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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA
LINHA DE PESQUISA: LITERATURA E MEMÓRIA CULTURAL

PERIPÉCIAS DO MEDO: UM ESTUDO DE NARRATIVAS DE


GUIMARÃES ROSA

CÉLIA MARÍLIA SILVA

Natal/ RN, julho de 2021


CÉLIA MARÍLIA SILVA

PERIPÉCIAS DO MEDO: UM ESTUDO DE NARRATIVAS DE


GUIMARÃES ROSA

Texto apresentado ao Programa de Pós-


Graduação em Estudos da Linguagem, do
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes,
da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, como requisito para a obtenção do
título de Doutora em Literatura Comparada.

Orientador: Professor Dr. Andrey Pereira de Oliveira

Natal/ RN, julho de 2021


Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -
CCHLA

Silva, Célia Marília.


Peripécias do medo: um estudo de narrativas de Guimarães Rosa
/ Célia Marília Silva. - Natal, 2021.
124f.

Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e


Artes, Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, 2021.
Orientador: Prof. Dr. Andrey Pereira de Oliveira.

1. Guimarães Rosa - Tese. 2. Narrativa - Tese. 3. Medo -


Tese. I. Oliveira, Andrey Pereira de. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 82.091

Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710


CÉLIA MARÍLIA SILVA

PERIPÉCIAS DO MEDO: UM ESTUDO DE NARRATIVAS DE


GUIMARÃES ROSA

Texto apresentado ao Programa de Pós-


Graduação em Estudos da Linguagem, do
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes,
da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, como requisito para a obtenção do
título de Doutora em Literatura Comparada.

Área de concentração: Literatura Comparada


Aprovada em: 30 de julho de 2021

BANCA EXAMINADORA:

_________________________________________________
Prof. Dr. Andrey Pereira de Oliveira – UFRN
(Orientador)

_________________________________________________
Prof. Dr. Derivaldo dos Santos – UFRN
(Avaliador Interno)

_________________________________________________
Profª Dra. Rosanne Bezerra de Araújo – UFRN
(Avaliador Interno)

_________________________________________________
Prof. Dr. Elri Bandeira de Sousa – UFCG
(Avaliador Externo)

_________________________________________________
Prof. Dr. Manoel Freire Rodrigues – UERN
(Avaliador Externo)
RESUMO

Nesta pesquisa, procuramos analisar a representação estética do medo em narrativas


de João Guimarães Rosa. Para tanto, o presente estudo se divide em duas partes: a
primeira corresponde ao exame do medo que invade o universo infantil em “Campo
Geral” e finda com o personagem já adulto em “Buriti”; já a segunda, compreende a
análise de como o medo se apresenta em meio ao universo do indivíduo idoso em duas
distintas estórias “A benfazeja” e “Os chapéus transeuntes”. Assim sendo, temos como
objetivo analisar o medo sentido ou provocado pelos personagens em meio aos
caminhos tortuosos por eles percorridos nestas estórias, na perspectiva de
compreender como o medo se firma em cada narrativa e se articula com seguimentos
culturais, históricos e sociais nelas impressas estruturalmente. Buscaremos entender,
também, como o medo se configura na linguagem literária, admitindo funções de
caráter místico, religioso e filosófico sobre os personagens, por vezes modificando o
modo como pensam, têm consciência de si e das circunstâncias em que vivem. Para o
estudo específico sobre o medo adotaremos como suporte teórico Delumeau (2009) em
História do medo no ocidente; Myra y López (2012) em Quatro gigantes da alma: medo,
ira, amor, dever; e Michel de Montaigne (2010) em “Sobre o medo”.

PALAVRAS-CHAVE: Guimarães Rosa. Narrativa. Medo. Criança. Idoso.


ABSTRACT

In this work, we looked for analysed the aesthetic representation of the fear in João
Guimarães Rosa’s narratives. The present work was divided into two parts: the first one
corresponds to the examination of the fear that invades childhood's universe in “Campo
Geral” and ends with the adult character in “Buriti”; the second part comprises an
analysis how fear presents itself into the elderly’s universe in two distinct stories: “A
benfazeja” and “Os chapéus transeuntes”. Therefore, the main objective was analysing
the fear felt or caused by the characters in the narratives, on the perspective of
understanding how it takes hold in the stories and articulates with cultural, historical and
social segments structurally printed on them. Moreover, we seek to understand how the
fear shows itself in the literary language, admitting mystical, religious and philosophical
functions onto the characters, sometimes changing the way they think, how they are
aware of themselves and circumstances in which they live. For the specific study about
fear, the following works were used: Delumeau (2009) in História do medo no ocidente;
Myra y López (2012) in Quatro gigantes da alma: medo, ira, amor, dever and Michel de
Montaigne (2010) in “Sobre o medo”.

Key-words: Guimarães Rosa. Narrative. Fear. Child. Elderly.


RÉSUMÉ

Dans ce travail, nous avons cherché analysé la représentation estétique de la peur dans
les récits de João Guimarães Rosa. Le présent ouvrage était divisé en deux parties: la
première correspond à l'examen de la peur qui envahit l'univers de l'enfance dans
“Campo Geral” et se termine par le personnage adulte de “Buriti”; la deuxième partie
comprend une analyse de la manière dont la peur se présente dans l'univers des
personnes âgées dans deux histoires distinctes: “A benfazeja” et “Os chapéus
transeuntes”. Par conséquent, l'objectif principal était d'analyser la peur ressentie ou
causée par les personnages dans les récits, dans la perspective de comprendre
comment elle s'installe dans les histoires et s'articule avec les segments culturels,
historiques et sociaux qui y sont structurellement imprimés. De plus, nous cherchons à
comprendre comment la peur se manifeste dans le langage littéraire, admettant des
fonctions mystiques, religieuses et philosophiques sur les personnages, modifiant
parfois leur façon de penser, leur conscience d'eux-mêmes et les circonstances dans
lesquelles ils vivent. Pour l'étude spécifique sur la peur, les travaux suivants ont été
utilisés: Delumeau (2009) dans História do medo no ocidente; Myra y López (2012)
dans Quatro gigantes da alma: medo, ira, amor, dever et Michel de Montaigne (2010)
dans “Sobre o medo”.

Mots-clés: Guimarães Rosa. Récit. Craindre. Enfant. Vieil Homme.


Àqueles que me ajudam a enfrentar meus medos.
AGRADECIMENTOS

A Deus, por me ofertar forças durante essa trajetória.

Aos meus queridos e amados pais, Eliseu e Maria, por acreditarem em mim e terem me
ensinado a jamais desistir.

Aos meus irmãos, Antônio, Jorge e Gláucia. Em especial a Dedé, Dora e Ceição, por
me ofertarem um espaço em suas casas para que eu pudesse estudar.

Ao meu companheiro de todas as horas, amor e amigo, Fabiano, pelo cuidado e


incentivo, pelo exemplo de pessoa apaixonada pelo que faz e pelo amor e carinho que
me dedica, sempre tão incondicionais.

A toda minha família, em especial minha sobrinha Jackeline, pelo apoio nas horas mais
difíceis do processo de escrita desta tese.

Ao meu orientador, Andrey, pelo incentivo, pela paciência, pelo carinho e zelo com que
sempre me orientou e, principalmente, por ter seguido comigo até aqui.

À amiga, Lanaíza, pela presença constante, pelo carinho, pelo incentivo e por me
ajudar com a revisão textual.

Às amigas, Mayara e Thaís, pelo carinho e apoio.

Aos amigos, Vanderli, Heronildes, Anivâina, Jeane e Silvana, pela companhia


importante, pelos momentos de descontração ou incentivo e pelas orações.

Aos professores, Derivaldo e Rosanne, pelo carinho e auxílio, pelas vezes que
gentilmente me ouviram, incentivaram e emprestaram matérias e livros que reforçaram
a minha pesquisa. Principalmente, pelas contribuições oferecidas com uma leitura
atenta e direcionada, ainda no processo de qualificação.

Aos professores, Elri e Manuel, por aceitarem participar da banca examinadora.

À Universidade Federal do Rio Grande do Norte e, em especial ao Programa de Pós-


Graduação em Estudos da Linguagem, ao corpo docente, servidores dos setores
técnicos e administrativo, pelos conhecimentos ofertados e pela solicitude.

À Coordenação de Aperfeiçoamento e Pessoal de Nível Superior - CAPES, pelo apoio


financeiro.
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

(Carlos Drummond de Andrade. Congresso Internacional do


medo.)
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................... 12

2 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O MEDO E SUAS

REPRESENTAÇÕES NA CRÍTICA ROSEANA................................... 17

2.1 Apontamentos teóricos sobre o medo .................................................. 17

2.1.1 O conceito de medo.................................................................... 17

2.1.2 Breves considerações da filosofia sobre o medo....................... 19

2.1.3 Breves considerações sobre a história das atuações do


21
medo...........................................................................................
2.1.3.1 As atuações do medo em tempos modernos ................ 23

2.1.4 Breves considerações sobre o processo psicológico do medo.. 23

2.2 Guimarães Rosa................................................................................... 25

2.2.1 Considerações sobre o medo na crítica roseana ........................ 26

3 NO UNIVERSO DA CRIANÇA: MEDO E PROJEÇÕES...................... 33

3.1 “Campo geral”: anseios e medos.......................................................... 34

3.1.1 Breviário sobre a estória ............................................................. 35

3.1.2 Impulsionador do medo no universo de Miguilim: o erro............. 37

3.1.2.1 Medo dos castigos de Deus ........................................... 38

3.1.2.2 Temores no âmbito familiar e o aterrador medo do Pai... 50

3.1.3 Medos de Miguilim e Dito........................................................... 54


3.1.4 No percurso da ira, do amor e da liberdade............................... 66

3.1.5 Medos de Miguilim, projeções em Miguel ................................. 74

4 O IDOSO: MEDO E VIAS TORTUOSAS ............................................. 83

4.1 Linhas secretas do medo em “A benfazeja” ........................................ 86

4.1.1 Breviário sobre a estória........................................................ 88

4.1.2 Artimanhas de um narrador................................................... 88

4.1.3 Impactante ausência do nome próprio................................... 93

4.1.4 Entre medos: Mula-Marmela, o cego Retrupé e a


comunidade..................................................................................... 96
4.2 “Os chapéus transeuntes” e as abas do medo .................................... 106

4.2.1 Breviário sobre a estória ............................................................ 107

4.2.2 Observações do narrador........................................................... 108

4.2.3 Vovô Barão: o provocador de medo .......................................... 109

4.2.4 Um Vovô Barão medroso .......................................................... 112

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................ 117

REFERÊNCIAS..................................................................................... 121
12

1 INTRODUÇÃO

[...] um dos efeitos do medo é perturbar os


sentidos e fazer que as coisas não pareçam
o que são.

(Miguel de Cervantes. D. Quixote de la


Mancha)

João Guimarães Rosa concebeu em sua escrita uma ficção rica em temáticas
que toma como elementos o espaço, a linguagem, a política, a filosofia, a psicologia,
a sociedade, a cultura e principalmente questões que enveredam pelos caminhos da
alma humana, produzindo assim uma literatura de caráter também universal.
Diante das várias leituras elaboradas sobre as narrativas de Rosa, nos últimos
setenta anos – contando desde a publicação da primeira obra, Sagarana (1946) –,
temos como objetivo, na presente pesquisa, analisar a presença do medo na tessitura
de algumas de suas estórias1, considerando ser este um tema frequente em suas
narrativas, um instrumento capaz de impulsionar o sujeito narrador ou personagem.
No que se refere à temática do medo notamos que ainda há uma lacuna em
relação ao estudo das estórias. Ao lermos a fortuna crítica de Guimarães Rosa nos
defrontamos com uma tese elaborada por Afonso Ligório Cardoso (2006), que
desenvolveu uma pesquisa intitulada As formas do medo em Grande sertão: veredas,
tese em que assume uma linha de análise filosófica associada à outra de orientação
política, tomando “o sertão como símbolo de uma realidade mais ampla, que extrapola
as fronteiras da região e do período histórico compreendido no romance” (2006, p. 8).
O pesquisador em questão estabelece uma linha de estudo que está voltado para a

1 João Guimarães Rosa preferiu nomear suas narrativas de “estórias”, independentemente de serem
elas contos, novelas, romances ou poemas. Nota-se que suas narrativas não seguem a norma de
definição tradicionalmente utilizada para classificar gêneros narrativos. No texto introdutório para
Manuelzão e Miguilim: Corpo de Baile, Rónai procura explicar que na própria divisão dos textos que
compunham a obra, Guimarães Rosa chega a compor dois índices, por entender que os textos são ao
mesmo tempo poemas, contos e romances: “Serão poemas, enquanto todas trazem significações
subjacentes. A distinção entre o conto e o romance tampouco obedece ao critério habitual da extensão;
antes corresponde a um grau maior ou menor de conteúdo lírico: ao subordinar os primeiros ao título
de “parábase”, o autor, com esse termo da comédia grega, adverte-nos de que é neles que se deverá
procurar sua mensagem pessoal. Isto posto, ainda será mister decifrar essa mensagem.” (RÓNAI in
ROSA, 2016a, p.19). Nesse sentido, sem ainda decifrar a mensagem, preferimos adotar aqui também
o termo “estórias” ao invés de nomear enquanto critérios estabelecidos na classificação e identificação
dos gêneros narrativos ou textuais.
13

relação entre o medo e o poder, além de suas configurações em nível filosófico,


antropológico e político.
Selecionamos como corpus deste trabalho as estórias “A benfazeja” (de
Primeiras estórias), “Os chapéus transeuntes” (de Estas estórias), “Campo Geral” (de
Manuelzão e Miguilim: Corpo de baile) e “Buriti” (de Noites do sertão: Corpo de baile).
Estas narrativas compartilham temas e motivos que as ligam ao universo do medo e
o tomam como uma de suas temáticas assinaladas. As estórias se evidenciam por se
deslocarem movidas pela reação dos narradores e personagens diante desse
sentimento que por inúmeras vezes os toma: seja por apresentarem receio em relação
ao amor que sentem por outra ou outras personagens, pelo medo da existência do
demo e do pecado, por temerem as ameaças do destino, pela possibilidade de se
apresentarem perante uma sociedade excludente ou da morte e, ainda, pelo poder
que podem adquirir em decorrência do medo que provocam em outros sujeitos.
Nessas narrativas nos deparamos com acontecimentos e personagens que estão
diretamente relacionados ao medo: o velho soberbo, a velha madrasta, a criança que
pouco enxerga e outros sujeitos que os acompanham ou os encontram pelos
caminhos que cortam o sertão (padres, pobres, analfabetos, mulheres, prostitutas,
fazendeiros, jagunços, ladrões, tropeiros, pistoleiros, assassinos, dentre outros). Este
sentimento que os envolve não representa somente uma reação natural de
inquietação que acompanha o sujeito e o orienta perante um perigo. No fazer narrativo
rosiano, o medo ganha forças, se impõe e assim torna-se apto a excitar, motivar,
delimitar e, por vezes, determinar a vida das pessoas que se deixam levar e sentir o
vigor de sua presença, sendo então um traço que distingue as personagens em si. É
nesse universo que nos defrontamos com protagonistas problemáticos, repletos de
conflitos internos e psicológicos, convivendo com suas dores e dúvidas, seus sonhos,
angústias e temores.
Esta pesquisa tem como finalidade investigar o medo nos caminhos tortuosos
das supracitadas estórias, procurando nelas entender como ele se firma na estrutura
do texto literário, ponderando a particularidade estético-formal em articulação com os
segmentos sociais, culturais e históricos infundidos na composição estrutural –
contudo nele visíveis. Mas, também, procura compreender como o medo se insere na
linguagem e na realidade textual, tornando-se capaz de assumir funções filosóficas
sobre o sujeito que se encontra em seu mais profundo desalento, alterando o modo
14

como pensam e buscam tomar consciência de si ou mesmo um significado para suas


vidas.
Na tentativa de ampliar o olhar analítico lançado sobre as estórias selecionadas
para esta pesquisa, alguns elementos da teoria sobre o medo são de grande valia,
sobretudo os expostos por Jean Delumeau (2009) em História do medo no ocidente.
O trabalho minucioso sobre as mais variadas formas de medo, realizado na referida
obra, nos permite observar os caminhos por ele cruzados ao longo dos séculos e nos
guia no estudo deste sentimento nas narrativas selecionadas. O autor de História do
medo no ocidente parte do princípio de que não só o indivíduo, mas as sociedades
sempre mantiveram um diálogo com o medo, porém preferiram mantê-lo em silêncio
por séculos, já que nunca foi considerado um sentimento nobre entre os homens. Ao
longo do texto, Delumeau elucida uma diversidade de medos e formas de atuação
desses temores no ser humano e em comunidades de épocas distintas. O
levantamento de dados sobre a história do medo nos permite uma melhor
compreensão quanto ao funcionamento deste sentimento, especificamente
experimentado pela humanidade e posto em evidência no processo literário que
estamos estudando. Auxilia-nos também, no que se refere ao medo, a obra de Emílio
Myra y López (2012), Quatro gigantes da alma: medo, ira, amor, dever, tendo em vista
que nos permite compreender melhor o medo enquanto processo biológico e natural,
em particular, na espécie humana.
Para desenvolver este estudo, adotamos uma perspectiva de análise que
considera não apenas a parte estético-formal dos textos literários, mas também o
vínculo estabelecido com os elementos sociais próprios das narrativas em estudo, ou
seja, estruturados na própria constituição estética. Neste sentido, nos guia os estudos
de Antonio Candido (2010).
Ressaltamos ainda a importância de estudarmos o processo de construção da
narrativa, considerando que desta forma é possível uma pertinente análise do texto
literário, tendo em vista que para compreender as relações sociais e filosóficas
figuradas em “A benfazeja”, “Os chapéus transeuntes”, “Campo Geral” e “Buriti”, torna-
se fundamental estudar quais os processos que compõem a obra literária e que
possibilitam a internalização das relações sociais nas estórias analisadas. Para tanto,
guia-nos no procedimento de análise do narrador o artigo “O ponto de vista na ficção”,
de Norman Friedman (2002), para que assim se compreenda a articulação existente
15

entre o que é narrado e o próprio ato de narrar, consequentemente saber qual modo
de transmitir valores é adotado, ao passo que se conhece o ponto de vista do narrador.
Dividimos o estudo em cinco capítulos distribuídos da seguinte forma: O primeiro,
que é de caráter introdutório. O segundo apresenta algumas considerações sobre o
medo e suas representações em Guimarães Rosa, para que assim possamos situar
nosso objeto de pesquisa.
No terceiro capítulo são realizados os estudos das estórias que estabelecem
uma relação direta entre o medo, o universo infantil e outros sentimentos que
impulsionam o sujeito, levando-o a uma alteração no que se refere à forma de pensar,
sentir e agir, proporcionando, por vezes, certa maturidade ou interferindo na vida do
mesmo sujeito que se faz adulto. Para tanto, são analisadas as narrativas “Campo
Geral” e “Buriti”, visto que não temos como analisar os medos do menino sem que
cheguemos aos medos da criança que se fez adulta, mesmo que em estórias
diferentes. Em “Campo Geral”, procuramos investigar – tomando como ponto de
partida a visão de uma criança que, ironicamente, quase não enxerga – como o
menino sente e encara os medos que o cercam naquele universo sertanejo hostil.
Veremos como a proximidade da morte, o medo que dela sente, às vezes está
relacionado a distintas formas de medo que levam o sujeito à perspectiva do fenecer,
mas que, em outras, subitamente é relacionada ao encorajamento do indivíduo. Em
“Buriti”, analisamos como os medos de Miguilim criança são projetados no mesmo
personagem adulto, agora seu Miguel, que passou a maior parte da vida na cidade,
sem contato com a família que deixou no Mutúm, formado em medicina veterinária,
com posses e apaixonado. Logo, buscamos compreender como os medos do menino
prevalecem ou se dissipam em Miguel, em um processo evolutivo no modo de ver e
refletir atos, reposicionando-o diante de uma assídua batalha pela vida e em busca da
felicidade por ele, desde criança, almejada. Assim, o fato de que “Buriti” completa
“Campo geral”, no que se refere ao personagem principal e os medos por ele sentidos
ao longo da vida, justifica a análise de ambas, em conjunto, no referido capítulo desta
pesquisa.
O quarto capítulo é destinado ao estudo de “A benfazeja” e “Os chapéus
transeuntes”, a partir dos quais analisamos a relação direta entre o medo e as formas
de representação no sujeito idoso. Investigamos como os personagens idosos podem
ser tanto os agentes provocadores do medo quanto sujeitos movidos pelo temor.
Desse modo, examinamos como no processo característico do texto literário o medo
16

pode ser um agente modificador, principalmente no que se refere ao modo de pensar


ou agir do personagem, sobretudo, quando ele se encontra diante do desconhecido,
como: a índole, a morte e o próprio destino. Em “A benfazeja” os personagens
envelhecidos tanto temem, quanto são temidos pela comunidade em que vivem. Já
em “Os chapéus transeuntes”, o idoso é o principal provocador de medos, mas não
escapa e também cai nos laços do temor. Desta forma, observamos se estes medos
têm a capacidade de instigar os personagens, protagonistas e narradores a um
processo de transição na forma como se posicionam, tomam decisões e relatam os
acontecimentos. Investigamos, também, como o personagem idoso, por vezes
timorato, consegue difundir medo sobre outros.
Por fim, apresentamos as considerações finais, com apontamentos que nos
levam ao remate de nossa análise, na tentativa de conectar as estórias estudadas,
enfatizando as principais diferenças e similaridades do medo contido em cada uma
das narrativas examinadas.
17

2 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O MEDO E SUAS


REPRESENTAÇÕES NA CRÍTICA ROSIANA

O que é o medo? Um produzido dentro da


gente, um depositado; e que às vezes se
mexe, sacoleja, e a gente pensa que é por
causas: por isto ou por aquilo, coisas que só
estão é fornecendo espelhos. A vida é para
esse sarro de medo se destruir, jagunço
sabe. Outros contam de outra maneira.

(Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas)

2.1 Apontamentos teóricos sobre o medo

A emoção ou o sentimento de medo, presente na literatura, faz-se visto no


discurso da narrativa, nos pensamentos e ações de uma variedade de personagens.
Em “Campo Geral”, “Buriti”, “Os chapéus transeuntes” e “A benfazeja”, estórias de
Guimarães Rosa, nos deparamos com personagens que vivem ou trilham os
caminhos do medo. Todavia, antes do estudo dessa temática nessas obras, faz-se
indispensável um entendimento, mesmo que conciso, do conceito de medo,
apresentado mais comumente como uma resposta emocional a determinada situação
de perigo a que somos expostos e da qual precisamos escapar. Ressaltamos que não
é o objetivo desta pesquisa aprofundar o conhecimento sobre o medo, sobejamente
estudado por uma variedade de áreas do conhecimento tais como a Biologia, a
Neurologia, a Psicanálise, a Psicologia, a Filosofia e a História. Contudo, alguns
conceitos e princípios precisam ser elencados, por serem imprescindíveis às
discussões pretendidas para os capítulos de análise literária.

2.1.1 O conceito de medo

Quando pensamos no medo e recorremos ao dicionário na tentativa de


compreendê-lo, encontramos como definição ser este um “1. Sentimento de viva
inquietação ante a noção de perigo real ou imaginário, de ameaça; pavor, temor; 2.
Receio” (FERREIRA, 2010, p.496) e que, assim sendo, pode se apresentar de formas
18

diversificadas, mediante a circunstância incitadora. A etimologia da palavra medo vem


do latim metus e denota “1) Receio, inquietação, ansiedade, temor, medo [...] A
personificação do temor, do receio” (METUS, 1962) em presença de um risco real ou
imaginário a que somos submetidos.
O medo, independente de no ambiente filosófico ou outra área do conhecimento,
é classificado por vezes enquanto emoção2, outras como sentimento3. Para que
possamos compreender o motivo dessas classificações, precisamos antes entender
as diferenças entre emoção e sentimento.
Segundo o neurocientista Antonio Rosa Damásio (2000), a emoção é um
agrupamento de ações, sofridas pelo sujeito, que interferem e provocam modificações
no próprio corpo. Já o sentimento deriva da definição que se gera em relação àquela
dada emoção. O sentimento é, por sua vez, aquilo que conservamos para nós ou que,
ao contrário das emoções, conseguimos na maioria das vezes esconder ou controlar.
Porém, isso depende não só das estratégias biológicas e genéticas desenvolvidas
pelo homem

assim como de estratégias suprainstintivas de sobrevivência que se


desenvolveram em sociedade, transmitidas por via cultural [...]. É por isso que
a fome, o desejo e a raiva explosiva dos seres humanos não levam
diretamente à alimentação desenfreada, à violência sexual e ao assassínio,
pelo menos nem sempre, supondo-se que um organismo humano saudável
se tenha desenvolvido numa sociedade em que as estratégias de
sobrevivência suprainstintivas sejam ativamente transmitidas e respeitadas.
(DAMÁSIO, 2006, p.152)

Deste modo, o medo pode ser considerado tanto uma emoção quanto um
sentimento, pois quando temos medo disparamos uma série de reações ou impulsos
corporais que podem ser percebidas por outras pessoas. Mas, quando nos damos
conta das emoções corporais experimentadas, conhecemos o sentimento de medo,
que pode durar muito mais que a emoção.
As emoções, segundo o neurocientista supracitado, são, pois, responsáveis
pelas nossas tomadas de decisões, visto que desenvolvemos ao longo da vida uma
“inteligência emocional” que nos permite controlar nossas expressões e inteligência

2 Segundo Nicola Abbagnano, refletindo a partir do âmbito da filosofia, trata-se de emoção “qualquer
estado, movimento ou condição que provoque no animal ou no homem a percepção do valor (alcance
ou importância) que determinada situação tem para sua vida, suas necessidades, seu interesse.”
(ABBAGNANO, 1998, p.311)
3 Ainda segundo Abbagnano, o termo pode conter os seguintes significados: “o mesmo que emoção,

no significado mais geral, ou algum tipo ou forma superior de emoção.” Também pode ser o “princípio,
faculdade ou órgão que preside às emoções, e do qual elas dependem, ou como categoria na qual elas
se enquadram.” (ABBAGNANO, 1998, p.874)
19

mediante os desafios que surgem. Logo, podemos imaginar uma dada situação que
nos provoca o sentimento de medo, mas só podemos sentir a emoção do medo
quando nos deparamos com a situação em si, que provoca uma ação sobre nós e
pode nos levar a uma reação de fuga, coragem etc. e que fica registrado em nossos
pensamentos.
Sendo assim, quando nos referirmos ao medo nesta pesquisa, poderemos
considerá-lo tanto como emoção quanto sentimento, seguindo os conceitos
supracitados.

2.1.2 Breves considerações da Filosofia sobre o medo

O medo denota o valor que determinada situação representa para a vida do ser.
Assim sendo:

Vamos admitir que o medo consiste numa situação aflitiva ou numa


perturbação causada pela representação de um mal iminente, ruinoso ou
penoso. Nem tudo que é mal se receia, como por exemplo, ser injusto ou
indolente, mas só os males que podem causar mágoas profundas ou
destruição; isto só no caso de eles surgirem não muito longínquos, mas
próximos e prestes a acontecer; os males demasiados distantes não nos
metem medo. (ARISTÓTELES, 2005, p.174)

O medo seria assim uma emoção que se manifesta no sujeito por intermédio de
experiências ou ações externas, mas que também pode desaparecer, o que depende
de como o homem enxerga dada situação, depende do perigo ou do valor que o sujeito
atribui a sua existência. Logo, tememos tudo aquilo que pode ser capaz de nos destruir
ou causar “danos que nos levem a grandes tristezas” (ARISTÓTELES, 2005, p.174).
Então, Aristóteles afirma que, por exemplo, só temos a capacidade de temer à morte
quando sabemos que ela está próxima. Caso contrário, ela não se mostra capaz de
nos afligir, pois todos nós sabemos que um dia iremos morrer.
Assim como Aristóteles, Epicuro reflete sobre o medo que o ser humano sente
da morte, em Carta sobre a felicidade. Segundo o referido filósofo, “o mais terrível de
todos os males, a morte” (EPICURO, 2002, p.29), não deveria ser temida, tendo em
vista que sentimos medo do que está próximo, não do que está em processo de
espera. Para ele, sábio é aquele que encara a morte como algo natural, pois, ela não
significa “nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não
existe, ao passo que estes não estão mais aqui” (EPICURO, 2002, p.29). Logo,
20

Epicuro afirma que o sábio não desdenha a vida, muito menos sente medo da morte,
pois a vida não é um incômodo, assim como morrer não é prejudicial. Em sua
concepção, a morte nada significa, porque quando estamos vivos ela não se faz
presente e quando morremos não nos fazemos mais presentes para ela. Então, não
faz sentido temê-la. Sendo assim, o que mais importa é cuidar-se para viver
honestamente e morrer honestamente.
Michel de Montaigne (2010), em “Sobre o medo”, afirmou que o medo tirava toda
a razão do coração. Para chegar a tal posicionamento ele usou como base o que
acontecia com os soldados em batalha que, por vezes, agiam insanamente ou
paralisavam diante do que lhes causava medo. De acordo com o filósofo – que pouco
comenta sobre os caracteres científicos e/ou biológicos do medo –, o temor chega a
ser como um estado de loucura do indivíduo que se encontra apavorado,
completamente fora de um estado de alerta, de lógica ou raciocínio crítico e que, por
isso, comete atrocidades, por intermédio de atos considerados de valentia, ou fica
sem atitude, o que o leva aos atos considerados de covardia. Montaigne utiliza como
exemplo aqueles soldados que, em batalha, enxergavam como oponentes seus
próprios amigos, outras vezes tinham terríveis miragens em que rebanhos de ovelhas
se transformavam em soldados de cavalaria4. No ensaio sobre o medo, Montaigne
demonstra que o sentimento de medo chega a provocar uma angústia pior que aquela
que nos é acesa pela morte, até porque em determinadas situações o indivíduo,
tocado pelo medo extremo, chega a buscar a morte como solução, como fuga.
Neste sentido, o medo passa a ser um modelo de sentimento que é capaz de
provocar no homem as mais extremas e opostas formas de atitudes e, muitas vezes,
em curto intervalo de tempo entre uma ação e outra. Por sua vez, podemos dizer que
o medo é um sentimento nebuloso, que deixa evidente a vulnerabilidade a que o ser
humano está sujeito no cotidiano.

4
Cf. Na primeira parte do romance de cavalaria Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes,
há uma passagem em que o protagonista, atônito, confunde um rebanho com dois exércitos dispostos
a entrarem em guerra e parte para a batalha ao lado dos que considerava serem os mais fracos. Nesse
caso, o protagonista age movido pela loucura, não pelo medo. Nota-se, portanto, como o medo pode
nos mover semelhante ao que acontece quando nos encontramos em estado de loucura, assim como
afirma Montaigne.
21

2.1.3 Breves considerações sobre a história das atuações do medo

Associado à covardia, o medo sempre foi um sentimento que o ser humano


tentou esconder. Assim, muitos escritores ao longo da história procuraram suprimi-lo
de seus escritos, já que era também um modelo de vergonha para o ser humano.
Tomando por base esse fato é que Jean Delumeau (2009) procura reunir no
livro A história do medo no Ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada, os grandes
medos da humanidade ao longo dos tempos. Para tanto, o pesquisador assume mais
o papel de historiador e, sem definir o medo em si, salienta uma série de medos do
ser humano, visto que, mesmo ao longo dos tempos, o homem não conseguiu se
desfazer deste sentimento que, por vezes, o aterrorizou.
Assim, a primeira parte da obra de Delumeau (2009) é dedicada aos medos da
maioria. O mar, por exemplo, tem sido um dos maiores medos do homem: o mar que
gera males e dúvidas, que assombra e atormenta. Era ele que trazia parte dos povos
invasores ou dominadores, as grandes guerras, e que disseminou doenças, como a
peste bubônica. Camuflado, o medo aparece como o respeito ao mar, às
tempestades, na sabedoria dos provérbios, em discursos poéticos e nos relatos de
viagens. As tempestades marítimas estão ainda nos relatos das crônicas de
navegação, descritas como os perigos enfrentados pelos navegantes. No espaço
literário, nos servem como exemplos que abordaram o medo do mar textos como os
de Homero, Virgílio, Camões, Rabelais e Shakespeare.
Notamos que Jean Delumeau enfatiza o contraste entre o velho e o novo, o que
era tradicional e o que surgia. Mas, se a novidade nos tempos modernos gera lucros,
antigamente ela tinha o poder de causar medo. O que saía do controle hegemônico
das camadas mais altas, era sempre posto à margem. Assim, as diferenças religiosas,
os curandeiros, os revoltosos, o vizinho, a mulher, os santos vingativos, o diferente e
novo – aqueles que questionavam ou fugiam ao que era costumeiro – eram sempre
excluídos e considerados bruxos ou feiticeiros, gerando “a cultura do medo” a que nos
vemos sujeitos até hoje.
Os fantasmas e a noite também assombravam o imaginário dos vivos do período
medieval. A igreja, maior formadora de opinião, foi a principal disseminadora da
crença na existência de fantasmas. Separados dos corpos na hora da morte, eram
condenados por desgraças (como a peste) a vagarem pela terra e terem o poder de
levar os vivos para outro plano. Nesse período, a credulidade em relação aos castigos
22

post mortem causavam pavor, pois tinham uma relação direta com a inquisição, com
as doenças e as punições sociais, comumente vivenciadas pelas pessoas.
O medo da escuridão também era decorrente das dualidades criadas pela igreja
da época, tais como a existência do bem e do mal. Dessa forma, foi estabelecida uma
relação direta das formas do bem com a luz, enquanto o mal pertencia às trevas. Logo,
acreditavam que, à noite, as pessoas corriam sérios riscos. Isso movimentou uma
cultura baseada em hábitos completamente diurnos, capaz de afastar as pessoas dos
perigos. A sociedade se protegia do medo que a assolava e atribuía àqueles que se
sujeitavam a saírem de casa, e vagarem pela noite, o título de loucos e vagabundos.
Criam, também, que as pessoas de hábitos noturnos exerciam uma ligação direta com
o demônio.
Na segunda parte da obra, Delumeau nos fala sobre cultura dirigente e os medos
que surgem nesse meio. Durante quase meio milênio, entre o final do século XIII e o
início da era industrial, a população europeia sofreu, não só com o medo da peste
negra, mas “com uma sequência maior de angústia – de 1348 a 1660 – no decorrer
da qual as desgraças se acumularam” (DELUMEAU, 2009, p. 302), tais como: o
retorno das epidemias mortais; a Guerra dos Cem Anos; o Grande Cisma; as cruzadas
contra os hussitas, a decadência do papado antes do reerguimento da Reforma
católica; a Reforma protestante e, consequentemente, as excomunhões e massacre
à população. Na tentativa de encontrar explicações para tantas desgraças e medos,
o homem da época buscou as respostas nas reflexões teológicas. No entanto, essa
foi a causa do surgimento de novos medos, principalmente no final do século XV (novo
humanismo). O mundo ocidental e cristão desenvolveu a crença na profecia do milênio
e na profecia apocalítica, com isso, surgiu o medo do pecado e combate desenfreado
ao que, porventura, pudesse ser classificado como tal. A partir desse ponto se
espalhou entre os cristãos a concepção da existência de um Deus que punia, um Deus
vingador. A existência do pecado fazia valer também a ideia de que Satã estava
prestes a ser solto pelo mundo. Ambos os pensamentos provocaram mais medo entre
aqueles que seguiam o cristianismo, medo dos castigos que poderiam recair sobre a
humanidade.
A história nos revela também que os discursos teológicos foram responsáveis
por espalhar uma onda de crenças e medos entre os povos cristianizados. Dentre
estes ganharam destaque: os medos de algumas religiões indígenas e ritos; as
mulheres passaram a ser temidas, principalmente entre os homens, por quem eram
23

acusadas de bruxaria, de rituais de infertilidade, de libidinosas e provocadoras do


pecado do homem, verdadeiras seguidoras de Satã.

2.1.3.1 As atuações do medo em tempos modernos

Ao buscarmos compreender o medo no tempo moderno, os estudos de Georges


Duby (1999), com a obra Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos, serve como
base para nossa pesquisa.
Os escritos do referido historiador francês mostram que, na idade medieval, os
camponeses trabalhavam, mas todos os esforços no campo serviam mais para manter
os homens da Igreja e aqueles que serviam à guerra. Portanto, os camponeses
precisavam se manter com o pouco que sobrava e, por isso, surgiu entre eles o medo
da fome, da miséria que poderia se alastrar. Mas, exatamente do medo é que se
fortalecem aqueles homens do campo que, agora, precisavam se manter unidos e
solidários. Ainda por volta do século XI, a economia da Europa Ocidental começa a
avançar, bem como as melhorias no campo, devido a utilização do ferro em
instrumentos que auxiliavam na plantação. Algumas famílias, mais estruturadas,
começaram a migrar para os grandes centos urbanos, no intuito de mais escolaridade
e condições de sobrevivência favoráveis. Porém, nesses centros muitas dessas
famílias passaram a viver à margem da sociedade e, distantes dos laços familiares,
acabaram perdendo ainda os laços da solidariedade.
É, pois, com a formação desses novos modelos socias que surgem alguns
medos entre as pessoas dos anos 1000 ao 2000, tais como o medo da miséria; o
medo do outro (o estrangeiro); o medo das epidemias (a lepra, a peste negra e a Aids),
causadoras de muitas mortes; o medo da violência e o medo do além. Observamos
aqui que todos esses medos têm algo em comum: a possibilidade da morte, algo que
se perpetua até nos tempos contemporâneos, pois na morte reside também a
incerteza em relação ao destino de cada indivíduo.

2.1.4 Breves considerações sobre o processo psicológico do medo

No campo da psicologia nos aproximamos do tema do medo a partir dos estudos


de Mira y Lopéz em Quatro Gigantes da alma: o medo, a ira, o amor, o dever. Nessa
obra, o autor nos possibilita uma melhor compreensão sobre os quatro valores
24

emocionais mencionados no próprio título, principalmente no que se refere ao caráter


monstruoso que o medo, a ira, o amor e o dever podem assumir em determinadas
circunstâncias. Para esta pesquisa, especificamente, nos deteremos ao medo e sua
atuação.
Para apreendermos o que confere ao medo, enquanto processo psicológico,
Mira y López (2012) nos possibilita uma melhor compreensão do fenômeno5 em si.
Segundo o autor, quando o recém-nascido chega ao mundo, a primeira reação é o
choro. Choramos porque sentimos fome, sede, frio, calor, dor, medo. Essas
experiências iniciais são as formas de comunicação do bebê com o mundo externo, o
indicativo de que algo está errado. Mas, dentre essas reações, o medo é uma das
mais desagradáveis sensações, pois pode reunir as demais.
Logo, a primeira reação que temos ao medo é a de fuga ao estímulo provocador.
Todavia, ao passo que evoluímos, não só fugimos porque sentimos medo, mas
passamos a fugir da possibilidade de senti-lo, o que passa a ser considerado um
sintoma patogênico e causador de mais danos ao sujeito. Esse processo é visto como
“uma dupla alimentação do medo” (MIRA Y LÓPEZ, 2012, p.16), pois nos leva a
antecipar e sofrer medo, sem necessidade real.
Segundo Mira y López, devemos sempre considerar o fato de que o que nos
impulsiona ao medo é um conjunto de causas intrínsecas, de ordem biológica e/ou
psíquicas, acrescido de motivos de ordem extrínsecos, alheios à estrutura biológica,
mas classificados enquanto agentes ou estímulos causadores do medo.
Como pode-se observar, é tarefa difícil remontar o medo ao longo dos tempos.
Porém, enquanto sentimento, emoção ou processo neurobiológico, sabe-se que ele
sempre existiu em meio aos humanos e outros seres vivos – não à toa era discutido
entre os filósofos antigos –, pois trata-se de uma resposta à consciência que se tem
em relação a algo ou uma situação que representa perigo.

5
Considera-se um fenômeno “1. Qualquer modificação operada nos corpos por agentes físicos ou
químicos. 2. Tudo quanto é percebido pelos sentidos ou pela consciência. 3. Fato de natureza moral
ou social. [...] 4. O que é raro ou surpreendente. 5. Pessoa ou objeto com algo anormal ou
extraordinário.” (FERREIRA, p.345, 2010). Como dissemos antes, na Filosofia, o medo pode ser tanto
uma emoção quanto um sentimento. Na Psicologia e Psiquiatria, o medo também tem caráter de
fenômeno psíquico, pois causa modificações de ordem bioquímica e altera o estímulo celular,
originando “no organismo uma invalidez parcial e temporária, que se traduz por uma diminuição de
suas atividades vitais.” (MIRA Y LÓPEZ, 2012, p.16)
25

Em nossa pesquisa, destacaremos dentre os levantamentos aqui resumidos,


sobretudo, aqueles que fazem referência à aplicação estética do medo na literatura e
sua relevância no processo de análise dos textos literários que selecionamos.

2.2 Guimarães Rosa

João Guimarães Rosa (1908-1967) tornou-se médico, poliglota e apaixonado


pela linguagem, diplomata e escritor de contos, novelas, romances e poemas da
literatura brasileira. Suas obras literárias foram publicadas na seguinte sequência:
Sagarana (1946), Corpo de Baile (1956), Grande sertão: veredas (1956); Primeiras
estórias (1962); Tutameia – terceiras estórias (1967); Estas estórias (1969) (obra
póstuma); Ave, Palavra (1970) (obra póstuma); e Magma (1997) (obra póstuma).
A linguagem dos escritos de Guimarães Rosa é considerada por estudiosos de
suas obras como quase que purificada “plasticamente, recriando-a em seu estado
nascente, e renovando, assim, substancialmente a semântica e a sintaxe da
linguagem portuguesa” (PINHEIRO apud NUNES, 2013, p.8). Essa linguagem
compreende um campo rico, principalmente no que se refere ao uso da palavra e ao
aprimorado labor a ela aplicado.
Além do apurado trabalho com a linguagem, outro procedimento adotado por
Guimarães Rosa, e favorável, foi o de abolir as fronteiras entre a prosa e a poesia –
não que deixasse de conhecer os conceitos -, o que de determinado modo promoveu
autonomia para a imaginação. Assim, tornou-se desnecessário vincular o processo
literário a uma esfera de conceitos e ideologias que, provavelmente, teriam limitado
sua escrita, ao ponto de não abranger todo o contexto da experiência humana. Não
obstante, as obras de Rosa foram consideradas de caracteres universais, capazes de
compreenderem não apenas o contexto regional ou nacional, mas por ir além.
A leitura da obra rosiana exige certo adentrar em veredas que não são apenas
as da própria linguagem, que se faz de estrutura complexa, mas por diferentes campos
do conhecimento e que nos auxiliam no processo de compreensão da obra literária
em si. Assim, também, pensando as estórias de Guimarães Rosa no que tange ao
medo, precisamos adentrar por áreas do conhecimento que nos sevem de suporte
para melhor entendimento do literário, principalmente porque observamos que o medo
26

é uma constante em suas narrativas, o que nos surpreende, pois os personagens


criados por Rosa pertencem a um contexto mais condizente à bravura e a coragem.
Nesta pesquisa, como já mencionado, serão analisadas as estórias “Campo
Geral”, “Buriti”, “A benfazeja” e “Os chapéus transeuntes”, todas sob a perspectiva do
medo que assola os personagens. No entanto, vejamos, pois, o que evidencia a crítica
rosiana a respeito de tal perspectiva de leitura.

2.2.1 Considerações sobre o medo na crítica Rosiana

Notamos que na crítica rosiana, parte significativa dos trabalhos que abordam o
medo não o trazem como temática central, mas como subtemática ou breves
passagens que auxiliam no processo de análise de outros temas.
No ensaio “Don Riobaldo do Urucuia, cavaleiro dos Campos Gerais”, Manuel
Cavalcante Proença (1983) apresenta passagens de Grande sertão: veredas em que
o medo está contido no sertão como um “equilíbrio das forças adversárias”
(PROENÇA,1983, p.311), como se observa em Joca Ramiro, valente e de quem se
tinha medo – homem que Riobaldo toma como exemplo. O medo, em outra passagem,
é algo que se deve vencer; assim se “buscava a morte nos combates para sufocar o
medo de ficar leproso” (PROENÇA,1983, p. 314). Era preferível a morte a sentir medo
de temer ou ser inválido.
Em “O motivo infantil na obra de Guimarães Rosa”, Henriqueta Lisboa (1983)
procura estudar a presença constante da infância na obra de rosiana. Entre temas que
fazem parte da vida infantil, tais como a alegria, o gosto pela vida e a intuição amorosa,
Lisboa salienta pela existência do medo. De modo mais específico, a ensaísta retrata
aqueles medos vivenciados pelo menino Miguilim, como uma estranheza na obra que
se faz delicada e densa. Isso se dá ao passo que “Insone dentro da noite, a de muitos
medos, o menino sofre sem poder dizer a ninguém a causa de seu sofrimento por uma
questão de honra” (LISBOA, 1983, p.175). O medo, mesmo que sutil, é, pois,
percebido por Lisboa como algo que se põe como “luta entre o dever e a amizade, o
gosto de ser dócil e o desgosto de praticar o proibido [...]”, uma verdadeira batalha
travada entre forças opostas, como bem e mal, e em uma mente que mal começava
a experimentar a vida.
Com Walnice Nogueira Galvão, a temática se mantém sucinta, e em torno de
Grande sertão: veredas. Segundo a referida autora, “Para vencer o medo, Riobaldo
27

tem a intenção de aliviar a ascese. Decide que por um dia vai mortificar sua carne e
seu espírito” (GALVÃO, 1986, p. 98), porém, Walnice demonstra que a personagem
não só tinha medo como precisava vencê-lo. Para tanto, talvez fosse necessário um
dia deixar de lado os escrupulosos comportamentos morais e religiosos – não à toa,
torna-se pactário.
Já Davi Arrigucci Júnior atribui o medo sentido por Riobaldo às incessantes lutas
pelas quais passou como, por exemplo, quando o herói se vê diante da perda de
Diadorim, uma “necessidade de reconciliação do homem sem certezas que luta contra
o medo, do herói problemático que foi sempre Riobaldo, com a realidade concreta e
social onde deve levar até o fim seus dias” (ARRIGUCCI JR., 1994, p. 25), sendo o
medo, nada mais que dificuldades materializadas que impedem, mesmo que
temporariamente, o êxito do protagonista.
Em “Diadorim – a paixão como medium-de-reflexão”, Willi Bolle (2004) aborda,
no segmento final do ensaio, o que intitula de “Breve excurso sobre o Amor, Medo e
Coragem”, e evidencia certa precisão em relação à análise de tal temática. O
estudioso revela que a referida seção surgiu da necessidade de acrescentar algumas
reflexões sobre tais sentimentos, porque era algo factual na escrita de Grande sertão:
veredas, sendo assim, não poderia passar despercebido.
Bolle explica também o quão interligados estão os sentimentos de amor, medo
e coragem entre os personagens Riobaldo e Diadorim. Ele levanta a tese de que, na
passagem da travessia do Rio São Francisco, realizada pelos personagens logo
quando se conheceram, ainda adolescentes, há a descoberta do amor (proibido) e,
também, do medo experimentado por Riobaldo. O protagonista sente medo da
travessia, algo que se mistura ao temor de descobrir gostar de alguém do mesmo
sexo. É ainda no mesmo ambiente que a coragem surge, mas em Diadorim, que
enfatiza para Riobaldo a necessidade de se ter coragem. Para Riobaldo, a coragem
passa a ser “um ensinamento que lhe valerá para toda a vida: numa luta, a coragem
de um é proporcional ao medo do outro.” (BOLLE, 2004, p.235). Tanto é que, na
segunda travessia – com ambos personagens adultos e Riobaldo já inserido no bando
de jagunços –, a cena parece se repetir. Porém, desta vez passa a ser o próprio
Riobaldo quem assegura a necessidade de se ter coragem.
Após a entrada de Riobaldo para o bando de jagunços, o protagonista percebe
que a coragem deve ser extraída do próprio medo. Assim, ele vislumbra estratégias
para provocar o temor do oponente, sem atentar para o fato de que o inimigo também
28

sabe disso e, na esperança de afastar o medo, traçará táticas capazes de


amedrontarem Riobaldo. Então, para exorcizar o próprio medo, Riobaldo finda
pactuando com o Demo. Bolle (2004) conclui que, com essa aliança, Riobaldo termina
compactuando exatamente com aquele contra quem deveria combater: Hermógenes
– que era para ele a representação do Demônio. Logo, o medo que sente de
Hermógenes passa a ser aquele do qual não consegue se libertar ao longo da
narrativa.
Outro medo do protagonista, que Bolle diz ter a mesma semelhança estrutural
que os que sente dos inimigos, é o de amar Reinaldo (Diadorim). Falta em Riobaldo a
coragem para enfrentar os parâmetros sociais, assim como lhe falta a coragem para
se afastar de Diadorim. Em contrapartida, Diadorim afirma disposição em revelar seu
segredo para o amado, após a batalha contra Hermógenes.
O crítico conclui que o protagonista também sacrifica seu amor em virtude de
determinada posição social que poderia alcançar ao lado de Otacília (herdeira de
grandes pastagens), não de Diadorim. Assim sendo, Riobaldo passa a ser mais bem
servido do medo que da coragem, no decorrer da estória. Se a coragem – nesse caso,
a falsa coragem de Riobaldo –, se faz presente em Grande sertão: veredas, nas
considerações de Bolle, mais auxilia o “romancista para contar paralelamente, de
modo criptografado, a história oculta do país.” (2004, p.259), em que mais valiam o
poder e as posições ocupadas socialmente. Todavia, o que de fato move o
protagonista em questão são seus medos.
No que diz respeito à presença direta do medo nos escritos de Guimarães Rosa,
a tese de Afonso Ligório Cardoso (2006)6, intitulada “As formas do medo em Grande
sertão: veredas”, é mais condensada em relação à temática. No estudo é analisado o
medo como um dos impulsionadores da narração de Riobaldo e a conservação do
“poder glorioso” que detém o medo. Cardoso (2006) estuda ainda o “medo ontológico”
e o “medo inventado” pelo protagonista. Para realização da pesquisa, o estudioso
adota a filosofia como instrumento que o auxilia no processo de entendimento dos
tantos medos sentidos e negados por Riobaldo, visto que:

6Cf. CARDOSO, A. L. As formas do medo em Grande sertão: veredas. 2006. 213f. Tese (Doutorado
em Estudos Literários) Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, Araraquara,
São Paulo, 2006, p. 11-25. Na parte introdutória, o autor estabelece a frequência da temática em três
etapas da crítica: a dos estudos fundadores, a dos estudos que compreendem os anos de 1980-1990
e, por fim, os que compreendem os anos de 2000-2004. Ressalta, ainda, que a temática não aparece
de forma específica, mas complementar e, especificamente, sobre Grande sertão: veredas, justificando
assim a importância da própria tese.
29

Como qualquer outro tema tratado por Guimarães Rosa, o medo é ambíguo.
Riobaldo-protagonista sente medo, mas nega sempre que o tenha,
especialmente, ao assumir a chefia do bando. A razão pela qual resolve
contar é o medo do fim, da confusão das coisas, do amor proibido. Em suas
reflexões, mostra como o medo é responsável pela angústia do homem pela
fundação e condição da existência do poder – resguardado por saber
conservado em segredo –, o que coincide com os estudos filosóficos e
antropológicos do medo associado ao desejo de mando. Na verdade, esse
romance não é uma filosofia do medo em forma de ficção, mas um romance
em que se discute filosoficamente o medo, dentro da especificidade da arte
da palavra. (CARDOSO, 2006, p.19)

Assim, o medo encontra-se na base da estrutura narrativa de Grande sertão:


veredas. É ele que, segundo o crítico, em conjunto com as ambiguidades
desassossegam o protagonista e o fazem narrar. Cardoso (2006) também observa
que o medo exerce uma relação direta com a forma do homem sertanejo pensar a seu
próprio respeito e sobre o ambiente hostil em que vive.
Para o pesquisador, não à toa, Guimarães fez uso do que a filosofia e a teologia
levantaram acerca do medo, bem como do próprio dizer sertanejo e, assim, pode
representá-los também em sua obra, por intermédio das exposições do próprio medo
vivenciado pelo protagonista/narrador e pelos demais personagens.
Logo:

[...] o elemento medo, definido pela filosofia, entra em Grande sertão: veredas
pela porta da frente: o herói Riobaldo é um sujeito timorato que se guia
também por essa paixão. O narrador puxa causos para motivarem sua
reflexão sobre o poder do temor impregnado na consolidação de um sistema
social. (CARDOSO, 2006, p.24)

Riobaldo tinha plena consciência do poder exercido pelo medo, fosse sobre ele
ou sobre os demais personagens. É nesse ponto que o supracitado estudioso
classifica como dois os medos de Riobaldo. O primeiro é aquele que o ser em si sente,
o medo ontológico, como o da morte, por exemplo. O outro é o medo inventado pelo
sujeito e que, na narrativa, finda a representação do poder – aquele que provoca o
medo é o detentor do poder.
É deste modo que Cardoso (2006) constrói sua tese. Para ele, não há como
desvincular a leitura filosófica da especificidade da estrutura narrativa e da linguagem
utilizada, posto que “A literatura e a filosofia são formas de conhecimento solidárias e
articuláveis” (CARDOSO, 2006, p. 25).
30

O autor elabora ainda um estudo filosófico, antropológico e histórico do medo,


bem como o gênero tragédia e as relações firmadas com a retórica, para que se possa
entender como se dá “a dinâmica do poder na cidade” e explicar a atuação do medo
e poder na obra em estudo. Para tanto, utiliza como base teórica filosófica Aristóteles,
Espinoza e Descartes, dentre outros.
Cardoso faz também um estudo sobre os caminhos do medo percorridos por
Riobaldo ao longo do que ele mesmo narra sobre sua vida – Riobaldo menino,
Riobaldo jagunço e Riobaldo pós-jagunçagem (o narrador). Desse modo, é feita a
análise do herói que fere a imagem daqueles tempos remotos, visto que, mesmo
ousado como o herói de antes, agora se aproxima mais da figura humana, passa a
ser aquele que teme e questiona “o poder do medo primordial e do inventado”
(CARDOSO, 2006, p.63).
Na mesma pesquisa é realizado o estudo sobre como o principal romance de
Guimarães Rosa é capaz de simular “uma representação do medo nos fundamentos
do poder entre os homens” (CARDOSO, 2006, p.94). A exemplo, o autor toma a
religião de Riobaldo – que mesmo após uma vida de jagunço, chega à velhice como
latifundiário religioso. O fato de ser religioso era para o herói o instrumento necessário
e capaz de paralisar o medo que sentira, utilizando para tanto “o poder glorioso” como
instrumento capaz de livrar o homem dos seus temores.
Cardoso também trata a temática do medo como o lugar-comum do romance de
Riobaldo e Diadorim. Logo, discorre sobre um medo inventado pelo protagonista e o
medo primordial que tende à angústia por ele vivenciada e o leva a “narrar para viver”
(CARDOSO, 2006, p.131).
O referido estudo retrata ainda o desejo de glória do herói como instrumento
capaz de conter o medo. Para isso, toma-se como ponto de partida a análise da dúvida
sobre a realização do pacto; a morte reveladora de Reinaldo/Diadorim; e o estudo da
luta de Riobaldo para conquistar a glória, o que lhe é possível pelo próprio ato de
narrar. Isso porque, “Narrar é resistir à negatividade e à finitude, conservar a vida a
todo custo. Narrando, resiste-se ao poder da morte/temor.” (CARDOSO, 2006, p.178),
o que mais desejava o narrador/protagonista.
Cardoso (2006) conclui que o medo, motivo da narração de Riobaldo, influencia
na própria forma de narrar, visto que não segue dada linearidade, traz intensas
anacronias, tem constantes quebras na sintaxe, criação de vocábulos, constantes
ambiguidades etc. Porém, o principal “empecilho a ser vencido pelo narrador é,
31

portanto, o temor, cujas forças terríveis encarnam-se na imagem do diabo, símbolo da


finitude” (CARDOSO, 2006, p.206)”. Não obstante é que, Riobaldo passa a buscar em
seus relatos “o amor, a fé, o poder a esperança e a glória.” (CARDOSO, 2006, p.207).
Nessa ocasião, é a palavra que se torna a principal arma no controle do medo
aterrador sentido pelo herói.
No que se refere ao estudo do medo em outras narrativas de Guimarães Rosa,
no artigo “Entre a coragem e o medo: uma análise de ‘A hora e a vez de Augusto
Matraga’”, o medo é citado como um dos elementos característicos da novela em
estudo, tendo em vista que “Guimarães tece assim um misticismo dentro do espaço
temporal desta narrativa que se alia aos medos do sujeito sertanejo, proprietário ou
jagunço, conhecedor dos hábitos daquele universo magnífico, porém hostil.” (SILVA;
ARAUJO, 2018, p.4). A pesquisa adota como ponto de partida o medo que move a
narrativa como um todo. Os personagens, em especial o protagonista Nhô Augusto,
se encontram encurralados pelo temor, ao passo que é deste mesmo sentimento que
adquirem coragem para seguirem lutando. O estudo assume uma trajetória de análise
do medo e as relações estabelecidas socialmente, por vezes, entrelaçadas pela
coragem e pelo poder.
No processo de análise, a estória é dividida em três partes, que compreendem
as respectivas células dramáticas. Na primeira delas é apresentado o estudo sobre a
coragem do protagonista, adquirida mediante a força bruta, sendo também essa a
principal causa de sua queda. No segundo conflito, expõe-se a análise da queda e do
renascimento do protagonista que se encontra cercado pelo medo da punição divina,
em meio à punição do sertão e obrigado a fazer a travessia. Já a terceira e última
parte aborda a retomada do caráter do protagonista e a conquista da tão aclamada
redenção.
A partir desse levantamento, nota-se que, na narrativa, “o poder e a coragem
estão intimamente ligados e há toda uma segurança do protagonista em um primeiro
momento, mas, ingenuamente, a coragem que tem também é o que o move em
direção ao medo que o isola e o permite recomeçar, levando-o a passar por todo um
processo místico em busca da tão almejada redenção.” (SILVA; ARAÚJO, 2018, p.14).
Na busca incessante pelo perdão dos pecados, o protagonista se vê diante do medo
de não o obter. Desse modo, a narrativa surpreende ao revelar “a condição humana
em meio a um universo hostil em que mais vale a coragem, pois o medo seria a mais
32

alta representação da vergonha [...]” (SILVA; ARAÚJO, 2018, p.14-15). Não obstante,
mais vale ao protagonista enfrentar seus medos e tentar obter a glória.
Se em “A hora e a vez de Augusto Matraga”, o protagonista se vê envolto entre
a coragem e o medo, obrigado a decidir qual destes – ou ambos – sentimentos deve
guiá-lo em sua trajetória, veremos que em outras estórias de Guimarães Rosa os
personagens e/ou protagonistas nem sempre têm esta opção.
Posto isso, vale ressaltar que a fim de delimitar melhor esta tese, pretendemos
adotar um estudo sobre a categoria do medo enveredado por caminhos outros que
não apenas filosófico ou político, como já feito por outros pesquisadores. Assim, o
estudo em questão propõe uma investigação sobre o medo e relações estabelecidas
com o amor, a religião, a angústia, a morte, o destino etc. em duas fases da vida de
determinados personagens, a do infante e a do idoso, que ocorrem no processo de
escrita de algumas estórias de Guimarães Rosa. Sabendo, pois, que a literatura nos
pede sempre mais uma leitura, pretendemos aqui contribuir com a fortuna crítica e
analítica das obras literárias do supracitado escritor.
Assim sendo, vejamos como o elemento medo marca a vida e as relações sociais
de protagonistas e personagens de estórias rosianas.
33

3 NO UNIVERSO DA CRIANÇA: MEDO E PROJEÇÕES

O prazer muito vira medo, o medo vai vira


ódio, o ódio vira esses desesperos?

(Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas)

A presença de elementos como o amor, a coragem, a candura e os


encantamentos da infância, a bravura do sujeito sertanejo, a superioridade do mais
velho, o patriarcado, a constância da morte e as incertezas do destino são marcas
assinaladas pelas narrativas rosianas. Mas, atrelado a esses componentes percebe-
se a presença constante e provocadora do elemento medo, que deixa rastros e firma-
se na estrutura e no contexto dessas estórias. A inquietação para compreender a
razão de ser dessa presença nos lança às linhas tortuosas percorridas por cada
personagem ao longo da narrativa, suas relações pessoais, anseios e frustrações.
Pois, nas narrativas de Rosa “[...] a criança apresenta novas significações frente a
diferentes aspectos, como as decepções, frustrações e perdas. A personalidade
infantil é retratada com espontaneidade e não pelo olhar dos adultos.” (SARRAPIO,
2017, p.49). Desse modo, neste capítulo, em especial, percorreremos os caminhos
trilhados pela criança Miguilim, em “Campo Geral”.
Pensar a presença do medo atrelado ao universo infantil requer um cuidado
especial para que não caiamos no equívoco de afirmar que as crianças sentem medo
por natureza ou que o medo é específico ao universo infantil. Nosso cuidado com
essas imposições precisa ser redobrado, pois o medo tem sua presença confirmada
em qualquer faixa etária.
Além disso, precisamos considerar o fato de que a criança, por vezes, foi um
sujeito sem voz e passivo diante da sociedade, questão também registrada na
literatura. Na condição de um indivíduo à margem, a criança – assim como também
acontece com o idoso, a mulher, o negro – “e alguns outros segmentos da humanidade
foram ou continuam sendo outros eles e outros elas no discurso que os define”
(LAJOLO, 2003, p. 230), seja ele científico, educacional ou artístico. Mas, é no espaço
literário que esses discursos também assumem o papel de dar voz à criança. Para
tanto, entra em vigor o discurso do narrador.
34

Logo, nos cabe também o cuidado ao analisar o narrador da estória em estudo,


de modo a considerar como o meio infantil é captado e exposto. Precisamos, portanto,
aplicar os seguintes questionamentos: a criança, mesmo que o narrador seja em
terceira pessoa, tem voz? Como seus sentimentos são capturados? E, qual a sua
posição no espaço narrativo? Essas questões são importantes no procedimento de
análise, pois nos darão suporte para a compreensão do sentimento de medo
apresentado na tessitura narrativa e suas possíveis consequências em relação aos
elementos que a constituem, às relações sociais e/ou filosóficas que, porventura, se
firmam no decorrer do processo narrativo.

3.1 “Campo Geral”: anseios e medos

Interessa-nos a análise do medo que se firma nas palavras e ações dos


personagens de “Campo Geral”, em especial nas do protagonista Miguilim.
Procuraremos estudar as vinculações estabelecidas entre os mais diversos tipos de
medo que surgem no ambiente infantil e familiar e as relações sociais e/ou filosóficas
por ele firmadas na estrutura da narrativa.
Esta estória integra a obra Corpo de Baile, publicada pela primeira vez em 1956,
mas que aparece em 1964, no livro Manuelzão e Miguilim, fruto da divisão da obra
original em três partes. Preenche a narrativa de “Campo Geral” um conjunto de medos
e anseios que circundam principalmente Miguilim, mas que também afeta os demais
personagens. Em meio a um ambiente hostil, os personagens endurecidos pelo peso
da labuta no campo e pela sobrevivência, rodeado por pessoas analfabetas ou pouco
letradas, encontra-se o menino pobre, quase cego, conhecedor apenas do que a
natureza se encarrega de ensinar. Uma criança repleta de sonhos e que precisa,
diariamente, lutar contra as imposições do meio, dos mais velhos e, principalmente,
do medo que o cerca. Miguilim se vê em um ambiente em que ele mesmo precisa
tomar decisões, fazer suas próprias escolhas, agir, sendo assim obrigado a aprender
a lidar com e vencer seus mais variados temores.
“Campo Geral” é ainda uma narrativa imbuída de sentimentos, fazendo o
protagonista Miguilim maravilhar pela vitalidade que apresenta, apta a renascer por
várias vezes ao longo da estória, mesmo em meio a tantas adversidades, temores e
anseios.
35

Adotaremos como procedimento para a análise a divisão da estória em partes,


em que observaremos: primeiro, a criança; em seguida, sua inserção no ambiente
familiar e o insistente medo de errar; posteriormente, como se dá a ocorrência do
medo vivenciado pelo protagonista e o irmão Dito, principalmente perante a
possibilidade e aproximação da morte; também, a relação ira e ausência do medo; e,
por fim, analisaremos, de modo breve, a possibilidade dos medos de Miguilim serem
projetados em Miguel de “Buriti”, o mesmo personagem já adulto e veterinário.

3.1.1 Breviário sobre a estória

Em matéria de estilo, “Campo Geral” é uma narrativa que não obedece a


causalidade e sequência lógica dos fatos, mas sim segue o fluxo das recordações do
menino Miguilim. Logo, o leitor fica detido ao universo de informações, pensamentos,
ações e fatos que parecem ir e vir por toda a leitura. Isso ocorre exatamente porque o
narrador assume uma forma de contar em que fica limitado ao mundo do personagem
Miguilim. É por intermédio desse narrador de onisciência seletiva7, que não nos
permite ver os acontecimentos pelos mais diversos ângulos, já que se fixa na mente
de Miguilim, que conseguimos enveredar e compreender o que ocorre com o menino:
seus desejos, medos, aventuras etc.
Desse modo, a forma como a narrativa nos chega, permite que vejamos os
acontecimentos pelo olhar e a compreensão da criança. É por intermédio de suas
percepções sobre o ambiente sertanejo e hostil, repleto de crenças e valores
característicos da rusticidade e estilo de vida a que era sujeito, que seremos guiados
por toda a narrativa. Sem deixar de lado a posição de quem conduz o relato, o narrador
evidencia a subjetividade do menino e nos permite mergulhar nesse universo.
Podemos dizer que a forma de narrar aplicada à estória, também torna a narrativa
mais poética, pois enveredamos por caminhos tipicamente pueris e encantadores,
como veremos a posteriori.
Meguilim era um menino que vivia no Mutúm, lugar remoto da região de Minas
Gerais, juntamente com a mãe Nhanina, o pai Nhô Béro, quatro dos cinco irmãos

7Cf. FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico. Trad.
de Fábio Fonseca de Melo. Revista USP, São Paulo, n.53, p.166-182, março/maio 2002.
36

(Chica, Tomézinho, Dito, Drelina), o tio Terêz e vovó Izidra. Além destes, viviam ali a
preta velha Mãitina e a empregada Maria Pretinha.
Sensível, Meguilim tinha muita proximidade com a mãe, o que desencadeava
certas estranhezas e ciúme no pai. Drelina e Tomézinho costumavam provocar o
irmão, enquanto Chica e Dito o consolavam. Dito era mais novo que Miguilim, esperto
e ágil, gostava muito do irmão, por isso costumava defendê-lo. Dito passa a ser uma
espécie de consultor do irmão. Era, dentre os personagens, o mais próximo e amigo
de Miguilim. Tio Terêz era outro amigo próximo, mas precisou se afastar por causa de
uma briga com o irmão Béro. Não fica claro o motivo da discussão, mas observando
a visão lacunosa de Miguilim sobre os fatos, o posicionamento da vovó Izidra e a
bravura de Béro com a esposa, chegamos a acreditar que Nhanina (Nina) mantinha
um relacionamento amoroso com o cunhado.
Após o afastamento de Tio Terêz a narrativa chega ao ponto mais dramático,
que se dá por intermédio da morte de Dito, acontecimento extremamente doloroso
para todos, principalmente para Miguilim. Porém, este acontecimento passa a
funcionar como impulsionador do amadurecimento de Miguilim, tendo em vista que
ele assume atitudes que antes cabiam a Dito. O menino sente como se Dito estivesse
a guiá-lo, presumindo que seriam aquelas as atitudes que o irmão o orientaria a tomar.
Miguilim começa a trabalhar no roçado, forçado pelo pai, e resiste bravamente
ao sol escaldante de todos os dias. A vinda do irmão mais velho (Liovaldo) ao Mutúm,
após a morte de Dito, também é algo marcante na narrativa, pois, movido por espírito
maléfico, Liovaldo acaba por maltratar e ofender o menino Grivo, que fora até a casa
de Béro na intenção de vender dois patos, sustento para ele e a mãe. Miguilim
presencia a cena e defende Grivo, agredindo o irmão. Indignado com a falta de
respeito ao próprio sangue, o pai resolve puni-lo, agredindo-o violentamente. Todos
se surpreendem com a atitude do menino, que sempre chorava ao apanhar, mas que
naquele dia ficou paralisado de raiva, não chorava, ria, e apenas pensava que quando
crescesse, mataria o pai. A cena chocou todos da família, inclusive o agressor, ao
ponto de acreditarem que ele enlouquecera em virtude da surra que tomou. Este
conflito permite ao menino certa conquista e respeito dos que compunham o seio
familiar. Dias após o embate, Miguilim deixa de mostrar submissão ao pai,
provocando-o. Como revide, Béro quebra as gaiolas e os brinquedos do garoto, o que
aumenta a ira de Miguilim ao ponto de quebrar os brinquedos que sobraram e soltar
37

os passarinhos que estavam engaiolados, uma tentativa de mostrar que havia


crescido e não precisava mais brincar.
Miguilim continua trabalhando e ajudando o pai e Luisaltino no roçado. Não
demora e o menino adoece gravemente, alterando o fluxo do pensamento, entre leves
momentos de consciência e longos de inconsciência. Acamado, Miguilim presencia o
pai chorando por causa da enfermidade do filho e por acreditar que Deus o punia,
levando seus filhos. O menino sorri e o pai chora mais ainda. Ainda enfermo, fica
sabendo que o pai, em fúria e, provavelmente por ciúme, mata Luisaltino e foge. Em
seguida, vovó Izidra conta que Nhô Béro não suportara o que fez e se enforcara no
meio do cerrado.
No momento em que Miguilim começa a se recuperar, é que toma consciência
do que de fato ocorrera ali e de que, agora, o tio Terêz havia retornado para o Mutúm
para casar-se com Nhanina, mesmo sem o consentimento de vó Izidra, que vai
embora indignada com os fatos.
No desfecho se descobre que Miguilim era míope. Isso acontece quando pela
região passa o Dr. José Lourenço, que estranha a forma como o menino olha para as
coisas, então tira os próprios óculos e os põe no garoto que, automaticamente,
começa a ver as coisas e o Mutúm como jamais vira. O próprio fato de pôr os óculos
para enxergar deixa evidente, também, o quanto o menino vivia preso àquele universo
que não o permitia ver (no sentido mais amplo da palavra) o mundo ao seu entorno.
A cena revela como Miguilim precisava se libertar daquele universo tão hostil, logo, os
óculos acabam se tornando a representação da liberdade do menino que, a partir
daquele momento, alçaria novos horizontes, viveria na cidade, estudaria e poderia ser
feliz. Não obstante, dias depois, Miguilim parte para a cidade com o Dr. que o fez
enxergar.

3.1.2 Impulsionador do medo no universo de Miguilim: o erro

Além dos pais, o tio, a vó e os irmãos mais novos, Miguilim ainda tinha o irmão
Liovaldo, o mais velho e que morava na vila com um tio, mas que os visitava vez ou
outra. Dos cinco irmãos, Miguilim costumava ser mais próximo de Dito e Chica, os
dois mais novos. O menino dócil convive com pessoas que tendem a agredi-lo física
e verbalmente no decorrer da narrativa. Como os castigos tornam-se uma constante
38

em sua vida de menino, em pouco tempo Miguilim desenvolve o persistente medo de


errar, como veremos a seguir.

3.1.2.1 Medo dos castigos de Deus

É ainda no início da leitura que somos apresentados a “um certo Miguilim”


(ROSA, 2016a, p.25), menino a quem não conhecemos o nome, apenas o apelido,
aparentemente carinhoso. No que se refere aos apelidos ao longo na narrativa, que
deveriam ser aplicados como demonstração de carinho, por vezes percebemos que
eles acompanham o viés da precariedade das condições do local em que residem:
distante de tudo “e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto
remoto, no Mutúm. (ROSA, 2016a, p.25) – era desta forma, distante de tudo, que
Miguilim e os demais personagens se viam no Mutúm, como praticamente um nada,
reduzidos na maioria das vezes a meros apelidos.
Os nomes próprios acabam sendo diminuídos ou esquecidos – assim como
ocorre com os nomes das veredas e locais, dada a importância da região, das
distâncias percorridas ou da própria insignificância do lugar. No que se refere às
pessoas, seus apelidos, carinhosos ou não, são mais frequentes que a aplicação
do nome próprio. Algumas vezes, os mesmos apelidos estão associados à
indiferença que o personagem pode representar para outras, como é o caso do
Bustica, filho do vaqueiro Salúz, menino bobinho que fazia tudo o que
mandavam.
Porém, observamos também que os nomes próprios da maioria dos
personagens têm origem bíblica, o que enfatiza o peso religioso como mais uma
das marcas de “Campo Geral”. Alguns destes personagens carregam consigo a
força simbólica dos nomes que possuem ou mesmo a ironia neles contidos.
Alguns exemplos são Bernardo (Béro), Expedito José (Dito) e Miguel (Miguilim).
Bernardo é um nome de origem germânica, da junção de ber (urso) e hart (forte),
ou seja, aquele que é forte como um urso8. O nome ganhou notoriedade por causa de
São Bernardo de Claraval (século XII), monge que dedicou sua vida aos estudos, às
orações e à caridade, pois entendia a fraqueza das pessoas e as auxiliava. Nesse
sentido, Béro encontrava-se distante do Santo. A escolha do nome do personagem

8 OLIVER, Nelson. Dicionário de nomes. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010, p.88.


39

parece mais uma ironia. Nhô Bernardo transporta consigo a força do urso no exercício
da profissão de vaqueiro e na labuta da lavoura, enquanto a compreensão do
sofrimento do outro e o dom da caridade eram por ele desprezados, como se percebe
no dia a dia com as crianças, no trato com a mulher e o irmão e, no final, com o
assassinato de Luisaltino. As especificidades do santo que deu origem ao seu nome
– provavelmente, a escolha do nome tenha sido feita pela mãe Izidra que, como vimos,
seguia fielmente os princípios aplicados pelo catolicismo – são reversos em Béro.
O nome de Dito tem dupla composição, Expedito9 do latim Expeditum
(desembaraçado, livre) e José10 do hebraico Yosef (aquele que acrescenta; acréscimo
do senhor), que denotam exatamente o posicionamento e as atitudes do menino na
narrativa: o garoto inteligente, destemido e livre.
Já o protagonista Miguilim, – de quem só se tem conhecimento do nome
verdadeiro ao ler “A estória de Lélio e Lina” ou “Buriti” – Miguel11, vem do hebraico
Mikhael (quem é como Deus?), em forma de pergunta e simbolizando a humildade de
Miguel ao não se igualar a Deus. No Livro de Daniel12, o Anjo Miguel aparece como o
grande chefe e protetor dos filhos do homem. Nas epístolas de Judas13, Miguel utiliza
o nome do Senhor para repreender o demônio e no Livro do Apocalipse14, para
combatê-lo. Associado ao significado do nome, Miguilim carrega o nobre sentimento
de defesa dos inocentes, como quando defende Grivo das pancadas de Liovaldo,
além da crença na existência de um Deus poderoso, para quem rezava ou com quem
realiza pactos. Porém, Miguilim tinha menos coragem que a de quem confia
plenamente no Senhor, como o Anjo Miguel, por isso, suas dúvidas e medos
percorrem quase toda a narrativa. O modo de agir de Miguilim corresponde ao
pensamento Aristotélico de que só podemos sentir medo daquilo que nos provoca
certa esperança de que teremos alguma salvação ou de que aquilo é algo pelo qual
vale “a pena lutar” (ARISTÓTELES, 2005, p.176). Miguilim – diminutivo de Miguel –
representa, pois, não só uma criança com um apelido carinhoso como também um ser

9
OLIVER, Nelson. Dicionário de nomes. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010, p.140
10
Ibidem, p.193.
11 Ibidem, p.220.
12 Cf. BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada: Ave-Maria. Tradução dos originais grego, hebraico e aramaico

mediante a versão dos Monges Beneditinos e Maredisous (Bélgica). 5ª edição. São Paulo: Ave-Maria,
2011, p.1524.
13 Ibdem, p.1991.
14 bdem, p.2005.
40

de pouca coragem, porém um lutador, menino que batalhava e mantinha viva a


esperança de uma vida melhor, como veremos.
No trecho a seguir, Miguilim se envolve em um dos frequentes episódios de
mágoa e que acaba por impulsioná-lo ao medo:

– Que é que você trouxe pra mim do S’rucuiú? – a Chica perguntou.


– Trouxe este santinho...
Era uma figura de moça recortada de um jornal.
– É bonito. Foi o bispo que deu?
– Foi.
[...]
– Estava tudo num embrulho, muitas coisas... Caíu dentro do corgo, a água
afundou... Dentro do corgo tinha um jacaré, grande...
– Mentira. Você mente, você vai para o inferno! – Dizia Drelina, a mais velha,
que nada pedira e tinha ficado de parte.
– Não vou, eu já fui crismado. Vocês não estão crismados!
– Você foi crismado, então como é que você chama?
– Miguilim...
– Bobo! Eu chamo Maria Adrelina Cessim Caz. Papai é Nhô Bernardo Caz!
Maria Francisca Cessim Caz, Expedito José Cessim Caz, Tomé de Jesus
Cessim Caz... você é Miguilim Bôbo...
Mas Tomézinho, que tinha só quatro anos, menino neno, pedia que ele
contasse mais do jacaré grande de dentro do córrego. E o Dito cuspia para o
lado de Drelina:
– Você é ruim, você está judiando com Miguilim! (ROSA, 2016a, p.29)

Em meio às crianças, Miguilim era alvo de chacota, principalmente por parte da


irmã mais velha15. Porém, nos parece que Miguilim tem sempre a necessidade de
agradar aos irmãos e amigos ou mesmo de ter alguma importância entre eles. Na
passagem supracitada, ele afirma ter trazido um santinho para Chica e ter perdido no
córrego os presentinhos dos demais irmãos.
Sagaz e com a perspectiva de embaraçar o irmão, Drelina o retruca, chamando-
o de mentiroso. Em um universo em que as concepções místicas e religiosas estão
diretamente relacionadas com boa parte dos medos sentidos pelos personagens que
preenchem aquele espaço, tipicamente sertanejo e hostil, Drelina usa artifícios ligados
ao campo religioso para forçar o irmão a proferir a verdade. A irmã considera os
prováveis “castigos divinos” como instrumento de punição aos que faziam algo de
errado. Essa crença passa a ser uma constante entre as crianças que crescem em

15 Essa passagem faz-se significativa visto que, Drelina nega a existência de um nome para o irmão.
Porém, em “A estória de Lélio e Lina” (ROSA, 2016b, p.217), é ela quem pergunta para Lélio se, talvez,
ele tenha conhecido o irmão, Miguel Cessim Cássio, o Miguilim, quando esteve no Curvelo. Afirma
ainda que Miguilim tinha ido pequeno para a cidade e que, lá, estudava e trabalhava. Como
observamos, Drelina é aquela que nega ao irmão o conhecimento do nome em “Campo Geral”, mas é
quem o nomeia em “A estória de Lélio e Lina”. Nesse sentido, a nomeação parece ter nexo apenas
quando relacionada ao valor que a imagem de Miguilim pode representar para os demais personagens.
41

meio a um duplo universo em que estão em jogo as forças do bem e do mal, o céu e
o inferno. Inocentes, recai mais sobre os pequenos o peso do castigo.
Para Miguilim, provavelmente, o erro que tange ao pecado seria o seu maior
temor. Ele sabia que não tinha falado a verdade sobre o santinho e sobre os demais
mimos caídos no córrego. A única maneira de escapar das punições divinas era, para
ele e naquela dada ocasião, o fato de ser crismado16 e de, por isso, ter deixado de ser
pagão ou pecador. Em O pecado e o medo, Delumeau (2003) discorre sobre a
condenação dos que não foram batizados e que, por isso, permanecem no pecado
original ou primitivo. Tal teoria era algo enaltecido tanto por Santo Agostinho como
pelo Concílio de Cartago (418). Para ambos, o pecado primitivo era “a tal ponto
enorme que deveria logicamente levar a justiça divina ofendida a lançar no inferno
toda a humanidade pecadora em Adão. Mas a redenção isenta os eleitos desse trágico
destino.” (DELUMEAU, 2003, p.468). Ao que vemos na passagem de Campo Geral,
tal teoria se mantem viva e se enraíza até mesmo entre as crianças.
Apesar de crismado, Miguilim não atenta para o sentido da crisma, o dever de
ser similar a Cristo – não mentir. Também não considera o fato que Dele se aproximou
quando praticou a bondade, algo que fez quando pretendia agradar aos irmãos. Mas,
Drelina, ciente da inocência do irmão e de que ele era conhecedor apenas do seu
codinome, tira proveito, negando-lhe o nome próprio. Drelina profere o nome completo
do pai e de todos os irmãos, para provar que Miguilim era ainda um pecador. Se não
tinha um nome, não tinha sido crismado de verdade. Logo, se ainda mentiu, iria para
o inferno. Nesse trecho, notamos que é negado ao menino dócil, que apenas queria
acarinhar aos irmãos – inclusive Drelina –, não apenas a identidade, mas a
oportunidade de redenção e de liberdade eterna a que ele imaginava.
A possibilidade de “ir para o inferno”17 torna-se uma constante na vida do
pequeno Miguilim. Todos os prováveis erros, cometidos pelos mais velhos ou mesmo

16 Cf. LURKER, Manfred. Dicionário de simbologia. Trad. de Mario Krauss, Vera Barkow. 2ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2003, p.167. Encontramos no dicionário de simbologia a explicação de que a
crisma confere ao sujeito uma força especial advinda do Espírito Santo. Tomado desta força, o indivíduo
tem como obrigação espalhar a fé cristã por intermédio de palavras e ações. Durante a crisma, o que
torna o sacramento eficaz são três sinais: 1. A imposição das mãos: que tem como significado a
proteção; 2. A selagem pelo sinal da cruz: que legitima a fé em Cristo; 3. A unção com o óleo santo: o
sinal de que “Deus dá as forças para viver da fé” ou seja “o confirmado deve assemelhar-se a Cristo, o
Ungido”.
17 Não apenas em “Campo Geral”, mas em quase todas as narrativas rosianas, notamos certo

misticismo religioso, algo que põe em contraponto as figuras de Deus e do Diabo, como se observa,
por exemplo, em Grande sertão: veredas, em que há a grande dúvida do protagonista sobre o provável
pacto realizado entre ele e o demo ou em “A hora e a vez de Augusto Matraga”, estória em que Nhô
42

pelas crianças, estavam diretamente relacionados com a proximidade do demônio ou


marcha para o inferno. Esse pensamento aparece em várias passagens, tais como no
trato à preta Mãitina: “― Traste de negra pagã, encostada na cozinha, mascando fumo
e rogando para os demônios dela, africanos!” (ROSA, 2016a, p.40). Este fato está, na
maioria das vezes, relacionado à forma de pensar dos mais velhos, principalmente
Vovó Izidra, católica implacável e intolerante a outra forma de religião que não a sua.
Por muitas vezes na narrativa, Vovó Izidra reclama com as crianças por causa de
Mãitina, outras chega a queimar os santinhos que a preta velha esculpia na madeira,
afirmando que a velha estava sujeita ao inferno, devido ao paganismo a que seguia.
Não obstante, as crianças acreditavam na vó.
Durante uma tempestade – após a partida abrupta de tio Terêz e a surra que
Miguilim leva do pai, por tê-lo impedido de bater na mãe –, Vovó Izidra também culpa
a nora Nhanina por deixar que os demônios se aproximassem dos homens da casa,
por isso, “a gente carecia de rezar sem esbarrar” (ROSA, 2016a, p.41). As crianças
acabam internalizando essa forma de pensar e, antes de dormir, comentam que não
gostam de alguns adultos da família: Dito de tio Terêz, Miguilim de Vovó izidra. Por
isso, confabulam se pecavam ou não. Segundo Kierkegaard (2013), em O conceito
de angústia, o ser humano vive angustiado em todo o gesto de pensamento, que é
livre, mas que também permite a entrada do pecado no mundo, assim como ocorreu
com Adão. Kierkegaard explica que a angústia (nada) é assim uma pré-condição para
a queda, e o pecado ocorre quando o eu passa da inocência para a queda. Logo, o
pecado é fruto da liberdade humana, que, por sua vez, só pode acontecer por
intermédio da angústia. Notamos, na referida passagem da narrativa, que Miguilim se
encontra angustiado, ou seja, entre o “nada” referente à angústia e a possibilidade do
pecado, saída da inocência, por intermédio da liberdade – aqui, referente à escolha
de não gostar de Vovó Izidra e gostar de Mãitina que era pagã –, e entrada em um
sentimento de culpa, característico da perda da inocência e possibilidade da
pecaminosidade.
O mesmo pensamento sobre o pecado se vê na seguinte passagem:

― "Mas, Dito, quando eu crescer, vai ter algum menino pequeno assim como
eu, que não vai gostar de mim, e eu não vou poder saber?" ― "Eu gosto de
Mãitina! Ela vai para o inferno?" ― "Vai, Dito. Ela é feiticeira pagã... (ROSA,
2016a, p.43)

Augusto Matraga procura se redimir dos erros cometidos, com o propósito de alcançar a redenção dos
pecados.
43

Apesar de cheio de dúvidas, o menino forma um pensamento lógico: se ele


estava sujeito a ir para o inferno por não gostar de Vovó Izidra, provavelmente,
acontecesse o mesmo com outra criança em relação a ele adulto. Não bastasse o erro
de não gostar da avó, ainda se soma o fato de poder ir para o inferno só porque
gostava da preta velha, considerada feiticeira pagã.
Assim, a possibilidade da morte assusta, pois as crianças tinham certeza de que
erravam, tendo em vista ainda o fato de nem sempre obedecerem aos pais,
conscientes de que cometer travessuras é uma incessante na rotina de crianças. Além
disso, eles rezavam pouco, não eram como Vovó Izidra. Logo, poderiam até ser
pagãos como Mãitina. Essa forma de pensar se propaga em boa parte da narrativa e
denota modos remotos do cristianismo.
As crianças também temem que o adulto cometa algum erro que possa levá-lo
ao inferno. Quando Dito conta para Miguilim que soube por um vaqueiro, em segredo,
que Vó Benvinda “quando moça tinha sido mulher-atôa. Mulher-atôa é que os homens
vão em casa dela e ela quando morre vai para o inferno” (ROSA, 2016a, p.41), o
menino logo estabelece uma relação com as reclamações da Vóvó Izidra sobre
Nhanina. A vó paterna afirmava “[...] que o demônio diligenciava de entrar em mulher,
virava cadela de satanás...” (ROSA, 2016a, p.41) – passagem associada ao adultério
de Nhanina ao esposo, cometido junto a tio Terêz. Por isso, Miguilim também passa
a temer o erro da mãe e, consequentemente, a morte, já que com ela poderia aderir
às profundezas do mundo sombrio.
Para entender a existência do medo do inferno, ambiência predominantemente
cristã, buscamos os estudos de Delumeau (2009) sobre o medo, especificamente no
que se refere à espera do retorno de Deus e do anúncio do Juízo Final. De acordo
com o referido estudioso, a cristandade demonstra esses temores desde que o fim
dos tempos fora declarado. Tal acontecimento foi relatado na bíblia por Daniel e outros
personagens do Velho Testamento, bem como no Livro do Apocalipse. O medo atinge
grandes proporções na humanidade cristã entre os séculos IX e XII. Mas, Delumeau
afirma ainda que entre os séculos XVI e XVII, período da Renascença e nascimento
do protestantismo, os teólogos também ensinavam que Deus enviava demônios ou
feiticeiros para realizarem sua justiça:

Assim como Deus”, escreve Jean Bodin, “envia as pestes, as guerras e as


fomes por intermédio dos espíritos malignos, executores de sua justiça, assim
44

faz ele com feiticeiros e principalmente quando o nome de Deus é


blasfemado, como é hoje em toda parte, e com tal impunidade e licença que
as crianças fazem disso ofício. (BODIN apud DELUMEAU, 2009, p.336)

A propagação da existência do inferno e de um Deus punitivo, que voltaria com


o propósito de arrebatar os puros e penalizar os impuros, aumenta entre os cristãos.
O temor a um Deus punidor, assim como da libertação de Satã que imporia os mais
terríveis castigos aos pecadores, foi disseminado tanto pelos cristãos como pelos
protestantes por toda a era moderna. Esse pensamento mostra-se firme na linguagem
de Vovó Izidra e no círculo familiar de que faz parte.
Em meio a pessoas tipicamente regidas pelos princípios religiosos cristãos,
como se observa por intermédio das avós que rezam incessantemente – seja como
uma troca pelo perdão dos pecados: “Vó Benvinda, antes de morrer, toda a vida ela
rezava, dia e noite, caprichava muito com Deus [...]” (ROSA, 2016a, p.41) ou mesmo
para não cair mais em tentações e obter perdão divino, como se firma na voz de Vovó
Izidra “– “Os meninos necessitam de saber, Valença de rezar junto. Inocência deles é
que pode livrar a gente de brabos castigos [...]” (ROSA, 2016a, p.41) –, Miguilim vive
e apreende tais conceitos. O medo que Miguilim, os irmãos e os demais personagens
têm da vida eterna nas profundezas sombrias do inferno, explica-se pela crença na
existência de um Deus que retornaria para garantir aos justos a vida eterna e, aos
demais, as mais severas penas.
Ainda nessa parte da narrativa, notamos um misto de sentimentos e ações que
parecem incorporados à representação do próprio espaço. É anunciada por tio Terêz
a chegada de uma tempestade. Isso ocorre após a turbulenta briga entre Béro e
Nhanina, que se dá justamente por causa de Tio Terêz, e que finda com Miguilim no
castigo. A partir deste momento, os acontecimentos parecem se intensificar à
proporção que a tempestade ganha forças destrutivas. O episódio da chegada de tio
Terêz em casa, após a caça, carregando um coelho ensanguentado, pendurado pelos
pés, e o anúncio da aproximação de uma tempestade, também se tornam indicativos
de uma possível tragédia familiar. O narrador mescla os assuntos:

Agora voltava, mas ouviam a voz do tio Terêz entrando, vorôço dos
cachorros. Tio Terêz contava que tinha esbarrado o eito da roça, porque uma
chuva toda vinha, ia ser temporal: – “na araçariguama do mato de baixo, os
tucanos estão reunidos lá, gritando conversando, cantoria de gente...” Tio
Terêz trazia um coelho morto ensanguentado, de cabeça para baixo. [...]
Também não aceitava a licença de sair, dada por tio Terêz; com vez disso
pensava: será que, o tio Terêz os outros ainda determinavam d’ele poder
mandar palavra alguma em casa? Em desde que, então, a gente obedecer
de largar o lugar de castigo não fosse pior.
45

Em todo o dia, também, arrastavam os bichos matados, por caça. O coelhinho


tinha toca na borda-da-mata, saia só no escurecer, queria brincar, sessépe,
serrelé, coelhinho da silva, remexendo com a boquinha de muitos jeitos,
esticava pinotes e sentava a bundinha no chão, cismado as orelhas dele
estremeciam. Devia de ter o companheiro dele, marido ou mulher, ou irmão,
que agora esperava lá na beira do mato, onde eles moravam, sòzim. “– Qu’é-
de sua mãe, Miguilim?...” – tio Terêz querenciava. A mãe com certo estava
fechada no quarto, estendida na cama, no escuro, como era, passado quando
chorava. Mais que matavam eram os tatús, tanto tatú lá, por tudo. (ROSA,
2016a, p.35)

Podemos observar que as ações dos personagens são intensificadas tais quais
as ações da natureza e dos animais. A caça e a tempestade assemelham-se com a
situação vivenciada no próprio lar: a mãe que, assim como o coelhinho que aguarda
o retorno do companheiro, se entoca em seu quarto escuro; tio Terêz que, sem saber,
está sendo caçado pelo irmão Béro, aproxima-se à imagem do coelhinho que corre
serelepe pelos campos, sem imaginar o perigo que o espreita (o caçador).
Há também uma constante sucessão de ações que se dão com o uso do tempo
verbal no pretérito imperfeito (voltava, ouviam, contava, aceitava, sentava, esperava,
chorava, entre outros) e denotam acontecimentos que não terminam por completo
quando outros também ocorrem. Nesse caso, caracterizam a aproximação entre as
ações dos personagens e o que acontece na própria natureza (como uma forma de
castigo divino).
Observamos ainda, o uso dos homônimos perfeitos (mato, mata, matavam e
matados), que por vezes se referem ao mato (substantivo) existente, outras a matar
(verbo). Isso dá ao trecho sentido de aproximação entre o espaço e as ações. Essa
relação se estabelece entre a caça e morte dos bichos da mata (provocada por tio
Terêz), e pela fuga de tio Terêz (pela mata), fugindo da ameaça de morte advinda do
próprio irmão. Outro indicativo de condição de similitude, que reitera a ligação entre
as ações da natureza e os conflitos do ambiente familiar, é o uso do advérbio
“também” entre os parágrafos supracitados.
Notamos que nessa passagem há uma sonoridade significativa, pondo em
prática uma motivação do signo estético. Como observamos, há uma potencialidade
expressiva em torno dos fonemas [ṙ], [r], [v], [t], [m], [n], [s], [K], [d] presentes na
supracitada passagem. No primeiro parágrafo existe uma maior incidência dos
fonemas [ṙ], [t], [s] e [d]. A presença destes deixa sugestiva a ideia de ruídos: que
vibram e rasgam [ṙ]; são secos e violentos [t], [d]; ou que parecem prolongados sibilos
[s]. Juntos, eles sugerem certa aversão e medo. Nesse caso, o medo do protagonista
em relação ao que presenciou naquele dado momento, com a chegada do tio Terêz.
46

Logo, no desespero da criança que sofreu as duras penas da surra e do castigo, para
poder proteger a mãe da força brutal do pai, a passagem denota o pavor do menino
mediante a situação. No segundo parágrafo, notamos que os vibros e rasgos
permanecem na repetição dos fonemas supracitados e na adição de [k] e [n] que,
seguindo a mesma proposta, simbolizam ruídos feito rasgões. Estes, por sua vez,
estão relacionados ao choro da mãe de Miguilim e aos trovões que se propagavam
com a chegada da tempestade, acrescidos do zumbido dos ventos fortes. Todavia,
juntam-se a estes os fonemas [m] e [l], que anunciam sentimentos de carinho e/ou
afeto. A soma dos referidos fonemas nos leva a observar, como produto, o desespero
de uma família e, principalmente, o temor de uma criança que esbravejava, lutava
contra o poder, a autoridade e a força dos adultos, principalmente do pai, com o
objetivo de defender e amparar a mãe. É nesse sentido que percebemos a importância
e relação dos sons, no recorte mencionado, estabelecida entre as palavras e a
compreensão que delas temos no dado contexto18.
Quando Tio Terêz fica a par da briga entre Béro e Nhanina é por intermédio de
vó Izidra, sua mãe. Ela aguarda a chegada do filho e imediatamente sai do quarto
“caçando tio Terêz” (ROSA, 2016a, p.35). Isso acontece principalmente porque os
princípios religiosos de Vovó Izidra parecem falar mais alto e, por isso, ela não poderia
permitir que mais um pecado fizesse morada em seu lar.
Contudo, nessa ocasião, se dão conta que Miguilim ainda está no castigo e o
retiram. Todavia, Vovó Izidra não parecia preocupada com o longo período que
Miguilim permaneceu no castigo, queria mesmo era que o menino não presenciasse
a conversa que teria com tio Terêz. A rigidez e os princípios religiosos da matriarca
davam ares de quem queria evitar castigos maiores, tal como um irmão matar outro.
Escondido atrás da porta, Miguilim ouve toda a conversa e seu medo tende a
se intensificar. Vovó Izidra expulsa o filho de casa, xingando-o de “Caim”: “Miguilim
mesmo começava medo, trás do que ouvia, que nem pragas. Ah, tio Terêz devia de ir
embora, de ligeiro, ligeiro, se não o Pai já devia estar voltando por causa da chuva,
podia sair morto daquela casa [...]” (ROSA, 2016a, p.36). Aos olhos do leitor, Miguilim
parece desgostar mais ainda da avó, por ela ter posto o filho para fora de casa
expondo-o aos perigos da impetuosa natureza.

18Para análise fonoestilística utilizamos MONTEIRO, José Lemos. “Os sons estilísticos”. In. _____. A
estilística: manual de análise e criação do estilo literário. 2ª ed. Petrópolis: Rio de Janeiro, 2009. p.
153-221.
47

Miguilim não se preocupou com o pai, que havia saído de casa após agressões
à mãe e a ele – mesmo consciente que o pai também corria riscos com a tempestade
que se aproximava. Como vimos, a relação entre Miguilim e o pai era conflituosa, sem
carinho e repleta de castigos, enquanto entre o menino e tio Terêz havia uma amizade,
um certo afeto. Daí sua preocupação com o tio e não com o pai. A ausência do pai
era para ele a representação da ausência dos castigos, uma libertação.
O menino permanece indignado com a vó, que além de pôr o próprio filho para
fora de casa em meio à tempestade, ainda o chamou de traidor, assim como Caim19.
O peso religioso da sociedade em que vivem mostra-se evidente, não só nos nomes
próprios dos personagens como na forma de censurá-los. Observa-se que, os mitos
religiosos marcam presença na narrativa como um todo, e aqui surgem como forma
de condenar a traição entre irmãos, assim como na história bíblica dos irmãos Caim e
Abel, em que o primeiro, por ciúmes, matou o segundo.
No supracitado recorte, atentemos também para a aplicação da palavra “chuva”
que, assim como tempestade, tem duplo sentido e denota a situação conflituosa em
que se encontrava aquela família. O medo que o menino sente ganha proporções, ele
temia pela vida do tio – errante, do ponto de vista da avó. A chegada da chuva também
traria o pai para casa, o que não agradava o menino. Enquanto isso, em sua pequena
visão de mundo, Miguilim acreditava que tio Terêz corria risco de morte, fosse em
casa ou em meio a tempestade que se aproximava.
Miguilim estava surpreso e com medo do que ouviu da avó. Escondido atrás da
porta foi surpreendido “à traição” pela irmã Drelina, que o apanhou ouvindo a conversa
dos adultos e o arrastou para a cozinha. Enquanto aguardam o jantar, também se
observa a aproximação da tempestade. Os primeiros pingos provocam alvoroço e
correria, tanto para a retirada das roupas do varal quanto para fechar portas e janelas.
À proporção que vivenciam conflitos tempestuosos em casa, também precisam
enfrentar a chegada de uma tempestade natural:

De repente, deu estrondo. Que o vento quebrou galho do jenipapeiro do


curral, e jogou perto de casa. Todo o mundo levou susto. Quando foi o trovão!
Trovejou enorme, uma porção de vezes, a gente tapava os ouvidos, fechava
os olhos. Aí o Dito se abraçou com Miguilim. O Dito não tremia, malmente
estava mais sério. – “Por causa de Mamãe, Papai e tio Terêz, Papai-do-Céu
está com raiva de nós de surpresa...” – ele foi falou.
– Miguilim, você tem medo de morrer?
– Demais... Dito, eu tenho um medo, mas só se fosse sozinho. Queria a gente
todos morresse juntos...

19 Cf. Bíblia Sagrada, p.5-6.


48

– Eu tenho. Não queria ir para o Céu menino pequeno.


Faziam uma pausa só do tamanho de um respirar. (ROSA, 2016a, p.38)

Os ventos fortes, os trovões parecem querer destruir tudo e, por isso, causam
medo, principalmente nas crianças. Estes fatores naturais não apenas põem medo
como também despertam nos meninos a certeza da existência do erro e do Deus
punidor20, que castigaria todos, em virtude das falhas dos pais e do tio. Não diferente
das crianças, os demais componentes familiares, que passam a tempestade juntos,
sentem medo da ira de Deus. Todos são conhecedores do fato de que cometem erros
e das prováveis penas a que seriam submetidos.
Neste compasso, não se observa a presença dos irmãos Béro e Terêz. Este
porque foi expulso pela mãe, o outro porque havia saído de casa, após discutir e quase
bater na mulher, antes da tempestade. Pela fuga de um e ausência do outro, fica
sugestiva a ideia de que ambos tinham consciência de que estavam errados: fosse
por trair; fosse por espancar a esposa, ao constatar traição sofrida.
Apenas mulheres e crianças parecem temer a ira divina manifesta na súbita
tempestade – as ameaças que surgiam com a chuva forte, relâmpagos e ventania. E,
são exatamente as mulheres e as crianças que ajoelham e oram para que Deus tenha
compaixão dos seus pecados e abrande as penas que serão lançadas por meio do
temporal.
De acordo com o narrador, Dito não temia, mas estava sério. Então, se ele
abraçou o irmão, seria mais para protegê-lo que por medo. Dito conhecia os medos
do irmão e, por isso, o abraçava naquele instante de susto. Mas, inocentemente, Dito
afirma seu temor a Deus, mesmo o narrador afirmando o contrário ao longo da estória,
ressaltando apenas a coragem do menino. A evidência desse fato é notória quando
Dito amedronta o irmão com a história da punição de Papai-do-Céu, e, em seguida,
com o medo da morte – algo temido por todos.
A consciência das culpas faz-se notória no cruzamento das vozes do narrador
com a dos personagens, no reconhecimento de que terceiros sofrerão pelos erros dos
adultos, como se vê nesta passagem:

[...] Pobre dos passarinhos do campo, desassisados. O gaturamo, tão podido


miúdo, azulzinho no sol, tirintintim, com brilhamentos, mel de melhor –
maquinazinha de ser de bem-cantar... – “O gaturaminho das frutas, ele
merece castigo, Dito?” – Dito, que pai disse: o ano em que chove sucedido é

20 O Deus que pune está presente na Bíblia Sagrada, no Velho Testamento. A visão desse Deus se
arrasta por quase toda a narrativa e poucas são as vezes em que se nota a presença do Deus do amor,
que marca o Novo Testamento, da Bíblia Sagrada.
49

ano formoso... –?” “Mas não fala essas coisas, Miguilim, nestas horas.
(ROSA, 2016a, p. 38-39).

Isso chama a nossa atenção para o fato de que os adultos da narrativa parecem
enxergar apenas o próprio universo, o próprio sofrimento, o próprio erro, não as
consequências que suas falhas poderão trazer para outros. Vovó Izidra, por exemplo,
insiste em julgar a nora, mas não atenta para as atitudes que toma perante as faltas
dos filhos. Tio Terêz aproveita para fugir dos erros, ao invés de assumi-los e enfrentá-
los perante os demais, em especial o irmão e a cunhada. Já Béro poderia enfrentar
dignamente o irmão e a esposa, mas prefere usar a força bruta para ferir física e
moralmente a mulher a quem diz amar. E, se sai de casa enfurecido pelo ciúme,
depois retorna como se nada tivesse acontecido.
Enquanto isso, as crianças discutem o problema e refletem a situação em que
todos se encontram. Na concepção das crianças, o eminente temporal surgiu em
virtude dos erros dos pais e do tio. Por isso, cabe ao pequeno Miguilim raciocinar por
que os inocentes, como os passarinhos, poderiam sofrer as duras penas também: Não
seria injusto? Deus seria tão cruel?
O narrador foca na mente de Miguilim, que pensa nos passarinhos. Gentilmente,
ele enfatiza a subjetividade de Miguilim. O menino, temente e curioso, questiona o
irmão sobre a justiça aplicada aos fatos. Como afirma Maria do Perpétuo Socorro
Guterres de Sousa (2014, p.45), Miguilim, temendo as pessoas grandes apega-se
“assim cada vez mais ao irmão, fonte de afeto e conforto para seus temores”. Talvez,
do ponto de vista do Miguilim, o Pai-do-Céu estaria sendo muito cruel com os
inocentes, assim como o pai Béro o castigava sem motivos. A proximidade Pai (céu)
e Pai (terra) parece fazer o menino refletir as injustiças cometidas pelos pais e,
também, questioná-los. Vejamos que, quando ele pensa no que o pai Béro falou sobre
o ano chuvoso, ele também associa com os fatos ocorridos e com o sofrimento dos
passarinhos. Como tantos tormentos poderiam possibilitar um ano formoso? Em sua
percepção, essa sentença tornava-se confusa, quase impossível. E, se não se deve
questionar as decisões dos mais velhos, seria muito menos provável se questionar os
desígnios divinos. É o que fica evidente com a colocação de Dito em: “Mas não fala
essas coisas”. Dito21 parece temer Deus, por isso, prefere o silêncio. Dito – aquele

21O apelido atribuído ao irmão Dito tem uma ligação direta com o papel que desempenhava na
narrativa: “Dito se distingue como o menino que diz o verivérbio enunciador do conteúdo mitopoético
50

que diz e que sabe das coisas – prefere calar que ofender Deus, o que marca a
existência de um temor presente no menino e diretamente relacionado aos preceitos
religiosos, contrariando a ênfase do narrador no fato de que o menino era destemido.
Como observamos, os princípios religiosos em que o menino é criado e as
punições dos mais velhos ou aquelas que acredita virem de Deus, levam Miguilim a
apresentar um persistente medo de errar. Em sua pequena concepção de mundo, o
menino entendia que as penas nem sempre são justas, porém, sempre são aplicadas.
E, de todas as penas a mais dura e implacável seria a morte – a temida por todos.

3.1.2.2 Temores no âmbito familiar e o aterrador medo do Pai

Miguilim viveu no Mutúm até os oito anos. Como já comentado nesta escrita,
enquanto da mãe e do tio Teréz recebia afeto, do pai eram apenas pancadas, castigos
e trabalho no campo, além do cruel ciúme.
Ainda no início da narrativa, Miguilim retorna da Crisma com o tio Teréz, entra
em casa vislumbrando apenas alegrar a mãe com uma grande revelação sobre o
Mutúm: “era um lugar bonito...” (ROSA, 2016a, p.26). O Mutúm era lugar de que a
mãe não gostava e em que vivia triste e chorosa. Mas, o menino comete o grande erro
de passar direto pelo pai, sem cumprimentá-lo. A ação rendeu-lhe péssimas
consequências.
A primeira, foi o desgosto da mãe:

A mãe não lhe deu valor nenhum, mas mirou triste e apontou o morro; – Estou
sempre pensando que lá por detrás dele acontecem outras coisas, que o
morro está tapando de mim, e que eu nunca hei de poder ver...” Era a primeira
vez que a mãe falava com ele um assunto todo sério. (ROSA, 2016a, p.26)

Miguilim não podia imaginar tal reação materna. Como poderia não se alegrar
com aquela imagem bela do Mutúm, vinda de alguém que ali não morava? A
infantilidade não o permitiu perceber que o belo do lugar, para a mãe, não estava
associado ao espaço físico em si, mas ao que a rodeava, ao próprio seio familiar. Não
pudera ele acreditar que aquele maravilhoso “presente”, que trouxera “de cór, como
uma salvação” (ROSA, 2016a, p.26), pudesse continuar representando o inverso para
a mãe. O poder da palavra, do adjetivo “bonito”, que carregara decorado, armazenava

da saga” (SOUZA, p.68, 2006), ou seja, o que profere a palavra. Mas, vale observar que na passagem,
e de modo antagônico, o garoto que tudo sabe, prefere calar.
51

para ele o sentido da cura. Assim, Miguilim almejava a libertação, o resgate da mãe
que ali vivia triste e inconformada – provavelmente como também ocorreu ao próprio
Miguilim ao ouvir aquele elogio ao Mutúm. No espaço encantado e pueril em que se
encontrava o imaginário de Miguilim, brotou o equívoco: “[...] No começo de tudo tinha
um erro – Miguilim conhecia, pouco entendendo. Entretanto, a mata, ali perto, quase
preta, verde-escura, punha-lhe medo.” (ROSA, 2016a, p.26). Podemos dizer,
pensando aqui mais uma vez o conceito de angústia apresentado por Kierkegaard
(2013), que Miguilim via-se angustiado. Ora, lembremos que, de acordo com o referido
autor, a angústia surge do nada. Primeiro, na inocência, ela se faz latente na
ignorância do ser e se iguala à própria inocência exatamente na espontaneidade dos
atos do sujeito, ou seja, no nada, na ausência da reflexão. Mas, em seguida, o filósofo
afirma que a angústia se faz presente também no homem “[...] e aqui de novo é um
nada: a angustiante possibilidade de ser-capaz-de” (KIERKEGAARD, 2013, p.48), no
salto que revela a possibilidade para o sim ou para o não, para a própria liberdade,
mas que também o leva ao sentimento de culpa. A angústia se manifesta diante
daquilo que não se conhece.
No meio em que Miguilim se mostrava apenas criança, também lhe é posta a
condição de não saber distinguir o bonito do feio. O menino míope via o lugar em que
residia pelo olhar e palavras de terceiros, principalmente daqueles que amava. Cabia
ao pequeno procurar entender como era o lugar em que residia. Não obstante a sua
condição de criança, ele sabia reconhecer que havia extrema disparidade entre o que
ouviu de outro e o que presenciava nos gestos e sentimentos maternos, em relação
ao mesmo assunto. Sabia que ali existia um erro, mesmo sem poder decifrá-lo. Neste
passo, o narrador nos revela a mescla dos sentimentos do menino, um misto da
necessidade de desvendar aquele erro com o medo da mata, que via quase preta, ali
próximo. Para compreender ele teria que sair do campo sentimental e procurar a razão
contida nas palavras de quem conseguia enxergar o Mutúm. Mas, nessa passagem,
o medo faz-se vivo para ele pela primeira vez na narrativa, tanto no que se refere à
mata quanto no que tange ao erro. A junção desses pensamentos do menino é como
uma gestação do sentimento de culpa e do medo que sentirá do pai logo em seguida.
Não lhe bastasse a inocente aflição de poder animar a mãe e o desânimo que
nela viu, Miguilim precisou lidar com a atitude paterna:

– “Este menino é um mal-agradecido. Passeou, passeou, todos os dias este


fora de cá, foi no Sucurijú, e, quando retorna parece que nem tem estima por
52

mim, não quer saber da gente...” A mãe puniu por ele: – “Deixa de cisma,
Beró. O menino está nervoso.” Mas o pai ainda ralhou mais, e, como no outro
dia era domingo, levou o bando dos irmãozinhos para a pescaria no córrego;
e Miguilim teve de ficar em casa, de castigo. Mas tio Teréz, de bom coração,
ensinou-o a armar urupuca para pegar passarinhos. (ROSA, 2016a, p. 26-27)

A primeira aparição do pai de Miguilim é justamente na supracitada passagem.


Nessa, notamos a aspereza de Beró no trato com o filho, principalmente na afirmação
da mulher ao compreender a situação como “cisma” do marido. Diferente do tio Teréz,
o pai de Miguilim não era muito dado a carinhos. Beró se mostra rude, incompreensivo
ou mesmo impulsivo. Por isso, o medo, que nascera antes em Miguilim ao olhar a
mata escura, figura também o prenúncio do que estava por vir, o medo que sentiria
do próprio pai. Há na passagem, portanto, certa similitude entre a mata escura e o pai,
pois ambos parecem verdadeiras incógnitas e, talvez por isso, provoquem tanto pavor.
Não tinha intenção e não percebeu que o magoara. Porém, quando o intuito do menino
era libertar e trazer felicidade, acabara mesmo castigado, recolhido, triste e
angustiado.
A vida de Miguilim, naquele local e com aquelas pessoas, se assemelha à vida
dos pássaros, e isso na concepção do próprio Miguilim que armava urupucas com o
tio, “Pegavam muitos sanhaços, aqueles pássaros macios, azulados, que depois
soltavam outra vez, porque sanhaço não é pássaro de gaiola.” (ROSA, 2016a, p.27),
mas pensava “no que deviam de sentir os sanhaços, quando viam que já estavam
presos, separados dos companheiros, tinha dó deles” (ROSA, 2016a, p.27). O
pássaro é uma imagem metafórica do próprio Miguilim. Notamos que ele percebe que
era como os pássaros que aprisionava em urupucas, pássaros que não são de gaiola,
de natureza inquieta, bem como a do próprio garoto. Enquanto se sentia preso, longe
dos irmãos e castigado, se via na imagem daqueles animais quando pegos em suas
urupucas e, por isso, procurava imaginar o que eles pensavam – provavelmente, algo
semelhante ou igual ao que sentia naquele dado momento, o desassossego
característico da idade e de quem se encontra aprisionado, quando deveria estar livre,
brincar e correr como os demais.
A curiosidade de menino apenas o levou a imaginar o que os pássaros
pensavam quando presos, mas não o fez compreender que cometia o mesmo erro do
pai, que o mantinha em casa, de castigo, longe dos irmãos e do que gostava de fazer.
Para o menino, ainda ingênuo, é possível dizer que esse era um modo de se sentir
semelhante a alguém ou alguma coisa, nesse caso, os pássaros. E, por isso, os
53

libertava. Faz-se viva aqui a angústia do menino que, diante da possibilidade de


liberdade, vê-se preso ao sentimento de culpa que essa possibilidade gerou antes
mesmo da chegada da sua tão almejada capacidade de agir por si.
A ocasião serviu também para Miguilim despertar em relação a fatos do seu
passado, como o de não pertencer ao Mutúm – principal motivo para tantas
lamentações suas naquele momento –, já que tinha nascido em outra região “também
em buraco de mato, lugar chamado Pau-Roxo, do Saririnhém” (ROSA, 2016a, p.27),
de onde saiu ainda pequenino. As lembranças daquele lugar o assustavam. Uma
delas remetia a uma pedrada que recebeu de um Menino Grande e que o deixou cego,
em virtude do sangue que escorria da testa e caia nos olhos. Essa lembrança se
misturava com outra em que o pai abria um tatu vivo e despejava o sangue sobre a
cabeça do garoto, para ele “poder vingar”, já que tinha passado por um período de
doença e fraqueza. Essas recordações indicam e denotam o quanto Miguilim aparenta
fraqueza, indiferença e submissão diante dos demais personagens, algo que se
arrasta desde que ele era menorzinho.
A fraqueza tem conexão com a relação de poder que se institui naquele meio
familiar em que o pai se faz autoridade maior e incontestável ou, como nas palavras
de Aristóteles (2005) podemos temer várias coisas, mas são mais temíveis aquelas
em que existe uma “falha irreparável”, algo que é totalmente impossível ou que
depende de quem nos é rival. Miguilim sente medo do patriarca, o vaqueiro Beró. Mas,
nesse meio, a criança sente-se também seduzida pela figura imponente do pai e pela
posição que ele ocupa naquele espaço. Constantemente, vê-se ameaçada pela
autoridade do pai. Logo surge a fraqueza que o mantém em uma atitude de prudência.
Tal posicionamento é característico do que é denominado por Mira y Lopes (2012) de
“medo racional-sensato”, o medo pensado antes do indivíduo senti-lo e, por isso,
capaz de gerar prévias reações de defesa. Miguilim sabe que o pai tem o poder de
castigá-lo, por isso, procura prever os fatos, pois teme a possibilidade do castigo ou
surra.
No próprio fluxo do recordar – as “lembranças que ainda hoje o assustavam”
(ROSA, 2016a, p.27) –, passado e presente estão conectados na memória de Miguilim
e articulam a narrativa presente sob o viés do medo sentido no passado. No fato de
se ver beleza ou não no Mutúm, se mantém em evidência as lembranças da pedrada,
numa relação direta com o erro cometido e o medo que passa a sentir do pai.
54

Há, nesse interim, uma proximidade entre os protagonistas Miguilim e Riobaldo


de Grande sertão: veredas, personagem que também temia o erro: “[...] o que eu
descosturava era medo de errar – de ir cair na boca dos perigos por minha culpa.
Hoje, sei: medo meditado – foi isto. Medo de errar. Sempre tive. Medo de errar é que
é minha paciência. Mal.” (ROSA, 2015a, p.159); que temia errar perante Deus “[...]
tive medo de castigo de Deus.” (ROSA, 2015a, p.170) e, como explica Cardoso (2006),
esses medos firmes na narração presente do protagonista são reflexos daqueles
temores que teve na era jagunça, das ambiguidades que marcaram sua vida, como a
da incerteza do pacto com o Demo.
O temor de Miguilim iniciou com o simples fato de se ver beleza ou não no
Mutúm, mas o transportou aos medos presentes na primeira infância, ainda longe do
Mutúm. Miguilim parece perceber que seus temores o acompanharam. Os medos
eram algo do qual não conseguiu se desprender, estavam vivos em sua memória, na
lembrança do sangue que o cegara momentaneamente, no choro da mãe e nas
palavras e atitudes altivas do pai.

3.1.3 Medos de Miguilim e Dito

Comentamos antes que Dito sabia articular as palavras. O menino se


posicionava como um verdadeiro narrador de estórias, aquelas que enlaçam o leitor,
bem como faz o próprio Guimarães Rosa em seus escritos. Esperto, Dito conseguia
ver e resolver problemas com certa agilidade, como quando habilidosamente autoriza
o vaqueiro Salúz a cortar árvore de “perigo de agouro” e indesejada de todos, exceto
dos pais. É, pois, dominando a linguagem, que ele se livra de uma surra e ainda
recebe carinho do pai ao explicá-lo que dera a ordem porque tinha extrema
preocupação e amor por ele, logo não o queria doente. Na contramão do que se
espera de uma criança, no que se refere ao silêncio, mentiras e medo dos mais velhos,
Dito era um “menino corajoso e com muito sentimento, nunca que mentia.” (ROSA,
2016a, p.58), como afirmava o pai Beró.
Enquanto as preocupações dos irmãos pequenos eram as brincadeiras e
realizações de tarefas as quais lhes eram designadas, Dito não apenas as cumpria,
mas também procurava ser vigilante dos adultos. Ouvia e aprendia os modos e as
atitudes dos mais velhos. Compreendia que, enquanto criança, havia momentos
exatos de falar e agir sem que fosse repreendido. Em outras palavras, Dito tinha
55

autoconfiança, era capaz de atingir a plenitude a que aspirava e mantinha vivo o que
mais precisava: um bom coração, agilidade e, como outras crianças das estórias de
Rosa, era dotado de uma sabedoria que parece brotar da própria aprendizagem do
dia a dia. Assim, o menino fazia verter o diálogo consigo e com os que estavam ao
seu entorno. Dito mostrava-se ainda um bom ouvinte. Com a perspectiva de se tornar
fazendeiro, costumava ouvir atento as histórias dos mais velhos e, principalmente, as
dos vaqueiros. Para alcançar seus objetivos precisava ser astuto, logo, sempre “[...]
perguntava continuação. O Dito de tudo queria aprender.” (ROSA, 2016a, p.66), como
deixa claro o narrador. O menino percebia que precisava falar e se posicionar como
um adulto para se fazer entendido e não ignorado como Miguilim e os demais irmãos.
E, assim, costumava posicionar-se. Não obstante, era visto por todos, inclusive por
Miguilim, como “sabido” das coisas. Não obstante, Dito também tem temores.
Miguilim dependia da destreza do irmão para livrar-se, principalmente, de
algumas situações de apuro, tais como quando carrega escondido consigo um bilhete
de tio Terêz para Nhanina. Miguilim não consegue se expressar como o irmão, parece
fechar-se no invólucro da camada verbal criada por sua personalidade silenciosa e
medrosa. Agindo de modo suspeito e pasmo, o menino desperta a atenção de Vovó
Izidra. Mesmo sem saber o que de fato acontecera, Dito consegue dispersar a
desconfiança da vó, afirmando que Miguilim tivera medo do capeta, pois precisou
passar pela mata para poder levar o almoço do pai. O próprio Miguilim ficou assustado
com a perspicácia do irmão, tendo em vista que ele nada sabia sobre o bilhete. Ele –
não por inveja – deseja ser um pouco como o irmão. Mas, o próprio desejo de ser
além do que é se mistura com a inevitável carência de expressão. Assim, Miguilim
também se perde no choque com a linguagem e logo se vê preso às condições morais
socialmente impostas. Miguilim tem medo!
Miguilim era o que mais vivia atormentado por medos. De acordo com o narrador,
os bois e as vacas representavam os primeiros medos do menino que, quando bem
pequeno, ouvira do pai:

– “Se um sendo medroso, por isso o gado te estranha, rês sabe quando um
está com pavor, qualquer receiozinho, então capaz mesmo que até a mansa
vira brava, com vontades de bater...” Pois isso, outra vez, Miguilim sabia que
a gente não tivesse medo não tinha perigo [...]. (ROSA, 2016a, p.73)

Para o pequeno, continha verdade nas palavras do progenitor. Era nele que via
a mais próxima representação da coragem. Por isso, escolheu a ocasião -
56

provavelmente a pior – e, num átimo, resolveu testar o antídoto do medo. Esperou a


chegada de uma boiada e usou da suposta coragem para passar entre os bois. A
aflição e astúcia do pai e dos vaqueiros, diante daquela situação, foi o que livrou
Miguilim de ser pisoteado pela boiada. Porém, muitos foram os gritos e ralhos de todos
“– ‘Menino, diabo, demonim! Tu entra no meio desse gado bruto, que é outro, tudo
brabeza dos Gerais?! Sei como não sentaram chifre, não te espisaram!...’” (ROSA,
2016a, p.73). O que Miguilim não conseguiu prever foi que o fim do teste provocaria o
recomeço, o aguçar de seus temores. Assim, o menino passou a ter medo da mata,
dos ventos, da chuva, dos animais e tudo o que lhe fosse estranho.
Os medos de Miguilim eram tantos que, às vezes, ele parecia utilizar certos
remédios, como quando precisava ir sozinho para o roçado: o antidoto era a distância.
Logo, se era próximo de casa não precisava temer. Já quando passava pelo meio do
mato, para poder levar o almoço do pai, alegava não temer porque tinha uma
obrigação a cumprir.
Porém, é em uma dessas ocasiões que o menino é surpreendido por um bando
de macacos, que o observavam da copa das árvores, a caminho do roçado:

E destravavam das árvores, repulando, vindo nele? A cô! – Miguilim tinha não
aguentado mais, tiçou o tabuleiro no chão, e abriu correndo de volta, aos
gritos de quero mãe, quero pai, foi – como que nem sabia como que – mais
corria.
De supetão, o Pai – aparecido – segurava-o por debaixo dos braços, Miguilim
gritava e as perninhas ainda queriam sempre correr, o pai ele não tinha
reconhecido. (ROSA, 2016a, p.79)

Não houve antídoto para o incidente. O garoto perdeu não só o almoço que
levava, mas também a própria dignidade. O susto do menino não provocou a ira do
pai, como das outras vezes, tendo em vista a repentina chegada de uma chuva que
os obrigou o retornar para a casa. Porém, serviu para que a posteriori Miguilim virasse
motivo de riso: “‘Miguilim? Se encontrou com padrinho Simão, correu ensebado,
veadal... Chorou a água de uns três cocos...’ – Pai caçoava. Quando Pai caçoava,
então era porque Pai gostava dele.” (ROSA, 2016a, p.80). Como vemos, Miguilim
sempre se posiciona com medo em relação à figura do pai. Mas, nessa ocasião,
podemos dizer que ele até sentiu-se bem em servir como motivo de chacota para
todos e, principalmente, para o pai, pois ao menos assim, não era alvo de agressões
e castigos físicos.
Tantos eram os castigos sofridos por Miguilim que ele acreditava na
possibilidade de o pai não gostar dele – algo repensado agora ao inverso pelo menino,
57

já que o pai ria. Ingenuamente, Miguilim não percebeu a ironia, muito menos a posição
de subordinado que continuava a ocupar perante o pai. Não notou a agressão moral
que sofria.
Miguilim também temia a perda da amizade do irmão. Certa feita, Miguilim tentou
fazer carinho na cabeça de um boi que estava no curral, mas teve sua mão espancada
pela cabeçada do boi. Nesse momento, o que ele sentiu foi raiva de todos. Dito tentou
acalmar o irmão dizendo que o touro era burro, mas Miguilim não compreendeu e,
enfurecido, bateu no irmão, rolando pelo chão e apanhando também. Quando parou
para pensar, viu que não podia batê-lo:

O Dito ia saindo embora, nem insultava, só fungava; decerto pensava que ele
Miguilim estava ficando dôido. Quem sabe estava? Desabria de vergonha,
até susto, medo. [...] Não achava coragem pronta para frentear o Dito, pedir
perdão – podia que tão ligeiro o Dito não perdoasse. [...] e Miguilim veio se
sentar no tamborete, que era o de menino de-castigo. (ROSA, 2016a, p.88)

Miguilim, possivelmente, sentiu uma pontinha de poder ao querer enfrentar o


touro Rio-Negro, acarinhando-o. Contudo, quando apanhou do animal e teve sua
mãozinha machucada, ele explodiu em raiva. Como explica Mira y Lopes (2012), esse
tipo de reação é comum a quem pretende ser detentor de certo poder, mas se vê
repentinamente testado. Logo, a irritabilidade surge em decorrência da percepção de
ausência de poder. Mas, essa ausência tem, ainda, uma ligação direta com o temor.
Ou seja, a explosão de ira nada mais é que o resultado de consciência da própria
frustração:

Que não se pode sentir ira sem antes haver sentido Medo, é obvio para todo
observador perspicaz. É somente quando surge um obstáculo, quando algo
atinge o nosso Eu e, de algum modo, o limita ou menospreza, isto é, ao nos
vermos limitados, entorpecidos ou fracassados em nosso propósito vigente,
que sentimos acender-se a chispa da cólera. (MIRA Y LÓPEZ, 2012, p.76,
grifos do autor)

Não à toa, Miguilim explodiu com o irmão Dito. Ele teve o orgulho ferido, pois
não conseguiu domar o animal como desejava. A primeira pessoa que se aproximou
dele foi Dito, por isso, o que mais sentiu (na pele) a fúria do irmão. Mas, se Miguilim
explodiu em ira por ter a consciência do medo que sentira do touro, agora sentira o
efeito do tão indesejado medo mais uma vez, após bater no irmão e rolarem pelo chão
a se estapearem.
Miguilim parte do temor do animal para o medo de perder a amizade do irmão.
Esse sentimento é tão intenso que ele mesmo se castiga. Todos sabiam que o banco
58

do castigo era o local mais humilhante para se estar, porém foi para lá que Miguilim
resolveu ir. O pequeno tinha consciência que ferira a amizade dos dois com aquele
gesto tão agressivo e cruel tanto quanto o do touro Rio-Negro. A preocupação com o
erro cometido foi intensa ao ponto dele parar de chorar de dor para rezar o “cr’em
deus padre”. Sabia que precisava esperar sozinho, quieto, se acalmar e se perdoar,
antes de pedir perdão. O banco do castigo era para ele a melhor forma de se redimir
consigo e reparar o erro.
O peso da culpa e o medo de perder o carinho do irmão só amenizam quando
Dito, pouco depois, vem convidá-lo para subir em árvore. No topo da árvore, que
também figura o ponto mais alto da dor e punição do menino, Miguilim ganha coragem
e pergunta: “‘Dito, você não guarda raiva de mim, que eu fiz?’ ‘– Você fez sem por
querer, só por causa da dôr que estava doendo...’” (ROSA, 2016a, p.89). A dor mental
pesou mais para Miguilim que a dor física, ao ponto da primeira provocar o
desaparecimento da segunda. Miguilim, mais uma vez, encontra cura para suas dores
e temores nas sábias palavras do irmão e no amor que sentiam um pelo outro.
Como já mencionado nessa escrita, tanto Miguilim quanto Dito tinham um medo
em comum: a morte. Mesmo ainda tão pequenos sabiam que, diferente de outros
males que poderiam causar temores, a morte era o único deles do qual não poderiam
escapar.
Nem mesmo toda a esperteza e sabedoria do pequeno Dito era capaz de afastar
a tão espantosa possibilidade de morte. Eis que ele a teme imensamente. Isso ocorre
porque, provavelmente, de todas as situações que podem resultar em medos, a da
chegada da morte é a única que dificilmente pode-se driblar, como mostra Aristóteles
(2005). Sua precisa e súbita chegada é inevitável a qualquer ser, mas o que atormenta
é saber da proximidade com ela. Este temor torna-se uma constante na vida dos
personagens de “Campo Geral”, o que também se deve ao caráter negativo atribuído
à religiosidade por eles instituída, crentes na existência dos opostos céu versus
inferno.
O menino se vê forçado a habituar-se ao diário e diverso sentimento da morte.
Enquanto perda, a morte se faz presente na própria linguagem de Miguilim – quando,
por vezes, é obrigado a calar ou depender de outro para proferir a palavra – ou mesmo
pelas imposições em relação ao que não pode fazer ou ter22. A morte assume várias

22 Cf.
DUARTE, Lélia Pereira. Campo Geral de Guimarães Rosa: falar de morte para celebrar a vida da
narrativa. Ensaio. Disponível em: https://www.leliaparreira.com.br/textos/quadros-ordem-
59

facetas no universo do pequeno Miguilim. Assim, o garoto torna-se sujeito a se


acostumar a tantas grandes perdas físicas, como a da amada e cega cadela Pingo-
de-ouro, doada a outrem por Béro, e a perda do adorado irmão Dito. É desse modo
que a narrativa vai se estruturando, “os fatos são transpostos para uma atmosfera
lendária e o real se cruza com o fantástico.” (CANDIDO, 2005, p. 436). O pavor do
menino no que se refere à morte é, pois, a representação da real sensação do homem
cristão, em culturas como a ocidental, por exemplo, ao longo da história.
Notamos que Miguilim se posiciona de quatro modos diante da morte: recusa,
preparação, medo e entrega. No primeiro instante ele assume a posição de recusa
total. Em certa ocasião, Miguilim acredita que irá morrer. Mas, o menino não aceitava
que ele ou qualquer dos irmãos mais novos adoecessem e morressem. Porém, ele
cogita a possibilidade da morte do irmão mais velho, o Liovaldo, já que ele morava
longe de todos, alheio à família. Miguilim, nessa passagem, posiciona-se de modo
egoísta e cheio de raiva – para ele, antes morresse aquele de quem não se lembrava,
o que já tivera sorte na vida, mais que ele ou os irmãozinhos, todos tão sofredores. A
recusa deriva exatamente do fato de que Miguilim queria viver e se libertar daquele
meio, assim como aconteceu com Liovaldo.
Em seguida, Miguilim passa para o processo de preparação e, durante os
primeiros dos dez dias que pactuara com Deus, passa a orar, brincar, viver bem com
a família e os irmãos. Ele parece aceitar as opções de vida e morte, como se aos
poucos apreendesse a ideia da chegada da morte e, assim, aprendesse também a
morrer. Quando o décimo dia vai se aproximando, o medo aparece. Retirando a
probabilidade da perda da vida e posicionando-se praticamente diante da morte, que
agora ganha ares de efetiva, o menino se vê abatido pelo medo – parece temer o
desconhecido. O sentimento surge numa espécie de revolta e o faz ignorar os
parentes e até desanimar. Ele, em seu isolamento, passa a observar mais as pessoas
e as coisas ao seu entorno. No decorrer dos dias, Miguilim assiste com mais afinco os
mais velhos. Logo, a aproximação do que seria seu último dia de vida também o fez
sentir certo asco em relação àquelas pessoas espionadas.

alfabetica.html. Acesso em: 31 maio 2019. No referido ensaio, Duarte explica que Miguilim vive um
processo de morte e vida regidos pelos padrões de uma incompreensão que ele, sequer, consegue
avaliar.
60

No que se refere à caça de tatu e de outros “bichos desvalidos”, praticada pelos


mais velhos, Miguilim não conseguia entender o porquê não “[...] queriam que ele
Miguilim tivesse pena do tatú – pobrezinho de Deus sozinho em seu ofício, carecido
de nenhuma amizade. Miguilim inventava outra espécie de nôjo das pessôas
grandes.” (ROSA, 2016a, p.60). O menino passou a somar as malvadezas proferidas
pelos adultos em relação aos animais – ainda não se conformara com o fato de terem
mandado embora a cachorra Cuca Pingo-de-Ouro, cega e inestimável companheira.
Percebemos que Miguilim chegou a sentir pena de Deus, provavelmente porque Ele
não estava conseguindo penalizar os adultos devidamente, talvez precisasse de uma
ajuda (a dele)23.
Bondoso, o menino apenas via maldade nas atitudes dos adultos que “[...]
tinham gostado de matar o tatú com judiação, e aprontado castigo, essas coisas todas,
e mandado embora a Cuca Pingo-de-Ouro, [...]” (ROSA, 2016a, p.60), por isso,
quando crescesse não gostaria de ser amigo daqueles, nem teria estima por eles. O
trecho indica o fato de que Miguilim desejava ter a chance de ser adulto um dia, mas
queria ser diferente daqueles a quem tinha repulsa. É quase como se ele implorasse
a Deus a oportunidade de crescer e se tornar uma pessoa diferente, melhor que as
que conhecia. Mas, com a aproximação do décimo dia, restou a Miguilim juntar seus
pensamentos e lembranças, sozinho e com medo de não chegar a fase adulta.
Em seguida, Miguilim parece desistir da vida e resolve se entregar à morte,
postando-se numa cama ‘“[...] estava chorando simples, não era medo de remédio,
não era nada, era só a diferença toda das coisas da vida.’ [...] ‘Vou morrer hoje daqui
a pouco...’” (ROSA, 2016a, p.63). No jogo entre morte e vida, Miguilim teme a primeira,
no processo de admiração da última. Se durante a vida houve uma forte tendência às
coisas que considerava ruins – tais como os castigos, surras, medos, falta de
perspicácia – ainda assim, tratava-se de algo que conhecia e, talvez, pudesse ainda
adquirir a habilidade de driblá-las ao longo da vida. Adotando aqui o pensamento
epicurista, esse medo da morte, sentido por Miguilim, não deveria existir, já não há a
possibilidade de a conhecermos “porque, quando estamos vivos, é a morte que não
está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos.”

23 Miguilim, aqui, se aproxima do Arcanjo Miguel. Quando sente pena de Deus, parece mais desejar
ajudá-Lo a reprimir os erros da humanidade. Mesmo sem conhecimento sobre a origem do nome que
carrega, a dó que ele sente de Deus ali sozinho nos remete ao Arcanjo, o auxiliar do Divino nas batalhas
contra o mal.
61

(EPICURO, 2002, p.29), ou seja, quando ela chega não existe mais consciência, não
existe mais o ser. No entanto, Miguilim se colocou na contramão desse pensamento,
ele temeu a morte e a espera da sua chegada o afligiu.
Para ele, a morte se colocou como o desconhecido, algo do qual não se pode
estabelecer parâmetros, por isso, assustador. De acordo com Mira y Lopes (2012), a
morte nos causa medo exatamente quando tomamos consciência que é a partir dela
que anulamos nossa “auto-existência” no mundo, pois não ocorre apenas a morte do
corpo, mas, principalmente, a perda do “Eu” que nele habita, já que não sabemos ao
certo sobre a continuidade ou não. Assim, o que realmente se teme não é a morte em
si, mas o desconhecido que ela atrai. O medo de Miguilim está para a perda do “Eu”.
Como ele mesmo diz, em conversa com o irmão – da morte não teria medo, caso
todos morressem juntos. Logo, ao que nos indica a passagem, o menino temia a morte
porque desejava a existência da continuidade do Ser perante aqueles que tinham
significância em seu processo existencial.
Além disso, na mente pueril soma-se à ideia do desconhecido a ideia de
julgamento post morten, pregada pelas religiões. Os preceitos religiosos da família de
Miguilim ajudam a aumentar o medo, principalmente o de ter que sofrer na eternidade
em virtude das falhas cometidas em vida. Por isso, mesmo sofrida e surrada, a vida
parece ter mais importância para Miguilim. Entre a diversidade de medos que
envolvem o universo do menino de oito anos, o da proximidade da morte parece ser
o mais opressor. O medo da morte não estava apenas relacionado à punição eterna
ou à possibilidade de ir para o inferno. Temia à morte também porque era algo
desconhecido. Então, havia a probabilidade de um sofrimento maior que em vida.
Porém, Miguilim apenas não percebia, mas se via forçado a morrer um pouco a
cada dia e das mais variadas formas – fosse pela ausência da palavra, pelos castigos
ou pelos tapas que recebia dos outros meninos e dos mais velhos ou pela consciência
em relação aos medos que sentia. Essa morte diária e os castigos eram a mais pura
representação do inferno por ele vivido cotidianamente. O inferno de Miguilim é
semelhante ao que Bosi (2010) discute sobre o menino mais novo e o menino mais
velho, de Vidas secas do autor Graciliano Ramos. Estes, assim como Miguilim,
apanhavam constantemente dos pais, mantendo-se mais próximos dos animais, como
a cachorra baleia, com quem conseguiam vivenciar momentos de libertação e paz.
Miguilim também experimentava essa ausência do inferno na relação que mantinha
com os animais, em especial a bondosa cachorra Pingo-de-Ouro, que sempre o fazia
62

companhia, principalmente quando ele estava só. Porém, até essa paz lhe foi roubada
quando lhe tomaram a cachorra. A diferença entre Miguilim e os meninos de Graciliano
Ramos está somente no fato de que estes não conhecem a liberdade ao longo da
narrativa, enquanto o menino de Guimarães Rosa dará passos na tentativa de
encontrá-la, como vemos no desfecho da estória.
Dessemelhante do irmão, na concepção do narrador e dos que o conheciam,
Dito era menino corajoso, como fica claro no pronunciar de Béro, no episódio do corte
da árvore aqui já mencionado.
Levado que era, Dito não temia “[...] saía, por outros brinquedos, com o simples
de espiar o ninho de filhotes de bem-ti-vi, não tinha medo que bem-ti-vi pai e mãe
bicavam, podiam furar os olhos da gente. Chamava Miguilim para ir junto. Miguilim
não ia. O Dito não chamava mais.” (ROSA, 2016a, p.58). Dito conhecia os limites do
irmão, por isso cismava em não o chamar mais. Gostava de subir em árvores altas,
de montar cavalos, de espionar os bichos no ninho, mesmo que corresse o risco de
ser perseguido pelos pássaros pais ou de algum outro modo se machucar. Para ele,
valia sempre a pena correr os riscos, pois os desafios o faziam aprender.
Além da coragem, ele carregava consigo a certeza de que iria para o céu
quando morresse, inclusive chegou a comentar com Miguilim que não gostaria de ir
para o céu menino pequeno, antes queria crescer, conquistar o posto de fazendeiro.
Ao lado de Miguilim, iria “[...] brincar muito, comprar uma fazenda muito grande,
estivada de gados e cavalos, para nós dois!” (ROSA, 2016a, p.61). Essa era a
perspectiva de Dito e, assim, procurava sempre compreender como as coisas
funcionavam e como as pessoas agiam de acordo com cada circunstância.
Por algumas vezes, Miguilim chegou até a sentir medo pelo irmão, como quando
Dito, ainda no nascer do sol, foi olhar a coruja pequena na casa dela. Ele convidou o
Miguilim, que se recusou por saber que era perigoso pisar em chão coberto de restos
de comida das corujas como, por exemplo, os “espinhos de cobra, com os venenos”
(ROSA, 2016a, p.90). Quando ele retorna, faz questão de contar para o irmão que
eram duas corujas:

[...] que estavam carregando bosta de vaca para dentro do buraco e que
rodavam as cabeças p’ra espiar para ele, diziam: “Dito! Dito!” Miguilim se
assustava: – “Dito, você não devia de ter ido! Não vai mais lá não, Dito.” Mas
o Dito falou que não tinha ido para ver a coruja, mas porque sabia do lugar
onde o vaqueiro Jé mais a Maria Pretinha sempre em escondido se
encontravam. – “Que é que tinha lá, então, Dito?” – “Nada não. Só tinha a
63

sombra da árvore grande e o capim do campo por debaixo.” (ROSA, 2016a,


p.90)

Dito não só era destemido, como também parecia costumar não acreditar em
tudo que os mais velhos diziam. Por isso, procurava tirar suas próprias conclusões
sobre acontecimentos, crenças, coisas e lugares. Como vimos, ele precisou ir até a
árvore com cupim, em que as corujas fizeram o buraco para morar, para compreender
que o que os mais velhos falavam a respeito daquele lugar era mais pelos riscos que
as crianças corriam sozinhas, que pelos riscos do local em si.
Além disso, o fator curiosidade era o que sempre movia Dito e, ele mesmo deixa
isso claro quando explica que o principal motivo de ter ido àquele lugar não era a casa
das corujas, mas porque sabia onde se encontravam, em seus furtivos encontros, o
vaqueiro Jé e a Maria Pretinha, algo de que ninguém mais sabia – tanto que em outra
passagem posterior, todos descobrem o romance, mas isso só acontece porque os
dois enamorados acabaram fugindo.
Os medos aparecem na passagem mais uma vez sob a perspectiva de Miguilim,
que primeiro implora para que o irmão não vá e, depois, se incomoda com a
brincadeira de Dito, que dizia ter sido chamado pelas corujas. A supersticiosidade das
crianças está diretamente relacionada com o temor, visto que era comum no seio
familiar acreditarem que a ave trazia mau sinal. Porém, Dito não se incomodava com
aquilo e, por isso, fazia troça.
Em um misto de superstição e casualidade, o narrador nos mostra que dias após
o episódio da troça com a coruja, Dito acaba se ferindo. Em virtude da fuga do mico
que criavam e o alvoroço dos cachorros que queriam pegá-lo, o garoto, na tentativa
de salvar o animal, acabou cortando o pé em um caco de pote no terreiro e precisou
ficar acamado. Dito solicitou uma rede no alpendre, onde ficou por uns dias. O
machucado o impediu de acompanhar de perto a montagem do presépio, feita por
Vovó Izidra. Miguilim não queria deixar o irmão e Dito aproveitava para pedir-lhe que
observasse tudo o que acontecia:

– “Vai ver como é que o mico está.” O mico está em pé na cabacinha,


comendo arroz, que a Rosa dava. – “Quando o vaqueiro Salúz chegar,
pergunta se é hoje que a vaca Bigorna vai dar cria.” – “Miguilim, escuta o que
Vovó Izidra conversa com a Rosa, do vaqueiro Jé mais Maria Pretinha.” O
Dito gostava de ter notícia de todas as vacas, de todos os camaradas que
estavam trabalhando nas outras roças, enxadeiros que meavam. (ROSA,
2016a, p.91)
64

Dito mantinha o espírito de curiosidade e aprendizados vivos em si. Miguilim


precisava do irmão para entender as coisas. Mas, no processo de espionar para
manter Dito informado, Miguilim se permitia aprender e compreender as coisas. Ele
aplicava a oratória enquanto contador das estórias que cotidianamente aconteciam ao
seu redor. Dito não atentou para o fato de que também estava treinando Miguilim para
viver sem ele, para ser livre como ele (Dito) sempre fora.
Como mencionado, o único medo de Dito era o da morte, ainda mais se ela
viesse buscá-lo pequeno. Mas, eis que, durante os dias que antecederam o Natal,
quando Vovó Izidra montava o presépio, Dito teve uma piora, a ferida inflamou e ele
passou a ter febre, fortes dores na cabeça e nas costas, só queria dormir. Quando
acordava, Miguilim contava estórias do que acontecia e outras que passou a inventar:
“O Dito tinha alegria nos olhos; depois, dormia, rindo simples, parecia que tinha de
dormir a vida inteira.” (ROSA, 2016a, p.93). Dito não só gostava das estórias
inventadas pelo irmão, como também se sentia bem ao ouvi-las.
Não obstante, quando acordava, sempre pedia para o irmão contar como era a
montagem do presépio, a vida dos pintinhos que acabaram de nascer e, como um
segredo, se a vó ainda continuava xingando a mãe deles: “Miguilim não sabia, Miguilim
quase nunca sabia as coisas das pessôas grandes.” (ROSA, 2016a, p.94). Mais uma
vez, o narrador deixa claro o tanto que Miguilim não sabia das coisas e quanto ainda
necessitava da presença do irmão.
Dito nota a proximidade da morte e, em meio às dores, conversa com o irmão:
“– Escuta, Miguilim, uma coisa você me perdôa? Eu tive inveja de você, porque o
Paco-o-Paco fala Miguilim me dá um beijim... e não aprendeu a falar meu nome...”
(ROSA, 2016a, p.94). O pedido de perdão vem à tona a partir do momento que Dito
se sente mais debilitado, também, da consciência religiosa de que não deveria partir
sem o perdão para aquilo que considerava um pecado. De certo modo, pode-se dizer
que Dito tinha medo de morrer e não ir para o céu em virtude da inveja – considerada
pelos cristãos – como ele – o quinto pecado capital, ou seja, um dos geradores de
outros vícios humanos, capaz de afastá-los de Deus.
Miguilim continua ao lado do irmão, procurando agradá-lo e na perspectiva de
que as dores abrandassem. Com os olhos fechados devido a tantas dores que sentia,
Dito queria apenas poder ouvir os berros das vacas. É assim que revela para o irmão:

– “Miguilim, eu sempre tinha vontade de ser um fazendeiro muito bom,


fazenda grande, tudo roça, tudo pastos, cheios de gado...” O Dito olhava
65

triste, sem desprezo, do jeito que a gente olha triste num espelho. “Mas
depois, tudo quanto há cansa, no fim tudo cansa...” Miguilim discorreu que
amanhã Vovó Izidra ia pôr o Menino Jesus na manjedoura. Depois, cada dia
ela punha os Três Reis mais adiantados um pouco, no caminho da Lapinha,
todo dia eles estavam um tanto mais perto – um Rei Branco, outro Rei Branco,
o Rei Preto – no dia de Reis eles todos três chegavam...” – Mas depois de
tudo cansa, Miguilim, tudo cansa...” E Dito dormia sem adormecer, ficava
dormindo mesmo gemendo. (ROSA, 2016a, p.95)

A colocação do tempo verbal no pretérito imperfeito (tinha), indicando a ação


inacabada e que se configurou como um hábito, junto ao fato de que se sentia cansado
por isso, denota a consciência do menino de que sua morte estava próxima. Além
disso, nota-se que em suas palavras está contido mais um ensinamento ao irmão, na
constante repetição de “tudo cansa”, ele parecia cansado da vida. Seus sonhos, ideais
e medo da morte, perante o sofrimento e a dor, manifestam a desistência, a entrega,
como se todos os receios, naquele dado momento, tivessem deixado de existir,
tornando-o corajoso até à morte, confirmando a concepção de todos sobre o menino,
inclusive a do narrador.
Todos percebem que Dito estava verdadeiramente mal e, então, resolvem se
reunir em oração, pela vida do pequeno. Dito chama Miguilim mais uma vez, pois
gostaria que, sozinhos ali, Miguilim contasse o final da estória que havia inventado
sobre a cadela Cuca Pingo-de-Ouro. Como Miguilim afirma não poder continuar, o
irmão diz que não tinha problema, porque mesmo ceguinha ela o reconheceria ‘“– No
Céu, Dito?! No Céu?!” – e Miguilim desengolia da garganta um desespero.”’ (ROSA,
2016a, p.96), pois também conseguia ver o cerco da morte, reconhecia sua presença
na voz do irmão que sumia:

[...] mas mesmo assim ele forcejou e disse tudo: – “Miguilim, Miguilim, vou
ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar sempre
alegre, alegre, mesmo com toda a coisa ruim que acontece acontecendo. A
gente deve de poder então ficar mais alegre, mais alegre, por dentro!...” E o
Dito quis rir para Miguilim. Mas Miguilim chora aos gritos, sufocava, os outros
vieram, puxaram Miguilim de lá.
[...]
Miguilim doidava de não chorar mais e de correr por um socôrro. Correu para
o oratório e teve medo dos que ainda estavam rezando. Correu para o pátio,
chorando no meio dos cachorros. (ROSA, 2016a, p. 96)

Conhecedor dos temores do irmão, Dito, numa espécie de consolo prévio, dispôs
seu último saber, como se a pedir a Miguilim que continuasse feliz, mesmo diante da
perda ou que não temesse à morte, pois ela também pode ser algo bom.
O desespero de Miguilim diante do irmão que fenecia, a busca por socorro em
orações, mais uma vez esbarra no medo. Em seu desalento, o menino não só temeu
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a morte do irmão como também às pessoas que estavam agrupadas em oração pela
vida de Dito. Miguilim deixa sugestiva, nessa ocasião, a ideia de que também sentia
um temor social, pois os adultos o assustavam ao ponto de ele sair correndo, do local.
Buscava ajuda de alguém, mas esbarrou no medo, provavelmente o de que ninguém
ali pudesse realmente acudir o irmão, já que todos oravam e pediam a Deus pela
saúde de Dito. A imagem de Miguilim, fugindo das pessoas e chorando no terreiro em
meio aos cachorros, denota o quanto ele se sentia mais confortável e confiante entre
os animais que entre os humanos, como se os animais o entendessem melhor que os
homens.
Um aspecto importante, associado à moléstia que resultou na morte de Dito, foi
seu ato de coragem, correndo descalço pelo terreiro, para salvar o mico das garras
do cachorro e, consequentemente, da morte. Notamos que os acontecimentos são
dispostos pelo narrador envoltos em certo misticismo religioso. É quase como uma
doação em benefício à vida de outro ser. A morte do menino se assemelha ao
sacrifício de Jesus ao morrer crucificado em prol da humanidade – ato considerado
pelo cristianismo como a maior prova de amor existente. Nesse sentido, a referida
passagem da estória de Dito comunga com a passagem bíblica da salvação pela
doação. Dito morreu por querer salvar o mico, assim como Jesus morreu para livrar
os homens dos seus pecados.
Ainda no trecho da narrativa, a morte de Dito acontece exatamente no período
do simbólico nascimento do Menino Jesus, o Natal. Considerando que “de tal modo
Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não
pereça, mas tenha vida eterna” (Jo 3:16), o nascimento de Jesus (Natal) parece
representar também a salvação de Dito e a tão esperada vida eterna no céu, tal como
o menino sempre desejou.
Todavia, Miguilim não aceitou a perda e sucumbiu ao desespero e à ira.

3.1.4 No percurso da ira, do amor e da liberdade

Após a morte de Dito, Miguilim perdeu o gosto pelas coisas, vivia triste e choroso,
pensando sempre no irmão. Ele também passava a desgostar das pessoas da família
porque mesmo triste com a morte de Dito, sempre “respondiam com lisice de
assuntos, bobagens que o coração não consabe.” (ROSA, 2016a, p.100). Apenas
gostava de como Rosa falava do irmão que “era uma alminha que via o Céu por detrás
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do morro, e que por isso estava marcado para não ficar mais tanto aqui.” (ROSA,
2016a, p.100) e de Mãitina, porque ela tinha apreço pela bondade de Dito.
Nesse passo, Miguilim já havia desenvolvido certa zanga em relação aos
parentes. Mas, tudo se agravou quando, meses após a partida de Dito, o papagaio
Paco-o-Paco pronunciou o nome de Dito, Expedito, e todos brigaram com o bichinho
para ele esquecer o que estava dizendo. A partir desse momento, Miguilim parece
começar a ficar destemido, mas desenvolvendo a ira em relação às pessoas.
O menino queria ser como o Dito e procurava sempre pensar no que o irmão
diria ou faria em seu lugar. Mas Miguilim não sabia imitá-lo. O modo como Miguilim
passou a agir, aos olhos dos adultos mais parecia que estava sem-vergonha e, por
isso, forçaram-no a trabalhar constantemente, em especial o pai, que passou a levá-
lo para o trabalho pesado no roçado. Ele já não mais tinha medo das pessoas, apenas
temia a morte – como já comentado nesse estudo, mesmo não gostando da vida que
levava, a preferia, pois não sabia o que viria após a morte.
A ira do menino, mais uma vez aparece como uma forma defensiva contra o
medo que sentira ao longo da vida. A prova de que ele tinha medo – e não só da morte
– está contida no próprio fato de continuar obedecendo e trabalhando
incessantemente com o pai, além do desejo de não ser sempre repreendido
severamente e que Béro pudesse gostar dele. Então, ele faria promessa, assim como
Dito havia ensinado, promessa antecipada:

Agora, por enquanto, não. Agora ele estava sempre cansado, nem rezava
quase. Mas, a promessa, ainda fazia! [...] Mas fazia a promessa era por conta
de Pai. Por conta de pai não gostar dele, ter tanto ódio dele, aquilo que nem
não estava certo. (ROSA, 2016a, p. 107)

Miguilim não compreendia a forma como o pai o tratava. Como o mais velho
dentre as crianças, fora o Liovaldo que morava com o tio, Miguilim era usado como
exemplo para os outros meninos. Além disso, Béro era o tipo machista, rude e bruto,
não apenas com as crianças, mas com os adultos, sobretudo com a esposa. Como
vemos, Béro usava o poder de patriarca para conseguir o que queria e, para isso,
valia-se do medo que provocava nos demais por intermédio de gritos, castigos e
espancamentos. Miguilim via apenas ódio nas atitudes do pai.
O menino estava determinado a fazer promessa, iria abster-se das guloseimas
e torrões de açúcar por um tempo, no intuito de afastar algum acontecimento ruim,
como Dito dissera. É aí que ele nota que não precisaria fazer a promessa para poder
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se livrar dos meninos da ponte do Bugre, aqueles que o insultavam e jogavam pedra,
fazendo com que o cavalo corresse e derramasse o leite que o pai o mandava vender.
Destes garotos, Miguilim se recusava temer. Para eles, bastava puxar uma faquinha
e partir para cima que se assustariam e fugiriam. Esse pensamento mostra como o
menino se revoltara com a perda, ao ponto de não sentir mais medo das outras
crianças.
Miguilim compreendia que seu maior intento de promessa era mesmo ter um
pouco de demonstração de afeto e amor do pai e, por isso, a faria. A passagem
também denota a relação de poder que existia entre o menino e o pai,
consequentemente, o medo que sentia da superioridade do patriarca.
A afirmação da promessa fica clara, mas é importante observar que a condição
para a realizar é justamente que fosse no momento em que estivesse descansado.
Esse fato denota o quanto Miguilim estava se sentindo cansado de tudo: da perda do
irmão, da nova rotina de trabalhos exaustivos a que o impunha o pai, das zangas dos
mais velhos etc. O que Miguilim não percebia é que também alimentava uma raivinha
dentro de si.
Como por ocasião do falecimento de Dito, Liovaldo e o tio foram passar uns dias
na casa de Béro. Sempre altivo, egoísta e esnobe, costumava ensinar coisas feias
para o Miguilim que não gostava do comportamento do irmão e, por isso, não queria
a sua companhia, “Mas então o Liovaldo ficava mais querendo a companhia dele”
(ROSA, 2016a, p.108). Um determinado dia, Liovaldo tocava uma gaitinha quando o
menino Grivo, que nunca tinha visto aquilo, passava com uns patinhos para vender e
parou para ouvi-lo tocar. Liovaldo não gostou e começou a chutar os patos, cuspir e
bater no Grivo. A agressão deixou Miguilim indignando e, cheio de ira, ele bate
impiedosamente no irmão, ao ponto de não conseguir soltá-lo:

Era dia-de-domingo, Pai estava lá, veio correndo. Pegou o Miguilim e levou
para casa, debaixo de pancadas. Levou para o alpendre. Bateu de mão,
depois resolveu: tirou a roupa de Miguilim e começou a bater com a correia
da cintura. Batia e xingava, mordia ponta da língua enrolada, se comprazia.
Batia tanto, que Mãe, Drelina e a Chica, a Rosa, Tomèzinho, e até vovó Izidra,
choravam e pediam que não desse mais, que já chegava. Batia, batia, mas
Miguilim não chorava. Não chorava porque estava com um pensamento:
quando crescesse, matava Pai. Estava pensando de que jeito era que ia
matar Pai, e então começou até a rir. Aí, Pai esbarrou de bater, espantado:
como tinha batido na cabeça também, pensou que Miguilim podia estar
ficando dôido.
– “Raio de menino indicado, cachôrro ruim! Eu queria era poder um dia
abençoar teus calcanhares e tua nuca!...” – Ainda gritou. Soltou Miguilim, e
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Miguilim caíu no chão. Também não se importou, e nem queria se levantar


mais. (ROSA, 2016a, p.108-109)

A passagem denota a presença do ódio e da ira. Primeiro em Liovaldo, que se


irrita com a presença de Grivo, aquele menino simples e pobre, depois de Miguilim
para com o Liovaldo e, por fim, de Béro com Miguilim. Quando Liovaldo bate em Grivo,
o que se sobrepõe à situação é o poder que ele queria demonstrar e impor ao menino.
No caso de Miguilim, a ira desenfreada e o sentindo de justiça marcam presença no
que se refere à surra aplicada no irmão. Miguilim perde o controle – Liovaldo agrediu
um inocente, uma criança que apenas o admirava tocar –, e parte para a agressão.
Já no que se refere ao pai, Miguilim desenvolve a ira no grau de intensidade da paixão
colérica, explicada por Mira y López (2012) como um tipo de ira que é forçada a
paralisar, pois sofre a ação do medo. Dessa forma, a ira inicia um procedimento de
interiorização regressiva, capaz de conduzir seu poder funesto sobre o indivíduo que
a sente, no caso, o próprio Miguilim. Todo esse processo recai na raiva que o menino
tem do pai, oriunda do medo que dele também sente – agora pânico –, e que o deixa
sem ação. Ele “é apenas espectador de seus próprios atos, que são impulsionados
por foças surgidas inopinadamente de seu interior e que o podem levar até o
assassinato.” (MIRA Y LÓPEZ, 2012, p.83). A ausência do choro e a manifestação do
riso tornam-se a mais pura revelação de ironia, que também recai no medo que o
indivíduo tem de agir, provocar ou se vingar do rival.
Miguilim sabia que, para todos, ele tinha errado quando agrediu o irmão.
Também sabia que o pai exercia determinado poder sobre ele e sobre os demais ali
presentes. Desse modo, inflara nele o ódio, que é freado pelo medo. Myra y López
(2012) esclarece que, assim como o amor pode se transformar em ódio, o inverso
também pode acontecer. Tudo isso se dá porque só conseguimos odiar alguém a
quem amamos algo, ou seja, alguém a quem somos semelhantes. Mas, segundo o
mesmo autor, para que isso aconteça é necessário orientar o ódio em direções
construtivas, em que os instintos mortais sejam transformados em “força criadora”.
Miguilim já vinha alimentando a ira em relação ao pai, ao longo dos tempos, e com a
surra que levara por último, tudo se transformou em ódio e vontade de matá-lo.
Após a surra e mando da mãe, Miguilim foi passar uns dias na casa do vaqueiro
Jé. Provavelmente para que os ânimos pudessem acalmar entre pai e filho. Quando
retornou, entrou em casa mudo, ressentido. Mas o pai estava em casa e reclamou que
ele não tinha tomado a benção. Chateado, ele pede a benção ao pai balbuciando,
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pensou até que fosse apanhar novamente. Sua ira era tamanha, ao ponto de se deixar
apanhar novamente, se o pai o pegasse. Sabia apenas que não choraria, apanharia
até a morte, momento em que proferiria uma praga sentida ao pai. Para o menino,
essa talvez fosse a maior forma de vingar-se de seu agressor. A ausência do choro
mostraria ao pai o quanto ele era capaz de suportar, o quanto era forte.
Os ânimos são alterados, mas Béro não o bate, no entanto, vai até as gaiolas e
solta todos os pássaros de estimação de Miguilim. Enfurecido com o que o pai havia
feito, Miguilim quebrou e jogou fora todos os seus brinquedos “Queria ter mais raiva.”
(ROSA, 2016a, p.113), como se toda aquela revolta que carregara ao longo da vida,
e no que se refere ao pai, ainda fosse pouca diante de tantas agressões.
Entretanto, ao longo dos dias de trabalho e submissão ao pai, a vontade de vê-
lo morto vai se transformando no desejo de ser notado com amor. Esse desejo evolui,
o ódio diminui até que culmina com a pretensão de fazer promessa, como Dito o
explicou. Mas, então, Miguilim adoece gravemente e fica dias acamado. Diante da
morte, ele não sentiu medo e, em um dos momentos de dores fortes na cabeça, o
menino percebeu que o:

Pai não ralhava, não estava agravado, não vinha descompor. Pai chorava,
estramontado, demordia de morder os beiços. Miguilim sorriu. Pai chorou
mais forte: – “Nem Deus não pode achar justo direito, de adoecer meus
filhinhos todos um depois do outro, parece que é a gente só quem tem de
purgar padecer!?” Pai gritava uma brabeza toda, mas por amor dele, Miguilim.
(ROSA, 2016a, p.115-116)

Apesar de não ter feito a promessa, para a surpresa de Miguilim, quase que
miraculosamente o pai demonstra carinho por ele. É nessa ocasião que percebemos
o quanto Béro mantinha em evidência uma virilidade agressiva, ao longo da vida, um
machismo que mais afastou aqueles que amava, como Miguilim. Apenas diante da
perda foi que o pai demonstrou amor pelo pequeno, tornando-se esse o único
momento em que Miguilim sorriu para o pai, como que preenchido pelo amor contido
nas lágrimas que fluíam no rosto de Béro. Desse modo, tomamos como lição o fato
de que as “crianças apreendem a camada mais profunda da vida pela capacidade de
pensar com o coração e de ver a vida com os olhos mais abertos” (BARRETO, 2003,
p.202). A beleza contida no amor do pai pelo menino foi vista até nos gritos por ele
proferidos, visto que, neles, Miguilim sentiu apenas amor, não mais medo ou ódio.
Porém, no sétimo dia da doença do menino, ainda muito mal e febril ele ouve
uma gritaria na casa e pergunta o que aconteceu. É então que lhe contam que Béro
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matou Luisaltino e fugiu para o mato. Assustado o menino pede: “– ‘Não me mata!
Não me mata’ – implorava Miguilim, gritando, soluçando.” (ROSA, 2016a, p.117).
Percebemos nesse recorte que o medo de Miguilim em relação ao pai foi algo tão
persistente ao longo da vida que, no memento da notícia sobre o assassinato de
Luisaltino, Miguilim implora para que o pai não o mate. O menino confunde o
assassinato de Luisaltino com o seu. Isso denota quão assustadores eram os atos e
a presença do pai. Aquele único momento de demonstração de amor do pai não foi
suficiente para afastar todos aqueles oito anos de agressões verbais e físicas.
Miguilim não vivenciou o amor do pai.
Quando no mesmo dia vovó Izidra lhe conta sobre o suicídio de Béro, Miguilim
reza e adormece, como mandara a vó. Mais tarde acorda, lembra de Dito e pensa que
se ele estivesse vivo, talvez pudesse impedir os trágicos acontecimentos. Miguilim
mantinha viva a memória e esperteza do irmão que “chorava devagar, com cautela
para a cabecinha não doer; chorava pelo Pai, por todos juntos. Depois ficava num
arretriste, aquela saudade sozinha.” (ROSA, 2016a, p.117). Vejamos que o tempo de
Miguilim sentir o amor do pai foi de um instante, que de tão curto se fez esquecido
durante o momento de delírio. Porém, quando recobrou os sentidos e de fato
constatou a trágica morte do pai, o menino sente e se entrega apenas à saudade. E,
a saudade de Miguilim está relacionada àquele breve e último instante de amor, não
aos tantos anos de presença bruta do pai – pois, se assim fosse, o menino
provavelmente ignoraria a ausência do pai, já que tantas vezes sentiu ódio e vontade
de matá-lo. Então, podemos afirmar que aquele único instante de visível compaixão e
amor pelo filho, também funcionou como libertação do ódio sentido por Miguilim.
Outra passagem nos chama a atenção, tendo em vista que retrata o amor que
Miguilim sempre desejou ver no pai. É quando, seu Aristeu vai até a casa de Miguilim,
no período em que se recuperava da doença e das tragédias ali ocorridas, e leva mel
de presente. A representação do mel ofertado por seu Aristeu a Miguilim está para o
carinho, o cuidado e o amor que o menino sempre desejou receber do pai. Miguilim já
tinha observado o carinho de seu Aristeu antes, quando adoeceu pela primeira vez.
Na ocasião, Dito correu atrás de seu Aristeu pedindo-lhe ajuda, como vemos na
passagem: “Depois e tanto, abraçou o Dito; falou: – ‘Tratem com os açúcares este
homenzinho nosso, foi ele quem veio e quis me chamar...’” (ROSA, 2016a, p.65). Aqui,
o dulçor do açúcar está para o dulçor da criança que buscou a cura para outra, quando
ninguém mais a procurou. Já no favo de mel ofertado a Miguilim também notamos o
72

carinho e o amor de um homem que deseja ver o menino feliz após tantas perdas. O
singelo gesto provoca no menino a emoção de se sentir amado por mais um instante,
tanto que Miguilim ri, assim como quando acamado notou o amor de Béro (pai).
No desfecho da narrativa, Vovó Izidra vai embora, enquanto Tio Terêz retorna
para casar-se com Nhanina. Miguilim parecia seguir os ensinamentos religiosos da
avó, provavelmente por isso, achava que era pecado gostar de Tio Terêz.
Miguilim se recupera e encontra a felicidade no “[...] viver devagarinho, no
miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma.” (ROSA, 2016a, p.119),
como se não mais sonhasse. Mas, é justamente nesse miudinho que Miguilim
encontra o doutor José Lourenço, o homem que lhe devolveu a vontade de ser feliz,
pondo no menino uns óculos: “Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma
claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas.
[...] E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo...” (ROSA, 2016a, p.120).
Benedito Nunes (1983), no que se refere ao menino do conto “As margens da alegria”,
do livro Primeiras estórias, de Guimarães Rosa, diz que quando se encontra o menino
“[...] já do outro lado da tristeza e da ferocidade, no reverso da mesma vida que
enegrecera, esplende a luzinha verde do primeiro vagalume – devolução da claridade,
da alegria triunfante, recuperação da beleza superando a fealdade, mas a ela unida
[...]” (NUNES, 1983, p.158). Com Miguilim ocorre algo similar no momento em que ele
põe os óculos, pois a ele também é devolvida a luz dos dias que seus olhos não
podiam ver. Miguilim agora parece fazer uma travessia, pois compreendera a verdade
sobre o Mutúm, como sempre quis. O menino desenvolve sua própria opinião sobre
aquele lugar, opinião que surge da junção do que construiu ao longo dos anos – por
intermédio da percepção dos mínimos detalhes contidos nas palavras daqueles que o
rodeavam e a quem tanto amava – com seu próprio olhar e interpretar o real, agora
como lhe fora desvelado. Como no tempo em que Dito era seus olhos e sua voz,
Migulim sente-se feliz. Enxergar o mundo, as coisas, as pessoas, era a redenção para
tanto sofrimento ou como lhe disse sua mãe “É a luz dos teus olhos, que só Deus teve
poder para te dar.” (ROSA, 2016a, p.121), reafirmando a liberdade que,
inesperadamente, chegou até o garoto, a sua salvação.
Podemos dizer que, tendo passado por tantas adversidades, mas buscando o
que lhe parecia o belo da vida, ao longo da estória, Miguilim “se trata de um menino
poeta” (LISBOA, 1983, p.174), bem como foi seu inventor Guimaraes Rosa. Apesar
de míope, via o mundo com outros olhos: o da sensibilidade. Miguilim percorreu o
73

caminho do senso moral e sempre fez uso do sentimento, da ternura. Assim, durante
o percurso da narrativa, ele nos conduz também “a um mundo interior que já nos
pertence, temos a sensação da infância dentro de uma absoluta verdade lírica”
(LISBOA, 1983, p.176, grifo do autor), somos levados a pensar e compreender o
mundo por intermédio da sua “visão” infantil que nos faz ver o que já não mais
conseguimos. Desse modo, a miopia de Miguilim também adquire a duplicidade
quando se faz capaz de perceber as coisas simples ao seu entorno, como a beleza
do Mutúm, mas também a perturbada e opressora visão de mundo do adulto, como a
de seu pai Beró.
A miopia de Miguilim é alegórica na medida em que dá sinais da experiência
humana. Notamos que quando a miopia do menino é revelada, surge para ele a
esperança, o que o leva a “enxergar” um novo mundo. Miguilim nos é apresentado
nessa tessitura enquanto criança que passa pela experiência da dor, do sofrimento,
das dificuldades com a vida, o que não é característico do universo infantil. Guimarães
Rosa elenca aqui temáticas que, por vezes, passam despercebidas aos olhos
“míopes” da humanidade. O problema de visão presente em Miguilim está para a
humanidade como o próprio enxergar parcial e declinado no que se refere aos
sofrimentos e às adversidades dos outros. Logo, o revelar-se míope faz-se, no final
da estória, também o desvelar do leitor para as superações do ser humano, assim
como acontece com o menino. A mudança de comportamento do personagem se
mostra, ironicamente, com a revelação da sua condição de míope. Essa modificação
denota a superação dos medos do menino e o tange à esperança, ao desejo de
encontrar-se com a vida. Indignado com a realidade em que vivia, o menino parte na
expectativa de algo melhor.
Miguilim parece desenvolver certa autonomia depois de olhar o mundo ao seu
entorno. Chegou a afirmar – sem mais necessitar que os outros te dissessem – que
“O Mutúm era bonito. Agora ele sabia!” (ROSA, 2016a, p.122), se autogovernando,
como jamais fizera. É nesse momento que Miguilim passa a ver um mundo de
possibilidades, de evolução fora do Mutúm, não à toa vai embora com o doutor,
sentindo saudade, mas recordando as palavras de Dito “[...] Sempre alegre, Miguilim...
Sempre alegre, Miguilim... Nem sabia o que era alegria ou tristeza” (ROSA, 2016a,
p.122), contudo a aprenderia, em um novo mundo, distante dali.
Pensar a saída de Miguilim daquele ambiente em que sempre viveu é, como nas
palavras de Maria Carolina de Godoy (2014), pensar a saída, a fuga do menino
74

daquelas demarcações estabelecidas pela realidade e com a perspectiva de poder


abrigar-se longe de tantos sofrimentos. As amarguras serviriam como um processo
de aprendizado. O afastamento do Mutúm promove em Miguilim a expectativa de
chegada de um novo mundo, assim, “é o espaço que se abre em viagem, e que a
viagem converte em mundo. Sem limites fixos, lugar que abrange todos os lugares, O
Sertão congrega o perto e o longe, o que a vista alcança e o que só a imaginação
pode ver.” (NUNES, 2013, p. 174). Desse modo, Miguilim desejava com a viagem algo
que estivesse na contramão do que experimentou – talvez, uma vida com encantos.
O que vemos na obra de Guimarães Rosa é, pois, uma compreensão da infância
não mais adocicada e bela, como as dos contos de fada. A criança representada por
Rosa, passa pela vivência da dor, do medo e da angústia, e sofre durante o processo
de formação educacional que o transporta à fase adulta. Podemos dizer que, no final
da estória, Miguilim faz uma outra travessia, a do mundo infantil ao adulto. Agora,
talvez pudesse enfrentar seus medos, mas na certeza de que outros surgiriam.

3.1.5 Medos de Miguilim, projeções em Miguel

A estória do menino Miguilim tem fim com sua partida para a cidade, choroso e
montado no cavalo Diamante, acompanhado pelo doutor e na certeza de que
estudaria e mudaria de vida. Neste compasso, podemos observar que o nome dado
ao cavalo remete ao brilho, como se o menino estivesse naquele dado momento
sendo conduzido a uma brilhante jornada, a um futuro de glória. Não bastasse, quem
o acompanhava era um doutor, alguém que estudou.
A grandeza dos detalhes está não apenas nos óculos, que deu ao menino a
oportunidade de melhor ver o mundo, mas exatamente no mundo de novas
possibilidades que o doutor poderia apresentar a Miguilim a partir daquele dado
momento.
O leitor de “Campo Geral” tem a grata surpresa de reencontrar Miguilim já
adulto, agora Miguel, em mais duas estórias da coletânea de Corpo de Baile: “A estória
de Lélio e Lina” na obra No Urubuquaquá, no Pinhém e “Buriti” na obra Noites do
sertão. Na primeira, o nome Miguel surge de forma passageira, apenas citado por
Drelina, uma das irmãs. Já na segunda, somos surpreendidos com uma narrativa
75

polifônica24, que tem início com um narrador em terceira pessoa, mas sofre uma pausa
e passa a ser narrada por Miguel, que é um dos três protagonistas narradores. Além
disso, ficamos maravilhados com a primeira parte da estória, que relata o retorno do
jovem Miguel (Miguilim) ao Buriti, um ano após sua partida, e relembrando os poucos
dias da primeira estadia naquele lugar.
Antes de analisarmos as semelhanças e medos entre o menino Miguilim e o
adulto Miguel, faz-se necessário falarmos sobre a nova posição social exercida por
ele. Vimos que Miguilim chegou ao Mutúm em um carro de bois e que quando de lá
saiu, em companhia do médico, foi montado a cavalo. Porém, em “Buriti”, Miguel
retorna pela segunda vez para o sertão, dirigindo um jeep. Além disso, notamos que
parte dos personagens o chamam de Seu Miguel, como é o caso de Gualberto e dos
funcionários da fazenda. Sendo assim, podemos afirmar que Miguel também alcançou
respeitabilidade social e determinado status financeiro. O recebimento daquele par de
lentes quando criança e a ida para a cidade, passou a ser o divisor social para o jovem.
Então, há de se pensar que essa ascensão é o que o faz tomar coragem para retornar
ao Buriti Bom, com o intuito de pedir Glorinha em casamento.
Miguel permitiu que o tempo se encarregasse da saudade que sentia para poder
retornar ao sertão dos Gerais, um ano após a partida do Buriti. Apesar de ser agora
um homem estudado e de posses, carregava consigo algo daquele Miguilim que fora
um dia. Miguel, ainda na introdução do romance, apresenta caracteres de um sujeito
que não conseguiu se desvencilhar do medo que sentia no passado e, por isso, tinha
receio de regressar ao sertão, de voltar para Glorinha, como prometera. Contudo, ele
resolve deixar de lado o que conquistara na cidade e vai em busca do que muitas
vezes pensou ser inviável, mas não impossível: casar-se com a jovem.
Filho do sertão, mas que fora embora e se acostumara aos hábitos citadinos,
atormentava-lhe a ideia de não ser recebido com alegria, já que sempre fora um
estranho entre os dali e, agora, com a ação do tempo, poderia ser considerado um
verdadeiro estranho, até mesmo pela própria Glória. Antes de chegar à Fazenda de
Iô Liodoro, ele passa pela casa de nhô Gualberto, na expectativa de colher

24 Cf. PADILHA, Solange Vieira. Guimarães Rosa: flashback e polifonia em Buriti. Revista das
Faculdades Santa Cruz, v.8, n. 1, p.79-85, janeiro/ junho 2010. No referido artigo, Padilha discute não
apenas o caráter polifônico da estória, os múltiplos focos narrativos, mas também os muitos flashbacks,
o que pede uma maior atenção do leitor.
76

informações sobre a amada e saber se ela já havia arrumado um pretendente ou


mesmo se casado. Como podemos observar, aqui o medo já mostra suas garras.
É também na parte introdutória, que confere ao retorno de Miguel, que o narrador
lhe compara a Miguilim: “Como a infância ou velhice – tão pegadas a um país de
medos, sem o saber, sentia afastadas coisas, que se ocultavam de seu próprio
pensamento.” (ROSA, 2016c, p.95). Há aqui um processo de reafirmação dos medos
do menino ainda presentes no homem, algo que na compreensão do narrador também
poderia se estender até a velhice, como a dizer que Miguel seria sempre um medroso.
Assim, independente de que etapa da vida estivesse, Miguel seria o mesmo Miguilim,
se esquivando dos acontecimentos passados, apesar de sentir as próprias
lembranças do que viveu. Provavelmente, Miguel tinha o intuito de não só esquecer
os medos e angústias da tenra infância, mas, principalmente, de afastar a
possibilidade de tornar a senti-los ou vivenciá-los naquele dado momento.
Como quase todo o restante da primeira parte de “Buriti” se refere à primeira
estadia de Miguel no Buriti Bom, é nela que também temos acesso a trechos em que
o personagem comenta sobre sua infância e medos. Logo que chega no Buriti, Miguel
conhece Glória, filha de Iô Liodoro, grande fazendeiro e dono de quase todas aquelas
terras. O jovem se apaixona pela bela “Glorinha”, mas não se declara. Seus anseios
o fazem recuar, tanto que ele nem consegue revelar para a amada que a chamava de
“Glorinha” em seus pensamentos. Tal forma de agir se aproxima do pensamento de
Montaigne (2010) em relação ao medo, algo que paralisa o homem e o deixa sem
atitude, o transforma em verdadeiro covarde. Observamos que é exatamente como
um covarde, visto que sempre cala diante do que considera um risco ou perigo, que
Miguel vai se comportando ao longo da narrativa.
Por intermédio dos diálogos entre Miguel e Glória é que vamos percebendo as
proximidades entre ele e Miguilim, no que se refere aos temores do menino. Em uma
dessas conversas, Glória ardilosamente pergunta para o jovem sobre seu passado no
Mutúm, mas com o objetivo de em seguida perguntar se ele teve alguma namorada
por lá ou se era noivo de alguém. Embaraçado com a firmeza de Glória, Miguel nota
sua própria covardia nas respostas que fornece. O medo parece surgir agora
aproximando as extremidades de duas fases da vida. Provavelmente, por isso,
manifesta-se diferentemente, visto que Miguilim, que antes se calava diante do que
temia, agora, como Miguel, utiliza a linguagem e maturidade adquiridas para evitar
deixar à mostra sua covardia.
77

Notamos que, atravessando os mesmos obstáculos do menino, quando se


encontrava diante do medo, Miguel transpõe os limites da linguagem a que era sujeito
na infância, desviando-se do lugar-comum metaforizado na própria linguagem
(ausente em um, presente no outro), agora utilizando-a para aprender a enfrentar seus
medos. Todavia, observamos que exatamente tal reação desencadeia nele o
arrependimento e o temor:

– “Está certo. Se eu casar, venho...” Eu disse. Estou arrependido de dizer. O


que estou pensando, tenho de calar. Eu teria receio de gostar de Glorinha.
Ela é franca demais, vive demais, abertamente; é uma mulher que deve
desnortear, porque ainda não tem segredos. Ela pôs os olhos em mim, tão
declarados, com um querer que me enfrenta. – “O senhor não gosta de
ninguém?” Ela disse muito “o senhor”; e eu respondi: – “Não.” Com o que
estou sendo covarde, porque logo ri – imediatamente, que ela não tome a
sério a minha resposta. (ROSA, 2016c, p.99)

O uso da linguagem não se faz suficiente para livrar Miguel dos seus medos. Ele
tinha a consciência de que não deveria calar, como sempre fizera na infância, já que
poderia demonstrar para Glória o medo que deveras sentia diante do sentimento
amoroso que nutria pela jovem. Por outro lado, mais uma vez ele cai nas armadilhas
do medo, principalmente diante da sinceridade de Glória e, por isso, profere a palavra,
mas mente, ao afirmar que não gosta de ninguém. Como afirma Mira y López (2012),
a mentira é uma das camuflagens do medo. Certamente, Miguel se sente ameaçado
pela coragem de Glória, pois como podemos ver ela era seu oposto, era destemida.
Mente e se arrepende, mas não tem coragem de desfazer o próprio erro. Se na
infância ele se apegara a um universo mítico e religioso para evitar determinadas
situações, já não mais se observa esse aspecto em sua vida adulta. A religiosidade é
substituída pelas artimanhas da mentira.
Os castigos frequentes na infância deixaram marcas tão profundas em Miguel
que o mantiveram preso ao medo de errar. Não é à toa que, vacinando o gado e
observado com satisfação por nhô Gualberto, Miguel procurava trabalhar atento, pois
“[...] guardava temor de estar ocioso e de errar. Um horror de que se errasse, de que
ainda existisse o erro.” (ROSA, 2016c, p.110)25. Para Miguel era inadmissível a
possibilidade do erro. O zelo com que fazia as coisas é o que também não o permite
se declarar para Glorinha, pois tinha medo de não ser o certo a fazer. Para ele, aquela
poderia não ser a mais assertiva das escolhas, por isso, preferia esperar.

25
Tal pensamento também o aproxima de Riobaldo de Grande sertão: veredas, do mesmo modo que
sobrepõe Miguilim a Riobaldo, como já comentado neste estudo.
78

Por vezes, Miguel foge às perguntas de Maria da Glória, ao ponto de ela dizer
que ele pensa demais, provavelmente como se a afirmar que ele era mesmo um
homem de pouca atitude. Quando ela lhe pergunta se ele tem irmãos, Miguel fala
apenas de Dito: “‘... Até hoje, não posso demorar o pensamento nele. Tenho medo de
sofrer. Você acha que sou fraco?’ – ‘Acho não. Por quê? Fraqueza não é ter
sentimento.’” (ROSA, 2016c, p.101). É então que notamos que Miguel ainda não
conseguiu vencer sozinho os medos, ao ponto de confundir a saudade deixada pela
ausência do irmão, com a fraqueza. Podemos observar que o modo com que Miguel
estabelece a pergunta “Acha que sou fraco?” e a dirige a Glória, nos lembra a forma
como se dirigia ao irmão Dito. Não diferente, Dito expressava a firmeza e coragem
presentes em Glória.
Apesar de encontrarmos semelhanças entre a altivez de Glorinha e a de Dito,
Miguel chegou a confessar que ela era uma mulher diferente, que não o fazia lembrar
ninguém. Ele admirava a beleza da jovem:

E, de repente, vi Maria da Glória. Vi-a, a vulto, mas sentindo densamente sua


presença, como um cão fareja. Logo não olhei; como não se olha o agradável
do sol, digo, porque me travou um medo. O medo de não ser o momento certo
para a encontrar.
[...]
[...] Ela apareceu. Senti-a futura demasiadamente, já no primeiro encanto, no
arroubo do primeiro medimento. Perdi-me no que falamos. Mas, brusca e
sábia, ela encorajava minha timidez. Adivinha-me. Daí, em tudo que falei, de
chofre, sem razão de assunto. Seguia meu olhar, para o verde de uma
vereda, que marcava, à distância, à noroeste, o princípio dos altos campos.
(ROSA, 2016c, p.137-138)

Como vemos na transcrição, Miguel se sentia um tanto ofuscado pela beleza da


jovem e isso, apesar de agradável como os raios do sol, o assustava, pois a beleza
contida nos raios solares esconde o perigo de se manter exposto a eles, já que podem
causar danos como queimaduras na pele e nos olhos, por exemplo. Nesse sentido,
podemos afirmar que o medo de Miguel era justamente o de se aproximar muito e
encantadoramente da jovem, visto que correria o sério risco de se machucar ou não
enxergar pontos falhos, apreciando apenas a beleza física de Glorinha. Por isso,
Miguel prefere senti-la de longe.
É ainda relembrando este momento que Miguel revela o quanto estava
incomodado com a altivez e sabedoria de Maria da Glória, principalmente porque
percebia que ela fortalecia sua timidez, ao ponto de deixá-lo atônito e sem saber o
que dizer. Mais à frente, Miguel confessa que a alegria de Glorinha o arrastava, mas
79

também o deixava assustado. Compreendia que poderia gostar dela, “mas sofria por
indecisão, por um adiamento.” (ROSA, 2016c, p.124) e, por isso, preferiu o silêncio.
De acordo com o narrador “[...] Era preciso um impulso de coragem, para Miguel
levar os olhos a Maria da Glória, podia ser que ela descobrisse imediatamente tudo o
que ele sentia, e dele zombasse, desamparando-o.” (ROSA, 2016c, p.42). Essa
declaração nos mostra o quão díspares eram Miguel e Glória. Enquanto ele se
escondia em sua timidez, ela esbanjava confiança, era destemida. Segundo
Aristóteles (2005), a confiança é justamente o inverso do medo e, as pessoas
confiantes são, pois, movidas pela esperança de salvação dos perigos. As ameaças,
por sua vez, estão distantes no tempo para os confiantes. Sendo assim, não há motivo
para temer, visto que há tempo para encontrar o socorro dos males distantes ou o
caminho que liberta daquilo que pode provocar medo.
Quando Miguel retorna para a cidade também leva consigo as lembranças de
Glorinha e a vontade de se declarar para ela, algo de que não teve coragem, porque
em sua concepção “O amor não precisava ser dito” (ROSA, 2016c, p.152), mas
sentido. Miguel:

[...] carecia de pensar o nome dela: Glória. Daí tinha receio. Temesse? Maria
da Glória ainda não aprendera a sabedoria de recear, ela precisava de viver
teimosamente. [...] A pedra é roída, desgastada, depois refeita. O Dito,
irmãozinho de Miguel, tão menino morto, entendia os cálculos da vida, sem
precisar de procura. Por isso morrera? Viver tinha de ser um seguimento
muito confuso. Quando Miguel temia, seu medo da vida era o medo da
repetição. (ROSA, 2016c, p.124)

Não era pensar em Glória que ele queria, mas apenas no nome Glória, e isso já
lhe causava temor. Era como se ela fosse alguém a quem ele não se considerasse
merecedor ou, como em trocadilho, ter Glória seria para ele uma glória, algo que ele
poderia conseguir por intermédio de virtudes que, provavelmente, acreditasse não
possuir. Essa, talvez, fosse a maior causa dos seus temores em relação à jovem: ela
era o seu oposto. Portanto, se sentia inferior.
Notamos que o narrador indaga o temor de Miguel, mas a resposta se volta
primeiro para Maria da Glória, em um processo de comparação, e no sentido de que
ela não sabia o que era temer. Para o narrador, ao contrário de Miguel, Glória
precisaria teimar muito ainda, assim como acontecera com a criança Miguilim.
Somente assim, Glória poderia compreender os medos entranhados em Miguel.
Nesse sentido, o narrador se refere aos estragos provocados pelos possíveis erros de
Miguilim e aos consequentes castigos recebidos (as perdas sofridas) e modeladores
80

de Miguel. O narrador vai além e o compara com a pedra desgastada, que ao ser
refeita, tem sua composição alterada. Assim, a pedra já não dispõe da mesma
robustez de antes, ela passa a ser outra, apesar de manter os elementos de sua
composição. Miguel já não era como Miguilim, mas como teve sua base abalada pelos
castigos e experiências nostálgicas, não mais queria vivenciá-los. Aqui, “É possível,
então, compreendermos, pela eclosão de imagens memorialísticas das personagens,
suas atitudes e emoções em meio às circunstâncias de medo e de dúvida quanto ao
presente e ao futuro” (SANTOS, 2018, p.82). Logo, são justamente a experiência e as
recordações que o fazem temer a possibilidade de que as coisas, os erros, tornem a
aparecer em sua vida – perdas, também. Então, podemos dizer que Miguel temeu o
futuro em virtude do passado e, por isso, paralisou diante da amada naquele dado
momento.
Na tentativa de escapar de uma conversa sobre a infância no Mutúm, Miguel
promete a Glória o retorno ao Buriti Bom. Antes de ir embora do Buriti, o jovem chega
a se questionar se conseguiria viver sem Glória, a quem ele chama de alegria. Mais
uma vez notamos determinada aproximação entre Dito e Glória. Dito, como já
comentamos, esbanjava sabedoria e felicidade, tanto que as últimas palavras
proferidas ao irmão foram as de que “a gente pode ficar sempre alegre, alegre”
(ROSA, 2016a, p.96). E, como vimos, é em Gloria que Miguel encontra a alegria: “A
alegria de Maria da Glória me atraía e me assustava.” (ROSA, 2016c, p.138), “Às
vezes, Maria da Glória, era como uma felicidade já possuída” (ROSA, 2016c, p.146),
tanto que ele chega a se questionar: “[...] Posso viver longe da alegria?” (ROSA,
2016c, p.148). É em Glória que Miguel encontra o sentido para a último ensinamento
do irmão. Mas, é por intermédio dela que Miguel também relembra o passado e teme
os dessabores que a vida pode proporcionar (perdas).
Por um ano ele conseguiu viver sem Glória. Mas as atitudes da jovem e as
lembranças dos poucos instantes vividos ao lado dela o marcaram ao ponto de
fazerem com que ele ganhasse coragem, não só para o retorno como para
experimentar a felicidade. Porém, nesse momento da narrativa notamos o que
podemos considerar como uma troca de posicionamento entre Glória e Miguel: ela
passa a sentir medo, ele a ter coragem.
Quando Miguel partiu, Glória manteve a esperança de que ele voltaria em breve
ao Buriti e se casaria com ela. Segundo o narrador, a jovem estava por volta dos seus
81

vinte e sete anos e queria se casar, queria saber como era ser mulher e manter uma
vida sexualmente ativa.
Após quase um ano de espera por Miguel, Glória perdeu a esperança de que ele
regressasse. Decidida a conhecer os prazeres da carne, ardilosa, Glorinha escolhe
nhô Gualberto, já que ele era infértil. Apenas após alguns encontros com Gual,
Glorinha resolve contar para a cunhada, Lala, o que havia acontecido entre ela e Gual.
Quando revelou seus segredos, Glória tinha em si a firmeza de sempre, mas à
proporção que Lala a questionava por ter se deixado levar por aquele homem “Um
alarve, um parvo...”, (ROSA, 2016c, p.245) ela começava a apresentar ares de
preocupação:

– “Que me importa?! Eu não quero casar. Sei que Miguel não vai vir mais...
Antes, então, o Gual, pronto à mão, que é amigo nosso, quase pessoa de
casa...” Mas Glorinha empalidecera sem afogo, sentou-se na cama.
Sob a voz da outra, ela se enfraquecia em sua segurança. Silenciava. (ROSA,
2016c, p.245)

A negação do sonho de poder se casar é a principal prova de que Glória


começava a sentir medo, o que deveras acontece. Se durante toda a narrativa a jovem
se posicionou como altiva e falante, agora temia e silenciava pela primeira vez –
Glorinha havia experimentado teimar, errar, como dissera Miguel em trecho anterior,
por isso, começou também a entender o medo. Gual era casado e a esposa acabara
de surtar. Também era grande amigo e compadre de iô Liodoro, pai de Glória, e
responsável por apresentá-la a Miguel.
Ao passo que a narrativa se aproxima do desfecho, notamos que há uma certa
inversão de papeis: Miguel, o sempre medroso, toma coragem e retorna ao Buriti,
enquanto Glória, que sempre fora firme, passa a sentir medo do que poderá acontecer.
E o improvável vai se mostrando possível ao passo que, o menino temeroso e
covarde, agora um homem, começa a ganhar coragem, algo bem semelhante ao que
aconteceu com Miguilim no desfecho de “Campo Geral”. Se em “Campo Geral”, após
inúmeras perdas e sofrimentos, Miguilim encontra na partida para cidade a
possibilidade de uma vida nova longe dos medos, em “Buriti”, Miguel trilha o caminho
de regresso para o sertão, também repleto de perspectivas, só que agora movido pela
coragem, consciente de que “A vida não tem passado. Toda hora o barro se refaz.”
(ROSA, 2016c, p.253). Podemos dizer que Miguel retorna confiante de que não
poderia tomar como base para a construção do futuro o que lhe ocorrera no passado,
mais especificamente, na infância. E, assim como muitas mudanças foram firmadas
82

ao longo da sua vida – já que ela o conduziu por trajetos antes inimagináveis,
transformando o menino em um homem estudado e diferente dos pais, irmãos e
amigos que permaneceram no Mutúm – agora, também, sua vida seria refeita,
reiniciada, sem que o passado de sofrimentos, inconstâncias e medos pudesse
assumir as rédeas e responsabilidades do porvir.
Dessa forma, o combate ao medo vem, não pela coragem de Miguel, tendo em
vista que se conhecia timorato, mas pela confiança que ele inventa para si tendo como
alicerce a coragem que tanto vira e admirara em Glorinha. O período afastado de
Glória, os pensamentos voltados para a saudade e o modo como a jovem agia tornou-
se um desafio para Miguel, que a via como seu reverso e como a oportunidade de
vencer seus temores.
Acostumado a ser posto no lugar do fraco quando criança, principalmente em
virtude dos medos que o perseguiam, Miguel parece já não mais aceitar ocupar o
mesmo lugar de antes, preso às culpas, aos castigos divinos e humanos. E é
exatamente a partir do temor que surgiu em Miguel a esperança de, provavelmente,
ser um pouco como Glória, do mesmo modo em que, um dia, se espelhou em Dito, na
forma como o irmão via e encarava os desafios diários. Assim, se viveu em um país
de medos e tristezas, agora lhe resta seguir o conselho do irmão Dito, ou seja, ser
feliz. E, nesse caso, a felicidade de Miguel se encontra na superação dos medos que
estiveram em seu encalço por toda uma vida.
83

4 O IDOSO: MEDO E VIAS TORTUOSAS

E a gente raivava alto, para retardar o surgir


do medo – e a tristeza em cru – sem se saber
por que, mas que era de todos, unidos
malaventurados.

(Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas)

O medo resiste por si, em muitas formas. Só


o que restava para mim, para mim espiritar –
era eu ser tudo o que fosse para eu ser, no
tempo daquelas horas. Minha mão, meu rifle.

(Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas)

No primeiro momento da nossa análise nos movimentamos em um campo que


compreendia, basicamente, o universo da criança. Nele, observamos que as
imaginações e as vivências infantis percorriam campos dolorosos, mas que também
se faziam férteis, ao passo que permitiam a esperança de uma vida melhor, de uma
fase adulta que pudesse dar ao sujeito um possível controle sobre si mesmo, uma
vida com menos medos, mais atitudes e alegria. Na segunda parte analítica,
estudaremos uma outra ponta da vida, mais experimentada: a velhice. Propomos,
então, demonstrar os caminhos do medo na experiência cotidiana e tortuosa do idoso
em “A benfazeja” e “Os chapéus transeuntes”.
Nas obras de Guimarães Rosa, a presença de sujeitos à margem, como
dissemos ainda na introdução deste estudo, é uma constante. Suas estórias estão
repletas de loucos, deficientes físicos, crianças e idosos. A presença desses sujeitos
tem a função:

de denunciar os valores convencionais presentes nas sociedades e o


binarismo que, geralmente, opõe o normal ao anormal, excluindo todos que
não se enquadram nos padrões ortopédicos e disciplinares impostos pelos
preceitos médicos e morais socialmente consagrados. (SECCO, 2000, p.118)
84

As condições físicas, psíquicas e outras mais que não se enquadram no senso


comum – tais como a infantilidade ou esquecimento, fragilidade do corpo,
características presentes na criança e no idoso, respectivamente – fazem o sujeito
alvo fácil perante a intolerante sociedade. Assim, aqueles que se enquadram nesse
perfil sofrem as agruras da descriminação e, por vezes, são mesmo forçados a
viverem sob olhares vigilantes, pequenos ou intensos castigos, prisões ou mesmo o
exílio.
Assim, se pensar o medo no âmbito infantil requeria nossa atenção para que não
afirmássemos que era algo tipicamente pueril, do mesmo modo precisamos cautela
ao estudarmos os caminhos do medo no universo do sujeito que muitas coisas
presenciou, batalhas venceu e perdeu ao longo da vida. Como sabemos, as narrativas
de Guimarães Rosa comportam uma diversidade de dualidades. Logo, podemos dizer
que Rosa não faria diferente ao nos apresentar personagens idosos. Veremos que
estes se revelam seres que vão do bem ao mal, da tristeza à alegria, de provocadores
do medo a temerosos etc.
Assim como a política, as ciências passaram e passam por modificações
condizentes com os diferentes processos culturais, sociais e históricos, a velhice ou o
processo de envelhecimento também sofreu e sofre alterações consequentes desses
processos. Em uma pesquisa sobre os medos decorrentes da velhice, a antropóloga
Maria Helena Villas Bôas Concone (2007) afirma que, apesar da maior parte da nossa
sociedade ser pautada em padrões estabelecidos pela sociedade ocidental moderna
– que tende a atribuir ao sujeito tanto uma degradação física quanto social –,
encontramos também traços de uma tradição que valoriza o idoso. Essa tradição faz-
se visível principalmente nas culturas religiosas cristã, afro e indígena, as quais
geralmente elegem o mais velho como chefe, prezam pela sabedoria e, à vista disso,
o respeito. A posição do idoso como membro respeitado era comum entre os povos
antes do início da era moderna, basicamente até o final do século XV e meados do
século XVII.
O sociólogo Martin Kohll (1989), em um estudo referente às diversas etapas da
vida de um indivíduo, também afirma que mudanças e padrões edificados em
decorrência da variação de idade, a que nomeia “institucionalização do curso da vida”,
são decorrentes da sociedade moderna e equivalentes ao processo de
individualização, resultante das mudanças no sistema de trabalho que dá início à era
moderna. Nesta, o velho já não mais tem a força necessária para o trabalho, sendo
85

assim, escanteado, sujeito às dores físicas e à solidão. Em consequência disso,


tememos a chegada da velhice.
No Brasil, bem como em todo o mundo, a partir do século vinte, começa-se a
observar mudanças quanto à representação do indivíduo idoso, pois:

convivemos com dois tipos polarizados de representação sobre o ser idoso,


como dissemos no início – de um lado há as representações que o valorizam
(respeito, sabedoria, etc.) e de outro, as que o desvalorizam (decadência,
passadismo, etc.). As primeiras expressam uma visão tradicional e
extremamente formalizada, quase caricatural, e apontam para um ideal de
respeito (ou talvez de respeito ideal). As segundas, não menos caricatas, de
sabor mais contemporâneo, apontam para novas concepções que trazem
embutida uma ideologia positiva do novo e da modernidade. Não por acaso
essas representações “modernas” têm igualmente um caráter biologizante26.
(CONCONE, 2007, p.37-38)

Posto isso, não seria difícil encontrarmos tais representações inseridas, também,
nos textos literários, a exemplo de Guimarães Rosa. Assim, grande parcela de suas
tessituras apresenta indivíduos em processo de envelhecimento ou envelhecidos,
inseridos em determinadas comunidades, cercados por uma diversidade de outros
personagens, e que traduzem tanto os hábitos ditos tradicionais, quanto os costumes
decorrentes da modernidade.
Alguns personagens rosianos se mostram capazes de desvendar os enigmas da
vida humana e, por isso, são indivíduos que denotam respeito. A esse exemplo tem-
se Joaquim Norberto, narrador de “Luas-de-mel”, de Primeiras estórias. Joaquim
conta a história de um casal de jovens amantes fugitivos, que ele e sua esposa, Sa-
Maria Andreza, abrigaram em sua casa a pedido do amigo Seo Seotaziano. Na
maturidade da vida, o narrador acaba por relembrar e analisar tempos outros por ele
vivenciados, a própria juventude: “Se me se diz, nem pensei: os namoros dessas
gentes, são minhas outras mocidades” (ROSA, 2005c, p.148), revista agora como um
resumo de suas memórias e do próprio estado de alma, que se faz capaz de refletir
sobre o amor, sobre os sonhos, sobre a vida: “A gente, agora: sair das desilusões, o
entrar em idade” (ROSA, 2005c, p.148). A propósito dessa vida, já mais vivida, temos
o exemplo também do narrador Riobaldo de Grande sertão: veredas. A estória é

26
Cf. CONCONE, Maria Helena Villas Bôas. “Medo de envelhecer ou de parecer?”. No referido artigo,
a antropóloga fala que envelhecer é algo não só de caráter biológico, mas também sociocultural, ao
passo que as modificações do corpo é que estão sujeitas as ações culturais que as nomeiam: “Assim,
tal como a noção de corpo (que, como se viu, é referência importante na nossa percepção de velho), a
noção de envelhecimento também goza de uma dupla natureza: biológica e sociocultural”. (2007, p.31).
86

contada pelo narrador já idoso, relembrando sua vida, seus feitos, os amores e o
próprio medo imposto ou sentido por ele.
Já em outras narrativas do mesmo autor, encontramos sujeitos idosos opostos
aos respeitosos contadores de estória supracitados. São, pois, sujeitos
marginalizados, sem voz, postos ao esquecimento, como ocorre com a velha Mãitina,
preta velha, vista como feiticeira em “Campo Geral” e com o “Homem velho, quieto e
sem falar, [...], na realidade, o pai da Moça.” (ROSA, 2005b, p.95), figura que concorda
com todos e, angustiadamente, cala, em “Nenhum, nenhuma”, de Primeiras estórias.
Neste capítulo procuraremos analisar como os narradores de “A benfazeja” e
“Os chapéus transeuntes” nos apresentam o meio em que estão inseridos os idosos
de ambas as narrativas. Desse modo, tomaremos como ponto de partida algumas
questões, semelhantes às aplicadas à análise anterior, tais como: Como são
apresentadas as personagens idosas, elas são temerosas ou incitadoras do medo?
Os idosos são personagens que reafirmam suas posições sociais ou as abstrai? E,
existe medo nesse processo? Tais personagens têm voz? Essas perguntas, além de
outras que surgirão ao longo desta escrita, fazem-se importantes visto que nortearão
o processo de análise da inserção do medo na vida do idoso e suas implicações, tanto
no processo de elaboração da própria narrativa quanto na composição da história
daquele dado indivíduo.

4.1 Linhas secretas do medo em “A benfazeja”

Podemos observar na fortuna crítica de Guimarães Rosa, a exemplo de Ana


Maria Bernardes de Andrade em “A velhacaria nos paratextos de Tutameia”, que há
nos escritos roianos uma constância de temáticas que envolvem polos distintos e
impossíveis de serem desvencilhados e que denota “a ambiguidade das regiões
fronteiriças” (ANDRADE, A., 2003, p.37). O formato da escrita de Guimarães
apresenta não só um discurso repleto de potencialidades, mas também se revela
como um processo de elaboração minuciosa de determinada consciência ficcional que
envolve o leitor. Nesse passo, a construção da tessitura rosiana faz com que
percebamos, nas sutilezas das inconstâncias e dualidades, a complexidade humana.
Assim, somos excitados a pensar a respeito dessa emaranhada condição do homem
87

e do mundo que o cerca. Em “A benfazeja”, por exemplo, somos levados a refletir


sobre a irônica condição de tomada de posição em relação ao outro.
“A benfazeja” é uma das vinte e uma narrativas de Guimarães Rosa que
compõem Primeiras estórias, obra publicada pela primeira vez em 1962, após a
consagração do autor com as publicações de Sagarana (1946) e Grande sertão:
veredas (1956). Assim como em outras narrativas de Primeiras estórias, o medo
permeia a “A benfazeja” e circunda não só a protagonista, Mula-Marmela, como o
cego Retrupé e os demais personagens, muitas vezes segredado, como ocorre com
Mula-Marmela, outras disfarçado em ódio.
Em um pequeno lugarejo, em meio a pessoas que mal os viam, encontram-se
as pobres figuras de Mula-Marmela, velha e feia, e do também velho o cego Retrupé.
Em uma das possibilidades de leitura dessa narrativa, a imagem dos personagens
idosos nos remete a um processo de marginalização que se apropria do fato de serem
eles pobres e desprezíveis.
“A benfazeja” é uma narrativa envolta em ambiguidades. O próprio processo de
escrita, pautado na oralidade, no “sempre escutei”, “do que ouvi”, “dizem-se, estórias”
ou “conta-se-me”, como se as estórias fossem repassadas de uma à outra pessoa,
sem que se saiba ao certo o que de fato foi visto ou aconteceu, não nos permite
afirmações de fato categóricas, gera incertezas. Estas, por sua vez, nos transportam
a um universo de batalhas entre mentiras e verdades em que o narrador e as
personagens, seja por medo, opressão ou discriminação, preferem ignorar, julgar ou
condenar. Assim, diante dessa estória que se faz ambígua, atentamos para Mula-
Marmela e o cego Retrupé, sujeitos que se caracterizam por provocarem medo nas
pessoas, em virtude das posições sociais que ocupam ou mesmo de possíveis crimes
por eles cometidos. Ambos ainda se destacam porque também sentem medo. Mula-
Marmela, mesmo contida, teme e foge da crueldade social; Retrupé não só teme a
comunidade, como sente medo de Mula-Marmela. Porém, se unem com a perspectiva
de sobreviverem àquela hostilidade e enfrentarem a solidão e toda a sensação de
desamparo que dela surge.
Portanto, se o medo se instaura nas entrelinhas da narrativa que traz dois
personagens idosos, interessa-nos investigar quais medos e como se introduzem no
ambiente e entre as pessoas que os cercam. Também nos interessa compreender as
variações do medo no universo do idoso – mais especificamente no que concerne à
Mula-Marmela e ao cego Retrupé – se são provocados ou sentidos por eles. Logo,
88

como processo analítico dessa estória, adotaremos os seguintes critérios: tendo em


vista que sabemos das versões da vida de Mula-Marmela e do cego Retrupé por
intermédio do ardiloso narrador, primeiro procuraremos examinar o que ele nos diz
sobre ambos e demais personagens. Veremos como se dá a apresentação da Mula-
Marmela e o cego Rétrupé para, em seguida, investigamos os medos que envolvem
Mula-Marmela, o cego Retrupé e a comunidade onde moravam.

4.1.1 Breviário sobre a estória

“A benfazeja” é uma estória de caráter surpreendente, pois não temos acesso


direto aos fatos, nem às versões orais da comunidade ou mesmo à versão da própria
Mula-Marmela sobre o que aconteceu. A narrativa traz um personagem narrador “de
fora” de determinado lugarejo, que conversa com outros indivíduos daquela
comunidade a respeito de Mula-Marmela, pessoa a quem odiavam, pois diziam-na
velha assassina. Esse narrador tenta demovê-los desse modo de enxergá-la, pois a
seu ver ela é a benfazeja, o que intitula a própria narrativa.
Em linhas gerais, a narrativa conta a estória da velha Mula-Marmela, viúva de
Mumbungo (matador sanguinário), madrasta e guia do velho e cego Retrupé (ruim
como o pai). Tais personagens viviam à margem de uma determinada sociedade e
eram, pois, dois velhos pobres e pedintes.
O conhecimento sobre os feitos da protagonista nos são apresentados pelo
narrador, uma voz que toma pra si o poder de dizer quais eram as outras versões dos
acontecimentos e que nos repassa as versões dos outros contadores (comunidade),
mas, ironicamente, as contra-argumenta, questiona e expõe seu juízo de valor.

4.1.2 Artimanhas de um narrador

O narrador de “A benfazeja” nos põe diante de dois planos narrativos. No


primeiro, o discurso central é enunciado no presente, momento em que a personagem
principal, Mula-Marmela, é velha e guia de um cego, também idoso. Neste plano
narrativo, se vê encenada uma conversa entre o próprio narrador e seus
interlocutores. Estes reportam acontecimentos dos quais não há uma testemunha
ocular. Eles não tinham certeza de nada, por isso, ninguém afirma o que realmente
aconteceu, como evidenciam os seguintes trechos em que o traço linguístico tem por
89

base o sujeito indeterminado: “pergunto, e ninguém o intéira” (ROSA, 2005a, p.161),


“Dizem-se estórias” (ROSA, 2005a, p.164), “Dizem-na maldita: será, e?” (ROSA,
2005a, p.165), “Conta-se-me que ele quis matá-la” (ROSA, 2005a, p.168), “Diz-se que
ela teria lágrimas nos olhos” (ROSA, 2005a, p.169) e “Diz-se que ele padecia uma dor
terrivelmente” (ROSA, 2005a, p.169). Além de serem eventos não presenciados,
também se configuram por pertencerem ao passado remoto da vida daquela mulher.
Isso nos leva a pensar que o discurso da comunidade projeta em Mula-Marmela todo
um passado maléfico, repleto de atrocidades. Assim, cria-se nesses relatos um
estereótipo completamente negativo para velha a quem odiavam e queriam longe.
Na versão apresentada pelo narrador, ele cogita o que aconteceu com a Mula-
Marmela, o Mumbungo e Retrupé. Para tanto, recorre a dois expedientes: ao que ouve
falar, pela comunidade, sobre o que aconteceu entre Mula-Marmela, o marido e o
enteado; e a contraposição desses acontecimentos, apresentados agora pelo ponto
de vista do próprio narrador. Assim, o máximo a que nós leitores conseguimos chegar
são às versões da comunidade ou às suposições no discurso do narrador, que exerce
o papel de advogado de defesa da protagonista.
No modo como a estória de Mula-Marmela foi contada pelo povo, ela aparecia
como uma velha, malvada e feia, que matou o marido Mumbungo, a quem amava.
Retrupé, o enteado, ficou cego em virtude do uso de ervas e pós cegadores,
administrados também por Marmela. Após cegá-lo, a velha passou a guiá-lo pelas
ruas por onde ele pedia esmolas e ofendia “o invisível”. No final da vida daquela
mulher, a comunidade acreditava e contava que ela matou Retrupé por esganadura.
Tais discursos depreendiam a crueldade da velha.
Contrapondo-se a essa versão, o narrador tenta alertar e convencer a todos que
caso Mula-Marmela tenha mesmo matado o marido e cegado Retrupé, teria feito o
bem a si e, consequentemente, à própria comunidade. As palavras do narrador
deixam subtendidas a ideia que, se tais homens eram perversos, existia a
possibilidade de que também maltratassem Mula-Marmela. Logo, ela teria livrado a si
e a comunidade da perversidade deles. Evitando mais medos e mortes, seus atos
tornaram-se um bem comum.
Do ponto de vista do narrador, os outros contadores não poderiam julgar a Mula-
Marmela, até porque não tinham provas contra ela. A exemplo disso ele conta como
a comunidade responsabilizava Mula-Marmela pela cegueira de Retrupé. Após a
morte de Mumbungo, Retrupé começou a apresentar um comportamento perverso e
90

apareceu cego de ambos os olhos repentinamente. A comunidade não procurou saber


o motivo daquela cegueira, mas tinha conhecimento da existência de ervas
“cegadoras” capazes de provocarem repentina moléstia e impedirem Retrupé de
cometer atrocidades. Por isso, sendo a Marmela a velha de compostura selvagem e
a única companhia de Retrupé, tornou-se a principal suspeita.
Ao que tudo indica, na concepção do narrador faltou àquela comunidade uma
melhor investigação sobre o que aconteceu no passado, tendo em vista que, se a
cegueira de Retrupé tivesse sido realmente provocada por ervas, qualquer um ali
também poderia ser o suspeito, pois naquele lugarejo, todos o temiam e queriam livrar-
se dele. Considerando que não se tinha certeza de nada, o narrador conta sua versão
sobre o provável caráter daquela anciã – a seu ver, a benfazeja.
Sob essa perspectiva, o narrador desacredita as acusações da comunidade e
lhes tira a autoridade de julgar, uma vez que sequer a conheciam e “fio que nem nunca
lhe escutaram a voz” (ROSA, 2005a, p.167) e nem seu nome sabiam: “Chamavam-na
de a ‘Mula-Marmela’, somente, a abominada” (ROSA, 2005a, p.161). Enquanto a
abominada27 anciã, pedinte e guia de um velho cego e raivoso, “tão fora da vida
exemplar de todos” (ROSA, 2005a, p.165), representava também uma ameaça para
a sociedade. Por isso, julgavam-na, odiavam-na. Todavia, se em tese a odiavam é
porque também a temiam.
Em uma passagem em que critica o quão injustas eram as sentenças proferidas
a Marmela, o narrador pressupõe o medo que tinham dela: “Por que são tão
infundados e poltrões, sem espécie de perceber e reconhecer?” (ROSA, 2005a,
p.164). Ao adjetivar as pessoas como sendo “poltrões”, o narrador ressalta os medos
que tinham daquela mulher.
Porém, o que a comunidade temia tanto em Mula-Marmela ao ponto de sentirem
ódio dela? Segundo López (2012), e como já mencionado nesta pesquisa, o ódio só
se faz evidente quando não se consegue descarregar toda a ira que se sente sobre o
outro. De acordo com o referido pesquisador, a ira é resultado dos nossos medos, do
conhecimento daquilo que nos torna incapazes: nossas fraquezas. A ira surge quando
nos sentimos limitados ou fracassados em algum propósito, por intermédio de algo ou

27
Cf. Michaelis: dicionário da língua portuguesa. Disponível em:
https://michaelis.uol.com.br/busca?id=km0 . 1 adj. Que se abominou. 2 Que é detestado; execrado,
repudiado. Etimologia part. de abominar. No Dicionário etimológico da língua portuguesa.
Abominação: sf. ‘ação ou efeito de abominar, repulsão’. Do latim abōminātĭō -ōnis. de ab-, “renúncia,
privação, negação, separação, afastamento no tempo e no espaço”, mais omen-, “ameaça, predição”.
91

alguém. Dela eis que aparece o ódio. Na maioria das vezes, isso ocorre porque
enxergamos no outro as nossas próprias fraquezas ou porque temos medo da ameaça
que o outro pode representar diante daquilo que consideramos nosso – seja o modo
de pensar, agir, falar, viver etc. Partindo desse princípio, podemos então dizer que a
comunidade enxergava a Mula-Marmela como uma ameaça. Ela feria a ordem
instituída socialmente, posto que velha, feia, pedinte, em meio a uma comunidade
organizada, que não queria ver semelhante situação pelas ruas da cidade. Sua
imagem deixa explicita a desigualdade social, é o reflexo de uma sociedade
desumana, mas que queria se mostrar harmônica. Por isso, a presença de Mula-
Marmela gerava certo mal-estar.
O medo, atrelado ao ódio, agora fazem-se evidentes nas palavras da
comunidade, colocadas em dúvida pelo narrador. Logo, a comunidade aparenta
buscar uma saída que a liberte daquele sentimento por Mula-Marmela e encontra
como via de escape o desprezo. Não à toa, as palavras ditas sobre a protagonista
eram do tipo que a ridicularizavam e mesmo a anulavam.
Entre a versão do narrador e a versão da comunidade, o fluxo da estória não
segue uma ordem cronológica dos eventos a respeito da Mula-Marmela, artimanha do
narrador, que nos permite observar os fatos pelo seu ponto de vista e pelo da
população. A narrativa inicia-se com uma advertência do narrador, a de que “Vive-se
perto demais, num lugarejo, às sombras frouxas, a gente se afaz ao devagar das
pessoas.” (ROSA, 2005a, p.161). É, pois, o próprio narrador quem evoca a presença
daquela velha mulher “a Mula-Marmela” como vizinha de todos ali. Ele chama a
atenção para o fato de que a velha jamais fora cuidadosamente observada. Destarte,
torna-se evidente que sua pretensão era apresentar uma nova versão da protagonista
que não fosse a mesma da comunidade que a cercava.
Na visão da comunidade, Mula-Marmela lembrava uma benzedeira ou a bruxa
velha. Em seu imaginário, por certo, a feição e o jeito de Mula-Marmela remetiam
também à figura da malfeitora, furibunda e sorrateira – o que contraria a versão do
narrador, que a tomava como benfeitora. Logo, Marmela revela-se ambivalente. Ela
provoca ódio e medo nas pessoas e, ao mesmo tempo, se sente acuada, com medo
da comunidade.
O narrador se impõe e não aceita o fato de a comunidade, que se julgava
perfeita e exemplar, não ser exata nos julgamentos relacionados à Mula-Marmela,
posto que a dizia assassina, mesmo sem provas concretas. Na concepção do
92

narrador, se ao menos as pessoas justificassem tal acusação baseados nos modos,


no jeito de bruxa que a velha apresentava ou nos medos que tinham dela, ele até
entenderia. Mas, a comunidade não explicou os motivos que a levou a acusar Mula-
Marmela, muito menos aceitou a possibilidade de ter feito um errôneo julgamento
sobre a velha.
Logo, percebendo os preconceitos comunitários, o narrador encontra em
Marmela uma outra face: “Nem fosse reles feiosa, isto vocês poderiam notar, se capaz
de descobrir-lhe as feições, de sobre o sórdido desarrumo, do sarro e crasso; e
desfixar-lhe os rugamentos, que não de idade, senão de crispa expressão” (ROSA,
2005a, p.162). Vemos que há na passagem uma certa correlação entre os fonemas28,
o que produz um misto de sensações táteis agradáveis e ao mesmo tempo negativas.
As consecutivas repetições de [r], [R], [s], [z], [m], [b] e [p] denotam um misto de leveza
e aspereza, suavidade e pesadume nos traços que caracterizam Mula-Marmela. Além
disso, o trecho apresenta duas possibilidades de leitura que envolvem essas
correlações: uma, a de que o narrador não enxergava a mulher como velha e feia;
outra, a que ele a via como velha e feia, mas tentava suspender a imagem externa da
Mula-Marmela, na tentativa de ver algo de bom na velha. Porém, o que se sobressai
é a ideia de que o que deveria ser relevante em Mula-Marmela não eram suas feições,
mas o que se esconde por trás delas: a personalidade.
Notamos que o narrador parece fazer o esforço de retirar da protagonista aquilo
que talvez fosse visível aos olhos. Como bem observou Paula Passarelli (2003) a
respeito da supracitada transcrição de “A benfazeja”, o narrador simultaneamente
“procura encontrar, no meio de tantas rugas e marcas de dor e abandono, uma beleza,
a beleza interior da Benfazeja” (PASSARELLI, 2003, p.858), a bondade. E a encontra,
mesmo que para tanto precise subtrair o que de fato é visível em Mula-Marmela: seus
modos e suas feições amedrontadoras. Logo, notamos que é como se o narrador
quisesse descobrir em Mula-Marmela algo capaz de justificar o partido de defesa que
tomaria em relação a ela.
Desse modo, o narrador segue questionando e criticando seus interlocutores. No
discurso por ele elaborado, a lógica que a comunidade toma como fundamento para
incriminar a protagonista, acusando-a de assassina com base em seus modos e
semblante, não fazia sentido, era mesmo preconceito e, portanto, havia a

28
Mais uma vez recorremos a José Lemos Monteiro, para auxiliar-nos na análise fonoestilística.
93

possibilidade do engano. Estrategicamente articulado, fundamenta que a comunidade


deveria mesmo era agradecer a Mula-Marmela, acaso ela tivesse feito o que diziam,
posto que livrara todos ali de um mal.
Como podemos observar, o narrador faz-se irônico, não em sua voz, mas em
suas ações, no gesto de fingir ouvir a versão da comunidade para depois contá-la.
Desse jeito, o narrador se vale do discurso alheio, não para reafirmá-lo, mas para a
ele (discurso) se contrapor. Suposta e ironicamente, ele dá voz aos interlocutores ao
contar o que ouviu. Contudo, a toma quando reforça a ideia de que a comunidade fora
equivocada, preconceituosa, em relação à velha Mula-Marmela. Desse modo, o fio de
ironia faz-se visível, bem como a evidência da tensão entre o discurso do narrador e
o dos moradores do lugarejo.

4.1.3 Impactante ausência do nome próprio

A escolha do apelido para designar as personagens da estória não parece


gratuita. Mula-Marmela, por exemplo, alcunha aplicada por outros personagens, ou a
benfazeja, a eleita apenas para o título por aquele que tem a autoridade de falar, o
narrador, reforça as caracterizações da figura da protagonista, mulher sem nome
próprio, tanto na estória contada pelos moradores do vilarejo ao narrador, quanto na
contada pelo narrador. Do mesmo modo como ela não tinha uma história oficial,
também não tinha um nome verdadeiro. E, assim, seus apelidos, principalmente Mula-
Marmela e Benfazeja, representam uma duplicidade na velha.
A aversão à imagem da velha a quem chamavam Mula-Marmela é peculiar
desde a negação do nome próprio. Ao longo da narrativa há o contínuo uso dos termos
“a mulher”, “guia de um cego”, “ela”, “essa mulher”, “a mulher odiosa” etc. que
substituem a alcunha de “Mula-Marmela”, que também não era um nome oficial,
próprio. Se pensarmos pelo viés linguístico, esses grupos nominais poderiam apenas
funcionar como processo de coesão referencial. Porém, não funcionam só como
referências neutras, que têm o simples propósito de evitar repetições, pois também
carregam uma negatividade descritiva em relação à Mula-Marmela. Logo, tais grupos
nominais funcionam mais como atributo do que a comunidade projeta na Mula-
Marmela. Por conseguinte, sabendo que a palavra em Guimarães Rosa não tem um
único significado, mas é em si polissêmica, podemos afirmar que a indiferença da
94

protagonista é posta em evidência pelo narrador, por intermédio dos grupos nominais
que a própria comunidade atribuía à figura da Mula-Marmela.
Em determinadas passagens, a indiferença social é ressaltada no uso de “a
mulher” ou “ela”, por exemplo, em substituição ao nome próprio da personagem –
vemos, pois, a primeira manifestação de aversão advinda das pessoas daquele
lugarejo para com a Mula-Marmela. Já em outras, essas substituições também
denotam o medo que sentem da protagonista, pois expressam uma representação do
maligno, é: “A mulher – a malandraja, a malacafar, suja de si, misericordiada, tão em
velha e feia, feita tonta, no crime não arrependida – e guia de um cego.” (ROSA,
2005a, p.161). Os adjetivos, em maior parte substantivados, carregam consigo o sinal
da feiura, da miséria e toda uma representação do deplorável, do mal. A inserção das
palavras mal e miséria nessas adjetivações reforçam o modo como a viam e enfatizam
não só o preconceito, como o medo das pessoas.
Ana Maria Machado (2013), em o “Recado do nome”, explica a importância do
nome, seja ele próprio ou não, nas narrativas de Rosa. Segundo a referida autora “[...]
quase invariavelmente os protagonistas têm diversos Nomes, que se somam, se
trocam, se substituem, se cruzam e se completam, criando uma faixa inteira de
significação, onde é possível garimpar em cada caso.” (MACHADO, 2013, p.38). Logo,
não seria diferente com a Mula-Marmela, que em cada parte da narrativa recebe uma
variedade de apelidos que são apropriados àqueles elementos que a comunidade
quer destacar em sua pessoa.
Mula-Marmela é, pois, inominada para a comunidade: “Soubessem-lhe ao
menos o nome. Não; pergunto, e ninguém o intéira” (ROSA, 2005a, p.161). A ausência
do nome próprio, a falta de interesse em sabê-lo, somada ao feito de preferirem
apelidá-la com nomes que a aproximam do diabólico, tiram da velha a aproximação à
cristandade, a possibilidade de ser essa pessoa um tipo benevolente.
Na cultura cristã o nome é fundamental, pois é por seu intermédio que se é
purificado e consagrado no ritual do batismo. Ao não chamar Mula-Marmela por um
nome próprio, a comunidade manifesta uma condenação ou modo de impossibilitar
Mula-Marmela livrar-se dos pecados – pecados que a própria comunidade à atribuiu.
Além disso, enquanto “ensalmeira”, “malacafar” ou “loba”, a representatividade de
Mula-Marmela se aproxima do diabólico e se afasta de qualquer princípio de bondade
difundido pelo cristianismo e responsável pela salvação ou libertação do indivíduo das
95

amarras do mal. Logo, a comunidade encontra nos apelidos mais um meio de reforçar
o caráter maléfico que viam na velha e de justificar ódio e temor por ela.
Alguns estudos, como de Passarelli (2003), evidenciam que Mula-Marmela fora
excluída da vida em sociedade devido a seus caracteres físicos. E, apelidada
maleficamente, expulsaram-na também de uma vivência espiritual. A alcunha Mula-
Marmela:

Apelido este oriundo da junção entre mula, um animal de carga, acostumado


a carregar grandes pesos – no caso de Mula-Marmela, o peso do seu crime
e o de conduzir Retrupé – e marmelo, fruto azedo e doce, ambíguo assim
como a personagem de Rosa. (PASSARELLI, 2003, p.857)

Ao conectar animal e fruto como apelido, é tolhida da pessoa qualquer


especificação que possa ser de caráter humano. Assim, a comunidade a elege como
Mula-Marmela. Sua figura se faz animalesca em “seu encanzinar-se” (ROSA, 2005a,
p.162) e ácida, diabólica, se vista pelo crime que lhe atribuem. Porém, se mostra doce,
quando condutora de um cego, cuidadora e zelosa com aquele homem, filho que não
tivera. Assim, velha se faz ambígua.
Do mesmo modo, o cego recebera o apelido de Retrupé – o que tem os pés
voltados para trás. Voraz, o narrador despeja sua crítica sobre a comunidade: “Como
a Mula-Marmela, os dois, ambos: uns pobres, de apelidos. E vocês não vêem que,
negando-lhes o de cristão, comunicavam, à rebelde indigência de um e outra,
estranha eficácia de ser” (ROSA, 2005a, p.162). Esse tipo de reflexão focaliza a
perversidade da sociedade no que diz respeito a ambos, já pobres, agora
marginalizados também pelo bem que mais se preza: o nome próprio. Negando-lhes
um nome, a comunidade reforçava, e de modo impiedoso, o querer fazê-los mais
insignificantes e miseráveis do que já eram. Cruelmente, encontravam uma incômoda
causa para afirmarem o quão privados de elementos humanos eram aqueles dois.
Assim, Mula-Marmela e Retrupé percorrem a narrativa, sem possuírem nome
próprio, e, pouco a pouco, animalizados, como loba e cão. Aos olhos e palavras da
comunidade, ambos não passavam de meros sujeitos sem nenhuma importância.
Encontravam-se, pois, postos à margem, fosse pela pobreza (inclusive do nome) ou
pela amedrontadora aspereza dos atos e moldes de constituição familiar.
Antagônico, ao modo de ver da sociedade, o olhar defensor do narrador em
relação aos atos de Marmela, os quais considera benevolentes, o faz nomeá-la
Benfazeja (a que faz o bem), já no título. Tal alcunha não aparece ao longo do texto,
96

porém a ideia de que ela fizera o bem, fica subentendida em seu narrar. Na concepção
do narrador, seria aquela mulher a Benfazeja, posto que se matou o perverso marido,
ajudou a comunidade a livrar-se do mal, agiu com benevolência e assim deveria ser
reconhecida.

4.1.4 Entre medos: Mula-Marmela, o cego Retrupé e a comunidade

Como atentamos antes, Mula-Marmela era uma pessoa que incomodava a


comunidade em que residia, posto que não se encaixava nos padrões socias
estabelecidos. Idosa, sem fala, sua aparência causava ojeriza e chegava a enojar a
tão pretensa perfeita comunidade. Enquanto pobre e também guia do cego Retrupé,
a velha despertou certa irritação nas pessoas daquele lugarejo. Mas, continuamente
excluídos da vida social, ambos sofreram as agruras do meio em que viviam e
temeram.
Na autoridade da palavra proferida pelo narrador e a única a que temos acesso,
figura-se notória a ideia de que seria mais fácil para a comunidade construir um
passado malfazejo para a velha a quem detestava, sobretudo um passado em que os
atributos de Mula-Marmela fossem condizentes com a visão presente que se tinha
dela. Assim, a imagem presente da velha, somada a episódios que a colocam como
companheira de Mumbungo e madrasta de Retrupé, perversos a quem tanto se temia,
presumivelmente ativou na comunidade o ódio pela protagonista. Não obstante, o
narrador interpela à comunidade na tentativa de entender o porquê do ódio e não do
medo por Mula-Marmela, ao passo que, o nutriam pelo cego, a quem deveriam odiar
por ele ser agressivo.
A primeira ocorrência do medo a que se observa em “A benfazeja” diz respeito
ao modo como a comunidade enxergava Retrupé. Era, portanto, um medo coletivo e
movia dada sociedade. George Duby (1999) dizia que os modelos de vida em
sociedade promoviam uma desigualdade entra as classes sociais. Essa desigualdade
impulsionava a luta pela sobrevivência e, por vezes, motivava a violência,
consequentemente, o medo. Assim, a própria formação de vida em comunidade
propiciava o medo das pessoas daquele vilarejo em relação ao cego, um cruel pedinte.
O cego Retrupé carregava consigo o estigma do pai, o perverso Mumbungo.
Contudo, Retrupé se sentia excluído e revidava de modo violento aquela sociedade
que o repelia. Bravo e áspero em modos e linguagem, as pessoas costumavam temê-
97

lo. Retrupé tinha “um mando de alma, qualidade de poder” (ROSA, 2005a, p.162) que
não se via em Mula-Marmela. Não era à toa que o respeitavam. Assim, se se temia
ao Retrupé era em decorrência do poder de violência que, explicitamente, o cego
carregava consigo. No entanto, era por Marmela que nutriam uma aversão, por sua
vez já manifesta no próprio ato de contarem ao narrador fatos passados da vida
daquela mulher.
O narrador ainda põe em pauta o desejo criado por aquelas pessoas de que,
com a morte de Mumbungo, “ela também se fosse, desaparecesse no não” (ROSA,
2005a, p.166). Há nessa passagem uma explícita negação da sociedade em relação
à presença da protagonista no lugarejo. Não só a queriam longe, como desejavam
jamais tornarem a vê-la. Porém, Mula-Marmela permaneceu perambulando pela
cidade, acompanhando e cuidando de Retrupé. Restou às pessoas daquele lugar
execrar a existência de ambos. Afinal, Retrupé carregava sempre um facão e a sina
de ser “o filho tal-pai-tal; o cão.” (ROSA, 2005a, p.164).
A impossibilidade de livrarem-se de Mula-Marmela e Retrupé, perante o medo
que sentiam de Retrupé, contribuiu com o ódio por Marmela. Mas, como já sinalizava
Mira y López (2012), a respeito do ódio, e fora reafirmado por Zygmunt Bauman (2016)
décadas depois, as raízes desse sentimento foram antes fixadas no medo e o cerne
do ódio está em se alimentar do medo. Sendo assim, se em “A benfazeja”, Mula-
Marmela é odiada pelos que estão ao seu entorno, podemos dizer que também a
temiam, mas não sabiam. A prova disso encontra-se nas principais saídas do ódio: o
desprezo e a vingança29, recursos utilizados pela comunidade quando apelida
negativamente e, em seguida, malda Mula-Marmela – ao relatar para terceiros o que
não se tinha certeza.
O narrador sinaliza que não faz sentido as pessoas temerem o cego Retrupé e
odiarem Mula-Marmela, visto que, ele sim era violento. Eis que o narrador justifica seu
modo de pensar por intermédio de um paradoxo, uma vez que o sujeito temido pela
sociedade, o que carregava consigo um facão e tinha “cara de matador de gente”
(ROSA, 2005a, p.163), também experimentava o medo:

Tinha medo, também; disso, vocês nunca desconfiaram. Temia-a, a ela, à


mulher que o guiava. A Mula-Marmela chamava-o, com simples sílaba, entre
dentes, quase esguichado um “ei” ou “hã” — e o Retrupé se movia de lá,
agora apalpante, pisando com ajuda; balançava o facão, a bainha presa a um

29Emílio Mira y Lopez, em Quatro gigantes da alma humana: o medo, o amor, a ira, o dever. p.92 -
119, comenta que as principais vias de escape da ira e do ódio são o desprezo e a vingança.
98

barbante, na cintura. Sei que ele, leve, breve, se sacudira. Desciam a rua,
dobraram o beco, acompanharam-se por lá, os dois, em sobrossoso séquito.
Rezam-se ódio. Lé e cré, pelas ora voltas, que qual, que tal, loba e cão.
Como era que ficavam nesse acordo de incomunhão, malquerente, parando
entre eles um frio figadal? O cego Retrupé era filho do finado marido dela, o
“Mumbungo”, que a Mula-Marmela assassinara. (ROSA, 2005a, p.162-163)

Como poderia ele, o violento, o que impunha poder pela “voz de cão, superlativa”
temer uma anciã que mal falava? Saberia ele que a velha assassinara Mumbungo,
seu pai, como afirmara a sociedade? Eram, pois, iguais? Disso, não se tem certeza,
mas se pode afirmar que diante da hostilidade social, o cego Retrupé encontrava em
Mula-Marmela uma proteção, algo que era recíproco. Nem por isso essas
personagens se igualam, no máximo se assemelham no fato de serem hostilizados
pela comunidade, odiarem-se e de dependerem um do outro para sobreviverem.
Na transcrição acima, ela o guia como faz um pastor, e ele a segue “Lé e cré” 30:
Este tal qual o leigo, desconhecedor do mundo que não via; aquela, conhecedora dos
caminhos, a que deveria ser ouvida e seguida. Assim sendo, mantinham-se ambos.
Mula-Marmela mal falava: “[...] dava-lhe, apenas, um silêncio, terrível. E ele cumpria,
tinha a marca da coleira.” (ROSA, 2005a, p.163), sabia que precisava segui-la,
conhecia sua dependência. Nesse passo, o narrador ainda os compara a “loba e cão”.
Enquanto loba, carregava a duplicidade desse ser, logo se fazia ordeira,
independente, mas protetora – odiava e coibia as atitudes de Retrupé, mas o protegia;
ele, enquanto cão, se acostumava com o ambiente que lhe proporcionava cuidado e
fazia-se dependente, seguia ordens, como vemos na representação da coleira (guia)
por ele usada e assim, temia a madrasta.
Desde a morte de Mumbungo, quando Retrupé ainda enxergava, Marmela
passou a cuidar do enteado. Após a cegueira “cuida dele, guia-o, trata-o – como a um
mais infeliz, mais feroz, mais fraco. [...] Passou a cuidá-lo, na reobriga, sem buscar
sossego” (ROSA, 2005a, p.166). Ele tinha perdido o pai, explodia em revolta e era,
devido à cegueira, dependente do outro. Ao mesmo tempo, Marmela entendia que
sozinhos tinham mais chance de fenecerem diante daquela excludente sociedade.
Temerosa pela integridade de ambos, sente-se na (re)obriga de cuidar de Retrupé.
Em troca, ela ganha também proteção, pois a comunidade temia a violência do cego,
que era tolhida por Marmela, consequentemente, não os agrediria.

30 Segundo O léxico de Guimarães Rosa, Lé e cré indica pessoa de condição diversa.


99

Era Mula-Marmela quem o levava até as mulheres e, paciente, o esperava fora,


zelosa para que não o maltratassem. Retrupé tinha consciência do medo que
provocava nas pessoas, mas também de suas próprias limitações. Ele também odiava
Marmela, provavelmente, porque via nela semelhanças e fraquezas. Eram
semelhantes na força de mando, mas fracos porque nem sempre podiam usá-la. Ele,
por ser cego e, assim, dependente da velha, via-se impedido de mandar em Mula-
Marmela, mas esbravejando ordenava que a sociedade lhe desse esmolas. Ela,
mandava apenas em Retrupé, mas não tinha como medir forças com a sociedade.
A relação de “incomunhão” e o “frio figadal” a que o narrador diz existir entre
ambos, faz menção ao medo que pairava entre eles. O cego Retrupé a odiava, mas
antes a temia. Odiava-a porque enxergava suas fragilidades nela; temia-a porque
dependia exclusivamente dos cuidados daquela mulher e sentia-se fracassado diante
da velha. Ora, o cego Retrupé precisava da Mula-Marmela como sua condutora, além
disso temia a possibilidade de perder sua ajuda, seu apoio, sua proteção e sua
companhia. A cegueira o deixava vulnerável, o impedia, e ele necessitava da velha
como guia, tanto para pedir esmolas quanto para outras coisas. Assim, temia a
possibilidade de Marmela abandoná-lo.
No tempo da enunciação, o cego Retrupé:

[...] está envelhecido, virou em macilento, grisalho, as cãs assentam-lhe bem,


quando o chapéu cai. [...] O cego Retrupé anda meio caído, amorviado, em
escanifro e escanzelo. Parece que ao mesmo passo, seu modo de medo da
Mula-Marmela muda e aumenta. Fraqueia-lhe também a fúria alastradora e
áspera de viver: não exerce com o mesmo entono puxar pelo seu direito – o
feroz direito de pedir.” (ROSA, 2005a, p.168)

Notamos na passagem a ostensiva utilização dos fonemas [m], [d] e [t], que como
já dissemos neste estudo, são repetições que denotam ruídos ou rumores. Aqui,
funcionam como se o cego Retrupé passasse a agir de modo mais lamurioso. Com
efeito, o homem bravo e forte sofreu a ação do tempo e aparentava perder a força da
vida. A sua idade avançada supostamente intensificava os seus medos. Se
pensarmos que Mula-Marmela encontrava-se envelhecida ainda quando se tornou
cuidadora do cego, também chegaremos à conclusão que ela ficou mais debilitada em
decorrência do avanço da idade. Todavia, apesar de odiá-la, o cego só contava com
o apoio e a companhia daquela anciã e, sendo assim, talvez tenha imaginado tornar-
se mais dependente da madrasta ou ainda perder seu apoio.
100

Ambas possibilidades amplificam o medo do velho cego Retrupé. Logo, se antes


odiava a madrasta e temia perder seu auxílio, agora lhe fora acrescido o medo de ficar
sozinho, isolado, o medo da solidão. Esse se configura como um dos temores mais
presentes entre os idosos, exatamente porque, como afirma Kohll (1989), se sentem
incapazes de realizarem os feitos de antes.
Vejamos que, aqui, surge outra temática atrelada ao medo. O fato de Retrupé
encontrar-se abatido, magérrimo e com fraca vontade de viver, indica uma provável
angústia. Tais sintomas podem eclodir quando o sujeito sofre uma repressão do ódio
que surge mediante uma perda31. Pela descrição que nos apresenta o narrador,
Retrupé projeta seu ódio em Mula-Marmela e na sociedade – ou por causa da morte
do pai; ou da ausência da mãe biológica, que não é mencionada na narrativa; ou pela
perda da visão. Porém, seu ódio fora parcialmente podado pela cegueira, que o
impedia de vingar-se de quem não o amava ou o ignorava.
Despontaram então, as mudanças de humor, a irritabilidade, a agitação, o choro,
sentimento de desvalorização ou culpa, alguns dos tantos sintomas característicos da
angústia:

O temor, o espanto, o pavor, o terror dizem mais respeito ao medo; a


inquietação, a ansiedade, a melancolia, à angústia. O primeiro refere-se ao
conhecido; a segunda, ao desconhecido. O medo tem um objeto determinado
ao qual se pode fazer frente. A angústia não tem e é vivida como uma espera
dolorosa diante de um perigo tanto mais temível quanto menos claramente
identificado: é um sentimento global de insegurança. Desse modo, ela é mais
difícil de suportar que o medo. (DELUMEAU, 2009, p.33)

Agora, na velhice, angústia e medo parecem edificarem-se juntos, como se na


perspectiva de evitar novas decepções. Retrupé vivencia um medo que não só
esbarra na incapacidade provocada pela cegueira ou na idade avançada, mas
também no que lhe é desconhecido. Aqui, surge a angústia. Ele, provavelmente,
imagina outra possível perda. O não saber como será seu destino gera certa
inquietação e melancolia:

Parece que seu temor fazia-o murmurar queixumes, súplicas, à Mula-


Marmela. E, no entanto, ela cada dia para com ele mais se abranda, apiedada
de seu desvalor. [...]
Conta-se-me que ele quis matá-la. Em hora em que seu medo se derramou
maior, saber-se-á lá por quê? Tido que já se estava maltreito, quando

31
Cf. PICKLER, Cristiane Dandolini. Depressão no gênero masculino. Revista Científica
Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 04, Ed. 08, Vol. 04, pp. 86-97. agosto de 2019. ISSN:
2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/depressao-no-
genero .
101

adoeceu, mal, de febre acesa. Sentara-se à beira da rua, para arquejar. De


repente, levantou-se sem bordão, estorvinhado, gritou, bramou: exaltado
como um cão que é acordado de repente. Sacou o facão, tacava-o, avançava
às doidas, às mesmo cegas, tentando golpeá-la, em seu desatinado furor. E
ela, erguida onde estava, permaneceu, não se moveu, não se intimidava?
Olhava na direção do não. Se ele acertasse, poderia em carnes trucida-la.
Mas, aos poucos, acreditou que o facão não a encontraria nunca, sentiu-se
desamparado demais e sozinho. Temeu, de todo em pé. O facão lhe caiu das
mãos. Seu medo não tinha olhos para encher.
Parece que gemeu e chorou: – “Mãe...Mamãe...Minha mãe!” ... – esganiçado
implorava, quando retombou sentado no chão, cessada a furibundância; e
tremia estremecidamente, feito os capins dos pastos. Estava no fino do funil,
é de crer que. A Mula-Marmela, ela veio, se chegou sem dizer nem o
sussurrar. Apanhou-lhe o chapéu, limpou-o, tornou-o a pôr na cabeça dele, e
trouxe também o facão, recolocou-o em sua cintura, na velha bainha. Ele,
com o se apequenar de sofrer e tremer, semelhava um bicho do fundo da
floresta. Diz-se que ela teria lágrimas nos olhos, que falou, soturna de
ternuras terríveis: – “Meu filho...” (ROSA, 2005a, p.168-169)

Movido pela angústia de não poder ser como antes e de, talvez, não contar com
o auxílio da Mula-Marmela, ele agora, aos prantos, pede-lhe algo de que não temos
conhecimento. Semelhante à criança que utiliza o choro como meio para conseguir o
que deseja, Retrupé consegue apenas compaixão da madrasta perante o estado em
que se encontra.
Em delírio, agora de febre, com o facão em punho, o cego revive a fúria de antes
e aparenta querer descarregá-la sobre Mula-Marmela. Como nos mostra Delumeau
(2009), a angústia pode ser gerada pela vivência de medos que se repetem ao longo
dos tempos. Ela tem a capacidade de se apresentar de modo mais simples, como
uma ansiedade ou como uma preocupação com o desconhecido futuro, mas também
pode atingir um nível intenso e provocar uma crise violenta, convulsiva. Com base em
tais pontuações, podemos dizer que o estado em que se encontrava o cego Retrupé
no desfecho da narrativa e, como vemos na transcrição acima, confirma uma intensa
crise de angústia.
O medo que acometeu Retrupé, descrito na passagem supracitada, assemelha
ser mais decorrente do processo delirante em que se encontrava o personagem, o
que não evidencia um real medo da figura de Marmela. A cena é descrita como se ela
o vigiasse, mas fora surpreendida pela alucinação do enteado, decorrente do estado
febril e do ódio que tinha. Do delírio vinha a fúria de Retrupé. Ciente disso, Mula-
Marmela aquieta-se, assustada, olhando para o nada. É possível ver que ela paralisou
diante da fúria do enteado, o que indica medo. Um medo que a ocultou em seu
aparente isolamento, medo semelhante ao apresentado por Carlos Drummond de
Andrade (2012) “o medo que, esteriliza os abraços”, que a impede de se aproximar
102

de quem cuida e a deixa estática no meio da rua. Assim, restou a Mula-Marmela


aguardar o cessar da fúria e o reestabelecimento do estado mental do enteado.
Quando a fúria ameniza, o cego mergulha novamente no medo da solidão. Logo,
angústia e medo dão-se as mãos.
O cego Retrupé insurge da angústia para o medo exatamente quando não
encontra nada nem ninguém no percurso dos golpes proferidos. Ele sente medo do
que poderia ter feito com Mula-Marmela. Retrupé, ao que tudo indica, temeu a solidão
que seus atos poderiam provocar, tornou-se pequeno diante do medo e, nesse
momento, retornou à angústia, implorando a presença da mãe. Há aqui a possibilidade
de Retrupé ter vivenciado uma aflição diante da ausência de maternidade – da mãe
biológica com quem não convivia, não se sabe desde quando – e, por isso, suplicou
aquela presença. Contudo, ele também pode ter projetado essa necessidade materna
em Mula-Marmela. É, pois, Mula-Marmela a quem ele deveras encontra, já sem medo,
pois cessara o perigo, chorosa e aparentemente sofrendo por vê-lo naquela condição.
Ela parece se compadecer de Retrupé, o filho que não teve, porém criou e zelou como
seu. Ambos idosos, Retrupé e Mula-Marmela trilham um caminho em comum, tinham
apenas um ao outro. Não podiam contar com a sociedade, que os rechaçava. Logo,
deparam-se juntos com o medo da hostilidade e solidão.

Sim, os dois, ficaram, até o anoitecer, e pela noite entrada, naquela solidão
próxima, numa beira de cerca. Alguém os acudiu? Diz-se que ele padeceu
uma dor terrivelmente, de demasiado castigo, e uma sufocação medonha de
ar, conforme nem por uma esperança ainda nem não agoniava. Só
estrebuchava. Não viram, na madrugada, quando ele lançou o último mau
suspiro. Sim, mas o que vocês crêem saber, isto, seriamente afirmam: que
ela, a Mula-Marmela, no decorrer das trevas, foi quem esganou
estranguladamente o pobre-diabo, que parou de se sofrer, pelos pescoços;
no cujo, no corpo defunto, após, se viram marcas de suas unhas e dedos,
craváveis. Só não a acusaram e prenderam, porque maior era o alívio de a
ver partir, para nunca, daí que, silenciosa toda, como era sempre, no
cemitério, acompanhou o cego Retrupé às consolações. (ROSA, 2005a,
p.169)

A solidão, que lhes era “próxima”, realça a repulsa da sociedade. Nada mais
assustador que se sentirem largados como bichos, à “beira de uma cerca” e a espera
da morte, enquanto são hostilizados pelas pessoas que preferiam vê-los de longe.
O narrador, como constatamos na passagem, alerta para dois temas opostos: o
amor e a injustiça. O primeiro diz respeito à velha que, considerada perversa, acolheu
e cuidou do cruel filho, que não era seu, mesmo odiando e temendo os atos violentos
que ele tinha. Já a injustiça está exatamente na ausência de amor da comunidade
103

moralizadora, na cegueira que aparentava ter diante do bem que lhes fizera Mula-
Marmela “de modo que enxergar é também uma faculdade mental, porque requer
compreensão, discernimento da realidade vista” (ANDRADE, M., 2003, p.458). Mais
uma vez, acusaram-na, friamente, de matar o cego Retrupé, sem ao menos
presenciarem sua morte. Basearam-se apenas em marcas que surgiram no cadáver,
se é que verdadeiramente as viram, posto que permaneceram distantes. Reparamos
aqui que, o supracitado trecho da narrativa serve como irônico meio de revelar aos
contadores do vilarejo sobre o erro que cometiam ao acusarem Mula-Marmela de
atroz.
Assim, o desfecho da estória se refere ao que o narrador ouviu dizer sobre a
morte do cego Retrupé, uma versão que elabora a possibilidade de mais um crime
cometido pela velha mulher. Como ninguém presenciou os verdadeiros fatos, nem se
tem acesso ao que poderia contar a própria Mula-Marmela, o narrador põe-se diante
apenas dos relatos. De modo mais enfático, ele aproveita e censura a sociedade que
ignorou e julgou a velha Marmela. Logo, o narrador se isenta de qualquer culpa ou
julgamento, no que se refere à Mula-Marmela:

Vocês, distantemente, a odiavam?


E ela ia se indo, amargã, sem ter de se despedir de ninguém, tropeçante e
cansada. Sem lhe oferecer ao menos qualquer espontânea esmola, vocês a
viram partir: o que figurava a expedição do bode — seu expiar. Feia, furtiva,
lupina, tão magra. Vocês, de seus decretantes corações, a expulsaram.
(ROSA, 2005a, p.169)

Colocando Marmela na posição semelhante à de bode expiatório – escolhido


para partir e carregar consigo os pecados de toda uma sociedade –, o narrador
desvela as culpas da comunidade. Segundo ele, todos desejavam livrarem-se do
Mumbungo e do cego Retrupé, mas escolheram a Mula-Marmela para carregar
sozinha o peso desse pecado, porque ela em nada figurava representar aquela
sociedade, carregava os traços da feiura, da velhice, além da sina de amar dois
homens cruéis.
As palavras de perplexidade desse narrador denotam a total indignação com
uma sociedade que parece seguir um curso natural e inabalável, diante de tais
eventos. Pelo visto, ao defender a protagonista, o narrador dispara uma alerta em
relação à confiança que se deposita na sociedade em si. É como se também temesse
o poder que ela exerce sobre as pessoas ou como ela pode manipular e estabelecer
padrões que devem ser rigidamente seguidos pela maioria.
104

Na versão contada pela comunidade, Mula-Marmela afigurava ser assustadora,


posto que, compunha-se com “fauces de jejuadora, os modos, contidos, de
ensalmeira” (ROSA, 2005a, p.161). Não suficiente, possuía aspectos que faziam-na
lembrar a personificação da morte32: “[...] furibunda de magra, de esticado esqueleto,
e o se sumir de sanguexuga, fugidios olhos, lobunos cabelos, a cara –; as sombras
carecem de qualquer conta ou relevo.” (ROSA, 2005a, p.161), como se apenas
representasse o mal. Era uma pessoa a quem qualquer indivíduo temeria, uma velha,
com aparência lupina, conhecedora de ervas, assim como as bruxas. Era também
assassina. Sob essa perspectiva, ela é associada à imagem feminina da Idade
Média33 período em que, muitas mulheres foram consideradas detentoras de poderes
sobrenaturais, posto que conheciam ervas causadoras da cura e da morte. Por isso,
denominavam-nas bruxas.
Logo, “Ambígua, a bruxa pode ser tanto a bela jovem sedutora (ainda sem
marido e cheia de pretendentes) como a horrenda anciã (viúva solitária), aparentada
com a morte”. (ZORDAN, 2005, p.332), mas, em ambos os casos, ela não deixa de
ser a representação do mal, de um poder que não poderia existir. A Mula-Marmela é,
pois, um misto da conhecedora de ervas e a imagem da anciã viúva, guia de um filho
que não é seu e que, segundo os outros, fora capaz de cegá-lo e matá-lo. Desse
modo, a imagem da feiticeira velha contida em Mula-Marmela causava repulsa. Era
ela a representação grotesca que a sociedade odiou, temeu e excluiu. Ironicamente,
era ainda a imagem da pessoa que temia as incessantes mudanças do mundo, das
pessoas. Por isso, recuava, se escondia.
Diante da solidão, com medo daquela sociedade excludente, rejeitada e sem os
homens a quem amava, sobrou-lhe apenas deixar o lugarejo. Ao narrador, mordaz,
restou o truque de retórica e o pedido para que as pessoas reflitam e contem o que,
de fato, viram e não souberam entender:

32
Em determinadas línguas “O gênero gramatical da palavra morte decidia o sexo da personificação:
entre os povos romanos, feminino; entre os germânicos, masculino.” (LURKER, 2003, p.455). Na língua
portuguesa, por exemplo, o substantivo morte é feminino e sua representação por vezes se dá pela
imagem feminina. E, considerando a morte independente do gênero, ela se revela uma sombra,
esquelética, rápida, cruel, amarga. A um só tempo, faz-se ambígua, posto que pode conduz aos
mundos secretos dos Infernos ou dos Paraísos.
33 Jean Delumeau, em A história do medo no ocidente, especificamente no capítulo 10, fala sobre a

mulher, vista na Idade Média, como um dos agentes de satã. Como tal, as mulheres passaram a ser
temidas pelos homens e pela Igreja. Tal medo se alastra e culmina com uma caça às bruxas entre os
séculos dezesseis e dezoito.
105

É o caso o que agora direi. E, nunca se esqueçam, tomem na lembrança,


narrem aos seus filhos, havidos ou vindouros, o que vocês viram com esses
seus olhos terrivorosos, e não souberam impedir, nem compreender, nem
agraciar. De como, quando ia a partir, ela avistou aquele um cachorro morto,
abandonado e meio já podre, na ponta-da-rua, e pegou-o às costas, o foi
levando –; se para livrar o logradouro e o lugar de sua pestilência perigosa,
se para piedade de dar-lhe cova em terra, se para com ele ter com quem ou
quê se abraçar, na hora de sua grande morte solitária? Pensem, meditem
nela, entanto. (ROSA, 2005a, p.170)

Até então, Mula-Marmela era vista tal qual bruxa ou loba, a representação
maléfica que a sociedade odiava e temia. No final, percebemos que o narrador deixa
entrever a acusação de que a comunidade se regia pela maldade, posto que nunca
compreendera Mula-Marmela e continuara incriminando-a sem provas.
Então, se a narrativa começou com uma versão sobre a Mula-Marmela, definida
pela comunidade, mas que foi sendo desfeita pelo narrador ao longo do seu contar,
no desfecho há uma defesa, uma versão positiva da velha, feita pelo narrador. Mesmo
sendo uma cena presenciada por todos, fica em suspenso o motivo de Mula-Marmela
ter carregado o cadáver do cachorro consigo. Observamos que, assim, o narrador se
coloca em posição ética, posto que preferiu não afirmar aquilo de que não tinha
certeza. Ele não podia afirmar que Marmela carregou o cachorro com o intuito de
limpar a rua; ou que teve pena daquele ser morto, largado ao léu, e iria enterrá-lo; ou
que se sentiu só e queria alguma companhia. Fazendo isso, o narrador mais uma vez
censura a comunidade que contou o que não viu e, a um só tempo, acaba por defender
Mula-Marmela.
Hostilizada e com medo daquela sociedade, Mula-Marmela é, pois, destinada
a vagar sozinha até a morte. Mas, leva consigo um cachorro morto – tal qual loba,
acompanhante e guia de cão que sempre fora.
Diante do que nos apresenta o narrador no percurso dessa estória, a
personagem de Mula-Marmela é vista como um tipo social sujeito ao que representava
sua imagem. Os traços advindos da idade – o porte físico, as rugas e o andar curvo,
por exemplo –, singularizavam-na diante de uma sociedade que a repudiava.
Odiada e, desse modo, temida, Mula-Marmela vivia como a se esconder. Tinha
conhecimento de que era odiada, apesar da narrativa não evidenciar ser sua intenção
provocar o ódio. Pelas ruas, no cuidado com Retrupé, Mula-Marmela parecia se
colocar em um lugar no qual fosse oculta, ao ponto de viver “submersa, mesmo
quando ao claro, na rua” (Rosa, 2005a, p.161), quase sumida, sem sombra, já que as
“sombras carecem de qualquer conta e relevo”, e a dela quase nem se via. O
106

comportamento retraído da protagonista, aparentemente influenciado pelas suas


condições físicas e socias, também se afiguram aos de quem sofre medo e,
consequentemente, freia o ímpeto na perspectiva de evitar um embate com o que lhe
assusta, em seu caso, a sociedade.
Mula-Marmela também se apresentava diferente do velho e cego Retrupé. Este
parecia enfrentar seus medos, posto que odiava tudo e todos, inclusive a própria
madrasta. Então, “Xingava, arrogava, desinsofrido, dando com bordões nas portas
das casas, no balcão das vendas” (ROSA, 2005a, p.162), descarregando seu ódio
amaldiçoando o outro, se impondo. Já Mula-Marmela preferia o anonimato, era
“inobservável” (ROSA, 2005a, p.167), como numa tentativa de livrar-se dos tantos
julgamentos. Assim, sua saída do vilarejo, cabisbaixa e solitária, mais parece uma
tentativa última de fechamento do círculo dos excluídos naquele dado lugar.
Diante do asco social, Mula-Marmela e Retrupé sentiram medo da ruindade
daqueles que os acusavam de cruéis. Então, se uniram, com a perspectiva de
sobreviverem. A estória relata assim um contexto de medo, de pobreza, de angústia
vivenciados por sujeitos envelhecidos, apresentados em sua pequenez. Desse modo,
o desfecho sinaliza não só os medos, mas também a solidão e a precariedade dos
que vivem marginalizados.

4.2 “Os chapéus transeuntes” e as abas do medo

A estória “Os chapéus transeuntes” é uma das nove que compõem a obra
póstuma Estas estórias de Guimarães Rosa, publicada em 1969. Porém, faz parte de
uma lista de quatro narrativas revistas pelo autor, ainda publicadas antes do seu
falecimento. Paulo Rónai, na nota introdutória da publicação de 1968, de Estas
estórias, comenta que “Os chapéus transeuntes” foi publicado pela primeira vez em
1964, como uma das narrativas que integram o volume Os sete pecados capitais, da
Editora Civilização Brasileira. No respectivo volume, ilustrava o pecado da soberba34.
Em “Os chapéus transeuntes” nos deparamos com um velho rico, soberbo e
arrogante, o Vovô Barão. Chama-nos a atenção a figura do senhor que é respeitado

34Nos Cadernos de Literatura Brasileira (2006, p.45), consta que “Os chapéus transeuntes” fora
encomendado pelo editor Ênio Silveira, para ser uma das sete narrativas sobre os pecados capitais,
publicadas em 1964, sendo que essa estória faria menção à soberba. Outros escritores falariam sobre
os demais pecados: Otto Lara Resende (avareza), Carlos Heitor Cony (luxúria), Mário Donato (ira),
Guilherme Figueiredo (gula), José Condé (inveja) e Lygia Fagundes Telles (preguiça).
107

por impor sua condição social, seu modo de ser e pensar sobre as outras pessoas e,
se assim faz, é porque utiliza o medo como instrumento de instituição da autoridade e
desdenha.
Seu neto, o narrador, aos poucos deixa emergir a figura de um Vovô Barão que
se faz timorato, principalmente quando esbarra na pessoa da esposa Vovó Olegária
que segue seus mandos, mas com ironia acaba afrontando-o.
Neste estudo, mantemos nosso interesse de investigar o medo que circunda o
idoso. Diferente de “A benfazeja”, em que os personagens idosos eram
marginalizados, analisaremos aqui um idoso de posses, o Vovô Barão, que vive nas
abas do medo que provoca e sente. Nosso objetivo é o de procurar compreender se
há diferenças entre os medos que concernem a esse personagem, se comparado aos
do cego Retrupé e da Mula-Marmela e à posição social que ocupavam. Nessa
perspectiva, procederemos da seguinte maneira: primeiro, procuraremos fazer um
esboço da estória. Em seguida, estudaremos como o medo se faz implantar entre as
personagens que circundam o Vovô Barão e se suas posições sociais influenciam no
modo de atuação do medo. Por fim, analisaremos se o Vovô Barão é um homem
suscetível a temores.

4.2.1 Breviário sobre a estória

Em “Os chapéus transeuntes” é contada a estória da vida e a hora da morte


daquele “muito chefe da família”, o soberbo Vovô Barão. No título da narrativa
notamos uma metonímia da passagem do poder, do comportamento e da arrogância
entre gerações, algo que ainda poderia ser transferido. O narrador testemunha,
Leôncio Nestorzinho, neto do Vovô Barão, descreve os últimos instantes da vida do
avô, um idoso prepotente. O velho deixa testamentado que seu sepultamento deveria
ser no cemitério destinado aos pobres escravos e não no que fora sepultada a esposa
Vovó Olegária, por quem tinha ressentimentos, desde o tempo em que Vovó Olegária
ainda era jovem. Eles tiveram um desentendimento e, enfurecido, Vovô Barão mandou
erguer um muro separando o casarão em duas partes: a dele e a da esposa – ali
permaneceram sem ao menos se verem. A estória relata os momentos que
antecedem a morte do velho, que estava em coma, a chegada da família que, por
respeito, vinha presenciar tal partida, mais também a morte e o sepultamento de Vovô
108

Barão. O narrador também menciona o desejo e a possibilidade de a ocasião poder


facilitar a aproximação entre ele e a prima Drina, por quem era apaixonado.
O clímax se dá quando o velho retorna do coma, apenas para confirmar sua
imposição já testamentada “– ‘Se eu morrer... Declaro! Têm de enterrar-me conforme
resolvi, e já sabem...’” (ROSA, 2015c, p.78), exatamente no momento em que o filho
Nestòrionestor comunicava a indignação com o desejo do pai, posto que o cemitério,
além de ser dos pobres, tinha em seu muro a seguinte insígnia “VOLTA PARA O PÓ,
MÍSERO, AO BARRO DE QUE DEUS TE FEZ...”35 (ROSA, 2015c, p.69).
No desfecho, Vovô Barão é sepultado no cemitério do Quimbondo36, como
queria. Porém, o desejo do velho contrariava o filho Nestòrionestor, que não aceitava
que o pai fosse sepultado em meio aos pobres e, principalmente, porque no portão a
insígnia deixava clara a insignificância dos que jaziam ali. A solução encontrada por
Drina e Leôncio Nestorzinho foi uma mão de tinta sobre aquelas palavras, aplicada
pelo criado Ratapulgo-Bugubo, ainda no momento do sepultamento do velho, com
uma tinta vermelha.

4.2.2 Observações do narrador

O narrador testemunha, o irônico neto do Vovô Barão, é quem nos conta a


história do soberbo e austero avô, que se encontrava em leito de morte e cercado
pelos familiares que tanto humilhou ao longo da vida. A história da morte do velho
serve também como pretexto para que Leôncio Nestorzinho fale sobre a paixão pela
prima e a oportunidade de conquistá-la, mediante a ocasião.
Antes de mostrar quem e como era o Vovô Barão, Nestorzinho atenta para o fato
de que a circunstância seria em si burlesca, se não estivessem todos os familiares
reunidos ali à espera da morte do avô. Nas suas palavras, “em tais ocasiões
comunidade nenhuma se forra” (ROSA, 2015c, p. 58), então, consideramos que se
fosse permitido, vingar-se-iam do Vovô Barão, o que seria em si cômico. Isso posto,
o narrador propõe que se considere apenas o que for narrado de modo sério “no
querer crer”. Ironicamente, ele sinaliza para a ausência da seriedade posta naquelas

35Transcrição igual à do texto original. Porém, o trecho aparece como uma epigrama, registrada em
caixa alta, nesse caso, com representação um tanto satírica.
36 Aparentemente, essa é uma variante de Kuimbundo, uma das línguas bantas mais faladas em

Angola.
109

palavras, o que confirma em seguida, ao dizer “Que o mais, normal também, decorre
do espírito-falso da gente” (ROSA, 2015c, p. 58). Dessa forma, o neto apenas confirma
a ausência de sentimento ou apreço em relação à figura do Vovô Barão, pessoa que
soubera apenas humilhar e afastar aqueles que poderiam amá-lo.
É o neto quem, mesmo falando sobre os medos impostos pelo avô, também
percebe a fragilidade daquele velho, principalmente diante da incapacitante e iminente
morte. Ali, no leito de morte, aquele que sempre se impunha sobre os demais não
passava de mero corpo à espera da partida. Se fora austero, agora não era mais que
um velho “forte como um ferro jogado fora” (ROSA, 2015c, p.70), alguém sem mais
nenhuma importância. Na ocasião, sob a vigília dos familiares, o único e aparente
sentimento em relação ao velho era vingança. A morte era, pois, a executora, apenas
ela seria capaz de vingar tantos anos de submissão e medo.

4.2.3 Vovô Barão: o provocador de medo

Ainda nas primeiras linhas de “Os chapéus transeuntes”, conseguimos perceber,


por intermédio do neto, uma primeira impressão sobre o Vovô Barão e a relação que
estabelecia com outras pessoas, principalmente no núcleo familiar. Vejamos, pois
como se dá a chegada dos Dandrades Pereiras Sarapiães para aguardar a partida do
velho:

Sem vil impaciência nem afoiteza por testamento & herança, antes a
contragosto, era que nos apressávamos de vir, de trem uns, de automóvel
outros, à velha cidade na montanha, onde por seu tácito turno se preparava
para falecer, na metade de cá do casarão e solar, da linhagem, na Praça da
Igreja, nosso teso, obfirmado e assombroso Vovô Barão, o muito chefe da
família. O que contradizia com tudo. Vínhamos, pois, não pro nobis, mas por
respeitos temporais. Vão ver. Aquilo aliás, preenchia uma lacuna. [...]
Pois sempre se tivera ausente o Vovô Barão, qual solitário intacto e
irremissivo, ainda que de si dando o que falar: como é destino das torres
sobressair, e dos arrotos. Supremo no arrogar-se sua primazia, ferrenho em
base e hastes, só aceitava, mesmo a nossa presença – de nós, os parentes,
os decendentes, digo – quando com solenidade ou chalaça. Aproximar-se
dele era a calamidade sem causa. Apenas, tinha uma netinha, linda como os
meus amores; mas não se via inscrito em sua grimaça ou carranca, esse
dislate melodioso da hereditariedade. [...] A poesia caíra dele, para sempre,
como o coto do seu umbigo dessecado. Era um homem pronominal. Fazia
questão de história e espaço. (ROSA, 2015c, p.57-58)

O que se pode inferir, analisando o supracitado trecho, é que o narrador se


apropria da ironia para poder dizer que eles, os Dandrades Pereiras Sarapiães, não
tinham pressa em receber herança e se ali estavam era sem nenhuma vontade, mas
110

sim mero respeito ao “assombroso Vovô Barão, o muito chefe de família” que ia
morrer. Em outras palavras, o ambiente que envolve o Vovô Barão e família, mais
parece construído por laços de opressão e medo que por qualquer outro fio de união
familiar. Vovô Barão impõe suas vontades sobre qualquer coisa, ao ponto de ter
mesmo afastado a própria família que, agora, via na morte do velho a oportunidade
de romper em definitivo com seus tantos mandos e desmandos, com tamanha
individualidade.
A descrição que o neto faz, mesmo que em alguns momentos em tom zombeteiro
– como quando faz menção ao dar o que falar tal qual torres e arrotos –, revela um
velho que mantem-se preso à altivez e vontade de ser exatamente daquele jeito, posto
que um “homem pronominal”. Enquanto tal, na vida do Vovô Barão o que mais
importava não eram suas ações, mas o sujeito que as praticava, ou seja, ele mesmo,
em toda sua soberba, em sua arrogância de primogênito Barão, o sujeito pronominal
“Eu”. O próprio velho intitulara-se assim, sem ao menos ter o direito legítimo a tal
honraria. Ele apenas impunha as coisas e todos aceitavam, respeitavam.
Vovô Barão era um sujeito sem beleza, sem encanto, não expressava emoção,
preocupava-se apenas consigo mesmo, era um ser sem poesia, como resume o neto.
Notamos que seus caracteres, suas caretas, o aspecto mal humorado, tal qual
carranca, reafirmam certo controle, imposto aos demais. Ele sabia que pelo temor a
sua aparente identidade, a pessoa social do Barão, conseguiria o que desejasse.
Outras personagens de Guimarães Rosa, como por exemplo o jagunço Riobaldo
de Grande sertão: veredas, também utilizaram o medo que podiam provocar em
outros como instrumento de manutenção de poder. Cardoso (2006) mostra que por
várias vezes Riobaldo apela ao medo para impor poder sobre o outro. A exemplo
disso, vemos na passagem em que Riobaldo faz-se conhecedor do medo sentido pelo
chefe Zé Bebelo e utiliza o medo como mecanismo de intimidação do chefe – Riobaldo
desejava aquele posto, por isso, expunha o medo do outro, assim o humilhava perante
os demais jagunços. Consequentemente, adquiria mais poder diante do bando de Zé
Bebelo.
O mesmo pode ser observado em Vovô Barão, posto que provocava medo
mediante o poder financeiro que era advindo dos seus antecedentes, de quem herdou.
Vovô era bisneto do genearca da família, o Serapião Pereira de Andrade, Ministro do
Imperador. O título de Barão, a que ele mesmo se dera, era nada mais que outra
imposição social e hierárquica sobre os demais. Em sua altivez, também escolheu
111

nomes grandiosos para seus decendentes: Bayard Metternich Aristóteles, Pelópidas


Epaminondas, Nestornestório (Nestòrionestor), Noé Arquimedes Enéias, Amélia
Isabel Carlota, Clotilde de Vaux Penthesiléia, Cornélia Vitória Hermengarda e Tereza
Leopoldina Cristina. Assim, na posição em que se colocara o velho, não permitiria que
os nomes dos filhos fossem sem precedentes importantes ou pomposos, pois como
vemos, foram antes atribuídos a filósofos, a políticos, a grandes religiosos, a heróis
bíblicos, a matemáticos e a princesas.
Dado que já tinha o domínio financeiro, queria também o respeito de todos.
Logo, a espécie de medo provocada pelo Vovô Barão está para aquela do tipo
decorrente do poder que ele exercia socialmente. No que se refere à família, notamos
que tal poder fora conservado, já que todos obedeciam ao velho.
Entre outras passagens, tais imposições podem ser observadas, como no
seguinte trecho da narrativa, que conta como era a ida do velho à Fazenda da Riqueza
e à missa:

[...] montado numa besta ruana, altaneira, alta, ajaezada no pomposo e


detonadora de gases, dois camaradas seguindo-o, a pé em geral, de pernas
compridas, para carregar malas e abrir porteiras; desses, arramados a valer,
dizendo-se também que eram capangas seus. [...] Todavia, respeitavam-no,
até o padre cedia-lhe o passo, dele aceitavam toda essa destemperatura. Não
dava mão a quase pessoa alguma, dos de lá, na rua não dirigindo palavra a
ninguém. Se sua vasta metade de morada tivera as janelas a breu de preto
repintadas, fora por ordem dele, mediante o perene e sucinto: “Qu’eu quero...”
(ROSA, 2015c, p.59-60)

As pessoas que povoam o universo de Vovô Barão não passam de objetos, são
sujeitos que, por intermédio do medo imposto, submetem-se e até respeitam as
vontades do soberbo velho. Os camaradas capangas pareciam mais escravos; o
padre, ao ceder-lhe o passo, permitia que Vovô Barão ocupasse o espaço reservado
apenas ao sacerdote, como se o velho também pudesse ter a autoridade clerical,
simplesmente porque queria e, logo, podia. Isso acontecia porque tinham “a tradição
de temê-lo”. É como se não tivessem mesmo coragem para enfrentar o velho ou como
se, também por tradição, não quisessem ofendê-lo e, assim, acaba submissos às
vontades do Barão.
Contudo, esse mesmo homem escondia algo.
112

4.2.4 Um Vovô Barão medroso

Logo no início da estória podemos ver que Vovô Barão era “o muito chefe da
família”, porém, como afirma o neto, esse era um fato em si contraditório “com tudo”,
o que levanta dúvida sobre a postura firme do avô. À proporção que avançamos na
narrativa percebemos que o narrador apresenta uma versão do que era visível no avô,
mas também deixa vir à tona, por intermédio de uma ironia humoresca, uma outra que
parecia oculta: a de um Vovô Barão um tanto fragilizado e medroso, que utilizava do
poder que tinha para causar medos e, assim, velar aqueles temores que eram seus.
Vovô Barão, em sua soberba, parecia agir com a finalidade de se fazer
reconhecido, de perpetuar a moral do nome. É como se o velho temesse ser
esquecido após a morte. Em Medo líquido, Bauman (2008) afirma que ser esquecido
tornou-se um dos maiores medos do sujeito moderno e que, por isso, o indivíduo
passou a viver uma incessante busca por uma forma de imortalidade. Apesar de viver
numa sociedade que engatinhava perante a modernidade, Vovô Barão já carregava
consigo o desejo de ser de algum modo imortal.
Em passagens que antecedem a morte do velho, são notórios alguns sinais que
indicam fugas, temores e fraquezas do Vovô Barão, como podemos observar em:
“grave como os mascarados, difícil como cofre de molas, duro como pedra de cristal”
(ROSA, 2015c, p.58) e “homem de ação, mas com enxaqueca” (ROSA, 2015c, p.59).
Como vemos, as metáforas sobre o velho são em si contraditórias e denotam uma
fraqueza a que ele queria esconder. Era de fisionomia grave como se usasse uma
máscara. Mas, as máscaras podem ser retiradas e, no caso do velho, provavelmente
revelaria um outro sujeito escondido por trás daquela farsa. Parecia guardar muitos
segredos, não à toa é comparado a um cofre de molas, que para ser aberto é preciso
se ter a combinação exata, capaz de destravar o sistema e liberar o acesso a sua
parte interna. Enquanto pedra de cristal, vovô Barão fazia-se firme, mas podia refletir
sua fraqueza. Ou seja, ao mesmo tempo em que era imperativo, também escondia
suas dores, seus segredos e tudo o que pudesse revelar suas fragilidades. Não era
pela fraqueza, mas pelo vigor e altivez que o velho queria ser reconhecido. Por isso,
Vovô Barão se mantinha escondido atrás da soberba.
Ao que observamos, a relação entre Vovô Barão e Vovó Olegária denota que a
espécie de medo decorrente do poder instituído pelo velho, não se firmou por muito
tempo entre o casal. Faltava em Vovô Barão a humildade. Em sua prepotência, ele
113

não amou a esposa, apenas impôs seus desejos, pois, no ato de casar-se com Vovó
Olegária estava também contida a subserviência da esposa à figura de excelência do
Barão. Assim, ele exigia que a mulher o admirasse, o adorasse e o amasse, como se
esses sentimentos pudessem surgir simplesmente por intermédio da ordem e não
naturalmente, pela afetividade característica de qualquer relação, principalmente a
amorosa.
A supremacia a que se dera o velho era inquestionável. O medo de que fosse
visto de outro modo, diferente do que tinha construído ao logo dos anos, fez Vovô
Barão preferir seguir sua história sozinho. Cismou com a esposa por motivos banais
e passou a ignorá-la dentro mesmo da própria mansão. Havia na parede da sala dois
retratos do casal. Quando precisava falar com Vovó Olegária, o velho chamava um
serviçal para levar o recado até ela e, em seguida, o casal se posicionava um em
frente ao retrato do outro, dirigindo a palavra à imagem, sem que de fato se vissem:

Mas com isto está que, decerto, Vovó Olegária o fazia quase brejeira, muito
faceta e trejeitosa, falsificava-se em irônia. Curvava-se numa reverência, e
acrescentava o vocativo: – “...Senhor Barão...” – enquanto para ele, retrato,
apontava, com dedo e diamante, e contradizendo-o com olho esquerdo.
Diziam-na leve de graça, tendo um senso de equilibrista; e as mulheres são
feitas para isso, vencedoras sempre nas situações – por sorriso, estilo, pique
e alfinete. Havia de ser que o Vovô, por tudo, mais se zangasse; para não se
sanhar, fechava encalcadamente a boca, e de olhos lobislumeantes. A raiva,
qual, não atingia de modo nenhum a Vovó, indignação em ricochete; e eram,
sem qualquer vendaval, o carvalho, inflexível, o caniço plástico. (ROSA,
2015c, p.74)

Vovó Olegária fazia troça das exigências do Vovô Barão, da forma como aquele
seu esposo queria ser tratado. Disfarçada em ironia, ela reverenciava com toda a
pompa o retrato do marido, olhando-o de canto de olho, observando-o, irritando-o.
Sutilmente, o enfrentava. Mesmo inseridos em uma sociedade de costumes
patriarcais, Vovó Olegária, elegante e graciosa, censura a posição do marido e Senhor
Barão, apenas com uma simples e irônica reverência ao retrato do esposo. Logo, se
saíra vencedora daquela situação não fora por ser agradável e sorridente, mas pela
disposição e firmeza contidos em seu gesto irônico. Era vitoriosa, não porque
conseguira irritar o esposo, mas por fazê-lo pensar em quem de fato ele era além
daquela exibição da sua imagem. Eram, pois, ela a representação do dócil e
adaptável, ele da rigidez e incapacidade de adaptação a novos e mais simples modos
de vida.
114

Quando o velho mandou erguer uma “parede-muro” no meio da sala, posto que
Vovó Olegária atrasou dez minutos para atender ao seu chamado – não por afronta,
mas porque precisava antes “atender a inadiável precisão do corpo” (ROSA, 2015c,
p.79) –, assim fez por temer a possibilidade de perder autoridade que edificara ao
longo dos anos. As atitudes do velho denotam certo medo, no que se refere à Vovó
Olegária, pois ela, direta ou indiretamente, o fez perceber as fragilidades da pessoa
por trás daquele personagem que ele criou para si.
Embora todos temessem e sucumbissem às vontades de Vovô Barão, Vovó
Olegária foi a única pessoa a enfrentá-lo, mesmo que de modo irônico e mantendo-se
parcialmente submissa às vontades do velho. Algo em Vovó Olegária representava o
perigo, amedrontava o marido.
Como vimos em “A benfazeja”, a raiva e o ódio têm o medo como fonte de
alimentação. Logo, Vovô Barão teve raiva do posicionamento irônico da esposa
porque também a temia, reconhecia nela algo que o tornava fraco: sentiu-se limitado
diante da sutil astúcia da mulher, a única que fora capaz de zombar da postura do
Barão. Portanto, Vovô Barão temia ter seu orgulho ferido ou que suas ordens não
fossem cumpridas à risca, que fosse questionado. Temia não ser a sua a última
palavra de mando ou desmando, temia ser comparado a qualquer outra pessoa.
Vovô Barão não permitiu a aproximação do outro – inclusive afastou-se da
própria esposa –, isso porque viu algo de perigoso nessa proximidade. A partir do
momento em que a parede-muro foi erguida, ele passou a dispensar a companhia da
família, humilhando-os, diminuindo-os. Se antes Vovô Barão ignorava a sociedade e
a família, fazendo-os temê-lo, a partir desse fato, passara a ignorar por completo a
própria família, o próprio sangue, porque se misturara ao de Vovó Olegária. Ele
parecia ver nos filhos e netos a possibilidade de desvendarem fragilidades e medos
que tinha, assim como fizera a esposa. Logo, preferiu-os distante.
Chegamos, então, à imagem de um velho que se fazia timorato, mesmo sem
saber: “Seguro, absoluto, de si, esquecido demais do caos original37 e fechado aos
evidentes exemplos do invisível, não sabia o que, no fundo, temia tanto” (ROSA,
2015c, p.58). Em suas constantes e ostensivas manifestações de arrogância e
superioridade, Vovô Barão se esqueceu que fora constituído da mesma matéria que

37Faz menção à criação do homem segundo os princípios bíblicos. “Comerás o teu pão com o suor do
teu rosto, até que voltes à terra de que fostes tirado; porque és pó, e pó te hás de tornar.” Gênesis
(3:19)
115

todos os seres humanos. Esqueceu-se que, sendo assim, estamos todos à mercê da
morte, consequentemente, o retorno ao pó, ao barro de que fomos feitos. Não lembrou
que a vida é transitória e que a morte era a única, entre todas as coisas, capaz de
igualar qualquer sujeito.
Almejando perpetuar sua importância, faltou humildade ao velho rico que se
intitulara barão sem assim o ser. Também não a teve no trato com os capangas que
o seguiam a pé, carregando malas e abrindo porteiras, enquanto ele seguia pomposo
a cavalo. Não fora humilde nas tantas vezes que, na igreja, passava na frente do
padre, demonstrando sua superioridade sobre o outro. Vovô Barão também não teve
humildade no propósito da conquista do amor. E, na tentativa de querer se fazer
importante, apenas restou-lhe a soberba e o medo do que nem sabia. David Lopes da
Silva (2018) faz menção a essa ausência de humildade do Vovô Barão e o quanto
isso pesava para o neto que acreditava não a ter por causa do avô, “não pelo que
fazia, mas pelo que era[...]” (ROSA, 2015c, p.79), afinal tinham a mesma genética e,
a possibilidade de ser como o avô, assustava o neto.
O episódio em que Vovô Barão retorna do coma, proferindo um xingamento
“Copule-se!” e reivindicando que fosse devidamente cumprida a ordem de ser
sepultado no cemitério do Quimbondo – se de fato morresse –, é elucidativo das
exigências e medos do vovô. Como o velho temia perder a importância a que se dera
e a superioridade sobre tudo, foi sagaz ao escolher o local em que seria sepultado.
No cemitério do Quimbondo, no exato lugar demarcado, ele driblaria a morte e
continuaria ocupando a mesma posição de senhor dos demais, posto que, em sua
visão, estaria cercado por seres inferiores. Fora isso, manter-se-ia distante de Vovó
Olegária – aquela que fez cair a máscara do inigualável Barão –, bem como de outros
sujeitos que tivessem sido importantes tanto quanto ou mais que ele, no caso, seus
ancestrais.
Como se para, pela última vez, lembrar que era seu o direito de mando, e como
se com a perspectiva de manter-se superior à morte que iguala todos, Vovô Barão saí
do coma. Na ocasião, o velho é visto ironicamente pelo neto como “o muito faraó”, a
quem deveriam prestar a derradeira vassalagem. O fato ocorre no exato momento em
que o filho contesta a final e testamentada ordem do pai: ser sepultado no cemitério
dos escravos.
Aparentemente, na concepção de Nestòrionestor – que parecia ser tal qual o pai
–, o ambiente não era nada condizente com a figura imponente do Barão. Logo, não
116

aceitaria que o pai fosse sepultado em um cemitério em que, já na faixada, se lia


“VOLTA PARA O PÓ, MÍSERO[...]”. Assim, para o filho, se fazia visível o desnível
social, o rebaixar-se por intermédio daquela insígnia. Aquilo era um ultraje à pessoa
do Barão e à família que, por gerações, era sepultada no Cemitério de Nossa Senhora
do Réquiem, onde se encontrava a gente “jazida bem” (ROSA, 2015c, p.67).
O que o filho não percebeu foi a perspicácia da escolha do pai. Ele não notou
que Vovô Barão preferiu manter-se cercado, também após a morte, por aqueles que
supostamente o temeriam e o obedeceriam, dado que, para ele não passavam de
escravos. Voltaria ao pó, mas se manteria ali superior, cercado por vassalos pela
eternidade e em suntuosa tumba, a única no local.
Portanto, diferente do medo da solidão sentido pelos velhos e pobres Retrupé e
Mula-Marmela, o Vovô Barão não a temeu, até a preferiu. Em sua individualidade,
vivenciou o medo de ser contestado ou que suas vontades não fossem cumpridas. Se
os idosos de “A benfazeja” sentiam medo diante da crueldade de uma sociedade que
não permitia a presença de dois sujeitos velhos e pedintes, em “Os chapéus
transeuntes” observamos o inverso, pois é o velho rico quem se faz tirano perante a
família e a sociedade, temeroso apenas com a possibilidade de perder a altivez.
117

5 Considerações Finais

– Só tenho medo no começo, porque não


estou acostumado.

(Guimarães Rosa. Uma estória de amor.)

No começo desta pesquisa propomos fazer uma análise do medo em tessituras


de Guimarães Rosa, tendo em vista que a presença desse sentimento se tornava
recorrente em estórias como “Campo Geral”, “Buriti”, “A benfazeja” e “Os chapéus
transeuntes”, corpus deste trabalho. Ao que observamos, essas narrativas pareciam
ser movidas pelas reações dos narradores ou personagens, ainda crianças ou já
envelhecidas, perante medos que os afligiam ou que podiam provocar em outros
sujeitos.
Nosso objetivo geral nesta tese se concentrou no estudo em torno das
manifestações de medos de personagens que eram crianças e idosos, além de outras
que dividiam o mesmo espaço que estes. Com a finalidade de entender as evidências
do medo sentido e provocado, analisamos as configurações das narrativas no que se
refere às personagens e suas visões de mundo, como nos foram apresentados os
acontecimentos, de acordo com o modo de narrar e a linguagem utilizada, e as
circunstâncias socias estruturadas nos textos.
Compreendemos que nosso enfoque neste trabalho é, em meio a um vasto
número de outras pesquisas sobre as obras de Guimarães Rosa, mais uma
contribuição, um olhar reflexivo sobre algumas das suas estórias, no âmbito dos
estudos literários.
Em “Campo Geral”, deparamo-nos com uma criança míope, pobre e
extremamente sensível, o menino Miguilim. O garoto nasceu e viveu em um ambiente
completamente ameaçador, cercado por pessoas ignorantes e rudes – com a exceção
do esperto irmãozinho Dito, a quem sempre recorria com a perspectiva de desvendar
e compreender o mundo, já que pouco o via com os olhos. Miguilim experimentou as
agruras daquele universo e muitas vezes se moveu ou tornou-se estanque diante de
uma imensidade de medos provocados por pessoas, ambiente ou crenças.
118

O menino teve sua infância impulsionada pelos medos. Por meio dos muitos
castigos do pai, Miguilim passou não só a temê-lo, como a associá-lo ao Pai do céu.
Incessantemente evitava errar, pois compreendia que o erro era motivo para punições
tanto do pai quanto de Deus. Entendia que precisava enfrentar seus temores, não à
toa buscou antídotos para seus medos. Logo, barganhou com Deus pra conseguir ser
amado pelo pai e enfrentou a mata escura, pondo em mente que era por obrigação
de trabalho. Miguilim também se sentia angustiado diante da possibilidade de perder
a amizade e o carinho do irmão Dito e, por isso, até se autocastigava. Mas, quando o
perdeu para a morte, o que Miguilim mais temia, a revolta o colocou diante da ira.
Doente e acamado, ainda com raiva pela perda de Dito, o menino consegue encontrar
o caminho para a tão almejada liberdade quando percebeu que o pai lhe tinha amor.
Porém, a libertação só se concretizou com o par de lentes que o fez ver o mundo
como realmente era e o impulsionou a querer aprender e apreender esse mundo novo,
talvez, sem medos.
Em “Buriti”, encontramos mais uma vez Miguilim, agora o adulto e veterinário
Miguel. Apesar de ter mudado de vida, de ter posses e passar a fazer parte de outro
grupo social, Miguel ainda trazia consigo alguns medos, provenientes daquele
Miguilim que um dia fora. A paixão de Miguel pela jovem Glorinha o fez reviver os
medos do passado. Miguel teve medo de que não fosse aceito entre o povo sertanejo
e que voltasse a ser tão rejeitado quanto quando menino. Assim, o jovem passou um
ano sem cumprir a promessa feita a Glorinha, a de que retornaria ao Buriti. Em seu
íntimo, renascera a insegurança e um dos seus antigos e maiores medos, o de ser
fraco. Se antes ele contava com o irmão Dito, na fase adulta Miguel precisou enfrentar
sozinho as adversidades da vida.
É, pois, embalado pela possibilidade de ser feliz que Miguel retorna ao Buriti em
busca desse sentimento. Do mesmo modo que fez na infância, quando abandonou
tudo e saiu do sertão, ele precisou se desligar do medo que o paralisava e impedia de
seguir, para voltar ao Buriti. Inspirado na determinação de Glorinha, assim como um
dia fez em relação ao irmão, Miguel já não mais aceitava o fracasso e, assim, partiu e
enfrentou seus temores, carregando consigo o desejo de ser feliz, como ensinara Dito.
Já em “A benfazeja”, diante da complexidade e ambiguidade da narrativa – posto
que o narrador toma como empréstimo o que lhe conta uma determinada comunidade
sobre os velhos Mula-Marmela e o cego Retrupé, para em seguida recontar pelo seu
ponto de vista –, conseguimos observar não só um, mas dois sujeitos idosos que
119

experimentam e provocam medo. A narrativa evidencia, por intermédio da indignação


do narrador e por parte dos medos dos personagens, um processo de degradação
humana que se dá por meio do poder de uma sociedade que se diz perfeita e exclui o
que possa representar uma mácula.
Na versão contada pelo narrador, os velhos Mula-Marmela e cego Retrupé são
sujeitos postos à margem de uma sociedade preconceituosa e que os odeia e teme,
pois, são pobres, pedintes e possíveis criminosos. Feia e de aparência maléfica, Mula-
Marmela fora acusada pelas pessoas de assassinar o cruel marido e cegar o enteado
e passa a ser a odiada por todos na comunidade. O cego Retrupé, violento como pai,
despertara o medo nas pessoas do vilarejo. Porém, a exclusão e aspereza da
comunidade provocaram-lhe temor. Retrupé dependia da velha madrasta para guia-
lo pelas ruas, mas tinha ódio e medo da mulher que o acompanhava. Odiava os tantos
mandos da velha, mas temia perdê-la, sabia-se incapaz naquele lugarejo, tinha medo
da solidão. Marmela e Retrupé procuram escapar da sensação de desamparo,
decorrente da solidão, unem-se e tentam evitar a fúria de uma comunidade
preconceituosa. Mula-Marmela, assim o faz, valendo-se do medo que a sociedade
tinha de Retrupé; ele, servindo-se do cuidado da Madrasta, que era seus olhos.
Em “Os Chapéus transeuntes”, o narrador, e também neto do protagonista, relata
a estória dos últimos instantes da vida do soberbo Vovô Barão. Ironicamente, o neto
conta como anos de mandos, desmandos e medos, provocados pelo avô, afastaram
familiares, mas os trouxeram de volta na ocasião da morte do velho.
Egoísta e austero, Vovô Barão se utilizou do mecanismo do medo, provocado
pela representação do poder que sabia ter, para conseguir dos outros tudo que queria.
Porém, a narrativa nos mostra que, mesmo o Vovô Barão fazendo-se poderoso e
amedrontador, foi incapaz de escapar das amarras do medo, pois temia perder o
poder, a posição social que tinha. Esse medo torna-se evidente no seu último desejo,
de ser enterrado no cemitério dos pobres. Com esse gesto, Vovô Barão driblaria a
possibilidade de se igualar a todos, pela morte, e perpetuaria a sua soberba, posto
que sepultado em meio aos restos mortais de pobres escravos ele permanecia o
senhor de todos, e pela eternidade. Do mesmo modo, jazido no cemitério do
Quimbondo, garantiria o distanciamento da esposa, que não o temeu, e da
possibilidade de disputar espaço com alguém que fosse mais importante que ele.
Nesse sentido, nossa análise verificou que o medo fixou suas garras em todos
os personagens estudados, independente de idade ou a que grupo social integrava.
120

Ao analisarmos o medo no universo pueril, pudemos perceber que a criança teme a


autoridade, consequentemente, evita errar para não ser castigada.
Surpreendentemente, esbarramo-nos com o fato de que a criança, mesmo
entendendo pouco sobre a morte – mas compreendendo a perda devido às agruras
da vida –, a teme. Constatamos ainda que, a incidência da provocação de medos
torna-se mais explicita entre os sujeitos mais velhos, sempre por intermédio de
manifestação de poder: hierárquico, físico ou financeiro. Também observamos que
alguns dos personagens estudados desenvolveram uma ira ou um ódio, oriundos do
medo que, por vezes, nem sabiam que tinham.
Por fim, pudemos inferir que, nos textos aqui analisados, as manifestações do
medo independem se o sujeito é criança ou idoso. Entretanto, os estímulos do medo,
tais como o erro, a morte, a sensação de abandono presente na solidão, são mais
comuns em sujeitos à margem da sociedade, enquanto a imposição de medos são
evidenciados tanto pelos personagens mais velhos, quanto por aqueles detentores de
alguma forma de poder. Assim, nas estórias de Guimarães Rosa, personagens e
narradores, movidos ou estanques por intermédio do medo, exprimem insatisfações e
anseios diante de um mundo que se revela repleto de antagonismos.
121

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