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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

JOSÉ ANTÔNIO VIEIRA

A ESCRITA DO TEXTO ACADÊMICO NA GRADUAÇÃO: MODOS DE

UTILIZAÇÃO DE CONCEITOS TEÓRICOS DE UMA ÁREA DE CONHECIMENTO

NATAL
SETEMBRO/2013
JOSÉ ANTÔNIO VIEIRA

A ESCRITA DO TEXTO ACADÊMICO NA GRADUAÇÃO: MODOS DE

UTILIZAÇÃO DE CONCEITOS TEÓRICOS DE UMA ÁREA DE CONHECIMENTO

Dissertação apresentada ao programa de Pós-


Graduação em Estudos da Linguagem do
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
para obtenção do título de Mestre em Educação.

Área de Concentração: Teoria e Análise


Linguística

Orientadora: Dra. Sulemi Fabiano Campos

NATAL
SETEMBRO/2013
Autorizo a reprodução e a divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação da Publicação na Fonte.


Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Vieira, José Antônio.


A escrita do texto acadêmico na graduação: modos de utilização de
conceitos teóricos de uma área de conhecimento / José Antônio Vieira. –
2013.
123 f.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte.


Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Departamento de Letras.
Programa de Pós Graduação em Estudos da Linguagem, 2013.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Sulemi Fabiano Campos.

1. Escrita. 2. Redação acadêmica. 3. Trabalhos monográficos. I.


Campos, Sulemi Fabiano. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
III. Título.

RN/BSE-CCHLA CDU 001.81


VIEIRA, J. A. A escrita do texto acadêmico na graduação: modos de utilização de
conceitos teóricos de uma área de conhecimento. Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte/UFRN, para obtenção do título de Mestre em Educação. Área de concentração: Teoria e
Análise Linguística.

Aprovado em:

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Sulemi Fabiano Campos (Orientadora)


Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN
Assinatura:____________________________________________________

Prof. Dr. Ernesto Sérgio Bertoldo


Universidade Federal de Uberlândia/UFU
Assinatura:____________________________________________________

Profa. Dra. Maria das Graças Rodrigues


Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN
Assinatura:____________________________________________________
AGRADECIMENTOS

A todos os professores que participaram do meu processo de formação do ensino médio à pós-
graduação;

À Professora Sulemi Fabiano Campos pela orientação, amizade, confiança e dedicação;

À Mariana Aparecida de Oliveira Ribeiro, minha namorada, mulher, amiga, amante e leitora,
pelo companheirismo, incentivo e confiança e por mostrar que sonhos, quando realizados a
dois, sempre são mais gostosos;

Ao GETED e ao GEPPEP, grupos de pesquisas que contribuíram enormemente para a minha


formação e para a realização deste trabalho;

Aos meus pais e irmãos pelo amor e confiança que sempre me dedicaram;

Às minhas amigas Nancy, Thayanny, Thaíse e Maria Aparecida, companhias que sempre me
auxiliaram a perceber o quanto podemos ser melhores;

A pessoas, como Vanessa de Farias e Marco Martins, que me acolheram em uma nova cidade;

Aos professores Ernesto, Marinalva e Sônia por lerem e contribuírem com a escrita deste
trabalho; e

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Mato Grosso pelo auxílio financeiro.


Quando lemos, e agora mais especificamente
os teóricos, também devemos nos dar conta de
que existe ali não uma teoria para ser repetida
com a obediência cega da filiação
incondicional, mas uma lente (KUHN, 2007)
que passamos a usar para investigar o objeto e
recriá-lo pelo ângulo a partir do qual nos
pomos a ler. BARZOTTO E ALMEIDA (p.
75, 2013).
RESUMO

Neste trabalho, discute-se a produção de textos acadêmicos de alunos do curso de Letras.


Especificamente, analisa-se o texto monográfico, com o intuito de verificar os efeitos de
sentido criados na escrita a partir das formas de marcação de outros discursos. Para tanto,
buscou-se responder o seguinte questionamento: Como um jovem pesquisador utiliza uma
teoria para se inserir em uma dada comunidade científica? Os objetivos principais deste
trabalho são: analisar os recursos linguísticos, como citações, ilhas textuais e conectivos, que
marcam a presença da voz do outro na escrita acadêmica; e observar os efeitos de sentido
produzidos pelos modos como isso se realiza na escrita. A análise centrou-se em dois textos
monográficos, selecionados de um grupo composto inicialmente por 23 monografias,
produzidas nos últimos cinco anos por alunos do curso de Letras de uma dada universidade
pública. Para o desenvolvimento da investigação, aplicou-se o conceito de Kuhn, que aponta
para a existência de diferentes significados na produção de ciência no decorrer dos séculos.
Tal teoria permite definir a escrita acadêmica como criação que contribui para a produção de
conhecimento. A fim de delimitar a concepção de escrita adequada à investigação, o estudo
baseou-se na ideia de Coracini de que toda escrita é a inscrição do si, ou seja, a produção
escrita parte de uma intervenção do sujeito, e apenas uma imposição do “eu” o garante como
autor do que escreve. A fundamentação teórica para realização deste estudo abrange os
seguintes conceitos: a heterogeneidade enunciativa de Authier-Revuz, que possibilitou
analisar as marcações do outro na escrita monográfica; a reformulação-paráfrase de Pêcheux e
a polissemia e a paráfrase de Orlandi, que apresentam as noções de produtividade e
criatividade como formas de produção de sentidos e permitem observar como se estabelece o
processo de produção da linguagem na escrita acadêmica; valor de troca e valor de uso de
Rossi-Landi, que considera a linguagem como trabalho linguístico, o que possibilita verificar
as diferenças de uso e a funcionalidade social de uma teoria; e a noção de indícios de autoria,
apresentada por Possenti, através da qual identificaram-se atitudes que configuram o locutor
de um texto como seu autor. Verificou-se que a escrita caracterizada pela repetição e
reprodução pode desenvolver um efeito de sentido portador da ideia de promoção de um
autor, um conceito ou uma teoria. Porém, mesmo quando a escrita se limita a reproduzir os
discursos de outros autores e não articula a teoria à análise de dados ou à metodologia, o
trabalho avaliado obtém aprovação e legitima-se como produção científica. Isso indica a
existência de produções acadêmicas que não desenvolvem a funcionalidade da teoria
empregada. Nesses casos, o texto circula a fim de promover a fundamentação teórica, e esta,
que normalmente se configura como argumentação e sustentação da produção científica, não
exerce função no trabalho realizado. Assim, as marcações do outro na escrita acadêmica
destacam afirmações alheias em detrimento do dizer do pesquisador. O modo de escrita pode,
portanto, evidenciar um efeito de sentido de promoção de um autor, de uma teoria ou de
conceitos teóricos.

Palavras-chave: Escrita. Heterogeneidade. Promoção do outro. Monografia.


ABSTRACT

WRITING OF THE ACADEMICAL TEXT IN THE UNDERGRADUATE COURSE:


WAYS OF TEORICAL CONCEPTS’ UTILIZATION IN A PARTICULAR FIELD OF
KNOWLEDGE

In this study we have developed a discussion about academic text production in the
undergraduate course of Literature and Languages. Specifically, we are going to analyze the
monographic text writing in order to verify the meaning effects created from the ways of
showing other’s discourses that constitute a written production. As a means to do that, we are
going to answer the following question: “How does a young researcher make use of a theory
in order to be part of a particular scientific community?” We aim to: 1) analyze the linguistic
resources, like quotations and signs of cohesion that demonstrate the other’s voice presence
in academic writing; 2) observe the meaning effects produced through the ways that the one
who writes shows the other’s voice in the written text. Firstly, we have selected 23 (twenty-
three) monographs produced in the last five years by students from a Literature and
Languages undergraduate course in a determined public university. However, in this study,
we have analyzed just 02 (two) different monographic texts. To develop such an investigation,
we have inquired Kuhn’s concept of science, which shows the existence of different meanings
of science production in the course of the centuries. It allows us to define academic writing as
science production that develops and contributes to knowledge production. With the purpose
of restricting the meaning of writing conception, we have relied on Coracini, who assumes
that all writing production is the registration of the self, in other words, writing comes from
the subject’s intervention, it is to say that only an imposition of “the self” guarantees the
subject as author of what he writes. We have as theoretical basis the following concepts: 1-)
Authier-Revus’s enunciative heterogeneity, that allowed us to analyze the written marks of
the other in the monographic writing; 2-) Pêcheux’s reformulation-paraphrase and Orlandi’s
polysemy and paraphrase, concepts that present notions of productivity and creativity as ways
of meaning production, and allows us to observe how the process of language production in
academic writing is established; 3-) Rossi-Landi’s concept of exchange-value and use-value,
which consider language as a linguistic work, allowing us to verify the differences between
use and social functionality in a determined theory; and 4-) Possenti’s notion of authorship
indicia, with which we have identified attitudes that make the one who writes author of his
own text. We have verified that writing characterized for repetition and reproduction may
develop a meaning effect that constructs the idea that writing production promotes an author,
a concept or a theory. We have also realized that a written text that restricts itself to reproduce
other authors’ discourses and does not articulate a theory with data analysis or with work
methodology, when evaluated is approved and legitimates itself as scientific production. That
demonstrates the existence of academic productions that do not develop any functionality of
the employed theory. The text works as a means to promote its theoretical concepts, and
theory. It is to say that the theoretical foundantion, which usually is a way to argue and
sustain scientific production, does not have any function. Thus, we consider that the way
someone shows the other’s discourse in academic writing may work as a way to underline
what the other asserts to the detriment of the researcher’s words. This fact allows us to
comprehend that a way of writing may evidence a meaning effect of the author’s, theory’s or
theoretical concepts’ promotion

Key-words: Writing. Heterogeneity. Other’s promotion. Monograph.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................................... 10

1 CONCEPÇÕES DE ESCRITA E A PRODUÇÃO CIENTÍFICA NA


UNIVERSIDADE................................................................................................................. 22

2 AS DIVERSAS VOZES QUE HABITAM O TEXTO ACADÊMICO: DA


HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA À REPETIÇÃO E INCORPORAÇÃO DE
CONCEITOS ........................................................................................................................ 34
2.1 A heterogeneidade enunciativa ........................................................................................... 35
2.1.1 A heterogeneidade explícita/mostrada ................................................................. 37
2.2 Remissão e alusão ao outro ................................................................................................. 42
2.3 As não-coincidências do dizer ............................................................................................. 46
2.4 Repetição de conceitos teóricos nos textos acadêmicos .....................................................48
2.5 Incorporação do discurso do outro na escrita ................................................................... 56
2.6 Indícios de autoria da produção escrita ............................................................................. 58

3 CONTEXTUALIZAÇÃO, DESCRIÇÃO DO CORPUS E PROCEDIMENTOS


METODOLÓGICOS ........................................................................................................... 62
3.1 Dos cursos de Letras na instituição .................................................................................... 63
3.2 Do curso onde coletamos o corpus ...................................................................................... 64
3.3 Da divisão de áreas do departamento ................................................................................ 64
3.4 Dos trabalhos de conclusão de curso .................................................................................. 65
3.5 Das ementas das disciplinas na matriz curricular ............................................................ 65
3.6 Dos planos de ensino ............................................................................................................ 66
3.7 Dos programas de pós-graduação ...................................................................................... 67
3.8 Descrição do corpus ............................................................................................................. 69
3.8.1 Monografia do aluno A ......................................................................................... 69
3.8.2 Monografia do aluno B ......................................................................................... 70
3.9 Da metodologia ..................................................................................................................... 70

4 OS EFEITOS DE SENTIDO DE PROMOÇÃO E UMA PROPOSTA DE


FORMAÇÃO ESCRITA ..................................................................................................... 73
4.1 Produtividade e criatividade da escrita acadêmica .......................................................... 74
4.2 A promoção, operacionalização e funcionalidade do texto acadêmico ........................... 76
4.3 A promoção de um autor, de conceitos teóricos e de uma teoria: uma análise dos
textos monográficos ............................................................................................................. 79
4.3.1 A promoção de um autor(a) ................................................................................. 80
4.3.2 A promoção de conceitos teóricos ....................................................................... 86
4.3.3 A promoção de uma teoria ................................................................................... 102
4.4 A idealização da escrita acadêmica .................................................................................... 105
4.5 Por uma formação escrita na universidade ....................................................................... 106
4.5.1 Escrita e pesquisa na graduação ............................................................................ 108
4.5.2 Reflexões sobre uma proposta de escrita acadêmica ............................................ 109

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................... 111

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................ 115


INTRODUÇÃO

Esta pesquisa parte de uma inquietação pessoal despertada a partir da minha


experiência de vida e reforçada quando comecei a atuar como professor do ensino superior,
ministrando aulas das disciplinas de Semântica, História da Língua Portuguesa, Morfologia e
Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa. A minha atuação como Coordenador
Pedagógico do Curso de Letras do município de Tapurah/MT, pela Universidade do Estado de
Mato Grosso (Unemat), no Departamento de Letras do Campus Universitário de Pontes e
Lacerda e no Núcleo Pedagógico de Tapurah, no período de maio de 2005 aos dias de hoje,
também foi significativa para o desenvolvimento desta pesquisa.
A experiência como docente e coordenador permitiu-me notar a dificuldade dos
alunos para articular, no momento da escrita, as teorias estudadas. Um aspecto que podemos
citar é o fato de que poucos alunos relacionavam um conhecimento específico a algum dado
linguístico que não fosse aquele indicado pelo professor orientador. Nesse sentido, essa
experiência deu-nos a ver a dificuldade do graduando para escrever os textos acadêmicos que
são solicitados durante sua formação e ao final dela, como requisito parcial para a conclusão
do curso, seja por não relacionar a teoria aos dados em análise, seja porque os dados são
selecionados previamente por um orientador, e o aluno submete-se a essa seleção, ou ainda,
seja pelas dificuldades para elaborar um texto por escrito conforme aos aspectos textuais e
formais de composição.
Buscamos, nesta investigação, responder ao seguinte questionamento: Como um
jovem pesquisador utiliza uma teoria para se inserir em determinada comunidade científica?
Nosso objetivo geral é analisar de que forma uma teoria é utilizada por um aluno de
graduação na escrita do texto monográfico. Os objetivos específicos são: 1) analisar as
marcações do outro (autor, conceito teórico, área de conhecimento) na escrita acadêmica; e 2)
observar os efeitos de sentido produzidos por essa marcação.
Alguns conceitos teóricos foram fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa,
quais sejam: 1) heterogeneidade enunciativa de Authier-Revuz (2004), que nos possibilitou
analisar as marcações do outro na escrita monográfica; 2) reformulação-paráfrase de Pêcheux
(1997) e polissemia e paráfrase de Orlandi (2007), especificamente, as noções de
produtividade e criatividade, que nos permitiram observar como se estabelece o processo de
produção da linguagem na escrita acadêmica; 3) o conceito de valor de troca e valor de uso de
Rossi-Landi (1985), que, ao considerar a linguagem como trabalho linguístico, permitiu

10
observar as diferenças de uso e a funcionalidade social de uma teoria na escrita acadêmica; e
4) a noção de indícios de autoria de Possenti (2009), que afirma que, ao produzirmos um
texto, precisamos desenvolver duas atitudes para que nossa produção tenha traços de autoria.
Utilizamos também como referencial o conceito de singularidade proposto por
Authier-Revuz (2000), que trata da produção da escrita como discurso que testemunha a partir
de uma reflexão sobre diversos discursos, um discurso particular e próprio e de alusão e
heterogeneidade explícita (AUTHIER-REVUZ, 2004), haja vista que, neste trabalho,
consideramos a marcação da voz do outro como ponto de partida para identificar a existência
do efeito de promoção.
A alusão trata da remissão feita ao outro por quem escreve, o qual elabora uma
negociação entre os sentidos produzidos por ele e pela voz do outro; a heterogeneidade
explícita tem como característica demonstrar a heterogeneidade de vozes presente no
discurso, como o uso de citações, aspas, glosas. Segundo Authier-Revuz (2004), todo texto
implica uma participação discursiva do outro, que pode ser aquele que o aluno utiliza como
referencial no ato da escrita ou o outro para quem o aluno constrói o enunciado. Essa
participação discursiva do outro caracteriza a heterogeneidade discursiva; uma identidade é
evidenciada no texto, podendo ser marcada ou não marcada, e considerada como
heterogeneidade constitutiva e heterogeneidade mostrada.
Fazemos uso dos conceitos de valor de uso e troca, ressignificados por Rossi-Landi
(1985) a partir da definição marxista. Ele trata a linguagem como um trabalho linguístico,
caracterizado pela existência dos valores de uso e de troca; o primeiro, relacionado à
satisfação de um processo comunicativo, e o segundo, à utilização do valor de uso em
situação diferente, com valor de troca. A escolha de tal aporte teórico parte da ideia de que
podemos verificar a presença desses valores na escrita das monografias que analisamos.
Utilizamos, como fundamentação para análise de dados, os conceitos de
produtividade e criatividade de Orlandi (2007). Para elaborá-los, a autora retomou as noções
de paráfrase e polifonia de Pêcheux (1969), a fim de explicar que a atividade parafrástica rege
um processo de produtividade que se caracteriza pelo constante retorno ao já-dito; é a
reprodução de um discurso já proferido, mesmo que a partir de outros enunciados. Já o
processo de criatividade realiza-se a partir da produção da linguagem, caracterizada pelo
deslocamento em relação ao que já foi produzido. Dessa forma, o sujeito pode desenvolver
um discurso com funcionalidade social.

11
O conceito de indícios de autoria de Possenti (2009) auxiliou-nos com outra
categoria de análise, ao mostrar que, para garantir a autoria de uma produção escrita, é preciso
assumir duas atitudes: dar voz a outros enunciadores, isto é, demarcar o outro em nosso
discurso; e, ao mesmo tempo, conseguir nos distanciar de nosso próprio texto, para assim nos
configurarmos também como leitores de nossa produção e, consequentemente, intervirmos
como sujeitos do discurso. Essas atitudes possibilitam a construção de um jogo de vozes que
articulará o discurso de quem escreve àquele da voz do outro que o constitui.
Os conceitos acima mencionados possibilitam-nos abordar as diversas maneiras de
constituir a escrita do texto acadêmico. Entre esses diferentes modos de utilização do discurso
do outro, existe a possibilidade de o texto promover uma teoria, autor ou conceito, por meio
da repetição de discursos já realizados. Essa prática caracteriza a escrita como reprodução de
discursos realizados e reconhecidos socialmente, em vez de desenvolver dada teoria ou
conceito teórico, o que poderia constituir um modo diverso de lidar com o discurso já
legitimado e propiciar uma leitura produtiva caracterizada pelo deslocamento do já-dito.
Constituímos o corpus deste trabalho a partir da seleção de 23 monografias
produzidas nos últimos seis anos (2006-2012) por alunos do curso de Letras de uma
universidade pública. Análises preliminares de nossos dados possibilitaram-nos perceber que
a repetição de teoria, autores ou conceitos teóricos, observada a partir da marcação do outro
na escrita, pode configurar a produção de um sentido de promoção, que garante a inserção do
jovem pesquisador1 em uma comunidade científica como discípulo da teoria em questão. O
efeito de sentido2 da promoção ocorre quando uma teoria é utilizada em um trabalho de modo
a promover o autor, ou a concepção teórica à qual este se filia, sem que seus conceitos
teóricos tenham funcionalidade no texto acadêmico em que são utilizados. Nossa hipótese é a
de que, dessa forma, as marcações do outro na escrita acadêmica podem funcionar de modo a
destacar aquilo que outro afirma em detrimento do dizer daquele que escreve, no caso, o
jovem pesquisador.

1
Nomeamos de “jovens pesquisadores” os alunos cujas monografias analisamos por estarem matriculados em
uma disciplina que prevê o desenvolvimento de uma pesquisa de iniciação científica, que será tema da
monografia.
2
Para a Análise do Discurso, o sentido não está diretamente ligado ao significante, pois uma produção escrita
pode evidenciar vários sentidos. O sentido pode ser considerado um produto, resultado de um processo, uma
produção cujos efeitos são efeitos de sentido. Conforme afirma Possenti (1997, p. 4): “O fundamental é enfatizar
que, no que se refere ao sentido, não se trata mais de concebê-lo como uma mensagem codificada num texto,
numa língua, como um conteúdo embutido num código. O que não significa, no entanto, excluir do discurso o
material linguístico, verbal, como já se insistiu acima.”

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Afirmar que uma teoria tem funcionalidade em um texto acadêmico é o mesmo que
dizer que ela tem uma função social, isto é, contribui e auxilia a sociedade ou uma
comunidade científica na resolução de problemas ou na resposta de questionamentos, e o
autor, ao servir-se dela, leva em consideração o contexto original de sua produção. Para
corroborar essa afirmação, valemo-nos, principalmente, do conceito de valor de uso, proposto
por Rossi-Landi (1985), que, retomando os conceitos marxistas, defende a perspectiva da
linguagem como trabalho linguístico. Essa característica só é atribuída aos processos
linguageiros que garantem, em sua estrutura, a articulação dialética entre os valores de troca e
de uso.
As monografias selecionadas pertencem à área da Análise do Discurso (AD) de linha
francesa. Ressaltamos que a escolha por este campo de investigação foi ocasionada pela
história de formação do curso de Letras que analisamos, no qual há destaque para essa área.
Isso porque: 1) grande parte do corpo de professores da instituição realizou suas investigações
baseadas nessa teoria; 2) há uma disciplina na graduação dedicada à Análise do Discurso; e 3)
a maioria dos professores do curso em questão são qualificados em programas e linhas de
pesquisa ligadas à AD.
Para averiguar como os modos de escrita podem utilizar da voz do outro de maneiras
diferentes e produzir efeitos de sentido que contribuem para a aceitação e legitimação da
monografia, analisamos os recursos linguísticos mobilizados na escrita do texto, tais como,
conectivos, citações, aspas, ilhas textuais, que evidenciam os discursos de outros autores (já
reconhecidos) que participam e estruturam a escrita dos textos monográficos observados.
A mobilização de uma teoria no desenvolvimento da pesquisa de iniciação científica
não é uma escolha aleatória, mas um ato que produz efeitos sobre o sujeito e sua produção.
Não consideramos que há teorias melhores ou piores, apenas chamamos a atenção para o fato
de ser pela escolha e pela utilização de conceitos teóricos operacionais de uma comunidade
científica que um sujeito se insere na discursividade vigente dessa comunidade, isto é, no
paradigma fundamentador das discussões e das pesquisas do grupo de pesquisa que valida as
produções escritas estudadas neste trabalho.
Ao descrever o funcionamento da ciência normal3, Kuhn (1992) afirma que um dos
critérios que garante seu funcionamento é a organização dos cientistas em comunidades
científicas, nas quais grupos de cientistas partilham o mesmo paradigma. Apesar de ser um

3
Kuhn (1992) define ciência normal como toda ciência vigente nos períodos desprovidos de uma revolução
científica.

13
conceito de difícil definição, como ressalta o autor, um dos traços que define o conceito de
paradigma é a existência de uma literatura comum (autores, conceitos teóricos, etc.) que um
grupo partilha.
A utilização de uma teoria em textos acadêmicos não funciona apenas como forma
de responder à demanda institucional (a de que todo texto acadêmico deve ter um
embasamento teórico), mas também garante a um sujeito o lugar dentro de uma instituição ou
uma comunidade científica. São pelas formas de mobilizar uma dada teoria, em conjunto com
a articulação de pressupostos operacionais, que um sujeito pode inserir sua produção e
participar de grupos de pesquisa e investigação.
Neste trabalho, ao mesmo tempo que verificamos os efeitos de sentido desenvolvidos
a partir dos modos de utilização de uma teoria, procuramos demonstrar como, na escrita de
um texto acadêmico, a utilização de uma teoria (a resenha de um autor, uso de conceitos
teóricos) pode materializar-se para tornar-se (ou não) uma peça importante na argumentação
em favor da tese que o jovem pesquisador quer defender.
Em relação à operacionalização, não atribuímos a ela apenas os sentidos dados pelos
dicionários, mas também a ideia de o aluno fazer a teoria e seus conceitos funcionarem em um
texto, ou seja, demonstrar uma articulação entre o seu dizer e o do outro em uma análise de
dados. Isso ocorre quando os conceitos teóricos são utilizados com certos propósitos:
sustentar a análise, relacionar os diversos conceitos teóricos utilizados em um trabalho,
compor um modo de olhar para os dados e/ou organizá-los.
Dessa forma, a relação que um sujeito estabelece com a teoria e com a própria escrita
é fundamental para verificar como se deu a formação acadêmica e, consequentemente, sua
constituição na teoria. Aquele que escreve precisa demonstrar que conhece e sabe
operacionalizar os conceitos teóricos empregados por uma comunidade científica para se
formar e ter sua produção legitimada.
O estágio de formação e a produção acadêmica de alunos da graduação são diferentes
em relação à formação e à produção de pesquisadores ou estudiosos de outros níveis, como
mestrado, doutorado, ou ainda, pesquisadores consolidados com projetos de pesquisa
financiados. Neste último caso, a produção científica não se limita a atividades e exercícios de
formação, mas engloba também a ação e a prática da profissão e do trabalho.
A noção de paradigmas de Kuhn (2011, p. 13) apresenta as revoluções científicas
como realizações universais, fornecedoras de problemas e soluções para todo praticante de
ciência. Com isso, compreendemos que, para o jovem pesquisador, conhecer uma teoria

14
interliga-se ao ato de dominá-la, de conseguir empregá-la e estabelecer relações entre os
conceitos, sem contradições ou equívocos. Nesse sentido, o aluno, ao passar pela formação
acadêmica inicial, pode desenvolver uma produção na qual empregue e articule uma
fundamentação teórica em uma análise de dados, sem contrariar os sentidos produzidos pelos
autores dos conceitos que utiliza e sem se utilizar de conceitos que não têm relação com o
corpus ou com o objetivo do trabalho proposto.
Ao tratarmos da funcionalidade da teoria em produções escritas, queremos dizer que
os modos de utilização da fundamentação teórica em textos acadêmicos representam
mecanismos de suporte para o dizer daquele que escreve, seja como conceito específico de
outro autor, utilizado como instrumento em uma análise de dados, seja como argumento de
autoridade, uma forma de confirmar o discurso produzido com a remissão a outro já proferido
e aceito na comunidade.
São as marcações da voz de outros autores que permitem sustentar e desenvolver
argumentos. Compreendemos essa voz como os discursos de outros sujeitos presentes naquele
que é construído a partir da produção escrita de uma monografia. .
É possível perceber que, em alguns trabalhos acadêmicos, há teorias, conceitos e até
mesmo citações explícitas que não desempenham função na produção escrita construída.
Muitas vezes, são feitas referências a outros discursos que não funcionam nem como
mecanismo de análise nem para confirmar o dizer de quem escreve. Assim, a participação do
autor referenciado é considerada válida apenas pelo reconhecimento do nome ou conceito,
sem contribuir para a produção realizada. Existem situações em que a teoria utilizada como
fundamentação não se articula com a proposta de investigação do trabalho, ou ainda, textos
que utilizam a Análise do Discurso de linha francesa como fundamentação teórica de
disciplinas específicas de prática de ensino, ou mesmo de políticas publicas, sem a devida
contextualização ou relação com teorias específicas desta área.
Para o desenvolvimento da análise, consideramos que a função social está
diretamente relacionada à noção de valor de uso e de troca de Rossi-Landi (1985). Assim,
entendemos que todo produto, independentemente de suas características ou formas de
utilização, quando implica funcionalidade e representação na sociedade, desenvolve valores
de uso e de troca. A ideia é que um produto possui especificidade de uso quando pode ser
considerado equivalente a outro, isto é, quando pode ser trocado, apresentando, dessa forma,
tanto um valor de uso, que é a característica que o diferencia de outros, quanto um valor de

15
troca, que é a possibilidade de ser trocado por outro produto com outra característica, mas
com função e forma de uso próprias.
O valor de troca é a possibilidade e a garantia de trocas de elementos que, apesar de
equivalentes quanto ao valor de troca, têm diferentes valores de uso. Vemos, portanto, a
produção de discursos pela perspectiva de que, quando um discurso é produzido em
determinado lugar e sob determinadas condições, ele pode ser trocado por outro que foi
realizado em outro momento, local e cujas condições de produção foram totalmente
diferentes. Cada um deles possui seu valor de uso específico que pode ser aproveitado em
momentos e condições diferentes. É como se trocássemos um discurso autoritário por outro
liberal, em razão das condições, mas os valores de uso de ambos continuassem a existir e
apenas seu valor de troca fosse colocado em funcionamento.
A teoria que utilizada como fundamentação teórica em um trabalho acadêmico, às
vezes, é aplicada da forma descrita anteriormente, por isso, ao compreendermos a linguagem
como trabalho linguístico, essa escrita pode configurar uma troca de discursos equivalentes. É
como a diferença entre produtos simples, como um garfo e uma faca, que possuem seus
valores específicos de uso, mas que podem ser trocados para desenvolver suas funções em
outras situações. Em alguns modos de escrita, porém, isso pode ocorrer sem alterações ou
desenvolvimento do valor de uso; um texto que somente reproduz o já-dito não desenvolve os
valores de uso do discurso que é construído. Essa é uma troca que inviabiliza o valor de uso
de um dos discursos construídos, o que resulta em produções escritas que se caracterizam a
partir da repetição e da reprodução, providas apenas de um valor de troca. No capítulo 2 e nas
análises dos dados, abordaremos de modo mais aprofundado tais conceitos de Rossi-Landi,
que estamos nomeando como funcionalidade de uma teoria.
A justificativa para o desenvolvimento desta pesquisa assenta-se sobre uma análise
prévia de trabalhos acadêmicos, desenvolvidos nos últimos anos. Averiguamos, então, a
escassez de produções acadêmicas (mestrados e doutorados) no país que versassem sobre a
relação do pesquisador com sua escrita e problematizassem a produção resultante desse
processo, considerando a dificuldade de se questionar o que a universidade tem considerado
como produção científica e, ao mesmo tempo, o que se tem produzido na academia.
Em uma busca realizada no banco de dados da Unicamp, encontramos algumas
dissertações e teses que tomam como tema a relação do pesquisador com a teoria que embasa
seu trabalho. Especificamente, os trabalhos versavam sobre: a relação que o sujeito estabelece
com uma corrente teórica, como o construtivismo (SANTAROSA, 2007); a alfabetização

16
(TEMPESTA, 2009); e os estudos sobre a aquisição da linguagem (LEMOS, 1994). Em outra
busca, no mesmo banco de dados, encontramos duas pesquisas que tematizam a relação que
um sujeito em formação estabelece com a teoria, passível de ser verificada pela observação
dos estágios, de língua materna (FREITAS, 1993) e estrangeira (CLAUS, 2005).
Examinando ainda alguns trabalhos que tratam da escrita do relatório de estágio
(BARZOTTO; EUFRÁSIO, 2006; EUFRÁSIO, 2007; REZENDE, 2010), observamos que as
pesquisas não se centram na forma como determinados conceitos teóricos são (ou não)
utilizados pelos graduandos na escrita de trabalhos acadêmicos nem tratam sobre os efeitos
que a mobilização dos conceitos teóricos poderia produzir na escrita dos textos acadêmicos e
na formação dos alunos de graduação.
Nesse sentido, notamos a importância de se estabelecer uma reflexão sobre o tema
que nos propomos a pesquisar, visto serem poucos os trabalhos que se dedicam a investigar
como um sujeito se relaciona com a teoria que embasa sua pesquisa. A partir dessa
investigação, torna-se possível refletir também sobre a construção de conhecimento e a
produção científica na universidade.
Eufrásio (2007, p. 04), ao analisar diversos relatórios de estágio, afirma que aquilo
que se produz na universidade, muitas vezes, se limita à reprodução de conceitos anteriores. A
autora propõe o seguinte questionamento:

O que esperamos então do graduado em Letras? A expectativa é que, em seus


relatórios de pesquisa e estágio, constitua-se um espaço de resistência aos discursos
cristalizados, possibilitando assim o avanço em relação àquilo que já está dado.
Pensamos, todavia, que quando abordamos um possível posicionamento crítico dos
alunos de Letras em seus textos escritos, na verdade, estamos discutindo um
determinado modelo de formação universitária, que tem supervalorizado o ato de
resenhar textos de outros e deixado num lugar pouco visitado o ato da escrita
enquanto construção de conhecimento.

Assim como propõe Eufrásio, entendemos que a produção de um texto monográfico


não pode ser equiparada à produção de resenhas e resumos de textos fontes ligados a uma
determinada teoria. Consideramos que esses gêneros acadêmicos fazem parte do conjunto de
produções que desenvolvemos durante a formação e que saber utilizá-los auxilia na escrita de
uma monografia. O texto monográfico não pode se constituir como uma produção que se
limita a repetir conceitos já estabelecidos e consolidados na academia.
Ribeiro (2010) e Fabiano-Campos (2007) são pesquisadoras que tomam a escrita
acadêmica como objeto de estudo e coadunam com o pensamento anteriormente exposto. A
primeira mostra, a partir de um estudo de caso das diversas produções acadêmicas de uma
17
mesma pesquisadora, como esta apropria-se do discurso universitário ao inserir-se em uma
comunidade científica. A segunda mostra como, através da escrita, podemos perceber a
sustentação da apropriação de um conhecimento na graduação em Letras. Ressaltamos que
apesar de tais trabalhos tratarem da relação de um pesquisador com a escrita do seu texto, eles
não elaboram uma reflexão sobre os efeitos construídos pela relação do pesquisador com a
teoria que emprega em seu trabalho.
Esta pesquisa toma como ponto de partida a investigação realizada por Fabiano-
Campos (2007). O trabalho iniciou-se de uma investigação que serviu como suporte para o
que estamos propondo. A pesquisadora realiza uma discussão sobre a apropriação e a
incorporação de conceitos, contribuindo para um diagnóstico mais preciso da formação do
docente e para a compreensão do processo de escrita e de apropriação de teorias e conceitos
por um universitário. Trata-se, portanto, de questionar as produções acadêmicas
caracterizadas por um modo de escrita que faz uso de fundamentações teóricas de maneira a
desenvolver um efeito de sentido de promoção de conceitos, autores, ou mesmo, teorias,
evidenciando um possível modelo de formação universitária que não garante necessariamente
a realização de produções científicas.
Tomamos como corpus desta investigação uma amostra4 dos “problemas”
encontrados em diversas e diferentes formações, dando importância ao fato de que, para
refletirmos sobre o tema, precisamos considerar não somente os conhecimentos teóricos
adquiridos na graduação, mas também o conhecimento sobre como os saberes apreendidos em
uma graduação são empregados. Reafirmamos, assim, a importância e a relevância de se
analisar os textos produzidos durante a formação acadêmica.
Nesta investigação, demos atenção ao modelo de escrita que gera um efeito de
sentido caracterizado pela repetição de conceitos teóricos, autores e teorias, sem articulação
com uma análise de dados e/ou cotejamento de conceitos que auxiliem na resolução de
problemas ou em respostas de algum questionamento. Ao mesmo tempo, compreendemos que
a marcação do discurso de outros autores em trabalhos acadêmicos é constitutiva e que,
quando explícita, como no caso do uso de recursos linguísticos tais quais citações, paráfrases,
glosas, entre outros, pode ser utilizada como estratégia de argumentação, auxiliando na
confirmação, na ratificação e até mesmo na validação de nosso dizer.

4
Freud, em toda sua obra, e a psicanálise mostram-nos a importância dos dados singulares para a compreensão
de fenômenos universais. Ressalte-se, por exemplo, o caso Dora; pela análise dessa paciente, Freud (1893-1895)
pôde sistematizar e diagnosticar os casos de histeria.
18
Existe a possibilidade das marcações do discurso de outro autor na escrita acadêmica
contribuirem para, ou mesmo desenvolverem, um efeito de sentido que promove conceitos,
teorias ou autores. É importante esclarecer que reconhecemos a possibilidade de
promovermos uma teoria, conceito ou autor, ao mesmo tempo que a marcação do outro
funcione como recurso de argumentação, mas nos propomos, nesta investigação, a diferenciar
essa forma daquela na qual o escritor rediz conceitos de uma teoria já consolidada, sem que
eles estejam articulados ou na qual o aporte teórico funcione como um “instrumento” para
delimitar e constituir um objeto de pesquisa.
O efeito de sentido de promoção pode ocorrer quando uma produção escrita ativa a
percepção de que o discurso construído tem como objetivo prestigiar e dar visibilidade à voz
citada. Acreditamos que trata-se de um recurso para o aluno se inserir em uma comunidade
científica, sem necessariamente demonstrar uma análise de dados articulada com os conceitos
teóricos. O efeito de promoção, que ora tratamos, pode ser verificado quando temos uma
escrita caracterizada pela exaltação e prestigiação de uma teoria já conhecida na academia.
Trata-se de uma situação em que o trabalho não se consolida, necessariamente, como
produção científica, visto que se limita a repetir conceitos produzidos por outros autores.
Ressaltamos, ainda, que não tomamos o efeito de promoção como sinônimo de
divulgação científica. A divulgação faz parte do processo de produção acadêmica, sendo o
modo pelo qual a teoria produzida circula entre as comunidades científicas. O efeito de
promoção está relacionado à ideia de o texto acabar funcionando como espaço e instrumento
para dar visibilidade aos conceitos e pressupostos teóricos (que não são operacionais no
trabalho) de um ou mais autores que já possuem lugar estabelecido e consolidado na
academia, de modo a garantir para o autor do texto, mesmo que questionado sobre a
potencialidade do trabalho como produção científica, a inserção em determinada comunidade
científica.
A operacionalização de conceitos pode ser desenvolvida a partir de uma reflexão que
subsume os conceitos teóricos empregados por um pesquisador a uma análise e investigação
que transcendem a simples reprodução dos conceitos por parte de quem escreve um trabalho
acadêmico. É importante dizer que a operacionalização de conceitos teóricos em um texto
acadêmico é uma atividade complexa que prevê não só a leitura da teoria, mas também
abrange questões de orientação e formação.
Uma das causas ou fatores de influência da produção escrita predisponente de efeitos
de sentido como o da promoção é a grande corrida à produtividade, existente hoje na

19
universidade, consequência das diversas cobranças de agências de fomento, ou mesmo das
instituições de ensino superior, sobre os professores/pesquisadores, que precisam produzir em
quantidade e, de certa forma, acabam desconsiderando o que e como é produzido.
Essa situação perpassa a experiência de quem escreve, que também é cobrado por
orientadores ou professores da disciplina que solicitou a produção acadêmica, seja para fins
de avaliação, aquisição de bolsas, ou mesmo, adequação às normas e indicadores de avaliação
dos programas de graduação ou pós-graduação.
Diante do exposto, desenvolvemos nossa investigação de acordo com a seguinte
estrutura: no primeiro capítulo, apresentamos a fundamentação teórica que baseia as
concepções de escrita e de produção científica que sustentam esta investigação.
No segundo capítulo, demonstramos os conceitos relacionados à heterogeneidade
enunciativa de Authier-Revuz (2004), que nos auxiliam na observação e análise dos dados,
permitindo identificar marcas e recursos linguísticos que contribuem com o desenvolvimento
do efeito de sentido de promoção. Também apresentamos conceitos sob a perspectiva de
incorporação e repetição de Fabiano-Campos (2007), a fim de apontar as consequências da
produção escrita que se limita a repetir o já-dito e não incorpora ou apropria-se dos conceitos
teóricos que apresenta como fundamentação.
O terceiro capítulo é dedicado à apresentação do corpus e à descrição da metodologia
utilizada neste trabalho.
No quarto capítulo, tratamos dos efeitos de promoção de conceitos, de teorias e de
autores. Para tanto, fazemos a apresentação de duas categorias de análise que utilizamos em
nossa pesquisa: 1) os conceitos de valor de uso e de valor de troca, de Rossi-Landi (1985); e
2) os conceitos de produtividade e criatividade desenvolvidos por Orlandi (2007), a partir do
conceito de paráfrase-reformulação de Pêcheux (1997).
Também no quarto capítulo, desenvolvemos uma reflexão sobre a concepção de
produção científica e de trabalho acadêmico na graduação. Para isso, realizamos análises de
excertos de duas monografias, observando os modos de utilização de conceitos teóricos e
como eles podem desenvolver certos efeitos de sentido.
Propomos ainda uma reflexão sobre as relações institucionais que influenciam a
formação e o desenvolvimento de produções escritas na universidade, como também sobre a
prática de ensino pautada em uma perspectiva de pesquisa na graduação. Esta é, pois, uma
discussão sobre o desenvolvimento de um modelo de docência que promova a pesquisa e a
produção de conhecimento durante a graduação.

20
Por fim, desenvolvemos nossas considerações, apresentando um resumo geral do que
foi possível analisar durante a investigação, ressaltando a importância de se discutir as
concepções de produção científica e de escrita acadêmica.

21
1 CONCEPÇÕES DE ESCRITA E A PRODUÇÃO CIENTÍFICA NA
UNIVERSIDADE

Neste momento inicial de nosso trabalho, entendemos que é necessário uma


apresentação do que consideramos como produção científica e, consequentemente, do que
compreendemos como produção escrita na universidade. Para tanto, há a necessidade de
refletir sobre a correlação entre esses dois pontos para a área da linguagem. Nesse sentido,
partimos do pressuposto de que produzir um texto acadêmico provido de resultados finais de
uma pesquisa é, em certa medida, produzir ciência na graduação.
Entendemos que a produção universitária sofre grande influência e transformações
em consequência da pressão de agências de fomento e amparo às pesquisas estaduais e
nacionais, mas é interessante reconhecermos que, considerando os conceitos históricos sobre a
produção científica, podemos, de certa maneira, questionar alguns parâmetros das produções
que são desenvolvidas na academia.
A escrita de monografias é um dos primeiros passos do aluno em relação à produção
acadêmica, pois mesmo participando de uma situação de formação inicial, ela também se
utiliza de fundamentação teórica, e o seu autor sofre pressão e cobranças para atender
procedimentos estabelecidos por uma metodologia baseada na articulação de perspectivas
científicas e análises de dados que permitirão a realização da investigação proposta.
Assim, para auxiliar nossa investigação, é necessário refletirmos sobre as concepções
de escrita e de ciência que contribuíram para o desenvolvimento e a fundamentação de nossa
pesquisa e relacionar essas concepções entre si, a fim de problematizar e questionar o que
justifica a realização deste trabalho.
Partimos da ideia de que, ao nos valermos dos conceitos de historiadores da ciência,
como Kuhn (2011), podemos encontrar diferentes significados da produção científica no
decorrer dos séculos. Nesse sentido, uma das variantes para definir produção é a área em que
o conhecimento foi produzido. Buscamos, por conseguinte, delimitar uma concepção de
escrita que possibilite a investigação que propomos. Para tanto, uma das autoras em que nos
baseamos é Coracini (2010).
Para esclarecer a posição que tomamos em relação ao conceito de produção científica
na universidade, retomamos o que expressa Kuhn (2011, p. 20) ao dizer que:

Se a ciência é a reunião de fatos, teorias e métodos reunidos nos textos atuais, então
os cientistas são homens que, com ou sem sucesso, empenharam-se em contribuir
com um outro elemento para essa constelação específica. O desenvolvimento torna-

22
se o processo gradativo através do qual esses itens foram adicionados, isoladamente
ou em combinação, ao estoque sempre crescente que constitui o conhecimento e a
técnica científicos.

Considerando a citação acima, entendemos que a produção acadêmica de uma


monografia é resultado do início do empenho do jovem pesquisador para contribuir com a
produção científica desenvolvida na universidade, já que sua produção parte de uma formação
baseada em estudos que são desenvolvidos e vivenciados em um ambiente que tem como uma
das funções o desenvolvimento de pesquisas. Entendemos que o aluno de graduação reúne
fatos, teorias e métodos com o intuito de contribuir para a produção de ciência na sociedade,
independentemente de fazer uso deles de maneiras diferentes ou de estar em um nível
inaugural de pesquisa.
Em relação a isso, podemos lembrar o que Kuhn (2011, p. 37) diz sobre a prática da
ciência na vida:

Nenhuma história natural pode ser interpretada na ausência de pelo menos algum
corpo implícito de crenças metodológicas e teóricas interligadas que permita
seleção, avaliação e crítica. Se esse corpo de crenças já não está implícito na coleção
de fatos – quando então temos à disposição mais do que “meros fatos” – precisa ser
suprido externamente, talvez por uma metafísica em voga, por outra ciência ou por
um acidente pessoal e histórico. Não é de admirar que nos primeiros estágios do
desenvolvimento de qualquer ciência, homens diferentes confrontados com a mesma
gama de fenômenos – mas em geral não com os mesmos fenômenos particulares –
os descrevam e interpretem de maneiras diversas. É surpreendente (e talvez também
único, dada à proporção em que ocorrem) que tais divergências iniciais possam em
grande parte desaparecer nas áreas que chamamos ciência.

Vemos que, no decorrer da história do homem, todo e qualquer fato ou situação que
foram desenvolvidos na sociedade só podem ser observados e analisados a partir de uma
fundamentação teórica e um método de análise baseado em uma teoria. É com um olhar de
cientista, baseados em concepções e perspectivas teóricas, que podemos fazer análises e
críticas de uma seleção que pretendemos investigar.
Nossa opção pelo objeto que pretendemos estudar está relacionada à possibilidade de
confrontá-lo a partir de uma certa perspectiva de análise e do estabelecimento de
determinados paradigmas que contribuíram para as diversas formas de observação dos dados.
Até porque, conforme diz Kuhn (2011, p. 38), “para ser aceita como paradigma, uma teoria
deve parecer melhor que suas competidoras, mas não precisa (e de fato isso nunca acontece)
explicar todos os fatos com os quais pode ser confrontada”. Ou seja, o confronto entre um
paradigma e outro é constitutivo da pesquisa e da produção científica.

23
Ao tratarmos de ciência, estamos querendo refletir sobre a sua prática, o
funcionamento de seus mecanismos, no intuito de compreender como se comporta um
cientista. Para isso, entendemos que a noção de paradigmas, apresentada por Kuhn (2011),
pode nos auxiliar a questionar a produção acadêmica na contemporaneidade, pois são
modelos, interpretações e formas de representação do universo, que possibilitam a
identificação e a solução de problemas na sociedade.
Os paradigmas estabelecidos e as respostas para questionamentos, como os que
realizamos na justificativa desta investigação, colocam-se como pressupostos científicos.
Podemos dizer que são formas de fomentar as perspectivas teóricas e explicações que
desenvolvem as ciências. Para Kuhn (2011, p. 13), os paradigmas são “as realizações
científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e
soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”. O cartesianismo de
Descartes pode ser utilizado de exemplo, pois é uma concepção teórica que foi e é aceita por
vários pesquisadores e contribuiu para a resolução de muitas investigações.
É importante citar que, para Kuhn (2011, p. 35), “a história sugere que a estrada para
um consenso estável na pesquisa é extraordinariamente árdua”. Dizemos, então, que a história
evidencia a existência de dificuldades no caminho daquele que decide desenvolver uma
pesquisa e adentrar no universo da ciência, considerando que, à falta de um paradigma ou de
opções de paradigmas, sempre teremos fatos e situações que podem se demonstrar relevantes
para a pesquisa científica.
O desenvolvimento de uma atividade difícil, que vise contribuir com a construção de
paradigmas ou consolidar investigações a partir de uma teoria específica, é algo que necessita
de dedicação e implicação do sujeito que a realiza e está diretamente relacionado à produção
de escrita que se caracterize pela implicação daquele que escreve com o trabalho em
execução.
Ainda tomando a concepção de ciência de Kuhn (2011), vemos que, ao termos
acesso ao desenvolvimento científico de um pesquisador ou de um grupo que consegue
sintetizar investigações e pesquisas a ponto de agregar mais interessados e membros para sua
comunidade científica, temos como consequência o desaparecimento de outros grupos ou
perspectivas teóricas que, de certa maneira, se enfraquecem diante da sociedade.
Em relação ao enfraquecimento de áreas e determinados grupos, Kuhn (2011, p. 39)
afirma que:

24
Seu desaparecimento é em parte causado pela conversão de seus adeptos ao novo
paradigma. Mas sempre existem alguns que se aferram a uma ou outra das
concepções mais antigas; são simplesmente excluídos da profissão e seus trabalhos
são ignorados. O novo paradigma implica uma definição nova e mais rígida do
campo de estudos. Aqueles que não desejam ou não são capazes de acomodar seu
trabalho a ele têm que proceder isoladamente ou unir-se a algum grupo.

Vemos essa situação como algo de muita importância, pois, ao pensarmos na questão
do jovem pesquisador que desenvolve sua pesquisa em âmbito da formação universitária,
compreendemos que a conversão de adeptos ou a decisão de continuar em uma linha mais
“antiga” possam acontecer com um pouco mais de pressão, em razão de a relação entre o
aluno e sua pesquisa sempre ser mediada por sua relação com o orientador ou com os pares da
comunidade científica que deseja legitimar ou na qual pretende inserir-se.
Entendemos que, em certas situações, esse jovem pesquisador necessita continuar em
uma determinada linha de estudos ou aderir a um novo paradigma, de acordo com a decisão
de seus pares de “aferrarem-se” a uma concepção antiga ou não. Depreendemos que, em
diversos casos, poderá não haver uma implicação pessoal e particular do aluno com a
concepção e com a perspectiva teórica que fundamenta o seu grupo, pois ele é, comumente,
“levado” pela situação e por sua posição de aluno e jovem pesquisador. Isso tudo corrobora a
obrigatoriedade de produzir no meio acadêmico, já que, para o aluno de graduação, a
iniciação científica, evitada durante boa parte do curso, será, de alguma forma, realizada no
momento em que for preciso desenvolver sua monografia de conclusão de curso. Nesse caso,
referimo-nos, em especial, ao curso de Letras no qual coletamos os dados para nossa pesquisa,
e àquele aluno de iniciação que precisa aderir a um grupo ou a uma comunidade para
conseguir produzir um trabalho acadêmico que se conforme com uma produção científica.
A escrita de textos acadêmicos pode ser considerada uma produção científica,
justamente por implicar a aceitação de um paradigma e atender requisitos que não se limitam
apenas a questões institucionais – como a aprovação em uma banca de monografia, a
legitimação de seu grupo de estudos –, mas que também incluem responder a
questionamentos que só poderiam ser respondidos a partir do desenvolvimento de uma
investigação fundamentada em certos pressupostos teóricos. A produção acadêmica não pode
se limitar à tentativa de inserção de um trabalho ou do jovem pesquisador em uma
comunidade que a aprove e a legitime, pois ela parte da fundamentação de um paradigma e, se
caracterizada, de fato, como produção científica, contribuirá para a consolidação da
perspectiva teórica que utiliza, resolvendo e respondendo questionamentos e problemas que
auxiliam a sociedade e a comunidade científica da qual participa.

25
Sempre mencionamos a importância da legitimação da produção ou da inserção do
cientista ou, no caso em questão, jovem pesquisador em uma comunidade ou grupo científico.
Fazemos isso porque é através dessa legitimação ou aceitação que o cientista define para si
um paradigma como fundamental e, em muitos casos, como “certo”, desenvolvendo suas
investigações a partir dos princípios básicos da perspectiva teórica que escolheu para justificar
o uso de cada conceito que utiliza em sua produção. Na medida em que tudo isso acontece,
sua produção encaminha-se para um desenvolvimento que pode ser classificado como
importante para alguns e sem valor para outros.
Uma produção acadêmica pode, às vezes, não ser aceita pelos pares da comunidade
ou grupo científico do qual seu autor participa ou tem interesse de participar. É claro, porém,
que, independentemente de responder a um grupo, uma produção científica precisa responder
ao questionamento que justificou a realização da investigação. Não sabemos se a produção de
um trabalho acadêmico será legitimada ou irá legitimar quem a realiza, pois é possível que a
pesquisa não consiga resolver o problema que a suscitou e, assim, precise partir para um novo
recomeço, em busca de outro paradigma que possa contribuir para o levantamento de
respostas para os questionamentos
O caráter resolutivo dos trabalhos acadêmicos parece algo evidente, porém pode não
se aplicar em todos os casos, pois, muitas vezes, propostas de investigações legitimam-se na
academia mesmo fundamentadas em questões nem sempre relevantes ou respondíveis, mas
reconhecidas e aceitas pelos pares da comunidade científica que, para desenvolver suas
pesquisas, se utiliza do mesmo paradigma.
Por essas situações, acreditamos que, muitas vezes, temos o desenvolvimento de
pesquisas que acabam criando um sentido de banalização do paradigma utilizado como
fundamentação da proposta de pesquisa. Ou seja, em razão de não resolverem problemas ou
estes não se basearem em um questionamento que possa ser respondido, alguns trabalhos
acabam justificados apenas por comentar a evolução de um paradigma, de uma perspectiva
teórica, sem utilizá-la, efetivamente, no decorrer do trabalho.
Isso nos remete à ideia de Kuhn (2011, p. 41), quando afirma que o cientista que
escreve um livro tem mais probabilidade de ver sua reputação comprometida do que
aumentada. É, pois, evidente o risco de fracasso que toda produção corre, dada a proximidade
da produção acadêmica com uma realização profissional, já que ambas estão ligadas à
criatividade, que, no caso dos trabalhos acadêmicos, se manifesta perante as dificuldades para

26
demonstrar como um objeto de estudo torna-se produção científica ou pode ser considerado
como tal.
Entendemos que, para fazer de uma produção acadêmica uma produção de ciência, é
necessário transpor a repetição e a reprodução de modelos e padrões. Por isso, retomamos
aqui a noção de paradigma que, em alguns momentos, pode ser empregado como sinônimo de
padronização. Vemos que, na ciência, o paradigma dificilmente é passível de reprodução, pois
ele é um elemento que será articulado, questionado e colocado em diversas condições.
Queremos dizer que o trabalho acadêmico, quando chega a responder a questionamentos de
uma comunidade científica ou de toda sociedade, utiliza-se de um paradigma para conseguir
encontrar mecanismos e procedimentos que o auxiliarão no decorrer da investigação, porém,
em alguns casos, os paradigmas não funcionam como instrumentos auxiliares da produção,
mas tornam-se o que a produção almeja destacar. É como se o objetivo da pesquisa se voltasse
para a ação de evidenciar o paradigma, na qualidade de teoria, conceitos e autores.
Reconhecemos que o paradigma só é aceito a partir do momento em que consegue
responder a mais questionamentos importantes do que outros conceitos, auxiliando na
resolução de maiores investigações e, consequentemente, resolvendo a problemática que
determinadas comunidades científicas elencaram como questões primordiais a serem
respondidas. Segundo Kuhn (2011, p. 44), podemos dizer que a ciência normal consiste na
concretização da promessa de responder a questionamentos e de atualizar-nos, ao ampliar o
conhecimento sobre fatos que o paradigma apresenta como relevantes, reforçando a relação da
realidade social com o próprio paradigma.
Essa relação não determina que o cientista – e, neste caso, quem tem interesse pela
produção científica no universo acadêmico – procure sempre a invenção de teorias novas. Ao
contrário disso, Kuhn (2011, p. 45) aponta que, por muitas vezes, os pesquisadores são
intolerantes com as teorias recém-inventadas por outros estudiosos, afirmando que “a
pesquisa científica normal está dirigida para a articulação daqueles fenômenos e teorias já
fornecidos pelo paradigma”.
Ao tomarmos como referência de produção científica a noção de paradigma
apresentada por Kuhn (2011), compreendemos que o pesquisador, neste caso o cientista, é
forçado pela teoria que utiliza como fundamentação, em conjunto com uma metodologia de
análise e experimentação, a investigar detalhadamente aspectos naturais de um modo que
poderíamos imaginar impossível de se fazer. Assim, a pesquisa pode ser vista como um
desafio para aquele que se propõe a investigar e, consequentemente, desenvolvê-la. Isso está

27
diretamente relacionado à investigação que desenvolvemos, pois a proximidade do que
analisamos com o que produzimos é muito grande, considerando que estamos tratando da
produção escrita ao mesmo tempo que desenvolvemos uma escrita acadêmica. Vemos esse
fato como um grande desafio para todo aluno, seja de graduação ou pós-graduação, já que
nem sempre aquele que escreve consegue desenvolver atitudes que o afastem da sua própria
produção e o auxiliem na consolidação de um modo de escrita que garanta a articulação dos
conceitos e das teorias do paradigma ao qual se associou para a coleta dos dados, as análises e
os objetivos propostos na pesquisa.
A ideia de paradigma prevê não só a vinculação a uma determinada perspectiva ou
fundamentação teórica, mas também a articulação da teoria com procedimentos
metodológicos capazes de conduzir a investigação proposta. As dificuldades dessa articulação
sempre são de ordem teórica e experimental, isto é, muitas vezes o cientista não possui a
habilidade necessária para articular seu conhecimento teórico com uma metodologia de
análise, limitando-se a apenas um desses aspectos, o que prejudica a resolução do problema
que justifica sua pesquisa.
Ao salientar a relevância da seleção de uma perspectiva teórica para o
desenvolvimento da ciência, Kuhn (2011, p. 55) apresenta a possibilidade de “[…] três classes
de problemas – determinação do fato significativo, harmonização dos fatos com a teoria e
articulação da teoria”, que são procedimentos essenciais para a construção de uma produção
científica. Em outras palavras, a ausência de qualquer um deles ou a não articulação entre
todos podem inviabilizar a proposta de investigação ou, ao menos, dificultar o resultado
positivo da pesquisa.
Vemos que as dificuldades de produzir sempre esbarram na intenção de construir
algo novo, o inédito, seja a partir do domínio da teoria ou do conhecimento dos fatos e dos
fenômenos pelo cientista. O que nos confirma a ideia de que uma proposta que não aponte
resultados tende a ser caracterizada como inválida ou fracassada. Para Kuhn (2011, p. 58),
essa situação não se refletirá no objeto de análise, mas sim naquele que propôs a pesquisa,
seja ele cientista ou o jovem pesquisador, já que os resultados de uma pesquisa só são
significativos para o pesquisador quando podem contribuir para ampliar o espaço e o alcance
do paradigma fundamental da pesquisa. Mas o trabalho também não se pode limitar a uma
devoção do cientista ao problema que investiga.
Acreditamos que, independentemente da possibilidade da proposta inicial ou do
resultado da pesquisa não ser satisfatório, a implicação do autor de uma produção científica

28
ultrapassa a exigência de aprovação ou de aceitação da produção. Compreendemos que a
dedicação do pesquisador, seja de graduação ou em níveis superiores, é mediada pela relação
estabelecida entre a proximidade dele com o tema da investigação e a relevância da pesquisa.
Quando tratamos de pesquisas que contribuem para a consolidação de uma perspectiva teórica
como forma de responder a questionamentos e, assim, resolver problemas, a aceitação ou a
legitimação da produção é consequência do que foi desenvolvido antes, e não,
necessariamente, o objetivo central. Porém, como apontamos no decorrer do trabalho, é
possível que um trabalho acadêmico seja aprovado e legitimado sem conseguir responder aos
questionamentos que justificaram a realização da pesquisa.
Consideramos que o papel assumido por quem se dispõe a produzir cientificamente
ultrapassa a necessidade de dizer o que se propôs a explicar, pois são os questionamentos do
autor que justificam a pesquisa, independentemente do seu nível de complexidade. Uma
produção escrita tem como base a articulação de instrumentos, conceitos e práticas de análise
que auxiliam na resolução do “quebra-cabeça” que motiva a produção do trabalho realizado
pelo cientista, seja este um pesquisador já reconhecido ou o jovem pesquisador que se inicia
no mundo da ciência e da produção científica.
Acreditamos que investigações que não pressupõem a implicação do autor em
questionamentos que caracterizem qual a necessidade de realizá-las têm maior probabilidade
de não serem empreendidas ou de fracassarem. Isso não é condicionado, necessariamente,
apenas pela não aceitação do trabalho, pois um trabalho acadêmico aprovado por pares pode
constituir-se de uma pesquisa que não conseguiu desenvolver o que propôs – como constatou-
se através das análises –, mas que coloca em evidência um paradigma.
Kuhn (2011, p. 61) afirma que o “que incita ao trabalho é a convicção de que, se for
suficientemente habilidoso, conseguirá solucionar um quebra-cabeça que ninguém até então
resolveu ou, pelo menos, não resolveu tão bem”. O que nos leva à compreensão de que a
escolha de determinado trabalho ou proposta de pesquisa não ocorre de forma aleatória ou
sem critérios; ela recebe influência e é caracterizada pela formação e envolvimento daquele
que propõe a investigação. A execução desta está relacionada ao interesse daquele que
empreende a proposta realizada.
Compreendemos a formação acadêmica como um processo, assim, ao produzir uma
monografia, o aluno não pode limitar-se a regras metodológicas ou a paradigmas únicos. Ele
precisa refletir sobre as diversas possibilidades de investigação do “quebra-cabeça” que

29
resolveu “tentar montar”, a partir do estudo de pontos de vistas que o auxiliem na análise e
reflexão sobre o corpus da pesquisa.
Ao refletirmos sobre a concepção de ciência e produção científica que fundamenta
nossa proposta de pesquisa, é importante destacarmos também a concepção de escrita que nos
auxilia na compreensão da produção que analisamos. Tal reflexão envolve o entendimento da
escrita acadêmica como produção de ciência e, consequentemente, de conhecimento na
universidade contemporânea.
A escrita, seja acadêmica ou não, é uma representação de quem escreve, pois o
sujeito é refletido nela. A concretização de uma produção está relacionada a um exercício
próprio e específico daquele que escreve, que, para o desenvolvimento de seu texto,
estabelece um sistema de cooperação, convenções e relações interacionistas. Sobre isso,
podemos remeter ao que diz Coracini (2010, p. 9):

Toda escrita é inscrição de si, ainda que o gênero textual exija, por convenções tácita
e anonimamente acordadas, um (im)possível afastamento, uma (im)possível
objetividade que deveria fazer o objeto falar(-se), como é o caso do discurso
científico e do discurso jornalístico.

Isso corrobora com o que vimos em Kuhn (2011), pois não podemos condicionar
toda a produção ao paradigma a que nos filiamos e com o qual mantemos relações. A
produção nasce de uma participação de quem escreve, que interpreta as perspectivas, os
conceitos, e os articula com a proposta de investigação, implicando-se no que desenvolve.
Assim, podemos dizer que, além do conhecimento das formas linguísticas, das características
do gênero textual e da teoria que fundamenta a investigação, ao escrever, o autor implica-se e
participa da constituição do texto, isto é, inscreve o seu eu na constituição da produção e,
dessa forma, marca através da alteridade seu traço, sua particularidade no discurso, que, no
caso, é a escrita monográfica da investigação realizada durante a pesquisa.
Ao pensarmos a escrita, não podemos desconsiderar que um texto sempre diz algo do
seu autor, evidenciando marcas do eu, que é inscrito na produção e constitui-se como seu
sujeito. Para escrever, seja na academia ou na vida cotidiana, é necessário atender à demanda
de questionamentos existentes na vida, isto é, responder às inúmeras perguntas e inquietações
que nos cercam, mas também devemos considerar as normas e convenções que são acordadas
para padronização da grande variedade de formações discursivas específicas de diversos
grupos e comunidades. Retomando Coracini (2010, p. 21), “parece evidente que essas
convenções precisam ser ensinadas para que seja possível escrever textos acadêmicos, cartas,

30
narrativas…, para que seja possível, enfim, participar dos jogos de linguagem”. Ou seja, é fato
consolidado na academia que, para escrever de acordo com a diversidade de gêneros que a
linguagem oferece, devemos apreendê-los e garantir nossa adesão aos jogos linguísticos.
Há dificuldades de se expressar em meio a tantos discursos já proferidos. A
participação de quem escreve em seu próprio discurso permite uma reflexão sobre sua
identidade, que, segundo Coracini (2010, p. 10):

Como a própria palavra (re)vela, a identidade (latim - Idem = o mesmo) é a busca do


que nos torna iguais, ou ao menos semelhantes aos outros que nos cercam, nos
limites dos grupos que frequentamos ou das formações discursivas em que nos
inscrevemos.

A produção escrita revela e identifica aquele que escreve, é uma representação da


formação do autor, que se iguala aos pares, implica-se na escrita e contribui para a
consolidação do paradigma utilizado como fundamentação de sua pesquisa, auxiliando seu
grupo a perceber como manusear os instrumentos fornecidos por uma concepção teórica para
o desenvolvimento de pesquisas.
É necessário, pois, em meio à heterogeneidade da língua, saber expressar-se de uma
maneira singular. Ou seja, ser diferente em meio às diversas vozes que compõem nosso
discurso e, consequentemente, nossa escrita. Segundo Coracini (2010, p. 10), “ser singular é,
portanto, fazer do que é comum, semelhante, igual, algo incomum, diferente, desigual”. Trata-
se de conseguir, a partir de recursos linguístico-discursivos, garantir em algum momento o
deslocamento do que já foi dito, valendo-se de algo novo que auxiliará outros paradigmas e
investigações.
Compreendemos que somos seres semelhantes uns aos os outros, porém também
somos únicos, ao ponto de não haver nenhuma pessoa completamente igual a outra. Coracini
(2010, p. 10) atribui esse fenômeno à mutabilidade da identidade, que é instável e está em
constante mutação, por influência do outro e de si mesmo. Ou seja, desenvolvemos pesquisas
a partir de paradigmas iguais, que recebem um tratamento diretamente relacionado às formas
de relação que o escritor estabelece com a teoria e os pressupostos que utiliza para realizar a
investigação, e que são apresentados por Kuhn (2011) como modelos que contribuem para a
resolução de diversos problemas e questionamentos.
Baseando-nos, tal como Coracini (2010), em princípios da Pragmática, podemos
afirmar que escrever tem como finalidade a produção de um texto que contribua a um
propósito que o autor quer alcançar ao final. O resultado, porém, não é previsível e depende

31
de estratégias linguísticas, como a organização e a escolha de argumentos que definirão o
conhecimento daquele que escreve. Escrevemos de forma a sempre nos remetermos a um
leitor, seja ele real ou virtual. Durante a leitura, criamos a imagem de um autor que, ao
escrever, tem intenções, perceptíveis de acordo com o percurso que realizamos quando lemos
o texto, no qual identificamos pistas, sentidos deixados pelo autor.
Para explicar a noção de escrita que fundamenta essa pesquisa, é importante retomar
o que diz Coracini (2010, p. 24):

[…] escrita significa, ao mesmo tempo, um movimento para fora (ex-scripta) – de si


para o outro – e um movimento para dentro (in-scripta) – do outro para si, do outro
em si – de modo que a escrita, ou melhor, a escritura, implica na inscrição daquele
que (ex)põe suas ideias, seus sentimentos, seus afetos e desafetos, ao mesmo tempo
em que o sujeito se vê envolvido (marcado) pelo que escreve. Dessa perspectiva, a
inscrição de si na textualidade, no tecido, na tessitura, que constitui todo e qualquer
gesto de interpretação, é sempre produção de sentido e, portanto, produção de texto.

Nesse caso, ao analisarmos a escrita, não podemos desconsiderar a relação existente


entre quem escreve e o seu próprio texto. O ato de escrever constitui-se pela relação do “eu”
autor com o que está fora da linha e com o que ele escreve, mas também pela maneira como
ele se inscreve como “eu” na própria escrita, de forma a estar sempre envolvido e afetado pela
produção que realizou. Conforme vemos em Kuhn (2011), o autor se inscreve na sua
produção a partir de um paradigma que possibilita dar início à compreensão e à interpretação
do corpus, desenvolvendo um modo particular de fazer uso da teoria que escolheu como
fundamentação do trabalho.
O aluno, ao escrever sua monografia, também se inscreve e constitui-se como jovem
pesquisador a partir do texto que produziu. Pressupõe-se, assim, que a escrita de uma
monografia parte do comprometimento do aluno na investigação a que se propôs e que as
produções de sentido construídas com o texto são o que constitui a sua interpretação sobre o
que está investigando.
A produção de uma monografia significa a construção da identidade de seu autor,
colocando-o em um lugar de evidência dentro da comunidade científica em que pretende se
inserir. Essa produção é avaliada pelos questionamentos levantados e pela sua relevância,
considerando que no momento da produção, quem escreve é responsável pela sua autoridade e
pelo poder que exerce.
Neste capítulo, demonstramos como entendemos a produção escrita enquanto
produção científica no universo da academia. Compreendemos que é importante, para esta

32
investigação, deixar evidente um posicionamento em relação à produção de monografias na
graduação. Considerando a concepção de Kuhn (2011) sobre as revoluções científicas e a de
Coracini (2010) sobre escrita, entendemos que a escrita de uma monografia é um momento
em que o aluno desenvolve produção científica, partindo de sua necessidade de trazer
respostas e demarcar o paradigma adotado, contribuindo para a produção de ciência na
universidade. É uma produção que implica o “eu” do aluno. A monografia é um produto que
reflete a formação e a constituição do aluno como jovem pesquisador, que se implica no texto
para demonstrar o quanto pode contribuir na produção de ciência.
No próximo capítulo, dedicamo-nos a descrever como é possível verificar a presença
de outros discursos na produção escrita de monografias, apontando as diversas formas como
isso pode acontecer. Também demonstramos como podemos verificar a presença dos
discursos de outros autores em um discurso acadêmico, possibilitando observar como essas
participações contribuem para o trabalho ou desenvolvem sentidos que não são,
necessariamente, os que se planejavam ao propor o trabalho de pesquisa.

33
2. AS DIVERSAS VOZES QUE HABITAM O TEXTO ACADÊMICO: DA
HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA À REPETIÇÃO E INCORPORAÇÃO DE
CONCEITOS

No capítulo anterior, nos dedicamos à discussão sobre concepções de produção de


conhecimento e escrita no ensino superior. Valemo-nos dos historiadores da ciência, como
Kuhn (2011), e de pesquisadores, como Coracini (2010), a fim de mostrar como os conceitos
adquirem diferentes significados com o decorrer dos séculos e com a publicação de novas
pesquisas. Nesse sentido, uma das variantes para definir produção é a área em que o
conhecimento é produzido.
Nas ciências humanas, por exemplo, campo no qual se inscrevem os trabalhos que
compõem o corpus desta pesquisa, a produção de conhecimento encontra-se atrelada à escrita
de textos acadêmicos que, além de descrever resultados, devem fazê-lo de forma
compreensível para os seus pares. Como vimos anteriormente, não se trata apenas do relato de
resultados, mas também da forma como este é produzido.
No capítulo precedente, apresentamos a concepção de escrita que embasa esta
pesquisa. Já neste capítulo, tratamos da heterogeneidade de vozes que constitui um texto
acadêmico, amparados, sobretudo, pelos estudos de Authier-Revuz (2004; 2007).
A autora considera que todo texto, independentemente do contexto de sua produção,
é composto por uma heterogeneidade de vozes, uma diversidade de dizeres e de já-ditos, que
são retomados, explícita ou implicitamente, em sua produção. Nesse sentido, cada texto é um
novo texto, porque é uma nova enunciação e um já-dito, visto que se trata de um enunciado
composto de outros enunciados5 que circulavam anteriormente.
É importante deixar claro que não estamos propondo uma análise apenas da
heterogeneidade do texto escrito, mas partimos de seu estudo para tratar dos efeitos gerados
por ela. Valemo-nos do conceito teórico de heterogeneidade enunciativa, exposto neste
capítulo, para analisar um dos efeitos da utilização da voz do outro, que nomeamos como
efeito de promoção de uma teoria, de um conceito teórico ou de um autor.
Tomamos da teoria da heterogeneidade discursiva de Authier-Revuz os conceitos de
heterogeneidade explícita (2004) e de alusão e remissão (2007), que nos auxiliam na

5
Tomamos para este trabalho os conceitos de enunciação e enunciado de Benveniste (2005). O autor considera a
enunciação como processo que demonstra a mobilização da língua por parte do locutor. Afirma que ela é o ato
de apropriar a língua que insere quem fala em sua própria. Em tempo, afirma que o enunciado é um resultado,
produto desse processo, com sua forma determinada pelas relações que o locutor estabelece com a língua.
Portanto, consideramos a enunciação como um ato, através do qual o locutor se apropria da língua e das
características linguísticas desenvolvidas nessa relação.
34
observação e no entendimento do processo de participação do outro no nosso próprio dizer.
Essa presença de outras vozes no discurso de uma produção escrita evidencia a possibilidade
de manifestração de um efeito de sentido que desconstrói a noção de produção científica, tal
como proposta no primeiro capítulo desta dissertação.

2.1 A heterogeneidade enunciativa

Authier-Revuz (2004) apresenta a ideia de que todo texto conta com a participação
de discursos de outros autores, isto é, a presença de dizeres diferentes daquele para quem o
locutor constrói o enunciado. A pesquisadora denomina tal fato de heterogeneidade
constitutiva do discurso e afirma, além disso, que ela pode ser mostrada marcada ou não
marcada. Entendemos, assim, que, a partir desses conceitos, podemos analisar produções
escritas, tais quais as que selecionamos (monografias) como corpus para este trabalho, com o
objetivo de demonstrar como um aluno de graduação faz uso de uma teoria,
operacionalizando e mobilizando conceitos teóricos.
O conceito de Pêcheux (1969) de interdiscurso é retomado por Authier-Revuz
(1990), ao dizer que um sentido constitui-se de uma palavra em referência a um ou outro
sentido produzido alhures, no interdiscurso ou na língua, demonstrando que o funcionamento
desta gera diferentes manifestações linguísticas, que incluem as formações imaginárias e as
heterogeneidades constitutiva e mostrada.
Para explicar as formas de discurso que configuram a heterogeneidade enunciativa,
seja a constitutiva ou a mostrada, Authier-Revuz (2004, p.12, grifos do autor) declara que o
dizer possui em sua estrutura:

[…] o outro do discurso relatado: as formas sintáticas do discurso indireto e do


discurso direto designam, de maneira unívoca, no plano da frase, um outro ato de
enunciação. No discurso indireto, o locutor se comporta como tradutor: fazendo uso
de suas próprias palavras, ele remete a um outro como fonte do “sentido” dos
propósitos que ele relata. No discurso direto, são as próprias palavras do outro que
ocupam o tempo – ou o espaço – claramente recortado da citação na frase; o locutor
se apresenta como simples “porta-voz”. Sob essas duas diferentes modalidades, o
locutor dá lugar explicitamente ao discurso de um outro em seu próprio discurso.

Ainda nesse sentido, a pesquisadora traz a ideia de que, na heterogeneidade


mostrada, temos variações que devem ser consideradas, pois há diversas formas de utilização
de recursos linguísticos que marcam e demonstram a presença de outros discursos na
produção escrita. Sobre isso, Authier-Revuz (2004, p.13, grifos do autor) afirma que:

35
Uma forma mais complexa de heterogeneidade se mostra em curso nas diversas
formas marcadas da conotação autonímica: o locutor faz uso de palavras inscritas no
fio de seu discurso (sem a ruptura própria à autonímia) e, ao mesmo tempo, ele as
mostra. Por esse meio, sua figura normal de usuário das palavras é desdobrada,
momentaneamente, em uma outra figura, a do observador das palavras utilizadas; e
o fragmento assim designado – marcado por aspas, por itálico, por uma entonação
e/ou por alguma forma de comentário – recebe, em relação ao resto do discurso um
estatuto outro.

Vemos que existem várias formas e modos de se observar a heterogeneidade dos


enunciados. A reflexão apresentada pela autora parte de um conceito possivelmente radical
em relação à participação, em um discurso, da voz de outro, além daquela do locutor que
aparentemente profere um novo enunciado. Por isso, entendemos que o conceito de
heterogeneidade discursiva transcende a ideia de participação e fundamenta-se a partir do
conceito de enunciação. A ideia de heterogeneidade discursiva, apresentada por Authier-
Revuz (2004), tem, como uma de suas bases, o conceito benvenistiano de enunciação,
segundo o qual, um enunciado é constituído de outros enunciados (BENVENISTE, 2005), o
que, de fato, evidencia a possibilidade de existência das diversas formas de heterogeneidade
de um discurso.
Authier-Revuz (2004) afirma que todo discurso, em sua constituição, tem a
participação do outro, que pode ser aquele para quem o locutor constrói o enunciado, o
referenciado nele ou, ainda, o que o atravessa. Essas vozes referem-se tanto a outra pessoa
concreta, mencionada pelo autor do texto, quanto ao próprio “inconsciente” do locutor. Desse
modo, podemos notar que a construção de um texto acadêmico tem, como parte da sua
estrutura, a participação de vozes de outros pesquisadores, que, de certa forma, auxiliam na
formatação do discurso e funcionam como meios de argumentação, a partir de paráfrases,
citações etc.
A partir das análises iniciais, verificamos que a produção escrita de textos
acadêmicos compõe-se da marcação do discurso do outro, como todo e qualquer texto
científico, e que a presença de outras vozes é constitutiva. A marcação do outro é uma forma
tradicional e satisfatória de desenvolver uma argumentação na escrita, porém, às vezes, a
referência ou citação presente no texto, não condiz com o sentido no qual foi empregada, isto
é, podemos ter citações descontextualizadas, que comprometem a coerência e o entendimento
do texto.
A teoria da heterogeneidade enunciativa de Authier-Revuz (2004) tem, como um dos
seus eixos, o conceito de práticas dialógicas de Bakhtin (2006), que apresenta o discurso
36
como o resultado de uma interação. Trata-se de um processo com a participação de quem
produz e de quem recebe o que está sendo produzido. Esse conceito nos permite perceber
como ocorre a interação entre eu e o outro na escrita acadêmica, como esse processo pode
influenciar a articulação dos conceitos teóricos e como estes são utilizados na produção
escrita. É, a partir disso, que verificamos como é composta a heterogeneidade do discurso do
aluno, na produção escrita de sua monografia, através da observação da utilização dos
conectivos e dos diversos conceitos apresentados no texto acadêmico, no capítulo dedicado à
análise dos dados.
Por meio da análise dos dados que propomos, observamos as formas explícitas de
heterogeneidade discursiva, que, para Authier-Revuz (2004, p. 12), referem-se ao momento
em que “no fio do discurso que, real e materialmente, um locutor único produz, um certo
número de formas, linguisticamente detectáveis no nível da frase ou do discurso, inscrevem
em sua linearidade, o outro”.
Segundo a pesquisadora, o outro é parte do discurso relatado e é construído a partir
de elementos linguísticos que demonstram essa presença alheia. São marcas desse discurso: a
modalização em discurso segundo, as ilhas textuais e os discursos relatado direto e relatado
indireto. Com isso, vemos uma possibilidade de analisar tais recursos linguísticos, verificando
os sentidos que podem desenvolver na escrita acadêmica. Acreditamos que, por meio da
observação dos diversos modos de o outro estar presente no discurso, é possível identificar o
desenvolvimento de um efeito de sentido que fundamenta a ideia de que o texto que
analisamos tem como objetivo principal a promoção de um dos outros que participam do
discurso.

2.1.1 A heterogeneidade explícita/mostrada

A modalização em discurso, para Authier-Revuz (2004), apresenta-se quando o


locutor não se responsabiliza sozinho pelo que enuncia e filia-se a outra voz, indicando que
está se apoiando em um discurso de outrem. Podemos citar o uso dos conectivos “de acordo”,
“conforme”, “segundo” etc. O uso de conectivos como esses pode ser considerado como um
controle que o outro impõe sobre o discurso.
As ilhas textuais são formas de marcar a voz do outro, nas quais aquele que enuncia
utiliza-se de um trecho, com aspas ou em itálico, que se encaixa na ordem sintática de seu
próprio texto, deixando-o, de certa maneira, híbrido, pois é possível perceber, que essa parte

37
do texto não é assumida por quem escreve, e sim utilizada como forma de referência e
argumento, caracterizando uma divisão da responsabilidade com o seu referente.
O fato de o aluno não assumir toda a responsabilidade em relação ao seu discurso
remete-nos ao que afirma Fabiano-Campos (2011, p. 14):

[…] quando tentamos parafrasear um texto de um autor, que comumente aparece


acompanhado dos termos segundo, conforme, de acordo, entre outros, assumimos
uma maior responsabilidade pela interpretação do dizer. No uso da citação indireta
parece que desempenhamos uma responsabilidade do dizer que não é
completamente nossa.

A escrita de um texto responsabiliza aquele que o escreve, mas, a partir do momento


em que nos utilizamos de recursos linguísticos para marcar a presença do outro que nos
atravessa, acabamos por dividir a responsabilidade com alguém que já possui autoridade no
assunto discutido. É necessário, porém, deixar claro que essa responsabilidade é assumida
involuntariamente, faz parte do processo de escrita. Podemos dizer que quem escreve um
texto sabe da necessidade de articular o seu dizer com as outras vozes que constituem sua
escrita, mas não há indicativo de que a construção desse discurso seja intencional, isto é, ao
utilizarmos recursos linguísticos – formas de marcar a participação de outros em nosso dizer –,
como estratégias de argumentação, não há, necessariamente, interesse ou conhecimento
daquele que escreve quanto ao desenvolvimento de efeitos de sentido como o de promoção.
Isso reforça o entendimento de que a produção escrita é um processo que requer
conhecimento sobre determinados procedimentos, e, neste caso, aquele que escreve uma
monografia pode ainda não ter passado por uma formação que o tenha levado a desenvolver
tais saberes. Compreendemos, porém, que é possível, a partir da formação inicial de
graduação, entender a radicalidade da presença de outros discursos em nossa própria produção
e, ao menos, conseguir produzir a partir da escrita que desenvolvemos.
Pensando nessas situações, vemos que uma das formas de percepção do uso das
marcações é a análise do emprego de determinados conectivos, presentes em algumas partes
do texto, que não são característicos do estilo daquele que escreve. Eles são utilizados como
marcas linguísticas de apresentação da voz do outro.
O discurso relatado direto, diferente da modalização em discurso segundo, não
possui uma marcação que aponte uma relação do locutor com o outro citado. Nesse caso,
podemos dizer que temos, quanto à responsabilidade do dizer, a produção de uma imagem de
fuga do locutor, que dissocia sua voz daquela citada. O discurso caracteriza-se por uma fala
relatada espontânea, que marca o locutor como mensageiro, como porta-voz, similar ao que se
38
observa em textos mais objetivos, como artigos de jornais e revistas populares, que contam
com um leitor ávido de um discurso direto e imediato.
Ao retomarmos Bakhtin, fonte utilizada por Authier-Revuz (2004), constatamos que,
no discurso direto, o sujeito que cita pode transformar o discurso citado em algo
autossuficiente, absoluto, sem parecer relacionado com o texto que o cita. Nesse caso, a
palavra alheia assume a condição de palavra reproduzida, palavra monológica que não
estabelece diálogo com a palavra dita pelo sujeito da escrita. Assim, vemos como questões
importantes: por que, na universidade contemporânea, esse tipo de relação com a palavra
alheia acontece? Por que é tão difícil para o aluno da graduação estabelecer uma relação de
diálogo com a palavra alheia?
O discurso relatado indireto tem um locutor que, de diversas maneiras, diz a partir do
outro. Ele não deixa de figurar como porta-voz, mas aproxima o seu discurso daquele que usa
como referência, deixando marcas indicativas da presença do outro em sua estrutura. Esse tipo
de discurso é encontrado em textos em que são mais visíveis os recursos denotadores da
participação do outro. Um bom exemplo é a modalização em discurso segundo, que, de certa
forma, está mais presente em trabalhos acadêmicos. Tal modalidade de escrita dirige-se a um
leitor que cria expectativa sobre o que vai ler e que tende a demarcar suas ideias a partir de
uma questão teórica referenciada.
Os conceitos de discurso relatado direto, discurso relatado indireto, modalização em
discurso segundo e ilha textual (palavras isoladas e marcadas por meio de aspas, itálico etc.)
são recursos que nos auxiliam responder os questionamentos que realizamos no início deste
trabalho e que guiarão toda nossa investigação.
Authier-Revuz (2004) afirma que as vozes mostradas em um texto são as marcas do
outro em um discurso e classifica-as como formas de conotação autonímica. Elas podem ser
aplicadas com interrupção sintática, através do uso de aspas, itálico etc., ou, ainda, sem
interrupção sintática, caracterizando-se como glosas do locutor, que variam entre as tentativas
de, diante do outro referenciado no discurso, adequar-se, corrigir-se, confirmar-se etc.
A conotação autonímica, para Authier-Revuz (2004, p.13), são formas de inserção de
um dizer alheio nas quais “o locutor faz uso de palavras inscritas no fio de seu discurso sem a
ruptura própria à autonímia e, ao mesmo tempo, ele as mostra.” Elas apresentam em sua
estrutura diferenças de aplicação que podem ser utilizadas como categorias de análise para
observarmos como ocorre a participação do outro na escrita da monografia, ou seja, elas nos
auxiliarão a perceber, no momento em que analisarmos os dados que compõem o corpus desta

39
investigação, como é utilizado o discurso de outro na estrutura do discurso daquele que
escreve, sem alterar sua organização sintática.
O outro não só participa do discurso, mas o estrutura, e, assim, desenvolvem-se
sentidos que não necessariamente compunham o texto original ou que são, até mesmo,
diferentes daquele que o autor acredita construir. Há diversos efeitos produzidos em um texto
que explicitam as marcações de outros discursos. Mais especificamente, observamos a
possibilidade de, no processo de escrita, produzir-se um efeito de sentido que nos possibilita
questionar a validade do texto que é produzido como uma produção cientifica, qualificando-o
como repetição de algo já produzido.
Segundo Authier-Revuz (2004, p. 14, grifos do autor), a manifestação de formas de
marcação do outro constitui a estrutura de um metadiscurso ingênuo, que participa da
composição do discurso, e desenvolve um:

[…] controle-regulagem do processo de comunicação e especificam, sob a forma


negativa do sinal de falta ou da operação de ajuste, as diferentes condições
requeridas aos olhos do locutor para a troca verbal “normal” e que, por isso, são
dadas implicitamente como “óbvias” no resto do discurso.

O controle apresentado pode ser determinado por marcações linguísticas da voz do


outro, caracterizadas pelo uso de expressões como “segundo”, “de acordo”, “também”,
“conforme” etc., que, além de serem elementos coesivos, exercem outras funções.
O uso exagerado dessas marcações pode esconder a dificuldade do aluno em
conseguir articular uma reflexão sobre conceitos de uma dada teoria e em aplicá-la em uma
análise de dados que represente um acréscimo à comunidade científica. A presença desses
mecanismos linguísticos revela, portanto, o modo como o aluno mobiliza os conceitos de uma
teoria na prática de sua escrita acadêmica.
Ao falarmos em acréscimo à comunidade científica, entendemos que, mesmo o aluno
configurando-se como um jovem pesquisador ou ainda em processo de iniciação científica,
ele deve, ao propor uma investigação, corresponder a seus objetivos, contribuindo com a
sociedade através de sua produção, no lugar de reproduzir ou, em determinados momentos,
apenas evidenciar o que já foi produzido.
Outra característica que podemos levar em consideração durante nossa análise é o
uso dos conectivos de maneira a contribuir para:

O pertencer das palavras e das sequências de palavras ao discurso em curso: em


todas as formas de remissão a outro discurso já dito, campo muito vasto da citação

40
integrada, da alusão, do estereótipo, da reminiscência, quando esses fragmentos são
designados como “vindos de outro lugar” (AUTHIER-REVUZ, p. 16-2004, grifos
do autor).

Essas situações podem ocorrer como tentativa do locutor para adequar o discurso de
uma variedade de língua a outra, para concordar com o interlocutor que participa da
composição discursiva em questão ou, então, para remeter seu discurso a um discurso
anterior.
Uma produção escrita faz remissão a um discurso já estabelecido e reconhecido na
academia, porém, ao não fazer uso de marcações linguísticas, limita-se a repetir um ou outro
conceito, esquecendo-se de articulá-los com seu objeto e, consequentemente, de realizar a
pesquisa proposta no início do trabalho. No entanto, é importante ressaltarmos que as formas
de controle apresentadas por Authier-Revuz (2004) são parâmetros para a escrita e estão
presentes em todos os discursos. A partir da análise da maneira pela qual a escrita marca o
discurso do outro em sua estrutura, é possível refletir sobre uma justa medida entre a
participação do outro em textos acadêmicos, como também perceber até que ponto a
utilização de citações e referências funcionam como argumentação do texto de quem escreve
ou como modo de escrita capaz de produzir um efeito de sentido de promoção da voz do
outro. Entenda-se que as fragilidades apontadas acima não podem ser atribuídas apenas a
questões de conhecimento sobre normas de metodologia científica.
Nesse sentido, tomamos a escrita como um processo pelo qual se realiza uma ação.
Ainda que, aparentemente, único e homogêneo, ele tem uma estrutura heterogênea e parte de
uma materialidade linguística que ultrapassa o conceito de representação da fala no papel. A
base da atividade de escrita é dar condições para que o aluno distancie o escrever do registrar
por escrito uma fala, um pensamento ou uma mensagem de terceiros. Escrever um texto
acadêmico implica demonstrar a participação daquele que o produz, e não apenas a
reprodução de conceitos. Sabemos, contudo, que a participação do outro em nosso discurso é
constitutiva. A partir de análises, identificam-se elementos que denotam tanto a presença da
voz do outro quanto a particularidade daquele que escreve o texto. As marcações das vozes
presentes na escrita podem, portanto, construir a argumentação e contribuir com ideias novas
para a comunidade científica.
Toda escrita revela, em sua estrutura, a participação de vozes de outros, seja
mostrada ou não mostrada, situação determinada pela heterogeneidade enunciativa. Esse
processo demarca as vozes que participam do discurso e auxiliam no funcionamento do

41
enunciado, fortalecendo a argumentação e dando sustentação para quem escreve. Sobre as
vozes do outro que habitam os discursos, Authier-Revuz (1990, p. 27) recorre a Bakhtin:

Somente o Adão mítico, abordando com sua primeira fala um mundo ainda não
posto em questão, estaria em condições de ser ele próprio o produtor de um discurso
isento do já dito na fala de outro. Nenhuma palavra é “neutra”, mas inevitavelmente
“carregada”, “ocupada”, “habitada”, “atravessada” pelos discursos nos quais “viveu
sua existência socialmente sustentada”. O que Bakhtin designa por saturação da
linguagem uma teoria da produção do sentido e do discurso: coloca os outros
discursos não como ambiente que permite extrair halos conotativos a partir de um nó
de sentido, mas como um “centro” exterior constitutivo, aquele do já dito, como o
que se tece, inevitavelmente, a trama mesma do discurso.

Dessa maneira, não podemos desconsiderar a heterogeneidade presente na


composição do discurso e, seguidamente, na estruturação de uma escrita acadêmica, pois toda
posição tomada por um sujeito parte de uma organização discursiva que apresenta, em seu
todo, particularidades de diferentes discursos.

2.2 Remissão e alusão ao outro

A teoria da heterogeneidade discursiva, utilizada como base para descrever e


entender a estrutura do discurso que analisamos, tem como foco a apresentação das diversas
formas de se evidenciar a participação do outro na constituição da escrita. A partir das
descrições de como podemos marcar ou não a voz do outro, evidencia-se que essa
característica da constituição do discurso é fundamentada pela ação do locutor/interlocutor
sempre que, mesmo inconscientemente, fizer uma remissão, isto é, remeter a outro que
contribua com o que está produzindo discursivamente.
Esta remissão é uma alusão feita ao já-dito, ao discurso já proferido, àquele que nos
possibilitou dizer o que estamos dizendo agora. A ideia é que a construção do enunciado parte
do diálogo com outros discursos que o constituem e marcam a presença do outro. Entretanto,
é muito importante esclarecermos, neste momento, que nem sempre a alusão/remissão ao
outro é satisfatória. Por vezes, podemos remeter a um texto imbuído de sentidos que não
condizem e não concordam com o que é dito. Em razão de todos os enunciados serem
produzidos a partir de outros, é possível fazer alusão a um dizer sem considerar a relação que
este precisa ter com o discurso construído naquele momento.
Para tanto, construímos um tópico que explicará melhor o que se entende por alusão
e remissão ao outro, demonstrando que o processo de alusão justifica, muitas vezes, as

42
marcações da heterogeneidade discursiva, de que tanto falamos, e que, consequentemente,
contribui com a análise dos efeitos que a diversidade de vozes em um discurso constrói.
Assim, pensando nos conceitos de alusão e remissão ao outro, podemos dizer que o
discurso funciona a partir do dizer de outrem. No entanto, a participação do outro não pode
renegar um posicionamento do eu. Authier-Revuz (1990, p. 33) afirma que:

[…] além do “eu” que se coloca como sujeito de seu discurso, “por esse ato
individual de apropriação que introduz aquele que fala em sua fala”, as formas
marcadas da heterogeneidade marcada reforçam, confirmam, asseguram esse “eu”
por uma especificação de identidade, dando corpo ao discurso – pela forma, pelo
contorno, pelas bordas, pelos limites que elas traçam – e dando forma ao sujeito
enunciador – pela posição e atividade metalinguística que encenam.

A partir de diferentes vozes, todo discurso revela em sua estrutura uma posição
própria, que determina a condição de autor daquele que escreve o texto. Conforme a citação
da autora, as marcações do outro funcionam como forma de confirmar e assegurar a
identidade daquele que cita. Trata-se de utilizar a voz do outro não só como fundamento e
argumento para a escrita de um texto acadêmico, mas também como base do seu próprio
dizer, isto é, além de constituí-lo, a participação do outro também molda, caracteriza e
identifica o discurso produzido naquele momento.
A escrita que não articula seu dizer com o do outro, que faz remissão a algum autor
de forma que os sentidos não dialoguem, desenvolve uma inversão do “eu” que escreve o
texto. Ao contrário de funcionar como argumentação do dizer de quem escreve, o discurso
citado, a fundamentação teórica do trabalho, coloca-se em evidencia. O “eu” que escreve
caracteriza-se, desse modo, apenas pela reprodução do outro, legitimando um enunciado que
deveria funcionar como forma de legitimação do seu dizer. Temos uma inversão de papéis: o
aluno, em vez de fundamentar sua investigação com o uso de discursos já consolidados,
utilizando-os como forma de sustentação, ocupa um espaço de “porta-voz” em seu “próprio”
texto, configurando-se como reprodutor.
Uma situação que se aproxima do que estamos dizendo é aquela em que encontramos
marcações do outro sem valor funcional para o discurso produzido. É como se a participação
se justificasse pela representação na comunidade acadêmica, e não pela relevância em relação
ao que está sendo produzido de novo. Em casos como esses, percebe-se uma quantidade
excessiva de marcações no discurso, o que, de certa forma, indica um “eu” que se esconde e
usa o texto como recurso para a demonstração do outro, incapaz de construir elementos que
garantam sua singularidade. O discurso daquele que escreve pode então funcionar como

43
suporte de transmissão do dizer de outro autor, o que, em nosso entendimento, contribui com
a construção de um efeito de sentido que passa a ideia de que a produção escrita tem como
função a promoção de um conceito, de uma teoria ou mesmo de um autor a quem se fez
alusão/remissão.
A utilização das vozes de outro no texto acadêmico é comum e faz parte do processo
de construção da escrita científica. Aquele que escreve um texto sempre faz remissão a outra
voz para construir o seu próprio discurso. Authier-Revuz reafirma a existência do processo de
remissão ao outro e o identifica como alusão, isto é, uma forma de remetermos a um
determinado discurso para compor o nosso próprio dizer.

Forma de dialogismo interdiscursivo (no sentido de Bakhtin), fazendo ressoar em


suas próprias palavras as palavras de outros, a alusão é especificamente, se
comparada às formas marcadas de empréstimo, um tipo de dialogismo interlocutivo
que implica, nas palavras do enunciador, “aquele para o qual elas se dirigem”.
Abandonando as amarras do uso de qualquer marca linguística, assegurando de
forma mínima a informação do empréstimo realizado, a alusão é proposta para ser
reconhecida pelo outro e só pode ganhar corpo se reconhecida; apostando no outro-
receptor para reconhecimento do terceiro-outro – o já-dito presente em suas palavras
–, o enunciador que escolhe a alusão escolhe correr o risco de perda de seus lucros e
o risco do fracasso: ao praticar esses jogos dialógicos – interdiscursivos e
interlocutivos – sem qualquer garantia, o enunciador perde a sua aposta… ou
duplica os seus ganhos. (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 25-26, grifo do autor)

A autora retoma conceitos bakhtinianos para explicar o processo de alusão,


considerado como uma forma de dialogismo, ressaltando a ideia de que a produção de um
enunciado passa por uma importante relação interlocutiva entre quem enuncia e para quem é
enunciado, na qual ambos precisam aceitar a remissão que é realizada. Ao proferirmos um
discurso, sempre fazemos alusões que remetem a algum já-dito, não só para fundamentar, mas
também para justificar.
Os discursos são sempre contrapalavras e, como tais, estão sempre respondendo a
outros dizeres. O processo de alusão, chamado pela autora de alusividade, porém, sempre será
marcado pelo reconhecimento de todos que participam do processo de interlocução, ou seja, a
remissão que fazemos ao outro precisa ser validada por quem interage com o locutor.
Não podemos esquecer que o uso da alusão ao sentido e à voz do outro também traz
riscos para a produção do texto quando, por exemplo, a remissão ao outro é falha e o sentido
produzido por quem cita não se aproxima nem se articula com o citado, ou ainda, quando não
é possível perceber os sentidos produzidos por aquele que cita. Essa escrita, a todo o
momento, marca a palavra alheia, sem demarcar a articulação entre a sua produção e a do
outro, e, assim, apenas reproduz os sentidos. Podemos dizer que o fracasso da alusão pode
44
acontecer tanto quando remetemos um dizer a outro despido de sentidos articulados como
quando nos limitamos apenas a articular a mesma produção de sentido a partir de duas vozes.
Essa situação revela uma característica interessante: demonstra que o discurso
produzido pode não ser aceito. Há casos em que o interlocutor não valida o processo de alusão
que foi realizado. Para a autora, essa é uma situação de risco em relação à produção de um
enunciado. Como a alusão é característica fundamental do discurso, nos arriscamos
constantemente ao produzir algo novo, pois, caso a alusão não seja reconhecida, configura-se
um caso de fracasso. Por outro lado, quando temos o reconhecimento da alusividade
realizada, há o ganho e a aceitação do que é produzido.
A partir do que vimos, podemos dizer que, no processo discursivo, sempre
realizamos a remissão a um já-dito, o que identificamos como um processo de alusividade.
Essa alusão ao outro, constitutiva do discurso, pode gerar ganhos e perdas para o locutor. A
possibilidade de perdas e ganhos é interessante, pois justifica a existência de diferentes efeitos
produzidos pela alusividade desenvolvida no discurso em questão. Assim, dependendo do
reconhecimento ou não da alusão realizada na produção discursiva, estabelecem-se
determinados efeitos de sentido.
Com isso, acreditamos na possibilidade de que alusões fracassadas, não reconhecidas
pelos interlocutores, sejam aceitas na comunidade científica, não pela articulação e pela
relação dialógica dos sentidos do dizer produzido com o já-dito remetido, mas, sim, pelo
reconhecimento do conceito, do autor ou da teoria, buscados e utilizados como
fundamentação do dizer construído. Vemos que quando há um processo de alusão fracassado
por não articular e dialogar com os dizeres produzidos e reproduzidos, ainda assim, sua
aceitação na academia é possível, em virtude do efeito de sentido que caracteriza a promoção
do dizer, configurada como a promoção do autor, da teoria ou de um conceito específico.
Compreendemos que o reconhecimento da funcionalidade do discurso em si
independe, nesses casos, das relações do dito com as teorias e conceitos referenciados. O que
vale é a reprodução de um dizer consolidado na academia, e não uma alusão que confirme e
garanta a veracidade da produção escrita de um texto.
Portanto o processo de alusividade, ou alusão pode ser entendido como forma de
remissão a outros sentidos, palavras ou coisas, na composição de nosso próprio discurso. Ao
tratarmos do conceito de alusão, podemos nos deter em uma das classificações que Authier-
Revuz (2004, p.14, grifo do autor) apresenta:

45
No campo em que a alusão se inscreve — o da não-coincidência do discurso consigo
mesmo, no qual opera o conjunto das formas de modalização autonímica “de
empréstimo”, assinalando localmente um “eu falo aqui com palavras exteriores”, é a
marca separadora entre o exterior e o próprio das palavras que o enunciador
escolheu em um processo de estabelecimento de fronteiras, que desenha, por
diferenciação, ao longo dos limites exteriores, o contorno de um interior, das
“próprias” palavras em que se apoia o sentimento de sua identidade, imaginário e
vital para o sujeito.

A alusão é a remissão daquele que escreve ao dizer do outro, a partir das não-
coincidências do dizer. Um autor remete a outro, articulando os sentidos produzidos em seus
discursos. Com palavras diferentes, o dizer daquele que escreve produz um mesmo sentido
daquilo que foi dito pelo outro citado, que funciona como argumentação, pois confirma o que
está sendo produzido por outro.

2.3 As não-coincidências do dizer

As não-coincidências são as relações de oposição entre o discurso produzido e outros


remetidos como referentes dentro de um dialogismo que os articula, no qual garantem-se
ganhos ou fracassos em um processo de alusividade. Elas demonstram o funcionamento de
uma referenciação na fundamentação ou na argumentação da produção, ou mesmo de uma
alusão fracassada, que é caracterizada por não relacionar os conceitos que tenta mobilizar com
o discurso produzido naquele momento.
Segundo Authier-Revuz (2004), o real da não-coincidência, inerente ao discurso
consigo mesmo (seja ela posta nos termos do dialogismo bakhtiniano ou da “primazia” do
interdiscurso de Pêcheux), faz com que, na sua própria essência e em todos os seus pontos –
em cada uma de suas palavras e de seus sentidos –, um discurso escape dele próprio por ser
constituído pelo e do já-dito.
Assim, através das relações entre o que dizemos e aquilo que já foi dito, remetido,
surgem as não-coincidências do dizer. Elas são as oposições ou articulações que garantem a
constituição do discurso produzido. As não-coincidências determinam a essência de um
discurso formado a partir de vários outros discursos, considerando-se aqui uma relação
dialógica no ato de escrita da monografia, que dá origem a um novo discurso.
Segundo Teixeira (2005), as noções de heterogeneidade mostrada e constitutiva
podem ser compreendidas como as não-coincidências. É uma reformulação teórica que
desenvolve outro ponto de vista, pois não trata essas heterogeneidades como duas formas

46
diferentes de se produzir enunciados, mas confirma a enunciação como fator constitutivo de
ambas.
Teixeira (2005) retoma a divisão de Authier-Revuz (2004), que nos auxilia a
observar como se organizam as marcações do outro nos diversos modos de escrita,
descrevendo quatro formas de não-coincidências.
A primeira é apresentada como não-coincidência interlocutiva. Ela se fundamenta a
partir de uma perspectiva de sujeito da psicanálise, dividido em consciente e inconsciente, ou,
de maneira mais formal, como interlocutor e coenunciador. Essa forma pode ser representada
de duas maneiras:
a) como a tentativa de se restaurar o UM;
b) quando marcamos o NÃO-UM.
A primeira forma é considerada como a ação de empregar, atribuir sentido ou
consentimento específico do outro, desenvolvendo uma prevenção da não coenunciação. Ela
evita o risco do sentido não ser transmitido.
O NÃO-UM é diferente porque o locutor identifica a diferença entre o que ele diz e o
que o outro diz, isto é, a diferença entre as palavras de quem escreve com as palavras de
outros que constituem seu discurso.
Outra forma de classificação da não-coincidência é o discurso consigo mesmo. Este
fundamenta-se a partir do dialogismo de Bakhtin e apresenta a ideia de que toda e qualquer
palavra tem marcas em razão de ser habitada e habitar outros discursos, o que relaciona-se ao
conceito de interdiscurso de Pêcheux (1969), segundo o qual o que já foi dito é parte da
construção do que será dito em outro momento. Podemos entendê-lo como uma forma de
explicar a interdiscursividade, que reafirma a existência de várias maneiras de o locutor
reagir, pois as palavras que pronuncia são de outro discurso.
A terceira não-coincidência acontece entre as palavras e as coisas e são formas de
romper essa relação biunívoca. É o caso de haver a relação de uma língua-sistema, que seja
finita, com outras que possuam infinitas singularidades. Trata-se da impossibilidade de
captura do objeto pela letra (TEIXEIRA, 2005, p. 161).
Por último, há a não-coincidência das palavras consigo mesmas, explicada a partir do
conceito de linguagem da psicanálise lacaniana, que consagra, como fundamental, as ideias de
sistema linguístico como unidade distinta e de enunciados como reflexos da imagem de um
locutor que percebe contrastes e contradições em seu próprio discurso.

47
Em nossa proposta de pesquisa, é importante entendermos que, ao perceber o
processo de alusividade construído pelas não-coincidências do dizer, poderemos, a partir de
análises e observações, identificar os efeitos de sentido produzidos pelas marcações do outro
no discurso acadêmico e, consequentemente, explicar a construção do sentido em que se passa
a ideia de que o texto promove um autor, um conceito ou uma teoria citados e garante sua
aceitação, independentemente de se constituir como um dizer fundamentado por uma alusão
falha e fracassada.

2.4 Repetição de conceitos teóricos nos textos acadêmicos

Compreendemos a necessidade de aprofundar a discussão sobre as características da


universidade contemporânea que permite e aceita a produção caracterizada pela repetição de
conceitos teóricos. Não basta apenas dizer que o aluno repete ou mostrar essa repetição. É
preciso fundamentar e analisar como o contexto atual – social, histórico, político e ideológico
– permite que a paráfrase seja o principal parâmetro de produção na graduação. Neste
momento, refletimos sobre a existência do processo de repetição em textos acadêmicos com o
objetivo de auxiliar posteriormente na análise que propomos realizar e, assim, responder o
questionamento levantado no início de nosso trabalho. Com isso, outros questionamentos
poderão figurar em outras pesquisas, que contribuirão com a discussão, necessária nos dias de
hoje, sobre a produção científica contemporânea.
Ao tratarmos dos processos de alusão e das não-coincidências do dizer, retomamos
questões já discutidas em pesquisas que tiveram como objeto a escrita de textos acadêmicos.
O trabalho de Fabiano-Campos (2007) trata, em parte, da característica dos trabalhos de
graduação de não articularem os conceitos teóricos utilizados como fundamentação e de
limitarem a produção dos trabalhos acadêmicos à repetição de conceitos de determinadas
teorias.
Retomamos algumas questões, em razão de acreditarmos que a repetição de
conceitos de uma teoria está diretamente relacionada aos processos de marcação do outro, isto
é, da heterogeneidade do texto acadêmico, como também aos processos de alusividade que
não desenvolvem uma articulação dos sentidos produzidos pela voz de quem escreve com
aquela citada. Ou seja, a repetição aponta, e em alguns casos evidencia, situações
características de alusão falha, que podem desenvolver o efeito de promoção que
questionamos em nossa pesquisa.

48
A formação acadêmica do curso de Letras – e de vários outros cursos que possuem
grande carga horária de disciplinas teóricas e subjetivas dedicadas unicamente à teoria, sem
distribuição de créditos para aulas de campo, laboratoriais ou de prática curricular –
desenvolve a aproximação do aluno com determinadas teorias ou áreas de estudo. Essa
situação é vista como uma necessidade de vincular o estudante a uma comunidade científica
na qual ele adentra como condição básica para desenvolver uma pesquisa ou um trabalho de
iniciação. Essa aproximação gera um vínculo entre o aluno de graduação e a teoria que ele
necessita conhecer para se inserir no grupo em que deseja desenvolver suas pesquisas.
É comum que todo aluno de graduação se aproxime de um referencial teórico para
fundamentar seus estudos e pesquisas e atender a demandas institucionais de produção, tais
como trabalhos para disciplinas, monografias e relatórios de iniciação científica,
independentemente de ter se vinculado a um orientador ou a grupos de estudo e pesquisas.
Quando há o vínculo do aluno com uma determinada comunidade científica e linha de
estudos, dependendo da relação que ele estabelece com a teoria em questão, com seus pares e
mesmo com seus orientadores, pode-se criar uma situação que o influencia, de certa maneira,
a se afastar de outros conhecimentos teóricos, apreendidos e estudados, no decorrer da
formação.
Esse afastamento nos faz refletir na possibilidade de que o aluno, apartado de outras
teorias e áreas de conhecimento, comece a desconsiderar métodos e fundamentações teóricas
para o desenvolvimento de pesquisas, limitando-se a reconhecer apenas os parâmetros
empregados por seus pares e membros da mesma comunidade científica. Entendemos que é
um direcionamento em suas atividades acadêmicas e uma consequência da filiação a um
grupo ou teoria, mas também acreditamos que isso pode contribuir, dependendo da proposta
de investigação do aluno, com a produção de trabalhos acadêmicos que não desenvolvam
análise de dados, e não demonstrem uma operacionalização e mobilização da fundamentação
teórica. São textos que reproduzem as leituras de autores consagrados pelos pares da mesma
comunidade científica ou que utilizam a teoria estudada como fundamentação de
investigações sem relação com os estudos do conhecimento teórico utilizado como base. Há,
portanto, produções que se classificam como reproduções, ou trabalhos que tendem a
fundamentar-se em uma teoria em detrimento de outras perspectivas teóricas que, talvez,
auxiliariam mais no desenvolvimento da investigação. Situações como a que apresentamos
acima afetam ou pelo menos influenciam a formação escrita do aluno, que pode apropriar um
entendimento sobre produção científica que legitima a reprodução.

49
Diferentemente disso, a produção científica deve sempre estar baseada em
fundamentações teórico-metodológicas, isto é, é necessário, na academia, apontarmos um
ponto de vista teórico que possibilite analisar e observar nosso objeto. Todos precisam se
vincular a uma teoria ou a um pressuposto para o desenvolvimento do trabalho de
investigação, pois, para a universidade, a pesquisa parte de um conhecimento específico sobre
o corpus analisado. Contudo, não podemos eleger uma perspectiva teórica como ponto de
vista capaz de fundamentar toda e qualquer proposta de investigação, ou desconsiderar que
toda produção científica parte da proposta de produzir algo próprio, mesmo que seja a partir
do que já foi produzido.
Considerando que os pares com que os alunos de graduação têm relação são os
colegas, os professores e o orientador, podemos lembrar o que afirma Fabiano-Campos (no
prelo, p. 8-9):

[…] os professores repetem e reforçam um discurso hegemônico sobre determinadas


áreas do conhecimento e acabam reproduzindo chargões de área que condizem com
o que Certeau (1995) chama de “charadas” que multiplicam as informações, mas não
se acrescenta a elas.

Esses “chargões” são frases de efeito ou conceitos isolados, maciçamente proferidos,


sem desenvolvimento ou conceituação, mas que são supostamente entendidos e auxiliam, em
grande parte, as investigações propostas na academia. É como se toda uma fundamentação
teórica fosse colocada em prática pela expressão de um ou outro conceito teórico, sem sua
devida articulação com o dado que se propõe a analisar.
A pesquisadora cita os professores que fazem repetições com intuito de reforçarem a
hegemonia de uma determinada área de conhecimento. Além deles, os pares de comunidades
científicas, isto é, aqueles que participam de um mesmo grupo de pesquisa ou servem-se de
um mesmo referencial teórico como fundamentação, tendem a legitimar a teoria que utilizam
pela repetição, sem desenvolver produções nas quais haja, necessariamente, a
operacionalização, a aplicação e a mobilização dos conceitos teóricos. Esse comportamento
tem consolidado uma formação que, de certa forma, naturaliza a adoção de uma escrita
caracterizada pela repetição de chargões, de informações, de conceitos generalizados de
determinadas teorias. Tais trabalhos não contribuem com a produção científica, apenas
reproduzem o já-dito como forma de garantir sua aceitação.
Os alunos de graduação podem, por influência da formação acadêmica e de modos
de orientações, participar da cultura de repetição de conceitos, o que contribui com a

50
dificuldade de incorporar teorias e articulá-las em uma análise do corpus de pesquisa. Todavia
não compreendemos essa situação como casos de desconhecimento ou de incapacidade de
alunos ou professores em desenvolver uma pesquisa. Para nós, ela assinala um modo de
produção e de constituição de sujeitos de conhecimento em vigência na universidade
contemporânea.
Não queremos, neste trabalho, questionar a relação entre orientador e orientandos,
pois a entendemos como constitutiva da maior parte das produções científicas e ainda mais
significativa, quando se trata de produções de iniciação científica. O problema que
levantamos e queremos analisar são as condições e as relações na produção de trabalhos
acadêmicos em cuja estrutura há predominância de repetições de dizeres do outro. Mesmo
conscientes que o outro nos atravessa, compreendemos que uma produção escrita precisa
articular um conhecimento teórico em uma análise de dados para responder questionamentos
e consolidar-se como uma produção científica.
Entretanto algumas pesquisas demonstram que a repetição de conceitos já é algo
comum nos cursos de formação. Segundo Fabiano-Campos (no prelo, p. 9), “a maioria não
consegue estabelecer relações entre os conceitos teóricos, os objetivos propostos e as análises,
não conseguem ir além da materialidade”. A pesquisadora aponta que, hoje, os alunos não
conseguem desenvolver, em suas produções acadêmicas, um trabalho que operacionalize a
teoria utilizada como fundamentação. Pelo contrário, os trabalhos resumem-se na repetição,
no redizer conceitos de uma teoria já consolidada na comunidade.
A autora também comenta as modalidades de repetições que ocorrem na escrita de
alunos da graduação. Um exemplo comum, que podemos mencionar, são os trabalhos
fundamentados na teoria da Análise do Discurso (AD) de linha francesa, que quase sempre
iniciam “com a apresentação ao leitor da ‘origem’ da disciplina de seus fundadores,
precursores da época em que chegou no Brasil, seguindo numa repetição infindável”
(FABIANO-CAMPOS, no prelo, p. 11).
Em muitos desses textos acadêmicos que tomam a AD como aporte teórico, observa-
se a repetição da história dessa área do conhecimento, sem que tal exposição se justifique,
visto que não tem nenhuma aplicação para o desenvolvimento da pesquisa. O autor apenas
narra, mais uma vez, o percurso da disciplina e, muitas vezes, expõe os conceitos mais
utilizados na área, mesmo que eles não sejam operacionais nos trabalhos. A desconsideração
do contexto, hoje, é salutar, porque essa exposição não é mais necessária – diferentemente do
que ocorria nas décadas anteriores, nas quais ela era fundamental para legitimar a Análise do

51
Discurso como uma importante teoria linguística –, já que se trata de uma teoria que tem seu
lugar nos estudos linguísticos brasileiros (havendo inclusive linhas de pesquisa em programas
de pós-graduação).
A partir da análise de alguns programas de pós-graduação na área de estudos das
ciências da linguagem, é possível perceber o quanto a teoria da Análise do Discurso de linha
francesa está legitimada e o grande espaço que ocupa dentro do panorama dos estudos
linguísticos no Brasil. Podemos indicar, como exemplos, os programas existentes nas
universidades estaduais de Campinas, de Maringá e do Mato-Grosso; nas universidades
federais de São Carlos, do Rio Grande do Sul, do Mato-Grosso e de Minas Gerais; e, ainda,
na universidade particular do Vale do Sapucaí, em Minas Gerais. Todas contam com
programas consolidados na área de estudos linguísticos e têm a teoria da Análise do Discurso
de linha francesa como uma das mais atuantes e respeitadas.
Fabiano-Campos (no prelo, p. 12), em sua investigação de doutoramento, diz que
uma situação como essa

[…] leva a construir a hipótese de que, para além de a repetição ser um momento do
aprendizado da escrita, tem se tornado, cada vez mais, parte de uma cultura própria
do meio acadêmico. Se aceitar o postulado de que a repetição consiste em um
momento do aprendizado, esta aceitação amplia o alcance deste enunciado para
vários outros momentos da escrita, causando problemas para a ideia de produção
acadêmica.

De acordo com as palavras da pesquisadora, a produção acadêmica caracterizada


pela repetição de conceitos é aceita e desenvolvida normalmente na academia como modelo
de produção para o aluno inserir-se em comunidades científicas. Ou seja, não estamos
tratando apenas da possível existência de um problema exclusivo da produção escrita, mas
também da problemática da formação e da concepção de trabalho de iniciação científica nas
universidades, ou ainda, do conceito de produção científica.
Nos trabalhos de conclusão de cursos de graduação ou nos textos de pós-graduandos,
encontram-se produções que se sustentam em repetições e não conseguem sair do senso
comum ou desenvolver uma reflexão sobre como a teoria apresentada pode ser mobilizada em
um determinado corpus de análise. A academia consolida-se, desse modo, como um espaço
que contribui com um ensino de escrita pautado na repetição do dizer de grandes autores.
Os questionamentos que fazemos podem soar de maneira negativa, mas é possível que
uma das justificativas para o que se tem encontrado, seja também resultado de uma prática de
ensino do professor, que desenvolve uma continuação da orientação.

52
Os professores se dirigem aos alunos por meio de uma linguagem de inculcação que
recai justamente na reprodução. No corpus analisado, foi possível verificar a
presença da repetição de termos teóricos sem uma precisão de sentido na análise dos
dados. A universidade forma alunos que não conseguem apreender o conhecimento
e abordá-lo nos textos produzidos de forma a sustentar sua escrita a partir de um
campo teórico definido. (FABIANO-CAMPOS, no prelo, p. 13).

Não queremos, de forma alguma, passar a ideia de culpa dos professores, mas é
inegável a relação entre essa produção e as práticas de pesquisa e orientação existentes hoje
nas universidades, pois não há como explicar de outra forma (até o momento) a razão pela
qual a escrita caracterizada pela repetição de algo que já foi dito é legitimada na universidade.
Além disso, há a aceitação dessa situação, tanto no interior das comunidades científicas
quanto na academia como um todo.
Essa situação pode ser entendida ainda como um reflexo da constituição do sujeito de
conhecimento na universidade contemporânea, que sofre grande pressão de agências
financiadoras e de instituições de regulação e amparo à pesquisa em relação à produção
quantitativa de textos acadêmicos. A produção escrita na universidade, nos dias de hoje, tanto
na graduação como em programas de pós-graduação, é caracterizada pelas relações
institucionais que têm como principais objetivos cumprir metas de quantidades de
publicações, e não fomentar a produção científica capaz de desenvolver novos conhecimentos
para a sociedade.
Nesse contexto, é possível perceber que, desde que o aluno faça a reprodução de uma
teoria dentro de, ou para, uma comunidade adepta a tais conceitos, o trabalho é reconhecido e
aprovado e, assim, possivelmente tido como produção de iniciação científica, já que tratamos
de monografias aprovadas por bancas de defesas, publicadas em revistas acadêmicas e, por
vezes, utilizadas como ponto de partida de outros trabalhos. A produção escrita na academia
tem resultado em trabalhos que, por diversas vezes, não pressupõem a produção de ciência ou
a contribuição com novos conhecimentos, mas caracterizam-se por redizer o que já foi
produzido. Com isso, em determinados casos, a aceitação de um trabalho na comunidade
científica não é mediada pela responsabilidade e relevância social da investigação, mas sim
pela reprodução de discursos que também fundamentam os trabalhos de seus pares.
É importante ressaltar que tomar a repetição de conceitos teóricos por produção de
um texto acadêmico não é algo exclusivo da universidade e dos textos que lá circulam
(dissertações, teses), mas é comum também em revistas e instrumentos de publicação. “O que
se sobressai é a forma mecânica e a falta de reflexão teórica com que os alunos estão se

53
incorporando de dispositivos de algumas disciplinas para elaborar seus trabalhos”
(FABIANO-CAMPOS, no prelo, p. 15).
De certa forma, a repetição excessiva visível em trabalhos acadêmicos sugere certa
banalização da produção científica na graduação e desmotiva a produção escrita em outros
níveis. Se o aluno desenvolve uma produção escrita construída por meio de repetição na
graduação, terá dificuldade de mudar essa característica mais tarde. É possível que, mesmo
com alterações entre as produções de uma mesma pessoa, nos diferentes níveis de estudos,
seja necessária uma nova formação em relação à produção escrita, desenvolvida a partir de
testemunhos e de experiências próprias, para que o trabalho acadêmico realizado seja
reconhecido como produção de ciência e conhecimento.
Conforme Fabiano-Campos (no prelo, p. 17, grifo do autor),

O exagero da imitação, no caso da universidade, leva à banalização da produção do


texto acadêmico, produzem-se textos que acrescentam pouco à reflexão teórica,
além da repetição por meio da imitação dos autores ou linhas teóricas privilegiadas
pelos órgãos financiadores de pesquisa. Assim, prevalece a publicação de textos
produzidos somente a partir de pesquisas já consagradas pela academia, por sua vez
o aluno reproduz também o senso comum da área e ilustra seus textos com os nomes
de autores respeitados e muito divulgados na universidade.

Não podemos negar que, assim, há um incentivo em relação à popularização do


conhecimento, porém a valorização de pesquisas científicas que contribuam com a produção
de conhecimento da sociedade não deve ser confundida com a massificação do conhecimento
já produzido. Em vez de auxiliar o acesso da sociedade a novos conhecimentos, essa situação
pode reduzir a qualidade da produção escrita.
As produções científicas construídas a partir da banalização de teorias contribuem
com a divulgação destas, mas legitimam produções sem relevância social e, em muitos casos,
desprovidas de novos conhecimentos para a comunidade científica ou para a sociedade. Não
há como negar que uma concepção questionável sobre o que é aceitável como trabalho
científico pode resultar em um efeito cascata, influenciando o aluno que desenvolve uma
monografia a amparar-se em repetições e a fazê-lo em outros trabalhos, como a dissertação de
mestrado ou a tese de doutoramento. Esse tipo de produção científica legitima a reprodução e
a promoção de autores respeitados na universidade.
A banalização pode ser compreendida como a utilização de teorias, em um trabalho
acadêmico, que não possuem funcionalidade para a produção realizada, isto é, o texto
construído procura fundamentar-se em conceitos que não auxiliam na análise nem têm relação
com o corpus da investigação proposta. Outra forma de banalização são as remissões a
54
diferentes conceitos, em forma de citações, de maneira excessiva, sem relacioná-los com a
proposta de pesquisa, ou seja, os conceitos são mencionados de modo aleatório e irrelevante
para o objetivo da pesquisa, o que alimenta a ideia de que eles, ou mesmo a teoria, estão
sendo banalizados.
Hoje, não se tem mais dúvida acerca da existência de produções que se caracterizam
pela repetição e pela apresentação do discurso fonte. Além de se investigar a repetição de
conceitos e, consequentemente, a limitação da produção científica por meio da reprodução de
conhecimento já existente, é importante observar como essas produções conseguem inserir-se
entre seus pares, o que nos aponta outra questão a ser pesquisada: quais critérios garantem e
sustentam uma produção escrita na academia como produção científica e de conhecimento?
Para Fabiano-Campos (prelo, p. 16), “o fato de o falante se apagar atrás de outro
locutor pode ser uma forma de se beneficiar da autoridade ligada ao nome citado”. Isto é, a
credibilidade e a legitimidade daquele que é reproduzido garante um lugar para quem produz
uma escrita com repetições, sem produção de um novo testemunho, ou mesmo, de qualquer
conhecimento. É isso que tentaremos explicar melhor em nosso capítulo de análise.
O aluno, ao contrário de desenvolver uma escrita que se configure como testemunho,
com funcionalidade social (tenha função no texto e contribua com a produção de
conhecimento na sociedade) e, assim, aponte para a constituição de um sujeito produtor de
saber, legitima a monografia aprovada em banca ou a publicação em revistas acadêmicas por
meio da repetição dos conceitos, o que, a nosso ver, provoca um sentido de promoção daquele
que é reproduzido.
A produção científica atual assinala uma grande disputa entre linhas de pesquisa de
programas de pós-graduação, que motiva o isolamento dos grupos de pesquisadores, adeptos
de critérios diferentes para avaliar a sustentação de um texto como inédito ou como portador
de novas perspectivas em relação às produções já realizadas. Hoje, cada linha tem suas
produções legitimadas apenas entre seus pares. Assim, cada comunidade determina quem
pode ser inserido em determinada área, o que auxilia na aceitação de trabalhos limitados a
reproduzir os conceitos de algum autor já reconhecido. É como se houvesse uma convenção
entre os pares de cada comunidade científica que determinasse a perpetuação de conceitos
teóricos já consolidados como o principal objetivo da produção científica, a fim de legitimar
aquele que escreve como pesquisador e produtor de conhecimento.
Para finalizar este tópico de reflexão, citamos Fabiano-Campos (no prelo, p. 2):

55
[…] é preciso admitir que a universidade não está completamente aberta à
introdução de novas propostas de ensino, como a prática de pesquisa na graduação.
Toda tentativa de intervenção se defronta com uma resistência, de caráter
estratégico, científica, e ainda com um cotidiano de práticas e modos de fazer já
bastante arraigados. Pensar na pesquisa implica lidar com uma prática contínua da
escrita, cuja presença e força não devem ser negligenciadas.

Queremos demonstrar, a partir da citação acima, que a discussão que propomos


acerca da produção escrita na universidade hoje não é uma reflexão que se justifica apenas na
problemática do escrever bem ou mal, mas sim numa discussão sobre a concepção existente
de produção científica e pesquisa na formação universitária. Contudo, desenvolver um
trabalho que promova a prática contínua de escrita, um ensino de escrita, sempre é motivo de
grandes resistências, pois implica uma certa intervenção que será discutida no final deste
trabalho, mas que, desde já, mostra-se complexa e tolhida por muitos obstáculos.
Ao tomar como ponto de partida o trabalho de Fabiano-Campos (2007), é importante
também, antes de adentrarmos no capítulo de análise, refletir acerca da ideia apresentada pela
autora sobre a incorporação de conceitos do outro na escrita acadêmica. Conceito que está
totalmente relacionado à teoria da heterogeneidade discursiva, que discutimos anteriormente,
mas que se configura como outro lado da remissão, quando desenvolvida e consolidada por
quem aplica e operacionaliza uma teoria em um trabalho acadêmico.

2.5 Incorporação do discurso do outro na escrita

Neste tópico, trataremos da possibilidade de se identificar a participação de outros


discursos na escrita acadêmica que, ao contrário de repetir os conceitos já consolidados, os
incorpora ao dizer, com base no conceito do outro eu. É o momento em que passamos a
desenvolver uma escrita que se fundamenta no outro, mas desenvolve algo próprio.
Como já dissemos em outro momento, entendemos que a escrita compõe-se de uma
estrutura constituída pela heterogeneidade de discursos que, segundo a forma e o modo que se
organiza, pode ou não desenvolver a singularidade do texto que é escrito. A participação do
outro na escrita estabelece-se quando o enunciador incorpora ao seu discurso as palavras
alheias, utilizando-as de maneira particular e própria, sem contrariar sua fonte; é a adaptação
do já-dito como base para um novo dizer, ou mesmo, a operacionalização de um conceito em
um dado que ainda não foi analisado. Temos, assim, condições para uma escrita que
transcende o que tem do outro, pois o que diz é seu, e o que é do outro está agora incorporado
ao seu dizer, é dele inseparável, parte de um mesmo todo.

56
Fabiano-Campos (no prelo, 2014, p. 3), ao retomar os estudos de Maingueneau,
comenta que:

[…] a incorporação do “outro” é uma espécie de corporalidade passível de


verificação na estrutura do próprio texto, justamente pela forma como é tomado o
“corpo do outro” nos feitos de sentido do ethos. É uma espécie de representação
presente nos textos, ao mesmo tempo, inseparável do que é dito pelo sujeito.

Conclui-se, portanto, que, quando tomamos a escrita do outro como nossa e a


representamos de maneira própria, particular, a incorporação dos conceitos torna-se algo
inseparável e constitutivo do trabalho. Ao incorporarmos as palavras dos outros, podemos
deixar marcas que evidenciam esse processo, e isso, em nosso entendimento, auxilia a análise
que tende a verificar até que ponto o autor da escrita analisada (das monografias) incorporou o
discurso do outro ou apenas repetiu suas ideias. Um texto pode, pois, configurar-se
“diferentemente da imitação do discurso do ‘outro’, na qual este é repetido sem chegar a
constituir outro corpo, (des)qualificado somente como uma réplica ou um agigantamento do
texto original” (FABIANO-CAMPOS, 2007, p. 4).
Ao tomar a palavra do outro, isto é, ao incorporar conceitos de um autor que
utilizamos como fonte e fundamentação de uma investigação, lançamos mão da teoria, ou do
próprio dizer, como algo que nos constitui, parte de um todo, mas que não representa toda
nossa constituição. É como se incorporássemos a voz do outro como ponto de partida, como
base, como caminho para construir um novo dito. Existem situações, porém, em que tomamos
o dizer do outro como único, o que contraria a ideia de incorporação de conceitos e gera
dúvidas sobre esse processo. O questionamento se faz necessário nos casos em que a
incorporação não funciona como ponto de partida ou como parte do novo discurso construído,
mas sim como conteúdo de uma escrita resumida e limitada à repetição do já-dito.
Na tentativa de esclarecer esse ponto, lembramos que, segundo Foucault (2000), um
comentário é, até certo ponto, uma reprodução do que já foi proferido. Mas a forma de se
construir comentários sobre os conceitos do outro pode, dependendo de como for estruturada,
justificar a existência de um modo de escrita baseado na repetição. Mesmo não existindo a
intenção de se redizer, é possível perceber que a heterogeneidade discursiva é construída por
uma particularidade que incorpora a palavra do outro, mas, em determinados casos, cria-se
um efeito de sentido que passa a ideia de que o texto escrito pelo aluno tem a reprodução
como objetivo e principal característica.

57
Por fim, é importante perceber que os processos de repetição e incorporação estão
diretamente relacionados, pois, de certa maneira, a repetição será reconhecida a partir da
forma que a incorporação do conceito em questão é realizada e desenvolvida. Ambas são
consequências naturais da heterogeneidade enunciativa (constitutiva) presente na linguagem
como um todo. Todavia, o que iremos observar é o efeito de sentido que pode ser originado
pela escrita ancorada na repetição de conceitos e teorias.
Assim, mesmo diante do risco de gerar um sentimento negativo em relação à escrita
de trabalhos acadêmicos, ousamos dizer que a escrita caracterizada por uma tentativa de
incorporação de conceitos, muitas vezes, limita-se a repetir o que já foi dito e cria um efeito
de sentido de promoção, que, para nós, evidencia um problema em relação ao modo de escrita
acadêmica.
Nesse sentido, é importante lembrar o que diz Fabiano-Campos (2007, p. 7):

[…] o aluno não é ensinado que para escrever “o mesmo de forma diferente” tem de
manter alguns sentidos do texto primeiro, e quando tentar construir um
deslocamento de sentido, esse deverá ser devidamente apontado na estruturação
sintática do texto elaborado.

É imprescindível, pois, a existência de sentidos do texto fonte aos quais nos


remetemos através de uma alusão ou da reprodução de partes da enunciação, porém é
necessário também, em se tratando de produção científica, que a escrita conserve um
deslocamento do já-dito, algo que possa caracterizá-la como trabalho próprio, novo e
complementar àquele já produzido pelo outro. Isso tudo marcado, demonstrado na estrutura
sintática do texto que é confeccionado, revela a heterogeneidade presente na escrita
acadêmica.

2.6 Indícios de autoria da produção escrita

Possenti apresenta uma discussão sobre o que chamamos de movimentos mínimos


que um aluno pode fazer para marcar a sua autoria. O autor afirma que ela pode ser
considerada como “um efeito simultâneo de um jogo estilístico e de uma posição
enunciativa”. A singularidade que podemos desenvolver na escrita é entendida pelo
pesquisador como uma “forma peculiar do autor estar presente no texto” (POSSENTI, 2009,
p. 105 e 107), o que pode nos auxiliar na discussão sobre a produção escrita de textos
acadêmicos que não apresentam elementos que evidenciem sua singularidade.

58
Concordamos com Possenti (2009), quando comenta que não podemos considerar
que um aluno vestibulando tenha fundado uma obra ou discursividade, pois entendemos que
nem mesmo o estudante de graduação chega a desenvolver esse nível de escrita. O modo de
escrita na universidade, porém, diferencia-se do escolar, pois propõe atividades que
desenvolvem conhecimentos sobre a produção escrita, de modo a incentivar que o estudante
demarque sua posição enunciativa enquanto jovem pesquisador, que precisa conhecer e saber
elaborar textos relacionados ao percurso de estudo e aprendizagem do qual está participando.
Ou seja, o aluno de graduação deve desenvolver movimentos mínimos de articulação da teoria
que fundamenta seu trabalho com o corpus que se propõe a analisar na investigação.
A escrita de trabalhos de jovens de iniciação científica pode não se aproximar da
fundação de uma discursividade, assim como um texto de vestibulando, porém a noção de
indícios, apresentada por Possenti (2009), auxilia a análise que realizamos nesta investigação,
pois o pesquisador aponta, de maneira clara, para a existência de traços de estilo que também
podem ser reconhecidos em textos acadêmicos, como no caso de monografias.
O autor apresenta três procedimentos a serem utilizados como na identificação dos
indícios de autoria no modo de escrita dos textos que analisamos. O primeiro deles parte da
ideia de que não podemos limitar a autoria a regras e normas gramaticais. A adequação do
texto às normas prescritivas como, por exemplo, regras de pontuação, não garante a autoria de
um texto. O segundo ancora-se na ideia de que a escrita não se resume a “questões de coesão
e coerência”. E o último procedimento apresenta a noção de que o reconhecimento dos
recursos linguísticos utilizados como marcas de autoria não é automático. Estes são
constituídos no nível do discurso.
Segundo Possenti (2009, p. 112-113), quem escreve um texto se assume como autor,
independentemente de estar consciente, mas, para isso, precisa desenvolver duas atitudes:
“dar voz a outros enunciadores” e “manter distância em relação ao próprio texto”.
A primeira atitude necessária para expressar indícios de autoria, conforme afirma
Possenti (2009), é a necessidade de se remeter a outros discursos, de forma constitutiva, mas
pontuada e marcada, para, assim, articulá-los com o texto, o que, consequentemente, ajudará
na estruturação da produção. Na composição do discurso, é fundamental que se mantenha a
relação e a articulação com outros dizeres já proferidos e reconhecidos socialmente, visto que
todo discurso tem, em sua estrutura, a participação de outros. Esses dizeres que são invocados
funcionarão como sustentação, como as colunas que darão base para o que é produzido de
novo.

59
Quando Possenti (2009) diz que um modo de utilizar o discurso do outro é fazer uso
de palavras que remetam a um autor ou a um conceito de alguma teoria específica e manter
com eles uma relação, podemos entender essa relação como uma avaliação de quem é citado,
realizada de maneira despercebida. Mesmo o discurso sendo atravessado por aquele que
citamos ou por outros, o que garante a autoria da produção escrita não é o que se realiza, mas
sim como, pois há várias formas de mobilizar uma teoria e articulá-la com diversos corpora.
Por isso, só garantimos nossa posição como autor, a partir do momento que demonstramos o
como fazemos. Assim nos diferenciamos do que já foi produzido e desenvolvemos uma
produção profícua e possuidora de “indícios de autoria”.
A segunda atitude recomendada pelo autor é a preservação de um distanciamento do
próprio texto. A ideia é que precisamos marcar a posição como enunciador da produção
realizada em relação aos interlocutores com quem interagimos. Possenti (2009, p. 114) afirma
que essa segunda atitude “trata-se a rigor, de uma exigência do próprio discurso, decorrente
do fato de que o sujeito sempre enuncia de uma posição, mas a língua não é um código que
sirva a cada posição de forma transparente”. Portanto um acadêmico também precisa se
distanciar de seu próprio texto para demarcar uma posição enunciativa no ato de escrever,
para evidenciar indícios de autoria.

Trata-se ao mesmo tempo de variar, mas de variar segundo posições enunciativas,


segundo a natureza do discurso. Trata-se de uma intervenção do sujeito, que não
deixa para o leitor a tarefa de julgar se se trata de uma confissão, de uma admissão
etc. (POSSENTI, 2009, p. 119).

Para o autor, mesmo em um texto inicial, os indícios de autoria implicam a


necessidade de dar voz às outras vozes que constituem o nosso dizer, mas de maneira
articulada, resguardando a posição de enunciador. A produção escrita pressupõe a marcação
de uma intervenção do sujeito locutor – aqui entendido como aquele que escreve o texto –, a
fim de demarcar seu posicionamento singular em meio às outras vozes que o atravessam.
Esses procedimentos são garantidos pelo distanciamento de quem escreve do próprio texto,
pois, só assim, ele pode desenvolver e condicionar um jogo de formas (do outro e de quem
escreve), por meio de fatores contextuais como as condições de produção e os possíveis
interlocutores, visíveis apenas para aquele que se torna leitor do próprio texto, isto é, que
consegue se distanciar do discurso produzido.
Possenti (2009, p. 120) diz que:

60
O autor joga com as expectativas que criou no leitor, negaceia, expõe uma posição
sem atribuí-la a ninguém e, em seguida, para deixar claro que não é a dele
caracteriza-a negativamente. É o que basta. Mas não é trivial, porque se trata de uma
aposta, na medida em que ele não condena claramente o discurso ufanista. Corre o
risco de ser considerado incoerente.

As afirmações apresentadas pelo autor contribuem bastante na tarefa de caracterizar


o que estamos tratando como uma produção dotada de uma estrutura com indícios de autoria
perceptíveis, tais como os recursos linguísticos empregados por quem escreve, não
necessariamente de forma consciente. As noções de indícios de autoria ainda possibilitam
analisar o que estamos observando ser um modo de escrita destituído de um jogo de
linguagem que mobilize os recursos linguísticos agenciados no momento da produção. Com
efeito, há um modo de escrita pautado em recursos linguísticos que funcionam apenas como
formas de evidenciar a voz do outro citado no texto e que, automaticamente, silenciam aquele
que escreve. Não se demonstra, nesse caso, um saber pessoal em funcionamento, pois o que se
expressa e produz sentido são os conceitos de outros autores reproduzidos sem articulação
com a proposta de análise dados, os quais deveriam contribuir com uma particularidade de
como utilizar determinado conhecimento para entender e observar um corpus.

61
3 CONTEXTUALIZAÇÃO, DESCRIÇÃO DO CORPUS E PROCEDIMENTOS
METODOLÓGICOS

Em nossa primeira coleta de dados, selecionamos, como material de análise deste


trabalho, 23 monografias, produzidas nos últimos cinco anos, por alunos de uma universidade
pública. Todos os trabalhos têm a Análise do Discurso francesa como principal
fundamentação teórica. A escolha deve-se ao fato de que a área em questão goza de grande
representatividade e aceitação dentro do curso e da universidade onde coletamos os trabalhos,
seja porque uma parte considerável dos professores efetivos se qualificou em linhas de
pesquisas da Análise do Discurso, seja por trabalharem e desenvolverem pesquisas na área.
Além disso, há, nessa universidade, uma disciplina dedicada ao trabalho com os conceitos da
AD.
No decorrer da pesquisa, selecionamos duas monografias para analisar, de autores e
anos de defesa distintos. A escolha deu-se em razão de os alunos possuírem perfis diferentes:
um deles, reconhecido por diversos professores como um aluno “exemplar”, realizou os
estudos sem nenhuma reprovação e passou pela experiência da iniciação científica (com bolsa
de uma fundação de pesquisa) durante a formação; o outro, diferentemente, tem reprovações
em seu histórico e não teve a oportunidade de desenvolver atividades de iniciação científica
antes da produção do trabalho monográfico, não obtendo reconhecimento entre os pares.
O primeiro aluno, além de bolsista monitoria e de pesquisa, realizou sua iniciação
científica com o mesmo orientador de sua monografia. O segundo aluno, embora tutorado
pelo mesmo professor, só foi tê-lo como orientador durante a escrita da monografia. Tendo
em vista o fato de terem sido orientados pela mesma pessoa, os dois trabalhos, tomados aqui
como corpus, possuem um referencial teórico bastante similar.
Assim, a seleção desses dois trabalhos, deve-se aos seguintes motivos: os autores
viveram experiências diferentes de formação; ambos estão cursando mestrado; as produções
são de anos diferentes; os trabalhos foram desenvolvidos pelo mesmo orientador; as
monografias obtiveram nota máxima da banca de defesa.
Neste trabalho, ainda que, em alguns momentos, utilizemos análises quantitativas,
predominam as reflexões e observações apoiadas na perspectiva qualitativa. Nossa principal
fundamentação teórica é a Análise do Discurso de linha francesa que apresenta os conceitos
relacionados à heterogeneidade enunciativa do discurso. Fazemos uso também de conceitos

62
da sociologia e da filosofia, ao remetermos, na análise dos dados, às noções de valores de uso
e de troca tomadas do marxismo.
Os dados, que recortamos das duas monografias analisadas, foram retirados de partes
do texto nas quais esperava-se uma articulação da teoria apresentada como base para a análise
de dados. Foi, justamente quando não percebíamos a articulação, que recortamos os dados.
Outro critério utilizado para selecionar o corpus que analisamos, foi a observação de trechos
da monografia em que havia muita repetição de um autor ou a identificação de uma quantia
excessiva de conceitos descritos em poucas linhas de texto.
Destacaremos algumas circunstâncias que nos levaram a selecionar esse corpus para
a investigação e revelaremos algumas informações importantes que circunstanciam a seleção
dos dados e justificam esta pesquisa.

3.1 Dos cursos de Letras na instituição

A universidade pública na qual os dados foram coletados oferta o curso de Letras em


mais quatro campi, além do campus onde coletamos o corpus. Os cursos são estruturados,
desde o ano de 2005, em matrizes curriculares bastante semelhantes, com um núcleo de
disciplinas comuns até o quarto semestre. A partir do quinto semestre, na grade curricular de
cada curso, há disciplinas que visam atender as especificidades de formação, de acordo com
as diferentes habilitações e com o quadro de professores dos campi que oferecem o curso de
Letras. Considerando os cinco cursos, existem diferenças em relação às linhas de pesquisas e
à formação de professores de língua estrangeira, pois todos os departamentos oferecem
habilitação em língua portuguesa e língua inglesa, mas dois cursos também possibilitam a
formação em língua espanhola. Nesses casos, o aluno opta no quinto semestre pela língua
estrangeira que irá cursar.
Observamos que, como se trata da mesma instituição, os programas de ensino e as
ementas das disciplinas comuns têm proximidade ou são até iguais. Além disso, a
qualificação do quadro de professores efetivos de todos os cinco cursos, os projetos de
pesquisas e a pós-graduação ofertada pela universidade estão relacionados e constituem-se a
partir da mesma referência. Um exemplo que podemos citar é que, em grande parte, a
qualificação em nível de doutorado e mestrado dos professores foi realizada em conjunto
através de programas interinstitucionais ou em uma única universidade. A formação
diferencia-se um pouco, em casos isolados, em razão da diferença existente entre as grandes

63
áreas, como linguística, literatura e língua estrangeira. A grande maioria dos professores com
formação em linguística realizou o mestrado e o doutorado no mesmo programa de pós-
graduação, diferindo alguns quanto à linha de pesquisa em que se inseriram. Desse modo,
varia apenas a instituição em que tais professores realizaram a graduação. Além disso, grande
parte deles efetivou-se na universidade quando ainda eram só graduados.

3.2 Do curso onde coletamos o corpus

O curso onde coletamos o corpus conta com cinco professores de língua portuguesa e
dois de linguística.
Dos professores lotados na área de língua portuguesa, dois fizeram mestrado em
estudos da linguagem, com pesquisa e estudos voltados para as áreas das práticas discursivas;
um, na área de educação, com pesquisa voltada para o ensino de língua e literatura; um, na
área de Letras, com pesquisa voltada para estudos lexicais sobre a escrita de professores; e
um, na área de sociolinguística, com estudos sobre a variação de gênero na oralidade. O único
professor concursado da área de língua portuguesa é doutor e está credenciado como docente
na pós-graduação.
As professoras lotadas na área de linguística são pesquisadoras da Análise do
Discurso. Uma delas está na universidade desde a implementação do curso de Letras e está
credenciada no programa de mestrado em linguística. Seu mestrado e doutorado foram
orientados por uma professora reconhecida nacionalmente como autora na área em questão. A
outra professora também realizou o mestrado e o doutorado na área da Análise do Discurso.
Observa-se que os estudos e pesquisas realizados na área de linguística do curso que
descrevemos são realizados a partir de fundamentações teóricas vinculadas à teoria da Análise
do Discurso, filiada aos estudos franceses, que possui base teórica nos estudos de Pêcheux
(1969) e Orlandi (2007).

3.3 Da divisão de áreas do departamento

O curso de Letras onde coletamos os trabalhos que analisamos, desde o oferecimento


das vagas de professores aos editais de seleção de substitutos, divide as áreas de
conhecimento em língua estrangeira (língua inglesa), literaturas de língua portuguesa, língua
portuguesa e linguística.

64
Especificamente, nas áreas de língua portuguesa e linguística, observamos uma
situação pouco comum: somente as disciplinas com abordagens discursivas são consideradas
da linguística, e disciplinas introdutórias, como morfologia, e fonética e fonologia, são
consideradas de língua portuguesa. No caso dos professores da área de língua portuguesa que
são pós-graduados em linguística, a escolha entre uma ou outra disciplina leva em
consideração, unicamente, a área de concurso, e não a formação do docente. Tal situação
chegou a criar problemas em reuniões de atribuição de aulas, como no caso de um professor
que realizou a pós-graduação em nível de doutorado em linguística, mas por ser concursado
na área de língua portuguesa, sofreu resistência ou foi mesmo proibido de ministrar a
disciplina de sociolinguística por pressão de professores concursados na área de linguística.

3.4 Dos trabalhos de conclusão de curso

Os alunos, ao final do curso, optam por uma área, seja a literatura, a linguística, a
língua portuguesa ou a língua estrangeira, para desenvolver pesquisas e, consequentemente,
produções monográficas. No caso desse curso, há uma grande procura pelas áreas de literatura
e de linguística, na qual, nos últimos anos, predominam os trabalhos em AD de linha francesa.
De maneira geral, cerca de quarenta por cento das monografias do curso são produzidas nessa
linha. Se considerarmos apenas os alunos envolvidos com atividades de iniciação científica
em outros momentos da formação, a percentagem de trabalhos fundamentados na AD chega a
mais de setenta por cento.

3.5 Das ementas das disciplinas na matriz curricular

Em uma breve observação das ementas das disciplinas que se encontram na matriz
curricular do curso, por muitas vezes, encontramos bibliografias com referências pertencentes
a uma perspectiva teórica discursiva ou a áreas que não fazem parte do campo de estudo no
qual a disciplina se enquadra. Na maior parte das ementas, há sugestões de bibliografia básica
que estão fundamentadas na teoria da Análise do Discurso. Esse é o caso das disciplinas de
Políticas Públicas e Produção de Textos, cujos propósitos e currículos não fazem uso da
abordagem discursiva e nem estão relacionados a ela, mas que têm a leitura de obras
introdutórias específicas da AD indicada em sua ementa.

65
Além disso, o curso de graduação em Letras conta com uma disciplina específica em
Análise do Discurso, cuja ementa está voltada exclusivamente aos estudos do discurso de
linha francesa e dos autores brasileiros divulgadores dessa vertente. Na bibliografia da
disciplina, verificamos a existência de treze indicações: uma, de um autor reconhecido da área
e considerado como precursor (Pêcheux); dez indicações de produções de Orlandi, uma
pesquisadora brasileira de grande credibilidade, graças a sua militância em favor dos estudos
da AD, tanto que ela se autodenomina a autora que introduziu os estudos da AD no Brasil; e,
por fim, duas autoras nacionais, cujas produções contêm, na bibliografia, trabalhos de
Orlandi.
Também foi possível observar que, além da disciplina específica Análise do
Discurso, existem bibliografias da área nas ementas de Linguística I e II, que permitem ao
professor, de certa forma, não trabalhar com bibliografias introdutórias sobre o conhecimento
linguístico e a fundação da linguística como disciplina.
Outro caso que observamos envolve a disciplina Linguística Aplicada ao Ensino de
Língua Materna, que, reconhecidamente, tem seu currículo voltado à metodologia do ensino
de língua. Não há, pois, um propósito em se trabalhar com a abordagem dos estudos do
discurso, mas sua ementa é totalmente direcionada à análise discursiva de materiais didáticos
e de gramáticas, ou seja, ao contrário de fomentar reflexões sobre a mobilização de teorias em
atividades pedagógicas, como a prática docente, ou mesmo sobre como as teorias linguísticas,
de forma geral, contribuem com a formação do professor da rede básica de ensino,
predominam referências com uma abordagem de análise do discurso de instrumentos e de
manuais.
Em geral, teóricos de disciplinas com perspectivas diferentes guardam uma postura
pejorativa em relação à AD e não incluem, na bibliografia, obras da área. Por isso,
entendemos que, muitas vezes, mantém-se o estudo da Análise do Discurso mesmo em
disciplinas com objetivos e perspectivas diferentes desse campo da linguística, a fim de
melhorar sua aceitação.

3.6 Dos planos de ensino

Após a observação das ementas e da matriz curricular do curso de Letras, analisamos


os planos de ensino de algumas disciplinas. Verificamos que, em alguns casos, como nos das
matérias que não se relacionam diretamente com a área da Análise do Discurso, tais qual a

66
disciplina Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Materna, temos a utilização de textos e a
recomendação de leituras da área da AD que não atendem a proposta da disciplina. Notou-se,
além disso, a ausência de obras constantes na matriz curricular do curso e de conteúdos e
objetivos que priorizem a realidade da sala de aula em lugar do ensino da teoria e do como
fazer análise de discurso.
No caso da disciplina mencionada, o plano de ensino tem os seguintes objetivos:
“proporcionar ao aluno condições de análise de materiais didáticos e gramáticas” e
“possibilitar a reflexão sobre as diferentes implicações que cada concepção sujeito/linguagem
produz no processo de ensino/aprendizagem”. O planejamento da disciplina tem foco no
desenvolvimento de análises discursivas de instrumentos e manuais de ensino, em vez de dar
atenção às teorias específicas de metodologia do ensino de língua materna, necessárias para
uma reflexão sobre a prática do professor de português em sala de aula.
Não queremos dizer que a teoria da AD de linha francesa não contribui com a
formação docente, ou que não é possível fazer uso desta ou de outra teoria em disciplinas
como as que citamos, mas, sim, que a situação observada aponta para a possível
transformação de disciplinas que preveem a distribuição de créditos mediante o
desenvolvimento de atividades de prática curricular e de aulas campo/estágio, com foco na
articulação do conhecimento das teorias linguísticas com a realidade do professor, em uma
continuação de disciplinas que têm, como objetivo, o conhecimento de conceitos e pontos de
vistas teóricos específicos. Prioriza-se, dessa forma, a parte teórica em uma disciplina cujo
propósito é o desenvolvimento da prática docente.

3.7 Dos programas de pós-graduação

A universidade pública onde coletamos os trabalhos monográficos desenvolve dois


programas de pós-graduação na área do curso de Letras: um mestrado em Linguística e um
mestrado em Literatura, porém ambos funcionam em campi diferentes do local do curso cujos
trabalhos analisamos.
O mestrado em linguística tem, como única área de concentração, o tema “Estudos
das relações entre língua, história e instituições” e é dividido em duas linhas de pesquisa:
“Descrição e análise de línguas, instituições e ensino” e “Estudos e análises dos processos
discursivos e semânticos”. Na primeira linha de pesquisa, figura a palavra “ensino”, o que nos
leva a entender que o programa desenvolve produções de pesquisas relacionadas ao ensino,

67
porém, ao analisarmos os trabalhos da primeira turma, defendidos em 2011, percebemos a
prevalência de estudos do discurso, seguida de alguns poucos trabalhos fundamentados por
estudos semânticos. Verificamos que, mesmo com a nomeação de duas linhas de pesquisa
diferentes, grande parte das produções realizadas é baseada na perspectiva teórica da AD de
linha francesa.
Nos textos das dissertações que analisamos, observamos que, dos doze trabalhos
defendidos, sete contam com o termo “discurso” ou “discursivos” no título, além de
utilizarem como referencial, majoritariamente, publicações da AD, das quais grande parte é
repetida em todos os trabalhos. Nas outras cinco dissertações, não há indicações da palavra
“discurso” ou “discursivos” no título, mas duas também utilizam como referencial uma
grande quantidade (maioria) de publicações da AD. Ou seja, dos doze trabalhos defendidos,
nove focalizam a pesquisa em estudos discursivos.
Nas três dissertações restantes, não há a predominância de obras da Análise do
Discurso como fundamentação teórica, mas elas utilizam-se dos estudos da semântica da
enunciação, relacionados com a perspectiva do materialismo histórico e da AD. Portanto
existe, dentro do programa de linguística, certa tendência aos estudos do discurso de linha
francesa, o que, consequentemente, influencia os alunos de graduação que almejam continuar
os estudos na pós-graduação.
Tais aspectos indicam a existência de um status, uma tendência ou mesmo um
domínio da AD na universidade e no campus onde nossos dados foram coletados.
Essa predominância constitui-se como a hierarquização de uma teoria dentro do
curso de Letras. Isso ocorre porque:
a) a produção desenvolvida pelos professores utiliza a AD como referencial;
b) dois professores de linguística possuem formação na área;
c) há a presença de obras da AD referenciadas em ementas, e sugestões bibliográficas
na matriz curricular do curso e em planos de ensino de disciplinas de linhas
diferentes;
d) há uma prática de ensino que aplica os conceitos da teoria independentemente da
disciplina ministrada;
e) existe uma disciplina com o papel de desenvolver os conceitos teóricos da teoria da
Análise do Discurso.
No último caso, é importante ressaltar que os professores da área tendem a incentivar
uma separação da AD de linha francesa e a grande área de linguística. Isto é, percebemos

68
discussões que elevam a perspectiva da Análise do Discurso de linha francesa como algo além
da linguística como um todo. Um fato que compreendemos como contraditório, pois a
linguística sempre se constituiu como ciência a partir da relação oposta, isto é, realizando
estudos que relacionavam diversas áreas e teorias e que possibilitaram o desenvolvimento e
fortalecimento de teorias como a da Análise do Discurso.
Isso evidencia a relevância de se pesquisar o reflexo dessa legitimação e
institucionalização de uma área de estudos dentro de um curso, por meio da análise de
produções acadêmicas desenvolvidas nas condições que apresentamos.

3.8 Descrição do corpus

A seguir, descreveremos os dados que compõem nosso corpus, que se constitui a


partir de duas monografias produzidas como requisito para a aprovação no curso de Letras em
uma universidade pública do interior do país e que tomam a Análise do Discurso de linha
francesa como aporte teórico.

3.8.1 Monografia do aluno A

O informante (aluno A) concluiu sua graduação no primeiro semestre letivo de 2009,


cumprindo o curso em dez semestres (dois semestres a mais que o tempo mínimo de formação
do curso de Letras). Hoje, é aluno do mestrado da mesma universidade onde se formou. O seu
trabalho fundamenta-se na teoria da Análise do Discurso de linha francesa e tem como título
“Dança do chorado: efeitos de uma memória”.
O objetivo do trabalho não é apresentado, mas são compreendidos a partir da leitura
do texto, como sendo: “analisar a transcrição de um depoimento relatado sobre a dança do
chorado realizado por um morador da cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade em Mato
Grosso, com o intuito de observar as condições de significação do sujeito do chorado no
século XVIII”, investigar “os modos como os sentidos se constituem e se institucionalizam no
chorado da atualidade” e, por fim, “compreender como se constitui o efeito metafórico do
Chorado do século XVIII para o Chorado da atualidade”.
O trabalho não tem palavras-chave nem pergunta de pesquisa, como também não
desenvolve a introdução por mais de onze linhas de texto. Compõe-se de 37 páginas, com a

69
estrutura dividida entre um resumo, uma introdução, três capítulos de desenvolvimento, além
das considerações finais e referências bibliográficas.
O primeiro capítulo, “Considerações teóricas”, presta-se à apresentação das teorias e
conceitos teóricos que o aluno indica como fundamentação para o trabalho. O segundo
capítulo intitula-se “Configuração do corpus” e faz a descrição e apresentação do corpus que
o aluno pretendia analisar. Por fim, há um capítulo dedicado à análise de dados, nomeado com
o mesmo título da monografia.

3.8.2 Monografia do aluno B

O segundo informante (aluno B) concluiu sua graduação no segundo semestre letivo


de 2011, em oito semestres, completando a formação no prazo mínimo estabelecido. Ele
desenvolveu atividades de monitoria e iniciação científica durante a permanência no curso de
Letras.
O seu trabalho também utiliza como fundamentação teórica a Análise do Discurso de
linha francesa e leva o título “Jornal e poesia: o Alencar espelhado no discurso da língua”.
Apresenta-se como objetivo: “investigar as práticas discursivas no espaço de dizeres dos
jornais O Povo (1879) e A Opinião (1878)”, para “verificar a constituição da subjetividade no
espaço discursivo do jornal e da literatura, que circulou em Mato Grosso na segunda metade
do século XIX”. O aluno esclarece que o trabalho é fruto da participação em um grupo de
pesquisa e em um projeto de pesquisa financiado por uma agência de fomento. É importante
salientar que o material que compõe o corpus de sua monografia foi recortado do material
coletado para o projeto de pesquisa coletivo.
O trabalho não tem pergunta de pesquisa e possuiu 55 páginas, divididas em:
resumo; abstract; apresentação; um capítulo dedicado a fundamentação teórica, nomeado
“Primeiras (In)junções teóricas”; um capítulo dedicado à análise dos dados, intitulado “Outros
no mesmo: por um funcionamento literário-discursivo no jornal”; um capítulo de
considerações finais, que é chamado de “Palavras (quase) finais”; bibliografia e anexos.

3.9 Da metodologia

Os procedimentos de análise desta proposta de pesquisa foram iniciados pela coleta


do corpus. Em seguida, começamos uma pesquisa bibliográfica sobre concepção escrita,

70
ciência e produção científica. Posteriormente, refletimos sobre o texto acadêmico e a
produção científica na universidade. Realizamos um estudo, através da leitura de textos sobre
a escrita, as revoluções científicas, os conceitos de heterogeneidade constitutiva e mostrada, a
linguagem como trabalho linguístico, as formações imaginárias, paráfrase, polissemia, a
incorporação e repetição de conceitos e os indícios de autoria. A partir dos estudos e reflexões
teóricas, retomamos a leitura do corpus mediada pela fundamentação teórica escolhida e
criamos categorias de análise como forma de auxiliar a observação dos dados. Enfim,
selecionamos alguns excertos que tabulamos e analisamos.
Utilizamos, como fundamentação teórica, a concepção de escrita de Coracini (2010),
que nos proporcionou uma maneira para entender a produção escrita em relação ao sujeito que
se inscreve a partir de seus textos. Isso nos possibilitou relacionar a escrita acadêmica com os
conceitos de revolução científica apresentados por Kuhn (2011). Essa é uma perspectiva de
produção científica que utilizamos como sustentação do que tratamos como produção de
ciência na universidade e, consequentemente, de como entendemos a produção de
monografias na graduação.
Após refletir sobre as concepções de escrita e ciência que poderiam nos auxiliar na
análise que propusemos fazer, elencamos a teoria da heterogeneidade enunciativa como
ferramenta de análise, a fim de observar a organização e a composição da escrita acadêmica,
no que diz respeito à marcação e à participação de outros dizeres no discurso, com o intuito de
identificar os efeitos de sentido gerados em razão dos modos de escrita de um texto
acadêmico, visto que os sentidos da escrita podem se diferenciar, em razão da forma como
relacionamos o discurso produzido àqueles que o atravessam.
Os conceitos de formação imaginária, de paráfrase, de polissemia e de linguagem
como trabalho e mercado permitiram explicar como os efeitos de sentido são produzidos na
escrita de um trabalho acadêmico. Nesse caso, dedicamo-nos a compreender a construção do
efeito de sentido de promoção do outro, categorizado pelas formas de escrita do texto
acadêmico. O conceito de indícios de autoria de Possenti (2009) possibilitou uma reflexão
sobre as atitudes que são desenvolvidas na produção de um texto com autoria.
As leituras e análises nos fizeram compreender que o efeito de sentido que
chamamos de promoção pode se desenvolver de três formas: pela promoção de um autor; pela
promoção de conceitos teóricos; pela promoção de uma teoria. Assim, pudemos analisar os
dados por meio de categorias que nos auxiliaram na identificação do efeito de promoção, seja
pela ausência de operacionalização da teoria, seja pela repetição maciça de ideias sem

71
conceituação ou mobilização nas análises, ou ainda em razão da construção de discursos de
divulgação do trabalho de uma teoria, sem relacioná-la com o que foi proposto na pesquisa.
Como recurso de análise, observamos como os conectivos e os diversos conceitos
teóricos, na escrita do texto acadêmico, podem demonstrar a articulação entre a reflexão
teórica, a metodologia do trabalho e a análise de dados. Partimos da premissa de que a análise
da escrita de um trabalho acadêmico proporciona a oportunidade de verificar como o aluno
mobiliza conceitos da teoria da Análise do Discurso e como, no intuito de articular teoria e
análise de dados, ele marca a voz do outro em sua escrita.
Analisamos a organização da escrita, observando o uso de citações e referências que
se materializam de modo a compor uma argumentação em prol do objeto de pesquisa, mas
que, inconscientemente, desenvolviam também um efeito de promoção. Por essa razão, foi
possível questionar até que ponto há uma interação entre o aluno e os autores das teorias
utilizadas como fundamentação na produção de uma monografia quando esta culmina na
construção de um trabalho acadêmico caracterizado pela repetição e reprodução de um
discurso já realizado e reconhecido na academia.
Ainda em tempo, vimos que a proposta de analisar a escrita de um trabalho de
conclusão de curso justificou-se, uma vez que a monografia é um trabalho que requer do
aluno de graduação a reflexão sobre sua formação teórica e a operacionalização de conceitos
em uma análise de dados, na qual ele demonstre ter traçado um percurso cognitivo, em que a
prática e a teoria se aproximam.

72
4 OS EFEITOS DE SENTIDO DE PROMOÇÃO E UMA PROPOSTA DE
FORMAÇÃO ESCRITA

No segundo capítulo, refletimos sobre a relação existente entre o processo de


heterogeneidade discursiva – característica de todo e qualquer processo discursivo garantido
pela remissão e alusão – e os processos de incorporação e repetição. Ambos nos auxiliaram na
análise das diversas formas de marcação de outros discursos, como conectivos, locuções, ilhas
textuais, entre outros recursos linguísticos.
O processo de incorporação pode ser entendido como o empréstimo de parte do
discurso do outro, que utilizamos como sustentação ou argumentação de nosso dizer,
funcionando como ponto de partida para uma nova produção discursiva. Mas, ao não se
deslocar do discurso emprestado, quem cita caracteriza sua produção como simples repetição
do que já foi dito e, em vez de produzir um novo discurso, limita-se a redizer outro. A partir
disso, compreendemos que, dependendo do modo de realização da escrita, podem se
desenvolver efeitos de sentido que constroem a ideia de que o texto promove a voz que
fundamenta teoricamente o trabalho desenvolvido.
Trabalhos acadêmicos desenvolvidos a partir de uma escrita que constrói o efeito de
sentido que apresentamos contrariam a perspectiva de que uma produção acadêmica deva
desenvolver uma investigação profícua para a produção científica, mesmo em estágio de
iniciação. Monografias que se resumem a reproduzir os conceitos e dizeres que já foram
estabelecidos, sem desenvolver uma contribuição ou demonstrar uma nova possibilidade de
abordagem, reduzem o próprio potencial da teoria que utilizam como fundamentação teórica
do trabalho. Assim, mesmo que façamos uma divulgação científica de uma teoria ou conceito,
o importante é que isso seja intermediado por uma proposta de investigação que não se limite
a reproduzir, mas que contribua com a demonstração de como uma teoria já consolidada
auxilia na análise e resolução de um problema que ainda não estava totalmente ou
parcialmente resolvido.
Após refletir sobre os conceitos teóricos que nos auxiliaram na compreensão do
efeito que chamamos de promoção, desenvolvemos categorias de análise para observar a
escrita de monografias do curso de Letras de uma dada universidade pública. Neste capítulo,
analisaremos trechos de duas monografias, escritas por alunos da graduação, observando as
marcações do texto, com o intuito de perceber a construção do efeito de sentido de promoção,
que é constituído a partir dos diferentes modos de utilização de uma teoria.

73
No decorrer de nossa investigação, verificamos que os textos monográficos,
dependendo do modo de escrita estruturado, criam o efeito de promoção em níveis diferentes.
Mesmo que, aparentemente, trate-se de uma mesma coisa, esse efeito pode se desenvolver a
partir de três formas na escrita de jovens pesquisadores, promovendo a teoria, conceitos ou
autores específicos.

4.1 Produtividade e criatividade da escrita acadêmica

Pensando em diferenciar os modos de utilização de uma teoria, trataremos dos


conceitos de criatividade e produtividade de Orlandi (2007). Para isso, é necessário
retomarmos a discussão sobre a produção parafrástica e os processos de polifonia.
Como discutimos a existência de um efeito de sentido compreendido como
promoção, construído a partir de um modo de escrita que reproduz e repete um discurso, faz-
se necessário analisar o conceito de paráfrase e polissemia, considerando que ambos estão
diretamente ligados à reprodução ou ao deslocamento em um discurso.
Um fato interessante é que, por muitas vezes, o acadêmico tem dificuldade em
construir paráfrases, isto é, não consegue recuperar as ideias centrais dos textos lidos e
elaborar, por escrito, uma síntese que dê conta de explicitar a tese defendida em um trabalho,
as definições teóricas e os conceitos criados, ou discutidos, por um determinado autor.
Situações como essas prejudicam e dificultam o propósito de uma produção, o que
nos remete a uma das características da paráfrase, defendida por Fuchs (1985, p. 129).
Segundo a autora, a paráfrase:

[…] é um dado imediato da consciência linguística dos locutores (saber uma língua
é poder produzir e identificar frases como “tendo o mesmo sentido”, mas é também
produto das construções teóricas dos linguistas (o número e a natureza das
paráfrases descritas é função direta do modelo de referência).

A afirmação da autora nos leva a acreditar que a dificuldade do aluno em redizer de


outra forma o que já foi dito contribui com a repetição, na qual fica ausente a tentativa de se
produzir frases “tendo o mesmo sentido”. Há produções escritas desenvolvidas a partir de
citações diretas que são reproduzidas, muitas vezes, exageradamente. Essa forma de marcação
da voz do outro caracteriza um modo de escrita que constrói um efeito de sentido de
promoção. No entanto, o texto deve utilizar-se do discurso de outros autores como

74
argumentação, redizer o que já foi dito para sustentar novas ideias e apresentar citações que
visem articular conceitos teóricos ou auxiliar na análise de um dado.
Fuchs (1985, p. 134) afirma que a formulação parafrástica se traduz por formas
características de emprego metalinguístico da linguagem. Observamos que esses empregos
estão presentes em produções de alunos graduandos. A polissemia, por sua vez, possui relação
com a paráfrase, considerando que ambas dizem respeito à produção de sentidos e que são
construídas a partir da reprodução de sentenças idênticas, parecidas ou diferentes. Por isso,
não podemos confirmar a produção de um mesmo sentido com o emprego de sentenças com
formas diferentes.
Orlandi (2007), retomando os estudos de Pêcheux (1969) sobre polissemia e
paráfrase, desenvolveu uma reflexão sobre os processos parafrásticos e polissêmicos,
denominando-os como “possibilitadores” de produtividade e criatividade. Para tanto,
defendeu a ideia de que a produção discursiva está diretamente relacionada à paráfrase,
quando se trata da reprodução e da repetição de discursos já consolidados ou mesmo
obsoletos e esquecidos. A autora relaciona a produtividade com tudo que é escrito,
independentemente do deslocamento em relação ao discurso do outro que constitui e compõe
toda produção.
Orlandi (2007) também afirma que a produção caracterizada pelo rompimento com o
já-dito, pelo deslocamento do discurso produzido em relação ao citado, é configurada pela
relação polissêmica, que auxilia a construção do processo criativo, garantindo, de certa
maneira, a produção de um discurso próprio, o que podemos compreender como uma escrita
que parte do outro, mas que se desloca e marca-se pela originalidade, acrescentando e
contribuindo com o conhecimento.

É desse modo que, na análise do discurso, distinguimos o que é criatividade do que é


produtividade, reiteração de processos já cristalizados. Regida pelo processo
parafrástico, a produtividade mantém o homem num retorno constante ao mesmo
espaço dizível: produz a variedade do mesmo. Por exemplo, produzimos frases da
nossa línga, mesmo as que não conhecemos, as que não havíamos ouvido antes, a
partir de um conjunto de regras de um número determinado. Já a criatividade
implica na ruptura do processo de produção da linguagem, pelo deslocamento das
regras, fazendo intervir o diferente, produzindo movimentos que afetam os sujeitos e
os sentidos na sua relação com a história e com a língua. Irrompem assim sentidos
diferentes. (ORLANDI, 2007, p. 37).

É possível dizer, portanto, que o processo de produtividade está relacionado ao que


consideramos como um modo de escrita que desenvolve o efeito de promoção, que se
caracteriza pela repetição e pela não operacionalização da teoria ou de um conceito teórico.
75
De fato, tal escrita não apresenta nenhuma funcionalidade para a comunidade científica, mas
sua aprovação é garantida pelos pares que aceitam trabalhos caracterizados pelo efeito de
promoção como exemplo de produção científica.
A noção de criatividade é baseada justamente no contrário, pois se validará através
do rompimento com o discurso já legitimado, com a repetição. Ela configura-se de um
deslocamento que desenvolve e constitui uma nova produção, caracterizada pela
operacionalização e pela mobilização de uma teoria ou conceito teórico, que, assim, garante
sua funcionalidade social enquanto produção científica, ou seja, uma produção escrita que
concede o status de autor a quem escreve e que tem função na sociedade, ao contribuir com a
produção da ciência e do conhecimento.

4.2 A promoção, operacionalização e funcionalidade do texto acadêmico

Inicialmente, para definir o que entendemos como promoção de uma teoria, partimos
de sua definição nos dicionários. No Aurélio, encontramos as seguintes acepções do termo: do
latim promotione “Ato ou efeito de promover. Elevação ou acesso a cargo ou categoria
superior; ascensão”; do inglês promotion “O conjunto de atividades que visam fortalecer a
imagem de uma marca, instituição, indivíduo, etc., […]” (FERREIRA, 1999, p. 1648).
Consideramos, portanto, que as marcações do outro na escrita acadêmica podem funcionar de
modo a destacar aquilo que outro afirma em detrimento do dizer de quem escreve.
As acepções dicionarizadas da palavra promoção funcionam como um ponto de
referência para conceituarmos o que estamos chamando de efeito de promoção. A nossa ideia
é que a escrita pode, de acordo com a forma que é organizada, denotar que aquele que escreve
está promovendo aquilo ou aquele que utiliza como fundamentação. Esse efeito reforça a
ideia de que o autor, a teoria ou o conceito que são citados como referência no trabalho – ou
em outras palavras, que se repetem e se redizem –, pertencem a uma categoria superior.
Isso demonstra que há um ponto em comum entre o que consideramos como efeito
de promoção de uma teoria, autor ou conceito, e o significado da palavra promoção
apresentado pelo dicionário, pois a ideia de “ato de promover” é a essência de nossa
conceituação do termo: característica do trabalho acadêmico inserido em uma comunidade
científica pela exaltação e reprodução de outro, cuja escrita não se desloca do já-dito, mas se
resume na repetição ou ainda na utilização de uma teoria, de um autor ou mesmo de um
conceito teórico tal qual uma propaganda que serve apenas como forma de legitimá-los, sem
delegar-lhes outra “utilidade”.

76
Também falamos em operacionalidade, em razão de acreditarmos que uma escrita
que origina, a partir da repetição, um efeito de promoção de uma teoria, de um autor ou de um
conceito teórico não desenvolve em sua estrutura uma operacionalização destes para
contextualizar sua investigação. Compreendemos, pois, que existe uma relação entre a falta de
articulação e mobilização da fundamentação teórica utilizada na proposta de pesquisa e a
produção escrita baseada na reprodução.
Nesse sentido, sustentamos que tal utilização de uma teoria funciona como um modo
de garantir a inserção e aceitação de um texto acadêmico em uma comunidade científica,
mesmo que os conceitos teóricos não estejam operacionalizados (utilizados em análise de
dados ou na metodologia, por exemplo) ou não tenham funcionalidade no trabalho em que são
empregados. Além disso, dependendo da forma como são desenvolvidas as marcações do
outro na escrita acadêmica, dar-se-á destaque àquilo que é citado do outro em detrimento do
dizer do pesquisador.
Ao falarmos em funcionalidade, estamos remetendo à representação e à relevância da
produção na sociedade, ou seja, como uma nova produção exerce função social na
comunidade, contribuindo com desenvolvimento social, respondendo questionamentos e
desenvolvendo novos conhecimentos. Se a escrita não se desloca do já-dito, dificilmente
poderá contribuir de forma produtiva para a sociedade, pois ela funciona como mecanismo de
exaltação do que já foi produzido anteriormente.
Sabemos que a produção caracterizada pelo efeito de promoção pode ser comparada
com outras de divulgação científica, porém é importante esclarecer que essa modalidade de
escrita que promove autor, teoria ou conceitos se diferencia daquela que tem como objetivo a
divulgação científica e que contribui com o desenvolvimento do conhecimento sobre a
ciência, mesmo que de forma diferente, através de um aprofundamento sobre um tema com
propósito de disseminá-lo/ vulgarizá-lo / difundi-lo.
O trabalho de Rossi-Landi (1985) trata a linguagem como trabalho linguístico e
mostra como são estabelecidos os valores funcionais e sociais de um discurso produzido. Ele
nos auxilia a descobrir as diferenças de se produzir um texto que tenha funcionalidade social,
que possa se consolidar como trabalho linguístico, e não como um processo de reprodução.
A partir de uma concepção marxista, Rossi-Landi (1985) define o trabalho
linguístico e o aproxima do trabalho de produção de material não linguageiro. Para Marx, o
trabalho é uma atividade de intervenção dos homens sobre a natureza, assim sendo, para
Rossi-Landi (1985, p. 64) “qualquer riqueza ou qualquer valor, qualquer que seja a acepção

77
em que se tomar, é o resultado de um trabalho que o homem realizou ou pode tornar a
realizar”.
O estudioso, ao considerar a produção linguística como trabalho, reconhece a fala e a
escrita como produtos da linguagem que não existem em estado natural; é necessária a ação
do homem para configurá-las como produtos. Rossi-Landi (1985, p. 66) afirma que essa
característica difere os humanos dos outros animais, visto que por meio da produção do
sujeito sobre a linguagem, “que constitui ‘o social’, ele forma historicamente a si próprio”.
Assim, o autor demonstra que o trabalho com a linguagem converte o sujeito à condição de
sujeito histórico-social e, consequentemente, o insere na sociedade.
A proposta de Rossi-Landi tem influência marxista, perceptível também no momento
que o autor defende a ideia da existência de um mercado linguístico, no qual “[…] as
palavras, expressões e mensagens circulam como mercadorias” (ROSSI-LANDI, 1985, p. 85).
Cada mercadoria assume, nesse mercado, um valor. De modo geral, o valor de uso é a função
socialmente atribuída a um dado produto, a sua utilização. O valor de troca é a possibilidade
de o homem trocar objetos de valores parecidos, ou seja, com uma mesma utilidade social.
Conforme Rossi-Landi (1985, p.88, grifo do autor),

Toda palavra, expressão ou mensagem apresenta-se no mercado linguístico como


unidade de valor de uso e de valor de troca. Deve-se, de fato, ter um valor de uso,
isto é, estar em condições de satisfazer a uma necessidade comunicativa qualquer,
para poder assumir um valor de troca, mas, para o caso oposto, deve apresentar-se
como valor de troca, para que seja possível remontar o seu valor de uso e desfrutá-
lo. É através de uma dialética complexa entre os dois tipos de valor que, quando eu
digo alguma coisa, você compreende. Deixe de lado aqui a elegante questão de saber
se um valor de uso apenas expressivo é suficiente para a existência dessa dialética.

A afirmação do autor nos apresenta a ideia de que para que um discurso obtenha
funcionalidade social é necessária uma relação dialógica entre um valor de uso e um valor de
troca. Em se tratando da linguagem, o valor de uso, relacionado à função específica do
produto, pode ser considerado como o sentido inicial de uma relação entre interlocutores, a
primeira referência que fazemos a uma palavra ou mesmo a um discurso. O valor de troca
compreende a troca de elementos que tenham valores de uso socialmente diferentes. Podemos
dizer que, no caso da linguagem como trabalho, existe a possibilidade de termos discursos
equivalentes, sem valor de troca, pois não há diferenças quanto ao valor de uso, considerando
que os “produtos” são iguais, ou seja, sem funcionalidades distintas.
Espera-se que o aluno, ao escrever um texto acadêmico, desenvolva os dois valores
em sua escrita, tanto o de uso como o de troca, para assim estabelecer uma relação dialógica

78
entre aquele que é citado e aquele para quem o texto é escrito. Um texto que tenha esses dois
valores será aquele cujo autor mobiliza a voz do outro para fundamentar a si próprio e
demonstra operacionalidade dos conceitos propostos que são retomados na análise dos dados.
Nesse sentido, partimos da ideia de que a teoria empregada em trabalhos acadêmicos
tem um valor de uso e um valor de troca que permitem que o texto funcione como um produto
a ser trocado e utilizado socialmente, visto que se trata de uma investigação que não se limita
ao uso de um discurso já estabelecido. Mas, diferentemente do exposto acima, o aluno pode
redigir um texto provido apenas do valor de troca, com uma escrita que se utiliza da troca do
seu dizer pelo do outro, um discurso sem valor de uso para o trabalho que foi proposto, tendo
em vista que as marcações da voz do outro não funcionam como argumentos ou
fundamentação da investigação proposta, mas sim como mecanismos textuais que
desenvolvem um sentido de destaque, que colocam em evidência uma determinada teoria.
Ao observar que a produção escrita pode ser reproduzida e repetida, constatamos que
existe um modo de escrita que desenvolve apenas um valor de troca, sem valor de uso, e
assim, leva à construção de um sentido que constitui o que chamamos de efeito de promoção.
Esse efeito de sentido é mais bem verificado nas análises que fazemos de trechos das
monografias.
Sabemos, contudo, que é possível utilizar uma teoria que garanta a produtividade
(valor de troca) de um texto e desenvolver um modo de escrita que vá além da reprodução do
já-dito, garantindo a criatividade e a autenticidade da produção (valor de uso e valor de troca),
mesmo quando estamos num processo de formação, que, independentemente de seu
conhecimento, gera pressão e tensão sobre aquele que escreve/produz.

4.3 A promoção de um autor, de conceitos teóricos e de uma teoria: uma análise dos
textos monográficos

Nesta seção, nos dedicamos à análise de excertos retirados de duas monografias, uma
produzida em 2009 e outra, em 2011. Tendo em vista o objetivo geral desta investigação, qual
seja analisar como uma teoria é utilizada na escrita de textos monográficos, nossa análise se
deterá sobre os mecanismos utilizados para referir-se às teorias, aos autores e aos conceitos
teóricos empregados como fundamentação e sustentação dos trabalhos. Considerando que
temos interesse em como o texto é construído, analisamos a articulação de citações diretas e
indiretas, que marcam a presença da voz de outro, como também o uso de conectivos, ilhas

79
textuais e demais recursos linguísticos que demarcam e evidenciam o discurso dos autores que
fundamentam o trabalho acadêmico em questão.
A partir das primeiras análises, verificamos o emprego técnico e mecânico de teorias,
visto que elas só estão presentes nos textos para dar conta da exigência de que todo texto
acadêmico deve ter um embasamento teórico. Denominamos tal uso como efeito de sentido de
promoção de uma teoria, uma vez que a mesma não tem funcionalidade na pesquisa (não
funciona como subsídio teórico ou metodológico e nem como subsídio para análise de dados).
A teoria, nesses trabalhos, tem apenas um valor de troca, pois eles reproduzem a história da
Análise do Discurso ou repetem os pesquisadores da teoria utilizada, contribuindo apenas para
a inserção, na comunidade acadêmica, de trabalhos consolidados pela reprodução.
O efeito de promoção ocorre de três formas: a promoção de um autor, a promoção de
um conceito teórico e a promoção de uma teoria. Não tomamos o segundo e o terceiro efeitos
de promoção como sinônimos, pois acreditamos que é possível construir um sentido no qual o
texto promove um conceito teórico sem necessariamente promover uma teoria, e vice-versa.
Promover uma teoria significa incorporar seus pressupostos, seus conceitos teóricos mais
amplamente empregados, conhecer seus autores mais significativos, apresentar o histórico e a
história da teoria, tais como a data de fundação e os avanços realizados por seus
pesquisadores, sem relacionar essas informações com a proposta de investigação. Por outro
lado, promover um conceito teórico limita-se ao emprego de um ou vários conceitos sem
necessariamente conhecer as condições de produção deles, sem explicá-los ou articulá-los
com os dados que compõem a pesquisa.
Essa divisão é feita a fim de auxiliar a análise, pois as modalidades não se excluem.
Na realidade, elas estão diretamente relacionadas. A seguir, mostraremos como cada tipo de
efeito de promoção pode se apresentar.

4.3.1 A promoção de um autor(a)

Nessa categoria de análise, verificamos como um modo de escrita pode desenvolver


um efeito de sentido que configura a produção como repetição de um autor específico,
utilizado como referência do trabalho, sem apontar a incorporação ou a apropriação dos
conceitos apresentados pelo teórico.
Essa modalidade de efeito de sentido da promoção é caracterizada, a partir da
marcação e estruturação da escrita, pelo uso de excessivas citações de um mesmo autor sem

80
estabelecer relação com o discurso produzido ou articulação com a proposta de investigação.
A escrita que se utiliza de várias citações para reproduzir o discurso de um autor específico
constrói um efeito de sentido pelo qual o texto coloca em evidência o autor citado, em vez das
palavras de quem escreve.
A monografia do aluno A tem 37 páginas, divididas em: resumo; introdução; capítulo
um, dedicado às considerações teóricas; capítulo dois, dedicado à descrição do corpus;
capítulo três, de análise; considerações finais; e referências bibliográficas. A proposta do
trabalho do aluno é “analisar e compreender o funcionamento dos sentidos em nosso objeto de
estudo: o depoimento da dança do chorado”. O corpus do trabalho é um depoimento relatado6,
especificamente, a gravação de um depoimento da dança do chorado7. O objetivo da
investigação é verificar os sentidos que constituem a dança do chorado. As palavras-chave do
trabalho acadêmico são: memória discursiva, resistência, subjetividade, silêncio e deslizes dos
sentidos. Na introdução do texto, apresentam-se o objetivo e os autores utilizados como
fundamentação da pesquisa, sem justificação ou demonstração da relevância do trabalho
realizado.
Ao começar a análise, chamou-nos a atenção a recorrência de citações de um mesmo
autor na seção dedicada à resenha teórica. O capítulo de considerações teóricas é composto de
oito páginas e 44 parágrafos. Nestes, verificamos 25 marcações explícitas da voz de outro
autor, das quais 22 indicam uma autora conhecida na academia. Também observamos que, no
capítulo analisado, há catorze citações em discurso direto, introduzidas por conectores que
evidenciam uma tentativa de adequação ou concordância com o discurso citado, e 24
tentativas de reformulações parafrásticas de conceitos teóricos que, em sua maioria, foram
apresentados nas citações diretas de Orlandi.
Tal recorrência é significativa e parece apontar para a utilização de apenas um autor
para fundamentação do discurso produzido no trabalho, o que compreendemos como efeito de
sentido de promoção de um autor, considerando que, nessa parte do trabalho, apenas mais um
autor é citado, mas de forma a confirmar o discurso do outro autor excessivamente transcrito.
Para que possamos realmente dizer se e como ocorre essa promoção, precisamos analisar a
escrita do aluno, sobretudo em trechos que contenham as formulações do autor que tão
recorrentemente é citado na monografia. Para analisar esses dados e verificar como se dá essa

6
Consideramos como depoimento relatado, porque a transcrição foi feita a partir de entrevista. O aluno solicitou
a um morador da comunidade que desse seu depoimento sobre a dança do chorado.
7
Dança típica de comunidades quilombolas, nesse caso, do grupo que viveu na região da cidade de Vila Bela da
Santíssima Trindade, MT.
81
promoção, nos focaremos em uma análise dos conectivos empregados na seção dedicada à
exposição da teoria que embasa a monografia.
Compreendemos que as condições de produção8 podem influenciar no trabalho
realizado, porém nosso objetivo é, neste momento, analisar como é constituída uma escrita
que desenvolve um efeito de sentido de promoção, para, ao final do trabalho, discutir sobre a
formação escrita e refletir sobre os processos que contribuem e influenciam os modos de
utilização de teorias em uma produção acadêmica.
O recorte transcrito a seguir foi retirado da primeira monografia que analisamos.
Classificamo-lo como excerto 1, do aluno A. O trecho que analisamos está no início do
capítulo dedicado à análise. Trata-se da apresentação de uma citação recuada que traz uma
explicação sobre a diferença dos estudos da Análise do Discurso e dos conceitos de
transmissão da teoria da comunicação. Selecionamos esse excerto para mostrar como aquele
que escreve inicia o capítulo dedicado à análise de dados de sua investigação sem mencionar
o objeto ou mesmo apresentar o capítulo de análise, seus objetivos e a proposta daquela parte
do trabalho. O conceito utilizado como fundamentação do trabalho também não é
apresentado.
Anteriormente ao dado que recortamos, há um capítulo dedicado à transcrição do
depoimento relatado de um morador da comunidade quilombola de Vila Bela, nomeado como
Sr. Elísio.

EXCERTO 1 - ALUNO A

01 Conforme Orlandi (2002:21), não podemos considerar o depoimento relatado apenas


02 como um código, ou mero meio de transmitir informações.
03 Para a Análise de Discurso, não se trata apenas de transmissão de
04 informação, nem há essa linearidade na disposição dos elementos da
05 comunicação, como se a mensagem resultasse de um processo assim
06 serializado: alguém fala, refere alguma coisa, baseando-se em um
07 código, e o receptor capta a mensagem, decodificando-a. Na realidade a
08 língua não é só um código entre outros, não há essa separação entre
09 emissor e receptor, nem tampouco eles atuam numa sequência em que
10 primeiro um fala e depois o outro decodifica etc. Eles estão realizando
11 ao mesmo tempo o processo de significação e não estão separados de
12 forma estanque. Além disso, ao invés de mensagem, o que propomos é

8
Segundo Possenti (2004, p. 369), para a AD, o conceito de condições de produção exclui definitivamente um
caráter “psicossociológico”, mesmo na “situação concreta”. Os contextos imediatos somente interessam na
medida em que, mesmo neles, funcionam condições históricas de produção. Ou seja, os contextos fazem parte de
uma história…

82
13 justamente pensar aí o discurso.
14 Como já discutimos sobre a noção de leitura (Orlandi, 2004), no relato, por se tratar de
15 um material simbólico, não podemos, na perspectiva da A. D, visar compreender o que
16 esse texto está querendo dizer, mas compreender como o discurso faz significar
17 determinados efeitos de sentidos e como esses efeitos de sentidos se significam e
18 funcionam. Em relação às discussões de Orlandi (2002, 2004), compreendemos o
19 relato como o espaço simbólico do discurso sobre a Dança do chorado.
20 Neste material simbólico de análise, os sentidos que se significam e que funciona fazem a partir
21 de um imaginário de unidade e de autoria. De acordo com Orlandi (2001:65), o imaginário de
22 unidade de sentidos produz a textualidade e o discurso imaginário da função-autor.
23 Falando da função-autor tenho dito o que ela constrói uma relação
24 organizada – em termos de discurso – produzindo um efeito imaginário
25 de unidade (com começo, meio, progressão, não contradição e fim).
26 E a isto chamo de textualidade. Toda vez que tenho isso, tenho
27 a função autor, colocando imaginariamente o sujeito na origem do
28 sentido e sendo responsabilizado pela produção.
29 Interessante ressaltar que esse imaginário de textualidade ocorre pelo gesto de
30 interpretação. É o gesto de interpretação que possibilitará a materialização do simbólico pelo
31 discurso. No depoimento sobre o Chorado, esse imaginário de unidade dos sentidos pode ser
32 compreendido ao tratar de maneira sequencial o primeiro, o segundo e o terceiro momento da
33 Dança do Chorado. (p. 20-21).

Na linha 01, há o uso do conectivo “conforme”, que marca um controle do processo


de comunicação, tal como definido por Authier-Revuz (2004). É uma marcação de
heterogeneidade explícita de concordância com a voz do outro. Ela indica conformidade do eu
com o já-dito. Nesse caso, o aluno evidencia a afirmação que faz a partir da voz do outro; não
há um enunciado próprio do texto ou uma articulação do dizer produzido mediante o uso de
discurso indireto ou mesmo de comentários do autor. Nota-se que, para construir um discurso
de adequação ou concordância com o outro, o aluno desenvolve uma escrita na qual inclui seu
próprio discurso apenas para concordar com o discurso ao qual nos remete por meio da
citação (linhas 03 a 13) ou para adequar-se a ele. Essa citação faz alusão aos conceitos de
código e transmissão e é empregada numa tentativa de explicar o porquê de utilizar a teoria da
Análise do Discurso como base de fundamentação da análise do corpus. Mas o autor da
monografia não desenvolve ou explica a diferença entre os conceitos de “transmissão de
informação” e “processo de significação”. Além disso, ele não faz comentários ou
teorizações; a remissão e a apresentação dos conceitos de transmissão e código são realizadas
pela autora citada. Não se realiza, por conseguinte, a mobilização do dizer de quem escreve e
nem sua articulação com o discurso do outro que é citado.
Na linha 14, há uma marcação do mesmo autor da citação recuada, que é apresentada
após a locução “Como já discutimos” para fazer remissão à “noção de leitura” do autor

83
marcado. O interessante é que não se desenvolve o conceito de leitura nem a discussão a que
se fez alusão. O que se observa é uma marcação nova do mesmo autor para apresentar outro
conceito – o de “material simbólico” – e remeter à teoria utilizada como fundamentação
teórica.
Na sequência do texto, na linha 16, há uma marcação em itálico de uma concepção
do autor citado, que serve para introduzir, na linha 17, a ideia de efeitos de sentido sem
conceituá-la ou explicá-la. É como se se pressupusesse que todos sabem o que o texto e a
autora que é citada em diversos momentos querem passar ao falarem sobre efeito de sentidos.
Na linha 18, utiliza-se a locução “em relação” como forma de remeter a conceitos
que, supostamente, todos os leitores conhecem, pois não é desenvolvida uma reflexão sobre as
“discussões de Orlandi”. O único referencial são as citações diretas apresentadas no decorrer
do texto que consideramos como mais uma marcação do discurso de outro autor, como formas
de apresentar os conceitos do dizer referenciado.
Nas linhas 19 e 20, o autor do texto tenta estabelecer uma relação entre um conceito
teórico e o corpus que se propôs a analisar. Porém, não há desenvolvimento do conceito ou
articulação com o corpus. Pressupõe-se que todos os leitores compreenderão o que se quer
dizer com “relato como um espaço simbólico do discurso da dança do chorado”, mas não há
explicação sobre o que é “espaço simbólico” ou mesmo sobre o que é o “discurso da dança do
chorado”.
Ao final, nas linhas 21 e 22, uma nova marcação aparece. O uso do conectivo “De
acordo”, seguido do nome do autor, novamente citado, sinaliza uma tentativa de concordância
e conformidade. Na sequência, outros conceitos são apresentados sem explicação ou
conceituação, como, por exemplo, “imaginário de unidade e de autoria” e “discurso
imaginário da função-autor”. Esses conceitos são desenvolvidos em seguida, mas por meio de
uma nova citação direta da mesma autora já citada por diversas vezes.
É fato que, em diversos momentos, nossa análise parecerá repetitiva. Isso é uma
consequência do que conseguimos perceber no texto que recortamos como dado para analisar,
ou seja, nele, é evidente a repetição maciça de marcações de uma autora em citações diretas
ou em tentativas de paráfrases, como ocorreu entre as linhas 14 e 22, que revelam um modo
de escrita organizado de forma a dar voz para o outro.
Da linha 23 a 28, há, novamente, uma citação direta recuada, que apresenta o
conceito teórico citado na linha 22 – “função-autor” –, que não foi conceituado por aquele que
escreve, mas comentado a partir de paráfrases. A escrita apresentada no texto que analisamos,

84
demonstra que aquele que escreve apresenta e cita diversos conceitos, dando como referência
discursos de uma autora reconhecida e consolidada para conceituar e explicar o que
menciona. Não vemos, porém, a articulação de comentários com os discursos do autor que é
citado ou com o corpus da pesquisa do graduando. Tal característica é perceptível no texto
desenvolvido entre as linhas 29 e 33, quando aquele que escreve relaciona os conceitos
apresentados pelas citações do outro com o “depoimento sobre o chorado”, que é apresentado
como corpus da investigação.
O texto apresenta, portanto, diversos conceitos, mas não os explica ou articula com o
que se propõe a analisar. Podemos utilizar, como exemplos, os casos de “imaginário de
textualidade”, na linha 29, “gesto de interpretação” e “materialização do simbólico”, na linha
30, e “imaginário de unidade dos sentidos”, na linha 31. Esses conceitos teóricos não são
apresentados, explicados e conceituados, e apenas sua apresentação, juntamente com as
citações, não permite entender os conceitos nem dar conta do objetivo proposto no trabalho.
Outro fato a ser considerado é que a referência que o aluno faz a Orlandi (2002)
retoma conceitos que não são especificamente dessa autora. São, sim, termos consolidados na
comunidade linguística, como “material simbólico”, “significação”, “transmissão de
informação”, entre outros, cuja origem o aluno atribui à autora citada. Podemos entender essa
falha como uma dificuldade própria desse momento de escrita, pois é um período de
aprendizagem do graduando, e este gênero acadêmico (monografia) pode ser considerado
como a primeira escrita de um texto acadêmico resultante de uma pesquisa.
Esse tipo de produção que desenvolve um efeito de promoção e em que o autor se
utiliza da alegação da dificuldade de escrever como forma de justificar as falhas de escrita é
um exemplo de trabalho que, muitas vezes, é reconhecido na universidade. Além de se aceitar
essa produção como um trabalho inicial de monografia, o modo deficiente de escrita é aceito
como próprio à pesquisa, criando a ilusão de que ele contribui com a produção científica na
universidade, o que também questionamos, considerando a quantidade e a popularização de
trabalhos com essas características, os quais ganham a cada dia mais espaço e incentivo.
Ao relembrarmos nos indícios de autoria apresentados por Possenti (2009), notamos
que, na escrita que analisamos, eles não estão presentes. Aquele que escreve desenvolve
apenas a atitude de dar voz a outros autores, sem conseguir se distanciar do próprio texto para
articular seu discurso com o discurso dos autores que cita.

85
4.3.2 A promoção de conceitos teóricos

Nesta parte do trabalho, dedicamo-nos à análise dos dados recolhidos acerca do


modo de escrita organizado por meio de marcações de discursos que estruturam a monografia.
Tais dados aproximam-se daqueles que vimos anteriormente, mas que, desta vez, têm como
principal característica o encadeamento de conceitos, ou seja, a apresentação de vários
conceitos teóricos que supostamente auxiliariam a análise. Nesse caso, os termos e conceitos
de uma determinada perspectiva teórica não são necessariamente bem definidos, explicados
ou desenvolvidos, revelando um efeito de sentido pelo qual o texto os promove e cuja simples
presença é oferecida como instrumento de análise do corpus do trabalho. Essa forma de
escrita é caracterizada por apresentar uma diversidade de conceitos teóricos sem articulá-los
com a análise de dados. Não obstante, o efeito de sentido de promoção pode garantir a
legitimidade do trabalho e inseri-lo em uma determinada comunidade científica através da
repetição e reprodução de discursos de outros autores reconhecidos.
Esses novos dados são de outra monografia, do aluno B, que tem uma experiência de
formação diferente daquela concretizada pelo aluno A, conforme apresentamos no capítulo
anterior. O trecho foi retirado do segundo capítulo da monografia, dedicado a articular a teoria
apresentada no primeiro capítulo com a análise de dados. Configura-se como parte do
trabalho que tem como propósito analisar o discurso sobre a literatura em um folhetim do
século XIX.
Anteriormente ao parágrafo de onde recortamos esse dado, o texto apresenta uma
reflexão sobre o funcionamento próprio da língua. Nessa parte, também fica evidente a
determinação sócio-histórica e inconsciente do sujeito que não pode sempre garantir um lócus
de filiação. O aluno ainda comenta sobre a tensão entre o já-dito e o por dizer assim como
discorre sobre o deslocamento da linguagem e as possibilidades e modos de subjetivação.

EXCERTO 2 – ALUNO B

01 Alguns consideram o já-dito enquanto um fechamento dos sentidos, pois este, em


02 certa medida, delimita, imobiliza. Entretanto, podemos pensar, com Orlandi (2009, p. 9)
03 “[…] que aquilo que se diz, uma vez dito, vira coisa no mundo: ganha espessura, faz
04 história”. Desse modo, apontar para o estabelecimento do não-estabelecido e
05 questionar a consciência hegemônica (o sentimento) dessas distinções no homem de
06 linguagem, fornece fôlego para a nossa concepção de trabalho, qual seja, a língua
07 pensada por uma teoria materialista de linguagem. Também, a questão da memória
08 se mostra sensível quando, sobretudo, “[…] ela opera sob a forma da evidência dos
09 sentidos, aparecendo […] nas suas falhas” (PAYER, 2009, p. 42).
86
Na linha 01, aparece o pronome indefinido “alguns”, uma palavra não-fórica, ou seja,
sem relação semântica com outro termo ou sentido referente. Como afirma Neves (2000, p.
534), são “considerados indefinidos de identidade os pronomes cuja referência não pode ser
identificada”. A utilização desse pronome funciona, então, como um recurso linguístico que
marca a indefinição da referência que o aluno faz aos autores que apresentam o conceito
linguístico de “já-dito” na linha 01 e marca, de certa maneira, um distanciamento do que é
citado naquele momento. Por sua vez, a marcação por meio do uso de “entretanto” funciona
como marca de adequação e adesão ao que é dito a seguir e de negação à primeira referência
realizada, como podemos confirmar na linha 02. O uso do conectivo acrescenta, portanto, uma
marca de adversidade em relação ao trecho iniciado pelo pronome indefinido. O aluno, assim,
recusa um dizer alheio e indefinido para filiar-se a outro, o da autora que aparece
predominantemente no seu texto.
O fato de o texto contrariar uma voz não determinada, apresentada pelo conectivo
indefinido, e marcar a outra voz, a do autor que fundamenta o trabalho, colocando-o em
evidência, juntamente com os outros usos aqui analisados, provoca um efeito de sentido que,
durante a leitura, caracteriza toda a produção, em virtude da configuração da marcação dos
outros discursos, e que entendemos como uma forma de promoção daquele que é citado.
Nesse caso, a forma de organização das marcas de outros discursos na produção
escrita constrói entre as palavras um jogo que nega certos discursos ou os invalida, como o
que vemos na linha 01 com o uso do conectivo “alguns”. O texto desqualifica ou recusa o
conceito de já-dito como um “fechamento de sentidos”. Esse jogo de palavras contraria a
definição corriqueira do termo e reforça a aproximação com a conceituação apresentada pela
voz de Orlandi, que, além de marcada, é considerada, na escrita do aluno, como a voz correta
e verdadeira, que deve ser seguida em oposição àquelas apresentadas indefinidamente na linha
01. Ao mesmo tempo, a produção daquele que escreve não se desenvolve. Ela apenas
consolida e reproduz outros discursos já reconhecidos.
Esse efeito de promoção é caracterizado pela intenção do aluno de destacar os
conceitos de uma determinada voz, que, no caso, é a de Orlandi. Tal modo de escrita cria um
efeito de sentido que entendemos como forma de promover o outro. Ele caracteriza-se pelas
marcações da voz de outros autores por meio de citações recuadas, paráfrases e/ou
reformulações de um discurso conhecido. Essa estrutura de escrita, involuntariamente, passa a

87
ideia de que o discurso do outro tem prestígio especial, uma prática que pode ser observada no
“jogo” da academia, ou seja, é uma situação comum na universidade.
Em nosso entender, cria-se a imagem de que a reprodução de um discurso ao qual
estamos filiados e com o qual estabelecemos ligação e aproximação, seja por ser de um autor
reconhecido, seja para sermos respeitados pelos pares que utilizam a mesma teoria ou
conceito como fundamentação, é aceita como produção científica, em razão do efeito de
sentido de promoção de um autor respeitado e reconhecido, e não pela relevância da
investigação realizada.
Isso contraria, em certa medida, alguns critérios necessários para reconhecer um
texto acadêmico como produção científica, tais qual a construção de valor científico (grau de
relevância para a ciência) através da articulação entre conceitos teóricos e análise de dados.
Tal articulação poderia auxiliar o jovem pesquisador a responder os questionamentos que o
levaram a propor determinada investigação.
Não estamos problematizando vontades ou intenções, mas refletindo sobre a
possibilidade de que as diferentes formas de escrita estejam ligadas às maneiras como
realizamos a articulação do discurso de outros autores com aquele que estamos produzindo.
Além de constitutiva, a alteridade incita-nos a estabelecer relações com os discursos já
realizados, contudo, conforme estruturamos um dizer, podemos construir efeitos de sentido
que nem sempre condizem com o que estamos propondo, mas que não impedem que o
trabalho se constitua como produção.
Ao mencionarmos ligação, aproximação e filiação de um pesquisador a uma teoria,
referimo-nos ao conhecimento que aquele que escreve tem sobre autores ou teorias para
desenvolver seus trabalhos e atividades durante a formação acadêmica. Para realizar uma
produção escrita, desenvolve-se um vínculo com um ou mais pressupostos teóricos que, em
sua maioria, são instituídos por um autor reconhecido que já tenha contribuído com a
produção científica. São esses autores que utilizamos em citações com o objetivo de
confirmar nossos dizeres e garantir o caráter científico das pesquisas que realizamos.
Entretanto, dependendo da forma de se relacionar com uma teoria ou com um determinado
autor – isto é, como se utiliza os conceitos e discursos de outros autores –, da experiência de
orientação vivenciada e de diversas outras questões, os universitários desenvolvem diferentes
formas de produção escrita, e uma delas pode contribuir para que as investigações de
iniciação científica, como de monografias, estruturem-se por meio da repetição e de citações
soltas de autores renomados sem articulação com a proposta inicial do trabalho. Trata-se de

88
escrever um texto cuja teoria não funciona, predominantemente, como subsídio do trabalho.
Ao contrário, a produção escrita é que subsidia a teoria, colocando-a em evidência, exaltando-
a, o que constrói um sentido de que o texto promove quem é citado.
Algo parecido pode ser percebido no excerto 2, quando, na referência a Orlandi, na
linha 02, o aluno faz uso da locução verbal “podemos pensar” em conjunto com a preposição
“com”. A marcação evidencia que os pensamentos dele sobre as teorias que apresenta não são
apenas mediados pela voz que cita, mas são literalmente do outro. É interessante observar
essa ocorrência, lembrando que Authier-Revuz (2004), ao afirmar que a organização do
discurso se dá a partir do outro, não exclui dessa relação o eu. A utilização da locução verbal
“podemos pensar” como conectivo para marcar a voz do outro parece demonstrar que o texto
produzido é uma forma de reproduzir a forma de pensar do autor citado e que não temos uma
reflexão daquele que escreve.
Ainda analisando o dado anterior, notamos que o uso da conjunção conclusiva “desse
modo” na linha 04, estabelece uma retomada da citação de Orlandi nas linhas 02 a 04. Tal uso
é uma modalização em discurso segundo, uma maneira de quem escreve concordar com o
autor que foi citado antes do uso do conectivo em questão, o que pode ser considerado
inicialmente como um argumento de autoridade, uma forma de confirmar um discurso através
do dizer de um autor já reconhecido na academia.
As formas de marcação do discurso de outros autores na escrita dos textos que
analisamos controlam o discurso do aluno. Conforme percebemos, em grande parte,
evidenciam a voz do outro, do autor reconhecido. O texto faz remissão a conceitos que não
são empregados no trabalho, não funcionam como categorias de análise e não lhe dão
sustentação teórica, desenvolvendo-se um sentido de que o texto produzido é apenas um
mecanismo de demarcação da filiação teórica de quem escreve a uma autora renomada e
reconhecida como autoridade sobre a teoria utilizada.
Na linha 07, o conectivo “também”, um advérbio com valor de adição e ênfase, é
utilizado para destacar algo que será incluído no texto. Nesse caso, inclui-se o conceito de
memória antes da referência ao discurso de outro autor. Temos a menção de um novo termo
da teoria da Análise do Discurso, “memória”, que novamente não é explicado ou descrito por
quem escreve; sua conceituação é desenvolvida depois, a partir de uma nova citação do
discurso de outro autor.
Num segundo momento, esse mesmo “também” funciona como um recurso de
antecipação da citação de Payer. É uma maneira diferente de marcar a voz do outro. Dessa

89
vez, o conectivo apresenta a voz citada nas linhas 08 e 09 em uma ilha textual, que é uma das
formas de marcação da heterogeneidade discursiva, caracterizada pela transcrição.
A utilização do conectivo “sobretudo”, na linha 08, confirma a tentativa de se
estabelecer relação com o termo que o conectivo “também” introduziu e, assim, remeter a
voz do outro que é citada. Observamos que esses conectores são utilizados como mediadores
da citação e como uma marcação do discurso do outro que é citado, como constatamos com a
marcação do dizer de Payer nas linhas 08 e 09, apresentado pelos conectivos “também” e
“sobretudo”, que antecipam e demonstram uma aproximação com a citação do autor.
Além das linhas 08 e 09, encontramos ilhas textuais nas linhas 03 e 04. Elas são
formas de conotação autonímica, ou seja, de marcação do discurso do outro dentro do próprio
discurso.
A conotação autonímica pode ser representada pela apresentação de discursos entre
aspas, em itálico etc. Essas formas de conotação funcionam como um argumento de
autoridade na escrita daquele que redige o texto. Trata-se de uma maneira de argumentar que
consiste em utilizar o discurso de um autor reconhecido pela academia para confirmar o que
estamos dizendo, como forma de garantir a veracidade e obter respaldo científico para o que
escrevemos.
No caso do excerto 2, vemos que a escrita desenvolvida aponta para um
encadeamento de autores que confirmam o dizer daquele que foi marcado, mas não
demonstram uma posição enunciativa daquele que escreve nem apresentam uma citação que
confirme um dizer dele. A produção escrita é caracterizada pelas vozes dos outros autores
citados, como Payer nas linhas 08 e 09, que complementa o conceito apresentado por Orlandi
nas linhas 02 e 04.
A escrita desenvolvida com essas marcações que produzem um efeito de promoção
dos conceitos teóricos também é objeto de reflexão sobre o silenciamento da voz de quem
escreve. A produção em questão, ao se utilizar das citações de diferentes autores e
desenvolver o sentido de promoção, sem articular os pressupostos teóricos com uma análise
de dados, apaga a posição de enunciador daquele que escreve, que se reduz ao estatuto de
suporte, de porta-voz do dizer de outro autor, não realizando o trabalho que se propôs a fazer,
mas, mesmo assim, tendo sua produção reconhecida pela comunidade científica.
Como discutimos o encadeamento de conceitos teóricos sem explicação,
apresentamos, nas linhas abaixo, uma síntese dos dados, que confirma nossa hipótese,
considerando que o excerto já não está muito próximo.

90
01: conceito de “já-dito”
04: de “não-estabelecido”
05: de “consciência hegemônica”
07: de “teoria materialista de linguagem” e “memória”

A análise do excerto 2 revelou a presença de marcas, conectivos e citações, que


referenciam outras vozes no texto do locutor através de discurso relatado indireto. Para
Authier-Revuz (2004, p. 12), essa demonstração de heterogeneidade explícita do discurso é
caracterizada pelo comportamento do autor como tradutor, pois “fazendo uso de suas próprias
palavras, ele [o aluno] remete a outro como fonte do ‘sentido’ dos propósitos que ele relata”.
Authier-Revuz (2004) afirma que a heterogeneidade mostrada e as estratégias de
controle-regulagem são comuns na constituição dos discursos, pois todos são heterogêneos e
mantêm relação uns com outros. Para a metodologia de iniciação científica, as marcações da
voz do outro funcionam, nas produções escritas e investigações, como argumentos de
autoridade, que são utilizados a fim de confirmar e sustentar aquilo que se defende e analisa,
sem com isso construir uma ideia de que o texto exalta e promove autores da teoria da Análise
do Discurso. Contudo, no caso analisado, vemos uma escrita que demarca as vozes do outro e
reproduz os conceitos teóricos de autores consolidados, originando o efeito de promoção do
autor citado ou do conceito que é, por diversas vezes, referido.
A análise de dois trechos das monografias nos permitiu perceber a construção de uma
produção escrita que não realiza uma análise do corpus que apresenta como dado, mas sim o
desenvolvimento de uma escrita a partir de repetições da teoria de outro autor. Analisamos
esse uso para refletir sobre os modos de escrita que são aceitos e entendidos como produções
de trabalhos acadêmicos, e não para acusar o aluno de desenvolver essa forma de escrita
intencionalmente.
Entendemos que quem escreve um texto é responsável pelo seu dizer e que, em
situações como as que analisamos, produzem-se certos efeitos que geram o sentido de que a
responsabilidade do que é dito no texto é do autor que é citado e não daquele que escreve,
considerando qual voz realiza a apresentação dos conceitos e quantas vezes um mesmo autor
é marcado.
O trecho que utilizamos como próximo dado também foi retirado da monografia do
informante que nomeamos como aluno A, o qual propôs uma investigação sobre as condições

91
de significação do sujeito do chorado no século XVIII e nos dias atuais. O dado que
analisamos foi retirado do início do capítulo intitulado considerações teóricas, no qual o aluno
se dedica a apresentar os conceitos a partir de longas citações recuadas de um mesmo autor.
Para tanto, decidimos recortar esse trecho com o intuito de demonstrar que o modo de
escrita que apontamos anteriormente não está presente apenas nos capítulos dedicados à
análise, mas também no momento de realização da resenha teórica.

EXCERTO 3 - ALUNO A

01 A Análise de Discurso (A.D) será a nossa filiação teórica para a análise que
02 iremos desenvolver. Partindo dessa concepção teórica,
03 propomo-nos a analisar e compreender o funcionamento dos sentidos instaurados em
04 nosso objeto de estudo: o depoimento da Dança do Chorado. Para melhor compreensão
05 da materialidade simbólica do depoimento, discutiremos as noções de discurso,
06 subjetividade, Memória Discursiva e silêncio, tratados por Orlandi (2002; 2004; 1997),
07 Haroche (1992) e tomando da descrição do relato sobre o depoimento do Sr. Elísio.
08 A necessidade de discutir as noções de Memória Discursiva e o silenciamento é a de
09 marcar o nosso lugar teórico na análise relativo ao Chorado. Além disso, a partir das
10 discussões teóricas, contribuir para a compreensão dos sentidos dessas noções em
11 funcionamento no depoimento.

Nas linhas 01 a 03, o parágrafo descreve a teoria utilizada como fundamentação,


apresentada como “nossa filiação teórica”, e também expõe uma breve apresentação do
objetivo, “analisar e compreender o funcionamento dos sentidos instaurados” no depoimento
da Dança do Chorado, indicado como objeto de estudo do trabalho. É interessante notar que
o objeto de estudo é tratado como corpus, não há uma delimitação de um fenômeno como
objeto, ou seja, temos uma controvérsia quanto ao conceito do que é um dado investigável.
Considerando que o trabalho trata o próprio corpus como objeto da investigação, vemos um
problema em relação à noção de objeto de análise de pesquisas..
Nas linhas 05 e 06, introduzem-se os conceitos de “discurso”, “subjetividade”,
“Memória Discursiva” e “silêncio” de Orlandi e Haroche, na tentativa de explicar o conceito
de “materialidade simbólica”, apresentado na linha 05. O texto é construído a partir de um
encadeamento de conceitos como método de explicação de outros conceitos. Não há
explicações sobre nenhum dos termos apresentados, apenas a marcação da voz do outro. O
aluno faz reemissão aos conceitos de outros autores como forma de fundamentar teoricamente
sua pesquisa, e, ao mesmo tempo, não desenvolve seu texto, o que demonstraria, por exemplo,
a capacidade de leitura e de escrita do informante. Os conceitos estão soltos e foram tomados
de outro autor, como se a simples remissão já esclarecesse a definição de cada um deles.

92
O termo “Memória Discursiva”, utilizado nas linhas 06 e 08, é redigido com inicial
maiúscula, mesmo não funcionando aqui como substantivo próprio, o que parece destacar a
importância do referido conceito para o trabalho. A ênfase pode ser reconhecida como um
processo de conotação autonímica do dizer, que, para Authier-Revuz (2004), é uma forma de
heterogeneidade explícita que marca a tentativa de chamar a atenção para o que está sendo
escrito naquele momento. Além disso, tal uso parece marcar a importância dispensada ao
conceito de um autor reconhecido, pois é o único termo que aparece com inicial maiúscula,
detalhe que se soma à repetição do termo e à declaração, na linha 08, da necessidade de se
discutir a noção do conceito em questão.
Na linha 08, o aluno retoma dois conceitos apresentados na linha 06, destacando a
importância deles para o trabalho. Na linha 09, notamos que é marcada sua relação com os
conceitos utilizados através do uso do pronome possessivo “nosso”. É uma maneira de marcar
também sua relação com a voz do outro, isto é, demarcar a presença da teoria que fundamenta
o seu trabalho. Essas marcas aproximam aquele que escreve do lugar científico ocupado pelo
autor dos conceitos citados. Isso justifica, de certa forma, a ausência de uma definição e
aplicação dos conceitos; o texto os toma de outro e os repete, o que inclui aquele que escreve,
mesmo que textualmente, na comunidade científica que usa como aporte teórico. Essa
estratégia é uma forma de dar autoridade à voz do autor do texto em questão.
O aluno A propõe uma discussão sobre os conceitos demarcados, conceituados pela
referência e pela remissão ao discurso de outro autor citado, e, mesmo se tratando de um
capítulo dedicado a apresentar a fundamentação teórica, ele não faz comentários em grande
parte do texto nem dá início à discussão que anuncia. A partir das linhas finais do excerto até
o final do capítulo, prevalece o mesmo modo de escrita analisado. Portanto, não há relação
entre os sentidos produzidos pelos comentários daquele que escreve e o discurso de outros
referenciados; na realidade, o texto reproduz os sentidos do dizer dos autores citados.
Para Authier-Revuz (2007), fazer alusão ao outro é fazer reemissão aos sentidos de
outro autor. Esse processo nem sempre é satisfatório, pois pode levar o enunciador ao
fracasso. A remissão ao outro funciona a partir da construção de um diálogo entre os sentidos
produzidos por quem escreve e por quem é citado. Contudo, no dado que analisamos, as
ideias propagadas pelo autor do texto são determinadas pela reprodução dos conceitos e
dizeres de outro; não há relação entre sentidos produzidos, pois temos uma predominância de
sentidos reproduzidos.

93
De acordo com o conceito de trabalho linguístico de Rossi-Landi (1985), o modo de
escrita que analisamos não desenvolve um valor de uso, pois não demonstra funcionalidade
social e caracteriza-se pela reprodução dos sentidos do dizer de outro autor utilizado como
referência. A escrita assim caracterizada não se consolida como trabalho linguístico, como um
ato linguageiro com valor de uso e valor de troca. Também não há operacionalidade dos
conceitos teóricos com a proposta de trabalho, visto que, em diversos momentos, como
aqueles que recortamos como excertos, não há uma articulação dos conceitos com o corpus
que a pesquisa propõe analisar.
A heterogeneidade constitutiva, na escrita que analisamos, resulta em um texto que
desenvolve o efeito de promoção dos conceitos da teoria da Análise do Discurso. Estes são
apresentados de diversas maneiras, sem conceituação ou articulação com os dados, o que pode
ser compreendido como uma forma de prestigiá-los e evidenciá-los.
O excerto 4 é um trecho da monografia no qual se faz uma investigação sobre os
sentidos instaurados no sujeito da dança do chorado. Também retiramos esse trecho do
capítulo dedicado às considerações teóricas e à descrição dos conceitos da teoria utilizada
como fundamentação do trabalho. Nesse exemplo, é possível observar que, por diversas
vezes, são feitas remissões para descrever os conceitos presentes no excerto, sem
operacionalizá-los. De certa forma, esse uso caracteriza tanto um efeito de promoção do autor
como dos conceitos. Entendemos, porém, que estes são contextos diferentes e, pensando na
classificação dos dados, decidimos agrupá-los em categorias que apresentavam
predominantemente uma ou outra característica.
Este exemplo que analisaremos estava precedido de uma tentativa de explicação do
conceito de silêncio fundante.

EXCERTO 4 - ALUNO A

01 É no momento em que o derrotado para o senado está se significando que se pode perceber
02 o funcionamento do silêncio fundante. O vencido na disputa do senado se significa no silêncio
03 pelas falhas da língua.
04 Se ao contrário disso funcionasse como ausência de palavras, seria considerar a língua como
05 completa, sem falhas. O silêncio está na própria palavra em que os sentidos se significam mais do
06 que aquilo que foi dito.
07 Já a política do silêncio se constitui em: o silêncio constitutivo e o silêncio local. O silêncio
08 constitutivo está em relação ao que é preciso não dizer para poder dizer (Orlandi, 1997: 76). O
09 silêncio local está relacionado à censura: É o da interdição do dizer (Orlandi, 1997: 75). De
10 acordo com Orlandi, compreendemos a política do silêncio a partir do eixo horizontal, ou seja,
11 na formulação dos sentidos.
12 Na política do silêncio é permitido dizer determinada coisa em vez daquilo que não é permitido
94
13 se significar. Ou então, se diz tal coisa no lugar daquilo que é proibido dizer. É colocada em
14 questão a liberdade do sujeito em dizer certas coisas dentro de uma regra imposto pela política
15 É com base nisso que Orlandi trabalha o silenciamento:
16 A diferença entre o silêncio fundador e a política do silêncio é que a política do silêncio
17 produz um recorte entre o que se diz e o que não se diz, enquanto o silêncio fundador não
18 estabelece nenhuma divisão: ele significa em (por) si mesmo. (ORLANDI, 1997: 75).

Entre as linhas 01 e 03, o aluno faz uma retomada de um exemplo utilizado por outro
autor citado anteriormente para explicar o conceito de silêncio fundante. Nas linhas seguintes,
04 a 06, há outro parágrafo no qual o autor da monografia reformula o mesmo dizer que foi
apresentado momentos antes através de citações que definem o conceito abordado nas
primeiras seis linhas do excerto.
Nas linhas 07 e 08, os conceitos “política do silêncio”, “silêncio constitutivo” e
“silêncio local” são apresentados. Já nas linhas 08 e 09, temos a conceituação dos termos
apresentados anteriormente. Para realizar a conceituação dos termos, o texto faz reemissão a
Orlandi através do discurso direto, que evidencia o dizer do outro.
Ao final da linha 09 e no início da linha 10, utiliza-se o conectivo “de acordo”, um
recurso linguístico que, conforme Authier-Revuz (2004), funciona como um mecanismo de
controle do dizer, ressaltando a adequação com o dizer do outro. É a construção de um
discurso indireto que, seguido do verbo “compreendemos”, demonstra a tentativa de quem
escreve de se incluir no lugar de teórico da Análise do Discurso. O uso da conjunção “ou
seja”, na linha 10, marca a tentativa de quem escreve de construir um dizer a partir do que já
foi dito, isto é, uma reformulação que remete a um dizer do outro para explicar o que foi
afirmado anteriormente.
Entre as linhas 12 e 15, temos um texto característico daquele que escreve a partir da
paráfrase, que remete ao outro e que rediz as afirmações do autor citado, porém tomando o
discurso para si com outras palavras. Essa característica é comum nos textos de iniciação
científica e de capítulos dedicados à apresentação da fundamentação teórica, no entanto, no
excerto 4, não se granjeia uma continuidade satisfatória para essa produção, que consistiria
em uma forma de o autor relacionar o que está reformulando com o que cita. Logo após o
trecho comentado, entre as linhas 16 e 18, há uma citação recuada que, em vez de confirmar o
dizer daquele que escreve, traz novas informações, a conceituação e a explicação definitiva do
conceito que foi tratado até então.
Segundo Authier-Revuz (2007), a alusão funciona com o desenvolvimento de um
diálogo entre aquele que escreve (o aluno) e o outro (um autor autorizado na academia). No

95
entanto, a escrita analisada faz uso da alusão de uma maneira que transcende a ideia de
remissão e empréstimo, originando um texto caracterizado por construir um sentido de
promoção dos conceitos teóricos empregados em sua investigação. Esse efeito prestigia e
exalta os conceitos teóricos empregados, de forma a auxiliar o trabalho a se inserir numa
discursividade, sem utilizar-se da fundamentação teórica como mecanismo de argumentação e
sustentação do que propôs enquanto investigação. Com isso, temos um processo instaurado,
no qual aquele que escreve não duplica seus ganhos, mas direciona-se para a perda de seus
lucros e, por conseguinte, para o fracasso.
Diferente dos excertos 3 e 4, que foram retirados do capítulo dedicado à descrição da
fundamentação teórica do trabalho monográfico, o próximo dado foi selecionado do capítulo
dedicado à análise. Nesse capítulo da monografia, há 24 citações, em catorze páginas de
análise, sendo onze de uma mesma autora, o que podemos entender como uma demonstração
de prevalência de uma voz como fundamentação, perceptível em todo o trabalho.
Antes do trecho transcrito no excerto 5, temos a conceituação de dança do chorado e,
depois, uma explanação sobre o que é considerado importante nos enunciados produzidos que
compõem o corpus do trabalho. Para o autor, o importante “não são os sentidos se
significarem de acordo com a norma padrão”, mas sim, para o seu ouvinte. Ele instaura um
questionamento sobre como um sujeito-ouvinte alcança a significação, mesmo não havendo
correspondência do dito com a gramática normativa. O informante da monografia aborda as
projeções imaginárias do sujeito ouvinte.

EXCERTO 5 - ALUNO A

01 Independentemente da falta de nexo que há entre os enunciados, da inadequação no emprego do operador


02 argumentativo, porém e o de não situar o sujeito-ouvinte no tempo cronológico, ao se colocar
03 imaginariamente na origem do dizível, o enunciador projeto o imaginário de sujeito-ouvinte. Essa projeção
04 imaginária ocorre e os sentidos se significam tanto para o enunciador quanto para o sujeito-ouvinte por
05 estarem constituídos pela mesma formação discursiva.
06 Ou seja, a Memória Discursiva que constitui a comunidade local é o que permite a significação dos
07 sentidos sobre o Chorado, independentemente dos sentidos evidenciados sobre o Chorado estarem
08 ou não correspondendo às regras da gramática normativa.
09 Relacionando a essa memória, propomos compreender a ideologia da contemporaneidade que, em
10 seus deslizes, vai significar o primeiro momento do Chorado. Para isso, nos basearemos nas
11 discussões de Orlandi (2004) em Interpretação.
12 Segundo Orlandi (2001:131): …a produção dos sentidos é marcada necessariamente pelo equívoco
13 Compreendemos que é uma ilusão, na oralização sobre o Chorado, tentar restaurar ou re-significar
14 os mesmos sentidos e materizá-los de acordo com a história de um acontecimento. Essa
15 impossibilidade se deve em função dos sentidos estarem em curso e do sujeito não ser transparente.
16 Por seu lado, a memória funciona com versões enunciativas, imagens do dizer. É desse modo que se

96
17 pode pensar o arquivo: a memória inscreve o discurso em filiações e o sentido que as representa está
18 sempre sujeito a deslocamento. As diferentes versões são efeitos das relações de sentido (relação de
19 um discurso com outros), das relações de força (relação de um discurso com o “lugar” de que é
20 falado. Nesta perspectiva, como vemos, o equívoco é fato estrutural implicado pela ordem do
21 simbólico. (ORLANDI, 2001:131).9

No início do excerto 5, na linha 01, o locutor faz a análise de um conectivo. Em


momentos específicos do texto, como esse, aquele que escreve desenvolve comentários em
relação ao corpus da investigação que apresenta como trabalho monográfico. Percebemos
que, mesmo nessas situações, quando se relacionam aos dados analisados algum conceito,
estes são apresentados sem qualquer explicação.
Em nenhum momento dos capítulos de análise e de resenha teórica, o termo “sujeito-
ouvinte”, que é marcado nas linhas 02, 03 e 04, é explicado ou desenvolvido. Temos a
construção de um texto que, quando relaciona algum conceito com o dado, pressupõe que
todos seus leitores entendem do que se trata. É o que ocorre com os termos “imaginário”, na
linha 03, e “formação discursiva”, na linha 05.
Ressaltamos que não desconsideramos a análise realizada, mas, em diversos
momentos como o mostrado no excerto acima, o texto caracteriza-se por fazer remissão a
variados conceitos, seja em tentativas de análises ou durante resenhas teóricas, sem, no
entanto, desenvolver uma explicação sobre eles. A compreensão desses termos, entretanto, é
complexa e suscetível de diversas interpretações, o que interfere no entendimento do leitor.
Na linha 06, o conceito memória discursiva é apresentado sem qualquer definição
ou explicação, nem no capítulo de análise, nem na apresentação da fundamentação teórica do
trabalho. O termo só tem sua explicação desvelada a partir de uma citação recuada iniciada na
linha 16. Aquele que escreve parte do pressuposto de que a indicação da autoria de Orlandi é
suficiente para que os leitores o compreendam. Na linha 07, o emprego do termo “sentidos
evidenciados”, sem descrições ou qualquer aplicação na análise dos dados, mantém seu
significado desconhecido. Nas linhas 09 e 10, vemos novamente conceitos sem explicações,
como “ideologia da contemporaneidade” e “deslizes”.
Diversos conceitos apresentados são conceituados a partir do discurso do autor que
foi citado. A voz de quem escreve, a todo o momento, repete a afirmação de outro autor. No
início do excerto, há uma tentativa de operacionalização dos dados, mas nela também
predomina a utilização do dizer do outro. Nesse sentido, cria-se a possibilidade de se construir
uma imagem de inversão do papel daquele que escreve com o outro que é citado: quem

9
Citação recuada realizada pelo aluno.
97
escreve confirma o dizer do outro, ao contrário de as citações do autor referenciado
reafirmarem e sustentarem o discurso que é produzido.
Na linha 12, o uso do conectivo “segundo” é uma forma de remissão ao outro, uma
marca de heterogeneidade mostrada, que aponta para a utilização da voz de outro autor. Nas
linhas 12, 13 e 14, temos o uso de uma citação direta do texto da autora que fundamenta
teoricamente o trabalho. Depois disso, após tentativas de concordância e adequação à voz do
outro, aquele que escreve usa mais uma citação recuada entre as linhas 16 e 21, demarcando
explicitamente o dizer do outro.
Tal prática não é considerada como problema para um trabalho acadêmico, pois
sempre é utilizada como forma e estratégia de argumentação. Porém, nos exemplos que
analisamos, não existe diálogo entre os sentidos produzidos pelos discursos de quem escreve e
o dizer dos autores citados; predominam os sentidos produzidos pelo discurso do outro que foi
reproduzido no texto da monografia.
Partimos da formulação de alusão de Authier-Revuz (2007) para mostrar que houve
problemas com o uso desse recurso, considerando que não presenciamos uma relação entre os
sentidos produzidos. O texto abusa da remissão direta aos dizeres do outro, o que passa a ideia
de que os sentidos da escrita são quase em totalidade produzidos a partir da reprodução.
De acordo com Rossi-Landi (1985), o que é produzido no meio acadêmico como
linguagem pressupõe alguma funcionalidade, tal como responder questionamentos que
contribuam com a produção científica e, consequentemente, com a vida da população em
geral. Entretanto não conseguimos identificar essa função social em exemplos de escrita como
os que analisamos, pois o texto prioriza e, de certa forma, limita-se a repetir e desenvolver o
dizer de outro autor, não contribuindo com a produção científica e com a consolidação de um
paradigma, no sentido de preencher lacunas de uma determinada perspectiva teórica (Kuhn,
2011).
Ao retomarmos os conceitos de valores de uso e troca de Rossi-Landi (1985), vemos
que esse modo de escrita atende apenas um valor de troca, pois não há um valor específico e
utilitário para o texto que é construído; o seu valor é o de troca, é o valor do discurso do outro
que é trocado pelo texto daquele que escreve. Com isso, não temos uma relação entre os dois
valores para que se estabeleça uma funcionalidade social que confirme a produção como
trabalho linguístico.
A ausência do valor de uso possibilita uma leitura de que a produção escrita em
questão desenvolve, além do sentido de promoção, a banalização da teoria e de conceitos

98
teóricos, citados e reproduzidos de diversas formas. Aparentemente, apenas a repetição do já-
dito garante a aprovação e aceitação do trabalho acadêmico. A teoria não precisa,
necessariamente, contribuir com a investigação, que, muitas vezes, não tem relevância, pois a
ideia central é de que o importante é reproduzir conceitos e teorias que já estão consolidados
na comunidade científica.
Por diversas vezes, durante a análise do corpus, a monografia patenteia uma escrita
caracterizada por comentários soltos, que para serem reconhecidos são relacionados a citações
de autores sobre os conceitos que supostamente utiliza para analisar os dados. O locutor
desenvolve a análise de forma infundada, faz reflexões genéricas sobre o relato que investiga
e tenta convencer que, apenas amarrando comentários gerais com a voz de outro autor,
realizou e concluiu uma pesquisa. O leitor, nesse modo de escrita, é considerado como um
conhecedor da teoria utilizada na análise, alguém que compreende conceitos utilizados no
trabalho, tais como os que já mencionamos: subjetividade, memória discursiva, entre outros.
Vemos ainda que o texto da monografia não relaciona os conceitos ao corpus que propôs
analisar. O aluno, em vez de comentar e discutir os conceitos apresentados, traz novas
citações que apresentam o papel histórico e os objetivos da teoria da Análise do Discurso. A
monografia caracteriza-se como um resumo das vozes de outro autor, com marcações dos
conceitos sobre a natureza da AD, qual o seu papel e como deve ser utilizada. É importante
ressaltar que, tanto no capítulo de resenha teórica quanto no de análise, notamos a
concentração de citações de um mesmo autor associada à superficialidade da análise e de um
trabalho linguístico limitado a relacionar as teorias mobilizadas à reprodução do dizer do
outro. Para a próxima análise, selecionamos um excerto da monografia do aluno B, retirado
do primeiro capítulo da monografia, que é estruturado a partir de uma resenha teórica dos
conceitos que supostamente fundamentam a pesquisa feita pelo aluno para desenvolver seu
trabalho.
No texto original, o excerto é precedido pela apresentação de uma questão “basilar”
para o trabalho: “a compreensão do primado do interdiscurso”. Para isso, quem escreve cita os
conceitos de heterogeneidade constitutiva, “Outro”, modalização autonímica, não
coincidências, psicanálise lacaniana, dialogismo bakhtiniano e interdiscurso de Pêcheux, sem,
em nenhum momento, descrevê-los ou fazer comentários acerca deles.

EXCERTO 6 – ALUNO B

01 De acordo com a autora, o estudo da configuração enunciativa da reflexividade

99
02 metaenunciativa, que é a modalização autonímica do dizer, visa compreender as
03 formas lingüísticas ou discursivas, através das quais se realiza um desdobramento
04 metaenunciativo. Neste sentido, Authier-Revuz, nos apresenta a configuração da
05 forma de auto-representação do dizer no campo da metalinguagem e da enunciação.

Nessa parte do trabalho, percebemos como característica a apresentação de conceitos


teóricos que são apresentados como operacionais para a análise. Por essa razão, nos chamou
atenção o excesso de conceitos teóricos relativos às questões discursivas, que são citados sem
explicação no decorrer do texto. Como exemplo, temos um trecho no qual são marcados cinco
diferentes conceitos em cinco linhas:

01: configuração enunciativa


02: o conceito de reflexividade metaenunciativa e modalização autonímica
03: formas linguísticas ou discursivas
04: desdobramento metaenunciativo
05: e auto-representação

Temos, em poucas linhas, a apresentação de diversos conceitos teóricos, fato que


demonstra a tentativa do locutor de construir um discurso relatado indireto como forma de se
inserir na comunidade científica e dialogar com a teoria que dá suporte ao seu texto. Notamos
que, de certa maneira, o texto limita-se a enumerar vários conceitos sem explicá-los ou
relacioná-los. A fim de explicar um conceito, são apresentados outros, que também não são
definidos, o que não configura um discurso relatado indireto no qual a voz do outro é marcada
como forma de confirmar o dizer daquele que escreve. Isso revela a dificuldade do autor em
construir uma escrita com uma estrutura organizada a partir de marcações do outro que
confirmem o seu próprio dizer.
O uso do “de acordo”, na linha 01, caracteriza a utilização de uma locução
prepositiva que “funciona fora do sistema de transitividade estabelecendo relações
semânticas” (NEVES, 2000, p. 657). Nesse caso, a relação semântica que se tenta estabelecer
funciona como uma forma de modalização em discurso segundo, que indica uma
circunstância, um modo daquele que escreve marcar concordância com a voz do autor
utilizado como referência.
A marcação de concordância com a outra voz é considerada por Authier-Revuz
(2004) como uma das formas de controle-regulagem do discurso que demarcam a presença de
outro discurso. Nesse sentido, acreditamos na possibilidade de que esse modo de escrita
100
construa a imagem de que aquele que escreve divide a responsabilidade do seu dizer com os
autores que cita em seu trabalho.
Um uso dos conectivos, semelhante ao que apontamos no exemplo anterior, ocorre
em outros trechos do trabalho do informante, como podemos notar no excerto que
transcrevemos a seguir:

04 […] Neste sentido, Authier-Revuz, nos apresenta a configuração da


05 forma de auto-representação do dizer no campo da metalinguagem e da enunciação.

Na linha 04, o uso de “neste sentido” caracteriza a utilização de um conectivo que


remete ao sentido do discurso do outro, indicando a continuidade de um dizer já mencionado.
A marcação de modalização em discurso segundo possibilita, novamente, a construção do
sentido de uma divisão de responsabilidade do autor do trabalho com aquele que é
referenciado. Esse fato pode ser relacionado à ideia de “remissão a outro discurso já-dito”
apresentada por Authier-Revuz (2004, p. 16) e é um exemplo de como a escrita pode fazer um
jogo de palavras com a voz de outros autores.
Mais uma vez instala-se um controle sobre o discurso, um controle-regulagem do
processo de comunicação (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 14). Esse controle é observado no
uso de conceitos de outro locutor, fazendo um papel de repetição; é como se o texto
monográfico fosse utilizado como veículo de transmissão do discurso de outro.
Os usos dos conectivos “de acordo” e “neste sentido” remetem semanticamente a voz
do outro que participa da escrita. Assim, a produção escrita desenvolvida na monografia
constrói-se a partir da voz de um autor reconhecido. Isso pode ser compreendido como uma
tentativa de confirmação do discurso alheio, adequação ou concordância com ele,
desenvolvendo a ideia de que aquele que escreve tem sua responsabilidade, dividida com o
autor citado.
Isso nos mostra uma situação já prevista por Authier-Revuz (2004), que demonstra a
possibilidade do discurso ser marcado por um controle caracterizado pela tentativa de se
construir uma concordância com seu interlocutor, no sentido de afirmar-se através da voz do
outro, isto é, o aluno constrói um texto a partir da repetição de um discurso consolidado.
Essas marcações podem servir de estratégia de argumentação em um texto acadêmico, porém,
nesses exemplos, em vez de desenvolver uma reflexão sobre determinado corpus, a produção
escrita destaca a voz de um autor reconhecido na comunidade científica.

101
No primeiro capítulo da monografia, temos, de fato, a realização do que foi proposto
no capítulo inicial: apresentar a teoria que irá subsidiar o trabalho. Mas, de maneira geral, o
texto monográfico, como demonstrado em alguns excertos, não articula os conceitos teóricos
que apresenta, e consolida a escrita do trabalho na reprodução do discurso de outros autores
reconhecidos, sem defini-los, cotejá-los ou mesmo informar ao leitor a forma como esses
conceitos são utilizados na proposta de pesquisa.
Observamos que houve uma tentativa de construir um discurso relatado indireto –
aquele que apresenta as marcações do discurso do outro –, no entanto, a produção escrita
consolida-se apenas repetindo a voz do outro. Há a apresentação excessiva de conceitos que,
ao final, não funcionam como estratégia de argumentação e somente marcam uma
concordância com quem é citado. Esse modo de escrita desenvolve um efeito de sentido de
promoção, divulgação e exaltação do discurso dos autores que são citados.

4.3.3 A promoção de uma teoria

Conforme vimos anteriormente, o aluno A propõe um estudo sobre as condições de


significação do sujeito do chorado no século XVIII e nos dias atuais. O exemplo a seguir é
uma sequência do excerto 3, que foi desmembrado em razão de entendermos que a parte que
ora apresentamos compõe-se de um modo de escrita que desenvolve um efeito de promoção
de uma teoria, e não de um conceito ou de um autor.

EXCERTO 7 – ALUNO A

01 A A.D que teve suas origens na França na década de 60 (sessenta) com M. Pêcheux,
02 nasce a partir da leitura de Lacan, na psicanálise; de Althusser, em relação aos sistemas
03 ideológicos marxistas; e de Pêcheux, quanto ao sistema linguístico de Saussure.

Esse trecho foi construído a partir de referências que ressaltam e marcam a


importância dos conceitos e da história da teoria utilizada no trabalho. Evidencia-se a
necessidade de quem escreve em demarcar não apenas os conceitos que utiliza como
referências do seu trabalho, mas também a historização de uma área, independentemente da
relevância disso na proposta de análise. A descrição histórica da teoria que fundamenta o
trabalho é um exemplo de marcação que serve para garantir a inserção da produção acadêmica
numa comunidade científica que é adepta dos conceitos teóricos utilizados como referência,

102
considerando que a retomada da origem da teoria pode ser entendida como uma forma de
demonstração de conhecimento sobre seus conceitos e pressupostos.
Esse processo, que se caracteriza não só como atividade do jovem pesquisador, mas
também como uma característica do “jogo” acadêmico, ressalta certo conhecimento sobre a
teoria que fundamenta a pesquisa, o que pode, na visão de determinados entes da comunidade
acadêmica, garantir a aceitação e aprovação do trabalho. Contudo, o desenvolvimento da
produção escrita resultante de uma investigação, mesmo que de iniciação, a explicação e
articulação de conceitos teóricos com uma análise, perde-se do texto.
O excerto 07 evidencia um modo de escrita acadêmica que entende os conceitos da
teoria como representativos de um conhecimento universal, comum a todos os leitores do
texto. Depois dele, temos duas citações recuadas para explicitar as características do estudo da
Análise do Discurso, sem definir como os conceitos apresentados contribuirão com a análise
proposta. São citações sobre a história e funcionalidade da teoria da AD. O locutor cita a voz
do outro para explicar o papel da teoria que utiliza, mas não mostra como ela poderia auxiliar
a pesquisa que realiza.
É interessante ressaltar que os trabalhos da Análise do Discurso recorrem
frequentemente à descrição histórica da teoria, e entendemos que isso não é algo proibido ou
desqualificado. Acreditamos que tal prática é outra maneira de assegurar a aceitação de um
trabalho acadêmico. Mas como considerar como produção científica o texto que não articula
conceitos com a análise de dados, repete os dizeres de outros autores e dedica-se a narrar a
história da teoria, sem relacionar tudo isso com a proposta de investigação? Temos, então, a
construção de um sentido de que o texto, em vez de contribuir para a produção de um trabalho
científico, repete conceitos e a história da teoria, e, mesmo assim, os pares da comunidade
científica no qual o trabalho pretende se inserir o aceitam e o aprovam.

EXCERTO 8 - ALUNO A

01 Como já discutimos sobre a noção de leitura (Orlandi, 2004), no relato, por se tratar de um material
02 simbólico, não podemos, na perspectiva da A. D, visar compreender o que esse texto está querendo
03 dizer, mas compreender como o discurso faz significar determinados efeitos de sentidos e como
04 esses efeitos de sentidos se significam e funcionam. Em relação às discussões de Orlandi (2002,
05 2004), compreendemos o relato como o espaço simbólico do discurso sobre a Dança do Chorado.
06 Neste material simbólico de análise, os sentidos que se significam e que funcionam o fazem a partir
07 de um imaginário de unidade e de autoria. De acordo com Orlandi (2001: 65), o imaginário de
08 unidade de sentidos produz a textualidade e o discurso imaginário da função-autor.
09 “Falando da função-autor tenho dito que ela constrói uma relação organizada – em termos de discurso
10 – produzindo um efeito imaginário de unidade (com começo, meio, progressão, não contradição e

103
11 fim). E a isto chamo de textualidade. Toda vez que tenho isso, tenho a função autor, colocando
12 imaginariamente o sujeito na origem do sentido e sendo responsabilizado pela sua produção”.

O excerto 8 foi retirado do capítulo de análise e é um recorte posterior a uma citação


recuada que é apresentada no excerto 04. Nesse trecho, temos a apresentação de como a
Análise do Discurso compreende a disposição dos elementos da comunicação assim como as
noções de língua, de emissor e de processo de significação.
Na linha 01, o texto faz a marcação do outro em reemissão à “noção de leitura” de
Orlandi. Entretanto não há contextualização da noção de leitura no capítulo de análise nem no
capítulo dedicado a resenha teórica. O termo é apresentado rapidamente, sem comentários,
diante de uma referência a autora mencionada na mesma linha. Em seguida, temos outro
conceito da autora que é citada e que até então não havia sido apresentado. Aquele que
escreve traz, a partir da marcação da autora Orlandi, um comentário do que se pode entender
por leitura na perspectiva da AD. Todavia, não há desenvolvimento e operacionalidade do que
é apresentado, o que podemos interpretar como indício de uma relação entre aquele que
escreve e a teoria utilizada, teoria que é inadequada para o desenvolvimento da investigação
proposta. É possível perceber a nomeação de conceitos que não são definidos ou comentados,
tais como “material simbólico”, “espaço simbólico do discurso”, “imaginário de unidade e de
autoria”, “textualidade” e “discurso imaginário”. Na linha 08, encontramos o conceito de
“função-autor” acompanhado de um comentário, mas que é feito a partir da citação da voz do
outro. Na linha 07, o conectivo “de acordo” é utilizado para marcar a voz do autor que está
citando. Esse recurso linguístico, como já foi dito, demarca uma tentativa de quem escreve de
se adequar ao dizer do outro, o que, segundo Authier-Revuz (2004), é uma marcação de
heterogeneidade mostrada.
Entre as linhas 09 e 12, logo no início do capítulo de análise, há uma nova citação
recuada que expressa a voz do outro autor que é utilizado como fundamentação do trabalho.
Dessa forma, produz-se um efeito de promoção, visto que não é possível perceber uma
reflexão ou utilização da voz do outro em uma análise, mas, sim, a repetição dos dizeres de
Orlandi. Aquele que escreve se utiliza do dizer da autora para realizar a análise. De certa
forma, essa é uma concepção de produção acadêmica equivocada fundamentada na
perspectiva de que, ao se apresentar uma diversidade de conceitos de uma teoria e marcar a
presença do discurso de autores que participam da comunidade científica em que pretende se
inserir, o aluno está desenvolvendo os requisitos necessários para ser aceito e reconhecido
academicamente.

104
Segundo Rossi-Landi (1985), esse modo de escrita pode até assumir um valor de
troca, pois a voz de outro tem seu uso resgatado, mas não é possível perceber um valor de uso,
já que a escrita não satisfaz uma necessidade comunicativa para que possa ser considerada
como um exemplo de trabalho linguístico; a monografia limita-se a repetir sucessivamente o
dizer de outro, sem contribuir para a construção de novos sentidos. Cria-se um efeito que
aponta para uma escrita com o objetivo promover o já-dito, denunciada pela falta de indícios
de autoria daquele que escreve o texto. Na realidade, podemos dizer que o objeto proposto
pelo trabalho fica esvaziado e a teoria acaba ganhando mais status com o processo.

4.4 A idealização da escrita acadêmica

Pêcheux (1969) formula o conceito de formações imaginárias que seriam


representações, imagens que cada interlocutor atribui a si e ao outro. Essas imagens nos
mostram a complexidade e a importância de considerar o destinatário de um discurso, pois,
para que haja uma escrita compreensível ou sustentável entre os pares, é preciso considerar
que se escreve sempre para um leitor.
Segundo Orlandi (2001), esses mecanismos são constitutivos nas formações
imaginárias: a imagem que o locutor faz da imagem que seu interlocutor faz dele, a imagem
que o interlocutor faz da imagem que ele faz do objeto do discurso e assim por diante, o que
desperta o interesse em compreender nos textos acadêmicos a imagem que o estudante tem
sobre suas práticas linguísticas e formação teórica.
As formações imaginárias podem remeter a relações de força, de sentido e de
antecipação, que se configuram como mecanismos de funcionamento do discurso. O primeiro
desses mecanismos considera o lugar de onde o sujeito fala e se constitui; o segundo
menciona um discurso dependente de outros que o sustentem; e por fim, temos aquele que se
baseia na argumentação estabelecida para convencer o interlocutor.
Diante disso, vemos a importância de se levar em consideração as condições de
produção, pois, segundo Orlandi (2001, p. 77), são elas que “compreendem
fundamentalmente os sujeitos e as situações”. A partir das análises e discussões que foram
desenvolvidas em nosso trabalho até o momento, percebemos que há possibilidade de o aluno
desenvolver uma concepção equivocada do que seja um trabalho/texto acadêmico, em virtude
da aceitação da produção em uma determinada comunidade científica, mais especificamente,

105
graças a sua inserção junto aos pares, que a legitimam e a reconhecem como produção
científica, independentemente da contribuição com o conhecimento científico.
A formação imaginária daquele que escreve pode ser construída a partir do conceito
de produção acadêmica defendido por seus pares, segundo o qual, mesmo que a escrita
desenvolva efeitos de promoção, o trabalho será validado e aceito como produção científica.
Uma formação imaginária que contraria tudo o que vimos demonstrando em nosso trabalho,
ou seja, que discorda da necessidade de se operacionalizar os conceitos teóricos de diversos
autores numa articulação com a análise de dados e, assim, deslocar-se do já-dito para, a partir
do outro, construir um discurso que garanta a propriedade de sua investigação científica.

4.5 Por uma formação escrita na universidade

Retomando as concepções de ciência de Kuhn (2011) e de escrita de Coracini (2010),


propomos uma reflexão sobre uma escrita acadêmica que se diferencie do que verificamos nas
análises que realizamos. Consideraremos que não é possível generalizar e afirmar que esse
modelo de escrita identificado pela análise dos dados é o único presente na universidade.
Dessa forma, buscaremos discutir concepções de escrita que possam evitar o desenvolvimento
de produções caracterizadas pela construção de um efeito de sentido como o da promoção.
Nosso intuito, neste capítulo, é contribuir com uma discussão que não provoque
discursos de culpabilização do aluno de graduação, mas que mostre que parte da
responsabilidade por esse modo de escrita é da formação universitária desenvolvida em
algumas instituições, que não promovem uma intimidade dos acadêmicos com a produção
escrita nem o fortalecimento das relações institucionais sempre presentes em uma formação
universitária.
Tendo em vista a análise que desenvolvemos no capítulo anterior, é importante
esclarecer que a produção escrita de trabalhos acadêmicos está diretamente relacionada às
relações institucionais que aquele que escreve estabelece durante sua formação. Ao tratarmos
de relações institucionais, é importante ressaltar que recortamos algumas das quais
acreditamos serem mais importantes, como a afinidade com o orientador e a adequação às
exigências e normas de produção de um trabalho acadêmico.
Compreendemos que a produção de trabalhos acadêmicos na universidade está
diretamente relacionada a relações institucionais de ordem político-financeira, que visam o
cumprimento de metas quantitativas a fim de garantir o orçamento e preservar o status das

106
universidades perante as agências financiadoras em detrimento de uma reflexão sobre a
qualidade das investigações. Mesmo um jovem pesquisador no início de atividades de
investigação sofre cobranças em relação às publicações, sejam por questões relativas às bolsas
ou mesmo para atender solicitações de disciplinas e projetos de iniciação científica.
As formas de relacionamento entre as universidades e as instâncias governamentais e
privadas de financiamento, com certeza, exercem influência sobre o modelo de produção que
é desenvolvido na academia. Essa situação está relacionada diretamente a outra questão que, a
nosso ver, também é muito importante: a relação do orientando com seu orientador. Trata-se
de uma relação institucional, que também envolve cobranças, pressões e problemas.
A relação com o saber e com a produção escrita desenvolvida na universidade está
diretamente ancorada no papel institucional do professor orientador, já que, na iniciação
científica, o aluno de graduação se insere na pesquisa de seu orientador, e seu projeto é, por
vezes, o recorte de um projeto maior do docente que o orienta. Tal configuração do fazer
científico pode acarretar alguns problemas, como uma não implicação do aluno de graduação
com a proposta de pesquisa que desenvolve, visto que sua investigação parte de outro sujeito,
o seu orientador. O orientador, todavia, é essencial, sobretudo para esse aluno de iniciação
científica, cuja monografia, muitas vezes, é a primeira experiência de escrita de um texto
acadêmico. Nesse sentido, sobressaem o acompanhamento e a avaliação do professor
orientador que questiona, corrige o texto produzido pelo orientando e intervém nele, quando
necessário. Assim, acreditamos que a produção escrita de uma monografia está relacionada
diretamente com a relação que o autor do trabalho estabelece com seu professor/orientador.
A relação com o orientador ultrapassa a questão de correção. É uma relação
institucionalizada, pois não há possibilidade de se desenvolver uma produção acadêmica, seja
na graduação ou na pós-graduação, sem o amparo e a orientação de um docente. Por isso,
além do papel do orientador na formação do aluno, temos que levar em consideração a
possível legitimação do trabalho acadêmico proporcionada pela figura institucional do
docente, que autoriza o modo de escrita da produção desenvolvida pelo aluno de graduação.
Sobre isso, afirma Warde (2002, p. 169):

[…] os problemas das fronteiras que delimitam e definem as relações entre


orientador e orientando não são de mão única, ou seja, do orientando para o
orientador. Os problemas que vão do orientador para o orientando, em regra, são
mais graves, embora, também em regra, sejam mais sutis. Afinal, está aí em jogo o
exercício do poder. É sempre muito mais fácil e eficaz para o orientador imputar ao
aluno as culpas dos maus ou precários resultados obtidos ou do insucesso do
processo de orientação.

107
Pensando na importância e influência que a orientação desempenha sobre a produção
escrita de monografias, podemos afirmar que: “O texto acadêmico sobre o ensino de Língua
Portuguesa acaba assumindo mais um caráter de oferenda ao mestre que está sendo cultuado.
É isso que move a imitação e a paráfrase no interior dos textos produzidos na Universidade”
(BARZOTTO & ALMEIDA, 2013, p. 78). Essa noção envolve não apenas os trabalhos
acadêmicos relacionados ao ensino de língua portuguesa, mas estende-se a todas as produções
escritas desenvolvidas na universidade.
Assim, as condições de produção bem como as relações institucionais que o jovem
pesquisador estabelece com seu orientador podem influenciar as produções de textos
acadêmicos e, de certa forma, contribuir com o modo de escrita que desenvolve efeitos de
sentido como o da promoção.

4.5.1 Escrita e pesquisa na graduação

A proposta de pesquisa na graduação é uma das bandeiras da Associação Nacional de


Pesquisa na Graduação (ANPGL), que organiza todos os anos o Fórum Acadêmico de Letras
(FALE), um evento que propõe discutir e refletir sobre o ensino de graduação pautado na
pesquisa em sala de aula e na não dissociação entre as atividades de ensino e pesquisa.
Segundo Barzotto (2013, p. 7), pensar a pesquisa na graduação é propor

[…] ao mesmo tempo a condução das disciplinas da graduação imbricada com a


pesquisa desde o primeiro dia de aula do primeiro ano e a interrogação permanente
sobre o que a universidade oferece à comunidade como produção.

É uma proposta que defende um contato dos alunos com o processo de investigação
nas diversas áreas de conhecimento que são apresentadas e ensinadas nas dezenas de
disciplinas no decorrer do curso desde a entrada do graduando na universidade, seja através da
elaboração de projetos, seja na produção de trabalhos acadêmicos dos diversos gêneros
(artigos, resenhas, análises, etc.). Assim, o aluno desenvolve uma intimidade com a escrita e a
produção científica.

Entender a sala de aula da graduação como um lugar de reunião do ensino com a


pesquisa foi uma forma de construir um modelo de formação universitária que se
distanciasse daquele que vê a sala de aula apenas um lugar de divulgação de
pesquisas realizadas em outro espaço, às vezes mesmo em outras universidades.
(BARZOTTO, 2013, p. 08).

108
Compreendemos que essa ideia não deve ser confundida com ensinar metodologias e
regras da escrita de trabalhos acadêmicos ou com a prática de professores orientadores de
levarem seus alunos a desenvolverem atividades em seus projetos de pesquisa.
Assim, defendemos aqui uma proposta de que, ao se desenvolver uma formação
fundamentada na ideia de pesquisa na graduação, podemos auxiliar no contato e
conhecimento com a pesquisa e a produção científica, desenvolvendo uma intimidade do
aluno com a produção escrita e uma experiência sobre investigações, elaborações de
problemas e questionamentos, que será utilizada durante toda a sua graduação.

4.5.2 Reflexões sobre uma proposta de escrita acadêmica

Partindo de uma formação acadêmica baseada na proposta de pesquisa na graduação,


é importante delinear uma concepção do que seja a produção escrita na universidade. Para
tanto, consideraremos a acepção de escrita de Coracini (2010), o conceito de indício de
autoria de Possenti (2009) e o conceito de trabalho da escrita de Riolfi (2003).
Para Coracini (2010), a escrita é um processo que permite a inscrição de quem
escreve numa comunidade social como sujeito. A autora traz uma concepção de escrita que
nos auxilia a pensar uma formação e um ensino de escrita. Trata-se de uma perspectiva de
formação acadêmica na qual desenvolvem-se produções escritas que operacionalizam e
mobilizam a fundamentação teórica de trabalhos acadêmicos com análises de dados.
O conceito de trabalho de escrita de Riolfi (2003) pode também contribuir com uma
concepção de escrita mais ligada às concepções de ciência e formação que propusemos
anteriormente. A autora afirma que é “a escrita que, uma vez depositada grosseiramente no
suporte, trabalha no sujeito, fazendo como que ele mude de posição com relação ao próprio
texto e possa, sobre ele, exercer um trabalho” (RIOLFI, 2003, p. 47). Nesse sentido, tal
definição aproxima-se do que defendemos como uma implicação daquele que escreve na
produção escrita que desenvolve. Trata-se de o locutor do texto não ser apenas um portador da
voz de outros autores, mas também assumir-se como autor.
Possenti (2009) afirma que a autoria pode ser detectada por indícios. Segundo o
linguista, os indícios que permitem delimitar as atitudes de um autor são: dar voz ao outro e
manter distância em relação ao próprio texto. Quando aquele que escreve se afasta do seu
texto e garante a produção do seu dizer sobre um determinado tema contribui com a formação
do sujeito autor.

109
A partir do trabalho de escrita, podemos pensar em uma formação que viabilize o
distanciamento entre produção escrita e registro de palavras no papel em branco. Para melhor
compreensão do que estamos dizendo, retomamos o conceito de escrever, apresentado por
Riolfi (2003, p. 48):

[…] realização de um trabalho singular de ficcionalização através da qual fica


escondido e velado para o leitor o processo de construção da peça escrita. Operações
discursivas que não se reduzem, e muito menos se definem, pelo fato de ser
composto de marcas gráficas. Ações para compor uma peça com aparência de ser
homogênea, como por exemplo, inverter suas diversas partes, incluir ou excluir
argumentos, traduzir o jargão de uma área em linguagem corrente, trabalhar na
materialidade textual para obter maior precisão linguística e assim por diante.

Ao defendermos que teses, dissertações, monografias são uma modalidade de


trabalho da escrita, consideramos que o seu desenvolvimento, independentemente do nível, é
uma atividade que necessita da dedicação do sujeito, pois requer o embate, de quem escreve
com quem é citado, e a reflexão, algo que não é fácil, mas que consolida a construção de um
sujeito como autor do seu próprio texto. Trata-se de se constituir como sujeito que se desloca
da posição que estava ao produzir seu texto, por meio da realização de procedimentos que
configurem sua produção como um trabalho de escrita, uma elaboração que requer alteração
da posição subjetiva daquele que escreve.
A formação escrita que defendemos parte da construção de uma intimidade daquele
que escreve com sua produção e as especificidades dela, que vão da dedicação à apropriação
dos conceitos teóricos que podem auxiliá-lo na investigação e dar sustentação para o
desenvolvimento do trabalho.
Além disso, as relações institucionais devem ser observadas com muita atenção, pois
a implicação do autor com sua produção está diretamente relacionada ao desejo e à inquietude
que um questionamento ou tema de pesquisa desperta no sujeito. Portanto não é somente a
relação de orientação que garante a inscrição daquele que escreve no trabalho que realiza.
Por meio de uma formação baseada na pesquisa na graduação e no desenvolvimento
de um trabalho da escrita, podem-se desenvolver pesquisas que entrem em conflito com
produções já legitimadas, pois é assim que desenvolvem-se indícios de uma autoria daquele
que escreve um trabalho acadêmico. Observamos, a partir de uma breve reflexão, que a
articulação de uma proposta de ensino com a pesquisa pode desenvolver condições propícias
para o ensino de escrita. Isto é, a formação organizada a partir da pesquisa na graduação
possibilita a construção de um ambiente favorável para o desenvolvimento de uma prática de

110
trabalho que contribua para uma formação na qual o aluno mantenha contato e aprimore sua
experiência com a produção escrita.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Iniciamos esta seção retomando a pergunta que permeou e desencadeou toda nossa
proposta de investigação: como um jovem pesquisador utiliza uma teoria para se inserir em
uma dada comunidade científica?
O uso de fundamentação teórica nos trabalhos de investigação é algo normal e
necessário para a produção de trabalhos acadêmicos como monografias. Ele garante a
credibilidade de produções escritas, funcionando como argumentação e sustentação do dizer
daquele que escreve. Muitos são os modos pelos quais um jovem pesquisador se relaciona
com uma teoria; um deles, no entanto, pode evidenciar o desenvolvimento de um efeito de
sentido no qual o texto promove o discurso do autor utilizado como referência e
fundamentação da monografia.
O desenvolvimento desse efeito de sentido pode garantir a aceitação e a aprovação
do trabalho acadêmico por pares de uma comunidade científica, bem como a publicação em
revistas e uma boa avaliação do trabalho em bancas de monografias, independentemente de a
produção escrita desenvolver uma articulação e mobilização da fundamentação teórica com
uma análise de dados que auxilie a resolução do questionamento proposto na investigação. De
fato, investigações científicas que propõem a análise de um corpus articulada a conceitos
teóricos e uma reflexão da teoria que fundamenta a investigação caracterizam-se por outro
modo de escrita, no qual o autor do trabalho acadêmico faz uso dos discursos de outros como
forma de argumentação e sustentação. Assim, estabelece-se a construção de um diálogo entre
o pesquisador e outros pesquisadores que já estudaram o assunto que é tratado no trabalho.
A detecção do efeito de sentido de promoção foi possível a partir da análise dos
recursos linguísticos utilizados por quem escreve. Isso nos permitiu verificar a existência de
uma forma de escrita que não se utiliza da voz do outro como sustentação do seu próprio
dizer, mas que repete e reproduz o que deveria ser utilizado como argumentação. Observamos
que esse modo de escrita repetidora dá origem a uma ideia de hierarquia de conceitos teóricos
e cria a imagem de que o texto acadêmico funciona como meio de transmissão e repetição do
já-dito.

111
Nosso trabalho não desconsidera que a presença da voz do outro é constitutiva do
dizer, mas procura ressaltar que há diversos modos de utilizar ou dar voz ao dizer do outro.
Podemos utilizar a voz do outro como argumento do dizer ou, no lugar disso, construir um
modo de escrita caracterizado pela repetição da teoria alheia. Nesse último caso, há a
possibilidade de uma inversão do papel do autor com o daquele que funciona em seu texto
como referência, ou seja, o discurso de quem escreve exerce a função de evidenciar a
participação do outro que é citado.
Esse efeito de sentido passa a ideia de divisão da responsabilidade do dizer entre
aquele que escreve e aquele que é citado. Dependendo do modo como os conceitos de outro
autor são utilizados, a escrita pode também caracterizar-se por evidenciar e destacar um autor
ou uma teoria que possui credibilidade na academia, silenciando o autor do texto que é
produzido.
Ao analisar como uma produção acadêmica se valida por meio de um efeito de
promoção, empreendemos uma reflexão sobre as condições de produção e sobre a relevância
do que é produzido na universidade e aceito como produção científica. Uma reflexão que
aponta para a necessidade de problematizarmos a formação do aluno de graduação, já que as
produções que aqui analisamos demostram a necessidade de se questionar o modelo de
formação de seus autores e rever a concepção de escrita e de produção científica transmitida
aos graduandos.
É importante considerarmos a existência de diferentes concepções de pesquisa e de
produção escrita. Uma delas entende que, para haver um trabalho acadêmico, precisamos da
produção de conhecimentos, a partir da mobilização e cotejamento de conceitos em uma
análise de dados, com propostas de intervenções baseadas na implicação de quem escreve;
outra concepção é caracterizada por uma escrita que reproduz e repete, garantida e legitimada
por meio do destaque dado a um autor, conceito ou teoria reconhecido.
Com os estudos de Authier-Revuz (2004, p. 14), vimos que a construção de um
metadiscurso ingênuo, a partir de um controle-regulagem, ocorre quando um autor limita sua
escrita a uma representação do dizer de outro, isto é, repete um discurso que já está pronto.
Trata-se de uma retomada do discurso de outro sem que o locutor se posicione e construa algo
que “possa ser chamado de seu”. Uma produção singular, entendida aqui como um “traço
distintivo”, “que indica uma só entidade isolável” (DUBOIS, 2004, p. 555). Para isso,
pressupõe-se a capacidade de quem escreve para produzir algo através da sua forma de
mobilizar a teoria que utiliza como fundamentação teórica.

112
As produções escritas analisadas nos mostram a possível ausência de intimidade de
seus autores com a pesquisa, visto que, em seus textos, predominam a reprodução de
conceitos teóricos de um autor reconhecido na comunidade científica e a existência de um
sentido de que o texto funciona como forma de demarcar a filiação teórica de quem escreve.
Esta investigação possibilitou uma reflexão sobre como uma produção escrita pode
dar mostras de uma filiação teórica, priorizando a presença excessiva do discurso de outros
autores e evidenciando uma possível hierarquização e sobreposição de uma teoria a outra(s)
(como verificamos na análise dos nossos dados) em uma formação que, supostamente, é
plural e multifacetada. Assim, esse modo de escrita indica que, durante a graduação,
provavelmente, deu-se preferência a uma determinada teoria.
Encontramos, além disso, uma possível explicação para a falta de produção científica
na formação acadêmica. A análise que propusemos revela um problema: estamos sendo
impelidos para uma universidade em que se produz menos conhecimentos e contribui-se
menos com a sociedade. Por isso, sustentamos que a falta de uma prática de escrita, que
aptifique aquele que escreve a mobilizar os conceitos teóricos apreendidos na faculdade ou
que aprofunde o conhecimento sobre esses conceitos, obsta a aquisição de uma escrita em que
o discurso do outro, questionado e articulado, funciona como mais um argumento para o
avanço do texto.
A repetição nos trabalhos acadêmicos implica certa banalização da produção
científica na graduação e, consequentemente, desmotiva a produção escrita em outros níveis.
Esse modo de escrita forma o sujeito através de uma metodologia que incentiva a produção
por meio da repetição, e, dificilmente, haverá diferenças na produção escrita desse indivíduo
em outros níveis de estudo. Para que se altere essa situação, precisaremos de uma nova
formação daquele que escreve, visando ensinar que uma produção escrita, para tornar-se
produção de ciência e produção de conhecimento, precisa contar com a implicação daquele
que escreve com seu próprio texto e com sua pesquisa. A produção, para assim ser nomeada,
necessita de um dizer e experiência próprios.
Um problema que não tratamos, mas que pudemos identificar nesta investigação, está
diretamente relacionado às políticas de formação e pesquisa: a relação institucional entre um
orientador e um orientando. Nos casos que analisamos, não verificamos o desenvolvimento
dessa relação ajustada a uma formação escrita voltada para a realização do trabalho daquele
que escreve a monografia.

113
Por fim, compreendemos que a produção escrita de trabalhos acadêmicos de
graduação abrange modos de escrita construídos a partir de uma formação escrita sólida,
baseada em um trabalho consolidado pela dedicação e ação daquele que escreve, que
consegue se implicar como sujeito no discurso que produz.

114
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