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NATAL-RN
2021
MIDIÃ ELLEN WHITE DE AQUINO
NATAL-RN
2021
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA
Banca Examinadora
_____________________________________
Profa. Dra. Wiebke Röben de Alencar Xavier – UFRN
Presidente
_____________________________________
Profa. Dra. Rosanne Bezerra de Araújo – UFRN
Examinadora Interna
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Profa. Dra. Juliane Vargas Welter – UFRN
Examinadora Interna
_____________________________________
Profa. Dra. Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne – UFPB
Examinadora Externa
_____________________________________
Profa. Dra. Mona Lisa Bezerra Teixeira
Examinadora Externa
A Deus, porque minha fé n’Ele é a força que me mantém firme todos os dias.
À minha orientadora, professora Wiebke, pelo cuidado, delicadeza e
cordialidade com que sempre me atendeu.
Às professoras Rosanne, Juliane e Luciana, pelas contribuições dadas à
minha pesquisa na qualificação.
À minha família, pela paciência, cuidados e compreensão.
À minha valiosa amiga Keynesiana, por todas as palavras de apoio e
encorajamento, e por sempre fazer uma leitura cuidadosa dos meus trabalhos.
À Jaíza, amiga querida com quem dividi momentos de alegria e angústia
durante todo o tempo que compartilhamos a mesma casa e por quem tenho grande
apreço.
Aos estimados Jéssica e Ramon, amigos conquistados nas salas de aula do
PPgEL, os quais levo com respeito e carinho para a vida.
Aos meus professores.
Muito Obrigada!
XIII
As esperadas palavras
que ficaram por dizer,
não vieram, não partiram,
deixaram-se apodrecer
− Palavras ajuizadas,
velhotas e resguardadas
com medo de se perder.
Dias feitos de sonhar,
gastos a mastigar histórias
que só souberam morar
dentro das nossas memórias;
Esta tese apresenta um estudo comparativo entre as literaturas das escritoras Maria
Judite de Carvalho (1921, Lisboa – 1998, Lisboa) e Lygia Fagundes Telles (1923, São
Paulo –), tendo por objetivo analisar como o espaço social da autoria feminina é
definido no campo literário luso-brasileiro e como os espaços narrativos são
construídos nos contos “Além do Quadro” e “As Palavras Poupadas”, da autora
portuguesa, “Venha Ver o Pôr do Sol” e “Noturno Amarelo”, da escritora brasileira.
Para tanto, o trabalho foi estruturado a partir de dois eixos teórico-metodológicos: o
primeiro, com base nas ideias sobre campo literário e habitus de Pierre Bourdieu
(1996, 2003, 2012, 2015), investiga-se por um viés sociológico a trajetória da autoria
feminina em contextos heterogêneos para se compreender a maneira como as
autoras interpretaram a sua época e conquistaram um lugar de consolidação no
campo literário luso-brasileiro. A segunda perspectiva de análise tem como foco a
construção do espaço enquanto categoria narrativa, objetivando examinar como os
espaços heterotópicos são representados, de acordo com Michel Foucault ([1967]
2001). Portanto, analisa-se os lugares heterotópicos como sanatório, asilo, cemitério,
espelho e jardim, observando as relações entre espaço e poder simbólico em
confronto com os corpos-espaços femininos representados nos contos. Por
considerar-se os corpos das personagens femininas analisadas também como
heterotopias, algumas tipologias foram traçadas visando a compreensão de questões
relativas à violência simbólica que o poder androcêntrico impõe ao corpo-espaço das
mulheres, são elas: corpo-espaço doente, corpo-espaço insubmisso, corpo-espaço
dócil, corpo-espaço órfão, corpo-espaço coisificado, corpo-espaço cativo e corpo-
espaço culpado. A partir da análise observa-se, portanto, que os espaços
representados nas narrativas juditianas e lygianas refratam o contexto de opressão
do sujeito feminino, são contraespaços que unidos ao simbólico traduzem o medo e a
insegurança, o silêncio e a solidão, a precisa angústia da escritura feminina.
This dissertation presents a comparative study between the literary work of the writers
Maria Judite de Carvalho (1921, Lisbon – 1998, Lisbon) and Lygia Fagundes Telles
(1923, São Paulo –) and it aims at analyzing how the social space of female authorship
is defined in the Portuguese-Brazilian literary field and how the narrative spaces are
constructed in the short stories “Além do Quadro” and “As Palavras Poupadas”, by the
Portuguese author, “Venha Ver o Pôr do Sol” and “Noturno Amarelo”, by the Brazilian
writer, respectively. Therefore, this work was structured from two theoretical-
methodological axes: the first one, based on Pierre Bourdieu (1996, 2003, 2012, 2015)
and the ideas of the literary field and habitus, examines, from a sociological
perspective, the trajectory of female authorship in heterogeneous contexts in order to
understand the way in which Carvalho and Telles interpreted the period they lived as
well as how such writers attained a place of consolidation in the Portuguese-Brazilian
literary field. The second perspective of analysis focuses on the construction of space
as a narrative category, as it seeks to examine how heterotopic spaces, according to
Michel Foucault ([1967] 2001), are represented. Therefore, heterotopic places such as
sanatoriums, asylums, cemeteries, mirrors, and gardens were studied, taking the
relations between space and symbolic power in confrontation with the female bodies-
spaces depicted in aforementioned short stories into consideration. Moreover, for the
bodies of the female characters looked into this research are also viewed as
heterotopies, some typologies were drawn in order to understand issues related to the
symbolic violence that androcentric power imposes on women's body-space, for
instance: ill body-space, unruly body-space, docile body-space, orphan body-space,
objectified body-space, captive body-space, and guilty body-space. Through the
analysis, it was thus observed that the spaces represented in the Juditian and Lygian
narratives resound the context of oppression towards the female subject, once they
are counter spaces that, when placed with the symbolic, translate fear and insecurity,
silence and loneliness, as well as the precise anguish of women’s scripture.
Cette thèse présente une étude comparative entre les contes des femmes écrivains
Maria Judite de Carvalho (1921, Lisboa – 1998) et Lygia Fagundes Telles (1923, São
Paulo –), en visant à analyser comment l'espace social de l'écriture féminine est définie
dans le champ littéraire luso-brésilien et comment les espaces narratifs sont construits
dans les contes “Além do Quadro” et “As Palavras Poupadas”, par l'auteur portugais,
“Venha Ver o Pôr do Sol” et “Noturno Amarelo”, de l'écrivain brésilien. À cette fin, le
travail a été structuré à partir de deux axes théoriques et méthodologiques: le premier,
basé sur les idées de Pierre Bourdieu sur le champ littéraire et l'habitus (1996, 2003,
2012, 2015), est étudiée dans une perspective sociologique la trajectoire des auteurs
féminins dans des contextes hétérogènes pour comprendre comment les auteurs ont
interprété leur époque et conquis une position de consolidation dans le champ littéraire
luso-brésilien. La deuxième perspective d'analyse se concentre sur la construction de
l'espace en tant que catégorie narrative, visant à examiner la manière dont les espaces
hétérotopiques sont représentés, en conformité avec Michel Foucault ([1967] 2001).
Par conséquent, les lieux hétérotopiques tels que le sanatorium, l'asile, le cimetière, le
miroir et le jardin sont analysés, visant à observer les relations entre espace et pouvoir
symbolique en confrontation avec l'espace du corps féminins représentés dans les
contes. En considérant les corps des personnages féminins analysés également
comme des hétérotopies, certaines typologies ont été établies afin de comprendre les
questions liées à la violence symbolique que le pouvoir androcentrique impose à
l'espace du corps féminins: espace du corps malade, espace du corps rebelle, espace
du corps docile, espace du corps orphelin, espace du corps objectivé, espace du corps
captif et espace du corps coupable. L'analyse montre que l’espaces représentés dans
les narratifs juditianas e lygianas réfracter le contexte d'oppression du sujet féminin,
sont des contre-espaces qui s'unissent pour traduire symboliquement la peur et
l'insécurité, le silence et la solitude, l'angoisse précise de l'écriture féminine.
Introdução ................................................................................................................ 11
INTRODUÇÃO
construídos nos contos das escritoras? Como essas autoras representam a voz e o
espaço do feminino em suas narrativas?
Com o objetivo de comparar e analisar como o espaço social da autoria
feminina é definido no campo literário luso-brasileiro e como os espaços narrativos
são construídos em contos de Maria Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles,
foram traçadas duas perspectivas de investigação para o estudo dessa categoria. Na
primeira, a abordagem do espaço seguirá a linha sociológica baseada principalmente
nas ideias de Pierre Bourdieu (1996) e Pascale Casanova (2002) sobre o campo
literário e como ele se estrutura. Na busca por se compreender como as motivações
externas são relevantes para a produção literária, vasculha-se na história o lugar da
autoria feminina para interpretar-se o processo de criação das escritoras Maria Judite
de Carvalho e Lygia Fagundes Telles em suas tomadas de posições enquanto
produtoras de material simbólico. Trata-se de observar de que maneira essas
escritoras foram inseridas nos seus campos literários para refletir-se como essas
autoras interpretaram a sua época.
A ideia de campo literário aqui discutida baseia-se principalmente nos
conceitos de Bourdieu conforme são abordados no livro As Regras da Arte (1996),
publicado em francês no ano de 1992. Embora o autor tenha focado seus estudos em
um campo literário europeu e exclusivamente masculino, suas reflexões e método a
respeito do funcionamento do universo literário também se aplicam ao lugar da autoria
feminina, visto que este também faz parte de um campo literário universal, de acordo
as definições que Casanova (2002) apresenta em seus estudos sobre a ideia de
“literariedade” e “universalidade”.
A segunda perspectiva de análise concentra-se no âmbito da construção do
espaço enquanto categoria narrativa, com vistas a examinar como os espaços
heterotópicos são representados – observando-se as fronteiras de reconhecimento
extratextual –, conforme as definições de Michel Foucault (2001, 2013). O
pensamento foucaultiano sobre heterotopia refere-se aos espaços outros, que se
diferenciam e insurgem contra os espaços reais de aceitação social. São os lugares
de transgressões, que são concebidos para servirem de abrigo, retirada, esconderijo,
descanso temporário ou eterno. São “contraespaços” por se distanciarem
simbolicamente dos lugares tidos como padrões ou normais. Espaços outros, que
surgem como oposição ao espaço comum de prestígio e real.
14
CAPÍTULO 1
PONTOS CONCEITUAIS SOBRE ESPAÇO E LITERATURA
A categoria do espaço, que por muito tempo ficou à margem nos estudos
literários, vem conquistando o interesse dos pesquisadores contemporâneos
adquirindo a cada dia novas contribuições e ampliando a sua relevância enquanto
objeto de teorização em literatura. Luis Alberto Brandão (2013), em seu pertinente
trabalho sobre as Teorias do Espaço Literário, aponta para a complexidade que existe
em torno da conceitualização do termo devido ao seu caráter transdisciplinar, no qual
assume funções diferentes em cada área de conhecimento, dependendo da
perspectiva que é abordado. Mesmo no campo dos estudos literários, a categoria do
espaço mostra-se versátil, existindo “no escopo da Teoria da Literatura, diferentes
concepções de espaço, as quais nem sempre revelam, explícita e contrastivamente,
suas idiossincrasias, mesmo em casos em que estas geram perspectivas teóricas
conflituosas ou incompatíveis” (BRANDÃO, 2007, p. 208).
Na literatura, essa categoria atua como um conjunto de referências do mundo
exterior que podem ser concretas ou abstratas, e cumpre uma significativa posição
para o desdobramento dos efeitos de sentidos dispostos na obra. Por esse motivo, se
faz necessário problematizar esse elemento narrativo como forma de interpretação da
linguagem literária e da sociedade. Portanto, conforme se pode observar no verbete
contido no Dicionário de teoria da narrativa, de Reis & Lopes (1988, p. 204), o espaço
“constitui uma das mais importantes categorias da narrativa, não só pelas articulações
20
Natália Nunes
Michel Foucault
contraespaços denunciam o submundo camuflado pela ilusão dos espaços ideais, ou,
ao contrário, servem de espelho para a criação de novos espaços sociais, idealizados
pela perfeição: “Isso seria a heterotopia não de ilusão, mas de compensação; e me
pergunto se não foi um pouquinho dessa maneira que funcionaram certas colônias”
(FOUCAULT, 2001, p. 421).
A heterotopia, de acordo como Foucault (2001, 2013) a propõe, é um caminho
para se refletir sobre os espaços situados nos locais mais isolados da sociedade, e
ainda sobre os indivíduos que, de alguma maneira, habitam ou frequentam esses
contraespaços. É ainda uma possibilidade de reflexão para se interpretar os espaços
metafóricos, como o espelho, que com suas diferentes possibilidades semânticas são
análogos aos mistérios da condição humana e do mundo exterior, do qual é referência.
Michel Foucault
CAPÍTULO 2
O ESPAÇO DA AUTORIA FEMININA NO CAMPO LITERÁRIO
tenho um livro pronto! Sim senhor! Um livro com catorze contos! Dei-
o a um editor, mas o diabo do homem, antes de ler os originais, cismou
que a minha cara devia ser muito mais interessante do que os contos
todos e por isso decidiu botar o meu retrato no livro. Com bons modos,
disse-lhe que achava isso muito ridículo. Insistiu. Fiquei zangada;
minha cara nada tem a ver com a obra. E tem, não tem, aparece, não
aparece… Conclusão: sugeri que botasse o retrato da avó dele. Nesse
ponto, resolveu não falar mais nisso. Mas aí eu já estava de mau gênio
e exigi a papelada de volta. Agora estou com tudo aqui na gaveta.
escritores são sujeitos “no que são e no que fazem, da imagem que têm de si
próprios e da imagem que os outros e, em particular, os outros escritores e artistas,
têm deles e do que eles fazem” (BOURDIEU, 2015, p. 108, grifo nosso). Vê-se então
que na busca por um lugar de reconhecimento dentro do campo literário, para as
mulheres a anuência do ofício da escrita era duplamente exaustivo e desonesto.
Na construção da imagem de si, historicamente, no universo feminino
prevaleceu o que o outro, o homem, determinou; é o que mostra Simone de Beauvoir
em O segundo sexo ([1949] 2016) e também Michelle Perrot em As mulheres ou os
silêncios da história (2005). A percepção da formação de um ser social “mulher”
observada por ela mesma é uma conquista relativamente recente, a história das
mulheres contada pela óptica das próprias mulheres remonta ao século XX. Até então
tudo que se sabia sobre o ser feminino era contado a partir do olhar do homem; logo,
essa história foi marcada por longos intervalos de silêncio e invisibilidade.
As mulheres estiveram ausentes em grande parte do relato histórico da
humanidade, sua voz abafada por meio de um “oceano de silêncio”, como descreve
Perrot (2005, p. 9), foi marcada por um passado em que os registros nos dados e
documentos oficiais dos seus possíveis grandes feitos, além da função da procriação,
foram praticamente nulos. Tudo foi registrado de modo a exterminar os traços da
memória coletiva feminina, como se “elas estivessem fora do tempo, ou ao menos fora
do acontecimento” (PERROT, 2005, p. 9).
De acordo com Perrot (2005), o silêncio foi o primeiro mandamento feminino,
em virtude da sua posição de subordinação: a mulher sábia, determinam eles, não
deve utilizar a boca para falar, seus lábios precisam estar sempre fechados ou apenas
semiabertos para sorrir suavemente. Silenciar, para as mulheres, era algo ensinado
desde o nascimento pelas instâncias de poder religiosas, políticas e pelas normas de
comportamento social. Era ainda uma forma de disciplina e de apreensão do mundo,
uma forma de abafar as dores, os abusos, as coerções sociais. Cativas em suas
casas, conventos ou internatos, elas eram instruídas a ocultar-se:
interrogar sobre o porquê de, até o século XVIII, não existir uma produção literária
feminina ininterrupta e reconhecida.
A possível resposta apontada por Woolf é semelhante a constatada por
Perrot: os escritos femininos perderam-se nas velhas gavetas, submergiram nas
malas extraviadas, queimaram-se junto com as memórias esquecidas, viraram poeira
nos quartos e casas abandonadas pelos mortos sem descendentes. Perrot (2007) diz
que os textos escritos por mulheres eram ínfimos por duas razões, primeiro porque
para elas o direito à palavra foi dado muito tardiamente, visto que a escolarização
feminina foi uma conquista lenta. Por conseguinte, quando começaram a escrever,
seus textos eram pouco valorizados por si mesmas, então em muitos casos “são elas
mesmas que destroem, apagam esses vestígios porque os julgam sem interesse.
Afinal, elas são apenas mulheres, cuja vida não conta muito” (PERROT, 2007, p. 17).
Assim, os lapsos na história que tornam obscuras as existências de escritoras
como Safo (580 a.C), da Grécia antiga, e de todas as outras que viveram em épocas
e espaços diferentes deixaram despercebidas essas vozes que foram se abafando
pelo decurso do tempo. Quem se dedicará a ir em busca desses textos antigos e
perdidos? Quem se prontificará a revirar pelo avesso a história em busca de vestígios
da voz feminina? É o que Woolf (2019, p. 10) questiona para refletir que “apenas
quando pudermos avaliar o modo de vida e a experiência de vida tornados possíveis
para a mulher comum é que poderemos explicar o sucesso ou o fracasso da mulher
incomum como escritora”.
Os ensaios de Virginia Woolf do início do século XX, que tratam da literatura
escrita por mulheres, são precursores de uma crítica feminista que só se desenvolveu
anos mais tarde. Em Um teto todo seu (1990; 2014), um dos seus textos mais
relevantes sobre a temática, essa escritora inglesa faz uma notável reflexão a respeito
do espaço dado ao feminino no campo literário. A ideia que permeia esse ensaio, e
que é também a tese mais levantada pela autora, faz alusão ao fato de que as
mulheres precisavam de dinheiro para conseguirem manter a si próprias e a profissão
literária; elas careciam de um espaço que pertencesse somente a elas para realizarem
seu ofício sem as interpelações da vida doméstica.
O espaço doméstico é retratado pela autora como o único lugar no qual as
mulheres podiam trabalhar, uma vez que viviam reclusas em suas casas, por serem
proibidas de atuarem em espaços públicos. Portanto, esse ambiente teve um forte
poder sobre as mentes das escritoras, influenciando profundamente a sua criação:
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e liberdade. Woolf entendia que o mercado de bens simbólicos tinha suas regras e
que eram extremamente rigorosas para as mulheres, por isso ela enfatizava tão
impetuosamente a necessidade de a mulher escrever sem os dramas que
estigmatizavam seu sexo, retirando o foco das situações emocionais, ampliando-o
para o campo político e intelectual. Segundo a ensaísta, era preciso desviar as
palavras “do centro pessoal, que a absorvia de todo no passado, para o impessoal,
tornando-se seus romances naturalmente mais críticos da sociedade e menos
analíticos das vidas individuais” (WOOLF, 2019, p. 17).
Essa mesma percepção de que o escritor deveria ser um porta voz do seu
tempo e da sociedade também pode ser vista em Bourdieu (2003), para quem a
criação literária é um processo que agrega o habitus do escritor com a “posição” deste
no campo literário. Espaço este que é fundamentado a partir de duas estruturas: a
primeira corresponde ao lugar das “posições” onde ficam os produtores das obras e a
segunda diz respeito ao espaço da própria obra literária, isto é, o campo das “tomadas
de posição”, o qual pode se manifestar por meio de uma temática, de uma escolha
estilística ou linguística, etc.; sempre abarcando as esferas éticas e estéticas que
permeiam o processo de criação.
Por apresentarem um “conjunto estruturado” entre as relações dos produtores
com o campo literário, esses dois espaços são indissociáveis. Assim, no campo
literário acontece um entrelaçamento de interesses no qual as posições do escritor
devem ser precisas, expressamente definidas, de modo que seja possível depreender
como determinados temas são abordados e urdidos nas suas produções: como esse
posicionamento do autor é refratado nas obras? De que maneira a posição do escritor
interfere nas suas práticas sociais e no seu desenvolvimento no interior do campo
literário?
Enquanto o espaço das tomadas de posição é o lugar das referências e
assimilação do tempo histórico, dos eventos que marcam uma época e são comuns
aos envolvidos no campo, o espaço da posição é fundamentado em uma orientação
que marca a trajetória do escritor e torna conhecida a sua existência de artista. A partir
dessa distinção, o movimento no campo é moldado na forma de um jogo entre
posições opostas e tomadas de posição díspares que acirram o campo literário,
travando-se várias lutas simbólicas.
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sensações contidas, com as palavras não ditas, sujeitas a vontade do outro. Segundo
Zolin (2005, p. 190), ao trazer como exemplos as personagens criadas por escritores
homens, Millett enfatiza como “a exploração e a repressão feminina permeiam as
descrições dos papéis sexuais nas novelas”.
Não é difícil encontrar em diversas narrativas, ditas canônicas e escritas por
homens, a categorização do feminino em “conotações positivas e negativas” (ZOLIN,
2005, p. 190) que partem das estruturas sociais instituídas no campo de poder, as
quais são ditadas por padrões do patriarcalismo, que estão sempre empenhados em
determinar o comportamento feminino. Dentro da gama de estereótipos de
conotações negativas estão as mulheres cortesãs, adúlteras, perigosas, personagens
terrivelmente sedutoras que são construídas para arruinar o percurso do herói, quando
não, são megeras ou fofoqueiras capazes de destruir a honra dos bons homens. Do
outro lado estão as personagens que guiam e salvam as almas dos heróis destruídos
pelos percalços do enredo; são as mulheres anjo, indefesas, incapazes, exemplos de
resignação e respeito, boas filhas, excelentes mães e esposas dedicadas, obedientes,
isto é, aquelas que possuem um conjunto simplório de acepções positivas.
Esse modelo de representação do feminino era a continuação de uma
conjuntura formada no campo de poder que contaminava a literatura quando esta
reproduzia valores concebidos a partir de uma visão androcêntrica permeada por
mitos sobre a feminilidade. Assim, nessas narrativas tudo é construído “segundo um
direcionamento masculino”, conforme explica Zolin (2005), capaz de influenciar
negativamente tanto a construção narrativa quanto o leitor e, especialmente, a leitora,
que passa a ler, mesmo que “inconscientemente, como um homem” (ZOLIN, 2005, p.
190).
Todo esse debate, instigado a partir das ideias de Millett (1970), colocou em
pauta diversos posicionamentos sobre o cenário sócio-histórico que envolve o
feminino, os quais foram cruciais para a construção de um novo lugar para as
produções literárias e intelectuais das mulheres no campo literário. As tendências da
crítica feminista que se desenvolveram posteriormente, tanto na Europa quanto na
América, desmistificaram valores e verdades difundidos pela tradição masculina
quanto a representação feminina no campo da cultura e se dedicaram,
eminentemente, às obras produzidas por mulheres.
Na Europa, especificamente no campo literário francês, a crítica feminista teve
duas vozes de grande influência: Hélène Cixous e Julia Kristeva. Essas duas teóricas
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fomentaram suas pesquisas por meio de um diferencial que propunha novas nuanças
a questões analíticas da tradição feminina: seus estudos preconizavam sobre a busca
de uma linguagem que fosse própria da mulher, por isso suas análises dialogam
constantemente com os campos da Linguística, da Psicanálise e da Semiótica. Com
base nas ideias do filósofo Jacques Derrida e do psicanalista Jacques Lacan, as
teorias de Cixous e Kristeva são elencadas a partir das categorias da différance
(diferença), do imaginário e do simbólico.
Por meio de uma discussão que envolve uma série de oposições binárias,
Cixous (1995; 2010), seguindo a linha da différance de Derrida, traz à reflexão as
construções determinadas pelo campo de poder sobre as diferenças entre
homem/mulher refratados na construção de duplos que são impostos ao feminino, tais
como as habituais oposições: bem/mal, anjo/demônio, sujeito/objeto, ativo/passiva,
destino/liberdade, dominador/dominada, etc. Mostrando como a canônica
representação feminina é envolvida por um discurso falocêntrico, Cixous (1995; 2010)
assume uma posição de defesa por uma écriture féminine (escrita feminina) a qual
seja capaz de desconstruir os preceitos machistas e impulsionar a conquista da
liberdade das mulheres. Para tal, ela propõe uma escritura baseada no corpo, um
texto como metonímia do ser feminino.
O corpo simbólico é um instrumento que fala de si, que fala da mulher para a
própria mulher, que traz arraigado as marcas da natureza feminina, do seu ser natural,
biológico e também histórico e social. Escrever para si mesma é uma forma da mulher
expor sua própria voz, de falar dos seus desejos, de assuntos que por tanto tempo se
fez oculto, é uma maneira de mudar o exterior por meio de uma ação que, para o
pensamento comum, é subversiva. Para Cixous (1995; 2010) a écriture féminine deve
ser insurgente, que mostre a rebeldia da mulher e exclua o discurso do opressor
quando esta constrói seu próprio discurso; suprimindo, assim, as características que
definiram o feminino na história e que os homens escreveram por um longo tempo.
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escreveram e como estas trabalharam com o fictício, com a arte, com o imaginário.
Deste modo, ela explica que a vertente da “leitura feminista” trata da questão de como
as mulheres são retratadas no campo literário, também busca-se analisar em que
momento da história é possível ver a verdadeira face feminina, como a crítica literária
falocêntrica aborda o feminino e de que maneira os editores, leitores, intelectuais,
professores e pesquisadores, isto é, os agentes do campo reagem a essas
representações.
Na perspectiva da “leitura feminista”, as mulheres são instigadas a
interpretarem a visão do dominador sobre elas: o modo como viviam, como suas vidas
foram narradas ao longo da história, o quanto elas estiveram cativas do discurso
patriarcal sendo manipuladas a pensarem de forma machista sobre seu próprio sexo.
Essa versão da crítica buscou, de forma obstinada, uma nova forma de interpretar o
campo literário ao propor e fazer uma atualização dos conceitos preestabelecidos
revisitando teorias e obras. Esse caráter dogmaticamente revisionista foi um dos
pontos mais criticados por Showalter (1994), uma vez que a “obsessão feminina de
corrigir, modificar, suplementar, revisar, humanizar ou mesmo atacar a teoria crítica
masculina mantém-nos dependentes desta e retarda nosso progresso em resolver
nossos próprios problemas teóricos” (SHOWALTER, 1994, p. 28).
A discordância de Showalter (1994) com as teóricas da “leitura feminista”
fundamenta-se no fato de que essa corrente de pensamento se prende e utiliza
conceitos e teorias criadas por homens para realizarem suas pesquisas. No momento
em que se usa como modelo de referências um sistema androcêntrico, nada de novo
é apreendido, não há uma construção de novas ideias para a esfera do feminino. Um
novo espaço de tomadas de posição não deve ser construído, alicerçado em pilares
teóricos que representam exatamente o que está sendo criticado: um discurso
misógino e unilateral, o “discurso dos mestres” (SHOWALTER, 1994, p. 28).
De acordo com Showalter (1994), para encontrar o lugar do feminino no
campo literário fazia-se necessário a construção de uma base teórica efetivamente
concentrada e elaborada pelas mulheres a qual fosse capaz de buscar e desenvolver
seus próprios temas, sua própria tradição. Uma teoria que discorresse sobre
experiências femininas e que fosse capaz de encontrar a voz genuína da mulher. Para
tanto, essa teórica americana apresenta o conceito de “ginocrítica” (gynocritics),
tendência da crítica feminista que é centrada na investigação das produções literárias
de autoria feminina, na qual se desenvolvem pesquisas que estudam a mulher
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enquanto escritora e que buscam responder: sobre o que escrevem? Qual é o estilo
da escritura feminina? Qual gênero literário preferem? Como se estruturam seus
textos, quais os temas são frequentemente abordados?
A ginocrítica também se dispõe a compreender de que maneira a mulher
concebe sua carreira no campo literário, de forma particular ou em grupo, e como se
organiza uma tradição literária produzida por mulheres. Diferentemente da vertente
anterior, esse viés da crítica feminista não se respalda em uma tradição falocêntrica,
mas busca elucidar o lugar da mulher escritora firmada na ideia da “diferença”: em
que se diferencia a literatura produzida por mulheres da escrita por homens? De que
modo as mulheres se distinguem como “grupo literário”? (SHOWALTER, 1994, p. 29).
Patrícia Meyer Spacks, com a obra The female imagination (1975), foi a
primeira pesquisadora a abordar a análise da voz criativa feminina numa perspectiva
ginocrítica. A partir da leitura investigativa de 50 obras escritas por mulheres, essa
teórica observou questões sobre a construção da identidade feminina e como as
escritoras temiam o mercado de bens simbólicos, devido a massiva rejeição ao
trabalho literário feito por elas. Spacks trouxe ao campo das tomadas de posição o
debate em torno do qual centravam as marcas da “diferença” dos escritos femininos
sendo correlacionadas com as condições sociais que envolviam as mulheres no
campo de poder.
Assim sendo, o projeto principal da ginocrítica se construiu em volta da análise
das obras de autoria feminina e da rede de relações que compreendem esse lugar de
produção em determinado campo literário. Para a realização desse trabalho, segundo
Showalter (1994, p. 31), era necessário que as teorias críticas feministas estivessem
bastante embasadas e com critérios de análise bem definidos, capazes de construir
um mapeamento da tradição esquecida ou desprezada. Devendo-se apreender de
maneira consistente como a mulher se relaciona, ou se relacionou ao longo da história,
com os agentes do campo literário e como isso foi relevante para vencer paradigmas
e reafirmar valores essencialmente femininos. Por essa razão a crítica feminista se
desenvolveu de maneiras distintas em cada espaço de produção, de acordo com as
necessidades que cada campo e análise requeriam, contudo, como todas essas
correntes de pensamento almejavam um alvo comum, em vários pontos as teorias
feministas se entrelaçaram e, portanto, se unificaram.
48
linguagem que mesmo dentro do espaço masculino, seja utilizada continuamente para
romper os preceitos de superioridade destes em detrimento da sujeição feminina.
Por terem sido obrigadas a conviverem, por séculos, com o fantasma do
silêncio, com o uso de eufemismos, palavras de desvalorização e simplificação do
gênero, as mulheres adquiriram certa dificuldade e notável pudor para se
expressarem. Deste modo, ao empenhar-se na causa de compreender a linguagem
delas é necessário considerar que está arraigada a essa linguagem uma forte carga
emocional. Não por representar uma fraqueza ou sensibilidade da mulher, como
propagaram os homens, mas por ser a transfiguração de uma luta, de uma linguagem
carregada de adversidade, da palavra como estorvo de uma voz reiteradamente
impedida de estrugir. Logo, o desafio da crítica feminista recai sobre a investigação
do campo lexical do qual as mulheres tiveram/têm acesso e de que forma elas
expressam essas palavras dentro de um contexto cultural, social e ideológico.
Um outro desafio desse viés da crítica é a batalha pela ampliação lexical do
“campo linguístico das mulheres”, conforme aponta Showalter (1994, p. 39):
obras criativas e por isso ainda lutam contra os mais diversos obstáculos para
ganharem a consagração, para terem seus nomes lembrados nas escolas,
Universidades, academias, livrarias e demais lugares de prestígio nos campos
literários.
Semelhante as irmãs de outras nações, as escritoras portuguesas e
brasileiras, que antecederam o século XX, são ilustres desconhecidas do cânone de
suas respectivas pátrias. As literaturas luso-brasileiras são cerceadas pelos padrões
masculinos do fazer literário. Percebe-se nos manuais escolares, nos dicionários, nas
antologias e livros de historiografia literária uma considerável ausência de textos de
autoria feminina; é como se, no período em que decorreram as escolas literárias
apresentadas nesses estudos, não existissem mulheres escrevendo e publicando.
Segundo a pesquisadora Zahidé L. Muzart (1995), essa questão do cânone
está relacionada a vários aspectos da história literária e social que faz com que muitos
escritores e escritoras sejam esquecidos, excluídos e desapareçam das bibliotecas e
livrarias. Uma vez que o cânone literário de um país aborda sobre os escritores
consagrados pelas instâncias de sagração e as obras vistas como canônicas são as
representantes máximas de um campo cultural, por não terem sido agraciadas com a
validação simbólica de seus pares as escritoras luso-brasileiras dos séculos passados
foram negligentemente apagadas da história oficial da literatura.
Observa-se nos estudos realizados por pesquisadoras/es da literatura de
autoria feminina3 que a produção das mulheres sempre foi significativa e múltipla
quanto ao gênero literário, no entanto, para os historiadores não foi uma literatura
relevante para ser contabilizada e unida aos textos consagrados. Isso acontece
porque nos discursos dominantes do campo literário existe a tendência de repetir-se
a falácia de que a escrita de autoria masculina apresenta uma experiência universal
do mundo, enquanto a ótica feminina é sempre representativa de uma experiência
íntima, particular.
De fato, a literatura produzida por mulheres pode apresentar perspectivas
sobre o mundo que divergem da ideologia dominante (masculina), no entanto, esse
olhar da escritora sobre o seu tempo mostra-se como um horizonte a mais a ser
3 Um trabalho importante sobre a temática se encontra no livro Uma história na história: representações
da autoria feminina na História da literatura portuguesa do século XX, de Chatarina Edfeldt.
Também, sobre o assunto, são relevantes as pesquisas encontradas nas coletâneas A mulher na
literatura, organizadas pelo grupo de pesquisa da Anpoll.
53
ancorada nesse parâmetro clichê que pouco se narra ou é oculto da história oficial.
Conforme destaca Anastácio (2002), existe um importante detalhe sobre a origem da
literatura de autoria feminina que comumente é desvalorizado ou não é considerado
como digno de análise, isto é, a intensa circulação de textos criados por mulheres e
que não eram impressos.
No campo literário português, mesmo que apenas algumas escritoras – que
surgiram depois do século XX – recebam um insignificante espaço de destaque no
cânone, as pesquisas acadêmicas revelam que os primeiros textos de autoria feminina
datam do século XV. Segundo Conceição Flores (2010, p .20), foi Garcia de Resende,
em seu Cancioneiro Geral (1516), quem primeiro divulgou os versos das autoras
portuguesas de maneira impressa, no qual consta a presença de doze mulheres:
divulgação boca a boca um pouco do que produziam. De acordo com Anastácio (2002,
p. 430), essas reuniões “constituíram um dos canais de difusão da poesia mais
eficazes do tempo”.
Essas assembleias além de ditarem um estilo literário vinculado a um costume
e uma maneira restrita e nobre de comportar-se, também eram decisivas para
consagrar um autor. Nesses ambientes de discussões intelectuais e de manifestações
literárias, “reputações” eram construídas ou, ao contrário, destruídas. Assim como
nomes eram eternizados ou apagados da historiografia. Esses salões “funcionavam,
também, como verdadeiras instâncias de legitimação” (ANASTÁCIO, 2002, p. 431).
Contudo, já no século XVII obras relevantes para a tradição feminina foram
criadas: de dentro dos conventos, na clausura dos seus aposentos, muitos textos
foram escritos pela pena das mãos feminina. Como esquecer ou silenciar o sofrimento
de amor da Sóror Mariana Alcoforado em suas famosas Cartas Portuguesas (1669)?
Nesse período já é possível enxergar as primeiras contraposições das mulheres
portuguesas aos princípios patriarcais por meio do discurso literário promovido pela
voz das próprias mulheres. Alcoforado escreveu em suas cartas a trajetória do seu
martírio por não ter a reciprocidade do amor que sentia por um oficial francês. A escrita
das cartas se mostra revolucionária por tratar-se de uma freira expondo o ardor de
uma paixão carnal, evidenciando todo o seu desejo pelo homem amado.
[...] não resplandece em todas a luz brilhante das ciências; porque eles
ocupam as aulas, em que não teriam lugar, se elas as freqüentassem,
pois temos igualdade de almas e o mesmo direito ao conhecimento; e
o dizerem que [...] não sabemos entender, ajuizar, aprender e
queremos sempre o pior, é sobra de maldade, e insofrível sem razão,
quando neles há sempre mais que repreender, e nas mulheres muito
que louvar [...] (ORTA, 1993, p. 92).
4Veja-se sobre o assunto o estudo Um século de periódicos femininos (1992), de Ivone Leal, no qual
a autora cita importantes fatos sobre a luta feminista por um espaço no campo literário, além de trazer
nomes relevantes para a produção literária da mulheres em Portugal no período.
57
parte, por serem ‘mulheres’” (EDFELDT, 2006, p. 86). Porém, como as ideias
emancipatórias feministas estavam movimentando os bastidores da sociedade
portuguesa à época e a produção das mulheres, principalmente na imprensa, se
tornava prolífica, muitas escritoras fossem “elas assumidamente feministas ou não,
passam a ser representadas sobretudo como autoras de literatura infantil” (EDFELDT,
2006, p. 86). É o caso da escritora Ana de Castro Osório, declaradamente ativista do
movimento feminista, produziu uma considerável quantidade de contos evidenciando
suas ideias, todavia seu nome aparece apenas como uma escritora de livros infantis.
Ser “uma ilha isolada” para uma mulher escritora representava, mesmo que
de forma falocêntrica, um modo de consagração. Isso acontecia porque não era
comum se atribuir valor literário às obras de autoria feminina, nem se estabelecer
relações de afinidades entre essas obras e as escolas literárias da época, mesmo que
os temas e o estilo utilizados pelas escritoras fossem semelhantes aos tratados pelos
contemporâneos do sexo masculino. Então, quando a crítica considerava que uma
escritora tinha qualidade literária em comparação aos pares masculinos, esta era
colocada em um lugar de distinção como se fosse também um homem, uma vez que
sua literatura não era estilisticamente permeada por uma “essência feminina”.
interpreta uma obra literária. A recuperação das obras de autoria feminina serviu para
que a historiografia oficial fosse questionada e para que o próprio cânone fosse posto
à prova. Ao resgatar as obras das escritoras invisíveis, traz-se à tona o fato de que a
mulher do passado “mesmo em seu papel de sombra de um marido ou do pai,
interessou-se pelas ideias de seu tempo e tentou participar da vida intelectual,
criticando-as” (MUZART, 1995, p. 89).
Apesar de muitos dos textos escritos pelas mulheres do passado serem
considerados medíocres pela crítica tradicional e, muitas vezes, até pela própria crítica
feminista, essas obras não podem ser desprezadas. Conforme afirma Muzart (1995,
p. 90), é preciso que essa literatura seja lida, analisada e contextualizada com toda a
situação político-social de sua época de criação e, consequentemente, submetida a
avaliação estética dentro dos vieses cabíveis ao campo literário, “contribuindo para
recolocá-las no seu lugar na História”.
As publicações das escritoras brasileiras do século XIX tiveram dimensões
reduzidas, no entanto elas produziram uma vasta quantidade de obras em todos os
gêneros literários. Embora escrevessem bastante, apenas um pequeno número de
autoras teve coragem de lançar-se ao mercado dos livros: “Perto da produção
masculina, podemos dizer que as mulheres pouco publicaram. Contudo, não pouco
escreveram” (MUZART, 1995, p. 90).
De acordo com Muzart (1995), no Brasil do século XIX havia uma
predisposição para aceitar-se a mulher que escrevia poesias, todavia as que optaram
por escrever em prosa não foram bem recebidas no mercado simbólico. Como
exemplo, pode-se citar a poetisa Francisca Júlia que tem seu nome lembrado em
algumas coletâneas e historiografias relevantes como a História Concisa da Literatura
Brasileira, de Alfredo Bosi (2017, p. 244); enquanto nomes como o de Maria Benedita
Bohrmann, autora de romances, contos e crônicas, foi suprimido dos manuais.
original na forma como retratava e enfatizava a vida lastimável a que eram submetidos
os escravos, mostrando a crueldade com a qual os senhores os tratavam, as torturas,
o estado inumando ao qual eram obrigados a viverem, de forma a “comover o leitor”
e atraí-lo para a sua causa: “Estratégia empregada por escritoras de outras
nacionalidades, que não sei se chegou a conhecer. Em termos de Brasil, suas
preocupações e o modo que as colocou são precoces e incomuns” (TELLES, 1989,
p. 79).
Também nos últimos decênios do século XIX, era com autenticidade que a
escritora Maria Benedita Bormann (Délia) construía as suas personagens femininas.
No romance Lésbia (1890), por exemplo, a autora arquiteta um perfil de mulher
bastante distinto dos descritos nos romances Realistas e Naturalistas da sua época
ao permitir que uma personagem feminina assumisse o destino da sua vida e tomasse
suas próprias decisões, independente das censuras da sociedade: a protagonista
Arabela se distingue das outras moças pela sua busca incansável pelo saber, sua
família não tem voz ativa na narrativa e ela age por sua consciência e vontade. É por
decisão própria que decide casar-se aos 19 anos e percebe com poucos dias de
casada que o marido não é o homem idealizado, retornando assim para a casa dos
seus pais. Separada, Bela envolve-se em outro relacionamento amoroso no qual
novamente desilude-se, dessas experiências a heroína retira a lição de que “quanto
mais conhecia os homens mais se apegava aos livros” (TELLES, 1999, p. 396). Lésbia
é um romance em que a alteridade feminina é construída entre o amor pelo
conhecimento e o desejo erótico. Segundo explica Telles (1998, p. 12), a protagonista
“vive, com prazer e intenso sofrimento, os prazeres da mente e do corpo. A fronteira
entre vida e arte é rompida e a ação decorre da alternância entre realização pessoal
e o eu artístico que deseja liberdade ilimitada”.
Ao eclodir do século XX muitas escritoras viriam a despontar no campo
literário brasileiro, embora os nomes de poucas autoras constem nos livros de estudo
sobre literatura, o cenário literário foi profícuo em produção e comercialização de
obras de autoria feminina. Um exemplo de sucesso editorial foi Albertina Bertha, que
com o romance Exaltação (1916) alcançou recordes de venda chegando a reeditar
sua obra por seis vezes. A escritora que questionava em seus textos os padrões
femininos vigentes na época, problematizando tabus como a formação intelectual das
mulheres e até mesmo a sexualidade feminina, é, conforme escreve Faedrich (2018,
63
p. 171), “uma voz dissonante na belle époque brasileira, por demonstrar visão crítica
à condição feminina à época e inconformidade com a sociedade patriarcal”.
Sejam discordando do pensamento falocêntrico ou apresentando temáticas
sociais que envolviam os marginalizados dos lugares mais pobres do país, as
escritoras brasileiras que puderam publicar nos anos posteriores ao boom eufórico e
ufanista da Semana de 22, mostraram que a percepção feminina sobre o social não
se distanciava em criticidade do olhar masculino. Escritoras como Rachel de Queiroz,
Patrícia Galvão (Pagu), Dinah Silveira de Queiroz, por exemplo, escreveram com
maestria assuntos de teor social e político – tidos como de domínio “masculinos” –,
nos quais traduziram com ou sem delicadeza e olhar aguçado as ansiedades que
permeavam a sociedade brasileira do período. Como se pode observar no tratamento
dado a temas como o que dizia respeito a crise hídrica e os impactos sociais causados
ao povo nordestino (O Quinze), sobre problemas que envolviam a classe trabalhadora
e as condições de trabalho que lhes eram impostas (Parque Industrial), ou mesmo
sobre uma crise de saúde pública como a tuberculose e os altos índices de
mortalidade causados por ela (Floradas na Serra).
Em terras portuguesas, nesse período entre as décadas de 30 e 40, que
corresponde ao Neo-Realismo e no qual foram produzidas obras com conteúdo de
caráter mais engajado, tentou-se ainda silenciar e não incluir as mulheres escritoras
nas discussões sobre lutas de classe, direitos dos trabalhadores e do âmbito político
alegando-se que as abordagens da autoria feminina não se encaixavam na estética
neorrealista, hegemonicamente masculina.
depositadas todas las potencias del campo, y también todos los determinismos
inherentes a la estructura y al funcionamiento de éste5” (BOURDIEU, 1990, p. 11).
Observa-se que quem credita valor a uma obra e a um/a escritor/a são as
“instâncias consagradoras”. São elas quem motivam o sucesso de uma obra no
espaço e ao longo do tempo, também trabalham para proteger e fazer valer o seu
poder de atribuir relevância a um objeto artístico, conforme defende Casanova (2002).
No entanto, esse significado valorativo é contestável, não é absoluto. Afinal, quem
pode ser incluído/a no grupo dos consagrados? O que determina o valor de uma arte
e de um/a artista? Qual preço é preciso pagar por uma consagração?
Existe uma gama de valores subjacentes a uma consagração e a
transformação pela qual sofre um livro ou um/a autor/a ao ser legitimado é semelhante
a um encantamento, pois ocorre uma mudança também na “natureza” da obra. Assim,
textos que são oriundos de lugares desprestigiados ganham visibilidade, passam a ter
vida, a existir no campo literário, pois passam por uma “transformação aqui chamada
de literarização” (CASANOVA, 2002, p. 162).
O processo de literariedade, defendido por Casanova (2002), está
intrinsecamente relacionado ao patrimônio linguístico de um campo literário. A língua
é um elemento fundamental para o capital simbólico, uma vez que por meio dela uma
obra é conduzida à consagração ou a um espaço antagônico no cenário literário
mundial.
5 “Trata-se de entender a obra de arte como uma manifestação do campo como um todo, no qual todos
os poderes do campo são depositados, e também todos os determinismos inerentes à estrutura e ao
funcionamento deste” (tradução livre).
69
novos, “menos dotados” de uma história de nação, de conteúdos para motivar uma
veemente criação literária, buscam espelhar-se nos campos literários dominantes. De
acordo com Casanova (2002, p. 113), “os campos literários mais antigos são também
os mais autônomos, ou seja, os mais exclusivamente consagrados à literatura em si
mesma e por si mesma”.
Um campo literário autônomo tem a liberdade de reinventar seus conteúdos.
Independente da história nacional de origem, as problemáticas tratadas nas obras
ganham um valor político, sociológico, histórico, étnico que abrangem o espaço
universal e se difunde fora dos domínios temporais de sua criação. Nesse espaço
simbólico, as problemáticas externas se internalizam e “só estão presentes refratadas,
transformadas, retraduzidas em termos e com instrumentos literários” (CASANOVA,
2002, p. 113).
Quando uma literatura de determinado campo consegue emancipar-se
temática e esteticamente, ela sofre um processo de “desnacionalização”, pois não
sustenta a preocupação una de apenas representar artisticamente a sua nação, ao
contrário, os temas trabalhados refratam uma realidade que pode ser reconhecida em
qualquer espaço. Por esse motivo, essa literatura ganha status de internacional e, por
consequência, assume um poder próprio para também consagrar outras literaturas;
torna-se, assim, uma instância de validação literária.
No entanto, a liberdade experimentada pelo campo literário para utilizar os
recursos estéticos da criação ao seu modo e tecer um espaço imaginário autônomo
do espaço real não se aplica à relação de dependência política que o campo literário
tem com o campo de poder, refletido profundamente na materialização da dominação
de um campo literário sobre o outro. A origem de tal sujeição é de contorno
inestimável, intercalados entre colonizações, escravização e negação das culturas
das nações dominadas, incluindo a imposição linguística dos dominadores.
6 Como é possível observar na lista dos livros mais vendidos em ambos países no ano de 2019 o
predomínio de vendas das obras estrangeiras. Disponível em: < http://www.revistaestante.fnac.pt/10-
72
aquela que atravessa as ‘alfândegas’ para o exterior” (PARDO, 2015, p. 279). Isso
acontece aos países emergentes porque o estilo considerado “universal”, que foge da
cor local, é prestigiado, aclamado pelas instâncias de consagração que dominam o
campo literário.
Seguindo essa lógica do mercado de bens simbólicos, o que se entende por
universal? Quais os critérios que internacionalizam uma obra? Segundo Casanova
(2002), a ideia do universal é extremamente reducionista e elitista, a isso acrescente-
se também misógina.
7Segundo dados que constam no site da APEL - Associação Portuguesa de Editores e Livreiros.
<www.apel.pt>.
74
explica Norma Telles (1992, p. 45), isso acontece porque “a figura da autora foi
deformada por muitos fatores, silêncios e interrupções da memória coletiva”, assim
“para se chegar a ela é preciso ler através das ocultações que apontam conflitos
sincrônicos entre as representações da mulher, as representações de sua
desfiguração e sua afirmação pela escrita”.
Em uma pertinente pesquisa sobre o recente campo literário brasileiro,
Dalcastagnè (2012) identificou que as editoras Companhia das Letras, Rocco e
Record são as mais relevantes para a ficção nacional, sendo as maiores detentoras
de capital simbólico para consagrar escritores e validar no campo nacional os autores
que vêm do exterior. Analisando os catálogos das três editoras mencionadas, a
pesquisa constatou que a presença de obras escritas por mulheres é insignificante
comparada ao número de publicações masculinas. Os resultados apontaram que “os
homens são quase três quartos dos autores publicados: 120 em 165, isto é, 72,7%”,
sendo apenas 45 obras de mulheres, equivalente a 27,3% (DALCASTAGNÈ, 2012, p.
158). Uma rápida pesquisa nos catálogos digitais das editoras portuguesas com maior
capital simbólico8: Porto Editora, Leya e Grupo Presença, foi constatado que o número
de publicações de autoria feminina também é muito inferior com relação a masculina.
Se na instância editorial a presença feminina é mínima, na instância que
agrega as premiações literárias não é diferente. Segundo Casanova (2012), o sistema
de premiação é a categoria mais problemática e a maneira menos literária de se
promover um autor. Prêmios literários simbolizam a consagração de uma estética, a
aprovação e aceitação de um autor, de uma obra, dentro de um contexto “privilegiado”
no campo literário.
Ao discorrer sobre o “prêmio do universal”, Casanova (2012, p. 185) afirma
que o Nobel ainda é o prêmio de maior consagração no campo literário: “os escritores
do mundo inteiro aceitam-no como certificado de universalidade”. Ser reconhecido e
agraciado pelo Nobel da Literatura é uma grande distinção para um escritor e em
especial para o seu lugar de origem, o seu país, como também para a elevação
simbólica de sua língua materna. Dos 116 ganhadores desse prêmio somente 15 dos
vencedores são mulheres e nenhuma delas escreve em língua portuguesa. Em
Portugal, a escritora Maria Madalena Martel Patrício (1884 – 1947) foi a única mulher
que teve seu nome recomendado ao Nobel de Literatura, por treze vezes, no entanto
em nenhuma das indicações foi premiada. No Brasil, Lygia Fagundes Telles também
foi a única autora indicada à essa premiação no ano de 2016, porém não obteve da
Academia Sueca a vitória.
Semelhante ao Nobel, os prêmios mais importantes para os países lusófonos
são o Camões e o Oceanos, nesses espaços de consagração a representação
feminina entre os vencedores é ínfima. O Camões, principal premiação em língua
portuguesa, agraciou 31 autores, de 1988 a 2019, tendo apenas 6 mulheres como
ganhadoras, sendo Lygia Fagundes Telles a escritora agraciada pelo Camões no ano
de 2005. Já o Prêmio Oceanos9, que consta com 55 premiados, teve somente 10
mulheres como vencedoras entre 2003 e 2019; apenas 3 dentre os 16 primeiros
lugares.
Também na instância que abrange o setor de traduções, a recente pesquisa
de Dantas (2019) sobre a circulação das obras brasileiras no exterior, aponta para
uma quantidade inferior de exportação das obras de autoria feminina: “A presença
maciça de autores homens em detrimento de obras de autoria feminina confirma uma
tendência mundial dos campos literários nacionais, dominados por homens”
(DANTAS, 2019, p. 160). Portanto, os números corroboram para evidenciar o quanto
é irrisório o espaço do feminino no mercado de bens simbólicos. De acordo com
Dalcastagnè (2012, p. 158) em tal realidade não “é possível dizer se as mulheres
escrevem menos ou se têm menos facilidade para publicar nas editoras mais
prestigiosas (ou ambos)”.
CAPÍTULO 3
UM TEMPO, DOIS ESPAÇOS: afinidades e assimetrias entre as literaturas de
Maria Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles
Lisboa. No entanto, suas crônicas não foram simples conselhos dedicados à Mulher
que lia o suplemento especial do qual era responsável, sua escrita trazia uma
decomposição do dia a dia, desmistificando estereótipos do eterno feminino e
mostrando sua perspicaz observação da minuciosidade, daquilo que outros olhos
menos aguçados poderiam considerar inútil, mas que ela soube atribuir a importância
necessária e precisa, transformando em literatura. Portanto, uma voz que assumiu um
posicionamento subversivo, apesar de sua grande discrição: “Ainda. Neste nosso
tempo. Mas o que hão de as mulheres fazer para serem aceites como pessoas neste
mundo de homens?” (CARVALHO, 2019, p. 75).
No Brasil, com suas posições firmes e corajosas, Lygia escreveu histórias de
meninas, moças, mulheres e anciãs que desafiaram os costumes sociais vigentes,
mostrando seu posicionamento sobre a liberdade do corpo e da consciência feminina
em sincronia com os debates que acirraram o movimento das mulheres no século XX:
“Guerra é guerra, muito justo que as estudantes colaborassem. Ela me examinou
cheia de apreensão, mais funda a ruga preocupante: Veja, filha, você já é escritora,
estuda numa escola só de homens e agora virou também soldado?!” (TELLES, 2009d,
p. 115). Sempre com o olhar atento às transformações da sociedade e aos conflitos
oriundos das mudanças e desafios dos tempos modernos, essa escritora coloca como
cerne dos seus textos o sujeito que, em conflito com o mundo exterior, busca uma
saída para o caos e a desordem interior, auréola que cobre com fascínio e mistério as
suas personagens.
Pelo estilo, pela intrepidez, pela disciplina com que teceram seus textos, por
toda transgressão comedida ou descarada, foi assim que Maria Judite de Carvalho e
Lygia Fagundes Telles construíram suas trajetórias como escritoras dentro de seus
campos literários. Mas será que esse espaço concedido às autoras, pelas instâncias
de consagração, se deu de modo pacífico? Pode-se afirmar, de fato, que tanto Maria
Judite quanto Lygia tiveram aceitação entre seus pares e sucesso com o público de
forma imediata ou ainda hoje busca-se um lugar de prestígio no campo literário para
essas autoras?
Para compreender a trajetória das referidas escritoras, a posição destas nos
seus campos literários e no cenário universal, este capítulo discorrerá sobre as
relações transatlânticas entre elas e a relevância contextual do ambiente que as
envolveram para a construção de suas narrativas. Portanto, refletir-se-á sobre as
78
Béatrice Dider
Uma antiga tia escondia sua poesia, guardou-a até a morte. [...]
Escrevia os poemas escondida, fechada no quarto, a letra tremida, a
tinta roxa. Meu bisavô ficou meio desconfiado e fez o seu discurso:
“Umas desfrutáveis, mana, umas pobres desfrutáveis essas moças
que começam com caraminholas, metidas a literatas!”. Ela entendeu
e fechou a sete chaves a obra proibida (TELLES, 2010a, p. 110).
feminina portuguesa, o tradicional Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, tendo seu
habitus sido formado sob o espectro do patriarcalismo em um ambiente dominado
pelos costumes do conservadorismo e da austeridade: “Ela foi educada assim; foi
educada para a discrição, uma menina séria e contida, uma menina séria não
manifesta as suas emoções. E ela nunca soube ser de outra maneira” (LUCAS, 2019,
p.17). Apesar disso, Maria Judite de Carvalho nunca abandonou o campo das artes,
escreveu crônicas, contos, novelas, romance, teatro, poesias e também pintou muitas
telas nas quais predominaram a face feminina sempre contemplativa e melancólica:
“o problema do feminino sempre esteve entre suas preocupações, principalmente no
que diz respeito à opressão, pois ela foi criada com duas tias já idosas e muito
conservadoras” (RODRIGUES, 2011, 253), o que, segundo o marido da escritora, foi
uma das razões para que Maria Judite tivesse um temperamento tão introvertido e
recatado.
Foi de grande importância para a trajetória da autora o círculo de amizades e
convívio intelectual, construído por meio da influência do seu esposo, o também
escritor e professor Urbano Tavares Rodrigues. Além das amizades iniciadas na
Universidade com as escritoras Natália Nunes e Fernanda Botelho, sua rede de
contatos envolve um grupo prestigiado de escritores portugueses como, por exemplo,
José Cardoso Pires e José Saramago. Por causa da militância política do marido e da
perseguição pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), entre os anos
de 1949 a 1955, Maria Judite de Carvalho decidiu acompanhar Urbano Tavares
Rodrigues em seu exílio no “meridiano de Greenwich literário”, como Casanova (2002)
definiu Paris ao conceituar a cidade como capital das capitais literárias ou “república
mundial das letras”, e nesse período a autora pode conhecer importantes escritores
consagradores da literatura universal, como Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir.
Fato esse de grande significado e valor intelectual para a construção do
posicionamento político representado na literatura de Carvalho: “Estreitamos laços
com Camus, conhecemos ideias, e tudo que havia de novo na literatura em França,
isso foi de muita valia para a obra de Maria Judite” (RODRIGUES, 2011, 251).
Mesmo com um talento reconhecido por todos que tinham a oportunidade de
ter acesso aos seus textos, Maria Judite de Carvalho não sentia segurança para
lançar-se à carreira literária. Foi preciso muita persistência de Urbano Tavares para
que a escritora publicasse a obra Tanta gente, Mariana em 1959, anos depois de
começar sua trajetória no jornalismo: “Insisti imenso para ela publicar, quando li desfiz-
81
10Tous Ces Gens, Mariana... Récit, Paris: Ed. La Différence, 1987; Paris: Ed. Gallimard, 2000; Ces
Mots Que L’Ont Retient. Paris: Ed. La Différence, 1987; Paysage Sans Bateaux. Récit, Paris: Ed. La
Différence, 1988; Anica au Temps Jadis. Nouvelles, Paris: Ed. La Différence, 1988; Les Armoires
Vides. Roman, Paris: Ed. La Différence, 1989; Chérie? Nouvelles, Paris: Ed. La Différence, 1994; Le
Temps de Grâce. Roman, Paris: Ed. La Différence, 1994; Les Idôlatres. Paris: Ed. La Différence,
2011.
83
personagens são pulsões que advém de uma realidade concreta sem perspectivas de
dias melhores. Todas as pesquisas sobre a escritora observadas anteriormente
contemplam a análise desse retrato da sociedade portuguesa, marca que pode ser
vista com maior destaque nos trabalhos: Entre murmúrios e gritos abafados: a
crueldade e a delicadeza em Seta Despedida de Maria Judite de Carvalho (2012), de
Renata Quintella de Oliveira; Preconceitos e Atmosferas do Estado Novo na Obra de
Maria Judite de Carvalho (2005), de Teresa M. F. da S. Henrique; e Os desencontros
humanos no romance Os Armários Vazios de Maria Judite de Carvalho (2002), de
Maria R. A. da Silva.
Embora tenha sido encoberta pelo esquecimento, a obra juditiana possui
singularidade e uma coerência temática que torna a sua escrita sempre atual. A lacuna
deixada por sua discrição e pelo longo silêncio em volta do seu nome não diminuiu a
riqueza da sua literatura. Como explica a Maria Graciete Besse (2012, p. 9): “Certains
écrivains marquent profondément l’espace littéraire en y laissant des traces
indélébiles, même si le silence de la critique entoure souvent leur oeuvre, comme c’est
le cas de Maria Judite de Carvalho”11.
Compreender o projeto literário de um escritor, segundo Bourdieu (2003, p.
222), é entender a relação que se dá entre o habitus do autor – “moldado em certas
condições sociais” – e a sua posição dentro do campo literário. Portanto, o projeto
juditiano baseia-se numa concepção realista da sociedade, em que a escritora se
preocupa com a situação de opressão da mulher, mas o habitus imposto à criança, a
jovem Maria Judite, a transformou em um sujeito social avesso às ações de ordem
prática: nunca militou ou se engajou publicamente em nenhum movimento social,
como o feminista ou o de contestação a ditadura salazarista, mesmo sendo
simpatizante das ideias de Beauvoir e do Partido Comunista (PC) e tendo
acompanhado de perto – por meio da participação ativa do seu esposo – as lutas
travadas entre o grupo de escritores e intelectuais contra o governo. Se por um lado,
a posição de Carvalho mediante a sua escrita era de transgressão porque possuía
uma grande inquietude social e um olhar crítico sobre o seu espaço, por outro sua
posição como cidadã era de testemunha, de quem apenas observava sem
envolvimento.
11“Alguns escritores deixam uma marca profunda e indelével no espaço literário, ainda que o silêncio
da crítica muitas vezes rodeie a sua obra, como é o caso de Maria Judite de Carvalho.” (tradução livre).
86
O desprezo com que o cronista, citado pela autora, atribui ao livro escrito por
uma mulher, deixa em evidência a agressividade com que o campo literário reagia aos
textos de autoria feminina. As críticas masculinas, não interromperam a trajetória de
Lygia Fagundes Telles porque ela sempre se manteve firme no seu propósito com a
literatura, no entanto as reações negativas aos seus primeiros livros de contos
fizeram-na abandoná-los e eliminá-los da sua bibliografia considerando-os como
imaturos: obras da juventude, publicados com precipitação e, por isso, não valem a
pena serem reeditados (TELLES, 1998). A escritora considera que o seu corpus
ficcional teve início a partir de 1954, com a publicação de Ciranda de Pedra, um
romance muito elogiado pelas instâncias de consagração e sobre o qual afirma:
12Devido a idade avançada (98 anos em 2021), a família não permite mais que a escritora participe
de eventos literários.
87
Se, conforme diz Bourdieu (1996, p. 259), é o campo de produção que atribui
valor a uma obra, pode-se depreender, por meio da leitura da historiografia literária
brasileira, que Lygia Fagundes Telles é um dos raros nomes femininos que constam
no cânone nacional. Foi relevante para essa inserção entre os consagrados, a
aprovação dos seus pares. A escritora, que pertence ao centro literário brasileiro, isto
é, ao eixo Rio de Janeiro-São Paulo, foi contemporânea e construiu um largo círculo
de amizade com os escritores mais prestigiados do Modernismo, como Mário de
Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Erico Verissimo, por
exemplo. Sobre o significado das amizades com grandes personalidades do campo
literário e intelectual, Lygia escreveu em Durante aquele estranho Chá (2010c) – um
dos seus livros de memórias – como essas relações foram substanciais para
impulsionar a divulgação do seu nome no mercado de bens simbólicos e nas
instâncias de consagração.
Em uma conversa na qual a condição feminina foi o tema predominante, ouviu
de Mário de Andrade o questionamento: “o que é mais importante para você, ser
considerada mais bonita ou mais inteligente?” (TELLES, 2010c, p. 22). E ainda a
crítica cortês sobre os contos que viriam a ser rejeitados pela autora depois de ouvir
tantas vezes que eram textos ingênuos: “li seus contos e escrevi isto, gostei, sim, mas
não se assuste que sou o animador mais desanimador do mundo” (TELLES, 2010c,
p. 21). E durante o estranho chá na Confeitaria Vienense, Lygia enfrenta com
sagacidade aquele que ela considerava um “escritor importante” a quem respondeu
“sem pestanejar” que preferia ser considerada mais inteligente do que bonita e que
sua ousadia “se resumia nisso, assumir a minha vocação” (TELLES, 2010c, p. 17-23).
No mesmo livro de memórias, Telles narra seu primeiro encontro com os
filósofos Sartre e Beauvoir, “ano de 1960?”. Do qual, ficou ressoando em suas
lembranças a curiosidade da filósofa sobre “como a mentalidade brasileira interferiu
no processo da minha profissão de escritora?” (TELLES, 2010c. p. 26). Para Lygia
Fagundes Telles, essa indagação era algo que ela já vinha refletindo desde que
decidiu escrever sobre as histórias que inventava e contava para os seus amigos e
familiares, quando ainda era menina. Ciente do valor de consagração que o prestígio
dos intelectuais franceses possuía para o mercado simbólico universal, Lygia sentiu
insegurança quando Beauvoir manifestou interesse por conhecer seu trabalho literário
e não acreditou que pudesse obter uma resposta positiva da francesa sobre seu
romance Ciranda de Pedra: “Alguns dias depois, a carta de Simone de Beauvoir. [...]
88
Quer dizer que me enganei? Não só tinha levado o livro mas confessava, gostou do
livro, ah, gostou sim, lamentava apenas que essa não fosse uma tradução no francês
parisiense” (TELLES, 2010c, p. 28).
Sobre o romance inaugural da “maturidade” lygiana, que teve Carlos
Drummond de Andrade (1952) como um dos primeiros leitores, sendo o encarregado
de enviá-lo à editora, têm-se a seguinte avaliação do poeta mineiro:
Lygia:
Ciranda de Pedra é um grande livro, e V. é uma romancista de verdade
— eis, em resumo, o que tenho a dizer-lhe depois de ler seus originais
com um interesse que não excluía o espírito crítico e se foi
convertendo em emoção de leitor fascinado pelo texto.
[....] Admirei particularmente o instinto sutil de ficcionista, que evitou
as cenas fáceis ou de mau gosto, abrindo caminho sempre através do
difícil mas não deixando transparecer o esforço da construção. É um
livro duro, mas sem nenhuma passagem escabrosa. As notações
psicológicas são as mais finas, e a evolução da trama vai oferecendo
quadros de costumes que dão à obra importância como documento
social, sem entretanto lhe tirar qualquer de suas qualidades como obra
puramente literária, isto é, obra de arte, válida por si mesma.
A cena da noite de Natal é um dos episódios de romance mais
completos que já li, e bastaria, sozinha, para consagrar um autor.
Lygia, V. correspondeu cem por cento à confiança que os amigos
depositavam na sua capacidade criadora. Seu livro ganha longe da
nossa ficção raquítica de hoje, e se coloca num plano de dignidade
literária que lhe assegura permanência. V. [...]
Demorei a escrever porque, logo depois de ter recebido os originais,
tive de ir a Minas, lá me demorando algum tempo. E aqui a vida me
pegou na sua engrenagem de coisinhas chatas. Agora vou tratar de
levar seu livro ao editor, e o que desejo é que os avaliadores da obra
estejam em condições de sentir a sua alta qualidade.
[...] Lygia, estou contente e orgulhoso de ser seu amigo (sempre
estive, mas agora mais, depois de Ciranda de Pedra).
Abraços e saudades do velho
Carlos
horas nuas (1989) o que mais teve traduções, publicado em cinco línguas diferentes
– espanhol (1991), sueco (1991), italiano (1993), alemão (1994) e francês (1996).
Em Portugal a autora também obteve grande sucesso editorial, com vários
títulos publicados, por diferentes editoras, sempre com excelentes números de vendas
e com alguns livros já esgotados. Foram editadas as obras Histórias do desencontro,
de 1958, livro de contos publicado pela editora Livros do Brasil, no ano de 1960; Antes
do baile verde, contos de 1970, publicado pela editora Livros do Brasil no mesmo ano
que foi lançado no Brasil, e pela editora Círculo de Leitores, em 1974; o livro de
memórias A disciplina do amor, de 1980, publicado pela editora O Jornal, em 1982;
os contos de A noite escura e mais eu, de 1995, publicados pela editora Livros do
Brasil, em 1996; Ciranda de pedra publicado pelas editoras Minerva, em 1956; Livros
do Brasil, em 1982, e Presença, em 2008; Verão no aquário, seu segundo romance,
de 1963, pela editora Presença, no ano de 2006; o romance As meninas, de 1973,
que foi publicado pelas editoras Livros do Brasil, em 1981; Presença, 2005; e ainda
uma segunda edição pela editora Presença, em 2006 e o romance As horas nuas, de
1989, publicado pelas editoras Livros do Brasil, em 1990, e Presença, em 2005.
Outros rastros da constante presença de Lygia Fagundes Telles no setor
editorial português, segundo o pesquisador Francisco Topa (2016), “é o caso da sua
colaboração na revista Eva (que tinha por subtítulo Jornal da mulher e do lar),
publicada em Lisboa entre 1925 e 1989”. Um fato interessante sobre a publicação dos
textos da autora nessa revista foi que mesmo escrevendo em língua portuguesa, os
contos de Lygia Fagundes Telles foram adaptados para a variação do português
europeu, passando por um processo de adequação linguística a fim de facilitar a
compreensão dos leitores portugueses.
14Prêmio do Instituto Nacional do Livro, por Histórias do Desencontro (1958); Prêmio Jabuti, por Verão
no Aquário (1965); Prêmio Candango, concedido ao melhor roteiro cinematográfico, por Capitu parceria
com Paulo Emílio Sales Gomes (1969); Prêmio Guimarães Rosa (1972); Prêmio Coelho Neto, da
Academia Brasileira de Letras; Jabuti e APCA – Associação Paulista dos Críticos de Arte, pelo romance
As Meninas (1974); PEN Clube do Brasil, pelo livro de contos Seminário dos Ratos (1977); Prêmio
Jabuti e APCA, por A Disciplina do Amor (1980); II Bienal Nestlé de Literatura Brasileira (1984); Prêmio
Pedro Nava, (Melhor Livro do Ano), por As Horas Nuas (1989); Prêmio Jabuti; Prêmio Arthur Azevedo,
da Biblioteca Nacional e APLUB de Literatura, por A Noite Escura e Mais Eu (1995); Prêmio Jabuti;
APCA; Concurso paralelo “Livro do Ano” e o "Golfinho de Ouro”, por Invenção e Memória (2001); Prêmio
Camões, pelo conjunto da obra, Portugal – Brasil (2005); Prêmio APCA, por Conspiração de Nuvens
(2007); Prêmio Mulheres mais Influentes - Gazeta Mercantil (2007); Prêmio Dra. Maria Imaculada
Xavier da Silveira, 2008 – OAB; Prêmio Juca Pato 2009 (Intelectual do Ano) - União Brasileira de
Escritores; Prêmio Conrado Wessel de Literatura 2015.
92
Não foi somente nas instâncias de consagração do campo literário que Lygia
Fagundes Telles conquistou o espaço de aclamação por sua autoria, ela também
exerce grande fascínio no campo universitário. Para a autora, em entrevista aos
editores dos Cadernos de Literatura Brasileira (1998, p. 33), essa recepção crítica é
vista com “enorme alegria: é como se aquele convite do ‘venha’ estivesse sendo
aceito”.
A voz da instância acadêmica sobre a obra da escritora teve início nos anos
70 a partir do trabalho Técnica narrativa em Lygia Fagundes Telles (1972), de Kátia
Oliveira, apresentado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A pesquisadora
traz um estudo sobre os recursos estruturais das obras Ciranda de Pedra (1954) e
Verão no Aquário (1963) dando ênfase a maneira como a romancista trabalha o tempo
psicológico nessas narrativas. Ainda da década de 70, tem destaque a dissertação de
mestrado de Lya Luft, Três espelhos do absurdo: a condição humana em As meninas
de Lygia Fagundes Telles (1979), na qual a autora faz uma análise à luz da filosofia
sobre a ideia do absurdo existencial a fim de desvendar como as protagonistas são
representadas ou retratadas no universo ficcional do romance.
A fortuna crítica sobre os romances e contos de Lygia Fagundes Telles desde
a década de 70 é bastante extensa e sua obra continua despertado o interesse dos
estudos universitários tanto no Brasil como no exterior. A mesma pesquisa realizada
anteriormente no banco de dados da CAPES sobre a obra de Maria Judite de Carvalho
foi feita utilizando o nome da escritora brasileira, os dados mostraram que entre os
anos de 1990 a 2020 tem-se o registro de 181 trabalhos de pós-graduação sobre os
textos da escritora. Esses estudos foram construídos sob os mais diversos
pressupostos teóricos, visto que a obra lygiana é rica em tratar dos temas que
compreende a condição humana, a vida em sociedade e os mistérios que mexem com
o imaginário das pessoas.
Com trajetórias aparentemente tão assimétricas, como afirmar que existe uma
relação de afinidade entre as literaturas de Maria Judite de Carvalho e de Lygia
Fagundes Telles? Em quais proporções as suas escrituras dialogam e as suas
trajetórias se entrelaçam?
Existem poucos e tímidos rastros de que houve uma relação de amizade entre
as duas escritoras. No acervo de Telles disponível no Instituto Moreira Sales – IMS,
93
em São Paulo, constam duas cartas15 enviadas pelo esposo de Carvalho, o escritor
Urbano Tavares Rodrigues, porém não há correspondências da escritora portuguesa
para a brasileira registradas no banco de dados do IMS. Mesmo assim, acredita-se
que Maria Judite de Carvalho leu os textos de Lygia Fagundes Telles, uma vez que,
segundo Urbano Tavares: “Durante anos, visitando frequentemente S. Paulo, terra de
exílio do meu irmão Miguel, convivi muito com a Lygia e fui lendo todos os seus livros,
de Ciranda de Pedra a Horas Nuas [...]” (RODRIGUES, 1998, p. 26). O escritor
português escreveu vários artigos nos quais elogiava a obra da autora e expressava
o seu incentivo para a continuação da carreira da brasileira, semelhante aos
conselhos que dava à Maria Judite. A admiração entre os escritores era recíproca,
Lygia também escreveu artigos sobre os textos literários de Rodrigues e não cansava
de expressar sua consideração pelo português: “Urbano, te admiro e te estimo as
20.000 léguas submarinas – lembra?” (TELLES, 1980).
Embora não tenham sido encontrados documentos concretos que comprovem
a recepção da obra lygiana por parte de Maria Judite de Carvalho, existe, entre as
correspondências da escritora portuguesa, o registro de que Telles foi leitora de sua
obra. Em carta datada de 04 de março de 1960, Lygia escreve para Maria Judite
contando sobre toda a emoção e fascínio que sentiu quando leu Tanta Gente,
Mariana:
Vou reto ao assunto: gostei demais, demais do seu livro, sabe? Foi
para mim uma surpresa agradabilíssima constatar que estava diante
de uma autêntica escritora, sim senhora, sim senhora... Suas histórias
são tão densas, tão marcantes, tão pungentes e tão desamparadas!
Difícil encontrar maior desespero e maior desamparo dentro de uma
forma sem pieguices, enxuta, digna (TELLES apud CALHEIROS,
1998, p. 113).
15Não foi possível obter acesso ao conteúdo dessas correspondências em razão da Pandemia de
COVID-19 que inviabilizou a pesquisa presencial no IMS-SP até o momento da defesa deste trabalho.
94
O trecho dessa carta possui muita significação para quem busca analisar as
intertextualidades presentes nas narrativas de ambas as escritoras. Isso acontece
porque o primeiro texto do livro juditiano trata-se da novela que dá título à obra, isto
é, “As Palavras Poupadas”. Nessa novela existe muita simbologia em torno do objeto
aquário, apresentado sempre em contraste com os relacionamentos afetivos entre as
personagens femininas da história. Deste modo, para os leitores das duas autoras são
muito nítidas as relações dialógicas entre esse texto de Maria Judite e o romance
Verão no Aquário, publicado em 1963, por Lygia Fagundes Telles.
Na novela juditiana, há uma heroína que busca respostas para solucionar o
malogro do passado e poder encontrar um caminho seguro para avançar na vida
presente e, por fim, conquistar a paz interior. O aquário serve de simbologia para
evidenciar o desejo da personagem de libertar-se das lembranças que a impedem de
perdoar e encontrar o seu verdadeiro eu. No romance lygiano a trajetória da jovem
95
Mariana” trata-se da novela que abre uma coletânea de narrativas curtas em que o
insulamento das personagens e a atmosfera de angústia existencial aparecem como
categorias que vão perpassar por toda a escritura juditiana.
Escritora do pormenor, da interioridade e, em especial, da condição feminina,
Maria Judite era também uma exímia observadora das relações sociais. Segundo o
esposo da autora, o escritor Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013), ela possuía um
“discurso económico, por vezes mansamente cruel” o qual deixava transparecer,
sutilmente, a sua “ácida ironia”.
De temperamento reservado, sempre com gestos comedidos e tímidos, a
autora levou para os seus textos toda a palavra sufocada por seu gênio extremamente
discreto e silencioso. Sua obra é carregada de não ditos, das “palavras poupadas” que
deixam o leitor seduzido e instigado à busca de respostas para o que não é totalmente
revelado, para o que fica apenas sugerido. Suas personagens são arredias, não
habituadas a comunicar-se com o outro, reclusas em si mesmas, por isso, há em suas
narrativas certa predominância do discurso interior, do fluxo de consciência.
Por baixo da superfície das personagens juditianas estão as agruras e a
frustração de seres sempre incompreendidos pelo outro, este representado sobretudo
pelos parentes mais próximos, pelos amigos, pelos amantes. São personagens
dominadas pelo medo, pelo descaso e por “situações de revés e falência: a falência
do amor, a falência da esperança, a falência dos projectos” (ESTEVES, 1999, p. 23).
Para além da solidão e da angústia das suas personagens, a literatura de
Maria Judite é original pela maneira como a escritora encara o mundo: ela consegue
dar intensidade e relevância a assuntos aparentemente banais; dispõe de cenas
pequenas e insignificantes do dia a dia e transforma em arte, mostra a face e dá voz
ao esquecido, ao desprezado, ao parvo. Massaud Moisés (1999, p. 358) a delineou
como “uma escritora de antenas ultrapoderosas” e escreveu que “a mestria invulgar
da escritora se manifesta exatamente em surpreender no cotidiano rotineiro os
grandes dramas anônimos e mudos”.
Assim, pensar a escrita de Maria Judite de Carvalho é refletir sobre a
construção de um discurso que, feminino em seu cerne, traz em si a voz da alteridade
e da diferença. Lucia Castello Branco (1995, p. 74-75) chama-o de “discurso da
margem” porque é concebido as bordas de um discurso oficial falocêntrico e, por essa
razão, construído de maneira “dissonante, sempre desterritorializado” e
“questionador”.
97
moderna e aos desatinos políticos do seu tempo. A “ácida ironia” de Maria Judite está
na ambiguidade do comportamento das suas personagens, nos seus argumentos que
aparecem como contrários as suas ações em relação as situações que as envolve.
É o que se pode observar no conto “A Noiva Inconsolável” (CARVALHO, 1961,
p. 153) em que há a representação de uma sociedade dominada pela dissimulação e
aparência, por uma falsa preservação de costumes os quais são usados
especialmente para oprimir o mais fraco. No enredo do conto, a protagonista Joana é
uma moça que passou da idade de se casar, uma jovem que não é bela nem possui
talentos especiais. Criada em uma família de base nuclear, tem na mãe um exemplo
de subordinação e renúncia de si, já as figuras do pai e do irmão representam a
soberania no lar e o sucesso pessoal. Desprezada por seu jeito reservado e pela sua
falta de atributos físicos, Joana e todos a sua volta são surpreendidos quando um
jovem se interessa por ela, no entanto o relacionamento não vinga e na manhã após
ser alertada do possível término do noivado, a moça recebe a notícia de que o seu
noivo morrera vítima de afogamento.
O teor irônico em “A Noiva Inconsolável” está exatamente entre o ser e o
parecer, a protagonista que perdera o noivo, na verdade não fica desolada, não sente
angústia por sua morte, ao contrário, ela sente plenitude e uma profunda sensação de
liberdade: “O seu atual pensamento flutuava levemente numa atmosfera mansa, batia
ao de leve as asas, aflorava as coisas. Toda a angústia desaparecera. Sentia essa
calma no rosto que não via, nas mãos quietas, na voz que lhe saía direta, quase rígida.
A serenidade que ele lhe negara!” (CARVALHO, 1961, p. 163). Graças ao
acontecimento trágico com o noivo, ela não seria mais vista como escória, como a
mulher desprezada; a sociedade e a sua própria família começariam a tratá-la com
outros modos, a vê-la como uma noiva em luto, não mais como uma solteirona:
presas nos rectângulos das suas casas, confinadas aos rectângulos das janelas, que
se pontuam pela imobilidade” (LUCAS, 2019, p. 17).
A casa, como espaço que se sobressai nas narrativas juditianas, é o lugar em
que o tempo se manifesta em um fluxo contínuo de memórias. Espaço sempre
presente nas obras das escritoras portuguesas de sua época, segundo Isabel Allegro
de Magalhães, a casa é “pivot do universo, sítio fixo de onde as mulheres
constantemente partem para viagens no tempo” (MAGALHÃES, 1995, p. 36). Lugar
de segredos, ermo e frequentemente melancólico, onde as mulheres, em especial as
idosas, passam o tempo presente em reiterada ligação com o passado.
De acordo com Magalhães (1995, p. 37), “este lugar central que é a casa
funciona metonímica e metaforicamente como lugar da escrita e do corpo das
mulheres”. Como metáfora do corpo, na narrativa juditiana prevalece o corpo/casa em
abandono, onde as “sombras” ou as “vozes” de um universo fantástico ou de um
instante longínquo se tornam as únicas companheiras de mulheres esquecidas,
sozinhas. Contudo, muito mais que desamparo e solidão, a casa na obra de Maria
Judite além de símbolo de denúncia da condição feminina é também símbolo de
resistência, lugar de desconstrução da imagem de subalternidade e fragilidade da
mulher.
Veja-se, por exemplo, o conto “A cidade do êxito” (CARVALHO, 2018, p. 219)
onde as personagens habitam um mundo futurista em que os progressos científicos
da humanidade avançam ao ponto de serem comuns e lucrativos os negócios com
outros planetas, como Marte. Nesse ambiente distópico, uma mulher idosa e sua casa
antiquada destoa de tudo que há de moderno e avançado na cidade: “Era a última
casa velha da cidade e desfeava-a na verdade muito. Uma espécie de dente podre
numa bonita boca jovem”. Em meio aos “altos prédios quadriculados de metal e vidro”,
era inconcebível que aquela casinha ainda existisse, então uma luta acirrada entre
dois grandes empresários e a protagonista é iniciada.
Os dois homens jovens, representando o capitalismo selvagem, entram em
conflito com aquela “velha senhora”, representante das raízes culturais de um povo,
única voz da tradição, do passado o qual, de tão quieto, todos pensavam que já havia
morrido: “A senhora Bruce era, de certo modo, a casa” (CARVALHO, 2018, p. 220). E
ela resiste, na sua calma e complacência, mesmo na miséria rejeita as grandes
propostas de dinheiro que a oferecem pela demolição da casa, resiste aos argumentos
de que já estava quase a morrer e precisava desfrutar de um ambiente mais luxuoso,
100
resiste ao tempo: “Mas quando é que morre, Mrs. Bruce? Dizem por aí que a senhora
é eterna!” (CARVALHO, 2018, p. 224).
Mesmo com noventa anos, a protagonista de “A cidade do êxito” consegue
sobreviver aos seus adversários, os dois homens que aguardam ansiosos pela morte
da senhora Bruce falecem, ironicamente, antes desta, que resiste até os cento e
quinze anos, quando suas forças já não eram mais suficientes para enfrentar, sozinha,
toda uma geração de alienados: “tinha deixado de lutar e entregara-se nas mãos frias
da morte porque viver já não lhe era necessário.” (CARVALHO, 2018, p. 225).
A morte de Mrs. Bruce, representa a morte simbólica da razão, do patrimônio
imaterial de uma nação. Essa narrativa como distopia denuncia os regimes opressores
controlados pelo desenfreado consumismo, pela ganância e corrompimento do ser
humano pelo poder:
Também tenho muitos encontros, eu. Não quero tê-los mas sou
obrigada a isso, vivo tão só. Cheguei a ignomínia de pedir, a pessoas
conhecidas, retratos da minha família. Não tinha nenhum, só um
retrato meu, em rapariguinha. E retratos de amigos, também. De
amigos desaparecidos, levados pelas tempestades, os mais queridos,
naturalmente [...] (CARVALHO, 2007, p. 42).
O dinheiro no banco, nos bancos, é uma das suas últimas paixões. Ela
pensa – sabe? – que com dinheiro ninguém está totalmente só,
ninguém é totalmente abandonado. A velha Georgina já o deve ter
103
narrar os mistérios que ouvia de outrem e a recriar ao seu modo cada história
apreendida, com uma voz mansa, mas com muito discernimento da realidade ao seu
redor é, como escreve Ivan Marques (2012, p. 94), “uma alma sedenta (contemplativa,
sonhadora, espiritualista)” com um coração tão ardente quanto o das suas
personagens.
As personagens lygianas, que também são apaixonadas, audaciosas e
intensas, constituem um grupo singular de indivíduos ficcionais que estão, assim como
mulheres e homens reais, em constante aprendizado sendo por isso seres errantes e
indefinidos. Sejam protagonistas femininas ou masculinas, possuem em comum a
incompletude e uma angústia que as movem em direção ao desconhecido, na
tentativa de encontrarem a si mesmas, de resolverem a questão que é inerente a
essência humana, isto é, o sentido de existirem: “As personagens de Lygia Fagundes
Telles são espíritos famintos que gostariam de tocar as estrelas e a própria ‘face de
Deus’” (MARQUES, 2012, p. 94).
Para desenvolver esses “espíritos famintos”, a escritora cria uma narrativa que
se faz cativante pelas minúcias, que seduz o leitor pelo jogo misterioso no qual a
verdade fica camuflada entre as pequenas revelações e as omissões. Narrativa que
se constrói híbrida, porque envolta no simbólico nunca se fecha em um único sentido,
o leitor é a todo o momento convidado a fazer parte do jogo, a construir suas
impressões com base nas pistas e possibilidades que as palavras podem significar.
Assim, Lygia enfatiza que, ficando sempre na penumbra entre a invenção e a
memória, entre a verdade e a mentira, sua literatura se faz em uma constante troca
com o seu cúmplice, isto é, o seu leitor.
Lygia Fagundes Telles é uma autora que mostrou autenticidade desde o seu
ingresso no campo literário. Escrevendo contos que fugiam das formas e temas
tradicionais, arriscou-se na narrativa fantástica se tornando umas das maiores
representantes do gênero no Brasil, mas não ficou limitada a essa estética, criou
textos de teor realista em que o material social é tratado de maneira pungente
atingindo o âmago da consciência dos seus leitores. Sobre isso, Sônia Régis (1998,
p. 92) destaca o comprometimento da escritora “em narrar a condição humana e a
relação do homem com seu destino”, observando ainda “que muitos analistas da sua
obra acabaram esquecendo o refinado indiciamento da contemporaneidade histórica
nela registrado, confundindo seu realismo com intimismo”. A verdade é que a literatura
lygiana não se prende a rótulos, em seus romances e contos é possível identificar
105
Esse encontro da narradora com sua versão do passado para uma tentativa
frustrada de salvá-la da morte por suicídio é bastante simbólico porque representa o
desespero e a angústia existencial do sujeito moderno perante um mundo de
incertezas, o qual se apresenta, às vezes, tão insólito quanto o bosque fictício descrito
na história. A mesma aflição e tom de reencontro consigo mesma em outras
existências ou em planos paralelos do cosmo, é narrada em “O Sonho”, pequeno
conto encontrado em A Disciplina do Amor (2010a), no qual a narradora, também em
um lugar (des)conhecido, depara-se com uma mulher cujos traços, olhar, sorriso e
malícia lhes eram familiares: “o que era? Sorri e de repente me vi sorrindo no seu
sorriso – o seu sorriso era meu e meu aquele rosto que me encarava como num
espelho” (TELLES, 2010a, p. 38).
Existe em Lygia uma constância de unir o improvável com o verossímil, no
entanto, o maravilhoso não suprime a dimensão cruel e violenta do real representado,
que também não a impede de ser irônica e cômica em algumas narrativas. Entre o
lirismo e o realismo implacável há na sua literatura histórias espirituosas em que se
tira de situações atípicas a jovial leveza da sua prosa. Seja com “O Noivo” que
esquece que vai se casar no exato dia que fora escolhido para o seu casamento,
entrando em uma guerra interior para lembrar-se qual mulher seria a sua noiva, ou
ainda a moça que cria um namorado imaginário para fugir dos julgamentos dos amigos
em “Emanuel”, e como mágica ele surge ao final da narrativa deixando todos
surpreendidos, cada narrativa tem o seu poder particular de fixar-se na mente do leitor,
causando-lhe fruição, fascínio e inquietação.
No mundo ficcional de Lygia Fagundes Telles, é extraordinária a capacidade
que a autora tem de tecer ambientes em que o suspense é instaurado
progressivamente por meio dos diálogos entre personagens, ou mesmo dos espaços
e objetos que são personificados e insinuam o que pode ou não acontecer. Desse
110
CAPÍTULO 4
TECENDO O ESPAÇO: sobre heterotopias e o corpo-espaço-feminino
representado nas narrativas juditianas e lygianas
Michel Foucault
Michel Foucault
a sociedade é anormal, merecendo, por essa razão, ser separado, afastado da ordem.
Ao reunir um grupo de pessoas doentes, sem perspectivas de cura e sem um
tratamento ideal em um sítio longe de tudo que é conveniente para o indivíduo se
sentir civilizado, a sociedade que se põe como o Mesmo torna esses corpos doentes
em corpos-espaços Outros, desconsiderando que “a doença é, ao mesmo tempo, a
desordem, a perigosa alteridade no corpo humano e até o cerne da vida, mas também
um fenômeno da natureza que tem suas regularidades [...]” (FOUCAULT, 2000, p.
XXII).
Em “Além do Quadro”, o sanatório é descrito como um lugar tétrico, sombrio,
com suas grandes janelas, “bastante danificadas pelo tempo e pelas ventanias de
altitude” (CARVALHO, 2019, p. 253). Um lugar que por fora mostrava-se imponente,
com seus varandins de ferro, detalhes de pedras, paredes espessas, pintadas com
tonalidades claras e que, no entanto, tudo é opaco do lado de dentro, além dos vidros
das janelas não é fácil enxergar o que se passa em cada cômodo, no seu interior,
porque ali predomina uma atmosfera cinzenta, gélida e difícil de decifrar. É
interessante observar o quanto essa heterotopia influencia na construção da
personagem Damiana, transformando-a numa duplicação desse espaço.
essa razão todo perfil da esposa é construído a partir das observações do homem. O
trabalho de Maria Judite de Carvalho com a linguagem põe em evidência uma
personagem fragilizada, mas que se faz ouvir da primeira à última página do texto
mostrando, como um paradoxo, a sua força: “Com Damiana nunca houve aquele
período um pouco piegas de todos os princípios, em que a parte masculina se sente
espantosamente forte e protetora, porque a outra parte se compraz mostrando uma
fragilidade e uma urgência de ser apoiada e protegida [...]” (CARVALHO, 2019, p.
270).
As contradições na construção do perfil de Damiana são apresentadas pelo
narrador pela presença da ambiguidade, ou seja, é lançada a incerteza sobre a
veracidade das recordações do marido – são reais ou invenções? –, isto porque “Não
é muito boa a memória daquele homem” (CARVALHO, 2019, p. 258). Deste modo, o
já mencionado jogo textual proporcionado pelas escolhas técnicas da autora expõe,
no decorrer de uma página e meia, por exemplo, os supostos pensamentos de
Damiana sobre o que ela sente a respeito da visita do marido ao sanatório, em como
a presença dele a incomoda por trazer as reminiscências de momentos de harmonia
e felicidade, de um tempo de viagens e conversas agradáveis em jardins, de belos
verões compartilhados pelo casal. Contudo, depois de construir toda a trama de uma
bela história de amor, com passagens temporais e espaciais variadas, o narrador
lança ao leitor a prerrogativa da dúvida sobre tudo o que até então fora dito:
Ele continuava a observá-la sem ela se dar conta. Ou talvez não fosse
bem assim, não ligasse simplesmente importância a tal pormenor. E o
homem hesitava, já sem saber se algum dia, num passado próximo,
lhe ouviu aquelas palavras, ou se as tinha sonhado, ou se eram mera
suposição (CARVALHO, 2019. P. 256).
ela é uma simples mulher absorta em seus próprios problemas: “De súbito avista-a,
surgindo da curva, de mãos nos bolsos, com uma grande mala a tiracolo. Tem uma
expressão ressentida, ou parece-lhe a ele, assim de longe, que a expressão dela deve
ser ressentida” (CARVALHO, 2019, p. 263).
Marta, a jovem mulher de “olhos antigos”, tem em comum com Damiana o
fato de também ser um corpo-espaço heterotópico, de trazer em si uma sombria
amargura e uma trajetória de problemas familiares. Marta é a representação do corpo-
espaço órfão, que carrega em seu íntimo as profundas marcas do abandono e a
desventura de ver sempre repetir-se em sua vida o mesmo quadro: “Tinha ficado outra
vez só, compreende?” (CARVALHO, 2019, p. 284). Sua presença na história não é
um simples acaso, nem um evento aleatório e rápido: ela é o contraponto entre a
desordem de Damiana e a mansidão de Bárbara, e é também o ponto de harmonia
que vai desvelar as máscaras usadas pelo homem, dando ao leitor algumas
possibilidades de interpretação sobre a condição feminina representada em
comparação com o contexto sócio-histórico e a simbólica dominação masculina.
Marta, a mulher misteriosa que consegue carona com um estranho, é um
corpo-espaço que transita entre duas heterotopias: o sanatório, local onde está o
marido doente, e o asilo/orfanato, lugar no qual foi abandonada ao nascer. O impacto
de ter pertencido a esse contraespaço de rejeição marca o discurso da personagem
e todo o diálogo que mantém com o homem traz o reflexo desse trauma: “Por que fala
tanto de asilo? É um complexo, não?” (CARVALHO, 2019, p. 294).
Pensar a heterotopia do asilo em “Além do Quadro” é procurar as respostas
para as lacunas do texto, é uma busca pelas peças do quebra-cabeças narrativo que
Maria Judite construiu através dos detalhes que são apresentados por pequenos
fragmentos de memórias. Assim, mesmo que essa heterotopia seja observada por
Marta a partir de um distanciamento temporal e espacial, a influência desse lugar
permanece forte sob o corpo-espaço da personagem: “há sempre o momento de
pânico. É como se houvesse ainda hoje a ameaça, o perigo, enfim, de ser outra vez
metida num asilo por alguma funcionária zelosa e cumpridora” (CARVALHO, 2019, p.
294). A ironia presente nos termos que adjetivam a funcionária corrobora para
sustentar a ideia de que o contraespaço do asilo era permeado por rigidez disciplinar,
por severas punições aos comportamentos das crianças que desobedecessem às
regras que ali existiam.
121
para um amigo boêmio e muito mais velho, o homem logo associa a moça como
amante do patrão e cria em sua mente todo um enredo de traição envolvendo-a,
apenas por julgar que a condição de Marta tornava-a predisposta a se envolver por
conveniência.
Por isso, a identidade das vozes confunde o leitor, pois não se pode
definir nem caracterizar. E a confusão ainda é maior quando o leitor
volta atrás, associa com o que vem mais à frente e verifica que, apesar
de tudo, os referentes da história do passado de cada figura não se
perderam completamente, são lembrados de uma forma desconexa e
soltos ao longo do espaço textual sempre por uma voz que o orienta
neste jogo (NAVAS, 2015, p. 168).
expõe que até o século XVIII o tratamento dado aos mortos era divergente do que se
tem na contemporaneidade e os espaços destinados aos corpos não possuía o valor
ritualístico e memorável que existe hoje: “A exceção de alguns indivíduos, o destino
comum dos cadáveres era muito simplesmente serem jogados na vala, sem respeito
ao despojo individual” (FOUCAULT, 2014, p. 23).
Retirados dos centros das cidades para locais mais afastados do espaço
urbano, a partir do século XIX a heterotopia do cemitério ganhou novos conceitos e
passou a fazer parte do imaginário popular como um espaço de misticismo e também
do medo. Segundo Philippe Ariès (2012, p. 79), a casa dos mortos retomou no século
XIX a importância que tinha na Antiguidade ganhando notoriedade e assumindo um
aspecto moral cristão, sendo ignorada a sua origem clássica pagã, os “cemitérios
tornaram-se eloquentes”.
É, portanto, essa eloquência da heterotopia do cemitério que é disposta no
conto “Venha Ver o Pôr do Sol”, a descrição do local do último encontro entre Ricardo
e Raquel como um espaço distante da área residencial da cidade e de difícil acesso é
realizada logo na primeira oração do texto: “Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira.
À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem
simetria e ilhadas em terrenos baldios” (TELLES, 2009, p. 135). A conversa entre o
casal tem início de forma afetuosa, mas com pequenas porções de malícia e certa
hostilidade. Por meio do diálogo entre as duas personagens o leitor é informado de
que existe entre o antigo e o atual namorado de Raquel uma desproporção no que se
refere ao prestígio social e econômico. Por julgar-se ainda apaixonado por ela,
Ricardo tenta persuadi-la por meio de evocações das memórias de quando foram
amantes, lembrando-a do quanto foram felizes no passado e como ainda poderiam
ser em um possível futuro.
A violência simbólica representada nesse conto possui várias faces, seja no
âmbito do discurso ou da ação. Assim, é possível elencar algumas proposições do
homem sobre o corpo-espaço da mulher onde a imposição dos valores patriarcais é
cruelmente notória: reificando o lugar do corpo feminino, Raquel representa a princípio
o corpo-espaço coisificado. Deste modo, a violência simbólica se manifesta, num
primeiro momento, através do olhar maquiavélico de Ricardo que vê na ex-namorada
apenas um corpo sexualizado: “− Ah, Raquel... – ele tomou-a pelo braço – Você, está
uma coisa de linda. [...] Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza,
sentir esse perfume” (TELLES, 2009, p. 136).
127
domina aquele espaço, é um recurso utilizado por Lygia Fagundes Telles para revelar
e ao mesmo tempo esconder as peças do jogo narrativo fundamentais para a
construção do sentido do conto, assim como os elementos do espaço ficam no limbo
do visível e invisível, alguns pensamentos de Ricardo são desvelados ao mesmo
tempo em que outros são dissimulados. A ideia de morte que está presente em toda
a parte, também é posta pelo tom sombrio do tempo, pelo meio termo entre a luz e a
escuridão, na ambiguidade que perpassa entre o crepúsculo e a alma daquele homem
que se mostra interiormente enigmático por ser alguém que está sempre oscilando
entre o bem e o mal: “a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da
noite, está no crepúsculo, nesse meio tom, nessa ambiguidade” (TELLES, 2009, p.
138).
De tal modo, ao aceitar adentrar naquele lugar, Raquel torna-se um corpo-
espaço cativo: primeiro, do ponto de vista alegórico, porque é dominada pelo fascínio
que Ricardo ainda causa sobre ela e por isso não percebe a voz eloquente do
contraespaço, que a todo momento lhe envia vislumbres dos planos do rapaz, como
a imagem do “anjinho de cabeça decepada” ou a “laje despedaçada” e a “sepultura
fendida” pelo mato que cobre tudo, até as identidades dos mortos ali enterrados. Todo
o cemitério expressava um violento descuido, com elementos quebrados por toda
parte, fotos desbotadas, nomes apagados e uma visível dominação da natureza
selvagem que tomava posse do lugar como única representação da vida.
A simbologia presente nas sepulturas pela arte tumular evidencia um espaço
que fora moldado por uma estética cristã, mas que o tempo e o esquecimento o
macularam e o transformaram em uma estética nefasta, desprovida de adornos que
remetessem a um significado religioso, sagrado. O que predominava, ao contrário, era
uma atmosfera maléfica, profana e degradante: “As pontes com o outro mundo foram
cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.” (TELLES, 2009, p. 141).
Semelhante as histórias góticas dos séculos XVI ao XVIII, nesse conto lygiano
predomina o que Ariès (2012, p. 140) analisou e caracterizou por “erotismo macabro”.
O paralelo entre o corpo-espaço de Raquel e a heterotopia do cemitério se constitui
como um ritual de prazer mórbido, uma aproximação “entre Tânatos e Eros”. Para
Ricardo a ambivalência entre a pulsão de morte e o erotismo se concretiza por meio
de um sentimento de possessividade para com a sua antiga namorada. Na
consciência dele, Raquel não poderia pertencer a outro homem e em cada movimento
seu é o corpo-espaço daquela mulher que ele deseja possuir: “Raquel, minha querida,
129
não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu
apartamento. [...] disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as
pontas dos dedos” (TELLES, 2009, p. 136-137).
Além da beleza admirável, fascinava ao homem – assim como em “Além do
Quadro” de Maria Judite de Carvalho – os olhos daquela mulher. Em ambas as
narrativas os sujeitos do sexo masculino são atraídos pelo formato dos olhos e pela
expressão do olhar das personagens femininas. Como Damiana, Raquel tinha os
olhos oblíquos que por sua vez também eram similares aos da suposta prima de
Ricardo, namoradinha de infância que, no seu enredo macabro, estava sepultada
naquele contraespaço: “Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente
bonita, mas tinha uns olhos... [...] Penso agora que toda a beleza dela residia apenas
nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus” (TELLES, 2009, p. 140). Ao fazer
alusões aos olhos de Raquel e da prima morta, estabelecendo uma intertextualidade
com a Capitu machadiana, Lygia Fagundes Telles se utiliza da ironia ao retomar os
arquétipos da representação do feminino bastante difundidos na literatura de autoria
masculina, isto é, a mulher angelical versus a mulher demoníaca: para Ricardo, a
antiga namorada era de um lado pura sedução, a mulher sagaz e infiel, que
conquistava e dominava sua presa sobretudo pelo olhar, por outro lado, ele enfatizava
a expressão “anjo” para exprimir certa delicadeza em seu discurso manipulador,
reforçando a fragilidade e inocência de Raquel por deixar-se envolver na situação que
ele arquitetara.
Utilizando o amor, que dizia sentir por Raquel, como justificativa para a
evocação do mal por meio de uma vingança, Ricardo se mostra perverso ao colocar
sua paixão como pretexto para causar medo e dor ao ser amado: “Como se o Mal
fosse o meio mais forte de expor a paixão” (BATAILLE, 1989, p. 14). É a eliminação
do corpo-espaço da antiga amante que ele almeja, para isso, planeja tudo em
detalhes: primeiro com a insistência por um reencontro, segundo pela escolha do
contraespaço onde poderia concretizar seus planos sem testemunhas, por fim, a farsa
narrada seduz a jovem mulher, que tomada pela curiosidade acompanha o homem
até o mausoléu no qual encontravam-se seus mortos inventados.
ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora
as duas estão mortas (TELLES, 2009, p. 139).
umidade da chuva, até o altar fora maculado pelo descuido e pela invasão da fúria da
natureza que governava aquela heterotopia como senhora absoluta: “Entre os braços
da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como
farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo” (TELLES,
2009, p. 140). Toda a descrição do espaço estabelece uma tensão narrativa
compelindo a personagem feminina e o próprio leitor a descobrirem o
desenvolvimento da ação no momento da enunciação, sendo ambos dominados pela
curiosidade de desvendar o que existe além de todo o desleixo ao qual aquele lugar
fora submetido e o que está por trás do convite de Ricardo para um encontro em um
sítio tão imprevisível. Por esse ângulo, a heterotopia “une-se à personagem para
elaborar a perspectiva e o sentido do mistério que, na obra de Lygia, determinam uma
percepção intuitiva da realidade” (MATSUOKA, 2018, p. 2).
O enigma que cerca cada expressão, cada olhar de Ricardo faz parte de uma
performance para a concretização de um crime premeditado. Silva (2009, p. 84)
chama atenção para um detalhe que está além das descrições e ações do texto, isto
é, o fato de que Ricardo “inicia o processo de dissimulação bem antes do ponto em
que a narrativa principia”. Significando que fora dos limites textuais, no imaginário do
leitor, a narrativa possibilita a ideia de que o antagonista do conto tenha realizado
antes todo o percurso que fizera com Raquel até a catacumba e pensado em cada
artifício para atraí-la ao seu destino de morte, com todas as probabilidades de erros
e acertos: “escolha de um lugar ermo, descoberta do jazigo ideal, troca de fechadura
no portão da catacumba, garantia de ausência de testemunhas, encontro de um
pretexto para forçar uma entrevista com a vítima e atraí-la para a cilada” (SILVA, 2009,
p. 84). Tudo isso é possível inferir pelos vestígios deixados pelo narrador, que detalha
os elementos do espaço enfatizando os pontos que carecem da atenção da vítima,
assim como, do leitor. Ao ser convidada para descer ao subsolo da capela com a
evasiva de que a foto de Maria Emília exposta no túmulo provava a semelhança dos
olhos dela com os de Raquel, esta cai na armadilha traçada e quando, finalmente,
descobre a farsa não há mais escapatória.
Ao escrever sobre corpo e utopia, Foucault (2013, p. 15) afirma que o espelho
é um espaço que expõe o ser à imagem de si e o faz perceber que o “corpo não é
pura e simples utopia”. O espelho representa uma quebra de expectativa e desordem
134
quando permite ao sujeito constatar que ele existe em uma estrutura material, que o
seu corpo “tem uma forma, que esta forma tem um contorno, que no contorno há uma
espessura, um peso; em suma, que o corpo ocupa um lugar”. No entanto, o espelho
ocupa uma posição híbrida dentro da teoria foucaultiana, visto que de um lado ele é
um lugar abstrato onde não se pode penetrar fisicamente, isto é, uma utopia ou “um
espaço irreal que se abre virtualmente atrás da superfície” (FOUCAULT, 2001, p. 415).
Por outro lado, o espelho é simultaneamente uma heterotopia, um espaço outro que
é tangível, concreto “e que tem, no lugar que ocupo, uma espécie de efeito retroativo;
é a partir do espelho que me descubro ausente no lugar em que estou porque eu me
vejo lá longe” (FOUCAULT, 2001, p. 415). O espelho, então, consegue representar o
espaço que não existe, o não-lugar, ao mesmo tempo em que está presente como
outro-lugar, como heterotopia “no sentido em que ele torna esse lugar que ocupo, no
momento em que me olho no espelho, ao mesmo tempo absolutamente real”
(FOUCAULT, 2001, p. 415).
Segundo Daniel Defert (2013), heterotopias como o cemitério e o espelho
fazem parte de categorias específicas de unidades espaço-temporais que se
assemelham por serem espaços nos quais sincronicamente se está e não está: “o
espelho onde não estou reflete o contexto onde estou, o cemitério é planejado como
a cidade, há reverberação dos espaços, uns nos outros, e, contudo, descontinuidades
e rupturas” (DEFERT, 2013, p. 37). Essas irregularidades que formam os espaços-
tempos dessas heterotopias tão complexas são refrações da ordem na desordem e
vice-versa, são “representações polifônicas da vida, da morte, do amor, de Éros e
Tánatos” (DEFERT, 2013, p. 38). Também, a heterotopia do espelho é a
representação simbólica do encontro do sujeito consigo mesmo, dos olhos que
contemplam a imagem de si e questionam se aquele reflexo é autêntico ou distorcido,
que busca no universo virtual e aparente a compreensão do que se vê.
Nos contos “As Palavras Poupadas”, de Maria Judite de Carvalho, e “Noturno
Amarelo”, de Lygia Fagundes Telles, a heterotopia do espelho salienta o que não está
aparente na exterioridade dos corpos-espaços das protagonistas e
consequentemente media a relação entre elas e as outras personagens conforme vai
refletindo cenas de equívocos e verdades de um tempo que é pretérito, mas que
também é presente, pois narrados de forma bilateral, fundem-se. Graça e Laura,
protagonistas dessas narrativas, apesar de constituírem cada uma o seu perfil
particular e de suas trajetórias divergirem em determinados aspectos, apresentam
135
que vinham de fora. Assim, Graça construía sua realidade imaginando e fazendo
suposições pelo que ouvia e julgava ser real.
[...] Depois ia-se embora sempre em bico de pés (tinha o segredo dos
gestos silenciosos) e Graça deixava de sentir o peso insuportável da
sua presença. Os cuidados da madrasta eram uma ofensa, gostaria
de ser maltratada, pelo menos esquecida, e poder detestá-la à
vontade, sem mal-estar nem remorso. Mas não, nem isso lhe era dado
(CARVALHO, 2018, p. 138).
protagonista toma consciência do mal que causara e com “seus óculos de ver ao
longe” se questiona sobre suas escolhas e principalmente o fato de ter confiado àquela
mulher de caráter duvidoso um segredo que guardou consigo por alguns anos.
Agora Graça ouve outra vez as suas próprias palavras, as que dissera
– há quantos anos? – no living-room de Clotilde-minha-querida e que
lhe voltam, em ricochete, a soar falso como Judas. Tanto as pensara,
tantos as modelara... era como se tivesse sonhado e julgado o sonho
verdadeiro – acontece a toda gente – e o fosse contar a alguém. Ou
como se acabasse de levantar um falso testemunho pelo qual podia
vir a ser condenada (CARVALHO, 2018, p. 150).
que foram encobertas pelo tempo e pelos desencontros. Assim, em “Noturno Amarelo”
o jardim representa o encontro da protagonista com os espectros do passado, com os
equívocos e omissões que martirizam o seu ser.
Protagonista do conto, Laura também é a voz que narra os acontecimentos
da trama. Em uma combinação entre memória e o fantástico, a narrativa se desdobra
como um espetáculo cênico no qual as ações se desenvolvem em quadros onde cada
cena é focada em uma personagem do grupo familiar que, de alguma maneira, fora
prejudicada por Laura. O espaço insólito do jardim com a grande casa da família no
centro é a ilha que isola a protagonista dos seus problemas do presente e a transporta
para um tempo utópico que está fora do tempo real, para uma “noite dentro da noite”
(TELLES, 2009b, p. 125) na qual o seu corpo-espaço culpado anseia por reparação.
a sua frente, sempre guiada por Ifigênia que a todo instante vai realizando pequenos
gestos de cuidado e atenção como se Laura ainda fosse uma criança necessitada de
proteção. Contudo, os pormenores observados e feitos pela empregada são motivos
que fecham o primeiro ato de negligência da protagonista, revelando a sua falta com
aquela que tanto lhe deu carinho e dedicação, ao não cumprir o compromisso de
145eva-la para pagar uma promessa em Aparecida do Norte: “— Mas não foi por mal,
Ifigênia, é que fui adiando, adiando e acabei me esquecendo. Me perdoa?” ( TELLES,
2009b, p. 127).
O pedido de perdão interrompido e consequentemente não respondido pela
envelhecida e cansada empregada encerra o primeiro ato para logo em seguida
recomeçarem as novas cenas de acusações contra Laura, dessa vez exteriorizada
pela voz da irmã Ducha, personagem que entra na trama como delatora das maldades
da irmã mais velha.
2009b, p. 135), remetendo aos tons da cor que predomina por todo o enredo e que é
usada simbolicamente para destacar os pressupostos do grande dilema de Laura, da
razão maior da sua culpa. O amarelo, que segundo Chevalier & Gheerbrant (2012, p.
40), é a mais intensa, impetuosa e ardente das cores, simboliza ainda o presságio da
ruína, do confronto com a morte, além da estreita relação com a quebra da fidelidade
ao outro: “A porta dos traidores era pintada de amarelo a fim de atrair para ela a
atenção dos transeuntes, nos sécs. XVI e XVII” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2012,
p. 41). Também nas tradições do teatro chinês, a cor era utilizada na face dos atores
para assinalar que representavam ali os mais sórdidos atos de violência, assim como
a falsidade, a hipocrisia.
Toda essa discussão em torno da simbologia do amarelo é relevante para se
compreender que nessa narrativa a autora utiliza intencionalmente a cor como eixo
semântico para encadear o que é narrado por Laura com o que não é dito, com as
sugestões implícitas nos discursos ambíguos das demais personagens, nos silêncios.
Para além dos pequenos delitos cometidos pela protagonista como o descumprimento
de promessas feitas à Ifigênia e Ducha, ou mesmo a trapaça no jogo de xadrez com
o avô e a negligência com a avó, o que consome Laura é saber que por seus atos,
por sua traição, o ex-namorado Rodrigo tentara suicídio.
O tema da infidelidade, sugerido e posto em dúvida no conto “As Palavras
Poupadas”, aqui é abordado sem margens para equívocos. Laura, que confessa o seu
erro, descreve como tudo aconteceu na tentativa de conseguir a remissão da sua
culpa e ter de volta a confiança e amizade da prima Eduarda, mais uma vítima dos
seus impulsos.
mais remorso pela leviandade praticada. No entanto, nesse ato do acerto de contas
entre mulheres, ao invés da fuga e da permanência da desarmonia entre elas por
causa do amor de um homem, Lygia Fagundes Telles, diferentemente de Maria Judite
de Carvalho, opta por desfazer os mal-entendidos e os laços de inimizade que ficaram
devido a traição da protagonista. Assim, Laura e Eduarda em uma comovente cena
de cumplicidade, se perdoam sem emitirem palavras, apenas expressando suas
verdades pelos olhares e pelo toque das mãos, simbolizando que entre elas o perdão
era genuíno.
As palavras foram poupadas por Lygia para fechar esse ciclo de culpa da
protagonista referente a transgressão que mais lhe pesava, mas a autora não
economizou na descrição dos gestos e olhares, uma vez que na insólita noite de
explicações e indulgências de Laura eles são os mais relevantes para reafirmar tanto
o perdão do outro como também o seu autoperdão. Todavia faltava-lhe ainda o
reencontro com o sujeito que sofreu o maior infortúnio e de quem lembrara desde o
primeiro momento que adentrou naquele espaço, faltava à Laura o último pedido de
desculpas, faltava-lhe ficar face a face com o ex-namorado.
Rodrigo é a personagem mais citada no conto: sempre esperando a sua
chegada, a família vai tecendo as suas características e construindo para o leitor o
perfil de um homem melancólico, frágil e de atitudes drásticas. O medo de vê-lo, mas
ao mesmo tempo o desejo da reconciliação, faz Laura perguntar insistentemente por
sua recuperação e seu estado de saúde atual, obtendo como resposta a informação
de que, sem ela, o rapaz se transformara numa pessoa mais feliz.
Saí pela porta da frente e antes mesmo de dar a volta na casa já tinha
adivinhado que atrás da porta por onde todos tinham saído não havia
nada, apenas o campo.
Atravessei o jardim que não era mais jardim sem o portão. Sem o
perfume. A vereda (mais fechada ou era apenas impressão?) fora
desembocar na estrada: o carro continuava lá adiante com suas portas
abertas e seus dois faróis acesos. Fernando tapava o vasilhame
(TELLES, 2009b, p. 137).
CONCLUSÃO
Hélène Cixous
se faz a partir das pequenas angústias diárias de personagens que são tomadas por
conflitos gerados a partir de práticas sociais que são institucionalizadas e as
consomem por serem criaturas que não se ajustam ao padrão estabelecido.
Observando as narrativas das duas escritoras percebe-se uma melancolia em comum,
uma profunda ânsia transmitida por suas personagens que desapontadas com o
universo entorno, se entregam à solidão.
Tanto Maria Judite quanto Lygia possuem a agudeza do lirismo poético
transposto em prosa, tomando a palavra como ponte que se eleva através dos
sentidos e atingem a consciência do leitor incomodando-o, tirando-o da zona de
conforto. Assim, suas narrativas trazem uma universalidade temática que pode ser
compreendida sem a necessidade de suplementos de leitura, porque falam de uma
verdade que é comum ao humano, de aspirações e inquietude que são próprias a
qualquer indivíduo. Mergulhando nas profundezas da alma, elas escrevem sobre a
fragilidade dos laços humanos, sobre a amargura de envelhecer sem ter notado a vida
passar, sobre as relações familiares, sobre o amor não correspondido, sobre o
processo de socialização do sujeito, sobre diferenças, sobre opressões. Entre tantas
opressões escritas é a da mulher a mais abordada, a mais contundente, a mais
profundamente sentida porque é refratada das experiências que lhes são inerentes.
Nos textos juditianos e lygianos a representação do feminino conversa com
todos os elementos narrativos, mas é especial a sua relação com o espaço. A mulher,
que historicamente foi confinada aos espaços da subjetividade, do privado,
trancafiadas em suas casas ou conventos, ganharam na narrativa moderna a
possibilidade de transitarem entre lugares, mundos, planos diferentes. Envolvendo
sujeitos femininos com os espaços, em um jogo narrativo permeado de elementos
simbólicos, Maria Judite e Lygia retiram suas personagens dos espaços comuns e
fazem-nas transitar por espaços outros, ou por heterotopias, conforme Foucault (2001,
2013) as descreveu.
A relevância para esta pesquisa do pequeno e único texto de Foucault (2001),
no qual ele trata das heterotopias, foi fundamental para o estabelecimento da
compreensão teórica da categoria do espaço que mais se aproximava das escolhas
estilísticas das escritoras. Deste modo, o espaço foi estudado a partir de uma
perspectiva que parte do contexto social representado para a análise do figurado, do
metafórico, uma vez que as heterotopias encontradas na prosa juditiana e lygiana,
mesmo atravessadas pelo social, são intensamente envolvidas pelo simbólico.
152
REFERÊNCIAS
TELLES, Lygia Fagundes. A disciplina do Amor [1980]. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010a.
_____. Antes do baile verde [1970]. São Paulo: Companhia das Letras, 2009a.
_____. Seminário dos ratos [1977]. São Paulo: Companhia das Letras, 2009b.
_____. A estrutura da bolha de Sabão [1991]. São Paulo: Companhia das Letras,
2010b.
_____. A noite escura e mais eu [1995]. São Paulo: Companhia das Letras, 2009c.
_____. Durante aquele estranho chá [2002]. São Paulo: Companhia das Letras,
2010c.
_____. Invenção e memória [2000]. São Paulo: Companhia das Letras, 2009d.
_____. Contos Esparsos. In: _____. Os contos. São Paulo: Companhia das Letras,
2018.
• Entrevistas
_____. As raízes obscuras da criação. Jornal de Hoje, 1980. Disponível em: <http://
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