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NATAL
SETEMBRO/2013
JOSÉ ANTÔNIO VIEIRA
NATAL
SETEMBRO/2013
Autorizo a reprodução e a divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Aprovado em:
BANCA EXAMINADORA
A todos os professores que participaram do meu processo de formação do ensino médio à pós-
graduação;
À Mariana Aparecida de Oliveira Ribeiro, minha namorada, mulher, amiga, amante e leitora,
pelo companheirismo, incentivo e confiança e por mostrar que sonhos, quando realizados a
dois, sempre são mais gostosos;
Aos meus pais e irmãos pelo amor e confiança que sempre me dedicaram;
Às minhas amigas Nancy, Thayanny, Thaíse e Maria Aparecida, companhias que sempre me
auxiliaram a perceber o quanto podemos ser melhores;
A pessoas, como Vanessa de Farias e Marco Martins, que me acolheram em uma nova cidade;
Aos professores Ernesto, Marinalva e Sônia por lerem e contribuírem com a escrita deste
trabalho; e
In this study we have developed a discussion about academic text production in the
undergraduate course of Literature and Languages. Specifically, we are going to analyze the
monographic text writing in order to verify the meaning effects created from the ways of
showing other’s discourses that constitute a written production. As a means to do that, we are
going to answer the following question: “How does a young researcher make use of a theory
in order to be part of a particular scientific community?” We aim to: 1) analyze the linguistic
resources, like quotations and signs of cohesion that demonstrate the other’s voice presence
in academic writing; 2) observe the meaning effects produced through the ways that the one
who writes shows the other’s voice in the written text. Firstly, we have selected 23 (twenty-
three) monographs produced in the last five years by students from a Literature and
Languages undergraduate course in a determined public university. However, in this study,
we have analyzed just 02 (two) different monographic texts. To develop such an investigation,
we have inquired Kuhn’s concept of science, which shows the existence of different meanings
of science production in the course of the centuries. It allows us to define academic writing as
science production that develops and contributes to knowledge production. With the purpose
of restricting the meaning of writing conception, we have relied on Coracini, who assumes
that all writing production is the registration of the self, in other words, writing comes from
the subject’s intervention, it is to say that only an imposition of “the self” guarantees the
subject as author of what he writes. We have as theoretical basis the following concepts: 1-)
Authier-Revus’s enunciative heterogeneity, that allowed us to analyze the written marks of
the other in the monographic writing; 2-) Pêcheux’s reformulation-paraphrase and Orlandi’s
polysemy and paraphrase, concepts that present notions of productivity and creativity as ways
of meaning production, and allows us to observe how the process of language production in
academic writing is established; 3-) Rossi-Landi’s concept of exchange-value and use-value,
which consider language as a linguistic work, allowing us to verify the differences between
use and social functionality in a determined theory; and 4-) Possenti’s notion of authorship
indicia, with which we have identified attitudes that make the one who writes author of his
own text. We have verified that writing characterized for repetition and reproduction may
develop a meaning effect that constructs the idea that writing production promotes an author,
a concept or a theory. We have also realized that a written text that restricts itself to reproduce
other authors’ discourses and does not articulate a theory with data analysis or with work
methodology, when evaluated is approved and legitimates itself as scientific production. That
demonstrates the existence of academic productions that do not develop any functionality of
the employed theory. The text works as a means to promote its theoretical concepts, and
theory. It is to say that the theoretical foundantion, which usually is a way to argue and
sustain scientific production, does not have any function. Thus, we consider that the way
someone shows the other’s discourse in academic writing may work as a way to underline
what the other asserts to the detriment of the researcher’s words. This fact allows us to
comprehend that a way of writing may evidence a meaning effect of the author’s, theory’s or
theoretical concepts’ promotion
INTRODUÇÃO........................................................................................................................... 10
10
observar as diferenças de uso e a funcionalidade social de uma teoria na escrita acadêmica; e
4) a noção de indícios de autoria de Possenti (2009), que afirma que, ao produzirmos um
texto, precisamos desenvolver duas atitudes para que nossa produção tenha traços de autoria.
Utilizamos também como referencial o conceito de singularidade proposto por
Authier-Revuz (2000), que trata da produção da escrita como discurso que testemunha a partir
de uma reflexão sobre diversos discursos, um discurso particular e próprio e de alusão e
heterogeneidade explícita (AUTHIER-REVUZ, 2004), haja vista que, neste trabalho,
consideramos a marcação da voz do outro como ponto de partida para identificar a existência
do efeito de promoção.
A alusão trata da remissão feita ao outro por quem escreve, o qual elabora uma
negociação entre os sentidos produzidos por ele e pela voz do outro; a heterogeneidade
explícita tem como característica demonstrar a heterogeneidade de vozes presente no
discurso, como o uso de citações, aspas, glosas. Segundo Authier-Revuz (2004), todo texto
implica uma participação discursiva do outro, que pode ser aquele que o aluno utiliza como
referencial no ato da escrita ou o outro para quem o aluno constrói o enunciado. Essa
participação discursiva do outro caracteriza a heterogeneidade discursiva; uma identidade é
evidenciada no texto, podendo ser marcada ou não marcada, e considerada como
heterogeneidade constitutiva e heterogeneidade mostrada.
Fazemos uso dos conceitos de valor de uso e troca, ressignificados por Rossi-Landi
(1985) a partir da definição marxista. Ele trata a linguagem como um trabalho linguístico,
caracterizado pela existência dos valores de uso e de troca; o primeiro, relacionado à
satisfação de um processo comunicativo, e o segundo, à utilização do valor de uso em
situação diferente, com valor de troca. A escolha de tal aporte teórico parte da ideia de que
podemos verificar a presença desses valores na escrita das monografias que analisamos.
Utilizamos, como fundamentação para análise de dados, os conceitos de
produtividade e criatividade de Orlandi (2007). Para elaborá-los, a autora retomou as noções
de paráfrase e polifonia de Pêcheux (1969), a fim de explicar que a atividade parafrástica rege
um processo de produtividade que se caracteriza pelo constante retorno ao já-dito; é a
reprodução de um discurso já proferido, mesmo que a partir de outros enunciados. Já o
processo de criatividade realiza-se a partir da produção da linguagem, caracterizada pelo
deslocamento em relação ao que já foi produzido. Dessa forma, o sujeito pode desenvolver
um discurso com funcionalidade social.
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O conceito de indícios de autoria de Possenti (2009) auxiliou-nos com outra
categoria de análise, ao mostrar que, para garantir a autoria de uma produção escrita, é preciso
assumir duas atitudes: dar voz a outros enunciadores, isto é, demarcar o outro em nosso
discurso; e, ao mesmo tempo, conseguir nos distanciar de nosso próprio texto, para assim nos
configurarmos também como leitores de nossa produção e, consequentemente, intervirmos
como sujeitos do discurso. Essas atitudes possibilitam a construção de um jogo de vozes que
articulará o discurso de quem escreve àquele da voz do outro que o constitui.
Os conceitos acima mencionados possibilitam-nos abordar as diversas maneiras de
constituir a escrita do texto acadêmico. Entre esses diferentes modos de utilização do discurso
do outro, existe a possibilidade de o texto promover uma teoria, autor ou conceito, por meio
da repetição de discursos já realizados. Essa prática caracteriza a escrita como reprodução de
discursos realizados e reconhecidos socialmente, em vez de desenvolver dada teoria ou
conceito teórico, o que poderia constituir um modo diverso de lidar com o discurso já
legitimado e propiciar uma leitura produtiva caracterizada pelo deslocamento do já-dito.
Constituímos o corpus deste trabalho a partir da seleção de 23 monografias
produzidas nos últimos seis anos (2006-2012) por alunos do curso de Letras de uma
universidade pública. Análises preliminares de nossos dados possibilitaram-nos perceber que
a repetição de teoria, autores ou conceitos teóricos, observada a partir da marcação do outro
na escrita, pode configurar a produção de um sentido de promoção, que garante a inserção do
jovem pesquisador1 em uma comunidade científica como discípulo da teoria em questão. O
efeito de sentido2 da promoção ocorre quando uma teoria é utilizada em um trabalho de modo
a promover o autor, ou a concepção teórica à qual este se filia, sem que seus conceitos
teóricos tenham funcionalidade no texto acadêmico em que são utilizados. Nossa hipótese é a
de que, dessa forma, as marcações do outro na escrita acadêmica podem funcionar de modo a
destacar aquilo que outro afirma em detrimento do dizer daquele que escreve, no caso, o
jovem pesquisador.
1
Nomeamos de “jovens pesquisadores” os alunos cujas monografias analisamos por estarem matriculados em
uma disciplina que prevê o desenvolvimento de uma pesquisa de iniciação científica, que será tema da
monografia.
2
Para a Análise do Discurso, o sentido não está diretamente ligado ao significante, pois uma produção escrita
pode evidenciar vários sentidos. O sentido pode ser considerado um produto, resultado de um processo, uma
produção cujos efeitos são efeitos de sentido. Conforme afirma Possenti (1997, p. 4): “O fundamental é enfatizar
que, no que se refere ao sentido, não se trata mais de concebê-lo como uma mensagem codificada num texto,
numa língua, como um conteúdo embutido num código. O que não significa, no entanto, excluir do discurso o
material linguístico, verbal, como já se insistiu acima.”
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Afirmar que uma teoria tem funcionalidade em um texto acadêmico é o mesmo que
dizer que ela tem uma função social, isto é, contribui e auxilia a sociedade ou uma
comunidade científica na resolução de problemas ou na resposta de questionamentos, e o
autor, ao servir-se dela, leva em consideração o contexto original de sua produção. Para
corroborar essa afirmação, valemo-nos, principalmente, do conceito de valor de uso, proposto
por Rossi-Landi (1985), que, retomando os conceitos marxistas, defende a perspectiva da
linguagem como trabalho linguístico. Essa característica só é atribuída aos processos
linguageiros que garantem, em sua estrutura, a articulação dialética entre os valores de troca e
de uso.
As monografias selecionadas pertencem à área da Análise do Discurso (AD) de linha
francesa. Ressaltamos que a escolha por este campo de investigação foi ocasionada pela
história de formação do curso de Letras que analisamos, no qual há destaque para essa área.
Isso porque: 1) grande parte do corpo de professores da instituição realizou suas investigações
baseadas nessa teoria; 2) há uma disciplina na graduação dedicada à Análise do Discurso; e 3)
a maioria dos professores do curso em questão são qualificados em programas e linhas de
pesquisa ligadas à AD.
Para averiguar como os modos de escrita podem utilizar da voz do outro de maneiras
diferentes e produzir efeitos de sentido que contribuem para a aceitação e legitimação da
monografia, analisamos os recursos linguísticos mobilizados na escrita do texto, tais como,
conectivos, citações, aspas, ilhas textuais, que evidenciam os discursos de outros autores (já
reconhecidos) que participam e estruturam a escrita dos textos monográficos observados.
A mobilização de uma teoria no desenvolvimento da pesquisa de iniciação científica
não é uma escolha aleatória, mas um ato que produz efeitos sobre o sujeito e sua produção.
Não consideramos que há teorias melhores ou piores, apenas chamamos a atenção para o fato
de ser pela escolha e pela utilização de conceitos teóricos operacionais de uma comunidade
científica que um sujeito se insere na discursividade vigente dessa comunidade, isto é, no
paradigma fundamentador das discussões e das pesquisas do grupo de pesquisa que valida as
produções escritas estudadas neste trabalho.
Ao descrever o funcionamento da ciência normal3, Kuhn (1992) afirma que um dos
critérios que garante seu funcionamento é a organização dos cientistas em comunidades
científicas, nas quais grupos de cientistas partilham o mesmo paradigma. Apesar de ser um
3
Kuhn (1992) define ciência normal como toda ciência vigente nos períodos desprovidos de uma revolução
científica.
13
conceito de difícil definição, como ressalta o autor, um dos traços que define o conceito de
paradigma é a existência de uma literatura comum (autores, conceitos teóricos, etc.) que um
grupo partilha.
A utilização de uma teoria em textos acadêmicos não funciona apenas como forma
de responder à demanda institucional (a de que todo texto acadêmico deve ter um
embasamento teórico), mas também garante a um sujeito o lugar dentro de uma instituição ou
uma comunidade científica. São pelas formas de mobilizar uma dada teoria, em conjunto com
a articulação de pressupostos operacionais, que um sujeito pode inserir sua produção e
participar de grupos de pesquisa e investigação.
Neste trabalho, ao mesmo tempo que verificamos os efeitos de sentido desenvolvidos
a partir dos modos de utilização de uma teoria, procuramos demonstrar como, na escrita de
um texto acadêmico, a utilização de uma teoria (a resenha de um autor, uso de conceitos
teóricos) pode materializar-se para tornar-se (ou não) uma peça importante na argumentação
em favor da tese que o jovem pesquisador quer defender.
Em relação à operacionalização, não atribuímos a ela apenas os sentidos dados pelos
dicionários, mas também a ideia de o aluno fazer a teoria e seus conceitos funcionarem em um
texto, ou seja, demonstrar uma articulação entre o seu dizer e o do outro em uma análise de
dados. Isso ocorre quando os conceitos teóricos são utilizados com certos propósitos:
sustentar a análise, relacionar os diversos conceitos teóricos utilizados em um trabalho,
compor um modo de olhar para os dados e/ou organizá-los.
Dessa forma, a relação que um sujeito estabelece com a teoria e com a própria escrita
é fundamental para verificar como se deu a formação acadêmica e, consequentemente, sua
constituição na teoria. Aquele que escreve precisa demonstrar que conhece e sabe
operacionalizar os conceitos teóricos empregados por uma comunidade científica para se
formar e ter sua produção legitimada.
O estágio de formação e a produção acadêmica de alunos da graduação são diferentes
em relação à formação e à produção de pesquisadores ou estudiosos de outros níveis, como
mestrado, doutorado, ou ainda, pesquisadores consolidados com projetos de pesquisa
financiados. Neste último caso, a produção científica não se limita a atividades e exercícios de
formação, mas engloba também a ação e a prática da profissão e do trabalho.
A noção de paradigmas de Kuhn (2011, p. 13) apresenta as revoluções científicas
como realizações universais, fornecedoras de problemas e soluções para todo praticante de
ciência. Com isso, compreendemos que, para o jovem pesquisador, conhecer uma teoria
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interliga-se ao ato de dominá-la, de conseguir empregá-la e estabelecer relações entre os
conceitos, sem contradições ou equívocos. Nesse sentido, o aluno, ao passar pela formação
acadêmica inicial, pode desenvolver uma produção na qual empregue e articule uma
fundamentação teórica em uma análise de dados, sem contrariar os sentidos produzidos pelos
autores dos conceitos que utiliza e sem se utilizar de conceitos que não têm relação com o
corpus ou com o objetivo do trabalho proposto.
Ao tratarmos da funcionalidade da teoria em produções escritas, queremos dizer que
os modos de utilização da fundamentação teórica em textos acadêmicos representam
mecanismos de suporte para o dizer daquele que escreve, seja como conceito específico de
outro autor, utilizado como instrumento em uma análise de dados, seja como argumento de
autoridade, uma forma de confirmar o discurso produzido com a remissão a outro já proferido
e aceito na comunidade.
São as marcações da voz de outros autores que permitem sustentar e desenvolver
argumentos. Compreendemos essa voz como os discursos de outros sujeitos presentes naquele
que é construído a partir da produção escrita de uma monografia. .
É possível perceber que, em alguns trabalhos acadêmicos, há teorias, conceitos e até
mesmo citações explícitas que não desempenham função na produção escrita construída.
Muitas vezes, são feitas referências a outros discursos que não funcionam nem como
mecanismo de análise nem para confirmar o dizer de quem escreve. Assim, a participação do
autor referenciado é considerada válida apenas pelo reconhecimento do nome ou conceito,
sem contribuir para a produção realizada. Existem situações em que a teoria utilizada como
fundamentação não se articula com a proposta de investigação do trabalho, ou ainda, textos
que utilizam a Análise do Discurso de linha francesa como fundamentação teórica de
disciplinas específicas de prática de ensino, ou mesmo de políticas publicas, sem a devida
contextualização ou relação com teorias específicas desta área.
Para o desenvolvimento da análise, consideramos que a função social está
diretamente relacionada à noção de valor de uso e de troca de Rossi-Landi (1985). Assim,
entendemos que todo produto, independentemente de suas características ou formas de
utilização, quando implica funcionalidade e representação na sociedade, desenvolve valores
de uso e de troca. A ideia é que um produto possui especificidade de uso quando pode ser
considerado equivalente a outro, isto é, quando pode ser trocado, apresentando, dessa forma,
tanto um valor de uso, que é a característica que o diferencia de outros, quanto um valor de
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troca, que é a possibilidade de ser trocado por outro produto com outra característica, mas
com função e forma de uso próprias.
O valor de troca é a possibilidade e a garantia de trocas de elementos que, apesar de
equivalentes quanto ao valor de troca, têm diferentes valores de uso. Vemos, portanto, a
produção de discursos pela perspectiva de que, quando um discurso é produzido em
determinado lugar e sob determinadas condições, ele pode ser trocado por outro que foi
realizado em outro momento, local e cujas condições de produção foram totalmente
diferentes. Cada um deles possui seu valor de uso específico que pode ser aproveitado em
momentos e condições diferentes. É como se trocássemos um discurso autoritário por outro
liberal, em razão das condições, mas os valores de uso de ambos continuassem a existir e
apenas seu valor de troca fosse colocado em funcionamento.
A teoria que utilizada como fundamentação teórica em um trabalho acadêmico, às
vezes, é aplicada da forma descrita anteriormente, por isso, ao compreendermos a linguagem
como trabalho linguístico, essa escrita pode configurar uma troca de discursos equivalentes. É
como a diferença entre produtos simples, como um garfo e uma faca, que possuem seus
valores específicos de uso, mas que podem ser trocados para desenvolver suas funções em
outras situações. Em alguns modos de escrita, porém, isso pode ocorrer sem alterações ou
desenvolvimento do valor de uso; um texto que somente reproduz o já-dito não desenvolve os
valores de uso do discurso que é construído. Essa é uma troca que inviabiliza o valor de uso
de um dos discursos construídos, o que resulta em produções escritas que se caracterizam a
partir da repetição e da reprodução, providas apenas de um valor de troca. No capítulo 2 e nas
análises dos dados, abordaremos de modo mais aprofundado tais conceitos de Rossi-Landi,
que estamos nomeando como funcionalidade de uma teoria.
A justificativa para o desenvolvimento desta pesquisa assenta-se sobre uma análise
prévia de trabalhos acadêmicos, desenvolvidos nos últimos anos. Averiguamos, então, a
escassez de produções acadêmicas (mestrados e doutorados) no país que versassem sobre a
relação do pesquisador com sua escrita e problematizassem a produção resultante desse
processo, considerando a dificuldade de se questionar o que a universidade tem considerado
como produção científica e, ao mesmo tempo, o que se tem produzido na academia.
Em uma busca realizada no banco de dados da Unicamp, encontramos algumas
dissertações e teses que tomam como tema a relação do pesquisador com a teoria que embasa
seu trabalho. Especificamente, os trabalhos versavam sobre: a relação que o sujeito estabelece
com uma corrente teórica, como o construtivismo (SANTAROSA, 2007); a alfabetização
16
(TEMPESTA, 2009); e os estudos sobre a aquisição da linguagem (LEMOS, 1994). Em outra
busca, no mesmo banco de dados, encontramos duas pesquisas que tematizam a relação que
um sujeito em formação estabelece com a teoria, passível de ser verificada pela observação
dos estágios, de língua materna (FREITAS, 1993) e estrangeira (CLAUS, 2005).
Examinando ainda alguns trabalhos que tratam da escrita do relatório de estágio
(BARZOTTO; EUFRÁSIO, 2006; EUFRÁSIO, 2007; REZENDE, 2010), observamos que as
pesquisas não se centram na forma como determinados conceitos teóricos são (ou não)
utilizados pelos graduandos na escrita de trabalhos acadêmicos nem tratam sobre os efeitos
que a mobilização dos conceitos teóricos poderia produzir na escrita dos textos acadêmicos e
na formação dos alunos de graduação.
Nesse sentido, notamos a importância de se estabelecer uma reflexão sobre o tema
que nos propomos a pesquisar, visto serem poucos os trabalhos que se dedicam a investigar
como um sujeito se relaciona com a teoria que embasa sua pesquisa. A partir dessa
investigação, torna-se possível refletir também sobre a construção de conhecimento e a
produção científica na universidade.
Eufrásio (2007, p. 04), ao analisar diversos relatórios de estágio, afirma que aquilo
que se produz na universidade, muitas vezes, se limita à reprodução de conceitos anteriores. A
autora propõe o seguinte questionamento:
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Freud, em toda sua obra, e a psicanálise mostram-nos a importância dos dados singulares para a compreensão
de fenômenos universais. Ressalte-se, por exemplo, o caso Dora; pela análise dessa paciente, Freud (1893-1895)
pôde sistematizar e diagnosticar os casos de histeria.
18
Existe a possibilidade das marcações do discurso de outro autor na escrita acadêmica
contribuirem para, ou mesmo desenvolverem, um efeito de sentido que promove conceitos,
teorias ou autores. É importante esclarecer que reconhecemos a possibilidade de
promovermos uma teoria, conceito ou autor, ao mesmo tempo que a marcação do outro
funcione como recurso de argumentação, mas nos propomos, nesta investigação, a diferenciar
essa forma daquela na qual o escritor rediz conceitos de uma teoria já consolidada, sem que
eles estejam articulados ou na qual o aporte teórico funcione como um “instrumento” para
delimitar e constituir um objeto de pesquisa.
O efeito de sentido de promoção pode ocorrer quando uma produção escrita ativa a
percepção de que o discurso construído tem como objetivo prestigiar e dar visibilidade à voz
citada. Acreditamos que trata-se de um recurso para o aluno se inserir em uma comunidade
científica, sem necessariamente demonstrar uma análise de dados articulada com os conceitos
teóricos. O efeito de promoção, que ora tratamos, pode ser verificado quando temos uma
escrita caracterizada pela exaltação e prestigiação de uma teoria já conhecida na academia.
Trata-se de uma situação em que o trabalho não se consolida, necessariamente, como
produção científica, visto que se limita a repetir conceitos produzidos por outros autores.
Ressaltamos, ainda, que não tomamos o efeito de promoção como sinônimo de
divulgação científica. A divulgação faz parte do processo de produção acadêmica, sendo o
modo pelo qual a teoria produzida circula entre as comunidades científicas. O efeito de
promoção está relacionado à ideia de o texto acabar funcionando como espaço e instrumento
para dar visibilidade aos conceitos e pressupostos teóricos (que não são operacionais no
trabalho) de um ou mais autores que já possuem lugar estabelecido e consolidado na
academia, de modo a garantir para o autor do texto, mesmo que questionado sobre a
potencialidade do trabalho como produção científica, a inserção em determinada comunidade
científica.
A operacionalização de conceitos pode ser desenvolvida a partir de uma reflexão que
subsume os conceitos teóricos empregados por um pesquisador a uma análise e investigação
que transcendem a simples reprodução dos conceitos por parte de quem escreve um trabalho
acadêmico. É importante dizer que a operacionalização de conceitos teóricos em um texto
acadêmico é uma atividade complexa que prevê não só a leitura da teoria, mas também
abrange questões de orientação e formação.
Uma das causas ou fatores de influência da produção escrita predisponente de efeitos
de sentido como o da promoção é a grande corrida à produtividade, existente hoje na
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universidade, consequência das diversas cobranças de agências de fomento, ou mesmo das
instituições de ensino superior, sobre os professores/pesquisadores, que precisam produzir em
quantidade e, de certa forma, acabam desconsiderando o que e como é produzido.
Essa situação perpassa a experiência de quem escreve, que também é cobrado por
orientadores ou professores da disciplina que solicitou a produção acadêmica, seja para fins
de avaliação, aquisição de bolsas, ou mesmo, adequação às normas e indicadores de avaliação
dos programas de graduação ou pós-graduação.
Diante do exposto, desenvolvemos nossa investigação de acordo com a seguinte
estrutura: no primeiro capítulo, apresentamos a fundamentação teórica que baseia as
concepções de escrita e de produção científica que sustentam esta investigação.
No segundo capítulo, demonstramos os conceitos relacionados à heterogeneidade
enunciativa de Authier-Revuz (2004), que nos auxiliam na observação e análise dos dados,
permitindo identificar marcas e recursos linguísticos que contribuem com o desenvolvimento
do efeito de sentido de promoção. Também apresentamos conceitos sob a perspectiva de
incorporação e repetição de Fabiano-Campos (2007), a fim de apontar as consequências da
produção escrita que se limita a repetir o já-dito e não incorpora ou apropria-se dos conceitos
teóricos que apresenta como fundamentação.
O terceiro capítulo é dedicado à apresentação do corpus e à descrição da metodologia
utilizada neste trabalho.
No quarto capítulo, tratamos dos efeitos de promoção de conceitos, de teorias e de
autores. Para tanto, fazemos a apresentação de duas categorias de análise que utilizamos em
nossa pesquisa: 1) os conceitos de valor de uso e de valor de troca, de Rossi-Landi (1985); e
2) os conceitos de produtividade e criatividade desenvolvidos por Orlandi (2007), a partir do
conceito de paráfrase-reformulação de Pêcheux (1997).
Também no quarto capítulo, desenvolvemos uma reflexão sobre a concepção de
produção científica e de trabalho acadêmico na graduação. Para isso, realizamos análises de
excertos de duas monografias, observando os modos de utilização de conceitos teóricos e
como eles podem desenvolver certos efeitos de sentido.
Propomos ainda uma reflexão sobre as relações institucionais que influenciam a
formação e o desenvolvimento de produções escritas na universidade, como também sobre a
prática de ensino pautada em uma perspectiva de pesquisa na graduação. Esta é, pois, uma
discussão sobre o desenvolvimento de um modelo de docência que promova a pesquisa e a
produção de conhecimento durante a graduação.
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Por fim, desenvolvemos nossas considerações, apresentando um resumo geral do que
foi possível analisar durante a investigação, ressaltando a importância de se discutir as
concepções de produção científica e de escrita acadêmica.
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1 CONCEPÇÕES DE ESCRITA E A PRODUÇÃO CIENTÍFICA NA
UNIVERSIDADE
Se a ciência é a reunião de fatos, teorias e métodos reunidos nos textos atuais, então
os cientistas são homens que, com ou sem sucesso, empenharam-se em contribuir
com um outro elemento para essa constelação específica. O desenvolvimento torna-
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se o processo gradativo através do qual esses itens foram adicionados, isoladamente
ou em combinação, ao estoque sempre crescente que constitui o conhecimento e a
técnica científicos.
Nenhuma história natural pode ser interpretada na ausência de pelo menos algum
corpo implícito de crenças metodológicas e teóricas interligadas que permita
seleção, avaliação e crítica. Se esse corpo de crenças já não está implícito na coleção
de fatos – quando então temos à disposição mais do que “meros fatos” – precisa ser
suprido externamente, talvez por uma metafísica em voga, por outra ciência ou por
um acidente pessoal e histórico. Não é de admirar que nos primeiros estágios do
desenvolvimento de qualquer ciência, homens diferentes confrontados com a mesma
gama de fenômenos – mas em geral não com os mesmos fenômenos particulares –
os descrevam e interpretem de maneiras diversas. É surpreendente (e talvez também
único, dada à proporção em que ocorrem) que tais divergências iniciais possam em
grande parte desaparecer nas áreas que chamamos ciência.
Vemos que, no decorrer da história do homem, todo e qualquer fato ou situação que
foram desenvolvidos na sociedade só podem ser observados e analisados a partir de uma
fundamentação teórica e um método de análise baseado em uma teoria. É com um olhar de
cientista, baseados em concepções e perspectivas teóricas, que podemos fazer análises e
críticas de uma seleção que pretendemos investigar.
Nossa opção pelo objeto que pretendemos estudar está relacionada à possibilidade de
confrontá-lo a partir de uma certa perspectiva de análise e do estabelecimento de
determinados paradigmas que contribuíram para as diversas formas de observação dos dados.
Até porque, conforme diz Kuhn (2011, p. 38), “para ser aceita como paradigma, uma teoria
deve parecer melhor que suas competidoras, mas não precisa (e de fato isso nunca acontece)
explicar todos os fatos com os quais pode ser confrontada”. Ou seja, o confronto entre um
paradigma e outro é constitutivo da pesquisa e da produção científica.
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Ao tratarmos de ciência, estamos querendo refletir sobre a sua prática, o
funcionamento de seus mecanismos, no intuito de compreender como se comporta um
cientista. Para isso, entendemos que a noção de paradigmas, apresentada por Kuhn (2011),
pode nos auxiliar a questionar a produção acadêmica na contemporaneidade, pois são
modelos, interpretações e formas de representação do universo, que possibilitam a
identificação e a solução de problemas na sociedade.
Os paradigmas estabelecidos e as respostas para questionamentos, como os que
realizamos na justificativa desta investigação, colocam-se como pressupostos científicos.
Podemos dizer que são formas de fomentar as perspectivas teóricas e explicações que
desenvolvem as ciências. Para Kuhn (2011, p. 13), os paradigmas são “as realizações
científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e
soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”. O cartesianismo de
Descartes pode ser utilizado de exemplo, pois é uma concepção teórica que foi e é aceita por
vários pesquisadores e contribuiu para a resolução de muitas investigações.
É importante citar que, para Kuhn (2011, p. 35), “a história sugere que a estrada para
um consenso estável na pesquisa é extraordinariamente árdua”. Dizemos, então, que a história
evidencia a existência de dificuldades no caminho daquele que decide desenvolver uma
pesquisa e adentrar no universo da ciência, considerando que, à falta de um paradigma ou de
opções de paradigmas, sempre teremos fatos e situações que podem se demonstrar relevantes
para a pesquisa científica.
O desenvolvimento de uma atividade difícil, que vise contribuir com a construção de
paradigmas ou consolidar investigações a partir de uma teoria específica, é algo que necessita
de dedicação e implicação do sujeito que a realiza e está diretamente relacionado à produção
de escrita que se caracterize pela implicação daquele que escreve com o trabalho em
execução.
Ainda tomando a concepção de ciência de Kuhn (2011), vemos que, ao termos
acesso ao desenvolvimento científico de um pesquisador ou de um grupo que consegue
sintetizar investigações e pesquisas a ponto de agregar mais interessados e membros para sua
comunidade científica, temos como consequência o desaparecimento de outros grupos ou
perspectivas teóricas que, de certa maneira, se enfraquecem diante da sociedade.
Em relação ao enfraquecimento de áreas e determinados grupos, Kuhn (2011, p. 39)
afirma que:
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Seu desaparecimento é em parte causado pela conversão de seus adeptos ao novo
paradigma. Mas sempre existem alguns que se aferram a uma ou outra das
concepções mais antigas; são simplesmente excluídos da profissão e seus trabalhos
são ignorados. O novo paradigma implica uma definição nova e mais rígida do
campo de estudos. Aqueles que não desejam ou não são capazes de acomodar seu
trabalho a ele têm que proceder isoladamente ou unir-se a algum grupo.
Vemos essa situação como algo de muita importância, pois, ao pensarmos na questão
do jovem pesquisador que desenvolve sua pesquisa em âmbito da formação universitária,
compreendemos que a conversão de adeptos ou a decisão de continuar em uma linha mais
“antiga” possam acontecer com um pouco mais de pressão, em razão de a relação entre o
aluno e sua pesquisa sempre ser mediada por sua relação com o orientador ou com os pares da
comunidade científica que deseja legitimar ou na qual pretende inserir-se.
Entendemos que, em certas situações, esse jovem pesquisador necessita continuar em
uma determinada linha de estudos ou aderir a um novo paradigma, de acordo com a decisão
de seus pares de “aferrarem-se” a uma concepção antiga ou não. Depreendemos que, em
diversos casos, poderá não haver uma implicação pessoal e particular do aluno com a
concepção e com a perspectiva teórica que fundamenta o seu grupo, pois ele é, comumente,
“levado” pela situação e por sua posição de aluno e jovem pesquisador. Isso tudo corrobora a
obrigatoriedade de produzir no meio acadêmico, já que, para o aluno de graduação, a
iniciação científica, evitada durante boa parte do curso, será, de alguma forma, realizada no
momento em que for preciso desenvolver sua monografia de conclusão de curso. Nesse caso,
referimo-nos, em especial, ao curso de Letras no qual coletamos os dados para nossa pesquisa,
e àquele aluno de iniciação que precisa aderir a um grupo ou a uma comunidade para
conseguir produzir um trabalho acadêmico que se conforme com uma produção científica.
A escrita de textos acadêmicos pode ser considerada uma produção científica,
justamente por implicar a aceitação de um paradigma e atender requisitos que não se limitam
apenas a questões institucionais – como a aprovação em uma banca de monografia, a
legitimação de seu grupo de estudos –, mas que também incluem responder a
questionamentos que só poderiam ser respondidos a partir do desenvolvimento de uma
investigação fundamentada em certos pressupostos teóricos. A produção acadêmica não pode
se limitar à tentativa de inserção de um trabalho ou do jovem pesquisador em uma
comunidade que a aprove e a legitime, pois ela parte da fundamentação de um paradigma e, se
caracterizada, de fato, como produção científica, contribuirá para a consolidação da
perspectiva teórica que utiliza, resolvendo e respondendo questionamentos e problemas que
auxiliam a sociedade e a comunidade científica da qual participa.
25
Sempre mencionamos a importância da legitimação da produção ou da inserção do
cientista ou, no caso em questão, jovem pesquisador em uma comunidade ou grupo científico.
Fazemos isso porque é através dessa legitimação ou aceitação que o cientista define para si
um paradigma como fundamental e, em muitos casos, como “certo”, desenvolvendo suas
investigações a partir dos princípios básicos da perspectiva teórica que escolheu para justificar
o uso de cada conceito que utiliza em sua produção. Na medida em que tudo isso acontece,
sua produção encaminha-se para um desenvolvimento que pode ser classificado como
importante para alguns e sem valor para outros.
Uma produção acadêmica pode, às vezes, não ser aceita pelos pares da comunidade
ou grupo científico do qual seu autor participa ou tem interesse de participar. É claro, porém,
que, independentemente de responder a um grupo, uma produção científica precisa responder
ao questionamento que justificou a realização da investigação. Não sabemos se a produção de
um trabalho acadêmico será legitimada ou irá legitimar quem a realiza, pois é possível que a
pesquisa não consiga resolver o problema que a suscitou e, assim, precise partir para um novo
recomeço, em busca de outro paradigma que possa contribuir para o levantamento de
respostas para os questionamentos
O caráter resolutivo dos trabalhos acadêmicos parece algo evidente, porém pode não
se aplicar em todos os casos, pois, muitas vezes, propostas de investigações legitimam-se na
academia mesmo fundamentadas em questões nem sempre relevantes ou respondíveis, mas
reconhecidas e aceitas pelos pares da comunidade científica que, para desenvolver suas
pesquisas, se utiliza do mesmo paradigma.
Por essas situações, acreditamos que, muitas vezes, temos o desenvolvimento de
pesquisas que acabam criando um sentido de banalização do paradigma utilizado como
fundamentação da proposta de pesquisa. Ou seja, em razão de não resolverem problemas ou
estes não se basearem em um questionamento que possa ser respondido, alguns trabalhos
acabam justificados apenas por comentar a evolução de um paradigma, de uma perspectiva
teórica, sem utilizá-la, efetivamente, no decorrer do trabalho.
Isso nos remete à ideia de Kuhn (2011, p. 41), quando afirma que o cientista que
escreve um livro tem mais probabilidade de ver sua reputação comprometida do que
aumentada. É, pois, evidente o risco de fracasso que toda produção corre, dada a proximidade
da produção acadêmica com uma realização profissional, já que ambas estão ligadas à
criatividade, que, no caso dos trabalhos acadêmicos, se manifesta perante as dificuldades para
26
demonstrar como um objeto de estudo torna-se produção científica ou pode ser considerado
como tal.
Entendemos que, para fazer de uma produção acadêmica uma produção de ciência, é
necessário transpor a repetição e a reprodução de modelos e padrões. Por isso, retomamos
aqui a noção de paradigma que, em alguns momentos, pode ser empregado como sinônimo de
padronização. Vemos que, na ciência, o paradigma dificilmente é passível de reprodução, pois
ele é um elemento que será articulado, questionado e colocado em diversas condições.
Queremos dizer que o trabalho acadêmico, quando chega a responder a questionamentos de
uma comunidade científica ou de toda sociedade, utiliza-se de um paradigma para conseguir
encontrar mecanismos e procedimentos que o auxiliarão no decorrer da investigação, porém,
em alguns casos, os paradigmas não funcionam como instrumentos auxiliares da produção,
mas tornam-se o que a produção almeja destacar. É como se o objetivo da pesquisa se voltasse
para a ação de evidenciar o paradigma, na qualidade de teoria, conceitos e autores.
Reconhecemos que o paradigma só é aceito a partir do momento em que consegue
responder a mais questionamentos importantes do que outros conceitos, auxiliando na
resolução de maiores investigações e, consequentemente, resolvendo a problemática que
determinadas comunidades científicas elencaram como questões primordiais a serem
respondidas. Segundo Kuhn (2011, p. 44), podemos dizer que a ciência normal consiste na
concretização da promessa de responder a questionamentos e de atualizar-nos, ao ampliar o
conhecimento sobre fatos que o paradigma apresenta como relevantes, reforçando a relação da
realidade social com o próprio paradigma.
Essa relação não determina que o cientista – e, neste caso, quem tem interesse pela
produção científica no universo acadêmico – procure sempre a invenção de teorias novas. Ao
contrário disso, Kuhn (2011, p. 45) aponta que, por muitas vezes, os pesquisadores são
intolerantes com as teorias recém-inventadas por outros estudiosos, afirmando que “a
pesquisa científica normal está dirigida para a articulação daqueles fenômenos e teorias já
fornecidos pelo paradigma”.
Ao tomarmos como referência de produção científica a noção de paradigma
apresentada por Kuhn (2011), compreendemos que o pesquisador, neste caso o cientista, é
forçado pela teoria que utiliza como fundamentação, em conjunto com uma metodologia de
análise e experimentação, a investigar detalhadamente aspectos naturais de um modo que
poderíamos imaginar impossível de se fazer. Assim, a pesquisa pode ser vista como um
desafio para aquele que se propõe a investigar e, consequentemente, desenvolvê-la. Isso está
27
diretamente relacionado à investigação que desenvolvemos, pois a proximidade do que
analisamos com o que produzimos é muito grande, considerando que estamos tratando da
produção escrita ao mesmo tempo que desenvolvemos uma escrita acadêmica. Vemos esse
fato como um grande desafio para todo aluno, seja de graduação ou pós-graduação, já que
nem sempre aquele que escreve consegue desenvolver atitudes que o afastem da sua própria
produção e o auxiliem na consolidação de um modo de escrita que garanta a articulação dos
conceitos e das teorias do paradigma ao qual se associou para a coleta dos dados, as análises e
os objetivos propostos na pesquisa.
A ideia de paradigma prevê não só a vinculação a uma determinada perspectiva ou
fundamentação teórica, mas também a articulação da teoria com procedimentos
metodológicos capazes de conduzir a investigação proposta. As dificuldades dessa articulação
sempre são de ordem teórica e experimental, isto é, muitas vezes o cientista não possui a
habilidade necessária para articular seu conhecimento teórico com uma metodologia de
análise, limitando-se a apenas um desses aspectos, o que prejudica a resolução do problema
que justifica sua pesquisa.
Ao salientar a relevância da seleção de uma perspectiva teórica para o
desenvolvimento da ciência, Kuhn (2011, p. 55) apresenta a possibilidade de “[…] três classes
de problemas – determinação do fato significativo, harmonização dos fatos com a teoria e
articulação da teoria”, que são procedimentos essenciais para a construção de uma produção
científica. Em outras palavras, a ausência de qualquer um deles ou a não articulação entre
todos podem inviabilizar a proposta de investigação ou, ao menos, dificultar o resultado
positivo da pesquisa.
Vemos que as dificuldades de produzir sempre esbarram na intenção de construir
algo novo, o inédito, seja a partir do domínio da teoria ou do conhecimento dos fatos e dos
fenômenos pelo cientista. O que nos confirma a ideia de que uma proposta que não aponte
resultados tende a ser caracterizada como inválida ou fracassada. Para Kuhn (2011, p. 58),
essa situação não se refletirá no objeto de análise, mas sim naquele que propôs a pesquisa,
seja ele cientista ou o jovem pesquisador, já que os resultados de uma pesquisa só são
significativos para o pesquisador quando podem contribuir para ampliar o espaço e o alcance
do paradigma fundamental da pesquisa. Mas o trabalho também não se pode limitar a uma
devoção do cientista ao problema que investiga.
Acreditamos que, independentemente da possibilidade da proposta inicial ou do
resultado da pesquisa não ser satisfatório, a implicação do autor de uma produção científica
28
ultrapassa a exigência de aprovação ou de aceitação da produção. Compreendemos que a
dedicação do pesquisador, seja de graduação ou em níveis superiores, é mediada pela relação
estabelecida entre a proximidade dele com o tema da investigação e a relevância da pesquisa.
Quando tratamos de pesquisas que contribuem para a consolidação de uma perspectiva teórica
como forma de responder a questionamentos e, assim, resolver problemas, a aceitação ou a
legitimação da produção é consequência do que foi desenvolvido antes, e não,
necessariamente, o objetivo central. Porém, como apontamos no decorrer do trabalho, é
possível que um trabalho acadêmico seja aprovado e legitimado sem conseguir responder aos
questionamentos que justificaram a realização da pesquisa.
Consideramos que o papel assumido por quem se dispõe a produzir cientificamente
ultrapassa a necessidade de dizer o que se propôs a explicar, pois são os questionamentos do
autor que justificam a pesquisa, independentemente do seu nível de complexidade. Uma
produção escrita tem como base a articulação de instrumentos, conceitos e práticas de análise
que auxiliam na resolução do “quebra-cabeça” que motiva a produção do trabalho realizado
pelo cientista, seja este um pesquisador já reconhecido ou o jovem pesquisador que se inicia
no mundo da ciência e da produção científica.
Acreditamos que investigações que não pressupõem a implicação do autor em
questionamentos que caracterizem qual a necessidade de realizá-las têm maior probabilidade
de não serem empreendidas ou de fracassarem. Isso não é condicionado, necessariamente,
apenas pela não aceitação do trabalho, pois um trabalho acadêmico aprovado por pares pode
constituir-se de uma pesquisa que não conseguiu desenvolver o que propôs – como constatou-
se através das análises –, mas que coloca em evidência um paradigma.
Kuhn (2011, p. 61) afirma que o “que incita ao trabalho é a convicção de que, se for
suficientemente habilidoso, conseguirá solucionar um quebra-cabeça que ninguém até então
resolveu ou, pelo menos, não resolveu tão bem”. O que nos leva à compreensão de que a
escolha de determinado trabalho ou proposta de pesquisa não ocorre de forma aleatória ou
sem critérios; ela recebe influência e é caracterizada pela formação e envolvimento daquele
que propõe a investigação. A execução desta está relacionada ao interesse daquele que
empreende a proposta realizada.
Compreendemos a formação acadêmica como um processo, assim, ao produzir uma
monografia, o aluno não pode limitar-se a regras metodológicas ou a paradigmas únicos. Ele
precisa refletir sobre as diversas possibilidades de investigação do “quebra-cabeça” que
29
resolveu “tentar montar”, a partir do estudo de pontos de vistas que o auxiliem na análise e
reflexão sobre o corpus da pesquisa.
Ao refletirmos sobre a concepção de ciência e produção científica que fundamenta
nossa proposta de pesquisa, é importante destacarmos também a concepção de escrita que nos
auxilia na compreensão da produção que analisamos. Tal reflexão envolve o entendimento da
escrita acadêmica como produção de ciência e, consequentemente, de conhecimento na
universidade contemporânea.
A escrita, seja acadêmica ou não, é uma representação de quem escreve, pois o
sujeito é refletido nela. A concretização de uma produção está relacionada a um exercício
próprio e específico daquele que escreve, que, para o desenvolvimento de seu texto,
estabelece um sistema de cooperação, convenções e relações interacionistas. Sobre isso,
podemos remeter ao que diz Coracini (2010, p. 9):
Toda escrita é inscrição de si, ainda que o gênero textual exija, por convenções tácita
e anonimamente acordadas, um (im)possível afastamento, uma (im)possível
objetividade que deveria fazer o objeto falar(-se), como é o caso do discurso
científico e do discurso jornalístico.
Isso corrobora com o que vimos em Kuhn (2011), pois não podemos condicionar
toda a produção ao paradigma a que nos filiamos e com o qual mantemos relações. A
produção nasce de uma participação de quem escreve, que interpreta as perspectivas, os
conceitos, e os articula com a proposta de investigação, implicando-se no que desenvolve.
Assim, podemos dizer que, além do conhecimento das formas linguísticas, das características
do gênero textual e da teoria que fundamenta a investigação, ao escrever, o autor implica-se e
participa da constituição do texto, isto é, inscreve o seu eu na constituição da produção e,
dessa forma, marca através da alteridade seu traço, sua particularidade no discurso, que, no
caso, é a escrita monográfica da investigação realizada durante a pesquisa.
Ao pensarmos a escrita, não podemos desconsiderar que um texto sempre diz algo do
seu autor, evidenciando marcas do eu, que é inscrito na produção e constitui-se como seu
sujeito. Para escrever, seja na academia ou na vida cotidiana, é necessário atender à demanda
de questionamentos existentes na vida, isto é, responder às inúmeras perguntas e inquietações
que nos cercam, mas também devemos considerar as normas e convenções que são acordadas
para padronização da grande variedade de formações discursivas específicas de diversos
grupos e comunidades. Retomando Coracini (2010, p. 21), “parece evidente que essas
convenções precisam ser ensinadas para que seja possível escrever textos acadêmicos, cartas,
30
narrativas…, para que seja possível, enfim, participar dos jogos de linguagem”. Ou seja, é fato
consolidado na academia que, para escrever de acordo com a diversidade de gêneros que a
linguagem oferece, devemos apreendê-los e garantir nossa adesão aos jogos linguísticos.
Há dificuldades de se expressar em meio a tantos discursos já proferidos. A
participação de quem escreve em seu próprio discurso permite uma reflexão sobre sua
identidade, que, segundo Coracini (2010, p. 10):
31
de estratégias linguísticas, como a organização e a escolha de argumentos que definirão o
conhecimento daquele que escreve. Escrevemos de forma a sempre nos remetermos a um
leitor, seja ele real ou virtual. Durante a leitura, criamos a imagem de um autor que, ao
escrever, tem intenções, perceptíveis de acordo com o percurso que realizamos quando lemos
o texto, no qual identificamos pistas, sentidos deixados pelo autor.
Para explicar a noção de escrita que fundamenta essa pesquisa, é importante retomar
o que diz Coracini (2010, p. 24):
32
investigação, deixar evidente um posicionamento em relação à produção de monografias na
graduação. Considerando a concepção de Kuhn (2011) sobre as revoluções científicas e a de
Coracini (2010) sobre escrita, entendemos que a escrita de uma monografia é um momento
em que o aluno desenvolve produção científica, partindo de sua necessidade de trazer
respostas e demarcar o paradigma adotado, contribuindo para a produção de ciência na
universidade. É uma produção que implica o “eu” do aluno. A monografia é um produto que
reflete a formação e a constituição do aluno como jovem pesquisador, que se implica no texto
para demonstrar o quanto pode contribuir na produção de ciência.
No próximo capítulo, dedicamo-nos a descrever como é possível verificar a presença
de outros discursos na produção escrita de monografias, apontando as diversas formas como
isso pode acontecer. Também demonstramos como podemos verificar a presença dos
discursos de outros autores em um discurso acadêmico, possibilitando observar como essas
participações contribuem para o trabalho ou desenvolvem sentidos que não são,
necessariamente, os que se planejavam ao propor o trabalho de pesquisa.
33
2. AS DIVERSAS VOZES QUE HABITAM O TEXTO ACADÊMICO: DA
HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA À REPETIÇÃO E INCORPORAÇÃO DE
CONCEITOS
5
Tomamos para este trabalho os conceitos de enunciação e enunciado de Benveniste (2005). O autor considera a
enunciação como processo que demonstra a mobilização da língua por parte do locutor. Afirma que ela é o ato
de apropriar a língua que insere quem fala em sua própria. Em tempo, afirma que o enunciado é um resultado,
produto desse processo, com sua forma determinada pelas relações que o locutor estabelece com a língua.
Portanto, consideramos a enunciação como um ato, através do qual o locutor se apropria da língua e das
características linguísticas desenvolvidas nessa relação.
34
observação e no entendimento do processo de participação do outro no nosso próprio dizer.
Essa presença de outras vozes no discurso de uma produção escrita evidencia a possibilidade
de manifestração de um efeito de sentido que desconstrói a noção de produção científica, tal
como proposta no primeiro capítulo desta dissertação.
Authier-Revuz (2004) apresenta a ideia de que todo texto conta com a participação
de discursos de outros autores, isto é, a presença de dizeres diferentes daquele para quem o
locutor constrói o enunciado. A pesquisadora denomina tal fato de heterogeneidade
constitutiva do discurso e afirma, além disso, que ela pode ser mostrada marcada ou não
marcada. Entendemos, assim, que, a partir desses conceitos, podemos analisar produções
escritas, tais quais as que selecionamos (monografias) como corpus para este trabalho, com o
objetivo de demonstrar como um aluno de graduação faz uso de uma teoria,
operacionalizando e mobilizando conceitos teóricos.
O conceito de Pêcheux (1969) de interdiscurso é retomado por Authier-Revuz
(1990), ao dizer que um sentido constitui-se de uma palavra em referência a um ou outro
sentido produzido alhures, no interdiscurso ou na língua, demonstrando que o funcionamento
desta gera diferentes manifestações linguísticas, que incluem as formações imaginárias e as
heterogeneidades constitutiva e mostrada.
Para explicar as formas de discurso que configuram a heterogeneidade enunciativa,
seja a constitutiva ou a mostrada, Authier-Revuz (2004, p.12, grifos do autor) declara que o
dizer possui em sua estrutura:
35
Uma forma mais complexa de heterogeneidade se mostra em curso nas diversas
formas marcadas da conotação autonímica: o locutor faz uso de palavras inscritas no
fio de seu discurso (sem a ruptura própria à autonímia) e, ao mesmo tempo, ele as
mostra. Por esse meio, sua figura normal de usuário das palavras é desdobrada,
momentaneamente, em uma outra figura, a do observador das palavras utilizadas; e
o fragmento assim designado – marcado por aspas, por itálico, por uma entonação
e/ou por alguma forma de comentário – recebe, em relação ao resto do discurso um
estatuto outro.
37
do texto não é assumida por quem escreve, e sim utilizada como forma de referência e
argumento, caracterizando uma divisão da responsabilidade com o seu referente.
O fato de o aluno não assumir toda a responsabilidade em relação ao seu discurso
remete-nos ao que afirma Fabiano-Campos (2011, p. 14):
39
investigação, como é utilizado o discurso de outro na estrutura do discurso daquele que
escreve, sem alterar sua organização sintática.
O outro não só participa do discurso, mas o estrutura, e, assim, desenvolvem-se
sentidos que não necessariamente compunham o texto original ou que são, até mesmo,
diferentes daquele que o autor acredita construir. Há diversos efeitos produzidos em um texto
que explicitam as marcações de outros discursos. Mais especificamente, observamos a
possibilidade de, no processo de escrita, produzir-se um efeito de sentido que nos possibilita
questionar a validade do texto que é produzido como uma produção cientifica, qualificando-o
como repetição de algo já produzido.
Segundo Authier-Revuz (2004, p. 14, grifos do autor), a manifestação de formas de
marcação do outro constitui a estrutura de um metadiscurso ingênuo, que participa da
composição do discurso, e desenvolve um:
40
integrada, da alusão, do estereótipo, da reminiscência, quando esses fragmentos são
designados como “vindos de outro lugar” (AUTHIER-REVUZ, p. 16-2004, grifos
do autor).
Essas situações podem ocorrer como tentativa do locutor para adequar o discurso de
uma variedade de língua a outra, para concordar com o interlocutor que participa da
composição discursiva em questão ou, então, para remeter seu discurso a um discurso
anterior.
Uma produção escrita faz remissão a um discurso já estabelecido e reconhecido na
academia, porém, ao não fazer uso de marcações linguísticas, limita-se a repetir um ou outro
conceito, esquecendo-se de articulá-los com seu objeto e, consequentemente, de realizar a
pesquisa proposta no início do trabalho. No entanto, é importante ressaltarmos que as formas
de controle apresentadas por Authier-Revuz (2004) são parâmetros para a escrita e estão
presentes em todos os discursos. A partir da análise da maneira pela qual a escrita marca o
discurso do outro em sua estrutura, é possível refletir sobre uma justa medida entre a
participação do outro em textos acadêmicos, como também perceber até que ponto a
utilização de citações e referências funcionam como argumentação do texto de quem escreve
ou como modo de escrita capaz de produzir um efeito de sentido de promoção da voz do
outro. Entenda-se que as fragilidades apontadas acima não podem ser atribuídas apenas a
questões de conhecimento sobre normas de metodologia científica.
Nesse sentido, tomamos a escrita como um processo pelo qual se realiza uma ação.
Ainda que, aparentemente, único e homogêneo, ele tem uma estrutura heterogênea e parte de
uma materialidade linguística que ultrapassa o conceito de representação da fala no papel. A
base da atividade de escrita é dar condições para que o aluno distancie o escrever do registrar
por escrito uma fala, um pensamento ou uma mensagem de terceiros. Escrever um texto
acadêmico implica demonstrar a participação daquele que o produz, e não apenas a
reprodução de conceitos. Sabemos, contudo, que a participação do outro em nosso discurso é
constitutiva. A partir de análises, identificam-se elementos que denotam tanto a presença da
voz do outro quanto a particularidade daquele que escreve o texto. As marcações das vozes
presentes na escrita podem, portanto, construir a argumentação e contribuir com ideias novas
para a comunidade científica.
Toda escrita revela, em sua estrutura, a participação de vozes de outros, seja
mostrada ou não mostrada, situação determinada pela heterogeneidade enunciativa. Esse
processo demarca as vozes que participam do discurso e auxiliam no funcionamento do
41
enunciado, fortalecendo a argumentação e dando sustentação para quem escreve. Sobre as
vozes do outro que habitam os discursos, Authier-Revuz (1990, p. 27) recorre a Bakhtin:
Somente o Adão mítico, abordando com sua primeira fala um mundo ainda não
posto em questão, estaria em condições de ser ele próprio o produtor de um discurso
isento do já dito na fala de outro. Nenhuma palavra é “neutra”, mas inevitavelmente
“carregada”, “ocupada”, “habitada”, “atravessada” pelos discursos nos quais “viveu
sua existência socialmente sustentada”. O que Bakhtin designa por saturação da
linguagem uma teoria da produção do sentido e do discurso: coloca os outros
discursos não como ambiente que permite extrair halos conotativos a partir de um nó
de sentido, mas como um “centro” exterior constitutivo, aquele do já dito, como o
que se tece, inevitavelmente, a trama mesma do discurso.
42
marcações da heterogeneidade discursiva, de que tanto falamos, e que, consequentemente,
contribui com a análise dos efeitos que a diversidade de vozes em um discurso constrói.
Assim, pensando nos conceitos de alusão e remissão ao outro, podemos dizer que o
discurso funciona a partir do dizer de outrem. No entanto, a participação do outro não pode
renegar um posicionamento do eu. Authier-Revuz (1990, p. 33) afirma que:
[…] além do “eu” que se coloca como sujeito de seu discurso, “por esse ato
individual de apropriação que introduz aquele que fala em sua fala”, as formas
marcadas da heterogeneidade marcada reforçam, confirmam, asseguram esse “eu”
por uma especificação de identidade, dando corpo ao discurso – pela forma, pelo
contorno, pelas bordas, pelos limites que elas traçam – e dando forma ao sujeito
enunciador – pela posição e atividade metalinguística que encenam.
A partir de diferentes vozes, todo discurso revela em sua estrutura uma posição
própria, que determina a condição de autor daquele que escreve o texto. Conforme a citação
da autora, as marcações do outro funcionam como forma de confirmar e assegurar a
identidade daquele que cita. Trata-se de utilizar a voz do outro não só como fundamento e
argumento para a escrita de um texto acadêmico, mas também como base do seu próprio
dizer, isto é, além de constituí-lo, a participação do outro também molda, caracteriza e
identifica o discurso produzido naquele momento.
A escrita que não articula seu dizer com o do outro, que faz remissão a algum autor
de forma que os sentidos não dialoguem, desenvolve uma inversão do “eu” que escreve o
texto. Ao contrário de funcionar como argumentação do dizer de quem escreve, o discurso
citado, a fundamentação teórica do trabalho, coloca-se em evidencia. O “eu” que escreve
caracteriza-se, desse modo, apenas pela reprodução do outro, legitimando um enunciado que
deveria funcionar como forma de legitimação do seu dizer. Temos uma inversão de papéis: o
aluno, em vez de fundamentar sua investigação com o uso de discursos já consolidados,
utilizando-os como forma de sustentação, ocupa um espaço de “porta-voz” em seu “próprio”
texto, configurando-se como reprodutor.
Uma situação que se aproxima do que estamos dizendo é aquela em que encontramos
marcações do outro sem valor funcional para o discurso produzido. É como se a participação
se justificasse pela representação na comunidade acadêmica, e não pela relevância em relação
ao que está sendo produzido de novo. Em casos como esses, percebe-se uma quantidade
excessiva de marcações no discurso, o que, de certa forma, indica um “eu” que se esconde e
usa o texto como recurso para a demonstração do outro, incapaz de construir elementos que
garantam sua singularidade. O discurso daquele que escreve pode então funcionar como
43
suporte de transmissão do dizer de outro autor, o que, em nosso entendimento, contribui com
a construção de um efeito de sentido que passa a ideia de que a produção escrita tem como
função a promoção de um conceito, de uma teoria ou mesmo de um autor a quem se fez
alusão/remissão.
A utilização das vozes de outro no texto acadêmico é comum e faz parte do processo
de construção da escrita científica. Aquele que escreve um texto sempre faz remissão a outra
voz para construir o seu próprio discurso. Authier-Revuz reafirma a existência do processo de
remissão ao outro e o identifica como alusão, isto é, uma forma de remetermos a um
determinado discurso para compor o nosso próprio dizer.
45
No campo em que a alusão se inscreve — o da não-coincidência do discurso consigo
mesmo, no qual opera o conjunto das formas de modalização autonímica “de
empréstimo”, assinalando localmente um “eu falo aqui com palavras exteriores”, é a
marca separadora entre o exterior e o próprio das palavras que o enunciador
escolheu em um processo de estabelecimento de fronteiras, que desenha, por
diferenciação, ao longo dos limites exteriores, o contorno de um interior, das
“próprias” palavras em que se apoia o sentimento de sua identidade, imaginário e
vital para o sujeito.
A alusão é a remissão daquele que escreve ao dizer do outro, a partir das não-
coincidências do dizer. Um autor remete a outro, articulando os sentidos produzidos em seus
discursos. Com palavras diferentes, o dizer daquele que escreve produz um mesmo sentido
daquilo que foi dito pelo outro citado, que funciona como argumentação, pois confirma o que
está sendo produzido por outro.
46
diferentes de se produzir enunciados, mas confirma a enunciação como fator constitutivo de
ambas.
Teixeira (2005) retoma a divisão de Authier-Revuz (2004), que nos auxilia a
observar como se organizam as marcações do outro nos diversos modos de escrita,
descrevendo quatro formas de não-coincidências.
A primeira é apresentada como não-coincidência interlocutiva. Ela se fundamenta a
partir de uma perspectiva de sujeito da psicanálise, dividido em consciente e inconsciente, ou,
de maneira mais formal, como interlocutor e coenunciador. Essa forma pode ser representada
de duas maneiras:
a) como a tentativa de se restaurar o UM;
b) quando marcamos o NÃO-UM.
A primeira forma é considerada como a ação de empregar, atribuir sentido ou
consentimento específico do outro, desenvolvendo uma prevenção da não coenunciação. Ela
evita o risco do sentido não ser transmitido.
O NÃO-UM é diferente porque o locutor identifica a diferença entre o que ele diz e o
que o outro diz, isto é, a diferença entre as palavras de quem escreve com as palavras de
outros que constituem seu discurso.
Outra forma de classificação da não-coincidência é o discurso consigo mesmo. Este
fundamenta-se a partir do dialogismo de Bakhtin e apresenta a ideia de que toda e qualquer
palavra tem marcas em razão de ser habitada e habitar outros discursos, o que relaciona-se ao
conceito de interdiscurso de Pêcheux (1969), segundo o qual o que já foi dito é parte da
construção do que será dito em outro momento. Podemos entendê-lo como uma forma de
explicar a interdiscursividade, que reafirma a existência de várias maneiras de o locutor
reagir, pois as palavras que pronuncia são de outro discurso.
A terceira não-coincidência acontece entre as palavras e as coisas e são formas de
romper essa relação biunívoca. É o caso de haver a relação de uma língua-sistema, que seja
finita, com outras que possuam infinitas singularidades. Trata-se da impossibilidade de
captura do objeto pela letra (TEIXEIRA, 2005, p. 161).
Por último, há a não-coincidência das palavras consigo mesmas, explicada a partir do
conceito de linguagem da psicanálise lacaniana, que consagra, como fundamental, as ideias de
sistema linguístico como unidade distinta e de enunciados como reflexos da imagem de um
locutor que percebe contrastes e contradições em seu próprio discurso.
47
Em nossa proposta de pesquisa, é importante entendermos que, ao perceber o
processo de alusividade construído pelas não-coincidências do dizer, poderemos, a partir de
análises e observações, identificar os efeitos de sentido produzidos pelas marcações do outro
no discurso acadêmico e, consequentemente, explicar a construção do sentido em que se passa
a ideia de que o texto promove um autor, um conceito ou uma teoria citados e garante sua
aceitação, independentemente de se constituir como um dizer fundamentado por uma alusão
falha e fracassada.
48
A formação acadêmica do curso de Letras – e de vários outros cursos que possuem
grande carga horária de disciplinas teóricas e subjetivas dedicadas unicamente à teoria, sem
distribuição de créditos para aulas de campo, laboratoriais ou de prática curricular –
desenvolve a aproximação do aluno com determinadas teorias ou áreas de estudo. Essa
situação é vista como uma necessidade de vincular o estudante a uma comunidade científica
na qual ele adentra como condição básica para desenvolver uma pesquisa ou um trabalho de
iniciação. Essa aproximação gera um vínculo entre o aluno de graduação e a teoria que ele
necessita conhecer para se inserir no grupo em que deseja desenvolver suas pesquisas.
É comum que todo aluno de graduação se aproxime de um referencial teórico para
fundamentar seus estudos e pesquisas e atender a demandas institucionais de produção, tais
como trabalhos para disciplinas, monografias e relatórios de iniciação científica,
independentemente de ter se vinculado a um orientador ou a grupos de estudo e pesquisas.
Quando há o vínculo do aluno com uma determinada comunidade científica e linha de
estudos, dependendo da relação que ele estabelece com a teoria em questão, com seus pares e
mesmo com seus orientadores, pode-se criar uma situação que o influencia, de certa maneira,
a se afastar de outros conhecimentos teóricos, apreendidos e estudados, no decorrer da
formação.
Esse afastamento nos faz refletir na possibilidade de que o aluno, apartado de outras
teorias e áreas de conhecimento, comece a desconsiderar métodos e fundamentações teóricas
para o desenvolvimento de pesquisas, limitando-se a reconhecer apenas os parâmetros
empregados por seus pares e membros da mesma comunidade científica. Entendemos que é
um direcionamento em suas atividades acadêmicas e uma consequência da filiação a um
grupo ou teoria, mas também acreditamos que isso pode contribuir, dependendo da proposta
de investigação do aluno, com a produção de trabalhos acadêmicos que não desenvolvam
análise de dados, e não demonstrem uma operacionalização e mobilização da fundamentação
teórica. São textos que reproduzem as leituras de autores consagrados pelos pares da mesma
comunidade científica ou que utilizam a teoria estudada como fundamentação de
investigações sem relação com os estudos do conhecimento teórico utilizado como base. Há,
portanto, produções que se classificam como reproduções, ou trabalhos que tendem a
fundamentar-se em uma teoria em detrimento de outras perspectivas teóricas que, talvez,
auxiliariam mais no desenvolvimento da investigação. Situações como a que apresentamos
acima afetam ou pelo menos influenciam a formação escrita do aluno, que pode apropriar um
entendimento sobre produção científica que legitima a reprodução.
49
Diferentemente disso, a produção científica deve sempre estar baseada em
fundamentações teórico-metodológicas, isto é, é necessário, na academia, apontarmos um
ponto de vista teórico que possibilite analisar e observar nosso objeto. Todos precisam se
vincular a uma teoria ou a um pressuposto para o desenvolvimento do trabalho de
investigação, pois, para a universidade, a pesquisa parte de um conhecimento específico sobre
o corpus analisado. Contudo, não podemos eleger uma perspectiva teórica como ponto de
vista capaz de fundamentar toda e qualquer proposta de investigação, ou desconsiderar que
toda produção científica parte da proposta de produzir algo próprio, mesmo que seja a partir
do que já foi produzido.
Considerando que os pares com que os alunos de graduação têm relação são os
colegas, os professores e o orientador, podemos lembrar o que afirma Fabiano-Campos (no
prelo, p. 8-9):
50
dificuldade de incorporar teorias e articulá-las em uma análise do corpus de pesquisa. Todavia
não compreendemos essa situação como casos de desconhecimento ou de incapacidade de
alunos ou professores em desenvolver uma pesquisa. Para nós, ela assinala um modo de
produção e de constituição de sujeitos de conhecimento em vigência na universidade
contemporânea.
Não queremos, neste trabalho, questionar a relação entre orientador e orientandos,
pois a entendemos como constitutiva da maior parte das produções científicas e ainda mais
significativa, quando se trata de produções de iniciação científica. O problema que
levantamos e queremos analisar são as condições e as relações na produção de trabalhos
acadêmicos em cuja estrutura há predominância de repetições de dizeres do outro. Mesmo
conscientes que o outro nos atravessa, compreendemos que uma produção escrita precisa
articular um conhecimento teórico em uma análise de dados para responder questionamentos
e consolidar-se como uma produção científica.
Entretanto algumas pesquisas demonstram que a repetição de conceitos já é algo
comum nos cursos de formação. Segundo Fabiano-Campos (no prelo, p. 9), “a maioria não
consegue estabelecer relações entre os conceitos teóricos, os objetivos propostos e as análises,
não conseguem ir além da materialidade”. A pesquisadora aponta que, hoje, os alunos não
conseguem desenvolver, em suas produções acadêmicas, um trabalho que operacionalize a
teoria utilizada como fundamentação. Pelo contrário, os trabalhos resumem-se na repetição,
no redizer conceitos de uma teoria já consolidada na comunidade.
A autora também comenta as modalidades de repetições que ocorrem na escrita de
alunos da graduação. Um exemplo comum, que podemos mencionar, são os trabalhos
fundamentados na teoria da Análise do Discurso (AD) de linha francesa, que quase sempre
iniciam “com a apresentação ao leitor da ‘origem’ da disciplina de seus fundadores,
precursores da época em que chegou no Brasil, seguindo numa repetição infindável”
(FABIANO-CAMPOS, no prelo, p. 11).
Em muitos desses textos acadêmicos que tomam a AD como aporte teórico, observa-
se a repetição da história dessa área do conhecimento, sem que tal exposição se justifique,
visto que não tem nenhuma aplicação para o desenvolvimento da pesquisa. O autor apenas
narra, mais uma vez, o percurso da disciplina e, muitas vezes, expõe os conceitos mais
utilizados na área, mesmo que eles não sejam operacionais nos trabalhos. A desconsideração
do contexto, hoje, é salutar, porque essa exposição não é mais necessária – diferentemente do
que ocorria nas décadas anteriores, nas quais ela era fundamental para legitimar a Análise do
51
Discurso como uma importante teoria linguística –, já que se trata de uma teoria que tem seu
lugar nos estudos linguísticos brasileiros (havendo inclusive linhas de pesquisa em programas
de pós-graduação).
A partir da análise de alguns programas de pós-graduação na área de estudos das
ciências da linguagem, é possível perceber o quanto a teoria da Análise do Discurso de linha
francesa está legitimada e o grande espaço que ocupa dentro do panorama dos estudos
linguísticos no Brasil. Podemos indicar, como exemplos, os programas existentes nas
universidades estaduais de Campinas, de Maringá e do Mato-Grosso; nas universidades
federais de São Carlos, do Rio Grande do Sul, do Mato-Grosso e de Minas Gerais; e, ainda,
na universidade particular do Vale do Sapucaí, em Minas Gerais. Todas contam com
programas consolidados na área de estudos linguísticos e têm a teoria da Análise do Discurso
de linha francesa como uma das mais atuantes e respeitadas.
Fabiano-Campos (no prelo, p. 12), em sua investigação de doutoramento, diz que
uma situação como essa
[…] leva a construir a hipótese de que, para além de a repetição ser um momento do
aprendizado da escrita, tem se tornado, cada vez mais, parte de uma cultura própria
do meio acadêmico. Se aceitar o postulado de que a repetição consiste em um
momento do aprendizado, esta aceitação amplia o alcance deste enunciado para
vários outros momentos da escrita, causando problemas para a ideia de produção
acadêmica.
52
Os professores se dirigem aos alunos por meio de uma linguagem de inculcação que
recai justamente na reprodução. No corpus analisado, foi possível verificar a
presença da repetição de termos teóricos sem uma precisão de sentido na análise dos
dados. A universidade forma alunos que não conseguem apreender o conhecimento
e abordá-lo nos textos produzidos de forma a sustentar sua escrita a partir de um
campo teórico definido. (FABIANO-CAMPOS, no prelo, p. 13).
Não queremos, de forma alguma, passar a ideia de culpa dos professores, mas é
inegável a relação entre essa produção e as práticas de pesquisa e orientação existentes hoje
nas universidades, pois não há como explicar de outra forma (até o momento) a razão pela
qual a escrita caracterizada pela repetição de algo que já foi dito é legitimada na universidade.
Além disso, há a aceitação dessa situação, tanto no interior das comunidades científicas
quanto na academia como um todo.
Essa situação pode ser entendida ainda como um reflexo da constituição do sujeito de
conhecimento na universidade contemporânea, que sofre grande pressão de agências
financiadoras e de instituições de regulação e amparo à pesquisa em relação à produção
quantitativa de textos acadêmicos. A produção escrita na universidade, nos dias de hoje, tanto
na graduação como em programas de pós-graduação, é caracterizada pelas relações
institucionais que têm como principais objetivos cumprir metas de quantidades de
publicações, e não fomentar a produção científica capaz de desenvolver novos conhecimentos
para a sociedade.
Nesse contexto, é possível perceber que, desde que o aluno faça a reprodução de uma
teoria dentro de, ou para, uma comunidade adepta a tais conceitos, o trabalho é reconhecido e
aprovado e, assim, possivelmente tido como produção de iniciação científica, já que tratamos
de monografias aprovadas por bancas de defesas, publicadas em revistas acadêmicas e, por
vezes, utilizadas como ponto de partida de outros trabalhos. A produção escrita na academia
tem resultado em trabalhos que, por diversas vezes, não pressupõem a produção de ciência ou
a contribuição com novos conhecimentos, mas caracterizam-se por redizer o que já foi
produzido. Com isso, em determinados casos, a aceitação de um trabalho na comunidade
científica não é mediada pela responsabilidade e relevância social da investigação, mas sim
pela reprodução de discursos que também fundamentam os trabalhos de seus pares.
É importante ressaltar que tomar a repetição de conceitos teóricos por produção de
um texto acadêmico não é algo exclusivo da universidade e dos textos que lá circulam
(dissertações, teses), mas é comum também em revistas e instrumentos de publicação. “O que
se sobressai é a forma mecânica e a falta de reflexão teórica com que os alunos estão se
53
incorporando de dispositivos de algumas disciplinas para elaborar seus trabalhos”
(FABIANO-CAMPOS, no prelo, p. 15).
De certa forma, a repetição excessiva visível em trabalhos acadêmicos sugere certa
banalização da produção científica na graduação e desmotiva a produção escrita em outros
níveis. Se o aluno desenvolve uma produção escrita construída por meio de repetição na
graduação, terá dificuldade de mudar essa característica mais tarde. É possível que, mesmo
com alterações entre as produções de uma mesma pessoa, nos diferentes níveis de estudos,
seja necessária uma nova formação em relação à produção escrita, desenvolvida a partir de
testemunhos e de experiências próprias, para que o trabalho acadêmico realizado seja
reconhecido como produção de ciência e conhecimento.
Conforme Fabiano-Campos (no prelo, p. 17, grifo do autor),
55
[…] é preciso admitir que a universidade não está completamente aberta à
introdução de novas propostas de ensino, como a prática de pesquisa na graduação.
Toda tentativa de intervenção se defronta com uma resistência, de caráter
estratégico, científica, e ainda com um cotidiano de práticas e modos de fazer já
bastante arraigados. Pensar na pesquisa implica lidar com uma prática contínua da
escrita, cuja presença e força não devem ser negligenciadas.
56
Fabiano-Campos (no prelo, 2014, p. 3), ao retomar os estudos de Maingueneau,
comenta que:
57
Por fim, é importante perceber que os processos de repetição e incorporação estão
diretamente relacionados, pois, de certa maneira, a repetição será reconhecida a partir da
forma que a incorporação do conceito em questão é realizada e desenvolvida. Ambas são
consequências naturais da heterogeneidade enunciativa (constitutiva) presente na linguagem
como um todo. Todavia, o que iremos observar é o efeito de sentido que pode ser originado
pela escrita ancorada na repetição de conceitos e teorias.
Assim, mesmo diante do risco de gerar um sentimento negativo em relação à escrita
de trabalhos acadêmicos, ousamos dizer que a escrita caracterizada por uma tentativa de
incorporação de conceitos, muitas vezes, limita-se a repetir o que já foi dito e cria um efeito
de sentido de promoção, que, para nós, evidencia um problema em relação ao modo de escrita
acadêmica.
Nesse sentido, é importante lembrar o que diz Fabiano-Campos (2007, p. 7):
[…] o aluno não é ensinado que para escrever “o mesmo de forma diferente” tem de
manter alguns sentidos do texto primeiro, e quando tentar construir um
deslocamento de sentido, esse deverá ser devidamente apontado na estruturação
sintática do texto elaborado.
58
Concordamos com Possenti (2009), quando comenta que não podemos considerar
que um aluno vestibulando tenha fundado uma obra ou discursividade, pois entendemos que
nem mesmo o estudante de graduação chega a desenvolver esse nível de escrita. O modo de
escrita na universidade, porém, diferencia-se do escolar, pois propõe atividades que
desenvolvem conhecimentos sobre a produção escrita, de modo a incentivar que o estudante
demarque sua posição enunciativa enquanto jovem pesquisador, que precisa conhecer e saber
elaborar textos relacionados ao percurso de estudo e aprendizagem do qual está participando.
Ou seja, o aluno de graduação deve desenvolver movimentos mínimos de articulação da teoria
que fundamenta seu trabalho com o corpus que se propõe a analisar na investigação.
A escrita de trabalhos de jovens de iniciação científica pode não se aproximar da
fundação de uma discursividade, assim como um texto de vestibulando, porém a noção de
indícios, apresentada por Possenti (2009), auxilia a análise que realizamos nesta investigação,
pois o pesquisador aponta, de maneira clara, para a existência de traços de estilo que também
podem ser reconhecidos em textos acadêmicos, como no caso de monografias.
O autor apresenta três procedimentos a serem utilizados como na identificação dos
indícios de autoria no modo de escrita dos textos que analisamos. O primeiro deles parte da
ideia de que não podemos limitar a autoria a regras e normas gramaticais. A adequação do
texto às normas prescritivas como, por exemplo, regras de pontuação, não garante a autoria de
um texto. O segundo ancora-se na ideia de que a escrita não se resume a “questões de coesão
e coerência”. E o último procedimento apresenta a noção de que o reconhecimento dos
recursos linguísticos utilizados como marcas de autoria não é automático. Estes são
constituídos no nível do discurso.
Segundo Possenti (2009, p. 112-113), quem escreve um texto se assume como autor,
independentemente de estar consciente, mas, para isso, precisa desenvolver duas atitudes:
“dar voz a outros enunciadores” e “manter distância em relação ao próprio texto”.
A primeira atitude necessária para expressar indícios de autoria, conforme afirma
Possenti (2009), é a necessidade de se remeter a outros discursos, de forma constitutiva, mas
pontuada e marcada, para, assim, articulá-los com o texto, o que, consequentemente, ajudará
na estruturação da produção. Na composição do discurso, é fundamental que se mantenha a
relação e a articulação com outros dizeres já proferidos e reconhecidos socialmente, visto que
todo discurso tem, em sua estrutura, a participação de outros. Esses dizeres que são invocados
funcionarão como sustentação, como as colunas que darão base para o que é produzido de
novo.
59
Quando Possenti (2009) diz que um modo de utilizar o discurso do outro é fazer uso
de palavras que remetam a um autor ou a um conceito de alguma teoria específica e manter
com eles uma relação, podemos entender essa relação como uma avaliação de quem é citado,
realizada de maneira despercebida. Mesmo o discurso sendo atravessado por aquele que
citamos ou por outros, o que garante a autoria da produção escrita não é o que se realiza, mas
sim como, pois há várias formas de mobilizar uma teoria e articulá-la com diversos corpora.
Por isso, só garantimos nossa posição como autor, a partir do momento que demonstramos o
como fazemos. Assim nos diferenciamos do que já foi produzido e desenvolvemos uma
produção profícua e possuidora de “indícios de autoria”.
A segunda atitude recomendada pelo autor é a preservação de um distanciamento do
próprio texto. A ideia é que precisamos marcar a posição como enunciador da produção
realizada em relação aos interlocutores com quem interagimos. Possenti (2009, p. 114) afirma
que essa segunda atitude “trata-se a rigor, de uma exigência do próprio discurso, decorrente
do fato de que o sujeito sempre enuncia de uma posição, mas a língua não é um código que
sirva a cada posição de forma transparente”. Portanto um acadêmico também precisa se
distanciar de seu próprio texto para demarcar uma posição enunciativa no ato de escrever,
para evidenciar indícios de autoria.
60
O autor joga com as expectativas que criou no leitor, negaceia, expõe uma posição
sem atribuí-la a ninguém e, em seguida, para deixar claro que não é a dele
caracteriza-a negativamente. É o que basta. Mas não é trivial, porque se trata de uma
aposta, na medida em que ele não condena claramente o discurso ufanista. Corre o
risco de ser considerado incoerente.
61
3 CONTEXTUALIZAÇÃO, DESCRIÇÃO DO CORPUS E PROCEDIMENTOS
METODOLÓGICOS
62
da sociologia e da filosofia, ao remetermos, na análise dos dados, às noções de valores de uso
e de troca tomadas do marxismo.
Os dados, que recortamos das duas monografias analisadas, foram retirados de partes
do texto nas quais esperava-se uma articulação da teoria apresentada como base para a análise
de dados. Foi, justamente quando não percebíamos a articulação, que recortamos os dados.
Outro critério utilizado para selecionar o corpus que analisamos, foi a observação de trechos
da monografia em que havia muita repetição de um autor ou a identificação de uma quantia
excessiva de conceitos descritos em poucas linhas de texto.
Destacaremos algumas circunstâncias que nos levaram a selecionar esse corpus para
a investigação e revelaremos algumas informações importantes que circunstanciam a seleção
dos dados e justificam esta pesquisa.
63
áreas, como linguística, literatura e língua estrangeira. A grande maioria dos professores com
formação em linguística realizou o mestrado e o doutorado no mesmo programa de pós-
graduação, diferindo alguns quanto à linha de pesquisa em que se inseriram. Desse modo,
varia apenas a instituição em que tais professores realizaram a graduação. Além disso, grande
parte deles efetivou-se na universidade quando ainda eram só graduados.
O curso onde coletamos o corpus conta com cinco professores de língua portuguesa e
dois de linguística.
Dos professores lotados na área de língua portuguesa, dois fizeram mestrado em
estudos da linguagem, com pesquisa e estudos voltados para as áreas das práticas discursivas;
um, na área de educação, com pesquisa voltada para o ensino de língua e literatura; um, na
área de Letras, com pesquisa voltada para estudos lexicais sobre a escrita de professores; e
um, na área de sociolinguística, com estudos sobre a variação de gênero na oralidade. O único
professor concursado da área de língua portuguesa é doutor e está credenciado como docente
na pós-graduação.
As professoras lotadas na área de linguística são pesquisadoras da Análise do
Discurso. Uma delas está na universidade desde a implementação do curso de Letras e está
credenciada no programa de mestrado em linguística. Seu mestrado e doutorado foram
orientados por uma professora reconhecida nacionalmente como autora na área em questão. A
outra professora também realizou o mestrado e o doutorado na área da Análise do Discurso.
Observa-se que os estudos e pesquisas realizados na área de linguística do curso que
descrevemos são realizados a partir de fundamentações teóricas vinculadas à teoria da Análise
do Discurso, filiada aos estudos franceses, que possui base teórica nos estudos de Pêcheux
(1969) e Orlandi (2007).
64
Especificamente, nas áreas de língua portuguesa e linguística, observamos uma
situação pouco comum: somente as disciplinas com abordagens discursivas são consideradas
da linguística, e disciplinas introdutórias, como morfologia, e fonética e fonologia, são
consideradas de língua portuguesa. No caso dos professores da área de língua portuguesa que
são pós-graduados em linguística, a escolha entre uma ou outra disciplina leva em
consideração, unicamente, a área de concurso, e não a formação do docente. Tal situação
chegou a criar problemas em reuniões de atribuição de aulas, como no caso de um professor
que realizou a pós-graduação em nível de doutorado em linguística, mas por ser concursado
na área de língua portuguesa, sofreu resistência ou foi mesmo proibido de ministrar a
disciplina de sociolinguística por pressão de professores concursados na área de linguística.
Os alunos, ao final do curso, optam por uma área, seja a literatura, a linguística, a
língua portuguesa ou a língua estrangeira, para desenvolver pesquisas e, consequentemente,
produções monográficas. No caso desse curso, há uma grande procura pelas áreas de literatura
e de linguística, na qual, nos últimos anos, predominam os trabalhos em AD de linha francesa.
De maneira geral, cerca de quarenta por cento das monografias do curso são produzidas nessa
linha. Se considerarmos apenas os alunos envolvidos com atividades de iniciação científica
em outros momentos da formação, a percentagem de trabalhos fundamentados na AD chega a
mais de setenta por cento.
Em uma breve observação das ementas das disciplinas que se encontram na matriz
curricular do curso, por muitas vezes, encontramos bibliografias com referências pertencentes
a uma perspectiva teórica discursiva ou a áreas que não fazem parte do campo de estudo no
qual a disciplina se enquadra. Na maior parte das ementas, há sugestões de bibliografia básica
que estão fundamentadas na teoria da Análise do Discurso. Esse é o caso das disciplinas de
Políticas Públicas e Produção de Textos, cujos propósitos e currículos não fazem uso da
abordagem discursiva e nem estão relacionados a ela, mas que têm a leitura de obras
introdutórias específicas da AD indicada em sua ementa.
65
Além disso, o curso de graduação em Letras conta com uma disciplina específica em
Análise do Discurso, cuja ementa está voltada exclusivamente aos estudos do discurso de
linha francesa e dos autores brasileiros divulgadores dessa vertente. Na bibliografia da
disciplina, verificamos a existência de treze indicações: uma, de um autor reconhecido da área
e considerado como precursor (Pêcheux); dez indicações de produções de Orlandi, uma
pesquisadora brasileira de grande credibilidade, graças a sua militância em favor dos estudos
da AD, tanto que ela se autodenomina a autora que introduziu os estudos da AD no Brasil; e,
por fim, duas autoras nacionais, cujas produções contêm, na bibliografia, trabalhos de
Orlandi.
Também foi possível observar que, além da disciplina específica Análise do
Discurso, existem bibliografias da área nas ementas de Linguística I e II, que permitem ao
professor, de certa forma, não trabalhar com bibliografias introdutórias sobre o conhecimento
linguístico e a fundação da linguística como disciplina.
Outro caso que observamos envolve a disciplina Linguística Aplicada ao Ensino de
Língua Materna, que, reconhecidamente, tem seu currículo voltado à metodologia do ensino
de língua. Não há, pois, um propósito em se trabalhar com a abordagem dos estudos do
discurso, mas sua ementa é totalmente direcionada à análise discursiva de materiais didáticos
e de gramáticas, ou seja, ao contrário de fomentar reflexões sobre a mobilização de teorias em
atividades pedagógicas, como a prática docente, ou mesmo sobre como as teorias linguísticas,
de forma geral, contribuem com a formação do professor da rede básica de ensino,
predominam referências com uma abordagem de análise do discurso de instrumentos e de
manuais.
Em geral, teóricos de disciplinas com perspectivas diferentes guardam uma postura
pejorativa em relação à AD e não incluem, na bibliografia, obras da área. Por isso,
entendemos que, muitas vezes, mantém-se o estudo da Análise do Discurso mesmo em
disciplinas com objetivos e perspectivas diferentes desse campo da linguística, a fim de
melhorar sua aceitação.
66
disciplina Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Materna, temos a utilização de textos e a
recomendação de leituras da área da AD que não atendem a proposta da disciplina. Notou-se,
além disso, a ausência de obras constantes na matriz curricular do curso e de conteúdos e
objetivos que priorizem a realidade da sala de aula em lugar do ensino da teoria e do como
fazer análise de discurso.
No caso da disciplina mencionada, o plano de ensino tem os seguintes objetivos:
“proporcionar ao aluno condições de análise de materiais didáticos e gramáticas” e
“possibilitar a reflexão sobre as diferentes implicações que cada concepção sujeito/linguagem
produz no processo de ensino/aprendizagem”. O planejamento da disciplina tem foco no
desenvolvimento de análises discursivas de instrumentos e manuais de ensino, em vez de dar
atenção às teorias específicas de metodologia do ensino de língua materna, necessárias para
uma reflexão sobre a prática do professor de português em sala de aula.
Não queremos dizer que a teoria da AD de linha francesa não contribui com a
formação docente, ou que não é possível fazer uso desta ou de outra teoria em disciplinas
como as que citamos, mas, sim, que a situação observada aponta para a possível
transformação de disciplinas que preveem a distribuição de créditos mediante o
desenvolvimento de atividades de prática curricular e de aulas campo/estágio, com foco na
articulação do conhecimento das teorias linguísticas com a realidade do professor, em uma
continuação de disciplinas que têm, como objetivo, o conhecimento de conceitos e pontos de
vistas teóricos específicos. Prioriza-se, dessa forma, a parte teórica em uma disciplina cujo
propósito é o desenvolvimento da prática docente.
67
porém, ao analisarmos os trabalhos da primeira turma, defendidos em 2011, percebemos a
prevalência de estudos do discurso, seguida de alguns poucos trabalhos fundamentados por
estudos semânticos. Verificamos que, mesmo com a nomeação de duas linhas de pesquisa
diferentes, grande parte das produções realizadas é baseada na perspectiva teórica da AD de
linha francesa.
Nos textos das dissertações que analisamos, observamos que, dos doze trabalhos
defendidos, sete contam com o termo “discurso” ou “discursivos” no título, além de
utilizarem como referencial, majoritariamente, publicações da AD, das quais grande parte é
repetida em todos os trabalhos. Nas outras cinco dissertações, não há indicações da palavra
“discurso” ou “discursivos” no título, mas duas também utilizam como referencial uma
grande quantidade (maioria) de publicações da AD. Ou seja, dos doze trabalhos defendidos,
nove focalizam a pesquisa em estudos discursivos.
Nas três dissertações restantes, não há a predominância de obras da Análise do
Discurso como fundamentação teórica, mas elas utilizam-se dos estudos da semântica da
enunciação, relacionados com a perspectiva do materialismo histórico e da AD. Portanto
existe, dentro do programa de linguística, certa tendência aos estudos do discurso de linha
francesa, o que, consequentemente, influencia os alunos de graduação que almejam continuar
os estudos na pós-graduação.
Tais aspectos indicam a existência de um status, uma tendência ou mesmo um
domínio da AD na universidade e no campus onde nossos dados foram coletados.
Essa predominância constitui-se como a hierarquização de uma teoria dentro do
curso de Letras. Isso ocorre porque:
a) a produção desenvolvida pelos professores utiliza a AD como referencial;
b) dois professores de linguística possuem formação na área;
c) há a presença de obras da AD referenciadas em ementas, e sugestões bibliográficas
na matriz curricular do curso e em planos de ensino de disciplinas de linhas
diferentes;
d) há uma prática de ensino que aplica os conceitos da teoria independentemente da
disciplina ministrada;
e) existe uma disciplina com o papel de desenvolver os conceitos teóricos da teoria da
Análise do Discurso.
No último caso, é importante ressaltar que os professores da área tendem a incentivar
uma separação da AD de linha francesa e a grande área de linguística. Isto é, percebemos
68
discussões que elevam a perspectiva da Análise do Discurso de linha francesa como algo além
da linguística como um todo. Um fato que compreendemos como contraditório, pois a
linguística sempre se constituiu como ciência a partir da relação oposta, isto é, realizando
estudos que relacionavam diversas áreas e teorias e que possibilitaram o desenvolvimento e
fortalecimento de teorias como a da Análise do Discurso.
Isso evidencia a relevância de se pesquisar o reflexo dessa legitimação e
institucionalização de uma área de estudos dentro de um curso, por meio da análise de
produções acadêmicas desenvolvidas nas condições que apresentamos.
69
estrutura dividida entre um resumo, uma introdução, três capítulos de desenvolvimento, além
das considerações finais e referências bibliográficas.
O primeiro capítulo, “Considerações teóricas”, presta-se à apresentação das teorias e
conceitos teóricos que o aluno indica como fundamentação para o trabalho. O segundo
capítulo intitula-se “Configuração do corpus” e faz a descrição e apresentação do corpus que
o aluno pretendia analisar. Por fim, há um capítulo dedicado à análise de dados, nomeado com
o mesmo título da monografia.
3.9 Da metodologia
70
ciência e produção científica. Posteriormente, refletimos sobre o texto acadêmico e a
produção científica na universidade. Realizamos um estudo, através da leitura de textos sobre
a escrita, as revoluções científicas, os conceitos de heterogeneidade constitutiva e mostrada, a
linguagem como trabalho linguístico, as formações imaginárias, paráfrase, polissemia, a
incorporação e repetição de conceitos e os indícios de autoria. A partir dos estudos e reflexões
teóricas, retomamos a leitura do corpus mediada pela fundamentação teórica escolhida e
criamos categorias de análise como forma de auxiliar a observação dos dados. Enfim,
selecionamos alguns excertos que tabulamos e analisamos.
Utilizamos, como fundamentação teórica, a concepção de escrita de Coracini (2010),
que nos proporcionou uma maneira para entender a produção escrita em relação ao sujeito que
se inscreve a partir de seus textos. Isso nos possibilitou relacionar a escrita acadêmica com os
conceitos de revolução científica apresentados por Kuhn (2011). Essa é uma perspectiva de
produção científica que utilizamos como sustentação do que tratamos como produção de
ciência na universidade e, consequentemente, de como entendemos a produção de
monografias na graduação.
Após refletir sobre as concepções de escrita e ciência que poderiam nos auxiliar na
análise que propusemos fazer, elencamos a teoria da heterogeneidade enunciativa como
ferramenta de análise, a fim de observar a organização e a composição da escrita acadêmica,
no que diz respeito à marcação e à participação de outros dizeres no discurso, com o intuito de
identificar os efeitos de sentido gerados em razão dos modos de escrita de um texto
acadêmico, visto que os sentidos da escrita podem se diferenciar, em razão da forma como
relacionamos o discurso produzido àqueles que o atravessam.
Os conceitos de formação imaginária, de paráfrase, de polissemia e de linguagem
como trabalho e mercado permitiram explicar como os efeitos de sentido são produzidos na
escrita de um trabalho acadêmico. Nesse caso, dedicamo-nos a compreender a construção do
efeito de sentido de promoção do outro, categorizado pelas formas de escrita do texto
acadêmico. O conceito de indícios de autoria de Possenti (2009) possibilitou uma reflexão
sobre as atitudes que são desenvolvidas na produção de um texto com autoria.
As leituras e análises nos fizeram compreender que o efeito de sentido que
chamamos de promoção pode se desenvolver de três formas: pela promoção de um autor; pela
promoção de conceitos teóricos; pela promoção de uma teoria. Assim, pudemos analisar os
dados por meio de categorias que nos auxiliaram na identificação do efeito de promoção, seja
pela ausência de operacionalização da teoria, seja pela repetição maciça de ideias sem
71
conceituação ou mobilização nas análises, ou ainda em razão da construção de discursos de
divulgação do trabalho de uma teoria, sem relacioná-la com o que foi proposto na pesquisa.
Como recurso de análise, observamos como os conectivos e os diversos conceitos
teóricos, na escrita do texto acadêmico, podem demonstrar a articulação entre a reflexão
teórica, a metodologia do trabalho e a análise de dados. Partimos da premissa de que a análise
da escrita de um trabalho acadêmico proporciona a oportunidade de verificar como o aluno
mobiliza conceitos da teoria da Análise do Discurso e como, no intuito de articular teoria e
análise de dados, ele marca a voz do outro em sua escrita.
Analisamos a organização da escrita, observando o uso de citações e referências que
se materializam de modo a compor uma argumentação em prol do objeto de pesquisa, mas
que, inconscientemente, desenvolviam também um efeito de promoção. Por essa razão, foi
possível questionar até que ponto há uma interação entre o aluno e os autores das teorias
utilizadas como fundamentação na produção de uma monografia quando esta culmina na
construção de um trabalho acadêmico caracterizado pela repetição e reprodução de um
discurso já realizado e reconhecido na academia.
Ainda em tempo, vimos que a proposta de analisar a escrita de um trabalho de
conclusão de curso justificou-se, uma vez que a monografia é um trabalho que requer do
aluno de graduação a reflexão sobre sua formação teórica e a operacionalização de conceitos
em uma análise de dados, na qual ele demonstre ter traçado um percurso cognitivo, em que a
prática e a teoria se aproximam.
72
4 OS EFEITOS DE SENTIDO DE PROMOÇÃO E UMA PROPOSTA DE
FORMAÇÃO ESCRITA
73
No decorrer de nossa investigação, verificamos que os textos monográficos,
dependendo do modo de escrita estruturado, criam o efeito de promoção em níveis diferentes.
Mesmo que, aparentemente, trate-se de uma mesma coisa, esse efeito pode se desenvolver a
partir de três formas na escrita de jovens pesquisadores, promovendo a teoria, conceitos ou
autores específicos.
[…] é um dado imediato da consciência linguística dos locutores (saber uma língua
é poder produzir e identificar frases como “tendo o mesmo sentido”, mas é também
produto das construções teóricas dos linguistas (o número e a natureza das
paráfrases descritas é função direta do modelo de referência).
74
argumentação, redizer o que já foi dito para sustentar novas ideias e apresentar citações que
visem articular conceitos teóricos ou auxiliar na análise de um dado.
Fuchs (1985, p. 134) afirma que a formulação parafrástica se traduz por formas
características de emprego metalinguístico da linguagem. Observamos que esses empregos
estão presentes em produções de alunos graduandos. A polissemia, por sua vez, possui relação
com a paráfrase, considerando que ambas dizem respeito à produção de sentidos e que são
construídas a partir da reprodução de sentenças idênticas, parecidas ou diferentes. Por isso,
não podemos confirmar a produção de um mesmo sentido com o emprego de sentenças com
formas diferentes.
Orlandi (2007), retomando os estudos de Pêcheux (1969) sobre polissemia e
paráfrase, desenvolveu uma reflexão sobre os processos parafrásticos e polissêmicos,
denominando-os como “possibilitadores” de produtividade e criatividade. Para tanto,
defendeu a ideia de que a produção discursiva está diretamente relacionada à paráfrase,
quando se trata da reprodução e da repetição de discursos já consolidados ou mesmo
obsoletos e esquecidos. A autora relaciona a produtividade com tudo que é escrito,
independentemente do deslocamento em relação ao discurso do outro que constitui e compõe
toda produção.
Orlandi (2007) também afirma que a produção caracterizada pelo rompimento com o
já-dito, pelo deslocamento do discurso produzido em relação ao citado, é configurada pela
relação polissêmica, que auxilia a construção do processo criativo, garantindo, de certa
maneira, a produção de um discurso próprio, o que podemos compreender como uma escrita
que parte do outro, mas que se desloca e marca-se pela originalidade, acrescentando e
contribuindo com o conhecimento.
Inicialmente, para definir o que entendemos como promoção de uma teoria, partimos
de sua definição nos dicionários. No Aurélio, encontramos as seguintes acepções do termo: do
latim promotione “Ato ou efeito de promover. Elevação ou acesso a cargo ou categoria
superior; ascensão”; do inglês promotion “O conjunto de atividades que visam fortalecer a
imagem de uma marca, instituição, indivíduo, etc., […]” (FERREIRA, 1999, p. 1648).
Consideramos, portanto, que as marcações do outro na escrita acadêmica podem funcionar de
modo a destacar aquilo que outro afirma em detrimento do dizer de quem escreve.
As acepções dicionarizadas da palavra promoção funcionam como um ponto de
referência para conceituarmos o que estamos chamando de efeito de promoção. A nossa ideia
é que a escrita pode, de acordo com a forma que é organizada, denotar que aquele que escreve
está promovendo aquilo ou aquele que utiliza como fundamentação. Esse efeito reforça a
ideia de que o autor, a teoria ou o conceito que são citados como referência no trabalho – ou
em outras palavras, que se repetem e se redizem –, pertencem a uma categoria superior.
Isso demonstra que há um ponto em comum entre o que consideramos como efeito
de promoção de uma teoria, autor ou conceito, e o significado da palavra promoção
apresentado pelo dicionário, pois a ideia de “ato de promover” é a essência de nossa
conceituação do termo: característica do trabalho acadêmico inserido em uma comunidade
científica pela exaltação e reprodução de outro, cuja escrita não se desloca do já-dito, mas se
resume na repetição ou ainda na utilização de uma teoria, de um autor ou mesmo de um
conceito teórico tal qual uma propaganda que serve apenas como forma de legitimá-los, sem
delegar-lhes outra “utilidade”.
76
Também falamos em operacionalidade, em razão de acreditarmos que uma escrita
que origina, a partir da repetição, um efeito de promoção de uma teoria, de um autor ou de um
conceito teórico não desenvolve em sua estrutura uma operacionalização destes para
contextualizar sua investigação. Compreendemos, pois, que existe uma relação entre a falta de
articulação e mobilização da fundamentação teórica utilizada na proposta de pesquisa e a
produção escrita baseada na reprodução.
Nesse sentido, sustentamos que tal utilização de uma teoria funciona como um modo
de garantir a inserção e aceitação de um texto acadêmico em uma comunidade científica,
mesmo que os conceitos teóricos não estejam operacionalizados (utilizados em análise de
dados ou na metodologia, por exemplo) ou não tenham funcionalidade no trabalho em que são
empregados. Além disso, dependendo da forma como são desenvolvidas as marcações do
outro na escrita acadêmica, dar-se-á destaque àquilo que é citado do outro em detrimento do
dizer do pesquisador.
Ao falarmos em funcionalidade, estamos remetendo à representação e à relevância da
produção na sociedade, ou seja, como uma nova produção exerce função social na
comunidade, contribuindo com desenvolvimento social, respondendo questionamentos e
desenvolvendo novos conhecimentos. Se a escrita não se desloca do já-dito, dificilmente
poderá contribuir de forma produtiva para a sociedade, pois ela funciona como mecanismo de
exaltação do que já foi produzido anteriormente.
Sabemos que a produção caracterizada pelo efeito de promoção pode ser comparada
com outras de divulgação científica, porém é importante esclarecer que essa modalidade de
escrita que promove autor, teoria ou conceitos se diferencia daquela que tem como objetivo a
divulgação científica e que contribui com o desenvolvimento do conhecimento sobre a
ciência, mesmo que de forma diferente, através de um aprofundamento sobre um tema com
propósito de disseminá-lo/ vulgarizá-lo / difundi-lo.
O trabalho de Rossi-Landi (1985) trata a linguagem como trabalho linguístico e
mostra como são estabelecidos os valores funcionais e sociais de um discurso produzido. Ele
nos auxilia a descobrir as diferenças de se produzir um texto que tenha funcionalidade social,
que possa se consolidar como trabalho linguístico, e não como um processo de reprodução.
A partir de uma concepção marxista, Rossi-Landi (1985) define o trabalho
linguístico e o aproxima do trabalho de produção de material não linguageiro. Para Marx, o
trabalho é uma atividade de intervenção dos homens sobre a natureza, assim sendo, para
Rossi-Landi (1985, p. 64) “qualquer riqueza ou qualquer valor, qualquer que seja a acepção
77
em que se tomar, é o resultado de um trabalho que o homem realizou ou pode tornar a
realizar”.
O estudioso, ao considerar a produção linguística como trabalho, reconhece a fala e a
escrita como produtos da linguagem que não existem em estado natural; é necessária a ação
do homem para configurá-las como produtos. Rossi-Landi (1985, p. 66) afirma que essa
característica difere os humanos dos outros animais, visto que por meio da produção do
sujeito sobre a linguagem, “que constitui ‘o social’, ele forma historicamente a si próprio”.
Assim, o autor demonstra que o trabalho com a linguagem converte o sujeito à condição de
sujeito histórico-social e, consequentemente, o insere na sociedade.
A proposta de Rossi-Landi tem influência marxista, perceptível também no momento
que o autor defende a ideia da existência de um mercado linguístico, no qual “[…] as
palavras, expressões e mensagens circulam como mercadorias” (ROSSI-LANDI, 1985, p. 85).
Cada mercadoria assume, nesse mercado, um valor. De modo geral, o valor de uso é a função
socialmente atribuída a um dado produto, a sua utilização. O valor de troca é a possibilidade
de o homem trocar objetos de valores parecidos, ou seja, com uma mesma utilidade social.
Conforme Rossi-Landi (1985, p.88, grifo do autor),
A afirmação do autor nos apresenta a ideia de que para que um discurso obtenha
funcionalidade social é necessária uma relação dialógica entre um valor de uso e um valor de
troca. Em se tratando da linguagem, o valor de uso, relacionado à função específica do
produto, pode ser considerado como o sentido inicial de uma relação entre interlocutores, a
primeira referência que fazemos a uma palavra ou mesmo a um discurso. O valor de troca
compreende a troca de elementos que tenham valores de uso socialmente diferentes. Podemos
dizer que, no caso da linguagem como trabalho, existe a possibilidade de termos discursos
equivalentes, sem valor de troca, pois não há diferenças quanto ao valor de uso, considerando
que os “produtos” são iguais, ou seja, sem funcionalidades distintas.
Espera-se que o aluno, ao escrever um texto acadêmico, desenvolva os dois valores
em sua escrita, tanto o de uso como o de troca, para assim estabelecer uma relação dialógica
78
entre aquele que é citado e aquele para quem o texto é escrito. Um texto que tenha esses dois
valores será aquele cujo autor mobiliza a voz do outro para fundamentar a si próprio e
demonstra operacionalidade dos conceitos propostos que são retomados na análise dos dados.
Nesse sentido, partimos da ideia de que a teoria empregada em trabalhos acadêmicos
tem um valor de uso e um valor de troca que permitem que o texto funcione como um produto
a ser trocado e utilizado socialmente, visto que se trata de uma investigação que não se limita
ao uso de um discurso já estabelecido. Mas, diferentemente do exposto acima, o aluno pode
redigir um texto provido apenas do valor de troca, com uma escrita que se utiliza da troca do
seu dizer pelo do outro, um discurso sem valor de uso para o trabalho que foi proposto, tendo
em vista que as marcações da voz do outro não funcionam como argumentos ou
fundamentação da investigação proposta, mas sim como mecanismos textuais que
desenvolvem um sentido de destaque, que colocam em evidência uma determinada teoria.
Ao observar que a produção escrita pode ser reproduzida e repetida, constatamos que
existe um modo de escrita que desenvolve apenas um valor de troca, sem valor de uso, e
assim, leva à construção de um sentido que constitui o que chamamos de efeito de promoção.
Esse efeito de sentido é mais bem verificado nas análises que fazemos de trechos das
monografias.
Sabemos, contudo, que é possível utilizar uma teoria que garanta a produtividade
(valor de troca) de um texto e desenvolver um modo de escrita que vá além da reprodução do
já-dito, garantindo a criatividade e a autenticidade da produção (valor de uso e valor de troca),
mesmo quando estamos num processo de formação, que, independentemente de seu
conhecimento, gera pressão e tensão sobre aquele que escreve/produz.
4.3 A promoção de um autor, de conceitos teóricos e de uma teoria: uma análise dos
textos monográficos
Nesta seção, nos dedicamos à análise de excertos retirados de duas monografias, uma
produzida em 2009 e outra, em 2011. Tendo em vista o objetivo geral desta investigação, qual
seja analisar como uma teoria é utilizada na escrita de textos monográficos, nossa análise se
deterá sobre os mecanismos utilizados para referir-se às teorias, aos autores e aos conceitos
teóricos empregados como fundamentação e sustentação dos trabalhos. Considerando que
temos interesse em como o texto é construído, analisamos a articulação de citações diretas e
indiretas, que marcam a presença da voz de outro, como também o uso de conectivos, ilhas
79
textuais e demais recursos linguísticos que demarcam e evidenciam o discurso dos autores que
fundamentam o trabalho acadêmico em questão.
A partir das primeiras análises, verificamos o emprego técnico e mecânico de teorias,
visto que elas só estão presentes nos textos para dar conta da exigência de que todo texto
acadêmico deve ter um embasamento teórico. Denominamos tal uso como efeito de sentido de
promoção de uma teoria, uma vez que a mesma não tem funcionalidade na pesquisa (não
funciona como subsídio teórico ou metodológico e nem como subsídio para análise de dados).
A teoria, nesses trabalhos, tem apenas um valor de troca, pois eles reproduzem a história da
Análise do Discurso ou repetem os pesquisadores da teoria utilizada, contribuindo apenas para
a inserção, na comunidade acadêmica, de trabalhos consolidados pela reprodução.
O efeito de promoção ocorre de três formas: a promoção de um autor, a promoção de
um conceito teórico e a promoção de uma teoria. Não tomamos o segundo e o terceiro efeitos
de promoção como sinônimos, pois acreditamos que é possível construir um sentido no qual o
texto promove um conceito teórico sem necessariamente promover uma teoria, e vice-versa.
Promover uma teoria significa incorporar seus pressupostos, seus conceitos teóricos mais
amplamente empregados, conhecer seus autores mais significativos, apresentar o histórico e a
história da teoria, tais como a data de fundação e os avanços realizados por seus
pesquisadores, sem relacionar essas informações com a proposta de investigação. Por outro
lado, promover um conceito teórico limita-se ao emprego de um ou vários conceitos sem
necessariamente conhecer as condições de produção deles, sem explicá-los ou articulá-los
com os dados que compõem a pesquisa.
Essa divisão é feita a fim de auxiliar a análise, pois as modalidades não se excluem.
Na realidade, elas estão diretamente relacionadas. A seguir, mostraremos como cada tipo de
efeito de promoção pode se apresentar.
80
estabelecer relação com o discurso produzido ou articulação com a proposta de investigação.
A escrita que se utiliza de várias citações para reproduzir o discurso de um autor específico
constrói um efeito de sentido pelo qual o texto coloca em evidência o autor citado, em vez das
palavras de quem escreve.
A monografia do aluno A tem 37 páginas, divididas em: resumo; introdução; capítulo
um, dedicado às considerações teóricas; capítulo dois, dedicado à descrição do corpus;
capítulo três, de análise; considerações finais; e referências bibliográficas. A proposta do
trabalho do aluno é “analisar e compreender o funcionamento dos sentidos em nosso objeto de
estudo: o depoimento da dança do chorado”. O corpus do trabalho é um depoimento relatado6,
especificamente, a gravação de um depoimento da dança do chorado7. O objetivo da
investigação é verificar os sentidos que constituem a dança do chorado. As palavras-chave do
trabalho acadêmico são: memória discursiva, resistência, subjetividade, silêncio e deslizes dos
sentidos. Na introdução do texto, apresentam-se o objetivo e os autores utilizados como
fundamentação da pesquisa, sem justificação ou demonstração da relevância do trabalho
realizado.
Ao começar a análise, chamou-nos a atenção a recorrência de citações de um mesmo
autor na seção dedicada à resenha teórica. O capítulo de considerações teóricas é composto de
oito páginas e 44 parágrafos. Nestes, verificamos 25 marcações explícitas da voz de outro
autor, das quais 22 indicam uma autora conhecida na academia. Também observamos que, no
capítulo analisado, há catorze citações em discurso direto, introduzidas por conectores que
evidenciam uma tentativa de adequação ou concordância com o discurso citado, e 24
tentativas de reformulações parafrásticas de conceitos teóricos que, em sua maioria, foram
apresentados nas citações diretas de Orlandi.
Tal recorrência é significativa e parece apontar para a utilização de apenas um autor
para fundamentação do discurso produzido no trabalho, o que compreendemos como efeito de
sentido de promoção de um autor, considerando que, nessa parte do trabalho, apenas mais um
autor é citado, mas de forma a confirmar o discurso do outro autor excessivamente transcrito.
Para que possamos realmente dizer se e como ocorre essa promoção, precisamos analisar a
escrita do aluno, sobretudo em trechos que contenham as formulações do autor que tão
recorrentemente é citado na monografia. Para analisar esses dados e verificar como se dá essa
6
Consideramos como depoimento relatado, porque a transcrição foi feita a partir de entrevista. O aluno solicitou
a um morador da comunidade que desse seu depoimento sobre a dança do chorado.
7
Dança típica de comunidades quilombolas, nesse caso, do grupo que viveu na região da cidade de Vila Bela da
Santíssima Trindade, MT.
81
promoção, nos focaremos em uma análise dos conectivos empregados na seção dedicada à
exposição da teoria que embasa a monografia.
Compreendemos que as condições de produção8 podem influenciar no trabalho
realizado, porém nosso objetivo é, neste momento, analisar como é constituída uma escrita
que desenvolve um efeito de sentido de promoção, para, ao final do trabalho, discutir sobre a
formação escrita e refletir sobre os processos que contribuem e influenciam os modos de
utilização de teorias em uma produção acadêmica.
O recorte transcrito a seguir foi retirado da primeira monografia que analisamos.
Classificamo-lo como excerto 1, do aluno A. O trecho que analisamos está no início do
capítulo dedicado à análise. Trata-se da apresentação de uma citação recuada que traz uma
explicação sobre a diferença dos estudos da Análise do Discurso e dos conceitos de
transmissão da teoria da comunicação. Selecionamos esse excerto para mostrar como aquele
que escreve inicia o capítulo dedicado à análise de dados de sua investigação sem mencionar
o objeto ou mesmo apresentar o capítulo de análise, seus objetivos e a proposta daquela parte
do trabalho. O conceito utilizado como fundamentação do trabalho também não é
apresentado.
Anteriormente ao dado que recortamos, há um capítulo dedicado à transcrição do
depoimento relatado de um morador da comunidade quilombola de Vila Bela, nomeado como
Sr. Elísio.
EXCERTO 1 - ALUNO A
8
Segundo Possenti (2004, p. 369), para a AD, o conceito de condições de produção exclui definitivamente um
caráter “psicossociológico”, mesmo na “situação concreta”. Os contextos imediatos somente interessam na
medida em que, mesmo neles, funcionam condições históricas de produção. Ou seja, os contextos fazem parte de
uma história…
82
13 justamente pensar aí o discurso.
14 Como já discutimos sobre a noção de leitura (Orlandi, 2004), no relato, por se tratar de
15 um material simbólico, não podemos, na perspectiva da A. D, visar compreender o que
16 esse texto está querendo dizer, mas compreender como o discurso faz significar
17 determinados efeitos de sentidos e como esses efeitos de sentidos se significam e
18 funcionam. Em relação às discussões de Orlandi (2002, 2004), compreendemos o
19 relato como o espaço simbólico do discurso sobre a Dança do chorado.
20 Neste material simbólico de análise, os sentidos que se significam e que funciona fazem a partir
21 de um imaginário de unidade e de autoria. De acordo com Orlandi (2001:65), o imaginário de
22 unidade de sentidos produz a textualidade e o discurso imaginário da função-autor.
23 Falando da função-autor tenho dito o que ela constrói uma relação
24 organizada – em termos de discurso – produzindo um efeito imaginário
25 de unidade (com começo, meio, progressão, não contradição e fim).
26 E a isto chamo de textualidade. Toda vez que tenho isso, tenho
27 a função autor, colocando imaginariamente o sujeito na origem do
28 sentido e sendo responsabilizado pela produção.
29 Interessante ressaltar que esse imaginário de textualidade ocorre pelo gesto de
30 interpretação. É o gesto de interpretação que possibilitará a materialização do simbólico pelo
31 discurso. No depoimento sobre o Chorado, esse imaginário de unidade dos sentidos pode ser
32 compreendido ao tratar de maneira sequencial o primeiro, o segundo e o terceiro momento da
33 Dança do Chorado. (p. 20-21).
83
marcado. O interessante é que não se desenvolve o conceito de leitura nem a discussão a que
se fez alusão. O que se observa é uma marcação nova do mesmo autor para apresentar outro
conceito – o de “material simbólico” – e remeter à teoria utilizada como fundamentação
teórica.
Na sequência do texto, na linha 16, há uma marcação em itálico de uma concepção
do autor citado, que serve para introduzir, na linha 17, a ideia de efeitos de sentido sem
conceituá-la ou explicá-la. É como se se pressupusesse que todos sabem o que o texto e a
autora que é citada em diversos momentos querem passar ao falarem sobre efeito de sentidos.
Na linha 18, utiliza-se a locução “em relação” como forma de remeter a conceitos
que, supostamente, todos os leitores conhecem, pois não é desenvolvida uma reflexão sobre as
“discussões de Orlandi”. O único referencial são as citações diretas apresentadas no decorrer
do texto que consideramos como mais uma marcação do discurso de outro autor, como formas
de apresentar os conceitos do dizer referenciado.
Nas linhas 19 e 20, o autor do texto tenta estabelecer uma relação entre um conceito
teórico e o corpus que se propôs a analisar. Porém, não há desenvolvimento do conceito ou
articulação com o corpus. Pressupõe-se que todos os leitores compreenderão o que se quer
dizer com “relato como um espaço simbólico do discurso da dança do chorado”, mas não há
explicação sobre o que é “espaço simbólico” ou mesmo sobre o que é o “discurso da dança do
chorado”.
Ao final, nas linhas 21 e 22, uma nova marcação aparece. O uso do conectivo “De
acordo”, seguido do nome do autor, novamente citado, sinaliza uma tentativa de concordância
e conformidade. Na sequência, outros conceitos são apresentados sem explicação ou
conceituação, como, por exemplo, “imaginário de unidade e de autoria” e “discurso
imaginário da função-autor”. Esses conceitos são desenvolvidos em seguida, mas por meio de
uma nova citação direta da mesma autora já citada por diversas vezes.
É fato que, em diversos momentos, nossa análise parecerá repetitiva. Isso é uma
consequência do que conseguimos perceber no texto que recortamos como dado para analisar,
ou seja, nele, é evidente a repetição maciça de marcações de uma autora em citações diretas
ou em tentativas de paráfrases, como ocorreu entre as linhas 14 e 22, que revelam um modo
de escrita organizado de forma a dar voz para o outro.
Da linha 23 a 28, há, novamente, uma citação direta recuada, que apresenta o
conceito teórico citado na linha 22 – “função-autor” –, que não foi conceituado por aquele que
escreve, mas comentado a partir de paráfrases. A escrita apresentada no texto que analisamos,
84
demonstra que aquele que escreve apresenta e cita diversos conceitos, dando como referência
discursos de uma autora reconhecida e consolidada para conceituar e explicar o que
menciona. Não vemos, porém, a articulação de comentários com os discursos do autor que é
citado ou com o corpus da pesquisa do graduando. Tal característica é perceptível no texto
desenvolvido entre as linhas 29 e 33, quando aquele que escreve relaciona os conceitos
apresentados pelas citações do outro com o “depoimento sobre o chorado”, que é apresentado
como corpus da investigação.
O texto apresenta, portanto, diversos conceitos, mas não os explica ou articula com o
que se propõe a analisar. Podemos utilizar, como exemplos, os casos de “imaginário de
textualidade”, na linha 29, “gesto de interpretação” e “materialização do simbólico”, na linha
30, e “imaginário de unidade dos sentidos”, na linha 31. Esses conceitos teóricos não são
apresentados, explicados e conceituados, e apenas sua apresentação, juntamente com as
citações, não permite entender os conceitos nem dar conta do objetivo proposto no trabalho.
Outro fato a ser considerado é que a referência que o aluno faz a Orlandi (2002)
retoma conceitos que não são especificamente dessa autora. São, sim, termos consolidados na
comunidade linguística, como “material simbólico”, “significação”, “transmissão de
informação”, entre outros, cuja origem o aluno atribui à autora citada. Podemos entender essa
falha como uma dificuldade própria desse momento de escrita, pois é um período de
aprendizagem do graduando, e este gênero acadêmico (monografia) pode ser considerado
como a primeira escrita de um texto acadêmico resultante de uma pesquisa.
Esse tipo de produção que desenvolve um efeito de promoção e em que o autor se
utiliza da alegação da dificuldade de escrever como forma de justificar as falhas de escrita é
um exemplo de trabalho que, muitas vezes, é reconhecido na universidade. Além de se aceitar
essa produção como um trabalho inicial de monografia, o modo deficiente de escrita é aceito
como próprio à pesquisa, criando a ilusão de que ele contribui com a produção científica na
universidade, o que também questionamos, considerando a quantidade e a popularização de
trabalhos com essas características, os quais ganham a cada dia mais espaço e incentivo.
Ao relembrarmos nos indícios de autoria apresentados por Possenti (2009), notamos
que, na escrita que analisamos, eles não estão presentes. Aquele que escreve desenvolve
apenas a atitude de dar voz a outros autores, sem conseguir se distanciar do próprio texto para
articular seu discurso com o discurso dos autores que cita.
85
4.3.2 A promoção de conceitos teóricos
EXCERTO 2 – ALUNO B
87
ideia de que o discurso do outro tem prestígio especial, uma prática que pode ser observada no
“jogo” da academia, ou seja, é uma situação comum na universidade.
Em nosso entender, cria-se a imagem de que a reprodução de um discurso ao qual
estamos filiados e com o qual estabelecemos ligação e aproximação, seja por ser de um autor
reconhecido, seja para sermos respeitados pelos pares que utilizam a mesma teoria ou
conceito como fundamentação, é aceita como produção científica, em razão do efeito de
sentido de promoção de um autor respeitado e reconhecido, e não pela relevância da
investigação realizada.
Isso contraria, em certa medida, alguns critérios necessários para reconhecer um
texto acadêmico como produção científica, tais qual a construção de valor científico (grau de
relevância para a ciência) através da articulação entre conceitos teóricos e análise de dados.
Tal articulação poderia auxiliar o jovem pesquisador a responder os questionamentos que o
levaram a propor determinada investigação.
Não estamos problematizando vontades ou intenções, mas refletindo sobre a
possibilidade de que as diferentes formas de escrita estejam ligadas às maneiras como
realizamos a articulação do discurso de outros autores com aquele que estamos produzindo.
Além de constitutiva, a alteridade incita-nos a estabelecer relações com os discursos já
realizados, contudo, conforme estruturamos um dizer, podemos construir efeitos de sentido
que nem sempre condizem com o que estamos propondo, mas que não impedem que o
trabalho se constitua como produção.
Ao mencionarmos ligação, aproximação e filiação de um pesquisador a uma teoria,
referimo-nos ao conhecimento que aquele que escreve tem sobre autores ou teorias para
desenvolver seus trabalhos e atividades durante a formação acadêmica. Para realizar uma
produção escrita, desenvolve-se um vínculo com um ou mais pressupostos teóricos que, em
sua maioria, são instituídos por um autor reconhecido que já tenha contribuído com a
produção científica. São esses autores que utilizamos em citações com o objetivo de
confirmar nossos dizeres e garantir o caráter científico das pesquisas que realizamos.
Entretanto, dependendo da forma de se relacionar com uma teoria ou com um determinado
autor – isto é, como se utiliza os conceitos e discursos de outros autores –, da experiência de
orientação vivenciada e de diversas outras questões, os universitários desenvolvem diferentes
formas de produção escrita, e uma delas pode contribuir para que as investigações de
iniciação científica, como de monografias, estruturem-se por meio da repetição e de citações
soltas de autores renomados sem articulação com a proposta inicial do trabalho. Trata-se de
88
escrever um texto cuja teoria não funciona, predominantemente, como subsídio do trabalho.
Ao contrário, a produção escrita é que subsidia a teoria, colocando-a em evidência, exaltando-
a, o que constrói um sentido de que o texto promove quem é citado.
Algo parecido pode ser percebido no excerto 2, quando, na referência a Orlandi, na
linha 02, o aluno faz uso da locução verbal “podemos pensar” em conjunto com a preposição
“com”. A marcação evidencia que os pensamentos dele sobre as teorias que apresenta não são
apenas mediados pela voz que cita, mas são literalmente do outro. É interessante observar
essa ocorrência, lembrando que Authier-Revuz (2004), ao afirmar que a organização do
discurso se dá a partir do outro, não exclui dessa relação o eu. A utilização da locução verbal
“podemos pensar” como conectivo para marcar a voz do outro parece demonstrar que o texto
produzido é uma forma de reproduzir a forma de pensar do autor citado e que não temos uma
reflexão daquele que escreve.
Ainda analisando o dado anterior, notamos que o uso da conjunção conclusiva “desse
modo” na linha 04, estabelece uma retomada da citação de Orlandi nas linhas 02 a 04. Tal uso
é uma modalização em discurso segundo, uma maneira de quem escreve concordar com o
autor que foi citado antes do uso do conectivo em questão, o que pode ser considerado
inicialmente como um argumento de autoridade, uma forma de confirmar um discurso através
do dizer de um autor já reconhecido na academia.
As formas de marcação do discurso de outros autores na escrita dos textos que
analisamos controlam o discurso do aluno. Conforme percebemos, em grande parte,
evidenciam a voz do outro, do autor reconhecido. O texto faz remissão a conceitos que não
são empregados no trabalho, não funcionam como categorias de análise e não lhe dão
sustentação teórica, desenvolvendo-se um sentido de que o texto produzido é apenas um
mecanismo de demarcação da filiação teórica de quem escreve a uma autora renomada e
reconhecida como autoridade sobre a teoria utilizada.
Na linha 07, o conectivo “também”, um advérbio com valor de adição e ênfase, é
utilizado para destacar algo que será incluído no texto. Nesse caso, inclui-se o conceito de
memória antes da referência ao discurso de outro autor. Temos a menção de um novo termo
da teoria da Análise do Discurso, “memória”, que novamente não é explicado ou descrito por
quem escreve; sua conceituação é desenvolvida depois, a partir de uma nova citação do
discurso de outro autor.
Num segundo momento, esse mesmo “também” funciona como um recurso de
antecipação da citação de Payer. É uma maneira diferente de marcar a voz do outro. Dessa
89
vez, o conectivo apresenta a voz citada nas linhas 08 e 09 em uma ilha textual, que é uma das
formas de marcação da heterogeneidade discursiva, caracterizada pela transcrição.
A utilização do conectivo “sobretudo”, na linha 08, confirma a tentativa de se
estabelecer relação com o termo que o conectivo “também” introduziu e, assim, remeter a
voz do outro que é citada. Observamos que esses conectores são utilizados como mediadores
da citação e como uma marcação do discurso do outro que é citado, como constatamos com a
marcação do dizer de Payer nas linhas 08 e 09, apresentado pelos conectivos “também” e
“sobretudo”, que antecipam e demonstram uma aproximação com a citação do autor.
Além das linhas 08 e 09, encontramos ilhas textuais nas linhas 03 e 04. Elas são
formas de conotação autonímica, ou seja, de marcação do discurso do outro dentro do próprio
discurso.
A conotação autonímica pode ser representada pela apresentação de discursos entre
aspas, em itálico etc. Essas formas de conotação funcionam como um argumento de
autoridade na escrita daquele que redige o texto. Trata-se de uma maneira de argumentar que
consiste em utilizar o discurso de um autor reconhecido pela academia para confirmar o que
estamos dizendo, como forma de garantir a veracidade e obter respaldo científico para o que
escrevemos.
No caso do excerto 2, vemos que a escrita desenvolvida aponta para um
encadeamento de autores que confirmam o dizer daquele que foi marcado, mas não
demonstram uma posição enunciativa daquele que escreve nem apresentam uma citação que
confirme um dizer dele. A produção escrita é caracterizada pelas vozes dos outros autores
citados, como Payer nas linhas 08 e 09, que complementa o conceito apresentado por Orlandi
nas linhas 02 e 04.
A escrita desenvolvida com essas marcações que produzem um efeito de promoção
dos conceitos teóricos também é objeto de reflexão sobre o silenciamento da voz de quem
escreve. A produção em questão, ao se utilizar das citações de diferentes autores e
desenvolver o sentido de promoção, sem articular os pressupostos teóricos com uma análise
de dados, apaga a posição de enunciador daquele que escreve, que se reduz ao estatuto de
suporte, de porta-voz do dizer de outro autor, não realizando o trabalho que se propôs a fazer,
mas, mesmo assim, tendo sua produção reconhecida pela comunidade científica.
Como discutimos o encadeamento de conceitos teóricos sem explicação,
apresentamos, nas linhas abaixo, uma síntese dos dados, que confirma nossa hipótese,
considerando que o excerto já não está muito próximo.
90
01: conceito de “já-dito”
04: de “não-estabelecido”
05: de “consciência hegemônica”
07: de “teoria materialista de linguagem” e “memória”
91
de significação do sujeito do chorado no século XVIII e nos dias atuais. O dado que
analisamos foi retirado do início do capítulo intitulado considerações teóricas, no qual o aluno
se dedica a apresentar os conceitos a partir de longas citações recuadas de um mesmo autor.
Para tanto, decidimos recortar esse trecho com o intuito de demonstrar que o modo de
escrita que apontamos anteriormente não está presente apenas nos capítulos dedicados à
análise, mas também no momento de realização da resenha teórica.
EXCERTO 3 - ALUNO A
01 A Análise de Discurso (A.D) será a nossa filiação teórica para a análise que
02 iremos desenvolver. Partindo dessa concepção teórica,
03 propomo-nos a analisar e compreender o funcionamento dos sentidos instaurados em
04 nosso objeto de estudo: o depoimento da Dança do Chorado. Para melhor compreensão
05 da materialidade simbólica do depoimento, discutiremos as noções de discurso,
06 subjetividade, Memória Discursiva e silêncio, tratados por Orlandi (2002; 2004; 1997),
07 Haroche (1992) e tomando da descrição do relato sobre o depoimento do Sr. Elísio.
08 A necessidade de discutir as noções de Memória Discursiva e o silenciamento é a de
09 marcar o nosso lugar teórico na análise relativo ao Chorado. Além disso, a partir das
10 discussões teóricas, contribuir para a compreensão dos sentidos dessas noções em
11 funcionamento no depoimento.
92
O termo “Memória Discursiva”, utilizado nas linhas 06 e 08, é redigido com inicial
maiúscula, mesmo não funcionando aqui como substantivo próprio, o que parece destacar a
importância do referido conceito para o trabalho. A ênfase pode ser reconhecida como um
processo de conotação autonímica do dizer, que, para Authier-Revuz (2004), é uma forma de
heterogeneidade explícita que marca a tentativa de chamar a atenção para o que está sendo
escrito naquele momento. Além disso, tal uso parece marcar a importância dispensada ao
conceito de um autor reconhecido, pois é o único termo que aparece com inicial maiúscula,
detalhe que se soma à repetição do termo e à declaração, na linha 08, da necessidade de se
discutir a noção do conceito em questão.
Na linha 08, o aluno retoma dois conceitos apresentados na linha 06, destacando a
importância deles para o trabalho. Na linha 09, notamos que é marcada sua relação com os
conceitos utilizados através do uso do pronome possessivo “nosso”. É uma maneira de marcar
também sua relação com a voz do outro, isto é, demarcar a presença da teoria que fundamenta
o seu trabalho. Essas marcas aproximam aquele que escreve do lugar científico ocupado pelo
autor dos conceitos citados. Isso justifica, de certa forma, a ausência de uma definição e
aplicação dos conceitos; o texto os toma de outro e os repete, o que inclui aquele que escreve,
mesmo que textualmente, na comunidade científica que usa como aporte teórico. Essa
estratégia é uma forma de dar autoridade à voz do autor do texto em questão.
O aluno A propõe uma discussão sobre os conceitos demarcados, conceituados pela
referência e pela remissão ao discurso de outro autor citado, e, mesmo se tratando de um
capítulo dedicado a apresentar a fundamentação teórica, ele não faz comentários em grande
parte do texto nem dá início à discussão que anuncia. A partir das linhas finais do excerto até
o final do capítulo, prevalece o mesmo modo de escrita analisado. Portanto, não há relação
entre os sentidos produzidos pelos comentários daquele que escreve e o discurso de outros
referenciados; na realidade, o texto reproduz os sentidos do dizer dos autores citados.
Para Authier-Revuz (2007), fazer alusão ao outro é fazer reemissão aos sentidos de
outro autor. Esse processo nem sempre é satisfatório, pois pode levar o enunciador ao
fracasso. A remissão ao outro funciona a partir da construção de um diálogo entre os sentidos
produzidos por quem escreve e por quem é citado. Contudo, no dado que analisamos, as
ideias propagadas pelo autor do texto são determinadas pela reprodução dos conceitos e
dizeres de outro; não há relação entre sentidos produzidos, pois temos uma predominância de
sentidos reproduzidos.
93
De acordo com o conceito de trabalho linguístico de Rossi-Landi (1985), o modo de
escrita que analisamos não desenvolve um valor de uso, pois não demonstra funcionalidade
social e caracteriza-se pela reprodução dos sentidos do dizer de outro autor utilizado como
referência. A escrita assim caracterizada não se consolida como trabalho linguístico, como um
ato linguageiro com valor de uso e valor de troca. Também não há operacionalidade dos
conceitos teóricos com a proposta de trabalho, visto que, em diversos momentos, como
aqueles que recortamos como excertos, não há uma articulação dos conceitos com o corpus
que a pesquisa propõe analisar.
A heterogeneidade constitutiva, na escrita que analisamos, resulta em um texto que
desenvolve o efeito de promoção dos conceitos da teoria da Análise do Discurso. Estes são
apresentados de diversas maneiras, sem conceituação ou articulação com os dados, o que pode
ser compreendido como uma forma de prestigiá-los e evidenciá-los.
O excerto 4 é um trecho da monografia no qual se faz uma investigação sobre os
sentidos instaurados no sujeito da dança do chorado. Também retiramos esse trecho do
capítulo dedicado às considerações teóricas e à descrição dos conceitos da teoria utilizada
como fundamentação do trabalho. Nesse exemplo, é possível observar que, por diversas
vezes, são feitas remissões para descrever os conceitos presentes no excerto, sem
operacionalizá-los. De certa forma, esse uso caracteriza tanto um efeito de promoção do autor
como dos conceitos. Entendemos, porém, que estes são contextos diferentes e, pensando na
classificação dos dados, decidimos agrupá-los em categorias que apresentavam
predominantemente uma ou outra característica.
Este exemplo que analisaremos estava precedido de uma tentativa de explicação do
conceito de silêncio fundante.
EXCERTO 4 - ALUNO A
01 É no momento em que o derrotado para o senado está se significando que se pode perceber
02 o funcionamento do silêncio fundante. O vencido na disputa do senado se significa no silêncio
03 pelas falhas da língua.
04 Se ao contrário disso funcionasse como ausência de palavras, seria considerar a língua como
05 completa, sem falhas. O silêncio está na própria palavra em que os sentidos se significam mais do
06 que aquilo que foi dito.
07 Já a política do silêncio se constitui em: o silêncio constitutivo e o silêncio local. O silêncio
08 constitutivo está em relação ao que é preciso não dizer para poder dizer (Orlandi, 1997: 76). O
09 silêncio local está relacionado à censura: É o da interdição do dizer (Orlandi, 1997: 75). De
10 acordo com Orlandi, compreendemos a política do silêncio a partir do eixo horizontal, ou seja,
11 na formulação dos sentidos.
12 Na política do silêncio é permitido dizer determinada coisa em vez daquilo que não é permitido
94
13 se significar. Ou então, se diz tal coisa no lugar daquilo que é proibido dizer. É colocada em
14 questão a liberdade do sujeito em dizer certas coisas dentro de uma regra imposto pela política
15 É com base nisso que Orlandi trabalha o silenciamento:
16 A diferença entre o silêncio fundador e a política do silêncio é que a política do silêncio
17 produz um recorte entre o que se diz e o que não se diz, enquanto o silêncio fundador não
18 estabelece nenhuma divisão: ele significa em (por) si mesmo. (ORLANDI, 1997: 75).
Entre as linhas 01 e 03, o aluno faz uma retomada de um exemplo utilizado por outro
autor citado anteriormente para explicar o conceito de silêncio fundante. Nas linhas seguintes,
04 a 06, há outro parágrafo no qual o autor da monografia reformula o mesmo dizer que foi
apresentado momentos antes através de citações que definem o conceito abordado nas
primeiras seis linhas do excerto.
Nas linhas 07 e 08, os conceitos “política do silêncio”, “silêncio constitutivo” e
“silêncio local” são apresentados. Já nas linhas 08 e 09, temos a conceituação dos termos
apresentados anteriormente. Para realizar a conceituação dos termos, o texto faz reemissão a
Orlandi através do discurso direto, que evidencia o dizer do outro.
Ao final da linha 09 e no início da linha 10, utiliza-se o conectivo “de acordo”, um
recurso linguístico que, conforme Authier-Revuz (2004), funciona como um mecanismo de
controle do dizer, ressaltando a adequação com o dizer do outro. É a construção de um
discurso indireto que, seguido do verbo “compreendemos”, demonstra a tentativa de quem
escreve de se incluir no lugar de teórico da Análise do Discurso. O uso da conjunção “ou
seja”, na linha 10, marca a tentativa de quem escreve de construir um dizer a partir do que já
foi dito, isto é, uma reformulação que remete a um dizer do outro para explicar o que foi
afirmado anteriormente.
Entre as linhas 12 e 15, temos um texto característico daquele que escreve a partir da
paráfrase, que remete ao outro e que rediz as afirmações do autor citado, porém tomando o
discurso para si com outras palavras. Essa característica é comum nos textos de iniciação
científica e de capítulos dedicados à apresentação da fundamentação teórica, no entanto, no
excerto 4, não se granjeia uma continuidade satisfatória para essa produção, que consistiria
em uma forma de o autor relacionar o que está reformulando com o que cita. Logo após o
trecho comentado, entre as linhas 16 e 18, há uma citação recuada que, em vez de confirmar o
dizer daquele que escreve, traz novas informações, a conceituação e a explicação definitiva do
conceito que foi tratado até então.
Segundo Authier-Revuz (2007), a alusão funciona com o desenvolvimento de um
diálogo entre aquele que escreve (o aluno) e o outro (um autor autorizado na academia). No
95
entanto, a escrita analisada faz uso da alusão de uma maneira que transcende a ideia de
remissão e empréstimo, originando um texto caracterizado por construir um sentido de
promoção dos conceitos teóricos empregados em sua investigação. Esse efeito prestigia e
exalta os conceitos teóricos empregados, de forma a auxiliar o trabalho a se inserir numa
discursividade, sem utilizar-se da fundamentação teórica como mecanismo de argumentação e
sustentação do que propôs enquanto investigação. Com isso, temos um processo instaurado,
no qual aquele que escreve não duplica seus ganhos, mas direciona-se para a perda de seus
lucros e, por conseguinte, para o fracasso.
Diferente dos excertos 3 e 4, que foram retirados do capítulo dedicado à descrição da
fundamentação teórica do trabalho monográfico, o próximo dado foi selecionado do capítulo
dedicado à análise. Nesse capítulo da monografia, há 24 citações, em catorze páginas de
análise, sendo onze de uma mesma autora, o que podemos entender como uma demonstração
de prevalência de uma voz como fundamentação, perceptível em todo o trabalho.
Antes do trecho transcrito no excerto 5, temos a conceituação de dança do chorado e,
depois, uma explanação sobre o que é considerado importante nos enunciados produzidos que
compõem o corpus do trabalho. Para o autor, o importante “não são os sentidos se
significarem de acordo com a norma padrão”, mas sim, para o seu ouvinte. Ele instaura um
questionamento sobre como um sujeito-ouvinte alcança a significação, mesmo não havendo
correspondência do dito com a gramática normativa. O informante da monografia aborda as
projeções imaginárias do sujeito ouvinte.
EXCERTO 5 - ALUNO A
96
17 pode pensar o arquivo: a memória inscreve o discurso em filiações e o sentido que as representa está
18 sempre sujeito a deslocamento. As diferentes versões são efeitos das relações de sentido (relação de
19 um discurso com outros), das relações de força (relação de um discurso com o “lugar” de que é
20 falado. Nesta perspectiva, como vemos, o equívoco é fato estrutural implicado pela ordem do
21 simbólico. (ORLANDI, 2001:131).9
9
Citação recuada realizada pelo aluno.
97
escreve confirma o dizer do outro, ao contrário de as citações do autor referenciado
reafirmarem e sustentarem o discurso que é produzido.
Na linha 12, o uso do conectivo “segundo” é uma forma de remissão ao outro, uma
marca de heterogeneidade mostrada, que aponta para a utilização da voz de outro autor. Nas
linhas 12, 13 e 14, temos o uso de uma citação direta do texto da autora que fundamenta
teoricamente o trabalho. Depois disso, após tentativas de concordância e adequação à voz do
outro, aquele que escreve usa mais uma citação recuada entre as linhas 16 e 21, demarcando
explicitamente o dizer do outro.
Tal prática não é considerada como problema para um trabalho acadêmico, pois
sempre é utilizada como forma e estratégia de argumentação. Porém, nos exemplos que
analisamos, não existe diálogo entre os sentidos produzidos pelos discursos de quem escreve e
o dizer dos autores citados; predominam os sentidos produzidos pelo discurso do outro que foi
reproduzido no texto da monografia.
Partimos da formulação de alusão de Authier-Revuz (2007) para mostrar que houve
problemas com o uso desse recurso, considerando que não presenciamos uma relação entre os
sentidos produzidos. O texto abusa da remissão direta aos dizeres do outro, o que passa a ideia
de que os sentidos da escrita são quase em totalidade produzidos a partir da reprodução.
De acordo com Rossi-Landi (1985), o que é produzido no meio acadêmico como
linguagem pressupõe alguma funcionalidade, tal como responder questionamentos que
contribuam com a produção científica e, consequentemente, com a vida da população em
geral. Entretanto não conseguimos identificar essa função social em exemplos de escrita como
os que analisamos, pois o texto prioriza e, de certa forma, limita-se a repetir e desenvolver o
dizer de outro autor, não contribuindo com a produção científica e com a consolidação de um
paradigma, no sentido de preencher lacunas de uma determinada perspectiva teórica (Kuhn,
2011).
Ao retomarmos os conceitos de valores de uso e troca de Rossi-Landi (1985), vemos
que esse modo de escrita atende apenas um valor de troca, pois não há um valor específico e
utilitário para o texto que é construído; o seu valor é o de troca, é o valor do discurso do outro
que é trocado pelo texto daquele que escreve. Com isso, não temos uma relação entre os dois
valores para que se estabeleça uma funcionalidade social que confirme a produção como
trabalho linguístico.
A ausência do valor de uso possibilita uma leitura de que a produção escrita em
questão desenvolve, além do sentido de promoção, a banalização da teoria e de conceitos
98
teóricos, citados e reproduzidos de diversas formas. Aparentemente, apenas a repetição do já-
dito garante a aprovação e aceitação do trabalho acadêmico. A teoria não precisa,
necessariamente, contribuir com a investigação, que, muitas vezes, não tem relevância, pois a
ideia central é de que o importante é reproduzir conceitos e teorias que já estão consolidados
na comunidade científica.
Por diversas vezes, durante a análise do corpus, a monografia patenteia uma escrita
caracterizada por comentários soltos, que para serem reconhecidos são relacionados a citações
de autores sobre os conceitos que supostamente utiliza para analisar os dados. O locutor
desenvolve a análise de forma infundada, faz reflexões genéricas sobre o relato que investiga
e tenta convencer que, apenas amarrando comentários gerais com a voz de outro autor,
realizou e concluiu uma pesquisa. O leitor, nesse modo de escrita, é considerado como um
conhecedor da teoria utilizada na análise, alguém que compreende conceitos utilizados no
trabalho, tais como os que já mencionamos: subjetividade, memória discursiva, entre outros.
Vemos ainda que o texto da monografia não relaciona os conceitos ao corpus que propôs
analisar. O aluno, em vez de comentar e discutir os conceitos apresentados, traz novas
citações que apresentam o papel histórico e os objetivos da teoria da Análise do Discurso. A
monografia caracteriza-se como um resumo das vozes de outro autor, com marcações dos
conceitos sobre a natureza da AD, qual o seu papel e como deve ser utilizada. É importante
ressaltar que, tanto no capítulo de resenha teórica quanto no de análise, notamos a
concentração de citações de um mesmo autor associada à superficialidade da análise e de um
trabalho linguístico limitado a relacionar as teorias mobilizadas à reprodução do dizer do
outro. Para a próxima análise, selecionamos um excerto da monografia do aluno B, retirado
do primeiro capítulo da monografia, que é estruturado a partir de uma resenha teórica dos
conceitos que supostamente fundamentam a pesquisa feita pelo aluno para desenvolver seu
trabalho.
No texto original, o excerto é precedido pela apresentação de uma questão “basilar”
para o trabalho: “a compreensão do primado do interdiscurso”. Para isso, quem escreve cita os
conceitos de heterogeneidade constitutiva, “Outro”, modalização autonímica, não
coincidências, psicanálise lacaniana, dialogismo bakhtiniano e interdiscurso de Pêcheux, sem,
em nenhum momento, descrevê-los ou fazer comentários acerca deles.
EXCERTO 6 – ALUNO B
99
02 metaenunciativa, que é a modalização autonímica do dizer, visa compreender as
03 formas lingüísticas ou discursivas, através das quais se realiza um desdobramento
04 metaenunciativo. Neste sentido, Authier-Revuz, nos apresenta a configuração da
05 forma de auto-representação do dizer no campo da metalinguagem e da enunciação.
101
No primeiro capítulo da monografia, temos, de fato, a realização do que foi proposto
no capítulo inicial: apresentar a teoria que irá subsidiar o trabalho. Mas, de maneira geral, o
texto monográfico, como demonstrado em alguns excertos, não articula os conceitos teóricos
que apresenta, e consolida a escrita do trabalho na reprodução do discurso de outros autores
reconhecidos, sem defini-los, cotejá-los ou mesmo informar ao leitor a forma como esses
conceitos são utilizados na proposta de pesquisa.
Observamos que houve uma tentativa de construir um discurso relatado indireto –
aquele que apresenta as marcações do discurso do outro –, no entanto, a produção escrita
consolida-se apenas repetindo a voz do outro. Há a apresentação excessiva de conceitos que,
ao final, não funcionam como estratégia de argumentação e somente marcam uma
concordância com quem é citado. Esse modo de escrita desenvolve um efeito de sentido de
promoção, divulgação e exaltação do discurso dos autores que são citados.
EXCERTO 7 – ALUNO A
01 A A.D que teve suas origens na França na década de 60 (sessenta) com M. Pêcheux,
02 nasce a partir da leitura de Lacan, na psicanálise; de Althusser, em relação aos sistemas
03 ideológicos marxistas; e de Pêcheux, quanto ao sistema linguístico de Saussure.
102
considerando que a retomada da origem da teoria pode ser entendida como uma forma de
demonstração de conhecimento sobre seus conceitos e pressupostos.
Esse processo, que se caracteriza não só como atividade do jovem pesquisador, mas
também como uma característica do “jogo” acadêmico, ressalta certo conhecimento sobre a
teoria que fundamenta a pesquisa, o que pode, na visão de determinados entes da comunidade
acadêmica, garantir a aceitação e aprovação do trabalho. Contudo, o desenvolvimento da
produção escrita resultante de uma investigação, mesmo que de iniciação, a explicação e
articulação de conceitos teóricos com uma análise, perde-se do texto.
O excerto 07 evidencia um modo de escrita acadêmica que entende os conceitos da
teoria como representativos de um conhecimento universal, comum a todos os leitores do
texto. Depois dele, temos duas citações recuadas para explicitar as características do estudo da
Análise do Discurso, sem definir como os conceitos apresentados contribuirão com a análise
proposta. São citações sobre a história e funcionalidade da teoria da AD. O locutor cita a voz
do outro para explicar o papel da teoria que utiliza, mas não mostra como ela poderia auxiliar
a pesquisa que realiza.
É interessante ressaltar que os trabalhos da Análise do Discurso recorrem
frequentemente à descrição histórica da teoria, e entendemos que isso não é algo proibido ou
desqualificado. Acreditamos que tal prática é outra maneira de assegurar a aceitação de um
trabalho acadêmico. Mas como considerar como produção científica o texto que não articula
conceitos com a análise de dados, repete os dizeres de outros autores e dedica-se a narrar a
história da teoria, sem relacionar tudo isso com a proposta de investigação? Temos, então, a
construção de um sentido de que o texto, em vez de contribuir para a produção de um trabalho
científico, repete conceitos e a história da teoria, e, mesmo assim, os pares da comunidade
científica no qual o trabalho pretende se inserir o aceitam e o aprovam.
EXCERTO 8 - ALUNO A
01 Como já discutimos sobre a noção de leitura (Orlandi, 2004), no relato, por se tratar de um material
02 simbólico, não podemos, na perspectiva da A. D, visar compreender o que esse texto está querendo
03 dizer, mas compreender como o discurso faz significar determinados efeitos de sentidos e como
04 esses efeitos de sentidos se significam e funcionam. Em relação às discussões de Orlandi (2002,
05 2004), compreendemos o relato como o espaço simbólico do discurso sobre a Dança do Chorado.
06 Neste material simbólico de análise, os sentidos que se significam e que funcionam o fazem a partir
07 de um imaginário de unidade e de autoria. De acordo com Orlandi (2001: 65), o imaginário de
08 unidade de sentidos produz a textualidade e o discurso imaginário da função-autor.
09 “Falando da função-autor tenho dito que ela constrói uma relação organizada – em termos de discurso
10 – produzindo um efeito imaginário de unidade (com começo, meio, progressão, não contradição e
103
11 fim). E a isto chamo de textualidade. Toda vez que tenho isso, tenho a função autor, colocando
12 imaginariamente o sujeito na origem do sentido e sendo responsabilizado pela sua produção”.
104
Segundo Rossi-Landi (1985), esse modo de escrita pode até assumir um valor de
troca, pois a voz de outro tem seu uso resgatado, mas não é possível perceber um valor de uso,
já que a escrita não satisfaz uma necessidade comunicativa para que possa ser considerada
como um exemplo de trabalho linguístico; a monografia limita-se a repetir sucessivamente o
dizer de outro, sem contribuir para a construção de novos sentidos. Cria-se um efeito que
aponta para uma escrita com o objetivo promover o já-dito, denunciada pela falta de indícios
de autoria daquele que escreve o texto. Na realidade, podemos dizer que o objeto proposto
pelo trabalho fica esvaziado e a teoria acaba ganhando mais status com o processo.
105
graças a sua inserção junto aos pares, que a legitimam e a reconhecem como produção
científica, independentemente da contribuição com o conhecimento científico.
A formação imaginária daquele que escreve pode ser construída a partir do conceito
de produção acadêmica defendido por seus pares, segundo o qual, mesmo que a escrita
desenvolva efeitos de promoção, o trabalho será validado e aceito como produção científica.
Uma formação imaginária que contraria tudo o que vimos demonstrando em nosso trabalho,
ou seja, que discorda da necessidade de se operacionalizar os conceitos teóricos de diversos
autores numa articulação com a análise de dados e, assim, deslocar-se do já-dito para, a partir
do outro, construir um discurso que garanta a propriedade de sua investigação científica.
106
universidades perante as agências financiadoras em detrimento de uma reflexão sobre a
qualidade das investigações. Mesmo um jovem pesquisador no início de atividades de
investigação sofre cobranças em relação às publicações, sejam por questões relativas às bolsas
ou mesmo para atender solicitações de disciplinas e projetos de iniciação científica.
As formas de relacionamento entre as universidades e as instâncias governamentais e
privadas de financiamento, com certeza, exercem influência sobre o modelo de produção que
é desenvolvido na academia. Essa situação está relacionada diretamente a outra questão que, a
nosso ver, também é muito importante: a relação do orientando com seu orientador. Trata-se
de uma relação institucional, que também envolve cobranças, pressões e problemas.
A relação com o saber e com a produção escrita desenvolvida na universidade está
diretamente ancorada no papel institucional do professor orientador, já que, na iniciação
científica, o aluno de graduação se insere na pesquisa de seu orientador, e seu projeto é, por
vezes, o recorte de um projeto maior do docente que o orienta. Tal configuração do fazer
científico pode acarretar alguns problemas, como uma não implicação do aluno de graduação
com a proposta de pesquisa que desenvolve, visto que sua investigação parte de outro sujeito,
o seu orientador. O orientador, todavia, é essencial, sobretudo para esse aluno de iniciação
científica, cuja monografia, muitas vezes, é a primeira experiência de escrita de um texto
acadêmico. Nesse sentido, sobressaem o acompanhamento e a avaliação do professor
orientador que questiona, corrige o texto produzido pelo orientando e intervém nele, quando
necessário. Assim, acreditamos que a produção escrita de uma monografia está relacionada
diretamente com a relação que o autor do trabalho estabelece com seu professor/orientador.
A relação com o orientador ultrapassa a questão de correção. É uma relação
institucionalizada, pois não há possibilidade de se desenvolver uma produção acadêmica, seja
na graduação ou na pós-graduação, sem o amparo e a orientação de um docente. Por isso,
além do papel do orientador na formação do aluno, temos que levar em consideração a
possível legitimação do trabalho acadêmico proporcionada pela figura institucional do
docente, que autoriza o modo de escrita da produção desenvolvida pelo aluno de graduação.
Sobre isso, afirma Warde (2002, p. 169):
107
Pensando na importância e influência que a orientação desempenha sobre a produção
escrita de monografias, podemos afirmar que: “O texto acadêmico sobre o ensino de Língua
Portuguesa acaba assumindo mais um caráter de oferenda ao mestre que está sendo cultuado.
É isso que move a imitação e a paráfrase no interior dos textos produzidos na Universidade”
(BARZOTTO & ALMEIDA, 2013, p. 78). Essa noção envolve não apenas os trabalhos
acadêmicos relacionados ao ensino de língua portuguesa, mas estende-se a todas as produções
escritas desenvolvidas na universidade.
Assim, as condições de produção bem como as relações institucionais que o jovem
pesquisador estabelece com seu orientador podem influenciar as produções de textos
acadêmicos e, de certa forma, contribuir com o modo de escrita que desenvolve efeitos de
sentido como o da promoção.
É uma proposta que defende um contato dos alunos com o processo de investigação
nas diversas áreas de conhecimento que são apresentadas e ensinadas nas dezenas de
disciplinas no decorrer do curso desde a entrada do graduando na universidade, seja através da
elaboração de projetos, seja na produção de trabalhos acadêmicos dos diversos gêneros
(artigos, resenhas, análises, etc.). Assim, o aluno desenvolve uma intimidade com a escrita e a
produção científica.
108
Compreendemos que essa ideia não deve ser confundida com ensinar metodologias e
regras da escrita de trabalhos acadêmicos ou com a prática de professores orientadores de
levarem seus alunos a desenvolverem atividades em seus projetos de pesquisa.
Assim, defendemos aqui uma proposta de que, ao se desenvolver uma formação
fundamentada na ideia de pesquisa na graduação, podemos auxiliar no contato e
conhecimento com a pesquisa e a produção científica, desenvolvendo uma intimidade do
aluno com a produção escrita e uma experiência sobre investigações, elaborações de
problemas e questionamentos, que será utilizada durante toda a sua graduação.
109
A partir do trabalho de escrita, podemos pensar em uma formação que viabilize o
distanciamento entre produção escrita e registro de palavras no papel em branco. Para melhor
compreensão do que estamos dizendo, retomamos o conceito de escrever, apresentado por
Riolfi (2003, p. 48):
110
trabalho que contribua para uma formação na qual o aluno mantenha contato e aprimore sua
experiência com a produção escrita.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Iniciamos esta seção retomando a pergunta que permeou e desencadeou toda nossa
proposta de investigação: como um jovem pesquisador utiliza uma teoria para se inserir em
uma dada comunidade científica?
O uso de fundamentação teórica nos trabalhos de investigação é algo normal e
necessário para a produção de trabalhos acadêmicos como monografias. Ele garante a
credibilidade de produções escritas, funcionando como argumentação e sustentação do dizer
daquele que escreve. Muitos são os modos pelos quais um jovem pesquisador se relaciona
com uma teoria; um deles, no entanto, pode evidenciar o desenvolvimento de um efeito de
sentido no qual o texto promove o discurso do autor utilizado como referência e
fundamentação da monografia.
O desenvolvimento desse efeito de sentido pode garantir a aceitação e a aprovação
do trabalho acadêmico por pares de uma comunidade científica, bem como a publicação em
revistas e uma boa avaliação do trabalho em bancas de monografias, independentemente de a
produção escrita desenvolver uma articulação e mobilização da fundamentação teórica com
uma análise de dados que auxilie a resolução do questionamento proposto na investigação. De
fato, investigações científicas que propõem a análise de um corpus articulada a conceitos
teóricos e uma reflexão da teoria que fundamenta a investigação caracterizam-se por outro
modo de escrita, no qual o autor do trabalho acadêmico faz uso dos discursos de outros como
forma de argumentação e sustentação. Assim, estabelece-se a construção de um diálogo entre
o pesquisador e outros pesquisadores que já estudaram o assunto que é tratado no trabalho.
A detecção do efeito de sentido de promoção foi possível a partir da análise dos
recursos linguísticos utilizados por quem escreve. Isso nos permitiu verificar a existência de
uma forma de escrita que não se utiliza da voz do outro como sustentação do seu próprio
dizer, mas que repete e reproduz o que deveria ser utilizado como argumentação. Observamos
que esse modo de escrita repetidora dá origem a uma ideia de hierarquia de conceitos teóricos
e cria a imagem de que o texto acadêmico funciona como meio de transmissão e repetição do
já-dito.
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Nosso trabalho não desconsidera que a presença da voz do outro é constitutiva do
dizer, mas procura ressaltar que há diversos modos de utilizar ou dar voz ao dizer do outro.
Podemos utilizar a voz do outro como argumento do dizer ou, no lugar disso, construir um
modo de escrita caracterizado pela repetição da teoria alheia. Nesse último caso, há a
possibilidade de uma inversão do papel do autor com o daquele que funciona em seu texto
como referência, ou seja, o discurso de quem escreve exerce a função de evidenciar a
participação do outro que é citado.
Esse efeito de sentido passa a ideia de divisão da responsabilidade do dizer entre
aquele que escreve e aquele que é citado. Dependendo do modo como os conceitos de outro
autor são utilizados, a escrita pode também caracterizar-se por evidenciar e destacar um autor
ou uma teoria que possui credibilidade na academia, silenciando o autor do texto que é
produzido.
Ao analisar como uma produção acadêmica se valida por meio de um efeito de
promoção, empreendemos uma reflexão sobre as condições de produção e sobre a relevância
do que é produzido na universidade e aceito como produção científica. Uma reflexão que
aponta para a necessidade de problematizarmos a formação do aluno de graduação, já que as
produções que aqui analisamos demostram a necessidade de se questionar o modelo de
formação de seus autores e rever a concepção de escrita e de produção científica transmitida
aos graduandos.
É importante considerarmos a existência de diferentes concepções de pesquisa e de
produção escrita. Uma delas entende que, para haver um trabalho acadêmico, precisamos da
produção de conhecimentos, a partir da mobilização e cotejamento de conceitos em uma
análise de dados, com propostas de intervenções baseadas na implicação de quem escreve;
outra concepção é caracterizada por uma escrita que reproduz e repete, garantida e legitimada
por meio do destaque dado a um autor, conceito ou teoria reconhecido.
Com os estudos de Authier-Revuz (2004, p. 14), vimos que a construção de um
metadiscurso ingênuo, a partir de um controle-regulagem, ocorre quando um autor limita sua
escrita a uma representação do dizer de outro, isto é, repete um discurso que já está pronto.
Trata-se de uma retomada do discurso de outro sem que o locutor se posicione e construa algo
que “possa ser chamado de seu”. Uma produção singular, entendida aqui como um “traço
distintivo”, “que indica uma só entidade isolável” (DUBOIS, 2004, p. 555). Para isso,
pressupõe-se a capacidade de quem escreve para produzir algo através da sua forma de
mobilizar a teoria que utiliza como fundamentação teórica.
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As produções escritas analisadas nos mostram a possível ausência de intimidade de
seus autores com a pesquisa, visto que, em seus textos, predominam a reprodução de
conceitos teóricos de um autor reconhecido na comunidade científica e a existência de um
sentido de que o texto funciona como forma de demarcar a filiação teórica de quem escreve.
Esta investigação possibilitou uma reflexão sobre como uma produção escrita pode
dar mostras de uma filiação teórica, priorizando a presença excessiva do discurso de outros
autores e evidenciando uma possível hierarquização e sobreposição de uma teoria a outra(s)
(como verificamos na análise dos nossos dados) em uma formação que, supostamente, é
plural e multifacetada. Assim, esse modo de escrita indica que, durante a graduação,
provavelmente, deu-se preferência a uma determinada teoria.
Encontramos, além disso, uma possível explicação para a falta de produção científica
na formação acadêmica. A análise que propusemos revela um problema: estamos sendo
impelidos para uma universidade em que se produz menos conhecimentos e contribui-se
menos com a sociedade. Por isso, sustentamos que a falta de uma prática de escrita, que
aptifique aquele que escreve a mobilizar os conceitos teóricos apreendidos na faculdade ou
que aprofunde o conhecimento sobre esses conceitos, obsta a aquisição de uma escrita em que
o discurso do outro, questionado e articulado, funciona como mais um argumento para o
avanço do texto.
A repetição nos trabalhos acadêmicos implica certa banalização da produção
científica na graduação e, consequentemente, desmotiva a produção escrita em outros níveis.
Esse modo de escrita forma o sujeito através de uma metodologia que incentiva a produção
por meio da repetição, e, dificilmente, haverá diferenças na produção escrita desse indivíduo
em outros níveis de estudo. Para que se altere essa situação, precisaremos de uma nova
formação daquele que escreve, visando ensinar que uma produção escrita, para tornar-se
produção de ciência e produção de conhecimento, precisa contar com a implicação daquele
que escreve com seu próprio texto e com sua pesquisa. A produção, para assim ser nomeada,
necessita de um dizer e experiência próprios.
Um problema que não tratamos, mas que pudemos identificar nesta investigação, está
diretamente relacionado às políticas de formação e pesquisa: a relação institucional entre um
orientador e um orientando. Nos casos que analisamos, não verificamos o desenvolvimento
dessa relação ajustada a uma formação escrita voltada para a realização do trabalho daquele
que escreve a monografia.
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Por fim, compreendemos que a produção escrita de trabalhos acadêmicos de
graduação abrange modos de escrita construídos a partir de uma formação escrita sólida,
baseada em um trabalho consolidado pela dedicação e ação daquele que escreve, que
consegue se implicar como sujeito no discurso que produz.
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