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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE – UFRN

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES – CCHLA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM – PPGEL
DOUTORADO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM
ÁREA: ESTUDOS EM LITERATURA COMPARADA
LINHA DE PESQUISA: LITERATURA E MEMÓRIA CULTURAL

CONFIGURAÇÕES DO ESPAÇO NA LITERATURA DE AUTORIA FEMININA:


Maria Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles

MIDIÃ ELLEN WHITE DE AQUINO

NATAL-RN
2021
MIDIÃ ELLEN WHITE DE AQUINO

CONFIGURAÇÕES DO ESPAÇO NA LITERATURA DE AUTORIA FEMININA:


Maria Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação


em Estudos da Linguagem – PPGEL, da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em
cumprimento às exigências legais, como requisito
final para obtenção do título de Doutora em Estudos
da Linguagem sob a orientação da Profa. Dra.
Wiebke Röben de Alencar Xavier.

Área de concentração: Estudos em Literatura


Comparada.
Linha de Pesquisa: Literatura e Memória Cultural.

NATAL-RN
2021
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Aquino, Midiã Ellen White de.


Configurações do espaço na literatura de autoria feminina:
Maria Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles / Midiã Ellen
White de Aquino. - Natal, 2021.
167f.

Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes,


Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, 2021.
Orientadora: Profa. Dra. Wiebke Röben de Alencar Xavier.

1. Espaço - Tese. 2. Campo literário - Tese. 3. Autoria


Feminina - Tese. 4. Heterotopia - Tese. 5. Corpo-espaço feminino
- Tese. I. Xavier, Wiebke Röben de Alencar. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 82.091

Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710


MIDIÃ ELLEN WHITE DE AQUINO

CONFIGURAÇÕES DO ESPAÇO NA LITERATURA DE AUTORIA FEMININA:


Maria Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da


Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito final para obtenção do
título de Doutora em Estudos da Linguagem, pela banca examinadora constituída
pelas seguintes professoras:

Banca Examinadora

_____________________________________
Profa. Dra. Wiebke Röben de Alencar Xavier – UFRN
Presidente

_____________________________________
Profa. Dra. Rosanne Bezerra de Araújo – UFRN
Examinadora Interna

_____________________________________
Profa. Dra. Juliane Vargas Welter – UFRN
Examinadora Interna

_____________________________________
Profa. Dra. Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne – UFPB
Examinadora Externa

_____________________________________
Profa. Dra. Mona Lisa Bezerra Teixeira
Examinadora Externa

Natal (RN), 22 de julho de 2021.


Às mulheres:
Àquelas que vieram antes de mim e
batalharam por mudanças;
Às do meu tempo que ainda precisam lutar
todos os dias contra o ódio, o sistema e a
indiferença;
Às do futuro que possam respirar com
segurança e viver em igualdade!
AGRADECIMENTOS

A Deus, porque minha fé n’Ele é a força que me mantém firme todos os dias.
À minha orientadora, professora Wiebke, pelo cuidado, delicadeza e
cordialidade com que sempre me atendeu.
Às professoras Rosanne, Juliane e Luciana, pelas contribuições dadas à
minha pesquisa na qualificação.
À minha família, pela paciência, cuidados e compreensão.
À minha valiosa amiga Keynesiana, por todas as palavras de apoio e
encorajamento, e por sempre fazer uma leitura cuidadosa dos meus trabalhos.
À Jaíza, amiga querida com quem dividi momentos de alegria e angústia
durante todo o tempo que compartilhamos a mesma casa e por quem tenho grande
apreço.
Aos estimados Jéssica e Ramon, amigos conquistados nas salas de aula do
PPgEL, os quais levo com respeito e carinho para a vida.
Aos meus professores.
Muito Obrigada!
XIII

Como são tristes, que tristes


as coisas que não chegaram,
que não passaram o muro;

As esperadas palavras
que ficaram por dizer,
não vieram, não partiram,
deixaram-se apodrecer

− Palavras ajuizadas,
velhotas e resguardadas
com medo de se perder.
Dias feitos de sonhar,
gastos a mastigar histórias
que só souberam morar
dentro das nossas memórias;

os filhos que não nasceram,


de olhos parados, a olhar
a vida que não tiveram.

(Maria Judite de Carvalho, In: A Flor que havia


na água parada, 2019, p. 300)
RESUMO

Esta tese apresenta um estudo comparativo entre as literaturas das escritoras Maria
Judite de Carvalho (1921, Lisboa – 1998, Lisboa) e Lygia Fagundes Telles (1923, São
Paulo –), tendo por objetivo analisar como o espaço social da autoria feminina é
definido no campo literário luso-brasileiro e como os espaços narrativos são
construídos nos contos “Além do Quadro” e “As Palavras Poupadas”, da autora
portuguesa, “Venha Ver o Pôr do Sol” e “Noturno Amarelo”, da escritora brasileira.
Para tanto, o trabalho foi estruturado a partir de dois eixos teórico-metodológicos: o
primeiro, com base nas ideias sobre campo literário e habitus de Pierre Bourdieu
(1996, 2003, 2012, 2015), investiga-se por um viés sociológico a trajetória da autoria
feminina em contextos heterogêneos para se compreender a maneira como as
autoras interpretaram a sua época e conquistaram um lugar de consolidação no
campo literário luso-brasileiro. A segunda perspectiva de análise tem como foco a
construção do espaço enquanto categoria narrativa, objetivando examinar como os
espaços heterotópicos são representados, de acordo com Michel Foucault ([1967]
2001). Portanto, analisa-se os lugares heterotópicos como sanatório, asilo, cemitério,
espelho e jardim, observando as relações entre espaço e poder simbólico em
confronto com os corpos-espaços femininos representados nos contos. Por
considerar-se os corpos das personagens femininas analisadas também como
heterotopias, algumas tipologias foram traçadas visando a compreensão de questões
relativas à violência simbólica que o poder androcêntrico impõe ao corpo-espaço das
mulheres, são elas: corpo-espaço doente, corpo-espaço insubmisso, corpo-espaço
dócil, corpo-espaço órfão, corpo-espaço coisificado, corpo-espaço cativo e corpo-
espaço culpado. A partir da análise observa-se, portanto, que os espaços
representados nas narrativas juditianas e lygianas refratam o contexto de opressão
do sujeito feminino, são contraespaços que unidos ao simbólico traduzem o medo e a
insegurança, o silêncio e a solidão, a precisa angústia da escritura feminina.

Palavras-chave: Espaço. Campo literário. Autoria Feminina. Heterotopia. Corpo-


espaço feminino.
ABSTRACT

This dissertation presents a comparative study between the literary work of the writers
Maria Judite de Carvalho (1921, Lisbon – 1998, Lisbon) and Lygia Fagundes Telles
(1923, São Paulo –) and it aims at analyzing how the social space of female authorship
is defined in the Portuguese-Brazilian literary field and how the narrative spaces are
constructed in the short stories “Além do Quadro” and “As Palavras Poupadas”, by the
Portuguese author, “Venha Ver o Pôr do Sol” and “Noturno Amarelo”, by the Brazilian
writer, respectively. Therefore, this work was structured from two theoretical-
methodological axes: the first one, based on Pierre Bourdieu (1996, 2003, 2012, 2015)
and the ideas of the literary field and habitus, examines, from a sociological
perspective, the trajectory of female authorship in heterogeneous contexts in order to
understand the way in which Carvalho and Telles interpreted the period they lived as
well as how such writers attained a place of consolidation in the Portuguese-Brazilian
literary field. The second perspective of analysis focuses on the construction of space
as a narrative category, as it seeks to examine how heterotopic spaces, according to
Michel Foucault ([1967] 2001), are represented. Therefore, heterotopic places such as
sanatoriums, asylums, cemeteries, mirrors, and gardens were studied, taking the
relations between space and symbolic power in confrontation with the female bodies-
spaces depicted in aforementioned short stories into consideration. Moreover, for the
bodies of the female characters looked into this research are also viewed as
heterotopies, some typologies were drawn in order to understand issues related to the
symbolic violence that androcentric power imposes on women's body-space, for
instance: ill body-space, unruly body-space, docile body-space, orphan body-space,
objectified body-space, captive body-space, and guilty body-space. Through the
analysis, it was thus observed that the spaces represented in the Juditian and Lygian
narratives resound the context of oppression towards the female subject, once they
are counter spaces that, when placed with the symbolic, translate fear and insecurity,
silence and loneliness, as well as the precise anguish of women’s scripture.

Keywords: Space. Literary field. Women’s authorship. Heterotopy. Women’s body-


space.
RÉSUMÉ

Cette thèse présente une étude comparative entre les contes des femmes écrivains
Maria Judite de Carvalho (1921, Lisboa – 1998) et Lygia Fagundes Telles (1923, São
Paulo –), en visant à analyser comment l'espace social de l'écriture féminine est définie
dans le champ littéraire luso-brésilien et comment les espaces narratifs sont construits
dans les contes “Além do Quadro” et “As Palavras Poupadas”, par l'auteur portugais,
“Venha Ver o Pôr do Sol” et “Noturno Amarelo”, de l'écrivain brésilien. À cette fin, le
travail a été structuré à partir de deux axes théoriques et méthodologiques: le premier,
basé sur les idées de Pierre Bourdieu sur le champ littéraire et l'habitus (1996, 2003,
2012, 2015), est étudiée dans une perspective sociologique la trajectoire des auteurs
féminins dans des contextes hétérogènes pour comprendre comment les auteurs ont
interprété leur époque et conquis une position de consolidation dans le champ littéraire
luso-brésilien. La deuxième perspective d'analyse se concentre sur la construction de
l'espace en tant que catégorie narrative, visant à examiner la manière dont les espaces
hétérotopiques sont représentés, en conformité avec Michel Foucault ([1967] 2001).
Par conséquent, les lieux hétérotopiques tels que le sanatorium, l'asile, le cimetière, le
miroir et le jardin sont analysés, visant à observer les relations entre espace et pouvoir
symbolique en confrontation avec l'espace du corps féminins représentés dans les
contes. En considérant les corps des personnages féminins analysés également
comme des hétérotopies, certaines typologies ont été établies afin de comprendre les
questions liées à la violence symbolique que le pouvoir androcentrique impose à
l'espace du corps féminins: espace du corps malade, espace du corps rebelle, espace
du corps docile, espace du corps orphelin, espace du corps objectivé, espace du corps
captif et espace du corps coupable. L'analyse montre que l’espaces représentés dans
les narratifs juditianas e lygianas réfracter le contexte d'oppression du sujet féminin,
sont des contre-espaces qui s'unissent pour traduire symboliquement la peur et
l'insécurité, le silence et la solitude, l'angoisse précise de l'écriture féminine.

Mots-clés: L'espace. Le champ littéraire. Écriture féminine. L'hétérotopie. l'espace du


corps féminins.
SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................ 11

Capítulo 1 – PONTOS CONCEITUAIS SOBRE ESPAÇO E LITERATURA ............ 19


1.1 Espaço social e o campo literário ........................................................................ 21
1.2 Espaço como categoria narrativa e as heterotopias ............................................ 24
1.3 O Corpo como espaço e a representação do feminino ....................................... 27

Capítulo 2 O ESPAÇO DA AUTORIA FEMININA NO CAMPO LITERÁRIO ............ 31


2.1 Vozes que emergiram do silêncio: trajetórias da escritura feminina .................... 33
2.2 O campo literário luso-brasileiro e a produção das mulheres.............................. 51
2.3 O mercado de bens simbólicos e as regras da arte ............................................ 66

Capítulo 3 – UM TEMPO, DOIS ESPAÇOS: afinidades e assimetrias entre as


literaturas de Maria Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles ............................. 76
3.1 Diálogos e Travessias: a escrita como transgressão .......................................... 78
3.2 Para além da solidão e da angústia: notas sobre a escritura juditiana ................ 95
3.3 Entre a lucidez e o pulsar de “um coração ardente”: apontamentos sobre a
escritura lygiana ...................................................................................................... 103

Capítulo 4 – TECENDO O ESPAÇO: sobre heterotopias e o corpo-espaço feminino


representado nas narrativas juditianas e lygianas .................................................. 111
4.1 Os corpos-espaços heterotópicos versus o corpo-espaço utópico e as
heterotopias de desvio em “Além do Quadro” ......................................................... 112
4.2 A Heterotopia do cemitério e a violência simbólica em “Venha Ver o Pôr
do Sol” ..................................................................................................................... 124
4.3 Entre espelhos e jardins: lembrança e culpa em “As Palavras Poupadas” e
“Noturno Amarelo” ................................................................................................... 133

Conclusão .............................................................................................................. 149

Referências ............................................................................................................ 154


11

INTRODUÇÃO

Testemunhar o seu tempo e da sua sociedade – é a


função do escritor.
Lygia Fagundes Telles

Os estudos comparatistas, dentre muitas contribuições às pesquisas em


literatura, permitem perceber o que há de semelhante e divergente nas concepções
de mundo representadas em literaturas que são oriundas de realidades sociais
diferentes e de culturas distantes. Isso acontece porque como discurso ideológico, a
literatura é intrinsecamente dialógica, ela está sempre interagindo com os demais
campos da sociedade e também com o próprio universo literário, isto é, ela é
influenciada tanto por fatores externos como internos.
Pierre Bourdieu, em O Poder Simbólico (2012), chama a atenção para essa
dupla percepção de análise que a arte possui, a qual deve ser observada atentamente
pela ciência e pelos pesquisadores. Assim, para esse sociólogo francês, a arte possui
uma necessidade interna em que a compreensão da obra parte de si mesma,
enquanto objeto estético, com uma forma artística rica em elementos de reflexão,
apreciação e fruição sem necessariamente relacioná-la a um referente externo, mas
do qual é refração. Já por outro lado, a arte dispõe também de uma necessidade
externa, ou seja, de que sejam feitas apreciações “do encontro entre a trajectória e
um campo, entre uma pulsão expressiva e um espaço dos possíveis expressivos, que
faz com que a obra, ao realizar as duas histórias de que ela é produto, as supere”
(BOURDIEU, 2012, p. 70).
É com base nessas acepções que se situa este trabalho, no qual se propõe
fazer uma análise comparativa entre as literaturas de duas escritoras que
compartilharam um mesmo tempo histórico, mas em campos literários diferentes: de
um lado a autora de Portugal, Maria Judite de Carvalho (1921, Lisboa – 1998, Lisboa),
de outro, a autora do Brasil, Lygia Fagundes Telles (1923, São Paulo –). Apesar de
estarem separadas territorialmente, há uma profunda afinidade entre as obras dessas
mulheres, especialmente no que tange a representação das angústias do sujeito
moderno frente aos desajustes dos relacionamentos afetivos, familiares e sociais.
12

Tanto nas narrativas juditianas quanto nas lygianas encontram-se personagens


inebriadas pela solidão, pelo sentimento de desconcerto ante ao mundo e que por isso
buscam respostas; além disso é perceptível a similaridade na maneira como os temas
são abordados, no estilo que ambas compõem suas narrativas.
Exímias na arte do conto, essas escritoras trabalham com perícia a
introspecção, abordando de maneira delicada as proezas do cotidiano, atentando a
detalhes que de tão corriqueiros poderiam passar despercebidos. Contudo, elas não
deixam que seus leitores tenham todas as respostas no momento imediato da leitura,
nem tudo é dito. Massaud Moisés (1999, p. 357), ao discorrer sobre o conto de Maria
Judite de Carvalho, descreve que a autora trabalha muito bem com a “arte do
implícito”, o qual nasce a partir “de um modo específico de encarar o fenômeno do
mundo, a comédia das vaidades humanas e os dramas ocultos em cada existência
aparentemente incolor” e isso também é semelhante em Lygia Fagundes Telles.
Mas de que maneira os dramas velados das personagens juditianas e
lygianas são descobertos ante o leitor? Ambas as escritoras constroem um complexo
jogo textual no qual as personagens são submersas em memórias que vertem em
narrativas densas nas quais a oscilação temporal entre o passado e o presente ocorre
subitamente sem que o leitor seja advertido. Assim, suas personagens vão se
revelando por meio da interioridade, do fluxo de consciência que de tão intenso
impede-as de viverem uma relação harmônica com o outro, daí surgem os
sentimentos de inadequação, de desordem interior que as atormentam.
Se o fio temporal é de grande valor para a construção das narrativas dessas
escritoras, também é muito relevante a maneira como estas envolvem as suas
personagens com os espaços circundantes. Bastantes sugestivos, os espaços são
delineados em concordância com o eu das personagens. São nesses lugares,
geralmente solitários e tenebrosos que as reminiscências ou os sonhos de um futuro
revelam o íntimo dos sujeitos ficcionais, suas identidades.
Isto posto, como base para o processo investigativo e análise dos textos
literários, algumas indagações servirão de orientação para o desenvolvimento dos
objetivos desta pesquisa, a saber: Como representantes de uma tradição e de um
campo literário, em que medida a contextualização da realidade objetiva se torna
importante para o processo de tessitura, produção e circulação das obras de Maria
Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles? De que maneira os espaços são
13

construídos nos contos das escritoras? Como essas autoras representam a voz e o
espaço do feminino em suas narrativas?
Com o objetivo de comparar e analisar como o espaço social da autoria
feminina é definido no campo literário luso-brasileiro e como os espaços narrativos
são construídos em contos de Maria Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles,
foram traçadas duas perspectivas de investigação para o estudo dessa categoria. Na
primeira, a abordagem do espaço seguirá a linha sociológica baseada principalmente
nas ideias de Pierre Bourdieu (1996) e Pascale Casanova (2002) sobre o campo
literário e como ele se estrutura. Na busca por se compreender como as motivações
externas são relevantes para a produção literária, vasculha-se na história o lugar da
autoria feminina para interpretar-se o processo de criação das escritoras Maria Judite
de Carvalho e Lygia Fagundes Telles em suas tomadas de posições enquanto
produtoras de material simbólico. Trata-se de observar de que maneira essas
escritoras foram inseridas nos seus campos literários para refletir-se como essas
autoras interpretaram a sua época.
A ideia de campo literário aqui discutida baseia-se principalmente nos
conceitos de Bourdieu conforme são abordados no livro As Regras da Arte (1996),
publicado em francês no ano de 1992. Embora o autor tenha focado seus estudos em
um campo literário europeu e exclusivamente masculino, suas reflexões e método a
respeito do funcionamento do universo literário também se aplicam ao lugar da autoria
feminina, visto que este também faz parte de um campo literário universal, de acordo
as definições que Casanova (2002) apresenta em seus estudos sobre a ideia de
“literariedade” e “universalidade”.
A segunda perspectiva de análise concentra-se no âmbito da construção do
espaço enquanto categoria narrativa, com vistas a examinar como os espaços
heterotópicos são representados – observando-se as fronteiras de reconhecimento
extratextual –, conforme as definições de Michel Foucault (2001, 2013). O
pensamento foucaultiano sobre heterotopia refere-se aos espaços outros, que se
diferenciam e insurgem contra os espaços reais de aceitação social. São os lugares
de transgressões, que são concebidos para servirem de abrigo, retirada, esconderijo,
descanso temporário ou eterno. São “contraespaços” por se distanciarem
simbolicamente dos lugares tidos como padrões ou normais. Espaços outros, que
surgem como oposição ao espaço comum de prestígio e real.
14

Quanto às heterotopias propriamente ditas, como se poderia


descrevê-las, que sentido elas têm? Seria possível supor, não digo
uma ciência, pois é uma palavra muito depreciada atualmente, mas
uma espécie de descrição sistemática que teria por objeto, em uma
dada sociedade. O estudo, a análise, a descrição, a "leitura", como se
gosta de dizer hoje em dia, desses espaços diferentes, desses outros
lugares. Uma espécie de contestação simultaneamente mítica e real
do espaço em que vivemos; essa descrição poderia se chamar
heterotopologia (FOUCAULT, 2001, p. 415).

As heterotopias, portanto, são os lugares que expressam o transtorno, o


desassossego de uma sociedade que se julga equilibrada e por essa razão afasta de
si tudo que possa causar constrangimento. Daí o distanciamento necessário desses
contraespaços e dos sujeitos que a eles são destinados.
Por conseguinte, também nesse eixo analítico busca-se investigar sobre o
poder simbólico e as imposições sociais ao corpo-espaço feminino, em um diálogo
entre as ideias de Michel Foucault (2013), Pierre Bourdieu (2019) e Elódia Xavier
(2021). As relações entre heterotopia e corpo se constroem, segundo Oliveira Brandão
(2015), pelo fato de que em certas heterotopias o corpo se manifesta como um lugar
de resistência, como um espaço de “fronteira”, de transição e metamorfose. Isso
acontece porque a heterotopia não é um espaço tão somente geográfico, ao contrário,
é um lugar que está em acentuada ligação com o simbólico. Logo, ao sofrer a
interferência do simbólico a concepção de espaço permite significados abstratos que
ultrapassam a ideia do puramente concreto.
O estudo das representações do corpo em narrativas de autoria feminina é
muito significativo e, de acordo com Elódia Xavier (2021, p. 22), ainda se faz
necessário “uma vez que o corpo aí representado é local de inscrições ‘sociais,
políticas, culturais e geográficas’”. A autora que elenca uma interessante tipologia
(corpo invisível, corpo subalterno, corpo disciplinado, dentre outros) aos corpos
representados em diversas obras de autoras brasileiras, evidencia – com base em
Bourdieu (2019) – o quanto essas escritoras transfiguram em seus textos a violência
simbólica que subjuga o controle dos corpos femininos submetendo-os aos mais
copiosos tipos de hostilidades e coerções.
Seguindo esse percurso analítico, algumas subcategorias foram
desenvolvidas para melhor se compreender a representação dos corpos-espaços
femininos presentes nos textos juditianos e lygianos, são elas: corpo-espaço doente,
15

corpo-espaço insubmisso, corpo-espaço dócil, corpo-espaço órfão, corpo-espaço


coisificado, corpo-espaço cativo e corpo-espaço culpado.
Assim, o trabalho contemplará um corpus que abrange uma seleção de quatro
contos presentes nos livros As Palavras Poupadas (1961) e Além do Quadro (1983),
de Maria Judite de Carvalho. E nas obras Antes do Baile Verde (1970) e Seminário
dos Ratos (1977), da segunda autora. As narrativas selecionadas para o estudo das
categorias propostas foram “Além do Quadro” e “As Palavras Poupadas”, escritas pela
escritora portuguesa; “Venha Ver o Pôr do Sol” e “Noturno Amarelo”, de autoria da
escritora brasileira. Esses contos foram selecionados por tratar-se de histórias
produzidas em períodos históricos próximos, entre as décadas de 60 e 80 do século
XX, sendo textos representativos de uma época de muitas inovações e
experimentações no gênero narrativo e que refratam com mestria as angústias e
aspirações das autoras. Nesses contos as heterotopias são bastante expressivas, e,
por unirem-se de forma simbólica aos corpos-espaços das personagens femininas
tornam-se indispensáveis para a compreensão da essência dos enredos.
Para a concretização desta pesquisa fez-se necessário conhecer o que já foi
dito pelos/as estudiosos/as que também realizaram uma analogia entre as autoras
Maria Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles, observando os enfoques dados
por estes/as. Uma vez que, conforme explica Leyla Perrone-Moisés (1990, p. 94):

[...] a literatura comparada não só admite, mas comprova que a


literatura se produz num constante diálogo de textos, por retomadas,
empréstimos e trocas. A literatura nasce da literatura; cada obra nova
é uma continuação, por consentimento ou contestação, das obras
anteriores, dos gêneros e temas já existentes. Escrever é, pois,
dialogar com a literatura anterior e com a contemporânea.

Nos principais repositórios de teses e dissertações no Brasil e em Portugal


constam cinco trabalhos que traçam comparações entre Maria Judite de Carvalho e
Lygia Fagundes Telles: sendo duas teses e três dissertações.
Elza Carrozza Wagner em sua tese A Configuração do Relacionamento
"Homem-Mulher" nos Contos de Maria Judite de Carvalho e de Lygia Fagundes Telles
(1990) mostra os conflitos entre os sexos, observando como a mulher é representada
nos relacionamentos afetivos e sociais. Nesse trabalho a autora discorre sobre o
feminino e a luta pela construção da identidade que marcam as personagens de Maria
Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles.
16

A questão dos relacionamentos também está presente na pesquisa de


mestrado Um Estudo dos Triângulos Amorosos em Verão No Aquário e em Os
Armários Vazios (2014), de Amiltes Helena Sergio Bauab. Nesse trabalho a autora
compara as narrativas juditianas e lygianas aos moldes das narrativas folhetinescas e
foca sua análise no conflito romântico entre mães, filhas e o homem desejado por
ambas. Realizando algumas reflexões sobre os papéis femininos na sociedade,
Bauab conclui que, mesmo na relação familiar em que só existe a presença feminina,
as mulheres nessas obras vivem enclausuradas e recônditas em suas
individualidades, sem ajudarem umas às outras, sem construírem laços mais
profundos.
Uma abordagem singular dentro dos estudos dessas escritoras é apresentada
por Camila Marcia Foganholi Motta ao analisar a representação do homem em sua
dissertação Um Retrato da Figura Masculina em Contos de Orlanda Amarílis, Lygia
Fagundes Telles e Maria Judite De Carvalho (2014). A autora estuda o
comportamento de três personagens masculinos dentro dos relacionamentos
familiares e como estes são construídos artisticamente. Nos contos analisados vê-se
que as escritoras Maria Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles arquitetam
personagens que em nada se aproximam, o protagonista lygiano é frágil e possui
grande sensibilidade, é completamente dependente dos laços familiares,
especialmente da figura materna, enquanto o protagonista juditiano é o protótipo do
homem machista, autoritário e de atitudes arbitrárias. Para a construção de sua
análise, Motta utilizou vários estudos da teoria literária que contemplam a categoria
da personagem.
Contribuindo com os estudos sobre a psicologia das personagens, Roberta
Fresneda Villibor Sperandio escreve em sua dissertação, Leituras da Morte e da
Solidão em Maria Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles (2009), sobre como o
sujeito é afetado pela modernidade e constrói sua análise mostrando como os
percalços sociais e históricos são preponderantes para o desajustamento emocional
do indivíduo.
Como no Brasil, também em Portugal existe apenas uma tese que compara
as obras das duas escritoras em estudo. Escrito por Dora M. M. P. de Lima, o trabalho
Condição Humana e Condição Feminina Segundo Maria Judite de Carvalho e Lygia
Fagundes Telles (2002) não está disponível nos repositórios digitais portugueses, o
que impossibilita o conhecimento do seu conteúdo.
17

A análise da fortuna crítica produzida pelas universidades referentes às obras


das escritoras Maria Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles mostra que é
demasiada a relação de semelhança entre os temas abordados pelas autoras, mesmo
que estas estivessem separadas por uma considerável distância geográfica e
escrevendo para públicos de realidades diferentes. Contudo, os trabalhos não
atentaram para o porquê de tamanha semelhança e algumas divergências entre elas:
tradição, contexto literário, influências literárias, filosóficas e políticas. O que estava
sendo produzido nas literaturas portuguesa e brasileira no período em que Carvalho
e Telles escreveram seus textos? Quais poetas, romancistas, pensadores se
destacavam na época? Quais reações as obras juditianas e lygianas causaram no
primeiro público leitor? As respostas a esses questionamentos são importantes
porque auxiliam na interpretação das obras dessas escritoras, visto que a literatura é,
por natureza, plurissignificativa. Desvendar essas narrativas ajuda a elucidar
possíveis lacunas que a teoria nem sempre consegue contemplar, pois o texto literário
sempre a ultrapassa. Deste modo, esta pesquisa se torna relevante por trazer certo
teor de originalidade e inovação em sua proposta de estabelecer o diálogo entre a
trajetória literária e os textos de Maria Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles por
meio de uma abordagem que entrelaça vida e obra das autoras aos campos literários
do qual elas são representantes.
Ante o exposto, esta tese está organizada em quatro capítulos, sendo o
primeiro capítulo dedicado a uma discussão teórico-metodológica sobre os conceitos
de espaço trabalhados nesta pesquisa.
No segundo capítulo analisa-se o espaço da autoria feminina no campo
literário, observando o percurso pela autonomia literária das mulheres no cenário
internacional. Também se discute sobre como o mercado de bens simbólicos se
comporta em relação à autoria feminina, atentando para questões de produção, crítica
e recepção das obras. Trabalha-se com os conceitos de campo literário de Pierre
Bourdieu (1996, 2003, 2012, 2015) e de literarização de Pascale Casanova (2002) em
diálogo com a historiografia literária e a crítica feminista.
Já no terceiro capítulo são contempladas questões que analisa a posição
das escritoras Maria Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles no campo literário
luso-brasileiro. Observa-se como se materializa literariamente a consciência crítico-
social dessas escritoras sobre os seus espaços sociais de origem, no momento
histórico de criação das suas narrativas. Para tanto, investiga-se em correspondências
18

pessoais, entrevistas e algumas narrativas as relações de afinidades e assimetrias


entre as duas autoras.
O quarto capítulo detém-se ao estudo dos contos juditianos e lygianos, com
vistas a interpretar os espaços heterotópicos dos textos. Estuda-se nas narrativas
sobre como o corpo-espaço feminino é simbolicamente representado como um lugar
de descobertas, aprisionamento ou libertação em diferentes esferas sociais, nos quais
prevalecem julgamentos sempre carregados de hostilidades. Também são
desenvolvidas algumas tipologias que caracterizam o posicionamento das
personagens femininas nos espaços narrativos. E destacam-se ainda, algumas
geografias heterotópicas como asilo, sanatório, cemitério, jardim e espelhos, onde se
observa como o simbólico traduz o posicionamento das autoras em seus campos
literários.
19

CAPÍTULO 1
PONTOS CONCEITUAIS SOBRE ESPAÇO E LITERATURA

A cura está no tempo, dizem,


mas, ela pensa, por que não
no espaço?
ou antes não há cura
a vontade de partir antecede sempre
a casa
estamos para ir
prestes, mas não prontos
só vigor e vontade
lar, ela pensa, é sempre lá
(talvez, lançar-ser)

Ana Martins Marques

A categoria do espaço, que por muito tempo ficou à margem nos estudos
literários, vem conquistando o interesse dos pesquisadores contemporâneos
adquirindo a cada dia novas contribuições e ampliando a sua relevância enquanto
objeto de teorização em literatura. Luis Alberto Brandão (2013), em seu pertinente
trabalho sobre as Teorias do Espaço Literário, aponta para a complexidade que existe
em torno da conceitualização do termo devido ao seu caráter transdisciplinar, no qual
assume funções diferentes em cada área de conhecimento, dependendo da
perspectiva que é abordado. Mesmo no campo dos estudos literários, a categoria do
espaço mostra-se versátil, existindo “no escopo da Teoria da Literatura, diferentes
concepções de espaço, as quais nem sempre revelam, explícita e contrastivamente,
suas idiossincrasias, mesmo em casos em que estas geram perspectivas teóricas
conflituosas ou incompatíveis” (BRANDÃO, 2007, p. 208).
Na literatura, essa categoria atua como um conjunto de referências do mundo
exterior que podem ser concretas ou abstratas, e cumpre uma significativa posição
para o desdobramento dos efeitos de sentidos dispostos na obra. Por esse motivo, se
faz necessário problematizar esse elemento narrativo como forma de interpretação da
linguagem literária e da sociedade. Portanto, conforme se pode observar no verbete
contido no Dicionário de teoria da narrativa, de Reis & Lopes (1988, p. 204), o espaço
“constitui uma das mais importantes categorias da narrativa, não só pelas articulações
20

funcionais que estabelece com as categorias restantes, mas também pelas


incidências semânticas que o caracterizam”.
Entusiasta dos estudos sobre os espaços, Michel Foucault (2000) em
“Linguagem e Literatura” sugere três caminhos para a análise dessa categoria: sendo
o primeiro relacionado à investigação da espacialidade externa refratada na obra, visto
que “é certo que há valores espaciais inscritos em configurações culturais complexas
e que espacializam qualquer linguagem e qualquer obra que aparecem na cultura”
(FOUCAULT, 2000, p. 169). Por conseguinte, Foucault sugere a análise do espaço
representado na estrutura interna uma vez que é “o espaço profundo de onde vêm e
onde circulam as figuras da obra”, e, por fim, examinar como se constrói na obra o
espaço da linguagem, isto é, “revelar um espaço que não seria o da cultura, [...] mas
da própria linguagem, na folha em branco” (FOUCAULT, 2000, p. 170-171).
De modo semelhante, Pierre Bourdieu no livro As Regras da Arte (1996)
também sugere o estudo dos espaços observando como se dá a refração do espaço
social na tessitura interna de uma obra. No entanto, Bourdieu vai além do objeto
literário: ele analisa no campo literário as relações que motivam o autor na tomada de
posições e como isso se traduz em sua criação. Assim, a representação dos espaços
é investigada em sincronia com a reflexão sobre o universo do escritor, visto que o
habitus do autor possui certa reciprocidade com a tessitura interna da sua obra.
Ante o exposto, para a construção do aparato teórico deste trabalho se faz
necessário uma explanação a respeito dos conceitos de espaço abordados por
Foucault e Bourdieu, visto que as suas perspectivas direcionarão o processo
interpretativo da pesquisa.
21

1.1 Espaço social e o campo literário

Penso que isso se passa com todos os escritores. Há uma


parte de nós que não é nossa, é a da sociedade em que
vivemos, e que está inserida na literatura que fazemos.
Nós vivemos numa época, somos influenciados por ela e
isso reflecte-se na nossa obra.

Natália Nunes

Ao propor uma “sociologia das obras culturais” ou uma teoria do campo


literário, Bourdieu (2003) apresenta como objeto de análise a totalidade das relações
que existem entre os escritores e os seus pares, assim como de todo “o conjunto dos
agentes envolvidos na produção da obra ou, pelo menos, do valor social da obra
(críticos, diretores de galerias, mecenas, etc.)” (BOURDIEU, 2003, p. 219). Nesse
sentido, entende-se por campo literário um espaço de produção literária, de
comercialização de bens simbólicos, de relações entre escritores e legitimação
destes, de consagração de obras e seus autores, assim como da construção de uma
crítica literária.
É no campo literário que os escritores constroem suas trajetórias, vínculos
ideológicos e afinidades artísticas. Mesmo existindo dentro de um campo maior, isto
é, do campo de poder, o campo literário possui suas próprias leis de funcionamento,
tradições e história. Logo, é relevante entender a organização deste espaço para que
se possa depreender as atuações dos escritores no campo e como as suas obras são
pensadas e concebidas, a partir daí, pode-se interpretar a força das “coisas materiais
e simbólicas” que incita a criação de uma obra literária (BOURDIEU, 2012, p. 69).
Deste modo, em uma pesquisa sobre determinado campo literário, faz-se
necessário investigar o espaço de produção cultural e todos os envolvidos para que a
obra se perpetue na sociedade e se faça conhecida nos demais campos, ou seja, é
importante apreender sobre o espaço de produção, o espaço de consumo, sobre a
circulação das obras e o entrelaçamento destas dentro de uma tradição. Para tal,
Bourdieu (1996) considera três procedimentos de observação: 1º) é fundamental
averiguar como o campo literário está estruturado dentro do campo de poder e como
essa organização arquitetou-se cronologicamente. 2º) analisa-se como o campo
literário se constrói internamente, observando de que modo se comportam os
indivíduos que estão inseridos nesse espaço, como se engendram suas relações
22

interpessoais, as suas lutas pela legitimação, de que forma um artista consegue se


consagrar, o que torna uma obra canônica, etc.. 3) examina-se a constituição do
habitus do escritor, isto é, “os sistemas de disposições” baseados na maneira como
os sujeitos internalizam as situações que lhe são externas e ao mesmo tempo
exteriorizam suas idiossincrasias. Essa dialética da interioridade e da exterioridade,
abordada por Bourdieu, é essencial para a compreensão da posição e ações do
escritor no campo literário (BOURDIEU, 1996, p. 243).
Como o campo literário é sujeito as suas próprias regras, sua base,
semelhante a do campo de poder ao qual está relacionado, também se respalda por
meio de hierarquias, assim, as obras são categorizadas a partir de um ponto de vista
de prestígio em contraponto com a perspectiva comercial. Isso significa que no vínculo
entre a arte e o dinheiro são os valores difundidos pelo mercado de bens simbólicos
que ditam os rótulos de uma obra. Logo, as obras mais densas escritas por autores
mais consagrados e que circulam em um mercado restrito, para um leitor mais
exigente, de maior refinamento cultural, são do “polo da produção pura”; em
contrapartida as obras mais simples que agradam o gosto do leitor comum, menos
exigente, pertencem ao “polo da grande produção” (BOURDIEU, 1996). Em suma, as
obras consideradas de “produção pura” são aquelas mais valorizadas do ponto de
vista da apreciação crítica, pertencentes ao cânone, são produções que dominam o
capital cultural por terem maior consagração artística. Já a “grande produção” é a
literatura de massas, que por ser mais lucrativa, embora de baixo custo, agrada a um
público menos seleto, estabelecendo-se como não canônica.
Assim, quanto a produção e circulação das obras, o mercado cultural se
distingue sob duas formas de comportamento: de um lado predomina “a economia
anti-‘econômica’ da arte pura” (BOURDIEU, 1996, p. 163), aquela que tem como
parâmetro a falta de interesse no lucro rápido e passageiro. Visando um
reconhecimento “legítimo” capaz de durar continuamente, esse polo valoriza o produto
simbólico e a demanda duradoura do valor da obra. Por outro lado, tem-se a “lógica
‘econômica’ das indústrias literárias e artísticas” (BOURDIEU, 1996, p. 163), que
corresponde ao comércio focado no lucro imediato e na difusão exacerbada dos
produtos. Esse polo prioriza o sucesso repentino, fundamentando-se no momento de
fama do produto para que o investimento atribuído à obra seja revertido em grande
lucro comercial, com grandes tiragens e muitas vendas.
23

Essas formas de comportamento do mercado mostram como as editoras se


manifestam quanto as suas preferências de publicações, o que as categorizam
segundo os critérios de lucro imediato e lucro futuro. As grandes editoras procuram
sempre equilibrar esses dois patamares colocando no mercado obras vendáveis,
embora rapidamente esquecidas, mas também aquelas que, por mais que demorem
a circular, sempre terão um alto valor no mercado.
As obras que se perpetuam no mercado por meio de um “ciclo longo” somente
se mantêm nesse patamar devido as aclamadas declarações de escritores renomados
e críticos literários que elogiam o livro, o autor, a edição. Na contemporaneidade, o
público acadêmico tornou-se o mais forte e severo crítico capaz de autorizar a
longevidade de uma obra, visto que a apreciação de estudiosos e especialistas dão
um caráter de credibilidade aos autores e as suas produções.
Por conseguinte, no campo literário o “capital econômico” somente consegue
garantir-se em vias lucrativas se for transformado em “capital simbólico”. Isso significa
que se faz necessário a construção de um “nome” e que este torne-se grande,
“conhecido e reconhecido”, um nome que se consagre no campo para que as obras
que levam sua assinatura possam ser capazes de conferir lucro aos seus produtores
por meio do valor e reconhecimento que a assinatura do autor sustenta (BOURDIEU,
1996, p. 170).
Acompanhar essas reflexões de Bourdieu sobre o funcionamento das regras
que regem o campo e o mercado literário se faz interessante e é importante porque
possibilita ao pesquisador compreender questões que são levantadas no texto literário
e que só são perceptíveis pelo conhecimento que se tem do habitus do escritor, do
seu processo de formação dentro de um espaço que, muitas vezes, é a fonte de suas
inspirações e a refração para muitas das suas criações. No caso das escritoras Maria
Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles, suas obras são produtos de um campo
literário profundamente hostil para as produções de autoria feminina, logo, construir-
se como escritoras consagradas dentro de um espaço em que tudo lhes eram
culturalmente desfavoráveis mostra como a luta das mulheres que as antecederam
foram relevantes para as suas conquistas. Portanto, concorda-se com o pensamento
de Gama-Khalil (2010, p. 217), quando afirma que “somente a partir do olhar sobre os
posicionamentos e as espacialidades podemos conhecer melhor os sujeitos e as suas
linguagens, dentre elas a literária”.
24

1.2 Espaço como categoria narrativa: as heterotopias

Não há uma única cultura no mundo que não se constitua


de heterotopias.

Michel Foucault

Ao arquitetar um mundo narrativo, o autor dispõe suas personagens em um


labirinto de possibilidades situando-as em lugares que podem ser complexos ou até
mesmo simples, isto é, produz um espaço de existência para o sujeito ficcional, apesar
de irreal. Assim, Brandão & Oliveira (2001, p. 67-68) elencam algumas possibilidades
de posicionamentos das personagens dentro da narrativa que as colocam em lugares
específicos: 1) espaço geográfico, quando são localizadas em sítios físicos e de
circulação das personagens; 2) espaço histórico, quando os seres ficcionais são
situados em um tempo histórico representativo; 3) espaço social, alusivo as relações
de poder entre as personagens; 4) espaço psicológico, relativo aos desdobramentos
psíquicos e as características pessoais dos indivíduos da ficção; 5) espaço da
linguagem, diz-se da maneira como o autor utiliza-se da composição textual para criar
elementos narrativos convincentes e uma obra capaz de provocar o leitor à reflexão.
Não é objetivo deste trabalho estender-se em descrições teóricas sobre o
espaço e suas múltiplas concepções em Literatura, no entanto faz-se necessário
“aparar as arestas” dessa categoria delimitando as escolhas teóricas para o
encaminhamento da presente pesquisa. Desse modo, analisa-se as configurações do
espaço narrativo pelo viés da representação adotada pelo filósofo Michel Foucault
(2001, 2013) e relacionada à concepção de heterotopia. O ponto de vista foucaultiano
tem “como eixo o problema de quais são os elementos que tornam reconhecível, no
texto, determinada instância extratextual – e quais são os limites dessa
‘reconhecibilidade’” (BRANDÃO, 2013, p. 66).
Na conferência “Outros Espaços”, de 1984, Foucault (2001) descreve as
heterotopias como espaços díspares, que se distanciam e divergem dos espaços
comuns em forma de oposição ao considerado padrão. O filósofo estabelece alguns
princípios que caracterizam e esclarecem a sua teoria das heterotopias e classifica-
as em dois grandes e genéricos tipos: são as heterotopias de “crise” e as de “desvio”.
A primeira corresponde aqueles espaços “privilegiados, ou sagrados, ou proibidos,
25

reservados aos indivíduos que se encontram, em relação à sociedade e ao meio


humano no interior do qual vivem, em estado de crise” (FOUCAULT, 2001, p. 416).
São os lugares para onde os sujeitos em “crise biológica” buscam refúgio ou são
enviados com vistas a se distanciarem do espaço modelo e do qual os demais
deveriam seguir como referência. Cita-se como exemplos os colégios internos ou os
conventos, comuns até o século XIX, para onde os jovens eram conduzidos com o
intuito de amenizar o fulgor da puberdade e/ou se afastarem das paixões proibidas.
Como também são consideradas heterotopias de crise os lugares em que os
indivíduos frequentavam para realizarem as suas primeiras experiências sexuais
(como as viagens de núpcias, espaço e tempo em que acontecia a defloração das
donzelas) ou para vivenciarem o sexo de maneira não convencional, fora dos laços
matrimoniais, como as casas de prostituição, por exemplo. Segundo Foucault (2001,
2013) as heterotopias de crise, que eram tão comuns nas sociedades anteriores ao
século XX, foram aos poucos mudando de conceito e dando abertura para outros tipos
de contraespaços, mesmo isso não significando o total desaparecimento destas.
Em contrapartida, a heterotopia de desvio representa aqueles “lugares que a
sociedade dispõe em suas margens, nas paragens vazias que a rodeiam, são antes
reservados aos indivíduos cujo comportamento é desviante relativamente à média ou
à norma exigida” (FOUCAULT, 2013, p. 22). Como heterotopias de desvio entende-
se os espaços em que são destinados aos sujeitos que não agem conforme as regras
de condutas sociais vigentes como, por exemplo, os asilos, os sanatórios, os
manicômios, as prisões. A “norma exigida” pode ser violada tanto pelo simples fato do
indivíduo ser idoso e não poder mais ter a mesma celeridade e desenvolvimento
laboral de outrora quanto, no caso mais extremo, por um cidadão que cometeu um
crime e por isso precisa ser afastado do meio social contra o qual ele agiu com
violência.
Mesmo tendo classificado as heterotopias nesses dois grandes tipos, em
“Outros Espaços”, Foucault (2001, 2013) abre caminho para que muitos espaços
sejam considerados como heterotopias e analisados sob essa perspectiva. Ao elencar
seis princípios que regem suas ideias, o filósofo francês deixa claro que, em primeiro
lugar, todas as culturas existentes possuem suas heterotopias e, por essa razão, elas
são multifacetadas, não se prendem a uma forma fixa e absoluta, podendo
convergirem ou divergirem em qualquer época ou local. Daí constrói-se o segundo
princípio que rege as heterotopias foucaultianas, isto é, “no curso de sua história, toda
26

sociedade pode perfeitamente diluir e fazer desaparecer uma heterotopia que


constituíra outrora, ou então, organizar uma que não existisse ainda” (FOUCAULT,
2013, p. 22). Como exemplo, Foucault cita a heterotopia do cemitério que até o século
XIX não era considerado com a espiritualidade e a organização que existe na época
contemporânea, tendo sido ressignificado com grande valor solene como o lugar
“onde cada família possui sua morada sombria” (FOUCAULT, 2001, p. 418).
O terceiro princípio que orienta a teoria das heterotopias consiste em
aproximar de um espaço concreto outros espaços que são diferentes e estranhos
entre si, ou seja, a partir de uma determinada heterotopia outros lugares são
delineados e “vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis” são
sobrepostos. É o que acontece com o teatro e o cinema, por exemplo, heterotopias
onde são representados inúmeros contraespaços. Para Foucault (2001, 2013) a
heterotopia que melhor traduz esse princípio é o jardim, por ser o exemplo mais antigo
ele funciona como um pequeno universo onde a imaginação simbólica é capaz de
desdobrá-lo em vários mundos: “O jardim é a menor parcela do mundo e é também a
totalidade do mundo. O jardim é, desde a mais longínqua Antigüidade, uma espécie
de heterotopia feliz e universalizante” (FOUCAULT, 2001, p. 418).
A quarta premissa está intimamente relacionada a união do espaço com o
tempo, isto é, são as heterotopias cronológicas, aquelas que “são frequentemente
ligadas a recortes singulares do tempo” (FOUCAULT, 2013, p. 25) e, por esse motivo
se aproximam das “heterocronias”. Assim, as heterotopias do tempo se dividem entre
as que representam um tempo mais eternizado, “que se acumula no infinito”
(FOUCAULT, 2013, p. 25), como os museus e bibliotecas, e há aquelas que retratam
a efemeridade, o tempo veloz, que passa e ninguém vê, como as feiras e festas. Se
de um lado tem-se as heterotopias que anseiam conter o tempo em um único lugar,
de outro lado tem-se as heterotopias que se valem dos momentos passageiros, “não
mais eternizadas, mas absolutamente crônicas” (FOUCAULT, 2001, p. 419).
No quinto princípio, Foucault (2013, p. 23) especifica que “as heterotopias
possuem sempre um sistema de abertura e de fechamento que as isola em relação
ao espaço circundante”. Esses são os lugares em que se entram por uma
determinação das autoridades, como as prisões, e também os espaços de
consagração religiosa, restritos aos membros, permeados por segredos e rituais
privados. Na última premissa, Foucault argumenta que as heterotopias são as formas
mais poderosas de refutação aos demais espaços, uma vez que a existência dos
27

contraespaços denunciam o submundo camuflado pela ilusão dos espaços ideais, ou,
ao contrário, servem de espelho para a criação de novos espaços sociais, idealizados
pela perfeição: “Isso seria a heterotopia não de ilusão, mas de compensação; e me
pergunto se não foi um pouquinho dessa maneira que funcionaram certas colônias”
(FOUCAULT, 2001, p. 421).
A heterotopia, de acordo como Foucault (2001, 2013) a propõe, é um caminho
para se refletir sobre os espaços situados nos locais mais isolados da sociedade, e
ainda sobre os indivíduos que, de alguma maneira, habitam ou frequentam esses
contraespaços. É ainda uma possibilidade de reflexão para se interpretar os espaços
metafóricos, como o espelho, que com suas diferentes possibilidades semânticas são
análogos aos mistérios da condição humana e do mundo exterior, do qual é referência.

1.3 O Corpo como espaço e a representação do feminino

Corpo incompreensível, penetrável e opaco, aberto e


fechado: corpo utópico. Corpo absolutamente visível –
porque sei muito bem o que é ser visto por alguém de alto
a baixo, sei o que é ser espiado por trás, vigiado por cima
do ombro, surpreendido quando menos espero, sei o que
é estar nu. Entretanto, esse mesmo corpo é também
tomado por uma certa invisibilidade da qual jamais posso
separá-lo.

Michel Foucault

Compreender o corpo como um espaço narrativo implica observar como os


corpos das personagens se movimentam, agem, são construídos, uma vez que, “tais
corpos apesar de ficcionais, tendencialmente não deixam de ser tratados como
corpos, isto é, não deixam de ser subordinados aos parâmetros de compreensão do
que é um corpo” (BRANDÃO, 2013, p. 251). Assim, a escrita dos “espaços do corpo”
ou do “corpo-espaço”, conforme é apresentada por Brandão (2013) ao tratar da “teoria
do corpo literário”, fundamenta-se, por um lado, em como o texto literário aborda a
representação dos corpos sociais, quais questionamentos são apresentados no texto,
quais posicionamentos são tomados pelo autor. E, por outro lado, na construção dos
28

elementos da narrativa, na maneira como o corpo é evidenciado e alinhado a tessitura


textual “como pontos propulsores de sistemas de narratividade” (BRANDÃO, 2013, p.
212).
Deste modo, ao abordar-se o corpo-espaço na literatura de autoria feminina,
considera-se tanto a escritura do corpo físico das personagens, quanto a escritura do
corpo textual, representados como lugares de reflexão social, cultural ou política.
Trata-se de espaços que se constroem por meio do sensível, da experiência
perceptiva, também através dos sentidos implícitos dos signos, de uma linguagem que
se unifica ao corpo de forma dialógica e simbólica, uma vez que, de acordo com
Cixous (2017, p. 137), o corpo feminino “passa pela voz e com ele sustenta vitalmente
a ‘lógica’ de seu discurso”. O corpo se converte em escrita, que por sua vez se
transfigura em corpo, espaços que se fundem e se entrecruzam, vertendo-se em
lugares outros, em lugares de estranheza e confrontos.
Corpo, figura utópica por excelência, conforme escreve Foucault (2013), não
seria também uma heterotopia por excelência, visto que o corpo “não tem Iugar, mas
é dele que saem e se irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópicos”?
Contraespaço da (des)ordem, do (im)previsível, do (in)compreensível e da
(in)visibilidade, o “corpo é o ponto zero do mundo, lá onde os caminhos e os espaços
se cruzam, o corpo está em parte alguma” (FOUCAULT, 2013, p. 14).
Ora, as heterotopias foucaultianas trazem à discussão a existência e
importância dos espaços ocultados e/ou apagados das camadas visíveis e
respeitadas da sociedade. Espaços preteridos, dispostos à obscuridade, à margem e
que “são absolutamente diferentes: lugares que se opõem a todos os outros,
destinados, de certo modo, a apagá-los, neutralizá-los ou purificá-los” (FOUCAULT,
2013, p. 20). Logo, esses contraespaços não se limitam ao lugar geograficamente
demarcado, mas se ampliam para além dos espaços tangíveis.
Considerando a investigação do corpo como espaço outro, não se pode deixar
de observar e também associar a peculiar relação de outridade que o corpo da mulher
representa na sociedade. O corpo feminino que por tantas vezes foi, e ainda é,
interrompido, acusado, reprimido, é também o santuário e ao mesmo tempo espaço
de transgressão da mulher, em especial da mulher escritora.
Espaço real de dor e superação, espaço simbólico de luta e resistência, o
corpo feminino, que por muito tempo foi rival da própria mulher, é seu espaço de
reivindicação, seu lugar de fala, seu espaço de escritura, sobre o qual Cixous (2017,
29

p. 136) encoraja: “Escreve-te: é preciso que o teu corpo se faça entender”; e


complementa: “quanto mais corpo, então, mais escritura” (CIXOUS, 2017, p. 145).
Essa necessidade de a mulher escrever sobre si, colocar-se na escritura ou
escrever pelo corpo como aponta Cixous (2017), é movida pela carência histórica,
pelo silenciamento tantas vezes imposto ao feminino. Assim, conhecer mais da
linguagem literária produzida pela mulher, entender suas motivações e difundir o
quanto o “imaginário das mulheres é inesgotável” (CIXOUS, 2017, p. 130), ratifica,
legitima o seu lugar no campo literário: “Escreve! A escrita é para ti, tu és para ti, teu
corpo é teu, agarra-o” (CIXOUS, 2017, p. 131).
Deste modo, contribuindo para as pesquisas sobre as representações
corporais na escritura feminina, Elódia Xavier (2021), em Que Corpo é Esse?, traz um
panorama interessante a partir da análise de diversas obras de autoria feminina e
desenvolve uma metodologia que estuda o conceito de corporalidade por meio de
categorias que assinalam as múltiplas formas de violência simbólica impostas ao
corpo feminino. É significativo no trabalho de Xavier (2021) a maneira como é
realizada a interpretação das narrativas, uma vez que, a análise textual não se encerra
em prolongadas descrições teóricas, mas põe em evidência a construção estética dos
textos valorizando o contexto de produção das obras e o estilo de cada autora
estudada.
Do “corpo invisível” ao “corpo caluniado”, onze tipologias foram desenvolvidas
por Xavier (2021) a fim de se compreender como o corpo é representado no imaginário
feminino nacional. Assim, o “corpo subalterno” encontrado em Quarto de despejo, de
Carolina Maria de Jesus, revela no testemunho da voz narradora as intempéries da
vida de uma mulher negra favelada que sonha transformar sua trajetória por meio da
escritura. Já o “corpo disciplinado” de Macabéa em A hora da estrela, de Clarice
Lispector, apresenta as “marcas de um sistema injusto e opressor” (XAVIER, 2021, p.
60). Enquanto o “corpo envelhecido” de Rosa Ambrósio, protagonista do romance As
horas nuas, de Lygia Fagundes Telles, traz as marcas da frustração por perceber em
si a passagem avassaladora do tempo, sendo o espelho, o olhar do outro, seu inimigo.
Depreende-se ainda da sensibilidade crítica de Xavier (2021) que a
representação do corpo no feminino é a refração do que cada um simboliza em uma
hierarquia de poder. Logo, o corpo, espaço de enfrentamento e resistência da mulher,
é abordado considerando-se cada contexto histórico-social de modo a desnudar a
hipocrisia social que se impõe em forma de discurso normatizado, repetindo os
30

mesmos hábitos, as mesmas violências simbólicas ou efetivas contra o corpo-espaço


feminino.
Ponto de partida para diversos trabalhos na área dos estudos da literatura de
autoria feminina, as categorias desenvolvidas por Xavier (2021) também provocaram
a criação de uma tipologia para se compreender, na presente pesquisa, os espaços
dos corpos femininos representados nas narrativas juditianas e lygianas. Uma vez
que, na prosa dessas escritoras, o corpo faz parte do processo de criação como uma
figura onipresente: um corpo que se concretiza como escritura.
31

CAPÍTULO 2
O ESPAÇO DA AUTORIA FEMININA NO CAMPO LITERÁRIO

Sempre fomos o que os homens disseram que nós


éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que
somos – declarou a personagem do meu romance As
Meninas.
Lygia Fagundes Telles

Talvez de futuro as pessoas possam ser aquilo que


valem [...] E que um homem, seja qual for o seu valor
pessoal, não seja sempre mais importante do que uma
mulher.
Maria Judite de Carvalho

É instigante quando da leitura de um texto literário é possível reconhecer


traços de uma escritura particular, marcas ou o estilo de uma voz que se constrói em
cada palavra como representante de outras vozes, de uma tradição. No entanto,
quando essa voz, plural em sua essência, é repelida ao lugar do esquecimento ou da
subalternidade faz-se necessário investigar o seu rastro, procurar ouvir o que ela tem
a dizer.
Por anos, a voz da literatura de autoria feminina não teve o espaço de
aceitação e apreciação que merecia, somente com os avanços da crítica feminista,
que surgiu por volta de 1970, é que hoje se pode pensar em uma tradição feminina
sem as amarras do cânone oficial e dos preconceitos de gênero. Conforme explica
Lúcia Osana Zolin (2005, p. 275), essa nova crítica que se dedicou a investigar mais
das mulheres e das suas obras teve “como elemento norteador a bandeira do
feminismo e, portanto, a ótica da alteridade e da diferença”. Desse modo, muitas obras
foram retiradas do anonimato e do esquecimento e, assim, expandiu-se a investigação
sobre a produção literária feminina “numa atitude de historicização que se constituiu
como resistência à ideologia que historicamente vinha regulando o saber sobre a
literatura” (ZOLIN, 2005, p. 275).
Essa ideologia misógina, que predominou no campo literário ao longo do
tempo, foi responsável pela pouca presença feminina nesse espaço de consagração
e legitimação literária. Isso aconteceu não pelo fato de não existirem escritoras, mas
32

por estas serem sentenciadas à mudez e à carência de liberdade para exprimirem-se


por meio da arte, da palavra.
Pelo viés da alteridade, a história mostra que as mulheres sempre fizeram
parte da grande massa de oprimidos socialmente: um outro mesmo entre os próprios
marginalizados devido a intensa desigualdade entre os sexos. Um ser do qual não se
poderia esperar originalidade, tampouco criatividade por serem consideradas menos
inteligentes, menos capazes. Elas cresceram ouvindo que não podiam ser mais do
que uma representação da fragilidade e da fertilidade, tendo negadas todas as
oportunidades de desenvolvimento intelectual e científico. Todavia, há sempre uma
possibilidade de que os dominados possam desviar um pouco do caminho, que lhe é
imposto, e fugir à regra, esquivando-se de permanecerem apagados, por essa razão
é que é possível rastrear os lapsos do tempo, os esquecimentos ou “as lacunas da
história”, de acordo com Michelle Perrot (2005, p. 10).
Por meio do desvelamento histórico de obras femininas quase extintas e das
lutas por uma inserção da mulher tanto como autoras, quanto como críticas no campo
literário, mesmo que tão tardiamente, hoje é possível analisar do que falavam as
mulheres que ousaram se aventurar no mundo da literatura e por que seus nomes e
obras não galgaram os mesmos passos de sucesso e destaque das obras feitas por
homens nas discussões da crítica. Como também é possível investigar como essas
mulheres são vistas no campo literário, enquanto autoras, e de que maneira as
escritoras conseguiram conquistar o seu espaço dentro desse universo.
Partindo dessas concepções, este capítulo discorre, sob um prisma histórico-
sociológico, a respeito da notória ausência das mulheres no campo literário e como
esse fato é decisivo para a consolidação de uma tradição feminina. Considerando que
o campo literário é o lugar onde encontram-se escritores, editores, leitores e as
instituições que reconhecem o trabalho dos autores e avaliam suas obras, aqui, as
análises trazem à reflexão os percursos da autoria feminina e da crítica teórica
desenvolvida pelas mulheres em uma perspectiva que engloba o campo literário
universal, para depois observar-se como essa realidade se manifestou na tradição
feminina no contexto luso-brasileiro.
33

2.1 Vozes que emergiram do silêncio: trajetórias da escritura feminina

Acabo de ser editada mas não se alegre antes de


tempo. Eu, que sempre sonhei com o meu primeiro
livro, acabo de publicar uma coisinha sobre móveis,
para as senhoras interessadas aprenderem a
conhecer os estilos. [...] Pois olhe, encomendaram-me
o texto e até mo pagaram bem. O meu primeiro livro e
talvez o último. Vou fazer quarenta anos e apetece-me
gritar. Mas fico calada. Tenho que ganhar a vida. Mas
se tivesse um quintal acendia uma fogueira com os
meus romances, coitados, tão silenciosos, para
festejar esse dia.
Maria Judite de Carvalho

Escrever sobre silêncios e permanecer anônima ou emudecer sobre sua


condição e publicar? Esconder-se ou enfrentar os nãos ante a sua verdadeira face?
Criar sem expectativas e morrer sem glória ou ceder às artimanhas do mercado de
bens simbólicos? Por gerações, mulheres escritoras foram desencorajadas por esses
tipos de indagações elaboradas por um campo de produção androcêntrico que sempre
impôs as regras e germinou as dificuldades para a trajetória da autoria feminina no
meio literário.
O trecho da crônica Desencontros1, de Maria Judite de Carvalho (2019, p.
292), que abre este tópico, mostra a frustração de uma mulher que, apesar de ser
“boa escritora”, não conseguiu que seus manuscritos fossem aprovados pelos editores
porque sua obra “não é comercial, dizem-lhe”. A personagem criada pela autora
portuguesa não tinha uma voz conhecida, não tinha um rosto formoso ou popular e,
principalmente, não possuía um nome de prestígio que atraísse a atenção dos
consumidores, isto é, não seguia as leis do campo de poder, lugar onde habitam as
“relações de força entre agentes ou instituições que têm em comum possuir o capital
necessário para ocupar posições dominantes nos diferentes campos”, dentro do qual
o campo literário é profundamente influenciado, conforme aponta Bourdieu (1996, p.
244).
Da ficção para o mundo real, o segredo que Lygia Fagundes Telles (1941)
conta ao amigo Erico Verissimo por meio de uma carta2 não é diferente da realidade

1 Publicada em 24 de outubro de 1973.


2 de 9 de setembro de 1941.
34

da personagem da crônica mencionada. Quando ainda jovem e aspirante a escritora,


Lygia narra a sua saga para conseguir que seus contos fossem publicados por alguma
editora competente:

tenho um livro pronto! Sim senhor! Um livro com catorze contos! Dei-
o a um editor, mas o diabo do homem, antes de ler os originais, cismou
que a minha cara devia ser muito mais interessante do que os contos
todos e por isso decidiu botar o meu retrato no livro. Com bons modos,
disse-lhe que achava isso muito ridículo. Insistiu. Fiquei zangada;
minha cara nada tem a ver com a obra. E tem, não tem, aparece, não
aparece… Conclusão: sugeri que botasse o retrato da avó dele. Nesse
ponto, resolveu não falar mais nisso. Mas aí eu já estava de mau gênio
e exigi a papelada de volta. Agora estou com tudo aqui na gaveta.

Permanecer um rosto desconhecido ou ter uma face exposta e promovida


graças a uma bela aparência? Essa dúvida que surge ante as palavras de desgosto
de Lygia Fagundes Telles, quanto ao que ela considerou um insulto da parte do editor,
evidenciam que historicamente o espaço da mulher no campo de poder está
intimamente ligado à objetificação e banalização do seu corpo. Ao “efeito da beleza”
criado pelo imaginário masculino e ditados na sociedade com base na visão e desejos
dos homens, segundo escreve Roger Chartier (2008) em Diferenças entre os sexos e
dominação simbólica. A beleza feminina, o mito de que fala Naomi Wolf (1992), que
persegue às mulheres tentando diminuir sua capacidade intelectual e física; uma
forma de coerção social utilizada para assegurar as amarras do espaço doméstico e
que impõe paradigmas criados singularmente para garantir o poder simbólico do
masculino sobre o feminino.
Como uma moeda de troca, a face bela da escritora em questão poderia
garantir ao editor o interesse de um público que seria atraído não pela obra ou talento
da autora, mas por sua exterioridade, por sua imagem. Essa forma de perceber o outro
é também uma maneira de conservação de estereótipos e, para o mercado de bens
simbólicos, uma garantia de ganhos materiais. Por outro lado, para a mulher a “beleza”
seria uma forma amarga de manifestação da alteridade porque lhe vem atrelada aos
sentimentos de culpa, negação e constrangimento; ao ser exposta, ela é socialmente
avaliada e julgada por sua imagem, comparada “de acordo com um padrão físico
imposto culturalmente” e que “expressa relações de poder segundo as quais as
mulheres precisam competir de forma antinatural por recursos dos quais os homens
se apropriaram” (WOLF, 1992, p. 15).
35

Se a literatura tem um rosto oficial, esse é masculino. Se tem uma imagem ou


um retrato, este é facilmente associado ao homem: branco, heterossexual, culto,
abastado e que representa uma classe social privilegiada. Portanto, tudo o que destoa
desse quadro, pintado por séculos e séculos, é imediatamente contestado, posto à
prova, levado ao território da dúvida. Dalcastagnè (2012, p. 9) chama a atenção para
esse detalhe do campo literário ao trazer à reflexão a questão: “Imaginem o constante
desconforto de se querer escritor, ou escritora, em um meio que lhe diz o tempo inteiro
que isso é ‘muita pretensão’”.
Em razão disso, a ambição da escrita para os que estão à margem do grupo
que impõe as regras de funcionamento do espaço literário, não é um caminho de fácil
peregrinação. O campo literário é um lugar de negociações, cheio de jogos de poder
e tensões e, por esse motivo, não foi com condescendência que ele se abriu para as
obras produzidas por mulheres. Assim, por muito tempo as que se atreveram a
escrever literatura e almejaram obter alguma credibilidade dos editores, críticos e
leitores precisaram que seus nomes fossem ocultados ou disfarçados. Afinal, a
literatura não era um espaço para saias. A escritora Virgínia Woolf já observava esse
fenômeno em Um teto todo seu ([1929] 1990; 2014) ao ironizar: “arrisco-me a dizer
que Anônimo, que escreveu tantos poemas sem cantá-los, com frequência era uma
mulher.” (WOOLF, 2014, p. 73).
O nome, a marca social da identidade, a palavra que grita o gênero antes da
essência do artista literário ser apresentada; um símbolo de ver-se conhecido e
revelado ao outro que, no entanto, para a mulher escritora era como um fardo. Essa
palavra que é dada de presente ao ser humano quando nasce, para as escritoras
vinha carregada de silenciamento e desprezo. Daí nasceram os George Sand, George
Eliot e os irmãos Currer, Ellis e Acton Bell, alguns nomes que foram facilmente
recebidos e reconhecidos pelas instâncias de consagração literária, enquanto as
moças Amandine Aurore Lucile Dupin, Mary Ann Evans e as irmãs Charlotte, Emily e
Anne Brontë (respectivamente) não podiam divulgar seus nomes, contar suas
histórias e lucrar com elas sem censuras, uma vez que as mulheres não possuíam
autoridade dentro do campo de poder para assinarem suas obras.
Conforme Bourdieu (2015), fazer-se conhecido dentro do campo literário
implica ganhar a confiança e o prestígio por meio das relações não somente do público
e dos editores, também é preciso a conquista de legitimação entre os seus pares, isto
é, afirmar-se como escritor entre aqueles que também fazem literatura. Assim, os
36

escritores são sujeitos “no que são e no que fazem, da imagem que têm de si
próprios e da imagem que os outros e, em particular, os outros escritores e artistas,
têm deles e do que eles fazem” (BOURDIEU, 2015, p. 108, grifo nosso). Vê-se então
que na busca por um lugar de reconhecimento dentro do campo literário, para as
mulheres a anuência do ofício da escrita era duplamente exaustivo e desonesto.
Na construção da imagem de si, historicamente, no universo feminino
prevaleceu o que o outro, o homem, determinou; é o que mostra Simone de Beauvoir
em O segundo sexo ([1949] 2016) e também Michelle Perrot em As mulheres ou os
silêncios da história (2005). A percepção da formação de um ser social “mulher”
observada por ela mesma é uma conquista relativamente recente, a história das
mulheres contada pela óptica das próprias mulheres remonta ao século XX. Até então
tudo que se sabia sobre o ser feminino era contado a partir do olhar do homem; logo,
essa história foi marcada por longos intervalos de silêncio e invisibilidade.
As mulheres estiveram ausentes em grande parte do relato histórico da
humanidade, sua voz abafada por meio de um “oceano de silêncio”, como descreve
Perrot (2005, p. 9), foi marcada por um passado em que os registros nos dados e
documentos oficiais dos seus possíveis grandes feitos, além da função da procriação,
foram praticamente nulos. Tudo foi registrado de modo a exterminar os traços da
memória coletiva feminina, como se “elas estivessem fora do tempo, ou ao menos fora
do acontecimento” (PERROT, 2005, p. 9).
De acordo com Perrot (2005), o silêncio foi o primeiro mandamento feminino,
em virtude da sua posição de subordinação: a mulher sábia, determinam eles, não
deve utilizar a boca para falar, seus lábios precisam estar sempre fechados ou apenas
semiabertos para sorrir suavemente. Silenciar, para as mulheres, era algo ensinado
desde o nascimento pelas instâncias de poder religiosas, políticas e pelas normas de
comportamento social. Era ainda uma forma de disciplina e de apreensão do mundo,
uma forma de abafar as dores, os abusos, as coerções sociais. Cativas em suas
casas, conventos ou internatos, elas eram instruídas a ocultar-se:

sua postura normal é a escuta, a espera, o guardar as palavras no


fundo de si mesmas. Aceitar, conformar-se, obedecer, submeter-se e
calar-se. Pois este silêncio, imposto pela ordem simbólica, não é
somente o silêncio da fala, mas também o da expressão, gestual ou
escriturária (PERROT, 2005, p. 10).
37

Assim, a voz que marca e se faz presente na grande linha espaço-temporal


da história é aquela sobre as mulheres, isto é, a imagem que o outro tem sobre o seu
mundo. Nos discursos filosóficos, religiosos e políticos fala-se excessivamente das
mulheres para determinar como elas devem ser, se comportar, o que devem fazer de
suas vidas. No campo artístico a representação da mulher é aquela imaginada e
caricaturada pelo homem, contada e cantada por ele, majoritariamente associada aos
seus sonhos e medos. Estereotipadas como mães, donzelas ou cortesãs, não
apresentavam originalidade, diziam “as mulheres”, como se todas possuíssem uma
só característica que resumia todo o gênero feminino, sem nenhuma distinção que as
tornassem relevantes: “existe uma abundância, e mesmo um excesso, de discursos
sobre as mulheres; avalanche de imagens, literárias ou plásticas, na maioria das
vezes obra dos homens, mas ignora-se quase sempre o que as mulheres pensavam
a respeito, como elas as viam ou sentiam” (PERROT, 2007, p. 22).
Mesmo esquecidas ou apagadas da história, é indiscutível que a figura
clichê das mulheres tenha sido constantemente representada pelos homens, desde
os primórdios da humanidade, nas artes e discursos vários. No entanto, o que de
verdadeiro é dito sobre os anseios e vida da mulher real? Quando os seus silêncios
foram rompidos e levados ao lugar de fala e de construção de si?
Segundo Perrot (2005; 2007), a ruptura do silêncio se deu quando as
mulheres passaram a contar suas próprias histórias. Se por muito tempo elas foram
privadas de todos os meios de expressão, a partir do momento que começaram a ter
acesso ao conhecimento e puderam fazer parte do mundo do saber científico e cultural
foi possível enxergar uma nova representação na qual elas se tornaram ao mesmo
tempo autoras e sujeito representado. Portanto, abrir o ouvido para a voz ou à palavra
da mulher está relacionado ao acesso, que foi dado a ela, aos meios de expressão,
como a literatura, por exemplo.
No ensaio Mulheres e ficção ([1929] 2019), Virginia Woolf ao levantar a
discussão sobre a literatura que era feita por mulheres em contraste com a que era
feita sobre estas, antecipa as colocações de Perrot, ao falar também que as mulheres
são como uma leve sombra na história e reconhecer a carência de fontes, de arquivos
relacionados a elas. Como falar de um campo literário em que se faz presente a
autoria feminina se as fontes de informações a respeito das escritoras e até sobre
suas obras foram, assim como as mulheres, também silenciadas? Woolf vai além ao
38

interrogar sobre o porquê de, até o século XVIII, não existir uma produção literária
feminina ininterrupta e reconhecida.
A possível resposta apontada por Woolf é semelhante a constatada por
Perrot: os escritos femininos perderam-se nas velhas gavetas, submergiram nas
malas extraviadas, queimaram-se junto com as memórias esquecidas, viraram poeira
nos quartos e casas abandonadas pelos mortos sem descendentes. Perrot (2007) diz
que os textos escritos por mulheres eram ínfimos por duas razões, primeiro porque
para elas o direito à palavra foi dado muito tardiamente, visto que a escolarização
feminina foi uma conquista lenta. Por conseguinte, quando começaram a escrever,
seus textos eram pouco valorizados por si mesmas, então em muitos casos “são elas
mesmas que destroem, apagam esses vestígios porque os julgam sem interesse.
Afinal, elas são apenas mulheres, cuja vida não conta muito” (PERROT, 2007, p. 17).
Assim, os lapsos na história que tornam obscuras as existências de escritoras
como Safo (580 a.C), da Grécia antiga, e de todas as outras que viveram em épocas
e espaços diferentes deixaram despercebidas essas vozes que foram se abafando
pelo decurso do tempo. Quem se dedicará a ir em busca desses textos antigos e
perdidos? Quem se prontificará a revirar pelo avesso a história em busca de vestígios
da voz feminina? É o que Woolf (2019, p. 10) questiona para refletir que “apenas
quando pudermos avaliar o modo de vida e a experiência de vida tornados possíveis
para a mulher comum é que poderemos explicar o sucesso ou o fracasso da mulher
incomum como escritora”.
Os ensaios de Virginia Woolf do início do século XX, que tratam da literatura
escrita por mulheres, são precursores de uma crítica feminista que só se desenvolveu
anos mais tarde. Em Um teto todo seu (1990; 2014), um dos seus textos mais
relevantes sobre a temática, essa escritora inglesa faz uma notável reflexão a respeito
do espaço dado ao feminino no campo literário. A ideia que permeia esse ensaio, e
que é também a tese mais levantada pela autora, faz alusão ao fato de que as
mulheres precisavam de dinheiro para conseguirem manter a si próprias e a profissão
literária; elas careciam de um espaço que pertencesse somente a elas para realizarem
seu ofício sem as interpelações da vida doméstica.
O espaço doméstico é retratado pela autora como o único lugar no qual as
mulheres podiam trabalhar, uma vez que viviam reclusas em suas casas, por serem
proibidas de atuarem em espaços públicos. Portanto, esse ambiente teve um forte
poder sobre as mentes das escritoras, influenciando profundamente a sua criação:
39

lugar de silenciamento, repressão, de interrupção, de sobrecarga emocional e física.


A todo o momento ocupadas em suas atividades domésticas, as mulheres eram
impedidas de se dedicarem inteiramente, mesmo que somente por algum curto
período, à criação de suas obras. Em seus lares, a todo instante elas eram
interrompidas para solucionarem algum problema da casa, precisando suspender
abruptamente seu momento de criação para atender suas atividades de dona de casa:
obrigatórias e predeterminadas socialmente. Daí, segundo Woolf (2019), a tendência
das mulheres de escreverem em prosa, em virtude de que “a ficção era, e ainda é, a
coisa mais fácil de uma mulher escrever. E a razão para isso não é difícil de encontrar.
O romance é a forma de arte menos concentrada. É mais fácil interromper ou retomar
um romance do que um poema” (WOOLF, 2019, p. 12).
Por conseguinte, ao falar sobre “profissões para as mulheres” em 1931, Woolf
faz alusão de que a única solução para o progresso e independência feminina seria a
destruição do “Anjo do Lar”, uma figura metafórica utilizada pela autora para
representar a opressão que a vida doméstica detinha sobre a mente e o corpo das
mulheres escritoras. “O anjo do Lar” era a imagem que encarcerava, calava, roubava
as opiniões e a essência da autoria feminina; um fantasma que reaparecia sempre
para mostrar à escritora que ela precisava ser forte e lutar todos os dias contra as
ideologias androcêntricas do campo de poder: “era ela que costumava aparecer entre
mim e o papel enquanto eu fazia as resenhas. Era ela que me incomodava, tomava
meu tempo e me atormentava” (WOOLF, 2019b, p. 11). Logo, para as mulheres que
almejavam progresso no campo literário era necessário que essa imagem fosse
suprimida de seus caminhos “foi uma experiência inevitável para todas as escritoras
daquela época. Matar o Anjo do Lar fazia parte de uma escritora” (WOOLF, 2019b, p.
14).
Partilhando desses pensamentos foi que em Um teto todo seu (1990; 2014),
Woolf apresentou diversas questões sobre a mulher e a literatura que até então eram
pouco consideradas e que funcionaram como uma bússola no longo percurso pela
conquista da autonomia para a autoria feminina dentro do campo literário. Uma dessas
questões refere-se à construção de uma tradição literária feminina, ainda hoje
bastante diminuta quando comparada com a masculina. Citando nomes de grandes
escritoras inglesas como Jane Austen, as irmãs Brontë e George Eliot, a autora
pondera sobre o “efeito da tradição” e também da falta desta “sobre a mente de um
escritor” (2014, p. 39), mostrando que, até o século XVIII, o fato de existir uma carência
40

e uma inconstância das manifestações literárias de autoria feminina, as escritoras dos


séculos seguintes não tiveram um modelo que servisse de base para uma escritura
que revelasse uma verdadeira voz feminina.
Representar a voz feminina para Woolf significava escrever sem a consciência
unilateral de seu sexo; denotando uma literatura que não se construía como
panfletária e rasa, mas que iria além da superfície, por abordar em profundidade o
conhecimento da autora sobre a natureza humana: “A totalidade da mente precisa
estar aberta para termos a sensação de que o escritor está transmitindo sua
experiência com perfeita plenitude” (WOOLF, 2014, p. 147).
Ao falar sobre experiência feminina, em Mulheres e ficção (2019), Woolf
reconhece que a trajetória das mulheres carecia de experiências reais, pois o
conhecimento do mundo exterior, tão natural ao sexo masculino, era-lhe inexistente.
“É indiscutível que a experiência exerce grande influência sobre a ficção” (WOOLF,
2019, p. 12), por isso os romances de autoria feminina mostram, além de uma
experiência insuficiente da vida, marcas de uma escrita que são próprias à mulher:
ocorre uma espécie de busca e luta pelos seus direitos por meio de um sentimento
ressentido, tendo em vista a condição pela qual a mulher era submetida na sociedade;
era uma escrita que ecoava como gritos de socorro à condição feminina.
Ao tocar nesse ponto sobre “a nota feminina na literatura” ([1905] 2019b)
percebe-se que Virginia Woolf, em seus ensaios, se mostra contraditória. Ao mesmo
tempo que critica os homens que rotulam e reduzem a literatura escrita por mulheres
como típicas ao gênero e sem originalidade, Woolf reconhece que existe uma marca
que é própria da autoria feminina quando expõe a questão da experiência e dos
valores que são relevantes para as mulheres e a sua mágoa com o mundo: “as
primeiras palavras usadas para descrever um homem ou uma mulher geralmente
bastam para revelar o sexo do escritor” (2019b, p. 30), é o que ela afirma ao falar
sobre “mulheres romancistas” ([1918] 2019b) para concluir que a importância de um
tema depende da visão que o homem ou a mulher tem sobre ele a partir de suas
vivências.
No entanto, é inegável a relevância dos ensaios de Virgínia Woolf para a
compreensão da construção do espaço feminino dentro do campo literário. A escritora
foi pioneira ao observar que os muros que separavam as literaturas masculina e
feminina estavam erguidos especialmente no campo do capital: literatura como uma
forma de profissão, como fonte de renda capaz de outorgar à mulher independência
41

e liberdade. Woolf entendia que o mercado de bens simbólicos tinha suas regras e
que eram extremamente rigorosas para as mulheres, por isso ela enfatizava tão
impetuosamente a necessidade de a mulher escrever sem os dramas que
estigmatizavam seu sexo, retirando o foco das situações emocionais, ampliando-o
para o campo político e intelectual. Segundo a ensaísta, era preciso desviar as
palavras “do centro pessoal, que a absorvia de todo no passado, para o impessoal,
tornando-se seus romances naturalmente mais críticos da sociedade e menos
analíticos das vidas individuais” (WOOLF, 2019, p. 17).
Essa mesma percepção de que o escritor deveria ser um porta voz do seu
tempo e da sociedade também pode ser vista em Bourdieu (2003), para quem a
criação literária é um processo que agrega o habitus do escritor com a “posição” deste
no campo literário. Espaço este que é fundamentado a partir de duas estruturas: a
primeira corresponde ao lugar das “posições” onde ficam os produtores das obras e a
segunda diz respeito ao espaço da própria obra literária, isto é, o campo das “tomadas
de posição”, o qual pode se manifestar por meio de uma temática, de uma escolha
estilística ou linguística, etc.; sempre abarcando as esferas éticas e estéticas que
permeiam o processo de criação.
Por apresentarem um “conjunto estruturado” entre as relações dos produtores
com o campo literário, esses dois espaços são indissociáveis. Assim, no campo
literário acontece um entrelaçamento de interesses no qual as posições do escritor
devem ser precisas, expressamente definidas, de modo que seja possível depreender
como determinados temas são abordados e urdidos nas suas produções: como esse
posicionamento do autor é refratado nas obras? De que maneira a posição do escritor
interfere nas suas práticas sociais e no seu desenvolvimento no interior do campo
literário?
Enquanto o espaço das tomadas de posição é o lugar das referências e
assimilação do tempo histórico, dos eventos que marcam uma época e são comuns
aos envolvidos no campo, o espaço da posição é fundamentado em uma orientação
que marca a trajetória do escritor e torna conhecida a sua existência de artista. A partir
dessa distinção, o movimento no campo é moldado na forma de um jogo entre
posições opostas e tomadas de posição díspares que acirram o campo literário,
travando-se várias lutas simbólicas.
42

Concretamente, isto significa que o aparecimento de um artista, de


uma escola, de um partido ou de um movimento a título de posição
constitutiva de uma campo (artístico, político ou outro) é marcado pelo
fato de a sua existência “pôr, como costuma dizer-se, problemas” aos
ocupantes das outras posições, de as teses que afirma se tornarem
uma parada em jogo de lutas, de fornecerem um dos termos das
grandes oposições em torno das quais se organiza a luta e que servem
para pensar essa luta (por exemplo, direita/esquerda, claro/escuro,
cientifismo/anticientifismo, etc.). (BOURDIEU, 2003, p. 225).

Foi desse modo que as discussões de teor feministas agitaram os campos no


decorrer do século XX. Da problematização sobre a ficção de autoria feminina em
Woolf (1990, 2014) ao feminismo existencialista de Simone de Beauvoir (2016) – para
quem a “essência feminina” era uma invenção dos homens para instaurar uma
“situação” que aprisionava as mulheres, por isso sua escravização simbólica – a luta
de posições dentro dos campos literário e intelectual em torno da questão feminina foi
de grande influência para a construção de um espaço de tomada de posições, no qual
a representação da mulher passou a ser analisada por meio de um viés que centrava-
se, singularmente, na própria mulher. Começava, então, um processo de teorização
sobre o feminino e sua representação na literatura no qual as próprias mulheres se
dedicaram a estudar e produzir um pensamento intelectual sobre si mesmas e sua
condição nos campos.
Esse cenário ganhou fôlego e se intensificou a partir dos anos 70, com a
publicação da obra Política Sexual (1970) da americana Kate Millett, marco inicial da
crítica feminista. Essa escritora discorre sobre o campo cultural e suas relações com
o sistema político de uma sociedade. Observando como o poder de dominação do
homem é representado na tradição literária masculina, por meio da análise de
personagens femininas, ela constata que estas personagens são relegadas a
condição de coadjuvantes mesmo quando são heroínas dos enredos. Na busca por
compreender como as mulheres viam a si próprias através do olhar dos escritores
homens, Millett (1970) focou sua tese nas leitoras de romances masculinos, tendo
como lema a busca por uma resistência à doutrinação masculina que seduzia e
cegava as mulheres que liam essas obras, uma vez que esses livros lhes davam uma
visão distorcida da realidade que vivenciavam.
Millett (1970) apresenta que em obras de escritores como, por exemplo, D. R.
Lawrence e Henry Miller, famosos por reiteradamente abordarem o tema do erotismo,
as personagens femininas são constantemente subjugadas, sufocadas com as
43

sensações contidas, com as palavras não ditas, sujeitas a vontade do outro. Segundo
Zolin (2005, p. 190), ao trazer como exemplos as personagens criadas por escritores
homens, Millett enfatiza como “a exploração e a repressão feminina permeiam as
descrições dos papéis sexuais nas novelas”.
Não é difícil encontrar em diversas narrativas, ditas canônicas e escritas por
homens, a categorização do feminino em “conotações positivas e negativas” (ZOLIN,
2005, p. 190) que partem das estruturas sociais instituídas no campo de poder, as
quais são ditadas por padrões do patriarcalismo, que estão sempre empenhados em
determinar o comportamento feminino. Dentro da gama de estereótipos de
conotações negativas estão as mulheres cortesãs, adúlteras, perigosas, personagens
terrivelmente sedutoras que são construídas para arruinar o percurso do herói, quando
não, são megeras ou fofoqueiras capazes de destruir a honra dos bons homens. Do
outro lado estão as personagens que guiam e salvam as almas dos heróis destruídos
pelos percalços do enredo; são as mulheres anjo, indefesas, incapazes, exemplos de
resignação e respeito, boas filhas, excelentes mães e esposas dedicadas, obedientes,
isto é, aquelas que possuem um conjunto simplório de acepções positivas.
Esse modelo de representação do feminino era a continuação de uma
conjuntura formada no campo de poder que contaminava a literatura quando esta
reproduzia valores concebidos a partir de uma visão androcêntrica permeada por
mitos sobre a feminilidade. Assim, nessas narrativas tudo é construído “segundo um
direcionamento masculino”, conforme explica Zolin (2005), capaz de influenciar
negativamente tanto a construção narrativa quanto o leitor e, especialmente, a leitora,
que passa a ler, mesmo que “inconscientemente, como um homem” (ZOLIN, 2005, p.
190).
Todo esse debate, instigado a partir das ideias de Millett (1970), colocou em
pauta diversos posicionamentos sobre o cenário sócio-histórico que envolve o
feminino, os quais foram cruciais para a construção de um novo lugar para as
produções literárias e intelectuais das mulheres no campo literário. As tendências da
crítica feminista que se desenvolveram posteriormente, tanto na Europa quanto na
América, desmistificaram valores e verdades difundidos pela tradição masculina
quanto a representação feminina no campo da cultura e se dedicaram,
eminentemente, às obras produzidas por mulheres.
Na Europa, especificamente no campo literário francês, a crítica feminista teve
duas vozes de grande influência: Hélène Cixous e Julia Kristeva. Essas duas teóricas
44

fomentaram suas pesquisas por meio de um diferencial que propunha novas nuanças
a questões analíticas da tradição feminina: seus estudos preconizavam sobre a busca
de uma linguagem que fosse própria da mulher, por isso suas análises dialogam
constantemente com os campos da Linguística, da Psicanálise e da Semiótica. Com
base nas ideias do filósofo Jacques Derrida e do psicanalista Jacques Lacan, as
teorias de Cixous e Kristeva são elencadas a partir das categorias da différance
(diferença), do imaginário e do simbólico.
Por meio de uma discussão que envolve uma série de oposições binárias,
Cixous (1995; 2010), seguindo a linha da différance de Derrida, traz à reflexão as
construções determinadas pelo campo de poder sobre as diferenças entre
homem/mulher refratados na construção de duplos que são impostos ao feminino, tais
como as habituais oposições: bem/mal, anjo/demônio, sujeito/objeto, ativo/passiva,
destino/liberdade, dominador/dominada, etc. Mostrando como a canônica
representação feminina é envolvida por um discurso falocêntrico, Cixous (1995; 2010)
assume uma posição de defesa por uma écriture féminine (escrita feminina) a qual
seja capaz de desconstruir os preceitos machistas e impulsionar a conquista da
liberdade das mulheres. Para tal, ela propõe uma escritura baseada no corpo, um
texto como metonímia do ser feminino.

É preciso que a mulher se escreva: que a mulher escreva sobre mulher


e traga as mulheres à escrita, de onde elas foram tão violentamente
distanciadas quanto foram de seus corpos; pelas mesmas razões, pela
mesma lei, com a mesma letal finalidade. A mulher precisa se colocar
no texto – como no mundo, e na história –, através de seu próprio
movimento (CIXOUS, 2017, p. 129).

O corpo simbólico é um instrumento que fala de si, que fala da mulher para a
própria mulher, que traz arraigado as marcas da natureza feminina, do seu ser natural,
biológico e também histórico e social. Escrever para si mesma é uma forma da mulher
expor sua própria voz, de falar dos seus desejos, de assuntos que por tanto tempo se
fez oculto, é uma maneira de mudar o exterior por meio de uma ação que, para o
pensamento comum, é subversiva. Para Cixous (1995; 2010) a écriture féminine deve
ser insurgente, que mostre a rebeldia da mulher e exclua o discurso do opressor
quando esta constrói seu próprio discurso; suprimindo, assim, as características que
definiram o feminino na história e que os homens escreveram por um longo tempo.
45

Apresentando outras possibilidades de leitura e interpretação do texto de


autoria feminina, Kristeva (1974) segue a linha da psicanálise de Lacan e aponta que
não existe uma fala e escrita que seja inerente da mulher. Unindo literatura, linguística
e psicanálise, seus estudos têm como principal foco a linguagem numa perspectiva
heterogênea e a ideia do sujeito como um ser em “processo”, em constante
aprendizado, em devir.
Para Kristeva (1974), o sujeito se constrói na interação entre o simbólico e o
semiótico, sendo o campo dos símbolos dominado pelas ideias de cultura e
organização social moldadas pelo homem. Essa teórica “vê no feminino a negação do
fálico e, mais especificamente, na escritura feminina, uma força capaz de quebrar a
ordem simbólica restritiva” (ZOLIN, 2005, p. 196).
Já a linha anglo-americana das tomadas de posição feminista destaca-se por
um lado por se concentrar na investigação dos papéis sociais da mulher e das
estereotipias representadas na literatura, por meio de uma análise focada nas
leituras/estudos das mulheres e de como elas se veem nas obras de autoria
masculina, como foi proposto e realizado por Millet (1970). E por outro viés, existem
ainda as pesquisas que se debruçaram sobre o trabalho da mulher como escritora, as
quais contribuem para a construção de um painel teórico sobre as obras que as
mulheres produzem, além de trazerem ao debate crítico a maneira como estas autoras
representam seu próprio gênero.
Um dos nomes de maior destaque da crítica feminista anglo-americana é o de
Elaine Showalter (1994), que se refere ao espaço feminino no campo literário como
um “território selvagem”, um lugar de impasses no qual as ideias e os debates são
bastante acirrados e instigantes. Apresentando algumas convicções que, em muitos
pontos, se aproximam com o pensamento de Bourdieu sobre posicionamento e
tomadas de posição no campo literário, essa teórica feminista americana faz um
percurso pelos caminhos trilhados pela crítica feminista contemporânea e analisa as
contribuições das diferentes correntes para a construção de um pensamento e de uma
tradição feminina, ela também não deixa de fazer uma avaliação e trazer à discussão
algumas problemáticas em torno do movimento.
Showalter (1994) discorre sobre as duas grandes tendências da crítica
feminista afirmando que uma delas concentra-se mais na busca pelo que aconteceu
de errado com a representação feminina na literatura em tempos remotos, enquanto
a outra está focada em compreender as obras, as palavras que as mulheres
46

escreveram e como estas trabalharam com o fictício, com a arte, com o imaginário.
Deste modo, ela explica que a vertente da “leitura feminista” trata da questão de como
as mulheres são retratadas no campo literário, também busca-se analisar em que
momento da história é possível ver a verdadeira face feminina, como a crítica literária
falocêntrica aborda o feminino e de que maneira os editores, leitores, intelectuais,
professores e pesquisadores, isto é, os agentes do campo reagem a essas
representações.
Na perspectiva da “leitura feminista”, as mulheres são instigadas a
interpretarem a visão do dominador sobre elas: o modo como viviam, como suas vidas
foram narradas ao longo da história, o quanto elas estiveram cativas do discurso
patriarcal sendo manipuladas a pensarem de forma machista sobre seu próprio sexo.
Essa versão da crítica buscou, de forma obstinada, uma nova forma de interpretar o
campo literário ao propor e fazer uma atualização dos conceitos preestabelecidos
revisitando teorias e obras. Esse caráter dogmaticamente revisionista foi um dos
pontos mais criticados por Showalter (1994), uma vez que a “obsessão feminina de
corrigir, modificar, suplementar, revisar, humanizar ou mesmo atacar a teoria crítica
masculina mantém-nos dependentes desta e retarda nosso progresso em resolver
nossos próprios problemas teóricos” (SHOWALTER, 1994, p. 28).
A discordância de Showalter (1994) com as teóricas da “leitura feminista”
fundamenta-se no fato de que essa corrente de pensamento se prende e utiliza
conceitos e teorias criadas por homens para realizarem suas pesquisas. No momento
em que se usa como modelo de referências um sistema androcêntrico, nada de novo
é apreendido, não há uma construção de novas ideias para a esfera do feminino. Um
novo espaço de tomadas de posição não deve ser construído, alicerçado em pilares
teóricos que representam exatamente o que está sendo criticado: um discurso
misógino e unilateral, o “discurso dos mestres” (SHOWALTER, 1994, p. 28).
De acordo com Showalter (1994), para encontrar o lugar do feminino no
campo literário fazia-se necessário a construção de uma base teórica efetivamente
concentrada e elaborada pelas mulheres a qual fosse capaz de buscar e desenvolver
seus próprios temas, sua própria tradição. Uma teoria que discorresse sobre
experiências femininas e que fosse capaz de encontrar a voz genuína da mulher. Para
tanto, essa teórica americana apresenta o conceito de “ginocrítica” (gynocritics),
tendência da crítica feminista que é centrada na investigação das produções literárias
de autoria feminina, na qual se desenvolvem pesquisas que estudam a mulher
47

enquanto escritora e que buscam responder: sobre o que escrevem? Qual é o estilo
da escritura feminina? Qual gênero literário preferem? Como se estruturam seus
textos, quais os temas são frequentemente abordados?
A ginocrítica também se dispõe a compreender de que maneira a mulher
concebe sua carreira no campo literário, de forma particular ou em grupo, e como se
organiza uma tradição literária produzida por mulheres. Diferentemente da vertente
anterior, esse viés da crítica feminista não se respalda em uma tradição falocêntrica,
mas busca elucidar o lugar da mulher escritora firmada na ideia da “diferença”: em
que se diferencia a literatura produzida por mulheres da escrita por homens? De que
modo as mulheres se distinguem como “grupo literário”? (SHOWALTER, 1994, p. 29).
Patrícia Meyer Spacks, com a obra The female imagination (1975), foi a
primeira pesquisadora a abordar a análise da voz criativa feminina numa perspectiva
ginocrítica. A partir da leitura investigativa de 50 obras escritas por mulheres, essa
teórica observou questões sobre a construção da identidade feminina e como as
escritoras temiam o mercado de bens simbólicos, devido a massiva rejeição ao
trabalho literário feito por elas. Spacks trouxe ao campo das tomadas de posição o
debate em torno do qual centravam as marcas da “diferença” dos escritos femininos
sendo correlacionadas com as condições sociais que envolviam as mulheres no
campo de poder.
Assim sendo, o projeto principal da ginocrítica se construiu em volta da análise
das obras de autoria feminina e da rede de relações que compreendem esse lugar de
produção em determinado campo literário. Para a realização desse trabalho, segundo
Showalter (1994, p. 31), era necessário que as teorias críticas feministas estivessem
bastante embasadas e com critérios de análise bem definidos, capazes de construir
um mapeamento da tradição esquecida ou desprezada. Devendo-se apreender de
maneira consistente como a mulher se relaciona, ou se relacionou ao longo da história,
com os agentes do campo literário e como isso foi relevante para vencer paradigmas
e reafirmar valores essencialmente femininos. Por essa razão a crítica feminista se
desenvolveu de maneiras distintas em cada espaço de produção, de acordo com as
necessidades que cada campo e análise requeriam, contudo, como todas essas
correntes de pensamento almejavam um alvo comum, em vários pontos as teorias
feministas se entrelaçaram e, portanto, se unificaram.
48

A crítica feminista inglesa, essencialmente marxista, salienta a


opressão; a francesa, essencialmente psicanalítica, salienta a
repressão; a americana, essencialmente textual, salienta a expressão.
Todas, contudo, tornaram-se ginocêntricas. Todas estão lutando para
encontrar uma terminologia que possa resgatar o feminino das suas
associações estereotipadas com a inferioridade (SHOWALTER, 1994,
p. 31).

As teorias críticas sob a perspectiva feminista organizam-se em quatro


categorias que versam sobre a criação e as diferenças da escritura feminina e como
a mulher escritora constrói sua trajetória no campo literário. São pesquisas que
compreendem a investigação da escrita das mulheres com o corpo, com a linguagem,
com a psique e com a cultura destas.
Na perspectiva “biológica” da crítica o texto feminino é organicamente
marcado pelo corpo, “anatomia é textualidade”. A simbologia do corpo significa a ideia
da força e da capacidade cognitiva feminina em contraste com o pensamento
androcêntrico no qual a mulher é biológica e intelectualmente inferior ao homem. A
escrita proveniente do corpo é o que torna a voz criativa feminina diferente e original,
já que o seu corpo é a motivação da sua arte, sua “fonte de imaginação”
(SHOWALTER, 1994, p. 32).
A categoria biológica da crítica feminista torna-se significativa quando se
concentra no estudo textual das imagens do corpo como expressão do feminino,
superando a simplória representação dos traços da anatomia. As contribuições dessa
linha de estudos são essenciais para a reflexão de como a situação feminina é
transfigurada na literatura tendo como referência a posição das mulheres na
sociedade; todavia, conforme Showalter (1994, p. 35) adverte, “não pode haver
qualquer expressão do corpo que não seja mediada pelas estruturas linguísticas,
sociais e literárias”.
A orientação da crítica feminista que examina a escrita da mulher e o estilo
como esta trabalha a “linguagem” busca na filosofia e na linguística argumentos que
respondam as seguintes indagações: existe uma linguagem que é própria da mulher?
Fala, leitura e escrita são diferentes a partir do gênero?
Essa área da ginocrítica defende que a linguagem feminina deve ser um tipo
de “revolução”, uma reação ao patriarcalismo, visto que os homens desenvolveram
um sistema linguístico “inerentemente opressivo para as mulheres” e, portanto, elas
devem encontrar um discurso que lhes seja próprio (SHOWALTER, 1994, p. 35). Uma
49

linguagem que mesmo dentro do espaço masculino, seja utilizada continuamente para
romper os preceitos de superioridade destes em detrimento da sujeição feminina.
Por terem sido obrigadas a conviverem, por séculos, com o fantasma do
silêncio, com o uso de eufemismos, palavras de desvalorização e simplificação do
gênero, as mulheres adquiriram certa dificuldade e notável pudor para se
expressarem. Deste modo, ao empenhar-se na causa de compreender a linguagem
delas é necessário considerar que está arraigada a essa linguagem uma forte carga
emocional. Não por representar uma fraqueza ou sensibilidade da mulher, como
propagaram os homens, mas por ser a transfiguração de uma luta, de uma linguagem
carregada de adversidade, da palavra como estorvo de uma voz reiteradamente
impedida de estrugir. Logo, o desafio da crítica feminista recai sobre a investigação
do campo lexical do qual as mulheres tiveram/têm acesso e de que forma elas
expressam essas palavras dentro de um contexto cultural, social e ideológico.
Um outro desafio desse viés da crítica é a batalha pela ampliação lexical do
“campo linguístico das mulheres”, conforme aponta Showalter (1994, p. 39):

Os buracos no discurso, os espaços vazios e as lacunas e os silêncios


não são os espaços onde a consciência feminina se revela, mas as
cortinas de um “cárcere da língua”. A literatura das mulheres ainda é
assombrada pelos fantasmas da linguagem reprimida, e, até que
tenhamos exorcizado estes fantasmas, não é na linguagem que
devemos basear nossa teoria da diferença.

Desse modo, a outra tendência da crítica feminista de caráter “psicanalítica”


põe em discussão a questão da “diferença” associada às relações entre a psique, o
gênero e o processo de produção criativa das mulheres. Para tanto, essa categoria
emprega os conceitos trabalhados pelas correntes críticas anteriores mencionadas
para analisar a construção da “diferença” nas obras de autoria feminina, observando
como o corpo é representado linguisticamente dentro de uma perspectiva
psicológica para interpretar como se manifestam os papéis femininos no âmbito
social e sexual.
Em busca de identificar uma identidade feminina por meio da psique ou do “eu
femininos” (SHOWALTER, 1994, p. 40), as teóricas dessa vertente discorrem sobre a
ideia da “falta” que é tão marcante e presente na discussão da psicologia da mulher,
a qual está relacionada ao falo e as teorias freudianas a respeito do universo feminino.
Outro detalhe interessante da crítica de tendência psicanalítica é a observação
50

detalhada sobre as relações femininas, sejam de parentesco, amizade ou amorosa e


o direcionamento analítico para a questão da sororidade: “as relações entre
personagens femininos mas também as relações entre as escritoras são
determinadas pela psicodinâmica dos vínculos entre mulheres” (SHOWALTER, 1994,
p. 43).
A última tendência da crítica feminista, aclamada e defendida por Showalter
(1994), diz respeito a “cultura” que envolve o espaço social da mulher e o da sua
escrita. Integrando as teorias anteriores, essa linha de orientação cultural considera
as diferenças que existem no campo literário analisando fatores como raça, classe
social, miscigenação, diáspora, língua, história, etc. por meio de “uma experiência
coletiva dentro do todo cultural, uma experiência que liga as escritoras uma às outras
no tempo e no espaço” (SHOWALTER, 1994, p. 44).
A crítica feminista da cultura salienta os desígnios e práticas das mulheres no
campo social por um ponto de vista no qual ela é o tema principal, o centro. A cultura
das mulheres não está fora da cultura geral e dominante, no entanto, elas vivem uma
situação de dualidade, uma vez que ao mesmo tempo que são inseridas numa cultura
androcêntrica, também fazem parte de uma cultura própria, peculiarmente feminina.
Esse lugar particular no qual habitam apenas situações e elementos da cultura
feminina é denominado de “zona selvagem”, no qual os homens não possuem acesso
porque é onde estão resguardados os segredos reprimidos pelo silêncio feminino ao
longo da história. Segundo Showalter (1994, p. 48), esse espaço do feminino no
campo literário “deve ser o lugar de uma crítica, uma teoria e uma arte genuinamente
centradas na mulher, cujo projeto comum seja trazer o peso simbólico da consciência
feminina para o ser, tornar visível o invisível, fazer o silêncio falar”. Logo, estudar o
texto da mulher na “zona selvagem” é invadir o campo da subjetividade, da busca pela
compreensão do heterodiscurso que traz imbricado as vozes do dominador e do
oprimido.
Todas essas tendências da ginocrítica lutaram por uma redefinição de
conceitos preestabelecidos, formulados e permeados por preconceitos e rigor pela
crítica masculina. Por esse motivo existe na crítica feminista uma preocupação por se
construir ou resgatar uma tradição feminina, ou um lugar, no campo literário. Para
isso, muitas teóricas, pesquisadoras e escritoras se dedicam a desvendar os silêncios
e as páginas clandestinas escritas por mulheres. Assim, com base nesses
pressupostos, Showalter (1994) afirma que:
51

A primeira tarefa de uma crítica ginocêntrica deve ser a de delinear o


locus cultural preciso da identidade literária feminina e a de descrever
as forças que dividem um campo cultural individual das escritoras.
Uma crítica ginocêntrica iria, também, situar as escritoras com respeito
às variáveis da cultura literária, tais como os modos de produção e
distribuição; as relações entre autor e público, as relações entre arte
de elite e arte popular, e as hierarquias de gênero (SHOWALTER,
1994, p. 51).

Compreender o lugar do feminino no campo literário por meio de suas


particularidades e resgate de sua voz criativa é dar respostas às próprias mulheres
sobre sua história, sua participação objetiva e subjetiva na vida social e política de
todas as gerações. Logo, se faz necessário refletir sobre como as mulheres se
posicionaram, construíram suas interligações literárias e dialogaram umas com as
outras por meio de uma tradição que mesmo velada e recôndita, se tornou resistente.
Por isso, percorrer os caminhos dos livros analisando o mercado de produção,
circulação e, também, as carreiras das escritoras no campo literário, ainda é relevante
e indispensável.

2.2 O campo literário luso-brasileiro e a escrita das mulheres

Antes a mulher era explicada pelo homem [...]. Agora


é a própria mulher que se desembrulha e se explica.
Não esquecer que as nossas primeiras poetisas
encontraram naqueles diários e álbuns de capa
acetinada o recurso ideal para assim registrarem suas
inspirações, eram naquelas páginas secretas que iam
se desembrulhando em prosa e verso. Vejo assim
nessas tímidas arremetidas o nascedouro da literatura
feminina [...].

Lygia Fagundes Telles

Como já foi discutido no tópico anterior, a literatura de autoria feminina sempre


foi refém da invisibilidade, do antagonismo e da exclusão. A historiografia literária, em
seus compêndios, mostra que as escritoras são integrantes do grupo de
marginalizados da literatura, tanto como personagens quanto como produtoras de
52

obras criativas e por isso ainda lutam contra os mais diversos obstáculos para
ganharem a consagração, para terem seus nomes lembrados nas escolas,
Universidades, academias, livrarias e demais lugares de prestígio nos campos
literários.
Semelhante as irmãs de outras nações, as escritoras portuguesas e
brasileiras, que antecederam o século XX, são ilustres desconhecidas do cânone de
suas respectivas pátrias. As literaturas luso-brasileiras são cerceadas pelos padrões
masculinos do fazer literário. Percebe-se nos manuais escolares, nos dicionários, nas
antologias e livros de historiografia literária uma considerável ausência de textos de
autoria feminina; é como se, no período em que decorreram as escolas literárias
apresentadas nesses estudos, não existissem mulheres escrevendo e publicando.
Segundo a pesquisadora Zahidé L. Muzart (1995), essa questão do cânone
está relacionada a vários aspectos da história literária e social que faz com que muitos
escritores e escritoras sejam esquecidos, excluídos e desapareçam das bibliotecas e
livrarias. Uma vez que o cânone literário de um país aborda sobre os escritores
consagrados pelas instâncias de sagração e as obras vistas como canônicas são as
representantes máximas de um campo cultural, por não terem sido agraciadas com a
validação simbólica de seus pares as escritoras luso-brasileiras dos séculos passados
foram negligentemente apagadas da história oficial da literatura.
Observa-se nos estudos realizados por pesquisadoras/es da literatura de
autoria feminina3 que a produção das mulheres sempre foi significativa e múltipla
quanto ao gênero literário, no entanto, para os historiadores não foi uma literatura
relevante para ser contabilizada e unida aos textos consagrados. Isso acontece
porque nos discursos dominantes do campo literário existe a tendência de repetir-se
a falácia de que a escrita de autoria masculina apresenta uma experiência universal
do mundo, enquanto a ótica feminina é sempre representativa de uma experiência
íntima, particular.
De fato, a literatura produzida por mulheres pode apresentar perspectivas
sobre o mundo que divergem da ideologia dominante (masculina), no entanto, esse
olhar da escritora sobre o seu tempo mostra-se como um horizonte a mais a ser

3 Um trabalho importante sobre a temática se encontra no livro Uma história na história: representações
da autoria feminina na História da literatura portuguesa do século XX, de Chatarina Edfeldt.
Também, sobre o assunto, são relevantes as pesquisas encontradas nas coletâneas A mulher na
literatura, organizadas pelo grupo de pesquisa da Anpoll.
53

considerado na representação sócio-histórica da realidade, visto que a voz literária da


mulher é também a voz simbólica do excluído, a voz do outro que, do mesmo modo,
faz parte do espaço-tempo representado. Assim, ao suprimir a autoria feminina da
historiografia literária oficial os historiadores também omitem e fazem desaparecer a
memória coletiva das mulheres, as vozes das mães, filhas, esposas, escravas,
camponesas, guerreiras, princesas, rainhas; uma diversidade de identidades
femininas, visões de seres excluídos, múltiplos prismas do silêncio.
Deste modo, a produção literária das mulheres luso-brasileiras enfrentou uma
espécie de marginalização simbólica, uma vez que não existia uma contextualização
da literatura de autoria feminina com a literatura de caráter dominante, oficial,
canônica. O pouco espaço dado às obras escritas por mulheres na historiografia luso-
brasileira restringiu essa produção como exclusiva para um público essencialmente
feminino. Daí a relevância de ainda hoje ser necessária a problematização do lugar
da autoria feminina contextualizada ao seu campo histórico-cultural, uma vez que a
representação da sociedade pela perspectiva da mulher mostra-se divergente em
muitos aspectos do discurso oficial.
Nas histórias sociais de Portugal e do Brasil, até a primeira metade do século
XX, existia um grande conflito simbólico entre as esferas pública e privada, lugares
em que os papéis sociais das mulheres eram bem determinados e bastante limitados.
Logo, a produção literária estava para a esfera pública, assim como a função social
da mulher estava para a esfera privada. A mulher, como sujeito social limitado pela lei
e pelas forças coercitivas do patriarcalismo era prejudicada no campo literário, tendo
em vista toda carga simbólica negativa que perpassa a ideia do feminino desde os
tempos remotos.
Nesse espaço dos “grandes homens” constituídos como os melhores de seu
campo literário e da sua época, a esfera pública era, sobretudo, masculina. Segundo
Vanda Anastácio (2002), esse lugar não era favorável para a manifestação feminina,
uma vez que em todas as instâncias de consagração as mulheres sempre esbarravam
no discurso de desqualificação, no qual “se encontram os mesmos topo
(incapacidade, inferioridade, fragilidade) bem como as mesmas propostas de
confinamento ao espaço doméstico, às tarefas conjugais e à maternidade, na
dependência do pai ou do marido” (ANASTÁCIO, 2002, p. 428, grifo da autora).
Apesar disso, as investigações sobre a literatura produzida pelas mulheres lusitanas
e brasileiras, dos séculos passados, mostram que a realidade feminina não ficou
54

ancorada nesse parâmetro clichê que pouco se narra ou é oculto da história oficial.
Conforme destaca Anastácio (2002), existe um importante detalhe sobre a origem da
literatura de autoria feminina que comumente é desvalorizado ou não é considerado
como digno de análise, isto é, a intensa circulação de textos criados por mulheres e
que não eram impressos.
No campo literário português, mesmo que apenas algumas escritoras – que
surgiram depois do século XX – recebam um insignificante espaço de destaque no
cânone, as pesquisas acadêmicas revelam que os primeiros textos de autoria feminina
datam do século XV. Segundo Conceição Flores (2010, p .20), foi Garcia de Resende,
em seu Cancioneiro Geral (1516), quem primeiro divulgou os versos das autoras
portuguesas de maneira impressa, no qual consta a presença de doze mulheres:

entre elas, D. Filipa de Almada (1453-1497), neta de D. Filipa de


Lencastre, casada com o poeta Rui Moniz, que também figura no
Cancioneiro. Acompanhada por suas donzelas, muitas das quais
também compunham trovas, ela participava dos torneios poéticos que
animavam os serões palacianos, aceitando e respondendo aos
desafios dos poetas (FLORES, 2010, p. 20).

Nos grandes salões da corte e da aristocracia lusitana os textos orais eram


recitados e criados no improviso por damas, que muitas vezes também organizavam
os eventos e neles divulgavam sua obra. Estas reuniões contavam com a marcante
presença de homens e mulheres de letras e recebiam o nome de “‘assembleias’ ou
‘funções’, começam a estar na moda na década que se segue imediatamente ao
terramoto de 1755 e a sua voga prolongou-se até perto da década de 40 do século
seguinte” (ANASTÁCIO, 2002, p. 430).
Antes do terremoto – que devastou a cidade de Lisboa – a rotina das mulheres
respeitadas, consideradas de família, era restrita ao ambiente doméstico, estas só
poderiam sair de suas casas acompanhadas e para lugares preferencialmente
religiosos, como igrejas e conventos. Por essa razão, algumas escritoras usaram a
posição social e influência para reunirem os principais nomes do círculo intelectual da
época: “Trata-se, regra geral, de senhoras casadas, que abrem as portas de suas
casas ao convívio literário e presidem, acompanhadas pelo marido, às ‘assembleias’
que organizam” (ANASTÁCIO, 2002, p. 430). Pouco ficou registrado sobre essas
mulheres autoras, no entanto, os que participavam dos eventos literários promovidos
por elas puderam conhecer as suas criações e, assim, reproduzir por meio da
55

divulgação boca a boca um pouco do que produziam. De acordo com Anastácio (2002,
p. 430), essas reuniões “constituíram um dos canais de difusão da poesia mais
eficazes do tempo”.
Essas assembleias além de ditarem um estilo literário vinculado a um costume
e uma maneira restrita e nobre de comportar-se, também eram decisivas para
consagrar um autor. Nesses ambientes de discussões intelectuais e de manifestações
literárias, “reputações” eram construídas ou, ao contrário, destruídas. Assim como
nomes eram eternizados ou apagados da historiografia. Esses salões “funcionavam,
também, como verdadeiras instâncias de legitimação” (ANASTÁCIO, 2002, p. 431).
Contudo, já no século XVII obras relevantes para a tradição feminina foram
criadas: de dentro dos conventos, na clausura dos seus aposentos, muitos textos
foram escritos pela pena das mãos feminina. Como esquecer ou silenciar o sofrimento
de amor da Sóror Mariana Alcoforado em suas famosas Cartas Portuguesas (1669)?
Nesse período já é possível enxergar as primeiras contraposições das mulheres
portuguesas aos princípios patriarcais por meio do discurso literário promovido pela
voz das próprias mulheres. Alcoforado escreveu em suas cartas a trajetória do seu
martírio por não ter a reciprocidade do amor que sentia por um oficial francês. A escrita
das cartas se mostra revolucionária por tratar-se de uma freira expondo o ardor de
uma paixão carnal, evidenciando todo o seu desejo pelo homem amado.

O altruísmo de Mariana venceu as barreiras do tempo, do espaço e,


por certo, as de gênero e corpo. As suas cartas são a tradução de uma
postura amplamente subversiva, por abalarem, inclusive, a própria
estrutura religiosa, de moral duvidosa, que circunscreveu o tempo
histórico da sóror (MACHADO, 2017, p. 46).

No século XVIII tem-se o registro da publicação do primeiro romance de


autoria feminina escrito em língua portuguesa. Trata-se da obra Máximas de virtude e
formosura ou Aventuras de Diófanes (1752), da escritora luso-brasileira Teresa
Margarida da Silva e Orta: “Com três edições no século XVIII – 1752, com duas
tiragens; 1777; 1793, com duas tiragens – e uma edição mutilada em 1818, o livro
contou com um público leitor considerável, tanto em Portugal como no Brasil”
(FLORES, 2010, p. 23). Contrariando o argumento de que livros escritos por mulheres
não tinha público ou aceitação do mercado, dentre os livros de sucesso importados
de Portugal para o Brasil no período, houve o curioso caso do romance de Silva e
Orta. Segundo Márcia Abreu (2003, p. 105), os exemplares da escritora eram
56

solicitados em demasia pelos leitores cariocas, e nesse percurso transatlântico o


romance se tornou um bestseller em terras brasileiras.
Em Aventuras de Diófanes é possível observar os primórdios de uma
consciência sobre os direitos das mulheres. Bastante avançada nas ideias, para sua
época, a autora não demonstrava muita intimidação ante as críticas sociais ao tomar
posição:

[...] não resplandece em todas a luz brilhante das ciências; porque eles
ocupam as aulas, em que não teriam lugar, se elas as freqüentassem,
pois temos igualdade de almas e o mesmo direito ao conhecimento; e
o dizerem que [...] não sabemos entender, ajuizar, aprender e
queremos sempre o pior, é sobra de maldade, e insofrível sem razão,
quando neles há sempre mais que repreender, e nas mulheres muito
que louvar [...] (ORTA, 1993, p. 92).

Percebe-se no excerto da obra da autora luso-brasileira que o direito da


mulher à educação era uma preocupação frequente das escritoras e das mulheres
que almejavam uma mudança no cenário social e cultural português. Entretanto, as
questões que envolviam o universo feminino somente ganharam um pequeno
destaque nos últimos decênios do século XIX, por volta de 1880. Nesse período houve
uma notória manifestação feminina na imprensa portuguesa sobre algumas ideias que
eram a favor dos direitos das mulheres, o que, consequentemente foi alvo de grandes
escândalos e polêmicas4.
A sociedade portuguesa, por meio das leis, limitava sobremaneira as ações
das mulheres para as atividades de teor público. Ora, até o início do século XX, existia
no Código Civil Português, de 1867, uma norma que as proibia de publicarem seus
textos sem a anuência dos seus esposos ou representantes legais do sexo masculino:
“Art. 1187: A mulher auctora não pôde publicar os seus escriptos sem o consentimento
do marido; mas pôde recorrer a auctoridade judicial em caso de injusta recusa delle"
(PORTUGAL, 1867). Essa lei só deixou de vigorar a partir de 1910 com a instituição
da Primeira República.
As escritoras do período da Primeira República Portuguesa (1910-26) não
conheceram melhor sorte que as suas antepassadas, seus nomes pouco constam nas
historiografias e quando raramente aparecem “são constituídas como um grupo à

4Veja-se sobre o assunto o estudo Um século de periódicos femininos (1992), de Ivone Leal, no qual
a autora cita importantes fatos sobre a luta feminista por um espaço no campo literário, além de trazer
nomes relevantes para a produção literária da mulheres em Portugal no período.
57

parte, por serem ‘mulheres’” (EDFELDT, 2006, p. 86). Porém, como as ideias
emancipatórias feministas estavam movimentando os bastidores da sociedade
portuguesa à época e a produção das mulheres, principalmente na imprensa, se
tornava prolífica, muitas escritoras fossem “elas assumidamente feministas ou não,
passam a ser representadas sobretudo como autoras de literatura infantil” (EDFELDT,
2006, p. 86). É o caso da escritora Ana de Castro Osório, declaradamente ativista do
movimento feminista, produziu uma considerável quantidade de contos evidenciando
suas ideias, todavia seu nome aparece apenas como uma escritora de livros infantis.

D. Ana de Castro Osório consagrou-se com louvabilíssima


persistência à literatura infantil, deixando vários livrinhos para
crianças, todos escritos com ternura e decidida vocação. Merece
citação especial a sua admirável iniciativa da fundação de uma
colecção significativamente intitulada Para as crianças, na qual estão
publicadas até agora cêrca de duas dezenas de volumes (SAMPAIO,
1942, p. 310).

Sem desprezar a importância da literatura infantil, mas enfatizando como o


lugar da voz da mulher foi desconsiderado pelos historiadores e críticos, a lembrança
do nome de Osório – assim como o de outras autoras, a exemplo de Virgínia de Castro
e Almeida – apenas nesse ramo da literatura anulando todas as demais produções
destas, reflete uma “discussão maior relacionada com os problemas apresentados
pelo discurso hegemónico no que toca à forma de se relacionar com as questões
políticas expressas pela autoria feminina”, conforme aponta Edfeldt (2006, p. 87).
Posicionar as escritoras dentro de um espaço que mais expressa o perfil didático e
maternal da mulher, como se a escrita fosse uma extensão da vocação para a
maternidade, significava, para os representantes da voz dominante do campo literário,
situar a autoria feminina em um lugar inferior e as suas produções como uma literatura
menor.
As autoras da década de 1920, conhecido como o período de maior sucesso
da poesia feminina em Portugal (o boom de poetisas), de acordo com Edfeldt (2006,
p. 90), foram “as que no século XX mais sofreram um silenciamento na historiografia
literária portuguesa”. A anulação no campo literário foi tão profunda que na maioria
dos manuais sobre a Literatura Portuguesa “é raro encontrar aí essas poetisas
representadas, e a historiografia literária apresenta Florbela Espanca como sendo
uma ilha isolada, um caso excepcional no seu tempo” (EDFELDT, 2006, p. 90).
58

Ser “uma ilha isolada” para uma mulher escritora representava, mesmo que
de forma falocêntrica, um modo de consagração. Isso acontecia porque não era
comum se atribuir valor literário às obras de autoria feminina, nem se estabelecer
relações de afinidades entre essas obras e as escolas literárias da época, mesmo que
os temas e o estilo utilizados pelas escritoras fossem semelhantes aos tratados pelos
contemporâneos do sexo masculino. Então, quando a crítica considerava que uma
escritora tinha qualidade literária em comparação aos pares masculinos, esta era
colocada em um lugar de distinção como se fosse também um homem, uma vez que
sua literatura não era estilisticamente permeada por uma “essência feminina”.

Nos textos críticos e estudos literários sobre literatura de autoria


feminina, realizados em Portugal, na primeira metade do século XX, a
ideia da “mulher extraordinária” torna-se muito explícita quando alguns
críticos consideraram que a melhor maneira de elogiar uma escritora
era a de lhe atribuir o epíteto de “escritor” ou “poeta” (EDFELDT, 2006,
p. 122).

Trajetórias esquecidas e histórias não contadas: a notoriedade e consagração


da literatura de autoria feminina no campo literário brasileiro teve um percurso
semelhante ao português. É o que se pode ver com a carreira das autoras do século
XIX, silenciadas nas historiografias e antologias mais clássicas da literatura nacional,
embora existam muitos nomes de mulheres escritoras, “rarissimamente elas são
citadas por historiadores como Afrânio Coutinho, Antonio Candido, Alfredo Bosi e
outros, já não o tendo sido, anteriormente, por Sílvio Romero, José Veríssimo e
Ronald de Carvalho” (MUZART, 1995, p. 87).
Para que as histórias das escritoras brasileiras não se perdessem e não
deixassem de ser contadas às jovens e futuras gerações, um grupo de pesquisa
organizado por professoras universitárias e denominado “Mulher na Literatura”, da
ANPOLL, conseguiu fazer o resgate de muitas obras de autoria feminina que seriam
esquecidas se não fosse pelo minucioso trabalho investigativo dessas pesquisadoras
que vem sendo realizado desde 1986 e hoje é cada vez mais crescente o número de
pesquisas e trabalhos acadêmicos sobre essas obras ignoradas pela historiografia
literária oficial.
Ao trazer à tona a história dos excluídos é possível trazer à reflexão e
reconsiderar o que se entende por “legitimação literária”, isto é, põe-se em dúvida os
conceitos e critérios estéticos da crítica tradicional e o modo diminuto no qual se
59

interpreta uma obra literária. A recuperação das obras de autoria feminina serviu para
que a historiografia oficial fosse questionada e para que o próprio cânone fosse posto
à prova. Ao resgatar as obras das escritoras invisíveis, traz-se à tona o fato de que a
mulher do passado “mesmo em seu papel de sombra de um marido ou do pai,
interessou-se pelas ideias de seu tempo e tentou participar da vida intelectual,
criticando-as” (MUZART, 1995, p. 89).
Apesar de muitos dos textos escritos pelas mulheres do passado serem
considerados medíocres pela crítica tradicional e, muitas vezes, até pela própria crítica
feminista, essas obras não podem ser desprezadas. Conforme afirma Muzart (1995,
p. 90), é preciso que essa literatura seja lida, analisada e contextualizada com toda a
situação político-social de sua época de criação e, consequentemente, submetida a
avaliação estética dentro dos vieses cabíveis ao campo literário, “contribuindo para
recolocá-las no seu lugar na História”.
As publicações das escritoras brasileiras do século XIX tiveram dimensões
reduzidas, no entanto elas produziram uma vasta quantidade de obras em todos os
gêneros literários. Embora escrevessem bastante, apenas um pequeno número de
autoras teve coragem de lançar-se ao mercado dos livros: “Perto da produção
masculina, podemos dizer que as mulheres pouco publicaram. Contudo, não pouco
escreveram” (MUZART, 1995, p. 90).
De acordo com Muzart (1995), no Brasil do século XIX havia uma
predisposição para aceitar-se a mulher que escrevia poesias, todavia as que optaram
por escrever em prosa não foram bem recebidas no mercado simbólico. Como
exemplo, pode-se citar a poetisa Francisca Júlia que tem seu nome lembrado em
algumas coletâneas e historiografias relevantes como a História Concisa da Literatura
Brasileira, de Alfredo Bosi (2017, p. 244); enquanto nomes como o de Maria Benedita
Bohrmann, autora de romances, contos e crônicas, foi suprimido dos manuais.

Verificou-se, pois, em levantamento da crítica da época, que as


poetisas, desde que dentro dos limites impostos pela sociedade, ao
contrário das dramaturgas e romancistas, obtiveram um certo apoio da
crítica e algum espaço para sua produção (MUZART, 1995, p. 91).

Os gêneros mais escolhidos pelas escritoras brasileiras, assim como toda a


literatura produzida por estas, também foram inferiorizados, considerados gêneros
sem prestígio e valor no campo literário, como, por exemplo, os diários, as missivas,
as narrativas orais (das contadoras de histórias), os testemunhos. Por essa razão, ao
60

trazer-se à contemporaneidade as vozes antagônicas dessas escritoras houve


também uma restituição de gêneros considerados inferiores e do pensamento
intelectual das mulheres: emudecido em suas páginas de diários, correspondências e
na imprensa – lugares onde as mulheres escritoras expressaram com bastante
veemência as suas ideias. Em todos esses gêneros, as autoras desenvolveram suas
próprias práticas de manifestação do pensamento crítico, mesmo dentro das
limitações que lhes infligiam e as quais dificultavam o acesso delas ao conhecimento.
No período oitocentista, as damas brasileiras se destacaram,
excepcionalmente, como leitoras. Segundo Buarque de Holanda (1990, p. 11), a
mulher leitora era “presença fundamental dos saraus literários”. Foi graças a marcante
presença como leitora que as mulheres deram vida e fama aos folhetins. Estes
ganharam destaque no século XIX e se propagaram pelos salões e saletas burguesas:
“as mulheres não só conformaram o novo gênero nos saraus domésticos, mas
também o divulgaram através do exercício de sua tradicional função de contadoras de
histórias” (BUARQUE DE HOLANDA, 1990, p. 12).
Segundo os estudos de Marlyse Meyer (1996; 2001), a mulher foi um agente
fundamental para o progresso do romance no Brasil. Como leitoras ávidas e
destemidas, moldaram as preferências do mercado literário para o padrão burguês
que dominava a época. A leitura do texto literário preferencialmente em prosa se
tornou um entretenimento para as mulheres, promovendo o crescimento do gosto pelo
romance. Esses eventos movimentaram o mercado editorial e impulsionaram os
livreiros a desenvolverem estratégias comerciais capazes de tornarem o livro um
objeto mais acessível ao público. Daí surgiram os famosos Gabinetes de Leituras,
importados aos moldes europeus, onde era possível o aluguel sistemático de livros;
esse local era de grande atração para o público feminino: “e as mulheres passaram a
ser não só clientes, mas dóceis fornecedoras desses editores, hábeis conhecedores
do gosto do mercado, que ao mesmo tempo suscitavam e satisfaziam a voracidade
por ficção” (MEYER, 2001, p. 48).
Quanto ao papel de consumidora e produtora de obras literárias no campo
literário do século XIX, além do seu lugar como leitora, foi também permitido, de
maneira discreta, um espaço demarcado especialmente no campo da imprensa e na
promoção de reuniões em que prevalecia a temática literária. Como produtoras
distinguem-se os textos para jornais e revistas destinadas ao público também feminino
61

e num âmbito mais social sobressaem-se como as principais organizadoras de


eventos literários e saraus.
A imprensa foi um dos principais espaços para manifestação do pensamento
feminino, muitos jornais e revistas foram coordenados pelas próprias mulheres,
mesmo com toda a limitação cultural e privação de liberdade que lhes eram impostos.
Consta como primeira publicação da imprensa feminina no Brasil “o Jornal das
Senhoras, criado em 1852, que, ao lado das seções de moda e ‘mundanidades’,
investia no campo da literatura, da política e das artes” (BUARQUE DE HOLANDA,
1990, p. 12). O desenvolvimento da imprensa feminina foi fundamental para o
surgimento e divulgação de uma significativa produção ensaística e da literatura
produzida por mulheres.
Nos salões de artes, a presença das mulheres de famílias abastadas e a
participação destas em debates sobre arte e política era costumeiro. Segundo
Buarque de Holanda (1990, p. 13), esse espaço no qual a mulher podia expressar
alguns dos seus pensamentos críticos era “semi-público, situado entre a casa e a rua,
o salão literário foi um dos poucos territórios onde as mulheres tinham um lugar
reconhecido, e onde efetivamente desenvolveram formas originais de sociabilidade
em torno do exercício e do debate literário”.
No âmbito da autoria feminina relativa à produção de narrativas de ficção e
poesias no século XIX, alguns nomes isolados se destacam no campo literário
nacional, é o caso de Nísia Floresta, escritora potiguar reconhecida como a primeira
voz feminista da literatura brasileira. Seus textos, de teor bastante engajados, traziam
temas políticos em defesa da liberdade e educação das mulheres, como também da
luta abolicionista. Com uma abordagem lúcida e sensível aos problemas sociais de
sua pátria, Nísia Floresta escreveu em gêneros variados e participou ativamente da
imprensa feminina de sua época.
O aspecto engajado era uma constante nas obras produzidas pelas escritoras
oitocentistas, outro nome relevante desse período é o de Maria Firmina dos Reis, que
escreveu o notável romance Úrsula (1859). Nessa obra percebe-se que a consciência
crítica oriunda da condição de outro, de marginalizado, é um estilo da escritora, que
escreveu sobre a escravidão do negro e a condição feminina sem eufemismos. Sobre
essa característica de Maria Firmina dos Reis, a pesquisadora Norma Telles (1989, p.
79), fala que “deveríamos sempre lembrar sua defesa do escravo, a coragem de seus
argumentos e a dignidade que concedeu a seus personagens”. A autora era bastante
62

original na forma como retratava e enfatizava a vida lastimável a que eram submetidos
os escravos, mostrando a crueldade com a qual os senhores os tratavam, as torturas,
o estado inumando ao qual eram obrigados a viverem, de forma a “comover o leitor”
e atraí-lo para a sua causa: “Estratégia empregada por escritoras de outras
nacionalidades, que não sei se chegou a conhecer. Em termos de Brasil, suas
preocupações e o modo que as colocou são precoces e incomuns” (TELLES, 1989,
p. 79).
Também nos últimos decênios do século XIX, era com autenticidade que a
escritora Maria Benedita Bormann (Délia) construía as suas personagens femininas.
No romance Lésbia (1890), por exemplo, a autora arquiteta um perfil de mulher
bastante distinto dos descritos nos romances Realistas e Naturalistas da sua época
ao permitir que uma personagem feminina assumisse o destino da sua vida e tomasse
suas próprias decisões, independente das censuras da sociedade: a protagonista
Arabela se distingue das outras moças pela sua busca incansável pelo saber, sua
família não tem voz ativa na narrativa e ela age por sua consciência e vontade. É por
decisão própria que decide casar-se aos 19 anos e percebe com poucos dias de
casada que o marido não é o homem idealizado, retornando assim para a casa dos
seus pais. Separada, Bela envolve-se em outro relacionamento amoroso no qual
novamente desilude-se, dessas experiências a heroína retira a lição de que “quanto
mais conhecia os homens mais se apegava aos livros” (TELLES, 1999, p. 396). Lésbia
é um romance em que a alteridade feminina é construída entre o amor pelo
conhecimento e o desejo erótico. Segundo explica Telles (1998, p. 12), a protagonista
“vive, com prazer e intenso sofrimento, os prazeres da mente e do corpo. A fronteira
entre vida e arte é rompida e a ação decorre da alternância entre realização pessoal
e o eu artístico que deseja liberdade ilimitada”.
Ao eclodir do século XX muitas escritoras viriam a despontar no campo
literário brasileiro, embora os nomes de poucas autoras constem nos livros de estudo
sobre literatura, o cenário literário foi profícuo em produção e comercialização de
obras de autoria feminina. Um exemplo de sucesso editorial foi Albertina Bertha, que
com o romance Exaltação (1916) alcançou recordes de venda chegando a reeditar
sua obra por seis vezes. A escritora que questionava em seus textos os padrões
femininos vigentes na época, problematizando tabus como a formação intelectual das
mulheres e até mesmo a sexualidade feminina, é, conforme escreve Faedrich (2018,
63

p. 171), “uma voz dissonante na belle époque brasileira, por demonstrar visão crítica
à condição feminina à época e inconformidade com a sociedade patriarcal”.
Sejam discordando do pensamento falocêntrico ou apresentando temáticas
sociais que envolviam os marginalizados dos lugares mais pobres do país, as
escritoras brasileiras que puderam publicar nos anos posteriores ao boom eufórico e
ufanista da Semana de 22, mostraram que a percepção feminina sobre o social não
se distanciava em criticidade do olhar masculino. Escritoras como Rachel de Queiroz,
Patrícia Galvão (Pagu), Dinah Silveira de Queiroz, por exemplo, escreveram com
maestria assuntos de teor social e político – tidos como de domínio “masculinos” –,
nos quais traduziram com ou sem delicadeza e olhar aguçado as ansiedades que
permeavam a sociedade brasileira do período. Como se pode observar no tratamento
dado a temas como o que dizia respeito a crise hídrica e os impactos sociais causados
ao povo nordestino (O Quinze), sobre problemas que envolviam a classe trabalhadora
e as condições de trabalho que lhes eram impostas (Parque Industrial), ou mesmo
sobre uma crise de saúde pública como a tuberculose e os altos índices de
mortalidade causados por ela (Floradas na Serra).
Em terras portuguesas, nesse período entre as décadas de 30 e 40, que
corresponde ao Neo-Realismo e no qual foram produzidas obras com conteúdo de
caráter mais engajado, tentou-se ainda silenciar e não incluir as mulheres escritoras
nas discussões sobre lutas de classe, direitos dos trabalhadores e do âmbito político
alegando-se que as abordagens da autoria feminina não se encaixavam na estética
neorrealista, hegemonicamente masculina.

a exclusão das autoras das décadas de 30 e 40, por serem mulheres,


embora, tal como os seus companheiros neo-realistas, escrevessem
uma literatura de intervenção sociopolítica, continua a evidenciar que
os preconceitos sexuais expostos sobre a autoria feminina ainda são
fortemente mantidos, nessa época, no discurso literário institucional
(EDFELDT, 2006, p. 109).

Todavia, as mulheres continuaram escrevendo, mesmo sem estarem


correlacionadas às correntes literárias da época. Seus textos ultrapassavam os limites
das estéticas priorizadas pelos homens escritores e mesmo recebendo críticas
severas e misóginas, sendo consideradas sem talento, como aconteceu com Judith
Teixeira, não lhes faltaram ousadia e originalidade. Deste período, destaca-se ainda
a escritora Irene Lisboa, uma voz que expressou com excelência as agruras e solidão
64

do sujeito feminino; em sua literatura é singular a maneira como a autora incorpora a


realidade social externa relacionando-a com o âmago das suas personagens de forma
singela, sem perder o foco social e o tom de denúncia sobre a condição feminina.
Segundo Oscar Lopes (1994, p. 198), a obra de Lisboa “parte de uma experiência de
mulher com implantação histórica e social, e realiza mesmo o acesso possível dessa
específica experiência a uma consciência basicamente narrativa e testemunhal”. Irene
Lisboa que deixou seu legado nas letras portuguesas, teve grande relevância para a
formação de novas escritoras, tendo seu estilo servido de influência para muitas
autoras que vieram em anos posteriores, como Maria Judite de Carvalho, por
exemplo.
As mulheres escritoras que surgiram na segunda metade do século XX,
período em que Lygia Fagundes Telles e Maria Judite de Carvalho também
começaram a publicar suas obras, tiveram um espaço de receptividade entre seus
pares e o mercado editorial bem mais exequível que as suas antecessoras. Em
Portugal, o romance A Sibila (1954), de Agustina Bessa-Luís foi uma das primeiras
obras “a operar a desconstrução do estilo realista” (REAL, 2012, p. 60). A autora, que
conquistou uma próspera carreira literária, escreveu narrativas que segundo Miguel
Real (2012) fugiam da estrutura padrão dos moldes clássicos que imperava até então
na literatura portuguesa. Agustina não foi somente um dos nomes principais que
ajudou a desconstruir o estilo aristotélico dos neorrealistas, percebe-se nos seus
textos novas possibilidades de experimentações para as categorias narrativas, assim
cada obra possui sua construção própria, os espaços e tempos perderam a
linearidade habitual, ganhando uma forma mais “labiríntica, fundada em múltiplos
cruzamentos de perspectivas as mais diversas” (REAL, 2012, p. 73).
Se em Portugal, Agustina Bessa-Luís representa um marco na autonomia da
literatura de autoria feminina, no Brasil, Clarice Lispector é a voz que despojada dos
rótulos clássicos da narrativa e dos conteúdos sociais em voga na sua época “se
distinguiu como um ‘evento’, um divisor de águas que determinou dois tempos na
literatura de autoria feminina no Brasil, para a qual ela fundou uma linha de tradição,
representando uma grande referência para as gerações seguintes” (CASTANHEIRA,
p. 8). Pela maneira não linear com que dispunha os espaços e tempos de seus
enredos, pelo estilo hermético e intenso com que tratava as dores e experiências
femininas, criando personagens complexas e ao mesmo tempo cativantes, Lispector
65

traduziu a universalidade na medida em que o particular, o local, se delineava com


muita expressividade e peculiaridade.
A literatura de autoria feminina luso-brasileira no período que corresponde a
segunda metade do século XX, portanto, refrata a realidade social e política de cada
um dos países que em comum enfrentaram crises políticas relacionadas à repressão
do estado que causou falta de liberdade do cidadão, censuras e torturas. As ditaduras
salazarista (em Portugal) e militar (no Brasil) com seus autoritarismos e imposições,
mesmo coibindo direitos políticos e a expressão artística, não silenciaram os
escritores e escritoras que, para camuflarem seus posicionamentos e terem seus
textos aprovados pelo estado e difundidos no campo literário, romperam com os
limites da sintaxe e da semântica, inovaram na forma, servindo-se das
experimentações estilísticas. Um exemplo ousado desse período encontra-se na obra
Novas Cartas Portuguesas, de autoria das três Marias: Maria Isabel Barreno, Maria
Teresa Horta e Maria Velho da Costa.
Obra símbolo da luta feminista, tornou-se um livro de resistência ao
exteriorizar uma voz que é universal. Uma obra feita por três mãos femininas e que
representa com esmero toda uma geração de mulheres.

Há, em Novas Cartas, um conjunto de estratégias ou de processos de


ruptura linguística e ideológica – marcados pelo excesso, pela
violência, pela opacidade, pelo desvio e pela fractura – que contribuem
para a construção de uma «poética de resistência» aos discursos que
legitimam a repressão. Uma repressão que é política, social, sexual e
linguística, exercida sobre a sociedade portuguesa do Estado Novo,
em geral, e sobre as mulheres (mulheres escritoras), em particular. [...]
Porque, se o seu ponto de partida é o centro hegemónico [...], o que
acontece é que esse centro irradia depois para margens diversas, que
acabam por ser traduzidas em não o centro, ou mesmo um centro,
mas em vários outros centros desviados e infixos (AMARAL &
FREITAS, 2014, p. 17).

Difundir-se pelos variados centros dos campos literários dominantes parece


ter sido um dos pontos indispensáveis da literatura de autoria feminina no campo
lusitano após a Revolução de Abril de 1974 e no campo brasileiro durante os anos
que permaneceu sob o domínio dos militares. Percebe-se que as temáticas que
envolvem o universo feminino como maternidade, sexualidade, mercado de trabalho
e a luta pela igualdade social, por exemplo, passaram a ser discutidas e retratadas na
literatura feita por mulheres sem os receios de outrora. Mesmo que ambos os países
66

tenham permanecido conservadores, o discurso literário feminino transgrediu com o


conservadorismo mostrando que as personagens femininas de suas obras poderiam
sentir desejo sem precisar morrer ao final da narrativa, que uma protagonista poderia
optar por ser livre para decidir sobre o matrimônio e a maternidade ou vice-versa: “É
uma literatura que traz, agora de modo mais efetivo, características da reconstrução
identitária da mulher, que sente a urgência de recriar a própria história”
(CASTANHEIRA, p. 10).
É com essa urgência de fazer estrugir a voz da mulher, marcada pela
experiência e sobrevivências do próprio sujeito feminino, que Maria Judite de Carvalho
e Lygia Fagundes Telles se junta ao grupo de novas escritoras que lutaram por
desmistificar todos os preconceitos sobre a “escrita de mulher” ou o “tom feminino”
tantas vezes mencionados de forma pejorativa pela crítica androcêntrica. Seja
transfigurando os anseios de sua geração, criticando os conturbados caminhos da
modernidade tecnológica ou expressando o vazio do existir e a eterna busca por um
fio sequer de felicidade, essas escritoras se juntam as demais autoras que as
antecederam, que compartilharam o mesmo tempo histórico, como também as que
vieram depois e constituem a tradição literária de autoria feminina luso-brasileira por
tantos anos esquecida e silenciada. Representando um “corpo expressivo e
multifacetado, que reflete o resultado de décadas de elaborações teóricas e práticas
reivindicatórias, no sentido de atualizar a queda de conceitos e valores
tradicionais/patriarcais de nossa cultura” (CASTANHEIRA, p. 11).

2.3 O mercado de bens simbólicos e as regras da arte

São extraordinárias e há-as em todas as classes


sociais. [...] Ela e o seu fio invisível avançam, recuam,
dão voltas sobre voltas, param para tornarem à carga
num momento mais oportuno. E entretanto o seu rosto
sorri e a sua voz sussurra, dá gargalhadas, diz coisas
belas, fúteis ou profundas.
Mas ei-la atenta, à espera da ocasião propícia para
a malha definitiva que a vai tornar a vencedora que
todos ignoram [...]
Maria Judite de Carvalho
67

No campo literário o termo consagração é a palavra-chave que faz com que


um escritor e sua obra transcendam as fronteiras do espaço e do tempo. Segundo
Pascale Casanova (2002, p. 162), a “consagração de um texto é a metamorfose quase
mágica de um material comum em ‘ouro’, em valor literário absoluto”, de igual modo,
o autor também experimenta essa transformação quando permeia os limites do
anonimato em decorrência do seu triunfo artístico. Contudo, é pertinente afirmar que
o caminho para a sagração no campo literário é acessível e favorável a todos e todas
que se arriscam a carreira literária? Quem credita valor a uma obra? Quem tem poder
de legitimar um autor e destacá-lo entre outros, tornando-o parte de uma divinização
numa hierarquia literária?
Na epígrafe deste tópico, Maria Judite de Carvalho escreve sobre o árduo
trabalho das tecelãs, metáfora da mulher escritora, na busca por um espaço, por um
reconhecimento no campo literário, onde é constantemente desvalorizada. Sob esse
âmbito, como se situam as escritoras no mercado de bens simbólicos? Se,
semelhante aos homens escritores, as autoras também escrevem em seus livros
sobre “coisas belas, fúteis ou profundas”, quais temas seriam considerados universais
e capazes de conduzir as “tecelãs” ao grupo dos consagrados, ao espaço de
aclamação na escala valorativa do campo literário?
Segundo Bourdieu (1990), uma obra de arte se conceitua e se torna referência
por causa de um conjunto de “crenças” que são concebidas em função dela. Essas
crenças são formadas a partir de discursos de celebração, de análises fechadas as
quais expõem a obra como uma forma de “fetiche”, isto é, uma arte que vale por si
mesma, sem se considerar os fatores externos a ela, as questões de caráter social
que permeiam todo o processo criativo e o contorna. Como “objeto simbólico dotado
de valor”, a obra literária precisa ser conhecida e reconhecida socialmente, por isso
há a necessidade de investigar como esse valor é construído dentro do campo de
poder em conjunto com a análise da sua criação enquanto produto comercial.
É pertinente sopesar que, para a compreensão do valor de determinada obra,
se faz necessário observar não apenas o produtor, também é imprescindível ver os
posicionamentos sobre as obras por parte dos “produtores de significado” e valor à
obra, são eles críticos, editores, júris de concursos literários, Universidades. É
relevante que todo o contexto das condições de existência social dos artistas e dessas
instâncias de consagração sejam levados em consideração: “se trata de comprender
la obra de arte como una manifestación del campo en su conjunto, en la que se hallan
68

depositadas todas las potencias del campo, y también todos los determinismos
inherentes a la estructura y al funcionamiento de éste5” (BOURDIEU, 1990, p. 11).
Observa-se que quem credita valor a uma obra e a um/a escritor/a são as
“instâncias consagradoras”. São elas quem motivam o sucesso de uma obra no
espaço e ao longo do tempo, também trabalham para proteger e fazer valer o seu
poder de atribuir relevância a um objeto artístico, conforme defende Casanova (2002).
No entanto, esse significado valorativo é contestável, não é absoluto. Afinal, quem
pode ser incluído/a no grupo dos consagrados? O que determina o valor de uma arte
e de um/a artista? Qual preço é preciso pagar por uma consagração?
Existe uma gama de valores subjacentes a uma consagração e a
transformação pela qual sofre um livro ou um/a autor/a ao ser legitimado é semelhante
a um encantamento, pois ocorre uma mudança também na “natureza” da obra. Assim,
textos que são oriundos de lugares desprestigiados ganham visibilidade, passam a ter
vida, a existir no campo literário, pois passam por uma “transformação aqui chamada
de literarização” (CASANOVA, 2002, p. 162).
O processo de literariedade, defendido por Casanova (2002), está
intrinsecamente relacionado ao patrimônio linguístico de um campo literário. A língua
é um elemento fundamental para o capital simbólico, uma vez que por meio dela uma
obra é conduzida à consagração ou a um espaço antagônico no cenário literário
mundial.

Uma grande literariedade ligada a uma língua supõe uma longa


tradição que refina, modifica, amplia a cada geração a gama das
possibilidades formais e estéticas da língua; ela estabelece e garante
a evidência do caráter eminentemente literário do que é escrito nessa
língua, tomando-se por si só um "certificado" literário (CASANOVA,
2002, p. 33).

Como em qualquer ambiente social, no campo simbólico há também os níveis


de importância política de determinadas línguas e, por consequência, uma cabal
legitimação às literaturas oriundas dos espaços de maior prestígio linguístico,
considerados como centros. Os espaços mais antigos historicamente são os que
dominam o campo literário universal, isso acontece porque estes centros são os “mais
dotados” de uma história política, linguística e literária, enquanto os espaços mais

5 “Trata-se de entender a obra de arte como uma manifestação do campo como um todo, no qual todos
os poderes do campo são depositados, e também todos os determinismos inerentes à estrutura e ao
funcionamento deste” (tradução livre).
69

novos, “menos dotados” de uma história de nação, de conteúdos para motivar uma
veemente criação literária, buscam espelhar-se nos campos literários dominantes. De
acordo com Casanova (2002, p. 113), “os campos literários mais antigos são também
os mais autônomos, ou seja, os mais exclusivamente consagrados à literatura em si
mesma e por si mesma”.
Um campo literário autônomo tem a liberdade de reinventar seus conteúdos.
Independente da história nacional de origem, as problemáticas tratadas nas obras
ganham um valor político, sociológico, histórico, étnico que abrangem o espaço
universal e se difunde fora dos domínios temporais de sua criação. Nesse espaço
simbólico, as problemáticas externas se internalizam e “só estão presentes refratadas,
transformadas, retraduzidas em termos e com instrumentos literários” (CASANOVA,
2002, p. 113).
Quando uma literatura de determinado campo consegue emancipar-se
temática e esteticamente, ela sofre um processo de “desnacionalização”, pois não
sustenta a preocupação una de apenas representar artisticamente a sua nação, ao
contrário, os temas trabalhados refratam uma realidade que pode ser reconhecida em
qualquer espaço. Por esse motivo, essa literatura ganha status de internacional e, por
consequência, assume um poder próprio para também consagrar outras literaturas;
torna-se, assim, uma instância de validação literária.
No entanto, a liberdade experimentada pelo campo literário para utilizar os
recursos estéticos da criação ao seu modo e tecer um espaço imaginário autônomo
do espaço real não se aplica à relação de dependência política que o campo literário
tem com o campo de poder, refletido profundamente na materialização da dominação
de um campo literário sobre o outro. A origem de tal sujeição é de contorno
inestimável, intercalados entre colonizações, escravização e negação das culturas
das nações dominadas, incluindo a imposição linguística dos dominadores.

Aqui se encontra toda a ambiguidade subjacente ao próprio gesto


literário: como a língua não é uma ferramenta literariamente
autônoma, mas um instrumento sempre já político, é, paradoxalmente,
pela língua que o universo literário permanece submetido a
dependências políticas. Por isso, as formas de dominação, de certa
forma "encaixadas" umas nas outras, tendem a sobrepor-se, mesclar-
se, esconder umas às outras. Os espaços dominados literariamente
podem também ser dominados e, de modo inseparável, linguística e
politicamente (CASANOVA, 2002, p. 148).
70

Por efeito, as literaturas oriundas das nações colonizadas são consideradas


emergentes, periféricas e estão sempre em contraste com a literatura dos centros
dominantes; estes são responsáveis por grande parte do poder de consagração de
uma obra e do seu produtor. Deste modo, as obras dos países em desenvolvimento,
que são aceitas e elogiadas por essas instâncias de consagração, são canonizadas e
elevadas a um patamar de valorização e grande prestígio no seu cenário de origem.
Ao se estabelecer limites espaciais entre centros e periferias, em cada campo
literário, observa-se que existe uma imposição sobre os conceitos valorativos da
literatura. Com contornos deformados são definidos e traçados limites para a
literatura, restringindo-a ao binômio da arte genuína versus arte medíocre: “essa
espacialização tende a neutralizar a violência específica que rege as relações no
universo literário e a ocultar a desigualdade e a concorrência resultantes de uma
oposição propriamente literária, entre dominantes e dominados literários”
(CASANOVA, 2002, p. 149).
Um campo linguístico dominante funciona como centro no qual todas as
produções literárias, que utilizam seu idioma como material estético, serão seus
dependentes. Formado por suas próprias regras e por inúmeras ideias preconcebidas
que comungam com as construções históricas do espaço social, o campo literário
refrata as marcas dos aspectos estruturantes do seu espaço de produção. Assim,
cada campo literário é um mundo particular, formado de “um panteão específico,
prêmios literários, gêneros privilegiados por uma história, tradições próprias e até
rivalidades internas dão forma e conteúdo a uma produção literária em um
determinado conjunto linguístico” (CASANOVA, 2002, p. 149).
Os centros ou capitais que dominam os campos literários são espaços que
possuem uma longa tradição literária dentro de determinada língua, por isso possuem
liberdade e poder de atribuir crédito e visibilidade a um/a escritor/a oriundo/a de países
de menor prestígio literário. É o caso de Londres, capital dos países de língua inglesa,
e, de outros espaços de certificação literária como Paris, centro dos países
francófonos, ou Berlim, capital de sagração para os/as escritores/as dos países do
norte europeu.
Dentro do mercado de bens simbólicos, o capital linguístico tem um grande
potencial lucrativo. Bourdieu (1996), em seu livro A economia das trocas linguísticas,
escreveu sobre o processo comercial da linguagem mostrando como determinadas
manifestações linguísticas conseguem ter maior visibilidade mercadológica no campo
71

cultural. Deste modo, um outro respeitado instrumento de literarização e,


consequentemente, de consagração é a tradução, uma instância que é capaz de
tornar conhecido e distinto no mercado literário um nome inexpressivo e sem
visibilidade artística. Segundo Casanova (2002, p. 169), a tradução é uma instância
fundamental no processo de ruptura entre o nacional e o internacional, ela “é uma
forma de reconhecimento literário e não uma simples mudança de língua, puro
intercâmbio horizontal que se poderia (deveria) quantificar para tomar conhecimento
do volume das transações editoriais no mundo”.
A tradução proporciona uma maior circulação do produto literário, como
também uma maior possibilidade desse produto alcançar reconhecimento e tornar-se
de domínio universal. Entretanto, nessa instância é possível enxergar as linhas e
barreiras da desigualdade linguístico-social que envolvem o universo literário e como
isso é motivo de prestígio ou desprestígio dentro do campo cultural.
Fundamentada nas ideias do professor Itamar Even-Zohar, por meio da
utilização das expressões “língua alvo” e “língua fonte”, Casanova (2002) reitera o
quanto é desigual o jogo que existe na importação e exportação das obras
dependendo do lugar de origem e destino. Sobre “línguas fontes”, entende-se como
aquelas que mais exportam suas literaturas, são as línguas de prestígio, carregadas
de poder consagrador e literariedade. Já as “línguas alvo” são aquelas consideradas
periféricas e que, por não serem tão grandes em importância social, pouco exportam,
enquanto as importações de obras consagradas das línguas de prestígio são
realizadas de maneira acentuada. Por essa razão, as traduções sempre acontecem
no sentido do centro para a periferia: quanto mais significativo é um centro, mais este
exporta livros traduzidos para as línguas periféricas.
No campo linguístico mundial o idioma português é considerado uma língua
periférica. Assim, os países lusófonos possuem um capital linguístico-literário ainda
em desenvolvimento. Mesmo que a literatura do Brasil venha experimentando nas
últimas décadas um grande crescimento no setor editorial, na questão das traduções
e reconhecimento internacional, e que a literatura portuguesa seja oriunda do eixo
europeu, a qual conta com uma tradição literária mais antiga que a dos demais países
de língua portuguesa, nota-se que tanto no Brasil como em Portugal permanece a
cultura do consumo de obras estrangeiras em detrimento das nacionais6.

6 Como é possível observar na lista dos livros mais vendidos em ambos países no ano de 2019 o
predomínio de vendas das obras estrangeiras. Disponível em: < http://www.revistaestante.fnac.pt/10-
72

Segundo a Marta Pragana Dantas (2019), isso acontece porque no mercado


de bens simbólicos a possibilidade de uma obra alcançar sucesso e circular de forma
relevante nos principais centros, depende de fatores sociais e econômicos, isto é, da
forma como o campo literário de origem está estruturado politicamente como nação
no plano internacional. Por essa razão, a lógica que movimenta a circulação das obras
traduzidas no mercado mundial, além desses fatores externos e políticos, depende
muito do capital simbólico que as casas editoriais detêm no campo literário. Por meio
do recurso conhecido como “patronagem”, são as casas editoriais “que em larga
medida definem o que será traduzido e publicado, contribuindo sobremaneira para
que a obra entre no circuito de circulação, recepção e atribuição de sentidos no campo
de recepção” (DANTAS, 2019, p. 158).
Em Portugal, a internacionalização da literatura é complexa e conflituosa, uma
vez que os próprios escritores se fecham para o fluxo da circulação além fronteiras.
Em reportagem do portal Eco (2017), a diretora da editora “Saída de Emergência”,
Safaa Dib, fala sobre essa realidade mostrando o fato de “os autores portugueses
ainda estarem muito voltados para a publicação ‘para dentro’” e sempre esquivando-
se do mercado externo. Além disso, é muito mais cômodo para as editoras
portuguesas a importação de outros escritores europeus e norte-americanos que
abordam temáticas mais abrangentes e universais. Segundo a matéria, os autores
estrangeiros “ocupam cerca de 70 a 80% do catálogo apresentado em Portugal”.
Já no Brasil, existe um grande interesse das editoras e dos próprios escritores
pela internacionalização da literatura brasileira. De acordo com a M. Carmem Villarino
Pardo (2015), por muito tempo o que dificultou a circulação dessa literatura foi a
predileção dos autores brasileiros pela tendência de focar no repertório “nacional”
destacando demasiadamente os problemas locais. Portanto, seguindo esse princípio,
o “sistema literário brasileiro participa, no nível internacional, de um espaço de lutas
em que cada tradição ‘dita nacional’ entra em confronto com outras num espaço
comum (mundial) para atingir posições de maior ou menor centralidade [...]” (PARDO,
2015, p. 272).
Como em Portugal, o mercado do livro no Brasil também conta com um
exacerbado número de títulos estrangeiros, especialmente de língua inglesa, em
comparação com as obras nacionais: “se consome mais literatura traduzida do que

livros-mais-vendidos-2019/ >, e < https://www.publishnews.com.br/ranking/anual/9/2019/0/0 >. Acesso


em 2 de ago. de 2020.
73

aquela que atravessa as ‘alfândegas’ para o exterior” (PARDO, 2015, p. 279). Isso
acontece aos países emergentes porque o estilo considerado “universal”, que foge da
cor local, é prestigiado, aclamado pelas instâncias de consagração que dominam o
campo literário.
Seguindo essa lógica do mercado de bens simbólicos, o que se entende por
universal? Quais os critérios que internacionalizam uma obra? Segundo Casanova
(2002), a ideia do universal é extremamente reducionista e elitista, a isso acrescente-
se também misógina.

O universal é de certa forma uma das invenções mais diabólicas do


centro: em nome de uma negação da estrutura antagonista e
hierárquica do mundo, sob o pretexto de igualdade de todos em
literatura, os detentores do monopólio do universal convocam a
humanidade inteira a se dobrar à sua lei. O universal é o que declaram
adquirido e acessível a todos, contanto que se pareça com eles
(CASANOVA, 2002, p. 194).

Ao transformar uma obra seguindo os moldes do universal, o autor desvirtua


o que a torna particular dentro do seu contexto de produção, o texto acaba por se
adequar a uma estética comum. Para escritores dos países periféricos a conquista da
universalidade é uma luta incessante o que implica em uma “des-historicização”, isto
é, não existe um espaço próprio para reivindicar os eventos sociais e políticos
narrados na obra: “Para chegar ao reconhecimento literário, os escritores dominados
devem portanto dobrar-se às normas decretadas universais justamente por aqueles
que detêm o monopólio do universal. E sobretudo encontrar a ‘distância correta’ que
irá torná-los visíveis” (CASANOVA, 2002, p. 197).
Observando esse jogo do mercado simbólico, não é difícil perceber que ele
mais exclui do que proporciona oportunidades favoráveis aos escritores emergentes.
Por esse motivo existe, como aponta Regina Dalcastagnè (2012), um “mapa de
ausências” na literatura consagrada como universal, especialmente quando se afunila
essa questão para a problemática relativa ao gênero do autor.
Delimitando essa realidade para o mercado editorial luso-brasileiro, o perfil de
autor que predomina nos catálogos das casas editoriais mais prestigiadas – como, por
exemplo, Companhia das Letras, Rocco e Record, no cenário brasileiro e a Porto
Editora, Leya e Grupo Presença, no espaço português7 – é masculino. Conforme

7Segundo dados que constam no site da APEL - Associação Portuguesa de Editores e Livreiros.
<www.apel.pt>.
74

explica Norma Telles (1992, p. 45), isso acontece porque “a figura da autora foi
deformada por muitos fatores, silêncios e interrupções da memória coletiva”, assim
“para se chegar a ela é preciso ler através das ocultações que apontam conflitos
sincrônicos entre as representações da mulher, as representações de sua
desfiguração e sua afirmação pela escrita”.
Em uma pertinente pesquisa sobre o recente campo literário brasileiro,
Dalcastagnè (2012) identificou que as editoras Companhia das Letras, Rocco e
Record são as mais relevantes para a ficção nacional, sendo as maiores detentoras
de capital simbólico para consagrar escritores e validar no campo nacional os autores
que vêm do exterior. Analisando os catálogos das três editoras mencionadas, a
pesquisa constatou que a presença de obras escritas por mulheres é insignificante
comparada ao número de publicações masculinas. Os resultados apontaram que “os
homens são quase três quartos dos autores publicados: 120 em 165, isto é, 72,7%”,
sendo apenas 45 obras de mulheres, equivalente a 27,3% (DALCASTAGNÈ, 2012, p.
158). Uma rápida pesquisa nos catálogos digitais das editoras portuguesas com maior
capital simbólico8: Porto Editora, Leya e Grupo Presença, foi constatado que o número
de publicações de autoria feminina também é muito inferior com relação a masculina.
Se na instância editorial a presença feminina é mínima, na instância que
agrega as premiações literárias não é diferente. Segundo Casanova (2012), o sistema
de premiação é a categoria mais problemática e a maneira menos literária de se
promover um autor. Prêmios literários simbolizam a consagração de uma estética, a
aprovação e aceitação de um autor, de uma obra, dentro de um contexto “privilegiado”
no campo literário.
Ao discorrer sobre o “prêmio do universal”, Casanova (2012, p. 185) afirma
que o Nobel ainda é o prêmio de maior consagração no campo literário: “os escritores
do mundo inteiro aceitam-no como certificado de universalidade”. Ser reconhecido e
agraciado pelo Nobel da Literatura é uma grande distinção para um escritor e em
especial para o seu lugar de origem, o seu país, como também para a elevação
simbólica de sua língua materna. Dos 116 ganhadores desse prêmio somente 15 dos
vencedores são mulheres e nenhuma delas escreve em língua portuguesa. Em
Portugal, a escritora Maria Madalena Martel Patrício (1884 – 1947) foi a única mulher
que teve seu nome recomendado ao Nobel de Literatura, por treze vezes, no entanto

8 Pesquisa feita em agosto de 2020.


75

em nenhuma das indicações foi premiada. No Brasil, Lygia Fagundes Telles também
foi a única autora indicada à essa premiação no ano de 2016, porém não obteve da
Academia Sueca a vitória.
Semelhante ao Nobel, os prêmios mais importantes para os países lusófonos
são o Camões e o Oceanos, nesses espaços de consagração a representação
feminina entre os vencedores é ínfima. O Camões, principal premiação em língua
portuguesa, agraciou 31 autores, de 1988 a 2019, tendo apenas 6 mulheres como
ganhadoras, sendo Lygia Fagundes Telles a escritora agraciada pelo Camões no ano
de 2005. Já o Prêmio Oceanos9, que consta com 55 premiados, teve somente 10
mulheres como vencedoras entre 2003 e 2019; apenas 3 dentre os 16 primeiros
lugares.
Também na instância que abrange o setor de traduções, a recente pesquisa
de Dantas (2019) sobre a circulação das obras brasileiras no exterior, aponta para
uma quantidade inferior de exportação das obras de autoria feminina: “A presença
maciça de autores homens em detrimento de obras de autoria feminina confirma uma
tendência mundial dos campos literários nacionais, dominados por homens”
(DANTAS, 2019, p. 160). Portanto, os números corroboram para evidenciar o quanto
é irrisório o espaço do feminino no mercado de bens simbólicos. De acordo com
Dalcastagnè (2012, p. 158) em tal realidade não “é possível dizer se as mulheres
escrevem menos ou se têm menos facilidade para publicar nas editoras mais
prestigiosas (ou ambos)”.

9 Até 2015 era conhecido como Prêmio Portugal Telecom de Literatura.


76

CAPÍTULO 3
UM TEMPO, DOIS ESPAÇOS: afinidades e assimetrias entre as literaturas de
Maria Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles

− Sou escritora e sou mulher – ofício e condição


humana duplamente difíceis de contornar,
principalmente quando me lembro como o país (a
mentalidade) interferiu negativamente no meu
processo de crescimento como profissional.

Lygia Fagundes Telles

Aranhas tecendo, infatigáveis, a sua teia. Nenhum


homem as bate (a elas, frágeis, a elas, seres de
segunda classe com poucas armas para lutar) nessa
arte dificílima e ancestral, vinda do fundo dos tempos.
Elas sabem lançar o fio invisível, puxá-lo, fazer as
suaves malhas envolventes. Entretanto conversam
disto e daquilo. São baças ou brilhantes à vista e ao
ouvido. E as suas mãos lisas ou rugosas não parecem
ameaçadoras. Não são ameaçadoras, só terríveis. A
teia é de palavras aparentemente inócuas, convites à
primeira vista amigos e só isso, opiniões de uma
grande franqueza, atitudes de uma grande lisura.

Maria Judite de Carvalho

Escritoras singulares em seus campos literários, donas de uma percepção


apurada e de um senso crítico ora velado, ora explícito, que desnudam as várias faces
do comportamento humano e perpassam pelos labirintos da consciência,
contrastando o imaginário e o real por meio de uma verossimilhança por vezes
cruciante, outras vezes doce ou irônica, sempre permeada pela lucidez e por um
intenso “sentimento do mundo”, como escreveu Drummond em seu célebre poema.
Essas são algumas particularidades que Maria Judite de Carvalho e Lygia Fagundes
Telles compartilham. Essas escritoras que começaram a publicar seus livros na
segunda metade do século XX, representam a voz afiada e sensível de uma geração
de mulheres que não se intimidaram ante as coerções sociais.
Em Portugal, Maria Judite escreveu sobre as práticas sociais das mulheres de
sua geração em revistas e jornais influentes da capital lusitana, como o Diário de
77

Lisboa. No entanto, suas crônicas não foram simples conselhos dedicados à Mulher
que lia o suplemento especial do qual era responsável, sua escrita trazia uma
decomposição do dia a dia, desmistificando estereótipos do eterno feminino e
mostrando sua perspicaz observação da minuciosidade, daquilo que outros olhos
menos aguçados poderiam considerar inútil, mas que ela soube atribuir a importância
necessária e precisa, transformando em literatura. Portanto, uma voz que assumiu um
posicionamento subversivo, apesar de sua grande discrição: “Ainda. Neste nosso
tempo. Mas o que hão de as mulheres fazer para serem aceites como pessoas neste
mundo de homens?” (CARVALHO, 2019, p. 75).
No Brasil, com suas posições firmes e corajosas, Lygia escreveu histórias de
meninas, moças, mulheres e anciãs que desafiaram os costumes sociais vigentes,
mostrando seu posicionamento sobre a liberdade do corpo e da consciência feminina
em sincronia com os debates que acirraram o movimento das mulheres no século XX:
“Guerra é guerra, muito justo que as estudantes colaborassem. Ela me examinou
cheia de apreensão, mais funda a ruga preocupante: Veja, filha, você já é escritora,
estuda numa escola só de homens e agora virou também soldado?!” (TELLES, 2009d,
p. 115). Sempre com o olhar atento às transformações da sociedade e aos conflitos
oriundos das mudanças e desafios dos tempos modernos, essa escritora coloca como
cerne dos seus textos o sujeito que, em conflito com o mundo exterior, busca uma
saída para o caos e a desordem interior, auréola que cobre com fascínio e mistério as
suas personagens.
Pelo estilo, pela intrepidez, pela disciplina com que teceram seus textos, por
toda transgressão comedida ou descarada, foi assim que Maria Judite de Carvalho e
Lygia Fagundes Telles construíram suas trajetórias como escritoras dentro de seus
campos literários. Mas será que esse espaço concedido às autoras, pelas instâncias
de consagração, se deu de modo pacífico? Pode-se afirmar, de fato, que tanto Maria
Judite quanto Lygia tiveram aceitação entre seus pares e sucesso com o público de
forma imediata ou ainda hoje busca-se um lugar de prestígio no campo literário para
essas autoras?
Para compreender a trajetória das referidas escritoras, a posição destas nos
seus campos literários e no cenário universal, este capítulo discorrerá sobre as
relações transatlânticas entre elas e a relevância contextual do ambiente que as
envolveram para a construção de suas narrativas. Portanto, refletir-se-á sobre as
78

relações de afinidades e assimetrias que contornam as suas produções literárias, os


espaços e o tempo histórico no qual foram contemporâneas.

3.1 Diálogos e Travessias: a escrita como transgressão

Je veux bien que toute écriture soit transgression, et


qu’écrire soit pour l’homme aussi enfreindre un interdit.
Disons simplement que la transgression sera double
ou triple chez la femme.

Béatrice Dider

Ao se estabelecer uma relação de semelhança entre as literaturas de Maria


Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles nos aspectos relacionados aos espaços
representados em suas obras e o da realidade na qual os textos refratam, se faz
necessário sinalizar os campos sociais, literários e qual período histórico será
observado nessa comparação: trata-se da segunda metade do século XX, com ênfase
no espaço luso-brasileiro. Com vistas a retomar os conceitos de campo e habitus de
Bourdieu (1996, 2003, 2012, 2015, 2019), para quem o campo literário é um espaço
social “estruturado” de tomada de posições onde escritores, agentes editoriais,
críticos, público, dentre outros, mantêm uma interação que pode ser tanto harmoniosa
quanto de conflito. E por habitus compreende-se as “disposições” internalizadas por
um sujeito no seu subconsciente que resultam em comportamentos sociais
característico do campo no qual o indivíduo faz parte. Assim, tais apontamentos sobre
essas duas categorias bourdieusiana são importantes para compreender-se as
escolhas feitas pelas escritoras, em estudo, para a construção de seus projetos
literários.
Conforme afirma Didier (1991), no trecho que serve de epígrafe para este
tópico, fazer literatura é uma transgressão muito mais audaz para o sujeito feminino,
especialmente em países como Portugal e Brasil que possuem fortes tradições
androcêntricas. Como reprodução dos comportamentos sociais, as críticas aos textos
escritos por mulheres sempre partiram de argumentos masculinos desencorajadores
que atrapalharam ou fizeram esmorecer o talento de muitas escritoras.
79

Uma antiga tia escondia sua poesia, guardou-a até a morte. [...]
Escrevia os poemas escondida, fechada no quarto, a letra tremida, a
tinta roxa. Meu bisavô ficou meio desconfiado e fez o seu discurso:
“Umas desfrutáveis, mana, umas pobres desfrutáveis essas moças
que começam com caraminholas, metidas a literatas!”. Ela entendeu
e fechou a sete chaves a obra proibida (TELLES, 2010a, p. 110).

Verdade ou ficção, esse trecho retirado do livro A disciplina do amor foi


constantemente repetido por Lygia Fagundes Telles para retomar o cenário de
preconceitos e menosprezos implícitos ou manifesto no qual ela construiu-se como
escritora. Em várias entrevistas que concedeu à imprensa, a autora fazia questão de
abordar sobre o seu papel enquanto escritora em uma sociedade toda moldada contra
o avanço das mulheres nas atividades que ultrapassavam os limites do espaço íntimo
e doméstico. Lygia ousou ao ingressar em três profissões tidas como “masculinas” na
sua época de “menina de boina”: formou-se nos cursos de Educação Física e Direito
(em uma turma com 200 alunos, na qual apenas 6 eram mulheres) e sonhou ganhar
a vida como “literata”. Atreveu-se ainda a escrever em prosa e a falar sobre temas que
fugiam do lugar comum atribuído ao estilo feminino: “A mulher quando escrevia devia
ser uma poetisa para falar do homem, exaltar seu amor através dos versos. A mulher
não podia ser a prosadora que tentasse trazer uma realidade que só os homens
traziam”. Isso era inconcebível para as escritoras, “elas tinham que se circunscrever
a temas mais pueris, mais inocentes” (TELLES 1980).
De igual modo, Maria Judite de Carvalho escrevia em suas crônicas a
constante luta das “tecelãs”, mulheres que não conseguiam publicar, que não
encontravam espaço no campo literário, que eram hostilizadas por desejarem
pertencer ao mesmo lugar de honra no qual se situavam os homens consagrados:
“Recebi hoje uma carta vinda da América. Uma carta azeda, desesperada, escrita por
uma mulher que é uma boa escritora mas que há anos vem tendo os seus manuscritos
recusados por todos os editores” (CARVALHO, 2019, p. 292).
Diferente de Lygia, Maria Judite não tinha uma personalidade desafiadora na
sua vida particular. Sonhou ser uma profissional das “Belas Artes”, mas teve seu
desejo interrompido pela família, que não via utilidade prática e lucrativa na profissão:
“Eu queria ir para Belas-Artes, mas dissuadiram-me, dizendo que Belas-Artes não
dava nada. E eu escolhi Germânicas. Dar aulas? Jamais pensei vir a dá-las. E jamais
as dei” (SILVA, 1996, p. 17). Criada por duas tias idosas e intransigentes que
possuíam ideias limitadas sobre a mulher na sociedade, estudou na primeira escola
80

feminina portuguesa, o tradicional Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, tendo seu
habitus sido formado sob o espectro do patriarcalismo em um ambiente dominado
pelos costumes do conservadorismo e da austeridade: “Ela foi educada assim; foi
educada para a discrição, uma menina séria e contida, uma menina séria não
manifesta as suas emoções. E ela nunca soube ser de outra maneira” (LUCAS, 2019,
p.17). Apesar disso, Maria Judite de Carvalho nunca abandonou o campo das artes,
escreveu crônicas, contos, novelas, romance, teatro, poesias e também pintou muitas
telas nas quais predominaram a face feminina sempre contemplativa e melancólica:
“o problema do feminino sempre esteve entre suas preocupações, principalmente no
que diz respeito à opressão, pois ela foi criada com duas tias já idosas e muito
conservadoras” (RODRIGUES, 2011, 253), o que, segundo o marido da escritora, foi
uma das razões para que Maria Judite tivesse um temperamento tão introvertido e
recatado.
Foi de grande importância para a trajetória da autora o círculo de amizades e
convívio intelectual, construído por meio da influência do seu esposo, o também
escritor e professor Urbano Tavares Rodrigues. Além das amizades iniciadas na
Universidade com as escritoras Natália Nunes e Fernanda Botelho, sua rede de
contatos envolve um grupo prestigiado de escritores portugueses como, por exemplo,
José Cardoso Pires e José Saramago. Por causa da militância política do marido e da
perseguição pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), entre os anos
de 1949 a 1955, Maria Judite de Carvalho decidiu acompanhar Urbano Tavares
Rodrigues em seu exílio no “meridiano de Greenwich literário”, como Casanova (2002)
definiu Paris ao conceituar a cidade como capital das capitais literárias ou “república
mundial das letras”, e nesse período a autora pode conhecer importantes escritores
consagradores da literatura universal, como Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir.
Fato esse de grande significado e valor intelectual para a construção do
posicionamento político representado na literatura de Carvalho: “Estreitamos laços
com Camus, conhecemos ideias, e tudo que havia de novo na literatura em França,
isso foi de muita valia para a obra de Maria Judite” (RODRIGUES, 2011, 251).
Mesmo com um talento reconhecido por todos que tinham a oportunidade de
ter acesso aos seus textos, Maria Judite de Carvalho não sentia segurança para
lançar-se à carreira literária. Foi preciso muita persistência de Urbano Tavares para
que a escritora publicasse a obra Tanta gente, Mariana em 1959, anos depois de
começar sua trajetória no jornalismo: “Insisti imenso para ela publicar, quando li desfiz-
81

me em lágrimas. Ela mostrava-me coisas só quando estavam prontas, tinha pudor em


mostrar uma coisa em construção” (RODRIGUES, 2000, p. 5).
De fato, muito antes de lançar suas narrativas em livro o nome de Maria Judite
foi ganhando prestígio no meio jornalístico. Tendo participado ativamente como
colunista em vários jornais portugueses: O Século, República, Diário popular, O
Jornal; e revistas O Escritório, Mulheres, Silex e Come e Cala. Suas contribuições
foram mais duradouras e frequentes no Diário de Lisboa, onde chegou a ser redatora,
assim como na Revista Eva, local no qual iniciou sua carreira ao publicar seu primeiro
texto literário em 1949, a novela “O campo de mimosas”.
A inserção de Maria Judite de Carvalho no campo literário português se deu,
sobretudo, por sua escrita na imprensa o que tornou seu nome reconhecido do público
que lia diariamente os jornais, também pelas relações de amizade construídas com
seus pares. A autora não era participativa nas manifestações públicas, raramente
dava entrevistas, era avessa aos holofotes da consagração e por ter esse caráter tão
reservado, a obra juditiana sofreu o desgaste do tempo, tornando-se, segundo
Esteves (2000, p. 1), “um dos autores mais secretos da literatura portuguesa
contemporânea e talvez também por isso um dos menos estudados”.
Um fenômeno interessante permeia a literatura juditiana: a autora que teve
seus textos aclamados pelas principais instâncias de consagração portuguesas à
época de sua publicação, não obteve o mesmo sucesso de recepção entre os leitores
comuns: “Os meus livros não se vendem. Não sei por quê. Têm boas críticas, mas
não se vendem. (...) As editoras não fazem nada por isso e eu também não” (SILVA,
1996, p. 16). Apesar de ter conquistado alguns prêmios respeitáveis em solo
português – Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco (1995); Prémio da
Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários (1995); Prémio P.E.N. Clube
Português de Novelística (1996); Prémio Vergílio Ferreira (póstumo), em 1998, pelo
conjunto da obra – percebe-se uma ausência de reedições de suas obras no mercado
luso e no exterior.
Durante um longo período os livros de Maria Judite não despertaram interesse
das editoras. Segundo Inês Fraga, neta da escritora, até recentemente “Houve um
silêncio muito grande em volta da minha avó. A figura dela era tão silenciosa. Era tudo
tão etéreo à volta dela...” (LUCAS, 2019, p. 17).
Em Portugal, as obras de Maria Judite de Carvalho foram poucas vezes
reimpressas, alguns dos seus livros tiveram apenas uma edição e as raras
82

publicações que sobreviveram ao tempo foram ficando perdidas em estantes de


leitores seletos ou nas prateleiras dos alfarrabistas: “É uma discrição que parece ter
transbordado da vida e da obra para contaminar também o seu percurso literário”
(LUCAS, 2019, p. 15). As edições antigas são marcadas por uma diagramação
descuidada e por fragilidades na revisão de informações técnicas dos livros. Apenas
em 2018, vinte anos após sua morte, finalmente o público pode ter novo acesso a sua
obra completa em virtude da reedição de seus livros em seis volumes pela editora
Minotauro, pertencente a casa editorial portuguesa Almedina: “Queremos ver renascer
a escrita dela e dá-la a conhecer às novas gerações” (LUCAS, 2019, p. 15), é o que
diz a editora Sara Lutas, responsável pelo projeto de resgate dos livros da escritora.
Quanto a circulação das obras de Maria Judite no campo brasileiro percebe-
se que não houve edições de seus livros por editoras do Brasil, como também não
foram encontrados vestígios da recepção de sua literatura na época da primeira
publicação de suas obras. Já no campo literário francês, seus textos foram recebidos
com grande entusiasmo tanto pela crítica quanto pelo público: oito títulos foram
publicados, entre os anos de 1987 e 2011, pela editora La Différence10, todos
traduzidos por Simone Biberfeld; ainda foi reeditada pela editora Gallimard a novela
Tanta gente, Mariana (Tous Ces Gens, Mariana...). De acordo com Esteves (2000, p.
2), na França também “alguns dos seus textos têm sido apresentados em leituras-
espectáculos, encenados e realizados por Anne Petit, acompanhados por criações
musicais do compositor Ramon Herrera”.
Visando divulgar a obra da escritora e ampliar o interesse do público
acadêmico, dois colóquios foram organizados em homenagem a autora. O primeiro
“Coloque International Maria Judite de Carvalho: thèmes, genres et représentations”,
aconteceu no ano de 2009, na Université de la Sorbonne/Paris IV. As discussões feitas
nesse evento foram publicadas em livro no ano de 2012, sob o título Maria Judite de
Carvalho: Une écriture en liberté surveillée. Nesse livro, os ensaios são distribuídos
em cinco grandes eixos temáticos: 1º) Destino das mulheres; 2º) a poética da
escritura; 3º) a experiência do tempo; 4º) perspectivas comparatistas; 5º) Efeitos de

10Tous Ces Gens, Mariana... Récit, Paris: Ed. La Différence, 1987; Paris: Ed. Gallimard, 2000; Ces
Mots Que L’Ont Retient. Paris: Ed. La Différence, 1987; Paysage Sans Bateaux. Récit, Paris: Ed. La
Différence, 1988; Anica au Temps Jadis. Nouvelles, Paris: Ed. La Différence, 1988; Les Armoires
Vides. Roman, Paris: Ed. La Différence, 1989; Chérie? Nouvelles, Paris: Ed. La Différence, 1994; Le
Temps de Grâce. Roman, Paris: Ed. La Différence, 1994; Les Idôlatres. Paris: Ed. La Différence,
2011.
83

gênero. Também foram compilados em livro os ensaios apresentados no “Colóquio


Maria Judite de Carvalho – Palavras, Tempo, Paisagem” (2011), em comemoração
aos cinquenta anos de As Palavras Poupadas, organizado pelo Centro de Estudos
Comparatistas e o Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa sob o comando das professoras Paula Morão e Cristina
Almeida Ribeiro.
Com uma bibliografia que conta com 16 títulos em diferentes gêneros, não se
pode duvidar que a obra de Maria Judite de Carvalho ainda carece de muitos estudos
e de mais atenção por parte da academia.

Não se trata de um banal gesto de luta contra o indevido esquecimento


da autora – mas de dizer ao público em geral, e aos universitários em
especial, que com os seus livros ficamos menos pobres, mais
conscientes do nosso tempo e de nós mesmos (MORÃO & RIBEIRO,
2015, p. 9).

A voz da instância acadêmica quanto a obra de Maria Judite de Carvalho


ainda é bastante tímida: em uma pesquisa realizada no banco de dados da CAPES
com o nome da escritora portuguesa foi detectada uma quantidade de teses e
dissertações que totalizam apenas 15 publicações, sendo a primeira delas datada de
1990 e a última de 2016. Também no país de nascimento da escritora a fortuna crítica
sobre a sua obra não é muito numerosa, foram encontrados 10 trabalhos de pós-
graduação realizados entre os anos de 1987 e 2013.
As categorias estudadas nas pesquisas sobre Maria Judite de Carvalho
agrupam-se em linhas temáticas que se destacam tanto no Brasil como em Portugal,
a saber: 1º) trabalhos que abordam sobre a representação da mulher; 2º) pesquisas
sobre a psicologia das personagens, destacando-se a solidão e a melancolia; 3º)
estudos sobre a velhice e o abandono; 4º) trabalhos que discorrem sobre os dramas
e os desatinos do sujeito moderno ante a sociedade.
Os estudos sobre a representação do feminino mostram a mulher como um
ser em constante conflito entre liberdade e destino. Sempre vítimas da opressão
patriarcal, as mulheres juditianas são reprimidas e carregam consigo um turbilhão de
sentimentos negativos sobre a vida e a felicidade, muitas delas ao não encontrarem
saída para os sofrimentos da alma entregam-se ao desespero e ao suicídio. Tudo isso
é o que se pode depreender, de forma concisa, dos estudos de Jane Pinheiro de
Freitas em sua tese Visões do (des)encanto: um estudo sobre o feminino transgressor
84

em Clarice Lispector e Maria Judite de Carvalho (2011), no trabalho de mestrado de


Camila Rodrigues, que tem por título Vozes Solitárias e Solidárias: as personagens
femininas em contos de Orlanda Amarílis e Maria Judite de Carvalho (2011) e na
dissertação A incompletude e as personagens juditeanas: representações literárias
em Maria Judite de Carvalho (2016), de Cristiane I. L. da Silva.
Os trabalhos que analisam aspectos mais psicológicos das personagens
também consideram, em sua maioria, o cotidiano feminino e a angústia existencial
que domina a mulher. Assim sendo, a melancolia é resultado de uma vida de
abandonos e isolamentos do sujeito feminino. No geral, a sociedade portuguesa
representada nas obras juditianas retrata a individualidade e a ausência de empatia
por isso a solidão e o vazio são tão frequentes em seus contos. Nessa linha de análise
estão os estudos: A solidão em “Além do Quadro” (2005) e A Melancolia nas Crônicas
de Maria Judite de Carvalho (2011), dissertação e tese escritas por Olivia Rocha
Freitas; também a dissertação Maria Judite de Carvalho: a incomunicabilidade induz
a solidão uma leitura de “Havemos de Rir” (2006), de Zélia Maria Monteiro de
Carvalho; a tese Fios que se desfazem: a solidão em Clarice Lispector e Maria Judite
de Carvalho (2005), de Niube Ruggero; e, por fim, a tese de Maria da Conceição
Ribeiro Barraca, com o título Maria Judite de Carvalho: solidão-palimpsesto e
sobreescrita (1993).
A representação do feminino também se destaca nas pesquisas que tratam
sobre o envelhecimento. Os dois trabalhos que abordam esse tema – As “velhas” na
obra de Maria Judite de Carvalho (2006), de Paula Cristina Barbosa Araújo e Em tom
menor: o envelhecimento na narrativa breve de autoria feminina (2013), de Judite de
J. R. J. da C. Vieira – mostram a decadência física e psicológica das protagonistas
decorrentes do tempo e do desaparecimento da juventude, somando ao abandono
familiar e a consequente solidão. Ilhadas em um mundo agitado e urbano, as velhas
na obra juditiana sofrem experiências de isolamento e declínio, vítimas do desprezo e
da falta de calor humano. Sitiadas pelo pessimismo, elas sofrem como seres
impotentes e sujeitadas ao fracasso.
Os conflitos do sujeito moderno ante a sociedade é outra marca constante na
narrativa de Maria Judite de Carvalho, sua obra ficcional traduz uma visão pessimista
sobre a sociedade de sua época. Suas personagens são imersas em situações de
conflitos sociais, morais e éticos que as induzem para um caminho de degradação e
insulamento. O vazio e as situações de desespero que atormentam as suas
85

personagens são pulsões que advém de uma realidade concreta sem perspectivas de
dias melhores. Todas as pesquisas sobre a escritora observadas anteriormente
contemplam a análise desse retrato da sociedade portuguesa, marca que pode ser
vista com maior destaque nos trabalhos: Entre murmúrios e gritos abafados: a
crueldade e a delicadeza em Seta Despedida de Maria Judite de Carvalho (2012), de
Renata Quintella de Oliveira; Preconceitos e Atmosferas do Estado Novo na Obra de
Maria Judite de Carvalho (2005), de Teresa M. F. da S. Henrique; e Os desencontros
humanos no romance Os Armários Vazios de Maria Judite de Carvalho (2002), de
Maria R. A. da Silva.
Embora tenha sido encoberta pelo esquecimento, a obra juditiana possui
singularidade e uma coerência temática que torna a sua escrita sempre atual. A lacuna
deixada por sua discrição e pelo longo silêncio em volta do seu nome não diminuiu a
riqueza da sua literatura. Como explica a Maria Graciete Besse (2012, p. 9): “Certains
écrivains marquent profondément l’espace littéraire en y laissant des traces
indélébiles, même si le silence de la critique entoure souvent leur oeuvre, comme c’est
le cas de Maria Judite de Carvalho”11.
Compreender o projeto literário de um escritor, segundo Bourdieu (2003, p.
222), é entender a relação que se dá entre o habitus do autor – “moldado em certas
condições sociais” – e a sua posição dentro do campo literário. Portanto, o projeto
juditiano baseia-se numa concepção realista da sociedade, em que a escritora se
preocupa com a situação de opressão da mulher, mas o habitus imposto à criança, a
jovem Maria Judite, a transformou em um sujeito social avesso às ações de ordem
prática: nunca militou ou se engajou publicamente em nenhum movimento social,
como o feminista ou o de contestação a ditadura salazarista, mesmo sendo
simpatizante das ideias de Beauvoir e do Partido Comunista (PC) e tendo
acompanhado de perto – por meio da participação ativa do seu esposo – as lutas
travadas entre o grupo de escritores e intelectuais contra o governo. Se por um lado,
a posição de Carvalho mediante a sua escrita era de transgressão porque possuía
uma grande inquietude social e um olhar crítico sobre o seu espaço, por outro sua
posição como cidadã era de testemunha, de quem apenas observava sem
envolvimento.

11“Alguns escritores deixam uma marca profunda e indelével no espaço literário, ainda que o silêncio
da crítica muitas vezes rodeie a sua obra, como é o caso de Maria Judite de Carvalho.” (tradução livre).
86

Do outro lado do Atlântico, a trajetória literária de Lygia Fagundes Telles


seguiu alguns rumos opostos ao da irmã portuguesa. Escritora engajada em diversas
lutas que envolviam o campo literário e a sociedade, ela assumiu com afinco o habitus
de autor: assimilou as práticas e os comportamentos inerentes a atividade do escritor
e se dispôs a divulgar sua obra durante toda sua carreira 12. Apesar disso, o ingresso
da autora no campo literário brasileiro não se deu de forma totalmente branda e
amistosa. Lygia teve seus primeiros livros publicados por recursos próprios e recebeu
da crítica, influente e masculina, muitos comentários desfavoráveis ao seu estilo e a
forma como abordava os temas sociais em suas narrativas.

Mexendo em antigas pastas na tentativa de ordená-las, acabei


encontrando o recorte de uma crônica publicada em 1944. É sobre um
pequeno livro de contos que escrevi quando cursava a Faculdade de
Direito. Diz o cronista: “Tem essa jovem páginas que apesar de
escritas com pena adestrada, ficaria melhor se fossem da autoria de
um barbado”. Afetei certo desdém pela crônica mas fiquei felicíssima:
escrever um texto que merecia vir da pena de um homem, era o
máximo para a garota de boina de 1944. Eu trabalhava, estudava, e
escolhera dois ofícios nitidamente masculinos: uma feminista
inconsciente mas feminista (TELLES, 2010a, p. 91).

O desprezo com que o cronista, citado pela autora, atribui ao livro escrito por
uma mulher, deixa em evidência a agressividade com que o campo literário reagia aos
textos de autoria feminina. As críticas masculinas, não interromperam a trajetória de
Lygia Fagundes Telles porque ela sempre se manteve firme no seu propósito com a
literatura, no entanto as reações negativas aos seus primeiros livros de contos
fizeram-na abandoná-los e eliminá-los da sua bibliografia considerando-os como
imaturos: obras da juventude, publicados com precipitação e, por isso, não valem a
pena serem reeditados (TELLES, 1998). A escritora considera que o seu corpus
ficcional teve início a partir de 1954, com a publicação de Ciranda de Pedra, um
romance muito elogiado pelas instâncias de consagração e sobre o qual afirma:

é um romance que não poderia ter sido escrito por um homem. Se


fosse, seria diferente, compreende? O que entrou ali foi o meu
conhecimento da condição da mulher pertencente a uma sociedade
como a nossa, que até bem pouco tempo não tinha qualquer
consideração por ela” (TELLES, 1998, p. 38).

12Devido a idade avançada (98 anos em 2021), a família não permite mais que a escritora participe
de eventos literários.
87

Se, conforme diz Bourdieu (1996, p. 259), é o campo de produção que atribui
valor a uma obra, pode-se depreender, por meio da leitura da historiografia literária
brasileira, que Lygia Fagundes Telles é um dos raros nomes femininos que constam
no cânone nacional. Foi relevante para essa inserção entre os consagrados, a
aprovação dos seus pares. A escritora, que pertence ao centro literário brasileiro, isto
é, ao eixo Rio de Janeiro-São Paulo, foi contemporânea e construiu um largo círculo
de amizade com os escritores mais prestigiados do Modernismo, como Mário de
Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Erico Verissimo, por
exemplo. Sobre o significado das amizades com grandes personalidades do campo
literário e intelectual, Lygia escreveu em Durante aquele estranho Chá (2010c) – um
dos seus livros de memórias – como essas relações foram substanciais para
impulsionar a divulgação do seu nome no mercado de bens simbólicos e nas
instâncias de consagração.
Em uma conversa na qual a condição feminina foi o tema predominante, ouviu
de Mário de Andrade o questionamento: “o que é mais importante para você, ser
considerada mais bonita ou mais inteligente?” (TELLES, 2010c, p. 22). E ainda a
crítica cortês sobre os contos que viriam a ser rejeitados pela autora depois de ouvir
tantas vezes que eram textos ingênuos: “li seus contos e escrevi isto, gostei, sim, mas
não se assuste que sou o animador mais desanimador do mundo” (TELLES, 2010c,
p. 21). E durante o estranho chá na Confeitaria Vienense, Lygia enfrenta com
sagacidade aquele que ela considerava um “escritor importante” a quem respondeu
“sem pestanejar” que preferia ser considerada mais inteligente do que bonita e que
sua ousadia “se resumia nisso, assumir a minha vocação” (TELLES, 2010c, p. 17-23).
No mesmo livro de memórias, Telles narra seu primeiro encontro com os
filósofos Sartre e Beauvoir, “ano de 1960?”. Do qual, ficou ressoando em suas
lembranças a curiosidade da filósofa sobre “como a mentalidade brasileira interferiu
no processo da minha profissão de escritora?” (TELLES, 2010c. p. 26). Para Lygia
Fagundes Telles, essa indagação era algo que ela já vinha refletindo desde que
decidiu escrever sobre as histórias que inventava e contava para os seus amigos e
familiares, quando ainda era menina. Ciente do valor de consagração que o prestígio
dos intelectuais franceses possuía para o mercado simbólico universal, Lygia sentiu
insegurança quando Beauvoir manifestou interesse por conhecer seu trabalho literário
e não acreditou que pudesse obter uma resposta positiva da francesa sobre seu
romance Ciranda de Pedra: “Alguns dias depois, a carta de Simone de Beauvoir. [...]
88

Quer dizer que me enganei? Não só tinha levado o livro mas confessava, gostou do
livro, ah, gostou sim, lamentava apenas que essa não fosse uma tradução no francês
parisiense” (TELLES, 2010c, p. 28).
Sobre o romance inaugural da “maturidade” lygiana, que teve Carlos
Drummond de Andrade (1952) como um dos primeiros leitores, sendo o encarregado
de enviá-lo à editora, têm-se a seguinte avaliação do poeta mineiro:

Lygia:
Ciranda de Pedra é um grande livro, e V. é uma romancista de verdade
— eis, em resumo, o que tenho a dizer-lhe depois de ler seus originais
com um interesse que não excluía o espírito crítico e se foi
convertendo em emoção de leitor fascinado pelo texto.
[....] Admirei particularmente o instinto sutil de ficcionista, que evitou
as cenas fáceis ou de mau gosto, abrindo caminho sempre através do
difícil mas não deixando transparecer o esforço da construção. É um
livro duro, mas sem nenhuma passagem escabrosa. As notações
psicológicas são as mais finas, e a evolução da trama vai oferecendo
quadros de costumes que dão à obra importância como documento
social, sem entretanto lhe tirar qualquer de suas qualidades como obra
puramente literária, isto é, obra de arte, válida por si mesma.
A cena da noite de Natal é um dos episódios de romance mais
completos que já li, e bastaria, sozinha, para consagrar um autor.
Lygia, V. correspondeu cem por cento à confiança que os amigos
depositavam na sua capacidade criadora. Seu livro ganha longe da
nossa ficção raquítica de hoje, e se coloca num plano de dignidade
literária que lhe assegura permanência. V. [...]
Demorei a escrever porque, logo depois de ter recebido os originais,
tive de ir a Minas, lá me demorando algum tempo. E aqui a vida me
pegou na sua engrenagem de coisinhas chatas. Agora vou tratar de
levar seu livro ao editor, e o que desejo é que os avaliadores da obra
estejam em condições de sentir a sua alta qualidade.
[...] Lygia, estou contente e orgulhoso de ser seu amigo (sempre
estive, mas agora mais, depois de Ciranda de Pedra).
Abraços e saudades do velho
Carlos

Nesse excerto da carta de Drummond13, apreende-se como o reconhecimento


da escritora dentro do campo literário brasileiro foi sendo construído por meio de
avaliações sobre sua escritura conduzidas para além dos limites estéticos do texto: a
obra de Lygia possui uma estrutura narrativa bem arquitetada, algumas vezes
inebriada por uma densidade que perturba o leitor comum, outras vezes o tom
coloquial e folclórico dos seus escritos seduz pela simplicidade, sem renunciar ao
belo. Tudo isso contornado por uma inteligente representação da estrutura social que

13 Datada de 18 de fevereiro de 1952.


89

transcende as fronteiras espaciais de sua produção. Com efeito, Lygia Fagundes


Telles possuía uma grande sensibilidade diante da realidade social do país e
acreditava na responsabilidade do escritor como produtor de material simbólico capaz
de disseminar conhecimento e ajudar, de alguma forma, a incitar as mentes dos
indivíduos para uma percepção mais crítica da sociedade.
Tomada por esse intuito de difundir a arte literária para evitar a propagação
de uma violência simbólica, Lygia liderava um grupo de escritores que participavam
de caravanas literárias que viajavam até cidades do interior para falar de literatura nas
escolas e em centros de cultura: “Nós aceitávamos convites sem ganhar nada –
apenas um ramo de flores, que eu oferecia a alguém antes de entrar no ônibus, porque
a gente ia longe e as flores murchavam no caminho de volta a São Paulo...” (TELLES,
1999, p. 6). Sua preocupação ética com o outro, especialmente com os jovens
estudantes pobres era o que a motivava a falar sobre a literatura como uma ponte
entre o possível e o impossível, entre a realidade e o desejo de mudança, a aspiração
de que o país prezasse mais pela educação: “Algumas vezes eu ia sozinha, pois era
jovem e tinha disponibilidade; eu ia lá para o ‘cu do Judas’ para falar – não sobre
minha obra, mas sobre literatura, eu fazia conferências sobre Gonçalves Dias, sobre
o romantismo, sobre Drummond” (TELLES, 1999, p. 6).
A escritora também foi uma voz relevante na luta pela divulgação da literatura
nacional no exterior. Percebendo o quanto essa literatura era ignorada pelos países
de língua estrangeira, especialmente os latinos, Lygia muitas vezes usou seu espaço
de fala em eventos internacionais, para explanar sobre a cultura e a literatura
brasileiras: “Eu estive na Colômbia, em Cali num Congresso sobre Narrativa Sul-
Americana e fiquei impressionada com o desconhecimento total da nossa literatura”
(TELLES, 1980). Atenta às estratégias de produção e consumo do mercado simbólico,
irritava sobremaneira a autora a falta de disseminação dos livros de escritores
brasileiros em países tão próximos e que, em contrapartida, possuíam uma boa
recepção em solo nacional: “Nós temos muito mais curiosidades. Nós consumimos
muito mais a literatura deles. E lá somos esquecidos, ignorados e marginalizados”
(TELLES, 1980).
Analisando o processo de difusão da literatura lygiana, percebe-se que toda
a sua luta obteve resultados, sua obra foi traduzida para oito idiomas (alemão,
espanhol, francês, inglês, italiano, polonês, sueco e tcheco), sendo o romance As
90

horas nuas (1989) o que mais teve traduções, publicado em cinco línguas diferentes
– espanhol (1991), sueco (1991), italiano (1993), alemão (1994) e francês (1996).
Em Portugal a autora também obteve grande sucesso editorial, com vários
títulos publicados, por diferentes editoras, sempre com excelentes números de vendas
e com alguns livros já esgotados. Foram editadas as obras Histórias do desencontro,
de 1958, livro de contos publicado pela editora Livros do Brasil, no ano de 1960; Antes
do baile verde, contos de 1970, publicado pela editora Livros do Brasil no mesmo ano
que foi lançado no Brasil, e pela editora Círculo de Leitores, em 1974; o livro de
memórias A disciplina do amor, de 1980, publicado pela editora O Jornal, em 1982;
os contos de A noite escura e mais eu, de 1995, publicados pela editora Livros do
Brasil, em 1996; Ciranda de pedra publicado pelas editoras Minerva, em 1956; Livros
do Brasil, em 1982, e Presença, em 2008; Verão no aquário, seu segundo romance,
de 1963, pela editora Presença, no ano de 2006; o romance As meninas, de 1973,
que foi publicado pelas editoras Livros do Brasil, em 1981; Presença, 2005; e ainda
uma segunda edição pela editora Presença, em 2006 e o romance As horas nuas, de
1989, publicado pelas editoras Livros do Brasil, em 1990, e Presença, em 2005.
Outros rastros da constante presença de Lygia Fagundes Telles no setor
editorial português, segundo o pesquisador Francisco Topa (2016), “é o caso da sua
colaboração na revista Eva (que tinha por subtítulo Jornal da mulher e do lar),
publicada em Lisboa entre 1925 e 1989”. Um fato interessante sobre a publicação dos
textos da autora nessa revista foi que mesmo escrevendo em língua portuguesa, os
contos de Lygia Fagundes Telles foram adaptados para a variação do português
europeu, passando por um processo de adequação linguística a fim de facilitar a
compreensão dos leitores portugueses.

Ao contrário do que seria de esperar, não se trata apenas de


modificações ortográficas, como em rastro ] rasto ou ônibus ] omnibus.
Houve alterações também ao nível das preposições, como é o caso
de até o ] até ao ou chegamos numa praça ] chegámos a uma praça.
Ocorreram ainda mudanças relativamente à colocação dos pronomes:
não quis se sentar ] não se quis sentar ou E me deu ] E deu-me (TOPA,
2016, p. 6).

As transformações não se deram apenas no aspecto estrutural da língua, a


“tradução” do português brasileiro para o europeu transformaram os textos lygianos,
como o conto “O olho de vidro”, em um novo texto, visto que também ocorreram
alterações no ponto de vista semântico e estilístico (TOPA, 2016).
91

Além das edições de seus títulos no campo internacional, e de sua presença


ativa nos congressos, feiras e encontros de escritores no exterior, Lygia Fagundes
Telles foi galardoada com alguns prêmios internacionais de prestígio como o Grande
Prêmio Internacional Feminino para Contos estrangeiros, concedido no ano de 1970,
na França, pelo livro Antes do Baile Verde; Também em França, em 1998 foi
Condecorada com a Ordem das Artes e das Letras pelo governo francês; assim como
o já mencionado Prêmio Camões, em Portugal no ano de 2005, pelo conjunto de sua
obra. O reconhecimento e valor atribuído à literatura lygiana é fato recorrente também
em seu país de nascimento, foram muitas as premiações14 e homenagens recebidas
desde que o campo literário abriu as fronteiras para o seu ingresso, em 1954, com a
publicação do seu primeiro romance.
Imortalizada pela Academia Brasileira de Letras, onde foi eleita em 24 de
outubro de 1985, Lygia Fagundes Telles é considerada uma das principais escritoras
brasileiras da literatura contemporânea, com boa recepção entre os mais
diversificados públicos, seus livros estão sempre em evidência. Em 1997, a
conceituada editora Rocco assumiu os direitos por toda a obra de Lygia e, por meio
de suas estratégias editoriais, ampliou o número de leitores da autora no país tornando
seus livros presenças constantes nas grandes livrarias, nas bibliotecas públicas,
escolares e particulares. Em 2009, sentindo uma necessidade de renovação e para
revigorar a sua obra, a escritora mudou de casa editorial, tendo sua obra completa
reeditada pela também prestigiada editora Companhia das Letras e revisada com
diversas alterações pela autora: “percebi que um antigo revisor, não sei se ainda da
Rocco ou anterior a Rocco, andou metendo vírgulas. Eu, eu não gosto de vírgulas. [...]
Dostoiévski também não gostava de vírgulas, viu? Então estou bem acompanhada.
Então andei cortando vírgulas, fiz algumas mudanças” (TELLES, 2009e).

14Prêmio do Instituto Nacional do Livro, por Histórias do Desencontro (1958); Prêmio Jabuti, por Verão
no Aquário (1965); Prêmio Candango, concedido ao melhor roteiro cinematográfico, por Capitu parceria
com Paulo Emílio Sales Gomes (1969); Prêmio Guimarães Rosa (1972); Prêmio Coelho Neto, da
Academia Brasileira de Letras; Jabuti e APCA – Associação Paulista dos Críticos de Arte, pelo romance
As Meninas (1974); PEN Clube do Brasil, pelo livro de contos Seminário dos Ratos (1977); Prêmio
Jabuti e APCA, por A Disciplina do Amor (1980); II Bienal Nestlé de Literatura Brasileira (1984); Prêmio
Pedro Nava, (Melhor Livro do Ano), por As Horas Nuas (1989); Prêmio Jabuti; Prêmio Arthur Azevedo,
da Biblioteca Nacional e APLUB de Literatura, por A Noite Escura e Mais Eu (1995); Prêmio Jabuti;
APCA; Concurso paralelo “Livro do Ano” e o "Golfinho de Ouro”, por Invenção e Memória (2001); Prêmio
Camões, pelo conjunto da obra, Portugal – Brasil (2005); Prêmio APCA, por Conspiração de Nuvens
(2007); Prêmio Mulheres mais Influentes - Gazeta Mercantil (2007); Prêmio Dra. Maria Imaculada
Xavier da Silveira, 2008 – OAB; Prêmio Juca Pato 2009 (Intelectual do Ano) - União Brasileira de
Escritores; Prêmio Conrado Wessel de Literatura 2015.
92

Não foi somente nas instâncias de consagração do campo literário que Lygia
Fagundes Telles conquistou o espaço de aclamação por sua autoria, ela também
exerce grande fascínio no campo universitário. Para a autora, em entrevista aos
editores dos Cadernos de Literatura Brasileira (1998, p. 33), essa recepção crítica é
vista com “enorme alegria: é como se aquele convite do ‘venha’ estivesse sendo
aceito”.
A voz da instância acadêmica sobre a obra da escritora teve início nos anos
70 a partir do trabalho Técnica narrativa em Lygia Fagundes Telles (1972), de Kátia
Oliveira, apresentado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A pesquisadora
traz um estudo sobre os recursos estruturais das obras Ciranda de Pedra (1954) e
Verão no Aquário (1963) dando ênfase a maneira como a romancista trabalha o tempo
psicológico nessas narrativas. Ainda da década de 70, tem destaque a dissertação de
mestrado de Lya Luft, Três espelhos do absurdo: a condição humana em As meninas
de Lygia Fagundes Telles (1979), na qual a autora faz uma análise à luz da filosofia
sobre a ideia do absurdo existencial a fim de desvendar como as protagonistas são
representadas ou retratadas no universo ficcional do romance.
A fortuna crítica sobre os romances e contos de Lygia Fagundes Telles desde
a década de 70 é bastante extensa e sua obra continua despertado o interesse dos
estudos universitários tanto no Brasil como no exterior. A mesma pesquisa realizada
anteriormente no banco de dados da CAPES sobre a obra de Maria Judite de Carvalho
foi feita utilizando o nome da escritora brasileira, os dados mostraram que entre os
anos de 1990 a 2020 tem-se o registro de 181 trabalhos de pós-graduação sobre os
textos da escritora. Esses estudos foram construídos sob os mais diversos
pressupostos teóricos, visto que a obra lygiana é rica em tratar dos temas que
compreende a condição humana, a vida em sociedade e os mistérios que mexem com
o imaginário das pessoas.
Com trajetórias aparentemente tão assimétricas, como afirmar que existe uma
relação de afinidade entre as literaturas de Maria Judite de Carvalho e de Lygia
Fagundes Telles? Em quais proporções as suas escrituras dialogam e as suas
trajetórias se entrelaçam?
Existem poucos e tímidos rastros de que houve uma relação de amizade entre
as duas escritoras. No acervo de Telles disponível no Instituto Moreira Sales – IMS,
93

em São Paulo, constam duas cartas15 enviadas pelo esposo de Carvalho, o escritor
Urbano Tavares Rodrigues, porém não há correspondências da escritora portuguesa
para a brasileira registradas no banco de dados do IMS. Mesmo assim, acredita-se
que Maria Judite de Carvalho leu os textos de Lygia Fagundes Telles, uma vez que,
segundo Urbano Tavares: “Durante anos, visitando frequentemente S. Paulo, terra de
exílio do meu irmão Miguel, convivi muito com a Lygia e fui lendo todos os seus livros,
de Ciranda de Pedra a Horas Nuas [...]” (RODRIGUES, 1998, p. 26). O escritor
português escreveu vários artigos nos quais elogiava a obra da autora e expressava
o seu incentivo para a continuação da carreira da brasileira, semelhante aos
conselhos que dava à Maria Judite. A admiração entre os escritores era recíproca,
Lygia também escreveu artigos sobre os textos literários de Rodrigues e não cansava
de expressar sua consideração pelo português: “Urbano, te admiro e te estimo as
20.000 léguas submarinas – lembra?” (TELLES, 1980).
Embora não tenham sido encontrados documentos concretos que comprovem
a recepção da obra lygiana por parte de Maria Judite de Carvalho, existe, entre as
correspondências da escritora portuguesa, o registro de que Telles foi leitora de sua
obra. Em carta datada de 04 de março de 1960, Lygia escreve para Maria Judite
contando sobre toda a emoção e fascínio que sentiu quando leu Tanta Gente,
Mariana:

Vou reto ao assunto: gostei demais, demais do seu livro, sabe? Foi
para mim uma surpresa agradabilíssima constatar que estava diante
de uma autêntica escritora, sim senhora, sim senhora... Suas histórias
são tão densas, tão marcantes, tão pungentes e tão desamparadas!
Difícil encontrar maior desespero e maior desamparo dentro de uma
forma sem pieguices, enxuta, digna (TELLES apud CALHEIROS,
1998, p. 113).

Pelo tom afetuoso e informal com o qual a escritora brasileira se dirige ao


casal português em suas cartas, nota-se que existia uma admiração mútua entre eles
e que o acesso aos textos juditianos era, no Brasil, bastante restrito aos conhecidos
da autora e do seu marido, como também aos leitores mais interessados na literatura
feminina portuguesa. Nos manuais de história literária sobre a literatura portuguesa
escritos por estudiosos brasileiros, o nome de Maria Judite de Carvalho aparece
apenas na antologia O conto português, de Massaud Moisés, de 1999, e no livro A

15Não foi possível obter acesso ao conteúdo dessas correspondências em razão da Pandemia de
COVID-19 que inviabilizou a pesquisa presencial no IMS-SP até o momento da defesa deste trabalho.
94

literatura portuguesa no século XX, de Fernando Mendonça, publicado em 1973, no


qual encontra-se um pequeno capítulo – o livro é composto por treze capítulos –
dedicado à literatura de autoria feminina, mesmo que o autor estivesse consciente de
que a literatura portuguesa contemporânea “exibe uma constelação muito luminosa
de escritoras, ombreando talvez em número com aqueles escritores que vêm sendo
apontados como os mais representativos dos últimos dez anos de atividade literária”
(MENDONÇA, 1973, p.172, grifo nosso). Percebe-se que mesmo reconhecendo a
grande quantidade de escritoras presente na sociedade portuguesa do século XX,
Mendonça perpetua o discurso da crítica misógina evidenciando que as mulheres
autoras só se igualam aos homens escritores em número.
É, portanto, por meio da voz de Lygia Fagundes Telles que é possível
conhecer um pouco da impressão que as narrativas juditianas deixaram nos leitores
brasileiros, quando lhes era possível ter acesso a alguma das suas obras. A propósito
da publicação do livro As Palavras Poupadas (1961), a escritora brasileira escreve em
missiva:

Devorei-o numa noite.


E quando fechei-o tinha os olhos úmidos de lágrimas. Maria Judite, é
que a beleza me emociona tanto e seus contos – principalmente o
primeiro, aliás, uma novela – são de uma beleza total. Você escreve
com tamanha paixão, com tamanho fervor. É um livro esbraseado,
sabe? (TELLES apud CALHEIROS, 1998, p. 113)

O trecho dessa carta possui muita significação para quem busca analisar as
intertextualidades presentes nas narrativas de ambas as escritoras. Isso acontece
porque o primeiro texto do livro juditiano trata-se da novela que dá título à obra, isto
é, “As Palavras Poupadas”. Nessa novela existe muita simbologia em torno do objeto
aquário, apresentado sempre em contraste com os relacionamentos afetivos entre as
personagens femininas da história. Deste modo, para os leitores das duas autoras são
muito nítidas as relações dialógicas entre esse texto de Maria Judite e o romance
Verão no Aquário, publicado em 1963, por Lygia Fagundes Telles.
Na novela juditiana, há uma heroína que busca respostas para solucionar o
malogro do passado e poder encontrar um caminho seguro para avançar na vida
presente e, por fim, conquistar a paz interior. O aquário serve de simbologia para
evidenciar o desejo da personagem de libertar-se das lembranças que a impedem de
perdoar e encontrar o seu verdadeiro eu. No romance lygiano a trajetória da jovem
95

Raíza apresenta frustrações semelhantes a protagonista da narrativa de Maria Judite.


Cercada por traumas familiares e pelo desentendimento com a mãe, a protagonista
de Verão no Aquário é um ser errante, que vive presa em seu mundo de recordações
e rancor. O gesto de sempre mudar o aquário do lugar é uma constante em ambas as
narrativas: as protagonistas se sentem presas, como os peixes daquele espaço, sem
perspectivas. Mesmo que as paredes sejam translúcidas elas possuem almas turvas,
o que as deixam presas num simulacro de vida reduzida ao espaço da casa/aquário
e ao desenfreado desejo de fuga para o mar/mundo exterior.
Assim sendo, entre as literaturas de Maria Judite e de Lygia existe uma
afinidade temática que expõem em um tom poético e ao mesmo tempo realista as
faces de uma sociedade corrompida e decadente. Donas de um olhar crítico e sensível
escrevem sobre os sonhos interrompidos, sobre os desejos e frustrações dos jovens,
também sobre os medos que atormentam os mais velhos, narram sobre a condição
humana observando o indivíduo a partir do íntimo. Do mundo em crise, da hipocrisia
burguesa, das dores, injúrias e opressões femininas surgem suas personagens,
desenvolvem-se os espaços, se desdobram os enredos, destacando-se sempre o
questionamento sobre as convicções e valores empregados pelo poder dominante.

3.2 Para além da solidão e da angústia: notas sobre a escritura juditiana

Sinto-me hoje serena e por isso estou de novo a


escrever a mim própria. Quem, a não ser eu, perderia
tempo a ouvir-me? Quem, se a minha vida ficou vazia
de todos?

(Trecho do conto “Tanta Gente, Mariana”)

A solidão, segundo o filósofo francês Comte-Sponville (2001, p. 20-30), é o


destino de todo ser humano, é um mal do qual ninguém pode escapar, ela é “o esforço
de existir”, já que só o indivíduo pode carregar o seu próprio fardo: “Todos estamos
sozinhos, Mariana. Sozinhos e muita gente à nossa volta. Tanta gente, Mariana! E
ninguém vai fazer nada por nós” (CARVALHO, 2011, p. 13).
Mariana, que aos quinze anos descobre o gosto amargo da solidão, é a voz
que inaugura a literatura de Maria Judite de Carvalho (1921-1998). “Tanta Gente,
96

Mariana” trata-se da novela que abre uma coletânea de narrativas curtas em que o
insulamento das personagens e a atmosfera de angústia existencial aparecem como
categorias que vão perpassar por toda a escritura juditiana.
Escritora do pormenor, da interioridade e, em especial, da condição feminina,
Maria Judite era também uma exímia observadora das relações sociais. Segundo o
esposo da autora, o escritor Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013), ela possuía um
“discurso económico, por vezes mansamente cruel” o qual deixava transparecer,
sutilmente, a sua “ácida ironia”.
De temperamento reservado, sempre com gestos comedidos e tímidos, a
autora levou para os seus textos toda a palavra sufocada por seu gênio extremamente
discreto e silencioso. Sua obra é carregada de não ditos, das “palavras poupadas” que
deixam o leitor seduzido e instigado à busca de respostas para o que não é totalmente
revelado, para o que fica apenas sugerido. Suas personagens são arredias, não
habituadas a comunicar-se com o outro, reclusas em si mesmas, por isso, há em suas
narrativas certa predominância do discurso interior, do fluxo de consciência.
Por baixo da superfície das personagens juditianas estão as agruras e a
frustração de seres sempre incompreendidos pelo outro, este representado sobretudo
pelos parentes mais próximos, pelos amigos, pelos amantes. São personagens
dominadas pelo medo, pelo descaso e por “situações de revés e falência: a falência
do amor, a falência da esperança, a falência dos projectos” (ESTEVES, 1999, p. 23).
Para além da solidão e da angústia das suas personagens, a literatura de
Maria Judite é original pela maneira como a escritora encara o mundo: ela consegue
dar intensidade e relevância a assuntos aparentemente banais; dispõe de cenas
pequenas e insignificantes do dia a dia e transforma em arte, mostra a face e dá voz
ao esquecido, ao desprezado, ao parvo. Massaud Moisés (1999, p. 358) a delineou
como “uma escritora de antenas ultrapoderosas” e escreveu que “a mestria invulgar
da escritora se manifesta exatamente em surpreender no cotidiano rotineiro os
grandes dramas anônimos e mudos”.
Assim, pensar a escrita de Maria Judite de Carvalho é refletir sobre a
construção de um discurso que, feminino em seu cerne, traz em si a voz da alteridade
e da diferença. Lucia Castello Branco (1995, p. 74-75) chama-o de “discurso da
margem” porque é concebido as bordas de um discurso oficial falocêntrico e, por essa
razão, construído de maneira “dissonante, sempre desterritorializado” e
“questionador”.
97

Por esse prisma, é possível observar na literatura juditiana as marcas desse


discurso “da margem”, uma vez que sua obra é constituída por uma escrita de
transgressão: com uma linguagem fragmentada e abundante de implícitos, uma
dimensão temporal sempre irregular, cheia de lapsos e personagens nunca
completas, sempre em falta consigo e com o outro, ocas de esperanças, reforçando a
“noção de sujeito não pleno, não acabado”. Portanto, “uma escrita que não nega o
vazio que a constitui, mas que antes o exibe, o apresenta, e faz dele matéria de
linguagem” (CASTELLO BRANCO, 1995, p. 74).
No conto “Câmara ardente” (CARVALHO, 1961, p. 179), por exemplo, pode-
se ver essas marcas do discurso de ruptura quando a autora relaciona os destinos de
várias personagens a um único acontecimento: a morte do pai, pondo em destaque a
desconstrução do discurso falocêntrico, centrado na figura masculina castradora do
chefe de família. Aqui, a temática social é apresentada por meio de uma linguagem
que resulta em uma crítica sutil, mas expressiva; sem alardes, contudo provocadora.
A cena familiar é simples: desenha-se ante o leitor a descrição de um velório, do luto
e da penumbra, no entanto, entre os silêncios ouve-se os pensamentos dos vivos que
ali avaliam as suas vidas a partir daquele momento, e, aos poucos, vão revelando
como era em vida aquele homem implacável, tirânico, que possuía “aquela voz forte
que dominava todas as vozes, as envolvia, as matava definitivamente, as abandonava
depois de caídas.” (CARVALHO, 1961, p. 187).
Em “Câmara ardente”, de forma irônica, o sentimento de liberdade
experimentado pelo o filho, a irmã e a esposa do defunto é posto à prova ante uma
indagação: será que o homem realmente estava morto? Essa quebra de expectativa
na narrativa impulsiona as primeiras ações dessas personagens para a concretização
de suas emancipações, e, somente após a confirmação do óbito:

A viúva soltou um leve suspiro e encolheu-se mais no banco, entre a


irmã e a cunhada. Jaime ofereceu-se então para ir a uma farmácia de
serviço, sem se dar conta de que esse seu gesto tão prestável era
afinal de contas a contribuição que dava para a morte definitiva do pai
(CARVALHO, 1961, p. 190).

O tom irônico nas narrativas juditianas é arquitetado por meio do discurso de


transgressão aos costumes e do questionamento aos valores da sua época, a
escritora consegue a partir de assuntos difíceis e dolorosos, como a morte, trazer à
reflexão temas que envolve a condição feminina frente as adversidades da vida
98

moderna e aos desatinos políticos do seu tempo. A “ácida ironia” de Maria Judite está
na ambiguidade do comportamento das suas personagens, nos seus argumentos que
aparecem como contrários as suas ações em relação as situações que as envolve.
É o que se pode observar no conto “A Noiva Inconsolável” (CARVALHO, 1961,
p. 153) em que há a representação de uma sociedade dominada pela dissimulação e
aparência, por uma falsa preservação de costumes os quais são usados
especialmente para oprimir o mais fraco. No enredo do conto, a protagonista Joana é
uma moça que passou da idade de se casar, uma jovem que não é bela nem possui
talentos especiais. Criada em uma família de base nuclear, tem na mãe um exemplo
de subordinação e renúncia de si, já as figuras do pai e do irmão representam a
soberania no lar e o sucesso pessoal. Desprezada por seu jeito reservado e pela sua
falta de atributos físicos, Joana e todos a sua volta são surpreendidos quando um
jovem se interessa por ela, no entanto o relacionamento não vinga e na manhã após
ser alertada do possível término do noivado, a moça recebe a notícia de que o seu
noivo morrera vítima de afogamento.
O teor irônico em “A Noiva Inconsolável” está exatamente entre o ser e o
parecer, a protagonista que perdera o noivo, na verdade não fica desolada, não sente
angústia por sua morte, ao contrário, ela sente plenitude e uma profunda sensação de
liberdade: “O seu atual pensamento flutuava levemente numa atmosfera mansa, batia
ao de leve as asas, aflorava as coisas. Toda a angústia desaparecera. Sentia essa
calma no rosto que não via, nas mãos quietas, na voz que lhe saía direta, quase rígida.
A serenidade que ele lhe negara!” (CARVALHO, 1961, p. 163). Graças ao
acontecimento trágico com o noivo, ela não seria mais vista como escória, como a
mulher desprezada; a sociedade e a sua própria família começariam a tratá-la com
outros modos, a vê-la como uma noiva em luto, não mais como uma solteirona:

Apetecia-lhe sorrir mesmo sem estar alegre, sorrir precisamente


porque estava triste. Sorrir à mãe quando ela entrasse com os trapos
pretos que nunca mais havia de despir. Sorrir ao pai, ao irmão, às
amigas que tinham acabado de descer a escada, sorrir a toda gente.
Era de súbito outra pessoa. A noiva inconsolável do homem que
morrera (CARVALHO, 1961, p. 163).

Essa preocupação com a situação social da mulher é uma constante em Maria


Judite de Carvalho. Suas personagens predominantemente femininas são, conforme
define Inês Fraga, neta da escritora (em entrevista à Isabel Lucas), “pessoas muito
99

presas nos rectângulos das suas casas, confinadas aos rectângulos das janelas, que
se pontuam pela imobilidade” (LUCAS, 2019, p. 17).
A casa, como espaço que se sobressai nas narrativas juditianas, é o lugar em
que o tempo se manifesta em um fluxo contínuo de memórias. Espaço sempre
presente nas obras das escritoras portuguesas de sua época, segundo Isabel Allegro
de Magalhães, a casa é “pivot do universo, sítio fixo de onde as mulheres
constantemente partem para viagens no tempo” (MAGALHÃES, 1995, p. 36). Lugar
de segredos, ermo e frequentemente melancólico, onde as mulheres, em especial as
idosas, passam o tempo presente em reiterada ligação com o passado.
De acordo com Magalhães (1995, p. 37), “este lugar central que é a casa
funciona metonímica e metaforicamente como lugar da escrita e do corpo das
mulheres”. Como metáfora do corpo, na narrativa juditiana prevalece o corpo/casa em
abandono, onde as “sombras” ou as “vozes” de um universo fantástico ou de um
instante longínquo se tornam as únicas companheiras de mulheres esquecidas,
sozinhas. Contudo, muito mais que desamparo e solidão, a casa na obra de Maria
Judite além de símbolo de denúncia da condição feminina é também símbolo de
resistência, lugar de desconstrução da imagem de subalternidade e fragilidade da
mulher.
Veja-se, por exemplo, o conto “A cidade do êxito” (CARVALHO, 2018, p. 219)
onde as personagens habitam um mundo futurista em que os progressos científicos
da humanidade avançam ao ponto de serem comuns e lucrativos os negócios com
outros planetas, como Marte. Nesse ambiente distópico, uma mulher idosa e sua casa
antiquada destoa de tudo que há de moderno e avançado na cidade: “Era a última
casa velha da cidade e desfeava-a na verdade muito. Uma espécie de dente podre
numa bonita boca jovem”. Em meio aos “altos prédios quadriculados de metal e vidro”,
era inconcebível que aquela casinha ainda existisse, então uma luta acirrada entre
dois grandes empresários e a protagonista é iniciada.
Os dois homens jovens, representando o capitalismo selvagem, entram em
conflito com aquela “velha senhora”, representante das raízes culturais de um povo,
única voz da tradição, do passado o qual, de tão quieto, todos pensavam que já havia
morrido: “A senhora Bruce era, de certo modo, a casa” (CARVALHO, 2018, p. 220). E
ela resiste, na sua calma e complacência, mesmo na miséria rejeita as grandes
propostas de dinheiro que a oferecem pela demolição da casa, resiste aos argumentos
de que já estava quase a morrer e precisava desfrutar de um ambiente mais luxuoso,
100

resiste ao tempo: “Mas quando é que morre, Mrs. Bruce? Dizem por aí que a senhora
é eterna!” (CARVALHO, 2018, p. 224).
Mesmo com noventa anos, a protagonista de “A cidade do êxito” consegue
sobreviver aos seus adversários, os dois homens que aguardam ansiosos pela morte
da senhora Bruce falecem, ironicamente, antes desta, que resiste até os cento e
quinze anos, quando suas forças já não eram mais suficientes para enfrentar, sozinha,
toda uma geração de alienados: “tinha deixado de lutar e entregara-se nas mãos frias
da morte porque viver já não lhe era necessário.” (CARVALHO, 2018, p. 225).
A morte de Mrs. Bruce, representa a morte simbólica da razão, do patrimônio
imaterial de uma nação. Essa narrativa como distopia denuncia os regimes opressores
controlados pelo desenfreado consumismo, pela ganância e corrompimento do ser
humano pelo poder:

Quando o negro automóvel a veio tirar de casa, a cidade inteira


respirou tão fundo que quase se ouviu. Agora podia ser uma cidade
sem mácula, rica, próspera, livre de recordações desagradáveis ou
mesmo inferiorizantes. Uma cidade que podia esquecer os avós sem
conta nos bancos ou elevador ou até avião. A cidade do êxito. Uma
das muitas cidades do êxito (CARVALHO, 2018, p. 225).

Nesse conto, a cidade futurista e distópica, tão assustadoramente real e atual,


evidencia o posicionamento político da escritora, o qual aparece bastante nítido e forte
em sua obra, mesmo que na sua vida social e pública ela tenha mantido certa discrição
e não tenha se envolvido ativamente nos movimentos políticos do seu país, a exemplo
do seu marido Urbano Tavares. Sobre isso, Baptista-Bastos (1989) escreve que em
Maria Judite de Carvalho “todos os livros são políticos ou refletem mal-entendidos
políticos”, uma vez que o sentido de político em sua obra “reside na soma de
informações triviais que reúne sobre a sociedade portuguesa”.
Além do forte teor político e social presente na escrita juditiana e da
construção de espaços tão significativos para a abordagem dos temas, merece
destaque também a maneira como a autora relaciona o espaço com a estrutura
temporal de seus textos. As personagens sentem-se presas a um tempo que nunca
as agrada, parecem sempre deslocadas em um presente que para elas não tem muito
sentido. Insatisfeitas com o tempo em que vivem recorrem ao passado, em sucessivo
flash-back, almejando encontrar algo capaz de dar sentido à vida atual ou ao porvir.
101

Sobre essa característica do tempo em Maria Judite de Carvalho, presente


em grande parte das narrativas de autoria feminina, Magalhães (1995, p. 40) explica
que “estamos perante narrativas que, na sua fragmentação, na sua errância e
aparente desordem, manifestam a associação constante de várias redes semânticas
não hierarquizadas na memória”. Isso significa que a construção do sentido dessa
(des)ordem narrativa está relacionada ao estabelecimento de uma ligação entre o vai
e vem temporal e a luta existencial das personagens.
Nas narrativas juditianas o passado é de grande relevância porque os
problemas das personagens são explicados a partir do desvelamento dos dilemas
gerados outrora. A respeito disso, é pertinente o que afirma Elódia Xavier (1991, p.
13) ao dizer que “o resgate da memória é um dos caminhos para o autoconhecimento;
a volta às origens, através do tempo passado, faz parte da busca de identidade,
pulverizada em diferentes papéis sociais”.
No conto “George” (CARVALHO, 2007, p. 31), a viagem interior entre o que
foi, o que é, e, o que virá a ser é o conflito que move o enredo, o qual em uma primeira
leitura parece fragmentado e meio caótico. A protagonista, ao retornar a sua antiga
casa em uma cidadezinha do interior, após sucessivas fugas que a distanciaram das
suas raízes, tem um encontro consigo mesma, isto é, com a moça interiorana que foi
no passado e com a mulher que será no futuro. O tempo funciona nessa narrativa
como um jogo heterotópico de espelhos, instigado pela força emocional que o espaço
representa.
A personagem principal da narrativa é construída por meio de três versões
díspares de seu próprio eu, cada uma representando uma consciência independente
e uma condição social: a adolescente (Gi = passado) que almeja casar e ter uma vida
acomodada com marido, filhos e um lar para cuidar; a mulher independente (George
= presente) com um trabalho promissor, um grande currículo de viagens pelo mundo
e uma vida sem regras; e a mulher velha, solitária e vazia (Georgina = futuro), sem
vínculos, que sofre com o medo e o abandono.
Como herdeira da casa, George é obrigada a voltar depois de mais de duas
décadas à sua cidade natal para vender o patrimônio da família, logo após a morte de
seus pais. O retorno à sua antiga vila faz a personagem principal ingressar em um
embate psíquico e espiritual por meio de uma experiência insólita: “Caminham pois
lentamente, George e a outra cujo nome quase quis esquecer, quase esqueceu”
(CARVALHO, 2007, p. 31).
102

A jovem Gi representa toda a calma e lentidão rejeitadas pelo homem


moderno, seus traços ainda indefinidos e sua face em formação não se mostra clara
para a outra, “por isso a vai vendo pior à medida que ela se aproxima”. Contudo essa
falta de nitidez não impede que George contemple em Gi tudo que ela desejou e
depois desprezou sem perceber: ao renegar a moça que foi, a protagonista também
deixou para trás os laços familiares, a pureza de sua alma e uma vida pautada pela
simplicidade e pelos vínculos afetivos. Ao contrário da mulher que foi, George
transforma-se em alguém que preza mais pelos bens materiais do que pelos
relacionamentos humanos, alguém que para conquistar sua independência vai
deixando pelo caminho partes de sua essência até não mais se reconhecer: “o
esquecimento desceu sobre ambas” (CARVALHO, 2007, p. 39).
Ao tentar se desligar do passado e fugir das lembranças, George tem um novo
encontro, dessa vez com Georgina, senhora de idade que a espreita com um sorriso
que “não tem nada a ver com o de Gi”. A face madura e experiente dessa versão da
protagonista surge para alertá-la sobre a solidão, a efemeridade da vida e sobre a
importância de se cultivar os laços humanos:

Também tenho muitos encontros, eu. Não quero tê-los mas sou
obrigada a isso, vivo tão só. Cheguei a ignomínia de pedir, a pessoas
conhecidas, retratos da minha família. Não tinha nenhum, só um
retrato meu, em rapariguinha. E retratos de amigos, também. De
amigos desaparecidos, levados pelas tempestades, os mais queridos,
naturalmente [...] (CARVALHO, 2007, p. 42).

Tanto para a inocente Gi como para a experiente Georgina a essência da vida


baseia-se nos relacionamentos interpessoais, elas tentam alertar a George que a
razão do seu vazio existencial e da sua busca de unidade está exatamente nessa
rejeição ao outro, nessa aversão em manter-se ligada as suas raízes e à vida simples.
No desfecho da narrativa a protagonista renega seus outros eus (passado e futuro) e
escolhe por viver o seu momento presente, cheio de futilidades e prazeres. Nessa
guerra interior de George, vence o eu que melhor representa a sociedade moderna e
capitalista, na qual o ser humano é posto em desvantagem ante os objetos que
simbolizam o ter e o poder material.

O dinheiro no banco, nos bancos, é uma das suas últimas paixões. Ela
pensa – sabe? – que com dinheiro ninguém está totalmente só,
ninguém é totalmente abandonado. A velha Georgina já o deve ter
103

esquecido. A velhice também traz consigo, deve trazer, um certo


esquecimento das coisas essenciais, pensa (CARVALHO, 2007, p.
43).

Maria Judite de Carvalho, com sua obra, põe em questionamento o que, de


fato, é essencial e deixa que o leitor reflita sobre as situações narradas, que por serem
tão corriqueiras, em qualquer tempo, é sempre uma leitura que se renova pela
atualidade dos temas e pela qualidade com que foi escrita.
Ante a produção literária da escritora qualquer leitor iniciante de sua obra
percebe que há uma forte presença da temática da solidão, que suas personagens
são invadidas por uma angústia existencial muito profunda e perturbadora. Todavia,
apurando-se mais o olhar percebe-se que a literatura juditiana vai muito além disso,
sua “magoada sobriedade”, como afirma José Cardozo Pires (1969), possibilita que
ela fale da interioridade, sem “nada de apelos diretos à comoção do leitor”.
A escrita de Maria Judite de Carvalho é dura, as vezes cruel, mas ela possui
uma força comunicativa que cativa o leitor, que o seduz pelo mistério e por seu olhar
perspicaz de quem sabe observar no seu entorno e captar os detalhes certos para
aproveitar em sua obra, de quem escreve com a convicção “de que, apesar de tudo o
que tem de agressivo e dilacerante, viver merece a pena”, conforme escreve Baptista-
Bastos (1989).

3.3 Entre a lucidez e o pulsar de “Um Coração Ardente”: apontamentos sobre a


escritura lygiana

Sou do signo de Áries e os de Áries são apaixonados,


veementes, Achei um dedo, um dedo! Devia estar
proclamando na maior excitação. Mas hoje minha face
lúcida acordou antes da outra e está me vigiando com seu
olho gelado. “Vamos”, diz ela, “nada de convulsões, sei
que você é da família dos possessos mas não escreve
como uma possessa, fale em voz baixa, calmamente”.

(Trecho do conto “O Dedo”)

Os caminhos da literatura de Lygia Fagundes Telles seguem rumos que


pairam entre a euforia de um coração dedicado à palavra, ao fazer literário, e a
serenidade adquirida pela experiência. Escritora que se empenhou desde cedo a
104

narrar os mistérios que ouvia de outrem e a recriar ao seu modo cada história
apreendida, com uma voz mansa, mas com muito discernimento da realidade ao seu
redor é, como escreve Ivan Marques (2012, p. 94), “uma alma sedenta (contemplativa,
sonhadora, espiritualista)” com um coração tão ardente quanto o das suas
personagens.
As personagens lygianas, que também são apaixonadas, audaciosas e
intensas, constituem um grupo singular de indivíduos ficcionais que estão, assim como
mulheres e homens reais, em constante aprendizado sendo por isso seres errantes e
indefinidos. Sejam protagonistas femininas ou masculinas, possuem em comum a
incompletude e uma angústia que as movem em direção ao desconhecido, na
tentativa de encontrarem a si mesmas, de resolverem a questão que é inerente a
essência humana, isto é, o sentido de existirem: “As personagens de Lygia Fagundes
Telles são espíritos famintos que gostariam de tocar as estrelas e a própria ‘face de
Deus’” (MARQUES, 2012, p. 94).
Para desenvolver esses “espíritos famintos”, a escritora cria uma narrativa que
se faz cativante pelas minúcias, que seduz o leitor pelo jogo misterioso no qual a
verdade fica camuflada entre as pequenas revelações e as omissões. Narrativa que
se constrói híbrida, porque envolta no simbólico nunca se fecha em um único sentido,
o leitor é a todo o momento convidado a fazer parte do jogo, a construir suas
impressões com base nas pistas e possibilidades que as palavras podem significar.
Assim, Lygia enfatiza que, ficando sempre na penumbra entre a invenção e a
memória, entre a verdade e a mentira, sua literatura se faz em uma constante troca
com o seu cúmplice, isto é, o seu leitor.
Lygia Fagundes Telles é uma autora que mostrou autenticidade desde o seu
ingresso no campo literário. Escrevendo contos que fugiam das formas e temas
tradicionais, arriscou-se na narrativa fantástica se tornando umas das maiores
representantes do gênero no Brasil, mas não ficou limitada a essa estética, criou
textos de teor realista em que o material social é tratado de maneira pungente
atingindo o âmago da consciência dos seus leitores. Sobre isso, Sônia Régis (1998,
p. 92) destaca o comprometimento da escritora “em narrar a condição humana e a
relação do homem com seu destino”, observando ainda “que muitos analistas da sua
obra acabaram esquecendo o refinado indiciamento da contemporaneidade histórica
nela registrado, confundindo seu realismo com intimismo”. A verdade é que a literatura
lygiana não se prende a rótulos, em seus romances e contos é possível identificar
105

vertentes e características que passeiam da prosa fantástica à prosa intimista, sempre


com destaque para o elemento que é primordial em sua obra: a natureza humana.
Assim, os temas tratados por Lygia Fagundes Telles são geralmente de
caráter universal como a paixão, o amor, o medo, a morte, a dor, a loucura, dentre
outros, escritos de forma veemente em uma linguagem que enche de verdade as suas
personagens porque é a linguagem do dia a dia, como uma simples conversa entre
vizinhos, entre pais e filhos, entre namorados. É do banal que saem as inspirações
para as suas narrativas, é do tangível que suas criações aspiram o sopro de vida.
Suas narrativas, “além de verdadeiros ensaios sobre as qualidades humanas, são
motivos para uma profunda reflexão, incitam a compreensão, o entendimento, exigem
uma correspondência” (REGIS, 1998, p. 93). A escritora é honesta com seus leitores,
não enfeita a sua realidade, ao contrário, como uma voz do seu tempo é fiel ao
escrever sobre as mazelas da sociedade, sobre o grotesco do cotidiano, contudo,
como a própria autora expressou: se faz relevante discutir sobre tudo isso, mas “sem
perder a ternura” e ainda sem perder “o humor” (TELLES, 2010, p. 45-46).
Em contos como “Dezembro no Bairro” e “Noite de Natal” ao escrever sobre
a data mais festiva do ano, Lygia coloca em contraste a saúde, a felicidade e a fartura
ante a miséria, a dor e a tragédia em um “realismo cru, cruel, cruento”, conforme
definiu Alfredo Bosi (2010, p. 167). O clima do Natal em “Dezembro no Bairro” já é
definido pelo próprio espaço delimitado no título: o bairro, isto é, um lugar periférico,
no qual convivem pessoas de uma esfera social empobrecida, marginalizada. Deste
modo, o enredo versa sobre um grupo de crianças que decidem organizar alguns
eventos para arrecadarem dinheiro a fim de poderem reconstruir um Presépio de
Natal. Todavia, mesmo nesse grupo a situação de marginalização de determinadas
crianças revela-se mais problemática do que outras, como é o caso do Maneco, “filho
do Marcolino, um vagabundo do bairro. Magro e encardido, tinha os cabelos mais
negros que já vi em minha vida” (TELLES, 2012, p. 17).
Utilizando a voz narrativa de uma das crianças, a autora desvela a hipocrisia
social dos adultos que se utilizam de um discurso de divinização do Natal, em que se
prega sobre bondade, amor ao próximo e milagres, mas que na prática fazem o
oposto. Maneco e o pai são desprezados pelas famílias das outras crianças, que não
entendem o porquê do tratamento hostil. Contudo, a inocência infantil que faz com
que o grupo de crianças não enxergue diferenças entre eles é a mesma que por meio
de brincadeiras humilha, sem dar-se conta, um adulto já fragilizado pela miséria:
106

Ele voltou-se como se tivesse sido golpeado pelas costas. Desatamos


a rir e a gritar, o malandro do Marcolino se fazendo de Papai Noel, era
o Marcolino!…
A alegria da descoberta nos fez delirantes, pulávamos e cantávamos
aos gritos, fazendo roda, de mãos dadas, “Mar-co-li-no, Mar-co-li-
no!…”. Em vão ele tentou prosseguir representando o seu papel.
Rompendo o frágil disfarce do algodão e dos panos, sentimos sua
vergonha e sua raiva. Duas velhas da casa vizinha abriram a janela e
ficaram olhando e rindo (TELLES, 2012, p. 22).

O ato ingênuo e ao mesmo tempo perverso das crianças afastaram o mais


frágil do grupo, Maneco, que era uma criança doente e, por isso, não pode mais
participar das travessuras e muito menos ajudar com os planos para o conserto do
presépio. Proibido de sair de casa pelo pai e pelas complicações na sua saúde, o
menino mesmo sem forças e recursos, cumpre com esforço a sua parte para ter
aquele símbolo natalino reconstruído.

Empurramos devagarinho a portinhola carcomida. Entramos. E


paramos assustados no meio do porão de paredes encardidas e
trastes velhos amontoados nos cantos. Sabíamos que eles eram
pobres, mas assim desse jeito? Maneco estava sozinho, deitado num
colchão com a palha saindo por entre os remendos. Mal teve tempo
de esconder qualquer coisa debaixo do lençol. Tinha na mão uma
tesoura, devia estar cortando o papel que escondeu. Sob a luz débil
da lamparina em cima do caixotinho ele me pareceu completamente
amarelo, o cabelo negro mais crescido fechando-lhe a cara. Foi essa
a última vez que o vimos, morreu na semana seguinte.
— Seus traidores! — gritou com voz rouca. — Que é que vocês
querem aqui, seus traidores! Traidores!
Fomos saindo em silêncio e de cabeça baixa. Só eu olhei ainda para
trás. Ele fungava por entre as lágrimas enquanto procurava esconder
debaixo do lençol a ponta de uma estrela de papel prateado.

Essa narrativa que se engendra em função do trágico mostra com lisura a


condição do outro, traz à discussão várias questões sociais que são anuladas pelo
discurso consumista e eufórico do período natalino. Deste modo, em “Dezembro no
Bairro” não existe fartura, não há troca ou generosidade, não acontece o milagre do
Natal, entretanto é nessa fragilidade das relações humanas que se produz o efeito
estético do conto. Segundo Régis (1998, p. 93), isso acontece porque a obra lygiana,
“realizada com disposição intensa, consegue suspender nossas formas
automatizadas de interpretação do mundo, indicando-nos novos modos de
sentimento. O belo da ficção [...] tem o poder real de provocar uma reflexão”.
107

Do “realismo cru” ao universo onírico e insólito, a prosa de Lygia Fagundes


Telles traz a representação de um espaço em que as ações cotidianas internalizadas
nos sujeitos refletem a conjuntura histórica e os poderes implícitos introjetados na
sociedade. Assim, é frequente que em suas personagens não existam clareza e
nitidez, uma vez que em seus corpos-espaços os efeitos do mundo exterior ecoam
(de)formando o ser.
Desse contrito entre indivíduo versus mundo de maneira bilateral tanto a vida
psíquica do sujeito é corrompida pelas hostilidades externas quanto o mundo exterior
entra em desordem devido as instabilidades do sujeito. Ante esse cenário caótico,
ocorre nos enredos lygianos situações em que o fantástico se mescla ao realismo em
um confronto no qual as instâncias do tempo e do espaço se entrelaçam envolvendo
a narrativa em uma ambiguidade premeditada que, tecida com distinção, se torna um
ponto característico do estilo da autora.
No conto “O Encontro”, observa-se que o jogo entre espaço e tempo é
construído de modo a intensificar o clima de mistério que perpassa a narrativa. A
protagonista vê-se ante um espaço que ao mesmo tempo que lhe é estranho, é
também familiar. Como se fizesse parte de uma fantasia, o bosque onde a história se
desenvolve é insólito, fascinante e igualmente angustiante porque em quase todo o
enredo a personagem principal – e também narradora – se questiona sobre o espaço
e tempo que lentamente vai dando forma e sentido à narrativa: “Que calma e que
desolação. Tudo aquilo – disso estava bem certa – era completamente inédito para
mim. Mas por que então o quadro se identificava, em todas as minúcias, com uma
imagem semelhante lá nas profundezas de minha memória?” (TELLES, 2012, p. 74).
Como em um universo onírico, por meio do fluxo da consciência da
protagonista, vê-se formar um cenário personificado e metafórico que remete a um
tempo que não corresponde ao presente da personagem. Um tempo passado, longe,
esquecido em uma lembrança que insiste em ficar obscura. Acompanhada por um
sol “lúcido” que a espreita ao longe em uma tarde silenciosa, todo o exterior parece
dominado por uma espécie de calmaria fingida, enunciando maus presságios à
narradora a qual se mantem em constante tensão e expectativa quanto aos
acontecimentos futuros.
Esse jogo espaço-temporal comum à narrativa e ao teatro modernos,
conforme analisa Rosenfeld (1996, p. 81), “faz estremecer os planos da consciência”.
Logo, a ordem cronológica se desfaz em função dos elementos subjetivos que
108

dominam a psicologia da personagem: passado, presente e futuro não se realizam em


uma sequência lógica e realista. Como é possível observar em “O Encontro”, o
presente da narração é uma conjuntura do passado, como um déjà vu a protagonista
parece reviver uma experiência antiga: “Já vi tudo isso, já vi... Mas onde? E quando?”
(TELLES, 2012, p. 74).
Nesse conto lygiano, à medida que o espaço do bosque vai se delineando a
narradora-personagem cogita a ideia de estar vivendo um sonho ou sendo sonhada
por alguém. Sentindo-se envolta em uma gigante teia de aranha, como a que ela
encontra pelo caminho sombrio do bosque, ela busca uma fuga, mas recua porque
necessita de respostas para a razão de estar naquele lugar, que a cada passo se
mostrava mais real e familiar: “E a teia para a qual eu caminhava, quem iria desfazê-
la?” (TELLES, 2012, p. 76).
O símbolo da aranha e da teia, que em muitas culturas africanas e indo-
europeias está atrelado à construção do destino, mostra-se propício para a
compreensão dessa narrativa, uma vez que o futuro da protagonista vai sendo traçado
ao passo que ela vai desvendando os enigmas que estão dentro de seu próprio eu. O
encontro com a teia de aranha, símbolo do destino, é o primeiro a despertar a
narradora-personagem para a realidade circundante, que começa a reconhecer cada
vereda e a (re)construir cada detalhe daquele espaço até o momento crucial do
encontro face a face com o seu duplo: “Enveredei por entre dois carvalhos: ia de
cabeça baixa, o coração pesado mas com as passadas enérgicas, impelida por uma
força que não sabia de onde vinha. ‘Agora vou encontrar uma fonte. Sentada ao lado,
está uma moça.’” (TELLES, 2012, p. 77).
Em um mesmo tempo e lugar a protagonista encontra uma moça de trajes
antigos e expressão ansiosa, descobre o principal motivo para a sua estadia naquele
bosque. Como um filme em sua mente, pequenos fatos são revelados e ela
compreende a razão da desolação na face da jovem mulher e inquieta-se quanto ao
futuro sem entender de imediato o porquê.
Há em comum nessas duas personagens o fato de ambas apresentarem-se
sem clareza, elas não possuem nomes, nem seus traços físicos são definidos. Não
há preocupação da autora em exaltar as características exteriores dessas
personagens, elas são contornadas a partir do interior, das angústias sentidas pelas
duas como se fossem uma só, como se estivessem ante uma heterotopia do espelho.
109

E é assim que o momento epifânico da protagonista ocorre: reconhecendo a si mesma


no outro, quando esta consegue desvendar o enigma que motivou aquele encontro:

Ela arrancou as rédeas das minhas mãos e chicoteou o cavalo.


Recuei: aquela chicotada atingiu em cheio o mistério. Desatou-se o nó
na explosão da tempestade. Meus cabelos eriçaram. Era comigo que
ela se parecia! Aquele rosto era o meu!
– Eu fui você – murmurei. – Num outro tempo eu fui você! – quis gritar
e minha voz saiu despedaçada (TELLES, 2012, p. 80).

Esse encontro da narradora com sua versão do passado para uma tentativa
frustrada de salvá-la da morte por suicídio é bastante simbólico porque representa o
desespero e a angústia existencial do sujeito moderno perante um mundo de
incertezas, o qual se apresenta, às vezes, tão insólito quanto o bosque fictício descrito
na história. A mesma aflição e tom de reencontro consigo mesma em outras
existências ou em planos paralelos do cosmo, é narrada em “O Sonho”, pequeno
conto encontrado em A Disciplina do Amor (2010a), no qual a narradora, também em
um lugar (des)conhecido, depara-se com uma mulher cujos traços, olhar, sorriso e
malícia lhes eram familiares: “o que era? Sorri e de repente me vi sorrindo no seu
sorriso – o seu sorriso era meu e meu aquele rosto que me encarava como num
espelho” (TELLES, 2010a, p. 38).
Existe em Lygia uma constância de unir o improvável com o verossímil, no
entanto, o maravilhoso não suprime a dimensão cruel e violenta do real representado,
que também não a impede de ser irônica e cômica em algumas narrativas. Entre o
lirismo e o realismo implacável há na sua literatura histórias espirituosas em que se
tira de situações atípicas a jovial leveza da sua prosa. Seja com “O Noivo” que
esquece que vai se casar no exato dia que fora escolhido para o seu casamento,
entrando em uma guerra interior para lembrar-se qual mulher seria a sua noiva, ou
ainda a moça que cria um namorado imaginário para fugir dos julgamentos dos amigos
em “Emanuel”, e como mágica ele surge ao final da narrativa deixando todos
surpreendidos, cada narrativa tem o seu poder particular de fixar-se na mente do leitor,
causando-lhe fruição, fascínio e inquietação.
No mundo ficcional de Lygia Fagundes Telles, é extraordinária a capacidade
que a autora tem de tecer ambientes em que o suspense é instaurado
progressivamente por meio dos diálogos entre personagens, ou mesmo dos espaços
e objetos que são personificados e insinuam o que pode ou não acontecer. Desse
110

tom, sempre misterioso, a escritora especialista em não dá soluções definitas aos


problemas plantados nos enredos, faz das situações críticas e não resolvidas um
chamado ao leitor à participação, a (re)construção e (re)significação do texto.
Ante o exposto, apreende-se da ficção lygiana, que mesmo entre encontros e
desencontros, no tempo presente ou fora desse tempo, em espaços excêntricos ou
familiares a vida é traduzida com toda a intensidade que a literatura pode proporcionar.
Sua prosa que alcança a emoção do leitor pela pungente maneira como narra a
miséria, o preconceito, as desigualdades de gênero e sociais, consegue ao mesmo
tempo em que causa inquietação e reflexão do problema transfigurado, tirar do
sofrimento e da dor, a beleza que há na existência.
111

CAPÍTULO 4
TECENDO O ESPAÇO: sobre heterotopias e o corpo-espaço-feminino
representado nas narrativas juditianas e lygianas

Meu corpo, topia implacável. E se, por sorte, eu vivesse


com ele em uma espécie de familiaridade gasta, como se
com uma sombra, ou com as coisas de todos os dias que
no fim das contas não enxergo mais e que a vida
embaçou; como as chaminés, os tetos que, todas as
tardes, se ondulam diante de minha janela? No entanto,
todas as manhas, a mesma presença, a mesma ferida;
desenha-se aos meus olhos a inevitável imagem imposta
pelo espelho [...].

Michel Foucault

O corpo, espaço de sensações, excitação e veneração é também um lugar de


fragilidade, medo, insegurança e dor. A topia inexorável a qual se refere Foucault
(2013, p. 07) é um elemento vital na construção do novelo narrativo das autoras Maria
Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles. A escritora portuguesa enfatiza em cada
um dos seus textos o corpo como o espaço mais suscetível aos desatinos do tempo
e as coações sociais e, de igual modo, a escritora brasileira traduz nesse espaço
simbólico toda a violência e determinações que uma sociedade impõe como padrão e
como desvios. São, em sua maioria, corpos femininos postos em constante debate
por autonomia e por um lugar que lhes pertença, que buscam desesperadamente sair
do caos interior, do desamparo, do insulamento.
Representação dos espaços do corpo, do corpo-espaço das mulheres,
muitas vezes invisíveis, imobilizados, degradados, erotizados e caluniados, como
categoriza Elódia Xavier (2021). Espaço esse que o poder androcêntrico sempre
dispôs como conquistado e por isso submetido às mais absurdas formas de violência
simbólicas ou concreta. Sendo, por isso, o estudo da representação dos corpos-
espaços “um excelente meio de conhecer as práticas sociais vigentes, uma vez que
as ações corporais são orientadas pelos e para os contextos institucionais” (XAVIER,
2021, p. 24). São essas mesmas instituições que fazem da “topia implacável” um
112

espaço outro, um lugar de clausura e melancolia, de infortúnio e apatia, uma


heterotopia.
Lugares sem lugares, as heterotopias foucaultianas representam um mundo
a parte, que não cabe dentro de uma esfera social dignificada e moralmente obsoleta,
portanto, estão sempre nas extremidades, na penumbra e no abismo social: “espaços
diferentes que são a contestação dos espaços onde vivemos” (FOUCAULT, 2013, p.
35). Ora, se esses espaços são reconhecidos como desconformes, como
discordantes do espaço padrão e de ordem, logo eles são vulneráveis as investidas
da maioria, que paradoxalmente condena e serve-se dos seus atributos.
Deste modo, observando as diferentes representações dos corpos-espaços
femininos em diálogo com os demais contraespaços, neste capítulo será investigado
como se constroem as heterotopias nos contos “Além do Quadro” e “As Palavras
Poupadas”, de Maria Judite de Carvalho e “Venha Ver o Pôr do Sol” e “Noturno
Amarelo”, de Lygia Fagundes Telles.

4.1 Os corpos-espaços heterotópicos versus o corpo-espaço utópico e as


heterotopias de desvio em “Além do Quadro”

Ademais, este corpo é leve, é transparente, é


imponderável; nada é menos coisa que ele: ele corre, age,
vive, deseja, deixa-se atravessar sem resistência por
todas as minhas intenções. É verdade! Mas somente até
o dia em que adoeço, em que se rompe a caverna de meu
ventre, em que meu peito e minha garganta se bloqueiam,
se entopem, se fecham. [...] Então, até então, deixo de ser
leve, imponderável etc.; torno-me coisa, arquitetura
fantástica e arruinada.

Michel Foucault

Em Além do Quadro, penúltimo livro de contos de Maria Judite de Carvalho,


publicado pela primeira vez em 1983, constam doze narrativas nas quais o diálogo
entre vozes divergentes traduz toda a complexidade de corpos que são encurralados
pela desordem do cotidiano, por momentos conflituosos que levam a desestruturação
dos sujeitos ficcionais. Nessa obra, a escritora portuguesa escreve sobre a intimidade
113

das personagens sempre em um tom melancólico, destacando-se a temática do


desencanto com a vida e o enfrentamento da solidão.
A narrativa homônima que abre a coletânea traz, por meio de um
entrelaçamento de destinos, a história de três mulheres – Damiana, a esposa; Marta,
uma desconhecida e Bárbara, a amante – que em períodos, lugares e situações
diferentes interagem com um mesmo homem e através desses diálogos seus corpos-
espaços são desvendados. No entanto, o desvelamento desses espaços não se dá
de modo transparente, o enredo de “Além do Quadro” se desdobra ante o leitor
semelhante a um jogo, em que a forma do texto é marcada pela presença de múltiplas
vozes narrativas, pela não-linearidade discursiva. A constante presença de monólogos
interiores diretos, indiretos e solilóquios como recursos que acentuam o fluxo de
consciência, força o leitor a buscar nas pistas textuais o sujeito da voz, do sentimento
narrado, do que é verdade ou ilusão: “Só queria saber... Ouve... Existes ou és um
mito? Ou uma recordação?” (CARVALHO, 2019, p. 287). Segundo Navas (2015, p.
167), “é a partir desse jogo textual que se anuncia uma estratégia comunicativa: de
desafiar o leitor (no e fora do texto) a pensar e a interrogar-se onde deverá situar as
diferentes peças da escrita, dispersas pelo espaço textual”.
A estrutura narrativa de “Além do Quadro” é labiríntica, assim como são
enigmáticos os corpos-espaços de Damiana e de Marta, personagens femininas que
carregam em si o peso da doença, da perda, do abandono. Cada uma em sua
heterotopia, as histórias dessas personagens se encontram pela mesma dicção de
angústia, de dor interior e ao mesmo tempo se distanciam pela maneira como ambas
reagem aos eventos adversos que marcam suas trajetórias.
Essa narrativa, que pode ser considerada uma novela devido a sua extensão,
se desenvolve em três planos ou em três quadros distintos. No primeiro quadro
ficcional o leitor é apresentado a Damiana, por meio de um foco narrativo em terceira
pessoa, mas que põe em evidência o olhar observador do marido. “Além do Quadro”
começa com o homem em visita ao sanatório, heterotopia onde se encontra a esposa,
buscando por trás dos vidros opacos da janela do quarto o rosto de Damiana, na
tentativa de encontrar a mulher que um dia ela foi, a quem ele amou e planejou
construir uma vida feliz, até que a morte os separasse. E é a presença latente da
morte, o terror implícito, que atormenta os dias do casal.
114

Não aparece, de facto, nenhum rosto junto à vidraça, nenhuma forma


incerta para além da cortina, que se mantém quieta e despovoada. O
homem suspira fundo e rende-se à evidência sem qualquer luta.
Procura em todo o caso Damiana para além da realidade imediata e
encontra-a, pois claro, enrolada no maple azul e cinzento (leques
cinzentos sobre leques azuis ou vice-versa), agressivamente enrolada
sobre si mesma, incluindo pernas e pés, e de ouvidos tapados,
esmagados com as mãos transparentes – búzio ao mesmo tempo
bicho e concha –, para ter a certeza não só de não ser vista mas
também de o não ver a ele, de não o ouvir, de não ouvir sequer a voz
do carro arrancando, o que é o mesmo (CARVALHO, 2019, p. 253).

Como um corpo de “forma incerta”, Damiana se torna coisa, objeto que se


confunde aos detalhes do contraespaço onde se encontra, isolada do mundo
saudável. Semelhante a cortina inerte e vazia, a situação da personagem é descrita
de modo a destacar, logo no início da narrativa, o desamparo que a envolve,
encurralando-a ao desalento de viver sem expectativas e com a certeza da morte
iminente. Por meio dessa personagem, Maria Judite de Carvalho retrata o corpo-
espaço doente, imobilizado pela dor do presente e atormentado pelas recordações
do passado, que é reavaliado como um tempo de enganos e de falsas alegrias.
Deste modo, o primeiro plano da narrativa avança em função da trajetória de
Damiana, que por causa de uma doença incurável é trancada em um sanatório e
forçada a esperar o fim da sua jornada. Como uma heterotopia de desvio, isto é, um
lugar que se encontra à margem da sociedade, para o sanatório era comum enviarem
as pessoas que precisavam de tratamento médico para doenças muito graves e
infeciosas, como a tuberculose, por exemplo, no intuito de tratar esses pacientes em
busca da cura, no entanto, o que na realidade acontecia era o distanciamento e a
exclusão desses doentes do convívio com a sociedade sã. Sempre localizados em
locais afastados das cidades, esse contraespaço geralmente situava-se em
localidades de altitude mais elevada, com condições climáticas mais ventiladas e
próximo a natureza.
As heterotopias, segundo Foucault (2000, p. VI e VII), nascem da desordem
e fogem do “lugar-comum”, por isso causam inquietação, isto é, “faz cintilar os
fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão, sem lei nem
geometria, do heteróclito”. As representações heterotópicas afastam-se do significado
do que é “comum” e se apropriam do excêntrico no sentido de que “as coisas” são
dispostas de forma desigual, “a tal ponto diferentes, que é impossível encontrar-lhes
um espaço de acolhimento”. Assim, a heterotopia do sanatório retrata aquilo que para
115

a sociedade é anormal, merecendo, por essa razão, ser separado, afastado da ordem.
Ao reunir um grupo de pessoas doentes, sem perspectivas de cura e sem um
tratamento ideal em um sítio longe de tudo que é conveniente para o indivíduo se
sentir civilizado, a sociedade que se põe como o Mesmo torna esses corpos doentes
em corpos-espaços Outros, desconsiderando que “a doença é, ao mesmo tempo, a
desordem, a perigosa alteridade no corpo humano e até o cerne da vida, mas também
um fenômeno da natureza que tem suas regularidades [...]” (FOUCAULT, 2000, p.
XXII).
Em “Além do Quadro”, o sanatório é descrito como um lugar tétrico, sombrio,
com suas grandes janelas, “bastante danificadas pelo tempo e pelas ventanias de
altitude” (CARVALHO, 2019, p. 253). Um lugar que por fora mostrava-se imponente,
com seus varandins de ferro, detalhes de pedras, paredes espessas, pintadas com
tonalidades claras e que, no entanto, tudo é opaco do lado de dentro, além dos vidros
das janelas não é fácil enxergar o que se passa em cada cômodo, no seu interior,
porque ali predomina uma atmosfera cinzenta, gélida e difícil de decifrar. É
interessante observar o quanto essa heterotopia influencia na construção da
personagem Damiana, transformando-a numa duplicação desse espaço.

o olhar do homem liberta-se do minúsculo retângulo de vidraça,


procura com um suspiro o seu norte [...]. continua, porém, a pensar
em Damiana, magra e descolorida às vezes, de boca amarga e olhos
ora escaldante ora frios, ardentemente gelados, fechados em todo o
caso ao mundo exterior [...], em Damiana quase ectoplasma, quase
não matéria viva [...]. (CARVALHO, 2019, p. 258).

Para um paciente internado em um sanatório o ato de ir até a janela


significava querer estar vivo, porque respirar o ar puro da floresta que entrava pelas
janelas era um sinal de vitalidade, o que em nenhum momento acontece com
Damiana. Assim, a falta de ação da personagem e conformismo com o seu pouco
tempo de vida simboliza a incorporação do fardo opressivo que representa a
heterotopia do sanatório com todos os seus corpos doentes, com todos os seus
mortos e com o predomínio do sentimento de estar presa em um completo ermo,
sozinha, abandonada.
O corpo-espaço doente de Damiana é revelado pelo jogo temporal que se
passa na mente do marido por meio das evocações ao passado, do fluxo intenso de
lembranças que vai esboçando a história do casal desde o começo da relação, por
116

essa razão todo perfil da esposa é construído a partir das observações do homem. O
trabalho de Maria Judite de Carvalho com a linguagem põe em evidência uma
personagem fragilizada, mas que se faz ouvir da primeira à última página do texto
mostrando, como um paradoxo, a sua força: “Com Damiana nunca houve aquele
período um pouco piegas de todos os princípios, em que a parte masculina se sente
espantosamente forte e protetora, porque a outra parte se compraz mostrando uma
fragilidade e uma urgência de ser apoiada e protegida [...]” (CARVALHO, 2019, p.
270).
As contradições na construção do perfil de Damiana são apresentadas pelo
narrador pela presença da ambiguidade, ou seja, é lançada a incerteza sobre a
veracidade das recordações do marido – são reais ou invenções? –, isto porque “Não
é muito boa a memória daquele homem” (CARVALHO, 2019, p. 258). Deste modo, o
já mencionado jogo textual proporcionado pelas escolhas técnicas da autora expõe,
no decorrer de uma página e meia, por exemplo, os supostos pensamentos de
Damiana sobre o que ela sente a respeito da visita do marido ao sanatório, em como
a presença dele a incomoda por trazer as reminiscências de momentos de harmonia
e felicidade, de um tempo de viagens e conversas agradáveis em jardins, de belos
verões compartilhados pelo casal. Contudo, depois de construir toda a trama de uma
bela história de amor, com passagens temporais e espaciais variadas, o narrador
lança ao leitor a prerrogativa da dúvida sobre tudo o que até então fora dito:

Ele continuava a observá-la sem ela se dar conta. Ou talvez não fosse
bem assim, não ligasse simplesmente importância a tal pormenor. E o
homem hesitava, já sem saber se algum dia, num passado próximo,
lhe ouviu aquelas palavras, ou se as tinha sonhado, ou se eram mera
suposição (CARVALHO, 2019. P. 256).

Sonho ou realidade? certeza ou engano? O problema é sugerido: de fato,


quem é Damiana? A mulher debilitada e vulnerável ou uma mulher de personalidade
forte, indócil, a que confronta o marido e o inquieta quanto a suas escolhas e ações
mesmo não tendo disposição física? As pistas do narrador e os vestígios deixados
pelas lembranças do homem apontam para uma Damiana que é tanto um corpo-
espaço enfraquecido pela enfermidade quanto um corpo-espaço insubmisso, isto é,
uma personagem que não é rasa, ao contrário, ela não se deixa decifrar de imediato,
em um único olhar.
117

Alguns episódios são fundamentais para a percepção do caráter insubmisso


de Damiana: habituada a longos solilóquios, tinha opiniões fortes sobre variados
assuntos; com seu “sorriso errado”, “olhos egípcios”, tinha o “ar displicente” e possuía
uma personalidade apática, de “quase agressividade”. Foi com neutralidade que
ocultou do marido a doença da mãe, revelando-a apenas quando já não havia mais
solução de cura e foi com a mesma frieza que contou sobre a traição do pai e sobre a
sua própria doença. Estava sempre encoberta por uma “aparente serenidade” ante os
eventos adversos e por isso os encarava sem se desestabilizar: “Nunca foi pessoa
para se precipitar, mesmo que o que tivesse a dizer fosse muito, muito importante e
qualquer outra pessoa perdesse a cabeça e se lavasse em lágrimas” (CARVALHO,
2019, p. 279).
Em A Dominação Masculina, Bourdieu (2019) mostra que a formação do
habitus feminino se dá sob a perspectiva de que ser mulher é ser um corpo-espaço
marcado socialmente pelo espectro da fragilidade, pela dependência simbólica ao
masculino: “Delas se esperam que sejam ‘femininas’, isto é, sorridentes, simpáticas,
atenciosas, submissas, discretas, contidas ou até mesmo apagadas” (BOURDIEU,
2019, p. 111). Características essas que a personagem Damiana não possui, ao
contrário, é possível perceber pelos diálogos e ações do marido que na relação dos
dois os papéis se invertem, sendo ele a parte vulnerável, insegura e apagada, que só
teve “contato com a vida” aos dezoito anos depois de um pequeno incidente: “caiu
dentro de uma cova. Não era funda mas caiu mal [...]. Em todo o caso partiu uma
perna” (CARVALHO, 2019, p. 268).
Assim sendo, a percepção do corpo-espaço de Damiana pelo homem é
marcada, sobretudo, por estereótipos que reduzem a “representação subjetiva”
(BOURDIEU, 2019, p. 107) em detrimento da representação física da esposa posto
em comparação com Bárbara, a amante, ou o corpo-espaço dócil. Enquanto
Damiana possuía uma “fealdade” natural, com suas mãos grandes e uma magreza
excessiva, Bárbara era a representação da beleza, a mulher que mesmo “vestida de
qualquer maneira, é um espetáculo” (CARVALHO, 2019, p. 297). O contraste entre os
corpos-espaços dessas duas personagens femininas se dá por meio do jogo de
antíteses: feia/bela, velha/jovem, doente/sã, agressiva/suave, e é construído sem
eufemismos, em linguagem crua e direta, através do discurso masculino que é
sustentado por um forte posicionamento androcêntrico.
118

Bárbara é retratada como o corpo belo e apaziguador, sem muita inteligência,


dominada pelos sentimentos, pela paixão avassaladora, com olhos lindos feito
“porcelana, quebráveis, portanto, exigindo certos cuidados na manipulação”
(CARVALHO, 2019, p. 274). Ela é o corpo utópico, a representação simbólica do ideal,
do sublime. Logo, para o homem, o corpo-espaço de Bárbara é, como uma metáfora,
“o país onde as feridas se curam com um bálsamo maravilhoso na duração de um
relâmpago, o país onde se pode cair de uma montanha e reerguer-se vivo, o país
onde se é visível quando se quiser, invisível quando se desejar” (FOUCAULT, 2013,
p. 8). Símbolo do prazer, do estar vivo, o corpo da amante era como um “porto de
abrigo” entre “a morte e a vida” (CARVALHO, 2019, p. 299).
Apesar disso, como um corpo-espaço dócil, Bárbara, similar aos seus frágeis
olhos de porcelana, é um corpo manipulável, controlado pela disciplina apreendida do
trabalho nas passarelas, isto é, um corpo facilmente adestrável sobre o qual a ideia
de “docilidade” remete ao que “pode ser submetido, que pode ser utilizado”, conforme
escreve Foucault (2014, p. 134) em Vigiar e Punir a respeito dos corpos dóceis.
Bárbara sujeita-se ao homem em razão do amor que a domina e que, no entanto, não
era mútuo: ela está sempre disposta a ajudá-lo, chegando até a comemorar o
aniversário do relacionamento, elogia constantemente o amante fazendo-o sentir-se
importante, livre para “falar de coisas simples” e sem se enxergar diminuto e
desprezível como Damiana o fazia sentir-se. O homem que estremecia ao ouvir a voz
da mulher, vivendo em uma tensão constante, é o mesmo que “acha-se a sorrir” ao
doce som da voz de Bárbara, que o chama obstinadamente de “Amor”.

Não fala, arrulha. É uma coisinha fofa, uma criança desamparada –


aparentemente -, um cachorrinho na multidão. Diz mais coisas, isto e
aquilo. Ele, porém, não a ouve. Flutua, partícula imóvel num tornado
veloz. Não existe. Não está. Pensa vagarosamente, suspeita... E ele?
E sua vida? Plantas sem interesse, construções que parecem
caixotes, tudo serviço encomendado, funcional, meia-tigela. E mais?
E mais, agora que Damiana e a sua imagem e a sua razão, tudo aquilo
diminui com o seu corpo (ou, pelo contrário, aumenta um pouco,
episodicamente, também acontece)? (CARVALHO, 2019, p. 301).

À medida que Bárbara, o corpo acessível e generoso, é o espaço do Mesmo,


da afirmação de um comportamento feminino regrado a uma condição de aceitação
da dominação masculina, sempre pronta para obedecer e fazer-se coisa do homem,
por ter seu habitus formado para aceitar e dizer sim ao ser amado, a esposa Damiana,
o corpo indócil, é o espaço outro. Enquanto corpo heterotópico, Damiana é a
119

representação da força e determinação almejadas pelo marido, que a todo momento


mostra a face da sua fraqueza e do seu eu diminuto, fazendo ecoar na sua consciência
a frustração reforçada pela ideia de que uma mulher enferma, com todo o universo
em desfavor, consegue ter personalidade para se impor e agir com a coragem e o
vigor que ele, saudável e com um mundo de oportunidades favoráveis, não tem.
O marido de Damiana, a voz masculina do conto, tem seu nome mencionado
apenas uma vez, quase imperceptível, no transcorrer do enredo: “Vou deixar-te, sim,
flor, mas de outro modo. Já olhaste bem para mim? Não, claro que não olhaste. Estou
doente, Rui” (CARVALHO, 2019, p. 279). Mesmo tendo o foco do narrador sobre suas
memórias e sobre o seu olhar, Rui é o coadjuvante da narrativa, sempre chamado de
“o homem”, são os conflitos das personagens femininas que formam o todo da trama,
que movimentam e dão algum sentido à trajetória dele. É que, segundo Mendonça
(1973, p. 173), “os homens só vêem às páginas de Maria Judite de Carvalho como
comparsas importunos ou assoladores do destino daquelas mulheres”.
O vínculo afetivo com Damiana e Bárbara é o que permite ao homem construir
suas impressões no tocante ao perfil de ambas, com a ajuda do narrador que invade
as lembranças dele e complementa as recordações com pequenos fatos, o leitor pode
conhecer essas mulheres, todavia sem ter a certeza de que esse conhecimento é
autêntico ou dissimulado pelas percepções de Rui. Isso acontece porque Maria Judite
de Carvalho “vai reunindo farrapos de intriga, miudezas da amizade ou do amor,
recordações, sentimentos desgarrados, minúcias de observação das fisionomias, das
atitudes, dos gestos” (COCHOFEL, 1982, p. 106), elaborando cada detalhe relevante
para a composição da sua arte, sem entregar todas as pistas do jogo.
Desta forma, como quebra de expectativa a autora acrescenta ao texto um
ponto de vista de fora do triângulo amoroso e que por sua vez traz à narrativa um
outro quadro. Entre a heterotopia do sanatório e o espaço da casa de Bárbara,
acontece o encontro do homem com uma personagem de fora do seu círculo afetivo.
Nesse percurso, o enredo ganha uma nova voz, o leitor passa a acompanhar o fluxo
de consciência de outro sujeito ficcional, o que possibilita uma diferente interpretação
do que é narrado até então.
Marta surge na trama como uma figura fantasmagórica, que espera apenas
um “sinal para se manifestar ou materializar” (CARVALHO, 2019, p. 259); um corpo-
espaço solitário, vagueando pela estrada deserta com seu “casaco branco”,
semelhante a um ser sobrenatural, até que os infortúnios da realidade mostram que
120

ela é uma simples mulher absorta em seus próprios problemas: “De súbito avista-a,
surgindo da curva, de mãos nos bolsos, com uma grande mala a tiracolo. Tem uma
expressão ressentida, ou parece-lhe a ele, assim de longe, que a expressão dela deve
ser ressentida” (CARVALHO, 2019, p. 263).
Marta, a jovem mulher de “olhos antigos”, tem em comum com Damiana o
fato de também ser um corpo-espaço heterotópico, de trazer em si uma sombria
amargura e uma trajetória de problemas familiares. Marta é a representação do corpo-
espaço órfão, que carrega em seu íntimo as profundas marcas do abandono e a
desventura de ver sempre repetir-se em sua vida o mesmo quadro: “Tinha ficado outra
vez só, compreende?” (CARVALHO, 2019, p. 284). Sua presença na história não é
um simples acaso, nem um evento aleatório e rápido: ela é o contraponto entre a
desordem de Damiana e a mansidão de Bárbara, e é também o ponto de harmonia
que vai desvelar as máscaras usadas pelo homem, dando ao leitor algumas
possibilidades de interpretação sobre a condição feminina representada em
comparação com o contexto sócio-histórico e a simbólica dominação masculina.
Marta, a mulher misteriosa que consegue carona com um estranho, é um
corpo-espaço que transita entre duas heterotopias: o sanatório, local onde está o
marido doente, e o asilo/orfanato, lugar no qual foi abandonada ao nascer. O impacto
de ter pertencido a esse contraespaço de rejeição marca o discurso da personagem
e todo o diálogo que mantém com o homem traz o reflexo desse trauma: “Por que fala
tanto de asilo? É um complexo, não?” (CARVALHO, 2019, p. 294).
Pensar a heterotopia do asilo em “Além do Quadro” é procurar as respostas
para as lacunas do texto, é uma busca pelas peças do quebra-cabeças narrativo que
Maria Judite construiu através dos detalhes que são apresentados por pequenos
fragmentos de memórias. Assim, mesmo que essa heterotopia seja observada por
Marta a partir de um distanciamento temporal e espacial, a influência desse lugar
permanece forte sob o corpo-espaço da personagem: “há sempre o momento de
pânico. É como se houvesse ainda hoje a ameaça, o perigo, enfim, de ser outra vez
metida num asilo por alguma funcionária zelosa e cumpridora” (CARVALHO, 2019, p.
294). A ironia presente nos termos que adjetivam a funcionária corrobora para
sustentar a ideia de que o contraespaço do asilo era permeado por rigidez disciplinar,
por severas punições aos comportamentos das crianças que desobedecessem às
regras que ali existiam.
121

Em Vigiar e Punir, ao falar sobre os artifícios para se obter a domesticação


dos corpos, Foucault (2014, p. 167) explica que a disciplina é um poder capaz de
“adestrar” os indivíduos, proporcionando a “fabricação” de seres dominados, isso
porque a disciplina “é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao
mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício”. Em “Além do
Quadro” esse poder é o que marca a primeira infância de Marta e conserva-se em seu
corpo como vestígio da opressão e da sujeição à sobrecarga doméstica: “O seu rosto
é jovem mas marcado” (CARVALHO, 2019, p. 284).
A heterotopia do asilo, assim como outras heterotopias abordadas por
Foucault (2014) é um lugar regido por “vigilâncias hierarquizadas” e, como tal, tem um
sistema particular que é movido por princípios disciplinares, logo, possuidor de um
mecanismo próprio de punições semelhante ao modelo aplicado nos acampamentos
ou quartéis do exército. Como uma instituição normatizadora, é comum que nos
orfanatos seja utilizado um “pequeno mecanismo penal” que funciona mediante
severas regras: “com suas leis próprias, seus delitos especificados, suas formas
particulares de sanção, suas instâncias de julgamento” (FOUCAULT, 2014, p. 175).
Como uma heterotopia de expressão repressora tão presente na memória de
Marta, o asilo, em “Além do Quadro”, também possuía uma série de pequenas
penalidades. Tais como as descritas por Foucault (2014, p. 175), essa
“micropenalidade” que abrangia desde uma falta de atenção em determinada
atividade até a maneira de se portar e falar da criança órfã, tinha a intenção de
adestrar, ao mesmo tempo em que era “utilizada, a título de punição, toda uma série
de processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas
humilhações”. Na narrativa juditiana, o modo como tudo isso moldou o corpo-espaço
de Marta é refletido nas ações e manias da personagem, por meio dos seus
pensamentos pessimistas e pelo jeito metódico e reservado com o qual se portava.

Quando choramos acho que estamos sempre à espera de que nos


ouçam, de que nos lamentem, de que nos ajudem. Mas quando não
há ninguém... No asilo, por exemplo. Quem ia reparar nas minhas
lágrimas? Creio que foi lá que perdi o hábito de chorar. Já não chorava
aos nove anos quando de lá saí. Por mais que as companheiras piores
me beliscassem e as vigilantes me pusessem de castigo. Isso, de
resto, foi-me útil. Não era com lágrimas que eu ia aguentar a estadia
lá em cima, a vizinha que fica com o bebê. Respirei fundo e avancei
(CARVALHO, 2019, p. 284).
122

Nessa passagem da narrativa percebe-se o encontro entre as duas


heterotopias responsáveis pela angústia existencial de Marta e como esses
contraespaços são primordiais para desvelar o seu corpo-espaço. Assinaladas pelos
constantes monólogos interiores diretos indicados em tipo itálico, as lembranças e
diálogos consigo mesma denotam como a trajetória dela e a dos demais personagens
estão interligadas pelo destino.
Observa-se ainda que a jovem mulher e o seu companheiro de viagem
compartilham o fato de não haver esperança de vida para os seus cônjuges como
também a circunstância de, naquele momento, ambos estarem desolados por causa
dos seus doentes. No entanto, existe um grande abismo entre a sorte do homem e a
de Marta: para ele o retorno ao espaço da casa é sinônimo de conforto e felicidade,
pois este sabia que no dia seguinte sua vida seguiria o percurso costumeiro no qual a
segurança de um trabalho lucrativo e o prazer da relação com Bárbara lhe fortaleciam
– “tem pressa de chegar à casa onde uma mulher suave está à sua espera”
(CARVALHO, 2019, p. 296). Enquanto para Marta retornar ao lar era a continuação
da labuta que se dividia entre vários outros espaços e nunca lhe permitia um momento
de descanso: a doença do esposo, o sanatório, um filho pequeno, um emprego que
lhe pagava pouco.
Torna-se nítido do encontro entre o marido de Damiana e a moça da estrada
as manifestações de poder e a coerção da violência simbólica ante a condição
feminina. O olhar do homem, os seus pensamentos, as suas suposições estão sempre
atreladas a juízos de valor no qual o corpo-espaço de Marta é posto como objeto e,
portanto, vulnerável a dominação masculina: “Ensinaram-me que não se pode aceitar
esse tipo de oferecimentos, que há sempre qualquer coisa por detrás deles, que os
homens... O meu pai costumava dizer...” (CARVALHO, 2019. p, 265).
A violência simbólica que, de acordo com Bourdieu (2019), é legitimada por
discursos que se enraizaram na sociedade e se tornaram naturalizados, atuando
sobre o dominado de forma imperceptível para este, “se institui por intermédio da
adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto, à
dominação) quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para
pensar sua relação com ele [...]” (BOURDIEU, 2019, p. 64). Posto isto, percebe-se em
“Além do Quadro” que o poder invisível dos valores do dominador age em forma de
desprestígio contra o corpo-espaço do dominado, sem que este tenha a ciência de
todo o contexto: ao descobrir que a jovem desconhecida trabalhava como secretária
123

para um amigo boêmio e muito mais velho, o homem logo associa a moça como
amante do patrão e cria em sua mente todo um enredo de traição envolvendo-a,
apenas por julgar que a condição de Marta tornava-a predisposta a se envolver por
conveniência.

O Lopez falou-me de si, Pomba [...]


Uma rapariga como você... E o Lopez...
Pois não é? O pior é que ele gosta de mim. Sempre tive uma
necessidade louca de que gostassem de mim. E estava tão só naquela
altura.
Um pai.
[...] Não sei bem. Talvez que era um caso passageiro e que quando
eu quisesse lhe punha ponto final. Um caso condenado à morte.
Ninguém sabe, julguei eu, pelo menos. Quem lhe disse que ele me
chama Pomba?

Esse diálogo, que se passa todo na consciência do homem, demonstra como


a condição feminina está sujeita aos discursos androcêntricos que veem no corpo da
mulher o paradigma da sexualização e de subserviência aos desejos e vontades
masculinas. Assim, Marta torna-se Pomba, simbolicamente um corpo-espaço que
contrasta a noção de pureza com o amor carnal, sendo na mitologia a “ave de
Afrodite”, isto é, aquela que “representa a realização amorosa que o amante oferece
ao objeto do seu desejo” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2012, p. 728).
Marta não percebe nas palavras maliciosas as insinuações do homem, ela
sofre e na sua angústia não há espaço para se justificar diante de um desconhecido.
Mesmo fragilizada pelas preocupações pessoais, a jovem mulher preserva uma força
vital para enfrentar os eventos que lhe causam temor. Assim, entre Marta e Damiana
os caminhos se cruzam através do modo indiferente como ambas reagem aos
questionamentos narcísicos do homem o que o enfraquece e o deixa desconcertado,
principalmente quando suas concepções da realidade são refutadas e o narrador
expõe a verdade dos fatos: “«Era outra pomba então», diz ele nitidamente
desconsolado retirando-lhe a maiúscula” (CARVALHO, 2019, p. 300).
Vê-se nessa narrativa que a escritora Maria Judite de Carvalho trabalha com
o pormenor para construir um enredo em que o corpo-espaço feminino é o núcleo do
qual todos os demais elementos são construídos. Segundo Besse (2015, p. 77), na
escrita juditiana “o corpo das personagens e/ou das narradoras não surge apenas
representado na trama narrativa, mas respira também no âmago da escrita que o
124

envolve com a sua própria carne, ocupando simultaneamente a posição de objeto e


de sujeito”.
Em todo o texto, o discurso feminino utilizado pela autora ressoa como uma
voz a ser ouvida, a ser compreendida e não apenas lida. O estilo de Maria Judite é o
de fazer-se inferir pela sugestão, ela não deixa claro o que é verdadeiro ou falso, assim
como não diz ao leitor como as suas histórias são finalizadas. Existem os indícios por
meio dos recursos narrativos e gramaticais, como o uso do itálico para indicar os
monólogos interiores diretos ou o auxílio do narrador para dizer o que a personagem
está pensando. Entretanto, o narrador não interfere e em muitos momentos deixa que
o sujeito ficcional coloque sua certeza ou mesmo suscite a dúvida.
No espaço do texto, as vozes masculina e feminina ora conversam entre si,
ora conversam com o leitor sobre suas histórias, contudo os detalhes contados são
atravessados pelas falhas da memória. O esquecimento impõe a incerteza e a
mudança na voz que fala é abruptamente alternada.

Por isso, a identidade das vozes confunde o leitor, pois não se pode
definir nem caracterizar. E a confusão ainda é maior quando o leitor
volta atrás, associa com o que vem mais à frente e verifica que, apesar
de tudo, os referentes da história do passado de cada figura não se
perderam completamente, são lembrados de uma forma desconexa e
soltos ao longo do espaço textual sempre por uma voz que o orienta
neste jogo (NAVAS, 2015, p. 168).

“Além do Quadro” representa, portanto, uma dicção de alteridade pautada


pelas expressões dos espaços do corpo feminino e do que está além-corpo, percebido
por meio dos contraespaços. Os sinais deixados por Maria Judite de Carvalho ao
longo da narrativa são também possibilidades para que o leitor reinvente a narrativa
ao imaginar o que poderia acontecer mais à frente, completando os espaços em
branco dos quadros individuais de cada personagem.

4.2 A Heterotopia do cemitério e a violência simbólica em “Venha Ver o Pôr do


Sol”

O amor, também ele, como o espelho e como a morte,


sereniza a utopia de nosso corpo, silencia-a, acalma-a,
fecha-a como se numa caixa, tranca-a e a sela. É por isso
125

que ele é parente tão próximo da ilusão do espelho e da


ameaça da morte; [...].

Michel Foucault (2013, p. 16)

Ao escrever sobre os contos do livro “Antes do Baile Verde”, Antonio Dimas


(2009, p. 181) faz um alerta sobre o estilo de narrar de Lygia Fagundes Telles ao
apresentar o modo como a autora envolve o leitor com suas “garras de veludo”, isto
é, ela constrói suas narrativas por meio de uma sedução branda, com um enredo que
vai se desenvolvendo aos poucos e de forma dissimulada: “Tudo muito pontual, muito
preciso, muito na mosca. Nenhuma entrada que ameace drama. Tudo muito
disfarçado, tudo muito sorrateiro”. E com esse artifício, a escritora consegue envolver
o leitor de forma mansa, até finalmente lançar a surpresa, mostrar o seu golpe sagaz
deixando “as unhas retráteis aparecerem e, logo depois delas, o risco na carne, o
filetinho de sangue escorrendo” (DIMAS, 2009, p.182).
Para fisgar o leitor que se propõe a descobrir os segredos do jogo construído
por suas unhas afiadas, que ao mesmo tempo em que machucam causam deleite,
Lygia utiliza os elementos narrativos a seu favor e os maneja com precisão até
conseguir seu objetivo. Nesse trabalho delicado e esmerado com as palavras, com os
recursos textuais, a escritora provoca pela sua escrita “o suficiente para incomodar,
na hora e por tempo extenso” ficando as suas histórias “cravadas na memória”
(DIMAS, 2009, p. 182). Todos esses atributos da prosa lygiana podem ser observados
com maestria em “Venha Ver o Pôr do Sol”, conto no qual a presença da heterotopia
e do movimento dinâmico dos elementos que compõe o contraespaço dão ao texto
um singular tom de mistério e de horror.
Assim sendo, em “Venha Ver o Pôr do Sol”, o reencontro entre um ex-casal
de namorados é o motivo inicial para a estabelecimento do clima de suspense que
perpassa toda a narrativa. A construção do espaço, no qual o encontro acontece, é
cuidadosamente tecido de modo a acentuar o clima de tensão que circunda os ex-
amantes, dando pistas ao leitor sobre a instabilidade emocional do antagonista
Ricardo, sem revelar totalmente as suas obscuras intenções, isso porque o encontro
do homem com a ex-namorada Raquel passa-se em um lugar bastante mórbido e
incomum: um cemitério abandonado.
Foucault (2014, p. 23) descreve o cemitério como um dos tipos mais evidentes
de heterotopia, uma vez que “o cemitério é absolutamente o outro-lugar”. O filósofo
126

expõe que até o século XVIII o tratamento dado aos mortos era divergente do que se
tem na contemporaneidade e os espaços destinados aos corpos não possuía o valor
ritualístico e memorável que existe hoje: “A exceção de alguns indivíduos, o destino
comum dos cadáveres era muito simplesmente serem jogados na vala, sem respeito
ao despojo individual” (FOUCAULT, 2014, p. 23).
Retirados dos centros das cidades para locais mais afastados do espaço
urbano, a partir do século XIX a heterotopia do cemitério ganhou novos conceitos e
passou a fazer parte do imaginário popular como um espaço de misticismo e também
do medo. Segundo Philippe Ariès (2012, p. 79), a casa dos mortos retomou no século
XIX a importância que tinha na Antiguidade ganhando notoriedade e assumindo um
aspecto moral cristão, sendo ignorada a sua origem clássica pagã, os “cemitérios
tornaram-se eloquentes”.
É, portanto, essa eloquência da heterotopia do cemitério que é disposta no
conto “Venha Ver o Pôr do Sol”, a descrição do local do último encontro entre Ricardo
e Raquel como um espaço distante da área residencial da cidade e de difícil acesso é
realizada logo na primeira oração do texto: “Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira.
À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem
simetria e ilhadas em terrenos baldios” (TELLES, 2009, p. 135). A conversa entre o
casal tem início de forma afetuosa, mas com pequenas porções de malícia e certa
hostilidade. Por meio do diálogo entre as duas personagens o leitor é informado de
que existe entre o antigo e o atual namorado de Raquel uma desproporção no que se
refere ao prestígio social e econômico. Por julgar-se ainda apaixonado por ela,
Ricardo tenta persuadi-la por meio de evocações das memórias de quando foram
amantes, lembrando-a do quanto foram felizes no passado e como ainda poderiam
ser em um possível futuro.
A violência simbólica representada nesse conto possui várias faces, seja no
âmbito do discurso ou da ação. Assim, é possível elencar algumas proposições do
homem sobre o corpo-espaço da mulher onde a imposição dos valores patriarcais é
cruelmente notória: reificando o lugar do corpo feminino, Raquel representa a princípio
o corpo-espaço coisificado. Deste modo, a violência simbólica se manifesta, num
primeiro momento, através do olhar maquiavélico de Ricardo que vê na ex-namorada
apenas um corpo sexualizado: “− Ah, Raquel... – ele tomou-a pelo braço – Você, está
uma coisa de linda. [...] Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza,
sentir esse perfume” (TELLES, 2009, p. 136).
127

Os gestos, os olhares e as palavras escolhidas por Ricardo funcionam como


mecanismos de dominação e causam desconforto em Raquel: ao mesmo tempo em
que se sente desejada, esta também é colocada em uma posição de dependência
simbólica ao poder emblemático daquele homem que consegue feri-la na mesma
proporção que a envolve. Segundo Bourdieu (2019), essas reações do sujeito
feminino acontecem porque a ideia de feminilidade nas sociedades patriarcais foi
construída pelo padrão androcêntrico de que para se instituírem no meio social as
mulheres precisariam de ter seus corpos reconhecidos primeiro pelo olhar do outro,
pela anuência de quem, simbolicamente, exercia sobre elas uma força superior.

Tudo, na gênese do habitus feminino e nas condições sociais de sua


realização, concorre para fazer da experiência feminina do corpo o
limite da experiência universal do corpo-para-o-outro, incessante-
mente exposto à objetivação operada pelo olhar e pelo discurso dos
outros (BOURDIEU, 2019, p. 107).

Com um corpo-espaço percebido e cobiçado, Raquel é dominada pela


presunção e não consegue inferir os sinais de perigo que são aludidos tanto pelos
elementos que compõem a heterotopia do cemitério como pelo discurso de Ricardo.
A moça, então, é desarmada pelo envolvimento persuasivo do rapaz que a enaltece
com elogios e com a possibilidade de oferecer-lhe a visão do “pôr do sol mais lindo do
mundo” (TELLES, 2009, p. 136). Prenúncios do destino trágico que culminará aquele
encontro são construídos pelo narrador com o auxílio do contraespaço que se torna o
grande protagonista do enredo a partir do momento em que é inserido na narrativa
com o seu “velho muro arruinado” e grande “portão de ferro, carcomido pela ferrugem”
(TELLES, 2009, p. 136).
O lugar escolhido com astúcia pelo homem localizava-se na fronteira entre o
excêntrico e o reservado, ideal para os ex-amantes pois ficava longe de olhares que
pudessem comprometê-los: “Não tem lugar mais discreto do que um cemitério
abandonado, veja, completamente abandonado [...]. Jamais seu amigo ou um amigo
do seu amigo saberá que estivemos aqui” (TELLES, 2009, p. 137). Estando toda
dominada pelo esquecimento, a heterotopia do cemitério apresentava uma estética
“miserável” e “deprimente”, onde reinava uma excessiva vegetação que invadira
aquele lugar de forma rude e impetuosa “como se quisesse com sua violenta força de
vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte” (TELLES, 2009, p. 138). A
simbologia que envolve o “mato rasteiro” ao tentar ocultar os sinais da morte, que
128

domina aquele espaço, é um recurso utilizado por Lygia Fagundes Telles para revelar
e ao mesmo tempo esconder as peças do jogo narrativo fundamentais para a
construção do sentido do conto, assim como os elementos do espaço ficam no limbo
do visível e invisível, alguns pensamentos de Ricardo são desvelados ao mesmo
tempo em que outros são dissimulados. A ideia de morte que está presente em toda
a parte, também é posta pelo tom sombrio do tempo, pelo meio termo entre a luz e a
escuridão, na ambiguidade que perpassa entre o crepúsculo e a alma daquele homem
que se mostra interiormente enigmático por ser alguém que está sempre oscilando
entre o bem e o mal: “a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da
noite, está no crepúsculo, nesse meio tom, nessa ambiguidade” (TELLES, 2009, p.
138).
De tal modo, ao aceitar adentrar naquele lugar, Raquel torna-se um corpo-
espaço cativo: primeiro, do ponto de vista alegórico, porque é dominada pelo fascínio
que Ricardo ainda causa sobre ela e por isso não percebe a voz eloquente do
contraespaço, que a todo momento lhe envia vislumbres dos planos do rapaz, como
a imagem do “anjinho de cabeça decepada” ou a “laje despedaçada” e a “sepultura
fendida” pelo mato que cobre tudo, até as identidades dos mortos ali enterrados. Todo
o cemitério expressava um violento descuido, com elementos quebrados por toda
parte, fotos desbotadas, nomes apagados e uma visível dominação da natureza
selvagem que tomava posse do lugar como única representação da vida.
A simbologia presente nas sepulturas pela arte tumular evidencia um espaço
que fora moldado por uma estética cristã, mas que o tempo e o esquecimento o
macularam e o transformaram em uma estética nefasta, desprovida de adornos que
remetessem a um significado religioso, sagrado. O que predominava, ao contrário, era
uma atmosfera maléfica, profana e degradante: “As pontes com o outro mundo foram
cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.” (TELLES, 2009, p. 141).
Semelhante as histórias góticas dos séculos XVI ao XVIII, nesse conto lygiano
predomina o que Ariès (2012, p. 140) analisou e caracterizou por “erotismo macabro”.
O paralelo entre o corpo-espaço de Raquel e a heterotopia do cemitério se constitui
como um ritual de prazer mórbido, uma aproximação “entre Tânatos e Eros”. Para
Ricardo a ambivalência entre a pulsão de morte e o erotismo se concretiza por meio
de um sentimento de possessividade para com a sua antiga namorada. Na
consciência dele, Raquel não poderia pertencer a outro homem e em cada movimento
seu é o corpo-espaço daquela mulher que ele deseja possuir: “Raquel, minha querida,
129

não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu
apartamento. [...] disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as
pontas dos dedos” (TELLES, 2009, p. 136-137).
Além da beleza admirável, fascinava ao homem – assim como em “Além do
Quadro” de Maria Judite de Carvalho – os olhos daquela mulher. Em ambas as
narrativas os sujeitos do sexo masculino são atraídos pelo formato dos olhos e pela
expressão do olhar das personagens femininas. Como Damiana, Raquel tinha os
olhos oblíquos que por sua vez também eram similares aos da suposta prima de
Ricardo, namoradinha de infância que, no seu enredo macabro, estava sepultada
naquele contraespaço: “Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente
bonita, mas tinha uns olhos... [...] Penso agora que toda a beleza dela residia apenas
nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus” (TELLES, 2009, p. 140). Ao fazer
alusões aos olhos de Raquel e da prima morta, estabelecendo uma intertextualidade
com a Capitu machadiana, Lygia Fagundes Telles se utiliza da ironia ao retomar os
arquétipos da representação do feminino bastante difundidos na literatura de autoria
masculina, isto é, a mulher angelical versus a mulher demoníaca: para Ricardo, a
antiga namorada era de um lado pura sedução, a mulher sagaz e infiel, que
conquistava e dominava sua presa sobretudo pelo olhar, por outro lado, ele enfatizava
a expressão “anjo” para exprimir certa delicadeza em seu discurso manipulador,
reforçando a fragilidade e inocência de Raquel por deixar-se envolver na situação que
ele arquitetara.
Utilizando o amor, que dizia sentir por Raquel, como justificativa para a
evocação do mal por meio de uma vingança, Ricardo se mostra perverso ao colocar
sua paixão como pretexto para causar medo e dor ao ser amado: “Como se o Mal
fosse o meio mais forte de expor a paixão” (BATAILLE, 1989, p. 14). É a eliminação
do corpo-espaço da antiga amante que ele almeja, para isso, planeja tudo em
detalhes: primeiro com a insistência por um reencontro, segundo pela escolha do
contraespaço onde poderia concretizar seus planos sem testemunhas, por fim, a farsa
narrada seduz a jovem mulher, que tomada pela curiosidade acompanha o homem
até o mausoléu no qual encontravam-se seus mortos inventados.

– Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se


vê o pôr do sol. Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos
dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os
domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha
onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com
130

ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora
as duas estão mortas (TELLES, 2009, p. 139).

Ricardo incorpora a sua fantasia e a repassa como verdade para a ex-


namorada, no entanto, percebe-se que a estória contada sobre Maria Emília, a prima
que compartilhava com ele os sonhos e os desejos de um bom futuro em tom de
primeiro amor e de paixão juvenil, é intercalada com a verdadeira história dele com
Raquel. A comparação entre as duas mulheres se dá além dos aspectos físicos, o
destino de Raquel não é diferente do de Maria Emília, isto é, amar quem lhe causava
mal e ter a vida precocemente interrompida como punição por almejar e atrever-se a
provar a liberdade de escolha.
Incomodava ao rapaz que Raquel tivesse autonomia para optar por uma vida
de luxo e dedicada atenção ao homem que escolheu para si. Ela havia mudado, não
era mais a jovem impetuosa que Ricardo namorara, agora era uma mulher sofisticada
e decidida a desfrutar a vida de maneira sensata. No entanto, em uma última
imprudência, ao ceder às investidas de Ricardo, acreditando que poderia livrar-se do
passado a partir daquele encontro, Raquel – cordial e ingênua – é levada ao seu
cárcere: “Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às
vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos
medalhões de retratos esmaltados” (TELLES, 2009, p. 138).
Diante do mausoléu que abrigava as gavetas funerárias dos membros da
suposta família de Ricardo mais uma vez o sagrado e o profano se confrontam: no
exterior, uma trepadeira selvagem domina a capelinha em um movimento “furioso”
que se assemelha a um abraço de poder e soberania. De acordo com Silva (2009, p.
91), a imagem simbólica proporcionada pela invasão da planta selvagem à capela
remete a uma “evidente conotação erótica”, em que os cipós e folhas da trepadeira,
tomados por uma imoderada pulsão de vida, fazem do monumento seu prisioneiro em
um frenético movimento de dominação. Assim, prestes a tornar-se um corpo-espaço
cativo, similar àquela capelinha, Raquel sente-se ansiosa e é acometida por um temor
como se pressentisse o advir do mal, intensificado pelo augúrio de uma ave: “Um
pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu” (TELLES, 2009, p. 140).
A profanação do espaço do mausoléu também acontece em seu interior, tudo
naquele lugar parecia caótico e sinistro. A pouca luz que entrava na capela deixava à
mostra um ambiente nebuloso por causa da ação do tempo e desgastado pela
131

umidade da chuva, até o altar fora maculado pelo descuido e pela invasão da fúria da
natureza que governava aquela heterotopia como senhora absoluta: “Entre os braços
da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como
farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo” (TELLES,
2009, p. 140). Toda a descrição do espaço estabelece uma tensão narrativa
compelindo a personagem feminina e o próprio leitor a descobrirem o
desenvolvimento da ação no momento da enunciação, sendo ambos dominados pela
curiosidade de desvendar o que existe além de todo o desleixo ao qual aquele lugar
fora submetido e o que está por trás do convite de Ricardo para um encontro em um
sítio tão imprevisível. Por esse ângulo, a heterotopia “une-se à personagem para
elaborar a perspectiva e o sentido do mistério que, na obra de Lygia, determinam uma
percepção intuitiva da realidade” (MATSUOKA, 2018, p. 2).
O enigma que cerca cada expressão, cada olhar de Ricardo faz parte de uma
performance para a concretização de um crime premeditado. Silva (2009, p. 84)
chama atenção para um detalhe que está além das descrições e ações do texto, isto
é, o fato de que Ricardo “inicia o processo de dissimulação bem antes do ponto em
que a narrativa principia”. Significando que fora dos limites textuais, no imaginário do
leitor, a narrativa possibilita a ideia de que o antagonista do conto tenha realizado
antes todo o percurso que fizera com Raquel até a catacumba e pensado em cada
artifício para atraí-la ao seu destino de morte, com todas as probabilidades de erros
e acertos: “escolha de um lugar ermo, descoberta do jazigo ideal, troca de fechadura
no portão da catacumba, garantia de ausência de testemunhas, encontro de um
pretexto para forçar uma entrevista com a vítima e atraí-la para a cilada” (SILVA, 2009,
p. 84). Tudo isso é possível inferir pelos vestígios deixados pelo narrador, que detalha
os elementos do espaço enfatizando os pontos que carecem da atenção da vítima,
assim como, do leitor. Ao ser convidada para descer ao subsolo da capela com a
evasiva de que a foto de Maria Emília exposta no túmulo provava a semelhança dos
olhos dela com os de Raquel, esta cai na armadilha traçada e quando, finalmente,
descobre a farsa não há mais escapatória.

— Mas está tão desbotado, mal se vê que é uma moça… — Antes da


chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz
alta, lentamente: — Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil e
oitocentos e falecida… — Deixou cair o palito e ficou um instante
imóvel. — Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de
cem anos! Seu menti… (TELLES, 2009, p. 142).
132

A violência projetada contra o corpo-espaço de Raquel não é executada por


meio da força física e da agressividade. Ricardo consuma o seu crime sinistro
utilizando-se da relação de poder que ainda detinha sobre sua ex-amante e consegue
maltratá-la através da linguagem, dos símbolos e do aprisionamento efetivo do seu
corpo naquele contraespaço abandonado e dominado pelo horror fúnebre. Ao
perceber-se cativa, Raquel pensa ser uma brincadeira perversa, contudo aquele
homem terno e apaixonado ao qual ela pôs sua confiança mostra-se, na verdade, um
ser traiçoeiro e ignóbil, alguém que consegue praticar a maldade de forma mansa e
sem remorso: “— Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos! — exigiu,
examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas
por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se” (TELLES, 2009, p. 243). Perante o
desmascaramento da verdade, a falta de reação de Raquel é o seu momento de
epifania ao constatar que todo aquele teatro montado pelo antigo namorado era na
verdade uma vingança premeditada e que ali ela esperaria a sua morte, sendo
sepultada viva.
Apesar do tom de terror presente em todo o espaço do conto, nessa narrativa
lygiana não existem elementos sobrenaturais, o mal não é algo que surge de um
movimento ou ser de outro mundo, espiritual ou fantástico. Todo o enredo macabro é
construído pela presença do mal em Ricardo, que é sádico, impiedoso, vingativo e
assassino. Sobre isso, no ensaio “A literatura e mal”, Georges Bataille (1989, p. 14)
explica que o sádico atua de modo a “ter prazer com a destruição contemplada, a
destruição mais amarga sendo a morte do ser humano. É o sadismo que é o Mal: [...]
o Mal puro, já que o assassino, além do proveito obtido, tem prazer em ter ferido”. É
essa satisfação com a crueldade que é ressaltada pelo narrador nas cenas finais do
conto, quando Ricardo, tranquilamente, retorna à cidade certificando-se de que
nenhum ouvido humano seria capaz de escutar os gritos de socorro e agonia da sua
vítima.

Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram,


semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos
foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das
profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele
lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido
humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi
descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda (TELLES,
2009, p. 143).
133

Nesse conto o espaço heterotópico é fundamental para a construção da


verossimilhança do enredo porque ao desenvolver a narrativa de um crime justificado
por uma concepção falocêntrica que normaliza a violência simbólica e coisifica o
sujeito feminino, Lygia faz a abordagem de um tema universal que é referência na
história das mulheres, sendo pauta constante na literatura de autoria feminina como
também na luta feminista. O corpo-espaço de Raquel é a representação do corpo-
espaço de incontáveis mulheres que são vítimas de homens que fazem parte do seu
círculo afetivo e/ou familiar e se julgam senhores dos corpos e destinos femininos.
Portanto, com o desvelamento da face do algoz, a autora mostra simbolicamente a
face do mal, muitas vezes, camuflada em um argumento de amor ou de uma falsa
promessa.
Em “Venha Ver o Pôr do Sol”, pelo tema atemporal, pela perspicácia para
construir um enredo de suspense tratando de um assunto tão profundo como a
violência contra a mulher e o feminicídio, Lygia ao usar um espaço incomum como a
heterotopia do cemitério “acrescenta à sua capacidade demiúrgica todas as luzes e
astúcias do discurso, aparentemente espontâneo, tão pronto a despertar e modular
emoções como a gerir as gamas do sorriso esboçado ou da ironia que queima”
(RODRIGUES, 2009, p. 200). Assim, com suas “garras de veludo”, Lygia Fagundes
Telles consegue iludir pela dissimulação, conquistando a confiança do leitor até lançar
o golpe certeiro que o instiga a querer mais do texto, a buscar respostas conduzido
“pela curiosidade de quem não se satisfaz com as aparências, porque as sabem
enganosas” (DIMAS, 2009, p. 186).

4.3 Entre espelhos e jardim: culpa e angústia em “As Palavras Poupadas” e


“Noturno Amarelo”

As coisas que não foram ditas deixam um desagradável


sentimento de frustração.

Maria Judite de Carvalho

Ao escrever sobre corpo e utopia, Foucault (2013, p. 15) afirma que o espelho
é um espaço que expõe o ser à imagem de si e o faz perceber que o “corpo não é
pura e simples utopia”. O espelho representa uma quebra de expectativa e desordem
134

quando permite ao sujeito constatar que ele existe em uma estrutura material, que o
seu corpo “tem uma forma, que esta forma tem um contorno, que no contorno há uma
espessura, um peso; em suma, que o corpo ocupa um lugar”. No entanto, o espelho
ocupa uma posição híbrida dentro da teoria foucaultiana, visto que de um lado ele é
um lugar abstrato onde não se pode penetrar fisicamente, isto é, uma utopia ou “um
espaço irreal que se abre virtualmente atrás da superfície” (FOUCAULT, 2001, p. 415).
Por outro lado, o espelho é simultaneamente uma heterotopia, um espaço outro que
é tangível, concreto “e que tem, no lugar que ocupo, uma espécie de efeito retroativo;
é a partir do espelho que me descubro ausente no lugar em que estou porque eu me
vejo lá longe” (FOUCAULT, 2001, p. 415). O espelho, então, consegue representar o
espaço que não existe, o não-lugar, ao mesmo tempo em que está presente como
outro-lugar, como heterotopia “no sentido em que ele torna esse lugar que ocupo, no
momento em que me olho no espelho, ao mesmo tempo absolutamente real”
(FOUCAULT, 2001, p. 415).
Segundo Daniel Defert (2013), heterotopias como o cemitério e o espelho
fazem parte de categorias específicas de unidades espaço-temporais que se
assemelham por serem espaços nos quais sincronicamente se está e não está: “o
espelho onde não estou reflete o contexto onde estou, o cemitério é planejado como
a cidade, há reverberação dos espaços, uns nos outros, e, contudo, descontinuidades
e rupturas” (DEFERT, 2013, p. 37). Essas irregularidades que formam os espaços-
tempos dessas heterotopias tão complexas são refrações da ordem na desordem e
vice-versa, são “representações polifônicas da vida, da morte, do amor, de Éros e
Tánatos” (DEFERT, 2013, p. 38). Também, a heterotopia do espelho é a
representação simbólica do encontro do sujeito consigo mesmo, dos olhos que
contemplam a imagem de si e questionam se aquele reflexo é autêntico ou distorcido,
que busca no universo virtual e aparente a compreensão do que se vê.
Nos contos “As Palavras Poupadas”, de Maria Judite de Carvalho, e “Noturno
Amarelo”, de Lygia Fagundes Telles, a heterotopia do espelho salienta o que não está
aparente na exterioridade dos corpos-espaços das protagonistas e
consequentemente media a relação entre elas e as outras personagens conforme vai
refletindo cenas de equívocos e verdades de um tempo que é pretérito, mas que
também é presente, pois narrados de forma bilateral, fundem-se. Graça e Laura,
protagonistas dessas narrativas, apesar de constituírem cada uma o seu perfil
particular e de suas trajetórias divergirem em determinados aspectos, apresentam
135

muitas afinidades. Ambas são arrebatadas por lembranças que as impossibilitam de


avançar, de libertarem-se das angústias causadas pelo remorso: um peso ao qual são
compelidas a habituar-se dentro de suas relações familiares em uma contínua busca
por reconciliação e perdão.
Em “As Palavras Poupadas”, o enredo é construído de modo a evidenciar o
retorno de Graça ao ponto principal do seu conflito interior, isto é, a culpa. A
personagem começa a narrativa dentro de um táxi em regresso ao lugar da sua
infância, à casa onde cresceu e pertencera ao seu pai, a qual fora palco de decepções,
desamores, frustrações e enganos. Com o anseio de recomeçar, de reconstruir-se
nesse espaço que agora pertencia somente a si, Graça ilude-se com a momentânea
paz da estrada e atenua seu desconforto por meio de um pensamento que é jogado
para o leitor como embuste para o que será desvelado no transcorrer da trama:
“Nessas alturas mal sente, mal vê, pensa ao de leve, como é doce e consolador.
Quase nunca se arrepende do que fez, nem lamenta aquilo que perdeu. Quase nunca
diz, de si para consigo, que se pudesse voltar atrás...” (CARVALHO, 2018, p. 123). É
a “voz monocórdica” de Claude, o falecido marido de Graça, que do passado intercala
à realidade presente ao articular que “ninguém pode voltar atrás”, afinal qual seria a
necessidade de “olhar para o que passou se tudo está perdido, irrecuperável, se nada
se pode consertar?” (CARVALHO, 2018, p. 123).
Todavia, essa aparente calmaria se desfaz quando Graça chega a sua casa
e percebe de imediato que o “se pudesse voltar atrás” é a grande questão e condição
do seu martírio, visto que a personagem se prende ao passado no instante exato em
que adentra ao espaço familiar. Ali, onde tudo permanece igual, até mesmo vazio de
afeto, Graça opta por manter móveis e objetos como eram anteriormente, para isso,
repõe ao cenário um artefato que estava ausente na decoração da casa no tempo
presente: um aquário. De acordo com Joana M. de Almeida (2015), nesse conto, o
aquário, bastante simbólico para o desenvolvimento de toda a trama, “funciona como
ponte entre tempo e entre espaços. Liga, assim, os vários passados ao presente e as
casas de antes à de agora” (ALMEIDA, 2015, p. 32). A superfície cristalina do aquário
e o solitário movimento do peixe, preso naquele espaço tão minúsculo, atuam como
uma heterotopia do espelho, pois reflete em Graça os antagonismos da sua existência
ao contemplar no objeto a reverberação do seu contexto.
136

O peixe põe-se a dar voltas no seu pequeno planeta translúcido.


«Pode pôr-lhe um pouco de areia no fundo e algumas pedrinhas de
cor», disse o empregado que a atendeu. Como se ela não soubesse...
Mas por enquanto a casa está vazia e o peixe tem o espaço todo seu
e dança e para depois a olhar para fora, surpreendido, agitando os
seus grossos lábios redondos. Tem mesmo que lhe arranjar qualquer
coisa, aquela ausência de cenário é triste de mais, quase
constrangedora. Faz frio (CARVALHO, 2018, p. 126).

A falta de um cenário próprio e o tom ermo do aquário, assim como da casa


de Graça, evidencia toda a vulnerabilidade da protagonista para o enfrentamento dos
fantasmas que povoam todos os seus ontens. Não é de forma límpida que o passado
vem à tona e interpõe-se no presente da personagem, assim como as águas turvas
de um outro aquário, de um tempo menos distante, Graça recorda de quando em um
restaurante revela sobre a morte do pai ao seu marido e recebe como resposta o
silêncio. Claude que conhecia as dores da mulher, compreende que assim como o
tumulto causado por uma briga que resulta na destruição do aquário daquele lugar em
que estavam e na libertação dos peixes, para logo em seguida perderem a liberdade
recém adquirida – visto que sem a água do aquário estavam condenados à morte –,
Graça não provaria a leveza da vida porque permanecia em si a angústia ocasionada,
sobretudo, pelo distanciamento e rancor cultivados pelas contendas e desarmonias
com o pai: “«O que me custa mais é ele não me ter perdoado», dissera” (CARVALHO,
2018, p. 135).
Tomada pela culpa, a protagonista se esconde em seu aquário particular: em
seu corpo-espaço, Graça sente que cometeu um delito contra a sua família e vive uma
guerra interior que põe em desordem a sua personalidade. Assim como os fragmentos
do aquário quebrado, a realidade da personagem é moldada a partir de estilhaços do
passado que persistem em manter imprecisas as imagens do presente e do futuro:
“Ao seu lado havia um grande espelho que de vez em quando lhe oferecia fugazes
imagens turvas, esverdeadas e aquáticas de si própria” (CARVALHO, 2018, p. 133).
Lá, onde não estava concretamente, Graça vê o reflexo de si naquela heterotopia da
qual não podia desviar, incomodada, ela sabe que aquele espaço a obriga a examinar
a falta de nitidez da sua imagem e a buscar a verdade sobre si mesma.

Na culpa, sentimos que não podemos ser nós mesmos. Não


encontramos lugar, experimentamos algo como rejeição ou iminência
de morte, uma sensação de falta de naturalidade, uma atitude
contraída para com as demais pessoas ou mesmo para o ambiente
137

que nos cerca. Sentimo-nos como estranhos, como se algo se


interpusesse entre a natureza e nós – como se dela tivéssemos sido
alijados ou abortados. O mundo não nos aninha. É algo como uma
vergonha não localizada, gratuita, que nos deixa desconfortáveis.
Temos ânsia de fazer algo para remediar, mas não sabemos o quê
(VAZ DE CARVALHO, 1997, p. 46).

Existia em Graça um intenso sentimento de não pertencimento aos lugares


em que se encontrava, como uma inquietação por não se encaixar em espaço algum,
por não se satisfazer com nada que lhe era proporcionado. Acentuava-se sobre ela
um hiato proveniente da falta de certeza sobre suas emoções e seus desejos. Assim
como os espaços em branco, que indicam as mudanças espaço-temporais do conto,
causam no leitor a sensação de inconstância e de estranheza ante cada novo cenário,
as lembranças evidenciam o não-lugar do corpo-espaço culpado de Graça.
O constante desconforto que enclausura a mulher do presente tem origem no
não dito pela adolescente de antigamente, no emaranhado de silêncios, lacunas e
suposições lançadas por Graça, sem garantias de certezas para o leitor. Isso porque
o narrador semeia os fatos a partir dos sentidos, que aguçam a memória da
protagonista mesmo esta se autodeclarando turva. Por meio de aromas de perfumes
derramados no passado ou de comidas queimadas no presente, da descrição do tom
das vozes de personagens, do olhar que perpassa de uma pintura ao espelho, a
compreensão da narrativa firma-se nos detalhes do jogo especular, que provoca e
esmiuça os traços do corpo refletido: “Absorvido pelos vários sentidos, o espaço de
antes e de agora acaba por traduzir o cansaço, a ansiedade, complementando a
personagem atual” (CANIATO, 1996, p. 40).
A heterotopia do espelho descaracterizado e desgastado pelo tempo – “já
despolido e quebrado num dos cantos” (CARVALHO, 2018, p. 143) –, da penteadeira
do quarto de “sempre” de Graça, direciona o fio narrativo que vai se desdobrando
também de forma opaca como aquele objeto. O espelho esmiuça os traços dos
episódios testemunhados naquele lugar de refúgio da protagonista e assim o leitor
acompanha a descrição do mundo exterior aquelas quatro paredes através do ponto
de vista de Graça.
Da adolescente de catorze anos, que dissimulava sorrisos e fingia estar
doente para evitar o contato com o outro, tem-se o primeiro espelhamento de uma
rotina familiar acompanhada à distância, forjada por uma percepção oriunda dos sons
138

que vinham de fora. Assim, Graça construía sua realidade imaginando e fazendo
suposições pelo que ouvia e julgava ser real.

Lhe chegavam os barulhos da casa, ruídos familiares. [...] As criadas


a conversar na cozinha quando mais ninguém estava em casa. A água
a correr para o tanque, na marquise. A música dos copos à hora de
pôr a mesa, já diferente à hora de a levantar. O som aguçado da
campainha da porta. Aquele disco – como se chamava? – que Leda
punha do pick-up, de tarde, quando o pai não estava, agora muito
baixo para não a incomodar também a ela (CARVALHO, 2018, p. 140).

Do quarto, seu mundo restrito, a protagonista dimensionava o movimento


externo da rua pela superfície diáfana dos vidros da janela, contudo, dentro da sua
casa ela não enxergava com transparência, só conseguia deduzir pelos barulhos e
sentir, sobretudo, a fragrância do perfume da madrasta, um cheiro característico que
delineava a forma daquela mulher por quem nutria grande aversão. Análogo aos
aquários citados em todo o conto, o quarto de Graça é, segundo Caniato (1996, p.
38), “a síntese de toda a emoção da personagem”. Assim, o “aquário-quarto” – como
o denominou Caniato (1996) – é o espaço de acolhimento e ao mesmo tempo solidão
da protagonista, ali tudo se traduz em miniatura, tudo é visto pelo olhar de um
espectador indiferente, porque em sua reclusão vê apenas a opacidade do que lhe é
aparente.
Acompanhando o ponto de vista de Graça, a voz narrativa percorre os
pensamentos da personagem transitando de um espaço ao outro e entre as
dimensões do tempo, escolhendo-a como a consciência dominante para a descrição
dos eventos. Segundo Caniato (1996, p. 71), ao fazer “sua opção por Graça como
cerne do seu relato, o narrador ampara-se nela para perscrutar do seu interior aquilo
que convém à narrativa e prosseguir na sua história”. Deste modo, o primeiro enfoque
do espelhamento exterior à protagonista reflete a mesma inexatidão que há em sua
imagem: “Estava parada em frente ao espelho e olhara-se demoradamente,
ansiosamente, como que à espera de qualquer coisa que ainda não nascera, não
estava ali, não existia” (CARVALHO, 2018, p. 130). O narrador, então, reproduz as
impressões da personagem nesse contexto dominado por ausências de informações,
porque faltava-lhe o olhar do outro.
O núcleo familiar retratado nessa fase do conto evidencia sujeitos ficcionais
ensimesmados, voltados para suas próprias individualidades, mostrando que as
139

poucas conversas e interações entre eles representam o estopim do insulamento e da


ausência de afetividade. Graça a “criança esquisita”, segundo o primo Vasco, que
perdera a mãe muito cedo e que tinha como pai um homem de comportamento rude
e autoritário, com seus extensos discursos “pausados e definitivos”, sempre
descomedido em preconceitos, era uma adolescente que enxergava no silêncio e
bondade de Leda, sua madrasta, o perfil de uma inimiga, de uma mulher que
sutilmente tentava ocupar um espaço em sua vida, todavia sem sucesso. Enquanto
isso, Leda raramente tem voz na narrativa, seu perfil é traçado pelo narrador e pela
enteada, ao leitor fica a certeza de ser uma personagem silente, que tenta trazer
harmonia à casa, entretanto é sempre ocultada pela presença intransigente do marido
e pelas atitudes inóspitas de Graça.

[...] Depois ia-se embora sempre em bico de pés (tinha o segredo dos
gestos silenciosos) e Graça deixava de sentir o peso insuportável da
sua presença. Os cuidados da madrasta eram uma ofensa, gostaria
de ser maltratada, pelo menos esquecida, e poder detestá-la à
vontade, sem mal-estar nem remorso. Mas não, nem isso lhe era dado
(CARVALHO, 2018, p. 138).

A representação da figura feminina da madrasta, tão explorada nos antigos


contos de fadas e em outras histórias fantásticas, aqui é desconstruída do modelo
presente em narrativas tradicionais como “Branca de Neve” e “Cinderela”, por
exemplo. Maria Judite de Carvalho desenvolve uma personagem completamente
inversa àquelas que predominam no imaginário popular, isto é, da madrasta má,
vingativa, que odeia os filhos da primeira esposa do marido e faz de tudo para
transformar a vida dessas crianças em um eterno sofrimento. Em “As Palavras
Poupadas” a madrasta de Graça está longe de ser uma figura cruel e fria, ao contrário,
sua docilidade, gentileza e paciência para lidar com todos da família são
características de uma mulher que se esforça para agradar ao outro, renunciando à
sua própria felicidade.
Na relação entre madrasta e enteada, é Graça quem assume o caráter de
vilania, é quem possui o desejo de vingança e de livrar-se daquela mulher por quem
guardava bastante rancor. Se em contos como “Branca de Neve”, o espelho é um
objeto que se torna cúmplice da madrasta, sendo esta, conforme explica Gonçalves
(p. 5), representada “como uma mulher que compete com outra mulher, geralmente,
mais jovem, por sentir inveja”; em “As Palavras Poupadas” é Graça quem busca no
140

espelho um traço que a aproxime de Leda, em uma ambivalência na qual sente


aversão pela madrasta ao mesmo tempo em que a inveja. Isso acontece
especialmente porque a Graça adolescente é apaixonada pelo primo Vasco, mas este
só a vê como uma criança, dedicando sua cortesia e galanteios à madrasta da
protagonista. É para Leda que Vasco traz de suas viagens os presentes mais
simbólicos, como o perfume que é intencionalmente quebrado pela menina e cujo
aroma ela o conservará para sempre em sua memória.
São três os momentos em que a protagonista busca na heterotopia do espelho
respostas para a definição do seu eu e em todas essas etapas a presença da
madrasta é latente. No primeiro, em sua fase juvenil, ao ouvir de Vasco que ela era
ainda uma “criança” com um comportamento muito diferente das outras meninas da
sua idade, a desilusão do primeiro amor a faz isolar-se ainda mais do mundo exterior:
“Olhava o espelho fatigada daquele rosto ainda incompleto – pois se era um rosto de
catorze anos! –, farta dele. Uma criança esquisita. «É uma criança sem mãe, Vasco.»”
(CARVALHO, 2018, p. 131). A decepção de Graça ao perceber que o primo não a via
como uma mulher se transforma em raiva e desejo de vingança quando ela presencia
uma cena suspeita entre Leda e Vasco: “uma estreita fita de verdade surgira ante os
seus olhos apesar de tudo pasmados. Uma fita vertical, luminosa, com duas figuras
pintadas, hirtas, coladas uma à outra e beijando-se” (CARVALHO, 2018, p. 146).
Nesse primeiro espelhamento dos fatos, pelos olhos da adolescente Graça, o
leitor é levado a acreditar em uma traição ao seu pai, da madrasta com o belo e vívido
jovem Vasco. No entanto, a protagonista, que presencia a cena entre os dois supostos
amantes depois de passar vários dias isolada e sem muita noção da realidade, tem a
rotina dos momentos, que precedem a descoberta, descrita pelo narrador de modo a
incitar dubiedade no que é visto naquele dia e posteriormente reafirmado como
certeza pela personagem causando o grande conflito familiar, como a sua saída de
casa, o fim do casamento entre o pai e Leda, e, o desaparecimento do primo: “Vasco.
Onde estará com o seu perfil de medalha?” (CARVALHO, 2018, p. 172).
No tempo presente a narrativa desdobra-se para um segundo espelhamento
que irá trazer à história a percepção do outro, de um olhar de fora da família de Graça
sobre o que aconteceu no passado, evidenciando demasiadamente o remorso e a
profunda angústia da protagonista. A inesperada visita de Clotilde traz à tona uma
possível inverdade no discernimento de Graça sobre o que de fato foi visto entre Leda
e Vasco. Por meio da presença inconveniente de “Clotilde-minha-querida” a
141

protagonista toma consciência do mal que causara e com “seus óculos de ver ao
longe” se questiona sobre suas escolhas e principalmente o fato de ter confiado àquela
mulher de caráter duvidoso um segredo que guardou consigo por alguns anos.

Agora Graça ouve outra vez as suas próprias palavras, as que dissera
– há quantos anos? – no living-room de Clotilde-minha-querida e que
lhe voltam, em ricochete, a soar falso como Judas. Tanto as pensara,
tantos as modelara... era como se tivesse sonhado e julgado o sonho
verdadeiro – acontece a toda gente – e o fosse contar a alguém. Ou
como se acabasse de levantar um falso testemunho pelo qual podia
vir a ser condenada (CARVALHO, 2018, p. 150).

Os questionamentos de Clotilde proporcionam à trama uma segunda


hipótese, isto é, a possibilidade de Graça ter cometido uma infâmia, uma vez que em
diversas passagens a protagonista projeta na madrasta os seus sentimentos
chegando a confundir-se sobre o que lhe pertencia e o que pertencia a Leda. Seja na
angústia por saber da partida de Vasco e da falta de correspondências deste, ou na
aquisição do aquário, com um único peixe vermelho, semelhantes ao que pertencera
a madrasta e que era situado no mesmo lugar do aquário de agora, Graça procurava
o reflexo de si em Leda sendo, no entanto, um esforço frustrado. Assim, mais uma
vez, buscando na heterotopia do espelho um caminho de libertação para o seu corpo-
espaço culpado, Graça se dá conta que o rancor projetado para Leda era na verdade
um sentimento que criara contra si mesma.

Passa em frente do espelho da coiffeuse e vê, mesmo sem a olhar, a


sua sombra de perfil. Detesta esse perfil que não conhece, que nunca
viu senão dificilmente, com um espelho na mão, com outro ao lado, e
que não lhe pertence, que é dos outros. Mesmo sozinha se sente
constrangida com aquela imagem momentânea que flutua e logo se
esvai, deixando vazio o cenário e que é afinal a sua (CARVALHO,
2018, p. 169).

O eu vazio e solitário da protagonista, que introjetara no outro as suas aflições,


percebe a si mesmo como causador dos seus próprios conflitos e sentindo uma forte
necessidade de autopunição encobre-se de culpa. E não existe remédio para a culpa,
ela faz parte do ser de Graça e se manifesta pela amargura, pelo sofrimento individual,
tornando-se um mal que é indivisível do seu existir. Por tudo isso, a protagonista vê
na fuga uma solução imediata para a sua agonia: prestes a encontrar-se com a
142

madrasta e de ter um momento de esclarecimento do passado, Graça é vencida pela


covardia deixando as imprecisões, os hiatos da narrativa sem respostas.
Buscando-se pela última vez no espelho do seu quarto, Graça questiona-se
sobre a visita de Leda, sente medo de, pela primeira vez, ser confrontada pela maior
vítima da sua vingança. Não sabe o que esperar da madrasta, se a antiga doçura ou
uma outra mulher, agora amarga por causa do abandono. Seria possível para a
protagonista a retratação e o perdão depois de ter morto o pai, de não saber o
paradeiro de Vasco e de nunca ter conversado com a madrasta sobre seus
sentimentos? Ora, uma constante nas personagens de Maria Judite de Carvalho é
que elas não enfrentam seus problemas, ao contrário, buscam o caminho mais fácil
para se esquivarem do confronto com o outro, mesmo que isso implique na
permanência das suas angústias. Assim, as personagens juditianas são conscientes
das suas frustrações e por isso buscam na evasão do espaço em que se encontram
a solução do problema que as atormentam. Ao fugirem das situações opressoras,
esses sujeitos ficcionais se acomodam ao fracasso, entregando-se ao conformismo.

[...] tudo ficará irremediavelmente igual e sem conserto. Porque o que


tinha de se estragar já se estragou. [...] dá um rápido olhar ao espelho
da coiffeuse que está partido num dos cantos. Vê o seu rosto mais
pálido do que habitualmente e os seus olhos cor de avelã estão quase
verdes, como sempre que a maré está a subir e arrasta consigo algas
e limos (CARVALHO, 2018, p. 181).

Conservando o passado nos objetos, que pertenceram a casa da infância na


casa de agora, principalmente a heterotopia especular tanto do espelho da coiffeuse
quanto do representado pelo aquário, Graça não permite o encerramento do seu ciclo
de penitência porque reconhece intimamente que fez algo vil. Deste modo, o enredo
de “As Palavras Poupadas” é desenvolvido de forma circular, terminando da mesma
maneira que inicia. A saída repentina da protagonista – para evitar o encontro com a
madrasta – leva-a novamente à estrada e, mais uma vez em um taxi, Graça esquiva-
se de enfrentar os fantasmas antigos, perdurando o mesmo impasse no seu hoje.
Assim, esse conto sugere “encontros-desencontros em que nada se modifica, em que
tudo se repete” (CANIATO, 1996, p. 86).
De maneira semelhante, o conto lygiano “Noturno Amarelo” traz um enredo
no qual o regresso ao passado, por meio das rememorações e de um jogo entre
espaço e tempo caóticos, é feito a partir do acesso da protagonista Laura aos
143

contraespaços da sua memória, representado, em particular, pelo jardim que abrigava


a casa da família e avultava profundamente a penumbra que envolvia aquele lugar. A
narrativa, que começa deixando em evidência o relacionamento fracassado de Laura
e Fernando através de um diálogo cheio de ironias e críticas entre o casal, é, assim
como “As Palavras Poupadas”, o espelhamento de um ser dominado pelo remorso e
pelo desejo do perdão que não chega a ser efetivamente conquistado.
A mesma angústia que persegue Graça por ter cometido um dano na sua
estrutura familiar, invade o íntimo de Laura por também reconhecer que foi a
responsável por trazer infortúnios à sua família. À noite, que representa o tempo
presente da trama, a protagonista e o namorado encontram-se parados em uma
estrada devido a um problema com o carro. No intervalo entre o conserto do automóvel
e o retorno ao trajeto inicial, Laura é seduzida pelo aroma exalado por damas-da-noite
e guiada pelo olfato em direção à mata: “Fui andando na direção daquele lado,
conduzida pelo perfume que ficou mais pesado enquanto eu ia ficando mais leve”
(TELLES, 2009b, p. 124). Ao afastar-se do fardo do presente representado pela
companhia de Fernando e aprofundar-se nas veredas do convite misterioso e atraente
da noite e da floresta, Laura se depara com um espaço que ela conhecia com
intimidade: “Tão familiar. Como a casa lá adiante, lá estava a casa alta e branca fora
do tempo, mas dentro do jardim” (TELLES, 2009b, p. 125).
O jardim, que segundo Foucault (2001, 2013), é o modelo mais antigo de
heterotopia por causa de todo o significado que ele desperta desde os primórdios da
humanidade, representa a “perfeição simbólica” por ser síntese de um espaço muito
maior e complexo como o universo. Lugar mágico onde se vivencia pela imaginação
um mundo de possibilidades, o jardim é o espelho que comporta o que há de mais
belo no cosmo: “é a menor parcela do mundo e é também a totalidade do mundo”
(FOUCAULT, 2001, p. 418). Podendo ainda representar uma alegoria do eu, o jardim
transporta o indivíduo pelas reminiscências como se vivenciasse um sonho; símbolo
do Paraíso espiritual “o jardim é fonte perpétua de comparações” (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 2012, p. 512).
Na literatura de Lygia Fagundes Telles a heterotopia do jardim é uma
paisagem que aparece com frequência; em contos como “Herbarium”, “A Sauna”, “A
Mão no Ombro”, “Anão de Jardim”, “O Encontro”, dentre outros, esse espaço,
carregado de simbolismo, é o lugar que motiva as personagens a passarem por
experiências que incitam o desnudamento dos seus segredos, das dores silenciadas
144

que foram encobertas pelo tempo e pelos desencontros. Assim, em “Noturno Amarelo”
o jardim representa o encontro da protagonista com os espectros do passado, com os
equívocos e omissões que martirizam o seu ser.
Protagonista do conto, Laura também é a voz que narra os acontecimentos
da trama. Em uma combinação entre memória e o fantástico, a narrativa se desdobra
como um espetáculo cênico no qual as ações se desenvolvem em quadros onde cada
cena é focada em uma personagem do grupo familiar que, de alguma maneira, fora
prejudicada por Laura. O espaço insólito do jardim com a grande casa da família no
centro é a ilha que isola a protagonista dos seus problemas do presente e a transporta
para um tempo utópico que está fora do tempo real, para uma “noite dentro da noite”
(TELLES, 2009b, p. 125) na qual o seu corpo-espaço culpado anseia por reparação.

Com naturalidade abri o portão e o som dos gonzos me saudou com


a antiga ranhetice de dentes doloridos sob a crosta da ferrugem, entra
logo, menina, entra! A folhagem completamente parada. Uma luz
acendeu no andar superior da casa. Outra janela acendeu em seguida.
No andar inferior, três das janelas projetaram sucessivamente seus
fachos amarelos até a varanda: nas colunas de tijolinhos vermelhos
as flores branquíssimas das trepadeiras pareciam feitas de material
fosforescente (TELLES, 2009b, p. 125).

Observa-se desse excerto que, de modo a reportar-se ao tempo de outrora, a


heterotopia ganha um tom de personificação ao reconhecer Laura: com afabilidade a
casa ilumina-se no momento em que a personagem adentra o jardim, como se sua
chegada fosse esperada com ansiedade e contentamento. É também com entusiasmo
que Ifigênia – empregada da casa e primeira personagem que compõe o núcleo
familiar da protagonista a aparecer no conto – a recebe formando o ato inicial da
encenação teatral, que se constrói no interior da casa, alusiva a redenção de Laura.
Em “Noturno Amarelo” os sentidos também são explorados pela autora para
ativar a memória da personagem principal, fazendo-a lembrar dos detalhes do seu
passado: “Abracei-a. Cheirava a bolo. — Bolo de fubá?” (TELLES, 2009b, p. 125). Assim
como o olfato a guiou para aquele espaço por meio do perfume das flores, as
reminiscências provenientes do aroma do bolo, tantas vezes feito por Ifigênia,
irrompem-se com as luzes incandescentes daquele lugar, expondo cada um dos
delitos de Laura mesmo esta se esquivando: “sem saber por que (na hora eu não
soube por que) evitei ficar muito exposta à luz da janela” ( TELLES, 2009b, p. 125).
Mesmo assim, a luz segue a protagonista focando em cada nova cena que se compõe
145

a sua frente, sempre guiada por Ifigênia que a todo instante vai realizando pequenos
gestos de cuidado e atenção como se Laura ainda fosse uma criança necessitada de
proteção. Contudo, os pormenores observados e feitos pela empregada são motivos
que fecham o primeiro ato de negligência da protagonista, revelando a sua falta com
aquela que tanto lhe deu carinho e dedicação, ao não cumprir o compromisso de
145eva-la para pagar uma promessa em Aparecida do Norte: “— Mas não foi por mal,
Ifigênia, é que fui adiando, adiando e acabei me esquecendo. Me perdoa?” ( TELLES,
2009b, p. 127).
O pedido de perdão interrompido e consequentemente não respondido pela
envelhecida e cansada empregada encerra o primeiro ato para logo em seguida
recomeçarem as novas cenas de acusações contra Laura, dessa vez exteriorizada
pela voz da irmã Ducha, personagem que entra na trama como delatora das maldades
da irmã mais velha.

Ducha compôs a pose de bailarina em repouso. Olhou para o teto.


— Ela também me prometeu uma coisa e não cumpriu. Era uma troca.
Eu daria o suéter amarelo e ela me daria o espelho grande, aquele
com o anjinho, eu precisava demais de um espelho pra ensaiar no
quarto e o que aconteceu? Minha irmãzinha ficou com o meu suéter,
sim senhora, amanhã mesmo trago o espelho, prometeu. Jacaré
trouxe? Continuo ensaiando (tapou os olhos fingindo chorar) num
espelho pequenino assim! (TELLES, 2009b, p. 127)

É interessante ressaltar neste conto o trabalho de Lygia Fagundes Telles


com o simbolismo dos gestos, dos objetos e das cores. Além das expressões
delicadas e atenciosas de Ifigênia, destacam-se ainda os movimentos e performances
de Ducha, que com seu corpo-espaço de bailarina está a cada cena representando
um número de dança no mesmo ritmo no qual o remorso do corpo-espaço de Laura
vai se alternando. A heterotopia do espelho, que está presente por toda a sala, entra
em sintonia com o fogo da lareira e o piano da avó que são personificados trazendo
movimento de vida aquele lugar: “A sala parecia palpitar sob os reflexos do fogo forte
da lareira, avermelhando os espelhos. O lustre” (TELLES, 2009b, p. 129). Os objetos
seguem o frenesi, o movimento dos gestos na mesma e constante busca por uma
refração verdadeira e nítida do âmago da protagonista e das relações afetivas que
foram (des)construídas naquele lugar.
A canção da avó, criada e executada por ela durante toda a representação do
reencontro familiar, não por acaso recebe o nome de “Noturno Amarelo” (TELLES,
146

2009b, p. 135), remetendo aos tons da cor que predomina por todo o enredo e que é
usada simbolicamente para destacar os pressupostos do grande dilema de Laura, da
razão maior da sua culpa. O amarelo, que segundo Chevalier & Gheerbrant (2012, p.
40), é a mais intensa, impetuosa e ardente das cores, simboliza ainda o presságio da
ruína, do confronto com a morte, além da estreita relação com a quebra da fidelidade
ao outro: “A porta dos traidores era pintada de amarelo a fim de atrair para ela a
atenção dos transeuntes, nos sécs. XVI e XVII” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2012,
p. 41). Também nas tradições do teatro chinês, a cor era utilizada na face dos atores
para assinalar que representavam ali os mais sórdidos atos de violência, assim como
a falsidade, a hipocrisia.
Toda essa discussão em torno da simbologia do amarelo é relevante para se
compreender que nessa narrativa a autora utiliza intencionalmente a cor como eixo
semântico para encadear o que é narrado por Laura com o que não é dito, com as
sugestões implícitas nos discursos ambíguos das demais personagens, nos silêncios.
Para além dos pequenos delitos cometidos pela protagonista como o descumprimento
de promessas feitas à Ifigênia e Ducha, ou mesmo a trapaça no jogo de xadrez com
o avô e a negligência com a avó, o que consome Laura é saber que por seus atos,
por sua traição, o ex-namorado Rodrigo tentara suicídio.
O tema da infidelidade, sugerido e posto em dúvida no conto “As Palavras
Poupadas”, aqui é abordado sem margens para equívocos. Laura, que confessa o seu
erro, descreve como tudo aconteceu na tentativa de conseguir a remissão da sua
culpa e ter de volta a confiança e amizade da prima Eduarda, mais uma vítima dos
seus impulsos.

— Mais grave do que roubar uma torre é roubar o noivo da prima —


sussurrou Eduarda, me puxando pela mão.
Fomos para perto da janela. Seus olhos eram roxos como o ponche.
Fechei os meus. Eduarda, eu queria tanto explicar isso e não tinha
coragem, mas agora escuta, ele disse que vocês tinham rompido, que
estava tudo acabado...
— Ele disse?
— Não tive culpa, Eduarda. Quando começamos o namoro eu estava
certa de que vocês dois já estavam afastados, que não se amavam
mais. Não me senti traindo ninguém!
— Não?... (TELLES, 2009b, p. 130)

As interrogações de Eduarda estimulam a autoconsciência da prima para que


esta duvide ainda mais de si mesma e do seu arrependimento, provocando em Laura
147

mais remorso pela leviandade praticada. No entanto, nesse ato do acerto de contas
entre mulheres, ao invés da fuga e da permanência da desarmonia entre elas por
causa do amor de um homem, Lygia Fagundes Telles, diferentemente de Maria Judite
de Carvalho, opta por desfazer os mal-entendidos e os laços de inimizade que ficaram
devido a traição da protagonista. Assim, Laura e Eduarda em uma comovente cena
de cumplicidade, se perdoam sem emitirem palavras, apenas expressando suas
verdades pelos olhares e pelo toque das mãos, simbolizando que entre elas o perdão
era genuíno.

Vi as estrelas brilhando próximas. Próximo também o perfume da noite


que me tomou e me devolveu íntegra. Verdadeira. Encarei Eduarda,
pela primeira vez realmente a encarei. Mas era preciso falar? Era
mesmo preciso? Ficamos nos olhando e meu pensamento era agora
um fluxo que passava das minhas mãos para as suas, estávamos de
mãos dadas [...].
Seus olhos, que estavam escuros, foram ficando transparentes. Agora
está tudo bem, Laura, estamos juntas de novo — parecia me dizer.
Estamos juntas para sempre — e apertou com força a minha mão
(TELLES, 2009b, p. 131).

As palavras foram poupadas por Lygia para fechar esse ciclo de culpa da
protagonista referente a transgressão que mais lhe pesava, mas a autora não
economizou na descrição dos gestos e olhares, uma vez que na insólita noite de
explicações e indulgências de Laura eles são os mais relevantes para reafirmar tanto
o perdão do outro como também o seu autoperdão. Todavia faltava-lhe ainda o
reencontro com o sujeito que sofreu o maior infortúnio e de quem lembrara desde o
primeiro momento que adentrou naquele espaço, faltava à Laura o último pedido de
desculpas, faltava-lhe ficar face a face com o ex-namorado.
Rodrigo é a personagem mais citada no conto: sempre esperando a sua
chegada, a família vai tecendo as suas características e construindo para o leitor o
perfil de um homem melancólico, frágil e de atitudes drásticas. O medo de vê-lo, mas
ao mesmo tempo o desejo da reconciliação, faz Laura perguntar insistentemente por
sua recuperação e seu estado de saúde atual, obtendo como resposta a informação
de que, sem ela, o rapaz se transformara numa pessoa mais feliz.

— Eu te neguei, Rodrigo. Te neguei e te traí e traí Eduarda. Mas queria


que soubesse o quanto amei vocês dois.
[...]
— Passei a noite me desculpando, só faltava você. Ó Deus! Como eu
precisava desse encontro — disse, tocando no seu peito.
148

Ele estremeceu. Então me lembrei, Mas ainda dói, Rodrigo? E


continuam as bandagens? Ele pegou um copo de ponche, me fez
beber: que eu não me impressionasse com isso, era mesmo um
sensível e nos sensíveis essa zona é sensível demais, demora a
cicatrização (TELLES, 2009b, p. 136).

Se para Eduarda o rancor da traição de Laura já tinha se abrandado, para


Rodrigo a cicatriz, usada como alegoria dos sentimentos feridos, ainda não tinha
sarado. Mesmo demonstrando não sentir mágoa pela ex-namorada, as
consequências do comportamento da protagonista ainda estavam ali, e sua
sensibilidade exacerbada impediam-no de esquecer por completo.
Neste sentido, a experiência sobrenatural que Laura vivencia é uma
oportunidade de retratar-se e restaurar os laços afetivos com aqueles que ela
verdadeiramente ama. Tendo o seu momento de entrega a cada uma das
personagens por quem tinha apreço, recebe de volta a absolvição e conquista
quietude para o seu ser angustiado. Um por um, os integrantes daquela cena familiar
vão deixando aquele espaço, até este ficar totalmente ermo e desafazer-se tomando
a sua forma real, hodierna.

Saí pela porta da frente e antes mesmo de dar a volta na casa já tinha
adivinhado que atrás da porta por onde todos tinham saído não havia
nada, apenas o campo.
Atravessei o jardim que não era mais jardim sem o portão. Sem o
perfume. A vereda (mais fechada ou era apenas impressão?) fora
desembocar na estrada: o carro continuava lá adiante com suas portas
abertas e seus dois faróis acesos. Fernando tapava o vasilhame
(TELLES, 2009b, p. 137).

O desfecho de “Noturno Amarelo”, assim como o de “As Palavras Poupadas”,


se faz na estrada. Contudo, no conto juditiano o corpo-espaço de Graça se mantém
reprimido pela culpa, pela angústia e medo de enfrentar seus problemas pessoais com
os sujeitos do seu passado, encontrando na rodovia a saída necessária para a
permanência de sua covardia. Por outro lado, no conto lygiano o corpo-espaço de
Laura regenera-se, passando de culpado e angustiado para exultante, uma vez que a
personagem mesmo temerosa enfrentou os seus fantasmas, abriu-se à verdade,
desafazendo-se de todos os enganos que a martirizava e a prendia ao passado.

Fiquei olhando a Via Láctea através do vidro. Fechei os olhos. Fechei


com força a argola de Eduarda que ainda trazia na mão. [...] E de
repente eu me senti sozinha e feliz assim em silêncio, olhando a
estrada (TELLES, 2009b, p. 138).
149

CONCLUSÃO

É escrevendo, de e para a mulher, e assumindo o desafio


do discurso governado pelo falo, que a mulher irá se
afirmar e ocupar outro lugar diferente daquele que lhe foi
reservado, em e pelo símbolo, ou seja, o silêncio. Que ela
saia do silêncio aprisionador. Que não se deixe enganar,
aceitando por domínio a margem ou o harém.

Hélène Cixous

Quando se pensou em analisar narrativas de Maria Judite de Carvalho em


comparação com as de Lygia Fagundes Telles, neste trabalho, o primeiro desafio foi
ter acesso ou adquirir as obras da escritora portuguesa e algum material teórico de
apoio sobre sua literatura. Ante a carência de publicações a respeito da obra juditiana,
especialmente em solo brasileiro, ampliou-se o interesse para entender como um
escritor se consolida dentro de um campo literário e como as instâncias
consagradoras são determinantes para fazê-lo conhecido dentro e fora do seu espaço
literário, no seu tempo de vida e atuação e nos tempos posteriores.
Não foi surpresa constatar que o espaço da autoria feminina nos campos
literários luso-brasileiro, mesmo na segunda metade do século XX – tempo no qual
surgiram as escritoras estudadas – com todos os discursos de libertação e lutas
feministas, ainda era insignificante se comparado com a literatura de autoria
masculina, dominante. Na busca por entender o porquê de tanta indiferença, tanto
desinteresse pelos textos femininos, viu-se na trajetória das mulheres escritoras em
um âmbito que não se restringe ao espaço local, mas estende-se ao universal, o fato
de que apenas por meio da luta da própria mulher, assumindo posições claras e
desafiadoras contra o discurso patriarcal vigente – conforme escreve Cixous (2017, p.
137) na epígrafe que abre essas considerações finais –, o seu espaço foi conquistado
e materializado.
As vozes que emergiram do silêncio castrador são as mesmas vozes que
instigaram e ainda provocam as escritoras de hoje na sua constante batalha pelo
direito a voz, pelo direito a literatura, pela autonomia para escrever com o ímpeto
declamado por Cixous (2017, p. 131):
150

Escreve, que ninguém te segure, que nada te detenha: nem homem,


nem máquina capitalista imbecil na qual as editoras são os dispositivos
astutos e servis dos imperativos de uma economia que funciona contra
nós e nas nossas costas; nem tu mesma.

A economia que move o mercado de bens simbólicos e dita os seus rumos é


guiada pelo mesmo princípio misógino que rege o campo de poder, o que traduzido
no interesse principal desta pesquisa significa que este é o motivo do real apagamento
da figura de Maria Judite do cenário literário português, por tanto tempo, e da luta
obstinada de Lygia Fagundes Telles por se fazer presente e reconhecida no campo
literário nacional. Assim, no espaço lusitano, é possível observar um discreto prestígio
literário e uma modesta solidez mercadológica da obra juditiana, não se estendendo
ao Brasil. Já no espaço brasileiro, a obra lygiana é aclamada e reconhecida pelas
instâncias consagradoras, pelo mercado e pelo público leitor, ganhando notoriedade
além das fronteiras do seu país.
Que “nem tu mesma” te detenha, como disse Cixous (2017, p. 131) à mulher
escritora, e que lembra o princípio seguido por Lygia para enfrentar os opositores da
sua vocação quando tentaram fazê-la esmorecer do seu destino. Porque para a
escritora a sua criação literária é a concretização da sua tomada de posição diante
das oscilações sociais, do confronto entre as gerações, da sua identificação com o
outro: “Nada fácil testemunhar este mundo com tudo o que tem de bom. De ruim. Um
mundo grande, que vai além da chácara do vigário. Diante de si mesmo, diante do
papel o escritor se sente grande porque sua tarefa é digna” (TELLES, 2010a, p. 150).
O mesmo olhar de testemunha de sua época pode ser visto em Maria Judite
de Carvalho, que como cronista profissional, trabalhando em diversos jornais
portugueses, estava sempre atenta à vida que rompia das ruas, ao dia a dia lisboeta,
sendo sua matéria o seu tempo, o seu conteúdo os pequenos retalhos da existência
cotidiana que se desdobrava ante sua visão observadora e atenta.

Subitamente fazemos parte de um todo e não podemos libertar-nos,


voltar atrás, ao tempo de coisas simples, naturais e tranquilas que
vivemos ou conhecemos de ouvir contar. É que não podemos fugir,
estamos para todo o sempre presos na engrenagem (CARVALHO,
2019, p. 27).

Conscientes de que a engrenagem da vida não é plausível de desvencilhar,


Maria Judite de Carvalho e Lygia Fagundes Telles trazem em sua obra um mundo que
151

se faz a partir das pequenas angústias diárias de personagens que são tomadas por
conflitos gerados a partir de práticas sociais que são institucionalizadas e as
consomem por serem criaturas que não se ajustam ao padrão estabelecido.
Observando as narrativas das duas escritoras percebe-se uma melancolia em comum,
uma profunda ânsia transmitida por suas personagens que desapontadas com o
universo entorno, se entregam à solidão.
Tanto Maria Judite quanto Lygia possuem a agudeza do lirismo poético
transposto em prosa, tomando a palavra como ponte que se eleva através dos
sentidos e atingem a consciência do leitor incomodando-o, tirando-o da zona de
conforto. Assim, suas narrativas trazem uma universalidade temática que pode ser
compreendida sem a necessidade de suplementos de leitura, porque falam de uma
verdade que é comum ao humano, de aspirações e inquietude que são próprias a
qualquer indivíduo. Mergulhando nas profundezas da alma, elas escrevem sobre a
fragilidade dos laços humanos, sobre a amargura de envelhecer sem ter notado a vida
passar, sobre as relações familiares, sobre o amor não correspondido, sobre o
processo de socialização do sujeito, sobre diferenças, sobre opressões. Entre tantas
opressões escritas é a da mulher a mais abordada, a mais contundente, a mais
profundamente sentida porque é refratada das experiências que lhes são inerentes.
Nos textos juditianos e lygianos a representação do feminino conversa com
todos os elementos narrativos, mas é especial a sua relação com o espaço. A mulher,
que historicamente foi confinada aos espaços da subjetividade, do privado,
trancafiadas em suas casas ou conventos, ganharam na narrativa moderna a
possibilidade de transitarem entre lugares, mundos, planos diferentes. Envolvendo
sujeitos femininos com os espaços, em um jogo narrativo permeado de elementos
simbólicos, Maria Judite e Lygia retiram suas personagens dos espaços comuns e
fazem-nas transitar por espaços outros, ou por heterotopias, conforme Foucault (2001,
2013) as descreveu.
A relevância para esta pesquisa do pequeno e único texto de Foucault (2001),
no qual ele trata das heterotopias, foi fundamental para o estabelecimento da
compreensão teórica da categoria do espaço que mais se aproximava das escolhas
estilísticas das escritoras. Deste modo, o espaço foi estudado a partir de uma
perspectiva que parte do contexto social representado para a análise do figurado, do
metafórico, uma vez que as heterotopias encontradas na prosa juditiana e lygiana,
mesmo atravessadas pelo social, são intensamente envolvidas pelo simbólico.
152

Cinco heterotopias foram analisadas: o sanatório, o asilo, o cemitério, o


espelho e o jardim, e, em todas elas constatou-se que do embate entre os espaços e
as situações sociais que os envolvem, o feminino em sua corporeidade também se
verte em heterotopia, uma vez que como seres em devir, as personagens femininas
são narradas sempre em situação de outro. Assim, em “Além do Quadro” a heterotopia
do sanatório entrecruza-se ao corpo-espaço de Damiana, em toda a sua sombria
interioridade de quem não tem mais expectativa de ter uma vida longa e saudável. O
tom lúgubre que passa do contraespaço para a face da personagem ecoa o profundo
vazio que a reprime em si mesma, fechando-se para o mundo exterior. Já a
heterotopia do asilo é a responsável pelo agir disciplinado de Marta, por sua
condescendência com o outro, uma vez que foi instruída a sempre obedecer às
autoridades e comportar-se para não sofrer com as advertências e punições. Contudo,
por ser um corpo-espaço abandonado a personagem é, semelhante ao espaço onde
foi formada, um reflexo da insegurança e do desamparo.
No conto “Venha Ver o Pôr do Sol”, a heterotopia do cemitério é construída
como um símbolo do destino cruel das mulheres que são vítimas da violência física e
simbólica pelos homens por quem nutrem confiança e amor. Com adjetivos e
conceitos que tentam inferiorizar o caráter da personagem feminina, em todo o tempo
discursivo da narrativa o ex-namorado usa argumentos para justificar a sua vingança
cruel e desumana. Nessa narrativa, Lygia utiliza, mais uma vez, o seu “realismo
cruento” para discorrer sobre as tragédias corriqueiras da sociedade, feitas no oculto,
nas quais, geralmente, os carrascos saem impunes.
Por conseguinte, observou-se nos contos “As Palavras Poupadas” e “Noturno
Amarelo” que as heterotopias do espelho e do jardim foram construídas como lugares
de reconhecimento do eu das personagens protagonistas: “assumindo função
focalizadora, pelas relações densas e tensas com as demais categorias, o espaço
acaba por colaborar eficazmente na ilustração do malogro das personagens”
(CANIATO, 1996, p. 86). Em “As Palavras Poupadas” o tom silente dos espaços e a
construção simbólica em torno dos objetos fazem refletir o passado por meio de
imprecisões da memória que complexifica e põem em dúvidas algumas ações do
enredo, encerrando-se com o mesmo tom de incerteza que inicia a narrativa e sem
perspectivas de entendimento entre a protagonista e suas questões não resolvidas do
passado. Já em “Noturno Amarelo” o jardim que transporta a protagonista para o
confronto com os seus fantasmas do ontem proporciona-lhe uma oportunidade de
153

reconciliação que se reflete em seu interior como um sinal de esperança e harmonia.


Livre da culpa que a atormentava, Laura sai da experiência fantástica como uma
mulher em paz com o passado e com anseio de um recomeço.
Referente às relações entre espaço e corpo verificou-se que as categorias
criadas para exprimirem o elo entre a representação do feminino e as configurações
do espaço sintetizam as características psíquicas e sociais que definem e constroem
as personagens. Assim, o corpo-espaço insubmisso de Damiana que não se dobra
as vontades do marido, mostrando-se forte mesmo em meio a doença, sendo capaz
de reagir com determinação mesmo com o espectro da morte à espreita, é posto em
relação discursiva, mas sem hostilidade, com o corpo-espaço dócil de Bárbara, a
afetuosa, meiga e subserviente amante do marido. Por sua vez, o corpo-espaço
culpado da personagem juditiana, Graça, que dialoga com o corpo-espaço culpado
de Laura, personagem lygiana, evidencia uma tendência cada vez mais forte dentro
da literatura de autoria feminina, isto é, o fato de a mulher escrever sobre o próprio
universo feminino, falando de suas dores, malogros e aspirações sem receios ou
clichês; mostrando que “Basta olharmos a Medusa de frente para vê-la: e ela não é
mortal. Ela é bela e ri” (CIXOUS, 2017, p. 143).
A metáfora da Medusa usada por Cixous (2017) confirma mais uma vez que
a escritura feminina é um espaço grandioso de expressão sobre tudo o que está
relacionado ao universo da feminilidade, isto porque o “imaginário das mulheres é
inesgotável, como a música, a pintura, a escritura: as efusões de seus fantasmas são
inauditas” (CIXOUS, 2017, p. 130). Portanto, torna-se ainda cada vez mais relevante
que se escreva e pesquise-se sobre essa literatura.
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