou do companheiro. Parecia espantada e ofegante,
como se Phil a tivesse perseguido.
- Que tens tu? Fiz-te algum mal? Que mosca te mordeu?
Com um aceno de cabeça, respondeu-lhe que «não» e deixou-se cair,
sentada, entre as plantas da salva e as sempre-noivas, puxando para
baixo, até às canelas, a orla do seu vestido. Uma movimentação rápida,
angulosa e agradável, um equilíbrio, excepcional como um dom
coreográfico, rubricavam todos os seus movimentos. A sua camaradagem
terna e exclusivista com Phil construíra-a logo nos primeiros jogos da
infância, numa rivalidade desportiva que não cedia nem mesmo perante o
amor, nascido, talvez, no mesmo dia que ela. Não obstante a força, dia a
dia monstruosamente acrescida, que deles expulsava a confiança, a
moderação, não obstante o amor que constantemente alterava a natureza
da sua ternura, como a água colorida com que as regamos altera a cor das
rosas, por vezes eles esqueciam o seu amor.
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Philippe não aguentou por muito tempo o olhar de Vinca, cujo azul sombrio
não significava, em si, a menor censura. Ela parecia apenas surpreendida,
e respirava ofegante, como a gazela que o passeante encontra na floresta
e fica parada, emocionada pelo inesperado da situação, em lugar de
ensaiar a fuga. Interrogava o seu próprio instinto de preferência àquele
jovem ajoelhado a seus pés, a quem ela retirara a mão; ela sabia que
acabava de obedecer à suspeita, a uma espécie de repulsa, não ao pudor.
Um tão grande amor ignora o pudor.
Mas a pureza vigilante de Vinca apercebia-se, por observações
inesperadas, de uma presença feminina junto de Philippe. Surpreendia-se
farejando o ar que o rodeava, como se ele tivesse, secretamente, fumado
ou comido uma guloseima. Interrompia as conversas com silêncios tão
imperiosos quanto inesperados, fitando-o com um olhar de que ele sentia o
peso e o choque. Abandonava a sua mão na mão amiga, mais pequena
mas de linhas menos puras do que a sua, deixando-a ali repousar durante
todo o passeio habitual, pela estrada, antes do jantar...
A sua terceira, a sua quarta visita à Sr.a Dalleray, Phil escondera-as, sem
custo, a Vinca. Mas de que valem a distância e as muralhas contra a
antena invisível que uma alma enamorada lança à descoberta, palpa e
descobre o embuste, para se recolher depois?... Amarrado ao seu grande
segredo, o pequeno segredo parasita marcava Philippe, de facto inocente,
com o labéu de uma deformidade moral. Agora, Vinca achava-o meigo
quando ele devia estar meigo, confiante no seu despotismo de amante
fraternal, tratando-a como escrava.
77
Um pouco da afabilidade dos maridos infiéis evolava-se de Phil, tornando-
o suspeito.
Tendo conseguido corrigir a estranha disposição de Vinca, Philippe, desta
vez, manteve o seu ar superior e retomou o caminho da vivenda evitando
correr. Estaria ele, dentro de uma hora, a lanchar em Ker-Anna, como a
Sr.a Dalleray lhe pedira? Pedir... aquela apenas sabia ordenar, guiar com
uma dureza dissimulada aquele que por ela fora catalogado de pedinte
esfomeado. Mendigo rebelde à humildade e que podia, longe dela, pensar
sem gratidão na que lhe oferecera uma bebida fresca, pelara os frutos,
cujas mãos brancas serviam e cuidavam do jovem noviço bem-educado.
Mas poderia classificar-se de noviço o adolescente que o amor tinha,
desde a infância, sagrado homem e conservado puro? ! Onde ela julgara
encontrar uma vítima fácil, satisfeita pela sua submissão, a Sr.a Dalleray
enfrentava um adversário fascinante e circunspecto. Alterado o desenho
dos lábios e as mãos estendidas, o mendigo recusava-se a assumir a
figura de vencido. ;:
«Defender-se-á», pensou ela. «Protege-se...» Ela ainda não chegara ao
ponto de dizer: «Ela protege-o".
Já dentro de casa, Philippe gritou para Vinca, que ficara no pátio:
- Vou ver se há correio nesta tiragem! Queres algum recado?
Um sinal de recusa agitou a cabeça e os cabelos louros de Vinca e
Philippe montou na sua bicicleta.
A Sr.a Dalleray lia, não parecendo que o esperava. Mas a sombra
estudada da sala, a mesa quase invisível, da qual se evolavam os aromas
do pêssego serôdio, do
78
melão vermelho de Chipre cortado em talhadas e do café forte, gelado no
copo facetado, esclareceram-no.
A Sr.a Dalleray abandonou o livro e estendeu-lhe a mão, sem se levantar.
Na sombra, ele apercebeu-se da presença do vestido branco, da mão
branca: os olhos negros, isolados na sua auréola castanha, moviam-se
com uma lentidão desacostumada.
- Talvez estivesse a descansar - disse Phil, forçando-se a um dever
mundano.
- Não... Evidentemente que não. Está calor lá fora? Tem fome?
- Nem sei...
Phil suspirou, sinceramente indeciso, tomado, desde a sua entrada em
Ker-Anna, por uma espécie de sede, por uma sensibilidade aos aromas
comestíveis, talvez semelhante ao apetite, se uma ansiedade ignominiosa
não lhe apertasse, simultaneamente, a garganta. Entretanto, a dona de
casa serviu-o e ele sorveu, com a ajuda de uma pequena colher de prata,
a polpa vermelha do melão, polvilhada de açúcar, impregnada de um
aroma de álcool a saber a anis.
- Seus pais estão bem, Sr. Phil?
Ele fitou-a, surpreso. Ela parecia distraída, como se não tivesse escutado
a sua própria voz. Com o rebordo da manga, tocou numa colher, que foi
cair no tapete com um som metálico de sineta pequena.
- Desajeitado... Espere...
Com uma das mãos ela pegou-lhe no pulso, enquanto com a outra
levantava, até ao cotovelo, a manga de Phil, segurando com firmeza, na
sua mão quente, o braço nu do jovem.
- Deixe-me! - gritou Phil, em voz muito alta.
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Fez um movimento violento com o braço e um pires foi quebrar-se a seus
pés. No zumbido dos seus ouvidos tilintou o eco do grito de Vinca:
«Deixa!...», e ele voltou para a Sr.a Dalleray um olhar carregado de
censuras e de interrogações. Ela nem se mexera e a mão, que ele
rejeitara, jazia aberta sobre os seus joelhos, como uma concha vazia,
Philippe avaliou, durante muito tempo, aquela imobilidade significativa.
Baixou a cabeça e viu passar diante de si duas ou três imagens
incoerentes, irresistíveis, de voo como se voa em sonhos, de queda como
se cai em mergulho, no instante em que a crista da onda nos transporta -
depois, sem entusiasmo, com uma lentidão calculada, com uma coragem
produto de reflexão, voltou a pôr o seu braço nu naquela mão aberta.
80
CAPÍTULO XI
Quando Philippe saiu de Ker-Anna devia ser perto da uma e meia da
madrugada.
Para abandonar a vivenda, fora obrigado a esperar que todos os ruídos e
as luzes se extinguissem. Uma porta envidraçada, fechada no trinco, uma
barreira de madeira que se abateu sobre o seu próprio peso - depois... a
estrada, a liberdade... A liberdade? Encaminhara-se para a vivenda da Sr.a
Dalleray carregado de preocupações, parando frequentemente para tomar
ar, a mão esquerda apoiada no lugar do coração, a cabeça baixa e depois
levantada, como a de um cão uivando à Lua. No alto da colina voltara-se,
para observar, a meio caminho da falésia, a casa onde dormiam os seus
pais, os pais de Vinca - e Vinca... A terceira janela, a pequena varanda de
madeira... Ela devia estar a dormir, atrás daquele par de persianas
cerradas, voltada um pouco de lado, o rosto sob o braço como uma
criança que se esconde para chorar, os cabelos muito iguais, abertos em
leque desde a nuca até ao rosto. Phil tinha-a visto tantas vezes assim, a
dormir, desde a infância de ambos. Conhecia bem aquela posição,
sonhadora e meiga, que ela só durante o sono tomava.
81
O receio de a acordar por telepatia forçou Philippe a retomar o seu
caminho pela estrada, branca na noite cor de leite da luz do crescente luar
e que orientava os seus passos. A ansiedade, o amor, apenas
enfraquecido no fundo de um sono de adolescente, todos esses
sentimentos, ele sentira-os, vigilantes, suspensos em si próprio. O seu
peso, bem mais do que o temor frio que enregela um rapaz de dezasseis
anos no caminho da sua primeira aventura, o seu peso iria talvez
transformar em esforço a prova e o orgulhoso delírio daquela curiosidade
sem coragem?... Mas ele não hesitara mais do que um momento antes de
acelerar a sua corrida, com o mesmo gesto de asfixia e de invocação à
Lua, pela outra vertente da colina que deveria, depois, escalar mais
lentamente.
«Duas horas», contou Philippe, de ouvidos atentos ao relógio da igreja. Os
quatro quartos cristalinos, as duas horas, pesadas, viajaram, indolentes,
na bruma salina e morna. Como num ritual, acrescentou: «O vento mudou,
ouve-se o relógio da igreja, o tempo vai mudar...», e o som da frase
familiar chegou-lhe de muito longe, de uma vida já terminada... Sentou-se
no rebordo relvado de uma plataforma, diante da vivenda, chorou
bruscamente, envergonhou-se das suas lágrimas até ao momento em que
teve a consciência de que chorava com prazer.
Alguém suspirou a seu lado; o cão de guarda, quase invisível a seus pés,
amodorrado na vereda coberta de areia grossa. Phil curvou-se, acariciou-
lhe a pelagem rija, o focinho seco do animal amigo que não uivara à sua
chegada.
- Fanfare... meu velho Fanfare!...
82
Mas o cão, velho e de génio bretão, levantou-se para voltar a deitar-se
mais longe, com o ruído de um saco velho que se deixa cair no solo.
A maré, de águas mortas, adormecida sob a bruma lá ao longe, atirava à
praia pequenas ondas, extenuadas, que batiam na areia a intervalos
regulares, como peças de linho molhado batendo nas pedras do lavadouro
da aldeia. Nem uma só ave acordada, excepção feita a uma pequena
coruja, imitando, indolentemente, o miar de um gato, tão depressa no ramo
mais alto de um ulmeiro mais branco do que a bruma, como na sebe baixa
das zaragatoas.
Vagarosamente, o pensamento de Philippe reintegrou-se no ambiente
familiar e irreconhecível. Aquela paz nocturna, que deixa o homem a nu,
oferecia-lhe o refúgio, a transição necessária entre a sua antiga vida, o seu
tão suave ambiente de todos os anos, e o lugar, o clima no qual
turbilhonava um indiscernível temporal de cores, de perfumes, de luzes de
cuja fonte dissimulada se soltava um dardo pontiagudo ou um lençol
descorado e restrito... Móveis e flores pareciam perder o seu equilíbrio e
mostrar, estes as suas magras pernas de gazela, aquelas o avesso peludo
das suas folhas, a rigidez dos seus caules, mergulhados em água pura.
Lugar, climas traiçoeiros, nos quais uma mão, uma boca de mulher,
desencadeiam, a seu bel-prazer, o aniquilamento de um universo tranquilo,
o cataclismo que abençoara - como o ponto luminoso que se ergue no céu
depois do raio - a curva de um braço nu...
Aquela tormenta que ele acabava de atravessar, essa, pelo menos,
deixava-a para trás de si. Consigo, apenas o acompanhava uma lassidão
de nadador, uma
83
quietude vaga e universal de náufrago ao tocar a terra. Mais favorecido do
que alguns adolescentes aos quais acontece muitas vezes, atormentando-
se a si próprios, trocarem uma longa angústia, fecunda de ilimitadas
fantasias, por um prazer que, doravante, lhes limitará os sonhos, Philippe
regressava apenas atordoado, todavia consciente, como o bebedor
atascado, que sente oscilar, quando se move, o volume já arrefecido do
vinho, do qual se evola a alma, abrasadora e leve.
O dia ainda vinha longe, mas no céu podia já observar-se uma metade da
noite mais clara do que a outra. Um animal muito pequeno, ouriço ou rato,
fez-se ouvir, esgaravatando a terra. Um primeiro sopro de vento,
prenunciador da aurora, varreu a alameda, arrastando algumas folhas,
caiu rapidamente como surgira e tudo voltou à tranquilidade serena da
noite-madrugada. Lentas, três horas soaram no relógio longínquo, a
primeira cristalina e parecendo próxima, as outras duas abafadas por uma
rabanada de vento. Um casal de maçaricos-reais passou sobre Philippe,
tão baixo que lhe foi possível ouvir o rufiar das suas asas, enquanto o seu
pipilar, já sobre as ondas do mar, mergulhou na memória permeável do
adolescente, até ao âmago de quinze anos puros e indefesos, suspensos
de uns olhos azuis inigualáveis, de uns cabelos louros e rebeldes, de uma
criança que crescia a seu lado, orgulhosa da sua cabeça, direita, levantada
e orgulhosa como uma espiga de trigo.
Philippe levantou-se, com um esforço físico para se reconhecer, para
forçar aquele que acabara por se deixar ali, repousando -junto à sebe
branca, junto ao cão deitado -, procurando ser o mesmo que, na véspe-
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ra, se dirigira, afoito para Ker-Anna, guiando-se pela sebe branca,
acariciando, distraidamente, o mesmo cão deitado. Mas não foi capaz de o
conseguir.
Passou sobre o rosto as suas duas mãos, escaldantes, que, todavia, lhe
pareceram mais suaves que do costume, impregnadas de um perfume que
lhe fugia quando procurava fixá-lo no olfacto, mas que vibrava em seu
redor, como aroma frágil de certas plantas olorosas. Nesse preciso
instante, o clarão de uma lâmpada, entre as madeiras das gelosias,
brilhou, para logo se extinguir, na janela do quarto de Vinca.
«Ela não dorme. Acaba de ver as horas. Porque estará ela acordada?»
Através do segredo das paredes opacas, acompanhava o gesto de Vinca,
de braço estendido, acendendo a lâmpada, olhando o pequeno relógio
suspenso do espaldar da cabeceira da cama de cobre, desligando a
lâmpada, voltando a recostar no travesseiro a cabeça e os cabelos louros
de criança cheirando a alfazema. Ficou sabendo que, por causa de uma
noite em claro, um ombro acobreado, marcado a branco no traço que a
alça do fato de banho protegera do sol, ali palpitava, nua, a silhueta do
corpo alongado, vigoroso, da sua companheira -corpo já familiar, em cada
ano portador de novas previstas belezas - que lhe surgia para dissipar
aquele entorpecimento das suas faculdades mentais.
Que haveria de comum entre aquele corpo, entre a utilização a que o amor
o poderia consagrar, entre as suas finalidades inevitáveis, e o destino de
um outro corpo de mulher, dedicado a raptos sofisticados, dotado de uma
personalidade possessiva, de uma inexorabili-
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dade apaixonada, de uma encantadora e hipócrita pedagogia? :
- Jamais! - disse em voz alta. Ainda ontem, pacientemente, calculava o
tempo restante até Vinca lhe pertencer. Hoje, enfraquecido por uma lição
que deixara no seu corpo a insegurança e a suavidade da derrota, Philippe
recuava decididamente, perante uma imagem insensata...
- Jamais!
A aurora aproximava-se, rápida. A ausência absoluta de vento impedia o
desfazer da bruma salina, na qual o vermelho da aurora dominava
intensamente. Philippe ultrapassou o alpendre da vivenda; sem um ruído,
subiu ao seu quarto, cujo ambiente uma noite asfixiante dominava ainda.
Abriu as janelas, temeroso de ver reflectida, no espelho, a sua nova
imagem - de homem...
Viu, num rosto que a fadiga alongava, olhos revelando cansaço, avivados
pelas olheiras, lábios que, pouco antes havendo contactado uma boca
vermelha de bâton, lhe pareceram pisados, cabelos negros, desalinhados,
sobre a testa - marcas lastimosas, menos próprias de um homem do que
de uma adolescente mortificada.
86
CAPÍTULO XII
No mesmo instante em que Philippe adormecia escutava-se o pipilar dos
pintassilgos, reclamando os grãos que Vinca lhes oferecia, às mãos-
cheias, todas as manhãs. O sonho agitado de Phil perturbava-se com
aqueles pios, naquele amanhecer inoportunos; a sua semi-inconsciência
afastava-os, enrolados nos seus caracóis negros, que ele arrancava,
dolorosamente, do crânio. O dealbar glorioso do dia animava-se com a
sinfonia do cacarejar das galinhas poedeiras, do zunir das abelhas, da
debulhadora do trigo acabada de despertar; o mar vestia a sua mais bela
cor verde, arrepiado pelo vento fresco de nordeste, e Vinca ria, vestida de
branco, na janela do seu quarto, aberta de par em par.
- Mas que tem ele?, mas que terá ele? Eh! Phil. Estás com a doença do
sono?
E as Sombras familiares, quase invisíveis, mas presentes como a velha
mancha no muro, como a hera alastrando pelas paredes, os líquenes, as
Sombras desprezadas pelos dois adolescentes, repetiam com ela:
- Mas que tem ele?, mas que terá ele? Terá tomado dormideiras?
Ele olhava-as, do alto da sua janela. Conservava a boca entreaberta, uma
expressão de horror ingénuo
87
vincando-lhe as feições, e uma palidez tal que Vinca interrompeu as suas
risadas frescas, extinguindo os risos dos outros.
- Oh!... mas tu estás doente?
Phil recuou, como se Vinca o tivesse apedrejado.
- Doente? Já vais ver se estou doente! A propósito, que horas são?
Os risos recomeçaram, lá em baixo:
- Falta um quarto para as onze, grande mandrião! Anda, vem tomar banho!
Concordou com um gesto de cabeça, fechou a janela, e as vidraças, com
as suas cortinas de tule, reenviaram-no para o abismo nocturno, onde
alastrava o remoinho de uma recordação, negro, untuoso, refastelado
entre uma poalha de palhetas luminosas, que ascendiam na atmosfera de
um raio de sol, tão depressa cor de ouro como vermelho-carne, reflectindo
o clarão de um olhar húmido, de um anel ou de uma unha escarlate...
Despiu rapidamente o pijama, vestiu, apressado, os seus calções de
banho e, em lugar de descer a escada seminu como todos os dias, atou
com um nó, cuidadosamente, o cinto do seu roupão.
Vinca esperava-o à borda-d'água, bronzeando-se tranquilamente ao sol,
expondo à sua luz um par de pernas altas e bem lançadas, os seus braços
esguios de uma cor castanho-avermelhada de pão bem tostado. O azul
incomparável dos seus olhos, sobressaindo da cor desbotada de um lenço
azul amarrado na cabeça, provocaram em Philippe uma sede desesperada
de água fresca, um desejo intenso da brisa do mar, de mergulhar nas
lâminas refrescantes na sua água salgada. Si-
88
multaneamente, contemplava a força presente naquele corpo cada dia
mais feminino, nos joelhos fortes mas finamente cinzelados, nos músculos
compridos das suas coxas, no donaire dos seus rins.
«Como ela é forte!», pensou ele, com uma espécie de receio.
Mergulharam juntos, e, enquanto Vinca cortava as pequeninas ondas
alegremente, batendo as pernas e os braços, cantando ao mesmo tempo
que cuspia a água que lhe invadia a boca, Philippe, pálido, lutava contra os
seus arrepios e nadava com os dentes cerrados. Porque os pés nus de
Vinca lhe haviam prendido um pé, Phil parou, subitamente, de nadar,
mergulhou a pique e voltou ao de cima alguns segundos depois.
Dispensou, todavia, quaisquer represálias ou os gritos habituais,
assemelhando-se a pequenas lutas de focas e que transformavam o seu
banho na melhor hora dos seus prazeres do dia-a-dia.
A areia quente recebeu-os e eles enxugaram-se, conscientemente, na sua
superfície dourada. Vinca pegou num seixo bem redondo, fez pontaria a
uma extremidade rochosa, a cinquenta metros, e foi atingi-la no ponto
desejado, enquanto Philippe ficava pasmado e orgulhoso, não se
esquecendo de que fora ele quem iniciara a sua companheira naqueles
jogos de rapaz. Sentia-se meigo, superior a si próprio, todavia vizinho da
fraqueza e do desfalecimento, nenhuma arrogância masculina revelando
que ele fugira da casa da sua infância, na noite anterior, para viver a sua
primeira aventura de amor.
- Meio-dia! Phil, é meio-dia! Está a dar na torre da igreja, ouves?
89
De pé, Vinca sacudia as pontas húmidas e bem iguais dos seus cabelos.
Nos seus primeiros passos, em direcção à vivenda, esmagou um
caranguejo pequeno, que estalou como uma casca de noz. Philippe
estremeceu.
- Que foi? - perguntou ela.
- Esmagaste o caranguejozinho...
Ela voltou-se, expondo ao sol as faces cor de pêssego maduro, os seus
olhos de um azul definitivo, os seus dentes brancos e o vermelho do
interior da sua boca:
- E depois, foi o primeiro? E quando tu iscas o camaroeiro com os pedaços
de um caranguejo descascado em vida?
Começou a correr à frente de Philippe e saltou, de um pulo, uma prega da
duna. Durante uma fracção de segundo, ele admirou-a suspensa,
desligada da terra, os pés juntos, curvada e de braços formando regaço,
como se Vinca colhesse uma braçada de ar.
«Julgava que ela era meiga», pensou Philippe.
O almoço não lhe permitiu voltar às suas recordações nocturnas,
adormecidas pelo torpor daquela hora do meio do dia, mal se
movimentando no fundo do seu ser. Recebeu cumprimentos pela sua
palidez poética, críticas pelo seu silêncio e a sua falta de apetite. Vinca,
essa devorava, resplandecendo numa alegria quase agressiva. Phil
observava-a sem complacências, admirava o vigor das suas mãos,
descascando o lavagante, o movimento altaneiro do pescoço, sacudindo
os cabelos.
«Devia alegrar-me», pensava. «Ela não desconfia de nada.» Mas,
simultaneamente, sofria com aquela serenidade irredutível, exigindo no
íntimo do seu ser que Vinca se mostrasse tímida, fremente como uma
gramí-
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nea batida pelo vento, abatida por uma traição que ela deveria ter sentido
vaguear no seu ambiente, como um daqueles temporais, temíveis mas
titubeantes, que rodopiam, no Verão, ao longo das costas bretãs.
«Ela afirma que me ama. Ela ama-me. Todavia, dantes ela mostrava-se
mais inquieta do que agora...»
Depois do almoço, Vinca dançou, com Lisette, ao som do fonógrafo,
exigindo que Phil dançasse também. Consultou a tabela das marés,
preparou os camaroeiros, engodou-os para a maré baixa das quatro horas,
encheu Philippe e a casa com os seus gritos de liceal, de pedidos de
cordel alcatroado, do seu velho canivete portátil, derramou, atrás dos seus
passos, o aroma do seu vestuário da pesca, cheirando a iodo e a algas.
Philippe, fatigado, conquistado pelo sono que se segue às catástrofes e à
felicidade sem limites, seguia-a com uma expressão vingativa, cerrando
nervosamente os punhos.
«E dizer que bastariam três palavras minhas para a fazer calar!...» Mas ele
sabia que jamais pronunciaria essas três palavras, continuando apoderado
por aquele desejo de dormir numa cova aberta na areia quente,
descansando a cabeça sobre os joelhos de Vinca...
E, ao longo da costa, foram encontrando camarões ruivos que enchiam de
ar as suas bexigas natatórias a fim de afugentarem agressores,
ostentando os seus colares de barbatanas e as guelras de arco-íris.
Porém, Phil acompanhava desinteressado toda aquela caça miúda das
rochas e das ondas do mar. Suportava dificilmente o sol reflectido nas
grutas e esgueirava-se, como um principiante, na evasão da observação
das cabeleiras eriçadas das zosteras. Apanharam um lavagante e
91
Vinca remexeu furiosamente o esconderijo onde morava um congro.
- Estás a ver que ele está ali! - gritou ela, mostrando a ponta do gancho de
ferro manchada de sangue rosado.
Phil empalideceu e fechou os olhos.
- Deixa o animal! - exclamou ele em voz surda.
- Julgas isso? Juro-te que o hei-de apanhar... Mas que tens tu?
- Nada.
Escondeu, o melhor que lhe foi possível, uma dor que não compreendia.
Que conquistara ele, na última noite, na sombra perfumada, entre dois
braços ciosos de fazerem homem e vitorioso? O direito de sofrer? O direito
de ceder, de desfalecer de fraqueza, perante uma criança inocente e dura?
O direito de tremer, inexplicavelmente, ante o perigo de vida dos animais e
a imagem do sangue escorrendo-lhe das feridas?...
Aspirou o ar que o sufocava, levou as mãos ao rosto e estoirou em
soluços. Chorava com tal violência que foi obrigado a sentar-se, enquanto
Vinca continuava de pé, imóvel, armada com o seu gancho de ferro, numa
atitude de carrasco. Por fim, ela curvou-se, sem o interrogar, mas
escutando, como melodia, as novas e inteligíveis modulações dos seus
soluços. Estendeu uma mão na direcção da testa de Philippe, mas retirou-
a antes do contacto. A expressão de pasmo abandonou-lhe o rosto,
substituída por outra, de severidade, um esgar amargo e triste que muito
se afastava do que seria próprio da sua idade, um desprezo a roçar pelo
viril, pela fraqueza, que levanta suspeitas, de um rapaz que chora. Depois
levantou cuidadosamente a sua alcofa de
92
ráfia, onde os peixes saltavam, o seu camaroeiro, prendeu o gancho de
ferro no cinto como se fora uma espada e afastou-se, num passo lento e
firme, sem se voltar.
93
CAPÍTULO XIII
Ele só voltou a vê-la pouco antes do jantar. Ela substituíra o seu vestuário
da pesca por um vestido de organdi azul, azul fiel à cor dos seus olhos,
debruado a cor-de-rosa. Ele não deixou de notar que ela calçara meias
brancas e mocassinas de camurça, adornos dominicais que não deixaram
de o preocupar.
- Temos alguém de fora ao jantar? - perguntou ele a uma das Sombras
familiares.
- Conta os lugares - respondeu a Sombra, alteando os ombros.
Agosto acabava e juntava-se já à luz das lâmpadas, as portas abertas na
direcção do sol-pôr verde do mar, onde sobrenadavam bilros cor de cobre
rosado. O mar deserto, de um azul-negro de asa de andorinha, dormia, e
Quando os convivas baixavam a voz escutava-se o fluxo e afluxo regular
das ondas da maré vazia. Philippe procurou, entre as Sombras, o olhar de
Vinca; queria pôr à prova a força daquele fio invisível que os ligava um ao
outro desde há tantos anos e os preservava, glorificados e puros, da
melancolia que inexoravelmente se abate sobre o final das refeições, os
finais das estações, os fins dos dias. Mas ela baixava os olhos sobre o seu
prato, a luz do candeeiro fazia brilhar as suas
95
pálpebras salientes, as suas faces arredondadas e o seu pequenino
queixo. Então, ele sentia-se abandonado e procurava -para além da
península de contornos de leão que avançava, coroada por três estrelas
trémulas, sobre o mar - o caminho branco na escuridão da noite, que
conduzia a Ker-Anna. Algumas horas ainda, um pouco mais de cinza azul
nos céus que o poente tingia com os tons da aurora, e a escuta das frases
rituais: «Eh, eh, são dez horas. Meninos, já se esqueceram de que, aqui,
nos deitamos às dez horas?» «Hoje não fiz nada de extraordinário, Sr.a
Audebert, mas, todavia, sinto-me tão cansada como se não tivesse parado
durante todo o dia...» Ainda o tilintar das louças, o ruído agressivo das
pedras do dominó batendo sobre a mesa sem toalha, outra vez os
gemidos de Lisette, que, adormecida há três longos quartos de hora,
recusará ir deitar-se... Mais uma tentativa para conquistar o olhar, o sorriso
interior, a confiança de Vinca misteriosamente ferida, e soará a hora, a
mesma hora que vira, na noite da véspera, Philippe partir, como um
caçador furtivo... Ei-lo pensando, sem um desejo bem definido, impreciso e
como se violentado pelo humor de Vinca, numa vontade de bater em
retirada para outro refúgio, para uns outros ombros meigos, para um calor
necessário, urgente para aquela convalescença do prazer, ao tempo
mortificante pela hostilidade apaixonada de uma adolescente.
Os ritos cumpriram-se, um a um: uma criada acompanhou Lisette,
choramingas, e a Sr.a Ferret colocou, na mesa cintilante, o carrão.
- Queres vir lá fora, Vinca? É aborrecido, as borboletas parece pegarem-se
a todas as lâmpadas...
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Ela acompanhou-o, sem lhe responder, e ambos foram encontrar ainda, à
beira-mar, aquele rasto da claridade que o crepúsculo só abandona noite
cerrada.
- Queres que te vá buscar um agasalho?
- Não, obrigada.
Continuaram a andar, ambos, banhados por um nevoeiro azulado, leve,
que se elevava da borda-d'água e cheirava a serpilho. Philippe reprimiu o
desejo de dar o braço à sua jovem companheira e pasmou da sua
discrição.
«Meu Deus, que se passa connosco? Estaremos perdidos um para o
outro? Uma vez que ela ignora tudo quanto aconteceu lá em baixo, creio
que só me restará esquecer; e voltaremos a ser felizes como dantes,
infelizes como dantes, unidos como dantes?»
Mas ele não acrescentou ao seu voto a fé hipnótica que derruba
montanhas, pois Vinca caminhava a seu lado, fria e distante como se o
seu grande amor a tivesse abandonado ou ela não se desse conta da
angústia do seu companheiro. Todavia, Phil adivinhava que ia chegar a
hora e sentia um tremor idêntico ao da febre que o atacara no dia seguinte
àquele em que, picado por uma abelha, sofria no seu braço ligado a
queimadura aquecendo em maré cheia...
Parou e enxugou a testa:
- Estou a escaldar. Não me sinto bem. Vinca.
- Ah! Não te sentes bem - ecoou a voz de Vinca. Ele acreditou numa
trégua e apressou a frase.
- Oh!, como é amável! Minha querida!...
- Não -interrompeu a voz serena -, não é amabilidade...
Infantil, a frase de Vinca deixou uma margem de es-
97
perança a Phil, logo apressado a tomar o braço da
companheira.
- Sei bem que estás aborrecida porque eu hoje cho-
rei como uma mulher...
- Não. Não como uma mulher...
Ele corou, na sombra e tentou uma explicação:
- Compreende, aquele pobre congro que maltrataste na sua gruta... O
sangue do animal na ponta do teu gancho... Bruscamente, fiquei
positivamente arrepiado... o coração destroçado...
- Ah! sim, o coração... destroçado...
A tonalidade da sua voz era de tal modo inteligente que Philippe reteve a
respiração, assustado. «Ela sabe de tudo.» E ficou à espera das palavras
justiceiras, da explosão de lágrimas e queixumes. Mas Vinca continuou
muda, e, após um longo período, como depois da pausa de calmaria que
sucede à explosão, ele arriscou uma pergunta tímida:
- E essa minha fraqueza foi bastante para assumires o ar de quem já não
me ama?
Vinca voltou para ele a mancha nebulosa e clara do seu rosto, limitado
entre as duas sebes rígidas dos seus
cabelos.
- Oh!, Phil, sabes que gosto sempre de ti. Infelizmente, isso não modifica
nada.
Ele sentiu o seu coração subir, alcançar-lhe a garganta. :
- Sim? Então vais perdoar-me ter-me portado as-: sim, tão «rapariguinha»,
tão ridículo?
A hesitação de Vinca não durou um segundo:
- Mas certamente. Perdoo-te, Phil. Mas isso também não vai modificar
nada.
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De quê?
- De nós, Phil.
Ela proferia as palavras com uma tranquilidade enigmática, à qual ele não
se atrevia a pôr mais perguntas nem ousava aderir. Vinca acompanhou-
lhe, sem dúvida, a evolução do seu raciocínio, pois, em determinada
altura, acrescentou subtilmente:
- Recordas-te das cenas que me fazias, e das minhas, ainda não se
passaram três semanas, tudo por nos faltar a paciência necessária para
aguentarmos quatro ou cinco anos de hibernação antes de nos
casarmos?... Hoje, meu pobre Philippe, creio bem que preferiria voltar
atrás e ser novamente criança...
Esperava ele que ela acentuasse, comentando, o significado daquela hábil
e insidiosa palavra «hoje», que suspendera bem diante do seu nariz, no
azul puro de uma noite de Agosto. Mas Vinca aprendera já como o silêncio
era uma arma poderosa. Philippe insistiu:
- Então já não me queres mais? Amanhã seremos... seremos Vinca e Phil,
como desde sempre? Para sempre?
- Para sempre, se assim o quiseres, Phil... Vem. Voltemos para casa. Está
frio.
Ela não repetira, depois dele, «como desde sempre», mas ele satisfez-se
com aquela promessa inacabada e a frieza de uma pequena mão que, por
instantes, apertou a sua.
Naquele preciso momento, a corda do balde do poço desenrolando-se e
provocando o ruído metálico daquele vazio batendo nas paredes de tijolo
do furo, o guinchar das cortinas ao longo dos seus varões de latão numa
janela aberta, os derradeiros ruídos humanos do
99
dia, todos aqueles sons ecoaram no cérebro de Philippe marcando a hora,
aquela mesma hora a que, na véspera, ele abandonara a vivenda, abrindo
o portão e afastando-se em segredo... Ah!, a luz abafada e vermelha de
uma alcova desconhecida... Ah!, a felicidade negra, a morte alcançada aos
poucos, a vida redescoberta num lento rufiar de asas...
Como se aguardando, desde a véspera, uma espécie de perdão de Vinca,
recebeu a absolvição ambígua que ela acabava de lhe conceder, com
tanta sinceridade na tonalidade da sua voz como reticente no significado
das suas palavras. Homem, avaliou subitamente, na sua exacta dimensão,
a dádiva que uma bela e demoníaca criatura lhe entregara.
100
CAPÍTULO XIV
- Já marcaram o dia do vosso regresso a Paris? - perguntou a Sr.a
Dalleray.
- Voltamos sempre no dia 25 de Setembro - respondeu Philippe. - Por
vezes, consoante os dias a que caem os domingos, só regressamos a 23,
24 ou 26. Todavia, as diferenças nunca são mais de dois dias.
- Pois... Em suma, vão-se embora dentro de quinze dias. Daqui a duas
semanas, a esta hora...
Philippe afastou os seus olhos do mar, plano e branco junto da orla da
praia, ao longe, sob o peso das nuvens baixas, da cor azul-prata dos
lombos dos atuns, e voltou-se admirado, para a Sr.a Dalleray. Envolta
numa larga faixa de tecido branco, como os vestidos das mulheres de Taiti,
ela fumava tranquilamente, penteada com os cabelos muito juntos da
cabeça, usando um pó-de-arroz da mesma tonalidade da sua pele. Nada,
exteriormente, revelava que aquele adolescente, sentado perto dela, belo
e moreno como ela, lhe fosse outra coisa que não um irmão mais jovem.
- Então, daqui por quinze dias, a esta hora, onde estará?...
- Devo estar... no lago do Bosque. Ou, talvez, no ténis de Bolonha, com...
com os meus amigos.
101
Ele corou. Fora já na linha-limite dos seus lábios que conseguira deter o
nome de Vinca e a Sr.a Dalleray sorriu, sorriu-se com aquele sorriso viril
que, por vezes, lhe dava o aspecto de um belo adolescente. Philippe
voltou-se na direcção do mar, queria esconder a expressão do seu rosto,
onde se espelhava o sorriso malévolo de zanga de um jovem deus
aborrecido. Uma mão, firme e aveludada, foi pousar na sua. Então, sem
que ele afastasse o olhar do mar embaciado, formou-se em torno dos seus
lábios uma expressão de agonia feliz, que subiu aos seus olhos e cujo
clarão, branco e negro, acabou de se extinguir entre as suas pálpebras...
- Não é preciso ficar triste - murmurou, suavemente, a Sr.a Dalleray.
- Não, não estou triste - protestou Philippe, arrebatado. - Não, não pode
compreender...
Ela inclinou a cabeça e os seus cabelos lustrosos.
- Tem razão e é justo. Eu não posso compreender. Nada de nada.
- Oh...
Philippe contemplou, com um temor religioso, aquela que lhe confiara um
segredo terrível. As suas pequeninas orelhas rosadas vibrariam elas ainda
por causa daquele grito em voz baixa, abafado como o grito de um ser a
quem se corta a garganta?... Aqueles braços, ricos de músculos apenas
perceptíveis, tinham-no transportado, leve, desfalecido, deste mundo para
um outro mundo; aquela boca, avara de palavras, debruçara-se sobre ele
para transmitir à sua boca uma só palavra todo-poderosa e para murmurar,
quase indistinto, um cântico que subia, eco enfraquecido, das profundida-
102
des onde a vida é uma convulsão tremenda... Ela sabia tudo...
- Nada de nada - repetia ela, como se o silêncio de Philippe tivesse
implorado uma resposta. - Mas você não gosta que eu lhe faça perguntas.
E, por vezes, sou um tanto indiscreta...
«Como o relâmpago, é certo», pensou Philippe. «O tempo do ziguezague
de um raio basta para sermos forçados a revelar-lhe mesmo aquilo que a
luz do Sol deixa na penumbra...»
- E eu gostava de saber se fica satisfeito por me deixar.
O jovem baixou o olhar para os seus pés nus. Um roupão largo, de seda
bordada, transformava-o num príncipe oriental, embelezando-o.
- E você? - perguntou ele, desajeitado.
A cinza do cigarro que a Sr.a Dalleray segurava entre os dedos foi
desfazer-se no tapete.
- Eu estou fora de causa. Trata-se de Philippe Audebert e não de Camille
Dalleray.
Ele levantou os olhos para ela; uma vez mais, era a admiração que lhe
provocava aquele nome assexuado. «Camille... É verdade que o nome
dela é Camille. Podia passar bem sem ele. Para mim, chamo-lhe Sr.a
Dalleray, a Senhora de Branco, ou Ela...»
Ela fumava, aspirando lentamente o fumo do cigarro e olhando o mar.
Nova? Nova, sem dúvida, trinta ou trinta e dois anos. Impenetrável como
todos os seres calmos, cujo máximo de expressão jamais ultrapassa a
ironia moderada, o sorriso e a compostura. Sem desviar o olhar do ao
longe onde se formava a tempestade, ela voltou a pousar a sua mão na de
Philippe,
103
apertando-a, indiferente ao que ele sentiria, fazendo-o apenas para
satisfação do seu próprio prazer egoísta. Vergado por aquela mão
pequena e poderosa, ele falou, constrangido a expressar os seus
sentimentos, como um fruto esmagado verte o seu sumo:
- Sim, vou ficar triste. Mas espero não me sentir infeliz.
- De verdade? E porque o espera?
Ele sorriu-lhe debilmente, foi encantador, desastrado, tal como ela, no seu
íntimo, gostava que ele fosse.
- Porque - respondeu ele - penso que você arranjará qualquer coisa... Sim,
vai arranjar qualquer coisa?
Ela encolheu os ombros, alteou as sobrancelhas bem lançadas. Não
escondeu um pequeno esforço para dar ao seu sorriso a serenidade e a
sobranceria habituais.
- Qualquer coisa... - repetiu ela -, isto é, se bem o compreendo, convidá-lo-
ei a vir a minha casa, como faço aqui, se isso continuar a agradar-me, e
você apenas terá de se preocupar em juntar-se comigo às horas a que as
suas obrigações escolares e... familiares o obriguem?
Ele mostrou-se surpreendido com o tom da voz, mas enfrentou o olhar da
Sr.a Dalleray:
- Claro - respondeu-lhe. - Que outra coisa queria que eu fizesse? Não sou
um qualquer pequeno vagabundo, livre de fazer o que lhe aprouver. Aliás,
tenho apenas dezasseis anos e meio.
Ela corou lentamente.
- Não o censuro de modo algum. Mas será que não: pensa que uma
mulher... uma outra mulher que não
104
eu, naturalmente, poderia ficar chocada ao compreender que você não
pretenderia dela mais do que uma hora de solidão - apenas, somente
isso?
Phil ouvia-a com uma atenção leal, de escolar, os seus grandes olhos
abertos, presos daquela boca reticente, daqueles olhos ciumentos que,
todavia nada reivindicavam.
- Não - respondeu ele, sem hesitar. - Não compreendo que possa ter
ficado magoada. «Somente isso?» Oh... somente isso...
Calou-se, de novo interrompido pela mesma palidez, o mesmo abatimento
feliz, e a tranquila audácia de Camille Dalleray vacilou, avaliando o
respeito que devia à sua obra. Como se ofuscado, Philippe deixou descair
a cabeça para diante, e esse movimento de submissão embriagou, por um
instante, a vencedora.
- Amas-me? - interrogou-o ela, em voz baixa. Ele estremeceu e fitou-a,
amedrontado.
- Porquê... porque mo pergunta?
Ela recuperou o seu sangue-frio, o seu sorriso reticente.
- Por brincadeira, Philippe...
Ele não deixou de a interrogar imediatamente com os olhos, acusando-a
de temeridade nas suas palavras.
«Um homem feito ter-me-ia respondido sim», pensou ela. «Mas esta
criança, se eu insistir, começa a chorar e vai gritar-me, entre lágrimas e
beijos, que não me ama. Vou insistir? Então terei de o afastar ou escutá-lo
a tremer, aprendendo, pela sua boca, quais são os limites exactos da
minha ascendência?»
No lugar do coração, ela sentiu que algo se contraía, provocando-lhe uma
sensação incómoda.
105
Levantou-se, tentando descontrair-se, dirigindo-se à pérgola, como se
ignorando a presença de Phil. O aroma forte dos pequenos mexilhões
azuis, a seco havia mais de quatro horas pela baixa das águas, avançava
em baforadas, misturando-se com o perfume espesso de bagas de
sabugueiro cozidas que exalam os alfeneiros em plena floração.
Apoiada nos cotovelos, aparentemente distraída e ausente, a Sr.a Dalleray
sentia, atrás de si, a presença do adolescente deitado, transportando em si
o peso de um desejo que não a abandonava.
«Ele espera-me. Calcula o prazer que poderá esperar de mim. Aquilo que
dele obtive estava igualmente ao alcance de outra qualquer, fosse ela
quem fosse. No entanto, este pequeno burguês timorato dá-se ares,
pavoneia-se, quando lhe pergunto pela família, esforça-se por me falar do
seu colégio e encerra-se na sua torre de silêncio e de pudor para evitar
proferir o nome de Vinca... Comigo, só aprendeu o mais fácil... Chega aqui,
entrega e retoma, simultaneamente com as suas roupas, este... este...»
Ela deu-se conta de que acabara de hesitar ante a palavra «amor» e
abandonou a varanda. Ardendo em desejo, Philippe via-a aproximar-se.
Ela pôs-lhe os braços nos seus ombros e, num impulso brutal, obrigou a
voltar-se aquela cabeça morena, coroada de cabelos negros. Assim
carregada, apressou-se a mergulhar no limitado e obscuro reino, aquele no
qual o seu orgulho poderia acreditar que o gemido é a confissão da
angústia, onde as sôfregas da sua espécie bebem a ilusão da
generosidade.
106
CAPÍTULO XV
Durante algumas horas da noite, uma chuva miudinha pulverizara as
salvas, vidrara os alfeneiros e as folhas imóveis da magnólia, cobrindo de
gotas, sem as romper, as gazes protectoras que envolviam, num ramo de
abeto, um ninho de lagartas processionárias. O vento deixara repousar as
águas do mar, mas assobiava por debaixo das portas num quase gemido
fraco e tentador, carregando recordações do ano passado, evocando
castanhas assadas e maçãs bem maduras. Por ele estimulado, Philippe
levantou-se e vestiu uma camisola azul-escura por baixo do seu blusão de
linho, e foi o úl-timo a tomar o pequeno-almoço, como lhe sucedia agora
muitas vezes, desde que o seu sono, menos puro e menos tranquilo,
começava mais tarde na noite. Correu, procurando Vinca, aqui
ultrapassando a sombra de um muro, além um terraço luminoso. Mas não
a encontrou nem no vestíbulo, onde a humidade acentuava o aroma da
madeira envernizada e dos tecidos de cânhamo, nem na varanda. Uma
fumaça de chuva impalpável incensava a atmosfera e agarrava-se à pele
sem a molhar. Uma folha de faia, amarela, vogando no ar, balançou-se por
um momento diante de Philippe numa
107
elegância incomparável, depois soçobrou, caindo a pique, como se
acrescida misteriosamente de um peso inesperado e invisível. Apurando
os ouvidos, Phil escutou, vindo da cozinha, o ruído invernal do carvão a
ser lançado no forno. Num dos quartos, a pequena Lisette erguia a sua voz
aguda, protestando primeiro para logo depois fazer ouvir o seu choro.
- Lisette! - chamou Philippe. - Lisette, onde está a tua irmã?
- Não sei! - gemeu uma vozita de criança sufocada pelas lágrimas.
Súbito, uma rabanada de vento arrancou uma telha de ardósia do telhado,
para a depor, em estilhas, aos pés de Philippe, que ficou a olhar para ela,
atónito, como se o destino tivesse quebrado, na sua frente, o espelho que
lhe prometia sete anos de infortúnio... Então, ele sentiu-se uma criança e
muito longe da felicidade. Não sentiu, porém, o menor desejo de recorrer
àquela que, na vivenda sombria dos pinheiros, lá em baixo, do outro lado
do promontório em forma de leão, teria gostado de o ver assim, tímido,
implorando o apoio da sua indomável energia feminina... Ele deu volta à
casa. Não descobriu nem a cabeça loura da sua companheira, nem o seu
vestido azul cor dos cardos da areia, nem o seu vestido branco e
esponjoso, tão branco como os cogumelos frescos. Não se apressaram,
ao seu encontro, duas pernas longas, morenas, dois joelhos secos e bem
cinzelados; um par de olhos azuis, enriquecidos por duas ou três
tonalidades de azul e uma pincelada de malva, também esses olhos não
floriram em parte alguma para matar a sede aos seus...
- Vinca! Onde estás tu, Vinca?
108
- Estou aqui - respondeu-lhe uma voz tranquila, muito perto dele.
- Na arrecadação?
- Sim, na arrecadação.
Acocorada, sob a luz fria das clarabóias, Vinca remexia em tecidos,
espalhados no chão sobre um cobertor já velho.
- Que estás tu a fazer?
- O que vês. Arrumo. Escolho. Estamos quase a partir e é preciso... foi a
mãe que mandou...
Ela olhou para Philippe e permitiu-se um momento de descanso cruzando
os braços sobre os joelhos dobrados. Porque entendeu que o aspecto dela
era o de uma pessoa pobre e resignada, ele irritou-se.
- Com certeza que a pressa não seria assim tão grande! E porque és tu a
fazer isso?
- Quem o iria fazer? Se tivesse sido a mãe, o seu reumatismo cardíaco já
teria dado sinal.
- Mas a criada dos quartos poderia muito bem...
Vinca sacudiu os ombros e retomou a sua tarefa, falando consigo,
baixinho, como fazem as verdadeiras operárias, emitindo um quase
imperceptível zumbido de humildes abelhas ocupadas.
- Cá estão... os fatos de banho da Lisette... o verde... o azul... o das
riscas... já nem merecem a linha dos pontos que precisam. O meu vestido
de grinalda cor-de-rosa... Ainda vale uma limpeza... Um par, dois pares,
três pares de alpergatas, minhas... E estas são do Phil... Estas também...
Duas velhas camisas de rede, do Phil... As cavas das mangas estão em
mau estado, mas as frentes ainda aguentam bem...
109
Esticou o tecido entre as mãos e descobriu dois rasgões; fez uma careta.
Philippe não despregava os olhos dela, fitando-a sem reconhecimento pelo
seu trabalho, quase com hostilidade. Sofria por causa da hora matinal, da
claridade cinzenta que se espalhava sob o tecto de telha vã, da humildade
e simplicidade da tarefa de Vinca. Um paralelo que as horas de amor
escondido, lá em baixo, em Ker-Anna, jamais lhe haviam inspirado. Mas
ele começava aqui e agora, comparação que não atingia ainda a pessoa
de Vinca, Vinca religião de toda a sua infância, Vinca que ele abandonara,
sem lhe perder o respeito, pela dramática e necessária embriaguez de
uma primeira aventura.
Começava aqui uma comparação, entre aquelas roupas espalhadas sobre
um cobertor velho e passajado, entre aquelas paredes de tijolo sem
reboco, diante daquela criança de bibe violáceo já desbotado nos ombros.
Ajoelhada, ela interrompeu a sua tarefa para sacudir para trás os seus
cabelos bem aparados, que o banho quotidiano e o ar salgado
conservavam húmidos e macios. Menos alegre desde há quinze dias,
mostrava-se mais calma, sempre obstinadamente igual no seu feitio, o que
preocupava Philippe. Aquela jovem dona de casa, penteada à Joana d'Arc,
teria ela preferido morrer com ele a esperar o tempo necessário para se
amarem livremente? Phil, de sobrancelhas unidas, avaliava a mudança,
mas quase não pensava em Vinca, embora a estivesse a olhar. Presente
ela, cessava o perigo de a perder e a urgência de a recuperar já não o
atormentava. Mas, por causa dela, uma outra comparação se iniciava. A
nova faculdade de sentir, de sofrer de imprevisto a intolerância que uma
bela pirata lhe instilara recente-
110
mente, inflamavam-se ao mais ligeiro atrito, bem como aquela leal
injustiça, aqueles primeiros passos na sublimação que consiste em
censurar ao medíocre a sua mediocridade e a sua filosofia. Phil descobre
não somente o mundo das emoções convencionalmente classificadas de
físicas, mas ainda a necessidade de embelezar, materialmente, um altar
onde reina uma perfeição insuficiente. Dá-se conta de conhecer agora um
apetite nascente por tudo quanto satisfaz a mão, o ouvido e os olhos - os
veludos, a musicalidade estudada de uma voz, os perfumes. Não se
censura, pois sente-se melhor ao contacto de um supérfluo embriagador, e
acredita que certo tipo de trajes, de seda oriental, envergados na sombra e
no segredo de Ker-Anna, lhe nobilitam a alma.
Obedece, desajeitadamente, a um projecto impreciso e generoso. Evitando
confessar a si próprio que desejaria Vinca incomparável, ataviada,
perfumada de bálsamos fragrantes, limita-se a avaliar o desgosto que lhe
provoca a sua atitude de submissão, ingenuamente desfeada. Algumas
palavras duras se lhe escapam, às quais Vinca não responde. Irrita-se e
ela replica-lhe com a razão necessária para que ele seja primeiro injurioso,
depois envergonhado pela sua violência. Demora algum tempo e faz um
grande esforço para se recuperar, para se desculpar mediante uma
espécie de contrição primária que o satisfaz. Entretanto, tranquilamente,
Vinca continuava a separar os pares de sandálias e voltava do avesso as
algibeiras dos casacos e camisolas puídos, cheias de conchas cor-de-rosa
e de hipocampos secos...
- A culpa também é tua - concluiu Philippe.
- Nunca respondes nada... Então, eu, arrebato-me pelo entusiasmo... vou
enchendo... Deixas-te tratar mal... Porquê?
Ela envolveu-o num olhar de mulher perspicaz, amadurecida nos
meandros e nas concessões de um grande amor:
- Enquanto me atormentas - disse ela -, ao menos estás junto de mim...
112
CAPÍTULO XVI
«Ficamo-nos por aqui, este ano», era o pensamento sombrio de Philippe,
olhando o mar. «Vinca e eu, um ser suficientemente duplo para ser duas
vezes mais feliz do que um só, um ser que foi Phil-e-Vinca, vai morrer
aqui, este ano. Não será isso terrível? Não poderei eu impedi-lo? E eu
nada farei... E esta noite, depois das dez horas, talvez que ainda vá uma
vez, a última vez nas férias, a casa da Sr.a Dalleray...
Inclinou a cabeça e os cabelos negros descaíram, tristes...
«Se fosse preciso ir agora, nesta hora exacta, a casa da Sr.a Dalleray,
recusava-me. Porquê?»
Branca, sob um sol mortiço espreitando entre duas nuvens prenunciadoras
de tempestade, a estrada que levava a Ker-Anna colava-se ao flanco da
colina, serpenteava, subia, depois escondia o seu destino para além de um
tufo de zimbros rígidos, cinzentos de poeira. Philippe desviou o olhar,
assaltado por uma repugnância que, todavia, não o enganou. «Sim... Mas
esta tarde...»
Depois de três lanches em Ker-Anna, Phil renunciara àquelas visitas
diurnas, temendo a inquietação dos seus e as desconfianças de Vinca.
Aliás, a sua muita ju-
113
ventude depressa se revelou incapaz de inventar desculpas. Receava
igualmente o perfume forte e resinoso que impregnava Ker-Anna e o
corpo, estivesse ele nu ou velado, daquela cujo nome ele proferia baixinho,
tão depressa com o orgulho de um jovem libertino ou o remorso
melancólico de um esposo que atraiçoou uma mulher querida, a sua
amante, e tantas vezes a sua «dona»...
«Que eu seja ou não descoberto, o que é preciso é acabar aqui. Porquê?»
Nenhum livro, entre todos os livros que ele lia a vontade, os cotovelos
afundados na areia, ou retirado por pudor mais ainda do que por medo, no
seu quarto, nenhum desses livros lhe ensinara que alguém deveria perecer
em tão banal naufrágio. Os romances enchem cem páginas, ou mais, com
a preparação do amor físico - o acontecimento, esse, em si, não ocupará
mais do que quinze linhas. E Philippe procurava em vão, na sua memória,
qual o livro onde estaria escrito que um adolescente jamais se libertará da
infância e da castidade numa só queda, antes vacilará ainda, em
oscilações profundas e semelhantes às ondas sísmicas, durante muitos e
longos dias ...
Philippe levantou-se e caminhou ao longo da borda-d'água, irregular e
alterada pelas marés do equinócio. Uma sarça de tojos floria, inclinada na
direcção da praia, aguentando-se pela força de uma cabeleira magra de
raízes. «Quando eu era pequeno», observou Philippe, «as sarças de tojos
não pendiam para a praia. Foi o mar que comeu isto tudo - um metro pelo
menos - enquanto eu crescia... E Vinca a garantir-me que foi a sarça de
tojos que avançou...»
114
Não muito distante da moita de tojos escavava-se aquela comba redonda,
atapetada de cardos da areia, comba que por causa da cor dos seus
cardos era conhecida por «os Olhos de Vinca». Fora lá que um dia Phil
enfeixara, às escondidas, uma paveia de cardos em flor, espinhosa
homenagem, atirada por cima dos muros de Ker-Anna... Hoje, as flores
secas das vertentes da comba pareciam queimadas... Philippe deteve-se
por um momento, demasiado jovem para sorrir do perfume de mistério que
o amor empresta à flor morta, ao pássaro ferido, ao anel devolvido, e
sacudiu o mal que o pretendia atacar, alargou os ombros, afastou os
cabelos num movimento de tradicional orgulho, dirigindo-se mentalmente
censuras que tirariam qualquer graça a um romance de aventuras para
neocomungantes.
«Então!, basta de fraquezas! Em boa verdade, este ano sempre poderei
dizer que sou um homem! E o meu futuro...»
Escutou o seu pensamento e corou de si próprio. O seu futuro? Um mês
antes, sonhava ainda. Ele via, um mês mais cedo, aquele futuro pintado,
de contornos bem definidos e pueris, sobre um grande fundo, impreciso - o
futuro das suas épocas de exame, do seu bacharelato recomeçado, da
aceitação de trabalhos ingratos sem demasiada amargura, porque «é
preciso, não é verdade» -, o futuro e Vinca, esta rica daquele, o futuro
maldito ou bendito em nome de Vinca.
«No começo das férias estava tão apressado», pensava Philippe.
«Agora...» Esboçou um sorriso, uma expressão de homem infeliz. O beiço
enegrecia-lhe de dia para dia e o crescimento dos primeiros pêlos,
penugentos e finos, que estão para o bigode como o feno
115
das florestas está para as ásperas gramíneas dos campos, dava a ilusão
de lhe inchar um pouco o lábio superior, inflamando-o como à boca de uma
criança febril. Era aquela boca que o olhar de Camille Dalleray não
abandonava, na sua expressão impenetrável, quase vingativa.
«O meu futuro, pensa nisso, o meu futuro... É bem simples... Se não fizer o
meu curso de Direito, o meu futuro serão os armazéns do pai, frigoríficos e
arcas congeladoras para hotéis, equipamento para castelos, faróis, peças
e acessórios para automóveis. O bacharelato e, logo a seguir, depois dos
armazéns, os clientes, a correspondência... O pai não ganha nem sequer
para ter automóvel... Ah! E já me esquecia do serviço militar ... Em que
diabo estou eu a pensar?... Dizíamos então que, depois do meu
bacharelato...»
O seu esforço recusou-se a prosseguir, expulso por um aborrecimento sem
limites, uma profunda indiferença por tudo quanto se relacionasse com um
futuro já conhecido, sem segredos. «Se fizeres o teu serviço militar nos
arredores de Paris, então eu, durante esse tempo ...» E a voz atraente de
Vinca murmurou-lhe, na memória, vinte projectos concebidos naquele
mesmo Verão, agora julgados inconsequentes e descoloridos, como se
impressos numa folha de papel a que faltava a graça da iluminura. A zona
colorida das suas esperanças não ultrapassava o final da jornada, a hora
do jantar, de jogar o xadrez com Vinca e Lisette, mais com esta, cujos oito
anos agressivos, o olhar atento, a precocidade calculista, aliviavam
Philippe do seu fardo sentimental. A hora de se entregar ao prazer... «E
ainda», pensou ele, «não tenho a certeza de que irei. Não.
116
Porque eu não sou louco, não conto os minutos, não me volto para Ker-
Anna como um girassol se vira para o Sol, por tudo isso posso bem
reivindicar o direito de ser eu próprio, de continuar, de tomar o gosto a tudo
quanto eu amava anteriormente...»
Não se dava conta de que, servindo-se daquela palavra, a colocava,
rígida, entre duas metades da sua existência. Ignorava ainda durante
quanto tempo todos os acontecimentos da sua vida deveriam embater
contra aquela baliza, ponto de referência miraculoso e banal: «Ah! sim, foi
assim antes... Parecia-me que fora um pouco depois...»
Phil pensava, desdenhoso e ciumento, nos seus companheiros de
externato, trémulos da espera num portal ignóbil que eles ultrapassavam
assobiando, mentirosos, pálidos pelo desgosto e jactanciosos. Quanto
mais eles faziam por não pensar, tanto mais eles voltavam, sempre sem
interromper os estudos, aos jogos, aos cigarros clandestinos e aos
debates políticos ou desportivos. «Ao passo que eu... É por sua causa, por
causa dela, que eu não desejo nada... nem mesmo a Ela?...»
Um «tampão» de bruma, vindo do mar alto, abordava a costa. Começara
sob a forma de uma pequena cortina aberta sobre o mar, errante, apenas
capaz de esconder um simples ilhéu rochoso. Uma rajada de vento
acabava de a enlaçar, de a devolver por completo, para a depositar
vertiginosamente na baía, vencida, opaca. Num momento, Philippe,
afogado em bruma, viu desaparecer o mar, a praia e a casa, num banho
de vapor que o fazia tossir. Habituado às variações e prodígios do clima
marítimo, esperou que outra rajada de vento dis-
117
sipasse aquela cortina, acomodando aqueles limbos, aquela cegueira
simbólica, bem no fundo dos quais brilhava um rosto tranquilo, afastado
para além dos cabelos como uma lua plena de pureza e cujas mãos
ociosas não faziam qualquer gesto. «Ela está imóvel... mas que ela me
entregue o domínio do tempo, a pressa, a impaciência, a curiosidade...
Não é justo ... Não é justo ... Eu quero-a...»
Experimentou um sentimento de revolta perante a ingratidão. Um
adolescente de dezasseis anos e meio ignora que uma disposição
impenetrável coloca, ao longo do caminho daqueles que o amor
determinou sejam amantes apressados de viver e impacientes por morrer,
belas missionárias carnais, que detêm o tempo, adormecem e satisfazem
o espírito e aconselham os corpos a sazonarem à sua sombra.
A cerração desapareceu de súbito, aspirada na atmosfera, como uma
toalha que se levanta,, deixando uma franja de gotículas de água, um
orvalho de pérolas cristalinas nas folhas penugentas, uma camada de
verniz húmido nas folhas glabras.
O sol de Setembro derramava uma luz amarela e precisa sobre o mar,
azulada ao longe, verdejante à beira-mar no contraluz das algas e das
areias submersas .
Philippe respirou, depois da passagem da cerração : marinha,
experimentando o prazer de surgir, bem banhado de ar e de claridade,
vindo de um corredor escaldante. Voltou-se para a terra para ver jorrar,
entre as falhas dos rochedos, o ouro dos tojos em novas florescências. E
então estremeceu, ao descobrir atrás de si,
118
como um espírito trazido e abandonado pela bruma, um rapazito
silencioso.
- Que queres tu, pequeno? Não és aquele rapaz da Cancalaise que nos
vende o peixe?
- Sou - disse, baixinho, o garoto.
- Não está ninguém na cozinha? Procuras alguém? O rapaz sacudiu o pó
dos seus cabelos ruivos.
- Foi a senhora que me disse...
- Qual senhora?
- Ela disse-me: «Vai ter com o Sr. Phil e diz-lhe que parti.»
- Qual senhora?
- Não sei. Ela disse-me: «Dirás ao Sr. Phil que fui obrigada a ir-me embora
hoje mesmo.»
- Onde é que ela falou contigo? Foi na estrada?
- Sim... No seu automóvel.
- No seu automóvel...
Por um momento, Philippe fechou os olhos, passou a mão pela testa,
assobiando em surdina: «Hu... hu... hu... No seu automóvel...
Perfeitamente. Hu... hu... hu...» Reabriu os olhos e procurou o mensageiro,
que já não encontrou no mesmo lugar, julgando-se, por isso vítima de um
daqueles breves sonhos, esboçados rudemente, brutalmente terminados,
que, por vezes, povoam a sesta da tarde. Foi, porém, descobrir num atalho
da falésia o rapaz maléfico, que corria, afastando-se e exibindo o seu tufo
de cabelos ruivos, ao mesmo tempo que uns fundilhos azuis
ornamentando os seus calções cinzento-escuros.
Philippe assumiu uma expressão idiota e de pessoa importante, como se o
garoto de Cancale ainda o pudesse ver.
119
«Bem... a verdade é que o facto de ela se ter ido : embora pouco ou nada
altera as coisas. Um dia mais cedo ou um dia mais tarde... pois se ela teria
de partir!»
Mas um mal-estar estranho, puramente físico, ia surgindo nele, à altura do
estômago. Deixou esse mal desenvolver-se, curvou a cabeça procurando
uma posição inteligente, como se escutando um conselho misterioso.
«Talvez com uma bicicleta... E se ela não estiver sozinha? Não me lembrei
de perguntar ao garoto se ela ia só...»
Muito ao longe, um automóvel buzinou na estrada da rampa. O som grave
e prolongado teve o condão de deter o mal-estar de Philippe, para, no
momento imediato, o agredir como um soco colocado demasiado baixo.
«Pelo menos, a partir de agora já escuso de perguntar a mim próprio se
irei esta noite a casa dela...»
Repentinamente, imaginou Ker-Anna fechada, ao luar, as persianas
cinzentas, o portão de ferro pintado de preto, os gerânios prisioneiros, e
estremeceu. Deitou-se numa dobra do terreno, rebolou como o faria um
cão de caça com pulgas e começou a arranhar as plantas da areia com um
movimento regular dos pés. Semicerrou os olhos, pois as grandes nuvens,
muito brancas e arredondadas, correndo no céu, provocavam-lhe uma
ligeira náusea. Esgaravatava ritmadamente a areia e cantarolava a
compasso. Do mesmo modo, a mulher que sofre para dar ao mundo o seu
filho solta o primeiro gemido, que vai aumentando progressivamente, até
ao grande grito final.
120
Philippe abriu os olhos, assustou-se e recuperou os sentidos.
«Mas... Que demónio tenho eu? Se eu sabia perfeitamente que ela deveria
partir primeiro do que nós. Tenho a sua morada em Paris, o seu número de
telefone... e depois, que me interessa que ela parta? É a minha amante,
não é o meu amor... posso, perfeitamente, viver sem ela!»
Sentou-se, correu os dedos ao longo dos caules das espigas bravas,
expulsando os rosários de caracóis que os adornavam e de que as vacas
são tão gulosas. Experimentou rir da situação e ser grosseiro.
«Ela partiu, pronto. É possível que ela não seja uma mulher sozinha...
Nunca se deu ao trabalho de me contar os seus pequenos problemas, não
é assim... Bem. Só ou acompanhada, partiu. E eu o que perdi... o quê?
Uma noite, a próxima. Uma noite antes da minha partida. Uma noite que,
ainda agora, eu não tinha a certeza de desejar. Só pensava na Vinca...
Pois vamos passar uma noite muito agradável, aí está...»
Mas uma espécie de sopro lhe cruzou o espírito, varrendo-lhe o
vocabulário de membro da pandilha de garotos, a falsa segurança, a
risada trocista interior, deixando-lhe somente uma superfície mental nua,
arrefecida, a consciência exacta do significado da partida de Camille
Dalleray.
«Ah... Ela partiu... Partiu, fora de alcance, a mulher que me deu... que me
deu... como dizer o que ela me deu? Sei lá. Deu-me. Desde o tempo em
que deixei de ser o menino que o Natal encanta, deu-me. Dado. Só ela
podia retomar, retomou...»
O rubor atingiu as faces morenas, uma água salgada
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molhou os seus olhos. Desapertou a camisa, mergulhou os dedos nos
cabelos, parecia alguém que tinha acabado de andar à pancada, gritou,
gritou muito alto, com uma voz rouca infantil: «Era precisamente nessa
noite que eu a queria!»
Levantou o rosto, o corpo apoiado sobre as mãos, como a querer ver a
invisível Ker-Anna: já uma massa de nuvens vindas do sul envolvia o cimo
da colina deserta; e Philippe aceitou que um poderoso demónio ocultasse
para sempre o lugar onde tinha conhecido Camille Dalleray.
Alguém tossiu poucos metros abaixo do lugar onde ele se encontrava, no
atalho de areia movediça, na qual as pedras chatas e os troncos de
madeira redondos, vinte vezes dispostos em escadaria rústica, vinte vezes
por ano rolavam para a praia. Philippe viu aparecer, ao nível do prado e
começando a subir lentamente, uma cabeça grisalha. Com a capacidade
de dissimulação comum a todas as crianças, dominou a sua desordem
interior, a sua fúria de homem traído, e ficou a aguardar, mudo, plácido, a
passagem de seu pai.
- Estás aqui, rapazinho?
- Como vê, pai.
- Sozinho? E a Vinca?
- Não faço ideia, pai.
Quase sem esforço, Phil mantinha afivelada ao rosto a sua máscara de
afabilidade, atenta, de bom rapazinho moreno. Diante dele, seu pai
assemelhava-se ao seu pai de todos os dias: uma aparência humana,
agradável, um tanto maleável, de contornos imprecisos como todas as
criaturas terrestres que não se chamavam nem
122
Vinca nem Philippe, nem Camille Dalleray. Paciente, Phil esperou que seu
pai recuperasse o fôlego.
- Não pescaste nada, pai?
- Não. Vim apenas passear. O Lequérc é que apanhou um polvo... Olha,
vês a minha bengala? Cada um dos seus tentáculos era deste tamanho.
Lisette desatou aos gritos! Mesmo assim, tomem atenção quando tomarem
banho.
- Oh!, sabes perfeitamente, pai, que não há perigo!...
Philippe deu-se conta de que protestara num tom demasiado alto, e falso,
de garotice. Os olhos cinzentos, salientes, de seu pai, interrogaram os
seus; e ele suportou mal um olhar que lhe pareceu límpido, sem véus,
lavado da névoa isolante e protectora para além da qual vivem, no
ambiente de seus pais, os filhos e os seus segredos.
- Dize-me, rapaz, aborrece-te a nossa partida?
- A nossa partida?... Mas, pai...
- Sim. Se tu fores como eu, aborrecer-te-á um tanto, todos os anos. A
região, a nossa casa. E, depois, os Ferret... Hás-de chegar à conclusão de
que é raro... amigos com quem passamos o Verão todos os anos, sem
zangas, sem atritos... Goza o tempo que ainda te falta, rapaz. Ainda dois
dias de bom tempo. Há outros que são bem menos felizes do que tu...
E ei-lo que voltava para casa, falando ainda, no meio das Sombras, das
quais uma palavra ambígua, um olhar, o haviam afastado. Philippe
ofereceu-lhe o braço para o ajudar a subir a ligeira encosta,
proporcionando-lhe aquela piedosa afabilidade que o filho deixa cair do
alto sobre o pai, sempre que o pai é um homem
123
tranquilo e amadurecido e o filho um adolescente tumultuoso que acaba de
inventar o amor, os tormentos da carne e o orgulho de ser sozinho a
enfrentar o mundo sem se dignar pedir auxílio seja a quem for.
Ao nível do terraço plano, estreito, plataforma sobre a qual assentava a
vivenda, Philippe abandonou o braço de seu pai, quis voltar a descer para
a praia, alcançar o seu lugar, marcado há mais de uma hora num recanto
bem definido da solidão humana. ;
- Para onde vais, garoto? :
- Para ali, pai... lá para baixo...
- É pressa?... Anda cá. Gostava de falar contigo acerca da vivenda. Sabes
que já decidimos, com os dois Ferret, comprá-la. Aliás, já o deves saber,
pois há muito tempo já que falamos disso diante de vocês, os filhos ...
Phil não respondeu, não ousando nem mentir nem confessar a pouca
atenção dispensada às conversas familiares.
- Vem cá, vou explicar-te. De resto, a minha ideia - aliás, de acordo com o
Ferret de ampliar a vivenda pelos dois lados, sem mais nenhum andar, iria
proporcionar duas varandas largas para os principais quartos do primeiro
andar... Estás a ver?
Phil meneou a cabeça com um ar de quem percebeu tudo e tentou escutar,
honestamente. Todavia, perdeu o pé logo a partir de uma palavra, a
palavra «varanda», e desceu logo, mentalmente, o declive até ao local
onde o garoto maléfico lhe dera o recado... «varanda... varanda... Fiquei
na varanda». Entretanto, abanava a cabeça, e o seu olhar, marcado por
uma actividade filial, oscilava entre o rosto de seu pai e o te-
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lhado suíço da vivenda, do telhado à mão do Sr. Audebert, que desenhava,
no espaço, as linhas de uma nova arquitectura. «Varanda... varandas...»
- Estás a ver? Vamos fazer assim, o Ferret e eu. Ou talvez sejas tu,
combinado com a pequena Ferret... Ninguém pode saber quem viverá,
quem já terá morrido...
«Aí está! Outra vez o mesmo!», gritou uma voz interior, e Philippe teve um
sobressalto de alívio e de riso.
- Estás a rir? Não há razão para risos. Vocês, garotos, nunca acreditam na
morte!
- Mas, evidentemente que sim, paizinho...
«A morte... Por fim, uma palavra familiar, compreensível,... Uma palavra de
todos os dias...»
- Existem, evidentemente, inúmeras probabilidades de tu te casares com a
Vinca, dentro de alguns anos. Pelo menos, é a tua mãe quem o diz. São,
porém, igualmente inúmeras as probabilidades de vocês não se casarem.
Porque estás a sorrir-te?
- Do que estás a dizer, paizinho...
«Do que tu dizes, dessa simplicidade dos pais, das pessoas
amadurecidas, daqueles que conseguiram, como eles dizem, vencer, e da
sua candura, da sua perturbadora pureza de pensar...»
- Repara que eu, por agora, não te peço nem conselho nem opinião. Dir-
me-ás: «Quero casar com a Vinca», e isso, para mim, terá o mesmo efeito
do que afirmares: «Não quero casar-me com a Vinca.»
- Ah, sim?
- Sim. É uma ideia ainda não madura. És muito simpático, mas...
E aqueles olhos cinzentos, salientes, emergiram ain-
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da uma vez mais da confusão universal para medir Philippe de alto a
baixo.
- É preciso esperar. Não será muito grande o dote da pequena Ferret. E
que é que isso interessa? Nos primeiros tempos dispensam-se muito bem
o veludo, a seda e o ouro...
«O veludo, a seda e o ouro... Ah! o veludo, a seda e o ouro... vermelho,
negro, branco -vermelho, negro, branco; e o pedaço de gelo, talhado como
um diamante, no copo de água... Meu veludo, meu luxo, minha amante e
minha mestra... Ah, como poderei passar um tal supérfluo...
- ...Trabalho... Começos difíceis...Seriedade... Tempo de pensar em... Na
época que atravessamos...
«Sinto-me mal. Aqui» no sitio do estômago. E horroriza-me esta rocha
violácea, sobre aquele fundo vermelho-escuro, branco e negro como o que
estou vendo em mim próprio...»
- Vida de família... cuidados... Para o Inferno!... Pão branco antes de mais
nada... Garoto... E então?... E então?...
A voz, as palavras intermitentes, extinguiram-se num ruído suave de águas
alastrando. Philippe não se apercebeu de mais nada, de uma leve
pancada num ombro e do arranhar de um tronco de erva seca no rosto.
Depois, o ruído de numerosas vozes atingiu-o de novo, como ilhotas
aceradas emergindo no mugido uniforme e agradável das águas. E
Philippe reabriu os olhos. A sua cabeça repousava nos joelhos de sua mãe
e todas as Sombras, em círculo, debruçavam sobre ele os rostos
inofensivos. Um lenço, encharcado em água-de-colónia de alfazema,
tocou-lhe nas narinas. E ele sorriu para
126
Vinca, que se interpusera, colorida de ouro, de castanho-rosado, de azul
cristalino, entre ele e as Sombras...
- Este pobre menino!
- Eu disse, já o tinha dito, que o aspecto dele era mau!
- Estávamos os dois a conversar, ele ali, na minha frente, e depois puf!...
- Como todos os rapazes da sua idade, é incapaz de ter cuidado com o
estômago... as algibeiras sempre cheias de fruta...
- E os primeiros cigarros, esses não contam?
- Meu anjinho querido!... Tem os olhos cheios de lágrimas!...
- Naturalmente! É a reacção...
- Aliás, não demorou mais do que meio minuto, foi o tempo de vos chamar.
Foi como lhes disse, ele estava aí, conversávamos um com o outro e, de
repente ...
Phil levantou-se, tonto, as faces geladas.
- Vê se estás quieto, então!
- Encosta-te a mim, rapaz...
Ele, porém agarra-se à mão de Vinca e sorria, inexpressivo.
- Já acabou. Obrigado, mãezinha. Já acabou.
- Não quererás ir deitar-te, por acaso?
- Oh!, não. Prefiro antes respirar um pouco de ar...
- Olhem-me para a cara de Vinca! Ele não morreu ainda, o teu Phil! Leva-o
contigo, vá. Vão os dois, mas é melhor que fiquem no terraço!
As Sombras afastaram-se, numa marcha lenta, em
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pelotão do qual se elevavam mãos despedindo-se, palavras amigas de
consolo; o clarão de um olhar maternal que se repetiu, e Philippe ficou
sozinho com Vinca, que não sorria. Um esgar, um sinal com a cabeça,
confiante, convidando-a à alegria. Mas ela respondeu-lhe com um outro
sinal: «Não», sem deixar de contemplar Philippe, a sua palidez, que
tornava esverdeado o halo castanho dos seus olhos negros, onde o sol se
reflectia num raio de luz suave, a sua boca entreaberta deixando ver os
dentes bem alinhados e saudáveis... «Como tu és belo... Como eu estou
triste!», diziam os olhos azuis de Vinca... Mas ele não lia piedade naqueles
olhos e ela deixava-o segurar-lhe na mão forte de pescadora e de jogadora
de ténis, como se ela lhe tivesse estendido, para Phil se agarrar, o castão
de uma bengala:
- Vem - murmurou Philippe, baixinho. - Quero explicar-te... Não é nada.
Mas vamos para um sítio sossegado.
Ela acompanhou-o e ambos escolheram, cuidadosamente, como sala
secreta, uma cornija na rocha, por vezes banhada pelas águas das marés
vivas que para ali transportavam uma espécie de areia grossa, que secava
rapidamente. Nenhum deles pensara alguma vez que um seu segredo
pudesse ser confiado às ramagens coloridas da cretone dos cortinados
claros, às paredes de pinho nórdico, de uma ressonância musical que
levava, durante a noite, de um para outro quarto, a notícia de que um dos
habitantes da vivenda desandara o botão do interruptor, tossia ou deixava
cair uma chave. Selvagens a seu modo, aquelas duas crianças parisienses
sabiam afastar-se da indiscrição do refúgio humano, procurando a
segurança do seu idílio e dos seus dramas no
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meio de um prado descoberto, no rebordo de uma falésia rochosa ou
atravessando o flanco das vagas.
- Devem ser quatro horas - disse Philippe consultando a altura do Sol. -
Não queres que, antes de nos instalarmos, vá buscar o teu lanche?
- Por mim, não tenho fome - respondeu Vinca. - Mas tu, queres lanchar?
- Não, obrigado. Aquele desfalecimento idiota tirou-me o apetite. Senta-te
lá para o fundo; por mim, fico melhor aqui à beira.
Falavam com simplicidade, sabendo-se prontos a proferir palavras graves
ou para um silêncio também revelador.
O sol de Setembro reflectia-se nas pernas luzidias e bronzeadas de Vinca,
dobradas pela orla do seu vestido branco. Abaixo deles, uma vaga
inofensiva, que a cerração ao passar polira e suavizara, bailava
docemente, embebendo-se nas variegadas gradações da cor do bom
tempo. As gaivotas soltaram os seus gritos estrídulos e um rosário de
barcos foi-se desfiando, uma vela após outra, saindo da sombra do Meinga
para alcançar o mar alto. Um cântico infantil, agudo, trémulo, passou,
levado pela brisa; Philippe voltou-se, estremeceu e desabafou num
queixume irritado: lá bem no alto, no cume da falésia, uma silhueta
azulada, encimada por um tufo de cabelos ruivos, um rapazinho...
Vinca acompanhou o olhar de Philippe.
- Sim -disse ela, é ele, o garoto. Phil recuperou o seu sangue-frio.
- Falas do garoto, julgo eu, da vendedeira do peixe?
129
Vinca sacudiu a cabeça:
- O garoto -rectificou ela, o miúdo que há pouco falou contigo.
- Quem me...
- O garoto, aquele que veio avisar-te da partida da senhora.
Subitamente, Philippe odiou a luz do dia, a areia que sentia junto aos rins,
a brisa suave que lhe escaldava as faces.
- De... de que estás a falar, Vinca?
Ela não se dignou responder e continuou:
- O rapazito andava à tua procura; encontrou-me e deu-me a novidade em
primeiro lugar. Aliás...
Vinca rematou com um gesto fatalista, resignado. Phil respirou fundo,
como se o ambiente fosse de bem-estar.
- Ah... então tu sabias... Que é que sabias?
- Coisas a teu respeito... Ainda não há muito tempo. O que sei aprendi-o
tudo de uma vez... haverá quatro, cinco dias; aliás, não tinha a certeza...
Vinca calou-se e Philippe reparou, sob as suas pupilas azuis, encimando a
face muito fresca e infantil da sua amiga, o tom nacarado, o sulco das
lágrimas das noites de insónia, aquele reflexo acetinado, cor da luz do luar
no plenilúnio que só é possível surpreender-se nas pálpebras das
mulheres constrangidas a sofrer em segredo.
- Bom -disse Philippe -, então podemos falar... a menos que prefiras não
falar... Farei como quiseres.
Ela reprimiu um quase imperceptível movimento dos cantos dos lábios,
mas não chorou.
- Não, podemos falar. Acho que será melhor.
130
Experimentaram ambos um contentamento semelhante; era a verificação
de que seria afastado, logo desde as primeiras palavras da sua conversa,
o lugar-comum da discussão e da mentira. Era a realidade que partilham
os heróis, os comediantes e as crianças de se sentirem à vontade num
plano elevado. Aquelas crianças esperavam, loucamente, que uma dor
nobilitante pudesse nascer do amor.
- Escuta, Vinca, quando a encontrei pela primeira vez...
- Não, não - interrompeu Vinca, impetuosa. - Nada disso. Nada disso te
peço. Já o sei. Foi lá em baixo, no caminho do sargaço. Julgavas que já o
tinha esquecido?
- Mas -protestou Philippe -, naquele dia não houve nada, nem a lembrar
nem para esquecer, pois...
- Adiante! Adiante! Estás convencido de que vim contigo para aqui só para
te ouvir falar dela?
A amargura que ele sentiu na tonalidade da voz de Vinca forçou-o a
perder, na sua própria expressão, toda a naturalidade e arrependimento.
- Vires para aqui para me obrigares a ouvir a história dos teus amores? É
isso, então? Não vale a pena. Na última quarta-feira, quando voltaste, eu
estava levantada, às escuras... Vi-te... como um ladrão... Era já quase dia
claro. E a figura que tu fazias... Então, procurei informar-me, sabes...
Pensas que na costa não se sabe de tudo? Para não saberem de nada, só
os pais...
Chocado, Philippe franziu o sobrolho. A brutalidade feminina, que o ciúme
fizera nascer em Vinca, ofendia-o. No seu caminho para aquele refúgio
suspenso, ele sentira-se capaz de encontrar uma confiança suave,
lágrimas, ambiente propenso a longas confissões... Mas o que ele não
admitia era aquela actividade dissecante, aquela rudeza salpicada de ditos
irónicos, pitorescos, agressivos... à procura de quê?
«Não há dúvida... ela agora vai querer morrer...» pensou ele. «Neste
mesmo lugar, no outro dia, já ela quis morrer... Vai querer morrer...»
- Vinca, tens de me prometer...
Ela fez um movimento, de quem apura o ouvido sem olhar para ele, e todo
o seu corpo exprimiu, nesse mesmo movimento tão subtil, a sua
incomparável ironia e independência.
- Sim, Vinca... É preciso prometeres-me que nem aqui, neste rochedo,
nem em qualquer outro lugar da Terra... tu... tu tentarás deixar a vida...
Agredindo-o no rosto com o clarão azul dos seus grandes olhos abertos,
num olhar inesperado mas firme como rocha, forte como ela, Vinca disse:
- Que dizes tu? Deixar... deixar a vida?
Ele foi colocar as suas mãos apoiadas nos ombros de Vinca, curvou a
cabeça num movimento que pretendia pleno de experiência:
- Conheço-te bem, querida. Neste mesmo lugar, sem qualquer razão,
quiseste deixar-te deslizar lá para baixo, já lá vão seis semanas, e agora...
O espanto, enquanto ele falava, parecia servir de apoio à curva das
sobrancelhas de Vinca. Com um movimento brusco dos ombros, ela
sacudiu as mãos de Philippe.
- Agora?... Morrer?... Porquê?...
A última palavra fê-lo corar intensamente e essa
132
reacção teve, para Vinca, o significado de uma resposta.
- Por causa dela? - gritou Vinca. - Estás louco, ou quê?
Furioso, Phil arrancou alguns tufos de ervas bravias que estavam mais ao
alcance da sua mão, rejuvenescendo nesse gesto quatro ou cinco anos.
- Ficamos sempre loucos quando pretendemos saber o que quer uma
mulher e quando se imagina que ela sabe o que quer!
- Mas eu sei, Phil. Eu sei perfeitamente. E também aquilo que não quero!
Podes ficar descansado porque nunca me matarei por causa dessa
mulher! Há seis semanas... Sim, deixei-me escorregar... lá para baixo, e
arrastava-te. Mas, nesse dia, era por ti que eu morreria, e por mim
também... por mim...
Ela fechou os olhos, lançou a cabeça para trás, amaciou a voz proferindo
as últimas palavras, assemelhando-se, numa parecença estranhamente
fiel, a todas as mulheres que levantam o colo e cerram os olhos sob o
efeito de um excesso de felicidade. Pela primeira vez, Philippe reconheceu
em Vinca a irmã daquela que, de olhos fechados e cabeça abandonada,
parecia afastar-se dele mesmo naqueles instantes em que mais fortemente
a enlaçava...
- Vinca! Então, Vinca!
Ela abriu os olhos e recompôs-se.
- Que foi?
- Eh!, que tens tu? Estás com um aspecto terrível, de quem vai desmaiar!
- Eu não sou das que desmaiam. Isso é bom para ti, o frasco dos sais, a
água-de-colónia e as tremuras!
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Por vezes, quase regularmente, a ferocidade infantil esgueirava-se,
misericordiosa, entre ambos. Mediam forças, esgotavam-se e
recuperavam-se com uma lucidez anacrónica, depois recolhiam-se numa
atitude de mais velhos...
- Vou-me embora - anunciou Philippe. - Fazes-me muita pena.
Vinca riu, uma risada seca, desagradável, como ri uma mulher ferida.
- Encantador! É a ti, agora, a quem faço pena, não é assim?
- Mas... evidentemente.
Ela deu um grito como uma ave irritada, agressivo, imprevisto, que forçou
Philippe a estremecer.
- Que tens tu?
Vinca apoiara-se sobre as duas palmas das mãos abertas, quase a quatro
patas, como um animal. Subitamente, ele deu por ela descontrolada,
vermelha de indignação. Os seus dois bandós de cabelo tendiam a juntar-
se sob o seu queixo curvado para a frente, deixando apenas lugar para a
sua boca, vermelha e seca, para o seu nariz curto, cujas narinas a cólera
alargava, para os seus olhos desferindo clarões de azul.
- Cala-te, Phil! Cala-te! Posso fazer-te mal! Tu queixas-te, tu falas da tua
piedade, tu, que me enganaste, tu, o mentiroso, o mentiroso, tu, que me
trocaste por outra mulher! Tu não tens nem vergonha, nem bom senso,
nem piedade! Tu trouxeste-me aqui só para me contares, a mim, a mim!, o
que fizeste com a outra mulher! Não foi assim? Foi ao contrário? Hem! Diz,
foi?
Ela gritava, soltando todo o seu furor de mulher fe-
134
rida, como um albatroz dominando a procela. Deixou-se cair sentada, as
suas mãos, tacteando, acabaram por encontrar um fragmento de rocha
que ela atirou para o mar, para muito longe, com uma violência que
estarreceu Philippe.
- Cala-te, Vinca...
- Não, não me calarei! Aliás, estamos aqui os dois, sozinhos, e a mim
apetece-me gritar! Há uma razão para gritar, ou não? Trouxeste-me até
aqui porque querias contar, rememorar tudo quanto fizeste com ela, só
pelo prazer de te ouvires falar, de ouvires palavras... de falar dela, de
proferires o seu nome, hem?, o seu nome, talvez...
Ela bateu-lhe, de repente, na cara. Deu-lhe um murro tão imprevisto, tão
arrapazado, que ele quase se atirou a ela, disposto a bater-se a sério. As
palavras que ela acabara de gritar foram, finalmente, o travão que o
impediu de tomar outra atitude; a sua masculinidade e decência de homem
recuaram ante o que Vinca tão claramente fizera compreender, cruamente,
sem rodeios.
«Ela pensa, ela acredita, que, para mim, seria um prazer contar-lhe tudo...
Oh!, e é Vinca, a Vinca, quem imagina todas essas coisas...»
Ela calou-se por um instante e tossiu, ficando vermelha até à base da
garganta. Duas lágrimas pequeninas resvalaram-lhe dos olhos, mas ela
ainda não estava preparada para a ternura e o silêncio das lágrimas.
«Decididamente, não a conheço; saberei alguma vez o que ela pensa?»
interrogou-se Philippe. «Todas as suas palavras são tão surpreendentes
como aquela força que tanto lhe admiro, quando ela nada, quando ela
salta, quando ela atira pedras...»
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Desconfiado dos movimentos de Vinca, Phil não a perdia de vista. A cor
resplandecente da sua pele, dos seus olhos, o belo lançamento da sua
figura alongada, a prega do seu vestido branco acompanhando as suas
pernas esguias, tudo relegava para um plano secundário e longínquo o
sofrimento quase agradável que o prendia naquele palmo de terreno...
Ele aproveitou-se da trégua, quis mostrar o sangue-frio da superioridade.
- Eu não te bati, Vinca, mas as tuas palavras mereciam-no mais do que o
teu gesto. Mas eu não te quis bater. Seria a primeira vez que me teria
deixado arrebatar e...
- Naturalmente - interrompeu ela, com voz rouca. - Para a próxima vez,
serás tu a bater primeiro. Eu nunca serei a primeira em nada!
Aquela avidez no ciúme sossegou-o, quase esboçou um sorriso, mas o
olhar vingativo de Vinca desaconselhou-o de recorrer ao gracejo. Ficaram
ambos silenciosos, viram o Sol baixar para além do Meinga e uma mancha
rosada, curva como uma pétala, dançar na crista de todas as vagas.
Os chocalhos das vacas guizalharam no alto da falésia. No lugar fatal onde
o garoto ainda há pouco cantarolava, a silhueta chavelhuda de uma cabra
negra apareceu e baliu.
- Adorada Vinca... - suspirou Philippe. Ela encarou-o, indignada.
- É a mim que te atreves a chamar adorada? Ele inclinou a cabeça.
- Vinca adorada... - suspirou novamente.
Ela mordeu os lábios, agrupou forças contra o as-
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salto das lágrimas que ela sentia subirem, apertarem-lhe a garganta,
intumescer os olhos, e não se arriscou a falar. Philippe, a nuca apoiada na
rocha debruada de florescências rasas e violáceas, contemplavam o mar e
talvez não a visse. Porque ele se sentia cansado, porque estava
agradável, porque a hora, o seu perfume e a sua melancolia o exigiam,
suspirou: «Adorada Vinca...», como poderia ter murmurado: «Ah!, que
felicidade!...», ou ainda: «Quanto sofro...» A sua nova dor rebuscava as
mais antigas palavras, as primeiras palavras que dos seus lábios brotaram;
assim, o soldado mais empedernido, se cai combatendo, murmura o nome
de uma mãe que esquecera.
- Cala-te, perverso, cala-te!... O que tu me fizeste... O que tu me fizeste...
Voltou-se, mostrando-lhe as lágrimas que rolavam, sem deixar sulcos, no
veludo das suas faces. O sol brincava-lhe nos olhos inundados e ampliava-
lhe a intensidade do azul das suas pupilas. A expressão de uma amante
malferida, generosa bastante para tudo perdoar, resplandecia, coroando-
lhe o rosto; uma rapariguinha angustiada, um tudo-nada cómica, exibia a
sua boca e o seu queixo, trementes, numa careta gentil.
Sem abandonar o apoio do seu rijo travesseiro, Philippe voltou para ela os
seus olhos negros, suavizados pela moleza do seu próprio chamamento. A
cólera libertara, daquela jovem sobreaquecida, um aroma a mulher loura,
aparentada com a flor da alga rosa, ao trigo verde pisado, um cheiro
mordente e alegre que completava a ideia de vigor, de saúde, que todos os
gestos de Vinca sugeriam a Philippe. No entanto, ela balbuciara e chorara:
«O que tu me fizeste...» Querendo
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deter o curso das lágrimas, ela mordeu uma das suas mãos, e ali
apareceu, púrpura, o semicírculo dos seus dentes de adolescente.
- Selvagem... - murmurou Philippe a meia voz, com a mesma consideração
carinhosa que teria dispensado a uma desconhecida.
- Mais do que tu pensas... - respondeu-lhe ela no mesmo tom.
- Mas não mo digas! - gritou Philippe. - As tuas palavras, mesmo as de
menos importância, todas elas têm o sabor de uma ameaça!
- Dantes, Phil, terias dito de uma promessa!
- É o mesmo! - protestou ele, impetuoso.
- Porquê?
- Porque é.
Resolvido a ser prudente, mordiscou um feno, incapaz de definir em
palavras as suas reivindicações secretas de liberdade mental, do direito à
mentira cómoda e bem-educada, a tudo quanto de exigência a sua
juventude e a realidade da sua primeira aventura nele haviam despertado.
- Por vezes interrogo-me. Mais tarde, como me tratarás, Phil?...
Ela parecia consternada e vazia de argumentos, mas Philippe sabia como
ela era capaz de ressaltar, como uma bola, e recuperar, como que por
magia, toda a sua força.
- Não te interrogues - pediu ele, secamente. «Mais tarde... mais tarde...
Sim, penhorar o futuro
também... Ela tem sorte, pode dar-se ao luxo de pensar, neste momento,
como será o futuro! É a sua necessidade de agrilhoar, de atrelar as
pessoas ao seu carro
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pelas palavras... Está muito longe do desejo de morrer...»
Intratável, ele menosprezava a missão de subsistir inerente a todas as
espécies femininas e o instinto sublime de investir na desgraça,
explorando-a como a uma mina de metal precioso. A noite e a fadiga
ajudando, ele foi ultrapassado pela combatividade daquela criança, lutando
de uma maneira primitiva pela salvação e felicidade de um casal. Em
pensamento, conseguia afastar-se da sua presença, correu em
perseguição de um automóvel, rolando na sua nuvem horizontal de poeira,
alcançou, como um mendigo da estrada, a janela que enquadrava um
rosto emoldurado pelo linho branco do seu turbante... Voltou a ver todos os
pormenores, os cílios ensombrados de negro, o pequeno sinal junto do
lábio, as narinas palpitantes e apertadas, aquelas feições que ele jamais
contemplara que não fosse de muito perto, ah!, de tão perto... Perturbado,
amedrontado, levantou-se, possuído pelo pavor de sofrer e surpreso
porque, enquanto conversava com Vinca, deixara de sofrer...
- Vinca!
- Que é que tu tens?
- Eu... creio que não estou bem...
Um braço irresistível prendeu o seu, forçando-o a cair no recanto mais
seguro do ninho escarpado quando ele vacilava junto do rebordo. Vencido,
não lutou, limitando-se a dizer:
- E, todavia, teria sido, talvez, o mais simples...
- Ah! La! La!
Depois daquela expressão, trivial, ela não procurou mais as palavras.
Deitara junto ao dela o corpo do ra-
139
paz enfraquecido, estreitava uma cabeça morena sobre os seus seios, que
um pouco de carne macia, nova, arredondava. Philippe abandonava-se a
uma lassidão que era hábito recente de passividade, adquirido em braços
fofos; mas se ele procurava, com uma tristeza apenas suportável, o
perfume a resina, o colo acessível, agora longe, pelo menos murmurava
sem esforço as palavras: «Vinca adorada... Vinca adorada...»
Ela aceitou embalá-lo, naquele ritmo em que balouçam, braços
aconchegando e joelhos apertados, todas as criaturas femininas de toda a
Terra. Ela amaldiçoava-o por ser tão infeliz e tão mimado. Ela esconjurava-
o a perder a razão e a esquecer, no delírio, um nome de mulher. Ela
repreendia-o, dir-se-ia meigamente. «Vamos, vamos... Hás-de aprender a
conhecer-me... Hei-de mostrar-te como sou...», mas, simultaneamente,
afastava da testa de Philippe um cabelo rebelde, semelhante a uma fenda
surgida em pedra-mármore. Ela saboreou o peso, a nova sensação de
contacto de um corpo de homem novo, que ainda ontem ela transportava,
rindo e correndo, às cavalitas dos seus rins. Quando Philippe, entreabrindo
os olhos, esmolou um seu olhar, suplicando-lhe a entrega do que ele
perdera, ela bateu com a mão livre a areia a seu lado e gritou do fundo do
seu ser: «Ah! porque nasceste tu!», encarnando a heroína do drama
eterno.
E, entretanto, ela não perdia de vista, com os seus olhares irrequietos, a
zona da vivenda longínqua; marinheira, calculava a hora pela declinação
do Sol: «São mais de seis horas»; reparava na passagem, entre a praia e
a vivenda, de Lisette, semelhante a uma pomba branca com o seu vestido
volitando ao vento. E pensa-
140
va ao mesmo tempo: «Não devemos demorar-nos aqui mais do que um
quarto de hora, ou arriscamo-nos a que nos venham procurar. Preciso
absolutamente de lavar bem os olhos..., e logo ela reintegrava, de corpo e
alma, o amor, o ciúme, a fúria que demorava a acalmar-se, os seus
esconderijos mentais, tão austeros e tão originais como aquele seu ninho
no rochedo...
- Levanta-te - disse-lhe ela, baixinho.
Philippe lastimava-se, amolentava-se. Ela adivinhou que, nesta fase, ele
se servia das pieguices, da inércia, para se escapar às censuras e às
perguntas. Os seus braços, até então quase maternais, sacudiram-lhe a
nuca sujeita, o torso quente, e aquele seu fardo, abandonado pelo abraço,
tornou-se novamente no rapaz mentiroso, ambíguo, estranho, capaz de a
atraiçoar, polido e modificado pelas mãos de uma mulher...
«Prendê-lo, como a uma cabra negra, na ponta de dois metros de corda...
Fechá-lo, num quarto, dentro do meu quarto... Viver num país onde eu seja
a única mulher ... ou então que eu seja de tal modo bela, de tal modo
bela... Ou então que ele seja tão doente que eu trate dele...» As sombras
instáveis dos seus pensamentos rodopiavam e jogavam à cabra-cega no
seu rosto.
- Que vais tu fazer? - interrogou-a Philippe. Desiludida, ela observou os
traços que viriam a ser,
mais tarde, os de um homem moreno, vulgarmente agradável, cujos
dezassete anos, por algum tempo ainda, continuariam marcados por um
toque de virilidade. Pasmava porque um estigma horrível e denunciador
não marcara aquele queixo delicado, aquele nariz regular sempre pronto a
exprimir a cólera: «Mas os seus olhos castanhos, tão meigos, e o seu
branco azul-
141
-pálido, ah!, como eu adivinho uma mulher a remirar-se neles...» Vinca
abanou a cabeça:
- Que vou eu fazer? Preparar-me para o jantar. E tu também.
- E isso é tudo?
De pé, ela alisou o vestido sobre a sua cinta de malha de seda elástica,
enquanto vigiava Philippe, a vivenda, o mar que adormecia e recusava,
cinzento, frio, participar no festival de luz do poente.
- É tudo... a menos que tu, por ti, não faças qualquer coisa.
- Ao que chamas tu qualquer coisa?
- Sei lá... partir, ir procurar essa senhora... Afirmar que é a ela a quem tu
amas... Anunciar essa verdade aos teus pais...
Falando, ela exprimia-se, simultaneamente, com maneiras secas e pueris,
alisando maquinalmente o vestido, como se pretendendo esmagar os
seios.
«Ela tem os seios em forma de conchas de lapas... sim... e também do
feitio das pequenas montanhas cónicas das pinturas japonesas...»
Corou. Deu-se conta de um eco reflectido no seu íntimo; pronunciara
distintamente a palavra «seios» e acusava-se de falta de respeito.
- Nunca praticarei qualquer dessas tolices, Vinca - disse ele,
precipitadamente. - Mas sempre gostava que me dissesses o que farias tu,
sim, tu, se eu fosse capaz de tudo isso, ou simplesmente de metade das
coisas de que falaste?
Ela abriu muito os olhos, agora ainda mais azuis porque haviam chorado,
mas ele foi incapaz de ler alguma coisa neles.
142
- Eu? Não modificaria em nada a minha maneira de viver.
Ela mentia e desafiava-o, mas sob a mentira do seu olhar ele via, tomava o
pulso à tenacidade, à constância sem repouso nem escrúpulos que
protege a amante e a prende ao amante e à vida, tão depressa descobre
uma rival.
- Estás a querer fazer-te mais razoável do que efectivamente és, Vinca.
- E tu a julgar-me mais valioso. Não posso pensar que tenhas acreditado
que eu desejava morrer! Morrer por uma aventura do Senhor!
Ela voltou para ele as palmas das suas mãos abertas, como fazem as
crianças discutindo umas com as outras.
- Uma aventura... - repetiu Philippe, magoado e lisonjeado. - Ora essa!
Todos os rapazes, na minha idade...
- Terei, então, de me habituar - interrompeu Vinca - a que tu não sejas,
efectivamente, mais do que «todos os rapazes» na tua idade!
- Vinca adorada, uma rapariga da tua idade não pode falar, não deve
ouvir... juro-te...
Baixou o olhar, mordeu o lábio, impaciente, e acrescentou:
- Podes acreditar em mim...
Ofereceu a mão a Vinca, para lhe facilitar passar as longas pernas sobre
os bancos xistosos dispostos à entrada do seu abrigo, e depois as moitas
de tojos, rasteirinhas, que os separavam do atalho da alfândega. A
trezentos metros dali, na borda-d'água, Lisette, toda de branco, cirandava
como uma bela flor dos bons-dias
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toda branca, agitando os braços que gesticulavam, telegrafando: «Aviem-
se! Estão atrasados!» Vinca levantou os braços, respondeu, mas voltou-se
ainda mais uma vez para Philippe, antes de começar a descer.
- Phil, justamente não posso acreditar-te, ou então é porque toda a nossa
vida, até hoje, nunca foi mais do que um conto de fadas, desses que vêm
nos livros e de que não gostamos. Falando de nós, tu dizes-me: «um
rapaz... uma moça...» Tu dizes: «uma aventura como todos os rapazes na
minha idade...» Mas, Phil, apesar de tudo, és tu quem está em falta...
Como vês, estou a falar-te com toda a calma.
Ele escutava-a, um tanto impaciente e irresoluto, pois procurava, naquele
mesmo instante, reunir os restos das achas quase queimadas e as dores
dispersas do seu grande desgosto, sem conseguir juntá-las. O embaraço
extremo de Vinca, visível sob uma capa espessa de falsa segurança,
contribuía ainda mais para a sua dispersão, enquanto, por outro lado, o
vento da tarde que naquela hora se levantava era de mau presságio...
- Então! E que mais ainda?
- Apesar de tudo, és tu quem está em falta, Phil, pois seria a mim que
deverias perguntar...
Ele sentia-se amorfo, fatigado, desejoso de estar sozinho, e, no entanto,
apreensivo, no portal da longa noite. Ela já se utilizara do grito, da
indignação, ou, até, do pensamento impuro. Ele mediu-a de alto a baixo,
por entre as suas pálpebras semicerradas, e disse:
- Pobre garota!... «Perguntar...» Bem. E conceder o quê?
Admirou-a, então, ofendida e muda; o fluxo púrpura do seu sangue subira-
lhe às faces, para descer agora
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sob a pele da sua garganta morena. Colocou-lhe um braço por cima dos
ombros e caminhou, bem apertado a ela, pelo atalho.
- Vinca adorada, repara nas tolices que dizes! Tolices de rapariguinha
ignorante, Deus seja louvado!
- Agradece-lhe outra coisa, Phil. Acreditas que eu não sei tanto quanto a
primeira mulher que ele criou?
Ela não se afastou dele, olhava-o de soslaio, sem voltar a cabeça, depois
olhava na sua frente o caminho difícil, para seguidamente voltar a olhar de
novo Philippe, cuja atenção continuava presa àquela oscilação do ângulo
de visão, ao movimento descrito pela pupila, alternadamente azul-de-vinca
e branco como o interior nacarado de uma concha.
- Dize-me, Phil? Não acreditas que eu saiba tanto como...
- Chut, Vinca! Tu não sabes. Tu não sabes nada. Parou na curva suave do
atalho. Todo o azul do céu
fugira do mar, fundido em metal sólido e cinzento, quase sem uma ruga,
enquanto o Sol deixava, no horizonte, uma extensa faixa de um vermelho
triste, para além da qual reinava uma zona pálida, verde, mais clara do que
a aurora, pela qual subia a estrela húmida que é a primeira a acordar.
Philippe envolveu com o seu braço os ombros de Vinca e estendeu o outro
braço na direcção do mar.
- Chut, Vinca! Tu não sabes nada. É... um tal segredo... Tão grande...
- Eu sou grande.
- Não, tu não compreendes o que eu quero dizer-te ...
- Mas sim, perfeitamente. Estás procedendo como
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aquele garotinho dos Jallon, que é menino de coro ao domingo. Para se
dar ares, repete constantemente: «O latim, ah!, mas sabe, certamente, que
o latim é muito difícil!», só que ele não sabe latim.
Soltou-se-lhe o riso, espontâneo, e Philippe não gostou nada de a ver
passar, tão rapidamente e com tanta naturalidade, do drama à farsa, do
desalento à ironia. Talvez porque a noite se aproximava, ele começava a
reclamar para si uma calma elaborada de fogo voluptuoso, um silêncio
durante o qual o sangue, murmurante nos ouvidos, se assemelha ao ruído
da chuva caindo; ele aspirava ao temor, à dependência quase muda e
cheia de perigos que o vergara na soleira de uma porta que outros
adolescentes haviam transposto titubeando e blasfemando.
- Cala-te lá, então. Não armes em má e em grosseira. Quando souberes...
- Mas é apenas o que eu pretendo: saber!
As palavras soavam-lhe falso e ela ria, com um riso de comediante
desajeitada, para esconder que tudo nela tremia, que ela estava tão triste
como todas as crianças rejeitadas que procuraram, arriscando tudo, uma
oportunidade de sofrerem um pouco mais, e ainda um pouco mais, e cada
vez mais até à recompensa...
- Peço-te, Vinca! Estás a fazer-me pena... Esse género não é, de modo
algum, o teu!...
Ele deixou descair o braço que apoiava no ombro de Vinca e desceu mais
apressadamente para a vivenda. Ela acompanhou-o, saltitando por cima
dos tufos de plantas espinhosas, já cobertas pelo orvalho, quando o atalho
se estreitava. Caminhando, ela preparava uma
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expressão destinada às Sombras, ao mesmo tempo que repetia:
- De modo algum meu?... De modo algum meu? Ora aí está uma coisa que
tu não sabes, Phil, tu que sabes tantas coisas...
À mesa, ambos foram dignos de si próprios e dos seus segredos. Philippe
riu dos seus fanicos, exigiu cuidados, chamou sobre si a atenção porque
receava que notassem os olhos brilhantes, aureolados por um tom rosa
desmaiado, que Vinca ostentava sob as pálpebras. Vinca, por seu turno,
parecia uma criança, reclamando champanhe logo desde a sopa: «É para
animar o Phil, mãezinha!», e esvaziou a taça de Pommery sem respirar.
- Vinca! - censurou uma Sombra...
- Deixa lá - observou, indulgente, uma outra Sombra. - Que mal lhe poderá
fazer uma taça?
Perto do final do jantar, Vinca notou o olhar de Philippe, procurando o
Meinga, invisível, na noite do mar, a estrada branca misturando-se e
perdendo-se na escuridão, os zimbros petrificados sob o pó da estrada...
- Lisette - gritou ela -, belisca o Phil, que está quase a dormir!
- Ela fez-me sangue! - choramingou Philippe. - Sarnenta! Até me chegaram
as lágrimas aos olhos!
- É verdade, é verdade! - exclamou Vinca com uma voz aguda. - Ela até te
fez chegar as lágrimas aos olhos!
Ela ria, enquanto ele esfregava o braço, sob o casaco de flanela branca, e
ia notando nas faces de Vinca, nos seus olhos, brilhar a chama do vinho
espumante e
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uma espécie de loucura prudente, que nada o tranquilizava.
Um pouco depois, uma sereia mugia muito ao longe sobre as ondas
negras do mar, enquanto uma Sombra parou de remexer, na superfície da
mesa de jogo, o ventre pontilhado dos dominós.
- Nevoeiro no mar...
- O farol de Granville ainda há pouco estava a varrer algodão - disse uma
outra Sombra.
Mas a voz da sereia acabava de rememorar os mugidos da buzina de um
automóvel, fugindo pela estrada da costa, e Philippe levantou-se num pulo.
- Voltou a atacá-lo! - troçou Vinca.
Hábil em esconder-se, ela voltou as costas às Sombras, enquanto o seu
olhar acompanhava Philippe como uma queixa...
- Com certeza que não - disse Philippe. - Mas já não posso mais e, se me
dão licença, vou deitar-me... Boa noite, mãe, boa noite, pai,.. Boa noite,
Sr.a Fer-
ret... Boa noite...
- Esta noite dispensamos-te a cega-rega, meu rapaz.
- Se te levassem ao quarto uma chávena de macela
fraquinha?
- Não te esqueças de abrir a janela grande do teu
quarto!
- Vinca, levaste para o quarto do Phil o teu frasco
dos sais?
As vozes das Sombras amigas acompanharam-no até à porta, grinalda
tutelar de flores campestres de suave perfume. Ele trocou com Vinca o
beijo quotidiano, que pousava sempre ao lado da face estendida e
148
deslizava, depois, desde a orelha até ao pescoço, ou no canto penugento
da boca. Logo após, a porta fechou-se, a grinalda rompeu-se e Phil ficou
sozinho.
O seu quarto, escancarado sobre a noite sem luar, recebeu-o mal. De pé,
sob o mosquiteiro de musselina amarela, ele respirou, agressivo e
delicado, o cheiro que Vinca denominava «cheiro a rapaz»: livros
clássicos,
uma mala de couro preparada já para dali a dois dias, as palmilhas de
borracha, sabonete e água-de-colónia.
Não era particularmente grande o seu sofrimento, mas ele experimentava
aquele sentimento de desterro e de fadiga absoluta cujo único remédio é a
inconsciência. Deitou-se rapidamente, apagou o candeeiro e procurou,
instintivamente, o seu lado favorito, contra a parede, onde os seus
desgostos de rapazinho, as suas perturbações de crescimento, tinham
encontrado a noite protectora, o abrigo do lençol mais bem bordado, do
papel florido contra o qual se espraiavam os sonhos trazidos pela lua
cheia, as marés vivas e as tempestades de Julho. Adormeceu
prontamente, mas para sofrer o assalto das mais intoleráveis
manifestações do sonho e das mais tradicionais. Aqui, Camille Dalleray
surgia-lhe com o rosto de Vinca; logo, Vinca, autoritária, reinava sobre ele
com uma frieza impura e de ilusão. Mas, no seu sonho, nem Camille
Dalleray nem Vinca, nenhuma queria recordar-se que Philippe não era
mais do que um rapazinho meigo, desejando somente descansar a cabeça
no ombro, um rapazinho de dez anos...
Ele acordou, viu que o seu relógio marcava meia-noite menos um quarto e
que a sua noite, estragada, se consumira, febril, no meio de uma casa
adormecida.
149
Calçou as sandálias, amarrou na cintura o cordão do seu roupão de banho
e desceu.
A Lua, no seu primeiro quarto, aflorava a falésia. Crescente avermelhado,
ela não derramava luz na paisagem e a óptica giratória do farol de
Granville parecia, a cada clarão vermelho, a cada clarão verde, extingui-la.
Mas a noite, porque estava luar, não absorvia as massas de verdura, e o
reboco das paredes da vivenda, entre as traves falsas, parecia fracamente
fosforescente. Philippe deixou aberta a porta envidraçada e entrou naquela
noite suave como um abrigo seguro e triste. Foi sentar-se no terraço
rebelde à humidade, pisado e abatido o seu solo por dezasseis anos de
férias, donde a pá de Lisette exumava por vezes, antigo e oxidado, o
fragmento de brinquedo, sepultado há mais de dez, doze, quinze anos...
Sentia-se desanimado, instruído em relação a todos. «Tornar-se num
homem deve, talvez, ser isto», pensava ele. A necessidade inconsciente
de aplicar a sua tristeza e o seu saber atormentava-o em vão, como a
todos os jovens atletas, honestos, para os quais a educação laica não
contempla a presença de Deus assistindo às suas provas.
- És tu, Phil?
A voz desceu até ele como uma folha levada no vento. Ele levantou-se,
caminhou sem ruído até à janela da varanda de madeira.
- Sim - murmurou ele. - Então tu não dormes?
- Naturalmente que não. Vou descer.
Ela aproximou-se sem que ele a tivesse ouvido. Ele viu apenas chegar um
rosto claro, suspenso acima de
150
uma silhueta que se confundia com a própria tonalidade da noite.
- Vais ter frio.
- Não. Vesti o meu quimono azul. Aliás, está agradável. Não vamos ficar
aqui.
- Porque não dormes?
- Não tenho sono, creio eu. Não fiquemos aqui, poderíamos acordar
alguém.
- Não quero que desças até à praia a esta hora; constipavas-te.
- Constipar-me não é nada o meu género. Mas não está nada a apetecer-
me a praia, sabes. Vamos passear um bocado, subindo para o outro lado.
Ela falava numa tonalidade de voz ligeiramente mais elevada do que um
fraco murmúrio, e, no entanto, Philippe não perdia uma só das suas
palavras. A ausência de timbre causava-lhe um prazer infinito. Já não era a
voz de Vinca, não era a voz de mulher alguma. Uma presença mínima,
quase imperceptível, no tom familiar, uma ligeira presença sem aspereza,
sem outro desígnio que não fosse o passeio, a véspera tranquila...
Ele embateu num obstáculo e Vinca segurou-o com a mão.
- São os potes dos gerânios, então não os vias?
- Não.
- Eu também não. Mas vejo-os como os cegos vêem; sei que eles estão
ali... Toma cuidado porque deve estar aí um vaso caído... aí ao lado!
- Como é que tu sabes?
- Fixei na ideia que ele estava lá. E vai fazer uma barulheira levada de
todos os diabos... Bum!... que te dizia eu?
151
Aquela tagarelice encantava Philippe. Encontrar Vinca assim, uma Vinca
tão meiga, tão igual, na sombra, a uma certa Vinca de outrora, que não
tinha mais de doze anos e que tagarelava debruçada sobre a areia
molhada, quando o luar fazia reflexos de prata no ventre dos peixes,
durante as grandes pescarias da meia-noite...
- Lembras-te, Vinca, daquela noite em que pescámos, passava da meia-
noite, aquela solha-das-pedras disforme?...
- E a tua bronquite. Ficámos proibidos de pescar à noite... Escuta!...
Fechaste a porta envidraçada?
- Não...
- Queres que se levante vento e a porta bata? Ah, se eu não me
preocupasse com tudo...
Ela desapareceu, voltando logo, como uma sílfide, em passos tão leves
que Phil adivinhou a sua volta pelo perfume que o vento empurrava à
frente dela...
- A que cheiras tu, Vinca? Como estás perfumada!
- Fala mais baixo. Tinha calor; dei uma fricção antes de descer...
Ele não lhe deu resposta, mas a sua atenção, desperta, registou que
Vinca, efectivamente, pensava em tudo.
- Passa, Phil, eu seguro a porta. Não vás agora enredar-te nas plantas!
Nos socalcos do solo, terra trabalhada que subia a encosta, podia
esquecer-se a proximidade do mar. Uma muralha rasteira de tomilho
arranhava as pernas nuas de Philippe, que tacteava a passagem entre os
renques de bocas-de-lobo aveludadas.
- Sabes, Vinca, que na horta não se ouvem os ruí-
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dos provenientes da casa por causa dos molhos de lenha?
- Mas ninguém faz, agora, barulho lá em casa, Phil.. E nós não estamos a
fazer nada de mal.
Ela acabara de apanhar uma pequena pêra caída, precocemente
amadurecida e já bichada.
Ele ouviu-a morder o fruto e, depois, cuspir.
- Que estás a fazer? Estás a comê-la?
- É uma das pêras amarelas. Mas não estava boa para ta dar.
Uma tal liberdade de espírito não bastou, todavia, para dissipar a vaga
desconfiança de Philippe. Achou Vinca um pouco terna de mais, ligeira e
serena como um espírito, e acudiu-lhe à ideia, subitamente, aquela alegria
estranha, como que fugida do túmulo, aquela amabilidade insensata que
tilinta no rir das religiosas. «Como eu queria ver o seu rosto», disse ele
para consigo.. E estremeceu ao imaginar que a voz sem timbre, as
palavras de rapariguinha alegre, poderiam brotar da máscara convulsa,
fulgurante, da sua cólera e das suas belas cores, que haviam afrontado o
seu rosto naquele ninho dos rochedos...
.- Vinca, escuta... Vamos voltar,
- Se tu quiseres. Ainda um instante, só mais um momento... Estou bem. E
tu? Estamos ambos tão bem... Como é fácil viver a noite! Mas não nos
quartos. Oh!, desde há uns dias para cá que detesto o meu quarto. Aqui
não sinto medo... Um insecto luminoso! E a estação já vai tão adiantada!
Não, não vamos apanhá-lo. Olha, que sobressalto o teu! Não foi nada,
apenas um gato que passou. É à noite que os gatos apanham os
arganazes...
153
Ele distinguiu uma risada e o braço de Vinca envolveu-lhe a cintura. Tinha
os ouvidos atentos a todos os sopros, a todos os ramos que quebravam,
seduzido, malgrado seu, por todo aquele murmurar continuado que não
parava. Longe de se desorientar na sombra, Vinca guiava-se como num
ambiente amigo e conhecido, dando explicações a Philippe, fazendo-lhe as
honras da hora da meia-noite, guiando-o como a um cego.
- Minha querida Vinca, voltamos...
Ela respondeu-lhe com um pequenino «oh!» de sapo.
- Tu chamaste-me querida Vinca! Ah!, porque não é noite constantemente?
Agora, neste momento, tu não és o mesmo que me enganou, eu não sou a
mesma que sofreu um tão grande desgosto... Ah!, Phil, não vamos voltar
imediatamente, deixa-me ser um pouco feliz, um pouco amorosa, segura
de ti como sou nos meus sonhos, Phil... Phil, tu não me conheces.
- Pode ser que não, minha Vinca adorada... Tropeçaram num montículo de
feno, rijo, que estalou.
- É o trigo-mouro batido - disse Vinca. - Estiveram a malhá-lo ainda esta
tarde.
- Como o sabes?
- Enquanto discutíamos, não ouvias o bater dos manguais? Eu ouvi-o.
Senta-te, Phil.
«Ela, ela ouviu-o... Ela estava furiosa, ela bateu-me na cara, ela disse-me
palavras sem nexo - mas ela ouviu o bater dos dois manguais!...»
Involuntariamente, ele comparou àquele alerta de
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todos os sentidos femininos a recordação de uma outra habilidade
feminina...
- Não te vás embora Phil! Eu não fui má, eu não chorei nem me queixei!...
A cabecita redonda de Vinca, os seus cabelos bem cuidados e muito
iguais, rolaram sobre o ombro de Philippe, enquanto o calor de uma face
aquecia a sua face.
- Beija-me Phil!, peço-te, estou a pedir-te...
Ele beijou-a, misturando ao seu próprio prazer o fraco atractivo da extrema
juventude, que não procura mais do que satisfazer os seus próprios
desejos, e a memória sempre exacta de um outro beijo, que se roubou
sem lhe pedirmos. E ele conheceu contra os seus lábios a forma da boca
de Vinca, o gosto que ela retinha ainda do fruto há pouco mordiscado, a
diligência posta pela sua boca abrindo-se, pronta a descobrir e a
prodigalizar o seu segredo - e ele cambaleou na sombra. «Espero»,
pensou ele, «que estejamos perdidos. Oh!, vamos perder-nos depressa,
porque é preciso, pois que ela nunca quererá que seja de outro modo...
Meu Deus, como a boca de Vinca é inevitável e profunda, e sabedora
desde o primeiro choque... Oh!, vamos perder-nos, depressa, depressa...»
Mas a posse é um milagre laborioso. Um braço furioso, que ele não
conseguia soltar, prendia a nuca de Philippe. Ele sacudia a cabeça para se
libertar, e Vinca, julgando que Philippe pretendia interromper o beijo,
apertava de cada vez mais. Ele conseguiu, por fim, afastar o pulso, firme
junto da sua orelha, e repelir Vinca para o monte de trigo. Ela soltou um
gemido e ficou imóvel, mas, quando ele se inclinou, envergonha-
155
do, sobre ela, voltou a agarrá-lo e a alongá-lo sobre si. Então, foram as
tréguas, ternas, encantadoras, quase fraternas, nas quais cada um
dispensou ao outro um pouco de piedade e afabilidade, a discrição dos
amantes experimentados. Philippe conservava sobre o seu braço reclinado
uma Vinca invisível, enquanto a sua mão livre alisava uma pele da qual ele
não ignorava nem a suavidade nem as marcas, traçadas em relevo pelas
pontas das espinhas e as anfractuosidades dos rochedos. Ela esboçou
uma risada e pediu-lhe, muito baixinho:
- Deixa essa minha bela esfoladela... Já basta o trigo malhado, que não é
nada macio...
Ele sentia a sua respiração tremer na sua voz e tremia também.
Constantemente, sem cessar, voltava ao que menos conhecia dela: a sua
boca. Até que decidiu, enquanto recuperava o fôlego, levantar-se de um
salto e voltar para a vivenda, a correr. Mas, ao afastar-se de Vinca,
assaltou-o uma crise de esgotamento físico, de horror ao ar fresco e aos
braços vazios... E voltou para ela com um entusiasmo prontamente imitado
e que lhes misturou novamente os joelhos. Descobriu então forças para
lhe chamar «Vinca adorada» com uma modulação de humildade
suplicante, rogando-lhe, simultaneamente, que recordasse e esquecesse o
que acabara de alcançar dela. Ela compreendeu e não exteriorizou mais
do que um mutismo irritado, talvez fatigado, numa pressa que a
mortificava. Ele escutou a breve queixa de revolta, deu-se conta do ataque
inesperado e involuntário, mas o corpo que ele ofendera não se esquivou,
recusando qualquer indulgência.
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CAPÍTULO XVII
Phil dormiu pouco mas profundamente, levantando-se com a sensação de
que a casa se encontrava vazia. Mas, lá em baixo, viu o guarda e o seu
cão nostálgico, e os seus aparelhos de pesca, e ouviu, vindo do primeiro
andar, o ruído da tosse matinal de seu pai. Escondendo-se entre a sebe de
zaragatoas e a parede do terraço, espiou a janela de Vinca. Uma brisa
irrequieta afastava as nuvens, que se dissolviam no seu sopro; voltando a
cabeça, Phil avistou as velas cancalesas, inclinadas sobre pequeninas
ondas, curtas e agitadas. Todas as janelas da vivenda dormiam ainda.
«Mas ela, será que está dormindo? Dizem que elas choram, depois. Talvez
Vinca esteja a chorar. Agora é que seria preciso ela descansar sobre o
meu braço, como fazíamos na praia. Então dir-lhe-ia: Não é verdade. Nada
aconteceu! Tu és a minha Vinca de sempre. Não, esse prazer, que, aliás,
não foi um grande prazer, não foste tu quem mo deu. Nada é verdade,
nem sequer esse gemido e esse cântico, começado e logo interrompido,
que te fizeram, num repente, pesada e comprida como uma morta nos
meus braços. Nada é verdade. Se, esta noite, eu desaparecer no cimo da
estrada branca, a
157
caminho de Ker-Anna, se eu reentrar somente antes da aurora de amanhã,
hei-de esconder-me tão bem que tu não o hás-de saber... Então, iremos
passear na costa e levaremos Lisette connosco. Ele nem imaginava que
um prazer mal concebido, mal recebido, era uma obra que poderia
aperfeiçoar-se. A nobreza da juventude conduzia-o somente ao
salvamento do que era preciso não deixar perecer - quinze anos de vida
encantada, de ternura ímpar, os seus quinze anos de gémeos puros e
amorosos.
«Dir-lhe-ei: Imaginas que o nosso amor, o amor de Phil-e-Vinca, terá como
resultado algo diferente daquele leito de trigo batido, salpicado de fetos?
Pois ele florescerá também noutro lado que não sejam o leito do teu quarto
ou do meu. É evidente, é certo. Acredita-me! Pois se uma mulher que eu
não conhecia me deu aquela alegria tão séria, que ainda agora me faz
estremecer, longe dela, palpitando como o coração da enguia arrancado
vivo à enguia, o que não fará, por nós, o nosso amor? É evidente, é certo...
Mas se eu me enganar, não é preciso que tu saibas que me engano...»
«Dir-lhe-ei: É um sonho antecipado, um delírio, um suplício durante o qual
me mordias a mão, pobre e pequeno companheiro, auxiliar corajoso da
minha cruel tarefa. Era para ti um sonho, talvez terrível; para mim uma
tremenda humilhação, uma voluptuosidade pior do que as surpresas da
solidão. Mas nada estará perdido se esqueceres e se eu próprio eliminar
uma recordação, já misericordiosamente velada pela noite... Não, eu não
apertei as tuas costas flexíveis entre os meus joelhos; mas toma-me às
cavalitas sobre os teus rins e vamos correr pela areia fora...»
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Quando ele ouviu, no varão dos seus cortinados, deslizarem as cortinas,
fez um apelo a toda a sua coragem e conseguiu não voltar a cabeça...
Vinca apareceu entre os dois guarda-ventos, que abriu contra a parede.
Piscou uma e muitas vezes os olhos, acabando por olhar em frente com
uma fixidez passiva. Depois mergulhou as mãos na espessura dos
cabelos, retirando, de toda aquela desordem, uma palhinha seca... O
sorriso e a vermelhidão surgiram-lhe conjuntamente no seu rosto, que ela
emoldurou com os seus cabelos e fitando Philippe. Já perfeitamente
acordada, foi buscar ao seu quarto um jarro de faiança e regou,
cuidadosamente, uns brincos-de-princesa que floriam no parapeito de
madeira. Consultou o céu fresco e azul, promessa de bom tempo, e
começou entoando uma canção de todos os dias. Entre as zaragatoas,
Philippe vigiava, como um homem esperando a ocasião de cometer o
atentado.
«Ela canta... Tenho de acreditar nos meus olhos e nos meus ouvidos; ela
canta! E acabou agora de regar os brincos-de-princesa.»
Nem por um só instante ele pensou que uma tal aparição, resposta ao seu
mais recente voto, o deveria alegrar. Só o marcou a sua desilusão e,
demasiado novo para a analisar, obstinou-se na comparação:
«Uma noite, vim humilhar-me sob esta janela, porque uma revelação
acabava de se abater, fulminante, entre a minha infância e a minha vida
actual. E ela canta, ela canta...»
Os olhos de Vinca, em termos de azul, lutavam vantajosamente com a
tonalidade matinal das águas do
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mar. Ela penteava os cabelos e recomeçava, trauteando de boca fechada,
a sua canção, o seu vago sorriso...
«Ela canta. Ela será bela ao almoço. Ela há-de gritar: Lisette, belisca-o até
fazer sangue! Nem um grande bem, nem um grande mal... ei-la
indemne...»
Reparou que Vinca, dobrada para a frente, torturava a garganta no
parapeito de madeira, esticando-se para o quarto de Philippe.
«Se eu aparecer à janela do lado, se eu saltar a balaustrada para me
juntar a ela, logo terei os seus braços ao pescoço...
»Ó tu a quem eu chamava meu mestre, porque me pareceste, por vezes,
mais maravilhoso do que esta rapariga, que é tão natural? Tu partiste sem
me teres dito tudo. Se tu não me tiveste senão pelo orgulho dos teus
doadores, tu terás então piedade de mim, pela primeira vez, hoje
mesmo...»
Da janela vazia vinha um trinado suave e feliz que mal o alcançava. E ele
nem se lembrava de que, decorridas algumas semanas, a criança que
cantava poderia chorar, desorientada, condenada à mesma janela.
Escondeu o rosto na curva do seu braço dobrado e olhou para dentro, para
a sua própria pequenez, a sua queda, a sua benignidade. «Nem herói,
nem carrasco... Um pouco de dor, um pouco de prazer... Não lhe teria
dado mais do que isso... do que isso...»

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