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BANCA EXAMINADORA:
_________________________________________________
Prof. Dr. Andrey Pereira de Oliveira – UFRN
(Orientador)
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Prof. Dr. Derivaldo dos Santos – UFRN
(Avaliador Interno)
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Profª Dra. Rosanne Bezerra de Araújo – UFRN
(Avaliador Interno)
_________________________________________________
Prof. Dr. Elri Bandeira de Sousa – UFCG
(Avaliador Externo)
_________________________________________________
Prof. Dr. Manoel Freire Rodrigues – UERN
(Avaliador Externo)
RESUMO
In this work, we looked for analysed the aesthetic representation of the fear in João
Guimarães Rosa’s narratives. The present work was divided into two parts: the first one
corresponds to the examination of the fear that invades childhood's universe in “Campo
Geral” and ends with the adult character in “Buriti”; the second part comprises an
analysis how fear presents itself into the elderly’s universe in two distinct stories: “A
benfazeja” and “Os chapéus transeuntes”. Therefore, the main objective was analysing
the fear felt or caused by the characters in the narratives, on the perspective of
understanding how it takes hold in the stories and articulates with cultural, historical and
social segments structurally printed on them. Moreover, we seek to understand how the
fear shows itself in the literary language, admitting mystical, religious and philosophical
functions onto the characters, sometimes changing the way they think, how they are
aware of themselves and circumstances in which they live. For the specific study about
fear, the following works were used: Delumeau (2009) in História do medo no ocidente;
Myra y López (2012) in Quatro gigantes da alma: medo, ira, amor, dever and Michel de
Montaigne (2010) in “Sobre o medo”.
Dans ce travail, nous avons cherché analysé la représentation estétique de la peur dans
les récits de João Guimarães Rosa. Le présent ouvrage était divisé en deux parties: la
première correspond à l'examen de la peur qui envahit l'univers de l'enfance dans
“Campo Geral” et se termine par le personnage adulte de “Buriti”; la deuxième partie
comprend une analyse de la manière dont la peur se présente dans l'univers des
personnes âgées dans deux histoires distinctes: “A benfazeja” et “Os chapéus
transeuntes”. Par conséquent, l'objectif principal était d'analyser la peur ressentie ou
causée par les personnages dans les récits, dans la perspective de comprendre
comment elle s'installe dans les histoires et s'articule avec les segments culturels,
historiques et sociaux qui y sont structurellement imprimés. De plus, nous cherchons à
comprendre comment la peur se manifeste dans le langage littéraire, admettant des
fonctions mystiques, religieuses et philosophiques sur les personnages, modifiant
parfois leur façon de penser, leur conscience d'eux-mêmes et les circonstances dans
lesquelles ils vivent. Pour l'étude spécifique sur la peur, les travaux suivants ont été
utilisés: Delumeau (2009) dans História do medo no ocidente; Myra y López (2012)
dans Quatro gigantes da alma: medo, ira, amor, dever et Michel de Montaigne (2010)
dans “Sobre o medo”.
Aos meus queridos e amados pais, Eliseu e Maria, por acreditarem em mim e terem me
ensinado a jamais desistir.
Aos meus irmãos, Antônio, Jorge e Gláucia. Em especial a Dedé, Dora e Ceição, por
me ofertarem um espaço em suas casas para que eu pudesse estudar.
A toda minha família, em especial minha sobrinha Jackeline, pelo apoio nas horas mais
difíceis do processo de escrita desta tese.
Ao meu orientador, Andrey, pelo incentivo, pela paciência, pelo carinho e zelo com que
sempre me orientou e, principalmente, por ter seguido comigo até aqui.
À amiga, Lanaíza, pela presença constante, pelo carinho, pelo incentivo e por me
ajudar com a revisão textual.
Aos professores, Derivaldo e Rosanne, pelo carinho e auxílio, pelas vezes que
gentilmente me ouviram, incentivaram e emprestaram matérias e livros que reforçaram
a minha pesquisa. Principalmente, pelas contribuições oferecidas com uma leitura
atenta e direcionada, ainda no processo de qualificação.
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................... 12
REFERÊNCIAS..................................................................................... 121
12
1 INTRODUÇÃO
João Guimarães Rosa concebeu em sua escrita uma ficção rica em temáticas
que toma como elementos o espaço, a linguagem, a política, a filosofia, a psicologia,
a sociedade, a cultura e principalmente questões que enveredam pelos caminhos da
alma humana, produzindo assim uma literatura de caráter também universal.
Diante das várias leituras elaboradas sobre as narrativas de Rosa, nos últimos
setenta anos – contando desde a publicação da primeira obra, Sagarana (1946) –,
temos como objetivo, na presente pesquisa, analisar a presença do medo na tessitura
de algumas de suas estórias1, considerando ser este um tema frequente em suas
narrativas, um instrumento capaz de impulsionar o sujeito narrador ou personagem.
No que se refere à temática do medo notamos que ainda há uma lacuna em
relação ao estudo das estórias. Ao lermos a fortuna crítica de Guimarães Rosa nos
defrontamos com uma tese elaborada por Afonso Ligório Cardoso (2006), que
desenvolveu uma pesquisa intitulada As formas do medo em Grande sertão: veredas,
tese em que assume uma linha de análise filosófica associada à outra de orientação
política, tomando “o sertão como símbolo de uma realidade mais ampla, que extrapola
as fronteiras da região e do período histórico compreendido no romance” (2006, p. 8).
O pesquisador em questão estabelece uma linha de estudo que está voltado para a
1 João Guimarães Rosa preferiu nomear suas narrativas de “estórias”, independentemente de serem
elas contos, novelas, romances ou poemas. Nota-se que suas narrativas não seguem a norma de
definição tradicionalmente utilizada para classificar gêneros narrativos. No texto introdutório para
Manuelzão e Miguilim: Corpo de Baile, Rónai procura explicar que na própria divisão dos textos que
compunham a obra, Guimarães Rosa chega a compor dois índices, por entender que os textos são ao
mesmo tempo poemas, contos e romances: “Serão poemas, enquanto todas trazem significações
subjacentes. A distinção entre o conto e o romance tampouco obedece ao critério habitual da extensão;
antes corresponde a um grau maior ou menor de conteúdo lírico: ao subordinar os primeiros ao título
de “parábase”, o autor, com esse termo da comédia grega, adverte-nos de que é neles que se deverá
procurar sua mensagem pessoal. Isto posto, ainda será mister decifrar essa mensagem.” (RÓNAI in
ROSA, 2016a, p.19). Nesse sentido, sem ainda decifrar a mensagem, preferimos adotar aqui também
o termo “estórias” ao invés de nomear enquanto critérios estabelecidos na classificação e identificação
dos gêneros narrativos ou textuais.
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entre o que é narrado e o próprio ato de narrar, consequentemente saber qual modo
de transmitir valores é adotado, ao passo que se conhece o ponto de vista do narrador.
Dividimos o estudo em cinco capítulos distribuídos da seguinte forma: O primeiro,
que é de caráter introdutório. O segundo apresenta algumas considerações sobre o
medo e suas representações em Guimarães Rosa, para que assim possamos situar
nosso objeto de pesquisa.
No terceiro capítulo são realizados os estudos das estórias que estabelecem
uma relação direta entre o medo, o universo infantil e outros sentimentos que
impulsionam o sujeito, levando-o a uma alteração no que se refere à forma de pensar,
sentir e agir, proporcionando, por vezes, certa maturidade ou interferindo na vida do
mesmo sujeito que se faz adulto. Para tanto, são analisadas as narrativas “Campo
Geral” e “Buriti”, visto que não temos como analisar os medos do menino sem que
cheguemos aos medos da criança que se fez adulta, mesmo que em estórias
diferentes. Em “Campo Geral”, procuramos investigar – tomando como ponto de
partida a visão de uma criança que, ironicamente, quase não enxerga – como o
menino sente e encara os medos que o cercam naquele universo sertanejo hostil.
Veremos como a proximidade da morte, o medo que dela sente, às vezes está
relacionado a distintas formas de medo que levam o sujeito à perspectiva do fenecer,
mas que, em outras, subitamente é relacionada ao encorajamento do indivíduo. Em
“Buriti”, analisamos como os medos de Miguilim criança são projetados no mesmo
personagem adulto, agora seu Miguel, que passou a maior parte da vida na cidade,
sem contato com a família que deixou no Mutúm, formado em medicina veterinária,
com posses e apaixonado. Logo, buscamos compreender como os medos do menino
prevalecem ou se dissipam em Miguel, em um processo evolutivo no modo de ver e
refletir atos, reposicionando-o diante de uma assídua batalha pela vida e em busca da
felicidade por ele, desde criança, almejada. Assim, o fato de que “Buriti” completa
“Campo geral”, no que se refere ao personagem principal e os medos por ele sentidos
ao longo da vida, justifica a análise de ambas, em conjunto, no referido capítulo desta
pesquisa.
O quarto capítulo é destinado ao estudo de “A benfazeja” e “Os chapéus
transeuntes”, a partir dos quais analisamos a relação direta entre o medo e as formas
de representação no sujeito idoso. Investigamos como os personagens idosos podem
ser tanto os agentes provocadores do medo quanto sujeitos movidos pelo temor.
Desse modo, examinamos como no processo característico do texto literário o medo
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Deste modo, o medo pode ser considerado tanto uma emoção quanto um
sentimento, pois quando temos medo disparamos uma série de reações ou impulsos
corporais que podem ser percebidas por outras pessoas. Mas, quando nos damos
conta das emoções corporais experimentadas, conhecemos o sentimento de medo,
que pode durar muito mais que a emoção.
As emoções, segundo o neurocientista supracitado, são, pois, responsáveis
pelas nossas tomadas de decisões, visto que desenvolvemos ao longo da vida uma
“inteligência emocional” que nos permite controlar nossas expressões e inteligência
2 Segundo Nicola Abbagnano, refletindo a partir do âmbito da filosofia, trata-se de emoção “qualquer
estado, movimento ou condição que provoque no animal ou no homem a percepção do valor (alcance
ou importância) que determinada situação tem para sua vida, suas necessidades, seu interesse.”
(ABBAGNANO, 1998, p.311)
3 Ainda segundo Abbagnano, o termo pode conter os seguintes significados: “o mesmo que emoção,
no significado mais geral, ou algum tipo ou forma superior de emoção.” Também pode ser o “princípio,
faculdade ou órgão que preside às emoções, e do qual elas dependem, ou como categoria na qual elas
se enquadram.” (ABBAGNANO, 1998, p.874)
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mediante os desafios que surgem. Logo, podemos imaginar uma dada situação que
nos provoca o sentimento de medo, mas só podemos sentir a emoção do medo
quando nos deparamos com a situação em si, que provoca uma ação sobre nós e
pode nos levar a uma reação de fuga, coragem etc. e que fica registrado em nossos
pensamentos.
Sendo assim, quando nos referirmos ao medo nesta pesquisa, poderemos
considerá-lo tanto como emoção quanto sentimento, seguindo os conceitos
supracitados.
O medo denota o valor que determinada situação representa para a vida do ser.
Assim sendo:
O medo seria assim uma emoção que se manifesta no sujeito por intermédio de
experiências ou ações externas, mas que também pode desaparecer, o que depende
de como o homem enxerga dada situação, depende do perigo ou do valor que o sujeito
atribui a sua existência. Logo, tememos tudo aquilo que pode ser capaz de nos destruir
ou causar “danos que nos levem a grandes tristezas” (ARISTÓTELES, 2005, p.174).
Então, Aristóteles afirma que, por exemplo, só temos a capacidade de temer à morte
quando sabemos que ela está próxima. Caso contrário, ela não se mostra capaz de
nos afligir, pois todos nós sabemos que um dia iremos morrer.
Assim como Aristóteles, Epicuro reflete sobre o medo que o ser humano sente
da morte, em Carta sobre a felicidade. Segundo o referido filósofo, “o mais terrível de
todos os males, a morte” (EPICURO, 2002, p.29), não deveria ser temida, tendo em
vista que sentimos medo do que está próximo, não do que está em processo de
espera. Para ele, sábio é aquele que encara a morte como algo natural, pois, ela não
significa “nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não
existe, ao passo que estes não estão mais aqui” (EPICURO, 2002, p.29). Logo,
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Epicuro afirma que o sábio não desdenha a vida, muito menos sente medo da morte,
pois a vida não é um incômodo, assim como morrer não é prejudicial. Em sua
concepção, a morte nada significa, porque quando estamos vivos ela não se faz
presente e quando morremos não nos fazemos mais presentes para ela. Então, não
faz sentido temê-la. Sendo assim, o que mais importa é cuidar-se para viver
honestamente e morrer honestamente.
Michel de Montaigne (2010), em “Sobre o medo”, afirmou que o medo tirava toda
a razão do coração. Para chegar a tal posicionamento ele usou como base o que
acontecia com os soldados em batalha que, por vezes, agiam insanamente ou
paralisavam diante do que lhes causava medo. De acordo com o filósofo – que pouco
comenta sobre os caracteres científicos e/ou biológicos do medo –, o temor chega a
ser como um estado de loucura do indivíduo que se encontra apavorado,
completamente fora de um estado de alerta, de lógica ou raciocínio crítico e que, por
isso, comete atrocidades, por intermédio de atos considerados de valentia, ou fica
sem atitude, o que o leva aos atos considerados de covardia. Montaigne utiliza como
exemplo aqueles soldados que, em batalha, enxergavam como oponentes seus
próprios amigos, outras vezes tinham terríveis miragens em que rebanhos de ovelhas
se transformavam em soldados de cavalaria4. No ensaio sobre o medo, Montaigne
demonstra que o sentimento de medo chega a provocar uma angústia pior que aquela
que nos é acesa pela morte, até porque em determinadas situações o indivíduo,
tocado pelo medo extremo, chega a buscar a morte como solução, como fuga.
Neste sentido, o medo passa a ser um modelo de sentimento que é capaz de
provocar no homem as mais extremas e opostas formas de atitudes e, muitas vezes,
em curto intervalo de tempo entre uma ação e outra. Por sua vez, podemos dizer que
o medo é um sentimento nebuloso, que deixa evidente a vulnerabilidade a que o ser
humano está sujeito no cotidiano.
4
Cf. Na primeira parte do romance de cavalaria Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes,
há uma passagem em que o protagonista, atônito, confunde um rebanho com dois exércitos dispostos
a entrarem em guerra e parte para a batalha ao lado dos que considerava serem os mais fracos. Nesse
caso, o protagonista age movido pela loucura, não pelo medo. Nota-se, portanto, como o medo pode
nos mover semelhante ao que acontece quando nos encontramos em estado de loucura, assim como
afirma Montaigne.
21
post mortem causavam pavor, pois tinham uma relação direta com a inquisição, com
as doenças e as punições sociais, comumente vivenciadas pelas pessoas.
O medo da escuridão também era decorrente das dualidades criadas pela igreja
da época, tais como a existência do bem e do mal. Dessa forma, foi estabelecida uma
relação direta das formas do bem com a luz, enquanto o mal pertencia às trevas. Logo,
acreditavam que, à noite, as pessoas corriam sérios riscos. Isso movimentou uma
cultura baseada em hábitos completamente diurnos, capaz de afastar as pessoas dos
perigos. A sociedade se protegia do medo que a assolava e atribuía àqueles que se
sujeitavam a saírem de casa, e vagarem pela noite, o título de loucos e vagabundos.
Criam, também, que as pessoas de hábitos noturnos exerciam uma ligação direta com
o demônio.
Na segunda parte da obra, Delumeau nos fala sobre cultura dirigente e os medos
que surgem nesse meio. Durante quase meio milênio, entre o final do século XIII e o
início da era industrial, a população europeia sofreu, não só com o medo da peste
negra, mas “com uma sequência maior de angústia – de 1348 a 1660 – no decorrer
da qual as desgraças se acumularam” (DELUMEAU, 2009, p. 302), tais como: o
retorno das epidemias mortais; a Guerra dos Cem Anos; o Grande Cisma; as cruzadas
contra os hussitas, a decadência do papado antes do reerguimento da Reforma
católica; a Reforma protestante e, consequentemente, as excomunhões e massacre
à população. Na tentativa de encontrar explicações para tantas desgraças e medos,
o homem da época buscou as respostas nas reflexões teológicas. No entanto, essa
foi a causa do surgimento de novos medos, principalmente no final do século XV (novo
humanismo). O mundo ocidental e cristão desenvolveu a crença na profecia do milênio
e na profecia apocalítica, com isso, surgiu o medo do pecado e combate desenfreado
ao que, porventura, pudesse ser classificado como tal. A partir desse ponto se
espalhou entre os cristãos a concepção da existência de um Deus que punia, um Deus
vingador. A existência do pecado fazia valer também a ideia de que Satã estava
prestes a ser solto pelo mundo. Ambos os pensamentos provocaram mais medo entre
aqueles que seguiam o cristianismo, medo dos castigos que poderiam recair sobre a
humanidade.
A história nos revela também que os discursos teológicos foram responsáveis
por espalhar uma onda de crenças e medos entre os povos cristianizados. Dentre
estes ganharam destaque: os medos de algumas religiões indígenas e ritos; as
mulheres passaram a ser temidas, principalmente entre os homens, por quem eram
23
5
Considera-se um fenômeno “1. Qualquer modificação operada nos corpos por agentes físicos ou
químicos. 2. Tudo quanto é percebido pelos sentidos ou pela consciência. 3. Fato de natureza moral
ou social. [...] 4. O que é raro ou surpreendente. 5. Pessoa ou objeto com algo anormal ou
extraordinário.” (FERREIRA, p.345, 2010). Como dissemos antes, na Filosofia, o medo pode ser tanto
uma emoção quanto um sentimento. Na Psicologia e Psiquiatria, o medo também tem caráter de
fenômeno psíquico, pois causa modificações de ordem bioquímica e altera o estímulo celular,
originando “no organismo uma invalidez parcial e temporária, que se traduz por uma diminuição de
suas atividades vitais.” (MIRA Y LÓPEZ, 2012, p.16)
25
Notamos que na crítica rosiana, parte significativa dos trabalhos que abordam o
medo não o trazem como temática central, mas como subtemática ou breves
passagens que auxiliam no processo de análise de outros temas.
No ensaio “Don Riobaldo do Urucuia, cavaleiro dos Campos Gerais”, Manuel
Cavalcante Proença (1983) apresenta passagens de Grande sertão: veredas em que
o medo está contido no sertão como um “equilíbrio das forças adversárias”
(PROENÇA,1983, p.311), como se observa em Joca Ramiro, valente e de quem se
tinha medo – homem que Riobaldo toma como exemplo. O medo, em outra passagem,
é algo que se deve vencer; assim se “buscava a morte nos combates para sufocar o
medo de ficar leproso” (PROENÇA,1983, p. 314). Era preferível a morte a sentir medo
de temer ou ser inválido.
Em “O motivo infantil na obra de Guimarães Rosa”, Henriqueta Lisboa (1983)
procura estudar a presença constante da infância na obra de rosiana. Entre temas que
fazem parte da vida infantil, tais como a alegria, o gosto pela vida e a intuição amorosa,
Lisboa salienta pela existência do medo. De modo mais específico, a ensaísta retrata
aqueles medos vivenciados pelo menino Miguilim, como uma estranheza na obra que
se faz delicada e densa. Isso se dá ao passo que “Insone dentro da noite, a de muitos
medos, o menino sofre sem poder dizer a ninguém a causa de seu sofrimento por uma
questão de honra” (LISBOA, 1983, p.175). O medo, mesmo que sutil, é, pois,
percebido por Lisboa como algo que se põe como “luta entre o dever e a amizade, o
gosto de ser dócil e o desgosto de praticar o proibido [...]”, uma verdadeira batalha
travada entre forças opostas, como bem e mal, e em uma mente que mal começava
a experimentar a vida.
Com Walnice Nogueira Galvão, a temática se mantém sucinta, e em torno de
Grande sertão: veredas. Segundo a referida autora, “Para vencer o medo, Riobaldo
27
tem a intenção de aliviar a ascese. Decide que por um dia vai mortificar sua carne e
seu espírito” (GALVÃO, 1986, p. 98), porém, Walnice demonstra que a personagem
não só tinha medo como precisava vencê-lo. Para tanto, talvez fosse necessário um
dia deixar de lado os escrupulosos comportamentos morais e religiosos – não à toa,
torna-se pactário.
Já Davi Arrigucci Júnior atribui o medo sentido por Riobaldo às incessantes lutas
pelas quais passou como, por exemplo, quando o herói se vê diante da perda de
Diadorim, uma “necessidade de reconciliação do homem sem certezas que luta contra
o medo, do herói problemático que foi sempre Riobaldo, com a realidade concreta e
social onde deve levar até o fim seus dias” (ARRIGUCCI JR., 1994, p. 25), sendo o
medo, nada mais que dificuldades materializadas que impedem, mesmo que
temporariamente, o êxito do protagonista.
Em “Diadorim – a paixão como medium-de-reflexão”, Willi Bolle (2004) aborda,
no segmento final do ensaio, o que intitula de “Breve excurso sobre o Amor, Medo e
Coragem”, e evidencia certa precisão em relação à análise de tal temática. O
estudioso revela que a referida seção surgiu da necessidade de acrescentar algumas
reflexões sobre tais sentimentos, porque era algo factual na escrita de Grande sertão:
veredas, sendo assim, não poderia passar despercebido.
Bolle explica também o quão interligados estão os sentimentos de amor, medo
e coragem entre os personagens Riobaldo e Diadorim. Ele levanta a tese de que, na
passagem da travessia do Rio São Francisco, realizada pelos personagens logo
quando se conheceram, ainda adolescentes, há a descoberta do amor (proibido) e,
também, do medo experimentado por Riobaldo. O protagonista sente medo da
travessia, algo que se mistura ao temor de descobrir gostar de alguém do mesmo
sexo. É ainda no mesmo ambiente que a coragem surge, mas em Diadorim, que
enfatiza para Riobaldo a necessidade de se ter coragem. Para Riobaldo, a coragem
passa a ser “um ensinamento que lhe valerá para toda a vida: numa luta, a coragem
de um é proporcional ao medo do outro.” (BOLLE, 2004, p.235). Tanto é que, na
segunda travessia – com ambos personagens adultos e Riobaldo já inserido no bando
de jagunços –, a cena parece se repetir. Porém, desta vez passa a ser o próprio
Riobaldo quem assegura a necessidade de se ter coragem.
Após a entrada de Riobaldo para o bando de jagunços, o protagonista percebe
que a coragem deve ser extraída do próprio medo. Assim, ele vislumbra estratégias
para provocar o temor do oponente, sem atentar para o fato de que o inimigo também
28
6Cf. CARDOSO, A. L. As formas do medo em Grande sertão: veredas. 2006. 213f. Tese (Doutorado
em Estudos Literários) Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, Araraquara,
São Paulo, 2006, p. 11-25. Na parte introdutória, o autor estabelece a frequência da temática em três
etapas da crítica: a dos estudos fundadores, a dos estudos que compreendem os anos de 1980-1990
e, por fim, os que compreendem os anos de 2000-2004. Ressalta, ainda, que a temática não aparece
de forma específica, mas complementar e, especificamente, sobre Grande sertão: veredas, justificando
assim a importância da própria tese.
29
Como qualquer outro tema tratado por Guimarães Rosa, o medo é ambíguo.
Riobaldo-protagonista sente medo, mas nega sempre que o tenha,
especialmente, ao assumir a chefia do bando. A razão pela qual resolve
contar é o medo do fim, da confusão das coisas, do amor proibido. Em suas
reflexões, mostra como o medo é responsável pela angústia do homem pela
fundação e condição da existência do poder – resguardado por saber
conservado em segredo –, o que coincide com os estudos filosóficos e
antropológicos do medo associado ao desejo de mando. Na verdade, esse
romance não é uma filosofia do medo em forma de ficção, mas um romance
em que se discute filosoficamente o medo, dentro da especificidade da arte
da palavra. (CARDOSO, 2006, p.19)
[...] o elemento medo, definido pela filosofia, entra em Grande sertão: veredas
pela porta da frente: o herói Riobaldo é um sujeito timorato que se guia
também por essa paixão. O narrador puxa causos para motivarem sua
reflexão sobre o poder do temor impregnado na consolidação de um sistema
social. (CARDOSO, 2006, p.24)
Riobaldo tinha plena consciência do poder exercido pelo medo, fosse sobre ele
ou sobre os demais personagens. É nesse ponto que o supracitado estudioso
classifica como dois os medos de Riobaldo. O primeiro é aquele que o ser em si sente,
o medo ontológico, como o da morte, por exemplo. O outro é o medo inventado pelo
sujeito e que, na narrativa, finda a representação do poder – aquele que provoca o
medo é o detentor do poder.
É deste modo que Cardoso (2006) constrói sua tese. Para ele, não há como
desvincular a leitura filosófica da especificidade da estrutura narrativa e da linguagem
utilizada, posto que “A literatura e a filosofia são formas de conhecimento solidárias e
articuláveis” (CARDOSO, 2006, p. 25).
30
alta representação da vergonha [...]” (SILVA; ARAÚJO, 2018, p.14-15). Não obstante,
mais vale ao protagonista enfrentar seus medos e tentar obter a glória.
Se em “A hora e a vez de Augusto Matraga”, o protagonista se vê envolto entre
a coragem e o medo, obrigado a decidir qual destes – ou ambos – sentimentos deve
guiá-lo em sua trajetória, veremos que em outras estórias de Guimarães Rosa os
personagens e/ou protagonistas nem sempre têm esta opção.
Posto isso, vale ressaltar que a fim de delimitar melhor esta tese, pretendemos
adotar um estudo sobre a categoria do medo enveredado por caminhos outros que
não apenas filosófico ou político, como já feito por outros pesquisadores. Assim, o
estudo em questão propõe uma investigação sobre o medo e relações estabelecidas
com o amor, a religião, a angústia, a morte, o destino etc. em duas fases da vida de
determinados personagens, a do infante e a do idoso, que ocorrem no processo de
escrita de algumas estórias de Guimarães Rosa. Sabendo, pois, que a literatura nos
pede sempre mais uma leitura, pretendemos aqui contribuir com a fortuna crítica e
analítica das obras literárias do supracitado escritor.
Assim sendo, vejamos como o elemento medo marca a vida e as relações sociais
de protagonistas e personagens de estórias rosianas.
33
7Cf. FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico. Trad.
de Fábio Fonseca de Melo. Revista USP, São Paulo, n.53, p.166-182, março/maio 2002.
36
(Chica, Tomézinho, Dito, Drelina), o tio Terêz e vovó Izidra. Além destes, viviam ali a
preta velha Mãitina e a empregada Maria Pretinha.
Sensível, Meguilim tinha muita proximidade com a mãe, o que desencadeava
certas estranhezas e ciúme no pai. Drelina e Tomézinho costumavam provocar o
irmão, enquanto Chica e Dito o consolavam. Dito era mais novo que Miguilim, esperto
e ágil, gostava muito do irmão, por isso costumava defendê-lo. Dito passa a ser uma
espécie de consultor do irmão. Era, dentre os personagens, o mais próximo e amigo
de Miguilim. Tio Terêz era outro amigo próximo, mas precisou se afastar por causa de
uma briga com o irmão Béro. Não fica claro o motivo da discussão, mas observando
a visão lacunosa de Miguilim sobre os fatos, o posicionamento da vovó Izidra e a
bravura de Béro com a esposa, chegamos a acreditar que Nhanina (Nina) mantinha
um relacionamento amoroso com o cunhado.
Após o afastamento de Tio Terêz a narrativa chega ao ponto mais dramático,
que se dá por intermédio da morte de Dito, acontecimento extremamente doloroso
para todos, principalmente para Miguilim. Porém, este acontecimento passa a
funcionar como impulsionador do amadurecimento de Miguilim, tendo em vista que
ele assume atitudes que antes cabiam a Dito. O menino sente como se Dito estivesse
a guiá-lo, presumindo que seriam aquelas as atitudes que o irmão o orientaria a tomar.
Miguilim começa a trabalhar no roçado, forçado pelo pai, e resiste bravamente
ao sol escaldante de todos os dias. A vinda do irmão mais velho (Liovaldo) ao Mutúm,
após a morte de Dito, também é algo marcante na narrativa, pois, movido por espírito
maléfico, Liovaldo acaba por maltratar e ofender o menino Grivo, que fora até a casa
de Béro na intenção de vender dois patos, sustento para ele e a mãe. Miguilim
presencia a cena e defende Grivo, agredindo o irmão. Indignado com a falta de
respeito ao próprio sangue, o pai resolve puni-lo, agredindo-o violentamente. Todos
se surpreendem com a atitude do menino, que sempre chorava ao apanhar, mas que
naquele dia ficou paralisado de raiva, não chorava, ria, e apenas pensava que quando
crescesse, mataria o pai. A cena chocou todos da família, inclusive o agressor, ao
ponto de acreditarem que ele enlouquecera em virtude da surra que tomou. Este
conflito permite ao menino certa conquista e respeito dos que compunham o seio
familiar. Dias após o embate, Miguilim deixa de mostrar submissão ao pai,
provocando-o. Como revide, Béro quebra as gaiolas e os brinquedos do garoto, o que
aumenta a ira de Miguilim ao ponto de quebrar os brinquedos que sobraram e soltar
37
Além dos pais, o tio, a vó e os irmãos mais novos, Miguilim ainda tinha o irmão
Liovaldo, o mais velho e que morava na vila com um tio, mas que os visitava vez ou
outra. Dos cinco irmãos, Miguilim costumava ser mais próximo de Dito e Chica, os
dois mais novos. O menino dócil convive com pessoas que tendem a agredi-lo física
e verbalmente no decorrer da narrativa. Como os castigos tornam-se uma constante
38
parece mais uma ironia. Nhô Bernardo transporta consigo a força do urso no exercício
da profissão de vaqueiro e na labuta da lavoura, enquanto a compreensão do
sofrimento do outro e o dom da caridade eram por ele desprezados, como se percebe
no dia a dia com as crianças, no trato com a mulher e o irmão e, no final, com o
assassinato de Luisaltino. As especificidades do santo que deu origem ao seu nome
– provavelmente, a escolha do nome tenha sido feita pela mãe Izidra que, como vimos,
seguia fielmente os princípios aplicados pelo catolicismo – são reversos em Béro.
O nome de Dito tem dupla composição, Expedito9 do latim Expeditum
(desembaraçado, livre) e José10 do hebraico Yosef (aquele que acrescenta; acréscimo
do senhor), que denotam exatamente o posicionamento e as atitudes do menino na
narrativa: o garoto inteligente, destemido e livre.
Já o protagonista Miguilim, – de quem só se tem conhecimento do nome
verdadeiro ao ler “A estória de Lélio e Lina” ou “Buriti” – Miguel11, vem do hebraico
Mikhael (quem é como Deus?), em forma de pergunta e simbolizando a humildade de
Miguel ao não se igualar a Deus. No Livro de Daniel12, o Anjo Miguel aparece como o
grande chefe e protetor dos filhos do homem. Nas epístolas de Judas13, Miguel utiliza
o nome do Senhor para repreender o demônio e no Livro do Apocalipse14, para
combatê-lo. Associado ao significado do nome, Miguilim carrega o nobre sentimento
de defesa dos inocentes, como quando defende Grivo das pancadas de Liovaldo,
além da crença na existência de um Deus poderoso, para quem rezava ou com quem
realiza pactos. Porém, Miguilim tinha menos coragem que a de quem confia
plenamente no Senhor, como o Anjo Miguel, por isso, suas dúvidas e medos
percorrem quase toda a narrativa. O modo de agir de Miguilim corresponde ao
pensamento Aristotélico de que só podemos sentir medo daquilo que nos provoca
certa esperança de que teremos alguma salvação ou de que aquilo é algo pelo qual
vale “a pena lutar” (ARISTÓTELES, 2005, p.176). Miguilim – diminutivo de Miguel –
representa, pois, não só uma criança com um apelido carinhoso como também um ser
9
OLIVER, Nelson. Dicionário de nomes. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010, p.140
10
Ibidem, p.193.
11 Ibidem, p.220.
12 Cf. BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada: Ave-Maria. Tradução dos originais grego, hebraico e aramaico
mediante a versão dos Monges Beneditinos e Maredisous (Bélgica). 5ª edição. São Paulo: Ave-Maria,
2011, p.1524.
13 Ibdem, p.1991.
14 bdem, p.2005.
40
15 Essa passagem faz-se significativa visto que, Drelina nega a existência de um nome para o irmão.
Porém, em “A estória de Lélio e Lina” (ROSA, 2016b, p.217), é ela quem pergunta para Lélio se, talvez,
ele tenha conhecido o irmão, Miguel Cessim Cássio, o Miguilim, quando esteve no Curvelo. Afirma
ainda que Miguilim tinha ido pequeno para a cidade e que, lá, estudava e trabalhava. Como
observamos, Drelina é aquela que nega ao irmão o conhecimento do nome em “Campo Geral”, mas é
quem o nomeia em “A estória de Lélio e Lina”. Nesse sentido, a nomeação parece ter nexo apenas
quando relacionada ao valor que a imagem de Miguilim pode representar para os demais personagens.
41
meio a um duplo universo em que estão em jogo as forças do bem e do mal, o céu e
o inferno. Inocentes, recai mais sobre os pequenos o peso do castigo.
Para Miguilim, provavelmente, o erro que tange ao pecado seria o seu maior
temor. Ele sabia que não tinha falado a verdade sobre o santinho e sobre os demais
mimos caídos no córrego. A única maneira de escapar das punições divinas era, para
ele e naquela dada ocasião, o fato de ser crismado16 e de, por isso, ter deixado de ser
pagão ou pecador. Em O pecado e o medo, Delumeau (2003) discorre sobre a
condenação dos que não foram batizados e que, por isso, permanecem no pecado
original ou primitivo. Tal teoria era algo enaltecido tanto por Santo Agostinho como
pelo Concílio de Cartago (418). Para ambos, o pecado primitivo era “a tal ponto
enorme que deveria logicamente levar a justiça divina ofendida a lançar no inferno
toda a humanidade pecadora em Adão. Mas a redenção isenta os eleitos desse trágico
destino.” (DELUMEAU, 2003, p.468). Ao que vemos na passagem de Campo Geral,
tal teoria se mantem viva e se enraíza até mesmo entre as crianças.
Apesar de crismado, Miguilim não atenta para o sentido da crisma, o dever de
ser similar a Cristo – não mentir. Também não considera o fato que Dele se aproximou
quando praticou a bondade, algo que fez quando pretendia agradar aos irmãos. Mas,
Drelina, ciente da inocência do irmão e de que ele era conhecedor apenas do seu
codinome, tira proveito, negando-lhe o nome próprio. Drelina profere o nome completo
do pai e de todos os irmãos, para provar que Miguilim era ainda um pecador. Se não
tinha um nome, não tinha sido crismado de verdade. Logo, se ainda mentiu, iria para
o inferno. Nesse trecho, notamos que é negado ao menino dócil, que apenas queria
acarinhar aos irmãos – inclusive Drelina –, não apenas a identidade, mas a
oportunidade de redenção e de liberdade eterna a que ele imaginava.
A possibilidade de “ir para o inferno”17 torna-se uma constante na vida do
pequeno Miguilim. Todos os prováveis erros, cometidos pelos mais velhos ou mesmo
16 Cf. LURKER, Manfred. Dicionário de simbologia. Trad. de Mario Krauss, Vera Barkow. 2ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2003, p.167. Encontramos no dicionário de simbologia a explicação de que a
crisma confere ao sujeito uma força especial advinda do Espírito Santo. Tomado desta força, o indivíduo
tem como obrigação espalhar a fé cristã por intermédio de palavras e ações. Durante a crisma, o que
torna o sacramento eficaz são três sinais: 1. A imposição das mãos: que tem como significado a
proteção; 2. A selagem pelo sinal da cruz: que legitima a fé em Cristo; 3. A unção com o óleo santo: o
sinal de que “Deus dá as forças para viver da fé” ou seja “o confirmado deve assemelhar-se a Cristo, o
Ungido”.
17 Não apenas em “Campo Geral”, mas em quase todas as narrativas rosianas, notamos certo
misticismo religioso, algo que põe em contraponto as figuras de Deus e do Diabo, como se observa,
por exemplo, em Grande sertão: veredas, em que há a grande dúvida do protagonista sobre o provável
pacto realizado entre ele e o demo ou em “A hora e a vez de Augusto Matraga”, estória em que Nhô
42
― "Mas, Dito, quando eu crescer, vai ter algum menino pequeno assim como
eu, que não vai gostar de mim, e eu não vou poder saber?" ― "Eu gosto de
Mãitina! Ela vai para o inferno?" ― "Vai, Dito. Ela é feiticeira pagã... (ROSA,
2016a, p.43)
Augusto Matraga procura se redimir dos erros cometidos, com o propósito de alcançar a redenção dos
pecados.
43
Agora voltava, mas ouviam a voz do tio Terêz entrando, vorôço dos
cachorros. Tio Terêz contava que tinha esbarrado o eito da roça, porque uma
chuva toda vinha, ia ser temporal: – “na araçariguama do mato de baixo, os
tucanos estão reunidos lá, gritando conversando, cantoria de gente...” Tio
Terêz trazia um coelho morto ensanguentado, de cabeça para baixo. [...]
Também não aceitava a licença de sair, dada por tio Terêz; com vez disso
pensava: será que, o tio Terêz os outros ainda determinavam d’ele poder
mandar palavra alguma em casa? Em desde que, então, a gente obedecer
de largar o lugar de castigo não fosse pior.
45
Podemos observar que as ações dos personagens são intensificadas tais quais
as ações da natureza e dos animais. A caça e a tempestade assemelham-se com a
situação vivenciada no próprio lar: a mãe que, assim como o coelhinho que aguarda
o retorno do companheiro, se entoca em seu quarto escuro; tio Terêz que, sem saber,
está sendo caçado pelo irmão Béro, aproxima-se à imagem do coelhinho que corre
serelepe pelos campos, sem imaginar o perigo que o espreita (o caçador).
Há também uma constante sucessão de ações que se dão com o uso do tempo
verbal no pretérito imperfeito (voltava, ouviam, contava, aceitava, sentava, esperava,
chorava, entre outros) e denotam acontecimentos que não terminam por completo
quando outros também ocorrem. Nesse caso, caracterizam a aproximação entre as
ações dos personagens e o que acontece na própria natureza (como uma forma de
castigo divino).
Observamos ainda, o uso dos homônimos perfeitos (mato, mata, matavam e
matados), que por vezes se referem ao mato (substantivo) existente, outras a matar
(verbo). Isso dá ao trecho sentido de aproximação entre o espaço e as ações. Essa
relação se estabelece entre a caça e morte dos bichos da mata (provocada por tio
Terêz), e pela fuga de tio Terêz (pela mata), fugindo da ameaça de morte advinda do
próprio irmão. Outro indicativo de condição de similitude, que reitera a ligação entre
as ações da natureza e os conflitos do ambiente familiar, é o uso do advérbio
“também” entre os parágrafos supracitados.
Notamos que nessa passagem há uma sonoridade significativa, pondo em
prática uma motivação do signo estético. Como observamos, há uma potencialidade
expressiva em torno dos fonemas [ṙ], [r], [v], [t], [m], [n], [s], [K], [d] presentes na
supracitada passagem. No primeiro parágrafo existe uma maior incidência dos
fonemas [ṙ], [t], [s] e [d]. A presença destes deixa sugestiva a ideia de ruídos: que
vibram e rasgam [ṙ]; são secos e violentos [t], [d]; ou que parecem prolongados sibilos
[s]. Juntos, eles sugerem certa aversão e medo. Nesse caso, o medo do protagonista
em relação ao que presenciou naquele dado momento, com a chegada do tio Terêz.
46
Logo, no desespero da criança que sofreu as duras penas da surra e do castigo, para
poder proteger a mãe da força brutal do pai, a passagem denota o pavor do menino
mediante a situação. No segundo parágrafo, notamos que os vibros e rasgos
permanecem na repetição dos fonemas supracitados e na adição de [k] e [n] que,
seguindo a mesma proposta, simbolizam ruídos feito rasgões. Estes, por sua vez,
estão relacionados ao choro da mãe de Miguilim e aos trovões que se propagavam
com a chegada da tempestade, acrescidos do zumbido dos ventos fortes. Todavia,
juntam-se a estes os fonemas [m] e [l], que anunciam sentimentos de carinho e/ou
afeto. A soma dos referidos fonemas nos leva a observar, como produto, o desespero
de uma família e, principalmente, o temor de uma criança que esbravejava, lutava
contra o poder, a autoridade e a força dos adultos, principalmente do pai, com o
objetivo de defender e amparar a mãe. É nesse sentido que percebemos a importância
e relação dos sons, no recorte mencionado, estabelecida entre as palavras e a
compreensão que delas temos no dado contexto18.
Quando Tio Terêz fica a par da briga entre Béro e Nhanina é por intermédio de
vó Izidra, sua mãe. Ela aguarda a chegada do filho e imediatamente sai do quarto
“caçando tio Terêz” (ROSA, 2016a, p.35). Isso acontece principalmente porque os
princípios religiosos de Vovó Izidra parecem falar mais alto e, por isso, ela não poderia
permitir que mais um pecado fizesse morada em seu lar.
Contudo, nessa ocasião, se dão conta que Miguilim ainda está no castigo e o
retiram. Todavia, Vovó Izidra não parecia preocupada com o longo período que
Miguilim permaneceu no castigo, queria mesmo era que o menino não presenciasse
a conversa que teria com tio Terêz. A rigidez e os princípios religiosos da matriarca
davam ares de quem queria evitar castigos maiores, tal como um irmão matar outro.
Escondido atrás da porta, Miguilim ouve toda a conversa e seu medo tende a
se intensificar. Vovó Izidra expulsa o filho de casa, xingando-o de “Caim”: “Miguilim
mesmo começava medo, trás do que ouvia, que nem pragas. Ah, tio Terêz devia de ir
embora, de ligeiro, ligeiro, se não o Pai já devia estar voltando por causa da chuva,
podia sair morto daquela casa [...]” (ROSA, 2016a, p.36). Aos olhos do leitor, Miguilim
parece desgostar mais ainda da avó, por ela ter posto o filho para fora de casa
expondo-o aos perigos da impetuosa natureza.
18Para análise fonoestilística utilizamos MONTEIRO, José Lemos. “Os sons estilísticos”. In. _____. A
estilística: manual de análise e criação do estilo literário. 2ª ed. Petrópolis: Rio de Janeiro, 2009. p.
153-221.
47
Miguilim não se preocupou com o pai, que havia saído de casa após agressões
à mãe e a ele – mesmo consciente que o pai também corria riscos com a tempestade
que se aproximava. Como vimos, a relação entre Miguilim e o pai era conflituosa, sem
carinho e repleta de castigos, enquanto entre o menino e tio Terêz havia uma amizade,
um certo afeto. Daí sua preocupação com o tio e não com o pai. A ausência do pai
era para ele a representação da ausência dos castigos, uma libertação.
O menino permanece indignado com a vó, que além de pôr o próprio filho para
fora de casa em meio à tempestade, ainda o chamou de traidor, assim como Caim19.
O peso religioso da sociedade em que vivem mostra-se evidente, não só nos nomes
próprios dos personagens como na forma de censurá-los. Observa-se que, os mitos
religiosos marcam presença na narrativa como um todo, e aqui surgem como forma
de condenar a traição entre irmãos, assim como na história bíblica dos irmãos Caim e
Abel, em que o primeiro, por ciúmes, matou o segundo.
No supracitado recorte, atentemos também para a aplicação da palavra “chuva”
que, assim como tempestade, tem duplo sentido e denota a situação conflituosa em
que se encontrava aquela família. O medo que o menino sente ganha proporções, ele
temia pela vida do tio – errante, do ponto de vista da avó. A chegada da chuva também
traria o pai para casa, o que não agradava o menino. Enquanto isso, em sua pequena
visão de mundo, Miguilim acreditava que tio Terêz corria risco de morte, fosse em
casa ou em meio a tempestade que se aproximava.
Miguilim estava surpreso e com medo do que ouviu da avó. Escondido atrás da
porta foi surpreendido “à traição” pela irmã Drelina, que o apanhou ouvindo a conversa
dos adultos e o arrastou para a cozinha. Enquanto aguardam o jantar, também se
observa a aproximação da tempestade. Os primeiros pingos provocam alvoroço e
correria, tanto para a retirada das roupas do varal quanto para fechar portas e janelas.
À proporção que vivenciam conflitos tempestuosos em casa, também precisam
enfrentar a chegada de uma tempestade natural:
Os ventos fortes, os trovões parecem querer destruir tudo e, por isso, causam
medo, principalmente nas crianças. Estes fatores naturais não apenas põem medo
como também despertam nos meninos a certeza da existência do erro e do Deus
punidor20, que castigaria todos, em virtude das falhas dos pais e do tio. Não diferente
das crianças, os demais componentes familiares, que passam a tempestade juntos,
sentem medo da ira de Deus. Todos são conhecedores do fato de que cometem erros
e das prováveis penas a que seriam submetidos.
Neste compasso, não se observa a presença dos irmãos Béro e Terêz. Este
porque foi expulso pela mãe, o outro porque havia saído de casa, após discutir e quase
bater na mulher, antes da tempestade. Pela fuga de um e ausência do outro, fica
sugestiva a ideia de que ambos tinham consciência de que estavam errados: fosse
por trair; fosse por espancar a esposa, ao constatar traição sofrida.
Apenas mulheres e crianças parecem temer a ira divina manifesta na súbita
tempestade – as ameaças que surgiam com a chuva forte, relâmpagos e ventania. E,
são exatamente as mulheres e as crianças que ajoelham e oram para que Deus tenha
compaixão dos seus pecados e abrande as penas que serão lançadas por meio do
temporal.
De acordo com o narrador, Dito não temia, mas estava sério. Então, se ele
abraçou o irmão, seria mais para protegê-lo que por medo. Dito conhecia os medos
do irmão e, por isso, o abraçava naquele instante de susto. Mas, inocentemente, Dito
afirma seu temor a Deus, mesmo o narrador afirmando o contrário ao longo da estória,
ressaltando apenas a coragem do menino. A evidência desse fato é notória quando
Dito amedronta o irmão com a história da punição de Papai-do-Céu, e, em seguida,
com o medo da morte – algo temido por todos.
A consciência das culpas faz-se notória no cruzamento das vozes do narrador
com a dos personagens, no reconhecimento de que terceiros sofrerão pelos erros dos
adultos, como se vê nesta passagem:
20 O Deus que pune está presente na Bíblia Sagrada, no Velho Testamento. A visão desse Deus se
arrasta por quase toda a narrativa e poucas são as vezes em que se nota a presença do Deus do amor,
que marca o Novo Testamento, da Bíblia Sagrada.
49
ano formoso... –?” “Mas não fala essas coisas, Miguilim, nestas horas.
(ROSA, 2016a, p. 38-39).
Isso chama a nossa atenção para o fato de que os adultos da narrativa parecem
enxergar apenas o próprio universo, o próprio sofrimento, o próprio erro, não as
consequências que suas falhas poderão trazer para outros. Vovó Izidra, por exemplo,
insiste em julgar a nora, mas não atenta para as atitudes que toma perante as faltas
dos filhos. Tio Terêz aproveita para fugir dos erros, ao invés de assumi-los e enfrentá-
los perante os demais, em especial o irmão e a cunhada. Já Béro poderia enfrentar
dignamente o irmão e a esposa, mas prefere usar a força bruta para ferir física e
moralmente a mulher a quem diz amar. E, se sai de casa enfurecido pelo ciúme,
depois retorna como se nada tivesse acontecido.
Enquanto isso, as crianças discutem o problema e refletem a situação em que
todos se encontram. Na concepção das crianças, o eminente temporal surgiu em
virtude dos erros dos pais e do tio. Por isso, cabe ao pequeno Miguilim raciocinar por
que os inocentes, como os passarinhos, poderiam sofrer as duras penas também: Não
seria injusto? Deus seria tão cruel?
O narrador foca na mente de Miguilim, que pensa nos passarinhos. Gentilmente,
ele enfatiza a subjetividade de Miguilim. O menino, temente e curioso, questiona o
irmão sobre a justiça aplicada aos fatos. Como afirma Maria do Perpétuo Socorro
Guterres de Sousa (2014, p.45), Miguilim, temendo as pessoas grandes apega-se
“assim cada vez mais ao irmão, fonte de afeto e conforto para seus temores”. Talvez,
do ponto de vista do Miguilim, o Pai-do-Céu estaria sendo muito cruel com os
inocentes, assim como o pai Béro o castigava sem motivos. A proximidade Pai (céu)
e Pai (terra) parece fazer o menino refletir as injustiças cometidas pelos pais e,
também, questioná-los. Vejamos que, quando ele pensa no que o pai Béro falou sobre
o ano chuvoso, ele também associa com os fatos ocorridos e com o sofrimento dos
passarinhos. Como tantos tormentos poderiam possibilitar um ano formoso? Em sua
percepção, essa sentença tornava-se confusa, quase impossível. E, se não se deve
questionar as decisões dos mais velhos, seria muito menos provável se questionar os
desígnios divinos. É o que fica evidente com a colocação de Dito em: “Mas não fala
essas coisas”. Dito21 parece temer Deus, por isso, prefere o silêncio. Dito – aquele
21O apelido atribuído ao irmão Dito tem uma ligação direta com o papel que desempenhava na
narrativa: “Dito se distingue como o menino que diz o verivérbio enunciador do conteúdo mitopoético
50
que diz e que sabe das coisas – prefere calar que ofender Deus, o que marca a
existência de um temor presente no menino e diretamente relacionado aos preceitos
religiosos, contrariando a ênfase do narrador no fato de que o menino era destemido.
Como observamos, os princípios religiosos em que o menino é criado e as
punições dos mais velhos ou aquelas que acredita virem de Deus, levam Miguilim a
apresentar um persistente medo de errar. Em sua pequena concepção de mundo, o
menino entendia que as penas nem sempre são justas, porém, sempre são aplicadas.
E, de todas as penas a mais dura e implacável seria a morte – a temida por todos.
Miguilim viveu no Mutúm até os oito anos. Como já comentado nesta escrita,
enquanto da mãe e do tio Teréz recebia afeto, do pai eram apenas pancadas, castigos
e trabalho no campo, além do cruel ciúme.
Ainda no início da narrativa, Miguilim retorna da Crisma com o tio Teréz, entra
em casa vislumbrando apenas alegrar a mãe com uma grande revelação sobre o
Mutúm: “era um lugar bonito...” (ROSA, 2016a, p.26). O Mutúm era lugar de que a
mãe não gostava e em que vivia triste e chorosa. Mas, o menino comete o grande erro
de passar direto pelo pai, sem cumprimentá-lo. A ação rendeu-lhe péssimas
consequências.
A primeira, foi o desgosto da mãe:
A mãe não lhe deu valor nenhum, mas mirou triste e apontou o morro; – Estou
sempre pensando que lá por detrás dele acontecem outras coisas, que o
morro está tapando de mim, e que eu nunca hei de poder ver...” Era a primeira
vez que a mãe falava com ele um assunto todo sério. (ROSA, 2016a, p.26)
Miguilim não podia imaginar tal reação materna. Como poderia não se alegrar
com aquela imagem bela do Mutúm, vinda de alguém que ali não morava? A
infantilidade não o permitiu perceber que o belo do lugar, para a mãe, não estava
associado ao espaço físico em si, mas ao que a rodeava, ao próprio seio familiar. Não
pudera ele acreditar que aquele maravilhoso “presente”, que trouxera “de cór, como
uma salvação” (ROSA, 2016a, p.26), pudesse continuar representando o inverso para
a mãe. O poder da palavra, do adjetivo “bonito”, que carregara decorado, armazenava
da saga” (SOUZA, p.68, 2006), ou seja, o que profere a palavra. Mas, vale observar que na passagem,
e de modo antagônico, o garoto que tudo sabe, prefere calar.
51
para ele o sentido da cura. Assim, Miguilim almejava a libertação, o resgate da mãe
que ali vivia triste e inconformada – provavelmente como também ocorreu ao próprio
Miguilim ao ouvir aquele elogio ao Mutúm. No espaço encantado e pueril em que se
encontrava o imaginário de Miguilim, brotou o equívoco: “[...] No começo de tudo tinha
um erro – Miguilim conhecia, pouco entendendo. Entretanto, a mata, ali perto, quase
preta, verde-escura, punha-lhe medo.” (ROSA, 2016a, p.26). Podemos dizer,
pensando aqui mais uma vez o conceito de angústia apresentado por Kierkegaard
(2013), que Miguilim via-se angustiado. Ora, lembremos que, de acordo com o referido
autor, a angústia surge do nada. Primeiro, na inocência, ela se faz latente na
ignorância do ser e se iguala à própria inocência exatamente na espontaneidade dos
atos do sujeito, ou seja, no nada, na ausência da reflexão. Mas, em seguida, o filósofo
afirma que a angústia se faz presente também no homem “[...] e aqui de novo é um
nada: a angustiante possibilidade de ser-capaz-de” (KIERKEGAARD, 2013, p.48), no
salto que revela a possibilidade para o sim ou para o não, para a própria liberdade,
mas que também o leva ao sentimento de culpa. A angústia se manifesta diante
daquilo que não se conhece.
No meio em que Miguilim se mostrava apenas criança, também lhe é posta a
condição de não saber distinguir o bonito do feio. O menino míope via o lugar em que
residia pelo olhar e palavras de terceiros, principalmente daqueles que amava. Cabia
ao pequeno procurar entender como era o lugar em que residia. Não obstante a sua
condição de criança, ele sabia reconhecer que havia extrema disparidade entre o que
ouviu de outro e o que presenciava nos gestos e sentimentos maternos, em relação
ao mesmo assunto. Sabia que ali existia um erro, mesmo sem poder decifrá-lo. Neste
passo, o narrador nos revela a mescla dos sentimentos do menino, um misto da
necessidade de desvendar aquele erro com o medo da mata, que via quase preta, ali
próximo. Para compreender ele teria que sair do campo sentimental e procurar a razão
contida nas palavras de quem conseguia enxergar o Mutúm. Mas, nessa passagem,
o medo faz-se vivo para ele pela primeira vez na narrativa, tanto no que se refere à
mata quanto no que tange ao erro. A junção desses pensamentos do menino é como
uma gestação do sentimento de culpa e do medo que sentirá do pai logo em seguida.
Não lhe bastasse a inocente aflição de poder animar a mãe e o desânimo que
nela viu, Miguilim precisou lidar com a atitude paterna:
mim, não quer saber da gente...” A mãe puniu por ele: – “Deixa de cisma,
Beró. O menino está nervoso.” Mas o pai ainda ralhou mais, e, como no outro
dia era domingo, levou o bando dos irmãozinhos para a pescaria no córrego;
e Miguilim teve de ficar em casa, de castigo. Mas tio Teréz, de bom coração,
ensinou-o a armar urupuca para pegar passarinhos. (ROSA, 2016a, p. 26-27)
autoconfiança, era capaz de atingir a plenitude a que aspirava e mantinha vivo o que
mais precisava: um bom coração, agilidade e, como outras crianças das estórias de
Rosa, era dotado de uma sabedoria que parece brotar da própria aprendizagem do
dia a dia. Assim, o menino fazia verter o diálogo consigo e com os que estavam ao
seu entorno. Dito mostrava-se ainda um bom ouvinte. Com a perspectiva de se tornar
fazendeiro, costumava ouvir atento as histórias dos mais velhos e, principalmente, as
dos vaqueiros. Para alcançar seus objetivos precisava ser astuto, logo, sempre “[...]
perguntava continuação. O Dito de tudo queria aprender.” (ROSA, 2016a, p.66), como
deixa claro o narrador. O menino percebia que precisava falar e se posicionar como
um adulto para se fazer entendido e não ignorado como Miguilim e os demais irmãos.
E, assim, costumava posicionar-se. Não obstante, era visto por todos, inclusive por
Miguilim, como “sabido” das coisas. Não obstante, Dito também tem temores.
Miguilim dependia da destreza do irmão para livrar-se, principalmente, de
algumas situações de apuro, tais como quando carrega escondido consigo um bilhete
de tio Terêz para Nhanina. Miguilim não consegue se expressar como o irmão, parece
fechar-se no invólucro da camada verbal criada por sua personalidade silenciosa e
medrosa. Agindo de modo suspeito e pasmo, o menino desperta a atenção de Vovó
Izidra. Mesmo sem saber o que de fato acontecera, Dito consegue dispersar a
desconfiança da vó, afirmando que Miguilim tivera medo do capeta, pois precisou
passar pela mata para poder levar o almoço do pai. O próprio Miguilim ficou assustado
com a perspicácia do irmão, tendo em vista que ele nada sabia sobre o bilhete. Ele –
não por inveja – deseja ser um pouco como o irmão. Mas, o próprio desejo de ser
além do que é se mistura com a inevitável carência de expressão. Assim, Miguilim
também se perde no choque com a linguagem e logo se vê preso às condições morais
socialmente impostas. Miguilim tem medo!
Miguilim era o que mais vivia atormentado por medos. De acordo com o narrador,
os bois e as vacas representavam os primeiros medos do menino que, quando bem
pequeno, ouvira do pai:
– “Se um sendo medroso, por isso o gado te estranha, rês sabe quando um
está com pavor, qualquer receiozinho, então capaz mesmo que até a mansa
vira brava, com vontades de bater...” Pois isso, outra vez, Miguilim sabia que
a gente não tivesse medo não tinha perigo [...]. (ROSA, 2016a, p.73)
Para o pequeno, continha verdade nas palavras do progenitor. Era nele que via
a mais próxima representação da coragem. Por isso, escolheu a ocasião -
56
E destravavam das árvores, repulando, vindo nele? A cô! – Miguilim tinha não
aguentado mais, tiçou o tabuleiro no chão, e abriu correndo de volta, aos
gritos de quero mãe, quero pai, foi – como que nem sabia como que – mais
corria.
De supetão, o Pai – aparecido – segurava-o por debaixo dos braços, Miguilim
gritava e as perninhas ainda queriam sempre correr, o pai ele não tinha
reconhecido. (ROSA, 2016a, p.79)
Não houve antídoto para o incidente. O garoto perdeu não só o almoço que
levava, mas também a própria dignidade. O susto do menino não provocou a ira do
pai, como das outras vezes, tendo em vista a repentina chegada de uma chuva que
os obrigou o retornar para a casa. Porém, serviu para que a posteriori Miguilim virasse
motivo de riso: “‘Miguilim? Se encontrou com padrinho Simão, correu ensebado,
veadal... Chorou a água de uns três cocos...’ – Pai caçoava. Quando Pai caçoava,
então era porque Pai gostava dele.” (ROSA, 2016a, p.80). Como vemos, Miguilim
sempre se posiciona com medo em relação à figura do pai. Mas, nessa ocasião,
podemos dizer que ele até sentiu-se bem em servir como motivo de chacota para
todos e, principalmente, para o pai, pois ao menos assim, não era alvo de agressões
e castigos físicos.
Tantos eram os castigos sofridos por Miguilim que ele acreditava na
possibilidade de o pai não gostar dele – algo repensado agora ao inverso pelo menino,
57
já que o pai ria. Ingenuamente, Miguilim não percebeu a ironia, muito menos a posição
de subordinado que continuava a ocupar perante o pai. Não notou a agressão moral
que sofria.
Miguilim também temia a perda da amizade do irmão. Certa feita, Miguilim tentou
fazer carinho na cabeça de um boi que estava no curral, mas teve sua mão espancada
pela cabeçada do boi. Nesse momento, o que ele sentiu foi raiva de todos. Dito tentou
acalmar o irmão dizendo que o touro era burro, mas Miguilim não compreendeu e,
enfurecido, bateu no irmão, rolando pelo chão e apanhando também. Quando parou
para pensar, viu que não podia batê-lo:
O Dito ia saindo embora, nem insultava, só fungava; decerto pensava que ele
Miguilim estava ficando dôido. Quem sabe estava? Desabria de vergonha,
até susto, medo. [...] Não achava coragem pronta para frentear o Dito, pedir
perdão – podia que tão ligeiro o Dito não perdoasse. [...] e Miguilim veio se
sentar no tamborete, que era o de menino de-castigo. (ROSA, 2016a, p.88)
Que não se pode sentir ira sem antes haver sentido Medo, é obvio para todo
observador perspicaz. É somente quando surge um obstáculo, quando algo
atinge o nosso Eu e, de algum modo, o limita ou menospreza, isto é, ao nos
vermos limitados, entorpecidos ou fracassados em nosso propósito vigente,
que sentimos acender-se a chispa da cólera. (MIRA Y LÓPEZ, 2012, p.76,
grifos do autor)
Não à toa, Miguilim explodiu com o irmão Dito. Ele teve o orgulho ferido, pois
não conseguiu domar o animal como desejava. A primeira pessoa que se aproximou
dele foi Dito, por isso, o que mais sentiu (na pele) a fúria do irmão. Mas, se Miguilim
explodiu em ira por ter a consciência do medo que sentira do touro, agora sentira o
efeito do tão indesejado medo mais uma vez, após bater no irmão e rolarem pelo chão
a se estapearem.
Miguilim parte do temor do animal para o medo de perder a amizade do irmão.
Esse sentimento é tão intenso que ele mesmo se castiga. Todos sabiam que o banco
58
do castigo era o local mais humilhante para se estar, porém foi para lá que Miguilim
resolveu ir. O pequeno tinha consciência que ferira a amizade dos dois com aquele
gesto tão agressivo e cruel tanto quanto o do touro Rio-Negro. A preocupação com o
erro cometido foi intensa ao ponto dele parar de chorar de dor para rezar o “cr’em
deus padre”. Sabia que precisava esperar sozinho, quieto, se acalmar e se perdoar,
antes de pedir perdão. O banco do castigo era para ele a melhor forma de se redimir
consigo e reparar o erro.
O peso da culpa e o medo de perder o carinho do irmão só amenizam quando
Dito, pouco depois, vem convidá-lo para subir em árvore. No topo da árvore, que
também figura o ponto mais alto da dor e punição do menino, Miguilim ganha coragem
e pergunta: “‘Dito, você não guarda raiva de mim, que eu fiz?’ ‘– Você fez sem por
querer, só por causa da dôr que estava doendo...’” (ROSA, 2016a, p.89). A dor mental
pesou mais para Miguilim que a dor física, ao ponto da primeira provocar o
desaparecimento da segunda. Miguilim, mais uma vez, encontra cura para suas dores
e temores nas sábias palavras do irmão e no amor que sentiam um pelo outro.
Como já mencionado nessa escrita, tanto Miguilim quanto Dito tinham um medo
em comum: a morte. Mesmo ainda tão pequenos sabiam que, diferente de outros
males que poderiam causar temores, a morte era o único deles do qual não poderiam
escapar.
Nem mesmo toda a esperteza e sabedoria do pequeno Dito era capaz de afastar
a tão espantosa possibilidade de morte. Eis que ele a teme imensamente. Isso ocorre
porque, provavelmente, de todas as situações que podem resultar em medos, a da
chegada da morte é a única que dificilmente pode-se driblar, como mostra Aristóteles
(2005). Sua precisa e súbita chegada é inevitável a qualquer ser, mas o que atormenta
é saber da proximidade com ela. Este temor torna-se uma constante na vida dos
personagens de “Campo Geral”, o que também se deve ao caráter negativo atribuído
à religiosidade por eles instituída, crentes na existência dos opostos céu versus
inferno.
O menino se vê forçado a habituar-se ao diário e diverso sentimento da morte.
Enquanto perda, a morte se faz presente na própria linguagem de Miguilim – quando,
por vezes, é obrigado a calar ou depender de outro para proferir a palavra – ou mesmo
pelas imposições em relação ao que não pode fazer ou ter22. A morte assume várias
22 Cf.
DUARTE, Lélia Pereira. Campo Geral de Guimarães Rosa: falar de morte para celebrar a vida da
narrativa. Ensaio. Disponível em: https://www.leliaparreira.com.br/textos/quadros-ordem-
59
alfabetica.html. Acesso em: 31 maio 2019. No referido ensaio, Duarte explica que Miguilim vive um
processo de morte e vida regidos pelos padrões de uma incompreensão que ele, sequer, consegue
avaliar.
60
23 Miguilim, aqui, se aproxima do Arcanjo Miguel. Quando sente pena de Deus, parece mais desejar
ajudá-Lo a reprimir os erros da humanidade. Mesmo sem conhecimento sobre a origem do nome que
carrega, a dó que ele sente de Deus ali sozinho nos remete ao Arcanjo, o auxiliar do Divino nas batalhas
contra o mal.
61
(EPICURO, 2002, p.29), ou seja, quando ela chega não existe mais consciência, não
existe mais o ser. No entanto, Miguilim se colocou na contramão desse pensamento,
ele temeu a morte e a espera da sua chegada o afligiu.
Para ele, a morte se colocou como o desconhecido, algo do qual não se pode
estabelecer parâmetros, por isso, assustador. De acordo com Mira y Lopes (2012), a
morte nos causa medo exatamente quando tomamos consciência que é a partir dela
que anulamos nossa “auto-existência” no mundo, pois não ocorre apenas a morte do
corpo, mas, principalmente, a perda do “Eu” que nele habita, já que não sabemos ao
certo sobre a continuidade ou não. Assim, o que realmente se teme não é a morte em
si, mas o desconhecido que ela atrai. O medo de Miguilim está para a perda do “Eu”.
Como ele mesmo diz, em conversa com o irmão – da morte não teria medo, caso
todos morressem juntos. Logo, ao que nos indica a passagem, o menino temia a morte
porque desejava a existência da continuidade do Ser perante aqueles que tinham
significância em seu processo existencial.
Além disso, na mente pueril soma-se à ideia do desconhecido a ideia de
julgamento post morten, pregada pelas religiões. Os preceitos religiosos da família de
Miguilim ajudam a aumentar o medo, principalmente o de ter que sofrer na eternidade
em virtude das falhas cometidas em vida. Por isso, mesmo sofrida e surrada, a vida
parece ter mais importância para Miguilim. Entre a diversidade de medos que
envolvem o universo do menino de oito anos, o da proximidade da morte parece ser
o mais opressor. O medo da morte não estava apenas relacionado à punição eterna
ou à possibilidade de ir para o inferno. Temia à morte também porque era algo
desconhecido. Então, havia a probabilidade de um sofrimento maior que em vida.
Porém, Miguilim apenas não percebia, mas se via forçado a morrer um pouco a
cada dia e das mais variadas formas – fosse pela ausência da palavra, pelos castigos
ou pelos tapas que recebia dos outros meninos e dos mais velhos ou pela consciência
em relação aos medos que sentia. Essa morte diária e os castigos eram a mais pura
representação do inferno por ele vivido cotidianamente. O inferno de Miguilim é
semelhante ao que Bosi (2010) discute sobre o menino mais novo e o menino mais
velho, de Vidas secas do autor Graciliano Ramos. Estes, assim como Miguilim,
apanhavam constantemente dos pais, mantendo-se mais próximos dos animais, como
a cachorra baleia, com quem conseguiam vivenciar momentos de libertação e paz.
Miguilim também experimentava essa ausência do inferno na relação que mantinha
com os animais, em especial a bondosa cachorra Pingo-de-Ouro, que sempre o fazia
62
companhia, principalmente quando ele estava só. Porém, até essa paz lhe foi roubada
quando lhe tomaram a cachorra. A diferença entre Miguilim e os meninos de Graciliano
Ramos está somente no fato de que estes não conhecem a liberdade ao longo da
narrativa, enquanto o menino de Guimarães Rosa dará passos na tentativa de
encontrá-la, como vemos no desfecho da estória.
Dessemelhante do irmão, na concepção do narrador e dos que o conheciam,
Dito era menino corajoso, como fica claro no pronunciar de Béro, no episódio do corte
da árvore aqui já mencionado.
Levado que era, Dito não temia “[...] saía, por outros brinquedos, com o simples
de espiar o ninho de filhotes de bem-ti-vi, não tinha medo que bem-ti-vi pai e mãe
bicavam, podiam furar os olhos da gente. Chamava Miguilim para ir junto. Miguilim
não ia. O Dito não chamava mais.” (ROSA, 2016a, p.58). Dito conhecia os limites do
irmão, por isso cismava em não o chamar mais. Gostava de subir em árvores altas,
de montar cavalos, de espionar os bichos no ninho, mesmo que corresse o risco de
ser perseguido pelos pássaros pais ou de algum outro modo se machucar. Para ele,
valia sempre a pena correr os riscos, pois os desafios o faziam aprender.
Além da coragem, ele carregava consigo a certeza de que iria para o céu
quando morresse, inclusive chegou a comentar com Miguilim que não gostaria de ir
para o céu menino pequeno, antes queria crescer, conquistar o posto de fazendeiro.
Ao lado de Miguilim, iria “[...] brincar muito, comprar uma fazenda muito grande,
estivada de gados e cavalos, para nós dois!” (ROSA, 2016a, p.61). Essa era a
perspectiva de Dito e, assim, procurava sempre compreender como as coisas
funcionavam e como as pessoas agiam de acordo com cada circunstância.
Por algumas vezes, Miguilim chegou até a sentir medo pelo irmão, como quando
Dito, ainda no nascer do sol, foi olhar a coruja pequena na casa dela. Ele convidou o
Miguilim, que se recusou por saber que era perigoso pisar em chão coberto de restos
de comida das corujas como, por exemplo, os “espinhos de cobra, com os venenos”
(ROSA, 2016a, p.90). Quando ele retorna, faz questão de contar para o irmão que
eram duas corujas:
[...] que estavam carregando bosta de vaca para dentro do buraco e que
rodavam as cabeças p’ra espiar para ele, diziam: “Dito! Dito!” Miguilim se
assustava: – “Dito, você não devia de ter ido! Não vai mais lá não, Dito.” Mas
o Dito falou que não tinha ido para ver a coruja, mas porque sabia do lugar
onde o vaqueiro Jé mais a Maria Pretinha sempre em escondido se
encontravam. – “Que é que tinha lá, então, Dito?” – “Nada não. Só tinha a
63
Dito não só era destemido, como também parecia costumar não acreditar em
tudo que os mais velhos diziam. Por isso, procurava tirar suas próprias conclusões
sobre acontecimentos, crenças, coisas e lugares. Como vimos, ele precisou ir até a
árvore com cupim, em que as corujas fizeram o buraco para morar, para compreender
que o que os mais velhos falavam a respeito daquele lugar era mais pelos riscos que
as crianças corriam sozinhas, que pelos riscos do local em si.
Além disso, o fator curiosidade era o que sempre movia Dito e, ele mesmo deixa
isso claro quando explica que o principal motivo de ter ido àquele lugar não era a casa
das corujas, mas porque sabia onde se encontravam, em seus furtivos encontros, o
vaqueiro Jé e a Maria Pretinha, algo de que ninguém mais sabia – tanto que em outra
passagem posterior, todos descobrem o romance, mas isso só acontece porque os
dois enamorados acabaram fugindo.
Os medos aparecem na passagem mais uma vez sob a perspectiva de Miguilim,
que primeiro implora para que o irmão não vá e, depois, se incomoda com a
brincadeira de Dito, que dizia ter sido chamado pelas corujas. A supersticiosidade das
crianças está diretamente relacionada com o temor, visto que era comum no seio
familiar acreditarem que a ave trazia mau sinal. Porém, Dito não se incomodava com
aquilo e, por isso, fazia troça.
Em um misto de superstição e casualidade, o narrador nos mostra que dias após
o episódio da troça com a coruja, Dito acaba se ferindo. Em virtude da fuga do mico
que criavam e o alvoroço dos cachorros que queriam pegá-lo, o garoto, na tentativa
de salvar o animal, acabou cortando o pé em um caco de pote no terreiro e precisou
ficar acamado. Dito solicitou uma rede no alpendre, onde ficou por uns dias. O
machucado o impediu de acompanhar de perto a montagem do presépio, feita por
Vovó Izidra. Miguilim não queria deixar o irmão e Dito aproveitava para pedir-lhe que
observasse tudo o que acontecia:
triste, sem desprezo, do jeito que a gente olha triste num espelho. “Mas
depois, tudo quanto há cansa, no fim tudo cansa...” Miguilim discorreu que
amanhã Vovó Izidra ia pôr o Menino Jesus na manjedoura. Depois, cada dia
ela punha os Três Reis mais adiantados um pouco, no caminho da Lapinha,
todo dia eles estavam um tanto mais perto – um Rei Branco, outro Rei Branco,
o Rei Preto – no dia de Reis eles todos três chegavam...” – Mas depois de
tudo cansa, Miguilim, tudo cansa...” E Dito dormia sem adormecer, ficava
dormindo mesmo gemendo. (ROSA, 2016a, p.95)
[...] mas mesmo assim ele forcejou e disse tudo: – “Miguilim, Miguilim, vou
ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar sempre
alegre, alegre, mesmo com toda a coisa ruim que acontece acontecendo. A
gente deve de poder então ficar mais alegre, mais alegre, por dentro!...” E o
Dito quis rir para Miguilim. Mas Miguilim chora aos gritos, sufocava, os outros
vieram, puxaram Miguilim de lá.
[...]
Miguilim doidava de não chorar mais e de correr por um socôrro. Correu para
o oratório e teve medo dos que ainda estavam rezando. Correu para o pátio,
chorando no meio dos cachorros. (ROSA, 2016a, p. 96)
Conhecedor dos temores do irmão, Dito, numa espécie de consolo prévio, dispôs
seu último saber, como se a pedir a Miguilim que continuasse feliz, mesmo diante da
perda ou que não temesse à morte, pois ela também pode ser algo bom.
O desespero de Miguilim diante do irmão que fenecia, a busca por socorro em
orações, mais uma vez esbarra no medo. Em seu desalento, o menino não só temeu
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a morte do irmão como também às pessoas que estavam agrupadas em oração pela
vida de Dito. Miguilim deixa sugestiva, nessa ocasião, a ideia de que também sentia
um temor social, pois os adultos o assustavam ao ponto de ele sair correndo, do local.
Buscava ajuda de alguém, mas esbarrou no medo, provavelmente o de que ninguém
ali pudesse realmente acudir o irmão, já que todos oravam e pediam a Deus pela
saúde de Dito. A imagem de Miguilim, fugindo das pessoas e chorando no terreiro em
meio aos cachorros, denota o quanto ele se sentia mais confortável e confiante entre
os animais que entre os humanos, como se os animais o entendessem melhor que os
homens.
Um aspecto importante, associado à moléstia que resultou na morte de Dito, foi
seu ato de coragem, correndo descalço pelo terreiro, para salvar o mico das garras
do cachorro e, consequentemente, da morte. Notamos que os acontecimentos são
dispostos pelo narrador envoltos em certo misticismo religioso. É quase como uma
doação em benefício à vida de outro ser. A morte do menino se assemelha ao
sacrifício de Jesus ao morrer crucificado em prol da humanidade – ato considerado
pelo cristianismo como a maior prova de amor existente. Nesse sentido, a referida
passagem da estória de Dito comunga com a passagem bíblica da salvação pela
doação. Dito morreu por querer salvar o mico, assim como Jesus morreu para livrar
os homens dos seus pecados.
Ainda no trecho da narrativa, a morte de Dito acontece exatamente no período
do simbólico nascimento do Menino Jesus, o Natal. Considerando que “de tal modo
Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não
pereça, mas tenha vida eterna” (Jo 3:16), o nascimento de Jesus (Natal) parece
representar também a salvação de Dito e a tão esperada vida eterna no céu, tal como
o menino sempre desejou.
Todavia, Miguilim não aceitou a perda e sucumbiu ao desespero e à ira.
Após a morte de Dito, Miguilim perdeu o gosto pelas coisas, vivia triste e choroso,
pensando sempre no irmão. Ele também passava a desgostar das pessoas da família
porque mesmo triste com a morte de Dito, sempre “respondiam com lisice de
assuntos, bobagens que o coração não consabe.” (ROSA, 2016a, p.100). Apenas
gostava de como Rosa falava do irmão que “era uma alminha que via o Céu por detrás
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do morro, e que por isso estava marcado para não ficar mais tanto aqui.” (ROSA,
2016a, p.100) e de Mãitina, porque ela tinha apreço pela bondade de Dito.
Nesse passo, Miguilim já havia desenvolvido certa zanga em relação aos
parentes. Mas, tudo se agravou quando, meses após a partida de Dito, o papagaio
Paco-o-Paco pronunciou o nome de Dito, Expedito, e todos brigaram com o bichinho
para ele esquecer o que estava dizendo. A partir desse momento, Miguilim parece
começar a ficar destemido, mas desenvolvendo a ira em relação às pessoas.
O menino queria ser como o Dito e procurava sempre pensar no que o irmão
diria ou faria em seu lugar. Mas Miguilim não sabia imitá-lo. O modo como Miguilim
passou a agir, aos olhos dos adultos mais parecia que estava sem-vergonha e, por
isso, forçaram-no a trabalhar constantemente, em especial o pai, que passou a levá-
lo para o trabalho pesado no roçado. Ele já não mais tinha medo das pessoas, apenas
temia a morte – como já comentado nesse estudo, mesmo não gostando da vida que
levava, a preferia, pois não sabia o que viria após a morte.
A ira do menino, mais uma vez aparece como uma forma defensiva contra o
medo que sentira ao longo da vida. A prova de que ele tinha medo – e não só da morte
– está contida no próprio fato de continuar obedecendo e trabalhando
incessantemente com o pai, além do desejo de não ser sempre repreendido
severamente e que Béro pudesse gostar dele. Então, ele faria promessa, assim como
Dito havia ensinado, promessa antecipada:
Agora, por enquanto, não. Agora ele estava sempre cansado, nem rezava
quase. Mas, a promessa, ainda fazia! [...] Mas fazia a promessa era por conta
de Pai. Por conta de pai não gostar dele, ter tanto ódio dele, aquilo que nem
não estava certo. (ROSA, 2016a, p. 107)
Miguilim não compreendia a forma como o pai o tratava. Como o mais velho
dentre as crianças, fora o Liovaldo que morava com o tio, Miguilim era usado como
exemplo para os outros meninos. Além disso, Béro era o tipo machista, rude e bruto,
não apenas com as crianças, mas com os adultos, sobretudo com a esposa. Como
vemos, Béro usava o poder de patriarca para conseguir o que queria e, para isso,
valia-se do medo que provocava nos demais por intermédio de gritos, castigos e
espancamentos. Miguilim via apenas ódio nas atitudes do pai.
O menino estava determinado a fazer promessa, iria abster-se das guloseimas
e torrões de açúcar por um tempo, no intuito de afastar algum acontecimento ruim,
como Dito dissera. É aí que ele nota que não precisaria fazer a promessa para poder
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se livrar dos meninos da ponte do Bugre, aqueles que o insultavam e jogavam pedra,
fazendo com que o cavalo corresse e derramasse o leite que o pai o mandava vender.
Destes garotos, Miguilim se recusava temer. Para eles, bastava puxar uma faquinha
e partir para cima que se assustariam e fugiriam. Esse pensamento mostra como o
menino se revoltara com a perda, ao ponto de não sentir mais medo das outras
crianças.
Miguilim compreendia que seu maior intento de promessa era mesmo ter um
pouco de demonstração de afeto e amor do pai e, por isso, a faria. A passagem
também denota a relação de poder que existia entre o menino e o pai,
consequentemente, o medo que sentia da superioridade do patriarca.
A afirmação da promessa fica clara, mas é importante observar que a condição
para a realizar é justamente que fosse no momento em que estivesse descansado.
Esse fato denota o quanto Miguilim estava se sentindo cansado de tudo: da perda do
irmão, da nova rotina de trabalhos exaustivos a que o impunha o pai, das zangas dos
mais velhos etc. O que Miguilim não percebia é que também alimentava uma raivinha
dentro de si.
Como por ocasião do falecimento de Dito, Liovaldo e o tio foram passar uns dias
na casa de Béro. Sempre altivo, egoísta e esnobe, costumava ensinar coisas feias
para o Miguilim que não gostava do comportamento do irmão e, por isso, não queria
a sua companhia, “Mas então o Liovaldo ficava mais querendo a companhia dele”
(ROSA, 2016a, p.108). Um determinado dia, Liovaldo tocava uma gaitinha quando o
menino Grivo, que nunca tinha visto aquilo, passava com uns patinhos para vender e
parou para ouvi-lo tocar. Liovaldo não gostou e começou a chutar os patos, cuspir e
bater no Grivo. A agressão deixou Miguilim indignando e, cheio de ira, ele bate
impiedosamente no irmão, ao ponto de não conseguir soltá-lo:
Era dia-de-domingo, Pai estava lá, veio correndo. Pegou o Miguilim e levou
para casa, debaixo de pancadas. Levou para o alpendre. Bateu de mão,
depois resolveu: tirou a roupa de Miguilim e começou a bater com a correia
da cintura. Batia e xingava, mordia ponta da língua enrolada, se comprazia.
Batia tanto, que Mãe, Drelina e a Chica, a Rosa, Tomèzinho, e até vovó Izidra,
choravam e pediam que não desse mais, que já chegava. Batia, batia, mas
Miguilim não chorava. Não chorava porque estava com um pensamento:
quando crescesse, matava Pai. Estava pensando de que jeito era que ia
matar Pai, e então começou até a rir. Aí, Pai esbarrou de bater, espantado:
como tinha batido na cabeça também, pensou que Miguilim podia estar
ficando dôido.
– “Raio de menino indicado, cachôrro ruim! Eu queria era poder um dia
abençoar teus calcanhares e tua nuca!...” – Ainda gritou. Soltou Miguilim, e
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pensou até que fosse apanhar novamente. Sua ira era tamanha, ao ponto de se deixar
apanhar novamente, se o pai o pegasse. Sabia apenas que não choraria, apanharia
até a morte, momento em que proferiria uma praga sentida ao pai. Para o menino,
essa talvez fosse a maior forma de vingar-se de seu agressor. A ausência do choro
mostraria ao pai o quanto ele era capaz de suportar, o quanto era forte.
Os ânimos são alterados, mas Béro não o bate, no entanto, vai até as gaiolas e
solta todos os pássaros de estimação de Miguilim. Enfurecido com o que o pai havia
feito, Miguilim quebrou e jogou fora todos os seus brinquedos “Queria ter mais raiva.”
(ROSA, 2016a, p.113), como se toda aquela revolta que carregara ao longo da vida,
e no que se refere ao pai, ainda fosse pouca diante de tantas agressões.
Entretanto, ao longo dos dias de trabalho e submissão ao pai, a vontade de vê-
lo morto vai se transformando no desejo de ser notado com amor. Esse desejo evolui,
o ódio diminui até que culmina com a pretensão de fazer promessa, como Dito o
explicou. Mas, então, Miguilim adoece gravemente e fica dias acamado. Diante da
morte, ele não sentiu medo e, em um dos momentos de dores fortes na cabeça, o
menino percebeu que o:
Pai não ralhava, não estava agravado, não vinha descompor. Pai chorava,
estramontado, demordia de morder os beiços. Miguilim sorriu. Pai chorou
mais forte: – “Nem Deus não pode achar justo direito, de adoecer meus
filhinhos todos um depois do outro, parece que é a gente só quem tem de
purgar padecer!?” Pai gritava uma brabeza toda, mas por amor dele, Miguilim.
(ROSA, 2016a, p.115-116)
Apesar de não ter feito a promessa, para a surpresa de Miguilim, quase que
miraculosamente o pai demonstra carinho por ele. É nessa ocasião que percebemos
o quanto Béro mantinha em evidência uma virilidade agressiva, ao longo da vida, um
machismo que mais afastou aqueles que amava, como Miguilim. Apenas diante da
perda foi que o pai demonstrou amor pelo pequeno, tornando-se esse o único
momento em que Miguilim sorriu para o pai, como que preenchido pelo amor contido
nas lágrimas que fluíam no rosto de Béro. Desse modo, tomamos como lição o fato
de que as “crianças apreendem a camada mais profunda da vida pela capacidade de
pensar com o coração e de ver a vida com os olhos mais abertos” (BARRETO, 2003,
p.202). A beleza contida no amor do pai pelo menino foi vista até nos gritos por ele
proferidos, visto que, neles, Miguilim sentiu apenas amor, não mais medo ou ódio.
Porém, no sétimo dia da doença do menino, ainda muito mal e febril ele ouve
uma gritaria na casa e pergunta o que aconteceu. É então que lhe contam que Béro
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matou Luisaltino e fugiu para o mato. Assustado o menino pede: “– ‘Não me mata!
Não me mata’ – implorava Miguilim, gritando, soluçando.” (ROSA, 2016a, p.117).
Percebemos nesse recorte que o medo de Miguilim em relação ao pai foi algo tão
persistente ao longo da vida que, no memento da notícia sobre o assassinato de
Luisaltino, Miguilim implora para que o pai não o mate. O menino confunde o
assassinato de Luisaltino com o seu. Isso denota quão assustadores eram os atos e
a presença do pai. Aquele único momento de demonstração de amor do pai não foi
suficiente para afastar todos aqueles oito anos de agressões verbais e físicas.
Miguilim não vivenciou o amor do pai.
Quando no mesmo dia vovó Izidra lhe conta sobre o suicídio de Béro, Miguilim
reza e adormece, como mandara a vó. Mais tarde acorda, lembra de Dito e pensa que
se ele estivesse vivo, talvez pudesse impedir os trágicos acontecimentos. Miguilim
mantinha viva a memória e esperteza do irmão que “chorava devagar, com cautela
para a cabecinha não doer; chorava pelo Pai, por todos juntos. Depois ficava num
arretriste, aquela saudade sozinha.” (ROSA, 2016a, p.117). Vejamos que o tempo de
Miguilim sentir o amor do pai foi de um instante, que de tão curto se fez esquecido
durante o momento de delírio. Porém, quando recobrou os sentidos e de fato
constatou a trágica morte do pai, o menino sente e se entrega apenas à saudade. E,
a saudade de Miguilim está relacionada àquele breve e último instante de amor, não
aos tantos anos de presença bruta do pai – pois, se assim fosse, o menino
provavelmente ignoraria a ausência do pai, já que tantas vezes sentiu ódio e vontade
de matá-lo. Então, podemos afirmar que aquele único instante de visível compaixão e
amor pelo filho, também funcionou como libertação do ódio sentido por Miguilim.
Outra passagem nos chama a atenção, tendo em vista que retrata o amor que
Miguilim sempre desejou ver no pai. É quando, seu Aristeu vai até a casa de Miguilim,
no período em que se recuperava da doença e das tragédias ali ocorridas, e leva mel
de presente. A representação do mel ofertado por seu Aristeu a Miguilim está para o
carinho, o cuidado e o amor que o menino sempre desejou receber do pai. Miguilim já
tinha observado o carinho de seu Aristeu antes, quando adoeceu pela primeira vez.
Na ocasião, Dito correu atrás de seu Aristeu pedindo-lhe ajuda, como vemos na
passagem: “Depois e tanto, abraçou o Dito; falou: – ‘Tratem com os açúcares este
homenzinho nosso, foi ele quem veio e quis me chamar...’” (ROSA, 2016a, p.65). Aqui,
o dulçor do açúcar está para o dulçor da criança que buscou a cura para outra, quando
ninguém mais a procurou. Já no favo de mel ofertado a Miguilim também notamos o
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carinho e o amor de um homem que deseja ver o menino feliz após tantas perdas. O
singelo gesto provoca no menino a emoção de se sentir amado por mais um instante,
tanto que Miguilim ri, assim como quando acamado notou o amor de Béro (pai).
No desfecho da narrativa, Vovó Izidra vai embora, enquanto Tio Terêz retorna
para casar-se com Nhanina. Miguilim parecia seguir os ensinamentos religiosos da
avó, provavelmente por isso, achava que era pecado gostar de Tio Terêz.
Miguilim se recupera e encontra a felicidade no “[...] viver devagarinho, no
miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma.” (ROSA, 2016a, p.119),
como se não mais sonhasse. Mas, é justamente nesse miudinho que Miguilim
encontra o doutor José Lourenço, o homem que lhe devolveu a vontade de ser feliz,
pondo no menino uns óculos: “Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma
claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas.
[...] E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo...” (ROSA, 2016a, p.120).
Benedito Nunes (1983), no que se refere ao menino do conto “As margens da alegria”,
do livro Primeiras estórias, de Guimarães Rosa, diz que quando se encontra o menino
“[...] já do outro lado da tristeza e da ferocidade, no reverso da mesma vida que
enegrecera, esplende a luzinha verde do primeiro vagalume – devolução da claridade,
da alegria triunfante, recuperação da beleza superando a fealdade, mas a ela unida
[...]” (NUNES, 1983, p.158). Com Miguilim ocorre algo similar no momento em que ele
põe os óculos, pois a ele também é devolvida a luz dos dias que seus olhos não
podiam ver. Miguilim agora parece fazer uma travessia, pois compreendera a verdade
sobre o Mutúm, como sempre quis. O menino desenvolve sua própria opinião sobre
aquele lugar, opinião que surge da junção do que construiu ao longo dos anos – por
intermédio da percepção dos mínimos detalhes contidos nas palavras daqueles que o
rodeavam e a quem tanto amava – com seu próprio olhar e interpretar o real, agora
como lhe fora desvelado. Como no tempo em que Dito era seus olhos e sua voz,
Migulim sente-se feliz. Enxergar o mundo, as coisas, as pessoas, era a redenção para
tanto sofrimento ou como lhe disse sua mãe “É a luz dos teus olhos, que só Deus teve
poder para te dar.” (ROSA, 2016a, p.121), reafirmando a liberdade que,
inesperadamente, chegou até o garoto, a sua salvação.
Podemos dizer que, tendo passado por tantas adversidades, mas buscando o
que lhe parecia o belo da vida, ao longo da estória, Miguilim “se trata de um menino
poeta” (LISBOA, 1983, p.174), bem como foi seu inventor Guimaraes Rosa. Apesar
de míope, via o mundo com outros olhos: o da sensibilidade. Miguilim percorreu o
73
caminho do senso moral e sempre fez uso do sentimento, da ternura. Assim, durante
o percurso da narrativa, ele nos conduz também “a um mundo interior que já nos
pertence, temos a sensação da infância dentro de uma absoluta verdade lírica”
(LISBOA, 1983, p.176, grifo do autor), somos levados a pensar e compreender o
mundo por intermédio da sua “visão” infantil que nos faz ver o que já não mais
conseguimos. Desse modo, a miopia de Miguilim também adquire a duplicidade
quando se faz capaz de perceber as coisas simples ao seu entorno, como a beleza
do Mutúm, mas também a perturbada e opressora visão de mundo do adulto, como a
de seu pai Beró.
A miopia de Miguilim é alegórica na medida em que dá sinais da experiência
humana. Notamos que quando a miopia do menino é revelada, surge para ele a
esperança, o que o leva a “enxergar” um novo mundo. Miguilim nos é apresentado
nessa tessitura enquanto criança que passa pela experiência da dor, do sofrimento,
das dificuldades com a vida, o que não é característico do universo infantil. Guimarães
Rosa elenca aqui temáticas que, por vezes, passam despercebidas aos olhos
“míopes” da humanidade. O problema de visão presente em Miguilim está para a
humanidade como o próprio enxergar parcial e declinado no que se refere aos
sofrimentos e às adversidades dos outros. Logo, o revelar-se míope faz-se, no final
da estória, também o desvelar do leitor para as superações do ser humano, assim
como acontece com o menino. A mudança de comportamento do personagem se
mostra, ironicamente, com a revelação da sua condição de míope. Essa modificação
denota a superação dos medos do menino e o tange à esperança, ao desejo de
encontrar-se com a vida. Indignado com a realidade em que vivia, o menino parte na
expectativa de algo melhor.
Miguilim parece desenvolver certa autonomia depois de olhar o mundo ao seu
entorno. Chegou a afirmar – sem mais necessitar que os outros te dissessem – que
“O Mutúm era bonito. Agora ele sabia!” (ROSA, 2016a, p.122), se autogovernando,
como jamais fizera. É nesse momento que Miguilim passa a ver um mundo de
possibilidades, de evolução fora do Mutúm, não à toa vai embora com o doutor,
sentindo saudade, mas recordando as palavras de Dito “[...] Sempre alegre, Miguilim...
Sempre alegre, Miguilim... Nem sabia o que era alegria ou tristeza” (ROSA, 2016a,
p.122), contudo a aprenderia, em um novo mundo, distante dali.
Pensar a saída de Miguilim daquele ambiente em que sempre viveu é, como nas
palavras de Maria Carolina de Godoy (2014), pensar a saída, a fuga do menino
74
A estória do menino Miguilim tem fim com sua partida para a cidade, choroso e
montado no cavalo Diamante, acompanhado pelo doutor e na certeza de que
estudaria e mudaria de vida. Neste compasso, podemos observar que o nome dado
ao cavalo remete ao brilho, como se o menino estivesse naquele dado momento
sendo conduzido a uma brilhante jornada, a um futuro de glória. Não bastasse, quem
o acompanhava era um doutor, alguém que estudou.
A grandeza dos detalhes está não apenas nos óculos, que deu ao menino a
oportunidade de melhor ver o mundo, mas exatamente no mundo de novas
possibilidades que o doutor poderia apresentar a Miguilim a partir daquele dado
momento.
O leitor de “Campo Geral” tem a grata surpresa de reencontrar Miguilim já
adulto, agora Miguel, em mais duas estórias da coletânea de Corpo de Baile: “A estória
de Lélio e Lina” na obra No Urubuquaquá, no Pinhém e “Buriti” na obra Noites do
sertão. Na primeira, o nome Miguel surge de forma passageira, apenas citado por
Drelina, uma das irmãs. Já na segunda, somos surpreendidos com uma narrativa
75
polifônica24, que tem início com um narrador em terceira pessoa, mas sofre uma pausa
e passa a ser narrada por Miguel, que é um dos três protagonistas narradores. Além
disso, ficamos maravilhados com a primeira parte da estória, que relata o retorno do
jovem Miguel (Miguilim) ao Buriti, um ano após sua partida, e relembrando os poucos
dias da primeira estadia naquele lugar.
Antes de analisarmos as semelhanças e medos entre o menino Miguilim e o
adulto Miguel, faz-se necessário falarmos sobre a nova posição social exercida por
ele. Vimos que Miguilim chegou ao Mutúm em um carro de bois e que quando de lá
saiu, em companhia do médico, foi montado a cavalo. Porém, em “Buriti”, Miguel
retorna pela segunda vez para o sertão, dirigindo um jeep. Além disso, notamos que
parte dos personagens o chamam de Seu Miguel, como é o caso de Gualberto e dos
funcionários da fazenda. Sendo assim, podemos afirmar que Miguel também alcançou
respeitabilidade social e determinado status financeiro. O recebimento daquele par de
lentes quando criança e a ida para a cidade, passou a ser o divisor social para o jovem.
Então, há de se pensar que essa ascensão é o que o faz tomar coragem para retornar
ao Buriti Bom, com o intuito de pedir Glorinha em casamento.
Miguel permitiu que o tempo se encarregasse da saudade que sentia para poder
retornar ao sertão dos Gerais, um ano após a partida do Buriti. Apesar de ser agora
um homem estudado e de posses, carregava consigo algo daquele Miguilim que fora
um dia. Miguel, ainda na introdução do romance, apresenta caracteres de um sujeito
que não conseguiu se desvencilhar do medo que sentia no passado e, por isso, tinha
receio de regressar ao sertão, de voltar para Glorinha, como prometera. Contudo, ele
resolve deixar de lado o que conquistara na cidade e vai em busca do que muitas
vezes pensou ser inviável, mas não impossível: casar-se com a jovem.
Filho do sertão, mas que fora embora e se acostumara aos hábitos citadinos,
atormentava-lhe a ideia de não ser recebido com alegria, já que sempre fora um
estranho entre os dali e, agora, com a ação do tempo, poderia ser considerado um
verdadeiro estranho, até mesmo pela própria Glória. Antes de chegar à Fazenda de
Iô Liodoro, ele passa pela casa de nhô Gualberto, na expectativa de colher
24 Cf. PADILHA, Solange Vieira. Guimarães Rosa: flashback e polifonia em Buriti. Revista das
Faculdades Santa Cruz, v.8, n. 1, p.79-85, janeiro/ junho 2010. No referido artigo, Padilha discute não
apenas o caráter polifônico da estória, os múltiplos focos narrativos, mas também os muitos flashbacks,
o que pede uma maior atenção do leitor.
76
O uso da linguagem não se faz suficiente para livrar Miguel dos seus medos. Ele
tinha a consciência de que não deveria calar, como sempre fizera na infância, já que
poderia demonstrar para Glória o medo que deveras sentia diante do sentimento
amoroso que nutria pela jovem. Por outro lado, mais uma vez ele cai nas armadilhas
do medo, principalmente diante da sinceridade de Glória e, por isso, profere a palavra,
mas mente, ao afirmar que não gosta de ninguém. Como afirma Mira y López (2012),
a mentira é uma das camuflagens do medo. Certamente, Miguel se sente ameaçado
pela coragem de Glória, pois como podemos ver ela era seu oposto, era destemida.
Mente e se arrepende, mas não tem coragem de desfazer o próprio erro. Se na
infância ele se apegara a um universo mítico e religioso para evitar determinadas
situações, já não mais se observa esse aspecto em sua vida adulta. A religiosidade é
substituída pelas artimanhas da mentira.
Os castigos frequentes na infância deixaram marcas tão profundas em Miguel
que o mantiveram preso ao medo de errar. Não é à toa que, vacinando o gado e
observado com satisfação por nhô Gualberto, Miguel procurava trabalhar atento, pois
“[...] guardava temor de estar ocioso e de errar. Um horror de que se errasse, de que
ainda existisse o erro.” (ROSA, 2016c, p.110)25. Para Miguel era inadmissível a
possibilidade do erro. O zelo com que fazia as coisas é o que também não o permite
se declarar para Glorinha, pois tinha medo de não ser o certo a fazer. Para ele, aquela
poderia não ser a mais assertiva das escolhas, por isso, preferia esperar.
25
Tal pensamento também o aproxima de Riobaldo de Grande sertão: veredas, do mesmo modo que
sobrepõe Miguilim a Riobaldo, como já comentado neste estudo.
78
Por vezes, Miguel foge às perguntas de Maria da Glória, ao ponto de ela dizer
que ele pensa demais, provavelmente como se a afirmar que ele era mesmo um
homem de pouca atitude. Quando ela lhe pergunta se ele tem irmãos, Miguel fala
apenas de Dito: “‘... Até hoje, não posso demorar o pensamento nele. Tenho medo de
sofrer. Você acha que sou fraco?’ – ‘Acho não. Por quê? Fraqueza não é ter
sentimento.’” (ROSA, 2016c, p.101). É então que notamos que Miguel ainda não
conseguiu vencer sozinho os medos, ao ponto de confundir a saudade deixada pela
ausência do irmão, com a fraqueza. Podemos observar que o modo com que Miguel
estabelece a pergunta “Acha que sou fraco?” e a dirige a Glória, nos lembra a forma
como se dirigia ao irmão Dito. Não diferente, Dito expressava a firmeza e coragem
presentes em Glória.
Apesar de encontrarmos semelhanças entre a altivez de Glorinha e a de Dito,
Miguel chegou a confessar que ela era uma mulher diferente, que não o fazia lembrar
ninguém. Ele admirava a beleza da jovem:
também o deixava assustado. Compreendia que poderia gostar dela, “mas sofria por
indecisão, por um adiamento.” (ROSA, 2016c, p.124) e, por isso, preferiu o silêncio.
De acordo com o narrador “[...] Era preciso um impulso de coragem, para Miguel
levar os olhos a Maria da Glória, podia ser que ela descobrisse imediatamente tudo o
que ele sentia, e dele zombasse, desamparando-o.” (ROSA, 2016c, p.42). Essa
declaração nos mostra o quão díspares eram Miguel e Glória. Enquanto ele se
escondia em sua timidez, ela esbanjava confiança, era destemida. Segundo
Aristóteles (2005), a confiança é justamente o inverso do medo e, as pessoas
confiantes são, pois, movidas pela esperança de salvação dos perigos. As ameaças,
por sua vez, estão distantes no tempo para os confiantes. Sendo assim, não há motivo
para temer, visto que há tempo para encontrar o socorro dos males distantes ou o
caminho que liberta daquilo que pode provocar medo.
Quando Miguel retorna para a cidade também leva consigo as lembranças de
Glorinha e a vontade de se declarar para ela, algo de que não teve coragem, porque
em sua concepção “O amor não precisava ser dito” (ROSA, 2016c, p.152), mas
sentido. Miguel:
[...] carecia de pensar o nome dela: Glória. Daí tinha receio. Temesse? Maria
da Glória ainda não aprendera a sabedoria de recear, ela precisava de viver
teimosamente. [...] A pedra é roída, desgastada, depois refeita. O Dito,
irmãozinho de Miguel, tão menino morto, entendia os cálculos da vida, sem
precisar de procura. Por isso morrera? Viver tinha de ser um seguimento
muito confuso. Quando Miguel temia, seu medo da vida era o medo da
repetição. (ROSA, 2016c, p.124)
Não era pensar em Glória que ele queria, mas apenas no nome Glória, e isso já
lhe causava temor. Era como se ela fosse alguém a quem ele não se considerasse
merecedor ou, como em trocadilho, ter Glória seria para ele uma glória, algo que ele
poderia conseguir por intermédio de virtudes que, provavelmente, acreditasse não
possuir. Essa, talvez, fosse a maior causa dos seus temores em relação à jovem: ela
era o seu oposto. Portanto, se sentia inferior.
Notamos que o narrador indaga o temor de Miguel, mas a resposta se volta
primeiro para Maria da Glória, em um processo de comparação, e no sentido de que
ela não sabia o que era temer. Para o narrador, ao contrário de Miguel, Glória
precisaria teimar muito ainda, assim como acontecera com a criança Miguilim.
Somente assim, Glória poderia compreender os medos entranhados em Miguel.
Nesse sentido, o narrador se refere aos estragos provocados pelos possíveis erros de
Miguilim e aos consequentes castigos recebidos (as perdas sofridas) e modeladores
80
de Miguel. O narrador vai além e o compara com a pedra desgastada, que ao ser
refeita, tem sua composição alterada. Assim, a pedra já não dispõe da mesma
robustez de antes, ela passa a ser outra, apesar de manter os elementos de sua
composição. Miguel já não era como Miguilim, mas como teve sua base abalada pelos
castigos e experiências nostálgicas, não mais queria vivenciá-los. Aqui, “É possível,
então, compreendermos, pela eclosão de imagens memorialísticas das personagens,
suas atitudes e emoções em meio às circunstâncias de medo e de dúvida quanto ao
presente e ao futuro” (SANTOS, 2018, p.82). Logo, são justamente a experiência e as
recordações que o fazem temer a possibilidade de que as coisas, os erros, tornem a
aparecer em sua vida – perdas, também. Então, podemos dizer que Miguel temeu o
futuro em virtude do passado e, por isso, paralisou diante da amada naquele dado
momento.
Na tentativa de escapar de uma conversa sobre a infância no Mutúm, Miguel
promete a Glória o retorno ao Buriti Bom. Antes de ir embora do Buriti, o jovem chega
a se questionar se conseguiria viver sem Glória, a quem ele chama de alegria. Mais
uma vez notamos determinada aproximação entre Dito e Glória. Dito, como já
comentamos, esbanjava sabedoria e felicidade, tanto que as últimas palavras
proferidas ao irmão foram as de que “a gente pode ficar sempre alegre, alegre”
(ROSA, 2016a, p.96). E, como vimos, é em Gloria que Miguel encontra a alegria: “A
alegria de Maria da Glória me atraía e me assustava.” (ROSA, 2016c, p.138), “Às
vezes, Maria da Glória, era como uma felicidade já possuída” (ROSA, 2016c, p.146),
tanto que ele chega a se questionar: “[...] Posso viver longe da alegria?” (ROSA,
2016c, p.148). É em Glória que Miguel encontra o sentido para a último ensinamento
do irmão. Mas, é por intermédio dela que Miguel também relembra o passado e teme
os dessabores que a vida pode proporcionar (perdas).
Por um ano ele conseguiu viver sem Glória. Mas as atitudes da jovem e as
lembranças dos poucos instantes vividos ao lado dela o marcaram ao ponto de
fazerem com que ele ganhasse coragem, não só para o retorno como para
experimentar a felicidade. Porém, nesse momento da narrativa notamos o que
podemos considerar como uma troca de posicionamento entre Glória e Miguel: ela
passa a sentir medo, ele a ter coragem.
Quando Miguel partiu, Glória manteve a esperança de que ele voltaria em breve
ao Buriti e se casaria com ela. Segundo o narrador, a jovem estava por volta dos seus
81
vinte e sete anos e queria se casar, queria saber como era ser mulher e manter uma
vida sexualmente ativa.
Após quase um ano de espera por Miguel, Glória perdeu a esperança de que ele
regressasse. Decidida a conhecer os prazeres da carne, ardilosa, Glorinha escolhe
nhô Gualberto, já que ele era infértil. Apenas após alguns encontros com Gual,
Glorinha resolve contar para a cunhada, Lala, o que havia acontecido entre ela e Gual.
Quando revelou seus segredos, Glória tinha em si a firmeza de sempre, mas à
proporção que Lala a questionava por ter se deixado levar por aquele homem “Um
alarve, um parvo...”, (ROSA, 2016c, p.245) ela começava a apresentar ares de
preocupação:
– “Que me importa?! Eu não quero casar. Sei que Miguel não vai vir mais...
Antes, então, o Gual, pronto à mão, que é amigo nosso, quase pessoa de
casa...” Mas Glorinha empalidecera sem afogo, sentou-se na cama.
Sob a voz da outra, ela se enfraquecia em sua segurança. Silenciava. (ROSA,
2016c, p.245)
ao longo da sua vida – já que ela o conduziu por trajetos antes inimagináveis,
transformando o menino em um homem estudado e diferente dos pais, irmãos e
amigos que permaneceram no Mutúm – agora, também, sua vida seria refeita,
reiniciada, sem que o passado de sofrimentos, inconstâncias e medos pudesse
assumir as rédeas e responsabilidades do porvir.
Dessa forma, o combate ao medo vem, não pela coragem de Miguel, tendo em
vista que se conhecia timorato, mas pela confiança que ele inventa para si tendo como
alicerce a coragem que tanto vira e admirara em Glorinha. O período afastado de
Glória, os pensamentos voltados para a saudade e o modo como a jovem agia tornou-
se um desafio para Miguel, que a via como seu reverso e como a oportunidade de
vencer seus temores.
Acostumado a ser posto no lugar do fraco quando criança, principalmente em
virtude dos medos que o perseguiam, Miguel parece já não mais aceitar ocupar o
mesmo lugar de antes, preso às culpas, aos castigos divinos e humanos. E é
exatamente a partir do temor que surgiu em Miguel a esperança de, provavelmente,
ser um pouco como Glória, do mesmo modo em que, um dia, se espelhou em Dito, na
forma como o irmão via e encarava os desafios diários. Assim, se viveu em um país
de medos e tristezas, agora lhe resta seguir o conselho do irmão Dito, ou seja, ser
feliz. E, nesse caso, a felicidade de Miguel se encontra na superação dos medos que
estiveram em seu encalço por toda uma vida.
83
Posto isso, não seria difícil encontrarmos tais representações inseridas, também,
nos textos literários, a exemplo de Guimarães Rosa. Assim, grande parcela de suas
tessituras apresenta indivíduos em processo de envelhecimento ou envelhecidos,
inseridos em determinadas comunidades, cercados por uma diversidade de outros
personagens, e que traduzem tanto os hábitos ditos tradicionais, quanto os costumes
decorrentes da modernidade.
Alguns personagens rosianos se mostram capazes de desvendar os enigmas da
vida humana e, por isso, são indivíduos que denotam respeito. A esse exemplo tem-
se Joaquim Norberto, narrador de “Luas-de-mel”, de Primeiras estórias. Joaquim
conta a história de um casal de jovens amantes fugitivos, que ele e sua esposa, Sa-
Maria Andreza, abrigaram em sua casa a pedido do amigo Seo Seotaziano. Na
maturidade da vida, o narrador acaba por relembrar e analisar tempos outros por ele
vivenciados, a própria juventude: “Se me se diz, nem pensei: os namoros dessas
gentes, são minhas outras mocidades” (ROSA, 2005c, p.148), revista agora como um
resumo de suas memórias e do próprio estado de alma, que se faz capaz de refletir
sobre o amor, sobre os sonhos, sobre a vida: “A gente, agora: sair das desilusões, o
entrar em idade” (ROSA, 2005c, p.148). A propósito dessa vida, já mais vivida, temos
o exemplo também do narrador Riobaldo de Grande sertão: veredas. A estória é
26
Cf. CONCONE, Maria Helena Villas Bôas. “Medo de envelhecer ou de parecer?”. No referido artigo,
a antropóloga fala que envelhecer é algo não só de caráter biológico, mas também sociocultural, ao
passo que as modificações do corpo é que estão sujeitas as ações culturais que as nomeiam: “Assim,
tal como a noção de corpo (que, como se viu, é referência importante na nossa percepção de velho), a
noção de envelhecimento também goza de uma dupla natureza: biológica e sociocultural”. (2007, p.31).
86
contada pelo narrador já idoso, relembrando sua vida, seus feitos, os amores e o
próprio medo imposto ou sentido por ele.
Já em outras narrativas do mesmo autor, encontramos sujeitos idosos opostos
aos respeitosos contadores de estória supracitados. São, pois, sujeitos
marginalizados, sem voz, postos ao esquecimento, como ocorre com a velha Mãitina,
preta velha, vista como feiticeira em “Campo Geral” e com o “Homem velho, quieto e
sem falar, [...], na realidade, o pai da Moça.” (ROSA, 2005b, p.95), figura que concorda
com todos e, angustiadamente, cala, em “Nenhum, nenhuma”, de Primeiras estórias.
Neste capítulo procuraremos analisar como os narradores de “A benfazeja” e
“Os chapéus transeuntes” nos apresentam o meio em que estão inseridos os idosos
de ambas as narrativas. Desse modo, tomaremos como ponto de partida algumas
questões, semelhantes às aplicadas à análise anterior, tais como: Como são
apresentadas as personagens idosas, elas são temerosas ou incitadoras do medo?
Os idosos são personagens que reafirmam suas posições sociais ou as abstrai? E,
existe medo nesse processo? Tais personagens têm voz? Essas perguntas, além de
outras que surgirão ao longo desta escrita, fazem-se importantes visto que nortearão
o processo de análise da inserção do medo na vida do idoso e suas implicações, tanto
no processo de elaboração da própria narrativa quanto na composição da história
daquele dado indivíduo.
27
Cf. Michaelis: dicionário da língua portuguesa. Disponível em:
https://michaelis.uol.com.br/busca?id=km0 . 1 adj. Que se abominou. 2 Que é detestado; execrado,
repudiado. Etimologia part. de abominar. No Dicionário etimológico da língua portuguesa.
Abominação: sf. ‘ação ou efeito de abominar, repulsão’. Do latim abōminātĭō -ōnis. de ab-, “renúncia,
privação, negação, separação, afastamento no tempo e no espaço”, mais omen-, “ameaça, predição”.
91
alguém. Dela eis que aparece o ódio. Na maioria das vezes, isso ocorre porque
enxergamos no outro as nossas próprias fraquezas ou porque temos medo da ameaça
que o outro pode representar diante daquilo que consideramos nosso – seja o modo
de pensar, agir, falar, viver etc. Partindo desse princípio, podemos então dizer que a
comunidade enxergava a Mula-Marmela como uma ameaça. Ela feria a ordem
instituída socialmente, posto que velha, feia, pedinte, em meio a uma comunidade
organizada, que não queria ver semelhante situação pelas ruas da cidade. Sua
imagem deixa explicita a desigualdade social, é o reflexo de uma sociedade
desumana, mas que queria se mostrar harmônica. Por isso, a presença de Mula-
Marmela gerava certo mal-estar.
O medo, atrelado ao ódio, agora fazem-se evidentes nas palavras da
comunidade, colocadas em dúvida pelo narrador. Logo, a comunidade aparenta
buscar uma saída que a liberte daquele sentimento por Mula-Marmela e encontra
como via de escape o desprezo. Não à toa, as palavras ditas sobre a protagonista
eram do tipo que a ridicularizavam e mesmo a anulavam.
Entre a versão do narrador e a versão da comunidade, o fluxo da estória não
segue uma ordem cronológica dos eventos a respeito da Mula-Marmela, artimanha do
narrador, que nos permite observar os fatos pelo seu ponto de vista e pelo da
população. A narrativa inicia-se com uma advertência do narrador, a de que “Vive-se
perto demais, num lugarejo, às sombras frouxas, a gente se afaz ao devagar das
pessoas.” (ROSA, 2005a, p.161). É, pois, o próprio narrador quem evoca a presença
daquela velha mulher “a Mula-Marmela” como vizinha de todos ali. Ele chama a
atenção para o fato de que a velha jamais fora cuidadosamente observada. Destarte,
torna-se evidente que sua pretensão era apresentar uma nova versão da protagonista
que não fosse a mesma da comunidade que a cercava.
Na visão da comunidade, Mula-Marmela lembrava uma benzedeira ou a bruxa
velha. Em seu imaginário, por certo, a feição e o jeito de Mula-Marmela remetiam
também à figura da malfeitora, furibunda e sorrateira – o que contraria a versão do
narrador, que a tomava como benfeitora. Logo, Marmela revela-se ambivalente. Ela
provoca ódio e medo nas pessoas e, ao mesmo tempo, se sente acuada, com medo
da comunidade.
O narrador se impõe e não aceita o fato de a comunidade, que se julgava
perfeita e exemplar, não ser exata nos julgamentos relacionados à Mula-Marmela,
posto que a dizia assassina, mesmo sem provas concretas. Na concepção do
92
28
Mais uma vez recorremos a José Lemos Monteiro, para auxiliar-nos na análise fonoestilística.
93
protagonista é posta em evidência pelo narrador, por intermédio dos grupos nominais
que a própria comunidade atribuía à figura da Mula-Marmela.
Em determinadas passagens, a indiferença social é ressaltada no uso de “a
mulher” ou “ela”, por exemplo, em substituição ao nome próprio da personagem –
vemos, pois, a primeira manifestação de aversão advinda das pessoas daquele
lugarejo para com a Mula-Marmela. Já em outras, essas substituições também
denotam o medo que sentem da protagonista, pois expressam uma representação do
maligno, é: “A mulher – a malandraja, a malacafar, suja de si, misericordiada, tão em
velha e feia, feita tonta, no crime não arrependida – e guia de um cego.” (ROSA,
2005a, p.161). Os adjetivos, em maior parte substantivados, carregam consigo o sinal
da feiura, da miséria e toda uma representação do deplorável, do mal. A inserção das
palavras mal e miséria nessas adjetivações reforçam o modo como a viam e enfatizam
não só o preconceito, como o medo das pessoas.
Ana Maria Machado (2013), em o “Recado do nome”, explica a importância do
nome, seja ele próprio ou não, nas narrativas de Rosa. Segundo a referida autora “[...]
quase invariavelmente os protagonistas têm diversos Nomes, que se somam, se
trocam, se substituem, se cruzam e se completam, criando uma faixa inteira de
significação, onde é possível garimpar em cada caso.” (MACHADO, 2013, p.38). Logo,
não seria diferente com a Mula-Marmela, que em cada parte da narrativa recebe uma
variedade de apelidos que são apropriados àqueles elementos que a comunidade
quer destacar em sua pessoa.
Mula-Marmela é, pois, inominada para a comunidade: “Soubessem-lhe ao
menos o nome. Não; pergunto, e ninguém o intéira” (ROSA, 2005a, p.161). A ausência
do nome próprio, a falta de interesse em sabê-lo, somada ao feito de preferirem
apelidá-la com nomes que a aproximam do diabólico, tiram da velha a aproximação à
cristandade, a possibilidade de ser essa pessoa um tipo benevolente.
Na cultura cristã o nome é fundamental, pois é por seu intermédio que se é
purificado e consagrado no ritual do batismo. Ao não chamar Mula-Marmela por um
nome próprio, a comunidade manifesta uma condenação ou modo de impossibilitar
Mula-Marmela livrar-se dos pecados – pecados que a própria comunidade à atribuiu.
Além disso, enquanto “ensalmeira”, “malacafar” ou “loba”, a representatividade de
Mula-Marmela se aproxima do diabólico e se afasta de qualquer princípio de bondade
difundido pelo cristianismo e responsável pela salvação ou libertação do indivíduo das
95
amarras do mal. Logo, a comunidade encontra nos apelidos mais um meio de reforçar
o caráter maléfico que viam na velha e de justificar ódio e temor por ela.
Alguns estudos, como de Passarelli (2003), evidenciam que Mula-Marmela fora
excluída da vida em sociedade devido a seus caracteres físicos. E, apelidada
maleficamente, expulsaram-na também de uma vivência espiritual. A alcunha Mula-
Marmela:
porém a ideia de que ela fizera o bem, fica subentendida em seu narrar. Na concepção
do narrador, seria aquela mulher a Benfazeja, posto que se matou o perverso marido,
ajudou a comunidade a livrar-se do mal, agiu com benevolência e assim deveria ser
reconhecida.
lo. Retrupé tinha “um mando de alma, qualidade de poder” (ROSA, 2005a, p.162) que
não se via em Mula-Marmela. Não era à toa que o respeitavam. Assim, se se temia
ao Retrupé era em decorrência do poder de violência que, explicitamente, o cego
carregava consigo. No entanto, era por Marmela que nutriam uma aversão, por sua
vez já manifesta no próprio ato de contarem ao narrador fatos passados da vida
daquela mulher.
O narrador ainda põe em pauta o desejo criado por aquelas pessoas de que,
com a morte de Mumbungo, “ela também se fosse, desaparecesse no não” (ROSA,
2005a, p.166). Há nessa passagem uma explícita negação da sociedade em relação
à presença da protagonista no lugarejo. Não só a queriam longe, como desejavam
jamais tornarem a vê-la. Porém, Mula-Marmela permaneceu perambulando pela
cidade, acompanhando e cuidando de Retrupé. Restou às pessoas daquele lugar
execrar a existência de ambos. Afinal, Retrupé carregava sempre um facão e a sina
de ser “o filho tal-pai-tal; o cão.” (ROSA, 2005a, p.164).
A impossibilidade de livrarem-se de Mula-Marmela e Retrupé, perante o medo
que sentiam de Retrupé, contribuiu com o ódio por Marmela. Mas, como já sinalizava
Mira y López (2012), a respeito do ódio, e fora reafirmado por Zygmunt Bauman (2016)
décadas depois, as raízes desse sentimento foram antes fixadas no medo e o cerne
do ódio está em se alimentar do medo. Sendo assim, se em “A benfazeja”, Mula-
Marmela é odiada pelos que estão ao seu entorno, podemos dizer que também a
temiam, mas não sabiam. A prova disso encontra-se nas principais saídas do ódio: o
desprezo e a vingança29, recursos utilizados pela comunidade quando apelida
negativamente e, em seguida, malda Mula-Marmela – ao relatar para terceiros o que
não se tinha certeza.
O narrador sinaliza que não faz sentido as pessoas temerem o cego Retrupé e
odiarem Mula-Marmela, visto que, ele sim era violento. Eis que o narrador justifica seu
modo de pensar por intermédio de um paradoxo, uma vez que o sujeito temido pela
sociedade, o que carregava consigo um facão e tinha “cara de matador de gente”
(ROSA, 2005a, p.163), também experimentava o medo:
29Emílio Mira y Lopez, em Quatro gigantes da alma humana: o medo, o amor, a ira, o dever. p.92 -
119, comenta que as principais vias de escape da ira e do ódio são o desprezo e a vingança.
98
barbante, na cintura. Sei que ele, leve, breve, se sacudira. Desciam a rua,
dobraram o beco, acompanharam-se por lá, os dois, em sobrossoso séquito.
Rezam-se ódio. Lé e cré, pelas ora voltas, que qual, que tal, loba e cão.
Como era que ficavam nesse acordo de incomunhão, malquerente, parando
entre eles um frio figadal? O cego Retrupé era filho do finado marido dela, o
“Mumbungo”, que a Mula-Marmela assassinara. (ROSA, 2005a, p.162-163)
Como poderia ele, o violento, o que impunha poder pela “voz de cão, superlativa”
temer uma anciã que mal falava? Saberia ele que a velha assassinara Mumbungo,
seu pai, como afirmara a sociedade? Eram, pois, iguais? Disso, não se tem certeza,
mas se pode afirmar que diante da hostilidade social, o cego Retrupé encontrava em
Mula-Marmela uma proteção, algo que era recíproco. Nem por isso essas
personagens se igualam, no máximo se assemelham no fato de serem hostilizados
pela comunidade, odiarem-se e de dependerem um do outro para sobreviverem.
Na transcrição acima, ela o guia como faz um pastor, e ele a segue “Lé e cré” 30:
Este tal qual o leigo, desconhecedor do mundo que não via; aquela, conhecedora dos
caminhos, a que deveria ser ouvida e seguida. Assim sendo, mantinham-se ambos.
Mula-Marmela mal falava: “[...] dava-lhe, apenas, um silêncio, terrível. E ele cumpria,
tinha a marca da coleira.” (ROSA, 2005a, p.163), sabia que precisava segui-la,
conhecia sua dependência. Nesse passo, o narrador ainda os compara a “loba e cão”.
Enquanto loba, carregava a duplicidade desse ser, logo se fazia ordeira,
independente, mas protetora – odiava e coibia as atitudes de Retrupé, mas o protegia;
ele, enquanto cão, se acostumava com o ambiente que lhe proporcionava cuidado e
fazia-se dependente, seguia ordens, como vemos na representação da coleira (guia)
por ele usada e assim, temia a madrasta.
Desde a morte de Mumbungo, quando Retrupé ainda enxergava, Marmela
passou a cuidar do enteado. Após a cegueira “cuida dele, guia-o, trata-o – como a um
mais infeliz, mais feroz, mais fraco. [...] Passou a cuidá-lo, na reobriga, sem buscar
sossego” (ROSA, 2005a, p.166). Ele tinha perdido o pai, explodia em revolta e era,
devido à cegueira, dependente do outro. Ao mesmo tempo, Marmela entendia que
sozinhos tinham mais chance de fenecerem diante daquela excludente sociedade.
Temerosa pela integridade de ambos, sente-se na (re)obriga de cuidar de Retrupé.
Em troca, ela ganha também proteção, pois a comunidade temia a violência do cego,
que era tolhida por Marmela, consequentemente, não os agrediria.
Notamos na passagem a ostensiva utilização dos fonemas [m], [d] e [t], que como
já dissemos neste estudo, são repetições que denotam ruídos ou rumores. Aqui,
funcionam como se o cego Retrupé passasse a agir de modo mais lamurioso. Com
efeito, o homem bravo e forte sofreu a ação do tempo e aparentava perder a força da
vida. A sua idade avançada supostamente intensificava os seus medos. Se
pensarmos que Mula-Marmela encontrava-se envelhecida ainda quando se tornou
cuidadora do cego, também chegaremos à conclusão que ela ficou mais debilitada em
decorrência do avanço da idade. Todavia, apesar de odiá-la, o cego só contava com
o apoio e a companhia daquela anciã e, sendo assim, talvez tenha imaginado tornar-
se mais dependente da madrasta ou ainda perder seu apoio.
100
31
Cf. PICKLER, Cristiane Dandolini. Depressão no gênero masculino. Revista Científica
Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 04, Ed. 08, Vol. 04, pp. 86-97. agosto de 2019. ISSN:
2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/depressao-no-
genero .
101
Movido pela angústia de não poder ser como antes e de, talvez, não contar com
o auxílio da Mula-Marmela, ele agora, aos prantos, pede-lhe algo de que não temos
conhecimento. Semelhante à criança que utiliza o choro como meio para conseguir o
que deseja, Retrupé consegue apenas compaixão da madrasta perante o estado em
que se encontra.
Em delírio, agora de febre, com o facão em punho, o cego revive a fúria de antes
e aparenta querer descarregá-la sobre Mula-Marmela. Como nos mostra Delumeau
(2009), a angústia pode ser gerada pela vivência de medos que se repetem ao longo
dos tempos. Ela tem a capacidade de se apresentar de modo mais simples, como
uma ansiedade ou como uma preocupação com o desconhecido futuro, mas também
pode atingir um nível intenso e provocar uma crise violenta, convulsiva. Com base em
tais pontuações, podemos dizer que o estado em que se encontrava o cego Retrupé
no desfecho da narrativa e, como vemos na transcrição acima, confirma uma intensa
crise de angústia.
O medo que acometeu Retrupé, descrito na passagem supracitada, assemelha
ser mais decorrente do processo delirante em que se encontrava o personagem, o
que não evidencia um real medo da figura de Marmela. A cena é descrita como se ela
o vigiasse, mas fora surpreendida pela alucinação do enteado, decorrente do estado
febril e do ódio que tinha. Do delírio vinha a fúria de Retrupé. Ciente disso, Mula-
Marmela aquieta-se, assustada, olhando para o nada. É possível ver que ela paralisou
diante da fúria do enteado, o que indica medo. Um medo que a ocultou em seu
aparente isolamento, medo semelhante ao apresentado por Carlos Drummond de
Andrade (2012) “o medo que, esteriliza os abraços”, que a impede de se aproximar
102
Sim, os dois, ficaram, até o anoitecer, e pela noite entrada, naquela solidão
próxima, numa beira de cerca. Alguém os acudiu? Diz-se que ele padeceu
uma dor terrivelmente, de demasiado castigo, e uma sufocação medonha de
ar, conforme nem por uma esperança ainda nem não agoniava. Só
estrebuchava. Não viram, na madrugada, quando ele lançou o último mau
suspiro. Sim, mas o que vocês crêem saber, isto, seriamente afirmam: que
ela, a Mula-Marmela, no decorrer das trevas, foi quem esganou
estranguladamente o pobre-diabo, que parou de se sofrer, pelos pescoços;
no cujo, no corpo defunto, após, se viram marcas de suas unhas e dedos,
craváveis. Só não a acusaram e prenderam, porque maior era o alívio de a
ver partir, para nunca, daí que, silenciosa toda, como era sempre, no
cemitério, acompanhou o cego Retrupé às consolações. (ROSA, 2005a,
p.169)
A solidão, que lhes era “próxima”, realça a repulsa da sociedade. Nada mais
assustador que se sentirem largados como bichos, à “beira de uma cerca” e a espera
da morte, enquanto são hostilizados pelas pessoas que preferiam vê-los de longe.
O narrador, como constatamos na passagem, alerta para dois temas opostos: o
amor e a injustiça. O primeiro diz respeito à velha que, considerada perversa, acolheu
e cuidou do cruel filho, que não era seu, mesmo odiando e temendo os atos violentos
que ele tinha. Já a injustiça está exatamente na ausência de amor da comunidade
103
moralizadora, na cegueira que aparentava ter diante do bem que lhes fizera Mula-
Marmela “de modo que enxergar é também uma faculdade mental, porque requer
compreensão, discernimento da realidade vista” (ANDRADE, M., 2003, p.458). Mais
uma vez, acusaram-na, friamente, de matar o cego Retrupé, sem ao menos
presenciarem sua morte. Basearam-se apenas em marcas que surgiram no cadáver,
se é que verdadeiramente as viram, posto que permaneceram distantes. Reparamos
aqui que, o supracitado trecho da narrativa serve como irônico meio de revelar aos
contadores do vilarejo sobre o erro que cometiam ao acusarem Mula-Marmela de
atroz.
Assim, o desfecho da estória se refere ao que o narrador ouviu dizer sobre a
morte do cego Retrupé, uma versão que elabora a possibilidade de mais um crime
cometido pela velha mulher. Como ninguém presenciou os verdadeiros fatos, nem se
tem acesso ao que poderia contar a própria Mula-Marmela, o narrador põe-se diante
apenas dos relatos. De modo mais enfático, ele aproveita e censura a sociedade que
ignorou e julgou a velha Marmela. Logo, o narrador se isenta de qualquer culpa ou
julgamento, no que se refere à Mula-Marmela:
32
Em determinadas línguas “O gênero gramatical da palavra morte decidia o sexo da personificação:
entre os povos romanos, feminino; entre os germânicos, masculino.” (LURKER, 2003, p.455). Na língua
portuguesa, por exemplo, o substantivo morte é feminino e sua representação por vezes se dá pela
imagem feminina. E, considerando a morte independente do gênero, ela se revela uma sombra,
esquelética, rápida, cruel, amarga. A um só tempo, faz-se ambígua, posto que pode conduz aos
mundos secretos dos Infernos ou dos Paraísos.
33 Jean Delumeau, em A história do medo no ocidente, especificamente no capítulo 10, fala sobre a
mulher, vista na Idade Média, como um dos agentes de satã. Como tal, as mulheres passaram a ser
temidas pelos homens e pela Igreja. Tal medo se alastra e culmina com uma caça às bruxas entre os
séculos dezesseis e dezoito.
105
Até então, Mula-Marmela era vista tal qual bruxa ou loba, a representação
maléfica que a sociedade odiava e temia. No final, percebemos que o narrador deixa
entrever a acusação de que a comunidade se regia pela maldade, posto que nunca
compreendera Mula-Marmela e continuara incriminando-a sem provas.
Então, se a narrativa começou com uma versão sobre a Mula-Marmela, definida
pela comunidade, mas que foi sendo desfeita pelo narrador ao longo do seu contar,
no desfecho há uma defesa, uma versão positiva da velha, feita pelo narrador. Mesmo
sendo uma cena presenciada por todos, fica em suspenso o motivo de Mula-Marmela
ter carregado o cadáver do cachorro consigo. Observamos que, assim, o narrador se
coloca em posição ética, posto que preferiu não afirmar aquilo de que não tinha
certeza. Ele não podia afirmar que Marmela carregou o cachorro com o intuito de
limpar a rua; ou que teve pena daquele ser morto, largado ao léu, e iria enterrá-lo; ou
que se sentiu só e queria alguma companhia. Fazendo isso, o narrador mais uma vez
censura a comunidade que contou o que não viu e, a um só tempo, acaba por defender
Mula-Marmela.
Hostilizada e com medo daquela sociedade, Mula-Marmela é, pois, destinada
a vagar sozinha até a morte. Mas, leva consigo um cachorro morto – tal qual loba,
acompanhante e guia de cão que sempre fora.
Diante do que nos apresenta o narrador no percurso dessa estória, a
personagem de Mula-Marmela é vista como um tipo social sujeito ao que representava
sua imagem. Os traços advindos da idade – o porte físico, as rugas e o andar curvo,
por exemplo –, singularizavam-na diante de uma sociedade que a repudiava.
Odiada e, desse modo, temida, Mula-Marmela vivia como a se esconder. Tinha
conhecimento de que era odiada, apesar da narrativa não evidenciar ser sua intenção
provocar o ódio. Pelas ruas, no cuidado com Retrupé, Mula-Marmela parecia se
colocar em um lugar no qual fosse oculta, ao ponto de viver “submersa, mesmo
quando ao claro, na rua” (Rosa, 2005a, p.161), quase sumida, sem sombra, já que as
“sombras carecem de qualquer conta e relevo”, e a dela quase nem se via. O
106
A estória “Os chapéus transeuntes” é uma das nove que compõem a obra
póstuma Estas estórias de Guimarães Rosa, publicada em 1969. Porém, faz parte de
uma lista de quatro narrativas revistas pelo autor, ainda publicadas antes do seu
falecimento. Paulo Rónai, na nota introdutória da publicação de 1968, de Estas
estórias, comenta que “Os chapéus transeuntes” foi publicado pela primeira vez em
1964, como uma das narrativas que integram o volume Os sete pecados capitais, da
Editora Civilização Brasileira. No respectivo volume, ilustrava o pecado da soberba34.
Em “Os chapéus transeuntes” nos deparamos com um velho rico, soberbo e
arrogante, o Vovô Barão. Chama-nos a atenção a figura do senhor que é respeitado
34Nos Cadernos de Literatura Brasileira (2006, p.45), consta que “Os chapéus transeuntes” fora
encomendado pelo editor Ênio Silveira, para ser uma das sete narrativas sobre os pecados capitais,
publicadas em 1964, sendo que essa estória faria menção à soberba. Outros escritores falariam sobre
os demais pecados: Otto Lara Resende (avareza), Carlos Heitor Cony (luxúria), Mário Donato (ira),
Guilherme Figueiredo (gula), José Condé (inveja) e Lygia Fagundes Telles (preguiça).
107
por impor sua condição social, seu modo de ser e pensar sobre as outras pessoas e,
se assim faz, é porque utiliza o medo como instrumento de instituição da autoridade e
desdenha.
Seu neto, o narrador, aos poucos deixa emergir a figura de um Vovô Barão que
se faz timorato, principalmente quando esbarra na pessoa da esposa Vovó Olegária
que segue seus mandos, mas com ironia acaba afrontando-o.
Neste estudo, mantemos nosso interesse de investigar o medo que circunda o
idoso. Diferente de “A benfazeja”, em que os personagens idosos eram
marginalizados, analisaremos aqui um idoso de posses, o Vovô Barão, que vive nas
abas do medo que provoca e sente. Nosso objetivo é o de procurar compreender se
há diferenças entre os medos que concernem a esse personagem, se comparado aos
do cego Retrupé e da Mula-Marmela e à posição social que ocupavam. Nessa
perspectiva, procederemos da seguinte maneira: primeiro, procuraremos fazer um
esboço da estória. Em seguida, estudaremos como o medo se faz implantar entre as
personagens que circundam o Vovô Barão e se suas posições sociais influenciam no
modo de atuação do medo. Por fim, analisaremos se o Vovô Barão é um homem
suscetível a temores.
35Transcrição igual à do texto original. Porém, o trecho aparece como uma epigrama, registrada em
caixa alta, nesse caso, com representação um tanto satírica.
36 Aparentemente, essa é uma variante de Kuimbundo, uma das línguas bantas mais faladas em
Angola.
109
palavras, o que confirma em seguida, ao dizer “Que o mais, normal também, decorre
do espírito-falso da gente” (ROSA, 2015c, p. 58). Dessa forma, o neto apenas confirma
a ausência de sentimento ou apreço em relação à figura do Vovô Barão, pessoa que
soubera apenas humilhar e afastar aqueles que poderiam amá-lo.
É o neto quem, mesmo falando sobre os medos impostos pelo avô, também
percebe a fragilidade daquele velho, principalmente diante da incapacitante e iminente
morte. Ali, no leito de morte, aquele que sempre se impunha sobre os demais não
passava de mero corpo à espera da partida. Se fora austero, agora não era mais que
um velho “forte como um ferro jogado fora” (ROSA, 2015c, p.70), alguém sem mais
nenhuma importância. Na ocasião, sob a vigília dos familiares, o único e aparente
sentimento em relação ao velho era vingança. A morte era, pois, a executora, apenas
ela seria capaz de vingar tantos anos de submissão e medo.
Sem vil impaciência nem afoiteza por testamento & herança, antes a
contragosto, era que nos apressávamos de vir, de trem uns, de automóvel
outros, à velha cidade na montanha, onde por seu tácito turno se preparava
para falecer, na metade de cá do casarão e solar, da linhagem, na Praça da
Igreja, nosso teso, obfirmado e assombroso Vovô Barão, o muito chefe da
família. O que contradizia com tudo. Vínhamos, pois, não pro nobis, mas por
respeitos temporais. Vão ver. Aquilo aliás, preenchia uma lacuna. [...]
Pois sempre se tivera ausente o Vovô Barão, qual solitário intacto e
irremissivo, ainda que de si dando o que falar: como é destino das torres
sobressair, e dos arrotos. Supremo no arrogar-se sua primazia, ferrenho em
base e hastes, só aceitava, mesmo a nossa presença – de nós, os parentes,
os decendentes, digo – quando com solenidade ou chalaça. Aproximar-se
dele era a calamidade sem causa. Apenas, tinha uma netinha, linda como os
meus amores; mas não se via inscrito em sua grimaça ou carranca, esse
dislate melodioso da hereditariedade. [...] A poesia caíra dele, para sempre,
como o coto do seu umbigo dessecado. Era um homem pronominal. Fazia
questão de história e espaço. (ROSA, 2015c, p.57-58)
sim mero respeito ao “assombroso Vovô Barão, o muito chefe de família” que ia
morrer. Em outras palavras, o ambiente que envolve o Vovô Barão e família, mais
parece construído por laços de opressão e medo que por qualquer outro fio de união
familiar. Vovô Barão impõe suas vontades sobre qualquer coisa, ao ponto de ter
mesmo afastado a própria família que, agora, via na morte do velho a oportunidade
de romper em definitivo com seus tantos mandos e desmandos, com tamanha
individualidade.
A descrição que o neto faz, mesmo que em alguns momentos em tom zombeteiro
– como quando faz menção ao dar o que falar tal qual torres e arrotos –, revela um
velho que mantem-se preso à altivez e vontade de ser exatamente daquele jeito, posto
que um “homem pronominal”. Enquanto tal, na vida do Vovô Barão o que mais
importava não eram suas ações, mas o sujeito que as praticava, ou seja, ele mesmo,
em toda sua soberba, em sua arrogância de primogênito Barão, o sujeito pronominal
“Eu”. O próprio velho intitulara-se assim, sem ao menos ter o direito legítimo a tal
honraria. Ele apenas impunha as coisas e todos aceitavam, respeitavam.
Vovô Barão era um sujeito sem beleza, sem encanto, não expressava emoção,
preocupava-se apenas consigo mesmo, era um ser sem poesia, como resume o neto.
Notamos que seus caracteres, suas caretas, o aspecto mal humorado, tal qual
carranca, reafirmam certo controle, imposto aos demais. Ele sabia que pelo temor a
sua aparente identidade, a pessoa social do Barão, conseguiria o que desejasse.
Outras personagens de Guimarães Rosa, como por exemplo o jagunço Riobaldo
de Grande sertão: veredas, também utilizaram o medo que podiam provocar em
outros como instrumento de manutenção de poder. Cardoso (2006) mostra que por
várias vezes Riobaldo apela ao medo para impor poder sobre o outro. A exemplo
disso, vemos na passagem em que Riobaldo faz-se conhecedor do medo sentido pelo
chefe Zé Bebelo e utiliza o medo como mecanismo de intimidação do chefe – Riobaldo
desejava aquele posto, por isso, expunha o medo do outro, assim o humilhava perante
os demais jagunços. Consequentemente, adquiria mais poder diante do bando de Zé
Bebelo.
O mesmo pode ser observado em Vovô Barão, posto que provocava medo
mediante o poder financeiro que era advindo dos seus antecedentes, de quem herdou.
Vovô era bisneto do genearca da família, o Serapião Pereira de Andrade, Ministro do
Imperador. O título de Barão, a que ele mesmo se dera, era nada mais que outra
imposição social e hierárquica sobre os demais. Em sua altivez, também escolheu
111
As pessoas que povoam o universo de Vovô Barão não passam de objetos, são
sujeitos que, por intermédio do medo imposto, submetem-se e até respeitam as
vontades do soberbo velho. Os camaradas capangas pareciam mais escravos; o
padre, ao ceder-lhe o passo, permitia que Vovô Barão ocupasse o espaço reservado
apenas ao sacerdote, como se o velho também pudesse ter a autoridade clerical,
simplesmente porque queria e, logo, podia. Isso acontecia porque tinham “a tradição
de temê-lo”. É como se não tivessem mesmo coragem para enfrentar o velho ou como
se, também por tradição, não quisessem ofendê-lo e, assim, acaba submissos às
vontades do Barão.
Contudo, esse mesmo homem escondia algo.
112
Logo no início da estória podemos ver que Vovô Barão era “o muito chefe da
família”, porém, como afirma o neto, esse era um fato em si contraditório “com tudo”,
o que levanta dúvida sobre a postura firme do avô. À proporção que avançamos na
narrativa percebemos que o narrador apresenta uma versão do que era visível no avô,
mas também deixa vir à tona, por intermédio de uma ironia humoresca, uma outra que
parecia oculta: a de um Vovô Barão um tanto fragilizado e medroso, que utilizava do
poder que tinha para causar medos e, assim, velar aqueles temores que eram seus.
Vovô Barão, em sua soberba, parecia agir com a finalidade de se fazer
reconhecido, de perpetuar a moral do nome. É como se o velho temesse ser
esquecido após a morte. Em Medo líquido, Bauman (2008) afirma que ser esquecido
tornou-se um dos maiores medos do sujeito moderno e que, por isso, o indivíduo
passou a viver uma incessante busca por uma forma de imortalidade. Apesar de viver
numa sociedade que engatinhava perante a modernidade, Vovô Barão já carregava
consigo o desejo de ser de algum modo imortal.
Em passagens que antecedem a morte do velho, são notórios alguns sinais que
indicam fugas, temores e fraquezas do Vovô Barão, como podemos observar em:
“grave como os mascarados, difícil como cofre de molas, duro como pedra de cristal”
(ROSA, 2015c, p.58) e “homem de ação, mas com enxaqueca” (ROSA, 2015c, p.59).
Como vemos, as metáforas sobre o velho são em si contraditórias e denotam uma
fraqueza a que ele queria esconder. Era de fisionomia grave como se usasse uma
máscara. Mas, as máscaras podem ser retiradas e, no caso do velho, provavelmente
revelaria um outro sujeito escondido por trás daquela farsa. Parecia guardar muitos
segredos, não à toa é comparado a um cofre de molas, que para ser aberto é preciso
se ter a combinação exata, capaz de destravar o sistema e liberar o acesso a sua
parte interna. Enquanto pedra de cristal, vovô Barão fazia-se firme, mas podia refletir
sua fraqueza. Ou seja, ao mesmo tempo em que era imperativo, também escondia
suas dores, seus segredos e tudo o que pudesse revelar suas fragilidades. Não era
pela fraqueza, mas pelo vigor e altivez que o velho queria ser reconhecido. Por isso,
Vovô Barão se mantinha escondido atrás da soberba.
Ao que observamos, a relação entre Vovô Barão e Vovó Olegária denota que a
espécie de medo decorrente do poder instituído pelo velho, não se firmou por muito
tempo entre o casal. Faltava em Vovô Barão a humildade. Em sua prepotência, ele
113
não amou a esposa, apenas impôs seus desejos, pois, no ato de casar-se com Vovó
Olegária estava também contida a subserviência da esposa à figura de excelência do
Barão. Assim, ele exigia que a mulher o admirasse, o adorasse e o amasse, como se
esses sentimentos pudessem surgir simplesmente por intermédio da ordem e não
naturalmente, pela afetividade característica de qualquer relação, principalmente a
amorosa.
A supremacia a que se dera o velho era inquestionável. O medo de que fosse
visto de outro modo, diferente do que tinha construído ao logo dos anos, fez Vovô
Barão preferir seguir sua história sozinho. Cismou com a esposa por motivos banais
e passou a ignorá-la dentro mesmo da própria mansão. Havia na parede da sala dois
retratos do casal. Quando precisava falar com Vovó Olegária, o velho chamava um
serviçal para levar o recado até ela e, em seguida, o casal se posicionava um em
frente ao retrato do outro, dirigindo a palavra à imagem, sem que de fato se vissem:
Mas com isto está que, decerto, Vovó Olegária o fazia quase brejeira, muito
faceta e trejeitosa, falsificava-se em irônia. Curvava-se numa reverência, e
acrescentava o vocativo: – “...Senhor Barão...” – enquanto para ele, retrato,
apontava, com dedo e diamante, e contradizendo-o com olho esquerdo.
Diziam-na leve de graça, tendo um senso de equilibrista; e as mulheres são
feitas para isso, vencedoras sempre nas situações – por sorriso, estilo, pique
e alfinete. Havia de ser que o Vovô, por tudo, mais se zangasse; para não se
sanhar, fechava encalcadamente a boca, e de olhos lobislumeantes. A raiva,
qual, não atingia de modo nenhum a Vovó, indignação em ricochete; e eram,
sem qualquer vendaval, o carvalho, inflexível, o caniço plástico. (ROSA,
2015c, p.74)
Vovó Olegária fazia troça das exigências do Vovô Barão, da forma como aquele
seu esposo queria ser tratado. Disfarçada em ironia, ela reverenciava com toda a
pompa o retrato do marido, olhando-o de canto de olho, observando-o, irritando-o.
Sutilmente, o enfrentava. Mesmo inseridos em uma sociedade de costumes
patriarcais, Vovó Olegária, elegante e graciosa, censura a posição do marido e Senhor
Barão, apenas com uma simples e irônica reverência ao retrato do esposo. Logo, se
saíra vencedora daquela situação não fora por ser agradável e sorridente, mas pela
disposição e firmeza contidos em seu gesto irônico. Era vitoriosa, não porque
conseguira irritar o esposo, mas por fazê-lo pensar em quem de fato ele era além
daquela exibição da sua imagem. Eram, pois, ela a representação do dócil e
adaptável, ele da rigidez e incapacidade de adaptação a novos e mais simples modos
de vida.
114
Quando o velho mandou erguer uma “parede-muro” no meio da sala, posto que
Vovó Olegária atrasou dez minutos para atender ao seu chamado – não por afronta,
mas porque precisava antes “atender a inadiável precisão do corpo” (ROSA, 2015c,
p.79) –, assim fez por temer a possibilidade de perder autoridade que edificara ao
longo dos anos. As atitudes do velho denotam certo medo, no que se refere à Vovó
Olegária, pois ela, direta ou indiretamente, o fez perceber as fragilidades da pessoa
por trás daquele personagem que ele criou para si.
Embora todos temessem e sucumbissem às vontades de Vovô Barão, Vovó
Olegária foi a única pessoa a enfrentá-lo, mesmo que de modo irônico e mantendo-se
parcialmente submissa às vontades do velho. Algo em Vovó Olegária representava o
perigo, amedrontava o marido.
Como vimos em “A benfazeja”, a raiva e o ódio têm o medo como fonte de
alimentação. Logo, Vovô Barão teve raiva do posicionamento irônico da esposa
porque também a temia, reconhecia nela algo que o tornava fraco: sentiu-se limitado
diante da sutil astúcia da mulher, a única que fora capaz de zombar da postura do
Barão. Portanto, Vovô Barão temia ter seu orgulho ferido ou que suas ordens não
fossem cumpridas à risca, que fosse questionado. Temia não ser a sua a última
palavra de mando ou desmando, temia ser comparado a qualquer outra pessoa.
Vovô Barão não permitiu a aproximação do outro – inclusive afastou-se da
própria esposa –, isso porque viu algo de perigoso nessa proximidade. A partir do
momento em que a parede-muro foi erguida, ele passou a dispensar a companhia da
família, humilhando-os, diminuindo-os. Se antes Vovô Barão ignorava a sociedade e
a família, fazendo-os temê-lo, a partir desse fato, passara a ignorar por completo a
própria família, o próprio sangue, porque se misturara ao de Vovó Olegária. Ele
parecia ver nos filhos e netos a possibilidade de desvendarem fragilidades e medos
que tinha, assim como fizera a esposa. Logo, preferiu-os distante.
Chegamos, então, à imagem de um velho que se fazia timorato, mesmo sem
saber: “Seguro, absoluto, de si, esquecido demais do caos original37 e fechado aos
evidentes exemplos do invisível, não sabia o que, no fundo, temia tanto” (ROSA,
2015c, p.58). Em suas constantes e ostensivas manifestações de arrogância e
superioridade, Vovô Barão se esqueceu que fora constituído da mesma matéria que
37Faz menção à criação do homem segundo os princípios bíblicos. “Comerás o teu pão com o suor do
teu rosto, até que voltes à terra de que fostes tirado; porque és pó, e pó te hás de tornar.” Gênesis
(3:19)
115
todos os seres humanos. Esqueceu-se que, sendo assim, estamos todos à mercê da
morte, consequentemente, o retorno ao pó, ao barro de que fomos feitos. Não lembrou
que a vida é transitória e que a morte era a única, entre todas as coisas, capaz de
igualar qualquer sujeito.
Almejando perpetuar sua importância, faltou humildade ao velho rico que se
intitulara barão sem assim o ser. Também não a teve no trato com os capangas que
o seguiam a pé, carregando malas e abrindo porteiras, enquanto ele seguia pomposo
a cavalo. Não fora humilde nas tantas vezes que, na igreja, passava na frente do
padre, demonstrando sua superioridade sobre o outro. Vovô Barão também não teve
humildade no propósito da conquista do amor. E, na tentativa de querer se fazer
importante, apenas restou-lhe a soberba e o medo do que nem sabia. David Lopes da
Silva (2018) faz menção a essa ausência de humildade do Vovô Barão e o quanto
isso pesava para o neto que acreditava não a ter por causa do avô, “não pelo que
fazia, mas pelo que era[...]” (ROSA, 2015c, p.79), afinal tinham a mesma genética e,
a possibilidade de ser como o avô, assustava o neto.
O episódio em que Vovô Barão retorna do coma, proferindo um xingamento
“Copule-se!” e reivindicando que fosse devidamente cumprida a ordem de ser
sepultado no cemitério do Quimbondo – se de fato morresse –, é elucidativo das
exigências e medos do vovô. Como o velho temia perder a importância a que se dera
e a superioridade sobre tudo, foi sagaz ao escolher o local em que seria sepultado.
No cemitério do Quimbondo, no exato lugar demarcado, ele driblaria a morte e
continuaria ocupando a mesma posição de senhor dos demais, posto que, em sua
visão, estaria cercado por seres inferiores. Fora isso, manter-se-ia distante de Vovó
Olegária – aquela que fez cair a máscara do inigualável Barão –, bem como de outros
sujeitos que tivessem sido importantes tanto quanto ou mais que ele, no caso, seus
ancestrais.
Como se para, pela última vez, lembrar que era seu o direito de mando, e como
se com a perspectiva de manter-se superior à morte que iguala todos, Vovô Barão saí
do coma. Na ocasião, o velho é visto ironicamente pelo neto como “o muito faraó”, a
quem deveriam prestar a derradeira vassalagem. O fato ocorre no exato momento em
que o filho contesta a final e testamentada ordem do pai: ser sepultado no cemitério
dos escravos.
Aparentemente, na concepção de Nestòrionestor – que parecia ser tal qual o pai
–, o ambiente não era nada condizente com a figura imponente do Barão. Logo, não
116
5 Considerações Finais
O menino teve sua infância impulsionada pelos medos. Por meio dos muitos
castigos do pai, Miguilim passou não só a temê-lo, como a associá-lo ao Pai do céu.
Incessantemente evitava errar, pois compreendia que o erro era motivo para punições
tanto do pai quanto de Deus. Entendia que precisava enfrentar seus temores, não à
toa buscou antídotos para seus medos. Logo, barganhou com Deus pra conseguir ser
amado pelo pai e enfrentou a mata escura, pondo em mente que era por obrigação
de trabalho. Miguilim também se sentia angustiado diante da possibilidade de perder
a amizade e o carinho do irmão Dito e, por isso, até se autocastigava. Mas, quando o
perdeu para a morte, o que Miguilim mais temia, a revolta o colocou diante da ira.
Doente e acamado, ainda com raiva pela perda de Dito, o menino consegue encontrar
o caminho para a tão almejada liberdade quando percebeu que o pai lhe tinha amor.
Porém, a libertação só se concretizou com o par de lentes que o fez ver o mundo
como realmente era e o impulsionou a querer aprender e apreender esse mundo novo,
talvez, sem medos.
Em “Buriti”, encontramos mais uma vez Miguilim, agora o adulto e veterinário
Miguel. Apesar de ter mudado de vida, de ter posses e passar a fazer parte de outro
grupo social, Miguel ainda trazia consigo alguns medos, provenientes daquele
Miguilim que um dia fora. A paixão de Miguel pela jovem Glorinha o fez reviver os
medos do passado. Miguel teve medo de que não fosse aceito entre o povo sertanejo
e que voltasse a ser tão rejeitado quanto quando menino. Assim, o jovem passou um
ano sem cumprir a promessa feita a Glorinha, a de que retornaria ao Buriti. Em seu
íntimo, renascera a insegurança e um dos seus antigos e maiores medos, o de ser
fraco. Se antes ele contava com o irmão Dito, na fase adulta Miguel precisou enfrentar
sozinho as adversidades da vida.
É, pois, embalado pela possibilidade de ser feliz que Miguel retorna ao Buriti em
busca desse sentimento. Do mesmo modo que fez na infância, quando abandonou
tudo e saiu do sertão, ele precisou se desligar do medo que o paralisava e impedia de
seguir, para voltar ao Buriti. Inspirado na determinação de Glorinha, assim como um
dia fez em relação ao irmão, Miguel já não mais aceitava o fracasso e, assim, partiu e
enfrentou seus temores, carregando consigo o desejo de ser feliz, como ensinara Dito.
Já em “A benfazeja”, diante da complexidade e ambiguidade da narrativa – posto
que o narrador toma como empréstimo o que lhe conta uma determinada comunidade
sobre os velhos Mula-Marmela e o cego Retrupé, para em seguida recontar pelo seu
ponto de vista –, conseguimos observar não só um, mas dois sujeitos idosos que
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