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Repensando a Teoria

Literária Contemporânea
João Sedycias, Ph.D.
[organizador]

Repensando a Teoria
Literária Contemporânea

Apresentação de Cíntia Moscovich

Projeto internacional em conjunto da


International joint project of

Southern Illinois University Edwardsville Universidade Federal de Pernambuco


Edwardsville, Illinois Recife, Pernambuco
Estados Unidos da América Brasil

Recife, PE, Brasil | 2015


Universidade Federal de Pernambuco
Reitor: Prof. Anísio Brasileiro de Freitas Dourado
Vice-Reitor: Prof. Sílvio Romero Marques
Diretor da Editora: Prof. Lourival Holanda

Comissão Editorial
Presidente: Prof. Lourival Holanda

Titulares: Ana Maria de Barros, Alberto Galvão de Moura Filho, Alice Mirian Happ Botler,
Antonio Motta, Helena Lúcia Augusto Chaves, Liana Cristina da Costa Cirne Lins, Ricardo Bastos
Cavalcante Prudêncio, Rogélia Herculano Pinto, Rogério Luiz Covaleski, Sônia Souza Melo
Cavalcanti de Albuquerque, Vera Lúcia Menezes Lima.

Suplentes: Alexsandro da Silva, Arnaldo Manoel Pereira Carneiro, Edigleide Maria Figueiroa
Barretto, Eduardo Antônio Guimarães Tavares, Ester Calland de Souza Rosa, Geraldo Antônio
Simões Galindo, Maria do Carmo de Barros Pimentel, Marlos de Barros Pessoa, Raul da Mota
Silveira Neto, Silvia Helena Lima Schwamborn, Suzana Cavani Rosas.

Editores Executivos: Edigleide Maria Figueiroa Barretto, Rogério Luiz Covaleski e Silvia Helena
Lima Schwamborn

1ª Edição XXXX
Xª Edição (Ano corrente)

Catalogação na fonte:
Bibliotecária Fulana de Tal, CRB4-XXXX

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ficha catalográfica
(pode alterar a fonte para compor o projeto do gráfico do livro, mas deve-se evitar a mudança nos hhj - hhbc wh,at
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Recife, PE | CEP: 50.740-530
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www.ufpe.br/edufpe | livraria@edufpe.com.br
Sumário

217 6. A Nova Crítica


9 Sobre o[a]s Autore[a]s José de Paiva dos Santos
23 Apresentação Universidade Federal de Minas Gerais
Cíntia Moscovich
235 7. Estruturalismo e Semiótica
25 Prefácio Regina Lúcia de Faria
João Sedycias (Organizador) Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
State University of New York College at Oneonta, USA
289 8. Literatura e psicanálise: confrontos
33 1. O que é e o que não é literatura? Adélia Bezerra de Meneses
Anco Márcio Tenório Vieira Universidade de São Paulo
Universidade Federal de Pernambuco Universidade Estadual de Campinas

87 2. A teoria literária: desprestigiada e imprescindível 321 9. Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no


Lourival Holanda horizonte?
Universidade Federal de Pernambuco Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos
Universidade Federal da Paraíba
105 3. Crítica literária: seu percurso e seu papel na
atualidade 365 10. Marxismo
Roberto Acízelo de Souza Edu Teruki Otsuka
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Universidade de São Paulo

121 4. Reflexividade, Romantismo e Modernismo 407 11. Feminismo e literatura: apontamentos sobre crítica
Sueli Cavendish feminista
Universidade Federal de Pernambuco Cecil Jeanine Albert Zinani
Universidade de Caxias do Sul
179 5. Fenomenologia e Hermenêutica: impactos sobre os
estudos literários 437 12. Formalismo russo: uma revisão e uma atualização
Maria da Glória Bordini Aurora Fornoni Bernardini
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Universidade de São Paulo
477 13. Walter Benjamin e sua teoria crítica
Márcio Seligmann-Silva
Universidade Estadual de Campinas

515 14. Uma literatura pensante: as desconstruções e o


pensamento de Derrida
Evando Nascimento
Universidade Federal de Juiz de Fora
Sobre o(a)s Autore(a)s

557 15. A literatura e o pensar: notas sobre a trajetória


intelectual de Jonathan Culler
Sueli Cavendish
Universidade Federal de Pernambuco
JOÃO SEDYCIAS — Organizador da presente coletânea. Ph.D. em
607 16. Multitransintercultura: literatura, teoria pós-colonial literatura comparada pela Universidade do Estado de Nova York em
e ecocrítica
Roland Walter Buffalo (State University of New York at Buffalo), com a tese Crane,
Universidade Federal de Pernambuco Azevedo, and Gamboa: A Comparative Study (Crane, Azevedo e
663 17. Vozes autóctones das Américas: o discurso Gamboa: um estudo comparativo). Em Buffalo, além de lidar com
contracanônico da crítica indígena
Eloína Prati dos Santos
teoria literária no programa de literatura comparada, trabalhou, tam-
Universidade Federal do Rio Grande do Sul bém, no Departamento de Línguas Modernas, como colaborador de
689 18. Futuros (im)possíveis da (in)disciplina teoria da pesquisa e assistente administrativo de Peter Boyd-Bowman na área
literatura
de filologia hispânica (história da língua espanhola). De 1990 a 1997,
André Monteiro
Universidade Federal de Juiz de Fora chegou ao nível de Associate Professor de língua e literatura espanho-
la e hispano-americana na Universidade do Estado da California em
Sacramento (California State University, Sacramento). Regressando
ao país de sua infância, de 1999 a 2002 foi professor titular visitante
de espanhol e inglês no Departamento de Línguas Estrangeiras e
Tradução da Universidade de Brasília, onde ajudou a estabelecer e
desenvolver o programa de pós-graduação em linguística aplicada
ao ensino de línguas estrangeiras. De 2002 a 2006, foi professor
adjunto e, de 2003 a 2006, chefe do Departamento de Letras, na
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde atuou nas áreas
de inglês e espanhol. De volta aos Estados Unidos, de 2006 a 2011
ocupou o cargo de professor titular de espanhol e inglês e chefe da
Divisão de Ciências Humanas da Faculdade do Condado de Essex
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(Essex County College) em Newark, Nova Jersey. Subsequentemente, exterior. Colaborou, como verbetista, na BIBLOS — Enciclopédia
de 2011 a 2014 foi professor titular efetivo de línguas espanhola VERBO das literaturas de língua portuguesa (Coimbra, 1999, v. 3;
e portuguesa na Universidade do Sul de Illinois em Edwardsville 2001, v. 4; e 2004, v. 5). É autor de Luiz Marinho: o sábado que não
(Southern Illinois University Edwardsville), onde também atuou entardece (FCCR, 2004), Adultérios, biombos e demônios (PPGL,
como chefe do Departamento de Línguas e Literaturas Estrangeiras. 2009), Orley Mesquita: prosa e verso (CEPE, 2012), e é coautor dos
Em agosto de 2014, aceitou o convite e assumiu o posto de Professor livros O caminho se faz caminhando: 30 anos do Programa de Pós-
Titular de Espanhol & Português e Decano Fundador da Escola de Graduação em Letras da UFPE (Ed. UFPE, 2006) e Hermilo Borba
Artes & Humanidades na Universidade do Estado de Nova York em Filho e a dramaturgia: diálogos pernambucanos (FCCR, 2010). Foi
Oneonta (State University of New York College at Oneonta) e hoje Gerente-Assistente do Instituto de Documentação (INDOC), da
mora na região das Montanhas Catskill, na parte central desse esta- Fundação Joaquim Nabuco (1994-1997; 2000-2002). No momento,
do. Além de organizar a presente coletânea, é autor e organizador de organiza a correspondência ativa e passiva entre Joaquim Nabuco e
vários livros sobre língua, literatura e cultura publicados no Brasil Graça Aranha (1890-1910) e o Teatro Completo de Luiz Marinho
e no exterior, entres eles: The Naturalistic Novel of the New World (em 3 volumes).
(1993), Tópicos em linguística aplicada – Issues in Applied Linguistics
(2000), O ensino do espanhol no Brasil (2005) e A América hispânica LOURIVAL HOLANDA — Possui Graduação em Filosofia pela
no imaginário literário brasileiro / Brasil en el imaginario literario Universidade de Paris VIII (1976), Mestrado em Letras (Língua
hispanoamericano (2007). Interesses atuais incluem a teoria literá- e Literatura Francesa) pela Universidade de São Paulo (1986)
ria, principalmente nas suas vertentes contemporâneas, a aplicação e Doutorado em Letras (Língua e Literatura Francesa) pela
da tecnologia da informação e da Internet ao ensino de línguas Universidade de São Paulo (1992). Editor da Revista Estudos
estrangeiras (especialmente espanhol e inglês para lusofalantes), Universitários da UFPE. Publicou Fato e Fábula (Ed UFAM, 1999);
história da língua espanhola, literatura e cultura latino-americana e Sob o signo do silêncio (EDUSP, 1992); e Álvaro Lins: crítico literário
literatura do Siglo de Oro espanhol. e cultural (Ed UFPE, 2008). Organizou para o Itaú Cultural a coletâ-
nea Deslocamentos críticas (São Paulo: Babel, 2011); Tem feito con-
ANCO MÁRCIO TENÓRIO VIEIRA — É Mestre em Teoria da Literatura ferências nos Estados Unidos (Nova York e Austin) e, sobretudo na
(UFPE), Doutor em Literatura Brasileira (UFPB) e, atualmente, é França (Paris e Clermont-Ferrand). Membro do Conselho Editorial
professor Associado I do Departamento de Letras da UFPE. Co- da revista online de Literatura e Linguística Eutomia (ISSN 1982-
editor da revista Investigações, do Programa de Pós-Graduação 6850). Membro do Instituto Arqueológico Geográfico e Histórico de
em Letras, tem trabalhos publicados na Revista USP, Ciência & Pernambuco. Atualmente é Professor Associado I da Universidade
Trópico, Luso-Brazilian Review, Estudos Portugueses, Cultura Vozes, Federal de Pernambuco e Diretor da Editora UFPE. Desenvolve
Encontro, Cadernos Daimon, entre outros periódicos do Brasil e do pesquisas em poéticas, memória e sociedade, com ênfase na Crítica
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e Teoria Literária, Literatura Brasileira Contemporânea, Literaturas do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Pós-Graduação em Letras da mesma
Estrangeiras Contemporâneas, Cultura, História e Linguagem. universidade, com bolsa de pesquisador visitante FAPERJ (2003-
2004). Lecturer dos Departamentos de Estudos Culturais e de Inglês,
ROBERTO ACÍZELO DE SOUZA — É licenciado em letras pela da University of North Carolina at Charlotte, EUA, apresentando as
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, instituição onde é pro- conferências: “From Walter Benjamin to the translation of William
fessor titular de literatura brasileira, tendo também lecionado teoria Faulkner into Portuguese: Talks by Dr. Sueli Cavendish” e “Close
da literatura na Universidade Federal Fluminense, de 1976 a 2002. Encounters at a Crossroads: Poe, Faulkner, Rosa and Machado
Doutor em teoria da literatura pela Universidade Federal do Rio de Assis”. Tem capítulos publicados nos livros Crossings and
de Janeiro, com estudos de pós-doutorado na Universidade de São Contaminations: Studies in Comparative Literature (Ed. por Eduardo
Paulo, entre seus principais trabalhos publicados figuram: Teoria da Coutinho e Pina Bausch, Aeroplano, 2009), Do Jeito Delas: Vozes
literatura (1986, 10ª edição em 2007), Formação da teoria da litera- da Poesia Feminina de Língua Inglesa (Sete Letras / Faperj, 2008), e
tura (1987), O império da eloquência: retórica e poética no Brasil oi- Nove Abraços no Inapreensível (Azougue, 2008). Tem artigos cientí-
tocentista (1999), Iniciação aos estudos literários: objetos, disciplinas, ficos publicados em diversas revistas (USP, Eutomia, Investigações,
instrumentos (2006) e Introdução à historiografia da literatura bra- Terceira Margem, Continente Multicultural, entre outras) e tradu-
sileira (2007). Organizou ainda duas edições anotadas de trabalhos ções de diversos contos inéditos de William Faulkner, publicados
do historiador e crítico romântico Joaquim Norberto — História da nas revistas USP, Eutomia, Continente Multicultural, e Investigações.
literatura brasileira (2002) e Crítica reunida; 1850-1892 (2005; em É editora-chefe de Eutomia, Revista de Literatura e Linguística, que
colaboração com José Américo Miranda e Maria Eunice Moreira) criou no Departamento de Letras da UFPE em 2008.
— bem como uma edição dos ensaios sobre história literária na-
cional de Fernandes Pinheiro: Historiografia da literatura brasileira: MARIA DA GLÓRIA BORDINI — Possui licenciatura em letras pela
textos inaugurais (2007), além da antologia Uma ideia moderna de Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1969), mestrado em
literatura: textos seminais para os estudos literários (1688-1922). letras / teoria da literatura pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (1983) e doutorado em letras na mesma área de
SUELI CAVENDISH — Doutora em Letras pela Universidade Estadual concentração também pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
do Rio de Janeiro (UERJ) e Mestre em Sociologia pela Universidade Grande do Sul (1991). É professora aposentada como Adjunta IV
Federal de Pernambuco (UFPE). Professora efetiva Adjunta III de na UFRGS e ex-professora titular de teoria da literatura da PUCRS.
Literaturas de Língua Inglesa do Departamento de Letras da UFPE. Atualmente exerce o cargo de professora colaboradora convidada da
Visiting Scholar e Visiting Fellow, respectivamente, da University UFRGS no Programa de Pós-Graduação em Letras. Tem experiência
of Southern Mississippi e da Yale University, entre 2001 e 2002. na área de letras, com ênfase em teoria da literatura, atuando prin-
Professora Visitante do Curso de Letras da Universidade Federal cipalmente nos seguintes temas: Erico Verissimo, Mario Quintana,
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acervos literários, literatura brasileira e portuguesa, estudos culturais século 19 e 20, Literatura Afro-Americana, Literatura e Religiosidade,
e lírica. É pesquisadora 1B do CNPq. Entre os 27 livros publicados e Literatura Comparada. Obteve Ph.D. em Literatura Comparada e
ou organizados, figuram importantes marcos nos estudos literários Teoria Literária na Purdue University (2001), e Mestrado na mesma
brasileiros, tais como: Poética da cidade em Erico Verissimo (Rio de área na Brigham Young University (1997). Coorganizador do livro
Janeiro: Edições Makunaima, 2012), Melhores contos de Walmir Migrações Teóricas, Interlocuções Culturais: Estudos Comparados
Ayala (São Paulo: Global, 2011), Identidades fraturadas: ensaios sobre Brasil / Canadá (2009) e autor de vários artigos publicados na área
literatura portuguesa (São Paulo: EDUSP, 2011), Leitura e desenvol- de literatura estadunidense, afro-estadunidense e canadense.
vimento da linguagem (São Paulo: Global / ALB, 2010), As cidades
imaginadas de Erico Verissimo (Porto Alegre: Gráfica Comunicação REGINA LÚCIA DE FARIA — É professora adjunta de Literatura
Impressa, 2007), Mario Quintana: o anjo da escada (Porto Alegre: Brasileira no curso de Letras da Universidade Federal Rural do Rio
Telos Empreendimentos Culturais, 2006), Crítica do tempo presente: de Janeiro (UFRRJ) desde 2010. Fez mestrado e doutorado na PUC-
estudo, difusão e ensino de literaturas de língua portuguesa (Porto RJ e doutorado-sanduíche na Universidade de Stanford, Califórnia.
Alegre: Nova Prova / AIL / IEL, 2005), Caderno de pauta simples: De 1999 a 2002, foi professora leitora no Instituto de Línguas
Erico Verissimo e a crítica literária (Porto Alegre: Instituto Estadual do Românicas da Universidade de Aarhus, Dinamarca. Sua pesquisa
Livro, 2005), Cultura e identidade regional (Porto Alegre: EDIPUCRS, é centrada, sobretudo, em crítica literária brasileira contemporânea.
2004), O tempo e o vento: história, invenção e metamorfose (Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2004), O arco e as pedras: fontes primárias, teoria ADÉLIA BEZERRA DE MENESES — Formada e doutorada pela USP,
e história da literatura (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004), Lukács pesquisadora do CNPq, lecionou Literatura Brasileira na Technische
e a literatura (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003), 35 Melhores Contos do Universität de Berlim e Teoria Literária e Literatura Comparada na
Rio Grande do Sul (Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro CORAG, USP e UNICAMP. Aposentada, continua atuando vinculada à Pós-
2003), A liberdade de escrever (São Paulo: Globo, 1999), O cortejo do Graduação dessas duas universidades paulistas. Publicou os livros:
divino e outros contos escolhidos (Porto Alegre: L&PM, 1999), Criação A Obra Crítica de Álvaro Lins e sua Função Histórica (Rio de Janeiro:
literária em Erico Verissimo (Porto Alegre: L&PM, 1995), Confissões Vozes, 1979); Desenho Mágico: Poesia e Política em Chico Buarque
do amor e da arte (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994), Literatura: (São Paulo: Hucitec, 1982; Prêmio Jabuti; 3ª ed. ampliada, São Paulo:
a formação do leitor (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993), e O gigolô Ateliê, 2002) ; Do Poder da Palavra: Ensaios de Literatura e Psicanálise
das palavras (Porto Alegre: L&PM, 1993). (São Paulo: Duas Cidades, 1995; 2ª ed., 2004) ; Figuras do Feminino
(São Paulo: Ateliê, 2000; 2ª ed., 2001); As Portas do Sonho (São
JOSÉ DE PAIVA DOS SANTOS — Professor de Literaturas de Língua Paulo: Ateliê, 2002); Cores de Rosa: Ensaios sobre Guimarães Rosa
Inglesa na Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de (São Paulo: Ateliê, 2010). Organizou os livros: Utopia Urgente (em
Letras, onde atua nas seguintes áreas: literatura estadunidense do colaboração com T. Jensen e Frei Betto), São Paulo: Casa Amarela /
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EDUC, 2002; e Saudades de Rosa e Sertão (Fotos de Germano Neto, Mestrado em Letras – Teoria da Literatura, na PUCRS; Doutorado
textos de Guimarães Rosa), São Paulo: EDUSP, 2007. em Letras, Literatura Comparada, na UFRGS. Realizou estágio de
Pós-Doutoramento na linha de pesquisa Memória e História, na
CARMEN SEVILLA GONÇALVES DOS SANTOS — Possui Doutorado em PUCRS. É docente e pesquisadora do Curso de Letras, do Programa
Teoria da Literatura (2007) pela Universidade Federal de Pernambuco, de Pós-Graduação Mestrado em Letras, Cultura e Regionalidade na
Mestrado em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba Universidade de Caxias do Sul e do Programa de Pós-Graduação
(1995) e Graduação em Psicologia pela Universidade Federal da Doutorado em Letras, Associação Ampla UCS-UNIRITTER. Entre
Paraíba (1990). Atualmente é Professora Associada I no Departamento suas publicações, destacam-se: Literatura e gênero: a construção da
de Fundamentação da Educação do Centro de Educação da identidade feminina, História da literatura: questões contemporâneas;
Universidade Federal da Paraíba. Tem experiência na área de em coorganização, as obras: Da tessitura ao texto: percursos de
Psicologia da Educação, Habilidades Sociais e Educação, Transtornos crítica feminista, Mulher e literatura: história, gênero, sexualidade,
de Desenvolvimento e Necessidades Educativas Especiais. Também Dicionário biobibliográfico dos escritores da Região de Colonização
atua como professora da modalidade de Educação a Distância (vincu- Italiana no Nordeste do Rio Grande do Sul: das origens a 2005 e
lada ao Curso de Letras Virtual). Autora de capítulos, artigos e livros Multiplicidade dos signos: diálogos com a literatura infantil e juvenil.
em educação, psicologia e teoria da literatura. Também publicou capítulos de livros e artigos em periódicos. Entre
seus interesses, destacam-se: estudos de gênero, questões de leitura e
EDU TERUKI OTSUKA — É mestre em Letras – Teoria Literária e ensino da literatura, literatura infantil e juvenil história da literatura
Literatura Comparada (USP, 2000), doutor em Letras – Literatura e literatura e regionalidade.
Brasileira (USP, 2005) e professor do Departamento de Teoria
Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e AURORA FORNONI BERNARDINI — Professora titular da USP, formada

Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. É autor de Marcas em Letras Anglo-Germânicas e Estudos Orientais, leciona Literatura
da catástrofe: experiência urbana e indústria cultural em Rubem Russa, Teoria Literária e Literatura Comparada em nível de pós-gra-
Fonseca, João Gilberto Noll e Chico Buarque (São Paulo: Nankin duação. Dedica-se à ensaística e à tradução, em particular, de obras
Editorial, 2001) e Era no tempo do rei: atualidade das Memórias de russas e italianas. Em 2006, publicou pela Martins Fontes Indícios
um sargento de milícias (São Paulo: Ateliê Editorial, no prelo). Entre Flutuantes, ensaio e traduções de poemas de Marina Tsvetáieva,
seus interesses, destacam-se: teoria crítica, romance brasileiro e so- recebendo o Prêmio Paulo Rónai e o Prêmio Jabuti de tradução. No
ciedade, formas culturais contemporâneas. mesmo ano, recebeu o Prêmio da APCA, juntamente com Homero
Freitas de Andrade, pela tradução que realizou para a Cosac & Naify
CECIL JEANINE ALBERT ZINANI — Graduou-se em Letras – Português- de O Exército de Cavalaria de Isaac Bábel. Recentemente traduziu
Inglês, cursou Especialização em Literatura Infantil e Juvenil, na UCS; A Estrutura do Conto de Magia de E. Meletínski para a Editora da
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Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente dedica-se à Iluminuras, 1998, finalista do Prêmio Jabuti na categoria Tradução,
tradução de poesia. 2000), Philippe Lacoue-Labarthe, Jean-Luc Nancy, J. Habermas,
entre outros. Coordenou de 12/2006 a 11/2010 o Projeto Temático
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA — Possui graduação em História pela FAPESP “Escritas da Violência”. Possui vários ensaios publicados
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1986), mestrado em em livros e revistas no Brasil e no exterior. Foi professor visitante
Letras (Língua e Literatura Alemã) pela Universidade de São Paulo em Universidades no Brasil, Argentina, México e Alemanha. Atua
(1991), doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela principalmente nos seguintes temas: romantismo alemão, teoria e
Freie Universität Berlin (1996), e pós-doutorado pelo Zentrum Für história da tradução, teoria do testemunho, literatura e outras artes,
Literaturforschung Berlim (2002) e por Yale (2006). É professor teoria das mídias, teoria estética do século XVIII ao XX e a obra de
livre-docente de Teoria Literária na UNICAMP e pesquisador do Walter Benjamin.
CNPq. É autor dos livros Ler o Livro do Mundo. Walter Benjamin:
romantismo e crítica poética (Iluminuras/FAPESP, 1999, vencedor EVANDO NASCIMENTO — É ensaísta, escritor e professor da
do Prêmio Mario de Andrade de Ensaio Literário da Biblioteca Universidade Federal de Juiz de Fora. Seu trabalho se desenvolve em
Nacional em 2000), Adorno (PubliFolha, 2003), O Local da Diferença. torno das áreas de Filosofia, Literatura e Artes Visuais. Doutorou-se
Ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução (Editora 34, 2005, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nos anos 1990, com-
vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro de Teoria/ pletou sua formação em Paris, onde foi aluno de Jacques Derrida
Crítica Literária 2006), Para uma crítica da compaixão (Lumme na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Lecionou durante
Editor, 2009) e A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. três anos na Université Stendhal, de Grenoble. Em 2007, realizou
Adorno (Editora Civilização Brasileira, 2009); organizou os vo- um Pós-Doutorado em Filosofia, sobre Benjamin e Derrida, na
lumes Leituras de Walter Benjamin: (Annablume/FAPESP, 1999; Universidade Livre de Berlim. Já ministrou cursos e palestras em
segunda edição 2007), História, Memória, Literatura: o Testemunho diversas instituições internacionais e nacionais: Universidade de
na Era das Catástrofes (UNICAMP, 2003) e Palavra e Imagem, Paris, Universidade de Manchester, Universidade de Bruxelas,
Memória e Escritura (Argos, 2006) e coorganizou Catástrofe e UFMG, UERJ, PUC-Rio, Unicamp, USP, UFBA, Unesp, entre ou-
Representação (Escuta, 2000), Escritas da violência. Vol I. O teste- tras. Foi o organizador do “Colóquio Internacional Jacques Derrida
munho (7Letras, 2012) e Escritas da violência. Vol II. Representações 2004: Pensar a Desconstrução”, em que Derrida fez a conferência
da violência na história e na cultura contemporâneas da América de abertura. Publicou, entre outros: Derrida e a literatura (2ª. Ed.,
Latina (7Letras, 2012); Imagem e Memória (Belo Horizonte: FALE/ EdUFF), Derrida (Zahar), Filosofia e literatura: diálogos (EdUFJF e
UFMG, 2012). Traduziu obras de Walter Benjamin (O conceito Imprensa Oficial), Pensar a desconstrução (Ed. Estação Liberdade)
de crítica de arte no romantismo alemão, Iluminuras, 1993), G.E. e Clarice Lispector: uma literatura pensante (Civilização Brasileira).
Lessing (Laocoonte. Ou sobre as Fronteiras da Poesia e da Pintura, Coordena atualmente a Coleção Contemporânea – Literatura,
20 21

Filosofia & Artes, pela Civilização Brasileira. Lançou pela Record e literatura ameríndia. Organizou, entre outros, Perspectivas da
os livros de ficção Retrato desnatural (2008) e Cantos do mundo literatura ameríndia no Brasil, Estados Unidos e Canadá (2003, com
(contos) (2011). dois volumes online), e Outras literaturas anglófonas: (des)ecrevendo
império, com Sonia Torres (2006). Foi membro do Corpo Editorial
ROLAND WALTER — É Professor Associado do Departamento de da Revista Interfaces (Revista da Associação Brasileira de Estudos
Letras da UFPE e Pesquisador do CNPq. É doutor em Literatura Canadenses) para a publicação dos números 1 a 11.
Comparada pela Johannes Gutenberg Universität, Mainz, Alemanha
(1992) e fez pós-doutorado na University of California, Santa Cruz ANDRÉ MONTEIRO — É homo lattes e homo ludens. Com a máscara do

(2000). Roland Walter é autor de três livros — Magical Realism in primeiro é proletário da cognição. Como homo ludens, busca criar
Contemporary Chicano Fiction (Vervuert, 1993), Narrative Identities: e se deixar criar por afetos alegres. Na corda bamba entre acasos e
(Inter)Cultural In-Betweenness in the Americas (Peter Lang, 2003) e constelações, as duas máscaras, simultaneamente, lhe caem muito
Afro-América: Diálogos Literários na Diáspora Negra das Américas bem e fazem dele doutor e pós-doutor em Estudos da Literatura
(Bagaço, 2009) — editou o e-book “As Américas: Encruzilhadas pela PUC-Rio, professor de literatura da Universidade Federal de
Glocais” (Ed. UFPE, 2007) e (em coautoria com Ermelinda Ferreira) Juiz de Fora (FALE/Dep. de Letras), escritor e compositor em horas
o livro Narrações da Violência Biótica (Ed. UFPE, 2010) e publicou raras. Publicou os livros A ruptura do escorpião – Torquato Neto e o
numerosos artigos e capítulos de livro no Brasil, na Argentina, em mito de marginalidade e Ossos do Ócio.
Cuba, no Canadá, nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Alemanha
e na Holanda. Em 2004, foi convidado como Professor Visitante na
Eberhard-Karls Universität de Tübingen, Alemanha. E-mail: wal-
ter_roland@hotmail.com.

ELOÍNA PRATI DOS SANTOS — É professora aposentada da


Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde foi Vice-Diretora
do Instituto de Letras e Coordenadora do Núcleo de Estudos
Canadenses e  atuou como Professora Visitante no Mestrado de
História da Literatura na Fundação Federal Universidade de Rio
Grande. Obteve seu PhD em Literaturas de Língua Inglesa pela State
University of New York, Buffalo e realizou Pós-Doutoramento na
Universidade Federal Fluminense. É especialista em ficção contem-
porânea dos Estados Unidos e do Canadá, literatura pós-colonial
23

Apresentação

Em tempos nos quais reflexão e conhecimento passaram a um plano


vil de consideração na sociedade, a iniciativa de organizar um volume
de estudos sobre teoria literária parece-me notável e absolutamente
necessária. Este Repensando a Teoria Literária Contemporânea, or-
ganizado pela generosa mão do professor João Sedycias e que reúne
18 capítulos, joga luz não só nos estudos da disciplina, mas na con-
cepção da própria academia, aprofundamento importante em meio
ao cipoal de informações que molda a modernidade.
Iniciando nas discussões sobre o estatuto da literatura e suas ba-
ses, passando por diversas escolas estético-filósoficas que contribuí-
ram para a conformação atual da teoria e culminando num exercício
de possibilidades vindouras, o presente volume brinda-nos com
conhecimento articulado e, o que é melhor, atualizado e vigoroso.
Pessoalmente, e peço desculpas por falar em primeira pessoa,
a teoria literária tem sido fonte permanente de inquietações e de sa-
tisfações, as duas em igual medida. Como escritora — como alguém
que, ainda que modestamente, produz literatura — percorri as pági-
nas deste livro com o encanto que provém das inflexões do espírito,
gratificando-me pelas possibilidades de abstração e de descoberta.
Diversos graus de argumentação (incisivos, poéticos, eloquentes,
apaixonados) conduziram-me a reavaliações técnico-teóricas, in-
clusive em níveis que tocam a própria experiência dos dias. A mim
24 25

me interessa, é claro, o ato criativo: aquele do autor, que em tese


inicia o ciclo; do leitor, que recria o criado; e do estudioso, que tenta
captar (e mediar e repercutir) esssas duas extremidades.
Penso que, se a busca do autor é pela originalidade e pelo viço
do novo, nada melhor do que se embrenhar nas diversas expressões Prefácio
que a obra literária suscita ao leitor especializado — leitura ideal,
digamos, e que escapa do senso médio e comum. Ler um livro como
este é, portanto, uma espécie de volta em segundo grau à própria
origem do fato literário, uma instância em que a linguagem não O ano de 2005 marcou de forma significativa o nosso trabalho no
mais engendra a ficção, mas fala sobre ela, desdobrando-se em no- campo de línguas e literaturas estrangeiras, principalmente no que diz
vos significados. Tão criativo quanto o autor, tocado pela mesma respeito às línguas portuguesa e espanhola e suas literaturas corres-
inquietude que move aquele que escreve, o teórico é capaz disso, pondentes, e mais especificamente a brasileira e a hispano-americana.
de despertar e de nomear essa espécie de consciência tão esquiva Vários colegas da área de espanhol e eu tivemos, naquela ocasião,
quanto real. a grata satisfação de publicar, através da Parábola Editorial, de São
Como vivo ao sul do Brasil e como tenho me dedicado ao estu- Paulo, o livro O ensino do espanhol no Brasil. Essa obra teve excelen-
do e à leitura da teoria ao longo dos anos, também li esse livro com te recepção por parte da comunidade acadêmica e hoje serve como
bastante afinco e curiosidade, buscando nele os ecos de nossa gente referência no campo dos estudos da língua espanhola e literaturas
e nossa terra. Ao longo dos 18 textos, é possível reconhecer e apre- hispanófonas no nosso país. Alguns anos depois, em 2007, publi-
ciar a realidade da teoria literária em nosso país, matéria complexa camos, através da Editora da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE), outro livro na mesma área, A América hispânica no ima-
em ambiente complexo, mas que, por isso mesmo, nos obriga e nos
ginário literário brasileiro / Brasil en el imaginario literario hispa-
confronta com a nossa precariedade e com nossa exuberância.
noamericano. Ambas as obras problematizam assuntos importantes
Convido a todos os que amamos a literatura e o estudo a des-
relacionados ao estudo do espanhol e das literaturas hispanófonas
frutar das páginas deste livro. Aqui dentro, há iluminação e encanta-
no ambiente acadêmico brasileiro. Procuram, também, acrescentar
mento, que são, a bem dizer, as bases de todo o conhecimento.
novas perspectivas ao diálogo que vem se desdobrando com relação
a esse assunto nas instituições de ensino superior do Brasil nos úl-
Cíntia Moscovich
timos vinte anos.
Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil
Agora, com esta obra, pretendemos acrescentar mais uma
dimensão à temática linguístico-literária acima referenciada.
Explorando aspectos dessa problemática que extrapolam os limites
26 27

do modelo crítico-filológico usado nas duas publicações anteriores, pelo organizador deste livro e que está em funcionamento desde
neste livro aplicamos uma ótica bem mais ampla. Enfocamos, es- abril de 2012. Com a merecida e oportuna ascensão do Brasil no ce-
pecificamente, o estudo dos vários paradigmas filosóficos e episte- nário mundial nos últimos anos, essa instituição norte-americana,
mológicos que contribuíram para delinear e dar forma à teoria e à onde até recentemente eu lecionava (desde agosto de 2014 aceitei
crítica literária nos nossos dias, em suas diversas manifestações. o posto como Decano da Escola de Artes & Humanidades na State
Assim, trazemos ao mercado acadêmico brasileiro a presente University of New York College at Oneonta), tem se empenhado em
coletânea de artigos cujo eixo em comum é a teoria literária con- estabelecer laços e programas de intercâmbio com universidades
temporânea. Porém, esta obra vai bem mais além de uma mera brasileiras. Esta obra é, portanto, uma confirmação desse empe-
enumeração histórica das diferentes e mais relevantes formas de nho e, também, esperamos, um prenúncio alvissareiro de outros
abordagem literária das últimas décadas. Trata, de maneira abran- possíveis projetos num futuro próximo entre instituições de ensino
gente, dos aspectos mais expressivos da teoria e crítica literárias que superior americanas e brasileiras.
atualmente ocupam o primeiro plano nas atividades de pesquisa O livro é dividido em três partes. A primeira parte consiste de
acadêmica ou que estão sendo discutidos e problematizados nos reflexões abrangentes sobre a literatura e a teoria literária, como é
círculos literários nos Estados Unidos, na Europa e principalmente o caso dos três primeiros capítulos da coletânea: “O que é e o que
no Brasil. Como já frisamos, o tema principal do livro é a teoria não é literatura?”, de Anco Márcio Tenório Vieira; “A teoria literária:
literária, porém abordada e problematizada do ponto de vista espe- desprestigiada e imprescindível”, de Lourival Holanda; e “Crítica
cífico brasileiro, levando em conta, sobretudo, a maneira como, em literária: seu percurso e seu papel na atualidade”, de Roberto Acízelo
suas raízes e desenvolvimentos, foi recebida e adaptada em territó- de Souza.
rio nacional. A segunda parte do livro, a mais ampla e substancial da obra,
Com o intuito de proporcionar uma visão ao mesmo tempo examina mais detidamente as perspectivas críticas que delinearam e
panorâmica e circunstanciada, este livro reúne artigos sobre as vá- deram forma à teoria literária contemporânea. Esta parte contém 14
rias vertentes da teoria e crítica literárias dos nossos dias. Serve, por capítulos e fornece uma visão ao mesmo tempo global e detalhada,
um lado, como uma apresentação do espectro teórico contempo- que abrange desde os mais expressivos desdobramentos literários
râneo — mesmo que de nível relativamente avançado, direcionada do final do século XVIII — afinal de contas, somos filhos e filhas
aos alunos de pós-graduação brasileiros — e, por outro, como uma intelectuais do Romantismo de Jena (“Jenaer Romantik”) e de suas
reflexão mais detalhada e profunda dos principais temas abordados figuras exponenciais: Schlegel, Schelling, Novalis — às formas de
e problematizados por cada uma dessas formas de pensamento e pensamento mais relevantes da atualidade, tais como a desconstru-
perspectivas teóricas. ção de Jacques Derrida. Aqui alcançamos uma reflexão ponderável
A presente coletânea é, também, resultado do programa de a respeito dos fundamentos estéticos, filosóficos e históricos que
cooperação internacional entre  a Southern Illinois University subjazem os diversos veios em que se ramifica a teoria literária na
Edwardsville e a Universidade Federal de Pernambuco, estabelecido contemporaneidade.
28 29

A terceira parte do livro consta do capítulo “Futuros (im)possí- “Não se trata de falar do futuro, mas de deixar falar um futuro.
veis da (in)disciplina teoria da literatura”, de André Monteiro, onde Deixar um futuro ser. Criar dispositivos, não para prendê-lo,
o colega da Universidade Federal de Juiz de Fora discute o futuro da prevê-lo em seus possíveis já pensados. De outro modo, entregar
teoria literária, principalmente no contexto da academia brasileira. A um futuro à graça e ao mistério de seu próprio futurar. [...]
questão do futuro da teoria literária também é abordada por Roberto Os futuros (im)possíveis e (in)disciplinados das literaturas e da
Acízelo de Souza no terceiro capítulo deste livro, no qual o crítico da teorias da literatura serão sempre os mais contemporâneos de
Universidade do Estado do Rio de Janeiro assinala que: uma época. Os mais contemporâneos de uma época são justa-
mente os mais extemporâneos de toda e qualquer época. Não
“Numa época como a nossa, que levou a desarticulação de valores porque fogem à época, mas porque dela incorporam e assumem
— e não só artísticos, naturalmente — a extremos sem preceden- o que qualquer “retrato de época”, ou pensável “estilo de época”,
tes, talvez nunca se tenha precisado tanto de crítica. Não, é claro, seria incapaz de revelar.
da crítica como sensacionalização de banalidades, conforme se vê
[...]
nas manifestações desinibidas do jornalismo cultural. Tampouco
de uma crítica acadêmica dada à absolutização dos seus axio- É preciso aprender a fazer com que os futuros (im)possíveis do
mas, segundo os desvios verificados no âmbito dos dois grandes viver não se envergonhem em nós, não desistam de nós, não
modernos sistemas de conceitos sobre a literatura e seu estudo, morram em nós. Ou, ainda, nos façam sucumbir de vez, virar
a crítica literária e a teoria da literatura. Menos ainda — por sua farrapo, virar molécula diante da enorme onda de sua grandeza.
tática de substituir a reflexão por um apelo fácil ao sentimento A vida nos exige uma (in)disciplina de guerra. Não a guerra
de repúdio às injustiças — de uma crítica culturalista, dada ao do ressentimento, mas a guerra do esquecimento. Não adianta
contrassenso de pregar o absolutismo ético e praticar o relativis- brigar com a vida. É preciso ir com ela e esquecê-la. Esquecer
mo estético, no seu afã programático de revisar ou desconstruir o para lembrar o que ainda não é. Esquecer como a criança que
cânone. Em vez disso, precisamos de uma crítica fundamentada surfa esquece o caldo da última onda para pegar uma onda nova.
numa teoria consistente, prevenida contra a transformação de Esquecer para não esquecer, como não esquecia Nietzsche, do
dados em axiomas, e que seja capaz de integrar compromisso lema de Píndaro que ele tanto amava: “torna-te aquilo que és”.
com o presente e reflexão do passado. Quanto ao futuro, a Deus E o que és, o que é, o que somos senão o próprio “tornar”? Ou
pertence.” melhor: um próprio e sempre único tornar-se povoado pelo
eterno tornar-se da vida. O que distingue uma disciplina forte de

André Monteiro oferece uma visão ligeiramente diferenciada, outra disciplina forte (assim como uma pessoa de outra pessoa,

porém, ao mesmo tempo, complementária à postura de Roberto uma música de outra música, uma teoria de outra teoria, uma

Acízelo no que diz respeito aos possíveis futuros da teoria literária literatura de outra literatura...) é a singularidade de seu próprio e

no Brasil. O colega de Juiz de Fora argumenta que: necessário tornar-se...”


30 31

Além dos colaboradores acima citados, o nosso projeto teve a nomes de maior destaque no atual firmamento das letras no Brasil,
honra de contar com a participação de professores e críticos literários por ter uma ampla bagagem de treinamento formal e experiência
de projeção significativa no ambiente acadêmico brasileiro e interna- com a teoria e crítica literárias — possui mestrado em teoria literária
cional. Esses colaboradores contribuíram com os seguintes capítu- pela PUC-Rio Grande do Sul, tendo atuado como professora, consul-
los: “Reflexividade, Romantismo e Modernismo” e “A literatura e o tora literária, tradutora, revisora e assessora de imprensa — Cíntia é
pensar: notas sobre a trajetória intelectual de Jonathan Culler” (Sueli singularmente qualificada para aquilatar o valor e a utilidade deste
Cavendish, Universidade Federal de Pernambuco); “Fenomenologia projeto. Autora do Reino das Cebolas (1996), Duas iguais (1998),
e Hermenêutica: impactos sobre os estudos literários” (Maria da Anotações durante o incêndio (2000) e Arquitetura do arco-íris (2004),
Glória Bordini, Universidade Federal do Rio Grande do Sul); “A entre outros contos e romances, a nossa apresentadora dá ênfase
Nova Crítica” (José de Paiva dos Santos, Universidade Federal de em muitas de suas obras à ótica judaica e feminina, fecundas pers-
Minas Gerais); “Estruturalismo e Semiótica” (Regina Lúcia de Faria, pectivas de alteridade que também figuram proeminentemente em
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro); “Literatura e psica- vários capítulos do nosso livro, como os que tratam do feminismo, da
nálise: confrontos” (Adélia Bezerra de Meneses, Universidade de São psicanálise e das obras de Jacques Derrida e de Walter Benjamin. A
Paulo/Universidade Estadual de Campinas); “Estética da Recepção e presença de Cíntia Moscovich neste livro é particularmente relevante
do Efeito ou há um leitor no horizonte?” (Carmen Sevilla Gonçalves para o nosso projeto pelo fato de ela poder oferecer aos nossos leito-
dos Santos, Universidade Federal da Paraíba); “Marxismo” (Edu res uma perspectiva única e privilegiada, que advém de sua formação
Teruki Otsuka, Universidade de São Paulo); “Feminismo e literatura: híbrida: por um lado, como autora e produtora de ficção literária e,
apontamentos sobre crítica feminista” (Cecil Jeanine Albert Zinani, por outro, como cuidadosa leitora e crítica da produção literária.
Universidade de Caxias do Sul); “Formalismo russo: uma revisão e Tivemos uma experiência similar em 2007 quando da publi-
uma atualização” (Aurora Fornoni Bernardini, Universidade de São cação do nosso livro A América Hispânica no imaginário literário
Paulo); “Walter Benjamin e sua teoria crítica” (Márcio Seligmann- brasileiro / Brasil en el imaginario literario hispanoamericano, quan-
Silva, Unicamp); “Uma literatura pensante: as desconstruções e do o escritor Moacyr Scliar nos honrou com sua presença ao fazer a
o pensamento de Derrida” (Evando Nascimento, Universidade apresentação do mesmo. Nessa ocasião, já havíamos assinalado que,
Federal de Juiz de Fora); “Multitransintercultura: literatura, teoria como todo escritor ou crítico literário em Terra Brasilis bem sabe, é
pós-colonial e ecocrítica” (Roland Walter, Universidade Federal de imprescindível para um projeto como o nosso contar com esse tipo
Pernambuco); e “Vozes autóctones das Américas: o discurso contra- de apoio e incentivo para poder se tornar realidade. Infelizmente,
canônico da crítica indígena” (Eloína Prati dos Santos, Universidade muitas vezes, isso não acontece no nosso país, quer seja por parte
Federal do Rio Grande do Sul). das agências oficiais, dos órgãos de fomento, ou até mesmo dos nos-
Gostaria de agradecer à escritora, jornalista e crítica literária, sos pares na academia. Portanto, nesse contexto, a simpatia e boa
Professora Cíntia Moscovich, que muito gentilmente aceitou o nosso vontade de Cíntia se tornam ainda mais notáveis, fato que muito
convite para fazer a apresentação deste livro. Além de ser um dos sensibilizou a mim e aos outros colaboradores deste livro.
32

Gostaria, também, de registrar o meu carinhoso agradecimen-


to à Professora Maria José de Matos Luna, ex-Diretora da Editora
da Universidade Federal de Pernambuco. Esta excelente profissional Capítulo 1
muito generosamente forneceu todo o apoio ao nosso trabalho, co-
locando à nossa disposição o aparato da EdUFPE, que ela dirigia,
O que é e o que não é
assim como a sua ampla experiência como editora. Tudo isso permi- literatura?*
tiu a realização e finalização exitosa do projeto segundo os objetivos Anco Márcio Tenório Vieira
Universidade Federal de Pernambuco
com que foi concebido.
Termino este prefácio com a lembrança de uma pessoa mui-
to estimada de todos nós, atuais ou ex-professores de letras da
Universidade Federal de Pernambuco. Da última vez que publiquei
um livro pela Editora UFPE, em 2007, o meu agradecimento foi
direcionado, também, à Professora Gilda Lins, que então dirigia
essa casa editorial. Hoje, só posso repetir o meu agradecimento à
nossa “pequena notável” de maneira póstuma. E é assim, portanto,
com uma lembrança querida e duradoura de uma pessoa que tan-
to contribuiu para o Departamento de Letras, o Centro de Artes e
Comunicação, a Editora Universitária e a Universidade Federal de
Pernambuco, que dedico a presente obra à minha conterrânea do
Recife e de Bom Jardim, Professora Gilda Maria Lins de Araújo.

Prof. Dr. João Sedycias


Professor Titular de Espanhol & Português e
Decano Fundador da Escola de Artes & Humanidades La letteratura è sempre — dico sempre! — finzione,
di qualsiasi cosa parli. Può parlare di filatori di
Tenured Full Professor of Spanish & Portuguese and
seta del Seicento, di pastori innamorati di ninfe, di
Founding Dean of the School of Arts & Humanities
pescatori siciliani o di piccoli principi che coltivano
State University of New York College at Oneonta
rose sul loro pianeta: non importa, è sempre inven-
111 Schumacher Hall, SUNY Oneonta
zione! Sublime, utilissima e bellissima invenzione,
Oneonta, New York 13820, USA
fabbricata per dire la verità, ma per dirla parlando
E-mail: sedycias@yahoo.com
d’altro, deviando, depistando: parola indireta.**
Ludovico Ariosto (1474-1533)
Foi no Institvtio Oratória, de Marcus Fabius Quintilianus (30-95
d.C.), que a palavra “literatura” (“Conferimos, pois, a qualquer pro-
fissão o seu território próprio: a gramática, que em latim equivale
o sentido de literatura...”)1 apareceu pela primeira vez no mundo
latino e, por decorrência, no Ocidente e no mundo ocidentalizado.
Litteraturam, palavra que tem em littĕra a sua raiz semântica (em
latim, letra, substantivo feminino), não designava, em princípio,
somente o conjunto dos gêneros ficcionais ou miméticos e, sim,
nascia como o equivalente latino para a palavra grega Grammatikós
(Gramática), que tinha o sentido, para Platão e Aristóteles, de “ciên-
cia das letras” (gramma, em grego, é letra).2 No caso, a arte de saber
ler e escrever, já que no mundo antigo ler e escrever eram compe-
tências distintas; do mesmo modo que saber ler não significava,
necessariamente, uma pessoa educada, muito menos culta.
Como “ciência das letras”, Quintiliano dividia a Gramática (a
notas iniciais primeira das sete artes liberais)3 em duas partes: na “Arte de falar
* Retomamos neste ensaio algumas breves considerações que desenvolvemos em
VIEIRA (2011:10-13; 2012:55-76). 1 “Nos suum cuique professioni modum demus: et grammatice, quam
in Latinum transferentes litteraturam uocauerunt...” (QUINTILIANO.
** “A literatura é sempre – eu digo sempre! – ficção, indiferente do que você fale. Institvtio Oratória. In: http://pt.scribd.com/doc/129709086/
Você pode falar sobre fiadores de seda dos seiscentos, de pastores enamorados QVINTILIANI-INSTITVTIO-ORATORIA-LIBER-SECVNDVS-docx).
de ninfas, de pescadores sicilianos ou de pequenos príncipes que cultivam rosas 2 (CURTIUS 1996:78)
nas terras do sul: não importa, é sempre invenção! Sublime, utilíssima e belíssima 3 Na Idade Média, A Gramática, a Retórica e a Dialética (Lógica) formavam
invenção, fabricada para dizer a verdade, mas para colocá-la falando de outra o Trivium. A Aritmética, a Geometria, a Música e a Astronomia constituiam o
coisa, desviando, despistando: discurso indireto”. Quadrivium.
36 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 37

corretamente” e na “de narrar os poetas”.4 Na primeira, temos o ins- mesmo sistema, as tragédias de Sêneca e as demais obras ficcionais,
trumental para se conhecer e se fazer o uso correto da língua (neste distantes no tempo e no espaço, como Édipo rei, Ilíada, A Divina
caso, a Gramática alargava os limites da Retórica); na segunda, o comédia, Orlando Furioso, Dom Quixote, Os Lusíadas, Memórias
meio para explicar as obras dos poetas e, principalmente, como uma póstumas de Brás Cubas, Histórias extraordinárias, A Invenção de
ciência exegética, a ferramenta para interpretar os demais fenôme- Orfeu e A Pedra do Reino? O que há em comum (ou não) entre essas
nos da Natureza.5 Assim, “litteratus”, como nos ensina Ernst Robert obras ficcionais e outras não ficcionais, a exemplo dos Sermões, do
Curtius,6 “é o conhecedor da gramática e da poesia, [mas] não ne- Padre Antônio Vieira, e Os Sertões, de Euclides da Cunha, para que
cessariamente um escritor”; ou, como nota Eric A. Havelock, é “[...] elas compartilhem os compêndios da história da literatura? Como
’o homem de letras’, ou seja, um leitor de letras, [...] o seu oposto, distinguir conceitualmente os gêneros que Aristóteles chamava de
illiteratus, um homem sem nenhuma cultura letrada”.7 Desse modo, “poesia imitativa” (lírico, dramático e narrativo) e a teologia cristã
litteratus é aquele que conhece as letras, as regras da Gramática ou (seja ela patrista, agostiniana ou tomista) passou a designar como
explica as obras dos poetas, e litteraturam é a produção intelectual a literatura dos poetas (a que se vale da allegoria in verbis, alegoria
do homem de letras. Ao designar toda e qualquer produção intelec- verbal, considerada distinta das alegorias comunicadas por Deus,
tual que tinha a palavra como o seu meio de expressão, o termo lit- a allegoria in factis, alegoria factual)8 dos demais gêneros textuais,
teraturam designava, inicialmente, todos os gêneros textuais (afinal, sem que tal conceito termine, por falta de rigor teórico, transbor-
para escrever, era preciso dominar o “uso correto da língua”). Logo, dando ou se aplicando também às demais formas de discurso (no
ao enunciar a palavra “literatura”, fazia-se necessário complemen- caso, confundindo as duas partes da Gramática que Quintiliano fez
tá-la: “literatura de quê?”. “Literatura filosófica”, “literatura política”, questão de distinguir, isto é, todo poeta para ser chamado como tal
“literatura matemática” ou “literatura de ficção?”. precisa, antes de tudo, conhecer e fazer “uso correto da língua”, mas
Ora, o que particulariza a literatura ficcional dos demais gê- nem todo aquele que usa “corretamente” a língua pode ser chamado
neros textuais que eram tomados como litteraturam apenas pelo de poeta)? Por que muitas definições de literatura não conseguem
“uso correto da língua” (“recte loquendi scientiam”)? Por que um dar conta do fenômeno literário em sua totalidade: quando cobrem
autor como Lúcio Aneu Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), que transitou por um dado gênero, deixam outros descobertos? Por que a poesia era
vários gêneros textuais, a exemplo da tragédia e da filosofia, tinha vista pelos teólogos, a exemplo de Santo Agostinho (354-430), em
a sua produção dramática designada como “literatura de ficção” e A Cidade de Deus, como uma criação humana cuja ciência faltava
aquela que se voltava para o “amor à sabedoria”, como “literatura com a “verdade”? Por que Agostinho denomina os poetas de criado-
filosófica”? Que conjunto de regras e procedimentos encerra, em um res de “fábulas mentirosas” (mendacissimis fabulis), falsas (fasum),
torpes (turpe) e indignas (indignum)?9 Ou mesmo Tomás de Aquino
4 “recte loquendi scientiam et poetarum enarrationem” (QUITILIANO op. cit.)
5 (Ver GORDON 2012:10) 8 (Ver SANTO AGOSTINHO 1991)
6 (CURTIUS 1996:78) 9 (SANTO AGOSTINHO 2009:241-242). Nos valemos também da edição em latim
7 (HAVELOCK 1996:47) da obra agostiniana: SANCTI AURELLI AUGUSTINI (1877).
38 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 39

(1224?-1277), o Doutor Angélico, que defende, a partir de uma lei- que aposta na ideia de que um texto é literatura porque foi conven-
tura da Metafísica, de Aristóteles10, que “A ciência da poesia refere-se cionado como tal ou se aprendeu dessa forma na escola (ou na vida)
a coisas que, dada sua falta de verdade [...], não podem ser compre- e assim é, ou deve ser, se lhe parece. Afinal, como nota Luiz Costa
endidas pela razão; convém seduzir a razão por meio de algumas Lima, “quando uma comunidade não tem a prática da discussão, o
analogias?” Eis algumas perguntas que ainda precisam de respos-
11
uso da linguagem crítica sempre lhe parece ameaçador”.13 Vamos ao
tas pertinentes. Afinal, diante de tantos desencontros conceituais, desafio.
parece que explicar conceitualmente, hoje, a literatura tornou-se
quase que o mesmo que tentar definir o conceito de tempo: “Se nin- II
guém me perguntar [o que é o tempo], eu sei; se quiser explicá-lo a
quem fizer a pergunta, já não sei”12, dizia Santo Agostinho, em suas Em ensaio publicado em 1971, Richard Ohmann observa, recor-
Confissões. Aparentemente todos nós, nos dias que correm, sabemos rendo à teoria dos atos de fala (speech acts)14, de J. L. Austin, que o
o que é literatura e quais gêneros ela encerra (ninguém, salvo os in- problema dos conceitos sobre literatura é que ora eles se centram
gênuos, se dirige para o setor das ciências exatas, biológicas ou jurí- no texto em si (“sua referência, sua verdade e seu significado”)15,
dicas quando precisa encontrar um romance ou um livro de contos os chamados atos locutivos, ora em seus efeitos, os atos perlocuti-
ou de poesia em uma livraria ou biblioteca), mas, de algum modo, vos. Ainda dentro desse corte epistemológico, Ohmann nota que
sentimos dificuldades em explicá-la conceitualmente. Se não temos as definições sobre literatura estão encerradas em seis proposições
dúvidas quanto ao estatuto literário de alguns gêneros textuais, já correntes. A saber: 1º Em uma obra literária, particularmente na po-
que eles são trans-históricos e se calçam em cima da ficcionalida- esia, as palavras não se referem tais como elas se referem em outras
de (como o romance, a epopeia, o conto, a novela, a poesia e suas formas de discurso; 2º O que define a literatura é o modo como são
formas fixas), formando uma só família, ficamos sempre hesitantes expressas as asserções. Assim, há os que defendem que a literatura
em acatar ou mesmo explicar por que certos gêneros não ficcionais é uma rede de mentiras (sendo a falsidade a sua marca distintiva)
são estudados nas histórias da literatura — a exemplo da crônica, do e há os que asseguram que “o poeta não afirma nada”; logo, uma
sermão, dos textos bíblicos, das cartas, de algumas obras filosóficas,
13 (LIMA 1981:193)
etc. — quando eles também participam (ou são rebentos) de outras 14 Os atos de fala são classificados em três categorias. Locutivos ou locucioná-
rios são os enunciados que, tanto gramaticalmente quanto fonologicamente, e
áreas do conhecimento humano. No caso, o jornalismo, a teologia, dentro de certo código linguístico, são reconhecíveis pelo interlocutor/ouvinte.
a filosofia etc. Toda essa dúvida fica mais acentuada quando essa Perlocutivos ou perlocucionários são os atos em que o autor do enunciado espera
do seu interlocutor/ouvinte alguma reação, isto é, são atos em que o enunciador
reflexão se dá em um país um tanto que avesso à reflexão teórica, tem pouco controle, ou um controle limitado, sobre as consequências dos seus
enunciados. Ilocutivos ou ilocucionários são os atos de asserção: perguntar, dar
10 Aristóteles observa na Metafísica (983ª, 3-4) que um provérbio grego dizia que ordens, agradecer etc. Ao definir os atos de fala, dentro de certas convenções e
“[...] os poetas dizem muitas mentiras [...]” (ARISTÓTELES 2005:13). circunstâncias, eu estou realizando um ato de asserção. Ainda sobre os atos de
11 (Apud CURTIUS 1996:279) fala, ver OHMANN (1990:85-102)
12 (SANTO AGOSTINHO 1988:278) 15 (OHMANN 1987:24; 1971:1-19)
40 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 41

obra literária “não pode se justificar por critérios de verdade”, suas textuais encerram significados implícitos, a exemplo das notas di-
proposições são apenas pseudoproposições, “despojadas de alguma plomáticas, dos anúncios publicitários e das cartas dos enamora-
maneira de seu poder assertivo”;16 3º O discurso literário se carac- dos22; 4º “Todo discurso produz seu impacto nas emoções do leitor e
teriza pelo seu caráter e o significado implícito das palavras; 4º Na ouvintes, e alguns discursos não literários possuem, provavelmente,
literatura, os escritores usam as palavras buscando despertar e orde- maior carga emotiva do que qualquer [outro] discurso literário”23;
nar sentimentos emotivos no leitor, diverso do que ocorre nas obras 5º “[...] uma obra literária tende a atrair as diversas atenções [do
discursivas ou científicas, “[...] que se dirigem primordialmente às leitor] porque ele sabe que [se trata de] uma obra literária, em lugar
crenças do leitor” ; 5º dentro da comunicação verbal, que encerra
17
de provar que é uma obra literária por atrair um tipo de atenção
seis categorias (remetente, destinatário, contexto, contacto, código adequada”24; 6º “[...] apesar da importância que têm para a literatura
e mensagem), a função poética da linguagem se dá no “enfoque da a repetição, a variação e os padrões de todo tipo, estes traços não
mensagem por ela própria [...]”18; 6º “Todo discurso está estrutu- delimitam a classe de discursos a que queremos chamar ‘literatura’,
rado de acordo com a gramática da língua em que está escrita ou já que existem muitas conexões tanto voluntárias como inadvertidas
é falada. As obras literárias revelam, com frequência, estruturas em todo discurso”25.
excessivamente alijadas das exigidas pela gramática; a métrica e a Apesar de concordarmos com as objeções de Ohmann, acredi-
rima são claros exemplos”19. tamos, no entanto, que as insuficiências conceituais aqui elencadas
Para Ohmann, todos esses conceitos são antes um relatório (re- residem no fato da “natureza” da literatura só poder ser apreensível
porting) sobre o uso genérico da palavra literatura do que uma de- se considerarmos o fenômeno literário (assim como qualquer outro
finição que proporcione um “discernimento” ou uma “penetração” modo formal do conhecimento humano) como um todo sistêmico.
(insight) da sua natureza20. Assim, buscando definir a natureza da Temos que apreender as particularidades do texto, a intenção de
literatura, Ohmann, de maneira sucinta, expõe as suas objeções aos quem o produz e, como parte dessa intenção, a recepção de quem
conceitos recolhidos acima: 1º não há como distinguir entre o modo o lê. Mesmo sabendo que, isoladamente, cada um desses aspectos
como as palavras se referem em literatura e o modo como elas se sejam variáveis conceituais, em conjunto, eles parecem se constituir
referem em outras formas de discurso, pois, em ambas as situações, (e é o que tentaremos demonstrar) em uma invariável. Partindo
as palavras são usadas nos dois sentidos: conotativo e denotativo ;21
dessa premissa, perseguiremos quatro tópicos que, em conjunto,
2º falsas proposições podem ser encontradas tanto em uma obra poderão melhor definir o que constitui, de fato, um texto literário:
literária quanto em outras formas de discurso; 3º todos os gêneros 1. A imitação e a ficcionalidade do texto (compondo a unidade dos
16 (OHMANN 1987:17) gêneros literários) e, como parte dessa ficcionalidade, a recepção de
17 (OHMANN 1987:19)
18 (JAKOBSON 1991:127-128. Apud OHMANN 1987:20) 22 (OHMANN 1987:18)
19 (OHMANN 1987:21) 23 (OHMANN 1987:19)
20 (OHMANN 1987:11) 24 (OHMANN 1987:20)
21 (OHMANN 1987:15-16) 25 (OHMANN 1987:21)
42 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 43

quem o lê perfazendo o pacto ficcional; 2. A intencionalidade do No caso específico das “ciências poiéticas” ou “ciências produ-
autor (o estatuto histórico-temporal da obra e, por desdobramen- tivas”, objeto aqui do nosso estudo, Aristóteles assinala que “[...] o
to, as marcações dadas pelo autor empírico e que delineiam a sua princípio do movimento se encontra no artífice [o poeta] e não na
recepção); 3. A verdade e a realidade textuais (o caráter imanente coisa produzida, e esse princípio consiste ou numa arte ou nalgu-
do texto); 4. Os significados e significações do texto (sua condição ma outra potência”. O mesmo princípio ocorre na “ciência prática”:
artística e trans-histórica). Vamos por etapas. “[...] o movimento não reside no que é objeto de ação, mas nos
agentes”.29 Em outras palavras: “[...] o princípio das produções está
III naquele que produz, seja no intelecto, na arte ou noutra faculdade;
e o princípio das ações práticas está no agente, isto é, na volição,
A Imitação e a Ficcionalidade do Texto enquanto coincidem os objetos da ação prática e da volição”30.
Na Metafísica, Aristóteles afirma que todo conhecimento racional Dentro desse preceito, a tékhne (τέχνη, arte) é um ofício dirigido
ou era “[...] prático, ou produtivo, ou teorético [...]”26. O domínio das antes ao fazer (a produção) — no caso, à arte poética (poietiké
ciências “produtivas” era o “fazer”; o das ciências “práticas”, o “agir”; tékhne, ποιητική τέχνη) — do que à ação (praktiké, πρακτική), ao
e o das ciências “teóricas”, a natureza. Esta, no caso, compreendia a agir. Daí a contraposição entre as artes que imitam a natureza (a
física, a matemática e a teologia; as ciências “práticas” encerravam, arte poética)31 e as que complementam a natureza (a que nasce da
por exemplo, a ética e a política; e as “ciências produtivas” a poiética, experiência). A experiência — a arte do artesão, do pedreiro... — é
as artes. No entanto, são as ciências teoréticas que Aristóteles con- pragmática, em geral repetitiva e mecânica, requer uma habilida-
siderava como as mais excelentes entre as demais ciências e, dentre de e um conhecimento técnicos adquiridos pela prática, não indo
elas, a teologia como a mais excelente de todas.27 Observe-se, no além do conhecimento do “quê”, do “dado de fato”, e busca integrar
entanto, que há uma diferenciação entre o “agir” e o “fazer”. Em a a natureza. As artes imitativas, em contraposição, se dirigem ou
Ética a Nicômaco, Aristóteles distingue se aproximam do conhecimento do porquê, se constituindo, desse
modo, em uma forma de conhecimento ou de saber, “[...] um saber
[...] o que é produtível e o que é realizável pela ação. A produção que não é fim em si mesmo nem sequer um conhecimento buscado
é diferente da ação [...]. Assim, a disposição prática conformada em vista da ação moral (como a política e a ética), mas antes em
por um princípio racional é diferente da disposição produtora prol do objeto produzido”32.
conformada por um princípio racional. Assim, nenhuma das
29 (ARISTÓTELES 2005:511, 1064ª, 11-14)
duas é envolvida pela outra, porque nem a ação é produção nem 30 (ARISTÓTELES 2005:270-271, 1025b, 22-25)
31 Em Física, Aristóteles (2009:47, II, 194ª, 21) afirma que “[...] a técnica [arte] imita
a produção é ação.28
a natureza [...]”. Para Lucas Angioni (2009:237), o argumento de Aristóteles
é que “[...] a técnica imita a natureza, isto é, técnica e natureza obedecem a
26 (ARISTÓTELES 2005:271, 1025b, 25-26) padrões similares, de tal modo que o conhecimento técnico serve de modelo
27 (ARISTÓTELES 2005:513, 1064b, 1-5) adequado para conceber o conhecimento da natureza”.
28 (ARISTÓTELES 2009:132, 1140ª, 1-6) 32 (REALE 2001:107)
44 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 45

Investigando as causas e os princípios da Poiética, Aristóteles e o “modo” também seriam observáveis (daí serem variáveis) nos
irá discorrer sobre quais são os objetos de conhecimento dessa ciên- demais gêneros textuais. Afinal, não são apenas as poesias imitativas
cia. O propósito do seu estudo não é somente se ater com vagar so- que lançam mão do mito, do maravilhoso, da elocução, dos proce-
bre as estruturas e os procedimentos formais dos gêneros trágicos
33
dimentos retóricos, do pensamento, do caráter, do reconhecimento,
e épicos, mas, e principalmente, buscar “[...] a essência que é própria da peripécia, da catástrofe... Em O Banquete, por exemplo, Platão se
do gênero de coisas [...]” de que se ocupa34. Para tal perquirição, o vale de um “modo” enunciativo na segunda pessoa (a obra, por se
conceito de imitação (mímesis, μίμησις) se mostra central em sua valer do método dialético, é constituída por diálogos entre Sócrates
“ciência poética”. e os seus interlocutores) e tem como “objeto” um tema superior:
Enunciando que a poesia é imitação, Aristóteles define os seus Eros e o Amor ao Bem. Assim, delimitando o que é inerente à na-
aspectos segundo o “meio” (critério formal: o uso do ritmo, do canto tureza do fato artístico, Aristóteles defende que não é a versificação
e do metro como fatores de diferenciação entre os poemas), o “obje- que define os gêneros miméticos, pois
to” (critério temático: a mimetização da ação dos homens segundo
a sua índole elevada ou baixa) e o “modo” (princípio enunciativo, a [...] se alguém compuser em verso um tratado de Medicina ou
maneira como se efetua a imitação: na primeira, na segunda ou na Física, esse será vulgarmente chamado ‘poeta’; na verdade, porém,
terceira pessoas).35 Mas o que é inerente à natureza do fato artísti- nada há de comum entre Homero e [o fisiólogo] Empédocles, a
co está delimitado nos “primeiro” e “nono” capítulos da Poética. A não ser a metrificação: aquele merece o nome de ‘poeta’, e este, o
necessidade de tal delimitação parece decorrer de uma constatação de ‘fisiólogo’, mais que o de poeta36.
implícita: as classificações da imitação segundo o “meio”, o “objeto”
33 Lubomír Dolezel nota que há na “[...] mereologia aristotélica uma associação du- O que diferencia a obra do poeta da obra de Empédocles é que
radoura entre a poética e o ‘modelo orgânico’; a poética teórica será fortemente
“[...] não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de re-
influenciada pelas analogias entre as estruturas da poesia e as estruturas da na-
tureza viva”. Citando Abraham Edel em nota de rodapé, ele assinala: “’as partes presentar o que poderia acontecer, quer dizer: segundo a verossimi-
[da tragédia] são tratadas quase da mesma maneira como são tratados, nas
obras de biologia, os órgãos ou partes dos animais, tendo em conta o desem- lhança e a necessidade”37. Exemplificando mais uma vez a sua tese,
penho das suas funções em relação ao organismo como um todo’”. (DOLEZEL ele toma dois gêneros textuais distintos — a Poesia e a História — e
1990:43).
34 (ARISTÓTELES 2005:511, 1064ª, 5-6) os seus “meios” de mimetizarem a realidade:
35 (ARISTÓTELES 1994:103-106, 1447ª-1448b). Lubomír Dolezel acrescenta à tríade
um quarto aspecto: a “função”. Embora reconheça que a “função” não conste
da classificação inicial da Poética, ele nota que “noutro contexto, a função é ex- [...] não diferem o historiador e o poeta, por escreverem verso ou
plicitamente referida e caracterizada como ‘o prazer que se retira das obras de
imitação (1448b). A inclusão da ‘função’ no modelo das artes miméticas explica prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as obras de
o aparecimento do ‘item catarse’ na definição da tragédia [...]. Caso contrário, a
Heródoto, e nem por isso deixariam de ser História, se fossem
introdução da ‘catarse’ aparece como uma anomalia no procedimento derivativo
de Aristóteles [...]”. DOLEZEL (1990:39, nota 2). Para o nosso presente estudo,
recorremos também às seguintes edições da Poética: ARISTOTE (1980), (2002), 36 (ARISTÓTELES 1994:104, 1447b, 16-21)
ARISTÓTELES (2008), (1997) (2010). 37 (ARISTÓTELES 1994:115, 1451ª, 36-39)
46 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 47

em verso o que eram em prosa) — diferem, sim, em que diz um se dá nos gêneros miméticos pela “[...] coerência, [pela] íntima cone-
as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder”. (grifo xão dos fatos e das ações, [sendo] as próprias ações entre si ligadas
nosso)38 por liames de verossimilhança e necessidade”43. Desse modo, são as
espécies de poesia imitativas que se valem do Mito (mýthos, μυθος)
A comparação, aqui, não se restringe apenas ao fato de que (compreendido por Aristóteles como “[...] imitação de ações [...]” e
um (o historiador) diz “as coisas que sucederam, e outro [o poeta] como “[...] a composição dos atos [...]”)44 as que melhor permitem
as que poderiam suceder”, mas também porque a poesia, por tra- ao poeta construir a “íntima conexão dos fatos e das ações”. Por ser
tar do que poderia acontecer, é mais filosófica e mais séria do que Uno, por encerrar uma ação com princípio, meio e fim (como de-
a História, já que o poeta se refere principalmente ao “universal” vem ser a tragédia e a epopeia), o Mito não se imputa “[...] a uma
(kathólou,  καθολου), e  o historiador ao “particular” ou “singu- só pessoa [o “particular”] [...], pois há muitos acontecimentos e
lar” (kath’hékaston, κάϑ’έκαστov). No tratado Da interpretação, infinitamente vários, respeitantes a um só indivíduo, entre os quais
Aristóteles define os conceitos de “universal” e “particular” nos não é possível estabelecer unidade alguma. Muitas são as ações que
seguintes termos: “[...] denomino de universal aquilo que natural- uma pessoa pode praticar, mas nem por isso elas constituem uma
mente é predicado em muitas coisas, e de singular aquilo que não é, ação una”45. Por perseguir essa ação Una é que o poeta não deve
por exemplo: homem pertence às coisas universais e Cálias [famoso versificar todos os sucessos da vida de um Mito, mas somente os que
guerreiro grego] às singulares” . A História, aqui, é predicado ape-
39
são necessários e verossímeis à ação46. Dessa forma, a oposição entre
nas de um dado “evento”, já a poesia, enquanto “conhecimento dos História e poesia é, segundo Eudoro de Sousa,
universais”, de vários objetos . Ou como se lê na Metafísica: “[...] a
40

substância [ousía, Οὐσία, aquilo que é] primeira de cada indivíduo [...] entre o acontecido e disperso no tempo (História) e o aconte-
é própria de cada um e não pertence a outros; o universal, ao con- cível, ligado por conexão causal (poesia). ‘Acontecido’ e ‘aconte-
trário, é comum: de fato, diz-se universal aquilo que, por natureza, cível’ são ambos verossímeis; mas só os acontecimentos ligados
pertence a uma multiplicidade de coisas”. Assim, o “Homem” é
41
por conexão causal são necessários. [Assim,] [...] pelo lado da
um “universal”; um “homem específico” (Cálias), um “particular”, verossimilhança, haveria um ponto de contato entre História e
um “singular”, pois este encerra “[...] aquilo que não é dito de um poesia; contudo, a poesia ultrapassa a História, na medida em
sujeito ou não está presente num sujeito [...]” . Em “comentário” à
42
que o âmbito do acontecível excede o do acontecido.47
sua tradução da Poética, Eudoro de Sousa observa que o “universal”

38 (ARISTÓTELES 1994:115, 1451ª, 39-40; 1451b, 42-45) 43 (SOUSA 1994:170)


39 (ARISTÓTELES 2013:9-10) 44 (ARISTÓTELES 1994:111, 1450ª, 2-3)
40 (Ver PETERS 1983:124) 45 (ARISTÓTELES 1994:114, 1451ª, 16-18)
41 (ARISTÓTELES 2005:347, 1038b, 10-13) 46 (ARISTÓTELES 1994:115, 1451ª, 22-29)
42 (PETERS 1983:180) 47 (SOUSA 1994:170)
48 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 49

Só o “acontecível” dá ao poeta a liberdade de não se ater a todos os gregos tinham uma cultura anti-histórica, pois suas concepções
os eventos que constituem a trajetória de um Mito (suas particula- cíclica e repetitiva da história não acatavam o presente como algo
ridades), e se voltar apenas àqueles que são “ligados por conexão diverso do passado e do futuro e, por sua vez, o futuro como um
causal”. evento que seria distinto do presente (os sofistas, p. ex., acreditavam
Como os poetas buscam o “universal” (uma espécie de arqué- na ideia de progresso técnico, mas não na de progresso moral), por
tipo eterno) e não o “particular” (o “evento”), sua imitação “[...] que eles criaram a História? Para Jacques Le Goff, duas foram as
incidirá num destes três objetos: [1º] coisas quais eram ou quais motivações. A primeira, étnica. Era preciso se distinguir dos bár-
são, [2º] quais os outros dizem que são ou quais parecem, [3°] ou baros. Neste caso, “a concepção de história está ligada à ideia de
quais deveriam ser” . Mesmo quando o poeta despreza o Mito e
48
civilização”. A segunda, como arma política e memória das famílias
busca matéria em objetos distintos (fatos que ocorreram ou estão a nobres e dos sacerdotes dos templos50. José Carlos Reis nota que o
ocorrer, fatos que a tradição oral diz que ocorreram ou parecem que conceito grego de História desconhecia as ideias de “humanidade
ocorreram e fatos puramente criados pela imaginação do poeta), a universal”, “progresso”, “evolução” ou mesmo a proposição de que
exemplo das comédias, das tragédias que prescindiam do Mito, e da a humanidade tinha um destino. Preocupações que só nasceriam
produção dos poetas ditirâmbicos ou líricos, ele, o poeta, deve se com os historiadores latinos (a exemplo de Políbios) e cristãos. Para
submeter ao que é inerente à natureza do fato artístico: representar os gregos, a “sua história apenas ensinava, em relação ao futuro, a
o que poderia acontecer. necessidade da memória, da prudência, da cautela, da resignação”51.
Para se entender melhor os argumentos de Aristóteles, lem- Cultores de uma teoria dos ciclos da idade, os gregos (a exemplo
bramos que é na oposição firmada, desde fins do século VI a.C., de Heráclito) acreditavam que cada ciclo durava 18.000 anos —
entre “Mito” e “Lógos” (λόγος), que se calçou o antagonismo entre “Princípio e fim se reúnem na circunferência do círculo”, afirmava
a História e os gêneros poéticos (particularmente a tragédia e a Heráclito52. À Idade do Ouro, seguiriam as Idades de decadência e,
epopeia); entre o “acontecido” e o “acontecível”. “Lógos”, no senti- na ordem cíclica, ao fim dessas Idades, ressurgiria a Idade do Ouro.
do de razão, racionalidade, ordem racional do cosmo e da beleza; “Sob a ação do fogo, elemento fundamental, o mundo conhece, atra-
“Mito”, como narrativa sobre matéria ilusória, fantasiosa, da ordem vés dos contrários em perpétuo fluxo de interação, fases alternadas
do irracional e do incognoscível. A História nasce e se constitui de criação (gênesis) e de desintegração [consumação] (ekpýrosis)
por negação do mítico. O historiador, diverso do poeta, é “aquele que se exprimem por uma alternância de períodos de guerra e de
que vê”, que “procura saber”, “informar-se”, que investiga49. Mas se paz”53. Filhos do “Logos”, da razão, da racionalidade, da explicação
Aristóteles não acatava a História como matéria da filosofia, por natural, os historiadores gregos buscavam dar ao mundo um sentido
tratar do particular e por não ser predicado de vários objetos; se
50 (LE GOFF 1994:62)
51 (REIS 2006:16)
48 (ARISTÓTELES 1994:143, 1460b, 8-10) 52 (HERÁCLITO 1991:87, frag. 103)
49 (LE GOFF 1994:17) 53 (LE GOFF 1994:297)
50 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 51

metafísico, tal como a ordem e a beleza imutáveis do universo. Ao futuro não seriam melhores do que os passados e os atuais. Os

compararem a História —“[...] o lugar sublunar da mudança, da de- oráculos tinham o dom de ver a vida predestinada dos indivíduos

sordem”54 — com o cosmo, os historiadores abstraíam a história e o que as musas lhe sopravam. Estas conheciam tudo: o passado e

tempo e buscavam estabelecer a ordem das coisas, a ordem que esta- o futuro. Os eventos presentes e passados tinham as mesmas

ria na “substância” das mudanças. “A palavra ‘destruição’ significava características. Heródoto só queria evitar o esquecimento das

só ‘mudança’ e todas as idades voltariam a existir com as mesmas singularidades humanas. O significado dos eventos lhes era im-

coisas e os mesmos homens”55. Assim, as destruições advindas dos plícito e não os transcendia.58

eventos históricos seriam apenas aparentes, pois elas encerravam


uma ordem imutável. “A mudança não poderia levar ao ser, pois um Se a mudança implicava na ideia de que era possível alterar a
ser que muda já não é. O ser-que-é é alheio à mudança, imutável, imutabilidade da ordem cósmica, ideia desdenhada por historiado-
estável, permanente, sempre presente”56. A “natureza humana” está res e filósofos gregos, o Mito, que se inscrevia na ordem do irracional
subordinadas a ciclos (crescimento, decadência e morte), mas, aos e do incognoscível (ordem “[...] incompatível com um pensamento
olhos da razão grega, ela é imutável, pois as pulsões e as necessida- que buscasse a verdade”59), encerrava tanto a “fortuna”, o “acaso” e a
des dos homens foram, são e serão sempre as mesmas, assim como “contingência” quanto a “sorte-azar” e a “vicissitude”: as peripécias
a ordem existente no universo. O sentido de que a história tinha da riqueza para a pobreza, da vitória para a derrota, da escravidão
como fim trazer para a humanidade a felicidade inexistia para os para a liberdade e vice-versa60. O Mito, distinto do evento histórico,
gregos. Se existia uma felicidade a ser conquistada, esta era indivi- podia ser tomado como objeto do “acontecível” sem que tal condi-
dual, proporcional aos feitos heroicos de cada um. Feitos que davam ção ferisse a verdade histórica ou filosófica, pois ele continha em si
ao indivíduo o direito de ser lembrado pelos pósteros57. Os gregos, o acaso que os homens estão sujeitos ao longo da existência. Desse
nota José Carlos Reis, modo, esse caráter incognoscível do Mito permite que o poeta colha
dele mais significados do que ele pode oferecer. É dessa forma que as
[...] não se perguntavam ‘o que fazer?’, questão que indica o fu- Musas proclamavam “muitas falsidades, que se parecem com a ver-
turo, mas ‘o que aconteceu?’, questão que aponta para o passado, dade; mas também, quando queremos, proclamamos verdades”61.
que preferiam recente. Não se interessavam historicamente pelo Em outras palavras: se, para Tucídides, o destino de determinados
futuro como ‘humanização’, nem pelo longínquo passado, que eventos ou personagens é uma preconização dos oráculos e das
tratavam miticamente. Acreditavam que o futuro individual já interferências míticas, para os gêneros poéticos eles, os oráculos e
estava dado e podia ser antevisto pelos oráculos. Os homens do as interferências míticas, ficam parede-meia entre a falsidade e a

54 (REIS 2006:16). 58 (REIS 2006:17-18)


55 (LE GOFF 1994:298). 59 (REIS 2006:17)
56 (REIS 2006:17) 60 (REIS 2006:17)
57 (REIS 2006:16) 61 (HESÍODO 2005:102)
52 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 53

verdade: dentro do horizonte do “acontecível”. Livrando-se dessa mas “pela imitação praticada”65. E é a “imitação praticada”, a mímesis
camisa de força imposta pela História, o Mito (como guardião da enquanto lugar do “acontecível”, que é inerente à natureza do fato
natureza inconsciente dos desejos e dos valores coletivos) pode artístico, à essência da poietike tecné.
encerrar o “predicado de vários objetos”. Assim, ao se ater ao even- Se o conceito de mímesis será também acolhido no mundo lati-
to que marca “[...] a mutação dos sucessos no contrário” , isto é, 62
no, não podemos esquecer que é naquele espaço literário que nasce
aquele em que o Reconhecimento e a Peripécia provocam na vida uma nova designação para a arte dos poetas: atribuir aos gêneros
do personagem “[...] a passagem do ignorar ao conhecer [...]”63 e, miméticos um caráter de fingimento, de fingir fazer, de simular:
por extensão, suscitam o terror e a piedade no leitor/expectador — o fingere. Ora, fictio (Ficção, ficción, fiktion, finzione, fiction) deriva
a Catarse (kátharsis, Κάθαρσις), a purificação —, o poeta toma do de fingere, mas também significa, no sentido próprio, “criação” e, no
Mito a moral universal que ele contém em si. sentido figurado, “ação de fingir”. Se a palavra fictio (ficção) significa
Partindo do princípio de que cada ciência encerra “[...] a criar (e quem cria cria algo para), ela também encerra nesse criar o
essência que é própria do gênero de coisas [...]” de que se ocupa, fingimento, o fingir fazer e o simular que provêm da sua raiz semânti-
Aristóteles distingue não apenas a Arte Poética (ciência “produti- ca (fingere). De modo que a sua “ação de fingir” a distingue de outras
va”) das ciências “teóricas” e “práticas”, mas também da História, formas de criação que estão submetidas aos conceitos e critérios de
que por se valer também da narrativa — o “modo” —, não difere da verdade/mentira. Afinal, quem finge, finge para alguém, o que implica
produção do poeta por ser escrita em verso ou em prosa, mas por que esse alguém tem que se inscrever nessa ação; ser parte dessa ação.
buscar narrar o “acontecido” e não o “acontecível”. É essa natureza No entanto, quais são as implicações da palavra fingere e da sua
específica da poietike tecné que urde as diversas espécies de poesia derivação fictio no campo da criação literária? Onde este conceito dife-
imitativa numa só família: a que mimetiza a realidade empírica (a re ou complementa o de mímesis, já que ele, no mundo latino, se aplica
natureza humana e a vida) não como se ela fosse a “semelhança mais ao mesmo conjunto de gêneros que os gregos acatavam como mimé-
semelhante” , mas pela sua recriação, por “representar o que pode-
64
ticos: o lírico, o dramático e o épico? Vamos para o próximo tópico.
ria acontecer”. Não se é poeta “pelo metro usado”, diz Aristóteles,
IV
62 (ARISTÓTELES 1994:118, 1452a, 22)
63 (ARISTÓTELES 1994:118, 1452a, 31)
64 Refiro-me, aqui, à passagem em que Sósia, personagem da comédia Anfitrião,
A Intencionalidade do Autor
de Plauto, depara-se com alguém que era a sua “semelhança mais semelhante”.
Ante tal fato inusitado, ele observa: “Quando o examino e reconheço a minha
Richard Ohmann, dentro dos chamados atos de fala, assinala que
figura, tal e qual eu sou — tenho-me visto muitas vezes ao espelho —, nada há
mais semelhante a mim mesmo” (PLAUTO 1986:46). Ou seja, nenhuma “seme- o problema das definições correntes sobre literatura é que ora elas
lhança mais semelhante” era possível entre dois homens se não fosse por meio
de uma imagem, a de Sósia, refletida no espelho. A arte seria não o que acontece se centram nos atos locutivos, ora nos atos perlocutivos. Saindo
quando nos olhamos no espelho, uma imagem da “semelhança mais semelhan- dessa dicotomia texto/efeito, vamos nos ater, agora, nos “atos
te”, mas o que poderia acontecer caso o espelho deformasse a nossa imagem: “a
dessemelhança do que até então nos parecia semelhante”. 65 (ARISTÓTELES 1994:104, 1447b, 15).
54 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 55

ilocucionários”, isto é, nos atos que encerram os enunciados, as Na ausência desses traços comuns, cabe ao autor decidir se a sua
perguntas, as promessas, as ordens, os pedidos de desculpa, os obra é ou não ficção, mas, para Searle, só ao leitor recai a decisão
agradecimentos, etc. Para tal, vamos nos valer das reflexões desen- sobre se uma obra é ou não literatura. Assim, não há, para ele, um
volvidas por John R. Searle no ensaio “O estatuto lógico do discurso limite que caracterize as obras literárias das não literárias.
ficcional” . Caminhemos.
66

Searle nota que “[...] há um conjunto sistemático de relações 2. No caso da segunda distinção — os discursos ficcional e
entre os significados das palavras e sentenças que emitimos e os figurado —, Searle observa que, em ambos os casos, “[...] as re-
atos ilocucionários que realizamos na emissão dessas palavras e gras semânticas são alteradas ou sustadas de alguma maneira”.
sentenças” . Partindo dessa premissa, ele observa que essas relações
67
No entanto, no discurso ficcional, essas regras se dão de modo
levam a uma encruzilhada teórica quando focamos o discurso fic- diferente e independente das figuras de linguagem70. Para melhor
cional, pois “[...] como é possível que as palavras e outros elementos exemplificar a sua tese, ele assinala que a expressão metafórica é
tenham, numa estória de ficção, seus significados ordinários e, ao “não literal” [nonliteral], enquanto as emissões ficcionais são “não
mesmo tempo, as regras associadas a essas palavras e outros ele-
Wittgenstein. Nesta obra, o filósofo vienense constrói o conceito de “jogos de
mentos, regras que determinam seus significados, não sejam cum- linguagem”. Diz ele: “[..] todo processo de uso de palavras em (2) [a lingua-

pridas?”68 Antes de responder a esse “problema de difícil solução”, gem como um meio de entendimento entre um emissor e um receptor] seja um
dos jogos por meio dos quais as crianças aprendem sua língua materna. Quero
que é o objeto do seu ensaio, Searle assinala duas distinções que chamar esses jogos de ‘jogos de linguagem’, e falar de uma linguagem primiti-
va às vezes como de um jogo de linguagem.// E poder-se-ia chamar também
devem ser feitas em relação ao discurso ficcional. 1. “distinção entre de jogos de linguagem os processos de denominação das pedras e de repeti-
ficção e literatura”; 2. “distinção entre discurso ficcional e discurso ção da palavra pronunciada. Pense em certo uso que se faz das palavras em
brincadeiras de roda.// Chamarei de ‘jogo de linguagem’ também a totalidade
figurado”. Vamos a elas. formada pela linguagem e pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada”
(WITTGENSTEIN 1996:18-19 [§ 7]). A parte específica a que alude Searle, é a do
§ 66. Vejamos: “Observe, p. ex., os processos a que chamamos ‘jogos’. Tenho
1. Para Searle, a diferença entre ficção e literatura se faz neces- em mente os jogos de tabuleiro, os jogos de cartas, o jogo de bola, os jogos de
combate, etc. O que é comum a todos estes jogos? — Não diga: ‘Tem de haver
sária porque o discurso literário é de difícil análise. É que nada obs- algo que lhes seja comum, do contrário não se chamariam ‘jogos’ —, mas olhe se
tante muitas obras literárias serem ficção, o fato é que, para ele, nem há algo que seja comum a todos. — Porque quando olhá-los, você não verá algo
que seria comum a todos, mas verá semelhanças de família, parentescos, aliás,
toda obra ficcional é literatura e nem toda obra literária é ficcional. uma boa quantidade deles. Como foi dito: não pense, mas olhe! Olhe, p. ex., os
jogos de cartas: aqui você encontra muitas correspondências com aquela pri-
Ou seja, inexiste, no seu entender, um conjunto de traços comuns meira classe, mas muitos traços comuns desaparecem, outros se apresentam. Se
que encerrem todas as obras literárias, pois, citando Wittgenstein, passarmos agora para os jogos de bola, veremos que certas coisas comuns são
mantidas, ao passo que muitas se perdem. — Prestam-se todos eles ao ‘entrete-
“[...] a noção de literatura é uma noção por semelhança de família”69. nimento’? [...] E assim podemos percorrer os muitos, muitos outros grupos de
jogos, ver as semelhanças aparecerem e desaparecerem.// E o resultado desta
66 (SEARLE 1995:95-119; 1997:58-75) observação é: vemos uma complicada rede de semelhanças que se sobrepõem
67 (SEARLE 1995:95) umas às outras e se entrecruzam. Semelhanças em grande e em pequena escala”
68 (SEARLE 1995:95-96) (WITTGENSTEIN 1996:51-52).
69 (SEARLE 1995:97). O autor se refere ao livro Investigações filosóficas, de Ludwig 70 (SEARLE 1995:98)
56 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 57

sérias” [nonserious]. Por exemplo: quando Ricardo Piglia escreve, usam palavras e enunciados literais. A diferença entre um excerto
em seu romance Respiração artificial, “passei a noite quase insone e outro é que o texto do jornal é “[...] um tipo de ato ilocucionário
por causa do calor e agora estou sentado de frente para o frescor da que se submete a certas regras semânticas e pragmáticas bastante
janela” , isso não significa que, no momento em que ele escrevia,
71
específicas”. A saber:
houvesse algum frescor entrando pela janela, fizera calor na noite
anterior, ou muito menos ele passara a noite quase insone. Não há 1 - A regra essencial: quem faz uma asserção se compromete com
nenhum compromisso do Piglia romancista com este enunciado a verdade da proposição expressa. 2 - As regras preparatórias: o
dito pelo narrador do seu romance. É desse modo que a ficção é um falante deve estar preparado para fornecer evidências ou razões
discurso “não sério”, nada obstante a frase enunciada pelo escritor da verdade da proposição expressa. 3 - A proposição expressa não
argentino ser literal. Diverso ocorre quando um ensaísta escreve deve ser obviamente verdadeira para ambos, falante e ouvinte, no
que o seu artigo irá analisar e interpretar a obra de Machado de contexto da emissão. 4 - A regra da sinceridade: o falante com-
Assis. Neste caso, o enunciado é, ao mesmo tempo, sério e literal. promete-se com a crença na verdade da proposição expressa.75
No entanto, quando o mesmo ensaísta escreve que “Hegel é uma
carta fora do baralho no jogo filosófico”, esse enunciado, que é Para Searle, caso o texto do New York Times não observasse to-
uma metáfora, é sério, mas não é literal, já que é uma expressão das as regras acima, sua asserção seria defectiva [defective], isto é, in-
metafórica . 72
correria no falso, no errado, no incorreto ou na mentira. Neste caso,
Feitas as devidas ressalvas, Searle retoma a pergunta de “difícil “as regras estabelecem os cânones internos da crítica das emissões”76.
solução” posta no início do seu ensaio. Para respondê-la, ele deixa O inverso ocorre no texto de Iris Murdoch, pois “sua emissão não é
de lado as diferenças entre emissões literais [literal] e figuradas [fi- um compromisso com a verdade da proposição”. Isso não significa
gurative] e se propõe a explorar as dissimilitudes entre as emissões dizer que a proposição seja verdadeira ou falsa, e, sim, que a escritora
[utterances] sérias [serious] e ficcionais [fictional] . Para tal empre-
73
“[...] não tem qualquer compromisso com a sua verdade”. Ora, como
endimento, ele escolhe, inicialmente, dois exemplos: uma matéria ela não tem “compromisso com a sua verdade”, ela não é “[...] capaz
jornalística do New York Times, assinada por Eileen Shanahan, e um de fornecer evidências de sua verdade”. Desse modo, “não vem ao
excerto do romance The Red and the Green [O Vermelho e o verde], caso que já estejamos ou não informados de sua verdade”77.
de Iris Murdoch74. Ambos os exemplos se valem de asserções que
excerto do romance, lemos: “Mais dez dias gloriosos longe dos cavalos! Era no
71 (PIGLIA 1987:28) que pensava o segundo-tenente Andrew Chase-White, recentemente comissio-
72 (SEARLE 1995:98) nado no ilustre regimento King Edward’s Horse, enquanto vagueava contente
73 (SEARLE 1995:99) por um jardim dos subúrbios de Dublin, numa tarde ensolarada de domingo, em
74 No texto do New York Times, lemos: “Washington, 14 de dezembro — um grupo abril de 1916” (SEARLE 1995:100).
de membros dos governos federal, estaduais e municipais rejeitou hoje a ideia 75 (SEARLE 1995:101)
do presidente Nixon de que o governo federal fornecesse ajuda financeira que 76 (SEARLE 1995:102)
possibilitasse aos governos locais reduzir impostos sobre propriedades”. No 77 (SEARLE 1995:102)
58 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 59

No entanto, uma pergunta se estabelece: se há uma asserção em ilocucionários, normalmente do tipo assertivo”. Assim, “[...] o
The Red and the Green, que tipo de ato ilocucionário é manifestado critério para identificar se um texto é ou não uma obra de ficção
no romance de Murdoch? Como pode existir uma asserção, se não deve necessariamente estar fundado nas intenções ilocucionárias
há nenhum compromisso com as regras específicas que caracteri- do autor”82. Mas conhecer as “intenções ilocucionárias do autor
zam as asserções? Para Searle, uma resposta equivocada seria admi- não significa saber, no que diz respeito à análise da obra, “[...] as
tir que existe um uso distinto das classes de atos ilocucionários nos intenções últimas de um autor [...]”, e, sim, as intenções quanto à
jornais e nos textos ficcionais. Neste caso, os atos ilocucionários na identificação do texto: se é um romance, um conto, uma novela,
ficção não são para enunciar, descrever ou explicar, mas apenas para uma epopeia, um poema.
contar uma estória. Assim, o ficcionista encerra o “[...] seu próprio Outra questão colocada por Searle é: “[...] o que torna possí-
repertório de atos ilocucionários, que estão no mesmo plano que os vel essa forma peculiar de fingimento?” Para ele, o que faz a ficção
atos ilocucionários de tipo padrão (fazer perguntas, fazer pedidos, possível “[...] é um conjunto de convenções extralinguísticas, não
fazer promessas, fazer descrições, etc.), mas se acrescentam a eles” .
78
semânticas, que rompem a conexão entre as palavras e o mundo
Caso essa premissa fosse correta, diz Searle, teríamos que admitir estabelecida pelas regras [...]”; que fazem de um enunciado uma
que uma mesma sentença literal usada, ao mesmo tempo, na ficção asserção sincera e não defectiva, isto é, “[...] regras [verticais] que
e no jornal, encerraria significados distintos. Desse modo, um leitor relacionam palavras (e sentenças) ao mundo”, que conectam a lin-
só poderia entender uma obra de ficção se aprendesse “[...] novos guagem à realidade83. Desse modo, as convenções que estabelecem o
conjuntos de significados correspondentes a todas as palavras e discurso ficcional se dão em cima de regras horizontais que rompem
outros elementos contidos na obra”79, o que o obrigaria, no caso do com as regras verticais. Tais convenções, no entanto, não encerram
falante da língua portuguesa, a ter que aprender novamente a sua nem as regras do significado, nem as que estabelecem a competência
própria língua materna. semântica do falante. Assim, Searle assinala que “[...] as elocuções
A resposta correta, para Searle, é que Iris Murdoch “[...] está fingidas que constituem uma obra de ficção são possíveis em virtu-
fingindo [pretend] fazer uma asserção, ou agindo como se estivesse de da existência de um conjunto de convenções que suspendem a
fazendo uma asserção, ou imitando o ato de fazer uma asserção”80. operação normal das regras que relacionam os atos ilocucionários
Fingir não no sentido de fraude, mas no sentido de “[...] envol- ao mundo”84. Em outras palavras: “[...] contar histórias [stories] é
ver-se numa encenação [...], de agir como se estivesse fazendo ou realmente um jogo de linguagem à parte”. Jogo de linguagem este
fosse essa coisa, sem nenhuma intenção de enganar”81. Neste caso, que “[...] não está no mesmo pé que os jogos de linguagem ilocucio-
“[...] o autor de uma obra de ficção finge realizar uma série de atos nários, mas é parasitário em relação a eles”85.

78 (SEARLE 1995:103) 82 (SEARLE 1995:106)


79 (SEARLE 1995:104) 83 (SEARLE 1995:107)
80 (SEARLE 1995:105) 84 (SEARLE 1995:108)
81 (SEARLE 1995:105) 85 (SEARLE 1995:108)
60 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 61

Ainda dentro desse raciocínio, uma pergunta precisa ser res- o acontecível, já delimita em qual ciência a sua obra se inscreve: os
pondida: “[...] quais são os mecanismos pelos quais o autor invoca gêneros produtivos.
as convenções horizontais — que procedimentos ele segue? Se, Concordamos que para uma emissão se constituir “não séria”
como eu disse, o autor não realiza de fato atos ilocucionários, mas é necessário que um autor empírico não tenha “[...] qualquer com-
apenas finge realizá-los, como realiza o fingimento?” Sua resposta
86
promisso com a sua verdade” (aquela enunciada pelo narrador ou
é exemplificada pela encenação dramática. Neste, um personagem pelo eu lírico) e, por decorrência, não seja “[...] capaz de fornecer
finge (e não o autor) bater em outro personagem e este, por sua vez, evidências de sua verdade”. No entanto, como o leitor vai saber
finge apanhar. Se a surra é fingida, os movimentos dos braços são que tal enunciado é “não sério”? Como ele distingue a seriedade
reais. O mesmo procedimento ocorreria na ficção, onde “o autor ou a não seriedade dos atos ilocucionários em textos que tratem
finge realizar atos ilocucionários por meio da emissão efetiva de do mesmo assunto: um romance histórico sobre D. Pedro II e uma
sentenças”. Ou seja, “[...] os atos ilocucionários são fingidos, mas o biografia histórica sobre este? Creio que tal distinção só é possível se
ato de emissão é real”, já que eles se efetivam através de “[...] atos houver uma cooperação entre o autor e o leitor no ato de fingimen-
fonéticos e fáticos” . 87
to. Ou seja, não basta que um autor empírico finja enunciar uma
Se a mímesis aristotélica se atém ao texto em si (suas estruturas, verdade, faz-se necessário que o leitor saiba que ele está fingindo. A
seus procedimentos formais e a sua natureza: o horizonte do acon- intencionalidade do autor empírico de fingir uma estória tal como
tecível), a ficção, segundo Searle, também incorreria no mesmo ca- ela deveria ter acontecido só se perfaz na disposição do leitor, co-
minho: o de encerrar no texto, por meio de enunciados “não sérios” nhecedor de tal intencionalidade, em acatá-la (o verbo “fingir”, por
[nonserious], emissões que não têm “compromisso com a verdade si, já encerra uma intencionalidade, pois quem finge finge para al-
da proposição”. Assim, tanto na mímesis quanto na ficção, haveria guém). E aqui temos que nos ater novamente à palavra fictio. Se ela,
uma ruptura entre o signo e o referente, entre o signo e aquilo a que no sentido próprio, significa criação e, no sentido figurado, “ação
ele se refere. É assim que Sófocles conta a estória de Édipo sem se de fingir”, não podemos perder de vista, como dissemos acima, que
preocupar em ser fiel ao seu referente: a narrativa oral e imemorial quem finge finge antes para alguém do que para si mesmo. Se o lei-
do Mito (forma simples). O mesmo ocorre com o texto ficcional: tor/expectador desconhece que os atos de fala e/ou determinados
seus enunciados não têm nenhum “compromisso com a verdade gestos dramáticos são fingidos, a cooperação textual ou dramática
da proposição”. Desse modo, para Searle, cabe ao autor empírico, e não se estabelece (nesse caso, o texto, enquanto criação, pode ser
somente a ele, decidir se a sua obra é ou não ficção, pois é nela que ele acatado como um enunciado crível e o ator, como louco). Sem que
lança mão dos atos de falas que a caracterizam como tal. Proposição as regras do jogo fiquem estabelecidas para ambos os jogadores —
que também se aplica à mímesis, pois o poeta, ao escolher enunciar autor empírico e leitor empírico —, não é possível que o estatuto do
fingimento se firme. Por quê? Porque só por meio desse pacto de
86 (SEARLE 1995:109)
87 (SEARLE 1995:109)
fingimento mútuo as fronteiras entre a ficção, a mentira e a fantasia
62 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 63

podem ser dissipadas. Como sabemos, o inverso da mentira é a ver- Outro ponto a observar é que a intencionalidade do autor
dade, e não a ficção ou a fantasia. O avesso de fingir é “desenganar”, empírico de fingir enunciados em uma determinada estória e a
no sentido de “esclarecer”. Mentir é iludir, trapacear. A mentira só disposição do leitor (seja o leitor-modelo ou o leitor empírico)88
é “jogada” (ou melhor, só é tomada como verdade) porque um dos em aceitar tal intencionalidade (instituindo a cooperação textual)
atores do “jogo” (o que está sendo enganado) desconhece as regras só se dão porque certos gêneros textuais encerram determinadas
do próprio “jogo”, desconhece que o pacto da verdade foi colocado marcações que foram estabelecidas socialmente e, por sua vez,
em suspensão. Logo, ele é levado a crer que tal enunciado — a men- acatadas. No caso dos gêneros miméticos, os gregos os definiram
tira — é verdadeiro. Um enunciado ou uma asserção só são acatados como épicos, dramáticos e líricos. Ora, se o “nível mais básico”
como mentira porque ferem um pacto, ou contrato, que envolve um das intenções de um autor é identificar o seu texto como romance,
acordo social, ou interpessoal, calçado em cima de um determinado conto, filosofia, teologia, história, sociologia, tese, dissertação etc.
critério de verdade. Um exemplo: uma nota monetária só pode ser (e cada um desses gêneros textuais encerra naturezas e, por sua vez,
tomada como falsa porque quem a falsificou rompeu com um pacto propósitos distintos), isso “já é afirmar algo sobre as intenções do
de verdade estabelecido entre a sociedade e a Instituição que a go- autor”, para usarmos as próprias palavras de Searle. Observando
verna, o Estado, já que este, por meio de vários mecanismos, é quem que as intencionalidades são instituídas não somente por aquele
emite o dinheiro e dá fé da sua validade monetária. que compôs a obra, mas também por quem a editou. Um livro é
No caso das fronteiras entre a ficção e a fantasia, podemos dizer denominado de romance, conto ou novela e, como tal, ele é pu-
que a ficção encerra a fantasia (a faculdade de imaginar ou criar pela blicado por um dado editor. Assim, toda a composição visual da
imaginação), mas a fantasia não encerra necessariamente a ficção. obra traz marcas das intenções do autor, reiteradas por seu editor: a
Um exemplo é o que se manifesta no portador de esquizofrenia. O orelha e a contracapa que explicam sobre o que versa o livro; a ficha
esquizofrênico é alguém que possui uma personalidade fragmenta- catalográfica; o local que, dentro de uma livraria, lhe é destinado; as
da e, por decorrência, perdeu o contato com a realidade. Assim, o resenhas de jornais e revistas que lhe são consagrados. É dessa ma-
esquizofrênico toma a fantasia pela realidade empírica e, como tal, neira que a obra chega ao leitor: identificada, no nível “mais básico”,
inscreve-a no horizonte do “acontecido”. Esquizofrênicos não fin-
88 Valemo-nos aqui da distinção feita por Umberto Eco. Para o teórico italiano,
gem acreditar nas fantasias que estão narrando ou vendo, pois aqui- “O leitor-modelo de uma história não é o leitor empírico. O leitor empírico é
você, eu, todos nós, quando lemos um texto. Os leitores empíricos podem ler
lo que eles narram ou veem é a sua própria realidade empírica. Por de várias formas, e não existe lei que determine como devem ler, porque em
não perceber os limites entre a fantasia e a realidade empírica é que geral utilizam o texto como um receptáculo de suas próprias paixões, as quais
podem ser exteriores ao texto ou provocadas pelo próprio texto”. O inverso
o portador de tal distúrbio mental é colocado à margem do pacto, é o leitor-modelo. Este é “[...] uma espécie de tipo ideal que o texto não só

ou do contrato, que rege a sociedade, ou que por ela foi instituído: prevê como colaborador, mas ainda procura criar. Um texto que começa com
‘Era uma vez’ envia um sinal que lhe permite de imediato selecionar seu próprio
seja o pacto da verdade (ou o que uma dada sociedade entende por leitor-modelo, o qual deve ser uma criança ou pelo menos uma pessoa disposta a
aceitar algo que extrapola o sensato e o razoável” (ECO 2010:14-15; ver também
verdade em um dado momento histórico), seja o ficcional. 2008:35-49).
64 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 65

pelas intenções do autor. Desse modo, é a intencionalidade no nível compartilham o fato de que, embora toda a arte poética se valha da
“mais básico” que dá o estatuto histórico-temporal da obra, e, por natureza como matéria-prima de imitação (imitação da natureza e
desdobramento, as marcações que vão promover a sua recepção por das ações humanas), esta, ao se inscrever no campo do “acontecí-
parte do leitor-modelo ou do leitor empírico, explicitando, assim, o vel” ou do fingere, cria a sua própria verdade ou realidade textual.
desejo de um dado autor em pertencer a um determinado campo Verdade e realidade textuais essas que precisam ser pactuadas com
do conhecimento e, por extensão, de poder usar os atos ilocutivos o leitor para que possam se perfazer. Ambos os conceitos — mímesis
de modos fingidos ou não. Logo, o pacto entre o autor empírico e e fictio — tratam de uma verdade textual, mas só o conceito latino
o leitor empírico (ou o leitor-modelo) se estabelece quando aquele considera o leitor ou expectador como parte desse jogo que é insti-
enuncia em que gênero o seu texto se inscreve e, por sua vez, o lei- tuído pela verdade textual (o “acontecível”).
tor, a par desse estatuto, assume determinadas maneiras de pensar e E aqui vamos ao terceiro ponto da nossa análise: a verdade e a
agir ante o texto. Caso seja uma obra ficcional — onde o autor “está realidade textuais (o caráter imanente do texto).
fingindo [pretend] fazer uma asserção, ou agindo como se estivesse
fazendo uma asserção, ou imitando o ato de fazer uma asserção” V
—, ele, o leitor, aceita a intencionalidade do texto e, junto com ele,
finge aceitar tais enunciados; caso seja uma obra que se submeta “a A Verdade e a Realidade Textuais
certas regras semânticas e pragmáticas bastante específicas”, ele, o Se o ofício do historiador e, por extensão, a História, nasce quan-
leitor, irá se relacionar com o texto observando se o autor cumpre do da passagem do Mito para o Logos, da substituição da nar-
as condições especificadas nas regras, ou, caso contrário, ele incorre rativa fantasiosa, ilusória, irracional e incognoscível dos eventos
em uma asserção defectiva. Logo, diverso do que pensa Searle, não é para a narrativa que se calce em cima da razão e da racionalidade,
o leitor que diz se tal obra é ou não literatura, mas o seu autor, nada Aristóteles defendeu o caminho inverso para as poesias imitativas
obstante a necessidade da cooperação textual entre este e o leitor. (particularmente para o gênero trágico): o retorno do Logos para
A questão é saber quais são as regras (regras que valem para todos o Mito. No entanto, esse retorno não significava a defesa de uma
os gêneros textuais, em qualquer área de saber) que definem se um literatura que retomasse a narrativa mítica, a forma simples, e,
texto é ou não literatura. Duas dessas regras, como vimos, foram sim, que acolhesse o mito como “[...] o princípio e como que a
estabelecidas pela poética clássica, a mímesis e a fictio, e ambas se alma da tragédia”89. Tal retorno implicou em uma série de proce-
complementam. A primeira, porque trata do horizonte do “aconte- dimentos que terminam por caracterizar os textos literários até
cível”; a segunda, porque vê nesse “acontecível” não somente um ato os dias que correm. Se a narrativa mítica — a exemplo da história
ilocucionário fingido por parte do autor empírico, mas também um de Édipo — não tem autor empírico, já que ela se caracteriza por
pacto de fingimento (ou uma cooperação textual) que se estende ao ser uma história imemorial, a tragédia Édipo Rei não só tem um
leitor, que lê e finge acreditar no que lê. Mais: ambos os conceitos 89 (ARISTÓTELES 1994:112, 1450a, 35-36)
66 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 67

autor empírico — Sófocles —, como este se distingue do narra- A primeira distinção a se observar é que as narrativas de
dor textual (puramente linguístico) que, no caso do drama, se dá Homero são em verso e as dos historiadores gregos, em prosa. Mas
“mediante todas as pessoas imitadas, operando e agindo elas mes- esta não é uma boa distinção, pois, como nota Aristóteles, não é o
mas” . Assim, os gêneros miméticos vão distinguir não só o autor
90
uso do verso que caracteriza a obra, mas a intenção do poeta em
empírico do narrador textual, como o autor empírico do eu lírico inscrevê-la no campo do acontecível. A segunda distinção é que na
textual (o poeta “chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”, Ilíada o narrador textual não se confunde com o autor empírico da
ensina-nos Fernando Pessoa). Tais distinções foram necessárias obra. Seu narrador são as Musas, evocadas por outro narrador (que
para que os gêneros miméticos estabelecessem a diferença entre na falta de um nome melhor, chamaremos de “Homero”) para que
a “verdade textual” e a “verdade” que se “[...] deixa governar pelo elas tornem o passado presencial92. No entanto, ao longo da narrati-
critério válido para os discursos da realidade, o critério de verda- va, “Homero” as interpela: seja para pedir mais detalhes sobre os fa-
deiro/falso”91. Ou seja, se a realidade inscrita na literatura pode tos, seja para mudar o rumo da narrativa. Esta distinção entre autor
se alimentar da realidade empírica (Ao lermos Dom Casmurro, empírico (Homero) e narradores textuais (“Homero” e as Musas)
vemos que ele se passa no Rio de Janeiro da segunda metade do já impõe um pacto textual com o leitor-modelo ou empírico: ele
século XIX) e pode até se decifrar por meio dela (os princípios deve fingir acreditar que um dado narrador — “Homero” — é capaz
morais de Bentinho se calçam na moral predominante à época de evocar as Musas, dialogar com elas, registrar as suas falas e, ao
em que a estória decorre), ela, ao se perfazer como uma verda- mesmo tempo, se distinguir delas. Como nem o seu autor empírico
de textual, não se confunde mais com a verdade empírica que a — Homero — nem o narrador textual interpelador — “Homero” —
alimentou. Por mais que uma obra imite um dado referente, a não foram testemunhas dos fatos narrados (ocorridos em um tempo
ação dos seus personagens não se manifesta na realidade empí- mítico), eles precisam se valer de uma testemunhante “confiável”.
rica, mas em uma realidade puramente textual que lhe é própria, Ora, sendo o narrador textual um narrador fingido, não há nenhum
pois esta não busca imitar a realidade empírica como um espelho, compromisso do autor empírico com as emissões destes narradores,
mas como ela poderia ser: uma imagem alterada, borrada; uma que podem até ser literais, mas são “não sérios”. Parafraseando D.
imagem que só existe no texto e nele se encerra, pois a realidade
92 “Homero”: “Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida/ (mortífera!, que tantas
empírica foi colocada em suspensão. Logo, dilatada, duplicada, dores trouxe aos aqueus/ e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,/ fi-
cando seus corpos como presa para cães e aves/ de rapina, enquanto se cumpria
ficcionalizada. Vejamos os exemplos de duas narrativas históri- a vontade de Zeus),/ desde o momento em que primeiro se desentenderam/ o
cas — as de Heródoto e Tucídides — e uma narrativa literária, a Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles.// Entre eles qual dos deuses
provocou o conflito?” Musas: “Apolo, filho de Leto e de Zeus. Enfurecera-se o
Ilíada, de Homero (a Odisseia segue a mesma estrutura narrativa deus/ contra o rei e por isso espalhara entre o exército/ uma doença terrível de

da Ilíada, daí não precisamos evocá-la aqui). que morriam as hostes,/ porque o Atrida desconsiderara Crises, seu sacerdote./
Ora este tinha vindo até às naus velozes dos Aqueus/ para resgatar a filha, tra-
zendo incontáveis riquezas./ Segurando nas mãos as fitas de Apolo que acerta
90 (ARISTÓTELES 1994:112, 1447a, 24-25) ao longe/ e um cetro dourado, suplicou a todos os Aqueus,/ mas em especial aos
91 (LIMA 2002:666) dois Atridas, condutores de homens: [...]” (HOMERO 2005:30, Canto I, 1-16).
68 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 69

Couty, esta distinção entre o autor empírico e os narradores textuais Tucídides teriam escritos obras de testemunhos; testemunhos deles,
mostra a distância fundamental entre o saber do autor empírico e o Heródoto e Tucídides, que participaram dos eventos e, também, dos
dos narradores textuais93. A relação das Musas com os seus perso- testemunhantes oculares, informantes das guerras narradas. Nota
nagens (o ponto de vista) é que elas sabem mais do que eles (“visão Richard Bauckham, parafraseando Samuel Byrskog, que os historia-
por trás”). Já “Homero” manifesta saber menos do que as Musas e os dores gregos e latinos, de modo semelhante ao método da moderna
seus personagens (“visão de fora”). historiografia oral,
Já nas obras de Heródoto e Tucídides os narradores são os
próprios autores empíricos. Por quê? Porque sendo testemunhantes [...] estavam convencidos de que a verdadeira história poderia
dos eventos que, por ventura, estão narrando, eles nem precisam ser escrita somente enquanto os acontecimentos ainda se encon-
evocar as musas (o Mito), nem fingirem serem narradores textu- travam dentro de uma memória viva, e consideravam como suas
ais, o que implicaria na falta de compromisso com a verdade das fontes os relatos orais de experiência direta dos acontecimentos
proposições. Daí por que muitos estudiosos de Heródoto o acusam por parte dos participantes envolvidos neles [e quanto mais
de ter incorrido, em várias passagens da sua obra, em falsidades, parcial fosse esse testemunhante, melhor]. Idealisticamente, o
manipulações e acréscimos. Acusações essas que jamais poderiam próprio historiador deveria ter sido um participante dos eventos
ser aplicadas a Homero. Pelo contrário. Assim, no parágrafo ini- que ele narra — como foram, por exemplo, Xenofonte, Tucídides
cial das obras de Heródoto e Tucídides, ambos se apresentam na e Josefo —, mas, visto que ele não poderia estar em todos os
terceira pessoa e expõem os motivos que os levaram a escreverem acontecimentos que ele narra ou em todos os lugares que ele des-
tais livros94. Em seguida, no parágrafo seguinte, eles se inscrevem creve, o historiador tinha de confiar, portanto, em testemunhas
na narrativa (primeira pessoa) para que o leitor tome ciência de oculares, cujas vozes vivas ele podia ouvir e a quem ele próprio
que o que vai ser narrado é resultado daquilo que eles viram ou podia questionar: “Autopsia [testemunho de testemunha ocular]
ouviram de testemunhantes críveis . Aos olhos de hoje, Heródoto e
95
era o meio essencial para remontar o passado”.96

93 (COUTY 1988:94).
94 Heródoto: “Esta é a exposição das investigações de Heródoto de Halicarnasso, Cabia ao historiador selecionar (autopsiar) os relatos dos tes-
para que os feitos dos homens se não desvaneçam com o tempo, nem fiquem
sem renome as grandes e maravilhosas empresas, realizadas quer pelos Helenos temunhantes, juntá-los às suas impressões de partícipe do evento, e,
quer pelos bárbaros; e sobretudo a razão por que entraram em guerra uns com
os outros” (HERÓDOTO 2002:53). Tucídides: “O Ateniense Tucídides escreveu
a história da guerra entre os peloponésios e os atenienses, começando desde os as margens do Mediterrâneo e ocupada a região que agora habitam, de imediato
primeiros sinais, na expectativa de que ela seria grande e mais importante que empreenderam longas navegações: com mercadorias egípcias e assírias, aponta-
todas as anteriores, pois via que ambas as partes estavam preparadas em todos ram a diversas regiões, entre as quais estava Argos [...]”. (HERÓDOTO 2002:53).
os sentidos; além disto, observava os demais helenos aderindo a um lado ou ao Tucídides: “É óbvio que a região agora chamada Hélade não era povoada esta-
outro, uns imediatamente, os restantes pensando em fazê-lo [...]”. (TUCÍDIDES velmente desde a mais alta antiguidade; migrações haviam sido frequentes nos
1999:19). primeiros tempos, cada povo deixando facilmente suas terras sempre que for-
95 Heródoto: “Os conhecedores entre os Persas consideram que os Fenícios foram çado por ataques de qualquer tribo mais numerosa [...]”. (TUCÍDIDES 1999:19).
os causadores do diferindo: sustentam que, vindos do mar chamado Eritreu para 96 (BAUCKHAM 2011:23)
70 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 71

criticamente, dar um sentido à sua narrativa. “O sentido é a atmos- ocorre com o discurso histórico se manifesta também em todas as
fera em que os fatos são postos para que assumam uma presunção outras formas de discursos, mesmo aqueles mais esotéricos, a exem-
significativa”97. Sabemos que, entre os métodos da historiografia plo da teologia e dos textos místicos, que se firmam e se decifram em
clássica e aqueles que foram instituídos pela moderna historiografia, cima dos textos sagrados (no caso do cristianismo e do judaísmo, na
muitas coisas mudaram. No entanto, uma permaneceu: o autor em- Bíblia), e, por sua vez, esses textos sagrados (expressão do verbo) se
pírico da obra (chame-se ele Edward Gibbon, Arnold Toynbee, R. G. firmam e se explicitam em cima do Verbo.
Gollingwood, Fernand Braudel ou Sérgio Buarque de Hollanda) é o Assim, se a realidade inscrita na literatura pode se alimentar da
próprio narrador dos fatos narrados (seja a narrativa na primeira ou realidade empírica e até se decifrar por meio dela, a realidade textual,
na terceira pessoa), e os seus atos ilocucionários se submetem a certas ao se inscrever no horizonte do “acontecível”, não se confunde mais
regras semânticas e pragmáticas específicas, sob o julgo da sua obra com essa realidade extratextual. Não há nenhuma possibilidade de
se inscrever no campo do defectível. Não só: sua narrativa é tomada um leitor de Guimarães Rosa se deparar, no mundo empírico, com
como crível porque aquilo que é narrado encontra respaldo e teste- Riobaldo ou com Diadorim (salvo no caso de perturbação mental).
munho (seja ele documental, seja oral) no objeto narrado: o acon- O inverso ocorre com os textos das ciências exatas, biológicas, so-
tecido. A verdade do texto histórico não está calçada em si mesma, ciais, humanas, teológicas e filosóficas: todos não só partem da reali-
mas no seu referente. Isso não significa dizer que a narrativa histórica dade empírica (mesmo que seja só no campo especulativo), como só
está no lugar do evento em si (afinal, desde Santo Agostinho que se se decifram ou se firmam por meio dessa realidade empírica.
sabe que a palavra é um signo, isto é, ela é a representação da coisa Mímesis, fictio, verdade textual. Estes três conceitos se interpe-
em si, mas não é a coisa em si), e, sim, que ela só se perfaz porque o netram e, principalmente, se complementam, formando uma unida-
evento que lhe serve de objeto de análise e interpretação se plasma na de. No entanto, tais conceitos não se aplicam somente à literatura e,
realidade empírica. Logo, essa narrativa tem sua análise e interpreta- por decorrência, aos gêneros artísticos, mas também a certos gêne-
ção delimitadas pelo referente: a documentação que lhe fundamenta. ros que são puramente ficcionais, a exemplo das novelas televisivas,
Desse modo, onde terminam, para o historiador, os limites da análise das estórias em quadrinho, das fotonovelas, dos videoclipes... Então
e da interpretação dos eventos históricos é onde tem inicio a narrativa o que faz determinados gêneros textuais serem literatura — isto é,
literária. Por exemplo: se o historiador, refém do referente, não pode serem alçados ao campo da arte — e outros serem apenas ficções?
afirmar que D. Pedro II morreu governando o Brasil, o escritor literá- Vamos ao nosso quarto e último tópico.
rio, diversamente, pode contar a estória do nosso monarca como ela
poderia ter sido. No caso, uma estória onde o Imperador jamais fora VI
exilado e a República nunca fora proclamada no Brasil. Como “[...] o
discurso ficcional ocupa uma posição ex-cêntrica quanto à verdade, Os Significados e Significações do Texto
o traço ‘referência’ sofrerá uma modificação considerável”98. O que Como toda forma de conhecimento, a literatura — e as artes, de ma-
97 (LIMA 1991:143) neira geral — também encerra um modo de usar ou de se relacionar
98 (LIMA 1991:144)
72 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 73

com os signos: imitando o referente (representando o que poderia nosso caso, a literatura caminham no sentido inverso do discurso
acontecer), fingindo (construindo, por meio de um pacto ficcional, persuasivo (os discursos das telenovelas, da política, do judiciário,
enunciados não sérios) e plasmando uma realidade e uma verdade da propaganda, da maioria das ficções policiais, das estórias em
puramente textuais (estabelecendo a cesura entre o signo e o refe- quadrinho, das fotonovelas, dos seriados de TV). Se este “[...] quer
rente, nada obstante, na maioria dos casos, se valer deste enquanto levar-nos a conclusões definitivas; prescreve-nos o que devemos
matéria). O resultado desse modo de se relacionar com os signos é desejar, compreender, temer, querer e não querer”100, a arte e, no
que, na literatura, o leitor, ao ler um poema, é levado, caso queira caso específico, a literatura não repetem para o leitor “[...] aquilo
entender o seu sentido, a decifrar e a recifrar permanentemente o que ele já sabe e aquilo que deseja saber”,101 mas revelam aquilo que
verso, e, no caso da prosa, a se deparar com o sentido polissêmico ele não sabe (ou pelo menos ele nunca imaginou ou nunca pensou
que as estórias narradas encerram. Em ambos os casos, temos sig- daquele modo) e o que ele nem desejaria (ou pensou desejar) saber.
nos carregados de significados e significações “até o máximo grau Mutatis mutandis, as artes plásticas podem, aqui, nos fornecer um
possível”99, como defendia Ezra Pound, sem que, necessariamente, bom exemplo. Ao pintar um cachimbo e escrever no rodapé da
isso implique, como queriam os Formalistas, determinadas proprie- tela que aquilo não é um cachimbo (“Ceci n’est pas une pipe”), René
dades sintáticas ou semânticas específicas do texto (como são exem- Magritte não só contraria o “automatismo perceptivo”102 do seu
plos, no caso da prosa, as poéticas das Escolas Realista e Naturalista, expectador, mas cria “[...] uma percepção particular do objeto [sua
que perseguiam antes uma narrativa denotativa do que conotativa, singularização], busca[ndo] a criação da sua visão e não de seu reco-
nada obstante o sentido da obra estar carregado de significados e nhecimento”103. Desse modo, o artista não somente rompe a relação
significações). Essa condição de encerrar no signo significados e entre o signo (o cachimbo pintado) e o seu referente (o cachimbo
significações além daqueles que encontramos nos dicionários, tira empírico), mas lhe dá significados e significações além daqueles que
da literatura o caráter que, muitas vezes, lhe é atribuído, particular- a linguagem persuasiva busca dar; ou, como nota Luiz Costa Lima,
mente pelos estudos sociológicos (o de ser apenas um “documento”, a arte da imitação “[...] não só recebe o que vem da realidade mas
um “indicador” ou um “epifenômeno” da realidade empírica), e é passível de modificar nossa própria visão da realidade”104. “Se isto
lhe confere tanto a sua condição trans-histórica (o que lhe dá uma não é um cachimbo, então é o quê?”, perguntaria o apreciador da sua
autonomia em relação ao referente) quanto o seu estatuto artístico. obra. A resposta poderia ser: “tente fumá-lo”. O mesmo ocorre com
Estatuto que a leva a perseguir não apenas o Belo (afinal, outras Homero ao narrar a Guerra de Troia: ele não oferece ao leitor uma
manifestações também buscam a beleza estética: a moda, a deco- estória em que ele reconheça a narrativa mítica (“o caso eu conto
ração, o design), mas retesar o signo com o intuito de extrair dele como o caso foi”), e, sim, que seja o “acontecível” do “acontecido”.
o máximo possível de significados e significações além dos limites 100 (ECO 1986:280)
101 (ECO 1986:282)
aceitáveis nas demais formas de discurso. Desse modo, a arte e, no 102 (EIKHENBAUM 1978:15)
103 (EIKHENBAUM 1978, p. 15)
99 (POUND 1983:32) 104 (LIMA 2000:25)
74 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 75

Assim como existe o cachimbo de Magritte que não é um cachimbo VII

(apenas a representação mimética do cachimbo), existe a Guerra de


Troia de Homero que não é a Guerra de Troia da narrativa míti- Conclusão

ca, mas a sua imitação. Do mesmo modo, quem inicia a leitura de 1. Não é por semelhança de família, como são os jogos (afinal, o que
Dom Casmurro buscando encontrar um discurso persuasivo contra há em comum entre uma partida de xadrez, atividade puramente
o adultério e a favor da família patriarcal e cristã, encontra uma cerebral, e uma de futebol, atividade em que predomina o esforço
linguagem polissêmica que puxa o tapete de todas as suas certezas. físico? Serem ambas apenas um entretenimento?), que podemos
O que resta ao leitor? Ou ficar na dúvida (e não é Dom Casmurro colocar sob o mesmo guarda-chuva a poesia, a epopeia, o drama, o
um romance sobre a dúvida?) ou recomeçar a leitura do romance romance, o conto e a novela. Apesar de guardarem formas distintas,
em busca de indícios mais convincentes da traição de Capitu. A todos esses gêneros encerram os quatro critérios que elencamos
verdade textual do romance cria os seus próprios significados e as ao longo deste texto: (a) todos imitam (ora tomando a natureza
suas próprias significações (independentes dos valores morais do como modelo, ora por meio da intertextualidade, ou mesmo ten-
seu tempo), o que dá à obra o seu caráter trans-histórico. Pouco nos tando traduzir em linguagem os sonhos e as alucinações da mente)
interessa agora saber qual era, ao tempo em que a obra foi escrita, a e contêm emissões fingidas que são acatadas, em forma de pacto,
moral que alimentava Bentinho, pois o que parecia ser reconheci- pelo leitor-modelo ou pelo leitor empírico; (b) todos trazem as in-
mento — uma estória de adultério passada na segunda metade do tencionalidades do autor empírico; (c) todos constroem realidades
século XIX brasileiro — singulariza-se, agora, como o discurso da textuais; e (d), por fim, todos perseguem uma linguagem carregada
dúvida. Dúvida não só nossa, leitor, mas que se inscreve no próprio de significados e significações. Se estes critérios em conjunto (e não
modo discursivo como a obra é organizada pelo autor empírico por individualmente) caracterizam e estão presentes em todos os gê-
meio do narrador textual. A forma irônica é o modo que Machado neros literários (poesia, epopeia, drama, romance, conto e novela),
de Assis encontrou para compor a sua obra e lhe prover de signifi- terminando por agregá-los sob o mesmo manto e, principalmente,
cados e significações. Assim, essa forma irônica — isto é, a cesura dando-lhes um estatuto artístico, como podemos encerrar, dentro
entre o signo e aquilo a que ele se refere, a realidade empírica — nos desse mesmo manto conceitual, livros como os do Padre Antônio
leva a concluir, parafraseando Octávio Paz, que “não sabemos o que Vieira e Euclides da Cunha, por exemplo, que se inscrevem em
é realmente o real”: se o que veem os olhos de Bentinho ou o que campos do conhecimento que lhes são distintos? No caso de Vieira,
a sua (ou a nossa) “imaginação projeta”105. Se o reconhecimento, a a oratória religiosa (o sermão); no de Euclides, a história social.
matéria do discurso persuasivo, é sinônimo de significado unívoco, Ambos, como sabemos, ocupando papéis de destaque em todas as
a singularização é sinonímia de linguagem carregada de significados histórias da literatura brasileira (e, no caso de Vieira, também nas
e significações. No caso, a arte; a literatura, particularmente. histórias da literatura portuguesa), apesar de as obras que predomi-
105 (PAZ 1991:108) nam nesses manuais serem, em quase totalidade, as que encerram
76 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 77

os quatro critérios declinados ao longo deste texto. Então, por que do estilo senecano, ‘coupé’ e sentencioso, à ênfase, à sutileza, ao pa-
Vieira? Por que Euclides? Talvez os críticos e os historiadores da radoxo, ao contraste, à repetição, à assimetria, ao paralelo, ao símile,
literatura encontrem neles, como quer Searle, a “semelhança de ao manejo da metáfora [...]”. Assim, Vieira “[...] produziu páginas
família”. Afinal, Searle, como vimos, distingue obras ficcionais de que são tesouros da eloquência sagrada em língua portuguesa”108.
obras literárias, já que, para ele, nem toda obra de ficção é literatura Por fim, Candido toma-o como um “escritor ardente, correto, a sua
(no que concordamos com ele) e nem toda obra literária é ficção linguagem cheia de vigor e harmonia tornou-se um dos modelos da
(do que discordamos). Desse modo, parece que temos, aqui, uma escrita clássica portuguesa”109.
questão não respondida: o que faz um conjunto de obras ficcionais No caso de Euclides da Cunha, Bosi nota que “a expressão
serem acatadas como literatura e, em contrapartida, outro conjun- ‘barroco científico’, com que já se procurou batizar a sua linguagem,
to de obras não ficcionais serem tidas também como literatura? indica-lhe a essência, se em ‘barroco’ visualizamos, antes de mais
Sabemos a resposta de Searle: cabe ao autor decidir se a sua obra nada, um conflito interior que se quer resolver pela aparência, pelo
é ou não ficção, mas só ao leitor recai a decisão de afirmar se uma jogo de antíteses, pelo martelar dos sinônimos ou pelo paroxismo
obra é ou não literatura. Assim, não há, para Searle, um limite que do clímax”110. Para Merquior, Euclides da Cunha é dono de uma
caracterize as obras literárias das não literárias: tudo depende do “[...] frase contundente, angulosa, convulsa [...], singularizada pela
gosto e do critério de quem a lê. Talvez Vieira e Euclides sejam dois elasticidade da sintaxe assindética (quase sem conectivo), dos cres-
bons exemplos que venham responder o que o texto de Searle não cendo dramáticos e dos ritmos espasmódicos [...]”111. Coutinho vê
respondeu. Vamos à análise. Para tal, evoquemos quatro estudiosos n’Os Sertões, “[...] como arquitetura e como construção, [...] o cará-
e historiadores da nossa literatura: Alfredo Bosi, José Guilherme ter de narrativa, de ficção, de imaginação. Os Sertões são uma obra
Merquior, Afrânio Coutinho e Antonio Candido. de ficção, uma narrativa heroica, uma epopeia em prosa, da família
Bosi define Vieira como um “[...] estupendo artista da pala- de A Guerra e paz, da Canção de Rolando e cujo antepassado mais
vra” . Já Merquior toma muitos dos seus sermões como “[...]
106
ilustre é a Ilíada”112. E Candido assinala em Os Sertões “[...] o voo
exemplos incomparáveis de artifício retórico posto a serviço do retórico do estilo, inclusive no rebuscamento do vocabulário e das
pensamento”. Entre estes, encontram-se “[...] a guirlanda de metáfo- construções sintáticas, bem-vindos aos ‘cultores da forma’”113.
ras, desfraldadas em amplo movimento alegórico; o amor à antítese; Em resumo: tirante a definição de Afrânio Coutinho para Os
a frase de ritmo rápido, sincopado, enérgico; enfim, a indicação Sertões, que lhe atribui um caráter ficcional (apesar do autor se va-
teatral do paradoxo [...], plataforma, por sua vez, de novas salvas ler apenas da autoridade de crítico e de professor universitário para
metafóricas, e de novos arabescos de figuras de pensamento e de 108 (COUTINHO 2001:116)

dicção” . Coutinho, assinala que ele, Vieira, aliou “[...] a essência


107 109 (CANDIDO 2004:26)
110 (BOSI 1984:349)
111 (MERQUIOR 1979:196)
106 (BOSI 1984:50) 112 (COUTINHO 1981:82)
107 (MERQUIOR 1979:18) 113 (CANDIDO 2004:83)
78 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 79

fazer tal asserção, deixando de lado qualquer problematização sobre tal, ele se instrumenta nos preceitos da retórica clássica: o “exórdio” ou
o que asseriu, isto é, onde se encontra e como se dá a ficcionalida- “princípio” (o começo) do discurso, que é constituído de duas partes: a
de na obra de Euclides), todas as demais definições confluem para “proposição” dos temas e a sua “divisão” (as partes que vão constituir o
o mesmo ponto: Vieira e Euclides estão nas histórias das literaturas discurso); segue o “desenvolvimento” do discurso, que é formado tanto
brasileira e portuguesa pela qualidade retórica do texto . Ora, se o 114
pela “narração” quanto pela “argumentação” (esta podendo encerrar o
princípio finalista dos gêneros miméticos é a imitação, a ficciona- silogismo, o paralogismo, o paradoxo e exemplos); e, por fim, a “pero-
lização, a autonomia do texto em relação ao seu referente e, por sua ração”, “conclusão” ou “epílogo” do discurso. Assim, se o discurso, en-
vez, a construção de uma linguagem que não seja persuasiva, o que quanto oratória, se pauta pelo bem dizer (bene dicere) e pelo persuadir
encontramos nos textos de Vieira e de Euclides é exatamente o inverso (persuadere), todo esse bem dizer e todo esse persuadir têm como fim
(sem esquecer que ambos não pretendiam, se pensarmos, aqui, pelo ensinar (docere), agradar (delectare) e comover (movere)115. No caso de
viés da intencionalidade, subordinar os seus textos a nenhum gênero Euclides, se a qualidade retórica do texto é indiscutível, não podemos
ficcional. Muito pelo contrário). No caso de Vieira, sua obra segue o acusá-lo nem de ter construído um pacto ficcional com o leitor (toda
plano do discurso apregoado pela oratória: persuadir e comover. Para a forma tripartite da obra segue uma lógica que se subordina aos prin-
cípios científicos do seu tempo — o meio determina a degradação da
114 Talvez pudéssemos evocar para essas obras o conceito formalista de litera-
raça, e ambos explicam as causas do evento a ser narrado: a Guerra
turidade (literaturnost), desenvolvido por L. Jacobinski, em 1916, no ensaio
“Conclusões sobre a teoria da língua poética”. Para este teórico, a literaturida- de Canudos), muito menos de perseguir, em sua obra, o “acontecível”.
de perseguia antes como o efeito de estranhamento da linguagem construía
a percepção artística do que os princípios finalistas da poesia: a mímesis. É
Assim, tanto Vieira quanto Euclides escreveram obras em que
dentro desse princípio que Jacobinski e os demais formalistas irão definir a li- podemos acusar, em determinados momentos da sua prosa, uma
teraturidade a partir da confrontação entre a língua poética e a língua prática,
cotidiana, que tem como fim a comunicação interpessoal. “’Os fenômenos lin- linguagem carregada de significados e de significações (particular-
guísticos devem ser classificados do ponto de vista do objetivo visado em cada
mente no uso de tropos), mas que não respondem ou se inscrevem
caso particular pelo sujeito falante. Se os utiliza com objetivo puramente prático
da comunicação, ele faz uso do sistema da língua quotidiana (do pensamento nos demais tópicos que, em conjunto, perfazem o grosso dos gêneros
verbal), na qual as formas linguísticas (os sons, os elementos morfológicos, etc.)
não têm valor autônomo e não são mais que um meio de comunicação. Mas textuais que compõem as histórias da literatura. Neste caso, tomá-los
podemos imaginar (e eles existem realmente) outros sistemas linguísticos, nos como literatura “por semelhança de família” (no caso, pela qualidade
quais o objetivo prático recue a um segundo plano (ainda que não desapareça
inteiramente) e as formas linguísticas obtenham um valor autônomo’”. (Apud retórica do texto) é subordinar os seus atos ilocutivos (enunciados
EIKHENBAUN 1978:9). No entanto, há um ruído na aplicabilidade do conceito de
literaturidade à prosa (diverso do que ocorre nas formas poéticas). Na prosa, as
sérios, literais ou não literais) aos atos locutivos ou perlocutivos. E
palavras não têm autonomia, pois, enquanto instrumento, estão subordinadas à tais atos ou se atêm ao texto (a qualidade retórica) ou aos seus efeitos
construção de um sentido: construção linear calcada em cima de ideias, críticas,
fatos e análises. Todo narrador (indiferente de sua prosa ser ficcional ou não), ao (a persuasão e a comoção). Logo: (a) a substância específica dessas
tempo em que narra, escolhe, analisa e interpreta. Diverso da poesia, onde o pro-
obras não é a mimeses, nem a fictio; (b) esses livros não têm uma po-
cesso de decifração da palavra e do verso só se dá pelo processo de recifração.
Ou, como bem diz Octávio Paz, “[...] o sentido do poema é o próprio poema”, sição ex-cêntrica em relação aos fatos, pessoas e valores que povoam a
pois “há muitas maneiras de dizer a mesma coisa em prosa; só existe uma em
poesia” (PAZ 1976:48). 115 Ver MOISÉS (1992:152-155); CARMONA (2003); TRINGALI (1988)
80 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 81

realidade empírica. Logo, não são fatos e pessoas puramente textuais; a realidade empírica. Se Machado e Jorge de Lima fingem as suas
(c) o pacto de intencionalidade estabelecido com o leitor não é o do asserções, o mesmo não podemos dizer de Vieira e Euclides. Daí por
fingimento, mas o do critério de verdade e realidade prevalecentes em que a dicotomia verdadeiro/falso poder ser aplicada aos seus textos,
seus tempos: seja ela a “verdade” perseguida pela ciência e a filosofia, mas não aos de Machado e Jorge de Lima.
seja a da teologia ou das Escrituras. Se, por ventura, esses autores Concluindo: como afirmamos no início deste artigo, os estudos
faltam com a verdade nos seus textos, eles incorreram na mentira, e sobre o que é e o que não é literatura pecam por querer definir a litera-
não na criação ficcional, pois, como vimos, o avesso da verdade é a tura apenas por um dos seus aspectos: ou centrando-se no texto ou na
mentira; já o avesso de fingir é “desenganar”, no sentido de “esclare- sua recepção. É o que faz Searle, ao defender que cabe ao autor decidir
cer”. Por fim, o único elo entre essas obras e os gêneros literários seria se a sua obra é ou não ficção e, ao leitor, a decisão de afirmar se uma
a suposta qualidade retórica dos seus textos, as supostas propriedades obra é ou não literatura. No primeiro caso, a palavra ficção é tomada
sintáticas ou semânticas específicas. Porém, essas não são necessa- por Searle apenas no sentido de “criação” (daí por que ele desconsi-
riamente propriedades (específicas) da literatura, são procedimentos derar o leitor) e não em sua dupla acepção: a de “criação” (sentido
que podemos encontrar ou não em um texto literário, como também próprio) e a de “ação de fingir” (sentido figurado). Ora, como quem
em obras filosóficas, religiosas e de ciências exatas. Por fim, (d) um finge finge para alguém, tomar a ficção também no seu sentido figura-
texto literário carregado de significados e significações exclui do do já implica na construção de um pacto com o leitor. Logo, não é só o
seu horizonte a “semelhança mais semelhante”, que é o estatuto do autor que delimita a ficcionalidade do seu texto, mas também o leitor,
“reconhecimento” (tanto os Sermões, de Vieira, que se decifram pela que é convidado a participar desse pacto ficcional. Sem esse pacto
teologia e a Bíblia, quanto Os Sertões, de Euclides da Cunha, que se entre autor e leitor, a ficcionalidade não se perfaz e, por extensão, os
calçam nas teorias cientificistas que lhe eram contemporâneas, são gêneros que formam as histórias da literatura e que são calçados na
exemplos de “reconhecimentos”, e não de “singularizações”). ficcionalidade: a poesia, a epopeia, o drama, o romance, o conto e a
Desse modo, se as obras citadas no início deste ensaio com- novela. Gêneros estes que só poderão ter as suas “naturezas” apreen-
partilham dos mesmos genes, obras como a de Vieira e Euclides didas e tomadas como partes de uma mesma família se consideramos
não trazem marcações que as inscrevam na mesma família em que o fenômeno como um todo sistêmico: 1º A imitação e a ficcionalidade
Memórias póstumas de Brás Cubas e Invenção de Orfeu participam. do texto (compondo a unidade dos gêneros literários) e, como parte
Por se nutrirem de um referente, mas não se subordinarem a este (e dessa ficcionalidade, a recepção de quem o lê perfazendo o pacto fic-
aqui a dicotomia verdadeiro/falso perde completamente o seu senti- cional; 2º A intencionalidade do autor (o estatuto histórico-temporal
do), as obras de Machado de Assis e de Jorge de Lima terminam por da obra e, por desdobramento, as marcações dadas pelo autor empíri-
“neutralizar” 116
o modo como os demais discursos (sejam eles cien- co e que delineiam a sua recepção); 3º A verdade e a realidade textuais
tíficos, sejam religiosos ou morais) buscam tematizar ou apreender (o caráter imanente do texto); 4º Os significados e significações do
116 Ver LIMA (2002:666)
texto (sua condição artística e trans-histórica). Mesmo sabendo que,
82 Anco Márcio Tenório Vieira Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura? 83

isoladamente, cada um desses aspectos sejam variáveis conceituais ARISTOTE. 1980. La Poétique. Texte, traduction, notes par Roselyne Dupont-Roc
et Jean Lallot. Préface de Tzvetan Todorov. Paris: Éditions du Seuil [Collection
(podemos encontrar cada um desses aspectos nos demais gêneros
Poétique].
textuais, como vimos no caso de Vieira e Euclides), em conjunto (e só
______. 2002. Poétique. 2° ed. Traduction, introduction et notes de Barbara Gernez.
em conjunto) eles se constituem (e é o que tentamos demonstrar ao Paris: Les Belles Lettres.
longo deste artigo) em uma invariável. Invariável esta que está presen- BAUCKHAM, Richard. 2011. Jesus e as testemunhas oculares: os Evangelhos como
te tanto nos gêneros que compõem a poética clássica (o épico, o lírico testemunhos de testemunhas oculares. Trad. Paulo Ferreira Valério. São Paulo:
Paulus.
e o dramático) e medieval (a novela de cavalaria) quanto nos que
BOSI, Alfredo. 1984. História concisa da literatura brasileira. 3°ed. São Paulo:
surgiram a partir do Renascimento (o romance, o conto e a novela). Cultrix.
CANDIDO, Antonio. 2004. Iniciação à literatura brasileira. 4° ed. Rio de Janeiro:
Referências Ouro Sobre Azul.
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O advento, tão irresistível quanto imprevisível, por sua rapidez e
extensão, da cultura cibernética fez repensar alguns valores tidos
anteriormente por consensuais. A essa altura é ocioso pensar se se
trata de uma revolução cultural, de uma transformação social, de
uma mutação; o fato é que é próprio de tais situações pôr em xe-
que costumes e conceitos. A realidade virtual veio sacudir o torpor
conceitual porquanto altera nossa percepção da teoria. Claro, isso
só pode fazer sentido se pensado em sua complexidade: a academia
não encerra toda a teoria; assim como nenhuma teoria casa com o
real literário; o mais comum, no espaço cibernético, são posturas
pontuais cuja rapidez de circulação faz crer serem verdades incon-
testes. A prevalência do mundo da informática, da comunicação,
das conexões em todos os níveis, tudo leva a crer que Prometeu cede
lugar a Hermes. A teoria literária recente viveu de supostas certezas
representacionais advindas de um modo cultural que precisava de
âncoras conceituais incontestes como suporte de seu mundo. A
cultura no modo virtual permite permutas mais ricas, diminui as
pretensões de uma teoria total, global, e faz inflectir as supostas
certezas das escolas teóricas apenas em ganhos pontuais — não em
verdades estabelecidas.
De evidente, o serviço público que a tecnologia presta à ins-
tância crítica ao democratizar uma panóplia de informações e uma
90 Lourival Holanda Capítulo 2 . A teoria literária 91

pluralidade de enfoques teóricos. Se a teoria puder se definir como da teoria literária parece inapreensível — sobretudo em seu modo
modulações de uma reflexão sobre o fazer literário, o pensamento anterior; as causas da crise conceitual são difusas como é complexa
teórico fica mais livre para equilibrar, relativizar, modelar aborda- a cultura contemporânea; porque o abalo sísmico provocado pelas
gens no momento mesmo em que a literatura se serve de outras possibilidades de produção literária no espaço cibernético leva
mídias para a construção de seu objeto. Uma consideração sobre a os teóricos a redefinir seu objetivo (a que serve ainda a teoria?) e
emergência hoje de outras teorias pode conduzir à conclusão de que mesmo seu objeto (há alguma unanimidade no que se pretende
sua função continua a de ser uma atenção refletida ao imprevisível literário?). Enquanto foi compreendida como extensão da prática
da criação. O empenho teórico é como o fervor que resulta da febre heleno-judaica do comentário e interpretação de textos, ela deteve
que um texto forte provoca: seja que a reação tenha sido de exe- um sentido agregador junto à comunidade e teve um papel relevante
cração ou de exultação, o momento teórico tenta então depurar a no prosseguimento de uma dada noção de cultura.
paixão na aventura de um exercício intelectual de reflexão analítica. A Poética de Aristóteles é sempre a referência — chamada ou
E menos com o intuito de restituir o texto que de recompor sua xingada: dois mil e quinhentos anos de presença pesam. Se já é um
possibilidade. texto de teoria, isso só pode ser aceito sob reservas prudentes para
Com a entrada do século XXI, já o conceito de teoria literária evitar anacronismo. Seu objeto não é tanto aquilo que, sobretudo
tinha entrado em deliquescência. As novas tecnologias fizeram vir depois de Valéry vamos chamar de poética, mas a representação, a
à tona problemas teóricos que não poderiam ter sido abordados mímese, da ação; e, por extensão, do mundo. Onde uma poética
antes. A web 2.0 permitiria outros modos de permuta, de leitura, estende e classifica, a outra, mais próxima, aprofunda. O modo mais
de produção de textos e de uma possível frequentação imediata descritivo de Aristóteles, ocupado com gêneros de representação,
dos teóricos, e, em consequência, mudaria a prática de pensar o epopeia ou drama, tragédia ou comédia, marca ainda os estudos
texto literário. E o estudioso de literatura se vê confrontado a outra teóricos. A essas abordagens é oportuno acrescentar as novas lei-
realidade, tendo que pensar o que não previu e que ser sensível ao turas do real, advindas da Física atual: A natureza apresenta-nos, de
inesperado, na fusão de registros do protocolo literário atual. A fato, a imagem da criação, da imprevisível novidade.1 A tônica sobre
profusão de experimentos pôs em xeque a estabilidade conceitual a imprevisível novidade deixa mais nítido o desafio da tentativa de
anterior: já se sabe cada vez menos como classificar o que se está fa- compreensão do real literário contemporâneo. Com a eclosão da
zendo — mas, o que mais importa, se está produzindo em torno da cultura virtual, volta Valéry: as diversas dimensões das linguagens,
literatura. As definições anteriores, vigorosas e veementes, perdem agora mais modais, como possibilidade de enriquecer as virtualida-
seu poder ante o impacto das transformações operadas no campo des da criação literária.
da criação literária. As discussões críticas já não têm a contundência Desde os anos 20, no século passado, se viu surgir a necessi-
excludente de ontem, mas os discursos se toleram mais, quando não dade de um consenso e de maior segurança teórica. Há aqui uma
fraternizam francamente em suas diferenças.
À primeira vista, e como consequência, a situação presente 1 (PRIGOGINE 1996:75)
92 Lourival Holanda Capítulo 2 . A teoria literária 93

profusão de teorias sociais, psicanalíticas, antropológicas, que vão suas afirmações e felizes com o eco de sua divulgação nos quadran-
se fecundando mutuamente. O teórico de literatura ganhou um tes latino-americanos; um modo pouco sutil de imperar era reduzir
espaço no debate cultural — mesmo se ainda muito restrito ao perplexidades e complexidades alheias para melhor desmontá-las.
ambiente acadêmico; a concentração acadêmica fez sua força — e O debate entre Afrânio Coutinho e Álvaro Lins, nos meados dos
também sua fraqueza; mas, logo depois, pela estreita relação que anos 60, padeceu desse esquema; nem sempre Álvaro tinha razão; o
os estudos literários mantêm com as demais ciências sociais, que prestígio da novidade das teorias americanas dava a Afrânio força.
também recorrem à linguística, à filosofia, à psicoanálise, o teórico Hoje Antonio Candido ou João Cezar de Castro Rocha restituem a
de literatura ganhou uma plataforma no questionamento das coisas querela, sobretudo com ganho para o teórico mais jovem. Volta a vez
culturais. A teoria, seguindo os ares do tempo, pretendeu criar um de quem ousa e arrisca, na busca de outros modos críticos. Como é
corpus conceitual que, dotado de uma metodologia rigorosa e uma o caso de Eduardo Maia: “A lição orteguiana para a teoria literária é
terminologia operacional nova, desse status de ciência, emulando, a de que não há objetivismo possível sem subjetivismo, mas o subje-
assim, as ciências naturais e as exatas. O afã teórico levou a extremos tivo não existe em si, isolado e independente de sua relação com as
e fez alguns prisioneiros de uma nova escolástica; o totalitarismo coisas ao seu redor. Parece-me uma proposta elegante e realmente
teórico tem, no pior, dupla deriva: política e teológica. Fez mais interessante para a superação da querela entre o contextualismo
mal que bem. O empreendimento teórico é um projeto de ultra- radical, por um lado, e o imanentismo na análise textual, por outro,
passagem, porque de crítica, não de crença. Sua atuação crescente de algumas correntes de teoria literária contemporâneas”.2
desperta admiração e receio, respeito e desconfiança. Se não se pode Como acontece depois de mutações fundas, alguns apontam
falar mais em falência das teorias, não há como negar seu progres- no fim de um modo o fim de um mundo. Os mais impacientes já
sivo descrédito. As correntes teóricas se tinham cristalizado a partir pensam definir esse tempo como depois da teoria;3 o gesto procede
da prevalência de posicionamentos políticos — que resultavam em se se pensar o tempo, recente ainda, quando o debate literário em
redundância: ler um texto enquanto crítico marxista ou cristão ofe- jornais e revistas tinha uma importância central na dinâmica da
rece pouca margem à descoberta e muita margem à confirmação de vida cultural, uma componente incontornável da cultura literária.
uma teoria já consabida de antemão; porque o princípio mesmo do O mundo cibernético operou uma passagem considerável: da rea-
saudável distanciamento crítico já está sacrificado. lidade aos signos, das coisas à linguagem, de Prometeu a Hermes,
Depois do giro linguístico, já nos tumultuados anos 70, a lingua- da energia bruta à informação sutil. No entanto, é cedo demais para
gem ocupou a centralidade da cultura; e houve uma recrudescência falar em fim da teoria; difícil receber isso sem reticências internas,
teórica notável. A lamentar, o saldo: não foi tanto a contribuição quando não com resistências externas, como é o caso de Repensando
generosa à abertura, à recepção do texto, mas a redistribuição dos a teoria, de Richard Freadman, Richard e Seumas Miller.4 Como é
lugares acadêmicos, a conquista de cátedras. Estruturalismos, new 2 (MAIA 2013:81).
3 (EAGLETON 2005)
criticism, formalismos, todos tonitruando na soberana alegria de 4 (FREADMAN; MILLER 1994).
94 Lourival Holanda Capítulo 2 . A teoria literária 95

também o caso do presente projeto que João Sedycias organiza aqui: semiótica, as teorias da recepção, o pós-estruturalismo e, dentro des-
repensar a teoria é postura oposta à ação arbitrária de descartá-la, te, o projeto ou estratégia desconstrucionista, todas as abordagens
por não abarcar todas as dimensões do possível, do imprevisível mantêm um ar de família, para dizer com Wittgenstein: nos jogos
— que caracteriza a criação literária contemporânea. No universo analíticos que propõem ainda há o elo entre linguagens, sociedade e
hierarquizado, burocrático, administrativo onde se estruturou a sua possível tradução do gesto criador — no seu étimo original.
disciplina teoria da literatura, a cristalização de suas descobertas em A ascendência circunstancial dessas escolas está ligada às in-
certezas repassadas em vulgata doutrinal foi, certa, letal; mas assi- junções sociopolíticas: os grandes centros universitários divulgam
milar essas limitações à definição de teoria, não seria justo: a teoria com mais eficiência a pretendida superioridade de seu aporte teó-
é o esforço permanente de repensar o fato literário; e isso, ao modo rico; acontece, não raro, de um movimento ter mais força de circu-
da assíntota: sendo de natureza predominantemente retórica e não lação que de consistência teórica; havia um fetiche de sacralização
simplesmente lógico-dedutiva, a relação assintótica da teoria com o de tudo o que emanava dos grandes centros universitários. Seria
real literário vai cercá-lo sempre, sem abarcá-lo nunca. O rigor da interessante observar do ponto de vista sociológico a ascendência,
lógica sempre fica aquém da força de evidência da coisa literária. A poder e prestígio terrorizantes de certos nomes. Um vocabulário
literatura, ainda que indefinível, transcende as teorias. carregado de aluviões de discurso supostamente filosófico, cientí-
A teoria como a concebemos hoje, instituída enquanto discipli- fico, técnico — como se assumindo postura de que o que concebe
na universitária, deriva de inícios do século passado, entre os anos 20 bem não se explica claramente — deixou para as gerações atuais
e 30. Um grupúsculo de pesquisadores, amadores de literatura, cedo um campo que, depurado de areia e cascalho, fica pouco fecundo.
vai se transformar num coletivo com força de forjar os conceitos que A teoria literária perdeu o contato com o mundo social; tal isolacio-
revolucionarão os estudos teóricos. O grupo de Moscou se torna nismo foi letal. Mesmo se nos centros universitários os programas
representativo, emblemático dessa virada de renovação; infelizmente continuem esperando dos estudantes que salmodiem teorias como
a tradição vai engessá-los — os formalistas — numa função de tri- ventríloquos aplicados.
bunos; a um passo da função judicial. Os estudos se deslocam, no A contradição começa em não pressentir que quando se fala
período entre guerras, e o centro de gravitação dos estudos de teoria em literatura a reflexão sobre os afrontamentos sociais, ideológicos,
pende para a Alemanha; depois para Praga, mas mantendo ainda toma como objeto a linguagem enquanto mobilidade e modalidades
um ar de família, reconhecível no empenho na objetivação do texto. de experiência — e a linguagem do teórico aponta um dado cami-
Quando o foco de pesquisa se desloca e acontece nos Estados Unidos nho metodológico consabido, um chão batido; mas com o prestígio
— o célebre new criticism — as variações de abordagem divergem do poder de plantão naquele centro acadêmico; a segurança suposta
entre a crítica formal e a teoria literária, guardando, contudo, ainda sacrifica, assim, a margem de liberdade; um trabalho teórico ficava
uma invariante: o caráter formal, modal, do texto. Assim, desde o sendo o jogo de completar ou decodificar com os termos aceitos em
formalismo russo, passando pelo new criticism, o estruturalismo, a um quadro conceitual.
96 Lourival Holanda Capítulo 2 . A teoria literária 97

Se a função do teórico muda é porque as novas formas artísticas cientificidade nos estudos literários. Os ismos se sucederam com
pedem outros referenciais. A poesia de Mallarmé ou a música dode- a força de modas, promovendo leituras enquadradas em sistemas
cafônica estavam distantes do grande público, então o teórico fazia que acreditávamos, mais que os melhores, os únicos possíveis. E,
as vezes de mediador cultural criando um modo de compreender o enquanto a ciência buscava uma narrativa que desse alguma uni-
fenômeno novo. Com a mudança de sensibilidade literária, há uma dade ao mundo, as teorias se fracionavam; nada nas investigações
prevalência da experiência sobre a referência. No mundo virtual literárias se assemelhava à empresa utópica da teoria das cordas;
é fácil perceber a eclosão de experiências de expressão em muitos ou a das catástrofes, através de processos descontínuos procurando
registros. O poema compõe com a pintura, que pede a música, um modelo dinâmico contínuo; ou do real velado, de que falam os
que põe o conjunto em movimento gráfico, como nas criações Físicos: também a tarefa do teórico é captar o surgimento de uma
poemáticas de Jussara Salazar ou de André Vallias. A linguagem dimensão social escondida sob a realidade do texto. Ficava, no
do texto já de antemão dialoga com os recursos teóricos, como entanto, a pretensão de cientificidade; ainda que compreendendo
romances de Lourenço Mutarelli ou de Cícero Belmar. A teoria a ciência no estágio do XIX, com a termodinâmica [1880] e seu
tem o desafio permanente de acompanhar, e às vezes de sugerir, as modelo de superação de fases, levando à entropia: cada escola
possibilidades de criação. E respeitando a liberdade de quem dispõe supondo-se superar à anterior. Mas a analogia fica ali, deslocada:
de um material de difícil controle: “a literatura tem um sistema seu entropia só vale para sistemas fechados — não funciona na cultura,
de signos e de regras de sintaxe de tais signos, sistema esse que lhe não serve para pensar a dinâmica de refazimento permanente das
é próprio e que lhe serve para transmitir comunicações peculiares, coisas culturais; aqui melhor recorrer à figuração da neguentropia;
não transmissíveis com outros meios”5. O desafio do teórico con- ou a autopoiésis (advinda também do mundo científico, da biologia,
temporâneo pode ser o de ter a liberdade de adequar métodos lá com Humberto Maturana e Francisco Varela; e diz melhor essa sur-
onde o escritor ousa modos de linguagens. preendente reorganização vital que escapa ao conceitual anterior).
Com o advento das novas mídias, há seguramente uma O cuidado em dar cientificidade às reflexões teóricas sobre
dificuldade em discernir o que seja teoria. Ela ainda sabe que existe; literatura ainda acompanhava o paradigma dominante desde o XX,
embora ignore o que ela é. A complexidade que se apresenta quando com a caução de um arrazoado emulando as exatas — e, se nem
se tenta fixar conceitualmente de maneira absoluta qualquer prática tão somente para angariar suportes financeiros para projetos de
cultural. Fenômeno concomitante à prática literária. Linha divisória pesquisa no bojo das ciências com credibilidade pelas estatísticas
pouco perspícua. Talvez sejam esses os vínculos interiores que, antes e cifras, também porque respondia à suposição de uma transpa-
da teoria, a cultura literária mantinha com o corpo social. rência mensurável do mundo como protótipo de conhecimento
Da nebulosa de conceitos e escolas dos anos 70 pouca coi- verdadeiro. Esse modo de conhecimento era ainda mais prescritivo
sa guarda ainda o mesmo peso. Produziram um belo efeito de que procedural, apontava conceituações e subconceituações catalo-
5 (SILVA 1983:95).
gadoras; não ousava ainda deslocar discursos, submetê-los à prova
98 Lourival Holanda Capítulo 2 . A teoria literária 99

de autorrefazimento próprio às coisas de arte. E assim a teoria foi acompanhava a de Ortega y Gasset. A eficácia de uma leitura inte-
ficando um mundo à parte, la folie raisonnante, orientado pelo ligente e viva vinha substituída pelo vocábulo técnico que, à guisa
primado ou pretensão do modelo científico passado; fiel a uma de servir à literatura, se servia desta para mascarar a ocupação de
forma de dedução lógico-racional, e nenhuma forma de linguagem um espaço. Quanto mais absconso o discurso, maior seu poder de
comum, cotidiana, pragmática ou artística, que se servisse de ima- fascínio. O teórico era definido como um manipulador de conceitos,
gens, analogias e metáforas, acreditava só assim ter pretensões de para quem o fato literário só existia para caber num sistema. Aqui,
conhecimento autêntico. E, no entanto, já ali ao lado, a ciência de como no campo da química, a densidade aumentava a temperatu-
ponta, a quântica, a astrofísica, os pesquisadores como Heisenberg ra: tempo das querelas por nuances conceituais; e a consequente
ou Niels Bohr não se constrangiam, antes se rejubilavam em perce- clausura defensiva. E, se o poder se percebe pela culpabilidade que
ber no mundo real dimensões que não cabiam num mero conceito. inspira, não surpreende que os estudantes tomem por prudência,
A teoria literária ficou presa a um processo dedutivo fechado por osmose ou conforto intelectual, um alinhamento teórico mais
em si mesmo e não podia ousar outras formas de persuasão que susceptível de garantir suportes financeiros pela aceitação junto aos
não derivassem desse processo lógico. Assim, o desvio desnorteou organismos dispensadores de bolsas e benefícios. Há que se lamen-
a geração seguinte que via na abstração cientificizante o sequestro tar a perda dos níveis de integração, entre boa parte dos teóricos;
da contingência que marca as valorações humanas. A tautologia e sobretudo quando se poderia fazer face ao inimigo comum: a indi-
a previsibilidade beiravam o tédio; para onde tende toda vulgata: ferença que hoje grassa nos corredores e desemboca nas outras mí-
perde seu fulgor inicial de descoberta e finda em controle feroz de dias. As segregações departamentais negavam o movimento mesmo
catecismo. De qual crédito goza ainda a teoria literária, junto a seus da cultura contemporânea: moléculas, células, órgãos e sistemas,
leitores eventuais, na diversidade de suas expectativas, nos corredo- tudo se define pela conexão; a sensibilidade contemporânea parece
res universitários? Quanto do particularismo das linhas ideológicas dar provas desse outro modo de inteligência — modi res conside-
demasiado rígidas das escolas pôde agregar em suas sistematizações randi — novas formas de pensar a teoria literária: as redes sociais
rígidas? A nova sensibilidade coletiva, construída a partir das aber- permitem muito — inclusive o melhor. A perspectiva globalizante
turas virtuais, sob a urgência do presente, vai se inventando uma ultrapassa as fronteiras das literaturas regionais e afirma a liberdade
forma de debate teórico cruzando muitas mídias. Como crer que o atual de poder cruzar pontos de vista teóricos e disciplinares. A teo-
close reading dê conta da produção literária atual, tão assombrosa- ria, portanto, está hoje também nas redes, ainda que sem pretender
mente heterogênea? Não há receita para a reflexão — incumbência a sistematizações. Em algumas revistas digitais, como Cronópios,
eminentemente teórica. Sibila e Zunái, a reflexão em torno de teoria literária prossegue,
O encapsulamento operado nos estudos teóricos nos anos 80 entre jovens-cabeça e cabeças grisalhas; um modo frutífero de troca
não prestou grande serviço à credibilidade e difusão da literatura; de experiências — e farpas, certo; mas que, se estão ali, é por crerem
os sintomas dessa expressão de poder vinham de longe; e já desde ainda de algum proveito e sentido estar no espaço da teoria como
os anos 50, em Genebra, a advertência pertinente de M. J. Durry numa encruzilhada de modos e métodos de pensar a literatura.
100 Lourival Holanda Capítulo 2 . A teoria literária 101

Os teóricos refletem sobre literatura como extensão de suas prá- de segurança; as citações possíveis estão na internet, em sua grande
ticas de leitura. Desde Aristóteles: a Poética não vem com programa parte; mas elas já não servem do mesmo modo: antes, davam a im-
de prescrições, mas antes, de descrições; ainda que pontuadas por pressão de segurança; hoje, servem de suporte para a reflexão mais
reflexões que guardam seu frescor de pertinência. Ernst Robert Curtius pessoal. A teoria dissolveu sua segurança, cristalizada pelos últimos
ou Antonio Candido, George Steiner ou Jean Starobinski, o trabalho anos, e a literatura preservou seu talento excepcional para sair-se do
teórico neles não busca dissimular insuficiências e lacunas, e por isso impasse criativamente.
chegam a uma finura de observação, a uma pertinência de valoração E, no entanto, urge acreditar no quanto a teoria literária pode
que acrescentam a quanto os leiam. Mesmo os mais próximos, como trazer à cultura. Mesmo não sendo fácil definir a extensão desse
Marcus Siscar ou Paulo Franchetti, Antonio Carlos Secchin ou João aporte, ele é um gesto afirmativo. No espaço acadêmico, ou no espaço
Cezar de Castro Rocha, se teorizam, o fazem com firmeza, mas virtual, a teoria pode ser um trabalho de criação coletiva; um em-
também com retenção, com reserva, como num afã de partilhar preendimento coligando outros colaboradores; onde o prazer da par-
percepções. Porque distantes da patrimonialização das teorias, a tilha, nesse modo de saber que fraterniza, é maior que as hierarquias.
liberdade deles se soma à nossa; propõem, mais que impõem. O espaço cibernético permite um modo teórico mais livre, onde o
A questão aqui seria: a teoria literária tem futuro? Podem-se discurso científico convive com o controverso, a escrita artesanal com
discernir, em meio aos muitos fracassos, os sinais de sua permanên- a técnica; a teoria anterior carregava o compromisso com a segurança
cia? Desde os anos 60, a teoria literária projetou sobre os estudos conceitual, quando compreender era enquadrar num sistema teórico,
universitários um modo de pensar a realidade do texto e ocupou um integrar nele o texto, transformá-lo enfim em prova de validade da
espaço necessário. Algumas teorias trazendo mais originalidade que teoria, afastando suposições (mais procedurais, mais deslocáveis, na
peso; outras, mais singularidade que crédito. É bom não esquecer o cultura virtual) — antes essa alternância que aquela alternativa. E
lugar de onde emanam as teorias; sua patrimonialização nos centros quem hoje ousa pensar a teoria literária não se constrange em fundir,
universitários de maior suporte financeiro conta muito: o sucesso não num mesmo empreendimento, função e paixão. Deixando espaço à
é tanto que sejam operacionais, mas que circulem; cumulam, assim, acolhida e à surpresa, uma vez que o mundo cibernético fica à beira
a expectativa de certos centros por dividendos imediatos. A teoria de eventualidades, de possíveis, sendo uma sucessão de equilíbrios
padecia da síndrome de quem fica entre Cila e Caríbdis: de um lado, efêmeros. Sem, no entanto, renegar o primado da reflexão que sustém
o recente imperativo mercadológico neoliberal que hoje a condiciona; a análise. A teoria literária, a despeito de suas imperfeições, de suas
e, de outro lado, a superstição de autoridade inconteste das posturas lacunas, de suas insuficiências, a despeito mesmo do anacronismo das
teóricas anteriores. O ciberespaço desvirtua essa direção, relativiza as instituições universitárias, é ainda um espaço da liberdade de refletir
autoridades superficiais e se propõe, na maleabilidade de formatação sobre a prática escritural, o espaço do direito à pesquisa, tão certeira-
das redes, um serviço de maior partilha de um saber. mente requerido por Mário de Andrade.
A teoria literária em tempos de redes sociais pode ser aventura A grande disparidade entre as correntes teóricas e as políticas
de grande fôlego: o exercício do pensamento não se faz com redes que caracterizaram os estudos literários manifesta especialmente a
102 Lourival Holanda Capítulo 2 . A teoria literária 103

fragilidade das instituições universitárias quando, para assegurar cré- FREADMAN, Richard; MILLER, Seumas. 1994. Re-pensando a teoria: uma crítica
da teoria literária contemporânea. Trad. Aguinaldo José Gonçalves e Álvaro
dito, repetem, em pior, os aparelhos de controle contra os de criação;
Hattnher. São Paulo: Unesp.
e, assim, distanciam, mais que agregam, o possível público leitor de
MAIA, Eduardo César. 2013. Crítica e contingência: uma reavaliação da crítica
literatura. A complexidade mesma da matéria com que trabalha o te- humanista através do perspectivismo filosófico de José Ortega y Gasset e do
órico — a literatura — é de difícil conceituação unânime. A tarefa do personalismo crítico de Álvaro Lins. Recife: Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal de Pernambuco. Tese de doutorado.
teórico começa quando se dá conta da dificuldade de definir essa di-
Orientador: Prof. Dr. Lourival Holanda.
ficuldade: a palavra literária, a que suscita no leitor prazer ou espanto,
MERQUIOR, José Guilherme. 1975. O estruturalismo dos pobres e outras questões.
exasperação ou exultação, enfim que o atinge. A reflexão teórica pode Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
começar na linguagem, a base mesma do fato literário (ainda que, por MILLER, J. Hillis. 1986. The Ethics of Reading: Kant, de Man, Eliot, Trollope, James,
temer uma suposta aristocracia do espírito, de tradição humanista, a and Benjamin. New York: Columbia University Press.

teoria mais recente tenha se autorizado alianças suspeitas). E, mesmo NINA, Cláudia. 2007. Literatura nos jornais. São Paulo: Summus Editorial.
PRIGOGINE, Ilya. 1996. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São
se o autor não pretendeu qualquer reflexão abstrata, cabe ao teórico
Paulo: Unesp.
fazê-lo porque essa dimensão metaliterária que está no interior do
PUTNAM, H. 1981. Mind, Language, and Reality. New York: New York University
texto o alarga. Assim, em qualquer que seja o suporte, o teórico pode Press.
contribuir para clarear sentidos e possibilidades de leituras. Há aspec- RORTY, R. 1996. Contingencia, ironía y solidaridad. Barcelona: Editorial Paidós.
tos do fenômeno literário que a teoria pode liberar, fortificar, enrique- SCHOLES, R. 1985. Textual Power. Literary Theory, and the Teaching of English.
cer. E, acreditando na relevância de manter algum referencial de rigor New Haven & London, Yale: University Press.
SELDEN, R. (ed.). 2010. Historia de la crítica literaria del siglo XX: del formalismo
simultaneamente analítico e criativo, pode pôr alegria na função que
al Postestructuralismo. Madrid: Akal.
lhe cabe no sistema da vida social. É de se esperar que especialmente
SILVA, Víctor Manuel Aguiar e. 1983. Teoria da literatura. Coimbra: Almedina.
na plataforma virtual a teoria ganhe em liberdade e persistência.
WATERS, Lindsay. 2004. Enemies of Promise: Publishing, Perishing, and the Eclipse
of Scholarship. Chicago: Prickly Press.

Referências

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COMPAGNON, Antoine. 1999. O demônio da teoria: literatura e senso comum
Trad. Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo
Horizonte: UFMG.
EAGLETON, T. 2005. Depois da teoria: um olhar sobre os estudos culturais e o pós-
modernismo. Trad. Maria Lucia Oliveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Capítulo 3

Crítica literária:
seu percurso e seu papel na
atualidade*
Roberto Acízelo de Souza
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
I

A expressão “crítica literária”, talvez, sobretudo, na língua inglesa, é


em geral empregada de modo extremamente impreciso. Designa via
de regra o conjunto dos estudos literários, assim englobando verten-
tes bastante distintas desses estudos, e, pois, misturando num balaio
só tanto disciplinas antigas, como retórica e poética, quanto moder-
nas, como história da literatura e teoria da literatura. Procurando
um pouco mais de precisão no uso da terminologia técnica da nossa
especialidade, tentemos um desenredo, que nos permita situar de
modo mais claro o conceito de crítica literária, bem como compre-
ender melhor sua função no momento presente.

II

A compreensão imediata da noção veiculada pela palavra crítica con-


trasta com o precário conhecimento acerca da história do termo1. Sem
condições de contribuir para superar completamente esse problema,
podemos, contudo, pelo menos situar alguns referenciais preliminares.
A palavra, proveniente do grego, integra inicialmente o vocabulá-
nota inicial
rio da pedagogia. No sistema da educação antiga — esboçado a partir
* Versão revisada de ensaio anteriormente publicado em: Floema; Caderno de de em torno do século VI a.C. e vigente até por volta do século V da
teoria e história literária. Vitória da Conquista, BA, Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia, Ano VII, n. 8, jan.-jun. 2011, p. 33-44. 1 (cf. WELLEK s.d. [1963]:29).
108 Roberto Acízelo de Souza Capítulo 3 . Crítica literária 109

nossa era —, depois das primeiras letras os alunos passavam a dedicar- III
-se ao estudo aprofundado dos escritores clássicos. Encarregavam-se
desses cursos mestres chamados em geral gramáticos, ou então, alter- Curioso é que, se o crítico, como vimos, tornou-se personagem
nativamente, filólogos, e ainda críticos, designação corrente nos meios bem conhecido na cultura ocidental, a crítica não constitui espaço
situados sob a influência da escola filosófica dos cínicos2. Do grego disciplinar autônomo, pelo menos até o século XVIII. Assim, seu
a palavra passa para o latim, tornando-se, no entanto, de uso pouco exercício se dava no âmbito da gramática, da retórica e da poética.
frequente, dada a preferência manifestada nessa língua pelo vocábulo A expressão grega originária para designá-la é kritike tekhne (tradu-
concorrente gramático3. Nos empregos greco-latinos dessas palavras, zida em latim por ars critica), isto é, “arte crítica”, tomada a palavra
parece nem sempre ter havido sinonímia perfeita entre elas, observan- arte na acepção antiga, ou seja, com o significado de “habilidade”,
do-se indícios de que se reservava a expressão crítico para designar o “perícia”, “técnica”. E na verdade tratava-se de uma prática sensivel-
indivíduo habilitado a maior aprofundamento nas especulações sobre mente distanciada do que chamamos hoje crítica literária.
os textos, em comparação com o saber mais modesto característico do Com efeito, na tradição antiga, exercer a crítica significava
gramático 4. percorrer um caminho escalonado. Num primeiro momento, tra-
Na Idade Média, ao que parece, o termo crítico deixa de circu- tava-se de apurar a fidedignidade da cópia de um texto. No início
lar. Registra-se apenas a forma adjetiva, como um derivado do subs- de uma aula naqueles tempos muito anteriores à era da imprensa,
tantivo crise, em expressões como “doença crítica”, na terminologia professores e alunos tinham de preliminarmente verificar o grau
da medicina, por conseguinte 5. de correspondência entre as cópias manuscritas dos textos de que
No Renascimento, porém, a palavra ressurge no sentido lite- cada qual dispunha. Supondo-se que o texto autêntico estivesse
rário. Recupera-se então a virtual equivalência entre os termos gra- na posse do mestre, era necessário conferir se as vias em mãos dos
mático, filólogo e crítico, para designar os humanistas empenhados discípulos não apresentavam variantes relativamente à versão do
na restauração, comentário, compreensão e julgamento dos textos professor. Constatada a uniformidade das várias cópias, passava-se
da Antiguidade 6. à etapa propriamente analítica do trabalho com o texto: leitura em
Finalmente, nos vernáculos modernos, entre fins do século voz alta, segundo a prosódia; explicação literal e literária das senten-
XVI e início do XVIII o vocábulo crítica expande seu uso e se ças; dedução das regras gramaticais. Por fim, coroando o percurso,
firma, com algumas assimetrias nacionais que por ora não nos vinha o julgamento dos méritos da obra, que, aliás, visava menos
interessam7. à identificação das “belezas” do que ao destaque de sua eficácia na
proposição de padrões éticos de honra e virtude. Desse modo, os
2 (cf. MARROU 1973 [1948]:252-253). critérios especificamente estéticos — limitados à verificação do grau
3 (cf. WELLEK s.d. [1963]:30).
4 (cf. WELLEK s.d. [1963]:30).
de conformidade entre o texto em questão e os modelos consagra-
5 (cf. WELLEK s.d. [1963]:31). dos, constituídos especialmente pelo conceito de gêneros (tragédia,
6 (cf. WELLEK s.d. [1963]:31).
7 (cf. WELLEK s.d. [1963]:32-45, passim). comédia, epopeia, etc.) — se subordinavam a princípios morais,
110 Roberto Acízelo de Souza Capítulo 3 . Crítica literária 111

pondo-se em relevo, por exemplo, a capacidade do autor em figurar objetos de diversas naturezas, como, por exemplo, o gosto, o conhe-
exemplos de perfeição humana, mediante a caracterização dos he- cimento, os eventos da história. A expressão certamente mais gran-
róis e a narração de suas ações . 8
diosa e influente dessa profunda reconcepção da velha kritike tekhne
Ora, da descrição que apresentamos infere-se a feição dog- encontramos sem dúvida nas três Críticas de Kant: a da razão pura
mática da kritike tekhne, exercício fortemente condicionado pela (1781), a da razão prática (1788) e a da faculdade de julgar (1790).
observância de regras e pela reverência à autoridade da tradição, Desse modo, integrada primeiro à filosofia e logo depois ao
muito distante, por isso, do entendimento moderno que temos do próprio senso comum, como efeito da democratização da cultura
ato crítico, isto é, análise de um texto desenvolvida sem ideias cerce- decorrente da revolução burguesa e da correlativa difusão das luzes,
adoras e preconcebidas. a crítica desborda do seu âmbito originário. Deixa de ser uma técni-
Como se deu então esse salto conceitual? Tentemos uma re- ca de análise de textos fundamentada em argumentos de autoridade,
constituição concisa, privilegiando uns poucos marcos estratégicos. para tornar-se, na definição de um dicionário português de 1813,
“arte de discernir o verdadeiro do falso; e o bom do mau gosto”11.
IV Façamos, no entanto, abstração de suas incidências no vasto
campo em que se opõem o “verdadeiro” e o “falso” (onde cabem
No início do século XVI, Erasmo de Rotterdam passa a aplicar a ars tanto os voos metafísicos quanto o pragmatismo da vida cotidiana),
critica ao estudo da Bíblia, “como um instrumento a serviço do ideal a fim de reorientar nosso foco para a questão das letras.
de tolerância” 9. Na segunda metade do século XVII, Richard Simon,
por sua vez, publica sua série de estudos críticos sobre a Bíblia: V
Histoire critique du Vieux Testament (1678), Du text du Noveau
Testament (1689), Des versions du Nouveau Testament (1690), Des Aplicada a textos, à medida que se liberta da tutela normativa
principaux commentateurs du Nouveau Testament (1693) e Nouvelles exercida pelas antigas disciplinas literárias — gramática, retórica e
observations sur le texte et les versions du Nouveau Testament (1695) . 10
poética —, a crítica como que se desregulamenta. Prevalecendo o
Utilizada para o estudo do mais intocável de todos os textos, a prática livre exame e, pois, o relativismo de julgamentos, tende a aproxi-
da crítica entra, assim, no século XVIII bastante alterada em rela- mar-se de uma nova ramificação da filosofia emergente no século
ção à sua matriz antiga: em vez de exame baseado em convenções XVIII, a estética. Dela absorve em especial a noção de “gosto”, que
tradicionalmente aceitas sem questionamento, apresenta-se como assim se desvencilha do estigma de tema intratável, cristalizado
consideração analítica livre e racional não apenas de textos, mas de no conhecido provérbio de origem medieval: “De gustibus non est
disputandum”12.
8 (cf. MARROU 1973 [1948]: 258-266, passim; SOUSA 1966:198-199; DIONÍSIO
TRÁCIO 2002:35-36).
9 (cf. WELLEK s.d. [1963]:31). 11 (SILVA 1922:497, v. 1).
10 (cf. BOURDÉ; MARTIN s.d. [1983]:64). 12 (cf. RONAI 1980:50).
112 Roberto Acízelo de Souza Capítulo 3 . Crítica literária 113

Assim fortalecida na centúria iluminista, promovida de técnica erigi-la em fundamento da crítica. Esta, por conseguinte, longe da
didática a empreendimento intelectual de cúpula, a crítica literária pretensão de tornar-se uma ciência especializada, seria antes uma
desdobra-se no século XIX em dois projetos que se revelariam prática diletante; seu lugar institucional e seu veículo, em vez da
contraditórios. cátedra e do livro eleitos pela vertente cientificista, se encontraria
Segundo um deles, pretendia transformar-se numa discipli- nos jornais e periódicos:
na acadêmica autônoma. Com esse objetivo, procurou superar a
discussão filosófica sobre questões como gosto, sensibilidade, be- A crítica varia infinitamente segundo o objeto estudado, segundo
leza, buscando bases científicas para suas análises e especulações, o espírito que o estuda, segundo o ponto de vista em que este es-
extraídas de ciências especialmente prestigiosas na época, como a pírito se situa. Pode considerar as obras, os homens ou as ideias.
biologia, a psicologia e a sociologia. Por esse projeto, a crítica seria E pode julgar ou somente definir. A princípio dogmática, ela se
uma ciência rigorosa, com aparato conceitual próprio apto a propor tornou histórica e científica; mas não parece que sua evolução
explicações causais para o fenômeno literário. Assim, à proporção
esteja terminada. Vã como doutrina, forçosamente incompleta
que cresciam as exigências de demonstrações objetivas sobre as
como ciência, tende talvez a se tornar simplesmente a arte de
questões estudadas, contornava-se o enfrentamento do problema
fruir os livros e de enriquecer e refinar, através deles, as impres-
crítico por excelência, o do julgamento de valor:
sões que suscitam.14

Nada há menos semelhante que a análise dum poema no intuito


VI
de o achar bom ou mau, tarefa quase judicial e comunicação
confidencial que se resume em muitas perífrases, em dar sen-
Essa crítica jornalística, dita também impressionista, que se destina
tenças e confessar preferências, e a análise desse mesmo poema
a público heterogêneo e cuja produção não requer formação espe-
com o intuito de encontrar indicações estéticas, psicológicas e
cífica, estava destinada a fazer carreira. Há quem veja suas origens
sociológicas, trabalho de ciência pura, em que o autor se dedica a
num periódico francês de fins do século XVII, Le Mercure Galant15.
extrair causas dos fatos, leis dos fenômenos, estudando tudo sem
parcialidade e sem predileções.13
Atravessa os séculos XIX e XX, alcançando o XXI sem sinais de
exaustão. Hoje, chama a atenção seu vezo de sentenciar autores e

Ora, esse alvo relegado pelo projeto cientificista é que consti- obras de modo explícito e peremptório, quase sempre a partir de

tui justamente o centro de atenção da diretriz que se lhe opunha. lastro analítico mínimo, limitado não só conceitualmente, mas

Conforme essa alternativa, em vez de superar-se a tendência para também pela exiguidade de espaço concedido pelos jornais, e tudo

aferições de mérito subjetivas e relativistas, cabia pelo contrário segundo a fluidez exigida pela ligeireza do grande jornalismo da

14 (LEMAÎTRE s.d. [1887]:341-342).


13 (HENNEQUIN 1910 [1888]:6). 15 (cf. DEJEAN 2005 [1997]:101).
114 Roberto Acízelo de Souza Capítulo 3 . Crítica literária 115

atualidade. Sirvam de exemplos duas matérias recém-publicadas no Essa crítica que se definiu no curso do século XIX não logrou
caderno cultural de um dos nossos principais diários. Na primeira, esquivar-se, contudo, de uma fraqueza inerente às teorias factuais
assegura o crítico no lead: “Mirisola tropeça em novo romance; construídas no campo das humanidades. A certa altura de sua traje-
cansativo de ler e ingênuo ao tentar chocar o leitor, obra relata as tória, começa a confundir seu axioma com os dados com que traba-
relações sexuais do protagonista com uma menina”16. Na segunda, lha, isto é, passa a julgar as obras que analisa (seus dados) em função
se lê: “Ruffato acerta em painel da vida provinciana” . Seguem-se,
17
do conceito de literatura que adota (seu axioma). Assim, assumindo
em ambas as matérias, umas poucas colunas de texto, ilustrado com que o verismo figurativo constitui o atributo definidor da literatura
fotos dos autores. Não obstante a inversão de sinais nos juízos emi- abstratamente concebida, considera, por exemplo, que certo poema
tidos em cada qual, nas duas observa-se muito mais publicidade de lírico específico é menos ou mais estimável segundo seu teor menor
livros do que qualquer outro conteúdo, o que, se dúvidas houvesse, ou maior de autenticidade emocional, ou que uma narrativa parti-
se confirma plenamente com as notas em destaque que fecham cada cular tem menos ou mais valor de acordo com seu grau de transpa-
matéria: “Autor: Marcelo Mirisola / Editora: Record / Quanto: R $ rência em relação às circunstâncias que pretende representar. Ora,
32,00 (176 págs.) / Avaliação: ruim”; “Autor: Luiz Ruffato / Editora: esse modo romântico-realista de conceber a literatura, a partir do
Record / Quanto: R $ 31,00 (162 págs.) / Avaliação: ótimo”18. qual a crítica formulava seus juízos de valor, revelou-se envelhecido
na passagem do século XIX para o XX. Como se sabe, nesse mo-
VII mento, experiências diversas promoveram verdadeira revolução na
ideia de arte, sacrificando o princípio da referência, soberano por
Quanto à crítica que vamos chamar acadêmica — a fim de distingui- todo o século XIX, ao princípio da imanência: uma obra literária
-la da jornalística ou impressionista —, seu projeto foi constituir-se se define não pelo que diz, mas pelo modo de dizer; um poema
em disciplina abstratizante e universalista, dedicada a determinar não é expressão nem pensamento, mas um arranjo de palavras; um
o conceito de literatura, a propor princípios e procedimentos vi- personagem não é a réplica verbal de uma pessoa, mas um efeito de
sando à análise de obras literárias e a fixar critérios destinados a sentido. Em síntese, a linguagem deixa de ser tomada como simples
aferir a qualidade das produções literárias. Trata-se, pois, de uma instrumento, para converter-se no elemento central da arte literária.
teoria factual , à medida que numa de suas extremidades situa seu
19
Naturalmente, os produtos literários concebidos conforme
axioma — o conceito de literatura —, enquanto na outra dispõe esse novo paradigma não podiam ser bem cotados pela crítica lite-
seus dados, isto é, as obras literárias submetidas por ela a análise e rária, sendo programaticamente refratários ao conceito de literatu-
julgamento. ra que lhe servia de axioma. Se num primeiro momento o prestígio
institucional da crítica permaneceu forte o suficiente para margina-
16 (Folha 2008:5, Ilustrada).
17 (Folha 2008:5, Ilustrada). lizá-los, o fato é que tais novos produtos acabaram por legitimar-se,
18 (Folha 2008:5, Ilustrada).
19 (cf. BUNGE 1976:436-437).
a ponto de a crescente generalização de seu acolhimento ter virado
116 Roberto Acízelo de Souza Capítulo 3 . Crítica literária 117

o jogo: a crítica acadêmica é que sai de cena, por seu insuperável adotou por axioma o entendimento das vanguardas, assumindo,
desaparelhamento conceitual para analisar, compreender e julgar pois, que o atributo definidor da arte literária consiste fundamen-
adequadamente as obras literárias identificadas com as vanguardas talmente na autorreferencialidade.
artísticas emergentes na virada do século XIX para o XX. Tende, portanto, a teoria da literatura a desvirtuamento aná-
Assim desabilitada a crítica acadêmica oitocentista, sua con- logo ao que assinalou a crítica, isto é, a proferir os seus juízos de
dição de sistema integrador dos conceitos sobre a literatura e seu valor a partir de certo padrão estético apenas contingente — o das
estudo acabaria por transferir-se para uma nova disciplina: a teoria vanguardas mencionadas —, porém considerado absoluto, por sua
da literatura. É verdade que o rótulo crítica literária não se tornaria mera condição de presente hegemônico.
obsoleto a partir do momento em que, no início do século XX, co- Mas será esse um destino inevitável da disciplina? Não ne-
meça a circular a expressão teoria da literatura. Passa, no entanto, cessariamente, acreditamos. Para isso, no entanto, se a teoria da
a acolher um conjunto conceitual tão distinto do que cobria ante- literatura pretende sobreviver ao século que a criou, permanecen-
riormente que se torna compreensível certa resistência dos meios do vigorosa século XXI adentro, terá de assimilar um pensamento
universitários em utilizá-lo, quando a solução mais lógica seria, formulado na aurora da modernidade:
para nomear o novo conjunto conceitual então estabelecido, usar
terminologia igualmente nova, isto é, justamente, teoria da litera- Vive com teu século, mas não sejas sua criatura; serve teus con-
tura. Desse modo, em geral desde então relegou-se a empregos não temporâneos, mas naquilo de que carecem, não no que louvam.
estritamente acadêmicos o vocábulo crítica, usado em referência a Sem partilhar de sua culpa, partilha de seu castigo com nobre
matérias jornalísticas ou até no título de publicações especializa- resignação, e aceita com liberdade o jugo de que são incapazes de
das, mas não para designar disciplina dos currículos universitários. suportar tanto o peso quanto a falta.20

VIII IX

Segundo a linha expositiva até aqui trilhada, a teoria da literatura Enfim, numa época como a nossa, que levou a desarticulação de
constitui uma teoria factual sobre a literatura historicamente su- valores — e não só artísticos, naturalmente — a extremos sem
cessora da crítica literária. Trata-se também, por conseguinte, de precedentes, talvez nunca se tenha precisado tanto de crítica21. Não,
disciplina abstratizante e universalista, dedicada a determinar o
20 (SCHILLER 1995 [1795]:55-56).
conceito de literatura, a propor princípios e procedimentos visan- 21 Empregamos aqui a palavra crítica, bem como nas ocorrências que se seguem

do à análise de obras literárias e a fixar critérios destinados a aferir neste parágrafo, no sentido de atitude particularmente comprometida com o
pronunciamento de juízos de valor estéticos, e não para designar a disciplina
a qualidade das produções literárias. Seu conceito de literatura, definida no século XIX cuja caracterização antes esboçamos. Segundo o voca-
bulário aqui empregado existe, por conseguinte, atitude crítica não só na crítica
no entanto, já não é o mesmo da crítica literária, uma vez que ela literária acadêmica, mas também no jornalismo cultural, na teoria da literatura e
118 Roberto Acízelo de Souza Capítulo 3 . Crítica literária 119

é claro, da crítica como sensacionalização de banalidades, con- LIMA, Luiz Costa. 1989. A teoria e o crítico sensível. Humanidades. Brasília:
Universidade de Brasília, 22: 106-110.
forme se vê nas manifestações desinibidas do jornalismo cultural.
_________. Questionamento da crítica literária. 1981 [1980]. In: —. Dispersa
Tampouco de uma crítica acadêmica dada à absolutização dos seus
demanda; ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, p.
axiomas, segundo os desvios verificados no âmbito dos dois grandes 199-207.
modernos sistemas de conceitos sobre a literatura e seu estudo, a MARROU, Henri-Irénée. 1973 [1948]. História da educação na Antigüidade. São
crítica literária e a teoria da literatura. Menos ainda — por sua tática Paulo: E.P.U./Edusp.

de substituir a reflexão por um apelo fácil ao sentimento de repúdio RONAI, Paulo. 1980. Não perca o seu latim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
SCHILLER, Friedrich. 1995 [1795]. A educação estética do homem; numa série de
às injustiças — de uma crítica culturalista, dada ao contrassenso de
cartas. São Paulo: Iluminuras.
pregar o absolutismo ético e praticar o relativismo estético, no seu
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afã programático de revisar ou desconstruir o cânone. Em vez disso, Janeiro: Litho-Typographia Fluminense, 2 v.
precisamos de uma crítica fundamentada numa teoria consistente, SOUSA, Eudoro de. 1966. Nota acerca da história da filologia grega na Antigüidade.
prevenida contra a transformação de dados em axiomas, e que seja In: ARISTÓTELES. Poética. Porto Alegre: Globo, p. 188-210.

capaz de integrar compromisso com o presente e reflexão do passa- SOUZA, Roberto Acízelo de. 2006 [2003]. Crítica literária. In: —. Iniciação aos
estudos literários; objetos, disciplinas, instrumentos. São Paulo: Martins
do. Quanto ao futuro, a Deus pertence. Fontes, p. 110-119.
WELLEK, René. S.d [1963]. Termo e conceito de crítica literária. In: —. Conceitos
Referências de crítica. São Paulo: Cultrix, p. 29-41.

BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervé. s.d. [1983]. As escolas históricas. [Lisboa]:


Europa-América.
BUNGE, Mario. 1976 [1969]. La investigación científica; su estrategia e su filosofia.
Barcelona: Ariel.
DEJEAN, Joan. 2005 [1997]. Antigos contra modernos; as guerras culturais e a
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HENNEQUIN, Émile. 1910 [1888]. A crítica científica. Lisboa: Ed. da Tipografia de
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portraits littéraires – troisième série. Paris: Boivin, p. 340-345.

nos chamados estudos culturais.


Capítulo 4

Reflexividade,
Romantismo e
Modernismo
Sueli Cavendish
Universidade Federal de Pernambuco

“A força formadora da reflexão


marca a forma da obra”
“A reflexão, no sentido dos românticos, é
pensamento que engendra sua forma”
Walter Benjamin
Acessamos o nosso tema por uma via particular e bastante objeti-
va, e esta é a análise do teórico e crítico Leon Chai sobre o poema
“O Triunfo da Vida”, de Percy Bishe Shelley, composto em 1822. A
análise tem por título “O Triunfo da Teoria” e constitui o primeiro
capítulo do seu livro “Romantic Theory: Forms of Reflexivity in the
Revolutionary Era”1, no qual o autor explora, de modo geral, a con-
cepção de teoria que vem à luz na esteira da Revolução Francesa.
O poema nos projeta ao período imediatamente posterior ao do
Círculo de Iena, a Inglaterra do século XIX, bastante próximo
ainda, portanto, daquele em que frutificaram as doutrinas estéticas
dos Primeiros Românticos alemães, aos quais recuaremos a fim de
identificar o momento de instalação de uma tendência que viria a se
tornar a marca característica do moderno — a autorreflexividade,
ou, pura e simplesmente, a Reflexão, de que nos ocuparemos neste
texto. Nosso método reduplica, em seus primeiros passos, o de Chai,
uma vez que focaliza a reflexividade reconhecendo a necessidade
de posicioná-la em diversas molduras: a do poema, a da análise do
poema, a da visão de Chai sobre a reflexividade em geral e o meio
intelectual no qual se gestou.
O conceito, como sabemos, vem de Fichte e, em poucas pa-
lavras, designa a atividade do pensamento que se desenvolve ad

1 (CHAI 2006).
124 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 125

infinitum o pensar do pensar, o pensar-se a si mesmo como obje- Na abordagem de Chai, de fato, com esse caminhar ininterrup-
to. Pensar o pensar é um movimento da consciência pelo qual se to do pensamento para formas cada vez mais apuradas do pensar, a
conformam ou tomam forma os objetos estéticos, e pelo qual se reflexividade, sinônimo de Teoria, ganha em poder analítico, ao se
inscrevem numa trajetória que tem como horizonte a infinitude, tornar cada vez mais abstrata e ao ganhar autonomia com respei-
tão cara aos românticos. Por isso mesmo, num primeiro momento, to aos objetos sobre os quais se debruça. Nesse caso, uma vez que
o pensamento do filósofo receberia plena e entusiasta adesão dos se consiga especificar a forma de uma teoria independente do seu
integrantes do Círculo. campo de aplicação, se adquire conhecimento da natureza de todas
Começamos pelo “Triunfo da Vida”, porque a análise através da as formas de teoria. Sem que pretendamos nos arriscar em terreno
qual lançamos um olhar oblíquo sobre o poema de Shelley expõe a tão vertiginoso, retornamos ao poema de Shelley e à análise de Chai
estrutura recessiva em tudo semelhante ao movimento da reflexivida- sobre “O Triunfo da Vida”.
de que o conforma. Essa estrutura recessiva — o termo recessivo no No primeiro episódio visionário, argumenta Chai, Shelley faz
contexto da análise de Chai se refere ao movimento de um olhar que uso deliberado da alegoria a fim de nos impelir a adotar outro tipo
recua com relação a um objeto, a fim de obter, desse objeto, uma visão de perspectiva para além da literal. A alegoria torna necessária a
cada vez mais clara e abrangente — é, segundo Chai, bastante visível adoção de um frame, ou de uma moldura, que garanta um grau de
em “The Triumph of Life”, no qual visões oníricas se sucedem e se en- abstração correspondente ao da imagem proposta pelo poema, ou
fileiram, cada visão acrescentando uma nova revelação sobre a visão seja, a da necessidade de uma perspectiva consciente de si. Na leitura
imediatamente antecedente, movimento que implicaria uma crescente de Chai, que acompanhamos, a ausência de tal perspectiva condena
ampliação da nossa cognição com respeito ao objeto que se visa. Rousseau, figura tutelar em foco, a seguir a carruagem triunfante da
Ocorre, entretanto, que o argumento poético que esclareceria “Procissão da Vida” até a própria destruição, deixando-se subjugar
determinada visão é inadequado ou insuficiente. A explicação é a pela paixão. Pois são justamente as idas e vindas da paixão erótica
cada vez adiada para a visão subsequente, que promete clarividência que são figuradas nessa primeira imagem visionária, em face das
ainda maior, na medida em que incorpora o conhecimento e a “luz” quais fracassa Rousseau. Sua figura é especialmente pungente em
da visão precedente, o que nos coloca em dúvida sobre a possibilida- consequência da:
de de se alcançar o fechamento de uma significação, seja para cada
nova visão particular, seja para o poema como um todo. Rousseau é [...] sua incapacidade de oferecer ao narrador qualquer com-
a figura tutelar desse processo que será nomeado por Shelley de “A preensão da “Procissão da Vida”, ou mesmo de suas próprias
Procissão da Vida”, remetendo ao cânone literário que envolve auto- experiências [...] A admissão (dessa inabilidade pelo próprio
res como Petrarca, Dante, Homero, Virgílio e Milton. Importa aqui Rousseau) implica que a experiência em si mesma, mesmo que
menos o conteúdo do poema que essa sistemática e essa estrutura, cuidadosamente obervada, não é bem suficiente para nos levar
com que se movem as figuras focalizadas pelo autor. até lá (a essa compreensão) [...] Daí a necessidade de uma nova
126 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 127

revelação, precisamente para mostrar o que tornaria a compre- manhã em sua “brilhante onipresença” e “o brilho de uma luz que
ensão possível.2
parece queimar o próprio fogo”, imaginável apenas como a expres-
são simbólica da compreensão última para a qual incessantemente
No segundo episódio visionário, Rousseau se encontra em aponta o poema4.
meio a uma cena de beleza extremada e quase sobrenatural: “a pai- A “forma só luz”, não sendo apenas forma, mas forma dentro
sagem é abundante em detalhes idílicos, e, para rematar, o bosque de forma, é compreensível apenas quando se considera a luz que a
ecoa com um som ‘que todos os que o ouvem se obrigam a esquecer/ emoldura. Em outras palavras, Shelley não quer falar de qualquer
todo o prazer e toda a dor, todo o ódio e o amor’”. Rousseau vê em luz que brilhe nas trevas, mas de luz que brilha em luz num campo
seguida uma imagem que é o pináculo do episódio: ampliado de luz, ou seja, luz que é desdobramento de camadas de
luz que lhe antecedem. “Forma só luz” é alegoria, então — luz dentro
E vi então a clara onipresença de luz, dentro de um campo ainda mais amplificado de luz — para a
Da alva a fluir na gruta do oriente mais radiante forma de teoria. O brilho se intensifica à medida que
E o brilho intenso do astro maior nos aproximamos daquilo que sugere o alcance do supremo frame
Acender em chamas as águas da fonte conceitual. Sugere, mais ainda, que a teoria pode se debruçar apenas
Qual ouro a tecer a teia dos bosques sobre a teoria, tornando-se cada vez mais abstrata e a forma só luz
Jade ígneo em coruscantes trilhas será o símbolo da teoria mesma:

Envolta em sol como ele envolto em chama A sinestesia que encontramos ao longo do segundo episódio
De sua própria glória em plena fonte visionário tem, para mim, outro significado (que não apenas
Eis que surgiu, espargindo clarões poético e imaginativo). Como Rimbaud num momento pos-
Uma forma só luz. 3
terior, Shelley, creio, a vê como um movimento em direção ao
“desregramento de todos os sentidos”. E isso, para ele, significava
Esta é uma imagem cuja configuração reduplica toda a estru- um modo de desestabilizar nosso senso de moldura ou de pers-
tura do poema, cuja forma é a da revelação dentro de revelação pectiva. Desse ponto de vista, a sinestesia atua como um passo
dentro de revelação, estrutura que pretende causar no leitor a cren- preliminar à teoria: uma vez que percamos nosso rígido senso de
ça de que a cada descoberta ele chega mais perto de uma revelação moldura/estrutura ou perspectiva, estamos prontos para pensar
última: a de uma “forma só luz”, cuja luminosidade ultrapassa a de na própria perspectiva.5
toda aquela que a envelopa e lhe serve de moldura, como a luz da

2 (CHAI 2006:16). 4 (Cf. CHAI 2006:17).


3 (CHAI 2006). 5 (CHAI 2006:18).
128 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 129

Há outras implicações no poema de Shelley com respeito à A razão pela qual optamos por introduzir o nosso tema pela
questão da forma suscitada pela riqueza simbólica da imagem, tra- abordagem indireta de um poeta romântico é a de que a poesia do
tadas por Chai, mas aqui nos concentraremos apenas na dinâmica romantismo inglês foi muitas vezes considerada como sendo a pura
da “forma só luz”, dinâmica da revelação dentro de revelação, e a expressão de emoções, destituída de qualquer caráter reflexivo. T.
semelhança que guarda a dinâmica da imagem com a do poema S. Eliot interpretara a afirmação de Wordsworth no manifesto ro-
como um todo, que caminha do mesmo modo segundo essa mesma mântico — a poesia seria para o inglês “um transbordamento de
estrutura: mas qualquer coisa cuja forma possa ser discernida no emoções poderosas colhidas na tranquilidade” — como manifesta-
brilho do sol deve ser, por definição, ainda mais brilhante. Podemos ção cabal da ênfase romântica na alma do poeta, na subjetividade
imaginá-la apenas como simbolicamente expressiva da compreen- como motor de um confessionalismo emocionalista e sentimental.
são última para a qual o modo visionário do poema constantemente A partir dessa constatação, Eliot passara a advogar a tese da rup-
aponta6. tura total entre românticos e modernos, sob o argumento de que a
Prometendo uma clareza e uma clarividência crescentes, uma anulação e obliteração do eu que se instalaria como processo típico
palavra final sobre si, a imagem, todavia, é muda, e percebemos a da poética modernista deixava de fora a poesia romântica, em que,
cegueira essencial que constitui o olhar, bem como a negatividade julgava, o eu e seus transbordamentos eram o princípio estético
que funda todo ato de cognição. Para Chai, o que Shelley visa com nucleal. Sobre a questão, ele deixou palavras que vieram a se tornar
o silêncio da imagem, que também não fala a Rousseau, reforça a uma marca indelével na história literária, sobre sua concepção da
crença de que a teoria, “em última instância, pode debruçar-se poesia como uma fuga da emoção e como fuga da personalidade.
apenas sobre a teoria”. Ao invés de pura negatividade, porém, esse Eliot pontifica — legitimado pela publicação e pela repercussão do
postergar da reflexividade também sugere, para o mesmo autor, seu monumental poema The Waste Land, sobre a metamorfose a
que a teoria, um seu equivalente, trata da tentativa de dar forma que se deve submeter o Eu lírico na passagem/ruptura do român-
e coerência, representação, noutras palavras, àquilo que ainda não tico para o moderno: “O que ocorre é uma continua rendição de si
fomos capazes de figurar, aquilo que ainda não sabemos, à nossa mesmo, daquilo que se é no momento para algo que é mais valioso.
própria busca de conhecimento. Daí por que uma imagem positiva O progresso de um artista é um autossacrifício contínuo, uma extin-
como a da “forma só luz” estar apta a representar a reflexividade, ção contínua da personalidade”. 7
em suas duas faces de negatividade e positividade, ou seja, tanto É de admirar que, nos portais do século XX, um poeta do ca-
a que contém a promessa do alcance de níveis de compreensão e libre de um Eliot manifeste um pensamento tão trivial, prescritivo
clarividência cada vez maiores quanto a que nos adverte do fracasso e normativo com respeito à estética, deslocando ou fazendo tábula
inerente e constitutivo de toda tentativa da completa apreensão de rasa dos avanços filosóficos e epistemológicos notáveis conquistados
qualquer objeto. pelo círculo de Iena quase dois séculos antes. A neutralização ou
6 (Cf. CHAI 2006:17). 7 (ELIOT 2000).
130 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 131

repressão dos românticos, seja consciente ou não, seria responsável Mas a restrição de Eliot, na verdade, pode ser compreendida,
por muitos dos equívocos de Eliot, um dos quais a incompreensão da para além do seu desconhecimento do assunto. Há uma certa obscu-
importância de Edgar Alan Poe para a conexão romântico-moderna, ridade e confusão que rondam a própria designação “romantismo”,
uma importância que sempre ganhou realce e se manifestou através que se verifica ainda hoje, em parte pela diversidade dos romantismos
do grande interesse demonstrado, primeiro da parte de simbolistas existentes, em parte porque singularizam a rubrica do romantismo
franceses, Baudelaire e Mallarmé — e posteriormente da parte de na história e teoria da literatura como algo fútil e inconsistente. Uma
Valéry, pelo poeta americano. Com Eliot, que também não levou em leitura histórica que o relega ao mero culto do irracional e ignora a
conta a extrema variedade e complexidade dos romantismos, o eu se dimensão epistemológica da atitude e do gesto românticos.
confunde com a personalidade, sem que reconheça nessa instância De fato, não se fazia distinção entre o romantismo de caráter
a sede do próprio movimento da Reflexão, do pensar a si mesmo generalizado, chamemos de romantismo tout court, chamemos de
e que o primeiro romantismo, aderindo à filosofia fichteana, longe romantismo vulgar, afundado em clichês, como a melancolia e o en-
de entregar-se a efusões do sentimento, concebe o eu, e mais tarde nui, e o primeiro romantismo, assim como chamado pelos alemães,
o pensamento, como sede daquela atividade do pensamento que se que verdadeiramente constituiu e fundou não apenas o romantis-
desenvolve ad infinitum, o pensar-se a si mesmo como objeto8. A mo, e determinou a possibilidade de um “romantismo em geral”,
própria poesia eliotiana, composta em fragmentos no modernismo mas também o sentido que a história literária, a literatura e a própria
em consequência da inflexão dada à produção da arte pelos primeiros história em sentido mais amplo tomariam a partir desse momento.
românticos, que faz da forma uma “conformação”, ou seja, um dar-se Haverá ocasião de acentuarmos devidamente quão decisivo e deter-
forma no próprio processo reflexivo, é uma repercussão tardia da gui- minante é o Primeiro Romantismo, ou o Romantismo de Iena, para
nada imprimida à arte pelos primeiros românticos e dará testemunho a ruptura entre o antigo e o moderno, para a instituição do que hoje
do acerto e da fecundidade das teses do Círculo de Iena, fermentadas compreendemos como o romantismo teórico, ou de um projeto
com mais de século e meio de antecedência, entre os anos de 1798 teórico em literatura e, finalmente, para a existência da própria lite-
e 1800, ocasião em tinha como suporte a revista Athenaum, que ratura. Com o romantismo (de Iena) a literatura pela primeira vez
publicava os textos dos integrantes deste grupo, os irmãos Schlegel, chega não só a ombrear-se com a filosofia, como a assumir o papel
Novalis, Schelling, Schiller e ocasionalmente Hölderlin e Tieck . 9
teórico e especulativo da filosofia, a tornar-se o “absoluto literário”.
8 (BENJAMIN 1993). ou a ideia de totalização, é representada no sujeito. Observa-se, então, que o
9 (CAVENDISH 2009). O exame da “Ode sobre uma Urna Grega”, de Keats, dá movimento do pensamento do filósofo se articula ao movimento do conteúdo
sustentação à afirmação de que também dentre os poetas românticos ingle- do pensado, criando-se por essa via um circuito cuja origem é indiscernível,
ses o enlace filosófico-poético assumiu fecundidade inusitada. Nesta análise, é justamente porque é na esfera subjetiva, no domínio do eu, que o movimento
possível observar o movimento da reflexividade conformando o objeto estético, tem lugar. Esta mesma mecânica que impede que um terceiro termo se instale,
o poema “Ode sobre uma Urna Grega”. Tal como a relação kantiana entre a será reproduzida no dístico final da Ode de Keats, indefinidamente remetendo ‘a
imaginação e o entendimento na espécie do belo, o dístico final da ode, a beleza beleza à verdade e a verdade à beleza’, uma armadilha que sequestra a subjeti-
é a verdade, a verdade a beleza, cai num mecanismo pendular de circuito fecha- vidade, revelando as ilusões em que o eu incorre ao tomar-se a si mesmo como
do, ou seja, em um movimento reflexivo, ou autorreflexivo, em que a infinitude, objeto. Mas, sobretudo, inscrevendo o poema no movimento infinito da reflexão.
132 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 133

A poesia se erige em apresentação finita do infinito e a poesia como O romantismo de Iena marca, pois, [...] o nascimento daquilo
obra absoluta, ou seja, forma privilegiada de cognição e apreensão que até hoje se chama de “literatura” e que ele pela primeira vez

do mundo, que se forma na reflexão. A exigência de que uma sub- tentou delimitar como produção específica. Nascimento parado-

jetividade plenamente constituída esteja em vigor, de modo que o xal, como veremos, pois repousa sobre a perda da poesia mais

sujeito leve a efeito as complexas operações que a reflexividade e a originária e implica, portanto, desde o início, uma atividade

fusão de campos envolve, é cumprida. A subjetividade de Rousseau autorreflexiva constante”.12

é compreendida como um dobrar-se sobre si do pensamento; há


Há, portanto, um quiasma entre o romantismo vulgar e o ro-
grande interesse dos primeiro românticos em Shakespeare, e po-
mantismo de Iena de que sequer suspeitara T. S. Eliot.
demos observar claramente a subjetividade hipertrofiada de um
Chegamos, então, a compreender por que consideram falsa
Hamlet, aquele a quem o “excesso” do pensar paralisa. E, no limite,
Lacoue-Labarthe e Nancy a designação “romantismo” para referir-
a figura de Sócrates, que é emblemática da antecipação do sujeito
-se a este momento crítico da história literária, na medida em que
pelo qual e com quem a literatura se inaugura. Sujeito da ironia, no
o pressupõe separado — posto à parte, como uma escola, um estilo
qual “interagem forma e verdade”, o mesmo podendo ser dito das
ou uma concepção — algo de todo modo pertencente ao passado,
interações entre a literatura e a filosofia. Sujeito exemplar, Sócrates
quando, na verdade, é o projeto teórico inaugural da literatura e,
institui a literatura como a obra e o reflexo (reflexão) da obra, poesia
sobretudo, o que lhe dá toda a sua modernidade. E se não é plena-
e crítica, arte e filosofia.
mente reconhecido como a nascente do seu importante veio teórico
especulativo, isso se deve em grande parte à lacuna deixada pelos
Sócrates é o “sujeito-gênero” através do qual ou pelo qual a li-
franceses. Tal lacuna necessita ser “‘preenchida’, embora não deva
teratura é inaugurada, ou se autoinaugura, com toda a força da
ser saturada”, posto que a saturação e a exaustão de possibilidades
reflexividade, uma vez que a ironia é precisamente isso: o próprio
são, como veremos ainda, uma negação do espírito romântico.
poder da reflexão ou da reflexividade infinita — o outro nome da
Assim, dizem Labarthe e Nancy, a lacuna “deve ser abordada de uma
especulação.10
maneira que permita a decifração do poderoso equívoco que subjaz
O comentário de Jeanne Marie Gagnebin arremata o que aci- no termo ‘romantismo’, na medida em que seja possível alcançar-se
ma foi dito acerca da origem primeiro romântica da literatura, a que um distanciamento dessa equivocidade”.13 
Walter Benjamin11 dará ênfase toda especial ao indicar, na sua famo- Seguindo o caminho aberto por Benjamin, o estudo de Labarthe
sa tese de doutorado, a importância dos primeiros românticos para e Nancy procura mostrar que o romantismo e a teoria da literatu-
toda a teoria da literatura contemporânea, sobretudo em relação aos ra que nasce com os integrantes do grupo de Iena produziram os
conceitos de obra e crítica. pressupostos fundamentais e o modelo da prática teórico-crítica em
pleno vigor em nossos dias. Benjamin já o dissera:
10 (LACOUE-LABARTHE; NANCY 1988:86.) 12 (GAGNEBIN 2007:66)
11 (BENJAMIN 1993) 13 (LACOUE-LABARTHE; NANCY 1988:86)
134 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 135

Se se quisesse reconduzir a seus princípios a teoria da arte de um determinação reflexiva responde não apenas pela importância
mestre tão eminentemente consciente como Flaubert, a dos par- do conceito de autofiguração sintética como aparece na teoria
nasianos, ou aquela do círculo de Georg, encontraríamos entre do romance de Schlegel a Bakhtin e Lukács, mas também como
eles os princípios aqui expostos. Se tivéssemos que formular estes é enfatizada numa tradição que se estende [...] desde Lucinde,
princípios aqui, teríamos de demonstrar sua origem na filosofia de Schlegel até vários movimentos formalistas e de vanguarda,
dos primeiros românticos alemães. Eles são tão próprios ao es- até o nouveau Roman e a figuras tais como Wallace Stevens ou
pírito desta época que Kircher pôde, com razão, afirmar: “Estes Maurice Blanchot.17
românticos queriam guardar distância justamente do ‘romântico’
– tal como era entendido então e hoje”. 14 É espantoso que tantos anos tenham se passado desde a publica-
ção de “O conceito de crítica de arte no romantismo alemão” sem que
Central à tese de Benjamin é a questão da reflexividade. O fi- a questão central que anima esse texto, a questão da reflexividade te-
lósofo põe em relevo a reflexividade como o núcleo especulativo do nha adquirido algum relevo. É uma questão reprimida na história da
romantismo, o conceito básico da teoria do conhecimento subjacen- literatura e a única originalidade a que podemos reclamar trazendo-a
te ao conjunto de conceitos que o integram — fragmento, witz, meio aqui é o fato inconteste da sua ocultação. Lembremos, por exemplo,
de reflexão, conexão, entre outros, como bem o registra Gagnebin15. que só em 1986 este texto foi traduzido para o francês e apenas em
É especialmente pelo conceito de reflexão que ele empreende a aná- 1993 para o português, sem que fosse alvo de qualquer atenção da
lise do conceito de crítica de arte do romantismo de Iena; é a reflexão crítica18. Tentar compreender a centralidade da reflexividade para o
que erige a crítica como verdadeiro desdobramento das potenciali- romantismo e para a literatura como um todo é o que consideramos
dades existentes na obra, ultrapassando os limites de um discurso em si um ato de leitura original. O estudo de Walter Benjamin é, por
valorativo. E é essa determinação reflexiva da literatura, sentido conseguinte, o passo essencial para que se levasse a cabo o esforço pri-
extraordinário que esta assume e ao qual nos conduzirá o texto de meiro de compreensão das vigas mestras que sustentam o arcabouço
Benjamin, que a constitui como um absoluto literário16. Autônoma, modernista a partir de sua matriz romântica — observe-se que a sua
separada e independente, sobretudo com respeito à filosofia: tese se elabora entre 1917 e 1919, auge do alto modernismo —, vindo
a se tornar o primeiro resgate das teses do romantismo de Iena.
Em seus efeitos literários, esse reflexo hiperbólico nada mais é A ação da reflexão talvez possa ser compreendida quando
que a crítica, na medida em que não se a considere uma fun- convocamos e seguimos, pela imaginação, obras como o “Hamlet”,
ção secundária, sempre serve para aperfeiçoar o programa que
a literatura põe a si mesma. [...] é possível observar que essa 17 (BARNARD; LESTER 1988:xviii)
18 A tradução francesa desta tese de Benjamin só foi realizada por Phillipe Lacoue-
Labarthe e Anne-Marie Lang em 1986. Posteriormente, em 1993, foi traduzida
14 (BENJAMIN 1993) para a língua portuguesa por Márcio Seligmann-Silva, que manifestou em seu
15 (Cf. GAGNEBIN 2007:65-82) prefácio seu espanto pelo “quase que exclusivo desprezo da crítica especializa-
16 (CF. LACOUE-LABARTHE; NANCY 1988) da” por esta obra.
136 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 137

“Dom Quixote” e o próprio “Grande Sertão: Veredas” — a sua si mesmo, vale dizer também: tudo é uma parte ou momento do

exemplaridade no modernismo é farta — em que a obra se constrói “eu”. Através do pensar, o eu torna-se um “eu do eu” (Gesammelte

efetivamente nas dobras do pensar o pensar do protagonista, uma Schriften). 22

atividade pela qual vai se conformando progressivamente a forma


da própria obra. Benjamin realça a imediatez do pensamento reflexivo. Mas
A relação do pensamento consigo mesmo, núcleo do pensar agora adianta um passo ao acentuar a infinitude que lhe imprimi-
romântico, é, então, um pressuposto fundamental do conceito de ram os românticos:
arte. O processo que instaura é o da infinitude do pensar. Essa
infinitude vai se realizar no objeto estético e é capturada através A relação consigo mesmo do pensamento, presente na reflexão,

da abertura e do inacabamento característicos da obra de arte. A é vista como a mais próxima do pensamento em geral, a partir

reflexão romântica se inicia seguindo esta rota: “O pensamento na da qual todas as outras serão desenvolvidas. Schlegel diz num

autoconsciência refletindo a si mesmo é o fato fundamental do qual trecho de Lucinde: “O pensar tem a particularidade de, próximo

partem as considerações gnosiológicas de Friedrich Schlegel e, em a si mesmo, pensar de preferência naquilo sobre o que ele pode

grande parte também, as de Novalis”.19 pensar sem fim.” 23

Logo de saída é possível observar a extrema liberdade deste


pensamento, em contraste com o pensamento kantiano. “O espírito Antes de endereçar de que maneira o romantismo revoluciona o
romântico parece fantasiar agradavelmente sobre si mesmo”, dizia conceito de crítica, devemos tratar, progressivamente, do processo que
Schlegel20. “A faculdade da atividade que volta sobre si mesma, a levaria a um tal desenvolvimento; de que maneira, em suma, a reflexivi-
capacidade de ser o Eu do Eu, é o pensar. Este pensamento não tem dade que lhe é central instala a literatura como sede do pensar.
nenhum outro objeto senão nós mesmos”21. Em sua origem, a reflexividade é localizada na Doutrina da
É, portanto, no pensamento que ocorre a intuição. No eu pen- Ciência, de Fichte. De fato, na esteira do filósofo os românticos
sante, outra realidade é pensada, que ali se faz representar, e desta vêm a considerar “o pensar do pensar” como a mais alta forma de
outra realidade representada, como em um jogo de espelhos, alcan- cognição, na medida em que é “imediata” (não mediada pela lin-
çamos outra e outra e mais outra, e poderíamos prosseguir assim até guagem, por exemplo) e “intuitiva” — ou seja, não conceitualizada
a intuir a totalidade das formas concebíveis: claramente.

os românticos partem do simples pensar-a-si-mesmo como fenô- O conceito de reflexão da Doutrina da Ciência é o de que é uma

meno; o que é apropriado a tudo, pois tudo é si mesmo. Tudo é ação da inteligência, constante e tendente ao infinito, de tomar

19 (BENJAMIN 1993)
20 (BENJAMIN 1993:19) 22 Benjamin (apud SELIGMANN-SILVA 2007A; Cf. primeira parte, p. 19)
21 Schlegel (apud BENJAMIN 1993:30) 23 (BENJAMIN 1993:29)
138 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 139

consciência de formas, transformando-as em novas formas, por de que maneira a renúncia ao absoluto estabelece o filosofar como
um processo de livre associação entre elas. Há aqui uma tensão tarefa infinita, recorremos a Manfred Frank:
dialética entre a forma captada por intuição e o refletir transfor-
mador sobre a forma.24 Deste sentimento inicial de incompletude (sentimento do todo a
atrair a parte) é que surge o processo do filosofar — como incli-
O modelo de Fichte descarta a intersubjetividade, fixando-se nação para o conhecimento. Schlegel pode dizer, portanto, que a
no Eu individual, que se põe a si mesmo de forma ilimitada e abso- filosofia resulta de dois “elementos”: a consciência que temos de
luta. Este ato inicial, livre, de autogeração (Tathandlung) é condição nós mesmos como seres incompletos (finitos) e o infinito que de-
do autoconhecimento, ou da consciência de nós mesmos, e desde vemos alcançar para sermos completos (fazermo-nos inteiros).26
o início nos divide em sujeito e objeto. Importante ressaltar, então,
que o Eu, em Fichte, é autoconsciência pura e não se confunde com Assim, muito embora os elementos comuns ao pensamento
a alma humana. É antes dinamismo e ação pura, criador de toda a desses filósofos — Schlegel, Schiller, Novalis, Schelling, Fichte —
realidade. É livre e a tudo preside. O eu substancial, autoconsciente, os agregassem em uma mesma comunidade de pensamento — o
o eu do mundo das representações, só é compreensível como parte caráter intuitivo do pensamento, da sua imediatez, portanto, e do
desse Eu absoluto. processo infinito da reflexão —, num segundo momento, um desen-
Os românticos, num primeiro momento, aderem irrestri- volvimento difícil terá lugar. Os românticos estarão de pleno acordo
tamente ao modelo fichtiano, na medida em que ele acena com a com Fichte no que diz respeito à imediatez do pensamento. A refle-
perspectiva de retomada da certeza de uma experiência imediata xão se determina enquanto reflexão de uma forma, das formas da
inicial, que a filosofia de Kant demolira. E, num segundo momento, consciência, dando testemunho da imediatez do conhecimento que
se afastam de Fichte justamente por querer preservar aquilo que, nelas se dá. É um “dar-se na interpenetração mútua do pensamento
segundo Benjamin, lhes dá o seu “direcionamento mais original”: reflexivo e do conhecimento imediato”. O que é conhecimento ime-
o apego à infinitude. Ali onde Fichte pensou haver encontrado um diato Benjamin também o explicita: “As formas da consciência, em
princípio fundacional — ou seja, a última proposição incondicio- seus traspassamentos mútuos, constituem o único objeto do conhe-
nalmente válida — no Eu absoluto, o ceticismo romântico o nega. cimento imediato e este traspassamento constitui o único método
O absoluto, o incondicionado, não é cognoscível. A filosofia, nesse que permite fundar e compreender aquela imediatez”27.
caso, como uma busca eterna por seus fundamentos, é tarefa infi- Por um lado, o refletir transformador de que fala Fichte é o
nita . A reflexão, como tarefa infinita, resulta dessa nova inflexão
25
movimento plástico das ideias, a metamorfose das formas que se
dada pelos românticos que os afasta de Fichte. Apenas para reiterar penetram e se comunicam gerando sempre uma nova forma; por

24 (LIMA 2012) 26 Manfred Frank (apud FÓSCOLO 2004:4).


25 (FÓSCOLO 2009) 27 Lucinde (apud BENJAMIN 1993:41)
140 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 141

outro, a reflexão como a reflexão de uma forma não pode existir se manifesta numa ambiguidade peculiar... O pensar do pensar

prescindindo da imediatez do conhecimento dado nela. Tornar do pensar pode ser... ou o objeto pensado: pensar (do pensar

mais claro o “dar-se na interpenetração mútua do pensamento do pensar) ou então o sujeito pensante (pensar do pensar) do

reflexionante e do conhecimento imediato” é de grande importân- pensar. A rígida forma originária da reflexão do segundo grau é,

cia para o pensamento romântico da reflexão. Considerando que no terceiro, abalada e acometida pela ambiguidade.30

a doutrina da ciência possui não apenas conteúdo, mas também


uma forma, pois ela é ciência de algo e não este algo mesmo, Fichte Para Fichte, portanto, não interessa o infinito teórico, no qual as
quer determinar a reflexão como reflexão da forma, demonstrando distorções da consciência se multiplicam e o eu perde a capacidade de
a imediatez do conhecimento que nela se encontra: “Fichte quer autorrepresentação. Os românticos, ao contrário de Fichte, procuram
fundar um conhecimento imediato através da conexão de duas for- tornar a infinitude constitutiva para a filosofia teórica e por essa via
mas de consciência: a forma e a forma da forma. Exatamente o eu para a filosofia como um todo31. A infinitude da reflexão romântica
absoluto (abstrato e formal) é aquele que é reconhecido de imediato. tornava, do ponto de vista fichtiano, a consciência inconcebível para
É para esse sujeito que a ação livre da consciência se direciona, é ele o sujeito e Fichte se afasta dos românticos quando estes se inclinam
o centro dessa reflexão”28. A elevação da forma à consciência é uma para o culto do infinito. Não nos ocuparemos aqui das diferenças
ação livre: “algo que em si já é forma é acolhido como nova forma, entre a reflexão e a posição, como uma ação através da qual Fichte
a forma do saber ou da consciência e, por isso, aquela ação é uma interrompe a infinitude. É nosso interesse maior seguir a trilha do
ação de reflexão” . 29 infinito romântico. É o terceiro grau da reflexão que permite compre-
Fichte rejeita a infinitude, vendo nela um problema para a endê-lo. Nesse estágio, há como que um esfacelamento dessa forma
filosofia teórica, e os românticos tomam outra rota, radicalizando originária, uma diferenciação progressiva que cria tanto ambiguidade
a reflexão, elevando-a a um terceiro grau — o pensar do pensar do quanto oscilação, as quais se desdobram, multiplicando-se.
pensar — e, com isso, se permitem especular sobre o infinito. Para Já vimos que, para Benjamin, é essa inflexão em direção à in-
Fichte é necessário deter um processo em que a reflexão se dissolve, finitude o núcleo da originalidade e da fertilidade do pensamento
ou seja, em que se observa uma dissolução da forma em face do romântico. O pensar o pensar, para o grupo de Iena, deveria ser
Absoluto. mais que uma progressão interminável e vazia:

a partir do terceiro e dos consecutivos graus mais elevados da A infinitude da reflexão é, para Schlegel e Novalis, antes de tudo

reflexão ocorre uma decomposição dessa forma originária, que não uma infinitude da continuidade, mas uma infinitude da
conexão... infinitude realizada do conectar: nela tudo devia se
28 “Para que a ciência se torne ciência necessária, essa forma pura do espírito tor-
na-se matéria de si mesma, isto é, eleva-se à consciência o seu modo de ação em
geral” (ABREU 2008:46). 30 (apud BENJAMIN 1993:36)
29 Fichte (apud BENJAMIN 1993:31) 31 (Cf. BENJAMIN 1993:35)
142 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 143

conectar de uma infinita multiplicidade de maneiras, sistemati- de existência; através de sua forma a obra de arte é um centro
camente como nós diríamos hoje em dia, “exatamente”, ou como vivo de reflexão”.34
diz Hölderlin com mais simplicidade.32
Chegamos a um estágio em que é necessário fazer a diferen-
Os românticos afirmam que a reflexão é capaz de gerar o ciação entre dois Schlegels, aquele que, seguindo Fichte, nas Lições
Absoluto, que vem a ser, portanto, produto da nossa atividade men- Windschmann, determina o ponto central da reflexão, o absoluto,
tal, de um pensamento que se conhece a si mesmo nessa reflexão como o Eu. E o Schlegel que localiza na obra de arte, e não no Eu, o
imediatizada, ou seja, sem a interveniência da linguagem, e, por- ponto central da reflexão. O pensar do pensar, na intuição român-
tanto de um tu. É um conhecimento direto no próprio movimento. tica da arte, não tem como suporte a consciência do Eu. Assim, ao
“Não se trata de um conhecimento de um objeto através da intuição, tratar do problema da crítica, é preciso considerar o pensar do pen-
mas do autoconhecimento de um método, de um elemento formal sar como o esquema originário de toda reflexão, o qual por sua vez
— o sujeito absoluto não representa nada além disso”.33 Esse movi- também fundamenta a concepção de crítica de Schlegel:
mento, presidindo a criação da obra de arte, aponta para o infinito
e como atividade sempre inacabada responde também pela infinita Esta Fichte já determinara de maneira decisiva como forma. Ele
abertura da obra de arte. É o que Novalis definiria como um “saltar mesmo interpretou esta forma como o Eu, como a célula origi-
a si mesmo sobre os próprios ombros da faculdade reflexiva”. nária do conceito intelectual do mundo. Friedrich Schlegel, o ro-
A escrita de Benjamin, bastante complexa nesse estudo, não mântico, interpretou-a por volta de 1800 como a forma estética,
consegue nem tampouco se propõe abrandar as dificuldades com como a célula originária da ideia de arte.
que as teses românticas se edificam e as ambiguidades se multiplicam
e proliferam tanto como o próprio tema — a reflexividade — sobre E, Benjamin complementa até alcançar uma formulação bas-
a qual se debruçam. Registremos, porém, este momento em que o tante consistente do papel da reflexão na constituição da forma: “A
papel da reflexão na formação da obra assume clareza meridiana: intuição romântica da arte repousa no fato de que não se compre-
ende no pensar do pensar nenhuma consciência do Eu. A reflexão
A pura essência da reflexão anuncia-se aos românticos na livre-do-Eu é uma reflexão no absoluto da arte”35.
aparição puramente formal da obra de arte. A forma é, então, Entre as ideias fundamentais a recuperar da abordagem de
a expressão objetiva da reflexão própria à obra, que forma sua Benjamin com respeito às teses dos românticos de Iena está a noção de
essência. Ela é a possibilidade da reflexão na obra, ela serve, meio de reflexão — teia ou rede urdida por conexões infinitas da re-
então, a priori, de fundamento dela mesma como um princípio flexão, formadas por um incessante conectar da própria reflexividade,

32 (SELIGMANN-SILVA 2007B:20) 34 (BENJAMIN 1993:81)


33 (BENJAMIN 1993:30) 35 (BENJAMIN 1993:48)
144 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 145

onipresente, a recobrir o todo real e por isso chamado pelos primeiros de Schlegel o interesse estético. Seria necessário esclarecer que re-
românticos de o Absoluto. “O médium é de tal natureza abrangente flexionsmedium foi conceito cunhado pelo próprio Benjamin, cuja
que a reflexão move-se nele — pois esta, como o absoluto, movimen- visão se interpõe necessariamente como enquadramento e como
ta-se em si mesma”; ou: “a reflexão constitui o absoluto e ela o constitui moldura em toda abordagem contemporânea dos românticos.
como um médium” . 36
A concepção sistemática fundamental da Athenaum, a arte
Para Schlegel, o conceito é o meio pelo qual se consegue delimitar como médium-de-reflexão absoluto, é inúmeras vezes substituída
um pensamento, de maneira que conceituar é nomear, dar unidade por outras designações que dão ao pensamento de Schlegel colora-
a algo do mundo, ou seja, um conceito é uma forma linguística. Um ções de inconsistência. Vejamos uma das suas formulações típicas,
sistema, na visão schlegeliana, é aquilo que explica todas as coisas do na qual é possível visualizar variações e distorções do seu conceito
mundo, isto é, o sistema é um conjunto de unidades de conceitos que de absoluto:
permite a compreensão sistemática do mundo. Benjamin se vale das
definições propostas por Schlegel, segundo as quais, o conceito é “o A arte, criando a partir do impulso da aspiração da espirituali-
pensamento justamente no qual o mundo pode ser recolhido em uma dade, conecta esta em formas sempre novas com o acontecer do
unidade e que se pode dilatar novamente em mundo. [...] Então se conjunto da vida do presente e do passado. A arte liga-se não a
deveria certamente com mais razão denominar-se sistema apenas um acontecimentos singulares da história, mas a sua totalidade; do
conceito abrangente” . Sendo o conceito uma forma linguística que
37
ponto de vista da humanidade eternamente em aperfeiçoamen-
delimita um pensamento, Benjamim criou o conceito de médium-de- to, ela abarca o complexo dos acontecimentos, unificando-os e
-reflexão — em alemão o conceito é formado de uma única palavra: explicitando-os.39
reflexionsmedium — traduzido segundo o significado das palavras que
o compõem — médium, meio concreto de realização de algo, com- “Friedrich Schlegel era um filósofo-artista, ou um artista filo-
preendendo-se, então, que médium é uma forma assumida concreta- sofante. Desde modo ele, por um lado, seguia as tradições das
mente, desde que através dessa forma algo passe ou seja transmitido. O corporações filosóficas e buscava conexões com a filosofia de
médium-de-reflexão é, portanto, o meio concreto pelo qual a reflexão é sua época; por outro, ele era artista demais para ficar parado no
transmitida, ou seja, é a forma concreta assumida pelo pensar . 38
puramente sistemático”40.
Havia uma intenção sistemática de Schlegel com relação à arte
que o conceito de médium-de-reflexão pretende capturar, embora Como se vê, a concepção de reflexão artística se encaixa no
essa intenção não tivesse sido formulada de maneira plena e clara na sistema — que pode ser acusado de ser impropriamente chamado
Athenaum, posto que à época preponderava na atitude intelectual sistema — de Schlegel em uma culminância da chamada ideia de
36 (BENJAMIN 1993:45)
37 Schlegel (Apud BENJAMIN 1993:53) 39 (AMARAL 2008:53)
38 (AMARAL 2008) 40 (BENJAMIN 1993:52)
146 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 147

humanidade. Era preciso encontrar uma linguagem que mediasse o abstratizante da teoria romântica, tendo este conceito como seu prin-
contato recíproco entre todos os homens num nível transcendente à cipal suporte, é feito também por Willi Bolle com respeito a Benjamin,
experiência individual — ligando todos os homens àquele elemento que caracteriza a urbe moderna como esse feixe e essa rede de re-
divino constitutivo da existência humana. flexividades em conexões móveis e ininterruptas, desde a primeira
Conforme registra Márcio Seligmann-Silva, a articulação entre aparição de sua figuração no gênero tableau urbano, “inaugurado
crítica e arte em nenhum lugar é mais conspícua que no livro inaca- com o Tableau de Paris (1781 -1788), de Louis-Sébastien Mercier”43,
bado de Benjamin, Passagenswork, no qual o médium-de-reflexão contemporânea ainda do famoso florescimento do círculo romântico
é tanto meio quanto é obra, é obra enquanto arte e obra enquanto em torno da revista Athenaum. A interpolação dessas notas de Willi
crítica, um modelo em si mesmo refratário ao modelo da teoria do Bolle nos permite saltar do registro extremamente rarefeito e ambíguo
conhecimento monológico, baseado na simples cadeia de causas e do pensamento dos românticos para algo que, se visto em retrospecto,
efeitos. Passagenswork cristaliza, então, uma crítica a uma concep- lança uma luz inestimável sobre aquilo cuja compreensão tanto nos
ção linear tanto do desenvolvimento do conhecimento como do incomodava. É que as transformações com tal intensidade se acele-
desenrolar da própria história, pondo em evidência a crítica de um ram desde esse primeiro grande evento da consagração da cidade —
determinado modelo de razão e racionalidade. Já desembaraçada de no campo da mídia, da publicidade, das vitrines e dos anúncios, da
uma determinação ontológica, o pensar romântico é um movimento informação e invenções técnicas de uso da imagem — que obrigam
sem fim da reflexão, que funda o eu, uma infinidade de conexões a tradicional cultura literária a repensar seu ofício. Mas como pode
concebida como mediação via imediatez, razão pela qual Schlegel se ter razão Bolle sobre a primazia de todos esses outros vetores se todas
refere a uma passagem que é sempre um salto e ao eu como um con- essas técnicas não têm como fonte geradora senão a própria narração
junto de infinitas passagens, superações, traduções41. O processo de literária, o que é posto pela ficção, de prosa e poesia, o tratamento li-
proliferação, multiplicação e desdobramento do eu, de automediação terário dado à imagem que pela palavra a antecipa, assim como o que
infinita do ser, preside a conceituação de Reflexionsmedium, com que é também engendrado pelo especialíssimo acasalamento verificado à
Benjamin ilustra a própria concepção romântica de absoluto: “Com época, a partir de Kant, entre a literatura e a filosofia?
esse termo é designado de forma resumida o todo da filosofia teórica Isso também torna visível o caldeirão cultural em que tudo
de Schlegel” . Compreende-se, então, que a “romantização do mun-
42
se gesta, o tecido e a malha cujo desenho os primeiros român-
do” consiste em traduzir o mundo como uma cadeia de reflexos e ticos têm o arrojo de naquele momento fornecer e desvelar, uma
reflexões, em conceber o mundo como lócus de um transitus. empreitada na qual logram na verdade antecipar os paradigmas
O interessante registro da transposição da noção de médium- para a produção da arte até os nossos dias. Benjamin dá provas de
-de-reflexão para um universo que permite contornar o excesso seu poder visionário, por um insight que oferece do fenômeno da
crescente complexidade com que se desenvolve a cidade a partir
41 (SELIGMANN-SILVA 2007B:19)
42 (SELIGMANN-SILVA 2007B:20) 43 (BOLLE s/d)
148 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 149

do século XVIII, compreendendo-o como a concretização da ideia um conceito sobre o objeto estético, um fechamento que, entretanto,
do reflexionmedium, uma vez que nela se dá o encontro de todo o sempre escapa, seja porque a imaginação exorbita na profusão de
metapensamento que vem das artes e das ciências, e de todas as sínteses que oferece ao entendimento, seja porque o entendimento
infinitas reflexividades que se forjam neste meio instável e extrema- não consegue produzir as categorias que as abarque. E o que é essa
mente pujante, de todas as conexões que o sustentam: o Absoluto. dinâmica pendular na espécie kantiana do belo senão um oscilar
Benjamin: “A intensificação da consciência na crítica é, a princípio, infinito, aquele pelo qual se constitui a abertura da obra de arte? Este
infinita; a crítica é então o médium no qual a limitação da obra de processo formativo interno e ao nível do indivíduo é o que produz
arte singular liga-se metodicamente à infinitude da arte e, finalmen- a sua individualidade; ou seja, o que constitui a individualidade é
te, é transportada para ela, pois a arte é, como já está claro, infinita a capacidade de autoprodução do indivíduo, produção de si por
enquanto médium-de-reflexão”.44 meio de sua força formativa interna, noção herdada de Kant que os
Nunca será demasiado ressaltar, então, que Benjamin privile- românticos transcrevem numa vis poetica, concluindo então que se
gia a transformação que imprimiram os românticos ao conceito de todo indivíduo é portador de poiesis, todo indivíduo deve ser poeta.
crítica através da ideia de Reflexionmedium (médium-de-reflexão), O poético não é tanto a obra, opera, quanto aquilo que opera, aquilo
que estabelece a reflexividade como núcleo do pensar romântico. que nela trabalha. Novalis nos fala de um “oscilar entre extremos
Sendo um conceito instável, devemos nos fixar na noção de que o que necessariamente devem ser reunidos e necessariamente devem
infinito primeiro romântico não é o infinito teórico, que permanece ser separados. A partir desse ponto de luz do oscilar jorra toda a
assintótico, e, sim, o infinito da obra de arte, constituído pelo sujeito realidade”.46 “O ser existe apenas nessa tensa double bind”47.
reflexivo, de oscilação em oscilação, e de conexão em conexão, em Vejamos, entretanto, o filosofar romântico do ponto de vista de
sua tarefa de autoconstituição que é, também, tarefa de autocons- sua negatividade, isto é, aquele que instaura um processo infinito e
tituição da obra e do próprio meio que ela habita. Oscilação que já que contém em si mesmo uma impossibilidade, um fracasso, o filoso-
fora flagrada por Schlegel em pleno movimento: “A poesia român- far que jamais poderá almejar a um sistema. Novalis se indaga sobre
tica é a que mais pode oscilar, livre de todo interesse real e ideal, o filosofar segundo um fundamento quando esse fundamento não é
no meio entre o exposto e aquele que expõe, nas asas da reflexão dado, quando contém uma impossibilidade. E conclui que o impulso
poética, sempre de novo potenciando e multiplicando essa reflexão, infinito é o eterno impulso para um fundamento absoluto que pode
como numa série infinita de espelhos” . 45
ser satisfeito apenas relativamente e que por isso não cessa. Então, e
É aqui que nos permitimos traçar um paralelo entre a reflexivi- se este fundamento não fosse dado, se contivesse uma impossibili-
dade e a dinâmica do belo kantiano, do jogo livre e infinito entre as dade — então o impulso para o filosofar seria uma atividade infinita
faculdades do entendimento e da imaginação, em busca de formar — e sem fim porque seria um eterno impulso para um fundamento

44 Benjamin (Apud SELIGMANN-SILVA 2007B:21) 46 Novalis (Apud SELIGMANN-SILVA 2007B:7)


45 Schlegel (apud GUIDOTTI 2011) 47 (SELIGMANN-SILVA 2007B:7)
150 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 151

absoluto que pode ser satisfeito apenas relativamente — e que nunca jamais cansá-la, sem jamais se tornar costumeira? Segundo anti-

seria, por conseguinte, cessada. A atividade livre infinita surge em gas tradições místicas, Deus é para os espíritos algo semelhante”.49

nós através da livre renunciação do absoluto — o único absoluto pos-


sível que nos pode ser dado e que somente encontramos por nossa O feitio dessa oscilação permanente é perfeitamente carac-
inabilidade de alcançar e conhecer um absoluto. Este absoluto que terizado por Schlegel em “Diálogos com a Poesia”50, cuja estrutura
nos é dado pode somente ser conhecido negativamente: entre duas posições divergentes não implica em resolução dialética
ou síntese, mas na manutenção das oposições. As contradições são
Nessa busca perene e nunca alcançada do infinito repousa o pa- mantidas e renovadas, não há solução para as divergências, “roman-
radoxo do projeto romântico, que se define por uma negatividade tizar o mundo” carrega a tarefa de sustentar o movimento pendular
constitutiva. O filosofar é tarefa infinita, a obra de arte dirige-se das tensões, que de conexão em conexão termina por formar o tecido
para o infinito e a infinitude da tarefa do filosofar e do interpretar que recobre o mundo e que é o médium-de-reflexão mesmo, o todo.
a obra constituem o absoluto. Daí que a tarefa do filosofar e a É o que permite a Lacoue-Labarthe e Nancy renovarem a in-
tarefa da arte se interpenetram num constante desdobrar-se, mo- terpelação que se faz à questão romântica e ao romantismo, assim
vidas por um impulso para um fundamento absoluto. Como diz como à própria literatura, quanto à sua natureza e quanto aos seus
Schlegel: “Pode-se somente vir a ser, não ser filosófico. Tão logo estatutos, ao enfatizarem que a própria questão, sendo autorreferen-
se acredita sê-lo, deixa-se de o vir a ser”.48 te, permite somente a renovação infinita da questão mesma:

O pensamento romântico é em tudo contrário à resolução Não significa tudo isso, simplesmente, que o romantismo con-

por meio de sínteses, ao modo do sistema da dialética hegeliana, sequentemente pode ser definido somente como uma autorre-

mantendo sempre a sua orientação oblíqua e paradoxal e alinhando ferência infinita da questão: O que é o romantismo? — ou: O

em justaposição os opostos. Filosofia e obra de arte sustentam em que é literatura? Na verdade, significa que a literatura, como seu

suspensão os movimentos antípodas e as ideias antagônicas, a fim questionamento infinito e como a perpétua proposição da ques-

de que a autocontradição lhes seja intrínseca: tão que lhe é própria, data do romantismo e como romantismo. E
portanto que a questão romântica, a questão do romantismo, não

Deveria o princípio supremo conter o paradoxo supremo em seu tem e não pode ter uma resposta.51

problema? Ser uma proposição, que não deixasse absolutamente


nenhuma paz — que sempre atraísse, e repelisse — sempre se Voltemos, porém, àquilo que imprime à literatura a sua feição
tornasse de novo ininteligível, por mais vezes que já se a tivesse mais diferenciadora, e que diz respeito ao caráter que a crítica de
entendido? Que incessantemente ativasse nossa atividade — sem 49 Novalis (apud GUIDOTTI 2011)
50 Cf. Schlegel (apud GUIDOTTI 2011:56)
48 Novalis (apud GUIDOTTI 2011:56-57) 51 (LACOUE-LABARTHE; NANCY 1988:83)
152 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 153

arte assume nesse médium, no qual a reflexão preside como elemen- qual a limitação da obra singular liga-se metodicamente à infinitude
to constitutivo mais importante. A crítica, segundo Benjamin, é um da arte e finalmente é transportada para ela, pois a arte é, como já
experimento, no qual a obra é ativada, despertada, movida. É pela está claro, infinita enquanto médium-de-reflexão. Essa concepção
crítica que a obra reflete sobre si: “é levada ao conhecimento de si da arte — e da literatura — como um continuum de formas que se
mesma” e torna-se, como no dizer de Schlegel, célula originária da autodeterminam constitui um painel da história da arte como um
arte, o próprio sujeito da reflexão: intertexto infinito. Assim chegamos a compreender a afirmação de
Novalis de que a estrutura básica da obra de arte é a do médium-de-
o experimento da crítica consiste não numa reflexão sobre uma -reflexão. Autoconhecimento e conhecimento da obra se confun-
conformação que, como está implícito no sentido da crítica de dem e interpenetram; ou seja, ao se tornar conhecimento da obra, a
arte romântica, não poderia alterá-la essencialmente, mas no crítica se torna autoconhecimento desta: jamais será mais evidente
desdobramento da reflexão, isto é, para os românticos: do espíri- de que maneira a crítica de arte é o conhecimento do objeto do que
to em uma conformação. 52
no médium-de-reflexão. No dizer de Benjamin, a crítica inclui o co-
nhecimento do objeto. Uma vez que a teoria romântica vem sendo
Já vimos que o movimento sem fim da reflexão, que para os extensivamente explorada em nossos dias em nossas instituições
românticos funda o eu (ou o ser de modo geral), indica uma infini- acadêmicas, parecendo que a necessidade de um revival romântico é
tude de conexões que é concebida como uma paradoxal mediação essencial e já está em curso, será suficiente para os nossos propósitos
via “imediatez”. Por isso, Schlegel fala de uma passagem que deve ser restringir o campo das ideias que são fundamentais e recuperar a
sempre um salto e Novalis de “saltar a si mesmo sobre os ombros da abordagem de Benjamin com respeito às teses dos românticos de
capacidade reflexiva”. O eu é uma construção, um conjunto de infi- Iena. Dentre elas, a noção preeminente é a de meio de reflexão,
nitas passagens, superações, vale dizer, traduções. Tendo em vista médium-de-reflexão, — teia ou rede urdida por conexões infinitas
essa teoria do ser como reflexionmedium, fica fácil compreender o da reflexão, formadas por um incessante conectar da própria reflexi-
lema romântico da “romantização do mundo”, que nada mais é que vidade, onipresente, a recobrir o todo real e por isso chamado pelos
a revelação da cadeia de reflexos e reflexões. A crítica assume, então, primeiros românticos de o Absoluto. “O médium é de tal natureza
o papel de um operador dentro do reflexionmedium, deixando de abrangente que a reflexão move-se nele — pois esta, como o absolu-
ser julgamento e passando a ser um degrau da reflexão, incluído to, movimenta-se em si mesma”.
num processo de autoconhecimento da própria obra. A crítica é po- O romantismo de Iena inaugura a literatura enquanto saber
ética tanto no sentido de ser tomada como parte da obra criticada, autônomo e como um modo privilegiado de conhecimento do
como no sentido etimológico de poesia como poiésis. A crítica é mundo; instala-a, na verdade, da maneira mais inusitada e nova,
criação quando realiza a sua tradução das obras, é o médium no posto que com ele se inaugura o projeto teórico da literatura ao
52 (BENJAMIN 1993:72)
introduzir a sua função eminentemente especulativa, que extrai da
154 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 155

filosofia, tomando para si grande parte dessa função. É assim que o referimos, para usar uma palavra particularmente cara aos român-
romantismo preside a emergência do conceito moderno de literatu- ticos, como “teoria”54.
ra, um modelo de literatura enquanto produção de sua própria teo- Sobre o transbordamento de limites entre literatura e crítica,
ria. Lacoue-Labarthe e Nancy, ao apontarem o descompasso entre a Juliana Salvadori chama atenção para o duplo veio que a concepção
importância dos Românticos de Iena e a negligência que se observa romântica nos abre: “o da progressiva literarialização da crítica, em
quanto ao reconhecimento dessa “origem”, o fazem nos seguintes um primeiro momento (o da revista Athenaum) e o da criticização
termos: da literatura, em um segundo”55. A crítica romântica rompe com o
quiasmo entre poiesis e teoria, desde que, enquanto a literatura é
O que ainda nos interessa no romantismo é que ainda perten- reflexiva e não se reduz à produção de artifícios e artefatos, a críti-
cemos à era aberta por ele. O período atual continua a negar ca não pode deixar de ser criativa e criadora. Haroldo de Campos
esse pertencimento, que nos define. Um verdadeiro inconsciente chamará a este romantismo de um “romantismo intrínseco”, que
romântico é discernível hoje, na maioria dos temas e motivos da caracteriza a modernidade: a atividade crítica como criativa e cria-
nossa modernidade. 53
dora, reflexiva, portanto, “reflexão em terceiro grau, o pensar sobre
o pensar, isto é, o conhecer o pensar”56. Otávio Paz, por seu turno,
A negligência apontada pelos dois autores evidencia-se no afirma a marca eminentemente reflexiva e crítica da modernidade:
fato de que o romantismo chega até nós apenas indiretamente
através da tradição inglesa, desde Coleridge, que procedeu a um A modernidade é sinônimo de crítica e se identifica com a
verdadeiro escrutínio dos primeiro românticos, até Joyce, por mudança; não é a afirmação de um princípio intemporal, mas o
um caminho que também foi trilhado por Schopenhauer, assim desdobrar da razão crítica que, sem cessar, se interroga, se exa-
como por Hegel e Mallarmé (todo o simbolismo também incluído, mina e se destrói para renascer novamente. […] No passado, a
acrescentamos), mas sempre que o que é fundamental na teoria crítica tinha como objetivo atingir a verdade; na idade moderna,
romântica não é distorcido, ele passa despercebido, como se o a verdade é crítica. O princípio em que se fundamenta o nosso
primeiro romantismo fosse “o reprimido” do sistema literário. E tempo não é uma verdade eterna, mas a verdade da mudança”.57
quando emerge, é repetido sem que haja uma compreensão ade-
quada do que está em jogo. Mais um legado romântico não pode ser deixado passar sem
Mas o essencial é que nossa era é uma era crítica por excelên- menção: é o gênero “ensaio” como forma privilegiada para o exercício
cia, é a era na qual a literatura devota-se exclusivamente à busca de da crítica, por sua brevidade, que permite que se constitua enquanto
sua própria identidade, levando com isso toda ou parte da filosofia
54 (LACOUE-LABARTHE; NANCY 1988:15)
e diversas ciências e mapeando o espaço daquilo a que agora nos 55 (SALVADORI 2011:109-121)
56 (SALVADORI 2011:113)
53 (LACOUE-LABARTHE; NANCY 1988:69) 57 Octavio Paz (apud SALVADORI 2011:113)
156 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 157

fragmento, abrindo mão de pretensões totalizadoras, pondo-se em filosofia atam pequenos nós ou pontos de interseção e desvio em
consonância com a infinitude da possibilidade de réplica, instalan- que a energia que ali se produz se propaga e é reconduzida e desvia-
do no meio da literatura um diálogo em movimento, que incita os da em variáveis caminhos. A regra, e não a exceção, é o paradoxo e é
seus participantes a um jogo, a esboçarem pensamentos de modo assim que se recua até Platão para incorporar o “gênero” do Diálogo
não sistemático, a acolherem o inacabamento, num afrouxamento como o gênero do Sujeito socrático por excelência, conduzindo
dos nexos causais naturalmente à sugestão de que Sócrates representava a encarnação
antecipatória do sujeito da ironia, o lócus dos intercâmbios entre a
em prol da errância e da experimentação subjetiva e linguísti- forma e a verdade que define a ironia, ou, o que é o mesmo, o lócus
ca. O ensaio, por esse ponto de vista, é insidioso como o texto das trocas entre poesia e filosofia.
literário ao qual se refere, pois, por meio da forma, busca pela Não contamos com uma área livre de opacidade, contudo,
leitura ativa — uma leitura potencializadora, isto é, que atualize para darmos conta da multiplicidade de elementos que trazem o
as possibilidades ali inscritas — tornar-se texto, ser interpretado, romance para o centro da questão romântica, desde que a reflexivi-
isto é, vir a ser como texto”. 58
dade que ela opera, aquilo que vem aclarar, é justamente produtora
dos pontos cegos. Não há posição privilegiada para ver o conjunto,
Enfim, com o romantismo, a obra começa a tomar forma quan- mas recuando aos “Diálogos”, percebe-se a tentativa que fazem os
do o pensamento, ou o pensamento que há nela, voltando-se sobre românticos de recuar e retornar aos gregos como um modelo da
si mesmo, assume conformação, assume forma, torna-se objeto, união da poesia e da filosofia e assim da matriz originária do roman-
ou mais precisamente, sujeito-objeto. A crítica, efetivamente, é um ce, ou seja, daquilo que finalmente entre os Modernos encontrará
desdobramento reflexivo da própria obra literária, a qual deixa de um nome. É aqui que se deixa manifestar a engenhosidade de João
pertencer à categoria objeto de estudo ou de análise. Na concepção Guimarães Rosa ao conceber a sua saga como um diálogo platônico
de arte e de crítica primeiro romântica, a antítese sujeito-objeto se com um único interlocutor, constituindo-se como um refletir-se a
esfuma. E o ensaio será um dos rebentos dessa filogenia romântica, si mesmo, deixando os vestígios da trilha percorrida, via círculo de
de fundamental importância, não tanta, porém, quanto a que os Iena, para chegar ao modus operandi dessa forma. Também fica visí-
membros do círculo atribuíam ao romance como forma por exce- vel a argúcia de um Edgar Allan Poe quando mimetizou, pondo em
lência a abrigar todos os gêneros, inclusive a poesia. No fundo de operação, a reflexividade, na figura de uma carta roubada, chamada
todo esse desenvolvimento dos gêneros, que se dá pelas trocas livres depois pelos pós-estruturalistas de a hipóstase do significante. Pelo
entre as multiplicidades de vetores que participam do terreno ou tratamento que lhe deu Lacan num dos seminários dedicados ao
da malha, ao mesmo tempo, flexível, ao mesmo tempo, justa, do conto (que certamente vai buscar na “Letter on the Novel”, manifesto
meio-de-reflexão, as transferências recíprocas entre a literatura e a de Schlegel sobre o romance, texto básico do romantismo, no qual
58 (SALVADORI 2011:113)
se declaram os termos de uma poesia universal progressiva, de uma
158 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 159

civilização progressiva e universal, contendo em si todas as coisas excepcionais e em comentários fugazes, como se vê na instigante
(Dialogue on Poetry, 1799). O romance perfeito mistura todos os análise de Octavio Paz — “Stéphane Mallarmé: o soneto em ix”, —
gêneros, através da fusão do épico, do dramático, do lírico, do crí- na qual, citando palavras colhidas por Mallarmé da senhora Émilie
tico e do filosófico. E como o engendramento de tal trama é impos- Noulet, nos diz que ela havia elucidado o mistério sobre o significa-
sível, o romance perfeito é inatingível. A “Carta sobre o Romance”, do da palavra ptyx: “se nos remontamos à origem grega da palavra,
então, pedra de toque da “filosofia da poesia”, nos Diálogos, não está ficamos conscientes de que a ideia de dobra é fundamental... ptyx
situada no centro do texto, está em falta, como a “A Carta de Poe”, significa uma concha, um desses caracóis que ao aproximarmos do
en souffrance, em sofrimento, en attente, em espera, como o próprio ouvido nos dão a sensação de escutar o rumor do mar” (Oeuvre
romantismo que simboliza . 59
poétique de Mallarmé,1940)61. Debruçar-se sobre a organização do
Vasto é o campo aberto pelos românticos de Iena, ao liberta- poema permite a Paz concluir que o seu instrumento, o caracol, “é
rem e emanciparem a obra de arte da estética tradicional. Vastas e uma estrutura que se dobra sobre si mesma”. Segundo Jean-Pierre
dominantes são as conexões entre os produtos de sua especulação e Richard (L’Univers imaginaire de Mallarmé, Paris, 1961), a dobra é
a arte do século e meio que ao deles se segue, que por si só constitui uma forma de reflexão: pensar, refletir, “é dobrar-se”62. Surpreende
o lugar privilegiado para a pesquisa e para a especulação literária que um pensador com os poderes de Paz e já em anos tão recentes
por excelência. O núcleo essencial é o da reflexividade, também quanto aqueles em que produz o seu ensaio, não fizesse ali articu-
chamada metateoria, ou simplesmente teoria, que em formulações lações mais significativas sobre todo o circuito que a reflexividade
extremas, como a de Leon Chai, assume o lugar do próprio conte- ativava desde Iena, percorrendo todo o campo da literatura desde
údo de qualquer campo do saber, de tal forma que “as razões pelas então. Fica claro, porém, que o seu objetivo é revelar, no enigmá-
quais fazemos teoria derivam menos do nosso conhecimento de um tico poema de Mallarmé, como, por sua forma, a obra de arte é
campo específico — ou disciplina — do que daquilo que intuitiva- um centro vivo de reflexão, e pôr a nu as sequências de operações
mente percebemos sobre a teoria mesma” . 60
autorreflexivas pelas quais o poema se constrói refletindo sobre si
Não obstante o fato de que a reflexividade, que se mantivera mesmo. Mallarmé aponta, na figura do Mestre que “já fora colher
latente na obra de autores do simbolismo e tornara-se a pulsar na outros prantos no Estige”, o influxo da força externa que recebia de
obra dos autores do modernismo, vindo a se constituir o núcleo Edgar Allan Poe.
irradiador da tradição moderna da poesia, tudo isso, porém, foi in- Obviamente tais referências à reflexividade não estão comple-
suficiente para que a teoria lhe reservasse um lugar. Diria até que a tamente ausentes da teoria literária, mas se encontram pulverizadas
questão jamais se tornaria visível em si mesma senão em momentos neste campo, aqui e ali, como grãos de pólen; o padrão a que me refi-
ro, o do tratamento fragmentário e ligeiro, é a tônica, como, aliás, já
59 (Cf. SCHLEGEL 1971:87-91)
60 “The reasons we do theory the way we do come less from our knowledge of a
given Field — or discipline — than from what we intuitively feel about theory 61 (PAZ 1996:190)
itself”. (CHAI 2006:XII). 62 (PAZ 1996:190)
160 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 161

registravam Lacoue-Labarthe e Nancy, tanto que a tese de Benjamin “A fundação da reflexividade, como tradição da ficção, não é

é um dos seus textos que menos atenção mereceu por parte da críti- atribuída a Poe e sim a Mallarmé. Baudelaire, Mallarmé e Valéry

ca e justamente aquele em que a reflexividade é reconhecida como o não se cansam de afirmar a sua fidelidade de princípios ao poeta

núcleo da teoria romântica. Jeanne Marie Gagnebin chama atenção americano — Poe, para Mallarmé, é a alma poética mais nobre

para a reflexividade que também nucleia a tese de Benjamin, como que jamais viveu”, “o caso literário absoluto”, para Valéry é “talvez

responsável pela fertilidade do pensamento romântico para toda a o mais sutil artista deste século”. Mas o culto de Poe pelos fran-

teoria contemporânea da literatura, sobretudo no que diz respeito ceses é visto pelos leitores de língua inglesa como um mistério.

aos conceitos de obra e crítica: Um leitor privilegiado como T. S. Eliot, para quem Poe nunca
deixaria de ser “uma pedra no meio do caminho de todo crítico

É justamente esse conceito de Reflexão que Benjamin destaca judicioso”, não é capaz de nele vislumbrar as marcas de uma mo-

na primeira parte do seu livro como sendo o conceito básico dernidade que com ele se funda:64

da teoria do conhecimento subjacente à concepção de crítica


(antes de tudo literária) dos irmãos Schlegel (sobretudo de “Devemos estar preparados para contemplar a possibilidade de

Friedrich) e de Novalis. Ao centrar suas análises nesse con- que esses franceses tenham visto algo em Poe que nós, leitores de

ceito, Benjamin ressalta a dimensão especialmente filosófica língua inglesa, não percebemos”.65

dos românticos, buscando o núcleo especulativo comum sob a


abundância, à primeira vista confusa e arbitrária, dos textos e Se essas palavras representam certa rendição em face do in-
dos fragmentos.63 compreensível fenômeno Poe, outras proferidas anteriormente
comportam a condenação pura e simples, embora a contundência
Digo que a questão da Reflexividade permanece pulsante, uma traia um resíduo de dúvida que não se erradica: “É difícil para nós
vez que, originária dos primeiro românticos, ressurge de forma am- compreendermos como poderiam três poetas franceses, todos ho-
plificada para um grande público partir de Edgar Allan Poe, vindo mens de dotes intelectuais excepcionais, levar Poe tão a sério como
a constituir-se o principal operador da sua obra e das três gerações filósofo — pois são as teorias de Poe sobre a poesia, mais que seus
de poetas franceses que a retomam e a refletem, refletindo também poemas, que significavam tanto para eles”.
sobre ela – Baudelaire, Mallarmé e Valéry – e que integraram uma Não se sabe com que grau de compreensão deste público
articulação que viria a ser chamada por Eliot de a conexão Poe, no a reflexividade em Poe foi recebida, uma vez que mesmo poetas,
seu ensaio “De Poe a Valéry”. Um pouco da perplexidade de Eliot prosadores e críticos em geral pouco a entenderam. Na verdade era
em face da poética de Edgar Allan Poe é tratada em conferência comum atribuir-se o que se considerava a estranheza dos escritos de
minha de 2002, na Faculdade de Letras da UFRJ: 64 (CAVENDISH 2002)
65 T. S. Eliot (apud FELMAN 1988 — minha tradução); (ELIOT 1956 — minha
63 (GAGNEBIN 2007: 66) tradução)
162 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 163

Poe não a um umheimlich, estranho familiar, mas à sua expressiva sua marca, apontando para a fertilidade do pensamento romântico
aderência ao gótico alemão. para toda a teoria contemporânea da literatura, sobretudo no que
Por tudo isso, permaneceu latente nos textos do simbolismo, diz respeito aos conceitos de obra e crítica. O conceito de Reflexão,
do pré-modernismo e do modernismo. Onde quer que se manifes- conceito básico da teoria do conhecimento subjacente à concepção
te, porém, vem a ser o núcleo irradiador da tradição moderna da crítica dos irmãos Schlegel e de Novalis, confere ao pensar român-
poesia. Tudo isso, entretanto, sem que a teoria lhe determine um tico seu núcleo especulativo e realça a dimensão especialmente
lugar. filosófica dos românticos.
O fato é que a intensa e meteórica tempestade constelar do cír- Tomar contato com o livro Romantic Theory; Forms of
culo de Iena deixou em seu rastro os efeitos, os desdobramentos, as Reflexivity in the Revolutionary Era, de Leon Chai, com que intro-
conexões, a teia de ramificações, o influxo que irá formar o conjunto duzimos este capítulo, foi uma grata surpresa, uma vez que se trata
do meio “literatura” — sem que se faça distinção aí entre produção de uma importante incursão no campo da teoria que vê a partir do
crítica e teórica e produção ficcional — e se estenderá com uma romantismo um movimento que atravessa amplos campos de co-
amplitude e uma profundidade que hoje não permite sequer cogitar nhecimento, partindo do Conceito, da sua gênese, da abordagem
o que haveria ficado de fora dessa explosão. Posta em operação, ou espacial dos conceitos pelos românticos — questão certamente ain-
seja, presentificada, na poética fundadora do movimento, a questão da não reconhecida ou isolada — ao primado do desenvolvimento
permaneceu igorada, porém, pela Teoria e Crítica Literária de quase sobre aquele dos conceitos e à criação da metateoria, ou a análise
dois séculos, não fosse por um importante veio do simbolismo e formal da teoria, implicada nessa concepção a noção de um retorno
do modernismo, que se tornou muito visível, ao tomar a reflexivi- da teoria sobre si mesma, uma visada que ficará mais compreensível
dade como eixo — o já citado eixo da reflexividade — Baudelaire, se levarmos em conta a filiação hegeliana do autor. Uma das ênfases
Poe, Valéry — resgatando-a de Edgar Allan Poe, a partir do qual do seu livro é, portanto, o “movimento de retorno”:
se estabeleceria o liame — ou ao menos se tornaria possível des-
nudar a vinculação entre os primeiros românticos e estes poetas, para que se volte a si mesmo desde a alteridade, é necessário ha-
os quais construíram as suas obras e a sua poética sob a égide da ver algum tipo de reflexividade... Com Schlegel aprendemos que
reflexividade, tendo-a, na verdade, como instância nucleal, fosse ou a reflexividade não apenas envolve um movimento de retorno, e
não esse processo de construção consciente ou das raízes primeiro sim, do mesmo modo um movimento de autoconsciência. Mas
românticas em que se assentava. entendo que a consciência não se refere apenas à nossa própria
Tenhamos como ponto pacífico que as referências ligeiras e o autoconsciência. Ao invés disso, uma vez que observamos nossa
comentário ligeiro sobre a reflexividade são a tônica. Nunca será passagem à alteridade via negatividade e nosso retorno ao self, é
demais reconhecer que, adotando o foco romântico numa época de possível chamá-la de narrativa”.66
pleno olvido, Benjamin dá testemunho da agudeza crítica que era a 66 (CHAI 2006)
164 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 165

Na teoria ou na crítica brasileira, a Reflexividade tampouco foi a Reflexividade como o excesso do pensar, tomado como causa do
isolada como questão ou como conceito. A exceção são as referên- fracasso da comunicação, do silêncio, do échet que se instala na lite-
cias esparsas que lhe faz João Alexandre Barbosa em seus estudos ratura com Mallarmé e mais radicalmente com Valéry, o poeta cuja
sobre Valéry, o primeiro com o título de “Suicídio da Literatura? dedicação ao pensamento não teve como resultado a ultrapassagem
Mallarmé segundo Valéry”. Neste livro, Barbosa examina as razões
 
das regras do Parnaso. Repensar a poiésis em face do fenômeno da
para o que considera o fracasso de Valéry, incapaz de revolucionar reflexividade, estabelecer paralelos e identificar contradições entre
o tradicional verso francês por ter-se deixado consumir por “uma a reflexividade e a mímesis poderia oferecer uma linha de desen-
incessante reflexão destruidora e cética”, explicitando o problema volvimento mais consequente com a poética da modernidade e do
básico do escritor, uma divisão “entre a consciência de uma aniqui- modernismo.
lação da Literatura, desde que submetida a um processo autorrefle- Será em muitos textos da coletânea “A Comédia Intelectual de
xivo, e o esforço em se fazer continuador de uma herança literária Paul Valéry”, publicada em 2007, que veremos o desenvolvimento
que, como não poderia deixar de ser, terminava por ser a negação e a explicitação de uma compreensão crítica das articulações que
daquela consciência. Embora seja forçoso reconhecer um certo conduziriam o poeta francês e a sua produção intelectual a desa-
poder paralizante da reflexividade, certo efeito medusante tão bem guar naquele duplo contraditório e paradoxal para o qual o poeta
encenado no Hamlet, há o efeito oposto, a favor da poiésis, fértil e vinha se preparando ao longo dos anos. Já no capítulo de abertura,
prolífico. Mas, prossegue Barbosa: “É somente nesta trilha de refle- À margem dos Textos, um estudo de 1999, é possível observar que
xão, que parece razoável a caracterização de Valéry como ‘símbolo Barbosa renunciara a ver Valéry como um poeta capturado por
perfeito da Europa”67. uma obsessão doentia de caráter psicológico; também aí o críti-
A Reflexividade é, então, apenas tangencialmente referida pelo co, já agora se concentrando em Valéry e não mais em Mallarmé
crítico brasileiro, embora já essa referência revele a sua exponencial pelo olhar de Valéry, procura estabelecer “as linhas de influência e
lucidez. Vincula-a aos destinos da literatura, ressaltando que com continuidade de seu pensamento com relação a antecessores funda-
ela a literatura marcha para si mesma ou, como diz Blanchot, para mentais para a sua obra, tais como Leonardo da Vinci, Descartes,
sua “essência que é o desaparecimento”68. Neste texto, em nenhuma Edgar Allan Poe ou Mallarmé. Influência e continuidade que se
instância, há um recuo da análise que vincule Valéry à figura de Poe e iluminam por alguns conceitos recorrentes, como, por exemplo, o
à Reflexividade e muito menos aos românticos. A ênfase recai sobre da consistência (no caso de Poe) ou da analogia (casos de Leonardo
os processos psicológicos de Valéry e a reflexividade é posta como ou Mallarmé)”.69 Acentua Leyla Perrone-Moisés, em sua apresen-
um pensamento obsessivo, que seria responsável pelas contradições tação a esse livro, que no ensaio “Permanência e Continuidade de
entre a sua produção teórica e sua prática poética. Barbosa concebe Paul Valéry”, Barbosa estabelece uma “instigante linha de relação

67 Maurice Blanchot (apud BARBOSA 1976:52)


68 Maurice Blanchot (apud BARBOSA 1976:52) 69 (BARBOSA 2007:18)
166 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 167

fundamental Poe/Valéry/Calvino”70. Na verdade, será através da lei- nos detivemos ao iniciar este texto, no qual uma palavra final sobre
tura de duas estrofes de “O Cemitério Marinho”, a décima terceira e qualquer objeto de inquirição é indefinidamente postergada.
a décima quarta, e do poema La Jeune Parque, de 1917, que Barbosa Teria Valéry compreendido que Poe, incorporando aos seus tex-
“examinará as relações mais profundas entre a criação poética, de tos os mais variados elementos vindos de qualquer campo — ciência
que Valéry já havia dado provas, e a consciência crítica envolvida ou saber hermético, da matemática, da astrologia, da astronomia,
na própria criação. Um exame prático de leitura daquilo que uma da criptografia, da frenologia, da tipografia, entre outros tantos, de
crítica inglesa, Elizabeth Sewell, chamou de mind in the mirror. Uma fato sinalizava para o échet da Literatura, preconizado e tão temido
poética da autorreflexividade” . 71
por Eliot, dedicando mais tempo não tanto à produção de textos
Considerando os longos anos de silêncio guardados por Valéry literários, quanto à reflexão sobre o método? Ou seja, seria razoável
antes de La Jeune Parque, ocupado como sempre esteve por uma postular que o silêncio poético de Valéry, “a ideia do trabalho do
incessante reflexão levada a cabo quase que exclusivamente nos seus poeta como uma empresa destrutiva e, por isso mesmo, suicida”74,
cadernos, é de supor que o poeta francês tivesse sido capturado pe- teria se dado sob o influxo da poética poeana, mais especificamente
los textos da trilogia poeana, em que a inteligência é ficcionalizada da autorreflexividade que a nucleia? Que essa autorreflexividade
na figura de Monsieur Dupin. No início do segundo desses contos, Poe irá buscar nos primeiros românticos é para onde aponta o seu
“Assassinatos na Rua Morgue”, uma súmula do intelecto quando se uso de textos atribuídos a Novalis, assim como na provável origem
toma a si mesmo em escrutínio — “The  mental features discour- da ideia de “A Carta Roubada” na Letter on the Novel, de Schlegel, e
sed of as the analytical, are, in themselves, but little susceptible na epígrafe supostamente extraída do autor germânico para o conto
of analysis. We appreciate them only in their effects. We know of “O Assassinato de Marie Rogêt”.
them, among other things, that they are always to their possessor, Em suma, teria sido possível que tanto Valéry quanto seus an-
when inordinately possessed, a source of the liveliest enjoyment” 72
tecessores, Baudelaire e Mallarmé, tivessem interpretado, e por isso
— encontra de fato ressonância nas palavras de Valéry: “I regard adotado, Poe, para desespero de Eliot, como precursor de uma poesia
methods with much more affection than results, and for me the end pura, no sentido de uma poesia que abarca uma infinitude de forças
does not justify the means, since — there is no end”73, que reduplica no campo gravitacional do meio de reflexão? E o poema “O Corvo”
reflexivamente, a infinitude do paradoxo poeano, apontando ao como fruto de uma composição intencionalmente mecânica, cujo
mesmo tempo, para o infinito não como infinito assintótico, mas protagonista, um objeto artificial, com seu refrão repetitivo, seria
como o infinito “da obra de arte”, segundo indicara Schlegel. A sen- símbolo e germe do fracasso, do fim da transcendência, da transcen-
tença valeriana nos remete ainda ao estatuto da metateoria, ao qual dência vazia e da literatura mesma, como até então concebida antes
do advento do “admirável mundo novo” das forças engendradas
70 (BARBOSA 2007:18)
71 (BARBOSA 2007:14) pelas ciências da natureza? Toda arguição aqui colocada não tem
72 POE (http://www.poemuseum.org/)
73 Valéry (In: BARBOSA 2007:109) 74 (BARBOSA 2007:29)
168 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 169

como propósito senão deixar que falem as especulações abertas pela diferentes uns dos outros... Mas penso que podemos traçar o

consideração da trilogia poeana (isso sem falar sequer em outros es- desenvolvimento e a linhagem de uma teoria específica através

pécimens da sua obra) ou por um único conto, “A Carta Roubada”, e desses três poetas e é uma teoria que busca sua origem na teoria...

o seu poder de multiplicação, de reflexão e de conexão que constitui de Edgar Poe. E a impressão que temos de Poe é tanto mais notá-

o meio literário como esta vasta teia de entrelaçamentos em que a vel em razão do fato de que Mallarmé e Valéry, por seu turno, não

reflexividade se movimenta, ampla rede de forças em movimento. É apenas efluem de Poe via Baudelaire: cada um deles sujeitou-se

quase uma certeza, porém, que Eliot teria sido responsável em gran- a essa influência diretamente, e deixou evidência convincente do

de parte pelo infortúnio crítico da recepção poeana no século 20 e valor atribuído à teoria e à prática do próprio Poe...76

que desviara o curso de uma tradição literária a fim de retirar do seu


núcleo a figura de Poe. Por exemplo: sabemos que Baudelaire fora o No que diz respeito às características que o aproximam do simbo-
primeiro a introduzir Edgar Allan Poe na França, consumindo mui- lismo, é sugerido que em Poe a insistência no aspecto dual da música,
tos anos de trabalho com suas várias traduções de “A Carta Roubada”, como “medida” e como “condutor de indefinição” sugestiva do Ideal
La Lettre Volée”. Eliot, porém, se refere a essa tradução como tendo aplica-se a uma poesia que se centra na impressão para obter o efeito
sensivelmente aperfeiçoado o texto original, quando o original é que do Belo, ou seja, um efeito da sugestão, em detrimento de qualquer
é, propriamente, uma obra-prima do conto. Lacan, outro francês, em significado. A arte como forma, produzindo a “corrente subterrânea de
seu famoso “Seminário” sobre o conto, queixa-se, todavia, justamente sentido”, derivada do misticismo do sentimento, afirmando o poeta em-
da pobreza semiótica da tradução, que não captura sequer a nuance pregá-la na acepção de “ideal” conferida por A. W. Schlegel. Por isso foi,
filológica implicada no título: The Purloined Letter. A responsabilida- certamente, um importante influxo para o movimento simbolista euro-
de de Eliot no que diz respeito às vicissitudes da recepção moderna peu. Creditou-se a ele, e não às teorizações encontradas em Coleridge
a E. A. Poe se deve à natureza de sua crítica, que não interagia com ou em Emerson, a herança de uma tradição francesa, de Baudelaire
os textos, não se comunicava com a obra do poeta de “O Corvo”, a Mallarmé e Valéry, a que se convencionou chamar “simbolista”. No
ou sequer a compreendia, colocando-se em posição de exterioridade entanto, sua maior contribuição ao simbolismo foi a insistência na
quanto a ela, em posição de julgamento, valendo-se para julgar do materialidade sonora das palavras, no modo como a musicalidade as
critério de autoridade que emanava dos poetas franceses que admi- afasta do referente sem que, porém, encontre um significado ausente
rava, os quais, por ironia, eram todos admiradores de Poe . Sempre 75 para suprir a falta, ou qualquer imagem sugestiva de verdade, uma vez
colocando em dúvida o valor literário de Poe, todavia, afirma: que o som, conduzindo e gerando outros, cria a “hesitação prolongada
entre o som e o sentido”, conforme Valéry a definira.
Eis aqui três gerações literárias, representando quase exatamente Uma vez que Poe concebe a autoconsciência como uma
um século de poesia francesa. Naturalmente são poetas muito estrutura reflexiva infinita, ressaltamos também por essa via o

75 Valéry compusera o seu “Monsieur Teste” como um duplo de Dupin. 76 Eliot (apud FELMAN 1988; 2006:136)
170 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 171

seu parentesco com os românticos. Também para ele nenhuma social — a urbanidade ou a sociabilidade, o Chiste, a Alta Cultura,
imagem do eu alcança fechamento absoluto e o que lhe interessa o popular, o exercício vivo da intelectualidade, da virtuosidade — e
são as formas pelas quais as figurações da autoconsciência exibem com todos os valores e qualidades que o romantismo, como vimos,
nelas mesmas a consciência dessa sua condição. Poe e, cem anos herda do Iluminismo”77. Uma concepção, em suma, schlegeriana
depois, Borges transformam a questão da busca metafísica na ques- do Diálogo. Buscar as “ligas” semióticas pelas quais se comunicam
tão epistemológica da figuração do absoluto, na tarefa impossível subterraneamente autores e obras, recuperar as novas formas que a
de dar corpo a algo que, porque é infinito, não pode ser limitado reflexividade assume ao ressurgir de outras eras, compreender a di-
por um traço. A consciência no esquema poeano, não se confunde, nâmica com que se dobra a reflexividade em identidade e diferença,
porém, com o eu psicanalítico. Diríamos que também Calvino ca- são todas tarefas para muita pesquisa.
minha nessa direção, e não faria sentido enumerar toda a miríade Falar em Reflexividade começando por Edgar Allan Poe, a
de artistas da palavra que integram essa mesma comunidade, na figura mais controvertida da cena literária americana, a literary case
qual é possível ouvir o murmúrio de ideias e reflexões das formas history, um “caso” na história literária, nas palavras de Shoshana
originárias dos românticos. Mesmo quando recuamos alguns sécu- Felman, “a stumbling block for the judicial critic”, uma pedra no
los, ainda nos encontramos dentro do raio de influxos e de forças caminho do crítico judicioso, como afirmou T. S. Eliot, não deixa
que o preparam e que o antecipam, seja, por exemplo, nos Ensaios de ser, por conseguinte, uma empreitada temerária. Talvez porque
de Montaigne, seja em Cervantes ou em Shakespeare, apenas para a figura excessivamente controvertida e paradoxal de Edgar Allan
citar os exemplos mais conspícuos. Mas a dinâmica da reflexivida- Poe termine por ser um óbice à disseminação dos produtos da es-
de preside a conformação de obras que se inscrevem num arco de peculação e das ideias, derivadas em parte dos românticos de Iena,
enorme amplitude. E os sinais e signos que emblematizam o seu sobretudo no que se refere à reflexividade. Talvez porque ocupasse
modo operativo são identificados, na análise de Irwin, em autores e sempre uma posição de risco, Poe não se detivera ante a dificuldade
obras tão distintos quanto As Mil e Uma Noites, o já citado Hamlet de construir os alicerces da reflexividade que encenaria em sua obra
(e em inúmeras outras de Shakespeare), em Alice, de Lewis Carroll, num passado mais longínquo, pouco adivinhado e percebido. Como
em Moby-Dick e A Letra Escarlate, em James Joyce e João Guimarães não desfrutava de recepção inconteste, maior liberdade desfrutava
Rosa, em Sir Thomas Brown, em Goethe, nos teoremas matemáticos, para buscar seus caminhos à margem dos cânones. No terreno das
nos paradoxos, na filosofia e em toda a mitologia. Prosseguir na especulações, seria possível também atribuir à própria natureza do
enumeração nos parece ocioso, entretanto. Melhor seria colocarmo- processo que a reflexividade põe em movimento esse ostracismo
-nos na escuta do murmúrio que esse diálogo entre obras e autores do conceito, uma vez que os excessos do entendimento costumam
produz, ao longo dos anos, um diálogo dentro do qual cada obra provocar no sujeito que os experimenta justamente a paralisia que
participa como um fragmento, a constituir um sistema, o sistema da acomete Hamlet e que o impede de agir. Ou seja, o efeito poético da
literatura, diálogo “que se mantém em íntima relação com o espírito 77 (LACOUE-LABARTHE; NANCY 1988:85)
172 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 173

reflexividade seria o de provocar, pelo excesso de pensamento, uma terreno fértil que permite vislumbrar, em ato, um jogo de relações
conturbação exacerbada no meio literário, justificando em parte os entre os textos. Implicação, ao invés de aplicação, da teoria psicana-
sentimentos de ódio e de fúria que eram dirigidos ao poeta ameri- lítica, é o que fundamenta a análise lacaniana, confirmava Shoshana
cano pelos seus contemporâneos e conterrâneos. Felman, quando Lacan, tratando o texto de Poe como uma alegoria da
Poe será, então, a figura a encarnar o elo perdido entre as lu- psicanálise, retirando a ênfase no sentido e substituindo-a pela ênfase
cubrações dos primeiros românticos e os escritores do simbolismo, no significante, ou seja, justamente a falta de significação, deixa de
do modernismo e as dos autores da contemporaneidade, aquele pertencer à categoria de “psicologia aplicada à psicanálise”, uma vez
que buscará e desenvolverá, em alguns dos seus textos e poemas, a que o conceito de “aplicação” denota uma relação de exterioridade
tradução e operacionalização da transformação, que os românticos entre a ciência aplicada e o campo que supostamente deve, unilate-
nem sempre foram capazes de fazer, da reflexividade como ideia da ralmente, informar: na análise de Lacan, o texto de Poe serve para
arte como forma que se forma no pensar, em objeto que contém o reinterpretar Freud, da mesma forma que o texto de Freud serve para
movimento da reflexividade, ou seja, a objetivação da reflexividade. reinterpretar Poe; uma vez que a teoria psicanalítica e o texto literário
Como era do seu feitio, Poe o realiza por meio de uma ficção que se informam mutuamente — e deslocam — um ao outro; uma vez
atraía leitores numa sociedade de massas em plena formação, na que a própria posição do intérprete — do analista — vem a ser não
medida em que exercia um inegável influxo sobre eles. fora, mas dentro do texto, deixa de haver uma oposição clara ou um
Reconhecendo que o pensamento humano, por infinito que pos- limite definido entre literatura e psicanálise... O marco metodológico
sa parecer o processo em que se engaja, jamais renuncia à totalidade, deixa de ser o da aplicação da psicanálise à literatura, e, sim, o da sua
Poe criou os seus contos elegendo como temas vários dos paradoxos interimplicação mútua”78. 
de autoinclusão, ou seja, aqueles nos quais vemos o animal humano Há aqui uma confluência entre a interpretação lacaniana e o
ocupado na tentativa de incluir-se por completo em suas determina- conceito romântico de crítica como implicada na própria obra e
ções. Seria necessário que Lacan, por volta dos anos 60 do século XX, como um seu desdobramento; e por extensão, uma inter-implicaçao
à época dono de grande prestígio, tomasse o conto “A Carta Roubada” entre a reflexividade do primeiro romantismo e a reflexividade mais
como tema de um dos seus famosos seminários, para que a questão da tarde retomada por Edgar Poe, que muito diz sobre a natureza da
reflexividade tivesse algum relevo e assim mesmo em outro campo e própria reflexividade, quando observamos a estranheza, no sentido
de forma oblíqua, que punha em exposição a temática reflexiva do do- freudiano do termo, umheimlich, e que cercou todo o processo da
ppelganger, dos duplos, assim como a teoria freudiana da compulsão recepção poeana no seu tempo, a incompreensão dos seus contem-
à repetição, cujo início se encontra na insistência da cadeia simbólica porâneos, os ódios suscitados nos seus inimigos, a violência com
dos significantes. Uma confluência entre a interpretação lacaniana e o que o establishment assestou suas baterias contra ele, com a qual se
conceito romântico de crítica como implicada na própria obra e como empenhou-se em negá-lo a qualquer custo, a complexidade mesmo
um seu desdobramento e reflexo pode ser observada nessa leitura, 78 (FELMAN 1988; 2006:152-153)
174 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 175

da sua empreitada, que ousou levantar o véu de algo que havia fica- uma solução que conserva (porque infinitamente reconfigura) o
do há muito enterrado no caminho. senso de mistério, que se encontra na própria origem do gênero.80
Quanto ao projeto de Poe, em que minimamente consistia?
A pergunta traz à lembrança uma importante aquisição a que tive O universo de conexões criadas pela simples posição de uma
acesso nas pesquisas realizadas durante a minha tese de doutorado, dessas histórias, “A Carta Roubada”, na qual a reflexividade dá forma
quando me confrontei com o extenso estudo comparativo entre Poe e conformação à ficção através da análise do ato de análise, é de-
e Borges, de John T. Irwin, “The Mystery to a Solution — Poe, Borges masiado vasto para que sequer as enumeremos. O reflexionmedium
and the Analytical Detective Story”79 (O Mistério de Uma solução no qual se produz e reproduz incessantemente desde o primeiro
— Poe, Borges e a História de Detetive Analítica), crítica realizada romantismo abrangerá uma galáxia de pontos luminosos, sinais
nos moldes do que verdadeiramente preconizavam os primeiros de poéticas distintas mas articuladas, em que figuram os nomes de
românticos, como desdobramento infinito da obra, inscrita no Holderlin, Tieck, Baudelaire, Mallarmé, Valéry, Calvino, Faulkner,
processo de autoconhecimento da própria obra, degrau do processo Joyce, Rosa, Borges, e uma miríade de outros, muitos dos quais já
reflexivo. Eis aqui a questão que ele primeiro se coloca: citados, em meio aos quais Poe se coloca estrategicamente como
ponto de junção e ao mesmo tempo de desvio. A reflexão, como
Deixe-me começar por uma questão muito simples: como es- intensificação da teoria, como alargamento da autoconsciência e au-
crever uma história analítica de detetive enquanto obra de arte, toconsciência do objeto estético, requer o afastamento, com relação
quando os mecanismos da narrativa central do gênero parecem a esse objeto, de um passo a mais, sempre, do enquadramento do
desencorajar a releitura ilimitada associada a um texto literário? visado numa moldura, da consideração do caráter da obra como
Quer dizer, se a essência de uma história de detetive analítica é alegoria. A análise do modo de operação da reflexividade na litera-
a solução dedutiva de um mistério, como o escritor evita que tal tura, a metateoria, e a sua encarnação em obras reais, o modo como
solução esgote o interesse do leitor na história? constitui a literatura “como manifestação de si para si mesma”81, as
formas que assumem a reflexão, são tarefas para realizar-se num
Já o projeto pareceria implicar a reconciliação do paradoxo tempo que é também infinito.
entre um gênero considerado menor e uma obra de arte. Aqui o
gênero “história de detetive”, inaugurado por Poe, reflete sobre o seu Referências
próprio estatuto como obra de arte. Irwin o esclarece:
ABREU, Maria Clara C. 2008. No redemoinho da história: um estudo sobre a relação
Tudo isso me coloca a tarefa de desenredar algo bastante enre- entre a verdade e a linguagem em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: PUC.
dado, “A Carta Roubada”, a fim de considerar a estrutura desse
problema — o modo de um mistério com uma solução repetível,
80 (IRWIN 1983:ii)
79 (IRWIN 1983:i) 81 (IRWIN 1983:123)
176 Sueli Cavendish Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo 177

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Capítulo 5

Fenomenologia e
Hermenêutica:
impactos sobre os estudos
literários
Maria da Glória Bordini
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Qualquer filosofia ou teoria crítica existe e se


mantém não apenas para estar aí, passivamente
ao redor de todos e de tudo, mas para ser
ensinada e difundida, para ser absorvida deci-
sivamente pelas instituições da sociedade, para
ser instrumental em conservar, mudar ou talvez
subverter essas instituições e essa sociedade.
Edward Said
The world, the text and the critic
1. Fenomenologia e hermenêutica, relações possíveis

Embora a fenomenologia e a hermenêutica sejam disciplinas filosó-


ficas diversas, há nelas um vínculo que as aproxima tanto quanto as
afasta. A primeira visa descrever a coisa em si. A segunda tem em
mira interpretá-la, levando em conta que o “em si” é insuficiente
para a ela chegar. A “coisa” pode variar — neste caso é a literatura
—, mas as duas atitudes, e esta é a ideia aqui defendida, são comple-
mentares. Como a fenomenologia queria atingir o eidos invariável
de seu objeto, para conhecê-lo em sua verdade, para tanto advogou
que pressupostos e/ou preconceitos fossem “postos entre parênte-
ses”, contemplando puramente os processos de constituição desse
objeto na própria consciência, uma consciência não psicológica,
mas transcendental. Por seu lado, a hermenêutica desistiu da pura
apreensão da “coisa”, já que, no seu andamento histórico, reconheceu
que a consciência está mergulhada num horizonte compreensivo, na
história pessoal, social e política e que os parênteses não conseguem
isolá-la.
Para os estudos literários, as duas correntes têm prestado servi-
ços basilares, numa e noutra perspectiva, seja para o conhecimento
da obra literária em si, seja para a explicação de seus sentidos. A
fenomenologia literária mais estrita, desenvolvida por Roman
Ingarden e por Georges Poulet, apesar das flagrantes diferenças
182 Maria da Glória Bordini Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica 183

entre ambas as orientações, a polonesa e a genebrina, possibilitou vertente em Paul Ricoeur, para quem, além do texto, há um Outro
o desenvolvimento de análises rigorosas do estatuto das obras, seja transcendente que produz sentido e cuja voz necessita de escuta.
no seu aspecto estrutural fenomênico, seja quanto aos fenômenos Nesses três casos, fenomenologia e hermenêutica se irmanam, bor-
criativos na consciência autoral. A hermenêutica literária tem seus rando fronteiras e abandonando posições radicais.
principais representantes em Hans-Georg Gadamer e Hans-Robert Para a literatura, essa conciliação surte novos desafios. A fe-
Jauss, na Alemanha, que mais especificamente trataram das ques- nomenologia não mais pode prescindir da visada histórica, tendo
tões da compreensão da poesia e da narrativa, um enquanto filósofo, de incorporá-la em seus princípios, o que é realizado pelo filósofo
o outro enquanto teórico da literatura, e Paul Ricoeur, na França, Maurice Merleau-Ponty, ao conferir ao corpo e à percepção papel
que teoriza as relações entre tempo e narrativa e o status da metáfora fundante na constituição dos objetos fenomênicos, direção com-
e especialmente os impasses da tradição interpretativa. partilhada, no âmbito literário, por Roland Barthes na sua segunda
A fenomenologia repercutiu sobre o formalismo e o estrutura- versão do estruturalismo em O prazer do texto4. A seu turno, a
lismo1, sendo contestada posteriormente pelos pós-estruturalistas, hermenêutica se vê na necessidade de tratar os fenômenos do texto
Derrida à frente2. Deu origem, igualmente, à disciplina de Teoria e da consciência levando em conta sua estruturalidade e sua histo-
da Literatura nos Estados Unidos, a partir do texto de mesmo ricidade, como Gadamer e Ricoeur o fazem, direcionando a inter-
nome de René Weller e Austin Warren3, embora mesclada ao New pretação para uma consideração da “coisa” em que os fenômenos
Criticism. A hermenêutica deixou sua marca mais profunda na extratextuais também devem ser interrogados.
Escola de Constança, tanto em Jauss quanto em Wolfgang Iser. Uma separação apenas para fins expositivos pode aclarar essas
Derrida denunciou o logocentrismo das concepções estruturalistas. questões, de modo que se possa compreender — e interpretar — as
Jauss e Iser buscaram ultrapassar a visão imanentista dos formalis- implicações das duas correntes e seus cruzamentos para os estudos
mos, recorrendo à história, mas defrontaram-se com o problema literários. Como aponta Gumbrecht, com o “boom teórico” dos anos
do leitor ideal, uma espécie de máquina de leitura intratextual, que 60 e 70, “reviveu-se o desejo de encontrar uma definição transcultu-
necessitaria, para ser desidealizada, de leitores históricos, tornando ral e meta-histórica de ‘literatura’”, mas esse também levou a “várias
mais complexos os estudos recepcionais. respostas ‘apologéticas’, a perguntas sobre as funções sociais da lite-
Por outro lado, a fenomenologia filosófica derivou para a on- ratura e a importância das mesmas”5. Acrescenta ele que a estética
tologia de Heidegger, de que o ser se manifesta na linguagem e é na da recepção “alegou que, pela medição do(s) leitor(es), os textos lite-
análise da linguagem que pode aflorar, atravessou a teoria dialogal rários tinham exercido funções chave em algumas das mais impor-
de Gadamer, que funde os horizontes do texto e do leitor, possibili- tantes transformações ao longo da história ocidental; por sua vez, a
tando a compreensão do passado pelo presente, e encontrou outra desconstrução atribuiu à leitura desses textos o status de encenação
da experiência filosófica crucial da falácia do significado linguístico
1 (Cf. KRISTEVA 1978)
2 (Cf. DERRIDA 1982). 4 (Cf. BARTHES 1987)
3 (Cf. WELLECK; WARREN 1962) 5 (GRUMBRECHT 1998:161).
184 Maria da Glória Bordini Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica 185

e da referência”6. Se hoje estudar literatura tornou-se um problema, doa11. Husserl não discute a prioridade do mundo ou da consciên-
dadas as concepções que contestam seu estatuto, ou apontam as cia, mas recusa a hipótese de que o conhecimento venha de fora da
alterações que a literariedade — para usar a terminologia de Roman consciência, como queriam os empiristas. Por outro lado, não aceita
Jakobson7 — tem sofrido ao longo do tempo e em etnias e culturas a tese kantiana de uma consciência pura. Para ele, a consciência não
diversas, metropolitanas ou coloniais e pós-coloniais, pensar as apenas percebe o mundo pelos sentidos, mas confere aos dados da
questões fenomenológicas e hermenêuticas pode reorientar a crise percepção sua inteligibilidade: ela constitui para si um objeto ideal,
de sentido que afeta os estudiosos desse campo tão polemizado. o único que pode ser conhecido com certeza absoluta.
O conceito de consciência depende do que ele chama de inten-
2. A fenomenologia num horizonte de incertezas cionalidade. Para ele, a intenção é movimento da consciência que a
faz tender para algo que não é ela. É o voltar-se para as coisas que
A fenomenologia como disciplina filosófica é estabelecida por
determina que a consciência exista, pois só assim será consciência
Edmund Husserl (1859-1938), na Alemanha. Embora Hegel já
de. É nesse mover-se que ela vivencia a si mesma e aquilo que nela
utilizasse o termo em sua Fenomenologia do Espírito (1807), especu-
aparece: o fenômeno (phainomenai). Essa é a razão por que só os
lando sobre como a Ideia Absoluta se realiza em e contra os objetos
fenômenos podem ser objeto de conhecimento, pois não há meio de
e na consciência de si do sujeito8, é Husserl quem lhe dá um corpo
a consciência ir às coisas mesmas, de que eles são fenômenos, senão
teórico rigoroso, iniciado em suas Investigações lógicas, de 1900-
através deles. Diz Husserl, em Investigações lógicas, que o conceito de
19019. Na virada o século, antes da Primeira Guerra Mundial, o
fenômeno é “o objeto intuído (aparente), como ele nos aparece aqui
mundo europeu se apercebia das primeiras consequências nefastas
e agora”12. Daí que a fenomenologia seria “a teoria das vivências em
do capitalismo e os valores sociais mostravam o abalo das tradições
geral e, incluídos nelas, de todos os dados, não só reais, mas também
seculares. Husserl, em A crise das ciências europeias, em 1935, de-
intencionais, que se podem mostrar com evidência nas vivências”13.
clara que sua filosofia quer nortear a prática, restituindo a noção
Conhecer é apreender o fenômeno como ele se apresenta na
de verdade não como proveniente do Absoluto — como em Hegel
consciência, tanto enquanto é por ela constituído, como depois
— mas como construção da consciência10.
de constituído. Não requer a comparação entre fenômeno e a coi-
sa, pois não é possível relacionar-se sensoriamente com as coisas
2.1 Husserl e a fenomenologia da consciência transcendental
sem distorções. Para chegar ao verdadeiro conhecimento é preciso
Para a fenomenologia, o que existe só existe para a consciência, que contemplar o fenômeno tal como ele surge na intuição (o dar-se de
por sua vez se torna consciência ao tomar consciência do que a ela se forma direta, imediata, completa, adequada), deixando de lado tudo
o que se sabe sobre o objeto de que ele é fenômeno. Essa atitude
6 (GRUMBRECHT 1998:161-162)
7 (Apud EIKHENBAUM 1971:8)
8 (Cf. HEGEL 1992) 11 As considerações a seguir são extraídas de BORDINI (1990)
9 (Cf. HUSSERL 1976a) 12 (HUSSERL 1976a:771)
10 (Cf. HUSSERL 1976b) 13 (HUSSERL 1976a:772)
186 Maria da Glória Bordini Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica 187

se chama “redução fenomenológica” (epoché). Consiste em pôr o mundo-da-vida (Lebenswelt), do qual ela intenciona tudo o que
objeto do conhecimento entre parênteses e atentar à atividade da pode, pela lembrança do que passou ou pela imaginação do que
consciência que o constitui para si. virá. O mundo-da-vida, para Husserl, é “o mais conhecido de todas
Conhecer seria extrair dos fenômenos o que é transitório ou as coisas, o já por si evidente em todo o viver humano, o que já nos
contingente — o que eliminaria as ilusões — para alcançar o que é sempre familiar em sua tipologia por meio da experiência”15. No
nele é imutável, sua essência (eidos), aquilo que garante que o fe- conjunto das consciências, em sua interligação, faz-se a história, ao
nômeno é o que é, sempre que se manifestar à consciência. Como longo do fluir do tempo da natureza. É da intersubjetividade que
a consciência não é um lugar ou um estado, mas está sempre se nascem os gestos e a práxis, desde que as consciências possam se
voltando para, fluindo no tempo, o conhecimento verdadeiro será comunicar, o que é facultado pela linguagem.
o eidético, pois — como Platão já dizia — não se pode conhecer o A linguagem surge como significação, a que a consciência dá
que está sempre mudando. Esses conceitos causaram o escândalo corpo com matéria sensível, sinais físicos: o verbo, na linguagem, o
com que foi recebido o seu Idéias para uma fenomenologia pura e som, na música, o gesto corporal, na dança, a cor, na pintura, etc.
para uma filosofia fenomenológica, de 1913, acusado de idealismo . 14
Graças a esse suporte material, que indica a outra consciência o
Como a consciência é um fluxo, possui um horizonte em sentido intencionado nesta, a comunicação se faz possível e as cons-
perpétuo movimento. O horizonte é tudo o que a consciência pode ciências se tornam intersubjetivas, ou seja, reconhecem-se como
vivenciar, voltando-se do aqui e agora para os fenômenos passados consciências e fazem acordos, entram em desavença, socializam-se
(que constituem a memória) ou para os que se anunciam adiante e historializam-se.
(a previsão), no plano daquilo que ela dá como existente, porque
preenchido pela intuição da coisa (o real) ou no plano a que não 2.2 Roman Ingarden e a teoria fenomenológica da literatura
considera existente, mas vivencia assim mesmo (a fantasia). A linha
É a partir dessa posição radicalmente fenomenológica que o
desse horizonte se altera à medida que o raio da intenção focaliza
polonês Roman Ingarden, em seu livro A obra de arte literária, de
algo, avança ou retrocede, até os fenômenos se esfumarem e desa-
193016, investiga a essência do literário. Seguindo o método de seu
parecerem. O agora de cada ato intencional é instantâneo, mas dele
mestre — foi aluno de Husserl em Göttingen e Freiburg durante
guarda-se a vivência, pelo processo da retensão, ou antecipa-se seu
oito anos17, para ele a literatura teria uma estrutura essencial per-
desenvolvimento, pela protensão. Só depois configuram-se os atos
ceptível em todas as experiências individuais que dela se têm. Pela
de recordação ou de antecipação. O horizonte da consciência é, pois,
redução fenomenológica, ele propõe que se deixem de lado todas as
dinâmico e fornece o contexto a cada fenômeno na história do su-
características transitórias e singularizantes das obras literárias e as
jeito enquanto autoconsciência e na história de sua vida no mundo.
A consciência se torna consciência porque está imersa no 15 (Apud LANDGREBE 1975:172-173)
16 (Cf. INGARDEN 1973a)
14 Cf. o Prefácio do autor à edição inglesa (In HUSSERL 1969) 17 (Cf. SARAIVA 1973:xi)
188 Maria da Glória Bordini Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica 189

prenoções conhecidas sobre elas, para atingir a essência invariante A apreensão dos sinais gráficos seria um ato ao mesmo tempo
dos fenômenos que apresenta à intuição. perceptivo e significativo, pois captaria a figura da letra e lhe confe-
É bastante conhecida sua conceituação da literatura como riria um sentido intencional, convencionado socialmente, que seria
produção da consciência, constituída de quatro estratos fenomênicos o fonema a ela correspondente, acionando atos de memória e de
heterogêneos, formando uma estrutura harmônica, em fluxo. São pensamento. Se a memória falha em produzir a associação apren-
eles: o estrato fônico, dos fonemas linguísticos organizados em dida na alfabetização, ou o pensamento não sintetiza o sinal gráfico
palavras, o estrato semântico, em que, de unidades superiores de com a impressão acústica, a leitura não ocorre. Por isso, só flui a
combinação, por meio de conexões gramaticais, surgem os sentidos leitura que não se prende às letras, mas às palavras e frases.
intencionais. Desses dois estratos se projetam outros dois, em que Num segundo movimento, haveria o ato de compreensão dos
a intencionalidade constitui objetos fenomênicos e em que estes se sentidos verbais provenientes dos fonemas combinados em uni-
concretizam, se revestem de aspectos sensoriais segundo os hábitos dades superiores. Ela aconteceria a dois níveis: o da palavra, como
da consciência. A essência da obra seria a interrelação necessária elemento individual, e como parte de uma hierarquia superior, a
entre eles (daí a noção de estrutura) e a autonomia do conjunto em da frase, e ao texto inteiro. A palavra receberia o sentido por uma
relação ao que haja fora dele (a condição de imanência). A diferença convenção intersubjetiva, mas, ao nomear e indicar a coisa para
entre os componentes de cada estrato e suas relações com o todo se várias consciências, apreenderia relações das coisas umas com as
responsabiliza pelo efeito da literatura: a polifonia qualitativa, em outras, que ficariam fixadas pelos índices gramaticais. Portanto,
que todos os elementos permanecem à vista, mas entram em rela- ser um verbo e ser um predicado designam um estado de coisas
ção uns com os outros, originando a configuração singular de cada na consciência, que é correlato intencional ao comportamento das
obra e de cada gênero. Por outro lado, como a consciência opera no coisas fora dela.
tempo fenomenológico, a obra se desdobra em fases, que a levam O leitor, porém, não intui cada conjunto fônico-semântico
adiante, fundamentando-se no que já passou e no que virá, até sua em si. Para chegar ao ato compreensivo, inscreve-o em unidades
constituição plena, o que explica a divisão em episódios, capítulos, de fenômenos correlatas às coisas em si, através dos estados de coi-
versos, estrofes, etc. sas (state of affairs) como aparecem na consciência. O sentido da
Deriva de sua teoria da literatura também uma teoria fenome- linguagem é recuperado pela intuição do objeto designado, ou do
nológica da leitura, expressa em seu O conhecimento da obra de arte léxico e da morfossintaxe quando esse objeto não está à vista dos
literária, de 193718. Quando se lê, a consciência apreende o objeto que usam a linguagem como meio de comunicação intersubjetiva.
de leitura a partir dos fenômenos que o texto impresso lhe oferece. Segue-se o momento da objetificação, ou da constituição de
Em primeiro lugar, ocorre a intuição sensível dos sinais gráficos, objetos intencionais a partir desses sentidos intencionais. Entender
de imediato transformados, por atos constitutivos intencionais, em um texto é transferir para a própria consciência o ato significativo
impressões fônicas. que teve origem em outra (ou num outro momento da consciência
18 (Cf. INGARDEN 1973b) de si, como quando se lê o que se escreveu). As palavras iniciais de
190 Maria da Glória Bordini Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica 191

cada frase têm sentidos, pois apontam para estados de coisas que são constituídos na sua consciência em interação com as demais
depois serão preenchidos com os sentidos das palavras seguintes, consciências.
produzindo a ilusão de continuidade que os textos veiculam. A lei- Para Ingarden, o leitor não é livre no preenchimento dos pon-
tura eficiente supera a linearidade das palavras e efetua ligações nas tos de indeterminação, porque a estrutura intencional da obra lhe
hierarquias superiores, constituindo, a partir das frases, as objetivi- traça um rumo a seguir. Não é só ao nível das objetividades que as
dades que vão se enlaçando no texto. indeterminações são preenchidas. Os aspectos que nelas estão em
Entendidos os sentidos, a leitura efetua o processo fenomênico prontidão, em potência, são despertados e atualizados conforme os
da objetificação. A intencionalidade do leitor capta, na profusão de hábitos perceptivos do leitor. Assim, o que é uma vivência intelectu-
determinações do correlato intencional da coisa, algumas dessas de- al ou emotiva de um objeto, se reveste de qualidades sensoriais, que
terminações e reconstitui criativamente esse correlato, independen- garantem o lado estético da experiência da leitura.
te da experiência do objeto fora da consciência. Isso explica por que O ato fenomenológico da leitura, portanto, acontece na cons-
uma leitura pode divergir de outra sem ler objetividades diferentes. ciência e, como esta é sempre temporal, está em fluxo, também é
Os núcleos de concordância seriam estabelecidos pela estrutura determinado por uma corrente de fenômenos. Seu desenvolvimento
total da obra, fixada nos estratos fônico e semântico. Atualizando as se dá por polarizações de fenômenos, que seriam os agoras em se-
determinações criativamente, o leitor constitui para si todo o mun- quência. Esses agoras da leitura estariam cercados por zonas esma-
do apresentado na obra, reapresentado na sua consciência conforme ecidas, tanto para frente como para trás, como futuros antevistos ou
sua intencionalidade pessoal. Essa irá coincidir com a do autor no passados memorizados. Cada momento da obra transitaria, na lei-
que se refere à estrutura do todo, mas se diferenciará na configura- tura, de desconhecido ou pressentido para intuitivamente presente,
ção individual dos elementos que o integram. vivo, e logo para conhecido, mas já sem nitidez. A cada ponto-agora
A partir daí, o leitor chega à concretização, ou evidenciação da da leitura, os objetos intencionais apresentados são vividos pela
presença desses objetos intencionais como se fossem fenômenos de consciência do leitor como se tivessem existência própria, como
objetos independentes da consciência. A concretização é determi- sendo realmente experimentados, mas logo se desvaneceriam e na
nada pela natureza esquemática dos estratos objetual e aspectual. memória restariam reverberações do estrato fônico, sínteses im-
Trata de preencher os pontos de indeterminação, as lacunas deixa- perfeitas do estrato semântico, vistas pouco detalhadas do mundo
das em branco no esquema dos objetos. Os pontos de indetermina- intencional, detalhadas aqui e ali por alguma ênfase aspectual.
ção são aqueles momentos em que não se pode decidir se o objeto Por sua dinâmica, o processo de leitura obriga à contínua mu-
apresentado tem essa ou aquela qualidade. O leitor, cuja consciência dança, à novidade, à reavaliação do conhecido em relação ao que se
sempre vivencia o objeto intencional autônomo em plenitude na in- vai conhecendo. O leitor está cônscio de que sua leitura progride, de
tuição do mesmo, diante do objeto intencional heterônomo que lhe que decrescem as partes não lidas e aumentam as já lidas, e que seu
é doado pela linguagem, preenche esses pontos vazios com sua ex- movimento de umas para outras não é regular. Seu ritmo é deter-
periência prévia, derivada do seu tempo e de seu espaço, tais como minado tanto pela sua consciência, que se distrai ou não da leitura,
192 Maria da Glória Bordini Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica 193

que volta atrás para conferir algo ou imagina o que virá, quanto pela pois defende que o leitor cria o que não está dito conforme suas
obra, que lhe produz momentos de tensão ou distensão, conforme referências, repertório de padrões e temas conhecidos, alusões que
se desenrolam os eventos no mundo nela apresentado. tornam familiar o que poderia não ser, buscando uma consistência
Para Ingarden, a obra literária é eideticamente estética. Embora que pode não corresponder à da obra, e, sim, fazer sentido para ele.
expresse uma subjetividade, portadora de uma ideologia, ela não De qualquer modo, nem assim o leitor pode desviar-se das determi-
se realiza enquanto não reveste o que for ideia, emoção ou palavra nações textuais a seu bel-prazer. Do jogo do determinado e do inde-
de qualidades sensíveis, atualizadas no ato de concretização. Toda terminado decorre a desfamiliarização, o efeito que, segundo ele, a
leitura que não chegue aí, não será literária. Leituras meramente fi- obra deve realizar ante as expectativas e crenças do leitor, levando-o a
losóficas, sociológicas, religiosas, psicológicas ou linguísticas de uma reformulá-las. Pensando os pensamentos do outro, do texto, o leitor
obra literária seriam secundárias, pois não atingiriam sua esteticida- aceita a alteridade e revê suas convicções. Assim, a literatura exerceria
de inerente. sua função emancipatória.
Ingarden não deixou de receber críticas por sua concepção da Para Ingarden, a estrutura estratificada da obra e sua sequencia-
estrutura fenomenológica da obra literária. Embora a fenomenologia lidade deveriam acionar todas as operações da consciência do leitor,
esteja na raiz dos estruturalismos posteriores, foi acusada de ignorar que, ao conseguir concretizar o seu objeto fenomênico, estaria sendo
a história e o corpo, o que não é de todo verdadeiro, pois estes são os desafiado a obter a harmonia qualitativa que a obra lhe oferece, como
elementos entre parênteses da redução fenomenológica e na base da o intérprete num concerto, e, eventualmente, alcançaria a experiência
teoria husserliana está o mundo-da-vida. Se Ingarden foi o mais or- de qualidades metafísicas como o sublime, o grotesco, o inefável. As
todoxo quanto ao seguimento da filosofia da consciência husserliana, duas posições são divergentes, a de Ingarden mais imanentista, a de
enquanto outros a ela filiados, como Dufrenne19, Merleau-Ponty20 e Iser mais contextualista, mas ambas acolhem a possibilidade de o leitor
Sartre21 refutaram a ideia de intencionalidade pura, trazendo a força interagir com a obra e de esta afetá-lo. A questão é decidir se a huma-
criativa da natureza, a corporalidade e a existência histórica como nidade melhora pela via da experiência estética — ideia base das artes
sede dos fenômenos da consciência, de qualquer modo, a fenome- miméticas ou expressivas em geral — ou do choque entre tradições e
nologia de Ingarden rendeu frutos na década de 1960, especialmente inovação, ao influxo das vanguardas históricas. Uma das respostas à
nas teorias de Wolfgang Iser, que dela partiu para conceber suas pertinência dessa pergunta está nas propostas da hermenêutica.
teorias da recepção da narrativa.
Contrariando Ingarden e dialogando com autores como 3. A hermenêutica na busca do sentido
Jakobson, Lotman, Hirsch, Riffaterre e Eco, Iser, em 1976, com O ato A interpretação existe, porque existem a situação e o discurso e estes
da leitura22, admite um preenchimento mais livre das indeterminações, podem negar seus sentidos ao ser humano. Os termos gregos her-
19 (Cf. DUFRENNE 1979) meneuein, interpretar, e seu substantivo, hermeneia, interpretação,
20 (Cf. MERLEAU-PONTY 1994)
21 (Cf. SARTRE 1999) são empregados desde a Antiguidade em correlação com o deus
22 (Cf. ISER 1996)
194 Maria da Glória Bordini Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica 195

Hermes, o mensageiro do Olimpo, que transformava a voz dos deu- da ascensão do racionalismo no século XVIII. Buscar o sentido, ou
ses em mensagem inteligível aos homens. Segundo Palmer23, a partir as grandes verdades, significaria considerar racionalmente a língua,
dessa tradição remota, interpretar se refere a dizer, explicar ou tra- sua gramática e o contexto histórico do texto, salientando as nacio-
duzir. Dizer estaria ligado à “expressividade da palavra falada”, que, nalidades. Essa posição leva quase naturalmente de uma concepção
na sua performance, é inerentemente interpretativa. Explicar viria de hermenêutica como sistema de regras para a constituição de uma
da concepção aristotélica de ajuizar, enunciar um juízo verdadeiro ciência que descrevesse as condições da compreensão em geral, que
ou falso, mas pressupondo que o interpretado mergulha num fundo é o que faz Schleiermacher (1768-1834), no século XIX, postulan-
pré-compreensivo, fornecido pelo modo como é explicado, ou seja, do que compreender é reconstruir os processos mentais do autor
pelo método como o objeto é conhecido. Traduzir é tornar compre- do texto, numa espécie de diálogo circular entre as constrições da
ensível o que é estrangeiro, seja o que é distante pela língua, pelo gramática e a individualidade do emissor. Se a filologia marcou o
tempo ou pelo espaço. Tendo em mente essas três possibilidades, estudo da literatura por sua ênfase na história da língua e da cultura
a hermenêutica nos tempos modernos tem transitado nos âmbitos nacional, refletindo-se sobre o positivismo literário, a hermenêutica,
da exegese bíblica, da pesquisa filológica, do cientificismo, como após Schleiermacher, derivou, na esfera literária, para a estilística, a
em Schleiermacher, que desejava dar-lhe um fundamento universal análise de marcas subjetivas e de desvios da norma linguística.
e sistemático, do método para as ciências do espírito, à maneira Na busca de uma metodologia para as Geisteswissenschaften,
historicista de Dilthey, do existencialismo, como em Heidegger e Wilhelm Dilthey (1833-1911) encontrou na hermenêutica de
Gadamer, e das culturas simbólicas, como em Ricoeur. Schleiermacher a saída para a historicização que considerava central
Todas essas tendências repercutiram sobre os estudos literá- a fim de interpretar as manifestações da vida humana. Rebelando-
rios. O termo “hermenêutica” foi empregado, na exegese bíblica, se contra a aplicação dos métodos das ciências naturais às huma-
por Johann Conrad Danhauer, no século XVII, em seu livro nas, também não aceitava partir de um fundamento metafísico,
Hermeneutica sacre sive methodus exponendarum sacrarum littera- de modo que seu interesse estava em destacar a historicidade da
rum (1654). Todavia, a interpretação já existia no Antigo Testamento existência humana. Para tanto, Dilthey usa uma fórmula triádica:
(José do Egito interpretando os sonhos do faraó), nas regras para experiência, expressão e compreensão. Distinguindo Erfahrung
se compreender corretamente a Torah, na forma de os Evangelhos (experiência em geral) de Erlebnis (experiência individualizada),
serem propagados na cristandade dentro de um sistema prévio de considera esta o “contato imediato com a vida”, anterior à separação
compreensão, sendo a teologia também um modo histórico de in- sujeito-objeto. É, pois, a Erlebnis que sustenta — e dificulta, por
terpretação. Para a literatura, esse legado exegético manifestou-se sua inapreensibilidade — sua teoria da compreensão histórica. A
nos estudos que lhe buscam um sentido previamente dado, que a expressão (Ausdruck), talvez melhor traduzida por objetificação da
informa e determina sua compreensão. mente24, permitiria fugir à introspecção, garantindo o lado objetivo
Como metodologia filológica, a hermenêutica sofre a influência das ciências humanas. Finalmente a compreensão seria a captação
23 (Cf. PALMER 1986) 24 (Cf. PALMER 1986:118)
196 Maria da Glória Bordini Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica 197

plena da experiência particularizada da vida, em que o sujeito se de língua francesa, com ênfase em Paul Ricoeur, ambas com forte
redescobre no outro, não se comparando a ele, mas transpondo-o repercussão sobre os estudos literários.
para si. Como o homem não possui uma essência imutável, só pode
autocompreender-se pelas objetificações da vida que o precedem, 3.1 A hermenêutica de Heidegger a Gadamer e Jauss
as quais lhe facultam o poder de decidir e mudar. Daí o conceito de
A hermenêutica tomou um impulso inteiramente novo na
sentido para Dilthey: “aquilo que a compreensão capta na interação
Alemanha, com o interesse de Heidegger de constituir uma on-
essencial do todo e das partes”, ocorrendo no interior do chamado
tologia que atingisse o fundamento último do Ser. Valendo-se da
círculo hermenêutico entre história e indivíduo, visão de mundo
apreensão pré-conceitual de Husserl, dedica-se não à perquirição
(universal) e vivências (particulares).
da consciência transcendental, mas do Ser-aí, o Dasein, tal como
Para a literatura, as concepções de Dilthey tiveram longo al-
aparece na sua historicidade e temporalidade. Para ele, a questão era
cance. Como ele valorizava as artes como objetivação da mente, e as
a primordialidade do Ser situado, não a da consciência, como para
da linguagem como as mais capazes de manifestar a vida interior do
Husserl. Dessa forma, sua fenomenologia não é metodologicamente
homem em sua forma, a literatura constituiria um corpo de objetos
tributária de Husserl, mas uma outra, que estaria na base do seu
fixos para exercer o potencial compreensivo das ciências humanas,
intento de fazer a hermenêutica do Dasein.
o que lhe realçava o valor. Com isso, a interpretação da literatura é
Partindo da acepção grega de fenômeno como aquilo que se
situada na esfera da autocompreensão histórica do homem, embora
revela à luz, pensa a fenomenologia como o modo de deixar as coi-
sendo encarada equivocadamente por ele como reconstrução do ato
sas aparecerem como são — não por constituição da consciência —
de criação do autor, nas águas de Schleiermacher. Os reflexos da teoria
e sim pelo logos, a fala, pois a linguagem é que faz aparecer aquilo
diltheyana da Weltanschauung se estenderam às sociologias literárias,
que ela diz. O pressuposto é que a realidade se mostra na palavra e
como a de Lukács, sendo reconfigurados pelas correntes marxistas,
a investigação do Ser, que o fenômeno deixa transparecer, pode ser
mas sob o peso da determinação histórico-econômica da vida.
efetivada pela compreensão da existência, uma vez que o Ser vai se
Como são múltiplos os caminhos que a hermenêutica seguiu ao
manifestando enquanto se existe. Essa atitude leva a outra noção de
longo do século XX, desaguando nos desenvolvimentos mais recen-
hermenêutica: “o poder que torna possível a revelação do ser das
tes, pragmatistas, como em Rorty, em 198225, ou semioticistas, como
coisas e em última instância das potencialidades do próprio ser do
no caso de Umberto Eco, em 199026, uma opção se faz imprescindí-
Dasein”27. Para Heidegger, a compreensão seria ontologicamente
vel entre os vários pensadores que se ocuparam do assunto. Faz-se a
anterior aos atos existenciais. Consistiria na apreensão das possibi-
seguir uma seleção, obrigatoriamente redutora, entre duas grandes
lidades que se têm de ser na existência concreta de cada um, num
vertentes: a de língua alemã, salientando Hans-Georg Gadamer, e a
projetar-se do aqui para o futuro, sob a consciência da finitude, não
25 (Cf. s.d)
26 (Cf. ECO 1995) 27 (Cf. PALMER 1986:135)
198 Maria da Glória Bordini Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica 199

de um ponto de vista metafísico, mas mergulhado no mundo. será a poesia, que se desinteressa do útil, a linguagem onde o ser se
É importante acentuar que “mundo”, para Heidegger, é a manifesta, como ele afirma em seu estudo sobre Holderlin29.
totalidade em que o ser humano está imerso, é pessoal, sempre pre- Nessa perspectiva heideggeriana é que se constitui a obra fi-
sente e anterior a qualquer separação sujeito-objeto. Está junto com losófica de Hans-Georg Gadamer, de valor exponencial para a her-
as coisas que o formam e é o fundo para a compreensão. Quando menêutica literária. Em Wahrheit und Methode (Verdade e método),
aquilo a que se está acostumado de repente rompe com sua costu- ele tenta refletir sobre como é possível a compreensão na existência
meira invisibilidade e se mostra: eis como se compreende o sentido humana e como é compreensível a experiência da obra de arte
de algo. Nele a temporalidade e historicidade do ser estão sempre em horizontes histórico-existenciais que lhe dão significação para
presentes, é onde o ser se mostra como significação, compreensão e além daquela intentada pelo autor ou pelo leitor. Como Heidegger,
interpretação. ele rejeita a visão tecnicista e racionalista da modernidade. Para
Significação (Bedeutsamkeit) é o termo que Heidegger usa para Gadamer, a verdade não se atinge pelo método, uma vez que este a
nomear esse fundamento ontológico da compreensão. Está na base da predetermina. Se o Ser se manifesta na historicidade e na linguagem,
linguagem, como uma totalidade que possibilita estabelecer sentidos, é a dialética, à maneira de Sócrates e não tanto de Hegel, que pode
vem do mundo e permite ao homem a fala, o dizer como as coisas são. escutá-lo, pois pelo diálogo se acessa aquilo que já está pré-doado
A interpretação seria apenas a explicitação desse como elas se dão, na totalidade que o Ser é.
pela linguagem. Por essa razão, ele, no desenvolvimento posterior de Assim como Heidegger, ele se preocupa com a arte, que sem-
sua obra, irá valorizar a linguagem como “morada do ser”. pre exige interpretação, e com a história, pelo problema da distân-
A interpretação, portanto, não pode ser exercida sem pressu- cia temporal que medeia a interpretação. Seu ponto de partida é
postos. O surgimento do objeto não pode ser entendido como au- a negação de que a verdade preexista ao processo interpretativo.
toevidente, pois o que é apreensível sempre possui um contexto na Não há como aceder a ela sem pressupostos. Todo o fenômeno
existência e é pré-doado por esta. As consequências para os estudos hermenêutico se apoia em expectativas de sentido já pertencentes
literários foram, de certa forma, demolidoras. Se a compreensão e ao horizonte de aparecimento do objeto. Como em Heidegger, a
a interpretação precedem a relação sujeito-objeto, a atenção à his- interpretação não ocorre fora do espaço aberto pela compreensão.
toricidade e à linguagem avultam, assim como se torna necessário Ela atualiza as possibilidades de ser e as articula à totalidade do
abandonar a noção de que a verdade do texto poderia ser alcança- campo compreensivo, de modo a garantir a sua unidade. Nas pala-
da por uma análise imanente, pondo o mundo “entre parênteses”. vras de Gadamer, “quem quer compreender um texto realiza sem-
Assim também seria preciso repensar a linguagem, pois ela tanto pre um projetar. Logo que aparece no texto um primeiro sentido,
revela quanto oculta o ser. Ela o falseia quando se ocupa com a sua o intérprete projeta em seguida um sentido do todo. Naturalmente
utilidade e não consigo mesma, em que a coisa se doa . Por isso,
28
o sentido só se manifesta porque se lê o texto de determinadas
28 (Cf. HEIDEGGER 1985a) 29 (Cf. HEIDEGGER 1985b)
200 Maria da Glória Bordini Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica 201

expectativas relacionadas por sua vez a algum sentido determina- da tradição, numa cadeia de perguntas e respostas que circulam
do”.30 O projeto interpretativo vai se reformulando à medida que o incessantemente, em que não há instâncias previamente dadas.
intérprete se aprofunda no sentido. Entre intérprete e obra trava-se um diálogo sem imposições
Para Gadamer o diálogo é o que caracteriza a compreensão. de parte a parte. Estar em diálogo pressupõe estar aberto a ser
Diz ele que transformado por ele, porque do contrário, se um dos dialogantes
impõe o seu discurso, não há diálogo. Para Gadamer, o diálogo se
só compreendemos o que compreendemos como resposta a uma dá numa fusão de horizontes. Cada dialogante possui um horizonte
pergunta [...] precisamos ter compreendido anteriormente uma prévio, que se funde com o do outro no ato dialogal. Nessa fusão,
questão, para que possamos dar uma resposta a ela ou para que cada participante se determina pelo modo como se funde ao outro,
possamos compreender algo como resposta a ela. [...] Pertence à num jogo regrado, mas liberador. Diz Marco Antonio Casanova que
dialética de pergunta e resposta, que toda pergunta seja ela mes- diante da obra assumimos o próprio jogo que ela institui:
ma, em verdade, uma vez mais uma resposta que motiva uma
nova pergunta. Assim, o processo do perguntar e do responder Deixamo-nos guiar aqui incessantemente pela expectativa de
aponta para a estrutura fundamental da comunicação humana, sentido e pelo esboço de totalidade, de tal modo que acolhemos
para a constituição originária do diálogo. Essa estrutura é o fenô- o aceno da arte para que perguntemos por seu significado. [...] É
meno central do compreender humano. 31
preciso seguir as orientações fornecidas pelo próprio horizonte
de mostração da obra e escapar incessantemente da tendência de
Na obra de arte, a tendência já foi a de procurar um sentido se lançar para fora desse horizonte. [...] Dar voz à arte não signi-
fora dela, para o qual ela apontaria. Gadamer não aceita a ideia de fica outra coisa senão abrir novas possibilidades compreensivas
representação (Vorstellung) e sim a de apresentação (Darstellung): que não põem fim ao jogo, mas o mobilizam cada vez mais.32
para ele a obra diz, e o que diz se encontra nela mesma. Intenção
autoral e representação metafórica do mundo não lhe são admis- Segundo Gadamer, a hermenêutica da arte tem de se defrontar
síveis. Fenomenologicamente, ele vê a hermenêutica como uma com o fato de que entre a obra e seu intérprete há uma “simultanei-
relação intencional entre o horizonte do intérprete e o da obra. Há dade absoluta que se mantém inconteste apesar da crescente lucidez
que perguntar para obter uma resposta (embora a resposta já esteja da consciência histórica”33. Não se pode reduzir a obra ao momento
na questão formulada pela obra), pois o apresentado só se revela no em que surgiu, nem ao de sua leitura. É como se estivesse num pre-
movimento de sua apresentação. O que acontece é que algo significa sente próprio, relacionada com sua origem e intenções de seu autor
no evento mesmo da significação, mas está contido na historicidade e de seu intérprete de modo peculiar. Esse modo relacional é o da

30 (GADAMER 1984:333) 32 (In GADAMER 2010:XVI)


31 (GADAMER 2010:95) 33 (GADAMER 2010:1)
202 Maria da Glória Bordini Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica 203

tradição, não só constituída de textos, mas de instituições e modos de por esse ato de integração, na compreensão de si mesmo. O intér-
vida. A atualidade da obra seria sua abertura para integrar novos ho- prete não se concentra no texto, mas dirige-se à questão posta por
rizontes, lançando-se além das fronteiras temporais. “A obra de arte este, ao longo da experiência do texto. Assim, ele torna o texto exis-
diz algo a alguém, e isso não apenas como um documento histórico tencialmente atual para si, porque se ocupa das questões do mesmo,
diz algo ao historiador — ela diz algo a cada um como se isso fosse imbricadas nas suas próprias.
dito expressamente a ele, enquanto algo atual e simultâneo”34. Diante Jauss utiliza a noção de horizonte de Gadamer como “horizon-
dela, o intérprete é colhido pelo seu “encantamento”, a descoberta de te de expectativas”, incluindo neste reações, pressuposições, conhe-
algo encoberto, efetuada pelo modo como ela o diz, e compreende a cimentos prévios, superstições, que o encontro com o texto tanto
si mesmo nesse encontro. Não se trata de uma questão de pensar ou pode confirmar como negar. No último caso, estabelece-se entre
ajuizar esse modo de dizer, mas deixar-se compreender por ele. texto e receptor uma distância, que Jauss chama de “distância estéti-
ca”. Esta irá determinar a história literária: ou o público transforma
seu horizonte, para aceitar a obra, ou esta permanece em estado de
3.2 A teoria recepcional de Hans-Robert Jauss
latência até que surja um horizonte para ela. A força da literatura
Quando Jauss, que estudara com Gadamer, verificou a inadequação estaria nessa função emancipatória da distância estética, de alte-
da educação literária alemã para dar conta das questões sócio-his- ração dos horizontes de expectativa. Dessa forma, a historicidade
tóricas e culturais de seu tempo, seja pela dominância em seu meio dos textos seria preservada pela resposta dos públicos, rompendo a
do New Criticism importado ou do antigo positivismo historicista, barreira entre arte e vida, entre o antigo e o novo, que o formalismo
defrontou-se com o problema das relações entre passado e presente, não conseguira ultrapassar. E o historiador da literatura poderia re-
já colocado por seu mestre como fusão de horizontes e dialética constituir os horizontes mutáveis das expectativas do público, para
da pergunta e da resposta. Voltou-se para o formalismo russo e o acompanhar as alterações de sentido que a obra sofre.
marxismo, para equacionar imanência e transcendência, não na Jauss expressamente reconhece sua dívida para com Gadamer,
direção de Tynianov, que postulava a evolução das séries literárias por seu princípio de ver no “impacto histórico o acesso a todo o
sem relação com a história extraliterária, ou de Lukács, que via a entendimento histórico” e por esclarecer “o processo controlável da
obra como reflexo da consciência da humanidade35. ‘fusão de horizontes’”, mas também assinala suas divergências: se
Valendo-se do que aprendera com Gadamer, estabeleceu os há uma suposta “superioridade” e “liberdade” de origem do texto
fundamentos de sua Estética da Recepção. Se o fenômeno herme- clássico, que resgataria o passado, como poderia essa posição ser
nêutico abrange o mundo familiar do intérprete e o desconhecido conciliada com a concretização progressiva do sentido e como “a
da obra, o receptor não pode escapar de seus limites, preocupações identidade de sentido” da pergunta original, que mediaria origem
e preconceitos, que são trazidos à compreensão do texto, resultando, e presente, poderia relacionar-se com a “atitude produtiva da com-
preensão na aplicação hermenêutica”36? Todavia, não se afasta de
34 (GADAMER 2010:6)
35 (Cf. JAUSS 1993) 36 (Cf. JAUSS 1984:XXXVI)
204 Maria da Glória Bordini Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica 205

Gadamer quando este entende a hermenêutica como “a tarefa de nesse processo de identificação, que proporcionaria a cada indiví-
interpretar a tensão entre o texto e o presente como um processo no duo a avaliação e a alteração das regras que organizam a sociedade.
qual o diálogo entre autor, leitor e novo autor lida com a distância A obra, ao pôr determinadas normas em circulação, reforçaria ou
temporal no ir e vir da questão e da resposta, da pergunta original, não modelos vigentes, ou sugeriria outros. Não seria, entretanto,
da interrogação atual e da nova solução, e concretiza o sentido de doutrinária, portadora de “mensagens”, mas atuaria através do
maneiras sempre diferentes e, portanto, mais ricas”37. modo como, na obra, os eventos, os gestos e atitudes e o sistema
Para Jauss, a obra de arte, ao fundir-se com o horizonte de ex- de ideias que os determinam entram num diálogo — que deve ser
pectativas do leitor, afasta-o de sua familiaridade com as coisas e o prazeroso — com o horizonte de expectativas de quem lê. Como
provoca a olhar o mundo de outra perspectiva, que poderia afetar enfatiza Jauss, “é só no nível reflexivo da experiência estética que,
a sua praxis. A literatura não seria representativa, não absorveria as na medida em que conscientemente adota o papel de observador e
condições históricas ou sociais de sua origem, mas ofereceria mo- também se compraz nele que alguém terá prazer estético e entende-
delos, padrões de atuação a que o leitor responderia. Envolvendo- rá com prazer as situações da vida real que reconhece ou que têm a
se com o texto, o leitor reagiria às normas nele postas em ação e ver consigo”38.
reconsideraria as suas. É ao prazer operado pelo texto, portanto, que Jauss chama de
Esse efeito emancipatório dá-se por uma hermenêutica que experiência estética. Ela depende de uma fruição compreensiva, ou
abarca, como em Gadamer, três momentos: o da compreensão, o da seja, de gostar de entender, e de uma compreensão fruidora, ou seja,
interpretação e o da aplicação. A compreensão significa descobrir as de compreender o que se está gostando. Nesse sentido, tal experiên-
perguntas a que o texto se constitui como resposta, acompanhando cia se desdobra em três atividades coincidentes: a poiesis, a aisthesis
sua estruturação à medida que ele se desenvolve. A leitura inter- e a katharsis. A primeira é o prazer do leitor ao fazer-se coautor da
pretativa é retrospectiva: toma o que foi compreendido e retorna obra; a segunda é o efeito de renovação da percepção estimulado
ao início; ou vai das partes para o todo, para esclarecer o que ficou pela sua não familiaridade; a terceira seria uma reação afetiva que
obscuro ou em aberto. A leitura reconstrutiva é a que recupera a re- deslocaria crenças habituais e liberaria a mente para novas possibi-
cepção que a obra teve e que foi conformando e transformando seu lidades, alterando a orientação das ações do indivíduo.
sentido ao longo do tempo. Esse é o momento em que o horizonte A identificação com o herói ou o tema, realizada no plano das
do leitor se encontra e dialoga com o horizonte da obra, podendo emoções, permitiria ao leitor que experimentasse o texto num plano
aceitar as normas que ela antecipa ou contesta. Daí chamar-se essa existencial. Haveria cinco modalidades de identificação prazerosa:
atividade de aplicação, a atitude decorrente de transladar os mode- a associativa, em que o leitor é desafiado a entrar no jogo da obra;
los com que o leitor se identifica para a ação prática. a admirativa, em que o herói assume proporções ideais, tornan-
O potencial de experiência vivencial da literatura residiria do-se modelar; a simpatética, em que o leitor reconhece no herói

37 (Cf. JAUSS 1984:XXXVI) 38 (Cf. JAUSS 1984:5)


206 Maria da Glória Bordini Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica 207

um semelhante; a catártica, em que o leitor pode se separar de sua em falar”41. Para Ricoeur, a hermenêutica teoriza as regras que pre-
identificação e analisar o que lhe foi apresentado; e a irônica, em que sidem a uma exegese. Portanto, “o símbolo é uma expressão linguís-
a identificação esperada é proposta, para depois ser ironizada ou tica de duplo sentido que requer uma interpretação; a interpretação
recusada, levando à reflexão. é um trabalho de compreensão visando a decifrar os símbolos”42.
Embora a estética da recepção tenha recebido críticas, especial- Ele desenvolve sua argumentação a partir da anterioridade da
mente por postular, na etapa da interpretação, uma espécie de leitor hermenêutica em relação à fenomenologia. Convoca, em primeiro
ideal, que teria habilidades de análise não encontráveis em qualquer lugar, a exegese como aquela atividade que visa compreender um
indivíduo, elitizando a atitude compreensiva, a qual já seria suficien- texto baseada no fundamento do que ele quer dizer. Dessa forma,
te para fornecer a experiência existencial que a hermenêutica advo- ela implica uma teoria do signo e da significação, mas esta é muito
ga, a teoria de Jauss teve o mérito de chamar a atenção sobre o polo mais complexa do que a puramente linguística, porque buscar o
até então pouco considerado, o da leitura e seus efeitos sociais. Além fundamento dos sentidos supõe abreviar uma distância temporal ou
disso, ao retomar a dialética da pergunta e da resposta gadameriana cultural e equilibrar leitor atual e texto estranho, incluindo, nesse
para estabelecer a atualização do sentido nos horizontes de expecta- processo, a autocompreensão historicamente situada desse leitor.
tiva históricos, deu uma resposta ao dilema do reflexo lukacsiano da Ricoeur adverte que, desde Aristóteles, em seu Da Interpretação
sociedade na obra, incluindo origem, obra e intérprete num círculo (Peri hermeneias), a hermeneia abrange todos os discursos signi-
hermenêutico de alta produtividade. ficantes, não apenas os que detêm um segundo ou mais sentidos,
como os alegóricos ou mitológicos. O discurso mesmo é hermeneia,
3.3 A interpretação segundo Ricoeur porque interpreta o real, diz algo sobre algo. Daí ser esse, no enten-
der de Ricoeur, o princípio mais remoto a relacionar compreensão
O filósofo Paul Ricoeur reúne tanto a tradição alemã da fenomeno-
e interpretação: o discurso apreende o real por meio de expressões
logia de Husserl quanto a hermenêutica de Heidegger, numa investi-
significativas e não por impressões provenientes dele.
gação voltada para a equivocidade dos textos e, fundamentalmente,
Todavia, a exegese não seria suficiente para fundar uma herme-
para o campo do simbólico. Diz ele que a questão é como os seres
nêutica geral, não fossem Schleiermacher e Dilthey, com suas filologia
humanos criam significações e por que na sua fala não há unidade.
e ciências do espírito, que relocalizaram a questão da interpretação
Na região em que o duplo sentido se instala, está o símbolo, quando
num quadro epistemológico, o qual, porém, não a podia conter, já que
“um outro sentido ao mesmo tempo se revela e se oculta num sen-
tido imediato”39. Por isso, para ele, “a interpretação é a inteligência a interpretação pertence ao campo da compreensão, e compreender
do duplo sentido”40. O campo hermenêutico seria o que vai além da é transportar-se de uma vida que se exprime e assim se objetiva para
perspectiva psicanalítica de que o “desejo frustra a palavra e fracassa outra vida, que capta essas significações e as compreende, superan-
do sua situação histórica. Segundo Ricoeur, o problema estaria “na

39 (RICOEUR 1977:18). 41 (RICOEUR 1977:17).


40 (RICOEUR 1977:18). 42 (RICOEUR 1977:19).
208 Maria da Glória Bordini Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica 209

relação entre a força e o sentido, entre a vida portadora de significação reeducação do olhar, subordinando o conhecimento histórico à
e o espírito capaz de encadeá-los numa sequência coerente”43. Sem a compreensão ontológica, sem responder de que modo a compreen-
significação da vida, a compreensão não seria possível. são histórica deriva dessa compreensão originária. A resposta esta-
É a fenomenologia, no seu entender, que poderá fundamentar ria em partir das formas derivadas da compreensão, para entender
a hermenêutica. Uma das maneiras de fazê-lo é pela ontologia as marcas dessa derivação, e isso se daria investindo no plano da
da compreensão de Heidegger, em que o compreender não é linguagem, por uma semântica das significações polissêmicas, ou
um método de conhecer, mas um modo de ser. “O problema seja, simbólicas. Seu intento é mostrar que compreender o sentido
hermenêutico torna-se, assim, um domínio da analítica desse ser, o múltiplo das expressões equivale a um aspecto da compreensão de
Dasein, que existe compreendendo”, afirma Ricoeur44. Para tanto, a si. Trata-se de “um existente que descobre, pela exegese de sua vida,
pergunta deve ser dirigida não ao binônio sujeito-objeto, mas ao ser, que é posto ao ser antes mesmo que se ponha ou se possua”46.
esse Dasein que existe compreendendo. Segundo ele, a exegese já tornara familiar a ideia de que um
Nesses termos ontológicos, a fenomenologia do último Husserl texto tem vários sentidos interrelacionados aos quais acede um
efetua uma crítica ao objetivismo que havia na tentativa de Dilthey outro sentido espiritual. O elemento comum em várias teorias
de construir um método para as ciências humanas e com isso abre mais modernas da interpretação, de Nietzsche a Freud, seria uma
caminho para uma ontologia da compreensão, pelo conceito de “arquitetura do sentido”, que mostra ocultando, ou seja, o campo da
mundo-da-vida. Quando Husserl, no início de sua obra, reduzia simbólica. Para ele, símbolo é “toda estrutura de significação em que
o mundo, e, portanto, o ser, ao sentido do ser, como correlato da um sentido direto, primário, literal, designa, por acréscimo, outro
intencionalidade, estava fadado ao fracasso. Em sua última obra, ele sentido indireto, secundário, figurado, que só pode ser apreendido
admite um ser imerso no mundo, que o precede como campo de através do primeiro”47. Seriam campo da hermenêutica os símbolos
significações, que está antes do conhecimento e seu sujeito episte- cósmicos, ligados à fenomenologia das religiões, como em Mircea
mológico, que vive uma vida “anônima”. A historicidade vai desig- Eliade, os oníricos, objeto da psicanálise de Freud, e as criações
nar o modo como o existente “está com” os existentes em Heidegger: poéticas, conduzidas por imagens sensoriais. Em comum, teriam o
a potência da vida de transcender a si mesma estrutura o ser finito. lastro linguístico e por ele poderiam ser compreendidos.
A compreensão, o “estar com”, torna-se “um aspecto do ‘projeto’ do Uma hermenêutica como ele propõe investigaria as formas
Dasein e de sua ‘abertura ao ser’”, como observa Ricoeur45. simbólicas e as estruturas simbólicas, para depois confrontar estilos
Essa seria uma forma de relacionar a fenomenologia à herme- de interpretação e criticar os sistemas teóricos que os informam,
nêutica. Entretanto, Ricoeur se propõe a explorar uma via diferente, descortinando a variedade de métodos subordinada à estrutura das
pois vê na hermenêutica de Heidegger uma forma privilegiada de teorias. Assim, poderia inserir a fenomenologia husserliana, no que
tem de menos polêmico, que é a teoria das expressões significantes
43 (RICOEUR 1979:9)
44 (RICOEUR 1979:9) 46 (RICOEUR 1979:14)
45 (RICOEUR 1979:12) 47 (RICOEUR 1979:15)
210 Maria da Glória Bordini Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica 211

(descartando a exigência de univocidade de Husserl), na herme- em marcha, como em Hegel. Uma outra hermenêutica estaria na
nêutica. É dessa maneira que Ricoeur enfrenta o problema atual do fenomenologia das religiões, que, segundo Ricoeur, vai mais longe
desmembramento do falar humano. que a arqueologia psicanalítica ou a teleologia hegeliana, porque
Ricoeur confessa que uma análise linguística que lidasse com as despossui o sujeito de uma arché ou de um telos de que possa dispor.
significações como um todo fechado acabaria por erigir a linguagem Segundo Ricoeur, “o sagrado interpela o homem e, nessa interpela-
como um absoluto, o que negaria a natureza do signo de “valer por”. ção, anuncia-se como aquilo que dispõe de sua existência, porque a
Por isso, a linguagem, como significação, tem de remontar à existên- põe absolutamente, como esforço e como desejo de ser”49.
cia. A análise semântica se integraria à ontologia pela reflexão, “o elo É assim que essas várias hermenêuticas se enraízam na
entre a compreensão dos signos e a compreensão de si”48. Se a inter- ontologia da compreensão. Cada uma revela que o si depende da
pretação é um modo de vencer uma distância ou estranhamento, o existência. É nesse sentido que se poderiam articular essas diversas
intérprete torna seu o que é outro e amplia a compreensão de si. funções existenciais numa unidade, reconhecendo a dialética dessas
Por isso a fenomenologia pode ligar-se à hermenêutica, com hermenêuticas e o conflito das interpretações no campo da simbó-
a condição de alterar a noção de Cogito de Husserl. A noção de lica. Para Ricoeur, somente os símbolos “são portadores de todos os
consciência que se dobra sobre si mesma, conhecendo-se ao ser vetores, regressivos e prospectivos, que as diversas hermenêuticas
consciência de, precisa, nesse processo de reflexão, apropriar-se dissociam”. É por essa razão que ele sustenta “que a existência de
dos atos de sua existência, ou será um lugar vazio. O “eu” não pode que pode falar uma filosofia hermenêutica permanece sempre uma
saber de si senão nas expressões da vida que o tornam objetivo para existência interpretada”50.
si. O problema é que a consciência imediata pode ser falsa, como
Nietzsche, Marx e Freud já provaram, e é necessário superar a má 4. Estudos literários, fenomenologia e hermenêutica
compreensão.
O consórcio entre fenomenologia husserliana e hermenêutica heideg-
Os meios para tanto estão na reflexão sobre, em primeiro lu-
geriana, seja na visada de Gadamer ou na de Ricoeur, traduz-se para os
gar, a psicanálise, pois contesta a pretensão da consciência de ser a
estudos literários numa série de posições relacionadas com a história,
origem do sentido, mostrando seu enraizamento nas pulsões vitais.
o autor, a obra e o leitor, bem como com o tecido conjuntivo que une
A existência a que a psicanálise dá acesso é a do desejo, a existência
esses temas, a linguagem. A literatura, desse ponto de vista, não pode
como desejo, que se manifesta por meio de uma arqueologia do
ser considerada em si mesma, como se suas significações fossem en-
sujeito. Outra hermenêutica, a da fenomenologia do espírito, trans-
gendradas pelo sistema da língua e não houvesse um sujeito histórico
porta a origem do sentido não para o passado do sujeito, mas para
que o acionasse, seja ele o autor ou o leitor. Derivam desse posiciona-
seu futuro, do Deus que virá. Nela cada figura encontra seu senti-
mento outras questões a afetarem as modalidades de conhecimento e
do não ao regredir ao arcaico, mas ao compreender-se por outra
figura, num movimento que a leva para fora de si, para um sentido
49 (RICOEUR 1979:23)
48 (RICOEUR 1979:18) 50 (RICOEUR 1979:24)
212 Maria da Glória Bordini Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica 213

de fruição do texto literário. Sem a moldura do “mundo”, na acepção Num texto, permite separar as forças significativas em conflito nele,
de Heidegger, o Ser-aí não se mostra e não há compreensão. Assim que o estruturam, mas cujo sentido não pode ser contido nos seus
igualmente sem a tradição, nos termos de Gadamer, não é possível limites. É o que ele faz com Husserl e Heidegger, ao desconstruir
entender o diálogo presente-passado que a obra e o autor/leitor tra- o que chama de metafísica da presença em ambos, quando apenas
vam. Isso significa que conhecer a literatura ou usufruí-la ocorrem pela não presença é que a presença pode vir a ser51.
sempre de forma situada no tempo e espaço, na história, na sociedade A exigência de inscrever a literatura, seus fenômenos e inter-
e na cultura. A pretensão de ler sem referências cai por terra, o que pretações num horizonte existencial, que se pode fazer retroceder a
predetermina uma educação da sensibilidade, com reflexos sobre a Husserl e Heidegger, surtiu efeitos profundos na consideração histó-
epistemologia literária e sobre o ensino de literatura. rica do objeto literário, não mais visto como resultado para sempre
Por outro lado, se o que importa é a interpretação dos senti- fixo de intenções autorais ou de influências do meio, recuperáveis
dos dos textos, num plano pessoal e existencial, isso implica num pela busca da origem. Admitindo-se a história como séries paralelas
exercício constante de reflexão sobre a consciência de si que atua de eventos descontínuos, cuja causalidade é obra do observador,
no horizonte compreensivo da existência. Tal reflexividade, entre- uma reorganização da historiografia se fez necessária, obrigando
tanto, não pode incidir na falsa consciência, como sugere Ricoeur, a repensar noções como períodos e a recortar pontualmente os
essa consciência que acredita ser a origem do sentido, quando é momentos a serem pesquisados, levando em conta a flutuabilidade
sabido que há fatores como o desejo, a economia, a dominação, que da própria obra como estrutura em constante reestruturação na sua
desviam as expressões da vida vivida de si mesmas, lançando-as na imersão na vida.
ilusão. Para a literatura, a tarefa é desvendar o Ser na linguagem, Outra consequência das revisões da fenomenologia e da her-
renunciando à utilidade e, pelo trabalho da forma, deixando-o menêutica é encontrável no tratamento dos símbolos, elemento cha-
mostrar-se. Não quer dizer que o texto literário não seja interessa- ve do texto literário e de suas interpretações. Deixando de ser enca-
do — é que seus interesses não podem ser transparentes, também rado como imbuído de um sentido metafísico, que lhe conferiria seu
devem mostrar-se. caráter multívoco e enigmático, passou a ser estudado nos planos
Daí a pertinência da tarefa de desconstrução empreendida em que se constitui na existência humana, com os instrumentos
por Derrida, ao evidenciar a impermanência e indecidibilidade da psicanálise, da antropologia, da fenomenologia das religiões, da
dos sentidos, seu deslocamento, dentro do pensamento diferencial história cultural, o que levou à explicitação das premissas que go-
característico do estruturalismo saussureano. Desconstruir uma vernam sua decifração e sua radicação em situações humanamente
oposição é demonstrar que ela não é natural, e, sim, uma constru- determinadas.
ção, produzida por discursos que nela se apoiam. Sua desconstrução A virada das investigações formais para as de conteúdo, como
não significa destruí-la, porque, afinal, o sentido se institui pela ocorrem no prestígio recente dos Estudos Culturais e Pós-Coloniais
oposição, mas dar-lhe uma estrutura e funcionamento diferentes. 51 (Cf. DERRIDA 1972)
214 Maria da Glória Bordini Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica 215

na elucidação da literatura, igualmente deriva da revalorização do BORDINI, Maria da Glória. 1990. Fenomenologia e teoria literária. São Paulo:
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sentido situacional, a partir das hermenêuticas existenciais. Quando
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pós-coloniais num mundo globalizado. Nas teorizações de um Homi
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as negociações e o hibridismo em culturas colonizadas após sua GADAMER, Hans-Georg. 2010. Hermenêutica da obra de arte. Seleção e tradução
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a classificação da figura, desvinculadas dos seus efeitos semânticos HEGEL, G.W.F. 1992. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis, RJ: Vozes.

e pragmáticos. Requerem um olhar demorado sobre o leito linguís- HEIDEGGER, Martin. 1985a. El origen de la obra de arte. In: —. Arte y poesia. 4ª
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tico em que o sentido repousa, a ser despertado por um intérprete
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que o faz seu porque é capaz, não de dominá-lo, mas de escutá-lo México: Fondo de Cultura Economica.
e com ele dialogar. No ato dialogal, como acentua Gadamer, está a HUSSERL, Edmund. 1969. Ideas: General Introduction to Pure Phenomenology. 5th
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Origens e desenvolvimento da Nova Crítica

A Nova Crítica foi o movimento que se destacou nos meios acadê-


micos norte-americanos, com início na década de vinte do século
passado, liderado em grande parte por um grupo de professores
universitários, na maioria poetas, que viam os modelos de crítica
literária então em vigor como superficiais e inadequados para uma
real compreensão do potencial semântico do objeto literário. O
que eles tinham em mente era principalmente a crítica genética e
impressionista muito praticada nos meios acadêmicos e dissemi-
nada em periódicos especializados. A primeira colocava ênfase na
investigação das origens da obra literária, sua historiografia, filo-
logia e o papel do autor como fonte de autoridade na constituição
do significado do texto; a segunda se voltava para as experiências
subjetivas do leitor ou crítico durante o processo interpretativo.
As duas abordagens eram falaciosas, afirmavam os novos críticos,
pois em ambos os casos, “o poema em si, como objeto específico de
julgamento crítico, tende a desaparecer”1. Desta forma, o objetivo
da Nova Crítica era trazer para o campo dos estudos literários mé-
todos e práticas que valorizassem o que eles acreditavam ser o real
objeto de investigação literária, qual seja, o texto, e não elementos

1 (WIMSATT, JR.; BEARDSLEY 1949:31). “…the poem itself, as an object of specifi-


cally critical judgment, tends to disappear.”
220 José de Paiva dos Santos Capítulo 6 . A Nova Crítica 221

extrínsecos como biografia, história, influências e efeitos sobre o lei- literários em universidades pelos Estados Unidos, com publicação
tor. Para os novos críticos, a intenção do autor e as implicações so- de livros-textos e mudanças em currículos escolares. Vários perió-
ciais da obra não tinham absolutamente relevância alguma durante dicos especializados surgiram durante este período: The Criterion
o exercício crítico, o qual deveria se concentrar no texto literário em (1922-39), Scrutiny (1932-53), na Inglaterra, e o Southern Review,
si, objeto a ser dissecado e investigado para então poder ser devi- Kenyon Review e Sewanee Review nos Estados Unidos. O terceiro
damente compreendido. A implementação de técnicas formalistas estágio, Leitch conclui, seria a fase de perda do impacto dos anos
de análise textual se tornaria, assim, o carro-chefe do movimento, anteriores, devido principalmente ao ataque de diversas frentes,
com destaque acentuado na leitura cerrada (close reading) do texto entre elas, críticos de tendências Marxistas na década de quarenta e
literário, análise minuciosa de figuras de linguagem, tensões, para- cinquenta. Para os oponentes ao movimento, a tentativa de evitar o
doxos, figuras retóricas e diferentes níveis de significado. relativismo a todo o custo havia levado os novos críticos a aderirem
O crítico estadunidense Vincent B. Leitch delineia três fases a princípios positivistas e científicos que transformavam o texto em
no desenvolvimento da Nova Crítica, o qual vai desde as primei- um mero artefato, uma estrutura a ser examinada a distância com
ras manifestações na década de vinte até o seu gradual declínio no base em um conjunto de normas específicas. A forte oposição, fato
final da década de cinquenta. A primeira fase segundo Leitch seria que levou muitos novos críticos inclusive a revisarem algumas de
o esboço dos princípios formalistas que regeriam e popularizariam suas posições, fez, por outro lado, com que surgissem obras com
o movimento em décadas posteriores. Nesta fase, destacam-se a teorizações detalhadas acerca do movimento. Theory of Literature
contribuição de T. S. Eliot, I. A. Richards e William Empson, na (1949), por René Wellek e Austin, The Verbal Icon (1954), por W.
Inglaterra, e John Crowe Ransom e Allen Tate nos Estados Unidos. K. Wimsatt e The New Apologists for Poetry (1956), por Murray
Dotados de um alto conservadorismo em relação às artes, estes Krieger, estão entre as obras que buscavam solidificar os ideais no
críticos viam com ceticismo os avanços da ciência, a qual segundo movimento no cenário acadêmico2.
eles só trazia desarmonia e um falso senso de progresso humano. Portanto, o que se percebe nesta trajetória da Nova Crítica
A literatura, mais propriamente a poesia, poderia resgatar valores é uma acentuada preocupação por parte de seus proponentes em
e princípios em fase de extinção devido à confiança exacerbada revolucionar as práticas vigentes de interpretação literária por meio
no discurso científico. A segunda fase consistiria na populariza- da implementação de mecanismos práticos de leitura, objetivando
ção do movimento com a adesão de um número considerável de formar leitores e críticos capazes de entender as complexidades da
críticos, entre eles figuras que produziriam obras complexas com linguagem literária e saber distinguir o texto verdadeiramente lite-
o intuito de teorizar e fundamentar os princípios do movimento: rário do banal e corriqueiro. Understanding Poetry, publicado pela
René Welleck, Austin Warren, W. K. Wimsatt, Murray Krieger primeira vez em 1938 por Cleanth Brooks e Robert P. Warren tinha
e Cleanth Brooks. Foi durante a década de quarenta que o movi- esta função, qual seja, treinar estudantes universitários a serem
mento se solidificou e se estabeleceu em departamentos de estudos 2 (LEITCH 1988:24-25)
222 José de Paiva dos Santos Capítulo 6 . A Nova Crítica 223

leitores mais eficientes. O livro acabou ganhando popularidade e Princípios e Programas da Nova Crítica

foi adotado por um grande número de universidades, chegando a Uma das preocupações fundamentais dos novos críticos era a deli-
quatro edições. Seu parceiro, Understanding Fiction também obteve mitação de seu campo de estudo e a definição do que seria o real ob-
sucesso semelhante. O que se pretendia era estabelecer uma meto- jeto de investigação do crítico. Como já mencionado, a Nova Crítica
dologia capaz de ser aplicada ao texto literário em qualquer tempo e via como irrelevantes elementos relacionados à vida do autor ou au-
lugar, que transcendesse fronteiras culturais, históricas e de gênero. tora e as circunstâncias que deram origem ao texto literário. Taxado
Com o advento de teorias pós-estruturalistas na década de sessenta e de falácia intencional, este mecanismo de interpretação e avaliação
o multiculturalismo nas décadas posteriores, a Nova Crítica perdeu da obra funcionava bem no campo da história da literatura, mas não
seu espaço, tornando-se apenas objeto de interesse histórico dentro num exercício aprofundado para a busca do significado do texto. Da
da história da crítica literária ocidental. Porém, como já observado mesma forma, os efeitos sobre o leitor não deveriam ser levados em
por vários historiadores, a perda do espaço não significa que sua consideração, pois como poderia o crítico isolar algo tão particular
influência tenha desaparecido por completo. Na verdade, afirmam como a reação de um indivíduo ao entrar em contato com uma pro-
alguns, muitas das práticas estabelecidas pelos novos críticos como dução literária? Assim, se o objetivo do crítico deveria ser o texto e
leitura cerrada do texto, ênfase em evidência textual e unidade te- não elementos extrínsecos, o que definiria então o objeto de estudo
mática se enraizaram no cenário acadêmico de tal forma que nem do crítico? Em outras palavras, como se distinguiria a obra literária
se percebe que são “um legado de um movimento em particular. de outros enunciados escritos?
Pelo contrário: [parece] serem as condições definitivas e naturais Influenciados principalmente pelas teorias do poeta inglês
da crítica em geral”3. Qualquer estudante de literatura ou crítico, Samuel T. Coleridge em Biografia Literaria (1817), os novos críticos
independente de sua persuasão ideológica, sabe que o que se espera viam o princípio da unidade orgânica como elemento primordial na
de suas análises são mais do que ruminações impressionistas sem caracterização do texto literário. Segundo Coleridge, a obra literária,
base no texto em questão. É neste sentido, portanto, como observa a qual para ele se resumia na poesia, se distinguia de outros discur-
Lois Tyson, que “a Nova Crítica é ainda uma real presença entre nós sos por proporcionar deleite através da relação harmoniosa entre
e provavelmente permanecerá assim por um bom tempo” . Torna- 4
um todo e suas partes componentes: “Porém se a definição procu-
se, assim, importante conhecer em mais detalhes este movimento rada é de um poema legítimo, respondo que deve ser um no qual as
que revolucionou a crítica na primeira metade do século passado e partes mutuamente apoiam e explicam umas às outras; e todas em
que abriu caminho para práticas acadêmicas e docentes que trans- suas proporções harmonizando com e dando suporte ao propósito
formariam o cenário crítico-literário para sempre. e influências do arranjo métrico”5. Coleridge sugere que o poema
3 (CAIN 1984:105). “...a legacy of a particular movement. On the contrary: we feel 5 (COLERIDGE 1993:390). “But if the definition sought for be that of a legitimate
them to be the natural and definitive condition of criticism in general”. poem, I answer it must be one the parts of which mutually support and explain
4 (TYSON 2006:135). “New Criticism is still a real presence among us and probably each other; all in their proportion harmonizing with, and supporting the purpose
will remain so for some time.” and known influences of metrical arrangement”.
224 José de Paiva dos Santos Capítulo 6 . A Nova Crítica 225

é uma entidade na qual o prazer estético é produto da combinação ou uma máquina, no sentido de que todos os elementos precisam
precisa entre elementos linguísticos, retóricos e semânticos. Assim, funcionar para que resultado certo seja obtido. “Julgar um poema é
o enunciado literário, em especial o poema, ao combinar poder e como julgar um pudim ou uma máquina”, observam os Wimsatt e
beleza, assemelha-se a um organismo vivo, “no qual cada parte é ao Beardsley; “Exige-se que funcione... O sucesso da poesia reside na
mesmo tempo o fim e o meio” . 6
relevância de tudo ou quase tudo que é dito; o que é irrelevante foi
Foi com esta visão coleridgiana em mente que os novos crí- excluído, como os caroços do pudim ou os ‘bugs’ da máquina”9. O
ticos delinearam uma definição da obra literária como sendo uma poema ideal é uma entidade constituída de relações complexas res-
entidade hermética, autossuficiente e atemporal. René Wellek, por ponsáveis pela constituição semântica do texto. Qualquer elemento
exemplo, em “The Mode of Existence of the Literary Work of Art” destoante deve ser desconsiderado. A tarefa do crítico se resume,
(1942), explica que o poema nada mais é que “um sistema de nor- portanto, em compreender, através da análise minuciosa do poema,
mas” e não “uma experiência individual ou soma de experiências”7. a complexidade desta unidade orgânica com suas tensões e incon-
Embora conceda em alguns momentos que o poema pode se reali- sistências, paradoxos e ambiguidades, metáforas e metonímias, bem
zar parcialmente na experiência do leitor, já que os efeitos sonoros como o papel destas figuras em relação ao significado da obra. Todos
só são percebidos quanto entoados por um falante, ontologicamente estes elementos deveriam estar em harmonia, fato que transformava
falando, ele é um sistema fechado, constituído de regras próprias o poema em um ícone verbal, “um complexo espacial de significado
que transcendem qualquer imposição extrínseca. Na verdade, e no- no qual todas as palavras e implicações tinham relevância”10.
vamente se baseando na Biografia Literária (1817), os novos críticos Ao ser concebido como unidade orgânica e ícone verbal, os
viam a unidade orgânica do texto literário, além de inerente, como novos críticos se voltaram então para teorizações em torno da esfera
também dotada, conforme Coleridge, de uma força centrífuga: “A semântica do poema. Se o objetivo era evitar relativismos em rela-
forma orgânica, por outro lado, é inata; toma forma ao se desenvol- ção ao real significado do texto, onde, como e ao que exatamente
ver de dentro para fora, e a plenitude de seu desenvolvimento é um deveriam leitores e críticos atentar? Afinal, o que os novos críticos
e idêntica com a perfeição de sua forma externa”8. Esta metáfora or- hermeneuticamente concebiam como significado? Wellek, ao ex-
gânica ganha contornos novos em elaborações subsequentes, como plicar a constituição do poema, argumenta que a unidade orgânica
as de Wimsatt e Beardsley, que comparam o poema a um pudim deste deve ser entendida não apenas como um sistema de normas,
mas sim como “um sistema constituído de vários estratos, cada um
6 (COLERIDGE 1993:397). “…so that each part is at once end and means!” contendo seu próprio grupo subordinado”. Assim, continua Wellek,
7 (WELLEK 1987:79). “A poem, we have to conclude, is not an individual experi-
ence or a sum of experiences, but only a potential cause of experiences…. Thus, 9 (WIMSATT, JR.; BEARDSLEY 1946:469). “Judging a poem is like judging a pud-
the poem must be conceived as a system of norms, realized only partially in the ding or a machine. One demands that it works… Poetry succeeds because all or
actual experience of its many readers”. most of what is said or implied is relevant; what is irrelevant has been excluded,
8 (COLERIDGE 1993:397-398). “The organic form, on the other hand, is innate; it like lumps from pudding and ‘bugs’ from machinery”.
shapes as it develops itself from within, and the fullness of its development is one 10 (LEITCH 1988:29). “...a spatial complex of meaning where all words and implica-
and the same with the perfection of its outward form.” tions became relevant”.
226 José de Paiva dos Santos Capítulo 6 . A Nova Crítica 227

“há um sistema de normas contido na estrutura sonora de uma obra da Nova Crítica, compara a estrutura essencial de um poema com
de arte literária e esta, por sua vez, contém unidades de significado a arquitetura, pintura, ou, para dar conta do aspecto temporal do
baseadas em disposições de sentenças, e estas unidades, por sua vez, poema, a um balé ou composição musical: “É um jogo de resoluções
constroem um mundo de objetos ao qual o significado se refere” . 11
e equilíbrios e harmonizações desenvolvidas por meio de um esque-
Ele faz uso em seguida dos conceitos linguísticos langue e parole, ma temporal”13.
difundidos pela Escola de Genebra e Círculo Linguístico de Praga, Portanto, para os novos críticos, o significado era um elemento
para explicar que o poema, como um sistema de linguagem — lan- subordinado à estrutura do poema, o qual, para ser exposto, devia
gue — funciona como uma coleção de normas e convenções que ser examinado sem se recorrer à crítica genética ou impressionista.
se realiza em instâncias textuais — parole —, mesmo que de forma O valor de um poema estava na estrutura e na capacidade deste de
incompleta. É com base nesta dicotomia que Wellek introduz o gerar significado. Assim, a atividade crítica devia se deter à análise e
conceito de “estrutura de determinação”, que para ele “é o que faz avaliação desta “estrutura de determinação”, com toda sua complexi-
o ato de cognição não um ato de invenção arbitrária de distinções dade linguística e riqueza semântica. Por esta razão, exercícios como
subjetivas, mas o reconhecimento de algumas normas impostas a a paráfrase eram vistos como anátema, pois destruíam a essência do
nós pela realidade”12. O que estas observações sugerem é uma con- poema. Em “A heresia da paráfrase”, um dos capítulos de The Well
cepção do significado partindo do poema durante o ato de leitura e Wrought Urn, Cleanth Brooks ressalta este ponto. Brooks observa:
não o contrário. Isto é, o significado é inerente à estrutura da obra
literária e o seu desvendamento resulta do exercício criterioso por Se nos deixarmos enganar pela [paráfrase], distorcemos a relação
parte do leitor. Como fonemas que se combinam para formar pala- do poema com sua “verdade”, levantamos a questão da crença
vras, as quais por sua vez se concertam na produção de enunciados em uma forma corrupta e mutilada, dividimos o poema entre
de acordo com as normas sintáticas e gramaticais de uma língua, os “forma” e “conteúdo” — fazemos com que a declaração seja
poemas genuínos, ao relacionarem elementos linguísticos, retóricos, comunicada por meio da uma competição irreal com a ciência,
semânticos e filosóficos, entre outros possíveis, têm uma gramática filosofia ou teologia.14
própria e geram seus próprios significados. É neste sentido que
Cleanth Brooks em The Well Wrought Urn, uma das obras centrais O significado, por mais escorregadio que fosse, constituía-
-se uma entidade atrelada à estrutura, e qualquer exercício que
11 (WELLEK 1942:80). “...a system which is made up of several strata, each im-
plying its own subordinate group. There is a system of norms implied in the 13 (BROOKS 1947:203). “It is a pattern of resolutions and balances and harmoniza-
sound-structure of a literary work of art and this, in turn, implies units of meaning tions, developed through a temporal scheme”.
based on the sentence patterns, and these units in their turn construct a world of 14 (BROOKS 1947:164). “If we allow ourselves to be misled by the [the paraphrase],
objects to which the meaning refers”. we distort the relation of the poem to its ‘truth’, we raise the problem of belief
12 (WELLEK 1942:80). “...which makes the act of cognition not an act of arbitrary in a vicious and crippling form, we split the poem between its ‘form’ and its
invention of subjective distinctions, but the recognition of some norms imposed ‘content’ — we bring the statement to conveyed into an unreal competition with
on us by reality”. science or philosophy or theology”.
228 José de Paiva dos Santos Capítulo 6 . A Nova Crítica 229

comprometesse esta relação destruiria a essência do poema. A habi- Ao colocar a universidade e professores de inglês no centro
lidade crítica consistia em dissecar as diversas camadas semânticas deste projeto hermenêutico, Ransom abriu as portas para uma gama
do poema sem reduzir o significado ao banal e temporal. enorme de materiais didáticos cujo intuito era formar profissionais
Assim, munidos dessa visão do poema como uma entidade da interpretação literária. Até mesmo professores já atuantes no
autossuficiente e da linguagem como veículo de um significado sistema universitário necessitavam do treinamento adequado, argu-
transcendental, os novos críticos abraçaram a missão pedagógica de mentava Ramson, já que a formação destes se deu em outro con-
formar profissionais da interpretação literária, tarefa até então nor- texto crítico. Era preciso revolucionar o sistema educacional tanto
malmente executada por ensaístas de periódicos e resenhistas. Para na esfera discente quanto docente: “Professores de literatura são
eles, havia um abismo separando leitores amadores dos treinados a homens eruditos, porém não críticos”, reclamava Ramson17. Estes
descobrir as complexidades semânticas dos poemas. Neste sentido, passavam uma vida agregando fontes e documentos, mas pouco se
John Crowe Ransom observa em “Criticism, Inc.” (1937): “Ao invés preocupavam em emitir julgamento acerca do objeto de estudo ao
da crítica ocasional feita por amadores, eu acredito que o projeto qual se dedicavam: o texto literário.
como um todo deve ser seriamente executado por profissionais. Este tipo de postura investigativa se refletia nos estudantes, ar-
Talvez o termo que vou usar seja de mau gosto, mas penso que o que gumentavam os novos críticos. I. A. Richards em Practical Criticism
necessitamos é Crítica, Inc., ou Crítica, Ltda.”15. Ramson reforça esta já relatava vários principais problemas enfrentados por estudantes de
observação mais adiante ao colocar os professores universitários de literatura em relação à interpretação de poesia. Entre os obstáculos
inglês no centro deste projeto pedagógico, transformando assim a mais comuns enumerados por Richards, estavam: a) dificuldade em
universidade ou sala de aula em uma espécie de laboratório e os compreender o sentido do poema, seu significado no sentido amplo;
professores em um grupo de elite. Ele acrescenta: b) má compreensão da métrica e do ritmo; c) não compreensão da
linguagem figurada; d) uso de recursos mnemônicos inapropriados;
É a partir dos professores universitários de literatura, neste país e) respostas prontas ou clichês; f) sentimentalismo exagerado; g)
professores de inglês na maioria, que eu espero no devido tempo aplicação de doutrinas religiosas; h) preconcepções críticas18. Com
sejam criados padrões de crítica inteligente. É o trabalho deles. base nestas e outras observações, os novos críticos criaram vários
A crítica deve se tornar mais científica, ou precisa e sistemática, métodos e protocolos não só de interpretação, mas também de ava-
e isto significa que deve ser desenvolvida através do esforço liação literária, pois, segundo eles, a leitura exigia tanto a explicação
sustentado e coletivo de pessoas eruditas — o que significa que o quanto julgamento. O próprio livro de Richards tinha como principal
local adequado são as universidades.16
professors of English for the most part, that I should hope eventually for the
erection of intelligent standards of criticism. It is their business. Criticism must
15 (RAMSOM 1937:586). “Rather than occasional criticism by amateurs, I should become more scientific, or precise and systematic, and this means that it must
think the whole enterprise be seriously taken in hand by professionals. Perhaps, be developed by the collective and sustained effort of learned persons — which
I use a distasteful figure, but I have the idea of what we need is Criticism, Inc., or means that its proper seat is the universities”.
Criticism, Ltd.”. 17 (RAMSOM 1937:1). “Professors of literature are learned but not critical men”.
16 (RAMSOM 1937:586). “It is from professors of literature, in this country the 18 (RICHARDS 1929:17)
230 José de Paiva dos Santos Capítulo 6 . A Nova Crítica 231

objetivo melhorar o ensino de literatura nas universidades. Outros análise textual. Além da metáfora, os protocolos também exigiam
materiais como Understanding Poetry, lançado por Cleanth Brooks e atenção às inter-relações entre os paradoxos, as ambiguidades e
Robert Penn Warren em 1938, vieram transformar a maneira como ironia presentes no poema. As tensões semânticas geradas por estes
literatura era lida e ensinada nos bancos escolares. Para os mentores elementos geravam conflitos cujos efeitos deveriam ser investiga-
destes materiais didáticos, técnicas de análise poderiam ser aprendi- dos. Em relação ao paradoxo, Brooks afirmava que “o cientista é o
das, imitadas e passadas adiante, daí o papel crucial de professores indivíduo para o qual a verdade requer uma linguagem destituída
treinados e instrumentos pedagógicos apropriados. de todo o traço de paradoxo; aparentemente a verdade pronunciada
É importante ressaltar que os protocolos e técnicas de pelo poeta só pode ser concretizada nos termos do paradoxo”20.
leitura propostos pelos novos críticos seguiam normas rígidas Em suma, o protocolo hermenêutico proposto pelos novos críticos
de interpretação de figuras de linguagem, retórica, símbolos e exigia: 1) rejeição de qualquer análise impressionista e genética do
tensões textuais. Uma leitura cuidadosa deveria ser feita de modo poema em questão; 2) concentração nos conflitos textuais e nas
a compreender como estes elementos, em harmonia, contribuíam figuras de linguagem: metáfora, metonímia, paradoxos, ironia, etc.;
para o significado do poema. Nesta busca pela essência da obra 3) concepção do texto como um todo cujas partes se relacionam
literária, atenção especial deveria ser dada à metáfora, argumentam em perfeita harmonia; 4) visão do significado como uma entidade
os novos críticos. Era na complexidade e polissemia desta figura de transcendental presente na estrutura do poema.
linguagem que o crítico encontraria o caminho em direção ao cerne
do poema. Em Literary criticism: a short history, Wimsatt e Brooks Considerações Finais
reforçam o status especial deste elemento durante o exercício crítico:
O projeto hermenêutico defendido pela Nova Crítica tinha como
“Podemos encontrar nossos universais no discurso conceitualizado
eixo principal uma noção transcendental de estrutura e, principal-
da ciência e filosofia. Podemos ver detalhes específicos à vontade
mente, do significado, o qual para os novos críticos era sinônimo de
nos jornais e registros de julgamentos. ...Mas apenas na metáfora,
verdade. Qualquer exercício que desviasse o crítico desta busca pela
e assim é por excelência na poesia, que encontramos a mais radi-
essência do poema deveria ser refutado. Juntamente com a busca
cal e relevante união e fusão do detalhe e a ideia universal”19. Mais
pela verdade poética, o projeto também tinha um teor avaliativo,
do que um papel ornamental na estrutura no poema, a metáfora
isto é, alguns poemas se aproximavam mais que outros do ideal de
incorporava verdades universais, daí a importância de se examinar
obra literária. Daí então o surgimento de hierarquias textuais visan-
de perto as várias facetas e manifestações deste elemento durante a
do justificar por que um texto era mais rico e literário em relação a
outros do mesmo gênero ou categoria.
19 (WIMSATT: BROOKS 1957:749). “We can have our universals in the full concep-
tualized discourse of science and philosophy. We can have specific detail lavishly
in the newspapers and in record of trials. …But it is only in metaphor, and hence 20 (BROOKS 1947:1). “It is the scientist whose truth requires a language purged
it is par excellence in poetry, that we encounter the most radically and relevantly of every trace of paradox; apparently the truth which the poet utters can be
fused union of the detail and the universal idea”. approached only in terms of paradox”.
232 José de Paiva dos Santos Capítulo 6 . A Nova Crítica 233

É importante frisar também que apesar da reação em conjunto da nova crítica daquilo que viam como uma banalização ou má inter-
contra a crítica impressionista e genética das décadas anteriores, pretação dos diversos posicionamentos do movimento. Wellek serve
bem como a crítica social dos marxistas, os novos críticos não se como exemplo de um crítico que batalhou arduamente para corrigir
constituíam um grupo coeso. Um exame mesmo que superficial dos o que ele concebia como distorções ingênuas ou mal-intencionadas
vários posicionamentos dos maiores expoentes do movimento re- por parte dos oponentes. Ele via as acusações dos opositores como
vela que havia várias divergências entre o grupo. Wellek argumenta, infundadas e tão facilmente refutáveis que duvidava, inclusive, que
inclusive, em “The New Criticism: Pro and Contra” que talvez os os comentaristas tivessem realmente lido os pronunciamentos do
críticos associados ao movimento devessem ser discutidos separa- grupo24. Havia, assim, um forte movimento para fortalecer e “puri-
damente devido aos diferentes posicionamentos que pronunciaram ficar” o movimento por parte desta frente resistente. Outros, no en-
ao longo dos anos21. Kenneth Burke pode ser citado como exemplo tanto, acabaram fazendo concessões ao longo dos anos e se abriram
de um crítico que, mesmo abraçando uma hermenêutica baseada às novas tendências críticas dos anos sessenta e setenta, em muitos
apenas no texto, abria espaço para considerações extratextuais em casos contradizendo o que haviam dito em décadas anteriores. I. A.
sua exegese, postura que acarretou muita crítica por parte de seus Richards, T. S. Eliot, F. R. Leavis, Murray Krieger, entre outros, ex-
contemporâneos. Ele via como vandalismo, por exemplo, omitir pandiram seus horizontes críticos e passaram a considerar aspectos
material biográfico ou situacional apenas para seguir as convenções históricos, sociológicos, biográficos e afetivos em suas atividades crí-
de uma crítica ideal. Para ele, a crítica autêntica deveria fazer uso ticas. No entanto, apesar destas e outras acomodações ou concessões,
de todo o recurso disponível para um entendimento da estrutura a crença na linguagem poética como a manifestação de uma presença
poética22. Com o passar dos anos, Burke passou a endossar aber- mística e transcendental sempre perdurou. Os poemas são entidades
tamente uma crítica sociológica. Em “Literature as equipment for reais que comunicam algo a seus leitores, afirmava Murray Krieger
living” (1938), Burke admite que a análise de elementos sociológicos no auge da era desconstrucionista; “[eles] defendem por si próprios
proporcionaria não apenas mais insight em relação à estrutura das uma presença, e não é apenas por nostalgia que continuamos a va-
obras literárias, mas também derrubaria barreiras que faziam da lorizá-la. Pois presença é o tempo presente, e enquanto vivemos não
literatura uma atividade aparentemente especializada23. devemos permitir que nos convençam do contrário”25.
Estas divisões internas e divergências foram ficando mais acen-
tuadas com o passar dos anos à medida que a geração que liderou o Referências
movimento deixou as cátedras universitárias, faleceu e os que per-
maneceram tiveram que enfrentar o grande volume crítico da era BROOKS, Cleanth. 1947. The Well Wrought Urn: studies in the structure of poetry.
pós-estruturalista. Alguns se fecharam e defenderam os princípios London: Cox and Wyman Ltd.

24 (WELLEK 1978:611)
21 (WELLEK 1978:613). 25 (KRIEGER 1979:112). “They make their own case for presence, and it is out of
22 (BURKE 1973:23) no mere nostalgia that we continue to value it in them. For presence is present
23 (BURKE 1998:597) tense, and while we live we must not allow ourselves to be reasoned out of it”.
234 José de Paiva dos Santos

BURKE, Kenneth. 1973. The philosophy of literary form. 3rd ed. Revised. Berkley:
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A aventura intelectual abre seu caminho
entre o risco e o erro. O estruturalismo
aparece como a grande aventura intelectual
da segunda metade do século XX.
(LIMA 1968:43)
As contribuições do filósofo americano Charles Sanders Peirce
(1839-1914) e do também filósofo e linguista suíço Ferdinand de
Saussure (1857-1913), oferecidas ainda nas primeiras décadas do
século XX, foram decisivas para a formulação de discursos teóricos
que explicitaram para o homem ocidental que, antes de ele ser ex-
pressão de sua “individualidade própria” ou de ser determinado por
“fatores externos” mais ou menos verificáveis, ele é dirigido, consti-
tuído “pela violência dos signos e dos diversos tipos de estrutura que
estes articulam”1. São sistemas sígnicos as línguas “naturais”, base
de nossa comunicação, cujas convenções antecedem a qualquer
memória humana, as múltiplas práticas sociais e culturais (os ritos,
as relações de parentesco, a moda, a culinária, a literatura, o cinema,
a música, as regras de etiqueta, as instituições políticas, jurídicas,
econômicas, os jogos desportivos etc.), como também as lingua-
gens artificiais que garantem o funcionamento dos diversos meios
de transmissão, armazenamento e processamento de mensagens,
dados, informação utilizados em nível planetário. Dessa maneira,
além da comunicação, diferentes atividades sociais e culturais, das
mais simples às mais complexas, que atravessam nosso cotidiano,
são linguagens que repousam em códigos diversos que nos permi-
tem representar o mundo e / ou permutar uma coisa por outra.
1 (KRISTEVA 1978: XI)
238 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 239

Estudar os sistemas sígnicos em toda sua complexidade tor- estudos de literatura, procurando mostrar seu legado na abordagem
nou-se ponto central para linguistas, filósofos e antropólogos que do texto literário.
desenvolveram seus trabalhos nos últimos anos do século XIX e
no início do XX. Para isso, fazia-se necessário que o analista sou- I
besse diferenciar, no objeto estudado, as qualidades primárias das
secundárias, a substância do acidente, a necessidade da contingên- Charles Sanders Peirce concebia, sob o nome de semiótica, uma
cia. Em outras palavras, fazia-se necessário que o analista soubesse disciplina que, confundindo-se com a Lógica, estudaria os sistemas
como suspender o objeto estudado do “contínuo dos eventos, sem, de signos, quaisquer que eles fossem e quaisquer que fossem as
entretanto, mutilá-lo”; melhor dizendo, que o analista fosse capaz suas esferas de utilização. No tocante às relações com seus objetos
de efetuar “o corte sincrônico de seu objeto”2. Retomando a afir- dinâmicos, o filósofo americano identificou três tipos diferentes de
mação feita acima, as lições oferecidas por Peirce e Saussure foram signo: ícone, índice e símbolo. O signo é um ícone, quando há certa
essenciais para instrumentalizar o analista / o crítico no exame dos similitude visual entre o significante e o significado. Por exemplo,
sistemas simbólicos. as letras M e F ou ainda as figuras coladas nas portas de banheiro
O objetivo do ensaio é apresentar em linhas gerais o estrutura- público indicando homens e mulheres, as fotografias, as cópias, as
lismo e a semiótica/semiologia3 e delinear sua contribuição para os impressões digitais são ícones, na medida em que incluem “uma
estudos literários. Para realizá-lo, nosso percurso será dividido em relação necessária entre a parte que expressa, formalmente, o conteú-
quatro blocos. No primeiro, além da breve apresentação de Peirce e do (= significante) e o conteúdo expressado (= significado)”4. Nesse
Saussure ao estudante de literatura, serão discutidas, sucintamente, sentido, as onomatopeias são consideradas ícones, pois os signifi-
as noções de signo e as dicotomias saussurianas, base do pensamen- cantes imitam os significados — “tique-taque” pretende reproduzir
to estrutural. No bloco II, examinar-se-á o aproveitamento dos con- o som do relógio5. É índice, quando a relação entre o significante
ceitos saussurianos pela teoria da literatura na construção de uma e o significado se dá de forma não convencional, dizendo de outra
poética estrutural. No III, o foco recairá na repercussão do estrutu- maneira, quando “o significante é um indicador confiável da presen-
ralismo no Brasil, privilegiando, sobretudo, sua recepção no meio ça do significado”, como fumaça/fogo, nuvem/chuva6. Finalmente,
acadêmico carioca. Finalmente, no bloco IV, a título de conclusão, denomina-se símbolo, quando a relação entre o significante e a coisa
tratar-se-á do declínio da atividade estruturalista no cenário dos significada é, por completo, arbitrária, imotivada e convencional.
Ao se falar ou ouvir a palavra “casa” (/‘kasa/), compreende-se que
2 (LIMA 1968:20)
3 Embora o estruturalismo seja tradicionalmente identificado com Saussure e a essa sequência de sons, diferente de qualquer outra sequência, refe-
semiótica com Peirce, no ensaio, os termos estruturalismo, semiótica e semiolo-
re-se, conforme se lê no Dicionário Houaiss, a “edifício de formatos
gia serão tratados sem distinção, pois, como será visto mais tarde, para Roland
Barthes, a construção da significação em literatura se dá de forma semelhante à 4 (LOPES 1995: 45)
construção da significação em outros sistemas semiológicos, como, por exem- 5 (LOPES 1985: 45-46)
plo, vestuário, moda, comida etc. 6 (RICHTER 1989: 848)
240 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 241

e tamanhos variados, geralmente de um ou dois andares, quase constitui um sistema supraindividual, uma vez que ela é definida
sempre destinado à habitação”. Porém, entre tal sequência de sons e não por um indivíduo, mas pela coletividade, “sob a forma duma
o significado a ela conferido não há motivação alguma. soma de sinais depositados em cada cérebro, mais ou menos como
Já Ferdinand de Saussure concebia, sob o nome de semiolo- um dicionário cujos exemplares, todos idênticos, fossem repartidos
gia, uma ciência geral dos signos verbais e não verbais, que faria entre os indivíduos”10. Já a parole/fala é um ato individual de sele-
“parte da Psicologia social e, por conseguinte, da Psicologia geral”, ção e atualização da língua; “não há, portanto, nada de coletivo na
circunscrevendo, portanto, a linguística a um círculo menor, já fala, suas manifestações são individuais e momentâneas”11. Embora
que esta se ocuparia apenas com o estudo dos sistemas verbais7. sejam duas coisas absolutamente distintas, há uma interdependên-
Sua obra, Cours de linguistique générale, notas das aulas proferidas cia da língua e da fala: “aquela é ao mesmo tempo o instrumento
pelo mestre organizadas por dois de seus ex-alunos, Charles Bally e o produto desta”12. Língua e fala estão estreitamente ligadas e se
e Albert Sechehaye, foi publicada, postumamente, em 1916. Nela, implicam mutuamente, isto é, não existe língua sem fala como não
Saussure refuta a abordagem histórica, comparativa e evolucionista existe fala fora da língua13. Nesse sentido, a língua é uma instituição
dominante nos estudos linguísticos até então, ao estabelecer três social e um sistema de valores. Como instituição social, a língua
distinções capitais, que se tornarão conceitos fundamentais para a possui regras próprias. Nenhum indivíduo, portanto, pode sozinho
construção do pensamento estruturalista: langue e parole; sincronia criá-las ou modificá-las. Isso significa que, para haver comunicação,
e diacronia; sintagma e paradigma. todos os membros de uma coletividade têm de se submeter, em
Para elaborar a célebre dicotomia langue e parole, Saussure bloco, às regras da língua e aprender a manejá-las como estivessem
parte da natureza “multiforme e heteroclítica” da linguagem. participando de um jogo. Vista como sistema de valores, a língua
Entendida como uma capacidade, uma abstração, de acordo com o é composta por um determinado número de elementos e cada um
mestre genebrino, a linguagem humana, por participar, ao mesmo deles só pode ser definido quando colocado em relação a outro ele-
tempo, de diferentes domínios — físico, fisiológico e psíquico —, e mento. Ou, conforme palavras de Roland Barthes:
por pertencer, simultaneamente, às esferas individual e social, reve-
la-se, à primeira vista, como uma realidade inclassificável, pois dela Como sistema de valores, a Língua é constituída por um pequeno
não se pode extrair uma unidade . Nos termos de Roland Barthes,
8
número de elementos de que cada um é, ao mesmo tempo, um
essa desordem, entretanto, cessa se, desse todo heteroclítico, se abs- 10 (SAUSSURE 1971:27)
trai a langue/língua, “puro objeto social, conjunto sistemático das 11 (SAUSSURE 1971:28)
12 (SAUSSURE 1971:27)
convenções necessárias à comunicação, indiferente à matéria dos 13 Edward Lopes observa que Hjelmslev chama de esquema / uso a dicotomia

sinais que o compõem”9. Sendo um conceito social, a langue/língua que Saussure batizou de langue / parole. Jakobson lança mão da teoria da
informação e nomeia a mesma relação com a termologia código / mensagem,
7 (SAUSSURE 1971: 23-24) noções essas que correspondem, aproximadamente, às dos termos empregados
8 (SAUSSURE 1971: 17) por Chomsky para competence (competência) / performance (atuação)”. (Cf.
9 (BARTHES 2006:17) LOPES 1995:78).
242 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 243

vale-por e o termo de uma função mais ampla onde se colocam, mudança do sistema em qualquer grau”17. Nesse sentido, enquanto
diferencialmente, outros valores correlativos; sob o ponto de realidade sistemática, a língua não é um sistema de conteúdos, mas
vista da língua, o signo é como uma moeda: esta vale por cer- um sistema de formas e regras (valores), isto é, “a língua é uma for-
to bem que permite comprar, mas vale também com relação ma e não uma substância”18. Daí, “na língua, como em todo sistema
a outras moedas, de valor mais forte ou mais fraco. O aspecto semiológico, o que distingue um signo é tudo o que o constitui. A
institucional e o aspecto sistemático estão evidentemente ligados: diferença é o que faz a característica, como faz o valor e a unidade”19.
é porque a língua é um sistema de valores contratuais (em parte A segunda distinção, igualmente decisiva para a promoção da
arbitrários, ou, para ser mais exato, imotivados) que resiste às linguistic turn na primeira metade do século XX, é a estabelecida
modificações do indivíduo sozinho e que, consequentemente, é entre o eixo das simultaneidades (sincronia) e o eixo das sucessi-
uma instituição social.14
vidades (diacronia). O primeiro concerne “às relações entre coisas
coexistentes, de onde toda intervenção do tempo se exclui”; o se-
A noção de sistema, ao trazer “em si a exigência de observação gundo, por tratar dos estágios de modificações, é aquele “sobre o
das relações entre os elementos de um conjunto específico e não de qual não se pode considerar mais que uma coisa por vez, mas onde
aspectos que lhe são externos”, explica por que Saussure elegeu a estão situadas todas as coisas do primeiro eixo com suas respectivas
langue como objeto da linguística . O jogo de xadrez serve-lhe para
15
transformações”20.
ilustrar seu argumento. Sigamos seu raciocínio: “no jogo de xadrez Ao fixar essa distinção, Saussure assinala que, na maioria das
é fácil distinguir o externo do interno; o fato de ele ter passado da ciências, a dualidade entre o eixo das simultaneidades e o das su-
Pérsia para a Europa é de ordem externa; interno, ao contrário, cessividades não ocorre de maneira radical, pois o fator tempo não
é tudo quanto concerne ao sistema e às regras”16. Por exemplo, o produziria nelas efeitos particulares: mesmo que os astros mudem,
material, as dimensões, as cores das peças que compõem o xadrez a Astronomia é uma ciência sincrônica; já a Geologia raciocina dia-
podem variar, e isto não interferirá no sistema do jogo. Caso uma cronicamente, ainda quando se ocupa “dos estados fixos da Terra”;
peça se perca, poder-se-á substituí-la por outro objeto, bastando muito embora possa também se dedicar à descrição de quadros/
para isso que os participantes do jogo atribuam, previamente, a esse cenários, a História é, na maioria das vezes, diacrônica (sucessão
objeto, o mesmo valor da peça perdida. Todas essas alterações cita- dos acontecimentos). Entretanto, por uma necessidade interior, a
das são acidentais, portanto, de ordem externa. Mas, se for reduzido dualidade entre os dois eixos se impõe de forma imperiosa às ciên-
ou aumentado o número de peças, “essa mudança atingirá profun- cias econômicas e à linguística, pois ambas trabalham com a noção
damente a ‘gramática’ do jogo”; “é interno tudo quanto provoca de valor, isto é, ambas lidam com um sistema de equivalência entre

17 (SAUSSURE 1971:32)
14 (BARTHES 2006:18) 18 (SAUSSURE 1971:141)
15 (BORBA 2004:66) 19 (SAUSSURE 1971:140-141)
16 (SAUSSURE 1971:32) 20 (SAUSSURE 1971:95)
244 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 245

coisas de ordens diferentes: a Economia, com trabalho e salário; a Quanto mais complexo e rigorosamente organizado for um
linguística, com significado e significante, e a mudança de um de sistema de valores, como é o caso da língua, tanto mais necessário se
seus termos altera, pouco a pouco, todo o sistema21. Para que haja faz, devido à sua complexidade, estudá-lo segundo seus dois eixos.
signo linguístico ou valor econômico, é preciso permutar coisas A precisão de valores em jogo, o número tão grande e a diversidade
dessemelhantes (significante / significado; trabalho / salário) e, por tamanha de termos, numa dependência recíproca tão estrita, impe-
outro lado, comparar coisas similares entre si: pode-se trocar uma dem o linguista de estudar, ao mesmo tempo, as relações da língua
nota de R$5,00 por pão, sabão ou jornal, como se pode também no tempo e no sistema, obrigando-o a distinguir duas disciplinas: a
compará-la com outras notas do sistema financeiro brasileiro, com linguística sincrônica (ou estrutural) e a linguística diacrônica (ou
as notas de R$10,00, R$50,00 ou R$100,00, ou com notas de outro histórica). No estudo sincrônico, o linguista se ocupa das relações
sistema, como o peso, o dólar ou o euro. Do mesmo modo, uma entre fatos coexistentes num sistema linguístico, tais como são per-
palavra (signo linguístico) “pode ser trocada por algo dessemelhan- cebidas pela consciência coletiva num momento dado, abstraindo
te: uma ideia; além disso, pode ser comparada com algo da mesma qualquer noção de tempo24. Ao contrário, na abordagem diacrônica,
natureza: uma outra palavra”22. Daí, a significação do signo não ser serão consideradas as relações que um determinado fenômeno da
um fenômeno isolado, apenas resultado da combinação instantânea língua “localizado ao longo de uma linha evolutiva (de tempo) man-
do significado (conceito) e significante (imagem acústica). Se assim tém para com os fenômenos que o precedem ou que o seguem na
o fosse, a língua ficaria reduzida “a uma simples nomenclatura”. Para linha da continuidade histórica”, sintetiza Edward Lopes25.
evitar tal equívoco, Saussure estabelece a dependência da significa- Antes de passar para a terceira dicotomia (sintagma e paradig-
ção à noção de valor. Só se pode determinar a significação pela si- ma), vale sublinhar que, como será visto adiante, a concepção de
multaneidade e reciprocidade dos termos linguísticos, para as quais signo linguístico dentro do jogo das relações contribuirá decisiva-
a noção de valor aponta. Em outras palavras, a significação não se mente para o estruturalismo estabelecer uma nova abordagem da
realiza na fase em que se pode trocar um termo por um conceito, literatura e do texto em si.
mas quando esse termo puder ser comparado com outro que lhe é A oposição entre o plano sintagmático e o associativo (ou para-
semelhante ou diferente, isto é, quando o signo adquire seu valor digmático)26 é tão significativa quanto as dicotomias langue e parole,
pela relação que estabelece com outros signos: “Seu conteúdo [o da sincronia e diacronia apresentadas anteriormente. De acordo com
palavra] só é verdadeiramente determinado pelo concurso do que Saussure, as relações e as diferenças entre os termos linguísticos se
existe fora dela. Fazendo parte de um sistema, está revestida não só desenvolvem em dois planos distintos. Cada um desses planos não
de uma significação como também, e sobretudo, de um valor, e isso 24 (SAUSSURE 1971:96)
é coisa muito diferente”23. 25 (LOPES 1995:74)
26 De acordo com Roland Barthes, “as sintagmáticas são relações para Hjelmslev,
contiguidades em Jackobson, contrastes em Martinet”; já as relações associativas
21 (SAUSSURE 1971:95) ou paradigmáticas (cunhadas por ele, Barthes, de relações sistemáticas) são
22 (SAUSSURE 1971:134) correlações em Hjelmslev, similaridades em Jakobson, oposições em Martinet”.
23 (SAUSSURE 1971:134) (Cf. BARTHES 2006:64)
246 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 247

só engendra certa ordem de valores, como também corresponde a sucessão e um número determinado de elementos, o associativo (ou
duas formas de atividade mental, ambas fundamentais para a vita- paradigmático) é sempre indeterminado e, geralmente, de número
lidade da língua. indefinido. Ou seja, o eixo paradigmático é indeterminado e inde-
O primeiro deles é o dos sintagmas, que, em geral, são forma- finido “se empreendo associações com base, por exemplo, no sufixo
dos de dois ou mais termos consecutivos e acontecem no discurso. -mento ou -idade ou qualquer outro de uso frequente em português”.
Na cadeia falada, a combinação desses termos tem como suporte a Entretanto, “temos ordem determinada com número definido nos
extensão, que é “linear e irreversível”. Como a relação sintagmática paradigmas de flexão, pois o número de casos, em cada língua fle-
existe in praesentia, seus termos nunca podem ser pronunciados ao xional, é predeterminado”30.
mesmo tempo, e o valor deles se define por relação ao valor do ou- Com Ferdinand de Saussure, configura-se a linguística estru-
tro: “re-ler, contra-todos; a vida humana; Deus é bom; se fizer bom tural, disciplina autônoma em relação às demais disciplinas das
tempo, sairemos”27. ciências humanas, que se torna a base do pensamento estrutura-
O outro plano, associativo (ou paradigmático), se dá fora do lista. O impacto dos princípios gerais desenvolvidos pelo mestre
discurso; isto é, como não tem por base a extensão, a relação asso- genebrino foi sentido primeiro na fonologia. As teses desenvolvidas
ciativa une termos in absentia em uma série mnemônica virtual, um no Cours de linguistique générale desdobraram-se nos escritos de
“tesouro de memória”: jovens teóricos reunidos em torno do que ficou conhecido como
o Círculo Linguístico de Praga31, constituído tanto por tchecos,
Por outro lado, fora do discurso [plano sintagmático], as palavras como Mathesius e Mukaróvsky, quanto por ex-integrantes do fa-
que oferecem algo de comum se associam na memória e assim moso Círculo Linguístico de Moscou e da não menos importante
se formam grupos dentro dos quais imperam relações muito OPOIAZ32, que formariam a corrente russa em Praga — Serge
diversas. Assim a palavra francesa enseigment ou a portuguesa Karcevski, que conheceu bem as diretrizes saussurianas a partir
ensino fará surgir inconscientemente no espírito uma porção de de sua estada em Genebra, Nikolai Trubetzkoy, grande teorista da
outras palavras (enseigner, renseigner etc. ou então armement, fonologia, cuja obra principal, Grundzüge der Phonologie (Princípios
changement, ou ainda éducation, apprentissage28).29 de fonologia), foi publicada em 1939, após a sua morte, e Roman
Jakobson, autor de trabalhos decisivos para a consolidação e expan-
Diante do exposto, conforme já observado por Luiz Costa são da linguística estrutural33. Por seu rigor, seu grau de formaliza-
Lima, enquanto o eixo sintagmático aponta para uma ordem de
30 (LIMA 1968: 22)
31 Fundado em 1926, por iniciativa dos tchecos Vilém Mathesius, Mukaróvsky e J.
27 (SAUSSURE 1971:142-143) Vachek, e dos russos Nicolai Trubetzkoy, Roman Jakobson e Serge Karcevski, as
28 Em nota da edição brasileira (Cultrix), os tradutores da obra saussuriana primeiras teses do grupo vêm a público a partir de 1929. (Cf. DOSSE 2007:97, v.I)
observam que para ensino ou ensinamento, “as palavras associadas serão ensinar, 32 Óbchchestvo por izutchéniu poetítcheskovo ia ziká — Associação para o Estudo da
e depois armamento, desfiguramento etc., por fim, educação e aprendizagem Linguagem Poética — fundada em 1917, que cooperaria intimamente com o Círculo
etc.” (SAUSSURE 1971:) Linguístico de Moscou, este fundado em 1915. (Cf. SCHNAIDERMAN 1971:X).
29 (SAUSSURE 1971:143) 33 (CÂMARA Jr. 1973:18-19)
248 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 249

ção, a linguística estrutural vai arrastar em sua rede várias outras cultura. Contrariando a abordagem etnocêntrica dominante até en-
disciplinas e fazê-las assimilar seu programa e seus métodos34. Um tão, conforme demonstrou, a lógica não é um privilégio do homem
dos primeiros resultados desse arrastão se deu a partir do encontro ocidental; há lógica nos sistemas sociomentais das comunidades
entre Roman Jakobson e Claude Lévi-Strauss, nos anos 40, em Nova primitivas.
Iorque. Outro desdobramento de grande rentabilidade das teses de
Como se sabe, os dois intelectuais, ambos exilados por conta Saussure na reflexão lévi-straussiana é “o caráter inconsciente da
da expansão do nazismo no continente europeu, tornaram-se pro- língua naqueles em que nela colhem sua fala”36. Isso permite ao autor
fessores na New School for Social Research, em Nova Iorque, onde de O pensamento selvagem perceber que “não são os conteúdos que
fundaram, ao lado de Jacques Maritain, Henri Focillon, a École Libre são inconscientes (crítica aos arquétipos de Jung), mas as formas,
des Hautes Études. Do impacto da revolução fonológica, apreendida isto é, a função simbólica”, pontua Roland Barthes37. Portanto, para
do intercâmbio estabelecido com Jakobson, Lévi-Strauss abandona o antropólogo francês, o imaginário coletivo não deve ser descrito
a perspectiva descritiva até então dominante na antropologia e de- por seus “temas”, mas por suas formas e funções, isto é, mais por
fende, no livro publicado em 1951, Estruturas elementares de paren- seus significantes do que por seus significados38. O inconsciente é,
tesco, a tese de que o casamento nas sociedades primitivas, antes de para ele, uma armadura lógica e natural, ou seja, o inconsciente é
ser uma mistura caótica de preceitos arbitrários, era uma forma de um sistema de condicionamentos lógicos sobre o qual estão funda-
comunicação, de transação que validaria um sistema de trocas e de das as instituições humanas. Isso significa que Lévi-Strauss pensa
alianças, em que a mulher, funcionando como signo, seria passível o inconsciente fora da biografia pessoal, como em Freud39. Daí,
de ser submetida a regras dedutíveis, tais como as que haviam sido conforme já observou Luc de Heusch, a lição da linguística estru-
deduzidas no campo da fonologia. Assim como toda língua ou dia- tural, apreendida em Saussure e divulgada por Jakobson e outros já
leto possui um sistema fonológico simples e inequívoco, os sistemas aqui mencionados, ter contribuído, decisivamente, para que Lévi-
de parentesco de sociedades não ocidentais eram também regidos Strauss, desde 1945, percebesse que “a fonologia (que desvenda as
por uma arquitetura lógica que só pareceria arbitrária “sob o ponto leis de organização dos sons, escapando à consciência dos sujeitos
de vista de um ‘falante’ de outro sistema”35. A hipótese estrutural falantes)”, desempenhava, em relação às ciências sociais, o mesmo
promove, portanto, um redirecionamento do olhar do antropólogo papel renovador que a física nuclear havia representado para o con-
em relação às comunidades iletradas: ao retirá-las tanto do simples junto das ciências exatas40.
esquema da consanguinidade quanto das considerações morais
36 (BARTHES 2006:27)
etnocêntricas, Lévi-Strauss desbiologiza a interpretação da interdi- 37 (BARTHES 2006:27)

ção do incesto e a situa nas relações sociais, isto é, em termos da 38 (BARTHES 2006:27-28)
39 (Cf. LIMA 1983:220, v.2; DOSSE 2007:167, v.I).
40 (HEUSCH 1968:14). Parafraseio na passagem acima uma citação de Lévi-Strauss,
34 (DOSSE 2007:82, v. I) presente em Antropologia estrutural, utilizada por Heusch: a fonologia “não pode
35 (LIMA 1983:218) deixar de desempenhar, face às ciências sociais, o mesmo papel renovador que
250 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 251

O estruturalismo foi, portanto, um movimento de pensamento, historicizado ou epistêmico”, com “Louis Althusser, Pierre Bourdieu,
um ponto de vista epistemológico que, partindo do pressuposto de Michel Foucault, Jacques Derrida, Jean-Pierre Vernant e, mais am-
que nada significa por si próprio, isto é, de que todo conceito num plamente, a terceira geração dos Annales43. Diante dessa diversidade,
dado sistema é estipulado por todos os outros conceitos do mesmo neste ensaio, cujo objetivo é tratar da contribuição do estruturalis-
sistema , teve como objetivo examinar, esquadrinhar os múltiplos
41
mo para os estudos literários, optou-se pelo emprego do conceito
sistemas de signos/símbolos organizadores de variadas sociedades de estrutura para a construção de uma poética, ou seja, a poética
contemporâneas. A palavra estrutura, funcionando como senha e estrutural, assunto do próximo bloco.
exercendo um papel unificador para boa parte das ciências huma-
nas, ofereceu para tais disciplinas uma “grade de leitura” para seus II
respectivos objetos42. Estrutura é aí entendida como uma rede de
associações em que unidades mínimas móveis e distintas de cer- Embora a adesão ao método estrutural pela crítica literária só se
to conjunto, seja ele linguístico, social ou cultural, se conectam e realize após o impacto provocado pela publicação dos trabalhos
ganham significado apenas por meio de correlações e oposições. de Lévi-Strauss, o interesse comum pela linguagem, objeto de in-
Nesse sentido, o pensamento estruturalista será marcado pela busca vestigação das duas disciplinas, aproximou a teoria da literatura da
de constantes, ou, melhor dizendo, pela pesquisa das estruturas linguística, concorrendo para o aproveitamento das considerações
subjacentes. acerca do signo e das dicotomias desenvolvidas por Saussure para
Por outro lado, devido à pluralidade no uso do conceito de es- o exame da expressão literária. Além disso, a tradução das teses dos
trutura por diferentes áreas de saber na primeira metade do século formalistas russos e tchecos para o inglês, o francês e, em segui-
XX, não se pode esquecer que, por trás do “rótulo estruturalista”, da, para outras línguas latinas favoreceu a circulação de noções,
existiram diversos “estruturalismos”. François Dosse identifica pelo tais como literariedade, estranhamento/desvio, que contribuíram
menos três correntes de pensamento estruturalista: uma, chamada igualmente para especificar, num grau mais apurado e abstrato, a
por ele de “estruturalismo científico”, “representado por Claude linguagem literária44. Para Jakobson, “o objeto do estudo literário
Lévi-Strauss, Algirdas-Julien Greimas ou Jacques Lacan envol- não é a literatura, mas a literariedade, isto é, aquilo que torna deter-
vendo ao mesmo tempo, portanto, a antropologia, a semiótica e minada obra uma obra literária”45. Já o conceito de estranhamento é
a psicanálise”; outra, “estruturalismo semiológico”, “mais flexível , o efeito de distanciamento do padrão, do modo comum, provocado
mais ondulante e cambiante, com Roland Barthes, Gérard Genette, pela obra de arte. De acordo com V. Chklovski, “o objetivo da arte é
Tzvetan Todorov ou Michel Serres”; e, finalmente, “estruturalismo singularizar o objeto”, ou seja, “dar a sensação do objeto como visão
e não como reconhecimento”, na medida em que “o procedimento
a física nuclear, por exemplo, representou para o conjunto das ciências exatas”
(LÉVI-STRAUSS apud HEUSCH). 43 (DOSSE 2007:25-26)
41 (Cf. MUKAROVSKY 1978:141). 44 (ACÍZELO 2004:48-49)
42 (DOSSE, 2007:12, v. I) 45 Jakobson (Apud TODOROV 1979:12)
252 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 253

da arte é o procedimento que consiste em obscurecer a forma, au- se dá a partir da observação dos signos formadores do literário “em
mentar a dificuldade e a duração da percepção”46. O estranhamento seu sentido negativo, quer dizer, na dependência em que se encon-
produziria, então, uma desautomatização da percepção do objeto. tram com outros, pelos diversos fios articuláveis semanticamente
Em termos da língua poética, o estranhamento é um procedimento entre eles”, resume Maria Antonieta Borba50.
que introduz alterações no signo, aumentando, assim, sua carga O número 4 da revista Communications, publicado em 1964,
informacional, promovendo “um desvio da norma, uma ruptura do investido de um papel programático, funcionou como instrumento
significado, uma expansão do significante”, conforme palavras de divulgador da assimilação do modelo da linguística estrutural no
Affonso Romano de Sant’Anna . Portanto, lembra-nos Todorov, se
47
campo dos estudos literários, com os ensaios de Claude Bremond,
é exagerado afirmar que o estruturalismo linguístico seguiu as ideias “Le message narratif ”; Tzvetan Todorov, “La description de la sig-
do formalismo, já que os campos de estudo e os objetivos das escolas nification en littérature”; Christian Metz, “Le cinéma: langue ou
não eram exatamente os mesmos, é fácil localizar nos estruturalistas langage?”; e de Roland Barthes, autor não apenas da “Apresentação”
marcas de influência do pensamento formal na descrição do texto da revista como de dois outros ensaios, “Rhétorique de l’image” e
literário . A própria concepção da obra literária como um sistema é
48
“Éléments de sémiologie”51. Pelo caráter emblemático que assumi-
uma herança formalista49. ram no cenário acadêmico em geral e, em particular, no contexto
Por outro lado, a ênfase na obra em si mesma, considerando-a dos estudos literários no Brasil, entre os ensaios mencionados, serão
como um sistema imanente, e o desprezo dos aspectos extratextuais, tratados aqui dois deles: o de Todorov, “A descrição da significação
tão caros à crítica tradicional, vêm da linguística, mais especifica- em literatura”, e o de Roland Barthes, “Elementos de semiologia”.
mente, da semiologia ou da ciência das significações. Semelhante à De acordo com a versão escrita do seminário ministrado por
significação do signo linguístico que, para Saussure, se configura na Roland Barthes na Escola Prática de Altos Estudos52, em 1962-
dependência da noção do valor, isto é, na dependência da posição 1963, o objetivo de Elementos de semiologia é “esboçar uma teoria
relacional que cada signo estabelece com os outros dentro do siste-
50 (BORBA 2004: 65)
ma, para os estudos da literatura de base estrutural, a significação de 51 O ensaio “Éléments de Sémiologie”, de Roland Barthes, foi traduzido para
uma determinada obra se dá a partir do levantamento, da decompo- o português e publicado, em 1971, pela editora Cultrix. A revista francesa
Communications 4 é introduzida por uma “Apresentação”, assinada também
sição e da rearticulação a posteriori das diversas relações que cada por Barhtes. Na edição da Cultrix, alguns trechos dessa “Apresentação” são
reproduzidos no prefácio também escrito por ele para os leitores brasileiros.
termo estabelece com os outros nas sequências textuais que com- A seguir, traduzo os títulos dos ensaios que compõem a publicação francesa,
põem a obra em questão. Em outras palavras, a significação da obra conforme a ordem em que aparecem na capa da revista: Claude Bremond,
“A mensagem narrativa”; Tzvetan Todorov, “A descrição da significação em
literatura”; Roland Barthes, “Retórica da imagem”; Christian Metz, “O cinema:
46 (CHKLOVSKI 197:45) língua ou linguagem?”; Roland Barthes, “Elementos de semiologia”.
47 (SANT’ANNA 1973:30) 52 A revista Communications, nascida em 1961, provém do Centre d’Études de
48 (TODOROV 1971:11-12) Communication de Masse da École Pratique des Hautes Études (Centro de
49 Cf. Jirmunski, V. Sobre a questão do “método formal” (In: EIKENBAUN et al. Estudos de Comunicação de Massa da Escola Prática de Altos Estudos), criado
1971:57-70). em 1960 por iniciativa de Georges Friedmann (Cf. DOSSE 2007:362, v.I).
254 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 255

da pesquisa semiológica”53. Espécie de manifesto da disciplina, o générale, de a semiologia ser a ciência geral dos signos, da qual a
ensaio, segundo o autor, traduziria “uma solicitação semiológica linguística não passaria de uma parte mesmo que privilegiada. Para
oriunda, não da fantasia de alguns pesquisadores, mas da própria o teórico francês, se é certo que, além da linguagem humana, há, na
história do mundo moderno” . Tecendo um discurso teórico que
54
sociedade contemporânea, outros sistemas de signos, a significação
procurasse dar conta de qualquer sistema de signos, “seja qual desses sistemas (imagens, objetos, gestos) apenas se dá através da
fo[sse] sua substância, sejam quais fo[sse]em seus limites”(imagens, linguagem verbal:
gestos, vestuário, alimentação, cidade, narrativa etc.), nesse ensaio,
Barthes recupera os pares de Saussure língua/fala, significante/ Assim, apesar de trabalhar, de início com substâncias não
significado, sintagma/sistema, denotação/conotação, acrescentan- linguísticas, o semiólogo é levado a encontrar, mais cedo ou
do-lhes a redistribuição hjelmsleviana55. mais tarde, a linguagem (a ‘‘verdadeira”) em seu caminho, não
Segundo Barhes, Hjelmslev não subverteu a concepção saussu- só a título de modelo, mas também a título de componentes,
riana de língua / fala, mas redistribuiu-lhe em três planos distintos: de mediação ou de significado. Essa linguagem, entretanto,
o esquema (que é a língua como forma pura, isto é, a língua no não é exatamente a dos linguistas: é uma segunda linguagem,
sentido saussuriano), a norma (“a língua como forma material, já cujas unidades não são mais os monemas ou os fonemas, mas
definida por certa realização social, mas independente ainda dos fragmentos mais extensos do discurso; estes remetem a objetos
pormenores dessa manifestação”) e o uso (“a língua como conjunto ou episódios que significam sob a linguagem, mas nunca sem
de hábitos de uma dada sociedade”). Entretanto, observa, esse rema- ela. A Semiologia é talvez, então, chamada a absorver-se numa
nejamento não é indiferente, e, diríamos, não será inconsequente. translinguística, cuja matéria será ora o mito, a narrativa, o
Primeiro, porque possibilita a Hjelmslev formalizar radicalmente o artigo de imprensa, ora os objetos de nossa civilização, tanto
conceito de língua, sob o nome de esquema, e eliminar a fala con- quanto sejam falados (por meio da imprensa, do prospecto,
creta em proveito de um conceito mais social, o uso; “formalização da entrevista, da conversa e talvez mesmo da linguagem in-
da língua, socialização da fala, este movimento permite passarmos terior, de ordem fantasmática). É preciso, em suma, admitir
todo o ‘positivo’ e o ‘substancial’ para o lado da fala, todo o diferen- desde agora a possibilidade de revirar um dia a proposição de
cial para o lado da língua” . Segundo, porque admite Barthes inver-
56
Saussure: a Linguística não é uma parte, mesmo privilegiada,
ter a proposição sustentada por Saussure, no Cours de linguistique da ciência geral dos signos: a Semiologia é que é uma parte da
Linguística; mais precisamente, a parte que se encarregaria das
53 (BARTHES 2006:7)
54 (BARTHES 2006:11) grandes unidades significantes do discurso.57
55 Louis Hjelmslev (1899-1965), linguista dinamarquês, fundador do Círculo
Linguístico de Copenhague (1931) e da revista Acta linguistica (1939), em
1943, publicou Prolegômenos a uma teoria da linguagem, obra que se tornou 57 (BARTHES 2006:12-13). Em 1968, Julia Kristeva que considerava a linguística
fundamental para os estudos linguísticos e semiológicos. como parte da semiologia, seguindo Barthes, inverte essa relação também (Cf.
56 (BARTHES 2006:20-21) KRISTEVA 1978).
256 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 257

A resolução linguística em sua teorização acerca da nova dis- o significado pode simplesmente ser justaposto a seu significante”61.
ciplina impõe-lhe a tarefa de, a partir das noções já estipuladas por Ou seja, nos sistemas não isólogos, “o exame das significações exige
Saussure, pensar novas categorias para o estudo da significação. o emprego de uma linguagem distinta da de seus próprios sistemas,
Aliás, a imposição surge da constatação de que a linguística estru- já que, nestes, os significados não são imediatamente apreendidos
tural, “por mais avançada” que estivesse, não havia ainda edificado pelos seus significantes”62. Apesar de a construção da significação
uma semântica, isto é, “uma classificação das formas do significado em literatura se processar pelo emprego da linguagem articulada
verbal”58. Embora a proposição saussuriana do signo como uma re- (mesma substância de seu objeto), Barthes considera o texto literá-
alidade bifacial, isto é, como resultado da união de um significante rio como um sistema não isólogo. Para pensar a significação em li-
e um significado, tivesse sido de extrema importância, pois fez com teratura (como em outros sistemas não isólogos), Barthes lança mão
que a semântica, afastando-se do campo da psicologia, passasse a fa- da semiótica conotativa de Hjelmslev proposta em Prolegômenos a
zer parte da linguística estrutural59, as dicotomias forma/substância, uma teoria da linguagem (2009).
plano da expressão/plano do conteúdo seriam apenas suficientes Conforme já aqui apresentado, para Saussure, o sistema de sig-
para uma disciplina cujo objeto fosse constituído por um sistema nificação do signo linguístico pressupõe um plano de expressão (E) e
isólogo, como é o caso da língua (langue)60. Para Barthes, os sistemas um plano de conteúdo (C), e a significação coincide com a relação (R)
isólogos são aqueles em que “a língua ‘cola’, de modo indiscernível entre os dois planos. Barthes condensa tal processo de significação
e indissociável, seus significantes e significados”; diferentemente, os com o seguinte esquema: E R C63. Contribuindo de modo decisivo
não isólogos — “fatalmente complexos” — são os sistemas “em que para o aprofundamento do processo de significação, Hjelmslev aplica
as noções de forma e substância nos dois planos saussurianos, ope-
58 (BARTHES 2006:48)
59 Para Saussure, como o significado faz parte do signo, a semântica, estudo rando neles uma subdivisão, já que cada plano passa a comportar em
das significações, também faz parte da linguística estrutural. Postura teórica
si dois strata, isto é, cada plano passa a comportar forma e substância.
divergente da corrente mecanista americana que, ao entender o significado
como substância, aloca o estudo da significação na psicologia (Cf. BARTHES O linguista dinamarquês entende forma como “o que pode ser des-
1974:42).
60 Saussure inicia o capítulo III — “O objeto da linguística” — com a seguinte pergunta: crito exaustiva, simples e coerentemente (critérios epistemológicos)
“Qual é o objeto, ao mesmo tempo integral e concreto, da linguística?” Ao se pela linguística”, sem auxílio de nenhuma premissa extralinguística.
propor responder a tal pergunta, ele conjectura se seria a linguagem o objeto da
disciplina. Sua resposta é negativa, pois, se o fosse, a linguagem obrigaria que se Já substância “é o conjunto dos aspectos dos fenômenos linguísti-
fizesse um estudo sobre vários aspectos, levando, assim, o objeto da linguística
a nos parecer “como um aglomerado confuso de coisas heteroclíticas, sem liame
cos que não podem ser descritos sem recorrermos a premissas ex-
entre si”, comprometendo a autonomia da disciplina, uma vez que se abriria “a tralinguísticas”64. Assim, como forma e substância estão presentes
porta a várias outras ciências — Psicologia, Antropologia, Gramática normativa,
Filologia etc.”. Diante disso, Saussure declara: “Há, segundo nos parece, uma tanto no plano de expressão como no plano de conteúdo, a reflexão
solução para todas essas dificuldades: é necessário colocar-se primeiramente no
terreno da língua e tomá-la como norma de todas as outras manifestações da 61 (BARTHES 2006:47)
linguagem. De fato, entre tantas dualidades, somente a língua parece suscetível 62 (BORBA 2004:68-69)
duma definição autônoma e fornece um ponto de apoio satisfatório para o 63 (BARTHES 2006:95)
espírito”. (SAUSSURE 1971:15-17). 64 (BARTHES 2006:43)
258 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 259

hjelmsleviana acerca da construção da significação pressupõe maior Se o próprio da linguagem literária é ser uma linguagem da cono-
complexidade, pois considera os seguintes níveis: 1) uma substância tação, o que interessa à literatura não é o referente, mas o próprio poder
da expressão (em termos do estudo da língua, “a substância fôni- conotativo do signo linguístico. Válida para todo sistema semiológico,
ca, articulatória, não funcional de que se ocupa a Fonética e não a a fórmula proposta por Hjelmslev configura-se bastante importante
Fonologia”); 2) uma forma de expressão (por exemplo, a classificação para os estudos de literatura, pois supõe a “existência do significante e
dos fonemas, objeto da Fonologia); 3) uma substância de conteúdo do significado, cada um por seu turno, como termo e relação”, isto é,
(“por exemplo, os aspectos emotivos, ideológicos ou simplesmente como “significação no interior do par significante/significado (termo)
nocionais do significado, o seu sentido positivo”); 4) uma forma do na dependência do valor (relação), relação mantida pela significação
conteúdo (“a organização formal dos significados entre si, por ausên- com outras significações nos interiores de outros significantes/signifi-
cia ou presença de uma marca semântica”)65. cados”, conforme palavras de Maria Antonieta Borba69.
Essas subdivisões introduzidas nos planos saussurianos permi- Em contrapartida, a reflexão a respeito da significação desenvol-
tem a Hjelmslev pensar a linguagem das significações dos sistemas vida por Hjelmslev abriu caminho para que o pensamento estrutural
semiológicos, na medida em que, em sua reflexão, um determinado em sua abordagem do texto literário privilegiasse o conceito de for-
sistema de significação (ERC) pode se tornar termo de um segundo ma do conteúdo em detrimento do conceito substância do conteúdo.
sistema que lhe seja extensivo, configurando, assim, “dois sistemas Sintonizados com a concepção de autonomia da literatura, alguns te-
de significação imbricados um no outro, mas também desengatados, óricos estruturalistas vão, em suas análises, considerar o texto apenas
um em relação ao outro”, comenta Barthes66. Se o primeiro sistema dentro de seus próprios limites, em sua intratextualidade. Portanto,
(ERC), por sua vez, se torna o plano de expressão ou significante do em suas leituras, esses teóricos examinarão exclusivamente as rela-
segundo sistema — (ERC) RC —, “trata-se do que Hjelmslev chama ções formais, isto é, as recorrências linguísticas presentes dentro do
de semiótica conotativa; o primeiro sistema constitui, então, o plano sistema do texto, desprezando, em consequência, qualquer aspecto
de denotação, e o segundo sistema (extensivo ao primeiro), o plano extratextual. Em decorrência disso, assiste-se também ao declínio da
de conotação”67. E continuando, Barthes afirma: contribuição de outras disciplinas, tais como a sociologia, a filosofia,
a psicologia etc. para a construção da significação da obra literária.
Diremos, pois, que um sistema conotado é um sistema cujo pla- Processo iniciado já com os teóricos dos formalismos russo e tche-
no de expressão é, ele próprio, constituído por um sistema de sig- co, tal atitude traduz o receio de cair numa prática analítica que só
nificação; os casos correntes de conotação serão evidentemente entendia o texto literário a partir de dados biográficos do autor ou
constituídos por sistemas complexos, cuja linguagem articulada das questões sociológicas, antropológicas, filosóficas do contexto em
forma o primeiro sistema (é o caso da Literatura, por exemplo). 68
que o texto fora produzido, conforme mostra Tzvetan Todorov em
65 (BARTHES 2006:43) “A descrição da significação em literatura”.
66 (BARTHES 2006:95)
67 (BARTHES 2006:95)
68 (BARTHES 2006:95-96) 69 (BORBA 2003:71-72)
260 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 261

No ensaio também publicado em Commnunications 4, depois O entendimento da significação a partir do jogo relacional das
de observar que os problemas ligados à significação não são restri- unidades elementares do texto presume, portanto, que, para a abor-
tos à linguística e à filosofia, mas são também de suma importância dagem estrutural, a obra literária, não importando seu gênero, seme-
para a análise literária, Todorov centra sua questão no exame dos di- lhante ao conceito de langue, constitui um sistema e que, como tal,
ferentes planos constituintes na obra literária. Num trabalho seme- está sujeita à configuração de uma estrutura, isto é, a obra literária é
lhante ao de escavação, o autor identifica três planos, configurados um todo formado por elementos solidários entre si e interligados por
no texto, prosa ou poesia, como camadas superpostas e interligadas, uma tensão dinâmica. Em contrapartida, percebê-la como sistema
aqui apontados esquematicamente. O primeiro, o da expressão, é o indica que se considera a obra literária em si mesma, quer dizer, a
plano da “distribuição fonemática, sobre o qual o plano de conteúdo obra literária em sua autonomia, como “linguagem sistemática que
não intervém”; o outro, “plano gramatical” ou “plano da forma do chama a atenção sobre si própria, que se torna autotélica”; linguagem
conteúdo”, “desempenha um papel muito importante para a signi- intransitiva, opaca, pois não remete a uma realidade externa, seja ela
ficação literária”; finalmente, o plano da “substância do conteúdo”, emotiva do autor, seja ela ideológica do contexto social72.
dependente da semântica70. Com a pretensão de apresentar um en- Dessa maneira, como se lê em Barthes73, do ponto de vista da
foque radicalmente estruturalista, Todorov, mesmo reconhecendo atividade estruturalista, para se alcançar a significação da obra, é
que na obra literária haveria a presença de traços de outros sistemas preciso submetê-la à análise, procedimento que, por sua vez, pres-
significativos que não apareceriam na linguagem articulada, tais supõe duas operações distintas e sucessivas: desmontagem (décou-
como, os sistemas derivados da vida social ou cultural ou ainda page) e arranjo (agencement)74. Primeiro, desarticula-se a obra para
nacional, descarta o estudo desses indícios da análise estrutural e que se encontrem nela “fragmentos móveis cuja situação diferencial
lança as linhas básicas para que o crítico da literatura, abandonando gera certo sentido”75, isto é, desmonta-se a obra para que se identifi-
uma prática de leitura preconizadora de uma “atitude projetiva”71, quem nela as unidades mínimas (ou funções), trabalho semelhante
corrente no século XIX, presente ainda no XX (e, talvez, continu- ao que se faz com os fonemas76 ou monemas na linguística ou com
ada até hoje, século XXI), passasse a conceber a significação como 72 (TODOROV 1980:18)
o produto das múltiplas relações e articulações que os elementos 73 (Cf. BARTHES 2009:49-67)
74 (BARTHES 2009:51)
constitutivos do literário instaurariam entre si no texto. 75 (BARTHES 2009:52)
76 Os fonemas são unidades mínimas do plano de expressão e só têm existência
70 (TODOROV 1964:33-34) significativa por suas fronteiras. De acordo com Saussure, sendo a língua pura
71 No ensaio “Como ler?”, de 1969, Tzevetan Todorov entende por atitude projetiva forma, o objetivo da linguística seria estudar o conjunto de traços distintivos
“uma concepção do texto literário como transposição feita a partir de uma do fonema. Mas esses traços não se apresentam isoladamente, antes, são
série original”: enquanto o autor seria o responsável pela primeira passagem propriedades fônicas concorrentes: /t/ é, ao mesmo tempo, um fonema oclusivo,
do original à obra, competiria ao crítico levar o leitor a “percorrer o caminho dental, surdo, e se distingue de /d/, oclusivo, dental, sonoro. Em português, é,
inverso, fechar o anel, voltando à origem”. Se as projeções variariam conforme portanto, a oposição entre surdo e sonoro presente nos fonemas /t/ e /d/ que
as acepções sobre a natureza da origem (biografia do autor, ou o contexto distingue /tia/ de /dia/. Por outro lado, as variantes do fonema /t/, por exemplo,
social, ou ainda o “espírito humano”) o ponto comum entre elas seria que /tch/, traço característico da fala carioca antes da vogal /i/, /tchia/, não importam
todas guardariam em relação ao texto literário “uma mesma atitude redutora e para a língua, uma vez que a diferença de pronúncia não afeta o significado. Daí,
instrumentalista” (TODOROV 1979:249-250). conforme observação de Maria Antonieta Borba, para Saussure, para a linguísica,
262 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 263

os mitemas propostos por Lévi-Strauss no estudo do mito. Depois, “unidade narrativa”, isto é, todo segmento da história que se apre-
excluindo todos os elementos não pertinentes, recupera-se signifi- senta como termo de correlação. Em seu estudo acerca dos contos
cativamente o objeto literário, explicando e explicitando seu signifi- populares russos, Propp, ao examinar o jogo entre constantes e
cado, pois o que está em jogo nesse segundo estágio é “uma espécie variáveis, assinala que, nas estruturas dos “contos maravilhosos”,
de combate com o acaso”, nos diz Barthes. Daí, “os constrangimentos os nomes, os atributos das personagens podem sofrer modifica-
de recorrência te[rem] um valor demiurgo”. E, continuando, afirma: ções, porém suas ações ou funções não79. As funções constitui-
riam, portanto, a própria estrutura da narrativa. Daí, no célebre
[...] é pela volta regular das unidades e das associações de unida- ensaio publicado em 196680, na revista Communications 8, Barthes
des que a obra aparece construída, isto é, dotada de sentido; os afirmar que “a narrativa só se compõe de funções: tudo, em graus
linguistas chamam essas regras de combinação de formas, e have- diversos, significa aí”81.
ria grande interesse em conservar esse emprego rigoroso de uma Tomando de empréstimo da linguística o conceito de “nível
palavra por demais gasta: a forma, como se disse, é o que permite de descrição”82, a significação dessas unidades narrativas, ou fun-
à contiguidade das unidades não aparecer como um puro efeito ções, depende das relações que essas unidades instauram entre si
do acaso: a obra de arte é o que o homem arranca do acaso.77 na composição narrativa. Tais relações podem ser de dois tipos:
distribucionais ou sintagmáticas (as que se dão num mesmo nível);
Neste mesmo ensaio, Barthes define o estruturalismo como relações integrativas ou paradigmáticas (aquelas que acontecem de
sendo “essencialmente uma atividade”. Segundo ele, “o objetivo de um nível para outro). Por conseguinte, de acordo com Barthes, a
toda atividade estruturalista [...] é reconstituir um ‘objeto’, de modo significação não está em um dos eixos, mas atravessa a narrativa:
a manifestar nessa reconstituição as regras de funcionamento (as
‘funções’) desse objeto. A estrutura é [...] um simulacro desse objeto”. 79 (PROPP 1994:20)
Entendendo simulacro como o resultado da “fabricação verdadeira 80 (Cf. BARTHES 2011:19-62)
81 (BARTHES 2009:29). De acordo com François Dosse, a revista Communications
de um mundo que se assemelha ao primeiro, não para copiá-lo, mas publicou, em especial, dois números programáticos que, preparados por um
para o tornar inteligível”, Barthes vê a atividade estruturalista como grupo em torno de Roland Barthes, funcionaram como “verdadeiras sínteses
das ambições estruturalistas”: o número 4 – Recherches Sémiologiques – [1964],
uma “atividade de imitação”, mimesis “fundada não sobre a analogia onde foi publicado o ensaio “Elementos de semiologia”, de Barthes, já referido

das substâncias”, mas sobre a das funções: “recompõe-se o objeto aqui anteriormente, e o número 8 [1966], “consagrado à análise estrutural da
narrativa e que figura[ria] como autêntico manifesto da escola estruturalista
para fazer aparecer funções”78. francesa” (DOSSE 2007:362; 414, v.1). O número 8 de Communications –
L’analyse structurale du récit, traduzido integralmente pela Vozes em 1971 —
Conceito colocado em circulação pelos formalistas russos Análise estrutura da narrativa —, exibe ensaios de Roland Barthes, A. J. Greimas,
e retomado por V. Propp, compreende-se função como uma Claude Bremond, Umberto Eco, Jules Gritti, Viollete Morin, Christian Metz,
Tzvetan Todorov, Gérard Genette, além de um dossiê com uma pequena relação
só é pertinente “o estudo das unidades enquanto elas mantive[rem] relações de trabalhos que, segundo o grupo, apresentaria o ponto de vista estruturalista.
de diferença de significado com outras unidades da língua”. (BORBA 2004:68). 82 Cf. “As descrições linguísticas não são nunca monovalentes. Uma descrição não
77 (BARTHES 2009:54) é exata ou falsa, é melhor ou pior, mais ou menos útil” (BARTHES 2011:25, nota
78 (BARTHES 2009:51-52) 13).
264 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 265

Compreender uma narrativa não é somente seguir o esvaziamen- signos: “seu ser não está em sua mensagem, mas nesse ‘sistema’”87.
to da história, é também reconhecer nela “estágios”, projetar os Tal concepção de literatura permite que Gérard Genette, seguindo
encadeamentos, horizontais do “fio” narrativo sobre um eixo im- o ensinamento de Lévi-Strauss, identifique a atividade da crítica
plicitamente vertical; ler (escutar) uma narrativa não é somente literária estruturalista com “uma espécie de bricolage intelectual”88.
passar de uma palavra a outra, é também passar de um nível a No ensaio “Estruturalismo e crítica literária”, Genette mostra
outro. 83
que Lévi-Strauss, “num capítulo já clássico de La Pensée Sauvage”,
caracteriza a bricolage como uma atividade que se realiza “a partir
Por outro lado, as etapas de desmontagem e de arranjo efetua- de conjuntos instrumentais que não foram constituídos tendo em
das no objeto pelo simulacro da análise revelam como os conceitos vista essa atividade”; “a regra da bricolage é sempre se arranjar com
de sintagma e paradigma, ao serem usados pela teoria da literatura, os meios a bordo” e “investir numa nova estrutura resíduos trans-
tornam-se mais complexos, na medida em que a etapa de arranjo, ladados de antigas estruturas” a partir de uma dupla operação: a de
não se limitando à mera recomposição do texto literário, visava à análise “(extrair diversos elementos de diversos conjuntos constitu-
construção de uma significação do texto literário. Voltando ao en- ídos)” e a de síntese “(construir a partir desses elementos heterogê-
saio “A atividade estruturalista”, de Barthes, o simulacro construído neos um novo conjunto no qual, em suma, nenhum dos elementos
manifestaria uma categoria nova do objeto, que não seria nem o reempregados reencontrará sua função original)”89. O universo ins-
real nem o racional, mas o funcional84. Assim, o projeto de toda trumental do bricoleur é, portanto, um universo “fechado”, já que se
atividade estruturalista era construir um simulacro do objeto obser- volta “para uma coleção de resíduos de obras humanas, isto é, a um
vado, mas, como diz Barthes, “um simulacro dirigido, interessado, subconjunto da cultura”90. Nesse sentido, a atividade descrita como
já que o objeto imitado faz aparecer algo que permanecia invisível, bricolage se assemelha à atividade crítica, particularmente, à crítica
ou, se se preferir, inteligível no objeto natural” . Ou, como nos diz
85
literária, que se diferencia das outras atividades críticas pelo fato de
Silviano Santiago, no ensaio “Análise e interpretação”, no simulacro se valer do mesmo “material” – a linguagem articulada – utilizado
construído pelo crítico “era o inteligível que se acrescentava ao sen- pelas obras de que se ocupa. Enquanto a crítica de arte ou a crítica
sível” . Nessa perspectiva, abandonando uma prática tradicional
86
musical não se expressam em cores ou em sons, a crítica literária
que se restringia a parafrasear a obra estudada, a tarefa da crítica é “um discurso sobre um discurso; é uma linguagem segunda ou
seria expor as exigências de elaboração de sentido, as condições de metalinguagem [...], que se exerce sobre uma linguagem primeira
sua validade. Até porque a adoção de tal perspectiva pressupõe con- (ou linguagem-objeto)”, conforme diria Roland Barthes no ensaio
ceber a literatura como uma linguagem, isto é, como um sistema de

83 (BARTHES 2011:27) 87 (BARTHES 2009:162)


84 (BARTHES 2009:54) 88 (GENETTE 1968:42)
85 (BARTHES 2009:51) 89 (GENETTE 1968:42)
86 (SANTIAGO 1978:193) 90 (GENETTE 1968:43)
266 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 267

“O que é a crítica”, incluído na edição brasileira Crítica e verdade91. Se o estruturalismo representou, na França, no final da década de 1950
Daí, o objetivo da crítica não ser o deciframento da obra estudada, e no início da de 1960, uma ruptura, e uma consequente superação,
mas a recomposição de regras e constrangimentos de elaboração com o academismo da velha Sorbonne ainda dominada pela aborda-
desse sentido. Como atividade puramente formal, a meta de toda gem positivista de Lanson, e com o método tradicional da explication de
atividade estruturalista seria açambarcar a totalidade da obra. De texte, no Brasil, um pouco mais tarde, no fim dos anos 60 e no começo
posse de operadores conceituais plasmados por seus teóricos, a am- dos 70, o princípio da produção de um novo conhecimento nascido
bição da crítica estruturalista era construir uma gramática geral da nos recém-inaugurados cursos de pós-graduação de nossas universida-
narrativa, como se percebe tanto na obra de V. Propp, Morfologia des, a preocupação de não cair numa prática de leitura que via o texto
do conto, quanto no ensaio de Barthes, “Introdução à análise estru- literário como reflexo ou de dados biográficos do autor ou de questões
tural da narrativa”, mencionados anteriormente nesta exposição. sociológicas, filosóficas do contexto correspondeu a um outro equívo-
Entretanto, a vulnerabilidade de tal ambição estava em seu próprio co: conceber o texto unicamente como sistema, desprezando quaisquer
pressuposto: “a narrativa seria uma langue internacional, a que as re- referências extratextuais, inclusive o autor e o leitor. Tal concepção não
alizações particulares se subordinariam como paroles!” . O modelo 92
só simplificou o entendimento do texto, reduzindo-o e subordinando-o
teórico estrutural, baseado, sobretudo, nos ensinamentos científicos a um modelo já conhecido, como limitou a teorização acerca do lite-
da linguística, acabava por reduzir a multiplicidade das narrativas rário, mantendo o empirismo da crítica. A recepção do pensamento
a um único modelo, na medida em que privilegiava a sintaxe em estrutural no Brasil é o assunto do próximo bloco.
detrimento da semântica. De acordo com Silviano Santiago:
III
O jogo e a relação se esgotavam no centramento operado pela
reconstituição totalitária, pelo movimento do agencement, na Pode-se dizer que, do ponto de vista internacional (e eu arriscaria
sua tentativa de configurar a solidariedade de todos os elementos incluir também do brasileiro), o estruturalismo significou “o auge
do objeto “natural”, de configurar o que Barthes chamava de “si- da reflexão teórica dos estudos literários”94. Por outro lado, sua ir-
mulacro”. Não tinham, ainda, é claro, como preocupação maior a radiação no terreno da literatura sempre se mostrou problemática
organização desses objetos naturais dentro de uma determinada lá e cá. Alvo de ataques vindos de diferentes correntes acadêmicas
ordem que escapasse às da semelhança e da oposição, proporcio- ou posições políticas, o estruturalismo foi, pejorativamente, perce-
nada pela visão sincrônica (a-histórica) ou dada de presente pelo bido por seus opositores como um modismo. Mas, como chamou a
modelo teórico utilizado.93 atenção Leyla Perrone-Moisés, “a moda, considerada em certo nível,
é algo muito sério, é o sistema de formas que define uma época”95.
91 (BARTHES 2009:160)
92 (LIMA 1983:225) 94 (LIMA 2008:8)
93 (SANTIAGO 1978:197) 95 (PERRONE-MOISÉS 2009:8)
268 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 269

No ambiente dos estudos literários no Brasil, a recepção do estruturalismo de Lévi-Strauss — coletânea de textos selecionados
pensamento estrutural aconteceu num momento em que aqui se por Luiz Costa Lima, quem também assina a advertência e a in-
assistia à implementação de uma política de especialização no en- trodução —, pela editora Vozes, em 1968; também pela Vozes,
sino universitário através da criação dos cursos de pós-graduação, alguns anos depois, em 1973, Estruturalismo e teoria da literatura,
iniciada no final da década de 1960, na USP, em São Paulo, e no tese de doutorado de Costa Lima, defendida em 1972, na USP, sob
início da de 1970, na UFRJ e PUC-Rio, no Rio de Janeiro. orientação de Antonio Candido; e, no mesmo ano de 1973, Análise
A essa tendência à especialização, nos anos 70, acrescenta-se estrutural do romance, de Affonso Romano de Sant’Anna.
uma outra situação que, pelo menos à primeira vista, se mostraria Discordando da posição defendida recentemente por José
contrária ao processo de refinamento teórico-acadêmico, como já Jobson de Andrade Arruda, que, em sua apresentação à tradução
observou Flora Süssekind. A partir de 1968, sob a ditadura mili- brasileira da obra de François Dosse, anota a recepção tardia do
tar instaurada no país desde 1964, a universidade brasileira viveu estruturalismo entre nós decorrente do nosso inevitável descom-
um período dificílimo com a cassação de professores, a proibição passo “em relação à produção/difusão das ideias matrizes geradas
de adoção de certos autores considerados indesejáveis pelo regime nos centros intelectuais hegemônicos”97, o Editorial do número
em seus currículos, a presença acintosa de policiais em seus campi temático 15/16 da TB assinalava, no calor da hora, a rapidez com
e até em salas de aula, tornando extremamente penoso o trabalho que o pensamento estruturalista aportou no Brasil. Por outro lado,
intelectual. Sob essa perspectiva, a década de 70 apresentou uma não se pode deixar de notar que a revista TB e os livros da Vozes
natureza mista, pois foi nessa atmosfera de interdição que a crítica revelam nuances que distinguem posições teóricas assumidas por
literária brasileira experimentou um salto qualitativo, aperfeiço- seus respectivos autores e organizadores em relação ao estrutura-
ando seus instrumentos teóricos e conceituais na reflexão sobre o lismo. Aliás, tais posicionamentos, na época, expressavam também
fenômeno literário . É nesse contexto bifronte que o estruturalismo
96
filiações intelectuais e agrupamentos institucionais. Por exemplo, os
despontou como a grande novidade no campo dos estudos literários nomes de Luiz Costa Lima e Affonso Romano de Sant’Anna, durante
nas universidades brasileiras, sobretudo, nas cariocas. os anos de 1970 e 1980, estão associados ao programa de pós-gra-
Algumas obras publicadas, entre 1967 e 1973, podem ser duação de Letras da PUC-Rio, que, representando uma inovação no
vistas hoje como marcos da difusão, do êxito e do alcance dos panorama intelectual, propunha, ao incluir em suas reflexões críticas
princípios teóricos e metodológicos do pensamento estrutural nas os discursos da antropologia e da psicanálise, uma abordagem inter-
universidades cariocas: o número temático da Revista tempo bra- disciplinar dos estudos de literatura. Já os autores da área de Letras
sileiro, Estruturalismo, de 1967, com artigos tratando de diferentes que participam do número temático da Revista Tempo Brasileiro
saberes das Ciências Humanas, tais como linguística, antropologia, dedicado ao estruturalismo ligam-se, institucionalmente, à UFRJ (J.
filosofia, história, critica literária, psicanálise, economia; a obra O Mattoso Câmara Jr., Eduardo Portella, Liba Beider, Miram Lemle),
96 (SÜSSEKIND 1985:10-41) 97 (ARRUDA In: DOSSE 2007:V)
270 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 271

cuja orientação teórica, pautada nos conceitos de literariedade, fun- aderir a um processo de atualização de modo indiscriminado pode
damento para as análises do new criticism, do formalismo russo e levar ao próprio esvaziamento da capacidade crítica do projeto teó-
da fenomenologia, reforçava em seus trabalhos críticos uma dicção rico recorrido, “tornando-se ele apenas ‘estrangeirado’”101. Colocar o
puramente formal do texto. problema da atualização dentro da visada da dependência cultural,
De qualquer modo, pensar na contribuição do estruturalismo articulando-o com a produção intelectual de antecessores imedia-
para os estudos de literatura no Brasil exige uma reflexão que ul- tos e remotos, foi uma das estratégias seguidas para se alavancar o
trapasse a constatação de ele ter sido uma “moda literária” ou não. avanço da reflexão teórica sobre a literatura brasileira nos cursos de
Até porque, como observado antes, mesmo em plagas reconhecida- pós-graduação recém-inaugurados naqueles anos 70 do século XX.
mente acostumadas a receber influxos externos de toda ordem, o No curso de Letras da USP, sem deixar de “marcar sua dívida para
modismo não deixa de corresponder a “necessidades sociais quanto com os pensadores da Escola de Frankfurt”, a atualização teórica
à formação de receber o discurso literário”98. Uma dessas demandas se deu sob “a discussão do lugar da teoria marxista no Brasil”102,
é o problema da atualização do conhecimento99. Sendo o Brasil um filão que levou adiante a reflexão crítico-dialética plasmada em tor-
país que sofreu censuras culturais durante o período colonial e de- no de Antonio Candido, que privilegia os aspectos sociológicos da
pois, com a independência, se viu envolto por um ferrenho “instinto abordagem do texto literário103. Já no Rio de Janeiro, o problema da
de nacionalidade” como critério de produção, recepção e avaliação atualização foi colocado de uma maneira radical a partir da própria
da obra arte , ponto de vista benévolo se apreciado a partir da em-
100
“matéria” que constitui o objeto de estudo da crítica literária, isto
presa de construção de uma identidade coletiva, mas correndo o é, a partir da verificação da linguagem. Munidos de fontes teóricas
risco de ser extremamente limitador, controlador da perspectiva da que se originavam no estruturalismo francês de base interdisci-
criação ficcional e da teoria, abrir-se para um pensamento plasma- plinar (PUC-Rio) ou no pensamento filosófico de Heidegger no
do nos grandes centros acadêmicos europeus e norte-americanos e, que se refere à linguagem poética (UFRJ), a atualização realizada
com essa ferramenta, apreciar nossa produção artística e intelectual pelos professores das universidades cariocas passava também pela
é, sem dúvida nenhuma, uma via para se alinhar criticamente ao revisão crítica de dois grandes trabalhos anteriores: o de Antonio
contemporâneo, evitando-se, assim, cair num provincianismo es- Candido, Formação da literatura brasileira, e o coletivo, sob a di-
treito e fatal. Em contrapartida, de acordo com Silviano Santiago, reção de Afrânio Coutinho, A literatura no Brasil104. Vale lembrar,

98 (LIMA 1983:223) 101 (SANTIAGO 1979-1980:40)


99 Cf. Depoimento dado por Silviano Santiago, em 1979, a Heloísa Buarque de 102 (SANTIAGO, 1979-1980:42)
Hollanda e Marcos Augusto Gonçalves, publicado em (FREITAS FILHO 1979- 103 (Cf. SCHWARZ 1977)
1980:38-48, v. 2). 104 (SANTIAGO 1979-1980:42,44). Não só o grupo do Rio de Janeiro havia de
100 Expressão cunhada por Machado de Assis, em ensaio publicado em 1873, ser “conformado e informado” pelos trabalhos de Antonio Candido e Afrânio
para identificar a fórmula que orientaria os escritores, a crítica e o público do Coutinho, mas o de São Paulo também. Cf. Depoimento de Silviano Santiago
século XIX, que apenas reconheciam como nacionais as obras que tratassem de a Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Augusto Gonçalves (SANTIAGO
assuntos locais (Cf. ASSIS [1873] 1985:801-809, v. III). 1979-1980:44).
272 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 273

contudo, que os professores de maior projeção da pós-graduação da professores doutores identificados com a corrente estruturalista em
PUC naquele período, Affonso Romano de Sant’Anna, Luiz Costa seus trabalhos críticos naquela primeira metade dos anos de 1970 fez
Lima, Silviano Santiago, “tiveram obscuras origens na província com que o estruturalismo fosse igualmente tachado como alternati-
e consolidaram sua educação fora do país”; quando assumiram a va reacionária, cúmplice do regime militar, além de ser considerado
PUC-Rio, não deram continuidade a nenhuma tradição acadêmica o grande responsável por destruir o encanto e, em consequência, o
já estabelecida105. Situação diferente dos contemporâneos paulistas, prazer da leitura da obra literária e de afastar o aluno de Letras do
discípulos diretos de Antonio Candido, e dos professores ligados à texto. O poema “Exorcismo”, de Carlos Drummond de Andrade108,
UFRJ, alunos ou ex-alunos de Afrânio Coutinho, Eduardo Portella Caderno B do Jornal do Brasil, 12/04/1975, e alguns ensaios publi-
e J. Mattoso Câmara Jr. cados em jornais cariocas, tais como “O estruturalismo dos pobres”,
Mas, no Brasil, o ataque ao estruturalismo não se limitou de José Guilherrme Merquior, Jornal do Brasil, 27/01/1974109, “A
ao fato de ser visto como mais uma “moda importada”. Num país morte da literatura brasileira”, de Ledo Ivo, O Globo, 23/06/1975,
pouco afeito à teoria e onde o reconhecimento social do escritor as respostas de Carlos Nelson Coutinho e de Antônio Carlos Brito,
se deu através de sua participação em campanhas cívicas, no pa- Opinião, nº 160, 28/11/1975, ao artigo de Luiz Costa Lima, “Quem
pel de tribuno ou de jornalista, como mostrou Antonio Candido, tem medo de teoria?”, Opinião, nº 159, 22/11/1975, expressam,
ao configurar a relação entre escritores brasileiros e público leitor irônica e ofensivamente, a posição daqueles que defendiam uma
no século XIX , a figura do crítico literário, tradicionalmente, se
106
postura antiteórica dos estudos literários. Como já ressaltado por
pautaria na imagem do “homem de letras”, do bacharel , e não na 107
outros críticos, o texto de Merquior apresenta um tom não apenas
do especialista, de formação universitária. Dessa maneira, o uso de zombeteiro e hostil, mas também elitista, já anunciado no título que
uma linguagem analítica para a abordagem do texto pelos jovens exibe110. Leiamos uma de suas passagens:

105 (MORICONI 1996:15)


106 (Cf. CANDIDO 1985:73-88). Assinalo também que, em ensaio aqui já referido, O pedantismo e a esterilidade estruturalistas assolam Paris. [...]
“Notícia sobre a atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade” [1873],
Machado de Assis já chamava atenção para a rarefação de nosso público leitor Entre nós, porém, a praga atua de modo mais daninho. O pedan-
e para pouca disponibilidade dele para a leitura e reflexão das obras. Observo tismo da “matriz” (cinquenta anos depois da explosão ao mesmo
ainda que, em escrito anterior, de 1858, “O passado, o presente e o futuro da
literatura brasileira”, Machado, ao comentar a obra poética de José Bonifácio, tempo nacionalizante e universalista do modernismo, voltamos a
afirma que Bonifácio “teria sido mais poeta se fosse menos político; mas não
macaquear abjetamente os piores aspectos da cultura francesa),
seria talvez tão conhecido das classes inferiores” (ASSIS 1985:786, v.III). Cf.
também (LIMA 1983; 1981). o abuso agressivo de terminologia superfluamente hermética em
107 O homem de letras, ou o crítico “à moda antiga”, conforme palavras de Afrânio
Coutinho, predominou até meados da década de 1940, quando começou a atuar
na crítica literária veiculada nos jornais uma geração de críticos advindos da 108 Construído sob forma de ladainha, o poema realça a ilegibilidade da linguagem
universidade, como Antonio Candido, em São Paulo, e Afrânio Coutinho no Rio da crítica literária. “Exorcismo” aparece no livro Discurso de primavera e algumas
de Janeiro. Enquanto a reflexão do “homem de letras” se dava sob forma da sombras, publicado em 1977, pela Record.
resenha veiculada sobretudo, no jornal, a reflexão do crítico universitário se faz 109 O ensaio foi republicado em livro pela Editora Tempo Brasileiro em 1975.
através do livro e da cátedra (Cf. SÜSSEKIND 1993:13-33 ). 110 (SOUZA 2012:64-68)
274 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 275

lugar do real trabalho de análise, quase nunca depara, neste Brasil poema de Drummond estampado no Caderno B do JB, em abril
de jovens e precaríssimas universidades, com a resistência da de 1975. No artigo, o poeta e jornalista afirma que o perecimento
pesquisa séria e do ensino crítico. Ao contrário: como as univer- da literatura seria proclamado por “adultos papa-defuntos que se
sidades “brotam” agora (numa expansão demasiado rápida para expressa[riam] em estruturalês”. Os professores universitários, “se-
ser levada a sério), e os ignorantes se diplomam e se doutoram nhores inflamados”, “magos amargurados”, castrariam a vocação dos
às centenas, a arrogância intelectual mais oca e mais inepta se jovens poetas, ao depositarem “em seus ouvidos as últimas e desola-
dá facilmente ares dogmáticos de ciência exclusiva . No entanto, doras novidades do mundo”. E continuando, declara: “O terror que
os sacerdotes do Método não sabem sequer português. Nossa mata as letras está na comunicação pedagógica ou parapedagógica
ensaística atual é o paraíso do solecismo, o éden do barbarismo. que considera a teoria mais importante do que a prática. Digamos
Se você encontrar um título sobre “escritura”, não creia que se sem medo: o carrasco é o teórico ou exegeta que embalsama o texto
trata de uma obra para tabeliães: trata-se mesmo é de “écriture”, vivo: o censor é o professor”113.
que os nossos preclaros estruturalistas não sabem traduzir por É de se estranhar que o poeta-jornalista-acadêmico reconhe-
“escrita”...111 cesse como “carrascos” e “censores” os professores universitários,
empenhados em desenvolver entre nós uma reflexão teórica acerca
Segundo Merquior, os efeitos do método estrutural no “am- da literatura, num período em que brasileiras e brasileiros eram
biente tupiniquim” seriam muito maléficos, na medida em que o seu torturados, às vezes até a morte, por agentes da ditadura militar e
sucesso dever-se-ia a uma falta de tradição crítica e de independên- que os mercados editorial e fonográfico, os jornais, os cinemas e os
cia intelectual da universidade brasileira; exceção que caberia à USP, teatros sofriam diretamente a ação da censura igualmente promovi-
“a mais amadurecida das nossas instituições universitárias”. Daí a da pelo regime implementado no país a partir de 1964.
resistência da universidade paulista ao “delírio estruturalista”. Sob “Exorcismo”, de Carlos Drummond de Andrade, é também
o invólucro de um discurso pseudorrevolucionário, o pensamento uma reação irônica contra a teoria estruturalista. De acordo com
estruturalista seria bastante conformista, conivente com “a situação Eneida Maria de Souza, em “Querelas da crítica”, o poema, constru-
crítica da intelligentsia latino-americana e, em particular, com a ído sob forma de ladainha, realça a ilegibilidade da linguagem da
crise da educação superior”112. A falta de tradição crítica associada à crítica “que pretendia atingir o estatuto de Ciência”114. Drummond
massificação do ensino superior de graduação e de pós-graduação, reagiria no poema a qualquer tentativa de formalização do dis-
que estaria diplomando jovens que sequer dominariam o português, curso literário, assumindo uma posição semelhante à de Oswald
explicaria o sucesso do estruturalismo entre nós. de Andrade que, nos anos 40, chamara de “chato boys” os críticos
Não menos equivocado é “A morte da literatura brasileira” recém-formados pela USP, Antonio Candido, Décio de Almeida
(O Globo, 23/06/1975), de Lêdo Ivo, que parece fazer coro com o Prado, Paulo Emílio Salles Gomes e outros, que, abandonando uma

111 (MERQUIOR 1975:11) 113 (IVO 1975:37)


112 (MERQUIOR 1975:12) 114 (SOUZA 1993:1-2)
276 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 277

linguagem impressionista do texto, procuravam, através de critérios Brasileira. Os estudantes conheceriam os formalistas russos, mas
formais, analisar as obras literárias com seriedade115. nunca teriam lido Dostoievsky; discutiriam Todorov e Kristeva sem
O repúdio à teoria estruturalista presente no poema de nunca terem passado os olhos sobre uma página de Machado de
Drummond conquistou simpatizantes diversos. Por exemplo, Assis ou Graciliano Ramos. Esse tipo de formação não apenas pro-
além das adesões manifestadas na imprensa, um mês depois da moveria um extremo pedantismo literário como também favorece-
publicação do poema no JB, aconteceu o I Ciclo de Debates da ria um distanciamento da realidade: para chegar até ela, o estudante
Cultura Contemporânea no Teatro Casa Grande116, no Rio de não teria apenas de passar pelo texto literário, mas também pelo
Janeiro, realizado entre os dias 7 de abril e 26 de maio. Na segun- texto que teoriza sobre o texto literário118.
da-feira, dia 19/05/1975, o debate girou sobre literatura nos anos Diante do exposto até o momento, pode-se considerar o poe-
70 e foi comandado por uma mesa-redonda formada por Antonio ma como o estopim de uma polêmica que, extrapolando os campi
Callado, Antonio Houaiss e Affonso Romano de Sant’Anna. Alceu universitários e ganhando espaço nos jornais, ficou conhecida como
de Amoroso Lima, embora houvesse sido convidado para participar a “polêmica do estruturalismo” ou “polêmica da teoria”119. Voz des-
do evento, não pôde comparecer117. De acordo com Mário Pontes, toante nesse coro de adesões a Drummond é a de Luiz Costa Lima,
autor da matéria “Na literatura, muito impulso criador e pouco es- que publicou, em 22/11/1975, no jornal semanal Opinião, “Quem
paço para criação”, publicada no JB no dia 21/05/1975, isto é, dois tem medo da teoria”, resposta ao poema de Drummond e, de rol-
dias depois do evento do Casa Grande, foi uma pergunta da plateia, dão, aos outros artigos saídos na imprensa. O ensaio de Costa Lima
provavelmente formulada por um estudante – segundo especulação destaca-se, pela força teórica em sua argumentação, ao esboçar uma
de Antonio Carlos Brito feita no ensaio “Bota na conta do Galileu, análise do sistema intelectual brasileiro120, suscitando uma série de
se ele não pagar nem eu” (Opinião, nº 160, 28/11/1975) – que es- outros artigos-resposta121.
quentou os ânimos: seria conveniente a introdução de uma cadeira 118 (PONTES 1975:1)
de criação literária nas faculdades de Letras do país? 119 (Cf. SÜSSEKIND 1985:28-34) (SOUZA 1993:1-22; 2002:15-25) (MORICONI
1996:55-73). Em 2008, no XI Congresso Internacional da Abralic, apresentei o
A essa pergunta, Antonio Candido respondeu identificando ensaio “A polêmica do Estruturalismo ou Quem tem medo de teoria?.” em que
o problema de falta de familiaridade do aluno com o texto literá- trabalho com textos que tratavam da polêmica coletados dos jornais cariocas
entre 1974 e 1975.
rio com o “excesso de teoria” nas escolas de Letras. Conforme o 120 Em “Da existência precária: o sistema intelectual no Brasil”, ensaio publicado

diagnóstico do professor da USP, todas as disciplinas de Literatura em 1978, em Cadernos de Opinião, nº 2-5, p. 28-41, e depois republicado em
1981, em Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria, Livraria Francisco
estariam pouco a pouco se transformando em disciplinas de teoria; Alves, p. 3-27, Costa Lima aprofundará o conceito de auditividade. Tal conceito
foi retomado em ensaios posteriores, tais como “Dependência cultural e estudos
não se ensinaria mais Literatura Brasileira, mas Teoria da Literatura literários” (In LIMA 1991:266-278); “Machado: mestre de capoeira” In LIMA
2002:327-339) e “Letras à mingua” (LIMA 2006:6).
115 (Cf. CANDIDO 1977:57-87) 121 Nas semanas que se sucederam ao ensaio de Costa Lima, foram publicados os
116 Localizado no Leblon, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro, atualmente o Teatro seguintes artigos-resposta: “Há alguma teoria com medo da prática?”, de Carlos
Casa Grande transformou-se na casa de espetáculo Oi Casa Grande. Nelson Coutinho (Opinião nº160, no mesmo número, “Bota na conta do Galileu,
117 Trato desse debate no ensaio “A polêmica da teoria e outras polêmicas: cenas se ele não pagar nem eu”, de Antônio Carlos Brito. Ao final de seu artigo, Antônio
dos estudos de literatura no Rio de Janeiro” (In: RODRIGUES 2013). Carlos Brito, conhecido como Cacaso, poeta e professor da PUC-RJ, morto em
278 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 279

A argumentação de “Quem tem medo de teoria/” parte da arti- propostas por Antonio Candido e Haroldo de Campos”, para Costa
culação entre o caráter auditivo e a pecha de dependência de nossa Lima, naquele momento, ainda não se teria verificado entre nós “o
cultura. Desenvolvido anteriormente por Antonio Candido em “O desenvolvimento do pensamento crítico até a dimensão da teori-
escritor e o público” (1985) , e desdobrado por Luiz Costa Lima, o
122
zação sobre a literatura, tomada como um discurso entre outros”.
traço auditivo de nossa cultura seria responsável pela produção de Daí o tom irritado, presente em frequentes artigos, comentários,
um discurso que, embora fundado “em moldes escriturais”, arreba- entrevistas e poemas contra o que se identificava com “a excessiva
taria o receptor não por demonstrar claramente o desenvolvimento teorização a que a literatura estaria sujeita”124.
das premissas em que se sustenta, mas por conter uma palavra O texto de Costa Lima provocou uma reação não só imediata,
empolgada, entusiasta e logo sentimental, que entrasse mais pelos mas uma reação irada. Na semana seguinte, Carlos Nelson Coutinho
ouvidos do que exigisse inteligência. Já a nossa dependência cultural publicava “Há alguma teoria com medo da prática?”, no Opinião
afiançaria, desde o século XIX, “glosas ou resumos do já feito no ex- em 28 de novembro de 1975. Em sua resposta, o crítico marxista
terior” ou, quando se queria ultrapassar a condição de divulgador de insinuava que a adoção do método estrutural pelos professores uni-
algo já estabelecido anteriormente, nossos intelectuais propunham versitários seria “um modo menos desonrante de se salvar a pele”125
a “criação de uma teoria fundada nas ‘raízes locais’, auge do chauvi- naqueles anos de chumbo:
nismo ingênuo”123. Segundo o crítico/teórico, apesar de a sociedade
brasileira da década de 1970 ser mais complexa, tanto econômica No quadro de um contexto político-social bastante concreto,
como culturalmente, possibilitando o surgimento de “uma literatu- marcado por aquilo que um pouco impropriamente se chamou
ra mais diferenciada, indo desde a vertente mais avançada até a mais “vazio cultural”, uma corrente específica da teoria literária (e não
epigônica”, “seria ingênuo supor que as coisas [tivessem mudado] de apenas literária) tomou de assalto a universidade brasileira, bem
maneira drástica”, e isso se atestaria de forma evidente no exercício como os meios disponíveis para a divulgação da chamada alta
da atividade teórica, que se mantinha mais próximo do cenário oi- cultura. Veja-se bem: ninguém está dizendo que essa corrente
tocentista. Embora reconheça no ensaio “as excelentes formulações é responsável pelo contexto político-social aludido; nem muito
menos que, direta ou indiretamente, estivesse solidária com as
dezembro de 1987, ao sugerir que se desse voz aos alunos, abriu espaço para
que, em 12/12/1975, Opinião nº 162, saísse a matéria “Os professores contra suas conhecidas consequências. Mas o fato é que tal corrente,
a parede”, assinada por Ana Cristina César. Na Abralic de 2008, tratei dessa
precisamente por se basear num discutível conceito de “ciência” e
polêmica no trabalho “A polêmica do estruturalismo ou ‘Quem tem medo de
teoria?’”. de “teoria”, que tem como meta a formalização radical e a com-
122 Em 1978, Luiz Costa Lima aprofundará a auditividade de nossa cultura no ensaio
“Da existência precária: o sistema intelectual no Brasil”, cuja primeira versão será pleta negação dos elementos ideológicos contidos nas objetivações
publicada em Cadernos de Opinião, nº 2-5 1978; a versão definitiva sairá em 1981,
estéticas, passou a defender — em concordância com o “espírito
Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria, pela editora Francisco Alves.
123 (LIMA, Opinião, nº159, p. 24). Luiz Costa Lima publicou uma versão ampliada de
“Quem tem medo de teoria?”, em 1981, no livro Dispersa demanda: ensaios sobre 124 (LIMA, Opinião, nº 159, p. 24).
literatura e teoria, p. 193-207. 125 (Cf. LIMA 1983:224)
280 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 281

da época” — uma crítica literária “neutra”, inteiramente alheia ligada [...] ao medo de perder o próprio poder, de ver ameaçada uma
às questões mais candentes e explosivas colocadas pelo fenômeno ‘autoridade intelectual’ pouco acostumada a discussões”, em suma,
literário enquanto tal e por seu relacionamento com a vida dos seria um pretexto para se combater “o exercício menos autoritário
homens. 126
[grifo meu] da crítica” entre nós131.

Combatido tanto por intelectuais de esquerda quanto pelos IV


conservadores, o estruturalismo ou a teoria, termos tomados quase
como sinônimos naqueles anos de 1970, instauraria o tecnocratis- François Dosse, na Introdução de seu livro História do Estruturalismo:
mo nas letras, mataria o prazer do texto, introduziria a ditadura campo do signo (v. I), afirma que “o êxito que o estruturalismo co-
do sentido sobre a pluralidade significativa, além de neutralizar, nheceu na França ao longo dos anos 50 e 60 não te[ve] precedente na
anular, negar “os elementos ideológicos contidos nas objetivações história da vida intelectual [daquele] país”132. Segundo ele, a força do
estéticas”. Como bem observou Costa Lima, contra a preocupação estruturalismo na sociedade francesa foi tamanha que um técnico
estruturalista com a linguagem, a esquerda propunha uma crítica da seleção de futebol, que “naquela época ainda não ganhara o título
“de denúncias, de palavra sentimental ou inflamada, exorcizando mundial” e “normalmente perdia as partidas internacionais”, “ao ser
toda a discussão sobre a construção do texto como fruto da praga interrogado sobre a solução para resolver o impasse, respondeu di-
do formalismo” . A formalização da linguagem imposta pelo es-
127
zendo que iria reorganizar sua equipe de maneira estruturalista”133.
truturalismo ou pela teoria nos estudos literários, não significava/ Nutrindo a ambição de constituir um único e vasto programa de
não significa o assassínio da emoção ou da intuição, ou ainda “a análise e podendo ser aplicado a todas as áreas das ciências huma-
morte da literatura brasileira”, como dissera Lêdo Ivo em O Globo , 128
nas, o estruturalismo foi “um movimento de pensamento, uma nova
mas uma tentativa de conhecer, pensar o seu objeto. A teoria fun- forma de relação com o mundo, muito mais amplo do que um sim-
cionaria como um antídoto contra “a aventura de personalidade”: ples método específico para um determinado campo de pesquisa”,
“formalizamos para conhecer e não para ficarmos conhecidos”, diria representando um período extremamente fecundo da investigação
o teórico brasileiro . A investida contra o estruturalismo/a teoria
129
no campo das ciências humanas, a ponto de ser considerado como
seria, portanto, uma maneira de manter “a poesia como propriedade “a Koïné” de toda uma geração intelectual134.
de certos homens”130. Ou, adotando a bela síntese feita por Flora Assim como não se pode definir o estruturalismo de forma
Süssekind, a investida contra o estruturalismo/a teoria “estaria monolítica, conforme tratado no final da parte I dessa exposição,
sua periodização também não é simples. Se o ano de 1966, por sua
126 (COUTINHO 28/11/1975, p. 19)
127 (LIMA 1983:224-225) 131 (SÜSSEKIND 1985:34)
128 (IVO 23/06/1975, p. 37) 132 (DOSSE 2007:21)
129 (LIMA 1981:197) 133 (DOSSE 2007:11)
130 (LIMA 1981:198) 134 (DOSSE 2007:12)
282 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 283

intensidade, é visto como “o momento-farol” do movimento, desde Internacionalmente, o auge da reflexão teórica dos estudos lite-
a década de 50, com a publicação de As estruturas elementares do rários teve um curto apogeu: concentrou-se entre 1960 e 1980.
parentesco (1952) e Antropologia estrutural (1958) de Lévi-Strauss, Baste-me aqui a constatação. O mesmo faço com seu comple-
se assiste a uma clara progressão do método que se transformará mento: do ponto de vista brasileiro, aquele apogeu teve uma
nos anos 60 na principal ferramenta de análise das diversas dis- repercussão mínima, sendo antes frequente a incompreensão e
ciplinas que constituem a área das Ciências Humanas. A partir hostilidade que causou.137
de 1967, antes das manifestações que marcaram maio de 1968,
Dosse aponta para “o início do refluxo, das críticas das tomadas Embora não haja nenhuma menção explícita ao estruturalismo
de posição de distanciamento em relação ao fenômeno estrutura- e à polêmica dos meados dos anos 70, li a passagem transcrita como
lista incensado em prosa e verso por toda imprensa” francesa135. referência melancólica ao passado. Transcorridos mais de quarenta
Conforme anotado por diferentes críticos, como Eneida Maria de anos, acredito que seja inegável a contribuição desse discurso para os
Souza, por exemplo, o caráter essencialista e universalista de seus estudos de literatura. Concordando novamente com Eneida Maria
pressupostos aponta para certos limites, tais como a anulação do de Souza, diria que, além de ter franqueado a prática de intercâmbio
sujeito histórico e social (emissor e receptor), em favor da cienti- interdisciplinar para a reflexão crítica, o estruturalismo promoveu
ficidade do objeto, que foram responsáveis por sua saída de cena. “a abertura do texto literário à análise psicanalítica e semiológica”,
No início da década de 1970, assistiu-se na França ao questiona- favorecendo “a ampliação do texto, pela introdução da categoria
mento de seus princípios por seus próprios representantes, como da intertextualidade, de origem bakhtiniana”, o que contribuiu, de
Roland Barthes136. Contudo, não se pode desprezar o intercâmbio maneira decisiva, para “a expansão do objeto de estudo da teoria,
instaurado pelo estruturalismo entre a linguística, a antropologia e não mais confinado às obras consagradas pelo cânone ou inserido
a psicanálise que concorreu de maneira decisiva para uma aborda- no rótulo literário”138. Por outro lado, o rigor técnico e a busca de
gem interdisciplinar do texto literário. Aliás, o abandono de uma operadores conceituais para a abordagem da literatura, tão caros
leitura fechada e autossuficiente proposta pela crítica estruturalista aos teóricos do estruturalismo, ainda têm muito a dizer ao jovem
favoreceu o seu questionamento e as tentativas de ultrapasse de estudante de Letras e à crítica contemporânea.
suas limitações teóricas.
Para pensar as consequências do acolhimento do estrutura- Referências
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135 (DOSSE 2007:26) 137 (LIMA, Mais! Folha de São Paulo, domingo, 1 de junho de 2008)
136 (Cf. SOUZA 1993; 2002; 2012) 138 (SOUZA 2002:69)
284 Regina Lúcia de Faria Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica 285

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Capítulo 8

Literatura e
psicanálise:
confrontos
Adélia Bezerra de Meneses
Universidade de São Paulo
Universidade Estadual de Campinas
“Onde quer que um homem sonhe, poetize ou profetize, outro se
ergue para interpretar” — essa tirada de Paul Ricoeur1, já nos dá
uma primeira entrada para uma reflexão sobre as relações instigan-
tes entre literatura e psicanálise, entre a literatura e o inconsciente.
Efetivamente, sonho, poesia e profecia são espaços onde se
permite ao inconsciente aflorar; e a psicanálise é, antes de mais
nada, o reconhecimento desse inconsciente. Mas antes de passar a
essa busca insofrida de sentido à raiz de qualquer impulso interpre-
tativo, e que faz com que nós todos, analistas de textos ou de gente,
“nos ergamos para interpretar”, importa que se verifiquem outras
confluências entre a arte da palavra e a ciência do inconsciente.

Inconsciente

Desde Freud, cujas poderosas intuições não dispunham ainda do


arsenal da linguística estruturada enquanto ciência, até hoje em dia,
as relações entre linguagem e inconsciente se tornam cada vez mais
explícitas. Sabemos da enorme fascinação do mestre de Viena pela
literatura, esse lugar de exercício radical da palavra, e que, como a
psicanálise, fornece uma leitura do homem, propicia um conheci-
mento da alma humana:

1 (RICOEUR 1977:26)
292 Adélia Bezerra de Meneses Capítulo 8 . Literatura e psicanálise 293

Os poetas são aliados muitos valiosos, cujo testemunho deve ser conhecimento se faz via intuição (intuição: in + tueor: literalmente,
levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta “ver dentro”). Em seu texto sobre a “feminilidade”, Freud finaliza o
gama de coisas entre o céu e a terra com as quais o nosso saber ensaio dizendo que quem quisesse saber mais sobre a mulher, que...
escolar ainda não nos deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, consultasse os poetas.
gente comum, no conhecimento da psique, já que se nutrem em A sensação obscura de que na poesia há algo que escapa ao
fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência.
2
racional, há um “mistério” não desvendado, sempre intrigou os
humanos. A veneranda (e subversiva) teoria da inspiração poética
— diz Freud em seu estudo sobre a Gradiva. É interessantís- se entronca nessa inquietação: pela boca do poeta, inspirado, en-
simo observar que, nessa paródia à famosa tirada do Hamlet, (“há thousiasmado (no sentido etimológico: en + theós = com um deus
mais coisa entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã Filosofia”) é dentro), fala o daimon, como queria o Platão do Íon, fala a divin-
estabelecida uma fecunda distinção entre o “saber escolar” (literal- dade; fala o Outro. Diríamos com a psicanálise: fala o inconsciente
mente: Schulwissenschaft) e um conhecimento que “deixa sonhar”, — pessoal e filogenético.
que é exatamente aquele conhecimento que também acolhe a di- O poeta é aquele que, fazendo estalar os limites do real, ten-
mensão não racional, atento à cadência do inconsciente. E aqui a ta fazer aflorar aí o princípio do prazer, tenta trazer ao plano da
gente vê que se esboça uma reflexão cara a Freud, sobre o papel cog- linguagem a imagem do desejo. Pois a arte, como afirma Freud, é
nitivo da fantasia, que revelaria da realidade a sua dimensão virtual. uma reconciliação dos dois princípios: do prazer e da realidade; o
A fantasia, comumente considerada no polo oposto do real, agente poeta estabelece uma tensão entre a imagem do desejo, o invisível,
de desrealização, pode, no entanto, ter uma função cognitiva. Freud e a realidade.
fala em “Phantasierendes Denken”: pensar fantasiando, num teste- Experiência de transgressão dos próprios limites, de viver vica-
munho de reconhecimento dessa atividade intelectual que conduz riamente outras vidas, a literatura revela uma realidade que é, antes
a uma percepção autêntica da realidade. “Sem especulação e teo- de mais nada, a realidade da alma humana.
rização metapsicológica — quase disse “fantasiar” — não daremos Psicanálise e literatura, assim, radicam nesse solo comum: lei-
outro passo à frente” , diz ele, num determinado momento de suas
3
tura do humano. No entanto, o homem é um animal social — velho
reflexões. truísmo — e há que se levar em conta, ao lado das instâncias do
Efetivamente o poeta apresenta-se como o ser a quem é dado, indivíduo, o grupo social e os mecanismos de criação cultural. E
mais do que aos outros (“gente comum”) entrar em contato com a a psicanálise aí toma seu lugar, na linha de uma interpretação da
vida dos afetos, com o mundo do id, que é o mundo da fantasia e do cultura.
desejo. Ele está como que mais perto das “fontes inconscientes” e seu O inconsciente pode ser atemporal, mas as “formações do
inconsciente” (dentre as quais avultam os sonhos e os chistes) são
2 (FREUD 1990:18)
3 (FREUD 1933:257)
altamente historicizadas, culturais. Dessa perspectiva, há que se
294 Adélia Bezerra de Meneses Capítulo 8 . Literatura e psicanálise 295

colocar a questão da historicização dos símbolos. As escolhas ima- muitíssimo colocar em paralelo os processos de “trabalho do sonho”
géticas do sonhador são buscadas no arsenal de imagens que sua com os processos de elaboração poética: condensação, deslocamen-
civilização e sua cultura lhe oferecem; seus símbolos se originam de to, figurabilidade. Lacan, retomando e desenvolvendo indicações de
um sistema de crenças e de valores que dá coesão a seu tecido cul- Jakobson, assimila o deslocamento à metonímia e a condensação à
tural. É a elaboração secundária (a qual junto com a condensação, o metáfora.
deslocamento e a figurabilidade, constitui um dos processos de ela- Há um filão riquíssimo a ser garimpado, na esteira dos traba-
boração onírica) que faz com que o sonho se aproxime de uma dada lhos de Freud sobre a Interpretação dos sonhos e sobre o chiste (sem
estrutura cultural. Pois existem estruturas modelares, algo como um falar nos trabalhos de Lacan), relativamente à linguagem poética.
arquétipo cultural4. Leitura do humano, portanto, tanto no nível da Por outro lado, no Prólogo de seu Livro dos sonhos, Jorge Luís
pessoa, quanto no nível das grandes configurações da cultura. Borges advoga a tese “perigosamente atraente” de que “os sonhos
Há um outro aspecto ainda, desdobramento deste tópico: se constituem o mais antigo e o não menos complexo dos gêneros
literatura e psicanálise fornecem uma leitura do humano, vista literários”.
do ângulo da literatura, a psicanálise propicia um instrumento de Interessa-me aqui, no entanto, sublinhar alguns aspectos. Em
leitura... para o literário. Como se verá mais adiante, a abordagem primeiro lugar, o da importância, no sonho, da carga material da
psicanalítica é recurso de interpretação, revelação e desvendamen- expressão, de seu corpo verbal. Antes da psicanálise, os antigos
to, e origina-se de raízes semelhantes às da leitura ideológica: assim pareciam saber disso. Artemidoro de Daldis, na sua estupenda
como é nos atos falhos que aflora o inconsciente de uma pessoa, é Oneirocrítica do século II d.C., atribui uma importância aguda ao
nos detalhes insuspeitados, é nas fraturas e impasses de consciência que ele chama de “etimologia”: “É preciso levar em consideração
de um texto que se capta sua ideologia — e a de sua classe social. que não são inúteis para a interpretação os sentidos etimológicos
das palavras”, diz ele no Livro III do seu Tratado5. É importante
Sonho / mito / privilégio do significante observar-se que o que ele chama de “etimologia” seria mais perti-
nentemente designado, agora, por significante. O exemplo mais
O sonho, dada a sua importância, mereceria todo um estudo à
esclarecedor que ele oferece é o famoso sonho que Alexandre da
parte. Paradigma das produções do inconsciente, “via real para
Macedônia teve, quando se preparava para fazer o cerco à cidade de
o inconsciente”, como queria Freud, de um certo viés, ele é con-
Tiro. Artemidoro relata, na Oneirocrítica, o sonho e a interpretação
genial à poesia. É curioso que, no nível do significante mesmo, a
que dele faz o intérprete oficial do rei. Alexandre sonhou que viu no
poesia e o mais fundamental processo de elaboração onírica, que
seu escudo um sátiro dançando. Aristandros, o intérprete, dividiu a
é a condensação, mantenham na língua de Freud um parentesco
palavra Satyro em sa Tyro (= Tiro é tua, em grego) e, assim, propi-
revelador: poesia é Dichtung e condensação é Verdichtung (daí, a
ciou que o rei combatesse com tal garra que conquistou efetivamen-
fecunda tirada de Pound: poesia = condensação). Realmente, rende
te a cidade. Se o intérprete se tivesse restrito ao nível do significado,
4 (Cf. DODDS 1965) 5 (ARTEMIDORO 1975)
296 Adélia Bezerra de Meneses Capítulo 8 . Literatura e psicanálise 297

enveredaria por tentar deslindar problemas referentes ao sentido sequência, eu via esse nome, mas invertido, escrito de trás para dian-
de sátiro como divindade lúbrica habitando as florestas (e daí, por te. E AMÓS invertido dá... SOMA. Na realidade, não era o sema do
dedução, figuração eventual da luxúria e do caráter libidinal, etc.), nome AMÓS que importava (isto é, o que “significava” esse Profeta,
e provavelmente não iria muito longe. Mas a carga material da pa- sua função, a conotação de denunciador das injustiças — não era essa
lavra, corporalmente considerada, lhe dá a pista para decifrar esse a função bíblica do Profeta?); o que interessava era o soma 7, o corpo.
sonho, na linha da mais estrita ortodoxia psicanalítica, por sinal: o A palavra foi aqui, como na poesia, utilizada sensorialmente.
“sátiro” significa a realização do desejo de Alexandre, a conquista de Uma sensualidade verbal está em ação nos poetas, nessa dialé-
Tiro: Tiro é tua, lhe diz o sonho. tica de sema e soma, de signo e corpo, que a palavra carrega. Pode-se
Sabemos, com Freud, que o inconsciente toma a palavra como dizer que na literatura, em que também “no princípio era o verbo”,
coisa. E se refletirmos sobre as elaboradas (por vezes, sofisticadís- o verbo se faz corpo.
simas; por vezes, absolutamente primitivas) operações postas em Tal ideia de que palavras têm corpo acarretará uma outra, que
curso para, fiel ao princípio da “representabilidade”, dar figuração daí se infere: se as palavras têm corpo, elas terão sexo. Não é ou-
concreta a conceitos abstratos6, entenderemos o solo comum de tra coisa que — ludicamente — mostra Machado de Assis em “O
onde são geradas as metáforas, a alegoria, o processo de simboliza- Cônego ou a Metafísica do Estilo”, um interessantíssimo conto em
ção em geral. que se narra a procura, um pelo outro, de um substantivo e de um
Um exemplo pessoal poderá dar a medida da importância do adjetivo, Sílvio e Sílvia, na cabeça de uma personagem, empenhada
significante nas produções oníricas: trata-se de um sonho com o pro- em escrever um sermão. O modelo dessa insofrida busca amorosa
feta Amós — um dos profetas bíblicos esculpidos pelo Aleijadinho, é — já que se trata de um escritor eclesiástico — a celebração do
naquele estupendo átrio dos profetas de Congonhas do Campo, em amor sensual de O cântico dos cânticos:
Minas Gerais. E sem entrar em pormenores e, sobretudo, em associa-
ções — pois não é meu objetivo aqui “interpretar” o sonho, mas ape- As palavras têm sexo”, diz o narrador. “Estou acabando a minha
nas ressaltar- lhe um elemento (reitero: a importância do significante) grande memória psicolexicológica, em que exponho e demons-
—, eu via o profeta Amós, grandioso e terrível, caminhar na minha tro esta descoberta. Palavra tem sexo.
direção; ou melhor, deslocar-se, com pedestal e tudo: uma massa de — Mas, então, amam-se umas às outras?
pedra esculpida, em movimento. Na base da estátua, estava escrito o Amam-se umas às outras. E casam-se. O casamento delas é o que
seu nome (como acontece na realidade, cada profeta do Aleijadinho chamamos estilo.8
tem seu nome gravado no pedestal). Com uma nitidez incrível, estava
lá, em grossas maiúsculas gregas: AMÓS. Fixando melhor a vista, na E depois de convidar o leitor a uma subida à cabeça do cône-
go, ao seu inconsciente, ao “desvão imenso do espírito”, o narrador
6 Nem em todo processo de simbolização, no entanto, há uma passagem do
abstrato para o concreto: o sol, símbolo de Luís XIV é tão concreto quanto o 7 No caso — e não por acaso — o soma era soma.
simbolizado. (Cf. LAPLANCHE; PONTALIS s.d.: verbete “Simbolismo”). 8 (ASSIS 1985:570-573, v. II)
298 Adélia Bezerra de Meneses Capítulo 8 . Literatura e psicanálise 299

mostra que é exatamente quando o escritor se permite espairecer, Clássica, poderia ser “explicada” através do recurso da conexão com
distrair- se e deixa de encarniçadamente procurar o adjetivo para o a linguagem: a palavra gera o mito. Formulada pela 1a vez no Canto
seu substantivo, que eles se encontrarão. Esplêndido conto e estu- XIX da Odisseia, por Penélope, “a teoria” segundo a qual os sonhos
penda intuição machadiana de apresentar, não somente uma descri- passam ou pela porta de chifre (e se realizam) ou pela de marfim (e
ção pitoresca (e nem por isso menos pertinente, no plano linguísti- são falsos) tem a aparente aleatoriedade de suas metáforas “resolvida”
co) do processo de produção da linguagem, mas a percepção de que por um trocadilho que se estabelece no grego, entre keras (chifre) e
tal processo não opera só conscientemente, porém nos bastidores krainein (realizar-se) de um lado, e entre elephantion (marfim) e
da consciência; e, finalmente, essa ideia genial da sensorialidade elephairomai (enganar), de outro. Levando-se em conta o imperativo
das palavras, de sua “sexualidade” — da “química”, diríamos hoje: da representabilidade, como figurar os conceitos abstratos “realizar-se”
atraem-se umas às outras, desejam- se e completam-se. e “enganar”, senão através do recurso ao significante, apelando para as
E que dizer — ainda dentro do recorte da importância da pa- palavras assonantes11? Como dar conta de representar a possibilidade
lavra, na sua materialidade, da relação entre a Linguagem e o mito? da realização dos sonhos, a não ser recorrendo à palavra “realizar-se”
Sabemos o lugar que o mito ocupa na psicanálise, e o estatuto que tomada na sua materialidade, no jogo a que keras (chifre) se presta, na
ele tem, semelhante ao sonho. É na Interpretação dos sonhos que sua interassonância com krainein (realizar-se)? Da mesma maneira,
são aproximados, pela primeira vez, o mito do sonho: o mito seria como figurar “o que engana”, sem apelar para o significante de elephai-
o sonho coletivo, enquanto que o sonho, o mito individual de cada romai (enganar), intervocado por elephantinon (de marfim)? O curio-
um. Mas não somente Freud e os pensadores eruditos fazem essa so é que os comentaristas helenistas eruditos, quando tratam desses
articulação: uma criança pequena, muito pequena mesmo, desta versos, sempre apõem uma nota, em que invariavelmente se aponta
maneira me contou que tinha sonhado, certa manhã, ao acordar: para a “puerilidade desses jogos de palavras, que os gregos tanto ad-
“Mamãe, hoje de noite foi assim: Era uma vez....” miravam...”12. Mas os gregos, e, na esteira dos gregos, Freud (O Chiste
Pois bem: à semelhança do sonho, no mito também se manifes- e suas Relações com o inconsciente: essa obra capital da psicanálise, da
ta a importância fulcral da palavra. Diz Cassirer9, endossando Max linguística e da literatura) estão aí para provar que jogo de palavras é
Müller, que o mito é proporcionado pela atividade da linguagem. ponto fulcral, em que Linguagem e inconsciente se travejam.
Em outras palavras: do nome se cria o mito. Isso se deveria a uma Com efeito, Freud declara que seu livro O Chiste e suas Relações
ambiguidade fundamental, inerente a toda denotação linguística: com o inconsciente constitui “uma primeira tentativa de aplicação do
“nesta ambiguidade, nesta paronímia das palavras, estaria a fonte de método analítico a questões de estética”13. E embora não dispondo
todos os mitos”10. O mito é aclarado pela etimologia. 11 (Cf. MENESES 2002:41-63).
Assim, a lenda das “portas do sonho”, tão cara a toda Antiguidade 12 Por exemplo, Victor Bérard, autor de uma alentada Introdução à Odisseia, de três
volumes, chega a contestar a autoria dos versos que dizem respeito à alegoria
das Portas do Sonho, considerando-os uma interpolação posterior: “Comment
9 (CASSIRER 1976) en 562-569 attribuer au Poète la paternité des ridicules calembours sur les deux
10 Cf MÜLLER, Max. 1976. Über die Philosophie der Mythologie. 2ª ed. Estrasbourgo Portes des Songes...?” (Cf. BÉRARD 1933:137, t. III)
(Apud CASSIRER 1976:10) 13 (FREUD 1969)
300 Adélia Bezerra de Meneses Capítulo 8 . Literatura e psicanálise 301

de categorias (e de terminologia) da linguística estruturada enquan- no som, interagem no nível de significado, e dessa interação saem
to ciência, suas considerações sobre o Witz e o material que ele tão modificados, enriquecidos, interpenetrados.
generosamente elenca e apresenta (exemplos com que ele parece di- Exemplo de mais um extraordinário jogo verbal é oferecido por
vertir-se imensamente, por sinal) constituem uma base fundamental outra canção de Chico Buarque, “Cala a boca, Bárbara”, que também
para o estudo dos jogos de palavras, do artesanato verbal que embasa integra a já referida peça de teatro Calabar, sobre a personagem da
o fazer da poesia. Discriminado do terreno específico do humor, História do Brasil Colônia, estigmatizado como o traidor. Calabar,
o jogo de palavras identifica-se com o próprio fazer poético. Com que teria traído os portugueses aliando-se aos holandeses, ao ini-
efeito, o trocadilho, considerado por Jakobson, junto com a parono- ciar-se a canção de Chico, já está morto e esquartejado, executado
másia, como “a rainha das figuras de estilo”, na realidade é um jogar pelos portugueses, que impuseram a proibição de pronunciar o seu
com o significado, parecendo lidar com os significantes. Trata-se de nome. Mas restou sua mulher, Bárbara, que é quem canta a canção,
um jogo verbal, que brinca com o termo não enquanto portador de e em quem ele está intensamente presente. Ela nunca o chama, nessa
significado, mas enquanto som. No entanto, o trocadilho só ganha canção, pelo nome: Calabar é o ele a que refere. No entanto, é esse
sentido quando “revela perfis dos significados” (como quer Husserl), nome que se forma, com espantosa nitidez, como uma constelação,
quando se é levado a sentir melhor a riqueza dos significados: à força da repetição quase obsessiva do refrão:

Éramos nós CALA a boca, BÁRbara > CALABAR


estreitos nós
enquanto tu CALABAR: aquilo que Bárbara silencia, é o que reponta, com
és laço frouxo força e realidade. Impõe-se uma técnica psicanalítica: no não dito,
descobrir-se o dito. Ou: no “inter-dito”, descobre-se o dito. Interdito
— diz a belíssima canção “Tira as mãos de mim”, da peça Calabar porque foi interditado (por injunções da censura) e interdito porque
de Chico Buarque e Paulo Pontes. Trata-se da fala de Bárbara, vi- está dito entre as sílabas das palavras que constituem o refrão. O
úva de Calabar, dirigindo-se ao homem que denunciara Calabar, nome proibido continua a ressoar, no tecido da linguagem. O essen-
e referindo-se à sua ligação apaixonada com o herói. Trocadilho cial é aparentemente omitido, mas ele está lá, latejando (latente...)
expressivo criado por paronomásia, aqui o primeiro nós é pronome no coração do discurso. A partir daí, a própria palavra Calabar, rein-
pessoal, enquanto que o segundo é substantivo. Esse significado de ventada, passa a condensar em si o “cala a boca” que estigmatiza a
“laços apertados” que traduz o segundo nós contamina, num certo peça — e os tempos que a geraram. Efetivamente, não podemos nos
esquecer de que essa peça, Calabar, foi escrita no início da década
sentido, o primeiro termo, revelando-lhe uma outra dimensão: eu +
de 70, nos “anos de chumbo” da ditadura militar brasileira, auge da
ele num vínculo intenso: nós. A metáfora do 2º termo faz com que
repressão, em que a censura proibia coisas, e proibia os jornais de
o 1º seja redefinido. Os dois nós, semelhantes, ou, melhor, idênticos
302 Adélia Bezerra de Meneses Capítulo 8 . Literatura e psicanálise 303

notificarem a proibição. Há aqui uma condensação, uma sobrepo- CALA a boca BARbara: o nome restaurado na sua unidade
sição de tempos: o tempo do Brasil Colônia (século XVII), em que supõe um trabalho. A uma técnica propriamente psicanalítica (des-
vivia a personagem, e o tempo de enunciação — década de 70 do cobrir, no manifesto, o latente; revelar o interdito) associou-se um
século XX, quando foi composta a canção. As linhas de força do solo procedimento analítico literário — uma espécie de leitura anagra-
social em que foi engendrada a peça estão todas lá: a repressão, o mática, como queria Saussure: de ver “palavras sob as palavras”, a
amor guerrilheiro, o silêncio imposto. Impõe-se aqui o movimento descoberta de fragmentos, como peças de um mosaico, que o analis-
de circulação entre a parte e o todo — de que fala Spitzer (de que ta rearranjará, e que, numa outra sequência, cobrarão sentido — um
tratarei mais adiante), e em que, por sinal, uma “leitura psicanalíti- revelador sentido.
ca” necessariamente se enganchará com uma “leitura social”, na boa Leitura psicanalítica? literária? — leitura desvendadora, atenta
escola da estilística. à carga corporal, à carga concreta, material, da expressão. É uma
Mas volto ao texto da nossa canção: doravante, aqueles que a interpretação em que se vai do texto à sociedade em que ele foi en-
lerem/ouvirem incorporarão o “cala a boca” ao nome de Calabar. gendrado, e daí se volta ao texto; em que se flagra um movimento
Linguagem de condensação: linguagem da poesia. Assim, vemos
— circular — entre a parte e o todo.
que o poder que o poeta tem de lidar com a palavra faz dela um
instrumento de desvendar a realidade, de romper o silêncio. Mesmo
A Interpretação
sob censura, Calabar sobrevive14.
Calabar é cobra-de-vidro: uma vez partido, seus pedaços se E assim eis-nos de volta reconduzidos à questão que subjaz à ci-
recomporão por força da poesia. Esse corpo esquartejado, cujo tação de Ricoeur, com que iniciei este texto: “Onde quer que um
despedaçamento é mimetizado pela fragmentação em sílabas a que homem sonhe, poetize ou profetize, outro se ergue para interpre-
o nome do herói se vê submetido (pelo mesmo poder aniquilador tar”17. Efetivamente, sonho, poesia e profecia são ações humanas
que o executara), restaura sua unidade plena através da fala poéti- imantadas pelo desejo — e em que entra em jogo o inconsciente.
ca, sob o influxo de Dionísio. Poderia haver algo de mais órfico15 Com efeito, dentre os denominadores comuns mais significativos
do que essa dialética de despedaçamento e unificação? Por outro entre o ofício de um crítico literário e de um psicanalista, que venho
lado, tendo-se em vista o tempo da enunciação, época de repressão, ressaltando aqui, o trato com a palavra como matéria-prima; e a
da ditadura militar, que levou à fragmentação da sociedade e, no práxis da interpretação.
limite, ao aniquilamento de seres humanos, podemos dizer, como Com efeito, literatura e psicanálise lidam com exegese; são
Drummond (referindo-se à outra ditadura, anterior, a do Estado horizontes da hermenêutica. O verbo grego hermeneuein significa
Novo), que esse é “um tempo partido, de homens partidos”16. exprimir o pensamento pela palavra, interpretar — isto é, agir como
Hermes, o deus mensageiro: aquele que leva as mensagens dos deu-
14 (Cf. MENESES 2002)
15 A paixão de Dionísio é isso: o deus despedaçado e ressurgido em sua plenitude; ses entre si, ou entre os deuses e os homens; que promove as trocas e
o pressentimento, nesse culto sempre renovado, de uma unidade restaurada.
16 (ANDRADE, 1987:120) 17 (RICOEUR 1977:26)
304 Adélia Bezerra de Meneses Capítulo 8 . Literatura e psicanálise 305

a comunicação; protetor dos viajantes, deus das estradas, habitando hermetismo e da alquimia. E não podemos nos esquecer de que a
as encruzilhadas (também as dos significantes e dos significados...); “função mercurial” de que falam os alquimistas é a que leva à trans-
o elo, o mediador (inter-prete). formação (da matéria vulgar em ouro).
É importante — ascendendo ao nível mítico, nos determos um Numa síntese feliz: “Hermes é ao mesmo tempo o deus
pouco nessa figura fascinante e complexa desse deus que é consi- do Hermetismo e da Hermenêutica, do mistério e da arte de
derado, assim como Dioniso, o menos olímpico dentre os imortais, decifrá-lo”21.
e a quem Zeus, na Ilíada diz: “Hermes , tu, entre todos, gostas de Com tantos (e às vezes contraditórios) atributos, se há em
servir de companheiro a um mortal” . Ainda criança de berço, diz
18
Hermes algo que o tipifique sobremaneira, insisto, consiste na ques-
o mito, ele furtou o rebanho de seu irmão Apolo, daí ter-se tornado tão da circulação, da troca — tanto no âmbito do comércio, quanto
também deus dos ladrões: para ele, inexistem fronteiras, ou cercas, no âmbito do discurso. Ele promove a comunicação, provoca a
ou fechaduras. É também o patrono dos comerciantes: Mercúrio, circulação: é a função mercurial da palavra. Aliás, é Platão que n’O
seu nome romano, por sinal, tem o radical “merc” (de mercado, Crátilo não apenas faz derivar Hermes do termo grego que signifi-
comércio, das relações de troca). Tendo inventado a lira , ele a dará ca “intérprete”, como lhe assinala uma relação privilegiada com a
a Apolo, em troca de outras vantagens para si. Caracterizado por palavra22.
uma extrema mobilidade (como o indiciam suas sandálias aladas), Esse plano de fundo mítico é importante por revelar o quanto
é o símbolo de tudo quanto implica em astúcia e ardil. “Não há a interpretação nos situa num terreno movediço — mais precisa-
nele nada fixo, estável, permanente, circunscrito nem fechado. mente, “mercurial”. Não há nada de fixo, imutável, para sempre
Ele representa, no espaço e no mundo humano, o movimento, a estabelecido. Não há receitas. É nessa postura mercurial, tentando
passagem, a mudança de estado, as transições, os contatos entre “trazer à luz tesouros ocultos”, é sob o signo de Hermes, com toda
elementos estranhos” . 19
sua riqueza de atributos, que qualquer reflexão sobre a interpretação
No Hino homérico, ele é apresentado como o “dispensador das deve ser feita.
riquezas”, doador de dons, aquele que põe a descoberto os tesouros.
Tendo o domínio das ciências ocultas, ele se orienta na escuridão, Interpretação literária / interpretação psicanalítica
guia as almas dos mortos ao Hades (é o Hermes Psicopompo), tran-
Dito isto, a questão fundamental deste ensaio se explicita: o que ha-
sitando, assim, entre espaços diversos. Isso, para Eliade20, “reflete
veria de comum na escuta de uma pessoa, e na escuta de um texto?
em última instância uma modalidade do espírito: não somente a
Diante de um sonho, de uma poesia ou de uma profecia, como agi-
inteligência e a astúcia, mas também a gnose e a magia”. Hermes
mos aqueles, analistas ou críticos literários — hermeneutas — que
Trimegisto (de tri + mega: três vezes grande) sobreviveu através do
nos “erguemos para interpretar”?
18 (HOMERO Ilíada, Canto XXIV, Vs. 334-335)
19 (VERNANT 2002:189-241) 21 (CHEVALIER: GHEERBRANT 2002: verbete “Hermes”)
20 (ELIADE 1976:288-289, v. I) 22 (PLATÃO 1988:407 ss.)
306 Adélia Bezerra de Meneses Capítulo 8 . Literatura e psicanálise 307

Vou me centrar numa questão axial do fazer hermenêutico O detalhe

e ancorar minhas reflexões nas ideias de um linguista e crítico A principal dessas invariantes talvez seja a atenção ao detalhe, dentro
literário do século passado, Leo Spitzer, mestre da Estilística, que do recorte de uma certa concepção de estilo enquanto “desvio”. Não
nasceu em Viena e viveu entre os anos de 1887 e 1960, participando se trata de uma transgressão grosseira de uma norma, mas de algo
por sinal do mesmo caldo cultural em que se gestou o pensamento que particularize a linguagem, que a singularize: o uso de uma deter-
freudiano. Para ele, a literatura é o documento mais revelador da minada expressão, de um determinado recurso literário e estilístico,
alma de um povo; e há nas suas reflexões e nas suas interpretações que os historiadores da literatura limitavam-se somente a registrar,
de obras literárias, elementos que aproximam instigantemente a mas do qual Spitzer propõe que se remonte às causas latentes.
sua abordagem de uma práxis psicanalítica. Aliás, a pergunta que Spitzer tinha o hábito de sublinhar as expressões que lhe cha-
subjaz à sua abordagem da literatura é: pode-se definir a alma de um mavam a atenção num texto por afastar-se do uso geral, ou por
determinado escritor através de sua linguagem particular? E a “alma” uma particularidade qualquer; e sucedia muitas vezes que os subli-
de sua época? nhados, confrontados uns com os outros, pareciam oferecer certas
Seu estudo “Linguística e História Literária” , sintetiza algumas
23
correspondências, criando-se uma espécie de rede, de articulação
de suas ideias teóricas de uma maneira incompleta; efetivamente, é subterrânea entre eles.
preciso ler suas análises — algumas extraordinárias — para termos
24
É assim que ele se põe a estudar25 um romance de Charles
ideia de como ele operava. Pois falar de “método” interpretativo é Louis Philippe, e repara no uso particular das conjunções causais
uma empreitada difícil, no caso de um autor que declara peremp- “parce que”, “à cause de”, “car” (“porque”, “por causa de”, “em con-
toriamente que “método é vivência” (Methode is Erlebniss), e que sequência de”, “pois”), extremamente disseminadas em seu texto. E
opera a contrapelo de qualquer técnica preestabelecida, de qualquer chega à conclusão de que na realidade as “razões” que essas causais
receita, de qualquer modelo fixo de abordagem: para ele , cada texto veiculavam careciam de validade objetiva, ou: que todas as causais
postula a sua maneira de ser acessado, impõe ao analista uma apro- recobriam falsas razões. Pois bem, pergunta-se Spitzer, essa enor-
ximação única, somente a ele adequada, e que absolutamente não me profusão de conjunções causais no estilo desse escritor — na
serviria para um outro. Assim como não há receitas a se “aplicar” no realidade, “falsas causais” — deveriam ter sido originadas por algo;
manejo de uma sessão analítica, diante de um paciente em carne e e aí teríamos a pista da Weltanschauung do autor, alimentada, por
osso e sofrimento, não há uma “bula’ para a análise e interpretação sua vez, por algo presente na sociedade. C. L. Philippe olha como
de um texto literário. No entanto, repontam algumas invariantes, o mundo funciona sob a aparência de uma lógica objetiva (ou sob
caracterizadoras do jeito de Spitzer trabalhar, e que são norteadoras. a aparência da justiça) — o que remontaria, continua Spitzer, a um
E que — como já referi — estampam um instigante “ar de família” fatalismo “de seres anquilosados em seu desenvolvimento por forças
com a psicanálise. sociais inexoráveis”26. Esse fatalismo traduzido pelas “falsas causais”
23 (SPITZER 1968) 25 (Cf SPITZER 1968:23 et seq.)
24 Como aquelas, por exemplo, publicadas em SPITZER (1970) 26 (SPITZER 1968:24)
308 Adélia Bezerra de Meneses Capítulo 8 . Literatura e psicanálise 309

seria o traço de época da sociedade francesa dos inícios do século respectivos textos, tais como a ausência ou presença de adjetivos,
XX — do qual o escritor se faz o porta-voz. Assim, diz Spitzer, pas- ou a utilização ou não de orações subordinadas. Todos sabemos da
samos da linguagem ou estilo à “alma do poeta”, e daí, ao seu tempo. função dos adjetivos, de convocar o mundo dos sentidos, atribuindo
Ou: do “traço de estilo” passou-se ao “traço de época”. à realidade forma, textura, cores, sons, volume. Pois bem, Auerbach
Flagra-se, assim, um impulso de historicização de uma abor- aponta a ausência de adjetivos no texto bíblico (onde “burro”, “lenha”,
dagem, ou melhor, o uso de categorias sociais para analisar um “faca”, do texto do sacrifício de Isac, por exemplo, são apresentados na
fenômeno estilístico. É importante assinalar que esse movimento sua nudez substantiva), contrapondo-se à pletora de epítetos do texto
do traço de estilo ao traço de época implica na percepção de uma homérico (onde o mar é cor de vinho, Atena tem olhos verdes, a espa-
circulação permanente entre a parte e o todo, entre o “detalhe” e da é tauxiada de prata, etc.) e daí infere, por exemplo, a sensorialidade
algo de maior que o ultrapasse. do mundo grego, antropocêntrico, contraposto à transcendência do
Pois bem, a ideia de que a literatura é o documento mais reve- mundo bíblico.
lador da alma de um povo; de que se consegue compreender o “es- Auerbach aponta o modo de apresentação da divindade no texto
pírito de uma nação” através das obras de sua literatura; e de que há hebraico, (uma voz, carente de forma, sem descrições, sem demarca-
que se fazer a passagem de um “traço de estilo” para um “traço de ções espaciais), um Deus oculto; e a confronta com os deuses homé-
época” — tudo isso que é a marca spitzeriana, será a proposta que ricos, tão cuidadosamente descritos nas suas particularidades e apa-
seu grande discípulo, Erich Auerbach, vai realizar, de uma maneira rências. De uma análise estilística, e, repito, partindo de detalhes (que
grandiosa, em Mimesis , um dos livros mais importantes da crítica
27
abrangerão evidentemente outros elementos), o autor chega à ideia da
literária de todos os tempos. Auerbach parte dos textos fundadores transcendência do Deus único, que é o Deus judaico, contrastando,
do mundo grego e do mundo hebraico, de cuja confluência se gerou reitero, com a sensorialidade e o antropocentrismo do mundo grego.
a civilização ocidental. Com efeito, no capítulo intitulado “A cicatriz Mostra como o estilo, os traços estilísticos revelarão, do lado hebraico,
de Ulisses” desse livro extremamente instigante, ele vai confrontar o mundo do mistério, o efeito sugestivo do tácito, o aprofundamento
dois textos igualmente épicos, igualmente antigos (datando ambos do problemático; de outro lado, a realidade totalmente iluminada e
das proximidades do século IX a . C .), e igualmente fundadores: desvendada ou desvendável do mundo helênico. Em outros termos:
a Odisseia e o Gênesis (a saber, um trecho da cena do Canto XX, o transcendência x imanência; monoteísmo x politeísmo; mundo do
reconhecimento de Odisseu pela ama; e o texto d’“O Sacrifício de mistério x universo totalmente explicável, encantamento sensorial x
Isaac”, da Bíblia). Através de uma análise estilística, partindo de um tensão conflitiva. Tudo isso, através de detalhes.
detalhe, ele vai chegar à caracterização das duas culturas que geraram
aquelas obras: respectivamente, a grega e a bíblica. É assim que ele O Círculo do Conhecimento
aponta elementos aparentemente secundários que singularizam os Voltemos, então, ao seu mestre, a Spitzer e a suas considerações
27 (AUERBACH 1971) teóricas relativas ao método hermenêutico que ambos praticam.
310 Adélia Bezerra de Meneses Capítulo 8 . Literatura e psicanálise 311

Diz Spitzer que o ato interpretativo se realiza num movimento retornar ao detalhe, para validar a “impressão”, conciliando essa des-
circular do conhecimento, esse movimento (mercurial!) entre o de- coberta com o espírito geral da época. Flagra-se assim movimento de
talhe e o conjunto, um vai e vem entre a parte e o todo. Trata-se do vai e vem e um impulso de historicização da abordagem, ou melhor,
“Círculo do Conhecimento” (“Zirkel im Verstehen” ) , ou “Círculo
28
o uso de uma visada sociológica para analisar um fenômeno estilísti-
Hermenêutico” ou “Círculo de Schleiermacher”: a ideia de que “o co individual. Vemos, assim, em que medida a estilística spitzeriana
conhecimento não se alcança somente por progressão gradual de se engancha com a psicanálise e com a Sociologia.
um a outro detalhe, mas por antecipação ou adivinhação do todo,
porque o detalhe só pode ser compreendido em função do todo, e A peritagem do estilo ou o paradigma indiciário
qualquer explicação de um fato particular pressupõe a compreensão
Insisto ainda na importância do detalhe, na importância do apa-
do conjunto”29.
rentemente fútil, e no intento de descobrir-lhe a significação, que
Retomando o exemplo da análise de Auerbach de “A cicatriz de
guardará uma relação fundamental e desvendadora com o conjunto
Ulisses”, a atenção focada nos detalhes dos textos homérico e bíblico,
da obra (e da sociedade em que foi engendrada essa obra). O histo-
respectivamente, deve se deslocar para o todo; e é o conhecimento
riador Carlo Guinsburg, em seu livro Mitos, emblemas e sinais30, es-
que o crítico e analista tem desse todo — no caso, as culturas grega
creve um capítulo, “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”, que
e judaica — que lhe permite, voltando ao texto, uma ressignificação
trata da emersão, por volta do final do século XIX, de um modelo
dos múltiplos epítetos e da profusão de orações subordinadas no
epistemológico, (um paradigma) no âmbito das ciências humanas.
texto grego, em face da secura do bíblico.
E ele aponta isso, muito especificamente, nos domínios dos estudos
O problema é que o primeiro passo, do que dependem todos
sobre a autenticidade de uma obra de arte, particularmente da pin-
os demais, nunca pode ser prefigurado. Está aí previamente, e nos é
tura: o “método de Morelli”. Efetivamente, tratava-se de uma “peri-
revelado pela emersão à consciência de um detalhe, que nos chama
tagem de estilo”, exposta em 1874 em artigos sobre pintura italiana.
a atenção junto com a convicção de que ele guarda uma relação fun-
Morelli31 era um médico (que publicava sob o pseudônimo de Ivan
damental com o conjunto. Assim, teríamos na marcha spitzeriana os Lermolieff), que defendia que não se podia chegar à conclusão da
seguintes momentos: perceber o desvio estilístico (sempre, repito, um autenticidade de um quadro senão através do detalhe. Propunha,
detalhe); qualificar sua significação expressiva; voltar ao todo do qual então, um método interpretativo centrado sobre dados marginais,
esse texto faz parte (seja a obra toda do autor, seja, mais amplamente considerados reveladores; uma espécie de peritagem de estilo. Por
ainda, a época); inferir do detalhe algo que está presente no todo; exemplo, para estabelecer a autenticidade de um quadro, importa
28 “Círculo do Conhecimento”: assim denominou Dilthey a descoberta realizada verificar não os grandes movimentos de estrutura (isso qualquer
pelo filólogo e filósofo Schleiermacher.
29 (SPITZER 1968:34). Sigo essa tradução espanhola do texto que, com pequenas
variações, Spitzer publicou em inglês, e também em francês (com tradução de 30 (GUINSBURG 1989:143-178)
Michel Foucault), com o título de “Art du Langage et Linguistique”. 1970. In —. 31 A ele Freud se refere em seu estudo “O Moisés de Michelângelo”, escrito em 1913,
Études de style. Paris: Gallimard. mas publicado anonimamente em 1914 (FREUD 1990, v. XIII).
312 Adélia Bezerra de Meneses Capítulo 8 . Literatura e psicanálise 313

discípulo bem treinado poderia fazer), mas os detalhes: a unha oval fala de um “eros analítico” que movia o crítico da Estilística, uma
ou quadrada de personagens secundárias, a forma da orelha, etc., entrega da afetividade à obra analisada.
etc. Nesse detalhe, estaria a característica do seu autor. Esses dados Nesse mergulho em posturas hermenêuticas, o que falar da na-
marginais constituíam momentos em que o controle do artista se tureza do conhecimento engendrado na empreitada analítica? Que
distendia, reveladores porque escapavam à censura. Sabemos todos “conhecer” é esse, a que leva o processo hermenêutico? Creio que
o quanto, na realidade, os nossos pequenos gestos, espontâneos, se impõe aqui uma distinção entre saber (latim scire, presente, por
revelam mais sobre uma pessoa do que uma atitude formal, previs- exemplo em “ciência”, em inconsciente) e conhecer (latim cognosce-
ta, conscientemente preparada. Como se vê, estamos em águas de re, de cum + gnoscere), em que ressalta o prefixo co, do latim cum.
confluência entre literatura e psicanálise. Efetivamente, “eu conheço”, (latim cognosco, que, aliás, significa
também “reconhecer”) é do radical grego de gnosco35, mas agrega o
Método? prefixo cum: de comunicação, de partilha, de experiência conjunta.
Sem comunhão, no limite não haveria conhecimento possível. Ou,
Tentando teorizar sobre seu método, Spitzer nos desconcerta.
como canta Renato Russo (em Monte Castelo): “É só o amor que co-
Depois de dizer que “Método é Vivência” (fórmula que ele tomou
nhece o que é a verdade” — uma outra maneira de dizer que Logos e
emprestado de Gundolf) — irredutível, portanto, a qualquer receita,
Eros confluem no processo do conhecimento do humano, do qual a
a qualquer “técnica”, a qualquer sistematização, e advertindo-nos de
Interpretação é uma das modalidades. E será ainda necessário pon-
que não há garantias, ele nos brinda com outra frase de efeito (no en-
tuar que o “eros analítico” que Starobinski vê em ação em Spitzer
tanto, extremamente verdadeira): esse modo de operar, seu método,
receberia, na psicanálise, o nome de “transferência”?
é “o resultado do talento, da experiência e da fé”32. É a pessoa toda
do analista (de texto ou de gente) que entra em campo, não somente
um repertório de um saber teórico. Ele conta que, como um aluno Efeito terapêutico da Palavra

principiante, por vezes se sentiu num estado de perplexidade diante Um observação final, no entanto, se impõe: no paralelo que vim
de um texto, até que... “Repentinamente uma palavra, um verso, se montando entre Interpretação literária e Interpretação psicanalítica,
destacam, e sentimos que uma corrente de afinidade se estabeleceu sempre ressaltando as semelhanças, há que se fazer uma distinção;
agora entre nós e o poema”33. Como se vê, o papel aí reservado à uma discriminação entre a práxis do crítico literário e a do psica-
sensibilidade, à intuição, é inequívoco; mas também ele assinala a nalista. É que no caso específico da psicanálise, há uma intenção
necessidade de uma “corrente de afinidade”, de uma “sintonia” a ser terapêutica no uso da palavra. E seria interessante mostrar essa
estabelecida entre um analista literário e o seu texto. Com efeito, função em práticas culturais, digamos, paraliterárias, que não são
Starobinski, num dos mais completos estudos feitos sobre Spitzer34, consideradas literárias propriamente ditas. Pois podemos procurar
32 (SPITZER 1968:50) 35 O grego gignosco significa conhecer, aprender a conhecer, reconhecer, e
33 (SPITZER 1968:50) também ter relações íntimas: “conhecer varão” é expressão clássica de uma
34 (STAROBINSKI in SPITZER 1970) mulher ter relações sexuais, como se registra na Bíblia.
314 Adélia Bezerra de Meneses Capítulo 8 . Literatura e psicanálise 315

mais longe e mais para trás, na história da humanidade, a utilização o social, da parte (o nascimento de uma criança) — ao todo (a
da palavra com efeitos terapêuticos — apanágio, nos nossos tempos, criação do mundo). Dando razão ao Riobaldo de Grande Sertão:
da psicanálise e das terapias analíticas. Veredas, de Guimarães Rosa, quando diz “Uma criança nasceu: o
Assim, é o caso de aludir a certos processos de cura xamanís- mundo tornou a começar”. Estamos aqui em pleno universo da
tica, que, aliás, estabelecem com a psicanálise mais de um vínculo. cura pela palavra. Mas deixando de lado as práticas xamanísticas,
Lévy-Strauss relata, no capítulo “A Eficácia Simbólica” de seu li- poderíamos remontar, mais uma vez, aos gregos, nesse universo
vro Antropologia Estrutural36 um procedimento dos índios Cuna de uso da palavra com propósitos terapêuticos.
do Panamá, por ocasião dos partos difíceis: o xamã canta para a Na tragédia Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, há um di-
mulher grávida, diz palavras ao seu ouvido, e assim o nascimento álogo38 entre Prometeu e outra personagem, Oceano, a quem
da criança é facilitado. Trata-se, como observa o antropólogo, “de Prometeu fala da cólera de Zeus, e Oceano replica com uma refe-
uma medicação puramente psicológica, uma vez que o xamã não rência aos iatroi lógoi39, “palavras-medicina”:
toca no corpo da paciente, nem lhe administra remédios; mas, ao
mesmo tempo, é colocado diretamente e explicitamente em causa Prometeu: [...] eu, por mim, irei esgotando a minha desventura
o estado patológico e seu centro: diríamos antes que o canto cons- até que afrouxe a cólera no coração de Zeus.
titui uma manipulação psicológica do órgão doente, e que é desta Oceano: Não compreendes, Prometeu, que para tratar a doença
manipulação que a cura é esperada”. Manipulação psicológica: cólera há as palavras-medicina?”
metáfora expressiva para o processo psicanalítico. Mas, continua
Lévy-Strauss: diz ele que o xamã fornece à sua doente uma lin- Sim, as palavras curam.
guagem: “E é a passagem a esta expressão verbal (que permite, ao Nessa mesma linha, um texto curioso e interessantíssimo do
mesmo tempo, viver sob uma forma ordenada e inteligível uma Fédon de Platão40 fala que há terrores no homem adulto que bro-
experiência atual, mas sem isso, anárquica e inefável) que provo- tam da criança que ele foi. Trata-se de um diálogo entre Sócrates e
ca o desbloqueio do processo fisiológico, isto é, a reorganização, Cebes. E para escorraçar tais medos, diz Sócrates que é preciso um
num sentido favorável, da sequência da qual a doente sofre o de- “encantador” bem sucedido e uma “encantação” frequente, até que a
senvolvimento”37. É interessante referir que o que era cantado ao criança seja acalmada pelos encantamentos (Fédon, 77 e). O termo
ouvido da parturiente eram cantos alusivos a mitos de sua etnia, grego para encantador, epodôs (de epi = por cima de + ode = canto)
mitos cosmogônicos; não eram cantos aleatórios, mas relativos à remete, literalmente, àquele que “canta por cima de” outro alguém.
criação do mundo, nesse momento em que, com o nascimento de Mas nada substitui o contacto direto com esse diálogo insti-
uma criança, cria-se um mundo. Há aqui também um movimento, gante, na sua literalidade41:
por parte do sacerdote da tribo, de passagem do individual para 38 (ÉSQUILO 1989:27)
39 iatros = médico; logos = palavra.
36 (LÉVY-STRAUSS 1958:211 et seq.) 40 (PLATÃO 1972)
37 (LÉVY-STRAUSS 1958:218.) 41 (PLATÃO 1972:87-88)
316 Adélia Bezerra de Meneses Capítulo 8 . Literatura e psicanálise 317

Cebes: — “Admitamos que dentro de cada um de nós há uma clínica: do verbo grego klíno, inclinar-se sobre... para cuidar.
criança a que estas coisas fazem medo. Por isso, esforça-te para que Relativamente a isso, do lado da literatura — penso nas civi-
essa criança, convencida por ti, não sinta diante da morte o mesmo lizações logocêntricas — que não se deduza que o confronto do
medo que lhe infundem as assombrações”. crítico literário com o seu texto seja uma fria tarefa acadêmica, de
Sócrates: — “Mas é preciso então que lhe façam encantamentos 42
gabinete e distanciada. Pois na linha do “eros analítico” de que fa-
todos os dias, até que as encantações o tenham libertado disso uma lou Starobinski, a tarefa de um crítico literário intérprete de textos
vez por todas”. é igualmente um encontro interpessoal — mediado pela palavra
Cebes: — “Mas Sócrates, onde poderemos encontrar contra esse escrita. Na busca insofrida de um conhecer, de um cum-gnoscere,
gênero de terrores, um bom encantador, uma vez que estás prestes travejando sensibilidade e inteligência, trata-se, aqui também de um
a deixar-nos?” movimento de comunhão profunda com o humano, colocando em
Sócrates: — “...Dirigi vossa busca por entre todos esses homens, e circulação tesouros ocultos — mercurialmente.
na procura de um tal encantador, não poupeis trabalhos nem bens,
repetindo convosco, a cada momento, que nada há em que possais Referências
com mais proveito gastar vossa fortuna”.

ANDRADE, Carlos Drummond de. 1987. “Nosso Tempo”. In: _________. “A Rosa
Como se vê, aqui também chegamos muito perto da psicaná- do Povo”. Nova Reunião de Poesia. 3. ed. Vol. 1, Rio de Janeiro, José Olympio
lise — inclusive com a alusão ao esforço na procura do profissional, Editora.

e ao gasto da fortuna que isso implica para seus adeptos... Mas, ARTÉMIDORE. 1975. Oneirocritica (La clef des songes). Trad. A. Festugière. Paris:
Libr. Phil. Vrin.
brincadeiras à parte, chegamos a práticas terapêuticas que utilizam
ASSIS, Machado de. 1985. O Cônego ou a metafísica do estilo. In: —. Obra completa.
a palavra como matéria-prima; a uma práxis, entre os gregos do Rio de Janeiro: Aguilar. Vol. II.
século IV a.C., de um procedimento “clínico” com que se liberta de AUERBACH, Erich. 1971. Mimesis: a representação da realidade na literatura
seus terrores a criança que mora em cada um de nós: uma “encanta- ocidental. São Paulo: Perspectiva.
ção” que há de ser compreendida no seu sentido etimológico. E que BELLEMIN, N. J. 1983. Psicanálise e literatura. Trad. Álvaro Lorencini e Sandra
Nitrini. São Paulo: Cultrix.
não se iniciaram, na humanidade, como vimos, no século XIX, com
BÉRARD, Victor. 1933. Introduction à l’Odyssée. Paris: Belles Lettres, 1933. T. III.
Freud, mas frequentam as práticas humanas desde tempos remotos,
CASSIRER, Ernst. 1976. Linguagem, mito e religião. Trad. Rui Reininho. Porto:
nessa aventura de viver. Edições Rés.
Mas há mais: esse “cantar sobre” diz respeito ao mesmo univer- CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. 2002. Dicionário de Símbolos. 11° ed.
so do procedimento clínico — como o prova a etimologia da palavra Rio de Janeiro, José Olympio.
DODDS, E. R. 1965. Les grecs et l’irrationnel. Trad. Michael Gibson. Paris,
42 “Encantamento”, assim como “encantador”: do radical de epodein: literalmente, Flammarion.
“cantar sobre”.
318 Adélia Bezerra de Meneses Capítulo 8 . Literatura e psicanálise 319

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Paulo: Duas Cidades.
Capítulo 9

Estética da Recepção
e do Efeito ou há um
leitor no horizonte?
Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos
Universidade Federal da Paraíba
Este capítulo tem por objetivo apresentar a Estética da Recepção
de Hans R. Jauss, mas não de modo isolado, e, sim, inserindo sua
articulação com a teoria do Efeito Estético de W. Iser. Isto, porque
depreendemos que pensar a primeira sem a segunda é dicotomi-
zar o pensamento tanto de Jauss como o de Iser, não permitindo
uma compreensão mais global do projeto heurístico da Estética da
Recepção. É preciso também especificar que há a elaboração de um
zoom na noção de leitor, dada a importância que a configuração
teórica ora estudada considera e o ponto de vista entre os níveis psi-
cológico e literário que a autora se firma já anunciados em Santos1.

1. Estética da Recepção: como o leitor (não) é visto

A universidade não passou ilesa ao período de intensas transforma-


ções políticas e intelectuais que envolveram a sociedade ocidental
nos anos 60. Assim, a Universidade de Constança, fruto da reforma
educacional na Alemanha, foi um terreno fértil para a conferência
de abertura de Hans Robert Jauss do ano acadêmico de 1967.
O que é e com que Fim se estuda História da Literatura?2 foi pro-
ferida por Jauss em 13 de abril daquele ano. Nela, o autor apresenta

1 (SANTOS 2009)
2 Mais tarde, esta aula recebeu um novo título A História da Literatura como
Provocação à Teoria Literária e foi incluída numa antologia de Jauss (1994).
324 Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Capítulo 9 . Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? 325

os dois modelos vigentes até então de se fazer história da literatura no foco a partir do qual cumpre examinar a literatura, a estética
e denuncia-os como simples listas de obras carentes de qualquer in- da recepção sendo o resultado dessa virada”. Se o leitor implícito,
dício de historicidade. Alterar esse quadro, propondo uma história de Iser, vincula-se às estruturas objetivas do texto, o leitor explícito
da arte fundada em outros princípios, incluindo a perspectiva do seria “o indivíduo histórico que acolhe positiva ou negativamente
sujeito produtor, a do consumidor e sua interação mútua, seria, por- uma criação artística, sendo, pois, responsável pela recepção pro-
tanto, o objetivo primeiro de Jauss. Para isso, somente a dimensão priamente dita dessa”. Temos, assim, uma formulação tênue de um
de recepção e efeito da literatura deveria sintetizar os dois aspectos leitor coletivo e ideal, diluído em toda sua teoria numa tentativa de
imprescindíveis à história da literatura, a saber, o caráter estético dar conta da experiência estética.
e o papel social da arte, uma vez que ambos se concretizariam na Ora, se o leitor concebido por Jauss é coletivo, a definição
relação da obra com o leitor. proposta por Holub7 e utilizada por Jauss para “horizonte de expec-
As posturas impõem a apresentação de um novo conceito de tativa” — como “esquema mental que um indivíduo hipotético pode
leitor, diverso da concepção marxista — para quem o leitor é parte trazer a qualquer texto” — não nos remeteria a um leitor individual?
do mundo apresentado — e do formalismo — que necessita dele Caso entendamos o uso do adjetivo “hipotético” como tentativa de
como sujeito da percepção, um seguidor das indicações do texto, em “coletivizar” o referido leitor, então, precisamos admitir seu caráter
busca de descobrir a forma ou o procedimento3. Diante disso, Jauss excessivamente abstrato, dificultando sua apreensão histórica e,
utiliza categorias como horizontes de expectativa e emancipação consequentemente, o desdobramento de pesquisas empíricas.
para estruturar sua concepção de leitor. A primeira definida por R. Isto posto, algumas questões podem ser formuladas: a concep-
Holub4 como “um sistema intersubjetivo ou estrutura de espera, um ção de leitor revelada por Jauss suporta a análise por ele proposta, já
‘sistema de referências’ ou um esquema mental que um indivíduo que as categorias eleitas contradizem suas proposições? Não estaria
hipotético pode trazer a qualquer texto” e a segunda categoria — a o conceito, de algum modo, imbricado numa idealidade? Quais
emancipação — seria definida como a possibilidade de uma obra implicações seriam engendradas, por uma teoria assim delineada,
“ao desafiar um código vigente, oferecer ao leitor novas dimensões para as ciências afins? É possível dar conta de uma estética da recep-
existenciais”5. ção, como pretendia Jauss, a partir de suas categorias definidoras
É exatamente no conceito de leitor onde se situa nosso inte- de leitor? São perguntas de cunho heurístico e, por consequência,
resse para o presente capítulo, pois ele catalisa tanto a derivação de carentes de aprofundamento teórico.
grande parte do programa postulado por Jauss, quanto a articulação Segundo Zilberman8, as críticas tecidas à teoria recepcional
com Iser. O leitor de Jauss, nas palavras de Zilberman6, “consiste circundam basicamente três aspectos: o conceito de leitor, a visão
do texto literário e o alcance do trabalho. Entendemos tais aspectos
3 (JAUSS 1994; primeira edição em 1967)
4 (HOLUB 1984:59 apud ZILBERMAN 1989:113)
5 (ZILBERMAN 1989:112) 7 (HOLUB 1984 apud ZILBERMAN 1989)
6 (ZILBERMAN 1989:114) 8 (ZILBERMAN 1989)
326 Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Capítulo 9 . Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? 327

como inextricavelmente relacionados e a concepção de leitor pode Estética da Recepção e História da Literatura (1989), ao se referir à
indicar um ponto profícuo para o início de um estudo crítico com o mesma obra e à mesma premissa, traduz o termo como psicologia.
intuito de repensar a estética da recepção, principalmente no plano Ora, é sabido de todos que os dois termos não são sinônimos: se
teórico. Para tanto, vejamos a segunda premissa do programa pos-
9
psicologismo refere-se à “tendência a fazer prevalecer o ponto de
tulado por Jauss : 10
vista psicológico sobre o de outra ciência, num assunto de domínio
comum”12, a psicologia, por sua vez, refere-se à ciência, cujo status
A análise da experiência literária do leitor escapa ao psicologismo para tal foi adquirido em 1879. Não se pode, portanto, tomar um
que a ameaça quando descreve a recepção e o efeito de uma obra pelo outro, como o fez Zilberman.
a partir do sistema de referências que se pode construir em fun- De qualquer modo, ainda que optando pela versão traduzida
ção das expectativas que, no momento histórico do aparecimento de Sérgio Tellaroli, a premissa mereceria uma discussão crítica. A
de cada obra, resultam do conhecimento prévio do gênero, da for- recepção e o efeito da obra podem (e devem inclusive) fugir ao psi-
ma e da temática de obras já conhecidas, bem como da oposição cologismo, pois toda forma de reducionismo é danosa à construção
entre a linguagem poética e a linguagem prática. do conhecimento, por isso, concordamos com Jauss, neste primeiro
momento. Não há, todavia, na segunda parte da premissa, como
Como o leitor, apresentado acima, pode ser ativo na análise escapar à psicologia, uma vez que tanto o “conhecimento prévio”
da experiência literária? A partir do que é formulado para ele, seria como “o sistema de referências” de um indivíduo são atributos cog-
possível implantar, de forma satisfatória, o programa de ação de nitivos e, portanto, psicológicos, ainda que façamos referência ao
Jauss, tendo como base principalmente as últimas três teses — ditas caráter coletivo do leitor.
sinteticamente: a consideração dos aspectos diacrônicos, sincrôni- Zilberman13, ao explicar por que a análise da recepção e do
cos, como também o relacionamento entre a literatura e a vida práti- efeito da obra escapa à psicologia, diz que “os elementos necessários
ca? A questão se respalda na tessitura de algumas críticas possíveis à para medir a recepção de um texto encontram-se no interior do
segunda premissa. Jauss constata: “a análise da experiência literária sistema literário. Em vez de lidar com o leitor real, indivíduo com
do leitor escapa ao psicologismo que a ameaça”. Em primeiro lugar, suas idiossincrasias e particularidades, Jauss busca determinar seu
o termo “psicologismo” é usado na tradução de Sérgio Tellaroli de virtual ‘saber prévio’”. Esta explicação leva-nos a duas perguntas. A
A História da literatura como provocação à teoria literária (primeira primeira é: se “os elementos necessários para medir a recepção de
edição em 1967)11, de Jauss, ao passo que Zilberman, em seu livro um texto encontram-se no interior do sistema literário”, onde está a
9 O programa de Jauss divide-se em quatro premissas e três teses.
10 (JAUSS 1994:27, grifos nossos) der Gattung, aus der Form und Thematik zuvor bekannter Werke und aus dem
11 Die Analyse der literarischen Erfahrung des Lesers entgeht dann dem Gergensatz von poetischer und praktisher Spache ergibt (JAUSS 1970:173-174)
drohenden Psychologismus, wenn sie Aufnahme und Wirkung eines Werks in (grifo nosso).
dem objektivierbaren Bezugssystem der Erwartungen beschreibt, das für jedes 12 Cf. Dicionário Eletrônico Aurélio Buarque de Holanda.
Werk im histoischen Augenblick seines Erscheinens aus dem Vorverständnis 13 (ZILBERMAN 1989:34, grifos nossos),
328 Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Capítulo 9 . Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? 329

ênfase no leitor? Qual é de fato a evolução dessa preconização para já se sabe) são outros exemplos de categorias passíveis de associação
as anteriores? Ora, ainda que compreendamos pelas argumentações ao conceito de leitor proposto em Jauss15.
posteriores de Jauss o duplo objetivo da segunda tese, a saber, evitar, Jauss, contudo, em seu texto Estética da Recepção: colocações
por um lado, o perigo de um retorno ao impressionismo e, por ou- gerais16, comenta a respeito da necessidade de recorrer às disciplinas
tro, seu resvalo no tão criticado imanentismo, tal tese é, no mínimo, vizinhas em busca de fundamentos teóricos para o desenvolvimento
confusa. A segunda indagação oriunda da explicação de Zilberman dos estudos concernentes à experiência estética. Ele cita contribui-
é: se o “saber prévio” é algo determinante na experiência literária ções de Ernst Bloch, Sartre, Lotman, Freud, entre outros. O nome de
e tal “saber” tem sido considerado em várias teorias da Psicologia, Freud parece indicar que a resistência à psicologia não é estendida
sobretudo aquelas ligadas ao cognitivismo , como dizer que a aná-
14
à Psicanálise, pelo menos. Há, portanto, certo reconhecimento da
lise da experiência literária do leitor “escapa à psicologia?” O fato de dificuldade de abarcar tal experiência apenas de um único ponto
Jauss, nas palavras de Zilberman, “em vez de lidar com o leitor real, de vista.
indivíduo com suas idiossincrasias e particularidades”, tentar iden- É possível formular mais uma questão: a concepção de leitor
tificar o seu virtual saber prévio, não libera a estética da recepção do embutida no programa de Jauss e, principalmente, na segunda
diálogo com a psicologia. Afinal, como é possível tecer conjecturas premissa, como já atestou Luiz Costa Lima (2002) — a despeito da
acerca de um termo com status teórico em outra área, e desconside- defesa do próprio Jauss e de Zilberman (1989) —, não apresenta o
rar isso? Aliás, ainda dizer que se escapará de tal vertente? De fato, leitor como ideal? “Escapar”, então, à psicologia não seria aproxi-
o verbo “escapar”, usado na tradução, parece bastante apropriado. mar-se cada vez mais da concepção de um leitor inacessível ou talvez
Apenas para ilustrar, há, na teoria de D. P. Ausubel, importante inexistente? Dito de outro jeito: seria possível, com o programa de
teórico cognitivista, uma exposição passível de ser perfilada à com- ação proposto por Jauss, dar conta da análise da experiência estéti-
preensão do leitor proposto por Jauss. Como exemplo, podemos citar ca de um leitor “concreto”? Ou o leitor ideal não seria apenas uma
a categoria de inclusores, proposta por Ausubel. Dito sumariamente: saída à construção teórica? Fechar as portas à psicologia não seria
os inclusores referem-se ao conhecimento anterior necessário para delimitar bastante o espaço de desenvolvimento de uma teoria cujo
a efetivação de novas recepções. Ausubel explica como os incluso- eixo básico, o leitor, por excelência, é foco de muitas outras ciências
res são construídos e manejados para facilitar a recepção de novos e disciplinas complementares na tarefa de compreendê-lo? Buscar
conteúdos. A significatividade lógica (estrutura do material que não subsídios dentro da própria obra para alcançar a recepção do leitor
deve ser arbitrária nem confusa), a significatividade psicológica não seria uma estratégia cuja consequência seria sua própria fossili-
(estrutura cognitiva do indivíduo que deve conter os inclusores) e a zação? É possível trabalhar com uma estética da recepção ignorando
disposição favorável (atitude para relacionar o que recebe com o que os processos cognitivos e emocionais inerentes ao ato de perceber,
14 Estudiosos como L. S. Vygotsky e D. P. Ausubel, para destacar os mais conspícuos
com relação a este aspecto, têm uma construção teórica sobre isso, amplamente 15 (SALA; GOÑI 2000a)
difundida. 16 (JAUSS 2002)
330 Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Capítulo 9 . Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? 331

receber, ler? Conquanto nosso objetivo não seja o de responder a necessário buscar o leitor real, em sua pesquisa, em virtude de sua
estas questões, visto que elas fogem ao escopo do recorte teórico postura contradizer a segunda premissa postulada por Jauss.
do trabalho em pauta, não podemos nos eximir de formulá-las e Os procedimentos metodológicos apresentados no estudo de
de indicá-las. Aqui elas funcionam como orientadoras da discussão, Carvalho revelam a incoerência interna das premissas de Jauss,
justificando, de certa maneira, nossa preocupação com o conceito quando da implementaçao de seu programa. A inconsistência te-
de leitor veiculado pela Estética da Recepção e suas implicações. órica aparece no momento da investigação e, por sua vez, só vem a
Para ilustrar a pertinência das questões levantadas até então, exacerbar a idealidade do conceito de leitor.
podemos citar a dissertação de mestrado As crianças contam as Não estamos, todavia, defendendo uma postura contra os tra-
histórias: os horizontes de leitores de diferentes classes sociais. Nela, balhos de cunho empírico, muito pelo contrário, consideramos as
Carvalho17 tem como objetivo “materializar a voz do pequeno leitor pesquisas de campo de grande valia tanto social quanto acadêmica,
a partir da investigação dos horizontes de leitura de crianças de dife- e é exatamente por isso que se faz necessário um delineamento bem
rentes classes sociais em contexto escolar, o que implica explicitar as planejado. Mas apenas isso não basta: o trabalho empírico deve
normas literárias e sociais constantes nas histórias literárias infantis servir não apenas para observarmos a “operacionalidade” de deter-
que correspondem às suas expectativas”. minados conceitos, mas principalmente para refletirmos sobre tais
A metodologia utilizada para a consecução dos objetivos pre- conceitos. Concordamos com Gumbrecht19 sobre a oportunidade
tendidos consistiu numa pesquisa de campo, pois, segundo o autor: que a recepção literária contemporânea provê de investigarmos
“[é] aquela que melhor atinge o propósito delineado de refletir sobre “experimentalmente, de certa forma, os atos cognitivos de leitores
a recepção do texto literário infantil”18. A asserção de Carvalho, no desprivilegiados”, no entanto, mesmo um projeto bem delineado
entanto, caracteriza-se como um raciocínio completamente tautoló- poderá deformar “as condições de uma situação receptiva autêntica”.
gico, pois não justifica por que a pesquisa de campo no seu caso é a Obviamente, como lembra Gumbrecht, a existência de dificuldades
melhor. Em se tratando de um trabalho, cujo principal suporte teóri- e problemas metodológicos, ao invés de impedir nossas tentativas
co é a Estética da Recepção, a escolha metodológica precisaria, mais de avanço na ciência literária, deve nos alertar para procedimentos
do que em outras situações, ser justificada. Isto porque Zilberman mais elaborados.
(1989) — em texto citado pelo autor da referida dissertação e dis- Capatto20, em sua dissertação de mestrado, faz um levanta-
cutido na presente tese — diz, em consonância com Jauss, não ser mento abarcando vinte trabalhos acadêmicos não publicados em
preciso buscar o leitor real, pois os elementos necessários para a livro no período de 1980 a 2003 no país, sendo cinco teses e quinze
mensuração da recepção de um texto estão contidos no interior do dissertações envolvendo o tema Leitor e Estética da Recepção. A
sistema literário. Então Carvalho precisaria justificar por que seria autora descreve, analisa e avalia estes trabalhos “com o objetivo

17 (CARVALHO 2001:3) 19 (GUMBRECHT 1998:40)


18 (CARVALHO 2001:18) 20 (CAPATTO 2005:17)
332 Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Capítulo 9 . Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? 333

principal de evidenciar, a partir da amostra, o atual estado das Apesar das críticas tecidas à Estética da Recepção da maneira
pesquisas acadêmicas sobre o tema.” A compilação apresentada é pensada por Jauss, ela corresponde a um avanço na teoria da litera-
bastante útil, pois nos dá exatamente a direção teórico-metodoló- tura, sobremodo quando seus estudiosos esforçam-se por construir
gica seguida pelos trabalhos, marcadamente os de cunho empírico. algo dentro do interesse genuíno de seu mentor: a partir da con-
Em vários destes trabalhos, foi possível flagrar inconsistências de sideração da historicidade que perpassa as obras literárias em sua
origem teórica, reveladas na metodologia, ou antes, na diferencia- recepção. Como exemplo de um trabalho, cuja concreção contribui
ção de conceitos. para a Estética da Recepção, em seu sentido metodológico, impli-
Entendemos, juntamente com Zilberman , que “a Estética 21
cando numa maior compreensão dos seus pressupostos teóricos,
da Recepção pode desembaraçar-se da academia, onde nasceu, e citamos a tradução da tese de doutorado, publicada em livro, de
questionar o leitor comum, o aluno na escola, o professor no seu Pressler (2006), intitulada Benjamin, Brasil, com um DVD incluso.
trabalho”, no entanto, sem abrir mão de sua lisura teórica. Nesta obra, o autor faz um levantamento tão minucioso e criativo da
Em suma, tem-se observado a partir de trabalhos empíricos recepção de W. Benjamin no Brasil no período de 1960 a 2005 que
que os princípios definidores ou delimitadores do leitor na Estética em sua interlinearidade transparecem não apenas os fios conduto-
da Recepção, da forma como Jauss os apresenta, demonstram-se res da historicidade na qual se tece a recepção benjaminiana, mas
ainda carentes de ajustes, todavia, conforme salienta Zilberman22: igualmente a própria subjetividade de todos os leitores (teóricos e
críticos), inclusive a do próprio Pressler. O período abarcado pelo
[...] no âmbito exclusivo da teoria da literatura, a estética da re- livro permite ao seu autor configurar a formação da intelectualidade
cepção oferece um leque de sugestões sobretudo à história da li- brasileira de forma vivamente histórica. O trabalho corrobora, neste
teratura, onde Jauss ancora suas principais teses, por equivaler ao sentido, as palavras de Borba23:
leito sobre o qual deve fluir a ciência literária. Suplementarmente,
ela colabora com a literatura comparada, a crítica literária e o [...] o importante a registrar é o fato de a estética da recepção
ensino da literatura, todos estes, campos aplicados da teoria da ter-se revelado uma escola que contribuiu para que a teoria da
literatura, portanto, da história da literatura, pois, como se disse literatura se repensasse enquanto disciplina, cuja função não é
e voltar-se-á a examinar, Jauss promove a integração dessas duas apenas a de balizamento de noções como: história dos movimen-
disciplinas. Como também essas áreas estão sendo objeto de tos literários, complicação da produção crítica; sistematização
revisão e reavaliação nos últimos tempos, a explicitação da meto- dos gêneros; organização de metodologias analíticas; descrição
dologia recepcional talvez possa fornecer subsídios à discussão e das tendências estéticas. De fato, a ênfase sobre as circunstâncias
dar consistência a seus fundamentos filosóficos. sociais e históricas no círculo da produção e recepção instaura
um conjunto de tópicos redimensionadores do que se deveria
21 (ZILBERMAN 1999:16)
22 (ZILBERMAN 1999:6-7) 23 (BORBA 2003a:26)
334 Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Capítulo 9 . Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? 335

ocupar a teoria da literatura. [...] Pautada no construtivismo, a contrapor-se a um código funcionaria como um estímulo para a in-
estética da recepção estaria contribuindo para que a teoria da tensificação do processo de comunicação. Ao livrar-se da opressão,
literatura se formulasse pela análise dos fatores que estivessem a obra sendo recebida, apreciada e compreendida pelo seu destina-
conduzindo a um novo modo de compreensão da disciplina. tário, incitá-lo-ia a participar da liberdade conquistada. Aqui se faz
presente o conceito de emancipação do leitor, não apenas atestando
Mas onde e como convergem mais notadamente os pensa- o caráter comunicativo de sua relação com a obra artística como
mentos de Jauss e de Iser? Nesta direção, remetemos o leitor para o também revelando a função libertadora.
próximo tópico. Costa Lima25, entretanto, problematiza a caracterização da ex-
periência estética como uma forma diferenciada de prazer, do modo
2. Experiência estética: revelando os sentidos como aduzido por Jauss, pois, apesar de sua considerável precisão
Segundo Jauss, a partir dos processos simultâneos de fruição na demonstração do conceito, não consegue, segundo o crítico
compreensiva e compreensão fruidora (só se pode gostar do que brasileiro, convencer em sua conclusão. A argumentação de Lima
se compreende e compreender o que se gosta, respectivamente), tenta demonstrar a idealidade do conceito de leitor em Jauss. De
o significado de uma obra artística é alcançado. Somente pela va- forma sintética, teríamos: a fruição compreensiva e a compreensão
lorização e resgate da experiência estética é possível apreender e fruidora, intrinsecamente relacionados, trazendo dois elementos
justificar o caráter sócio-histórico da arte (pedimos licença para a propulsores — o conhecimento e o prazer — da experiência estéti-
formulação de algumas questões, se não para respondê-las — por- ca. O conhecimento, todavia, não é conceitual: “O sujeito do prazer
que talvez não possam nem devam ser respondidas, porquanto não conhece-se no outro, traz a alteridade do outro para dentro de si,
é a nossa proposta, mas para incrementar o raciocínio — de fato só ao mesmo tempo em que se projeta nesta alteridade”26. A alteração
podemos gostar do que compreendemos? Como explicar quando produzida pelo conhecimento do sujeito do prazer no outro e do
ouvindo uma canção pela primeira vez num idioma não conhecido, outro no sujeito do prazer só ocorrerá a partir do momento ante-
gostamos de imediato? Ou quando, mesmo compreendendo a pro- rior a ela, configurado por um conjunto de expectativas, prenoções
fundidade de um poema ou a forma inovadora como foi construído, e previsões elaboradas pelo sujeito a partir de sua inserção social.
nós não conseguimos ser atingidos por ele?). Se durante a confrontação entre sujeito do prazer e a alteridade, as
Ao atribuir prazer e conhecimento à experiência estética, Jauss expectativas, previsões e prenoções forem apenas confirmadas, a
não está negando à arte sua função transgressora, pois segundo experiência estética fracassa em virtude do conhecimento oriundo
Zilberman24, a junção de prazer e conhecimento contrariaria, para apenas da semelhança. Como não houve a diferença, não acontece-
Adorno, o caráter constante da negatividade de uma obra, mas, ria a experiência estética que favoreceria, inclusive, a emancipação
para Jauss, consiste exatamente nisto seu caráter transgressor:
25 (LIMA 2002)
24 (ZILBERMAN 1999) 26 (LIMA 2002:47)
336 Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Capítulo 9 . Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? 337

do leitor. Se Jauss afirma ser a experiência estética responsável pelo não se pode teorizar sobre os seus elementos causadores. Lima28
caráter inovador da obra, isto indicaria um leitor com amplo conhe- depreende:
cimento prévio para ultrapassá-lo durante a experiência, garantindo
tanto sua emancipação quanto a novidade da obra. Como, ademais, não podemos esperar leitores tão sensíveis e tão
atentos que esse treinamento, via experiência estética, os leve a
Assim como o realce apenas do estoque prévio de saber do uma constante renovação, ainda que a experiência estética os
leitor nos levaria a dizer que toda experiência estética, porque capacite a se tornarem permeáveis à alteridade, a transformar sua
conceitualmente não controlável, não passa de uma experiência visão de mundo, tal experiência não poderia ser confundida com
de reconhecimento, de reduplicação, de corroboração de valores, uma espécie de revolução permanente.
assim também o realce oposto do questionamento dos valores
do leitor, que a obra provocaria, nos levará a exaltar a sublimi- O raciocínio ora desenvolvido pressupõe um conceito de leitor
dade da literatura, como via privilegiada para a aprendizagem da ideal, conforme apontado no início do tópico, parecendo mesmo
criticidade. 27
ser o fulcro da teoria jaussiana. Daí a importância de se empreender
investigações neste domínio.
Daí os analistas de Jauss apontarem seu parti pris para defender Em Teoria do efeito estético, Borba29 desenvolve um estudo
o potencial renovador e inovador da experiência estética. Contudo, sobre a teoria iseriana, considerando os campos da psicologia so-
o mais relevante na discussão de Lima é a implicação — por ele cial, sociologia do conhecimento, psicanálise da comunicação e
apontada — da maneira como Jauss elaborou sua teoria sobre a psicologia da Gestalt, nos quais Iser impregnou-se ao pensar sua
experiência estética: a sua relação com a teoria da literatura torna- teoria. Para tanto, a autora se ocupa dos principais conceitos por
-se impossível de ser pensada. Pois, se a experiência estética é uma ele desenvolvidos na obra O ato de ler: uma teoria do efeito estético.
forma de prazer e conhecimento conceitualmente não controlado, De forma sintética, ela esclarece o resultado do processo comu-
visto que o sujeito está envolvido na interação com a alteridade para nicativo entre leitor e texto como a vivência de um efeito de signifi-
possíveis questionamentos de seu saber prévio, podendo daí eman- cado, passível de ser traduzido como experiência estética. Quando
cipar-se e garantir a renovação da obra, como poderia então extrair experimentamos o significado de um texto literário, entramos na
conceitos desta experiência se para tal ele precisaria distanciar-se dimensão virtual da obra e vivenciamos uma experiência estética. A
teórica mas não esteticamente? significação atribuída pelo leitor à experiência estética (vivência do
Diante disso, o conhecimento de um novo horizonte de ex- significado) engendrará um questionamento sobre as normas de seu
pectativas não garante uma articulação conceitual, mas apenas contexto pragmático. Neste momento, estamos diante do aspecto
a aquisição de novos esquemas de ação. Da experiência estética
28 (LIMA 2002:48)
27 (LIMA 2002:47) 29 (BORBA 2003a)
338 Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Capítulo 9 . Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? 339

funcional da literatura, ao mesmo tempo da interseção da teoria do inter-relação hermenêutica entre Wirkung, como uma estrutura

efeito estético de Iser com a Estética da Recepção, conforme postu- que convida à resposta, e recepção, como o resultado de uma

lada por Jauss. operação seletiva conduzida pelo leitor real.31

A Estética da Recepção e do Efeito abarcaria o pensamento de


Jauss e o de Iser. Se Jauss dá a entender que a teoria do efeito seria Como vimos na introdução do presente estudo, a diferença en-
açambarcada pela Estética da Recepção, a nosso ver, isto não signifi- tre recepção e efeito é fundamental para a compreensão dos demais
caria uma diminuição da importância da primeira. Antes a Estética pressupostos de ambas as perspectivas e, principalmente, para efe-
da Recepção, não teria como se efetivar se os objetivos da teoria do tuarmos uma correlação entre as duas. É preciso que inicialmente o
efeito não fossem alcançados. leitor individual em interação com o texto literário, cumprindo o papel
Para Iser, a “recepção é um produto iniciado no leitor pelo disposto pelo leitor implícito — o de preencher os vazios, suplemen-
texto, mas é moldado pelas normas e valores sociais que governam tando-os — construa o significado (efeito), vivenciando a experiência
sua perspectiva”30. A recepção pode indicar tanto as preferências estética, dando-lhe uma significação. A análise do processo histórico
que revelam a disposição do leitor como as condições sociais que que perpassa a obra, tornando compreensíveis os motivos pelos quais,
formaram suas atitudes. Isso é possível a partir do exame de como ao longo do tempo, ela foi recebida e interpretada de diferentes modos,
o leitor seleciona o potencial do texto. O potencial, por sua vez, está é tarefa de uma estética da recepção. Se a princípio o trabalho de Iser
disponível na história da recepção e nos permite compreender por parece ser englobado pelo de Jauss, num segundo momento, o objetivo
que certos aspectos da estrutura foram preferidos em detrimento jaussiano não seria alcançado sem a análise do efeito estético ocorrido
de outros em épocas determinadas. As diferentes atualizações são durante a vivência da primeira etapa: a relação do leitor individual com
permitidas pela organização textual. o texto. A imbricação das duas vertentes é evidenciada nas palavras de
Por isso, Iser vê a recepção e o efeito inextricavelmente ligados, Pressler32, quando admite que “as realidades são reconhecidas nas e
pois: pelas obras, as obras reconhecidas pela leitura — leitura como ato de
assistir em memória as realidades que já foram. O papel da literatura
[...] a recepção [...] pode, portanto, ser considerada uma impor- é de dialogar com a história e seus sentimentos na memória do leitor”.
tante evidência para (1) um desdobramento historicamente con- A noção de estrutura apelativa do texto examinada por Iser:
dicionado do potencial do texto; (2) a constituição indispensável estrutura repleta de vazios solicitando o seu preenchimento por
do texto na mente do leitor, que o traz à vida; e (3) a alteração ob- 31 (ISER 1993:51) “[…] reception […] may therefore be considered as important
evidence for (1) a historically conditioned unfolding of the text’s potential; (2)
servável no primeiro e segundo plano dos aspectos textuais que the indispensable constitution of the text in the reader’s mind, which brings it to
life; and (3) the observable shift in backgrounding and foregrounding of textual
ocorrem em toda resposta efetiva. Assim emerge uma intricada
features that occur in every actual response. There thus emerges an intricate
hermeneutic interrelation between Wirkung, as a response-inviting structure,
30 (ISER 1993:50) “[…] reception is a product that is initiated in the reader by the and reception, as the result of a selective operation carried out by actual reader”.
text, but is molded by the norms and values that govern the reader’s outlook”. 32 (PRESSLER 2002:149)
340 Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Capítulo 9 . Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? 341

parte do leitor, tem em Ingarden (1965) a sua inspiração. Contudo, implícito, está relacionado o leitor implícito, e, ao segundo, por seu
nas palavras de Zilberman33, enquanto para Ingarden “o mundo turno, o leitor explícito, de ordem social. É importante considerar
imaginário representado numa obra mostra-se de modo esque- os dois momentos separadamente, por questões de maior eficiência
matizado, portanto incompleto e com pontos de indeterminações metodológica, e efetuar sempre em primeiro plano a reconstituição
ou lacunas”, para Iser, por sua vez, “a obra literária é comunicativa do leitor implícito, para depois definir as projeções ideológicas das
desde sua estrutura; logo depende do leitor para a constituição de camadas de leitores35. Gumbrecht (1998), de igual modo, relembra
seu sentido”. Se para o primeiro a concretização da obra pelo leitor a exigência de Jauss sobre o fato de, ao se planejar um experimento,
deve simular uma determinação completa, há implícita aqui uma sempre proceder a partir do leitor implícito. Tal “recomendação”
estética arraigada à estética da representação; ao passo que para nem sempre tem sido seguida, pelo menos, nos estudos realizados
Iser o sentido é imagético, podendo tomar várias configurações. no Brasil, sobremodo aqueles de cunho empírico.
Em suma, segundo Ingarden34, “[...] é preciso apreender a obra na A relação entre recepção e efeito foi evidenciada, pelo menos,
sua natureza esquemática e não a confundir com as concretizações em seu nível teórico, de modo a salientar a confluência entre a es-
singulares que surgem nas leituras individuais”. Assim, para ele, a tética da recepção de Jauss e a teoria do efeito de Iser, no entanto, é
concretização trata-se apenas da atualização dos elementos poten- preciso afunilar o debate em busca do objetivo do presente estudo:
ciais da obra, diferentemente de Iser, para quem a concretização é interessa-nos ir ao cerne da teoria do efeito estético, mais preci-
fruto da interação entre texto e leitor. samente na metáfora que tornaria o sistema iseriano plausível: a
Se, por um lado, o conceito de leitor implícito pode ser consi- interação texto e leitor. Para a partir daí aprofundar a discussão
derado um avanço na estética da recepção, por outro lado, possui acerca do conceito de leitor implícito, bem como suas repercus-
limites metodológicos, uma vez que não se desprende totalmente sões teóricas e práticas, conforme as indagações elaboradas por
da análise imanente. O problema é ampliado quando Jauss o utiliza Compagnon36:
como o veículo da sua visão da história da literatura e da hermenêu-
tica literária. [...] Toda essa bela descrição deixa, no entanto, pendente uma
Jauss diferencia a concretização do horizonte implícito de pergunta espinhosa: como se encontram, se defrontam prati-
expectativas, de matiz intraliterário — efetivada através do efeito camente o leitor implícito (conceitual, fenomenológico) e os
(experiência do significado) — e a análise das expectativas, normas leitores empíricos e históricos? Estes se curvam necessariamente
e papéis extraliterários advindos de grupos de leitores e épocas às instruções do texto? E, se não se curvam, como detectar suas
diversos — realizada por meio da recepção, condicionada pelo transgressões? No horizonte, surge uma interrogação difícil: a
leitor. Assim, ao primeiro momento, concretização do horizonte leitura real poderia constituir um objeto teórico?

33 (ZILBERMAN 1989:64-65) 35 (ZILBERMAN 1989)


34 (INGARDEN 1965:289) 36 (COMPAGNON 2001:153)
342 Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Capítulo 9 . Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? 343

O estudo em pauta pretende, paulatinamente, abarcar a discus- apresentado por cada abordagem e qual sua implicação dentro de
são das três questões finais desse fragmento. Como pretendemos ar- um ponto de vista que considere a categoria leitor? b) Como a teoria
ticular a teoria do efeito estético a conceitos da psicologia, do ponto do efeito estético, de W. Iser situa-se dentro do presente quadro?
de vista da teoria histórico-cultural, temos, no leitor real, portanto, c) Quais as relações entre a Estética da Recepção de H. R. Jauss e a
a possibilidade desta interface. Ademais, “para o psicólogo da lite- Teoria do Efeito de Iser?
ratura”, de acordo com Bruner37, “a análise teórica da ‘interpretação
de texto’ (por quem quer que seja formulada e quaisquer que sejam Em sua resenha, S. Suleiman, elencando as tendências da crítica
os dados-base textuais da análise) aceita apenas hipóteses sobre que lidam com o recebedor enquanto peça importante da teoria,
leitores reais”. alude: à retórica, à semiologia e ao estruturalismo, na medida
Entendemos, juntamente com Rabinowitz, que “[...] falar do em que se preocupam com o processo de decodificação do texto
leitor possibilita falar em psicologia, sociologia, história, e a crítica pelo destinatário; à psicanálise e à hermenêutica, por lidarem
que focaliza o leitor tem ajudado a derrubar as fronteiras que se- com a questão da interpretação; e à sociologia da literatura que,
param o estudo literário de outras disciplinas” . Um dos motivos
38
mesmo num autor à primeira vista alheio ao tópico, como Lucien
da dificuldade em se pesquisar a relação texto-leitor está em seu Goldmann, analisa a interação da obra com o público.39
caráter interdisciplinar e processual: trata-se de um fenômeno vivo
em constante movimento, e “cobri-lo” com uma única perspectiva Assim, quer seja para bani-lo ou inseri-lo, o leitor não tem
dá-nos sempre a sensação de estar usando um lençol que ora mostra sido visto com indiferença. Este olhar não indiferente deve-se,
a cabeça, ora os pés. muito presumivelmente, não apenas à indissociabilidade da relação
autor-texto-leitor, mas à inegável participação do leitor — mesmo
3. Relação texto-leitor e perspectivas teóricas: um panorama (de possuindo tantas definições quantos são os seus teóricos — na
aproximação?) à Estética da Recepção e do Efeito concretização da obra literária. Concretização também definida das
mais variadas formas. Autores como Ingarden, Vodicka e Iser já nos
Neste tópico, apresentamos algumas das principais teorias que con-
mostram matizes desse conceito que se, por um lado, os relacionam,
sideram a relação texto-leitor, tecendo uma comparação analítica
por outro, não os têm como homólogos.
entre elas, no sentido de identificar avanços e/ou retrocessos, seme-
Os caminhos percorridos pelas investigações acerca da relação
lhanças e/ou diferenças umas em relação às outras. Para tanto, ques-
entre texto e leitor são demasiadamente diversos, sendo, por sua
tões já discutidas perpassam nossa análise para que o fio de nossa
vez, igualmente distintas as correntes que os açambarcam. Um dos
tessitura argumentativa não se perca: a) Qual o conceito de leitor
motivos para a diversidade de perspectivas teóricas sobre a relação
37 (BRUNER 1997:5)
38 (RABINOWITZ 1997:4) “(…) talk of the reader opens up talk of psychology, texto-leitor parece ser a interdisciplinaridade inerente ao objeto de
sociology, and history, and reader criticism has helped break down boundaries
separating literary study from other disciplines”. 39 (ZILBERMAN 1989:15)
344 Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Capítulo 9 . Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? 345

estudo e a dificuldade de estudar algo, em sua essência, processual. ligeiramente exposta dentro do panorama aqui ilustrado, uma vez
Na abertura do segundo capítulo do livro Estética da Recepção que o próximo tópico é a ela dedicado.
e História da Literatura, a asserção de Susan Suleiman40 sintetiza a
diversidade de visões e suas dificuldades em lidar com ela: Reader-Response Criticism: um desafio aos fracos de coração.

Jane Tompkins, na introdução da coletânea Reader-Response


A crítica dirigida para a audiência não é um campo, mas vários,
Criticism: from formalism to post-structuralism, escreve:
não uma simples trilha muito batida, mas uma variedade de
encruzilhadas, pistas seguidamente divergentes que cobrem uma
Os ensaios reunidos aqui reenfocam a crítica no leitor. [...]
vasta área da paisagem da crítica segundo um padrão cuja com-
Enquanto eles focam no leitor e no processo de leitura, os ensaios
plexidade desencoraja os bravos e confunde os fracos de coração.
representam uma variedade de orientações teóricas: nova crítica,
estruturalismo, fenomenologia, psicanálise e desconstrução mol-
Mesmo com a miscelânea de pressupostos e implicações dife-
dam suas definições de leitor, de interpretação e do texto.42
renciadas produzindo uma sensação de caos teórico, é possível pa-
radoxalmente notar, em perspectivas teóricas antitéticas, um ponto
O Reader-Response Theory não pode ser considerado um mo-
de convergência indicando a participação, mais ou menos ativa, do
vimento em virtude de não possuir a característica de uma escola
leitor.
unificada. A saber, há apenas dois pontos básicos em comum, a
Neste contexto, visando aos propósitos do presente estudo,
importância atribuída ao leitor e a rejeição ao New Criticism. Jane
manteremos nosso foco de atenção nas perspectivas que se de-
Tompkins (1980) diz ser o Reader-Response Criticism um termo
bruça(ra)m sobre a tarefa de pensar explicitamente a relação tex-
associado àqueles teóricos que usam as palavras leitor, o processo
to-leitor, preocupando-se, inclusive, em conceituar o leitor. Uma
de leitura e resposta / efeito de modo a circunscrever sua área de
análise mais detalhada das vertentes mostra-nos, em sua maioria,
investigação.
fortes resquícios de uma atitude ainda imanentista41. Diante disto, o
De acordo com Rabinowitz43, os termos reader theory (te-
Reader-Response Criticism — reunindo variadas perspectivas teóri-
oria do leitor), audience theory (teoria da audiência), reader-
cas ligadas às mais diversas correntes, todas de alguma forma inte-
-response theory44 referem-se a tipos mais subjetivos de crítica
ressadas na relação texto-leitor — será sinteticamente apresentado,
do leitor, enquanto a Reception Theory (Teoria da Recepção) diz
seguido pela Estética da Recepção, conforme pensada por Jauss.
42 (TOMPKINS 1980: ix) “The essays collected here refocus criticism on the
A teorização iseriana pode ser pensada tanto dentro do Reader- reader. […] While they focus on the reader and the reading process, the essays

Response Criticism quanto da Estética da Recepção e será apenas represent a variety of theoretical orientations: New Criticism, structuralism,
phenomenology, psychoanalysis, and deconstruction shape their definitions of
40 (Apud ZILBERMAN 1989:13) the reader, of interpretation, and of the text”.
41 A perspectiva de Stanley Fish é uma exceção, mas nem por isso um ganho, pois 43 (RABINOWITZ 1997:1)
descamba para o polo do leitor, obliterando completamente o texto literário. 44 Ainda sem tradução adequada (consensual) em português.
346 Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Capítulo 9 . Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? 347

respeito mais especificamente à escola alemã da crítica da recepção nas palavras da página e para desvendá-lo é necessário um treinamen-
(Receptionkritik), representada por Hans Robert Jauss. to especial para o leitor. Gibson introduz a noção de leitor simulado
O Reader-Response Criticism surge em oposição à máxima do como oposto ao leitor real. O leitor simulado refere-se a um papel
New Criticism emitida por Wimsatt e Beardsley45: “A Falácia Afetiva apresentado ao leitor real, convidado a interpretar durante a leitura.
é uma confusão entre o poema e seus resultados (o que é e o que faz). “O leitor simulado é um artefato, controlado, simplificado, abstraído
Começa por tentar derivar o padrão da crítica dos efeitos psicológi- do caos da sensação do cotidiano”47, por conseguinte, é uma entidade
cos do poema e termina em impressionismo e relativismo.” Como puramente textual. Esta noção de Gibson propiciaria a habilidade
os críticos do Reader-Response Criticism acreditam que o sentido de para escutar um diálogo ocorrido entre falante (narrador) e leitor si-
uma obra só efetivamente existe através de sua realização na mente mulado, fornecendo as estratégias usadas pelo autor para indicar aos
do leitor, seria impossível descrever tal sentido sem a descrição dos seus leitores os valores e assunções que pretende aceitar ou refutar.
efeitos tidos como psicológicos. Assim, a ênfase no leitor e a destrui- A atenção de Gibson está visivelmente dirigida ao texto e aos efeitos
ção da objetividade do texto são os pontos comuns aos teóricos do produzidos por ele. Para Gibson, o seu conceito de leitor simulado
Reader-Response Criticism; sendo necessário, portanto, redefinir os possui utilidade nos níveis moral e pedagógico, visto que permite ao
objetivos e métodos dos estudos literários. estudioso aceitar ou rejeitar o papel oferecido pelo autor. Tal conceito
Jane Tompkins (1980) aponta, como marco inicial do Reader- ainda teria a vantagem de torná-lo mais consciente de seu próprio
Response Criticism, os estudos sobre a resposta emocional de I. A. sistema de valor e mais capaz de lidar com questões de autodefinição.
Richard em 1920 ou o trabalho de D. W. Harding e Louise Rosenblatt Entre outros aspectos, Gibson não discute, por exemplo, os
em 1930, todavia ela escolheu iniciar sua coletânea sobre o assunto conteúdos implicados na aceitação ou rejeição do leitor simulado,
com o ensaio de Walker Gibson46, para mostrar uma busca mais papel oferecido pelo falante ao leitor. Ou como o sentido é de fato
efetiva pela participação do leitor já dentro do formalismo. descoberto ou experimentado pelo leitor real? Quais as consequên-
Os teóricos amplamente identificados com a denominação cias de uma suposta rejeição do leitor simulado? Como seria o trei-
Reader-Response Criticism, mesmo tendo no enfoque ao leitor seu namento necessário ao leitor real para identificar o leitor simulado e
ponto de partida, possuem concepções diferenciadas sobre ele. a partir daí encontrar o sentido literário sobre as páginas do texto?
Destacaremos, pois, as diversas concepções de leitor apresentadas Se a atenção de Gibson está voltada para o texto e nele encontra-se o
nos principais ensaios reunidos por Tompkins (1980). sentido, parece contraditório que o leitor precise de um treinamento,
O ensaio de Walker Gibson, intitulado Authors, speakers, rea- se isto se faz necessário é porque o sentido se realizaria no processo
ders, and mock readers (1980), apresenta uma concepção de literatura de leitura, nem no texto nem no leitor, mas na interação de ambos.
centrada no texto. De acordo com ele, o sentido literário encontra-se O avanço do ensaio de Gibson está no fato de que, apesar
de partilhar muitas assunções da New Critical, já antecipa uma
45 (WIMSATT; BEARDSLEY 1967:21 apud ISER 1996:61, v. 1, grifo nosso)
46 (GIBSON 1980:1-6). A primeira publicação desse artigo foi no College English 11 47 (GIBSON 1980: 2) “The mock reader is an artifact, controlled, simplified,
(February 1950): 265-69. abstracted out of the chaos of day-to-day sensation”.
348 Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Capítulo 9 . Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? 349

mudança de foco, do texto para o leitor, pois usa a ideia de leitor categorias: a) há os sinais sem referência ao narratário ou, mais
como meio para gerar um novo tipo de análise textual, sugerindo a precisamente, nenhuma menção diferenciando-o do narratário
consideração da crítica literária como parte de um processo funda- grau-zero; b) há os sinais que, ao contrário, o definem como um
mental na formação de uma identidade . 48
narratário específico e o fazem desviar das normas estabelecidas.
Vinte e três anos após o ensaio de Gibson, Gerald Prince publi- Interessante notar a demasiada abrangência das duas categorias
ca Introduction to the study of the narratee49, qual se assemelha em apresentadas por Prince: a primeira inclui as normas gerais esta-
suas premissas fundamentais ao estudo de Gibson. Prince desen- belecidas para o narratário grau-zero, isto é, o narratário “básico”,
volve o conceito de narratee (narratário) que está para o narrador e a segunda categoria compreende as exceções à regra. Para Prince
como o leitor simulado, de Gibson, está para o falante; todavia, (1980), o conceito de narratário auxilia a estudar como a narração
diferentemente de Gibson, não estuda os valores e suposições do funciona, a constituir um revezamento entre narrador e leitor, a es-
autor através do conceito de narratário, antes o utiliza para elaborar tabelecer a estrutura, a caracterizar o narrador, a enfatizar determi-
um sistema de classificação. nados temas, além de contribuir para o desenvolvimento do enredo.
Prince distingue uma série de tipos de leitor para quem um Numa analogia bem-humorada, podemos associar o narratário
texto pode se dirigir, a saber: o leitor real (a pessoa com o livro nas à empregada doméstica (ou à secretária fiel ou ainda à amiga de to-
mãos), o leitor virtual (o tipo de leitor para quem o autor pensa estar das as horas) da protagonista de uma novela televisiva, da qual não
escrevendo, a quem ele dota com certas qualidades, capacidades e sabemos nada de sua vida particular, nem tampouco o enredo tem
gostos) e o leitor ideal (o leitor capaz de entender o texto perfeita- algo reservado para ela e cuja função parece ser somente a de servir
mente e o aprovar em todas as suas nuanças). como uma espécie de alter ego da personagem, possibilitando-lhe a
De acordo com Prince (1980), o narratário “grau-zero” sabe exposição de seus pensamentos e sentimentos para o público. Em
a língua e a linguagem do narrador, além disso, possui faculdades suma, ela é um elemento da trama, mas sua função é exatamente a
específicas de raciocínio e certa memória — ao menos para con- apresentada por Prince para o narratário: enfatizar certas temáticas,
siderar os eventos da narrativa sobre os quais tem sido informado auxiliar no desenrolar da trama, etc.
e suas possíveis consequências. Este tipo de narratário não possui Prince não pensa nas implicações práticas ou morais de seu
personalidade nem características sociais. Não é bom nem ruim, método para os seres humanos, como pensou Gibson. Influenciado
pessimista ou otimista, revolucionário ou burguês. Todo narratário por críticos estruturalistas como Tzvetan Todorov e Gerard Genette,
possui tais características, exceto quando uma indicação ao contrá- ele considera o conceito de narratário como um elemento da nar-
rio é suplementada na narração intencionada a ele. rativa, recentemente descoberto e capaz de, quando completamente
Os sinais do narratário, por seu turno, se agrupam em duas investigado, contribuir nas ciências das estruturas literárias. As
assunções de Prince sobre o status do texto e sua relação com os
48 (TOMPKINS 1980)
49 (PRINCE 1980) Primeira publicação em Poétique n. 14 (1973), p. 177- 96.
leitores reais não diferem daquelas dos New Critics. Ler, tanto para
350 Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Capítulo 9 . Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? 351

ele quanto para Gibson, consiste em descobrir algo dado sobre a Segundo Rabinowitz (1997), os dois tipos de leitores, o narratário
página. Seus narratários, como os narradores de Wayne Booth50, e o implícito, precisam ser distintos de outras categorias de leitor
pertencem ao texto51. hipotético. Entre outros exemplos de leitores hipotéticos, temos:
Tompkins, ao comparar o leitor sob os pontos de vista de o leitor intencionado (intended reader, denominado de “audiência
Gibson e Prince, conclui: autoral” por Rabinowitz) — inferido através do contexto no qual
ele surgiu —, e o leitor pressuposto (postulated reader, chamado por
Assim, o foco no leitor simulado e narratário é no final das contas Stanley Fish de informed reader, [leitor informado]) — que não surge
um modo de refocalizar o texto; não dota o leitor de um poder do estudo do texto ou do seu contexto, mas da emersão da percep-
que já não tenha, mas deixa-o na mesma posição que ele tinha ção de um leitor cujas características são assumidas por um crítico.
ocupado na crítica formalista — aquela de deficiente, mas res- Os leitores hipotéticos apresentados, tanto os de Gibson como
peitoso investigador atrás de verdades, neste caso, as estruturas, os de Prince, Iser, Rabinowitz e Fish, somando-se aos que ainda
preservadas no texto literário.
52
discorreremos neste capítulo, possuem implicações no seu uso, pois
embora se assemelhem em alguns aspectos, são pensados a partir de
O esclarecimento das características e dos sinais do narratário, pressupostos literários e filosóficos diferenciados.
é importante frisar, não torna a tarefa de identificá-lo mais fácil. O No tópico Concepção de leitor e a concepção do leitor implícito53
narratário não pode ser confundido com os demais tipos de leitores do primeiro capítulo de O Ato da leitura: uma teoria do efeito estéti-
apresentados por Prince, nem tampouco deve misturar-se aos leito- co, Iser diferencia os leitores aqui chamados de hipotéticos em duas
res hipotéticos demonstrados pelos demais teóricos. categorias: os leitores reais e os hipotéticos. Os primeiros seriam
Vejamos, o narratário é a pessoa a quem o narrador está di- aqueles cujas respostas são de algum modo documentadas, enquan-
rigindo sua narração. Para Prince (1980), tanto narrador quanto to os hipotéticos ainda se subdividiriam em dois tipos: o contempo-
narratário pertencem ao texto e não devem ser confundidos com râneo e o ideal. O leitor contemporâneo proporciona a história da
o leitor real fora dele. O implied reader (leitor implícito), definido recepção, ao passo que o leitor ideal é uma extrapolação do papel
por Iser (1974), por sua vez, diz respeito à estrutura do texto, cujos do leitor apresentado no texto. Em outras palavras, nenhum deles
vazios solicitam um preenchimento por parte do leitor empírico. corresponde de fato a um leitor real, no sentido concreto do termo.
Para Iser (1996), tipos diferentes de leitor, tais como o arquileitor
50 Wayne Booth cunhou o termo “autor implícito”. Para um maior detalhamento, (Riffaterre), o leitor informado (Fish) e o leitor intencionado (Wolff),
ver BOOTH (1980).
51 (TOMPKINS 1980) conquanto sejam concebidos como construção, trazem, mais ou
52 (TOMPKINS 1980:xii-xiii) “Thus, the focus on mock reader and narratees is
menos de forma evidente, um substrato empírico como referência.
ultimately a way of re-focusing on the text; it does not endow the reader with
any powers he did not already have, but leaves him in same position he had Critica, desta maneira, cada um desses conceitos por considerá-los
occupied in formalist criticism — that of a flawed but reverential seeker after the
truths, in this case the structures, preserved in literary text”. 53 Readers and the Concept of the Implied Reader (na versão em inglês).
352 Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Capítulo 9 . Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? 353

limitadores da experiência ou da função do leitor e oportunamente se dirige ao leitor implícito (ou o narrador ao narratário), lança

insere sua concepção de leitor implícito como capaz de superar a as bases de seu pacto, define as condições de entrada do leitor

referida limitação. Por isso, Iser diz: real no livro.56

Quando, nos capítulos seguintes deste livro, se fala em leitor, Ora, no exemplo dado por Compagnon — o mesmo utiliza-
pensa-se na estrutura do leitor implícito embutida nos textos. À do por Prince (1973) para ilustrar o conceito de narratário por ele
diferença dos tipos de leitor referidos, o leitor implícito não tem proposto —, temos claramente um narrador dirigindo sua narração
existência real; pois ele materializa o conjunto das pré-orienta- ao narratário. Ambos pertencem ao texto, não se equivalem, respec-
ções que um texto ficcional oferece, como condições de recepção, tivamente, nem com o autor implícito — as marcas deixadas pelo
a seus leitores possíveis. Em consequência, o leitor implícito não autor real no texto —, nem com o leitor implícito, concernente à
se funda em um substrato empírico, mas sim na estrutura do estrutura do texto, à forma como os vazios são apresentados para
texto.54 que o leitor real, aceitando tal implicitude, possa interagir e cumprir
seu papel. Compagnon apresenta claramente um duplo equívoco
A diferença entre os tipos de leitores ora generalizados como quando diz: “Aqui, o autor implícito se dirige ao leitor implícito (ou
hipotéticos traz repercussões significativas na abordagem do fenô- o narrador ao narratário)”. Quem se dirige é o narrador e não o au-
meno da recepção/efeito. Muitas vezes encontramos tais termos tor implícito; o seu interlocutor é o narratário, não o leitor implícito.
utilizados sem a devida distinção ou tidos como equivalentes, como O narratário é alguém, digamos assim, explícito: sabemos onde está
podemos observar na citação abaixo, na qual Compagnon55 confun- e quais são seus sinais e funções, conforme vimos na exposição de
de não apenas leitor implícito com narratário, mas igualmente autor Prince. Por outro lado, o leitor implícito, como o próprio nome já
implícito (de W. Booth) com narrador, a despeito da advertência de o demonstra, apresenta-se apenas de forma implicada na estrutura
Rabinowitz: do texto, em consonância ao colocado mais acima nas palavras do
próprio Iser. A conjunção “ou” nos parênteses da citação extraída
Haveria, assim, em todo o texto, construído pelo autor e com- de Compagnon enfatiza a equiparação entre as duas sentenças, re-
plementar ao autor implícito, um lugar reservado para o leitor, lacionando o narrador ao autor implícito e tornando o narratário
o qual ele é livre para ocupar ou não. Por exemplo, no início de homólogo do leitor implícito.
O pai Goriot: “Assim faria você, você que segura este livro com Os críticos em pauta, todavia, não diferem somente quanto
uma mão branca, você que se acomoda numa poltrona macia, à concepção de leitor, mas consequentemente da forma como
dizendo: Talvez isso vá me divertir [...]” Aqui, o autor implícito abordá-lo. Ademais, discordam quanto ao propósito da atividade
crítica; por isso, tomar os conceitos como homólogos pode trazer
54 (ISER 1996:73, v.1)
55 (COMPAGNON 2001:150-151) 56 (RABINOWITZ 1997)
354 Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Capítulo 9 . Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? 355

consequências danosas à compreensão da abordagem literária espe- à consciência. Assim o texto é composto por um mundo que

cífica, além de não chegar a lugar algum. ainda há de ser identificado e que é esboçado de modo a incitar o

Temos outro exemplo dessa confusão de termos na tese de leitor a imaginá-lo e, por fim, interpretá-lo.60

doutorado Interação texto-leitor na escola: dialogando com os contos


de Gilvan Lemos, de Silva57. Chama-nos a atenção quando a autora E a autora conclui: “É ao reconstruir as pistas textuais, inter-
seleciona a teoria do efeito estético (Iser) para trabalhar na consecu- pretando o mundo ficcional como ‘um campo de jogo’, como propôs
ção do seu objetivo, a saber: “analisar as inter-relações entre a litera- Iser na citação acima, que o leitor participa dinamicamente do
tura e o leitor no espaço escolar, visando observar de que modo os ato de ler”61. À primeira vista, tudo parece ter dado certo, mas, se
alunos veem o texto literário e quais os principais entraves à realiza- considerarmos o conceito de narratário como sendo de um outro
ção dessa leitura”, e, no momento da análise propriamente dita, das naipe e, portanto, não é a ele a quem Iser se refere, nem tampouco à
entrevistas, utiliza autores com posturas opostas à de Iser. Dito de identificação do leitor real com o narratário, começamos a perceber
outro jeito: a autora trabalha com a interação texto-leitor, todavia, a incongruência. Ora, o mundo esboçado incitando o leitor a imagi-
vez por outra, utiliza-se de perspectivas teóricas que, mesmo con- ná-lo é a estrutura de vazios do texto, portanto, o que está em voga
siderando a participação do leitor, estão filiadas a uma concepção é o conceito de leitor implícito. Assim, o leitor real, quando aceita o
bastante imanentista, como é o caso de Prince (aliás, se o próprio papel apresentado pelo leitor implícito (conceito de ordem textual),
Iser, como vimos, recebe esta crítica — superficialmente mencio- entra num jogo diádico com o autor, imaginando e interpretando o
nada pela autora — quanto mais Prince, ligado explicitamente ao mundo esquematizado através do texto, mas, muito provavelmente,
estruturalismo). nunca idêntico ao mundo do autor. Outro dado importante é que o
Exemplificando: a autora utiliza-se do estudo de Prince (1986)58 interesse de Prince está centrado no texto e não na interação texto-
sobre o narratário para analisar um dos resultados das entrevistas. -leitor, como declaradamente assumido por Iser.
Escreve: “Na resposta (4), o leitor empírico se identificou a tal ponto De acordo com Tompkins (1980), o conceito de narratário,
com o narratário que não consegue perceber a ficção como um jo- com suas características, sinais e funções, vem a incrementar uma
go”59. Em seguida, cita Iser: taxionomia de análise textual, colocando Prince na esteira de críti-
cos estruturalistas como Todorov e Genette. Para Prince, o conceito
Os autores jogam com os leitores e o texto é o campo do jogo. O de narratário é um novo elemento da narrativa, podendo ser acres-
próprio texto é o resultado de um ato intencional pelo qual um cido às ciências das estruturas literárias, ao passo que Iser tem uma
autor se refere e intervém em um mundo existente, mas, con- descendência fenomenológica e um cais de chegada na Estética da
quanto o ato seja intencional, visa a algo que ainda não é acessível Recepção e do Efeito.
57 (SILVA 2003:14)
58 Trata-se da mesma versão de 1980. 60 (ISER 2002:107)
59 (SILVA 2003:108) 61 (SILVA 2003:108)
356 Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Capítulo 9 . Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? 357

Como vimos um pouco acima, as suposições de Prince sobre o um dos teóricos pertence a um campo epistemológico distinto, sen-
status do texto e sua relação com os leitores reais não diferem daque- do o trabalho de Gibson ainda ligado à corrente formalista. Quando
las dos New Critics: ler, para ele, não é construir sentido num jogo Gibson afirma que “dependendo do grau de nossa sensibilidade lite-
diádico entre leitor real que assume a implicitude e texto — como é rária, nos criamos pela linguagem [...]”, ele está pensando no conceito
para Iser —, mas desvendar o sentido já dado na página. Portanto, de leitor simulado (mock reader) como mediador entre o leitor real e
usar as argumentações de Prince desconexas de seu contexto heu- o texto. Iser ao afirmar: “a obra literária ativa nossas faculdades, per-
rístico geral (e, por isso, semelhantes às de Iser) é, no mínimo, mite-nos recriar o mundo que a literatura apresenta”, tem em mente
contraditório dentro de um estudo sobre a interação texto-leitor, outra relação, a do leitor real em cumprimento ao papel destinado
considerando o leitor como elemento ativo. pelo leitor implícito (implied reader), a saber, o preenchimento dos
Em outro momento, ainda em Silva, temos: vazios. Embora Gibson e Iser dissertem sobre atividade criativa, a
forma como esta atividade é entendida e o processo como ocorre para
De acordo com Gibson: “dependendo do grau de nossa sensi-
62
cada um dos teóricos é diversa. Se para Gibson o sentido literário
bilidade literária, nos criamos pela linguagem. Assumimos, para encontra-se nas palavras da página e para desvendá-lo (e não cons-
os propósitos da experiência, uma série de atitudes e qualidades truí-lo) é necessário um treinamento especial do leitor, entendemos
a que nos convida a linguagem do texto e, na impossibilidade de que não somente os conceitos de leitor simulado e leitor implícito são
fazê-lo, abandonamos a leitura”. diferentes, mas também a forma de o leitor real lidar com eles. Logo,
para interagir com o primeiro é preciso um treino, certa aptidão
A posição de Gibson parece similar à de Iser (1996), quando este aprendida para desvendar o que já está dado, o sentido; enquanto
afirma que a obra literária ativa nossas faculdades, permite-nos que, com o segundo, o leitor real parte do que tem. Questionemos
recriar o mundo que a literatura apresenta. Como afirma Iser: 63
então: a imaginação do leitor real está sendo de fato utilizada quando
“o produto dessa atividade criativa é o que poderíamos chamar é preciso antes treiná-la? Imaginação pode ser desenvolvida, amplia-
de ‘dimensão virtual do texto’. Essa dimensão virtual não é o tex- da, mas poderá ser treinada? Parece-nos contraditório treinar algo,
to, nem apenas a imaginação do leitor, mas o encontro do texto por definição, não treinável, pois somente livre pode se desenvolver.
com a imaginação do receptor”. 64
Até onde sabemos, Iser jamais concordaria com tal posicionamento
acerca da imaginação. Por conseguinte, o pensamento de um teórico
Mais uma vez, temos posturas diferenciadas tomadas como não pode ser complementado pelo do outro.
homólogas. De fato, como Silva afirma, “a posição de Gibson parece Deste modo, embora trechos da argumentação de um teórico
similar à de Iser” — importante frisar, apenas parece —, todavia cada possam se aproximar da discussão de outro, o lugar epistemológico,
62 (GIBSON 1986:01). Trata-se da versão de 1974. filosófico e mesmo literário de onde cada um escreve traz impli-
63 (ISER 1996:54)
64 (SILVA 2003:111)
cações conceituais e metodológicas, não permitindo considerar
358 Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Capítulo 9 . Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? 359

determinadas assertivas como homólogas. Caso queiramos usar Outros autores interessados na relação texto-leitor poderiam
“pedaços juntos” de uma estrutura para compreendermos elementos ser incluídos na presente exposição, todavia, para o escopo do tra-
de outra, à moda de uma teoria soft, de acordo com Iser, é preciso balho em pauta, as teorias apresentadas cumprem seu duplo papel,
antes adaptá-la para isso: compreendê-la em seu contexto inicial e a saber, formar um panorama sobre a diversidade de perspectivas
depois suas implicações dentro de uma nova articulação. ligadas a correntes variadas com as dificuldades sui generis deste(s)
Uma vez esclarecida a necessidade de se compreender e respeitar campo(s) de estudo e mostrar a localização da vertente iseriana no
as diferenças teóricas acerca da relação texto-leitor, é preciso afirmar referido quadro.
que Iser, por seu turno, no ensaio The reading process: a phenomeno- Diante do conjunto apresentado, a perspectiva iseriana dá um
logical approach (1974) , embora influenciado também pela fenome-
65
avanço em relação às teorias puramente textualistas, no momento
nologia, examina o processo de leitura de modo oposto ao de Poulet. em que afirma ser na leitura que a obra se realiza, mas ainda se
Para Iser, o leitor é um ser ativo cuja participação permite a existência prende de certo modo a uma postura imanentista quando concei-
da obra; desta maneira, o sentido literário será sempre virtual. Não tua o leitor implícito como algo que “não se funda em um substrato
se trata, portanto, da consciência do leitor ser invadida pela cons- empírico”. De fato, o leitor implícito é da ordem da estrutura textual,
ciência do autor, como preconiza Poulet, mas de o leitor agir como porém indagamo-nos acerca de como a leitura — que efetiva a obra
cocriador da obra, porquanto a ele é dado o papel de suplementar a — poderá ser implementada sem a consideração de um leitor real?
porção não escrita, mas implícita do texto. Cada leitor preencherá os O conceito cunhado por Iser exige uma participação ativa do leitor
vazios ou áreas de indeterminação de sua própria maneira, todavia real e, a despeito da descrição minuciosa e rica que o autor faz desta
isso não quer dizer que o texto seja fruto da subjetivação do leitor, participação, toda a responsabilidade das ocorrências é colocada
pois o preenchimento de vazios precisa estar em consonância com as unicamente no texto.
disposições construídas pelo texto, o leitor implícito. O panorama acima nos permite lembrar que, embora em mui-
Apesar do avanço do conceito de leitor implícito em relação aos tos casos os conceitos e as metodologias se assemelhem, eles não
demais apresentados, é possível ainda entrever certo imanentismo. podem ser tomados como homólogos, nem tampouco utilizados
Jane Tompkins, ao comentar o citado ensaio de Iser e, mais notada- de maneira eclética numa mesma investigação. Os pontos em co-
mente, sua noção de leitor, constata: “A atividade do leitor é apenas o mum às perspectivas estão no interesse pelo leitor, pelo processo de
cumprimento do que já está implícito na estrutura da obra — ainda leitura e na consideração da descrição da resposta/efeito do leitor
que nunca fique claro exatamente como aquela estrutura limita sua ati- como indispensável para se identificar/delimitar/construir (o verbo
vidade”66. Assim, o conceito de leitor em Iser ainda se prende ao texto. depende da concepção e do método) o sentido da obra, enquanto
o restante do arcabouço teórico: filiação filosófica, metodologia de
65 O processo de leitura: uma abordagem fenomenológica.
66 (TOMPKINS 1980:xv). “The reader’s activity is only a fulfillment of what is already trabalho, orientação epistemológica e implicações para a teoria ge-
implicit in the structure of the work — though exactly how that structure limits
his activity is never made clear”.
ral da literatura são diferenciadas.
360 Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Capítulo 9 . Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? 361

Jane P. Tompkins67 constata que os críticos do Reader-Response Referências


Criticism discordam em muitas questões, no entanto, estão de
acordo sobre o sentido literário não pertencer completa e exclusi- BOOTH, Wayne. 1980. A retórica da ficção. Lisboa: Arcádia.
vamente ao texto literário. Embora, muitas vezes, houvesse um teor BORBA, Maria Antonieta Jordão de Oliveira. 2003. Teoria do Efeito Estético. Niterói
um tanto revolucionário na produção destes críticos, por exemplo, (RJ): Editora da Universidade Federal Fluminense.

quando atribuíam às respostas de leitores individuais o objeto de es- BRUNER, Jerome. 1997. Realidade mental, mundos possíveis. Trad. de Marcos A. G.
Domingues. Porto Alegre: ArtMed.
tudo literário ou na rejeição radical dos princípios da New Critical,
CAPATTO, Renata Macedo. 2005. Nas malhas do leitor: um estudo de teses
Jane Tompkins não considera os trabalhos dos críticos centrados na e dissertações sobre leitura/recepção de textos (1980-2003). Dissertação
resposta/efeito do leitor como capazes de revolucionarem a teoria; de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências e Letras. Assis:
segundo a autora, apenas houve uma transposição dos princípios UNESP. Disponível em: http://www.biblioteca.unesp.br/bibliotecadigital/
document/?did=2681. Acesso em: 07dez. 2006.
formalistas para uma nova legenda.
CARVALHO, Diógenes Buenos Aires. 2001. As crianças contam as histórias: os
A questão que divide o New Criticism e o Reader-Response
horizontes de leitores de diferentes classes sociais. Dissertação de Mestrado
Criticism — se o sentido literário é localizado no texto ou no lei- apresentada à Pós-Graduação de Letras da Pontifícia Universidade Católica do
tor — obscurece a similaridade das duas perspectivas: o sentido é o Rio Grande do Sul. Porto Alegre.
objeto último da crítica. Esta assertiva une os dois movimentos fer- COMPAGNON, Antoine. 2001. O demônio da teoria: literatura e senso comum.
renhamente contrários em oposição a uma história de pensamento Trad. de Cleonice P. B. Mourão e Consuelo Fontes Santiago. Belo Horizonte:
UFMG.
crítico no qual a especificação do sentido não é o interesse central. O
GIBSON, Walker.1980. Authors, Speakers, Readers and Mock Readers. In:
uso dos mesmos termos, texto e leitor, no decorrer dos séculos pela TOMPKINS, J. P. (Ed.). Reader-Response Criticism: from Formalism to Post-
crítica para se referir a práticas diferentes, obnubilou a diversidade Structuralism. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, p. 1-6.
de assunções que separam os estudos literários. GUMBRECHT, Hans Ulrich. 1983. A teoria do efeito estético de Wolfgang Iser.
Posturas teóricas diversas poderiam ser desfiladas, contudo, Trad. de Ingrid Stein. In: LIMA, L. C. (Org.). Teoria da literatura em suas
fontes. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, p. 417-441. V. 2.
para o escopo do atual capítulo, acreditamos ter configurado o
______. 1998. Corpo e Forma: ensaios para uma crítica não-hermenêutica. In:
quadro desejado para a demonstração pretendida: o sentido li-
ROCHA, J. C. de C. (Org.). Rio de Janeiro: EdUERJ.
terário não se encontra exclusivamente no texto ou no leitor, mas HOLUB, R. 1984. Reception theory: a critical introduction. London: Methuen.
na interseção criada entre os dois através do ato da leitura; sendo INGARDEN, Roman. 1965. A obra de arte literária. Trad. de Albin E. Beau, Maria
assim, a legenda da Estética da Recepção e do Efeito, integrada pelas da Conceição Puga e João F. Barrento. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste,
perspectivas de Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, apresenta uma Gulbenkian.

compreensão mais próxima tanto da consideração da historicidade ISER, Wolfgang. 1974. The Implied Reader: patterns of communication in prose
fiction from Bunyan to Beckett. Baltimore and London: Johns Hopkins
da literatura quanto de seu efeito no leitor.
University Press.
67 Em seu ensaio The reader in History: the changing shape of literary response
(TOMPKINS 1980)
362 Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Capítulo 9 . Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? 363

ISER, Wolfgang. 1993. The fictive and imaginary: charting literary anthropology. ZILBERMAN, Regina. 1989. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo:
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os contos de Gilvan Lemos. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco.
TOMPKINS, Jane P. (Ed). 1980. Reader-Response Criticism: from Formalism to
Post-Structuralism. Baltimore: The Johns Hopkins University Press.
Capítulo 10

Marxismo
Edu Teruki Otsuka
Universidade de São Paulo
“Teoria literária marxista” é um rótulo genérico que abarca grande
diversidade de tendências e angulações crítico-teóricas. Seu núcleo
comum é a própria teoria econômica, social, histórica, política e
cultural desenvolvida nos escritos de Karl Marx, os quais, por sua
vez, são objeto de disputas interpretativas, por vezes acirradas, que
se renovam periodicamente. Não se trata, portanto, de um terreno
pacífico ou sem conflitos internos, e muito menos de uma doutrina
acabada e definitiva, que possa ser simplesmente assimilada e apli-
cada à leitura das obras, mas, sim, de uma teoria que, consciente de
seu caráter histórico, implica a própria capacidade de reinventar-se
historicamente.
No campo dos estudos literários, o marxismo não se apresenta
como uma corrente teórica entre outras — pois não pretende con-
correr no mercado acadêmico com as outras vertentes disponíveis
—, mas como um modo mais abrangente de compreender a literatu-
ra: uma compreensão materialista e dialética, que se articula a uma
investigação da estrutura da sociedade.
Diferentemente das correntes que foram elaboradas no proces-
so mesmo de especialização dos estudos literários como disciplina
autônoma (notadamente as correntes formalistas), a crítica marxista
não se formou dentro de um terreno demarcado pelos cercamentos
da “literariedade” ou de alguma “essência” da literatura; busca antes
368 Edu Teruki Otsuka Capítulo 10 . Marxismo 369

desfazer as separações ideológicas que apartam a atividade literária planejado redigir um estudo sobre Balzac e até escrever um tratado
das outras práticas sociais (e não apenas as culturais). Não se trata, sobre estética, embora não tenha chegado a esboçar tais projetos.
contudo, de desconhecer as especificidades de cada campo, e, sim, De qualquer modo, com sua ampla formação cultural humanística,
de investigar as articulações precisas entre o estético e o histórico- Marx demonstra uma impressionante acumulação de conhecimen-
-social, visando a revelar o teor de conhecimento das obras literárias. tos não apenas sobre filosofia, história, economia, etc., mas também
Além disso, a crítica literária marxista não se confunde com sobre literatura, a qual deixou marcas na profusão de alusões e
a sociologia da literatura, que dirige o foco do estudo para dados citações literárias disseminadas em seus escritos, e, sobretudo, na
externos às obras, tais como as circunstâncias de produção e de cir- reconhecida força expressiva de sua prosa. Mais importante do que
culação das obras, a composição social de autores e de públicos, os os dados biográficos da formação cultural de Marx, porém, são as
efeitos na recepção etc.; assim como não se limita a situar as obras considerações relacionadas à literatura e à arte que ele e Engels dei-
em seu contexto histórico para aferir sua representação temática. A xaram, pois a partir delas se buscou definir, em retrospecto, pontos
crítica marxista não se volta para fora da obra, mas procura, antes, de apoio para a construção de uma teoria literária marxista2.
aprofundar-se dentro dela; não se trata tanto de buscar no exterior Um trecho muito comentado pela tradição posterior, e por
da obra os fatores sociais que poderiam explicá-la, mas principal- isso mesmo incontornável, é o do “Prefácio” (1859), Para a crítica
mente de examinar sua lógica interna, por meio da análise formal, da economia política, em que se esquematiza a relação entre base
reconhecendo na literatura seu valor cognitivo . 1
(infraestrutura) e superestrutura, em torno da qual outros teóricos
discutiram o problema correlato da relação entre a realidade social
1. Os inícios e a literatura:

1.1
na produção social de sua vida, os homens contraem relações de-
terminadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações
As figuras centrais da tradição inicial, Karl Marx (1818-1883) e
de produção estas que correspondem a uma etapa determinada
Friedrich Engels (1820-1895), não chegaram a elaborar uma teoria
de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A tota-
da literatura ou da arte que se possa considerar acabada ou sistema-
lidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica
tizada. No entanto, os escritos de Marx registram com abundância
da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superes-
a preocupação de compreender adequadamente o fenômeno artís-
trutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais
tico, sem reduzi-lo a mero documento. Consta mesmo que ele teria

1 O presente capítulo deve muito a alguns textos que, pelo caráter introdutório, 2 Os textos de Marx e de Engels sobre arte e literatura (e questões pertinentes à
se indicam como sugestões de leitura: (EAGLETON 1976b; 2011); (CALLINICOS discussão do tema) foram compilados em diversas antologias, entre as quais:
2001: 89-98); (MULHERN 1998:29-54); (FORGÁCS 1986:166-203). Para um (MARX; ENGELS 1974; 2010). Um estudioso de Literatura Comparada fez o
contato inicial com textos de alguns autores centrais, recomendam-se as levantamento minucioso das referências literárias nos escritos de Marx, ver
seguintes antologias: (EAGLETON; MILNE 1996); (MULHERN 1992). PRAWER (1978).
370 Edu Teruki Otsuka Capítulo 10 . Marxismo 371

determinadas de consciência. O modo de produção da vida humana como sendo determinada por ideias. Contra tal concepção,
material condiciona o processo em geral de vida social, político e Marx aponta a centralidade do trabalho humano, mostrando que a
espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu própria produção cultural não pode ser compreendida como esfera
ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua cons- separada da totalidade das atividades realizadas pelos homens4. Por
ciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças isso, talvez a formulação citada acima possa parecer unilateral, como
produtivas materiais da sociedade entram em contradição com se apenas a prática econômica influísse sobre a superestrutura, e esta
as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que apenas acompanhasse o desenvolvimento material. Mas seria mais
a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro preciso dizer que, para Marx, a produção material e a produção da
das quais aquelas até então se tinham movido. De formas de consciência mostram ser reciprocamente determinantes: “A produ-
desenvolvimento das forças produtivas estas relações se transfor- ção [...] produz não somente um objeto para o sujeito, mas também
mam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução um sujeito para o objeto”5.
social. Com a transformação da base econômica, toda a enorme Importa notar aqui que Marx enfatiza as inter-relações das
superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez. Na formas ideológicas e das atividades materiais, de tal modo que
consideração de tais transformações é necessário distinguir sem- a consciência não preexiste em relação à prática material, nem é
pre entre a transformação material das condições econômicas de mero epifenômeno ou subproduto dela: “A produção de ideias, de
produção, que pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente
natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material
filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os ho- dos homens, com a linguagem da vida real”6. Desse modo, Marx
mens tomam consciência deste conflito e o conduzem até o fim.3 procura realizar um movimento de “ascender do abstrato ao concre-
to”7, desfazendo a aparência de autonomia das formas ideológicas,
Marx situa a arte no domínio da superestrutura, junto a outras as quais não são independentes da prática material e das relações
formas ideológicas (políticas, religiosas, filosóficas etc.), através entre os homens na sociedade.
das quais os homens tomam consciência das próprias condições de É verdade que algumas dessas formulações, quando lidas
existência e procuram resolver os conflitos em que estão implicados. isoladamente, acabaram dando margem a certas esquematizações
Assim, o funcionamento da ideologia é indissociável das relações simplificadoras que a tradição posterior (de fundo positivista)
específicas entre as classes na sociedade. vulgarizou8. Mas as várias considerações de Marx e Engels sobre
Em algumas passagens de texto anterior, A ideologia alemã
4 Ver (MARX; ENGELS 2007:93-95)
(1845-1846), percebe-se com clareza que a insistência de Marx na 5 (MARX 2011:47). Vale lembrar, a propósito, que o jovem Marx já esboçava uma
historicização dos sentidos humanos ao notar que “a formação dos cinco sentidos
determinação material das formas ideológicas se deve ao caráter po- é um trabalho de toda a história do mundo até aqui”. Ver (MARX 2004:110)
lêmico da discussão, em que ele se opõe à compreensão da história 6 (MARX; ENGELS 2007:93)
7 (MARX 2011:54)
3 (MARX 1978:129-130) 8 Em 1890, Engels alertava para o perigo da simplificação mecanicista, que ele
372 Edu Teruki Otsuka Capítulo 10 . Marxismo 373

o tema permitem entender a relação entre arte e estrutura econô- Para Marx, o trabalho crítico consistiria não só em reconhecer
mica como sendo mais complexa do que a simples relação direta e essas contradições, mas, sobretudo, em especificá-las para assim
mecânica em que a cultura estaria a reboque do desenvolvimento explicá-las. Na sequência do trecho citado, ele se coloca também o
produtivo. Embora as transformações na superestrutura estejam de problema do valor estético: “a dificuldade não está em compreender
algum modo atreladas ao ritmo da produção material, para Marx que a arte e o epos gregos estão ligados a certas formas de desen-
as formas ideológicas não são mero reflexo passivo da estrutura volvimento social. A dificuldade é que ainda nos proporcionam
econômica9. prazer artístico e, em certo sentido, valem como norma e modelo
Nesse sentido, cumpre lembrar uma anotação de maturidade inalcançável”11.
(1858) de Marx em que ele assinala “a relação desigual do desenvol- Marx não deixou uma resposta satisfatória para o problema
vimento da produção material com, por exemplo, o desenvolvimen- proposto, lembrando apenas que as condições sociais que produzi-
to artístico”: ram a arte grega antiga “não podem retornar jamais”. No entanto, as
observações de Marx e Engels que tratam diretamente de literatura,
Na arte, é sabido que determinadas épocas de florescimento não mais do que fornecer respostas definitivas, apresentam um conjunto
guardam nenhuma relação com o desenvolvimento geral da so- de questões que a tradição posterior continuou investigando. Seja
ciedade, nem, portanto, com o da base material, que é, por assim como for, uma contribuição central de Marx para a teoria literária
dizer, a ossatura de sua organização. P. ex., os gregos comparados (e não só literária) é a exigência de compreender as atividades cul-
com os modernos, ou mesmo Shakespeare. Para certas formas turais no seu entrelaçamento com outras práticas materiais, como
de arte, a epopeia, por exemplo, é até mesmo reconhecido que parte, portanto, da totalidade do processo social.
não podem ser produzidas em sua forma clássica, que fez época,
tão logo entra em cena a produção artística enquanto tal; que, 1.2
portanto, no domínio da própria arte, certas formas significativas
da arte só são possíveis em um estágio pouco desenvolvido do Na geração seguinte à de Marx e Engels, ou, para usar as balizas
desenvolvimento artístico. Se esse é o caso na relação dos dife- convencionais, desde os anos 1870 até a Primeira Guerra Mundial,
rentes gêneros artísticos no domínio da arte, não surpreende que prevaleceu entre os marxistas a vontade de sistematizar as ideias dos
seja também o caso na relação do domínio da arte como um todo fundadores, estabelecendo padrões científicos. A ciência, no caso,
com o desenvolvimento geral da sociedade.10 era entendida na acepção predominante no final do século XIX, ou
seja, positivista, o que redundou, para o tema aqui discutido, em
já identificava entre os novos “marxistas”. Ver Carta a Joseph Bloch, 21-22 de uma visão determinista rígida da relação entre base e superestrutura.
setembro de 1890 (In: MARX: ENGELS 2010:103-4; 106-7). Para uma discussão
do tema, ver WILLIAMS ([1973] 2011; [1977] 1979:79-86; [1983] 1989:195-225). No campo da reflexão sobre arte e literatura, o crítico russo
9 A propósito, note-se que, ao tratar de literatura, Marx jamais usou a metáfora do Georgi Plekhanov (1856-1918) é o principal representante dessa
“reflexo” (Cf. PRAWER 1978:409).
10 (MARX 2011:62-63) 11 (MARX 2011:63)
374 Edu Teruki Otsuka Capítulo 10 . Marxismo 375

tendência. Segundo ele, cabia ao estudioso encontrar o “equivalente estudo mais conhecido, buscou, com base no marxismo, fornecer
social” dos fatos literários, isto é, uma tarefa da crítica seria a iden- uma explicação antropológica das origens e da função da poesia15.
tificação, a partir das obras, das afiliações ideológicas e da posição Longe de ser apenas um literato com inclinações radicais, Caudwell,
de classe dos escritores. Embora nas declarações teóricas Plekhanov comunista ativo, juntou-se às Brigadas Internacionais e lutou na
sugerisse que a influência direta da economia sobre a arte só rara- Guerra Civil Espanhola, morrendo na frente de batalha antes de
mente se observa, na prática, a relação entre os fatores sociais condi- completar trinta anos de idade16.
cionantes e as obras artísticas frequentemente acabou recaindo em
análises simplificadoras12. 2. Marxismo ocidental e desdobramentos
No começo do século XX, homens políticos como Lênin (1870-
1924)13 e Trotsky (1879-1940)14 também se dedicaram ao estudo da 2.1
literatura e da arte, muitas vezes apresentando observações sobre
base e superestrutura e sobre forma e conteúdo que se mostram É, sobretudo, a partir do trabalho do filósofo húngaro György Lukács
mais complexas do que as esquematizações mecânicas do marxismo (1885-1971) que se define com mais clareza a feição geral de uma
vulgar. Mas, mais do que esmiuçar suas concepções crítico-teóricas, teoria literária marxista propriamente dita. Nos anos 1930, Lukács
importa notar que, para Lênin e Trotsky, com suas perspectivas trabalhou na Rússia ao lado de Mikhail Lifshitz (1905-1983)17, e,
diversas, o alcance prático dos artigos sobre literatura era uma pre- contrariando a opinião predominante na época, ambos estavam
ocupação central, pois as reflexões sobre a produção literária eram convencidos de que o marxismo continha, em germe, uma estética
entendidas também como intervenções políticas nas controvérsias coerente, ainda que não sistematizada. Não se tratava, portanto, de
ideológicas. Assim, e muito por razões históricas, que deixaram de complementar o marxismo com uma estética externa a ele (como
existir para as gerações seguintes, falar sobre literatura não era, para tentaram fazer os predecessores que foram buscar em Kant aquilo
eles, uma atividade separada da prática revolucionária. que julgavam faltar à teoria marxista18); tratava-se antes de desen-
O percurso e o destino do inglês Christopher Caudwell (1907- tranhar e desenvolver a reflexão estética que já estava latente nos
1937) servem de emblema representativo dos intelectuais políticos próprios escritos dos fundadores. Coube a Lukács definir as grandes
daquela quadra. Com seus conhecimentos enciclopédicos acumu- linhas da investigação marxista da literatura, a partir da qual, ou
lados em um curto intervalo de tempo, o “autodidata” Caudwell contra a qual, muito da reflexão posterior foi elaborada.
produziu toda sua obra em menos de quatro anos, abarcando assun- 15 (CAUDWELL 1937). Outro estudo deste autor sobre literatura é CAUDWELL
(1970)
tos que iam da física à literatura. Em Ilusão e realidade (1937), seu 16 Este parágrafo sobre Caudwell reproduz observações de MULHERN (1988:35).
Ver também MULHERN (1974: 37-58); (THOMPSON 1994:77-140).
12 (Ver PLEKHANOV [1912], [1899] 1969). Sobre o “equivalente social”, ver 17 O estudo pioneiro e mais conhecido de Lifshitz, cuja primeira edição russa é de
JAMESON (1973:ix-x). Para um comentário geral, ver KONDER (1967:39-45). 1933, é LIFSHITZ 1973. Sobre sua trajetória, ver MITCHELL (2006:28-44).
13 (LENIN 1968; 1970) 18 É o caso de Plekhanov, já mencionado, e do alemão Franz Mehring. Sobre este,
14 (TROTSKY 1969) ver LUKÁCS (1966: 383-486).
376 Edu Teruki Otsuka Capítulo 10 . Marxismo 377

Autor, na juventude, do influente estudo não marxista A teoria Objeto central para a teoria de Lukács é o romance, a epopeia
do romance (1916)19, que não cabe comentar aqui, Lukács apro- burguesa moderna (na caracterização de Hegel), “de tal modo
ximou-se do marxismo e escreveu História e consciência de classe ajustada ao novo curso do mundo que o ‘realismo’ vem a ser uma
(1923) , marco iniciador do assim chamado marxismo ocidental.
20
determinação inerente à sua forma”23. O movimento que o romance
Juntamente com o conceito de reificação, que desenvolve a noção realista realiza em sua estrutura equivale a uma desalienação, pois
marxiana do “fetichismo da mercadoria”, apresenta-se no livro o se trata de atravessar a aparência reificada da vida social e mostrar
tema do ponto de vista da totalidade. Embora a estética não estivesse como esta é resultado da estrutura da sociedade, em cujo fundo
no centro de seus argumentos, essa obra abria um quadro teórico atuam as forças motrizes que carregam o impulso transformador.
que possibilitava enfrentar a relação entre forma literária e processo Assim, no romance, narrar equivale a captar as articulações e in-
social em termos novos, pois deslocava o modelo da relação entre ter-relações entre a experiência imediata (da vida cotidiana) e o
base e superestrutura, afirmando antes a primazia do conceito de dinamismo histórico profundo; ou seja, corresponde a apreender,
totalidade social . 21
no desenvolvimento da ação, as conexões que remetem ao processo
A partir dos anos 1930, Lukács elaborou uma teoria da litera- social em sua integralidade24.
tura com base em uma concepção própria de realismo, e, embora Dizendo de outro modo, na concepção lukacsiana, o romance
tivesse sido levado a renegar as teses de História e consciência de realista toma como ponto de partida as noções comuns, dadas na
classe, o tema da totalidade persiste, subjacente, em sua teorização vivência cotidiana imediata, e o desenvolvimento do enredo desdo-
da literatura realista, em que a narração ocupa lugar central . 22
bra as situações concretas nas quais as noções iniciais são postas à
Para Lukács, a literatura se torna significativa (realista) na me- prova. A força do romance está na consistência com que apresenta o
dida em que alcança apreender as forças históricas que movem a curso dessa evolução, ao longo do qual os significados se deslocam
sociedade, não se limitando à figuração das aparências superficiais; ou se restabelecem, revelando a verdade ou a inverdade das noções
estas não são descartadas, mas mostradas na sua conexão com a de que partira. Assim, tal dinâmica do romance realista é análoga ao
estrutura profunda (ou a essência social) de que são manifestações. movimento dialético da crítica marxista da sociedade burguesa: “o
jogo concreto das categorias [...] passa juízo sobre si mesmo”25.
19 (LUKÁCS 2000)
20 (LUKÁCS 2003) Ainda no período de juventude, Lukács cunhou uma fórmula
21 “Não é o predomínio de motivos econômicos na explicação da história que
distingue de maneira decisiva o marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de
que, lida com referência à sua obra posterior, não deixa de resumir
vista da totalidade. A categoria da totalidade, o domínio universal e determinante o princípio básico que orienta sua crítica madura: em literatura, diz
do todo sobre as partes constituem a essência do método que Marx recebeu
de Hegel e transformou de maneira original no fundamento de uma ciência ele, o verdadeiramente social é a forma26. A despeito dos aspectos
inteiramente nova.” (LUKÁCS 2003:105). Como lembra um comentador, mais do
que apenas a preocupação com as mediações, o conceito de totalidade implica 23 (ARANTES 1994:224)
decisivamente a transição do ponto de vista do indivíduo para a perspectiva das 24 (Ver LUKÁCS 1968; 2010; 2009; 2011)
classes sociais (MUSSE 2004:10). 25 (Ver SCHWARZ 1965:115, 119) (Ver também ARANTES 1994:215; 1996:35)
22 (Ver JAMESON 1985:127-160; 2009:201-222) 26 (LUKÁCS 1981:174 — trata-se de excerto da Introdução ao livro História do
378 Edu Teruki Otsuka Capítulo 10 . Marxismo 379

problemáticos de sua teoria do realismo, que gerou incompreensões, 2.2


discussões e polêmicas, o fato é que Lukács é o primeiro crítico mar-
xista a efetivamente fazer análise formal de maneira consequente, O problema da reversibilidade da análise de forma literária e de
como se vê, por exemplo, no notável ensaio “Narrar ou descrever?” processo social permanece no centro da reflexão estética posterior
(1936)27. Ali Lukács investiga o predomínio da utilização de pro- a Lukács. No âmbito da Teoria Crítica, destaca-se o filósofo alemão
cedimentos formais naturalistas (a que ele chama de “descrição”) Theodor W. Adorno (1903-1969)30.
que substituem o uso de recursos realistas (“narração”), sendo essa Na obra de Adorno, pode-se discernir um tipo de crítica que
transformação no plano das formas literárias correspondente à gui- não estabelece, de antemão, princípios abstratos, externos aos
nada ideológica da burguesia, ligada aos eventos políticos de 1848 objetos estudados, com os quais buscasse avaliá-los; ao contrário,
na França. trata-se de levar a cabo uma crítica imanente, que permanece den-
Lukács argumenta persuasivamente que o naturalismo pre- tro do objeto analisado e, a partir dele, elabora os conceitos com os
nuncia procedimentos “formalistas” que seriam depois levados ao quais procura compreendê-lo, só extrapolando os limites do objeto
extremo pelo modernismo, assim como sugere a conexão entre o na medida em que o respeita, pois visa a seu conteúdo de verdade,
predomínio da descrição no romance e a intensificação histórica que o transcende31.
dos efeitos da reificação. No entanto, embora tenha mostrado a ar- Assim como, na filosofia, as categorias não só possibilitam
ticulação entre a mudança estético-formal e o novo conteúdo histó- conhecer o real, mas, também, carregam traços da experiência
rico-social, Lukács considera a literatura pós-realista como simples histórica que as tornou possíveis (havendo, portanto, um nexo
reprodução do mundo reificado, assimilando essa produção literá- entre a trama dos conceitos e o processo social), assim, também,
ria à decadência ideológica da burguesia depois de 184828. Estudos na literatura, as configurações trazem as marcas da sociedade da
posteriores, retendo a fecunda percepção lukacsiana da guinada qual se separaram ao individualizarem-se. As obras de arte têm um
pós-realista, procuraram, no entanto, reconsiderar o sentido e o teor cognitivo, ainda que o conhecimento produzido pela arte não
alcance estético das inovações formais impulsionadas pela nova possa ser diretamente traduzido numa série de proposições. Para
configuração da luta de classes na Europa ocidental, descobrindo Adorno, as obras são como relógios de sol histórico-filosóficos que
nelas não tanto uma capitulação ideológica, mas a invenção de pro-
cedimentos literários capazes de fazer frente às novas condições29. 30 Para uma introdução às ideias de Adorno, em que estas observações se apoiam,
ver JARVIS (1998).
desenvolvimento do drama moderno [1909]). 31 “Se o conteúdo de verdade é verdadeiro no sentido enfático, se é mais do
27 (LUKÁCS 1968:47-99) que meramente o que é intencionado, então ele deixa para trás a imanência
28 “A tirania da prosa do capitalismo sobre a íntima poesia da experiência na medida em que se constitui. A verdade de um poema não existe sem a
humana, a crueldade da vida social, o rebaixamento do nível de humanidade estrutura do poema, a totalidade de seus momentos; mas ao mesmo tempo é
são fatos objetivos que acompanham o desenvolvimento do capitalismo e desse algo que transcende a estrutura, enquanto estrutura da aparência estética: não
desenvolvimento decorre necessariamente o método descritivo.” (LUKÁCS a partir de fora, através de um conteúdo filosófico enunciado, mas em virtude
1968:66). da configuração dos momentos que, tomados no conjunto, significam mais do
29 (Ver SCHWARZ 1990:167-173). Cumpre mencionar aqui os estudos de OEHLER que o que a estrutura intenciona.” (ADORNO 1992:112-113, v. 2). Também foi
(1997; 1999). consultada a tradução espanhola (ADORNO 2003:433)
380 Edu Teruki Otsuka Capítulo 10 . Marxismo 381

marcam a hora histórica32, e isso porque o conteúdo social está apresentar o curso do mundo como algo inteligível e narrável, como
inscrito na organização formal das obras, embora não seja evidente se ainda fosse, essencialmente, um processo de individuação37.
nem imediatamente apreensível. Revelá-lo é a tarefa do crítico, que Informada pela experiência da arte moderna (produzida sob
não buscará o social fora da obra de arte, mas o especificará tanto o influxo das vanguardas históricas), a teoria de Adorno deixa para
melhor quanto mais fundo mergulhar na obra, deixando-se guiar trás as concepções tradicionais de obra orgânica38, entrevendo, no
por sua lógica própria33. fragmentário e no dissonante, modos de formalização estética que
Não se trata, portanto, de estudar os condicionamentos ou os dão a ver as contradições históricas: “Para a crítica imanente, uma
efeitos da obra na sociedade, nem, muito menos, de usar as obras formação bem-sucedida não é [...] aquela que reconcilia as contra-
literárias para ilustrar teses sociológicas ou filosóficas: “O pen- dições objetivas no engodo da harmonia, mas, sim, a que exprime
samento é profundo por se aprofundar em seu objeto, e não pela negativamente a ideia de harmonia, ao imprimir na sua estrutura
profundidade com que é capaz de reduzi-lo a outra coisa”34. A crítica mais íntima, de maneira pura e firme, as contradições”39.
procura, antes, mostrar de que maneira “o todo de uma sociedade, A questão da atualidade balizada pelo desenvolvimento das
tomada como unidade em si mesma contraditória, aparece na obra forças produtivas é central na teoria de Adorno e havia sido ex-
de arte”35. Assim é que, mesmo a configuração lírica, que parece ser plorada, no campo da estética, por Walter Benjamin (1892-1940).
o que há de mais afastado do social ou mesmo oposto a ele, “é sem- Entusiasmado com o progresso das técnicas de reprodução das
pre, também, a expressão subjetiva de um antagonismo social” . 36
obras de arte e tendo em vista a arte vanguardista russa pós-revo-
Da perspectiva adorniana, o problema do realismo no roman- lucionária, Benjamin procura identificar, no âmbito da arte, um
ce ganha outra feição. Observando o desenvolvimento histórico das dinamismo interno análogo ao do avanço das forças produtivas que,
formas, Adorno argumenta que, para continuar fiel a seu impulso segundo o esquema de Marx, entra em contradição com as relações
realista original, o romance precisou renunciar ao antigo realismo de produção e invalida as categorias que a acompanham. A reprodu-
que, limitando-se a reproduzir o movimento aparente da sociedade, tibilidade técnica solapa o estatuto da obra “autêntica” ou “aurática”,
acabava por alinhar-se com a ideologia. Na sociedade totalmente que mantém vestígios da função originária da arte ligada ao ritual;
administrada, em que a própria alienação se transformou em meio com isso, as categorias de autenticidade e de unicidade, em que se
estético, o momento antirrealista do romance moderno, que toma baseava a autoridade das obras, tornam-se obsoletas. Uma vez que
partido contra a mentira da representação e contra o próprio narra- o objeto único ocupa, no campo da arte, um lugar correspondente
dor, surge como desdobramento e resposta à impossibilidade de se
37 Ver “Posição do narrador no romance contemporâneo” (In: ADORNO 2003)
38 A partir do estudo das vanguardas históricas, o crítico Peter Bürger discute a
32 ADORNO (2003:78-79) teoria de Adorno e desenvolve a concepção de obra inorgânica, a qual exige a
33 ADORNO (2003:66) redefinição dos métodos críticos tradicionais: “Não é mais a harmonia das partes
34 ADORNO (2003:27) individuais que constitui o todo da obra, mas, sim, a relação contraditória entre
35 ADORNO (2003:67) partes heterogêneas.” (BÜRGER 2008:162)
36 ADORNO (2003:76) 39 (ADORNO 1998:23)
382 Edu Teruki Otsuka Capítulo 10 . Marxismo 383

ao da propriedade privada no domínio prático, a transformação Seria coerente notar ainda que a própria sofisticação teórica e
identificada no âmbito estético anuncia o destino da própria classe filosófica de Adorno (e de outros marxistas ocidentais) não deixa
proprietária e a alteração no relacionamento da arte com o real. Por de ser também resultado de impasses históricos determinados. Ao
isso, nas palavras de Benjamin, quando o critério da autenticidade mesmo tempo em que o marxismo ocidental, de que a Teoria Crítica
perde força em face da produção artística, a arte deixa de fundar-se é uma ponta avançada, aprofundou a análise da sociedade moderna,
no ritual para fundar-se em outra práxis: a política40. a ênfase sobre as questões culturais e sobre o problema da reificação
Junto a isso, e influenciado pelo teatrólogo alemão Bertolt Brecht correspondia também ao momento histórico em que, derrotadas as
(1898-1956) , Benjamin ensaiou ideias sobre a atuação política dos
41
irrupções revolucionárias em vários países da Europa, o desfecho
intelectuais, concebendo o “autor como produtor”. Sugerindo uma prático da ação política, em princípio inseparável da atividade teóri-
alternativa aos termos tradicionais do debate sobre a “tendência” ca da crítica, parecia bloqueado. Os desenvolvimentos teóricos mais
política nas artes, ele propõe que, em vez de se perguntar sobre o criativos do marxismo no século XX sem dúvida ocorreram fora do
modo como a obra literária se situa nas relações entre as classes, bloco socialista (em que se impôs a doutrina do “realismo socialista”
caberia indagar como ela se situa dentro das relações de produção. nas artes e na crítica44). Em parte, isso se deveu à falta de perspecti-
Insistindo na necessidade de o artista refletir sobre sua posição no vas da prática política ligada à situação histórica após a derrota da
processo produtivo, Benjamin lembra que, para Brecht, trata-se de revolução45. Nos seus piores efeitos, essas circunstâncias levaram à
transformar (“refuncionalizar”) os meios de produção artística em academização do marxismo, que corre o risco de converter-se em
sentido progressista, tendo em vista a sua liberação. O intelectual uma interminável reflexão teórica sobre si mesmo.
que se solidariza com o proletariado não deve apenas abastecer
o aparelho de produção existente, ainda que com obras de feição 2.3
revolucionária; ele deve, antes, buscar modificá-lo, na medida do
possível, num sentido socialista42. Ao argumentar que a realização Nos anos 1960, o influxo avassalador do Estruturalismo nas
do progresso técnico acaba por conduzir à transformação da função Humanidades não deixou de imprimir sua marca também no
das formas artísticas e, consequentemente, dos meios de produção
44 Promovido pelo secretário do Comitê Central Andrei Zhdanov (1896-1948),
intelectuais, Benjamin procurou vincular a arte modernista à causa sobretudo nos anos 1940, o “realismo socialista” foi a doutrina estética oficial do
período stalinista. Não é preciso enfatizar aqui o quanto tal doutrina foi perniciosa
da revolução43. para a produção artística oficialmente sancionada dos Estados comunistas.
Para um apanhado histórico da discussão teórica desde seus antecedentes, ver
40 (Ver BENJAMIN [1935/36] 1985:171-2). Reproduzo comentário de SCHWARZ STRADA (1989:109-150, 151-219). Para um estudo dos romances soviéticos do
(1978:44; 2012:44-45) realismo socialista, que recaíam na repetição dos modelos, ver CLARK (2000). E,
41 Este capítulo fica devendo um comentário adequado sobre Brecht (Ver BRECHT para dimensionar adequadamente o problema, convém lembrar que o romance
1978; 1964; 1973). Ver também BENJAMIN (1983); PASTA Jr. (2010); SCHWARZ proletário mundial nem sempre esteve submetido aos preceitos do realismo
(1999:113-148). socialista; ver o apanhado de DENNING (2005:61-82).
42 (BENJAMIN [1934] 1986:127) 45 (Ver ANDERSON 2004). Aproveito, neste passo, uma formulação de EAGLETON
43 (Cf. JAMESON 1985:69) (In: EAGLETON; MILNE 1996:11-12)
384 Edu Teruki Otsuka Capítulo 10 . Marxismo 385

marxismo46. No tocante à teoria literária ligada ao marxismo estru- apresenta lacunas, ausências – uma incompletude determinada,
turalista, cabe mencionar Pierre Macherey (1938-), ligado ao grupo pois o que lhe falta é o que a constitui como objeto48. A relação da
de Louis Althusser (1918-1989), que empreendeu, nos anos 1960, obra literária com a realidade objetiva não é, portanto, uma relação
uma releitura da obra de Marx. de representação. Nesse sentido, a obra não expressa a ideologia;
Opondo-se francamente às teorias tradicionais da literatura, ela dá a ver uma ausência determinada, sem a qual não existiria, e
geralmente voltadas para o consumo dos textos, Macherey desloca nessa relação com o ausente se pode observar o funcionamento da
o acento para a investigação das condições de produção das obras. ideologia. O importante na obra é o que não está dito: não o que ela
Ele rejeita as concepções “realistas” (representacionais) da literatu- se recusa a dizer, mas aquilo que ela não pode dizer:
ra, bem como o procedimento imanente da crítica, buscando antes
investigar a forma literária nas suas lacunas, que são inevitáveis e o texto literário não é tanto a expressão de uma ideologia [...] mas
significativas47. a sua encenação, a sua exibição, operação na qual a ideologia se
Para Macherey, a crítica não pode ser apenas a verbalização volta de certa maneira contra si mesma, visto que não pode ser
do conhecimento mudo que o objeto supostamente abriga em seu assim exibida sem fazer aparecer os seus limites, no ponto preci-
cerne; a crítica deve ser antes uma forma de conhecimento cientí- so em que se mostra incapaz de assimilar realmente a ideologia
fico que, distanciando-se do objeto, procura conhecê-lo como ele adversa.49
mesmo não pode conhecer-se. O escritor não fabrica os materiais
que elabora, e a obra não é criada por uma intenção (subjetiva ou Notadamente, na teoria de Macherey a obra literária não é con-
objetiva) que lhe dá unidade; ela é produzida em condições determi- cebida como uma forma que carrega um conhecimento acerca da
nadas, por meio da elaboração de uma diversidade de materiais ide- realidade objetiva; ela é entendida, sobretudo, como um momento
ológicos e contraditórios. A obra é a tentativa de solução imaginária do processo de reprodução da ideologia dominante. O conhecimen-
das contradições inconciliáveis, e se apresenta como uma unidade to só pode ser alcançado pelo crítico, que examina as condições de
aparente e ilusória; o que a crítica deve buscar não são as marcas produção da obra e a interroga sobre aquilo que ela não diz.
de sua coesão, e, sim, as suas rupturas internas. Assim, a obra não é
48 “A obra existe sobretudo pelas suas ausências determinadas, por aquilo que não
tanto um todo completo que se basta a si mesmo, pois forçosamente diz, pela sua relação com tudo o que não seja ela própria. Não que, a bem dizer,
a obra possa dissimular seja o que for: a obra não escondeu esse sentido no mais
46 Uma tentativa de articular marxismo e estruturalismo, que só mencionaremos profundo de si própria, não o mascarou, nem lhe deu uma falsa aparência. Não
de passagem, foi feita por Lucien Goldmann (1913-1970), filósofo romeno se trata, por conseguinte, de o perseguir com uma interpretação. Não está na
radicado na França. Goldmann desenvolveu um método crítico a que chamou obra, está fora dela, nas suas margens, nesse limite em que a obra deixa de ser o
de “estruturalismo genético”, que se volta para a investigação das estruturas que pretende ser, por aí entrar em relação com as condições da sua viabilidade.”
mentais em sua relação com as condições históricas que as produziram. Para ele, (MACHEREY 1989:149).
caberia discernir as “homologias estruturais” entre as obras literárias e as “visões 49 (BALIBAR; MACHEREY [1974] 1976:38). Ver também ALTHUSSER ([1966]
de mundo” das classes sociais. (Ver GOLDMANN 1967). Para um comentário 1971:221-227). Na formulação de Althusser, “a ideologia representa a relação
abrangente, ver LÖWY; NAÏR 2009. imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência”. (ALTHUSSER
47 (Ver MACHEREY [1966] 1989). Para um comentário, ver EAGLETON (1986:9-21) 1992:85)
386 Edu Teruki Otsuka Capítulo 10 . Marxismo 387

2.4 afinal de contas, um dos índices mais precisos da sua realização


no momento histórico; na verdade, a forma é apenas a elaboração
No início dos anos 1970, nos Estados Unidos, Fredric Jameson do conteúdo no domínio da superestrutura.52
(1934-) publicou um dos primeiros trabalhos a oferecer uma vi-
são geral do repertório teórico-literário do marxismo ocidental, o O juízo crítico sobre as obras individuais é sempre, em última
livro Marxismo e forma (1971)50. Retomando as obras de Theodor análise, social e histórico, pois avalia, no plano do resultado estético,
Adorno, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Ernst Bloch, Georg as realizações e os defeitos formais, que são, ao mesmo tempo, índi-
Lukács e Jean-Paul Sartre, Jameson procura aproveitar a lição desses ces da própria configuração social e histórica correspondente, a qual
autores para elaborar uma teoria própria. cabe à crítica explorar.53
Tomando o problema do desenvolvimento histórico das for- Retomando elementos centrais da tradição anterior, Jameson
mas literárias, Jameson recupera o tema da dialética de forma e indica que o método imanente é indispensável à crítica marxista54.
conteúdo, assinalando que o novo está para o velho como o con- E mostra que, como consequência disso, o pensamento dialético
teúdo latente procurando emergir à superfície para deslocar uma envolve autoconsciência, é pensamento elevado à segunda potência,
forma doravante obsoleta. A contradição entre o novo conteúdo e a pois consiste em refletir sobre um dado objeto e, também, simultane-
forma velha, no plano da arte, corresponde, no plano da realidade, amente, observar os próprios processos de pensamento. Tudo se pas-
ao modelo marxiano da transformação revolucionária, em que o de- sa como se o próprio material se elevasse à consciência, não só como
senvolvimento das forças produtivas materiais entra em contradição objeto analisado, mas também como um conjunto de operações
com as relações de produção existentes e as modifica51. mentais propostas pela natureza intrínseca desse objeto particular55.
A forma, portanto, não é vista como aquilo com o que se come- Em linha com outros autores da tradição dialética, Jameson
ça, um molde inicial previamente dado, mas, sim, como aquilo com lembra que o conteúdo (social) das obras não é informe, mas pré-
que se termina, isto é, a articulação última da lógica mais profunda -formado e significativo desde o início:
do próprio conteúdo (mas a obra de arte perfeita, em que a forma 52 (JAMESON 1985:252)
seria inteiramente adequada ao conteúdo, não pode ter surgido ain- 53 Nesta passagem, Jameson cita um trecho significativo da Estética de Hegel: “a
deficiência da obra de arte não deve ser sempre atribuída apenas à falta de
da, simplesmente porque suporia a reconciliação dos antagonismos habilidade subjetiva, [...] a deficiência da Forma também provém da deficiência
concretamente realizada na vida social). do conteúdo”. (HEGEL 1999:89-90). A observação hegeliana está na base de
algumas considerações de Adorno, que diz, por ex., que “todo fracasso [artístico]
[...] que não resulte da contingência do talento e que se torne transparente
em sua necessidade, aponta para o social”. (ADORNO 1983:267). A questão é
A adequação do conteúdo à forma nela realizada, ou não reali-
retomada por SCHWARZ (1990:161).
zada, ou realizada de acordo com determinadas proporções, é, 54 “Para uma crítica genuinamente dialética [...] não pode haver nenhuma categoria
de análise preestabelecida: na medida em que cada obra é o resultado final de
uma espécie de lógica interna ou do desenvolvimento no seu próprio conteúdo,
50 (JAMESON 1985) ela produz suas próprias categorias e dita os termos específicos de sua própria
51 (JAMESON 1985:250-251). Note-se de passagem que essa dinâmica da relação interpretação.” (JAMESON 1985:255)
entre conteúdo e forma sustenta o eixo do estudo de SZONDI (2001). 55 (JAMESON 1985:260)
388 Edu Teruki Otsuka Capítulo 10 . Marxismo 389

a característica essencial da matéria-prima literária ou do conte- histórico. Assim, a arte pode ser entendida como resolução imagi-
údo latente é, precisamente, que nunca é inicialmente sem forma, nária de contradições sociais reais57, e é essa questão que Jameson
nunca [...] inicialmente contingente, mas sim significativo já de desenvolve e elabora em seu livro O inconsciente político (1981)58. Na
saída, não sendo nem mais nem menos do que os próprios com- medida em que se trata de reconstituir o conteúdo social e histórico
ponentes de nossa vida social concreta: palavras, pensamentos, original, o horizonte último da crítica é sempre a própria História:
objetos, desejos, pessoas, lugares, atividades. A obra de arte não “a História é o que fere, o que recusa o desejo e impõe limites inexo-
confere significado a esses elementos, mas antes transforma seus ráveis ao indivíduo e à práxis coletiva [...]. Mas esta História só pode
significados iniciais em uma nova e intensificada construção de ser apreendida por meio de seus efeitos, e nunca diretamente como
significado; por esse motivo, a criação ou a interpretação da obra uma força reificada”59.
não podem mais constituir um processo arbitrário.56 Pode-se lembrar aqui, ainda que apenas de passagem, um pon-
to de contato com a perspectiva (na verdade bastante diversa) do
Tendo em vista que a forma literária é conteúdo elaborado e crítico britânico Terry Eagleton (1943- ), no livro em que expõe, de
transformado, Jameson completa o raciocínio sugerindo que, para a maneira mais desenvolvida, uma teoria própria:
crítica dialética, falar em “interpretação” das obras não deixa de ser
impreciso: o conteúdo não precisa ser interpretado, pois é significa- Mais do que “transpor imaginariamente” o real, a obra literária
tivo por si mesmo. O conteúdo, sendo experiência social e histórica, é a produção de certas representações do real produzidas num
já é concreto; ele apenas foi transformado em outra coisa ao ser for- objeto imaginário. Se ele distancia a história, não é porque a
malizado artisticamente. Para usar a analogia psicanalítica, o conte- transmuta em fantasia [...], mas porque as significações que
údo latente (a experiência original) diverge do conteúdo manifesto, elabora em ficção já são representações da realidade mais do
que é sua manifestação distorcida. Assim, a tarefa da crítica não é que a própria realidade. O texto é um tecido de significados,
tanto a interpretação do conteúdo, mas é a revelação ou o desnuda- percepções e respostas que aderem em primeiro lugar àquela
mento desse conteúdo, é a reconstituição da experiência original; e produção imaginária do real que é a ideologia. O “real textual”
esse procedimento crítico toma a forma de uma explicação de como
está relacionado com o real histórico, não como sua transposição
o conteúdo foi distorcido na elaboração formal.
imaginária, mas como produto de certas práticas de significação
Essa elaboração artística, que transforma o conteúdo e os
cuja fonte e referente é, em última instância, a própria história.60
significados iniciais, é significativa pelo modo como opera. O
importante não é apenas desvendar o conteúdo ou a experiência 57 (JAMESON 1985:291)
58 Diz Jameson: “a ideologia não é algo que informa ou envolve a produção
histórica original, mas, sim, especificar a maneira pela qual a obra simbólica; em vez disso, o ato estético é em si mesmo ideológico, e a produção
da forma estética ou narrativa deve ser vista como um ato ideológico em si
literária distorce ou transforma os materiais de que parte, pois é na próprio, com a função de inventar ‘soluções’ imaginárias ou formais para
particularidade da configuração formal que se inscreve seu sentido contradições sociais insolúveis.” (JAMESON 1992:72)
59 (JAMESON 1992:93)
56 (JAMESON 1985:305-306) 60 (EAGLETON 1976:75 — tradução minha). A obra de Eagleton não será comentada
390 Edu Teruki Otsuka Capítulo 10 . Marxismo 391

Por fim, cabe fazer um autocomentário, lembrando, com período, a crítica de inspiração marxista produzida por aqui tem
Jameson, que “a única apresentação genuinamente concreta da apenas interesse histórico: o principal personagem é Astrojildo
crítica dialética é a prática dessa mesma crítica”61, e, nesse sentido, Pereira (1890-1965), antigo anarquista que se tornou figura políti-
o presente apanhado de questões teórico-metodológicas da crítica ca importante nos inícios do comunismo brasileiro. Como crítico
marxista se atém a apenas uma de suas metades, deixando de fora as literário, estudou principalmente a obra de Machado de Assis, sem,
análises concretas. Se renunciamos, aqui, a apresentar resumos das no entanto, ultrapassar o viés limitado que tratava as obras como
leituras interpretativas de textos literários realizadas pelos autores documentos históricos63.
tratados, é porque fazê-lo neste contexto equivaleria a rebaixá-las a Outro crítico ligado ao marxismo é o historiador Nelson
meras exemplificações dos procedimentos metodológicos. O alcan- Werneck Sodré (1911-1999), que foi dos primeiros a tentar incor-
ce (e risco) da crítica marxista mostra sua força nos resultados da porar as ideias de Lukács ao estudo da literatura brasileira (na 3ª
análise de obras específicas, resultados que apontam sempre para edição de sua História da Literatura Brasileira, publicada em 1960),
problemas histórico-sociais mais amplos, que não se limitam a ques- restringindo-se, porém, à declaração de intenções e princípios teóri-
tões de método (o próprio método é antes submetido ao escrutínio
cos, sem chegar, no ato crítico, à efetiva superação do sociologismo
crítico no processo mesmo da investigação do objeto literário62).
que pretendia derrotar64.
Dos críticos jovens que despontaram nos anos 1960, cabe men-
3. Crítica literária marxista no Brasil
cionar Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), talvez aquele que, entre
todos, produziu os estudos mais aderentes à teoria lukacsiana estrita
3.1
no Brasil, num momento em que Lukács era das poucas referências
de peso na teoria literária marxista. No percurso intelectual poste-
Mais do que numa simples recepção da teoria literária marxista
rior, Coutinho aproximou-se da obra do italiano Antonio Gramsci
no Brasil, convém pensar na sua reinvenção ou na sua apropriação
(1891-1937), sem, contudo, abandonar o núcleo lukacsiano, pelo
original por parte de críticos literários que souberam reconhecer na
menos no que toca os estudos literários65.
experiência brasileira um prisma a partir do qual observar o mundo
contemporâneo e, como tal, capaz de sustentar desdobramentos
3.2
teóricos novos (ou que, pelo menos, contrariavam alguns esquemas
vigentes no marxismo do tempo).
Mas foi junto à tradição de pensamento sobre o Brasil e sua posição
O marxismo nos estudos literários brasileiros ganhou impulso
particular no sistema mundial que se desenvolveu a mais penetrante
nos anos 1960 e amadureceu nas décadas seguintes. Antes desse
e fecunda crítica literária marxista brasileira.
aqui, mas convém ao menos indicar alguns de seus estudos de cunho teórico:
EAGLETON (1983; [1984] 1991; [1990] 1993; [1991] 1997; [2003] 2005)
61 (JAMESON 1985:260). 63 (Ver PEREIRA [1959] 1991; 1944)
62 Para as análises textuais de Jameson, ver, além dos capítulos interpretativos de 64 (Ver SODRÉ 1960; [1965] 1992).
O inconsciente político, os estudos reunidos em JAMESON ([1988] 2008) 65 (Ver COUTINHO 1967; 1990; 2005). Sobre o autor, ver KONDER (1991:117-124)
392 Edu Teruki Otsuka Capítulo 10 . Marxismo 393

Todo o percurso de Antonio Candido de Mello e Souza (1918- Essa conversão do externo em interno, ou, mais precisamente,
) na crítica literária pode ser visto como um esforço de superar as a transformação de uma forma social, posta pela vida prática, em
principais modalidades críticas então vigentes e alcançar um método forma literária, trabalhada pelo escritor, é o que Antonio Candido
próprio, capaz de fazer justiça à complexidade das obras literárias, chama de “formalização estética” ou “redução estrutural” dos dados
em suas múltiplas dimensões, que incluem a histórica e a social. sociais. Pode-se mesmo dizer que, para a crítica dialética, mais do
Embora seu trabalho mantenha distância da terminologia marxista, que a relação entre literatura e sociedade, importa examinar a trans-
pode-se dizer que sua inspiração fundamental é o marxismo. formação da sociedade em texto, isto é, a maneira como a sociedade
Da perspectiva metodológica, Antonio Candido anuncia se objetiva na forma literária.
um modo de ler voltado para a configuração particular das obras, O alcance do método se faz notar nos estudos analíticos pu-
procurando descobrir nas formas aquilo que a literatura é como blicados na década de 1970: “Dialética da malandragem” (1970),
conhecimento. Nos anos 1960, diante das insuficiências das verten- “Degradação do espaço” (1972), “O mundo-provérbio” (1972) e “De
tes formalistas da crítica e do marxismo vulgar, Antonio Candido cortiço a cortiço” (redigido em 1973)67. O conjunto desses ensaios,
elabora de maneira independente um modo de examinar a dialética sobretudo os que tratam de romances brasileiros, é dos raros em que
de forma literária e processo social. O problema se punha como ne- a análise formal, guiada pela experiência estética e confiando no va-
cessidade de superar os estudos “paralelísticos” das obras literárias, lor de conhecimento da literatura, efetivamente alcança a descober-
ou seja, as análises que se limitam a traçar paralelos entre as obras e ta e a conceitualização de aspectos ocultos da sociedade, podendo
a vida social, de tal modo que os elementos sociais são considerados contrariar noções estabelecidas ou suscitar questões espinhosas68.
somente como fatores condicionantes ou como enquadramento Aqui, a forma funciona como “um princípio mediador que
contextual, permanecendo, portanto, fora das obras estudadas. Tais organiza em profundidade os dados da ficção e do real, sendo parte
estudos se mostram insatisfatórios porque tratam a literatura como dos dois planos”69. Produzida pelo próprio processo social, a forma
documento e apenas indicam a ocorrência temática de aspectos faz parte dos materiais elaborados pelo escritor, correspondendo a
sociais nos textos, menosprezando sua elaboração estética e, con- um princípio estruturador que torna coerente e inteligível tanto os
sequentemente, seu valor cognitivo próprio. Para ultrapassar essas elementos da realidade quanto os da ficção. Diferentemente da visão
abordagens, Candido passa a investigar os processos de estrutu- corriqueira segundo a qual a realidade é informe e o escritor lhe
ração, em que os dados externos da realidade social se convertem
em elementos estruturadores internos à obra, podendo, assim, ser 67 Estudos reunidos na primeira parte de O discurso e a cidade (ver CANDIDO
1993). O melhor comentário ao trabalho de Candido, em que nos apoiamos
tratados como fatos estéticos66. A consequência é que a prioridade amplamente, encontra-se nos artigos de Roberto Schwarz indicados nas notas

passa para a análise formal, a partir da qual se revela o teor de co- seguintes.
68 “Se a forma literária for levada a sério e tomada como ponto de partida dialético,
nhecimento das obras. o resultado da reflexão não estará sob controle nem será previsível de antemão.”
(SCHWARZ 1989:147)
66 (Ver CANDIDO [1965] 1980:3-15; 1993:9) 69 (SCHWARZ 1989:141)
394 Edu Teruki Otsuka Capítulo 10 . Marxismo 395

dá uma forma, aqui a realidade social é entendida como sendo ela de autores, obras e público, mas também envolvia a constituição
mesma dotada de forma. A forma literária é, nesse sentido, “a trans- de uma tradição, entendida como um campo de problemas reais,
formação, com resultado variável, de formas preexistentes, artísticas específicos e irresolvidos, que exigem superação73.
ou extra-artísticas”70, ou seja, a forma, assim entendida, sempre tem Mas aqui já estamos adentrando naquilo que, posteriormente,
um fundamento prático-histórico. Roberto Schwarz desvendará ao fornecer uma explicação histórica
Junto aos desenvolvimentos que, por falta de expressão melhor, e materialista para o tema das “ideias fora de lugar”74: partindo do
chamamos aqui de “metodológicas”, a obra de Antonio Candido sentimento comum de que a vida cultural no Brasil aparece como
deu configuração para o problema básico da vida cultural brasileira, sendo postiça, imitada ou inautêntica, Schwarz reconstitui a dinâ-
discernindo o eixo central da experiência intelectual no país. Em mica cultural pós-independência com base na inserção do país na
Formação da literatura brasileira (1959)71, Candido elaborou as bali- nova ordem do capitalismo internacional e demonstra que os pro-

zas para a compreensão do funcionamento dos sistemas culturais no blemas culturais do Brasil não se devem à importação das formas,
e, sim, à segregação dos pobres, a quem não são estendidos os re-
Brasil (dos quais o sistema literário foi o mais acabado), marcados
sultados da civilização contemporânea, de tal modo que a estrutura
pela incontornável tensão entre localismo e cosmopolitismo, em
de iniquidades do país “confere à cultura uma posição insustentável,
cujo fundo se encontrava a particularidade do país periférico no
contraditória com o seu autoconceito”75.
capitalismo internacional. Alinhando-se a outros ensaios de inter-
pretação do Brasil, que explícita ou implicitamente eram guiados
3.3
pela ideia de “formação”, o estudo de Candido forneceu as bases
para a explicação adequada da lógica da vida cultural brasileira, que
A obra crítica de Roberto Schwarz (1938- ) se beneficia do trabalho
se assenta na dupla fidelidade às formas importadas e à realidade
de Antonio Candido em toda a linha, tanto dos procedimentos ana-
local, com seus resultados variáveis.
líticos quanto da elucidação da experiência brasileira. Voltando-se
O essencial no processo formativo é a definição de uma
para a investigação dos inícios do romance nacional até a sua culmi-
tradição, que não é vista como mera linha de continuidade, mas nação na obra madura de Machado de Assis, Schwarz desenvolve e
como “um sistema local de problemas e contradições” que passa a aprofunda a lição do mestre76.
funcionar como um filtro histórico, o qual permite dimensionar e O comentário de Schwarz sobre a crítica de Antonio Candido
assimilar criteriosamente o influxo externo, ou seja, tendo em vista pode ser tomado também como explicação de seus próprios proce-
a experiência social específica72. Assim, a formação do sistema lite- dimentos e princípios teóricos:
rário não só consistia no funcionamento de um sistema articulado
73 (Ver SCHWARZ 1989:31)
70 (SCHWARZ 1999:31) 74 (SCHWARZ 1977:13-28; 2012:165-172)
71 (CANDIDO 1993) 75 (SCHWARZ 1977:46)
72 (SCHWARZ 1999:20). Ver também ARANTES (1997:7-66; 1992) 76 (Ver SCHWARZ 1977; 1990; 2002:247-279). Ver também ARANTES (1992)
396 Edu Teruki Otsuka Capítulo 10 . Marxismo 397

A forma de que falamos aqui é inteiramente objetiva, com o que do conjunto mais ou menos contingente de condições em que
queremos dizer que ela se antepõe às intenções subjetivas, das uma forma nasce, esta retém e reproduz algumas – sem as quais
personagens ou do autor, as quais no âmbito dela são apenas não teria sentido – que passam a ser o seu efeito literário, o seu
matéria sem autoridade especial, que não significa diretamente, “efeito de realidade”, o mundo que significam. Eis o que interessa:
ou que só significa por intermédio da configuração que a rede- passando a pressuposto sociológico, uma parte das condições
fine. Quanto a afinidades, o primado da forma sobre opiniões e históricas originais reaparece, com sua mesma lógica, mas agora
intenções se torna programático, na história do romance, a partir no plano da ficção e como resultado formal. Neste sentido, for-
de Flaubert. Fora da literatura, o sentimento análogo se encontra mas são o abstrato de relações sociais determinadas, e é por aí
na ideia marxista da precedência do processo, cuja engrenagem que se completa [...] a espinhosa passagem da história social para
objetiva, funcionando atrás das costas dos protagonistas, tam- as questões propriamente literárias, da composição – que são de
bém lhes utiliza e desqualifica os propósitos, transformados
lógica interna e não de origem.79
em ilusões funcionais [...]. O interesse dessa ideia “desumana”
e puramente relacional de configuração artística, cheia de im-
Ao estudar o romance urbano de José de Alencar e a obra inicial
plicações materialistas e desabusadas, não está na harmonia,
de Machado de Assis, Schwarz mostra que a formação do romance
mas na dissonância reveladora, cuja verdade histórica é tarefa
brasileiro envolve uma variante original da dialética de forma e conte-
da interpretação evidenciar. Por fim, trata-se de uma forma de
údo. A incorporação, por Alencar, da forma do romance realista euro-
formas, um complexo altamente heterogêneo de experiências
peu acabava produzindo contrassenso ao amalgamar-se com a matéria
literariamente transpostas, sobre o qual o romancista trabalha.77
brasileira. Isso porque o eixo do romance realista é sustentado por en-
redos que “devem a sua força simbólica a um mundo que no Brasil não
Tal como outros críticos marxistas, Schwarz entende que a
tivera lugar. Sua forma é a metáfora tácita da sociedade [desencantada]
matéria trabalhada pelo escritor não é informe: “é historicamente
[...] que resulta da racionalidade burguesa, ou seja, da generalização da
formada, e registra de algum modo o processo social a que deve a
troca mercantil”80. No Brasil de meados do século XIX, cuja produção
sua existência”. A forma literária alcançada pelo escritor é, portan-
econômica, voltada para o mercado externo, se fundava no trabalho
to, elaborada sobre formas (sociais) prévias, e o resultado estético
escravo e no latifúndio, o principal da vida ideológica girava em torno
depende do acordo ou desacordo entre a forma literária e a matéria
das relações de favor e dependência pessoal direta, o que deslocava o
pré-formada78.
funcionamento da cultura burguesa e, consequentemente, os grandes
Dito de outro modo, no processo de configuração literária, um
temas centrais do realismo literário.
aspecto da lógica estrutural da sociedade se converte em princípio
formal da obra, subordinando os outros elementos e organizando a Depois de esmiuçar os fundamentos históricos das fraturas
obra como um todo: formais do melhor romance urbano de Alencar, Senhora (1875),

77 (SCHWARZ 1999: 41) 79 (SCHWARZ 1977:38-39)


78 (SCHWARZ 1977:25, 42) 80 (SCHWARZ 1977:42)
398 Edu Teruki Otsuka Capítulo 10 . Marxismo 399

Schwarz resgata o momento de verdade do fracasso artístico, assina- Neste desenvolvimento peculiar do romance periférico, não
lando o valor mimético da inconsistência formal. O defeito formal é tanto o novo conteúdo que torna obsoleta a forma enrijecida e
pode ser entendido, então, como novo ingrediente que se acrescenta doravante antiquada, mas é a forma mais avançada (a do romance
ao material artístico: “de forma a inconsistência passa a matéria”; realista) que é posta em questão pela matéria brasileira, aparente-
ou seja, a forma fraturada se converte em material a ser, por sua mente atrasada. “Aparentemente” porque o conjunto problemático
vez, elaborado em outra forma. Agora, a própria matéria brasileira das relações locais não era mero resquício do passado que barrava
está enriquecida e, por assim dizer, amadurecida, pois passa a in- a entrada do progresso, mas era ele mesmo um resultado moderno
cluir todo um universo formal degradado: “nossa matéria literária do desenvolvimento do capitalismo mundial, pois a reprodução
alcança densidade suficiente só quando inclui, no próprio plano dos do sistema escravista-clientelista era a condição que possibilitava à
conteúdos, a falência da forma europeia, sem a qual não estamos elite brasileira a participação no universo cultural moderno. Assim,
completos”81. a crítica literária de Schwarz examinava as consequências estéticas
Em sua obra madura, a partir de Memórias póstumas de Brás e ideológicas do “desenvolvimento desigual e combinado do capi-
Cubas (1880), Machado de Assis inventa uma forma sui generis para talismo”, demonstrando no detalhe como as peculiaridades da ex-
tratar adequadamente essa matéria. Fundada na volubilidade narra- periência brasileira, formalizada no romance maduro de Machado,
tiva e nas relações de classe brasileiras, a solução formal machadiana articulam-se ao sistema mundial unificado pelo capital e ao mesmo
mostrou-se capaz de assimilar a matéria cotidiana da vida social, tempo assimétrico em seus múltiplos efeitos.
bem como de incorporar as formas modernas (burguesas) enquanto A leitura empreendida por Schwarz devia o seu tanto a uma
formas falidas. Dessa combinação peculiar de notação local e cul- nova compreensão do Brasil que se entroncava na tradição crítica
tura “universalista”, resultava a desqualificação recíproca dos dois local e que consistia em “articular a peculiaridade sociológica e
polos, a qual aponta para a efetiva universalidade de Machado, cuja política do país à história contemporânea do capital”83, abrindo a
força crítica não se restringe ao plano nacional, mas visa à sociedade possibilidade de abarcar, por meio dos problemas nacionais, a inte-
burguesa no seu conjunto. Dessa perspectiva, a inovação formal em- gralidade do processo. Essa reflexão coletiva possibilitou, assim, de-
preendida por Machado não decorreu apenas do talento individual, sembaçar o ponto de vista da periferia, que passou a funcionar como
mas, sobretudo, da tenacidade com que enfrentou os problemas as lentes bifocais com que se tornou possível não apenas examinar
inscritos em seu material, dominando-os na elaboração da forma a experiência local e seu show de horrores, mas também observar e
literária82. criticar a cena mundial e suas abominações próprias; desse modo,
revitalizou-se a noção de totalidade, a qual hibernava, desacreditada
81 (SCHWARZ 1977:50-51)
pela teoria produzida nos núcleos centrais84.
82 Talvez não seja descabido lembrar aqui uma imagem de Adorno; segundo ele,
as obras significativas deixam vestígios no material, e esses vestígios, sobre os
quais a obra qualitativamente nova trabalha, são cicatrizes, são os pontos em 83 (SCHWARZ 1999:93)
que as obras precedentes fracassaram. (ADORNO 1988:48-49) 84 (Ver ARANTES 1996:66; 1992:84)
400 Edu Teruki Otsuka Capítulo 10 . Marxismo 401

O resultado decisivo dos estudos de Schwarz sobre Machado A partir dos anos 1980, Jameson voltou-se progressivamente para
de Assis, obtido por meio da investigação estética, diz respeito ao o estudo das mais diversas formas artísticas e culturais, com o in-
modo como a narrativa machadiana madura dá a ver o formalismo tuito de investigar a “lógica cultural do capitalismo tardio”87. Além
da civilização burguesa, que pode não apenas incluir, mas chega de intervir no debate sobre o pós-modernismo, Jameson tinha em
mesmo a exigir as formas mais brutais de barbárie. Desse modo, a seu horizonte o desejo de mapear a totalidade, examinando as ma-
experiência periférica revela de maneira mais extrema a regra geral nifestações culturais correspondentes ao que ele periodizou como
do caráter incivil da civilização burguesa. um novo estágio do capitalismo. É notório que, nesse processo, a
produção literária mostrou-se pouco eficaz no que diz respeito ao
4. A crítica literária marxista e o futuro conhecimento que pôde lançar sobre a sociedade contemporânea.
No conjunto das investigações de Jameson sobre o pós-moder-
Qual o futuro da crítica literária marxista? Como se sabe, no âmbito
nismo, a análise em profundidade de textos literários deu lugar a
acadêmico, a partir dos anos 1990, os estudos literários tenderam
apanhados amplos em que a literatura ocupava posição marginal. À
cada vez mais a se transformarem em estudos culturais. Trata-se
crescente mercantilização parecia corresponder o enfraquecimento
de um processo de incorporação de um projeto crítico que, em sua
da literatura como forma capaz de apreender e configurar aspectos
origem, era fundamentalmente político: o “materialismo cultural” de
sociais significativos da atualidade.
Raymond Williams (1921-1989)85 e os estudos culturais britânicos.
Para compor nosso problema de outro ângulo, lembremos que,
Ao se generalizarem na academia norte-americana (passando daí
em entrevista recente (2004), Roberto Schwarz se pergunta sobre as
para outras partes do mundo), os estudos culturais se alinharam
dificuldades da crítica literária marxista nas circunstâncias atuais:
com as novas “micropolíticas”, frequentemente deixando para trás o
fundamento propriamente marxista dos estudos culturais originais86.
esse tipo de crítica [dialética] supõe obras e sociedades muito
Assim, os estudos literários deixaram de ser exclusivamente literários,
estruturadas, com dinamismo próprio. Trata-se de enxergar
e, junto com o triunfo dos estudos culturais, agora com nova feição,
uma na outra as lógicas da obra e da sociedade, e de refletir a
deu-se também um abandono do impulso político marxista que ha-
respeito. Acontece que vivemos um momento em que essa ideia
via motivado o projeto crítico na Inglaterra. Mais do que discutir o
de sociedade, como algo circunscrito, com destino próprio, está
percurso institucional da crítica contemporânea, porém, talvez seja o
posta em questão, para não dizer que está em decomposição.
caso de indagar sobre o próprio estatuto da literatura enquanto forma
Já ninguém pensa que os países de periferia têm uma dialética
artística capaz de revelações sobre a experiência histórica atual.
interna forte – talvez alguns países do centro tenham, talvez nem
A trajetória de Fredric Jameson pode servir de indicação das
eles. E no campo das obras, com a entrada maciça do mercado e
próprias dificuldades da crítica literária marxista contemporânea.
da mídia na cultura, é voz corrente que a ideia de arte mudou, e
85 (Ver WILLIAM [1958] 1969; [1973] 1990; [1980] 2011; [1981] 1992; [1989] 2011)
86 (Ver JAMESON 1994:11-480. Ver também CEVASCO (2003) 87 (JAMESON [1991] 1996; [1998] 2006; Ver também (1999)
402 Edu Teruki Otsuka Capítulo 10 . Marxismo 403

é possível que o padrão de exigência do período anterior tenha buscar sua inspiração no futuro91, a crítica literária marxista só pode
sido abandonado. Talvez os pressupostos da crítica dialética este- ser movida pelo desígnio emancipatório que continua irrealizado
jam desaparecendo...88 na tradição dos oprimidos e impulsiona a teoria crítica, fornecendo
uma perspectiva por meio da qual podemos observar a história con-
Não se trata, é claro, de anunciar o fim da crítica dialética, mas temporânea. Sendo, acima de tudo, uma crítica do presente, o mar-
de apontar a necessidade de sua renovação diante das condições xismo se volta para as questões da atualidade, cujo enfrentamento
históricas vigentes, sem renunciar, no entanto, a seu núcleo funda- estimula e é estimulado pelo empenho em construir a ruptura capaz
mental, a teoria marxiana do valor-trabalho. Se é verdade que as de encerrar a pré-história da humanidade em que ainda permane-
feições transformadas da realidade presente indicam uma ruptura cemos mergulhados92.
que abriu um novo ciclo histórico que aguarda diagnóstico89, então
a crítica marxista (não só literária) defronta a exigência de elaborar Referências
conceitualmente a lógica de funcionamento da sociedade capitalista
atual, talvez nem sempre adequadamente apreendida por meio das
ADORNO, T. W. 2003. Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo:
categorias estabelecidas, e que a produção literária recente tampou- Duas Cidades / Ed. 34.
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ARANTES, O. B. F. & ARANTES, P. E. Sentido da formação: três estudos sobre
Assim como, para Marx, a prática revolucionária não deve
colher sua poesia nas imagens consolidadas do passado, mas, sim,
88 (SCHWARZ 2012:292) 91 (MARX 2011:28)
89 (Ver ARANTES 2007) 92 Ver o comentário de Paulo Arantes sobre a atualidade do Manifesto comunista
90 (EAGLETON 2005:107; 1991:99, a tradução foi modificada) de Marx e Engels (ARANTES 2004:133-137)
404 Edu Teruki Otsuka Capítulo 10 . Marxismo 405

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Radius, p. 195-225. ... a questão fundamental para a crítica feminista
está cifrada na intervenção do sujeito no processo
hermenêutico, de modo que as relações entre a
dimensão teórica e a pretensão prática se articulem
como base da consciência histórica, exigência
primeira para qualquer transformação da vida.
Rita Terezinha Schmidt
Introdução

Contemporaneamente, os estudos feministas têm-se constituído


em importante campo de pesquisa, presente em muitas áreas do
conhecimento, ensejando reflexões e ações diversificadas que têm
influído na transformação da sociedade. Conquistas significativas,
como o direito de a mulher eleger e o de ser eleita, de frequentar
uma universidade ou de exercer uma profissão foram triunfos do
movimento feminista, o que possibilitou a subversão da posição de
marginalidade à qual o gênero feminino sempre fora relegado. No
entanto, esse movimento não pode ser entendido como uma posição
monolítica, da mesma maneira como o conceito mulher não pode
ser percebido como categoria universal, mas um termo relacional,
conforme assertiva de Judith Butler (2003). Uma vez que tanto mu-
lher como movimento feminista apresentam múltiplas abordagens,
devem ser vistos em sua pluralidade, em consonância com verten-
tes teóricas específicas. A representação da mulher na literatura,
independentemente do sexo do autor/a, favorece aproximações de
variadas ordens, tais como psicanálise, pós-colonialismo, pós-mo-
dernismo, entre outras, constituindo um modelo de crítica literá-
ria muito produtivo, a crítica feminista. A teoria crítica feminista
desenvolveu-se a partir do movimento das mulheres e apresenta,
como um de seus resultados, novas discussões sobre a abordagem
410 Cecil Jeanine Albert Zinani Capítulo 11 . Feminismo e literatura 411

do fenômeno literário, a constituição do cânone literário e a escrita oportunidades de formação que os homens, pois, na sua opinião, da
da história da literatura. qualificação de homens e mulheres depende o progresso da nação.
A obra de Wollstonecraft foi traduzida e adaptada, com o título de
Retrospectiva Direito das mulheres e injustiças dos homens, em 1832, por Nísia
Floresta Brasileira Augusta (1810-1885), também escritora e educa-
Relegada a uma condição subalterna, desde a Antiguidade, a
dora, considerada a primeira feminista do Brasil.
mulher detinha poucos direitos jurídicos, os quais foram ainda
No mesmo século, destaca-se a figura de Olympe de Gouges,
mais reduzidos no Período Medieval e, assim, prosseguiram
uma feminista avant-la-lettre, que exigia para as mulheres os mes-
até o século XVIII, quando o sistema absolutista e o direito
mos direitos dos homens. Ao questionar que a divisa da Revolução
romano reforçaram o poder patriarcal1. Na realidade, o co-
— Liberdade, Igualdade e Fraternidade —, expressa na Declaração
nhecimento filosófico, fundamentado em Aristóteles, o direito
de direitos do homem e do cidadão, que consagrava o direito uni-
canônico, de base judaico-cristã, e o discurso político eram
versal à cidadania, não se aplicava às mulheres, Gouges, ainda em
fundamentados na superioridade masculina do pai de família
1791, portanto, durante a Revolução Francesa, proclama os direitos
e na sua autoridade, em detrimento da mulher, considerada fí-
femininos na Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, com 17
sica, intelectual e socialmente inferior. A partir do Iluminismo,
artigos. Integrando o partido político dos girondinos, Olympe de
o interesse pelas mulheres ampliou-se, bem como sua par-
Gouges foi guilhotinada por suas ideias avançadas. Perrot3, comen-
ticipação pública. Os debates que se realizavam durante a
tando o julgamento da feminista, aponta que “seu processo é rico
Assembleia Constituinte, na época da Revolução Francesa,
em ensinamentos quanto à desqualificação da mulher na política”.
despertaram a atenção de muitas mulheres, induzindo-as a
O feminismo, como movimento político e cultural, obteve
frequentá-la, assistindo aos trabalhos das galerias, enquanto
alguma visibilidade no século XIX com as campanhas em prol dos
tricotavam (as tricoteuses), uma vez que não podiam tomar
direitos civis e do voto. Andréa Lisly Gonçalves (2006) assinala a 1ª
parte das discussões. A participação na vida social, nos salões,
Convenção para o Direito das Mulheres, realizada em Seneca Falls,
e as conversações que ali se produziram celebrizaram muitas
estado de Nova Iorque, em 19 e 20 de julho de 1848, como o evento
mulheres, as famosas “preciosas”, ridicularizadas (e imortali-
que desencadeou o movimento feminista no Ocidente. Gonçalves
zadas) por Molière na comédia As precisosas ridículas 2.
ressalta que essa Convenção foi o resultado da percepção de mulhe-
Ainda no século XVIII, desempenhou papel relevante a escri-
res, engajadas na luta contra a escravidão, de que sua posição não
tora e educadora Mary Wollstonecraft (1759-1797), que publicou,
era diferente daquela dos escravos africanos e seus descendentes,
em 1792, a obra Vindication of the rights of woman, na qual defende
pois, como eles, não possuíam direito algum. Nessa Convenção, foi
o direito à educação, de modo que as mulheres tenham as mesmas
discutido o posicionamento das mulheres em relação a questões
1 (BADINTER 1980)
2 (PERROT 1998) 3 (PERROT 2005:330)
412 Cecil Jeanine Albert Zinani Capítulo 11 . Feminismo e literatura 413

sociais, civis e religiosas, no entanto, o sufragismo não foi um as- Enquanto os homens aprendiam grego, as mulheres eram ensinadas
pecto considerado muito relevante, sendo aprovado, de acordo com a tomar conta da casa.
Gonçalves, por uma pequena maioria. Posteriormente, as discussões Entre outros ensaios relevantes de Virginia Woolf, destaca-se
sobre o direito ao voto ampliaram-se, com as sufragistas exigindo Profissões para as mulheres (2012), no qual apresenta as dificulda-
o direito à cidadania, representado pela possibilidade de participar des das mulheres escritoras, que precisam se desvincular de uma
de eleições (votar e ser votada), pois as mulheres, enquanto cons- tradição androcêntrica, a fim de poder escrever com autenticidade.
tituintes de parcela significativa da população, estavam alijadas de A autora reconhece que o maior mérito, tanto em sua produção de
qualquer representação. crítica literária quanto na escrita de romances, foi ter eliminado
No século XX, inscrevem-se, como baluartes do feminismo, uma figura que denominou de Anjo do Lar que a induzia a portar-se
duas eminentes intelectuais: Virginia Woolf e Simone de Beauvoir. de acordo com a tradição feminina, ser afável, elogiar, concordar
Virginia Woolf publica, em 1928, A room of one’s own. Nessa obra sempre, em suma, mistificar, enganar, utilizando artifícios atribu-
(originada de apontamentos para duas conferências em universi- ídos tradicionalmente ao sexo feminino. No entanto, sem opinião
dades femininas), Woolf discute a situação da mulher de maneira própria, é impossível até mesmo escrever uma resenha. Destruída
alegórica, procurando mostrar como a falta de condições materiais a imagem representativa da tradição, interroga “o que é uma mu-
inviabiliza a expressão literária. Para a autora, o gênio artístico tem lher?”5 E sua resposta é emblemática: “Duvido que alguém possa
possibilidade de manifestar-se entre os que tiveram uma boa educa- saber, enquanto ela não se expressar em todas as artes e profissões
ção e recursos financeiros para realizar-se intelectualmente. A posse abertas às capacidades humanas”6.
de um quarto com chave e uma renda de 500 libras anuais constituem Simone de Beauvoir, feminista francesa, publica, em 1949, O
condições básicas para que a mulher possa refletir e produzir a sua segundo sexo, em dois volumes, nos quais discute a posição da mu-
poesia. Afirma: “A liberdade intelectual depende de coisas materiais. lher, que, na sua visão, nunca é o Um, mas sempre o Outro, dentro
A poesia depende da liberdade intelectual” . Além disso, defende
4
de uma totalidade (polos indispensáveis: homem/mulher), ou, como
que os textos escritos por mulheres devem traduzir a experiência afirma “O inessencial que não retorna ao essencial”7. A autora men-
feminina, uma vez que ocupam uma posição social diferenciada, e ciona o ingresso da mulher no universo do trabalho como uma das
não estar atrelados à produção masculina, instituindo uma tradição consequências da Revolução Industrial. Com isso, as reivindicações
específica. Selden, Widddowson e Brooker (2005) consideram que femininas passaram a fundamentar-se em argumentos econômicos.
a identidade de gênero não é inata, porém, construída socialmente, No entanto, para a burguesia conservadora de meados do século
daí a relevância atribuída à educação para atingir esse escopo. Nesse XX, a emancipação feminina é, ainda, vista como um perigo que
sentido, os autores ressaltam o posicionamento de Woolf, que ques-
tionava a modalidade de estudos que eram ministrados às mulheres. 5 (WOOLF 2012:14)
6 (WOOLF 2012:14)
4 (WOOLF 1985:141) 7 (BEAUVOIR 1980:13)
414 Cecil Jeanine Albert Zinani Capítulo 11 . Feminismo e literatura 415

“ameaça a moral e os interesses”8. Como a democracia pressupõe a sido deflagradora de uma consciência de gênero, não prosperou.
igualdade dos seres humanos, seria inconcebível considerar a mu- Retornada a paz, elas refluíram para o lar, deixando os postos de
lher inferior; porém, essa contradição aflora nas situações de confli- trabalho que ocupavam para os homens que voltaram da guerra.
to, em que a superioridade masculina tende a afirmar-se com todo Mesmo quando decidiram permanecer em atividade, as posições
o vigor. Para demonstrar a tese de que a mulher constitui o Outro, de liderança que exerciam anteriormente foram dominadas pelas
Beauvoir utiliza dados da biologia, da psicanálise e do materialismo figuras masculinas, restando às mulheres ocupações de menor im-
histórico, acatando algumas contribuições dessas áreas, para assi- portância e responsabilidade.
nalar que a mulher, cujo mundo de valores dominado pelo projeto A divisão do trabalho implica, entre outros aspectos, a natura-
do existente, direciona-se para a transcendência, posicionamento lização de procedimentos basicamente culturais. Assim, o trabalho
que desconstrói a assertiva de que ela se orienta para a imanência, doméstico e a criação dos filhos são considerados atividades femi-
enquanto o homem, para a transcendência. Essa proposição é refor- ninas, enquanto a conquista e a construção do mundo exterior são
çada quando se verifica o espaço ocupado por homens e mulheres: ocupações masculinas, consequentemente, estabelecem-se dico-
o domínio masculino é o exterior, o público, as grandes obras, en- tomias com desvantagem para a mulher. Razão, Sujeito, Produção
quanto o feminino é o interior, o privado, o pequeno cotidiano. No são prerrogativas masculinas em oposição a Emoção, Objeto,
início do segundo volume de O segundo sexo, Beauvoir enuncia que Reprodução, aspectos femininos.
a mulher não nasce como tal, mas que a sua constituição se deve Na década de 60 do século XX, o feminismo, efetivamente, as-
a interações de variadas naturezas que compõem o conjunto dos sume o caráter de força política e social. A partir de então, abrange
sistemas de interpretação das diferentes áreas, ou seja, é uma cons- um amplo espectro, discutindo a opressão feminina, originária do
trução social. Corroborando essa assertiva, Selden, Widdowson e regime patriarcal, reivindicando igualdade nas oportunidades de
Brooks afirmam: “Making the crucial distinction between ‘being educação, de emprego e remuneração, de autonomia corporal, entre
female’ and being constructed as ‘a woman’, de Beauvoir can posit outros aspectos. Bonnici justifica essa tendência, considerando que
the destruction of patriarchy if women can only break out of their “são geralmente grupos formadores de consciência que moldam
objectification”9. Na realidade, a própria mulher se coloca na posi- os temas políticos do feminismo contemporâneo, cuja pressão
ção de Outro, o que dificulta a superação das relações patriarcais, influencia decisões políticas para uma igualdade entre os sexos”10.
reforçando sua posição subalterna. Posteriormente, a discussão orientou-se para o reconhecimento das
Foram, porém, os conflitos bélicos que direcionaram, efetiva- diferenças que envolvem segmentos subalternos e marginalizados.
mente, as mulheres às linhas de produção industrial, subvertendo O sujeito feminista, ou o sujeito constituído no gênero, insti-
a equação proposta. No entanto, essa atividade que poderia ter tui-se na diferença (denominada différance, por Derrida), que provê
formas de subverter o patriarcalismo e a submissão feminina. O
8 (BEAUVOIR 1980:18)
9 (SELDEN; WIDDOWSON; BROOKS 2005:120) 10 (SCHMIDT 1994:31-32)
416 Cecil Jeanine Albert Zinani Capítulo 11 . Feminismo e literatura 417

feminismo confere às mulheres uma identidade política capaz de diferença, em cinco aspectos referentes a: biologia, experiência, dis-
identificar práticas discursivas e sociais mantenedoras do status quo curso, inconsciente e condições socioeconômicas, segundo Selden,
e a possibilidade de subvertê-las, facultando a intervenção não ape- Widdowson e Brooker12. Em relação aos aspectos biológicos, a fisio-
nas no universo acadêmico como também na sociedade em geral. logia feminina é vista como um atributo positivo e não mais como
A diferença, enquanto perspectiva epistemológica, representa uma responsável por sua inferioridade como historicamente ocorrera. A
das bases da teoria crítica feminista. experiência da mulher, por sua vez, é entendida como origem de
Na literatura, o feminismo, como elemento integrante dos valores positivos tanto em sua vida como na arte. O discurso tem
Estudos Culturais de Gênero, focaliza, precipuamente, a discussão sido compreendido como modalidade de opressão, uma vez que a
de questões relacionadas a: opressão patriarcal, construção da iden- linguagem é controlada pelo homem. Enquanto o inconsciente é
tidade, representação da mulher na literatura, escrita feminina, ex- focalizado nas teorias psicanalíticas de Lacan e Kristeva, mudanças
periência de leitura, entre outras. Schmidt refere-se a gênero como sociais e econômicas são estudadas pelo feminismo marxista. Os
um sistema “social, cultural, psicológico e literário construído a par- temas relacionados à segunda onda compreendem a discussão do
tir de ideias, comportamentos, valores e atitudes associados ao sexo, patriarcalismo, os problemas relacionados às organizações de mu-
através do qual se inscreve o homem na categoria do masculino e lheres e a diferença como ponto central da liberação feminina.
a mulher na do feminino”11. O aspecto sexual configura masculino A existência de uma terceira onda feminista é considerada com
e feminino a partir de características biológicas, portanto, o sexo restrições, uma vez que a agenda da segunda não foi cumprida ple-
é dado naturalmente, ao contrário do gênero que constitui uma namente. Esse novo período inclui discussões sobre pós-colonialis-
construção relacionada ao meio no qual o sujeito está inserido, com mo, teoria queer, sexualidade, entre outros, além de privilegiar seg-
implicações no aspecto psicológico e social do indivíduo. mentos ainda em processo de reconhecimento pela segunda onda,
A história do feminismo vincula-se a seu projeto político e tem tais como, migrantes, diaspóricos, não pertencentes à academia13.
sido apresentada em “ondas” que a situam temporalmente. A primeira
abarca os movimentos pelos direitos civis e direito ao voto, preconi- Feminismo e crítica
zando reformas de caráter social, político e econômico. A crítica lite-
O que vem a ser a escrita feminina? Numa tentativa de resposta,
rária dessa onda está mais preocupada em veicular as reivindicações
Virginia Woolf desconsidera, por óbvia, a diferença de experiências
da época do que em organizar-se como um discurso teórico. Virginia
que redundaria em especificidades temáticas. “[...] a diferença es-
Woolf e Simone de Beauvoir estão incluídas nessa etapa.
sencial não é que os homens descrevam batalhas e as mulheres o
A segunda onda corresponde aos movimentos de liberação dos
nascimento dos filhos, e sim que cada sexo descreve a si mesmo”14.
anos 60 (séc. XX). Muito embora os postulados do primeiro período
continuem em pauta, a questão da sexualidade é focalizada como 12 (SELDEN; WIDDOWSON; BROOKS 2005)
13 (BONNICI 2005)
11 (BONNICI 2007:87) 14 (WOOLF 2012:30)
418 Cecil Jeanine Albert Zinani Capítulo 11 . Feminismo e literatura 419

Cada sexo ocupa uma posição diferenciada na sociedade, o que francesa. O primeiro grupo inicia com Kate Millet e Mary Ellmann,
resulta em particularidades na constituição psicológica, como con- concluindo com reflexões teóricas de Kolodny, Showalter e Jehlen.
sequência, a visão que homens e mulheres possuem sobre determi- A obra de Kate Millet, Sex politics, publicada em 1970, portanto,
nados fatos não é igual. Relatos de experiências, do ponto de vista após a obra Thinking about women (1968), de Mary Ellmann, é
masculino, podem ser desagradáveis, se lidos por mulheres, ou, de considerada a precursora dos trabalhos posteriores de crítica femi-
outra parte, muito satisfatórios quando lidos por homens. Nesse nista anglo-americana. Moi (1989) considera que o sucesso de Sex
sentido, Jonathan Culler (1997) defende a relevância da leitura fe- politics deve-se à habilidade com que Millet promove a ligação entre
minina como uma experiência original relacionada à construção da duas expressões de crítica, a institucional e a não institucional. A
identidade da mulher. modalidade crítica proposta opõe-se ao New criticism, movimento
Ao observar histórias da literatura, percebe-se a quase ausência muito representativo na época. Em verdade, a proposta de leitura de
de nomes femininos até meados do século XX. No entanto, há muitas Millet, bastante inovadora, questiona a perspectiva do autor, privi-
autoras, cujas obras foram publicadas e circularam entre os leitores legiando o direito do leitor de apresentar seu ponto de vista. Assim,
de séculos anteriores. Esses nomes, entretanto, foram esquecidos, desconstrói a hierarquia que confere ao autor o poder e a autoridade
não figurando no elenco que acabou por constituir o cânone. Essa do discurso e à leitora, uma imagem de passividade, uma vez que
invisibilidade, como é denominada por Rita Schmidt15, leva a autora recebe a palavra doada pelo autor16. Um problema constatado nessa
a questionar “onde estavam as mulheres nos textos, nos programas obra é a dívida não referendada para com os postulados de Simone
de ensino de literatura, nas histórias literárias...”. Embora movimen- de Beauvoir que inspiraram a obra. Embora sem a repercussão do
tos de resgate de escritoras de séculos anteriores estejam em curso, a ensaio de Millet, Thinking about women, de Ellmann, está direcio-
posição das escritoras não tem se modificado substantivamente em nado para um público não acadêmico, não se preocupando com
relação à história da literatura. questões tanto políticas quanto históricas referentes ao patriarcalis-
As teorias críticas feministas estão ancoradas em abordagens mo, quando não se referem à análise literária. As obras de Millet e
pós-estruturalista, pós-colonialista e pós-modernista, nos aspectos Ellmann constituem os fundamentos da crítica denominada Images
que discutem o descentramento da autoridade e o questionamento of Women’ Criticism que busca estereótipos femininos não apenas
do conceito de verdade, consequentemente, são ampliados os sig- em obras de autores, como em resenhistas e comentadores de textos
nificados de literário, com a incorporação de novas perspectivas de produzidos por mulheres17. A tese principal defendida no livro de
arte, o que promove a ressignificação da composição do cânone. Ellmann refere-se ao pensamento por analogia sexual; isso significa
Toril Moi, em Sexual/textual politics: feminist literary theory que existe, na sociedade ocidental, a tendência de entender aconte-
(1989), após uma introdução em que discute a obra de Woolf, divide cimentos ou experiências a partir das diferenças sexuais, o que influi
a crítica feminista em dois grandes grupos: a anglo-americana e a
16 (MOI 1989)
15 (SCHMIDT 2002:34) 17 (MOI 1989)
420 Cecil Jeanine Albert Zinani Capítulo 11 . Feminismo e literatura 421

decisivamente na visão do mundo e na realização das atividades, maiores contribuições da autora é a redescoberta de escritoras que
inclusive, intelectuais. Muito embora pouco preocupada com o am- haviam caído em ostracismo.
biente acadêmico, Ellmann realizou uma modalidade interessante A terceira obra significativa é The madwoman in the attic,
de crítica feminista. de Sandra M. Gilbert e Susan Gubar, as quais estudam escritoras
Uma outra tendência de crítica feminista anglo-americana, relevantes do século XIX, tais como Jane Austen, George Eliot,
preocupada com as mulheres que escrevem, ocorre por volta da me- Mary Shelley, Charlotte Brontë, Emily Dickinson, entre outras. As
tade da década de 70 do século XX. Os trabalhos mais significativos autoras discutem não apenas a criatividade, mas também a natu-
dessa época foram Literary women, de Ellen Moers, publicado em reza da tradição literária feminina do século XIX. Considerando
1976; A literature of their own, de Elaine Showalter, em 1977; e The que a criação literária é atributo masculino, conforme a ideologia
madwoman in the attic, de Sandra Gilbert e Susan Gubar, em 1979, patriarcal, as imagens de mulher que aparecem na literatura são
as quais se tornaram obras clássicas da crítica feminista18. produto de fantasias masculinas, o que inviabiliza a criação de
A obra de Ellen Moers, Literary women, foi a primeira tentativa imagens de mulher fora dos padrões impostos. As autoras reputam
de mostrar a história da escrita das mulheres como uma poderosa que a mulher ideal, associada a uma imagem de doçura, beleza,
força que segue ao longo da corrente da tradição masculina, além de passividade, na realidade, não tem história, portanto, não tem vida.
descrever um território até então quase desconhecido. No entanto, No entanto, por trás do “anjo”, existe o “monstro”, o ser que deses-
ao enfatizar os “grandes autores”, a autora legitima o cânone, o que tabiliza o processo de harmonia do universo masculino, recusando
inviabiliza a inclusão de mulheres. De qualquer maneira, o trabalho o papel que lhe foi atribuído. Essa figura traduz o terror ancestral
de Moers é pioneiro, e assim deve ser lido, como uma etapa daquilo da feminilidade, encontrado em muitos mitos antigos como o de
que fundamenta a história literária feminina posterior19. Lilith. Gilbert e Gubar afirmam que a mulher-monstro tem uma
Showalter, em A literature of their own, numa clara alusão à história e pode contá-la ou não, de acordo com sua escolha, além
obra de Virginia Woolf, procura mapear a tradição literária femini- disso, dispõe de uma consciência não transparente ao olhar mas-
na, desde o século XIX, abarcando Jane Austen, as Brontë, George culino. Dentro dessa perspectiva, a leitura de uma obra feminina
Eliot e Virginia Woolf. Aponta três fases do desenvolvimento da do século XIX precisa levar em conta as estratégias que as autoras
escrita feminina que denomina de fase feminina, fase feminista utilizaram para subverter os parâmetros interpretativos patriarcais
e fase fêmea (female phase). Essa discussão é retomada no ensaio então vigentes, ou seja, essa leitura implica uma dupla tarefa de
“Feminist criticism in the wilderness”, de 1982. A história da es- decodificação, a fim de pôr a descoberto o conteúdo de diferentes
crita feminina inicia em 1840, com a utilização pelas escritoras de camadas, uma vez que as mulheres precisavam escrever de uma
pseudônimos masculinos e permanece até os dias atuais. Uma das forma dupla, na camada aparente, era seguida a tradição, enquan-
to, na parte subjacente, o verdadeiro significado da história era
18 (MOI 1989)
19 (MOI 1989)
construído. Nesse sentido, Gilbert e Gubar (2000) asseveram que a
422 Cecil Jeanine Albert Zinani Capítulo 11 . Feminismo e literatura 423

escrita feminina lembra o palimpsesto, em que duas modalidades ideologia direciona não apenas a escrita e a modalidade de leitura,
de escrita se superpõem. mas também a maneira como o cânone é estabelecido. Finalmente,
A primeira obra do feminismo francês é a já referida O segundo o aspecto mais relevante deve consistir na qualidade literária do
sexo, de Simone de Beauvoir, publicada em 1949. A autora escreveu texto, independentemente do sexo do autor. “Texts have no fixed
esse livro sob a inspiração da filosofia existencialista, demonstrando meanings: interpretations depend on the situation and ideology
como, ao longo do processo histórico, a mulher foi transformada of the reader”20. Ainda considerando a perspectiva marxista, para
em mero objeto, tendo sua subjetividade negada, o que apresentou proceder às análises críticas, foram utilizados os teóricos franceses
reflexos na vida social. Essa visão patriarcal orientou, inclusive, a Louis Althusser e Pierre Macherey, nas abordagens sexista e classis-
representação que as mulheres tinham delas próprias, sedimentan- ta. A crítica literária de Macherey, de certa maneira, aproxima-se
do um comportamento de acordo com princípios androcêntricos. de postulados da Estética da Recepção. Para o autor, a obra não é
Beauvoir organiza sua obra negando qualquer espécie de essencia- uma mensagem de seu criador — suas intenções constituem apenas
lismo que predetermine comportamentos e atitudes, atribuindo-os um dos elementos —, mas um conjunto de aspectos referidos, de
à natureza. Na época, a autora não demonstrou qualquer interesse lacunas, de contradições nos quais é possível desvelar pressupostos
pelo feminismo, uma vez que considerava o movimento radical. teóricos, ideológicos, econômicos, sociais que se interrelacionam
Posteriormente, alinhou-se ao marxismo, acreditando que, somente na materialização do texto, vinculando-o a um contexto histórico.
por meio da luta de classes, a opressão feminina seria devidamente Essa modalidade de crítica estuda a formação histórica da categoria
equacionada. A aproximação de Beauvoir com o socialismo não gênero e analisa o papel da cultura na representação dessa categoria.
foi bem vista pelas estudiosas francesas, porém teve uma aceitação Na crítica norte-americana, o marxismo é apenas mais um tema
considerável na Inglaterra. No entanto, a produção teórica feminista discutido por alguns grupos.
inglesa direcionou-se mais para o cinema e para os meios de comu- Mais adiante, as mulheres começaram a formar seus próprios
nicação social e menos para a crítica literária. grupos, cujas teóricas fundamentaram suas teses na psicanálise, na
Uma nova modalidade de pensamento feminista francês estru- linguística e na semiótica. Selden, Widdowson e Brooker (2005),
turou-se a partir de 1968, ano em que ocorreram profundas modi- historiando a teoria feminista francesa, apontam que as teóricas
ficações tanto no âmbito acadêmico quanto no social. Os primeiros apresentavam uma clara preferência pela psicanálise lacaniana,
grupos que se organizaram seguiram a inspiração marxista-maio- como uma possibilidade de emancipação feminina, contrapondo-se
ísta. No contexto literário marxista, destacam-se Cora Kaplan, que às feministas da corrente anglo-americana que criticavam Freud,
critica a obra de Millett, e Michèle Barrett, que focaliza sua análise contestando suas assertivas sobre a definição negativa da mulher,
na representação de gênero. Barrett considera que as condições atribuída ao complexo de castração, reflexo da inveja do pênis. A or-
materiais de homens e mulheres, no que tange à produção literária, ganização teórica do feminismo crítico francês teve pouca influência
são diferentes, o que influencia a forma de escrita. De outra parte, a 20 (SELDEN; WIDDOWSON; BROOKER 2005:125)
424 Cecil Jeanine Albert Zinani Capítulo 11 . Feminismo e literatura 425

externa devido a seu caráter intelectual, uma vez que foi construí- esse significante — o falo — como Lei do Pai. A criança, ao superar
da com base na filosofia alemã (Marx, Nietzsche, Heidegger), em o imaginário, por meio do estágio do espelho, ingressa na ordem
Derrida e em Lacan21. simbólica da linguagem que se organiza por meio de relações de
Os trabalhos de Jacques Lacan foram muito produtivos para similaridade e diferença. “Only by accepting the exclusions (if this,
a construção dos pressupostos da teoria feminista francesa, a qual then not that) imposed by the Law of the Father can the child enter
se apropriou de dois conceitos-chave da teoria lacaniana: a Ordem the gendered space assigned to it by the linguistic order”26. Com isso,
Simbólica e o Imaginário. Por Imaginário, entende-se o período ocorre o reconhecimento de que o papel desempenhado por esse Pai
pré-edípico, em que a criança não percebe sua individualidade, apresenta cunho metafórico. A abordagem lacaniana destaca-se por
sentindo-se parte da mãe . A crise edípica assinala o ingresso na
22
superar o determinismo biológico e aproximar a psicanálise freu-
Ordem Simbólica23, quando o pai destrói a unidade mãe-filho, diana ao sistema social.
marcando uma ausência. A entrada na Ordem Simbólica significa a Relevante para o feminismo francês, Derrida, na teoria des-
aceitação da Lei do Pai, consequentemente, o falo torna-se símbolo construcionista, criou o neologismo différance, para indicar mu-
de uma carência . Ao recuperar o conceito ancestral, relacionado
24
danças sutis que ocorrem no signo, cuja natureza dividida implica
aos ritos da fertilidade, como signo de poder, o falo é tratado como alguma modalidade de ausência. O desconstrucionismo propõe a
um conceito simbólico e não como órgão físico. A psicanálise la- subversão do sistema hierárquico binário da filosofia ocidental no
caniana resgata a importância da linguagem, ancorada nos estudos qual um termo é o dominante enquanto outro é o dominado. A
de Saussure, associando a organização do inconsciente com a lin- crítica à lógica binária apresenta, como consequência, que a cons-
guagem, que se estrutura através de signos (significações estáveis) trução de significados se produz por meio da livre combinação de
e significantes25. Significados (signos) e significantes são múltiplos, significantes. Isso quer dizer que um determinado significado se
não apresentando, obrigatoriamente, uma correspondência direta, materializa mediante o processo de aludir a todos os significantes
uma vez que muitos significados são reprimidos pelo inconsciente. ausentes, assim, a aquisição do sentido acontece na medida em que
Dessa maneira, o conceito de mulher, como um significante, não um elemento delega seu significado a outros elementos da lingua-
estabelece, necessariamente, correspondência com seu corpo físico. gem27. Na teoria feminista, a desconstrução indica que o pluralismo
Lacan associa o falocentrismo à estrutura do signo, denominando e a diferença suplantam o autoritarismo e a subserviência que consti-
21 (MOI 1989)
tuem o regime patriarcal. Entre as críticas feministas do movimento
22 “O Imaginário deve ser entendido [...] como um efeito de desconhecimento da francês, destacam-se Hélène Cixous, Julia Kristeva e Luce Irigaray.
eficácia simbólica, da operação de desejo do Outro e da estruturação edípica
(castração)” (VALLEJO; MAGALHÃES 1981:60) Para Moi (1989), essas teóricas estão muito envolvidas com questões
23 A ordem simbólica acontece em conjunção da ordem do imaginário com a ordem
concernentes à linguagem e à escrita femininas. Inaugurando uma
do real, sendo que o real somente se organiza através da estrutura simbólica
(VALLEJO; MAGALHÃES 1981:101)
24 (MOI 1989) 26 (SELDEN; WIDDOWSON; BROOKER 2005:131)
25 (EAGLETON 1983) 27 (MOI 1989)
426 Cecil Jeanine Albert Zinani Capítulo 11 . Feminismo e literatura 427

fase posterior ao feminismo existencialista de Simone de Beauvoir da corrente lacaniana. Para Irigaray, a mulher se relaciona com as
que postulava a igualdade, as teóricas do final dos anos 60 e anos estruturas da linguagem de forma passiva e imitativa, parodiando o
70 (século XX) ressaltam a questão da diferença, pois a igualdade discurso patriarcal, como estratégia de subversão desse discurso29.
condicionava as mulheres a procederem como homens. Spéculum de l’autre femme (publicada em 1985) é dividida em três
Hélène Cixous enfatizou a questão da écriture féminine, publi- partes: na primeira, apresenta uma crítica de Freud à feminilidade,
cando uma série de ensaios entre 1975 e 1977, nos quais discute quando trata do desenvolvimento psicossexual da mulher, por sua
relações entre mulher, feminismo e escrita. Um de seus textos mais subserviência à tradição filosófica ocidental; na segunda parte, apre-
importantes é Le Rire de la Méduse (publicado em 1975). Utilizando senta leituras de filosofia ocidental, abarcando de Platão a Hegel,
a teoria desconstrutivista de Derrida, Cixous procura desfazer o além de seus próprios pressupostos teóricos; na terceira, apresenta
sistema de oposições binárias (razão/emoção; civilização/barbárie; uma leitura do mito da Caverna, de Platão, à luz dos postulados
pai/mãe) distintivo da filosofia ocidental e do pensamento patriar- da segunda parte. Embora Spéculum de l’autre femme tenha sofrido
cal, o qual se caracteriza pela assimetria. Na oposição macho/fêmea, muitas críticas, especialmente, no que tange à linguagem da mulher,
a posição inferior cabe ao segundo membro, lugar da mulher na Moi considera essa obra um exemplo significativo de crítica ao dis-
sociedade. Partindo do conceito de différance (Derrida), a autora curso patriarcal, constituindo-se em inspiração para novas leituras
procura recuperar o lugar da mulher, valorizando o que considera de textos políticos e filosóficos.
écriture féminine, qual seja, uma modalidade de escrita libertadora, Dedicada aos estudos da linguagem, Julia Kristeva assinala
que trabalha com a diferença, opondo-se à lógica falogocêntrica e que a linguística contemporânea apresenta implicações políticas,
valorizando o final aberto da escrita28. Essa modalidade de texto linguísticas e éticas, relacionadas à linguagem. Considerando os
preconizada pela autora refere-se mais a uma forma de escrita do fundamentos filosóficos da linguística autoritários e opressivos,
que ao sexo do autor. Considerando a escrita praticada pelas mulhe- procura subverter esse posicionamento, sugerindo a substituição
res como um ato libidinal, Cixous inaugura uma nova modalidade do conceito de langue, de Saussure, como objeto de estudo da
de crítica em que vincula sexualidade e textualidade, utilizando-a linguística, pelo de sujeito falante, fundamentado no pensamento
para analisar não apenas textos escritos por mulheres, mas também de Marx, Freud e Nietzsche, o que transformaria a concepção de
por homens. linguagem de estrutura homogênea em um processo heterogêneo.
Também relevante, na teoria feminista francesa, é Luce Irigaray, Muito embora todos empreguem a mesma linguagem, os interesses
cuja tese de doutorado (Spéculum de l’autre femme, 1974) foi moti- convergentes no signo são distintos, dessa maneira, o significado
vo de sua expulsão da École freudienne, de Vincennes, o que de- do signo se amplia, tornando-o polissêmico. Essa produtividade
monstra o poder patriarcal vigente no âmbito acadêmico. Sua obra do signo justifica o discurso feminista30. Para organizar sua teoria,
motivou debates muito acirrados, especialmente, com as seguidoras
29 (BONNICI 2007)
28 (MOI 1989) 30 (MOI 1989)
428 Cecil Jeanine Albert Zinani Capítulo 11 . Feminismo e literatura 429

Kristeva recorre ao trabalho de Mikhail Bakhtin e dos Formalistas Matthew Arnold. Como essa atividade era exercida precipuamente
para expor o conceito de intertextualidade31, o qual indica a trans- por críticos, Showalter constata a existência de uma hermenêutica
ferência de um sistema de signos para outro, propondo novas masculina, que dominava essa modalidade de avaliação. As mulheres
possibilidades de leitura, ampliando o espectro interpretativo da que praticavam a crítica deveriam utilizar os pressupostos estabele-
literatura lida/produzida por mulheres. Kristeva propôs uma teoria cidos, portanto, vagavam pelo território selvagem. Muito embora
de aquisição da linguagem, na qual procura definir o processo de as tendências de crítica feminista sejam diversificadas, a autora es-
significação a partir do discurso lacaniano, associando ordem sim- tabelece dois modelos que apresentam significativa produtividade:
bólica à semiótica e ordem do imaginário ao simbólico. A semiótica, a primeira, a crítica feminista, centrada na leitora, refere-se à in-
ligada a processos pré-edipianos, cujos impulsos terminam no chora terpretação de representações de mulheres na literatura em geral, a
(termo grego que significa espaço fechado), é constituída por as- partir de uma leitura feminista, possibilitando novas alternativas de
pectos recalcados da linguagem, o que a torna subversiva, uma vez leitura. Essa modalidade está concentrada em modelos já existentes,
que o simbólico nunca domina completamente o semiótico. Outro o que, de certa forma, atrela essa crítica ao modelo androcêntrico.
tema relevante da teoria de Kristeva é a definição de feminilidade O resgate das vozes excluídas bem como a reorganização do cânone
como marginalidade. Negando a escritura feminina, defendida por são contribuições relevantes tanto para a ressignificação da história
Cixous e outras feministas, Kristeva utiliza a recusa de definições e quanto para a materialização do projeto de emancipação intelectual
de representações do sujeito feminino como modalidade de subver- e social da mulher. A segunda, centrada na mulher como escritora,
ter o falocentrismo, o poder do patriarcado. Esse posicionamento é denominada por Showalter de ginocrítica.
revolucionário permite à mulher um alinhamento com movimentos Para a autora, ginocrítica consiste em “o estudo da mulher
revolucionários. como escritora, e seus tópicos são a história, os estilos, os temas, os
Entre as reflexões teóricas produzidas contemporaneamente, gêneros e as estruturas dos escritos de mulheres”32. A grande dis-
é relevante considerar o ensaio “Feminist criticism in wilderness”, cussão da ginocrítica é verificar no que consiste a diferença entre a
de Elaine Showalter, publicado inicialmente pelo periódico Critical produção literária escrita por homens e por mulheres, respondendo
Inquiry, n. 8, em 1981, e, posteriormente, na obra de Mary Jacobus, aos questionamentos feitos por autoras e leitoras. Showalter aponta
Reading woman: essays in feminist criticism, de 1986. Foi publicado, quatro modelos que procuram estabelecer a diferença dos textos
em tradução — “A crítica feminista no território selvagem” —, na produzidos por mulheres, os quais sustentam as teorias críticas fe-
obra organizada por Heloisa Buarque de Hollanda, Tendências e im- ministas ginocêntricas, são eles: biológico, linguístico, psicanalítico
passes: o feminismo como crítica da cultura, de 1994. Nesse texto, a e cultural.
autora discorre sobre crítica literária, considerando-a um território O modelo biológico, como diferença na escrita feminina,
selvagem, reproduzindo um conceito de outros autores, entre eles, está centrado no corpo, assim “anatomia é textualidade”33. Essa

31 “Todo o texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e 32 (SHOWALTER 1994:29)
transformação de um outro texto.” (KRISTEVA 1974:64) 33 (SHOWALTER 1994:32)
430 Cecil Jeanine Albert Zinani Capítulo 11 . Feminismo e literatura 431

abordagem pode ocasionar um retorno ao essencialismo opressor feminino. Embora seja um modelo valorizado pela crítica feminista
que atribuía a inferioridade feminina à sua constituição física. Muitas francesa, apresenta dificuldades para relacionar a escrita feminina
críticas aceitam esse modelo, considerando a criação literária uma com aspectos teóricos e culturais.
paternidade metafórica. Essa modalidade de crítica atribui ao corpo Finalmente, o modelo cultural é, segundo Showalter, o mais
a capacidade imaginativa e caracteriza-se pelo tom confessional que, adequado para expressar a diferença, pois leva em consideração
quando bem realizada, apresenta grande qualidade. Muito embora fatores como raça, classe, história e nacionalidade, os quais são tão
a questão do corpo seja primordial na determinação de um espaço relevantes quanto gênero para a constituição de uma crítica literária
social e na constituição da identidade, a escrita envolve estruturas gendrada. De acordo com a autora, “a cultura das mulheres forma
linguísticas e literárias que formam outro tipo de corpo: o corpo da uma experiência coletiva dentro do todo cultural, uma experiência
escrita que deve ser afirmativo. que liga as escritoras umas às outras no tempo e no espaço”34. A re-
O modelo linguístico discute se há diferença na utilização da alização dessa crítica pode ser materializada por meio de estratégias
língua realizada por homens e mulheres. Esse aspecto tem sido de leitura tais como a proposta por Gilbert e Gubar, desdobrando a
objeto de teorização da sociolinguística e prioriza a necessidade de duplicidade do texto, colocando a descoberto ambas as camadas, a
examinar conceitos que promovem preconceitos e discriminação de manifesta e a silenciada; ou a análise contextual de Clifford Geertz
determinados grupos sociais, entre eles, os contituídos pelo gênero. que separa as estruturas significativas, avaliando sua relevância.
No imaginário masculino, a linguagem das mulheres provém de Outro texto muito significativo para a crítica contemporânea é
mitos e lendas ancestrais, ligada a feitiçarias e encantamentos, o que “A tecnologia do gênero”, publicado por Teresa de Lauretis, original-
ocasionou movimentos repressivos e caça às bruxas. Sonegado du- mente, em 1987. A autora discute, inicialmente, a questão da dife-
rante muito tempo, o acesso à língua deve ser privilegiado, de modo rença sexual embutida no conceito de gênero, considerando-a uma
que possam ser realizadas escolhas lexicais e sintáticas adequadas limitação, mesmo quando não esteja atrelada à biologia e refira-se
para expressar uma visão do mundo revolucionária, possibilitando aos efeitos discursivos, uma vez que se trata de uma diferença em
a materialização de uma crítica literária qualificada, independente relação ao homem. A autora propõe uma definição de gênero que
dos padrões masculinos. desconstrói e ultrapassa a diferença sexual, associando-a aos estu-
O modelo psicanalítico associa os modelos biológico e linguís- dos de Foucault, assim, gênero “é produto de diferentes tecnologias
tico, ao valorizar as questões do corpo e da linguagem. Inicia com sociais [...] e de discursos, epistemologias e práticas críticas institu-
Freud e seu conceito de inveja do pênis e complexo de castração, cionalizadas, bem como de práticas da vida cotidiana”35. Para expor
para explicar a relação da mulher com a escrita e a cultura, seguindo a relação entre gênero e tecnologia, a autora apresenta quatro teses:
com Lacan que amplia a questão de aquisição da linguagem, na fase a) o gênero é uma representação, essa assertiva remete à relação de
edípica, com o ingresso na ordem simbólica, com aceitação do falo
34 (SHOWALTER 1994:44)
como significante privilegiado e a consequente desvalorização do 35 (LAURETIS 1994:208)
432 Cecil Jeanine Albert Zinani Capítulo 11 . Feminismo e literatura 433

gênero com classe, na realidade, pertencer a um gênero significa resgate de autoras e obras que haviam sido relegadas ao ostracismo
pertencer a uma classe. Dessa maneira, evidencia-se a diferença en- ocasionaram um alargamento do cânone e uma revisão da história
tre gênero e sexo, uma vez que sexo implica uma condição natural, da literatura. Tradicionalmente, o cânone é organizado a partir de
enquanto gênero refere-se a uma relação social. O sistema gênero um elenco de autores e obras consagrados institucionalmente, de
conecta sexo com elementos culturais existentes na sociedade; b) acordo com pressupostos ideológicos que atendem a interesses es-
a representação do gênero é sua construção. Para desenvolver essa pecíficos, relacionados à época, à cultura e à visão de mundo; nesse
tese, Lauretis focaliza a ideologia a partir de estudos de Althusser e contexto, dificilmente, uma literatura produzida por mulheres ou
outros; c) a construção do gênero está em processo, pois as tecnolo- por algum outro segmento subalterno teria oportunidade de inte-
gias e os discursos como formadores de opinião podem sedimentar grar o panteão literário.
representações de gênero de acordo com a ideologia patriarcal ou Ao considerar essa modalidade de história da literatura um fato
não; d) a construção do gênero implica sua desconstrução. Para retrógrado e ultrapassado, Ria Lemaire afirma ser essa uma forma
tanto, propõe uma construção de gênero a partir das margens dos de legitimar o poder masculino “por meio do recuo às origens e do
discursos do poder e nos escaninhos das instituições, afirmando-se mapeamento de uma evolução, factual ou hipotética, até o presen-
em nível da “subjetividade e da autorrepresentação”36, nas práticas te”37. A história da literatura, nos séculos XVIII e XIX, consistia em
discursivas, sociais e artísticas. uma espécie de narrativa de caráter totalizante, vinculada a um de-
Abordagens, como as apresentadas neste texto, possibilitam a terminado espaço e associada aos mecanismos de poder. Os grandes
leitura e a análise de obras por meio de um viés particular, dife- mestres, personagens dessa história, eram os modelos que constituí-
renciado da cultura androcêntrica. Reconhecendo e valorizando a am o cânone tradicional. Posteriormente, com o questionamento da
experiência da mulher e sua visão do mundo particular, a crítica ciência histórica, no final do século XIX, e seu redimensionamento,
feminista é hoje responsável por um acervo de estudos muito sig- através do trabalho desenvolvido pelo grupo dos Annales, o mo-
nificativo que contribui, de forma relevante, tanto para resgatar delo de história da literatura foi sendo discutido e transformado.
autoras esquecidas ao longo da história quanto para refletir sobre Contemporaneamente, com o advento dos estudos culturais e com a
produções contemporâneas. valorização de modalidades de expressão diferenciadas, como a lite-
ratura oral e a popular, o conceito de cânone sofreu uma significativa
Considerações Finais transformação, consequentemente, a história da literatura também.
Para finalizar, é imprescindível tecer algumas considerações so- Ambos, história da literatura e cânone, não podem mais ser enten-
bre a literatura produzida por mulheres e a história da literatura, didos no singular, devendo ser valorizados em sua multiplicidade.
bem como as transformações que se originaram dessa relação. O A constituição de uma história da literatura necessita explicitar
reconhecimento da produção literária feminina como também o os pressupostos que nortearão o trabalho; assim, o estabelecimento
36 (LAURETIS 1994:237) 37 (LEMAIRE 1994:58)
434 Cecil Jeanine Albert Zinani Capítulo 11 . Feminismo e literatura 435

dos conceitos de literatura e literariedade são indispensáveis, bem BONICCI, Thomas. 2007. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências.
Maringá: Eduem.
como as questões de ordenamento espaço-temporal, levando em
BUTLER, Judith. 2003. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.
conta a parcialidade dessa história. Uma história da literatura que
Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
inclua a preocupação com o gênero precisa, também, ter em vista CULLER, Jonathan. 1997. Sobre a desconstrução: teoria e crítica do pós-
as condições de produção e circulação das obras escritas por mu- estruturalismo. Tradução de Patrícia Burrowes. Rio de Janeiro: Rosa dos
lheres. Considerando o apagamento da produção feminina até há Tempos.

alguns anos, cumpre realizar um trabalho de arqueologia, a fim de EAGLETON, Terry. 1983. Teoria da literatura: uma introdução. Tradução de
Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes.
descobrir essas obras e organizar estratégias para analisá-las, como
GILBERT, Sandra M.; GUBAR, Susan. 2000. The madwoman in the attic: the
tem sido realizado por projetos que se dedicam a essa modalidade woman writer and the nineteenth-century literary imagination. 2ª ed. New
de pesquisa, ampliando o corpus de estudo e ensejando a escrita de Haven; London: Yale University Press.
uma história da literatura que contemple um segmento que tem sido GONÇALVES, Andréa Lysli. 2006. História e gênero. Belo Horizonte: Autêntica.

objeto de estudo na atualidade. KRISTEVA, Julia. 1974. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França
Ferraz. São Paulo: Perspectiva.
Portanto o feminismo, em sua relação com a literatura, possi-
LAURETIS, Teresa de. 1994. A tecnologia do gênero. Tradução de Suzana B. Funck.
bilitou a ampliação de seu escopo para uma outra área em que os es- In: HOLLANDA, H. B. de (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como
tudos eram dominados por homens. Desde a escrita da obra de arte crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, p. 206-242.
literária, a teoria, a crítica até a história da literatura, o segmento LEMAIRE, Ria. 1994. Repensando a história literária. Tradução de Heloisa
masculino sempre dominou a produção, a circulação e o consumo Buarque de Hollanda. In: HOLLANDA, H. B. de (Org.). Tendências e impasses:
o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, p. 58-71.
desses bens culturais. Quando as mulheres tiveram acesso à educa-
MOI, Toril. 1989. Sexual/textual politics: feminist literary theory. London; New
ção, graças ao movimento feminista, essa equação foi modificada. York: Routledge.
Atualmente, há estudos especializados para abordar o fenômeno PERROT, Michele. 1998. Mulheres públicas. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São
literário produzido por mulheres, avalizando o potencial político e Paulo: UNESP.

emancipatório dessa produção. ______. 2008. Minha história das mulheres. Tradução de Ângela M. S. Corrêa. São
Paulo: Contexto.
______. 2005. As mulheres ou os silêncios da história. Tradução de Viviane Ribeiro.
Referências Bauru: Edusc.
SELDEN, Raman; WIDDOWSON, Peter; BROOKER, Peter. 2005. A reader’s guide
BADINTER, Elisabeth. 1985. Um amor conquistado: o mito do amor materno. 5ª ed. to contemporary literary theory. 5ª ed. London, UK: Person Longman.
Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. SCHMIDT, Rita.T. 2002. Escrevendo o gênero, reescrevendo a nação: da teoria,
BEAUVOIR, Simone. 1980. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio da resistência, da brasilidade. In: DUARTE, Constância Lima; DUARTE,
Milliet. 4ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. V. 1. Eduardo de Assis; BEZERRA, Kátia da Costa (Org.). Gênero e representação:
teoria, história e crítica. Belo Horizonte: Pós-Graduação em Letras: estudos
literários, UFMG, p. 32-44. Coleção Mulher e Literatura v.1.
436 Cecil Jeanine Albert Zinani

SCHMIDT, Rita.T. 1994. Da ginolatria à genologia: sobre a função teórica e a


prática feminista. In: FUNCK, Suzana Bornéo (Org.). Trocando idéias sobre a
mulher e a literatura. Florianópolis: Pós-Graduação em Inglês, Universidade
Federal de Santa Catarina, p. 23-32. Capítulo 12
SHOWALTER, Elaine. 1982. Feminist criticism in the wilderness. In: ABEL,
Elisabeth (ed.) Writing and sexual difference. Chicago: Chicago University
Formalismo russo:
Press, p. 9-35. uma revisão e uma atualização
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Amaral. In: HOLLANDA, H. B. de (Org.). Tendências e impasses: o feminismo Universidade de São Paulo
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WOOLF, Virginia. 1985. Um teto todo seu. 2.ed. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira.
______. 2012. Profissões para as mulheres e outros artigos feministas. Tradução de
Denise Bottmann. Porto Alegre: L&PM.
Em 1965, quando saiu em francês a reunião de textos dos forma-
listas russos de Tzvetan Todorov, Théorie de la littérature: textes des
formalistes russes (a edição brasileira da Globo, um pouco modi-
ficada, Teoria da literatura: formalistas russos só sairia em 1970),
começou propriamente no Brasil a discussão sobre os aportes do
Formalismo russo. A primeira disciplina ministrada sobre esse
assunto foi no Curso de Pós-Graduação em Teoria Literária e
Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, disciplina essa ministrada
pelo Professor Antonio Candido de Mello e Souza, que propunha
justamente, como estudo principal, a análise e a discussão daque-
les textos. Recordo, em particular, entre outros, o seminário sobre
“Como foi feito O capote de Gógol” de Boris Eikhenbaum, onde
começamos a nos surpreender com os argutos “achados” dos for-
malistas russos: toda aquela declamação patética sobre as desgraças
do pobre Akáki, tradicionalmente apenas comovente, que na nova
interpretação era o “gesto fônico” que se interpunha à “narração
cômica”! E a semântica fônica do conto era estudada em termos
de skaz, discurso direto, discurso indireto, diálogo etc. em moldes
bakhtinianos avant la lettre! Isso, em se tratando de prosa, foi ape-
nas o começo. Depois viria a “Temática” de Tomachévski, com a
fábula e o siujet, os motivos livres e suas funções, a motivação dos
440 Aurora Fornoni Bernardini Capítulo 12 . Formalismo russo 441

procedimentos, o estranhamento ou singularização focalizados por acabaram se generalizando e se perpetuando. Lévi-Strauss defendia
Viktor Chklóvski em “A arte como procedimento” e aprofunda- a tese de que a noção de forma e a de estrutura não são equiva-
dos depois em Uma teoria da prosa, a “Evolução literária” de Iúri lentes: “A forma se define por oposição a uma matéria que lhe é
Tynianov etc., etc. estranha, enquanto que a estrutura não tem conteúdo distinto; ela é
o próprio conteúdo apreendido numa organização lógica concebida
1. Vladimir Propp e a polêmica como propriedade do real”2. Com isso, e dizendo que Propp havia
começado seu estudo pela análise morfológica que — insatisfeito
As funções de Propp nos contos maravilhosos vinham prenuncia-
com os resultados — teria abandonado mais tarde pela pesquisa his-
das em seu ensaio sobre as “Transformações dos contos maravilho-
tórica e comparativa, Lévi-Strauss queria chegar a demonstrar que
sos”. Seu livro Morfologia do conto maravilhoso, com a resposta a
o modelo “formalista” de Propp e o estruturalista eram diferentes
Lévi-Strauss, seria um capítulo à parte, um curso à parte, minis-
e visavam resultados diferentes. Propp responde que a análise em-
trado no âmbito do Curso de Russo da USP, pelo professor Boris
preendida em sua Morfologia era apenas o começo de uma pesquisa
Schnaiderman.
mais ampla que envolveria discutir a evolução histórica do gênero
Como o presente ensaio quer ser “uma revisão e uma atu-
“conto maravilhoso” e que a pesquisa histórica seria inviável se não
alização” de alguns aspectos do Formalismo russo, que reproduz,
se procedesse, previamente, a uma definição de seu estudo a partir
em parte, o já exposto por mim no texto “Formalismo russo, uma
do levantamento de seus elementos constituintes3 e que ele, Propp,
revisitação”1, mencionaremos aqui apenas de passagem as gene-
jamais poderia propor uma separação entre forma e conteúdo:
ralidades já agora conhecidas por todos os estudiosos de teoria
literária e focalizaremos alguns pontos que consideramos cruciais,
Como já dissemos, costuma definir-se como formalista o estu-
controversos ou (ainda) pouco esclarecidos. Um exemplo desses
do da forma desligada do conteúdo. Devo reconhecer que não
últimos é a assim chamada “Polêmica Lévi-Strauss/Propp”, cujo teor
compreendo o que isso significa — que de fato não sei como
sintetizamos a seguir.
No tocante à polêmica citada, que, na época, só fora divulga- 2 (PROPP 1984:182)
3 O termo “morfologia” — explica Serguei I. Nekliúdov em “A folclorística Russa
da na tradução italiana do livro de Propp, Morfologia della fiaba, e as Pesquisas Semióticas Estruturais”, publicado em Mitopoéticas — Da Rússia
às Américas (2006:22) — veio a Propp por meio do Goethe das Conversações
(1966) e que, em 1984, saiu também na versão brasileira do livro com Eckermann. O livro de Propp, embora surgido como formalista, na verdade,
Morfologia do conto maravilhoso, na tradução de Iasna P. Sarhan, (da não via o texto como um sistema de procedimentos (priiómy), mas o via sob
o prisma de outras premissas filosóficas. O importante para o autor era a
qual serão extraídos os exemplos que daremos), vale a pena resumir relação histórica com o objeto e não seu exame fora do tempo. Na pesquisa

os aspectos principais, pois é um exemplo — como dissemos — de de Morfologia do conto maravilhoso, a primeira fase cobria um vasto estudo
de fundamentação teórica em que, antes de analisar o objeto, era necessário
como e por que certos equívocos em relação ao Formalismo russo descrevê-lo. Na segunda edição do livro em questão (1960), havia um capítulo
inteiro dedicado à análise da ligação entre o conto maravilhoso e o conto de
magia. Posteriormente, por iniciativa de Jirmúnski, excluiu-se o capítulo do livro
1 (BERNARDINI 2000) e isso, curiosamente, transformou Propp em formalista.
442 Aurora Fornoni Bernardini Capítulo 12 . Formalismo russo 443

entendê-lo, nem como aplicá-lo ao material em estudo. Talvez deles, mas se prestaria melhor como matriz de narrativas míticas.
o compreendesse se soubesse onde procurar a forma na obra de Ora, responde Propp, se Lévi-Strauss entreviu nessa extrapolação
arte e onde o conteúdo. Sobre a forma e o conteúdo em geral, a universalidade do modelo construído e/ou possibilidades futuras
como categorias filosóficas, pode-se discutir o quanto se quiser, de operar analiticamente com ele com base em material mais abran-
mas estas discussões serão estéreis se, desde o início, o objeto da gente, deveria Lévi-Strauss, por coerência, ter reconhecido o mérito
discussão forem as categorias de forma em geral e de conteúdo e o alcance da Morfologia. O projeto de Lévi-Strauss era, já na época
em geral, sem referência ao material concreto que se tem em vista, da divulgação no Ocidente do livro de Propp (final dos anos 50),
dentro de sua infindável multiplicidade. Para a estética popular, o analisar os relatos míticos para desvendar-lhes não a estrutura (o
enredo como tal constitui o conteúdo da obra. [...] Todo interesse modelo narrativo), mas as leis lógicas que, agindo inconsciente-
reside naquilo que aconteceu. Coloquemo-nos, por um momen- mente, configurariam o modelo narrativo. O campo de interesse
to, dentro do ponto de vista popular (que, por sinal, é bastante de Lévi-Strauss estava centrado, conforme se vê, no “pensamento
sábio). Se o enredo pode ser denominado conteúdo, o mesmo mítico”, um substrato lógico que estaria por trás dos arquétipos, que
não acontece em absoluto com a composição. Concluímos então a “morfologia”, lendo os mitos, poderia elaborar. Ora, esse objetivo
que a composição se relaciona com o campo da forma, na obra não era visado pelo folclorista russo, que só queria estudar o gênero
em prosa. Desse ponto de vista, numa só forma podem ser inclu- conto maravilhoso e não a relação mito/conto, embora seu método
ídos vários conteúdos. Só que — conforme tentamos demonstrar pudesse aduzir elementos que, reformulados, poderiam servir de
anteriormente — composição e enredo são inseparáveis. O enre- “chave” de acesso ao pensamento mítico. Conclui Propp:
do não pode subsistir fora da composição e esta, fora do enredo.
Baseados em nosso material, chegamos a reafirmar a conhecida [...] Segundo o professor Lévi-Strauss, meu método é errado, pois
verdade que forma e conteúdo são inseparáveis. 4
o fenômeno da transferência da ação de um personagem a outro
ou a existência de ações idênticas para personagens diferentes,
Para Lévi-Strauss, a “morfologia” só sabe lidar com os dados não pertence exclusivamente ao conto maravilhoso. Esta obser-
invariáveis, uma vez que ela se torna método eficaz ao ignorar o vação está absolutamente correta, mas em lugar de voltar-se con-
conteúdo histórico dos contos analisados. A “morfologia”, em outras tra o método por mim proposto, depõe mais a seu favor. Assim,
palavras, seria um método que se afastaria do concreto, enquanto o nos mitos cosmogônicos, o corvo, a marta e o ente ou a divindade
estruturalismo, por sua recusa em separar forma e conteúdo, pro- antropomórfica podem assumir o papel idêntico de criadores do
punha um retorno ao concreto. Lévi-Strauss ainda diz que Propp mundo. Isto significa que os mitos não só podem como devem
teria escolhido como ponto de partida um material narrativo inade- ser estudados também com os mesmos métodos dos contos
quado, ao restringir-se aos contos maravilhosos russos, pois o mo- maravilhosos. As conclusões com certeza serão diferentes, os
delo proppiano de 31 funções e 7 protagonistas não seria exclusivo sistemas morfológicos resultarão numerosos, mas os métodos

4 (PROPP 1984:221-222) poderão permanecer os mesmos.


444 Aurora Fornoni Bernardini Capítulo 12 . Formalismo russo 445

É bem possível que o método de análise das narrativas segun- segundo Tynianov. Não entraremos aqui no mérito de por que
do as funções dos personagens se revele útil também para os Tynianov não vê a palavra — e consequentemente a imagem — como
gêneros narrativos não só do folclore, mas igualmente da lite- traços distintivos da poesia. Se seus argumentos foram novidade na
ratura. Todavia, os métodos propostos neste volume antes do época, são hoje bastante conhecidos e geralmente reconhecidos
aparecimento do estruturalismo, bem como os métodos dos (sobre a proposta da imagem como traço distintivo da poesia por
estruturalistas, que almejam o estudo objetivo e exato da lite- parte do simbolismo russo, leia-se o livro de Krystyna Pomorska,
ratura, possuem também os seus limites de aplicação. Eles são Formalismo e Futurismo)6. Os fatores construtivos da poesia devem
possíveis e fecundos no caso de uma repetição em ampla escala. ser procurados — diz Tynianov — na diferença especifica entre
É o que ocorre na língua, é o que ocorre no folclore. Mas quando prosa e poesia: no caráter segundo e na dinamização do discurso
a arte se torna campo de ação de um gênero irrepetível, o uso dos da poesia em relação ao da prosa. A palavra já entra no poema
métodos exatos dará resultados positivos somente se o estudo como mediada e dinamizada, ela é tornada difícil, evidenciada. Os
das repetições for acompanhado pelo estudo daquele algo único processos do discurso vêm depois: a perspectiva do verso refrata a
para o qual até agora olhamos como manifestação de um milagre perspectiva do sujeito. Nosso estudo, então, dirige-se a uma palavra
incognoscível. Seja qual for a rubrica sob a qual inscrevamos a que foi escolhida pelo poeta para secundar o verso e para realizar-
Divina Comédia ou as tragédias de Shakespeare, o gênio de Dante -se como material e às vezes como tema (por pertencer ao mes-
e o gênio de Shakespeare não se repetem e sua análise não pode mo tempo a duas séries diferentes é que ela tem caráter segundo).
ser reduzida aos métodos exatos. E se, no início deste artigo, Secundando o verso e tendo-se transformado em material poético,
colocamos em relevo as afinidades entre as leis estudadas pelas ela motiva certos fatores como ritmo, metro e valores eufônicos,
ciências exatas e aquelas das ciências humanas, gostaríamos de e consegue compor-se nas figuras e nos temas do mundo poético
concluir com sua diferença fundamental e específica.5 de um autor. Para acompanhar as mediações da palavra e explicar
seu funcionamento na dinâmica poética, Tynianov dá particular
2. Iúri Tynianov e os indícios de significado realce aos conceitos de indício fundamental de significado de uma
O problema da palavra poética de I. Tynianov (um dos mais im- palavra, indício lexical e indícios secundários de significado, entre
portantes trabalhos sobre a criação poética, onde, entre outros, se os quais, o indício flutuante. Exemplifiquemos cada um deles.
desenvolve o conceito de dominante, já referido por Jakobson como
princípio organizador e deformador, e o ritmo como fator constru- Indício fundamental: tomemos a palavra terra em Terra e Marte
tivo da poesia) merece também um reparo especial. (tellus); Terra negra (húmus); cair por terra (chão); a terra natal
Como demos um exemplo sintético de polêmica com o (pátria). O que faz que, em usos tão diferentes, continuemos a con-
Formalismo russo, daremos agora um exemplo da marcha de uma siderar a palavra terra como única é a presença de uma categoria de
de suas conceituações mais brilhantes: a da linguagem poética, unidade lexical que é seu indício fundamental de significado.

5 (PROPP 1984:223) 6 (POMORSKA 2010)


446 Aurora Fornoni Bernardini Capítulo 12 . Formalismo russo 447

Indício lexical: a lexicalidade de uma palavra é seu pertencer a uma ocorre, muitas vezes, com os nomes próprios ou os trocadilhos.
dada série. Os indícios lexicais mais fortes aparecem em palavras Veja-se, por exemplo, o trocadilho de Andrei Biéli: “человек —
que não têm indícios fundamentais, como nomes próprios, bar- чело века” (“homem — vulto do século”). Mas, citemos Tynianov:
barismos ou palavras desconhecidas ao remetente. O tom lexical,
conferido por eles, funciona como indício secundário permanente. Graças ao trocadilho, dá-se como que uma redistribuição
das partes material e formal e um novo sentido; é claro que a
Indícios secundários: os significados ocasionais que podem ser as- aquisição desse novo sentido confere à palavra “homem” um
sociados à palavra e operam sobre os indícios fundamentais dando determinado matiz: o indício fundamental não é, porém, elimi-
origem a uma série de matizes. Num poema que Marina Tsvetáieva nado, nem o matiz resulta de sua anulação (o trocadilho, que se
chamou “Antigas nuvens do amor”, encontramos os seguintes sustenta pela comparação dos dois planos), pois o matiz se deve
versos: “Sobre os negros contornos do cabo/ Lua — armadura do justamente à estabilidade do indício fundamental. É como se nos
cavaleiro”. No segundo verso, observa-se uma espécie de irradiação deparássemos com uma semântica dupla, em dois planos, cada
dos elementos materiais e formais que constituem o signo “lua” e um dos quais tendo seu próprio indício fundamental (человек
a tendência a se orientarem para a formação de um conceito (se- e чело века), que fazem pressão um sobre o outro. A flutuação
masiologização). Na expressão considerada, a semasiologização dos dois planos semânticos pode ofuscar parcialmente o indício
das partes confere à palavra “lua” certo matiz que não provém da fundamental e evidenciar os indícios de significado flutuante.8
anulação de seu indício fundamental, mas justamente de sua per-
manência. Estamos diante de dois eixos semânticos distintos, por De seu jogo com outros indícios secundários, com matizes
ocasião de cuja flutuação pode ocorrer o obscurecimento do indício léxicos e com os indícios fundamentais, surge, em cada poema, o
fundamental. É o princípio que rege a metáfora. complexo significado da palavra poética. A importância dada ao
som é grande no Formalismo russo. Paralelos foram traçados com
Indícios flutuantes: ao lado desses dois eixos, porém, podem mani-
o Simbolismo russo, escola que o precedeu, e também, pela impor-
festar-se indícios secundários de significado que, por sua instabi-
tância dada à ambiguidade, com o New Criticism anglo-americano.
lidade, são chamados de flutuantes. São frutos da ambiguidade e
Paralelos e comentários, obviamente, há muitos. O que se sugere evi-
podem estar ligados a fenômenos de som, de tom, e contribuem
tar é apegar-se a lugares-comuns, normalmente equivocados, como
para a formação de uma semântica imaginária.
traduzir a expressão samovítoie slovo: “palavra que se tece interior-
Os indícios flutuantes — diz Tynianov — podem intensificar- mente” por “discurso autônomo” ou, então, partir da conceituação
-se graças ao indício fundamental ou substitui-lo e dar lugar a um de zaum, linguagem transmental, apenas aparentemente sem refe-
“significado imaginário” ou a uma “aparência de significado”7. Isso rente (por sinal, imaginada por Khlébnikov, o poeta cubo-futurista
7 (TYNIANOV 1968:105) 8 (TYNIANOV 1968:75)
448 Aurora Fornoni Bernardini Capítulo 12 . Formalismo russo 449

que sempre achou que a língua é a sede do conhecimento e, por- desordens provocadas pela afasia. Os afásicos que têm dificuldade
tanto, extremamente motivada!), e daí chegar à conclusão de que os em escolher entre os sinônimos/variantes do eixo da seleção se
formalistas são a favor da arbitrariedade do signo. veem aprisionados nas cadeias sintagmáticas e têm restringida sua
capacidade de distinguir entre a mensagem em si e uma versão a
3. Roman Jakobson: algumas atualizações e sua relação com ela equivalente, ou em uma “metalinguagem” (ex.: em lugar de “o
Bakhtin e sua escola carro roda depressa ao longo da estrada” dizer “o carro voa”, etc.),
e os afásicos que, ao contrário, se debatem no caos entre palavras
Há vários textos de Jakobson — alguns deles publicados em Linguística
que não conseguem organizar em sintagmas e se veem confinados
e comunicação (Cultrix) e em Linguístia, poética, cinema (Perspectiva),
à dimensão paradigmática. As identificações aproximadas que con-
livro, este último, composto por ocasião da visita do autor a São Paulo
seguem fazer são de natureza metafórica (ex.: em lugar da cor preta,
— que contêm conceituações não apenas básicas, mas revolucionárias
dizem: “aquilo que se usa para os defuntos”). Embora, num primei-
em termos de teoria literária. Entre as problematizações mais impor-
ro tempo, valesse a interpretação de que “o poeta projeta a partir do
tantes destas obras, encontramos a questão das funções da linguagem,
eixo da seleção para o eixo da combinação”, mais tarde, Jakobson
a da equivalência em poesia dos dois eixos, o paradigmático (metafó-
teria complementado a formulação, afirmando que o poeta é quem,
rico) e o da contiguidade (metonímico), conceituação esta que explica,
deliberada e conscientemente, cria desequilíbrios entre as cadeias
ao mesmo tempo, o efeito da “expectativa frustrada” e o do “estranha-
paradigmática e sintagmática, saltando livremente entre os dois pla-
mento” em poesia, ou a questão da determinação da “diferença espe-
nos (as duas condições linguístico-mentais). A ênfase dada ao plano
cífica”, do traço distintivo, do critério qualitativo que permite, no caso
sintagmático seria própria da épica, enquanto da lírica seria próprio
da literatura, estabelecer seus limites frente às outras expressões das
o plano metafórico.
Humanidades. Vamos, aqui, também, fazer uma pausa — dessa vez
Outro reparo. Se em 1920, em seu famoso ensaio Novíssima
para algumas atualizações que se tornaram desejáveis após uma leitura
poesia russa, onde Jakobson, ao estudar a poesia cubo-furista de
diacrônica das obras de Jakobson: alguns de seus conceitos primeiros
Khlébnikov, elenca uma série de procedimentos revolucionários
foram por ele mesmo aperfeiçoados ao longo do tempo. Atualizações
e sugere — testando os conceitos de fonema postulados por ele e
esclarecendo algumas questões referentes à função poética, por exem-
Trubetzkói em Fonologia10 — que, no poeta estudado, a textura
plo, foram propostas na obra Roman Jakobson: Life, Language, Art, por
fônica não lida propriamente com sons, mas com fonemas, ou seja,
Richard Bradford9 e serão apontadas aqui.
com representações acústicas capazes de serem associadas com re-
Para compreender com maior clareza a famosa formulação de
presentações semânticas; ele afirma também que
Jakobson: “A função poética projeta o princípio da equivalência do
eixo da seleção para o eixo da combinação”, convém lembrar que
A poesia, que é simplesmente a enunciação com ênfase na expres-
ela se origina das observações de Jakobson sobre os dois tipos de
são, é regida, por assim dizer, por suas próprias leis imanentes; a
9 (BRADFORD 1995, parte I) 10 (cf. JAKOBSON 1971:475 e 633, v. 1)
450 Aurora Fornoni Bernardini Capítulo 12 . Formalismo russo 451

função comunicativa, essencial tanto para a linguagem prática Esses exemplos mostram que tanto as obras dos artistas (como
quanto para a emotiva, tem apenas uma importância mínima em queria Marina Tsvetáieva), quanto as obras da intelligentsia, embora
poesia. A poesia é indiferente ao referente da enunciação, como possam ser analisadas segundo suas leis imanentes num corte sin-
— por outro lado — a linguagem prática ou, melhor dizendo, a crônico, só podem ganhar, depois, numa leitura diacrônica, onde
prosa orientada para o objeto é indiferente ao ritmo. 11
passariam a ser lidas cronologicamente e consideradas em sua tota-
lidade, para uma melhor compreensão.
Ora, em 1960, em seu ensaio “Closing Statement: Linguistics Quanto à questão da escola de Bakhtin ser ou não ser conti-
and Poetics”, Jakobson esmorece certa ênfase que caracterizava sua nuadora do Formalismo russo, a resposta só pode considerar os
afirmação de 1920: “A supremacia da função poética sobre a função aspectos de concordância e os de diferença entre as duas correntes.
referencial não oblitera a referência, mas a torna ambígua” . 12
Em Formalist Criticism and Reader-Response Theory15, os autores
E, por último, se em Linguística e poética — seu ensaio de sublinham essa continuidade, salientando, porém, a ênfase bach-
1966 Jakobson escrevia: “A equivalência é promovida a procedi-
13
tiniana dada ao discurso (verbal) enquanto fenômeno social, em
mento constitutivo do sistema; uma sílaba equivale a qualquer outra todas suas instâncias.
sílaba da sequência, o acento a qualquer outro acento da sequência, Na parte III de seu trabalho, o crítico Richard Bradford tam-
a falta de acento a qualquer outra falta de acento da sequência, o bém aponta para semelhanças e discrepâncias entre as duas escolas,
caráter prosódico longo de um som equivale a qualquer outro som focalizando respectivamente seus expoentes máximos, Jakobson e
longo, idem o som curto [etc., etc. ]”; em seus Selected Writings II Bakhtin e sublinhando a orientação (установка) de Jakobson —
vol. de 1971, ele acrescentava: notadamente para a poesia — e a orientação de Bakhtin — nota-
damente para o romance. Este breve trecho pode servir de síntese:
o uso poético da equivalência opera como eixo entre dois patterns
de forma e de significado. Cada um deles pode ser dissecado anali- O argumento de Jakobson compartilha da mesma premissa
ticamente e codificado “exaustivamente” [pela melhor das críticas], estruturalista que o trabalho de Bakhtin e sua escola, mas dife-
mas os efeitos que são criados pela interrelação e/ou pelo frequente rencia-se em um aspecto importante. Ambos concordam que a
conflito dos dois patterns são peculiares do texto em questão e são realidade é um conceito relativístico, friável: mais um construto
imprevisíveis na esfera normativa, abstrata, da análise. [...] O intei- de perspectiva, ideologia e sistemas de signos do que uma enti-
ro sistema de hierarquias causais e temporais que rege o processo dade imutável. Mas, enquanto a escola bakhtiniana considera o
das trocas não poéticas [...] é completamente desarranjado.14 artista literário, e mais especicificamente o romancista, como al-
guém que reconstitui o social, o ideológico e o especto linguístico
11 (Apud BRADFORD 1995:26, parte I)
12 (Apud BRADFORD 1995:27, parte I) de um determinado meio, Jakobson mantém que a poesia é um
13 (Apud BRADFORD 1995:40, parte I)
14 (Apud BRADFORD 1995:41, parte II) 15 (DAVIS; WOMACK 2002:39)
452 Aurora Fornoni Bernardini Capítulo 12 . Formalismo russo 453

meio à parte, ao mesmo tempo uma linguagem e um sistema in- em livro em 1965, e que, baseando-me também em minha própria
dependente, a-histórico, que pode absorver e refletir a individua- prática como estudiosa e professora de russo (meus três principais
lidade do poeta e a perspectiva que o poeta tem de seu mundo.16 trabalhos acadêmicos tiveram relação com o Formalismo russo)19,
disponho-me a voltar a certos conceitos que foram, durante tantos
4. Breve revisão anos e ainda são agora — para mim e para minha geração —, tão
Passaram-se os anos. Veio a vaga do Estruturalismo Francês, vie- cruciais e operantes, mas que para as novas gerações não passam,
ram Lukács, Goldmann, Kristeva, Walther Benjamin, a Mimese, quando muito, de “nomes nus”, como disse Umberto Eco no final de
a Anatomia da crítica, a Semiótica, a Psicocrítica, Bakhtin, o O nome da rosa.
Desconstrucionismo... e, um belo dia, encontrando-me em Yale Abordaremos a questão pelo fim. O que se tem assistido desde
graças a um projeto17 que previa entrevistas com personalidades as últimas décadas do século XX em termos de metodologia geral da
universitárias que houvessem conhecido Roman Jakobson quando cultura é a grande revisão que teve por objeto dois erros herdados
professor nos EUA, deparei-me com um seu ex-orientando, Victor do século passado: o empirismo extremado, que reconhece como
Erlich — então professor emérito e um dos mais reconhecidos críti- real apenas o que é dado “imediatamente”, e o monismo rígido, que
cos daquela prestigiosa universidade — que, com toda a autoridade tenta reduzir níveis heterogêneos a leis homogêneas20. “No nível
que pesava em seus ombros, disse-me, sem rodeios, em animada epistemológico” — e aqui cito textualmente Erlich —, “o interesse
conversa18, que, após o Formalismo russo, nada de mais original dos positivistas pelos dados sensoriais foi obscurecido pela Filosofia
ou importante tinha surgido no domínio da Teoria da Literatura. das formas simbólicas, a concepção do homem como animal symbo-
Não nego a minha satisfação: passada a voga dos anos 60-70 (do licum (Cassirer)”21. Viu-se, então, que cada nível de experiência tem
século XX), não faltaram, em nosso próprio âmbito universitário, suas próprias leis ou princípios de organização, que não podem ser
detratores do Formalismo russo que, bastando-se, talvez com um deduzidos de outros níveis. Consequentemente, estudiosos foram
conhecimento superficial, de textos copilados e mal traduzidos e de induzidos a indagar, primeiro, as propriedades estruturais de um
slogans descontextualizados ou mesmo pela falta de empatia ideo-
19 São eles, respectivamente, Materiais para o estudo do futurismo italiano e
lógica, tacharam-no de positivista, formalista, estruturalista, anti- do cubo-futurismo russo (Dissertação de Mestrado, 1970); Poesia e poéticas

bakhtiniano, antissociológico, saussuriano, aristotélico, modismo do futurismo (russo e italiano) (Tese de Doutorado, 1973); Indícios flutuantes
em Marina Tsvetáieva (Tese de Livre-Docência, 1977). Todos encontráveis na
superado e assim por diante. É um pouco para tentar desfazer esses Biblioteca da USP.
20 Além do último capítulo da tese de Victor Erlich transformada em livro,
clichês e (muito) para relembrar aqueles tempos que reli há pouco a recomenda-se, aqui, para ulteriores considerações quanto às novas posições
tese de doutorado de Erlich de 1954, Russian Formalism, publicada respectivas das Ciências e das Artes na época contemporânea, a leitura do
livro de Hans-Georg Gadamer (Verdade e método 1998 [1960]) e, em particular,
a introdução de Gianni Vattimo às edições italianas de 1983, 1994 e 1997, A
16 (Apud BRADFORD 1995:176, parte III) ontologia hermenêutica na filosofia contemporânea.
17 Cf. projeto BID-USP (1990-1991). 21 CASSIRER, Ernest. 1942. An Essay on Man. Yale University Press (apud ERLICH
18 (Cf. BERNARDINI 1994-1995) 1965).
454 Aurora Fornoni Bernardini Capítulo 12 . Formalismo russo 455

dado sistema e, só mais tarde, a relacionar os dados assim obtidos compreendido “discurso autônomo”), de resistir a pressões hostis,
com os dados próprios a outros sistemas. Dentro dessas duas novas carregada que está de sua máxima carga criativa. Não parece um
tendências da modernidade, que podemos caracterizar com Erlich item do manifesto de “A palavra enquanto tal”? Vesselóvski dedi-
como a “interpretação simbólica” e a “interpretação gestáltica”, onde cou-se à metodologia da indagação literária, à tentativa de respon-
se situaram os formalistas? der à pergunta “o que é literatura?” O edifício literário é por ele
O retrospecto de Erlich sobre as raízes literárias russas que se nu- desmembrado em elementos objetivos: esquemas, procedimentos,
triam numa rica tradição nacional de sensibilidade pelos problemas imagens canônicas, motivos recorrentes, fórmulas migratórias, daí
da forma poética remonta à Idade Média e faz uma pausa bastante seus estudos da tradição literária e folclórica, prenunciando, entre
longa na época de Púchkin, em que as controvérsias críticas giraram outros, Propp, Tomachévski e a poética histórica, daí o começo das
mais em volta dos problemas da prosódia e da linguagem do que de vastas intuições metodológicas formalistas, daí a ênfase na estrutura
questões ideológicas. Essas últimas surgiram com grande força na objetiva da obra literária, mais do que nos processos psíquicos que
segunda metade do século XIX, com a questão dos raznótchnitsy (a a acompanham, daí a desconsideração (mesmo que algumas vezes
intelligentsia plebeia) e mais tarde dos populistas, e com a tendência panfletária) pela importância do gênio criativo na história da litera-
ao jornalismo e à história das ideias que impregnaram os escritos tura, que aparece em alguns manifestos formalistas.
literários da época, na Rússia. É por isso que os estudiosos de lite- Nas primeiras décadas do século XX, enquanto o interesse
ratura das últimas décadas do mesmo século preferiram manter-se social na literatura oficial/acadêmica russa era substituído por um
afastados das “queimantes” questões sociais e dedicar suas intuições biografismo estéril, os sequazes mais prometedores de Vesselóvski,
fecundas e sua pesquisa às questões que diziam respeito à técnica como o medievalista V. Piérets, esforçavam-se para distinguir
literária, ao estudo comparativo literatura/folclore e à filosofia da entre estudo da literatura (como algo é dito) e estudo da cultura
linguagem. É aqui que surgem os ancestrais diretos do Formalismo (o que é dito). A análise da linguagem poética, área-limite entre
russo: A. Potebniá (1835-1891) e A. Vesselóvski (1838-1906). Do crítica literária e linguística, constituiu o terreno de encontro entre
primeiro, que se ocupou com as relações entre pensamento e lingua- os jovens estudiosos de literatura e os de linguística. Percebeu-se
gem, os formalistas absorveram os experimentos de descrição da que os fatos linguísticos podiam ser estudados não apenas por seus
natureza da criação poética em termos linguísticos. O pensamento antecedentes históricos, mas também com base na “função” que
pode dispensar as palavras? Sim, pois há linguagens gráficas, da desempenham nos vários tipos de linguagem. Jovens estudiosos
música, das cores, que não utilizam palavras. Pois, na medida em de literatura reuniam-se em seminários, como aconteceu em um
que pensamento e palavra representam conceitos coextensivos, cada deles de S. Petersburgo, o de S. A. Vengerov sobre Púchkin, em
um tende a dominar o outro. A razão quer a todo custo dominar 1908, e se aplicavam com zelo a estudar o estilo, o ritmo, a rima,
a palavra, e esta, na obra de poesia, consegue maior possibilidade os epítetos, os temas, os procedimentos. Quem estava entre eles?
de emancipar-se da tirania da ideia (aqui está o germe do tão mal Boris Eikhenbaum, Boris Tomachévski, Iúri Tynianov... Este último,
456 Aurora Fornoni Bernardini Capítulo 12 . Formalismo russo 457

também aluno de Baudoin de Courtenay, que, por sinal, já conhecia signo), a não coincidência, para a linguagem poética, entre signo e
Chklóvski desde 1913. referente.
Claro que, como sempre acontece, esse tipo de interesse não “A natureza particular da linguagem poética tornou-se o prin-
exista apenas na Rússia. Na França, surgia a “Explication des textes”; cipal objeto de interesse e de estudo de uma nova geração de filólo-
na Alemanha, a proposta de H. Wölfflin de “uma história da arte gos, na medida em que representava um tipo de discurso ‘funcional’
sem nomes” e sua tese da “iluminação recíproca entre as várias ar- por excelência, cujos componentes eram subordinados a um mesmo
tes” etc., etc. A própria academia abria-se aos novos estudos. Em São princípio informador: um discurso inteiramente organizado com a
Petersburgo, as velhas teorias dos neogramáticos eram combatidas finalidade de obter o efeito estético desejado” — diz V. Erlich, con-
por Jean Baudoin de Courtenay e seus discípulos. Em Moscou, em cluindo sua introdução. Dito e feito. Em 1915, um grupo de jovens
razão da grande influência de F. Fortunatov, um linguista muito ver- estudantes da Universidade de Moscou (Busláev, Piotr Bogatyriov,
sado em análises morfológicas, a adesão aos estudos dos problemas Roman Jakobson e G. Vinokur) fundou o “Círculo Linguístico de
da função e do significado demorou um pouco mais a pegar, mas Moscou”.
a chegada da fenomenologia de Edmund Husserl foi decisiva. Em Um ano mais tarde, jovens filólogos e estudiosos de literatura
suas célebres Logische Untersuchungen, ele analisava profundamente que mantinham contato com o Círculo moscovita fundaram em
a função lógica das categorias gramaticais fundamentais comuns a S. Petersburgo a “Sociedade para o Estudo da Linguagem Poética”,
todas as línguas e introduzia o conceito de uma gramática universal também conhecida como Opoiaz, criada pela coalizão de dois gru-
“pura”, ou seja, da “língua enquanto tal”... pos distintos: estudiosos da linguagem segundo a escola de Baudoin
Entre os precursores do Formalismo russo, está, paradoxal- de Courtenay como L. Jakubínski e E. D. Polivánov e teóricos da
mente, a grande escola que o precedeu, a do Simbolismo russo. Não literatura como B. Eichenbaum, V. Chklóvski, S. I. Bernstein e, logo
vamos nos demorar aqui sobre ela, nem sobre o Acmeísmo, que em seguida, O. Brik. Tinha nascido o Formalismo russo.
surgiu pouco depois, nem sobre os seus precursores ocidentais: a Desde a primeira fase do Opoiaz, os participantes do movi-
respeito da ambiência do formalismo, há o estudo abrangente de mento haviam focalizado seus interesses no estudo da linguagem
Krystyna Pomorska, Formalismo e futurismo, já mencionado: a poética. Cinco anos após sua fundação, simpatizantes do movi-
reelaboração de sua tese de Doutorado. Falamos em precursores pa- mento já afirmado criticamente e já inserido na cultura literária
radoxais quanto aos simbolistas, pois, ao mesmo tempo em que os acadêmica, egressos da Seção de História da Literatura do Instituto
formalistas rejeitavam seu flerte psicomístico (expressão de V. Erlich) Nacional de História da Arte de São Petersburgo, uniram-se a
com o Absoluto e sua eleição da imagem como traço construtivo da ele: V. Jirmúnski, G. Gukóvski, I. Tynianov, B. Tomachévski, V.
poesia, deles aceitavam a abolição da dicotomia mecanicista forma/ Vinográdov. Grupos de estudos diversificados foram incentiva-
conteúdo e, embora vacilante (pois, para os simbolistas, ora o sig- dos. O novo Instituto encarregava-se das atividades didáticas e
no se confunde com o objeto, ora o objeto é concebido como puro publicísticas. Sob seu patrocínio, começou a circular o periódico
458 Aurora Fornoni Bernardini Capítulo 12 . Formalismo russo 459

Problemas de poética, onde apareceram alguns dos mais importan- por alguns representantes do movimento, Chklóvski, em particular,
tes estudos formalistas de história e teoria da literatura. O forma- cuja insistência na “arte como procedimento”, por exemplo, como
lismo tinha se tornado adulto. exclusivo interesse do estudioso de poética, além de exagero tático é
Na segunda fase, chamada “estruturalista”, quando unidos aos uma das provas da limitação de sua perspectiva. Assim mesmo, essa
formalistas de Praga (de cujo círculo Jakobson, o principal repre- e outras noções que ele propugnou, como a da desautomatização, do
sentante do círculo formalista de Moscou, que assim se desfazia, estranhamento, da perceptibilidade, etc., bem como os textos-mani-
passara a fazer parte desde sua partida da capital russa, em 1920), festo do primeiro formalismo foram, muitas vezes, mais férteis do que
os teóricos formalistas do Opoiaz foram pioneiros no propósito de os juízos cautelosos de críticos conservadores.
fundar um esquema gestáltico da criação literária. Baste para tanto Se a questão da personalidade criativa, apesar de inicialmente
recordar seus reiterados conceitos de sistema, dominante, e estrutura. enfaticamente negada por alguns formalistas, se tornou, no forma-
Ao mesmo tempo em que continuavam indagando a natureza lismo mais maduro, objeto de importante consideração — Victor
do fato literário, os formalistas não deixavam de se preocupar com a Erlich cita o ensaio de R. Jakobson sobre a prosa de Pasternak
“evolução literária” e com as relações da arte com a sociedade, uti-
22
(Randbemerkungen zur Prosa des Dichters Pasternak. Slaviche
lizando para tanto com proveito as novas formulações metodológi- Rundschau, 1935, VII) —, o que, segundo ele, restou impreciso
cas e levando-as adiante, juntamente com os estruturalistas tchecos. no movimento foi a questão da avaliação estética da obra. Para os
Além de terem assim prenunciado e participado da Gestalt, uma formalistas os valores estéticos, como qualquer outro valor, são re-
das mais importantes conquistas do pensamento moderno, deve-se lativos e sujeitos a variarem de período a período (Cf., entre outros,
ressaltar que os formalistas russos, por terem desde o início contado o já mencionado A evolução literária de Tynianov). Acrescente-se
com a aliança da vanguarda cubo-futurista, tiveram seu movimento a isso a desmistificação das normas (Cf. o famoso sdvig; ou desvio,
crítico-teórico fortalecido, revigorado e atualizado (até sua dispersão estudado por Krystyna Pomorska como um dos pilares da poética
por volta dos anos 30), particularmente em termos de poesia. Cite- de Khlébnikov) e a desconfiança em relação a tudo o que poderia re-
se, como exemplo, a já mencionada Novíssima poesia russa de R. presentar o “absoluto”, desconfiança essa corroborada, no plano es-
Jakobson, sobre a poética de Velímir Khlébnikov, os textos de Ossip tético, pelo representante do estruturalismo tcheco Jan Mukaróvski,
Brik sobre o ritmo e o também já mencionado livro de Tynianov O em seu livro de 1936, A função, a norma e o valor estético como fatos
problema da palavra poética. A ligação com a vanguarda explica certas sociais (“a essência da norma estética é de ser quebrada”), e poder-
posições panfletárias e polêmicas assumidas no primeiro formalismo -se-á compreender por que a avaliação histórica (de um fato que po-
dia ser comprovado historicamente) representou para os formalistas
22 É muito importante insistir nas fortes relações do formalismo com a série
um caminho mais seguro do que o juízo crítico.
histórica, às quais voltaremos. O que se entende por “evolução literária” pode ser
lido no ensaio de I. Tynianov sobre o assunto em uma das antologias de textos Expliquemos melhor: se é importante saber se certa obra cum-
formalistas citados. Quanto à relação entre estrutura e função em literatura, vale
a pena ler-se o texto de CANDIDO (1972; 1999).
priu a “tarefa histórica” a que se propunha ou que lhe cabia (e nesse
460 Aurora Fornoni Bernardini Capítulo 12 . Formalismo russo 461

caso não se pode deixar de lembrar-se de “Como escrever versos” Curiosamente, também B. Engelgardt, um “companheiro de
de Maiakóvski ou de como Tolstói, segundo Eikhenbaum, soube, estrada” do formalismo dos anos 1920, em seu ensaio “A escola for-
após sua famosa crise de 1880, romper com a tradição romântica, mal na história da literatura”, teve algo a dizer nesse sentido: “A rigor,
enquanto Turguênev se manteve nela), algumas obras cumprem a construção histórico-literária criada por essa escola não chega a
sua tarefa mais esteticamente que outras. E embora o crítico possa ser uma História da Literatura, mas uma teoria evolutiva sui generis
avaliar a obra literária baseando-se nos seus critérios, esses crité- dos fatos linguísticos significativos do ponto de visto estético, uma
rios deveriam ter certa validade geral, que, inclusive, transcende poética formal” 24.
a poética de determinado período. Os formalistas focalizaram o Em seu já mencionado ensaio de 1972, “A evolução literária”,
“dinamismo interno” de um determinado sistema, suas leis imanen- Tynianov, justamente consciente da necessidade de não anular a
tes, desengatando nos anos 20 a arte literária da famosa “colcha de História da Literatura, mas reconstruí-la em sua totalidade no in-
retalhos” cultural que tudo acolhia, e tiveram, sim, nos anos 30, a terior da vida social, e levando em consideração momentos como
preocupação de estudar sua inserção nas diferentes séries sociais, os da gênese literária, propôs uma hierarquia de níveis funcionais
mas — explica Victor Erlich — não tiveram ocasião de deter-se su- (função construtiva e suas subdivisões, função literária, função
ficientemente sobre a natureza dessa inter-relação, nem sobre as leis linguística, que, de acordo com ele, liga a literatura aos costumes,
“transcendentes”, coisa que poderia ter feito uma filosofia da cultura etc.). Outrossim, lembra Maria Di Salvo, na tese n. 8 que escreveu
mais flexível do que o referido monismo do século XIX, e talvez juntamente com Jakobson em 1928, ficava claro que:
mais orgânica do que a “descritividade”, embora rigorosa, de que os
formalistas foram considerados adeptos. A análise das funções respondia, para Tyniánov, a uma exigência
Este é, literalmente, o reparo de Victor Erlich, no ensaio final de esclarecimento e de especificação; ao estudá-las, ele voltava a um
de seu Formalismo russo: dos pontos centrais de toda sua pesquisa, a análise dos significados.
Pelo mesmo motivo, ele sustentava a necessidade de se estudarem
Se por “Teoria da Literatura” entendermos um esquema orgânico — ao lado das grandes e não separadamente — também as figuras
da criação literária, fundado num sistema estético coerente, numa menores de uma época, que contribuem para o esgotamento das
consequente filosofia da cultura, temos que admitir que o forma- velhas funções, preparando o nascimento das novas.
lismo não chegou a tanto. Mas teremos que lembrar também que
nenhum movimento crítico jamais sequer se aproximou desse E, sempre na Tese n. 8, referindo-se às leis imanentes da
objetivo. [...] e que se os formalistas não conseguiram desenvol- História da Literatura, que determinam uma série de possibilidades
ver uma teoria da literatura exaustiva, devemos reconhecer-lhes evolutivas, repara Tynianov que: “o problema da escolha concreta de
o mérito de ter elaborado dela alguns aspectos essenciais. 23
uma orientação, ou ao menos de uma dominante, pode ser resolvido
23 (ERLICH 1965:309). 24 (Apud TYNIANOV 1973:XXIV)
462 Aurora Fornoni Bernardini Capítulo 12 . Formalismo russo 463

apenas mediante a análise da correlação entre a série literária e as conceito de Belo27 tenha sido submetido, ao longo do tempo, a alte-
outras séries”. 25 rações e mesmo a contradições contínuas. Por outro lado, veja-se a
Considere-se o fato, porém, de que a tarefa de correlacionar opinião de Mikhail Bakhtin quanto à compreensão do todo, na arte,
diversas esferas da cultura humana vai muito além da literatura e de que obedeceria, segundo ele, a quatro atos, a saber:
qualquer domínio isolado. Esse tipo de correlação requereria não
apenas uma rigorosa obra de colaboração entre campos diferentes, 1. Percepção sensorial; 2. Reconhecimento próprio de cada indi-
todos, sem exclusão (lembre-se que Bakhtin teve a ideia de seu víduo (reconfirmação do próprio lugar depois de encontrar o ou-
“cronotopo” ao assistir à palestra do fisiólogo A. Ukhtomsky, que tro); 3. Apreensão de seu significado no contexto, tirando partido
participava de seu “círculo de estudos”, em 1925, e que relacionava a de seu próprio excedente, (que servirá, no caso da literatura, a
intersecção do espaço e do tempo na biologia), mas o resultado dessa finalizar a personagem: a arte, de uma maneira geral, requer que
colaboração ideal, para não ser datado, deveria sofrer um processo se realize um excedente em relação ao evento); 4. Compreensão
de contínua atualização. Ninguém pode assegurar, por exemplo, que ativo-dialógica, valendo-se do impulso interior em direção a um
a formulação que pretende definir a obra de arte enquanto experi- objetivo (concentração) e lembrando que o indivíduo não está à
ência de verdade a que chegou a estética de cunho gadameriano, mercê dos fatos: basta-lhe reconcebê-los.28

hoje, poderá ser sentida como viva e atual daqui a cem anos26. Para
tanto, bastaria fazer um rápido retrospecto, nem que fosse passando Da mesma forma que o indivíduo precisa do outro para con-
pelas teorias estéticas dos séculos IX e XX, para se verificar como o cretizar seu potencial, uma cultura precisa de outra para se men-
surar e se desenvolver. Tendo isso em vista, Bakhtin elaborou uma
25 Citado na Introdução de Maria DI SALVO (1973:XXI)
26 Aqui estaria um resumo-decálogo das características da obra de arte, extraído
série de trabalhos famosos sobre diferentes gêneros (romance, pa-
da leitura de VATTIMO (1985), ex-orientando de Gadamer: ródia, sátira menipeia, etc. — valham por todos seus escritos sobre
1) A obra de arte não se insere no mundo, mas o modifica qualitativamente;
2) é uma luz diferente que incide sobre as coisas e colore de maneira diversa as Rabelais e sobre Dostoiévski), onde caracteriza fenômenos como a
lentes com as quais olhamos;
3) é uma Weltanschauung com a qual o mundo deve entrar em diálogo;
polifonia e a heteroglossia, geralmente tomados como sendo o mes-
4) é o apelo de um novo evento que requer resposta; mo, mas — como lembram Todd F. Davis & Kenneth Womack29 —,
5) é fundação de uma nova linguagem, portanto de um mundo;
6) a obra funda e é, por sua vez, fundada durante o processo. Ela transcende o enquanto o segundo descreve a diversidade dos estilos do discurso
processo;
numa língua, o primeiro descreve as diferentes vozes das diferentes
7) a obra não se deixa reduzir ao que era antes, nem se deixa enquadrar no
mundo tal qual é; personagens fazendo-se ouvir numa mesma narrativa; o cronotopo;
8) o próprio artista e o fruidor não são mais o que eram antes de conhecer a
obra: nossas relações com o mundo passam a ser diferentes;
a carnavalização; etc., valendo-se do método de colocar em relação
9) a obra de arte tem a força de projetar um mundo;
10) as bases para uma fundação ontológica da arte são o esforço para reconhecer 27 Leia-se o livro de TOLSTÓI (1971). No Brasil, existe uma tradução parcial de seus
as relações da arte com o ser, ou seja, reconhecer não apenas a consciência, mas escritos sobre o assunto, publicado pela Editora Experimento, de São Paulo.
o que transcende a consciência. Através dos interstícios do ente, dos pontos de 28 (MORSON; EMERSON 2007:104ss)
descontinuidade da experiência, a arte se aproxima ao ser. 29 (DAVIS; WOMACK 2002:160)
464 Aurora Fornoni Bernardini Capítulo 12 . Formalismo russo 465

entre si campos, sujeitos e objetos, mesmo que distantes, através do fruidor. É assim que Tynianov vê, por exemplo, a questão dos
de um processo de deslocamento e abertura, antes do que de in- gêneros, que se sucedem e muitas vezes se alternam. E o que diz
corporação e clausura: “os indivíduos surpreendem e isso produz a Vattimo, um dos filósofos que tratam hoje de cultura, de “larga parte
mudança histórica”30. da cultura contemporânea”?

5. Contemporaneidade do Formalismo russo O que importa salientar é que uma larga parte da cultura contem-
porânea [...] concebe o saber como compreensão do fenômeno
O que vale a pena ressaltar, finalmente, é a contemporaneidade das
particular em relação a um fundo que permite compreender o
conceituações do Formalismo russo. Algumas de suas perguntas
significado verdadeiro [...]. O ente, o tipo de experiência, é sabido
iniciais – “O que é literatura?”; “Qual é o modo de existência de
quando reconduzido a uma totalidade em relação à qual ele se
um texto?”; “O que diferencia a literatura dos outros domínios das
define. 32
humanidades?”; “Que tipo de obras literárias existem?”; “Como
se estrutura o mundo do texto (fábula, siujet, ritmo etc.) frente ao
E ainda:
mundo de que ele é imagem?” – têm relação estrita com a orien-
tação ontológica e pós-cognoscitiva de nossa época que tende a
Trata-se [...] da abertura para uma concepção não metafísica da
perguntar-se:
verdade, partindo não tanto do modelo positivo do saber cienti-

Que mundo é esse? O que se deve fazer num mundo desses? fico [...] quanto da experiência da arte e do modelo da retórica,

Quais dos meus eus devem fazê-lo? O que é um mundo? Que por exemplo, [...] uma vez que a experiência pós-moderna de

tipo de mundos há? Como eles diferem? O que se passa quando verdade é provavelmente uma experiência estética e retórica, que

os limites entre os mundos são violados? Qual é o modo de exis- nos conclama a viver uma experiência fabulizada do real como

tência de uma obra? Qual é o modo de existência do mundo que possibilidade de liberdade. 33

a obra representa? Em que sentido é estranho o mundo do qual é


apresentada a imagem?31 Mas será que existe mesmo um cânone estável para a arte? A
resposta de Luigi Pereyson — um filósofo contemporâneo que como
Além das perguntas, suas próprias conceituações básicas coin- Vattimo é agora conhecido no Brasil — em sua “Teoria da formativi-
cidem em muitos pontos. O fenômeno literário, embora obra autô- dade”34 é: “não”. Mas essa inexplicabilidade é um fato absolutamente
noma que se explica e se compõe graças a seus procedimentos retó- não arbitrário, onde “o todo é rigorosamente regido por uma lei que
ricos, assume e muda de significado em função de um fundo (época, 32 (Cf. VATTIMO 1985:14-15)

período, ideologia etc.), o que permite as diferentes interpretações 33 (Cf. VATTIMO 1985:23) (Cf. ed. Brasileira: São Paulo: Martins Fontes, 1998).
34 (Cf. PEREYSON 1961). E ainda, citado por Vattimo, Conversazioni di estetica,
30 (MORSON; EMERSON 2007:410) 1966. Existe tradução em português de alguns de seus livros, pela Martins Fontes
31 (Cf. CESERANI 2006:134). de São Paulo.
466 Aurora Fornoni Bernardini Capítulo 12 . Formalismo russo 467

comanda sua estrutura, de modo que cada parte apareça em sua li- passarão a ser conhecidos, mais tarde, como os núcleos do assim
gação necessária com esse todo e este com cada parte”. Aqui está, em chamado “Círculo de Bakhtin”.
síntese, sua conclusão, bastante próxima da proposta do Formalismo Acompanhando o rumo de seus estudos clássicos, Bakhtin mer-
russo: a obra de arte não se insere no mundo que está aí, mas cria gulhara desde cedo na filosofia antiga, dedicando-se, depois, ao estudo
um novo mundo. Ela se apresenta como portadora de uma lei que sistemático dos filósofos alemães, bem como de Buber e Kierkegaard,
reorganiza as estruturas do mundo e funda sua própria história. cujos ensinamentos, seguindo a tradição filológica alemã, sempre
amarrara às questões de língua e literatura. Por volta de 1918, a escola
6. Mikhail Bakhtin: Dados biobibliográficos 35 de pensamento neokantiana, que dominava a filosofia alemã havia al-
Mikhail Mikháilovitch Bakhtin (1895-1975), nascido em Orel, ao gumas décadas, era a mais influente na Rússia, particularmente a ver-
sul de Moscou, de uma família da pequena nobreza, teve sua in- tente marburguiana de Hermann Cohen. Embora fossem inúmeros
fância marcada pela presença de uma excepcional governanta que os aspectos implicados, o que interessava sobremaneira a Bakhtin era
lhe ensinou perfeitamente alemão, e a juventude influenciada pelo a formulação de uma relação mente/mundo que não enfatizasse nem
exemplo do irmão mais velho, Nikolai Bakhtin, que lhe infundiu o primeiro elemento (Leibnitz) nem o segundo (Locke), mas insistisse
a paixão pelos estudos clássicos (latim e grego), que desenvolveu na necessária interação entre ambos, interação essa que Bakhtin inter-
na Universidade de São Petersburgo até o fim de seu curso, na pretaria como sendo o “dialogismo”. Mais dois aspectos do neokantia-
Faculdade de História e Filologia. Em 1918, o irmão entrou para nismo de Marburg desempenharam papel importante nos primeiros
o Exército Branco, emigrando em seguida para a Inglaterra, onde trabalhos de Bakhtin: o relacionamento dos problemas tradicionais
foi, entre outros, interlocutor muito estimado de Wittgenstein, para da filosofia com as grandes descobertas científicas — daí seu interesse
questões de linguística. Mikhail abandonou o caos e a carestia da pelos fenômenos da percepção e pela abolição da tradicional distinção
cidade grande, que se seguiram à primeira onda revolucionária, entre matéria e pensamento — e a resistência à ideia de uma unidade
para procurar centros menores, onde a vida parecia mais fácil, como totalizadora que tudo abranja (Allheit), resistência essa manifesta na
Nevel e Vitebsk, onde residiu até 1924. Em ambos os lugares, ele tentativa de repensar a interação mente/mundo em termos de proces-
participou de grupos de intelectuais que acompanhavam vivamente so complexo, que viria a desenvolver em estudos como “O autor e o
os movimentos e os acontecimentos da época. Bakhtin preocupa- herói na atividade estética” e “Sobre a filosofia do ato”. Por seu idea-
va-se, em particular, com questões de natureza artístico-filosófica, lismo neokantiano, foi submetido a interrogatórios, na URSS, que se
como a relação entre a experiência vivida, entre o eu e o outro, entre desdobraram em exílios em regiões afastadas do país, mais tarde.
a palavra e a ética, etc., levando as discussões para o âmbito de cada Em 1924, Bakhtin voltou a Petrogrado (antiga São Petersburgo),
grupo nas duas cidades, grupos dos quais se tornará líder, e que onde, apesar das graves restrições econômicas, viveu seis anos dos
mais ativos de sua vida. Impedido de trabalhar normalmente (na
35 Utilizo aqui partes da conferência sobre Mikhail Bakhtin apresentada durante o
encontro da Seleprot UERJ, em 2011, no Rio de Janeiro.
época era politicamente suspeito por participar de discussões em
468 Aurora Fornoni Bernardini Capítulo 12 . Formalismo russo 469

círculos da banida religião ortodoxa, e sua saúde, devido à hosteo- Teoria da Relatividade, ele nunca vê o eu como autossuficiente, mas
mielite de que sofria, era precária), ele lia muito, reunia-se com os implicando a “outridade” e a simultaneidade.
amigos (alguns da época de Nevel-Vitebst), outros, novos, como o O eu bakhtiniano é um evento com uma estrutura organizada
biólogo Ivan Kanaev, em cujo apartamento passou a morar com a a partir de fora, que deve se colocar firmemente frente ao fluxo da
mulher), mas, principalmente, escrevia. Data dessa época a maioria existência e à sua indeterminação, para que a vida faça sentido. Pela
dos livros que o tornaram famoso e a preocupação com as modifi- ênfase que ele sempre deu aos conceitos de correlação, concomi-
cações que sofreriam a psicologia, a linguística e a teoria literária, tância e posicionamento, era natural que grande parte de sua obra
enfatizando sempre a variedade e a pluralidade, contra a crescente girasse em volta do eixo espaço/tempo. Assim, desenvolveu o con-
homogeneização da vida política e cultural na URSS, que culmina- ceito de “cronotopo” (cf. Questões de literatura e de estética (1924),
ria no stalinismo. publicado no Brasil pela Editora Hucitec), que, em literatura, ele vê
Em 1929, Bakhtin foi preso e exilado no Cazaquistão, até 1934. como o diálogo contínuo e simultâneo entre autor/narrador/perso-
Após sua volta, lecionou por um ano no Instituto Pedagógico de nagem/leitor, fusão ao mesmo tempo da fábula e do siujét (trama)
Saransk e, em seguida, foi para Savielovo, uma pequena cidade dos formalistas russos, cuja obra acompanhara com atenção. Não é
no Volga, onde pôde trabalhar na conclusão de dois manuscritos de se admirar, também, que Bakhtin tenha dedicado a maior parte
longos, “O romance de formação e seu significado na história do re- de seus estudos ao romance, visto ser este gênero, a alegoria que
alismo” (1938), quase totalmente perdido pela destruição da editora representa a existência enquanto condição de autoria, onde as estó-
que devia publicá-lo no começo da II Guerra Mundial, e seu livro rias que se entrelaçam são um meio de tornar os valores coerentes,
sobre Rabelais, terminado em 1941, embora apresentado como Tese onde a literatura estabelece importantes relações modelares entre o
em 1947. Chamado de volta a Saransk para reger, na recém-criada indivíduo e sociedade. Assim, por exemplo, em Problemas da poéti-
Universidade, a cátedra de Literatura Russa e Literatura Universal, ca de Dostoiévski (1929) — sua obra mais famosa —, ele estabelece
tornou-se famoso como professor, lecionando com sucesso durante a relação entre o monólogo na literatura e o utopismo racionalista
vários anos. na Europa, em que o conhecimento é a interação de consciências,
Sua obra começou a ser resgatada do ostracismo a partir dos mas só o privilegiado, que sabe e possui a verdade, é quem instrui os
anos 60. Em 1963, com a reedição do livro sobre Dostoiévski segui- outros, que não sabem ou estão enganados.
do pela do de Rabelais em 1965, seu sucesso na URSS foi estrondoso, Ora, o privilegiado, em literatura, é o autor. Só ele é o ideólogo
logo acompanhado por sua repercussão no Ocidente. e, em suas obras, suas ideias se combinam com as do protagonis-
De 1972 até sua morte, em 1975, Bakhtin viveu em Moscou. As ta-herói. O surgimento de qualquer outra voz leva à sua inevitável
meditações de Bakhtin sobre a problemática do eu aprofundam-se neutralização.
nos domínios das ciências humanas e exatas. Em seu dialogismo, O que Dostoiévski soube fazer — segundo Bakhtin — mu-
que veio a ser considerado por muitos como a versão literária da dando os rumos na literatura, foi justamente representar a ideia do
470 Aurora Fornoni Bernardini Capítulo 12 . Formalismo russo 471

outro, conservando seu pleno valor enquanto ideia, mas mantendo- certa “carnavalização” da consciência sempre precede e prepara

-se distanciado, sem afirmá-la nem fundá-la em sua própria ideolo- as grandes reviravoltas, mesmo no domínio da ciência.

gia, de autor da obra. Desse modo, o “homem da ideia” passa a ser


o verdadeiro protagonista, sendo que sua ideia, porém, não é uma Em seu todo, a obra de Mikhail Bakhtin, que até o último ano
formação objetiva de sua psicologia individual: ela é interindividual da vida de seu autor nunca deixou de ser lucidamente revista para
e intersubjetiva, e sua esfera de existência é a comunicação entre novas edições, é não apenas “uma apaixonante tentativa de moldar
consciências, o diálogo. uma teoria do conhecimento para uma época em que a relatividade
O advento da “polifonia” de Dostoiévski, enquanto ocaso do domina a física e a cosmologia e em que a não coincidência (a do sig-
paternalismo autoral, corresponde, no mundo ocidental, à passagem no com seu referente, do sujeito consigo próprio, etc.) levanta novas
do hegelianismo, com seu mundo de valores fixos, para o universo e problemáticas questões quanto à própria existência da mente” —
da relatividade em que não existem discursos definitivos nem ter- diz seu estudioso e biógrafo M. Holquist — mas, apesar disso e por
mos absolutos, mas o diálogo, que não tem fim. A palavra do autor isso mesmo, continua viva e atual como seu diálogo com o mundo.
já não é mais toda-poderosa, nem faz o balanço geral da situação.
Tudo o que é acabado, estabelecido, final, está ausente desse univer- 7. Observações sobre as obras de Mikhail Bakhtin e as dos autores

so que Bakhtin redescobre através de uma longa viagem interpreta- do “Círculo de Bakhtin”

tiva que passa pelos gêneros da Antiguidade greco-romana e pelas Mikhail Bakhtin é o autor de uma obra vasta e original que come-
formas populares da Idade Média, analisadas em seu trabalho sobre çou a ser conhecida no Brasil pelo clássico Problemas da poética de
Rabelais, segundo o ponto de vista da “carnavalização” (mais tarde, Dostoiévski (Forense Universitária, 1981), (em 1929 publicada origi-
ampliada para “ambiguidade”), e do papel organizador do princípio nariamente por Bakhtin como Problemas da forma de Dostoiévski e
cômico. Diz Bakhtin na introdução à sua Tese: republicada em 1960 com o título atual) e A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, de 1941
Em qualquer época, em qualquer tipo de visão do mundo, a ne- (Hucitec, 1987), logo acompanhado por Questões de literatura e esté-
cessidade aparece sempre configurada como algo extremamente tica: a teoria do romance, 1924 (Hucitec, 1988) e, mais recentemente,
sério, incondicionável e peremptório. Entretanto, historicamen- por Estética da criação verbal, 1920-1924 (Martins Fontes, 1992).
te, as ideias de necessidade são sempre relativas e versáteis. O Estava ainda previsto o lançamento de Freudismo, uma crítica
princípio do riso e a sensação carnavalesca do mundo que estão marxista, 1927, pela Editora Hucitec, que também publicou, em 1979,
na base do grotesco destroem o sério unilateral e todas as pre- Marxismo e filosofia da linguagem (1929), ambos da autoria de V. N.
tensões a um significado extratemporal e unívoco e libertam a Volochínov, membro do assim chamado “Círculo de Bakhtin”, que,
consciência, o pensamento e a imaginação humanas, que se tor- juntamente com P. N. Medviédev, teria, segundo opinião de muitos
nam disponíveis para novas possibilidades. É por isso que uma estudiosos de Bakhtin, emprestado o nome ao mestre, cercado pela
472 Aurora Fornoni Bernardini Capítulo 12 . Formalismo russo 473

censura. Entretanto, o próprio Bakhtin desmentiu sua autoria desses Referências

livros em entrevista com V. D. Duvákin, autor do livro Conversas


com M. M. Bakhtin, onde foram reproduzidas as fitas gravadas de AMY, Carol. 1994. Boris Eichenbaum: Voices of Russian Formalism. Stanford:
suas longas entrevistas dadas durante o ano de 1973 (“...um amigo Stanford University Press.
BAKHTIN, Mikhail. 1970. L´Oeuvre de François Rabelais et la Culture Populaire du
chegado, Volochínov, [responde Bakhtin] [...] “Ele é autor do livro
Moyen Age et sous la Renaissance. Paris: Gallimard.
Marxismo e filosofia da linguagem, livro que, por assim dizer, costu-
______. 1970. Problèmes de la poétique de Dostoiévski. Lausanne: Editions L’age
mam me atribuir”36. Esta informação, por sinal, foi complementada d´Homme.
por E. M. Meletínski, quando, em conversa particular em sua casa БАХТИН, М. М. 2002. беседы с в. д. Дувакиным. москва: Cогласие (M. M.
em Moscou, em 1987, frisou bem: “Bakhtin é autor dos livros que Bakhtin. Conversas com V. D DUVÁKIN. Soglássie: Moscou).

ele assinou”. Pode, obviamente, ter havido colaboração do mestre, BARTHES, Roland et al. 2009. Análise estrutural da narrativa. 6 ed. Petrópolis:
Vozes.
entretanto o estilo e a argumentação dos livros, quando lidos no
BERNARDINI, Aurora. 2000. Formalismo russo: uma revisitação. In: Literatura e
original, são muito diferentes dos de Bakhtin. Sociedade 5. São Paulo: Revista do DTLLC-FFLCH-USP.
Há uma série de estudos de Bakhtin aguardando publicação ______. 1994-1995. “Victor Erlich: entrevista a Aurora Bernardini”. São Paulo:
no Brasil, entre os quais Arte e responsividade (1919); “Sobre o Revista da USP, n. 24, dez/fev., p. 121-123.
livro Problemas da obra de Dostoiévski” (1961); “Sobre as con- BERNARDINI, Aurora; FERREIRA, Jerusa Pires (org.). 2006. Mitopoéticas: da
Rússia às Américas. São Paulo: Humanitas.
ferências de história da literatura de Viatchesláv Ivánov” (1924)
BENNET, Tony. 2003. Formalism and Marxism. London and New York: Routledge.
e, principalmente “Sobre a filosofia do ato” (1920-1924), um dos
BOYM, Svetlana. 2010. The poetics and politics of estrangement: Viktor Shlovsky
textos mais densos do crítico, onde ele propõe uma delimitação and Hannah Arendt. In: TIHANOV, Galin et al. Critical Theory in Russia and
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Ainda restariam vários trabalhos de estudiosos ligados a New York: Routledge.
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Bakhtin a serem traduzidos no Brasil (ou que o estão sendo), entre
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os quais salientaria as informações de M. Holquist em Dialogism:
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Capítulo 13

Walter Benjamin e sua


teoria crítica
Márcio Seligmann-Silva
Universidade Estadual de Campinas
Aqueles que conhecem um pouco da história de Walter Benjamin,
sabem que o ano de 1933 foi marcado pelo seu definitivo exílio, já
que suas estadias no sul da Europa, em grande parte motivadas até
então não apenas pela beleza dos lugares, mas pelo fato de terem
uma vida mais em conta do que na Alemanha, agora, após a subida
dos nazistas ao poder, passou a ser um meio de salvar a sua pele.
Entre 27 e 28 de fevereiro, ocorre o incêndio do Reichstag. No dia
28, Benjamin escreve: “Existem lugares nos quais eu posso ganhar
um mínimo, e outros nos quais eu posso viver de um mínimo, mas
nem um único no qual as duas condições se encontrem.” Agora
aquele local que servia para gerar este mínimo, a Alemanha, estava
fechado a ele. No dia 17 de março — incentivado aqui por Gretel
Karplus, sua amiga e futura esposa de Adorno —, ele partiu para o
exílio. Após uma breve passagem por Paris, entre abril e setembro,
ele mora em Ibiza novamente, retornando para Paris ao final des-
ta estadia, gravemente doente com malária. Neste ano, Benjamin
escreve um pequeno texto, que funciona como uma teoria do ro-
mance (claramente inspirada por Lukács): “Am Kamin” (“À lareira”)
e “Experiência e pobreza”, texto no qual desenvolve de modo crítico
a ideia romântica de um fim da comunidade. Aí ele não apenas
experimentou um elogio ao esquecimento e um “conceito novo e
positivo de barbárie” — que nos “impele a partir para a frente, a
480 Márcio Seligmann-Silva Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica 481

começar de novo” — como também criticou o interior burguês que catástrofe no sentido de não transformar esta apresentação em mero
sufoca seus visitantes pelo excesso de Spuren, rastros e marcas. Na efeito estético. O princípio do choque é valorizado, como no teatro
transparência da arquitetura de vidro se concretizaria a utopia (ne- épico de Brecht. Trata-se aqui de uma reflexão de primeira ordem
gativa) da nova barbárie. Novamente aqui o Benjamin vanguardista para a teoria estética do século XX: em um universo marcado pela
faz-se valer sobre o melancólico. dor e pela sua transformação em arte, deve-se pensar uma ética e
Benjamin consegue então estabelecer contato com o Instituto uma política da estética. Adorno desenvolverá esse axioma após
de Pesquisas Sociais, agora também no exílio. Ele se encontra es- a Segunda Guerra Mundial. Benjamin escreve nesse ensaio (com
poradicamente com Max Horkheimer em Paris entre outubro de Brecht) sobre uma “refuncionalização” das artes. Nesse movimento,
1933 e maio do ano seguinte. Horkheimer e Friedrich Pollack, como a arte é pensada como técnica transformadora da sociedade e de
comenta Scholem, decerto incentivados por Adorno, concedem um suas relações sociais. Aqui ele se inspira no dada, nas suas fotomon-
auxílio regular a Benjamin da parte do Instituto. Desde a primavera tagens e obras plásticas que partiam da colagem:
de 1934, ele passou a receber quinhentos francos por mês. Esta foi
sua grande salvação na situação desesperadora na qual se encon- A força revolucionária do dadaísmo estava em sua capacidade de
trava. Em uma carta a Scholem, do exílio parisiense, ele escreveu: submeter a arte à prova da autenticidade. Os autores compunham
“Eu gostaria muito de uma vez conseguir narrá-los [meus sonhos] naturezas-mortas com o auxílio de bilhetes, carretéis, pontas de
a você. Eles apresentam um Atlas imagético [Bilderatlas] para a cigarro, aos quais associavam elementos pictóricos. O conjunto
história secreta do nacional socialismo.” (Br IV 359) No verão de era posto numa moldura. O objeto era então mostrado ao públi-
1933, Benjamin escreveu em Ibiza o artigo “Sobre a posição social co: vejam, a moldura faz explodir o tempo; o menor fragmento
atual dos escritores franceses” que saiu publicado no primeiro nú- autêntico da vida diária diz mais que a pintura. Do mesmo modo,
mero daquele ano da revista Zeitschrift für Sozialforschung (Revista a impressão digital ensanguentada de um assassino, na página
de Pesquisa Social), órgão do Instituto, no qual Benjamin publicaria de um livro, diz mais que seu texto. A fotomontagem preservou
regularmente até 1940. muitos desses conteúdos revolucionários.”1
Mas Benjamin consegue estabelecer alguns outros contatos
em Paris. Como ocorre com o Instituto para o estudo do Fascismo Trata-se, nesta impressionante passagem de Benjamin, de
(ligado ao Partido Comunista), que o convidou para apresentar uma verdadeira teoria da arte da metonímia, da estética do índice, dos
palestra (“O autor como produtor”), apesar de pouco conhecermos traços, rastros e marcas, em oposição à arte da narrativa, totalizan-
sobre sua relação com o Instituto naquele momento, já que sequer te, épica, metafórica e tradicional. Benjamin estava, nestas pou-
sabemos com certeza se o ensaio chegou a ser lido nesta institui- cas linhas, dando o tom daquilo que viria a ser central na teoria
ção. Trata-se de um dos escritos mais brechtianos de Benjamin. estética cinquenta anos mais tarde. Ele denunciava na sua época a
Benjamin prega aí uma modificação dos hábitos de apresentação da 1 (BENJAMIN 1985:128)
482 Márcio Seligmann-Silva Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica 483

transformação da “própria miséria em objeto de fruição”2. Para poli- língua angélica, tem como contraponto a ironia (romântica) e a
tizar a arte, Benjamin afirma que “temos que exigir dos fotógrafos a teoria benjaminiana da arte na era de sua reprodutibilidade técnica5.
capacidade de colocar em suas imagens legendas explicativas que as Em 1935, ele escreve ensaios de grande envergadura e repercus-
liberem da moda e lhes confiram um valor de uso revolucionário” . 3
são: “Paris, a capital do século XIX”, primeira versão de seu ensaio
Benjamin posteriormente desenvolveu essa teoria da legenda em seu sobre as passagens, seu artigo sobre a obra de arte na era da sua re-
artigo de 1936 sobre “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade produtibilidade técnica6, assim como o menos conhecido, mas não
técnica”. O fotógrafo e o historiador da catástrofe são não apenas menos importante, ensaio sobre “Eduard Fuchs, der Sammler und
colecionadores de imagens, mas também aqueles que, ao inscreve- der Historiker” (“Eduard Fuchs, o colecionador e o historiador”).
rem uma legenda sobre elas, transformam-nas politicamente. Mais abaixo, abordaremos a questão do colecionismo em Benjamin.
Mas ao mesmo tempo em que lia, conversava e escrevia sobre Entre abril e junho de 1936, Benjamin escreve seu famoso
Brecht, Benjamin também lia e escrevia sobre Kafka, um dos autores — e infelizmente muito mal interpretado — ensaio “O narrador:
com os quais mais afinidades sentiu em sua vida. Ele foi um leitor Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. Este ensaio abre-se
de primeira hora deste autor de Praga, judeu de língua alemã como com uma reflexão sobre o fim da experiência, Erfahrung, que, por
ele, e preso a um universo imaginário — e bastante real – no qual sua vez, estaria na origem da crise da grande narrativa que é diag-
mito, direito, corpo e sexualidade se enlaçam em uma ciranda ao nosticada como estando “em vias de extinção”7. Aí ele refletiu sobre
mesmo tempo mórbida e lúdica. Nesse mesmo ano, ele escreve o a incapacidade dos soldados que voltavam do front da Primeira
ensaio “Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua mor- Guerra Mundial de articular as suas histórias e experiências. Vale a
te”, o maior que ele dedicou a esta “alma gêmea”. Não por acaso ele pena retomar as palavras do filósofo:
reconheceu na obra de Kafka a manifestação do que poderia ser um
dos principais meios para desenvolver e apresentar as suas próprias Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve expe-
ideias. Sua reflexão sobre a tradução e sobre a linguagem, bem como riências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência
a sua crítica da violência, passa também, como em Kafka, por uma estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica
reinversão da queda. Contra-Babel sopra o vento que vem das obras
um vaso para serem reencaixados devem seguir uns aos outros nos mínimos
destes dois autores, mas eles estão conscientes da impossibilidade da detalhes, mas não devem ser iguais, assim a tradução ao invés de se igualar
ao sentido do original, deve antes reconstruir com amor na própria língua o
reversão. Se eles criticam a linguagem judicante, que condena e é a seu modo de intentar até os mínimos detalhes para tornar, desse modo, ambas
marca da queda, é porque seu destino é a reprodução da exclusão. O [línguas] reconhecíveis como cacos e ruínas de um vaso, como ruínas de uma
linguagem maior” (II 18).
sonho da reconstrução do vaso rompido, expressado por Benjamin 5 Não trato aqui da leitura crítica de Adorno com relação a este ensaio de Kafka ou

no seu ensaio sobre a tradução , ou ainda, a busca de uma nova


4 das demais polêmicas que eles tiveram nestes anos. Com relação a este diálogo,
remeto à bibliografia no final, com destaque para BUCK-MORSS (1981).
2 (BENJAMIN 1985:129) 6 Sobre esse ensaio, remeto o leitor ao primeiro capítulo de meu livro: “Após o
3 (BENJAMIN 1985:129) “Violento Abalo” (In SELIGMANN-SILVA 2005:19-30).
4 Cf. a passagem do seu ensaio “A tarefa do tradutor”: “Assim como cacos de 7 (BENJAMIN 1985:197)
484 Márcio Seligmann-Silva Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica 485

pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a da narrativa para Benjamin) embalsamam e salvam o que deveria
experiência ética pelos governantes. Uma geração que ainda fora ser criticado na obra de Benjamin. Isto não quer dizer que neste
à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre ensaio de Benjamin não encontremos inúmeras passagens e ideias
numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto dignas de atenção. Muito pelo contrário, além da passagem acima
as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e citada, veja-se, por exemplo, o teorema que Benjamin desenvolve
explosões, o frágil e minúsculo corpo humano. 8
sobre a dialética da distância e da proximidade. Se nas sociedades
tradicionais o que valia era o culto das narrativas vindas da distância
Hoje em dia, poderíamos acrescentar a esta lista os terrores (temporal e/ou geográfica), na modernidade, a informação (jorna-
da Segunda Guerra Mundial, as inúmeras guerras anticoloniais, os lística) tem seu valor em função da proximidade9. No nosso mundo
massacres de milhões e milhões ocorridos na União Soviética, na da net que se quer pós-histórico e no qual as distâncias espaciais
China e no Camboja, o desemprego, a tortura onipresente no cha- são achatadas pela facilidade de deslocamento e pela onipresença
mado “Terceiro Mundo”, os “desaparecidos” nos regimes ditatoriais, das imagens, sequer podemos conceituar esta noção tradicional de
o imperialismo norte-americano e suas consequências etc. Nosso distância. Mas a informação continua a ser produzida seguindo a
“frágil e minúsculo corpo” está ainda mais despedaçado. Daí a nova lógica da atração pela catástrofe que se passa logo ali detectada por
literatura e arte memorial, de forte teor testemunhal e de cunho in- Benjamin. Podemos acrescentar que hoje ela serve de dispositivo de
dicial, terem o corpo que sofre como uma de suas temáticas centrais. reencenação do real, numa espécie de trabalho tardio de proteção do
Benjamin nos ajuda a pensar este fenômeno em seus textos de cunho trauma. A mídia funciona como uma perlaboração abortada, falha,
autobiográfico, na sua estética dos rastros e da ruína e, sobretudo, na das cenas de violência que pontuam nossa sociedade globalizada. A
sua teoria da história como catástrofe. Mas esse seminal artigo de onipresença de imagens violentas acaba servindo, paradoxalmente,
Benjamin tem servido não apenas para se pensar essas novas mo- para nos afastar, distanciar da violência real. A violência dos notici-
dalidades de escritura da violência, como também para se fazer um ários, dos programas de entretenimento e dos filmes de ficção acaba
discurso conservador de tipo saudosista dos “velhos bons tempos”. por formar um escudo asséptico e incólume contra a verdadeira
Lê-se Benjamin como um saudosista da comunidade (Gemeinschaft). violência corpórea10.
Se existem traços deste conservadorismo em Benjamin — e de fato 9 Esta enorme transformação na grelha espaço-temporal, provocada pelas novas

eles existem –, eles são talvez o que há de menos interessante e digno tecnologias com a aceleração dos deslocamentos e pelo avanço do capitalismo
em todos os cantos do planeta, fora brilhantemente analisada na década ante-
de reatualização. Seguindo seu próprio mote, esse caráter conserva- rior por Siegfried Kracauer. Cf., por exemplo, seu ensaio magnífico “A viagem
e a dança”, de 1925, publicado no Frankfurter Zeitung. Sua tese ressoa: “Se a
dor vai contra a utilização de sua obra como meio de transformação viagem reduziu-se a uma pura vivência do espaço, a dança transformou-se em
crítica do presente. Os nostálgicos da narrativa tradicional, dos um escandir do tempo.” (BENJAMIN 2009:82) Espaço e tempo se fragmentam
em mero acontecimento. Eles são aproximados do fenômeno da moda.
artífices, do camponês e dos marujos (as três figuras paradigmáticas 10 Kracauer já pensara nesse efeito anestesiador das imagens que menciono aqui.
Em seu ensaio “A fotografia”, de 1925, ele escreveu: “Nunca uma época foi
8 (BENJAMIN 1985:198) tão pouco informada sobre si mesma. [...] A ‘ideia-imagem’ cancela a ideia, a
486 Márcio Seligmann-Silva Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica 487

Em 1937 e no ano seguinte, Benjamin continua trabalhando emigrar para Londres. Graças à intervenção de Adorno, em meados
no seu ensaio sobre Baudelaire, uma espécie de célula mater do de julho, Benjamin finalmente consegue um visto para os EUA.
trabalho sobre as passagens. Em 1938, ele conclui o texto “A Paris Mas ele não obtém um visto para sair da França. O final da histó-
do Segundo Império em Baudelaire”, que, após sofrer muitas críti- ria é conhecido e se tornou uma espécie de marca que paira sobre
cas da parte de Adorno, foi profundamente reelaborado no texto Benjamin e sua obra. Do ponto de vista daquele que se encontra
“Sobre alguns temas em Baudelaire”, de 1939. Em 1938, Benjamin após o fato, ou seja, o suicídio de Benjamin, este evento tinge toda a
encontra-se regularmente com Bataille e Pierre Klossowski. sua vida. A verdade é que este suicídio, cometido em Port Bou, após
Este traduzira seu artigo sobre a obra de arte para publicação na ter sido impedido de sair da França, é de fato paradigmático. Ele foi
Zeitschrift für Sozialforschung. Já Bataille, que foi bibliotecário na realizado por um intelectual que de certa forma era um dos últimos
Bibliothèque Nationale entre 1922 e 1942, receberia de Benjamin, grandes pensadores de uma tradição que foi condenada a seu fim
antes de sua fuga de Paris em 1940, os manuscritos de seu traba- com o nazismo.
lho sobre as passagens. Durante este período parisiense de exílio, Olhando retrospectivamente para o século XX, podemos
Benjamin também encontrou, em algumas ocasiões, Hannah dizer que Benjamin de fato realizou um de seus projetos pessoais
Arendt, que deve ser contada entre uma das primeiras a reconhecer mais arrojados. Como formulou em uma carta a seu grande amigo
o valor da sua obra. Gershom Scholem, de janeiro de 1930, ele achava que conseguira o
O pacto de não agressão entre Hitler e Stalin de 23 de agosto objetivo de “ser considerado como o primeiro crítico da literatura
de 1939 tem um efeito devastador sobre Benjamin. Este desconten- alemã.” Esse reconhecimento na época era, na verdade, muito tími-
tamento com a política se condensou no seu último texto, “Sobre do, restrito a um pequeno círculo de leitores especializados. Hoje
o conceito da História”, de 1940. Esse texto pode ser considerado esse círculo cresceu a ponto de podermos com razão falar de um
como um dos documentos intelectuais mais impactantes sobre a “reconhecimento” de sua posição privilegiada como crítico.
vida dilacerada no século XX. Trata-se de uma reflexão crítica sobre Benjamin estava ciente, como ele escreveu na mesma carta, que
a história e a política. para tornar-se esse “primeiro crítico” era necessário “recriar a crítica
Em 1939, Benjamin tenta obter um visto para os EUA. Com o como gênero”. Esse gênero encontrava-se, então, na Alemanha, des-
início da guerra em 1º de setembro, no dia 15 do mesmo mês, ele prezado, não era considerado como sério. No mesmo ano, Benjamin
foi enviado a um campo de trabalho em Nevers, na qualidade de diagnosticava que uma das causas que havia levado a crítica alemã
alemão. Sua amiga Adrienne Monnier conseguiu libertá-lo em me- à crise naquela época era a “ditadura da resenha como forma de
ados de novembro. Dora tentou convencer, sem sucesso, Benjamin a pesquisa crítica”. Ele mencionou então, como um contramodelo do
passado, as “Características” dos irmãos Schlegel. Como um dos ca-
nevasca de fotografias trai a indiferença em relação ao que as coisas querem
dizer. Não deveria ser assim; mas para as revistas ilustradas americanas, em todo minhos para a saída da crise da crítica, ele cobrava dos críticos uma
caso, imitadas de todos os modos nos outros países, o mundo identifica-se com
a quintessência das fotografias.” (KRACAUER 2009:75) Nada mais atual.
aproximação entre a abordagem filológica e uma autêntica reflexão
488 Márcio Seligmann-Silva Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica 489

crítica. Esse termo indicava para ele uma reflexão tanto no sentido ele como um meio de crítica de todo o sistema cultural e de sua base
de uma teoria das formas, como de uma teoria da história. econômica. A partir de seu encontro com o marxismo de Lukács,
Sem falsa modéstia, ele escreveu, então, que, se a situação da isto se tornou cada vez mais patente em seus ensaios e textos de
crítica alemã estava se transformando, isto ocorria em parte devido crítica de arte. Aliás, se ele se identificou tão rapidamente com o
aos seus enormes esforços. E, de fato, Benjamin, então com 38 anos, marxismo de Lukács, foi também porque ambos, este e Benjamin,
já fizera bastante para o aprimoramento da crítica. Ele não apenas vinham de uma profunda relação com o romantismo alemão. Mas
publicara dois ensaios de peso sobre a literatura alemã, O conceito Benjamin foi mais longe que seus colegas de geração, justamente
de crítica de arte no romantismo alemão (1919 [1993]) e Origem do porque, ao invés de “superar” seu romantismo, manteve-se fiel a
drama barroco alemão (de 1925, publicado em 1928), como com- ele por toda a sua vida. Se ele tenta nos anos 1930 demarcar uma
pusera uma profunda análise das Afinidades Eletivas de Goethe posição contra esse seu romantismo, é justamente porque ele não
(1922), além de mais de cerca de uma centena de artigos de crítica, conseguiu superá-lo totalmente.
sobretudo sobre literatura alemã e francesa. Com o fracasso de seu A crítica de Benjamin era, portanto, antes de mais nada, um
plano de entrar para a universidade, ele se entregara de corpo e alma ato de reflexão que se desdobrava em cinco níveis, articulando-os. O
a esse projeto de crítica. Isto significou para ele uma vida atribulada, primeiro nível incluía uma autorreflexão (ele sempre refletia sobre
com enormes dificuldades econômicas. Para a posteridade, a sua sua própria atividade de crítico, sobre o local e o papel da crítica na
enorme produção, paradoxalmente derivada desta mesma situação sociedade). Em segundo lugar, destaca-se uma leitura detalhada e
precária, significou o estabelecimento de um marco no pensamento uma reflexão sobre a obra criticada (que era sempre analisada não
e na crítica. a partir de um modelo a-histórico, mas sim de seu próprio “Ideal
Esta última, em Benjamin, nunca foi limitada à literatura ou às a priori”, nas palavras de Novalis). Em terceiro lugar, encontramos
obras de arte consagradas. Ele entendeu, em primeiro lugar, o con- uma reflexão sobre a história da arte e da literatura, onde Benjamin,
ceito de crítica no seu sentido kantiano, de crítica da possibilidade dentro de uma forte tradição alemã, desenvolveu, muitas vezes
de conhecimento. Nesse ponto, seu pensamento já se aproxima do (como no livro sobre o barroco e no seu ensaio sobre o narrador,
dos românticos Schlegel e Novalis, que cobravam da filosofia kantia- de 1936), o tema da teoria dos gêneros literários. Em quarto lugar,
na uma expansão do seu conceito de experiência. Com esses autores, nota-se sempre uma reflexão crítica sobre a sociedade, ou seja, a
ele via na crítica um “medium-de-reflexão”. Trocando em miúdos, crítica foi praticada em Benjamin a partir do seu presente e voltada
assim como os românticos viam na “romantização” do mundo para ele, sem a ilusão positivista de se poder penetrar no passado
um projeto de superação das barreiras entre o universo criativo e “tal como ele aconteceu”. Por fim, e articulando todos os níveis an-
penetrado de fantasia das artes, e, por outro lado, a vida prosaica teriores, devemos destacar a teoria da história de Benjamin com a
cotidiana, do mesmo modo, Benjamin propõe para a crítica um sua crítica aos modelos da evolução histórica, tanto liberais como
projeto tanto estético como político. O ato da crítica era visto por marxistas, que acreditavam em um avanço constante e positivo do
490 Márcio Seligmann-Silva Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica 491

devir da história. Benjamin opôs a este modelo uma imagem da crítica que era ao mesmo tempo teoria da literatura. É esse talvez
história como acúmulo de catástrofes. o legado mais importante de sua produção crítica: ele mostrou a
Contra o positivismo daqueles que pregavam (inocentemente infecundidade da crítica apenas filológica, assim como a limitação
ou não) uma crítica apolítica, Benjamin demonstrou que não existe da crítica meramente imanente, ou ainda, da crítica biográfica.
um campo “fora” do político. A arte e sua crítica são “medium-de- Crítica para ele só existia enquanto capacidade de se articular (deli-
-reflexão” não apenas do sistema estético, mas, antes, de toda a so- cadamente, ou, às vezes, com todo o peso histórico exigido por seu
ciedade. Nesse sentido, ele extrapolou programaticamente o âmbito objeto de análise) a imanência da obra com a reflexão histórico-crí-
da crítica da literatura e da arte. Sua atividade crítica não pode ser tica. As mostras mais eloquentes dessa concepção são a introdução
inteiramente compreendida, se não levarmos em conta seus semi- “crítico-epistemológica” do seu livro sobre o drama barroco alemão,
nais textos críticos dirigidos à questão do poder e do direito (lem- e as reflexões que acompanham as notas de seu trabalho que ficou
bremos, sobretudo, de seu “Crítica da Violência, Crítica do Poder”, inconcluso sobre as passagens de Paris.
de 1921, que influenciou Carl Schmitt), assim como a sua crítica do Benjamin escreveu no seu último texto, “Sobre o conceito da
que ele denominou de concepção “burguesa”, ou seja, instrumental, história”, que “nunca existiu um documento da cultura que não fos-
da linguagem (recordemos seu “A tarefa do tradutor”, também de se ao mesmo tempo um [documento] da barbárie”. É interessante
1921, e do artigo de juventude “Sobre a linguagem em geral e sobre ler a tradução do próprio Benjamin dessa famosa passagem das suas
a linguagem dos homens”, de 1916). Além disso, Benjamin refletiu teses: “Tout cela [l’héritage culturel] ne témoigne [pas] de la culture
também em vários importantes ensaios críticos sobre questões como sans témoigner, en même temps, de la barbarie”. Com Benjamin,
a (atualíssima) da coleção e do colecionismo (vejam seus trabalhos aprendemos que cultura é, a partir de meados do século XX, toda ela
sobre coleção de brinquedos e de livros)11. Voltaremos a este ponto como que transformada em um documento e, mais ainda, ela passa
a seguir. Seus escritos voltados para a recordação de sua infância a ser lida como testemunho da barbárie. Essa noção é essencial, por-
(Crônica Berlinense e Infância em Berlim) são profundamente inova- que, com esse autor, vemos não apenas uma tremenda expansão nos
dores, na medida em que desconstroem criticamente os modelos da critérios de seleção, como também a afirmação radical de um modo
autobiografia e introduzem uma modalidade da autoescritura mais de interpretar esses documentos. Sua teoria da história e da cultura
fragmentada e voltada para uma “topografia da memória”. descortina o passado e suas ruínas, sobre as quais construímos nos-
O fundamental dentro do universo das críticas de Benjamin, so presente, como um único e gigantesco arquivo. Quando se fala de
quando ele voltava seu potente intelecto para as obras que eram arquivo, não se pode esquecer que a toda inscrição deve-se associar
publicadas na sua época (como as de Proust, Kafka, Döblin, Kraus, um modo de leitura e de interpretação; de outra forma, teríamos
Brecht, Kracauer etc.), ou para reedições de obras consagradas ou um arquivo literalmente morto. O elemento político domina todos
não (de Goethe, Kleist, Hebel etc.) é que ele sempre realizou uma os momentos do trabalho no arquivo, da seleção, passando pela
11 (BENJAMIN 1985:235-253)
conservação e pelo acesso, chegando à leitura dos documentos. A
492 Márcio Seligmann-Silva Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica 493

história para Benjamin, como é conhecido, é aproximada do mode- falar desse pensador que a sua atualidade, paradoxalmente, não para
lo do colecionador e daquele do Lumpensammler, o catador de pa- de se evidenciar e confirmar com o decorrer dos anos.
péis. O historiador deve acumular os documentos que são como que
apresentados diante do tribunal da história. Em Benjamin, a cultura Salvar o “esquecido”
como arquivo e memória, devido ao viés crítico e revolucionário de O século no qual Benjamin viveu já foi chamado de “era das ca-
seu modo de leitura, não deixa a sociedade e sua história se cristali- tástrofes”. A memória do mal acumulada nesta época exigiu uma
zarem em museus e parques temáticos. É o viés conservador da cul- reformulação dos hábitos positivistas da historiografia, assim como
tura como mercadoria que o faz, ao qual Benjamin opõe sua visada abriu os olhos de alguns teóricos para a necessidade de se escrever
da cultura como documento e testemunho da barbárie. Seu projeto uma história, como diria Benjamin, a contrapelo. Como lidar com
de historiografia calcado no colecionismo (que tem por princípio questões epistemológicas como essas diante de eventos-limite como
o arrancar de seus objetos do falso contexto para inseri-los dentro os genocídios do século XX; ou de eventos como ditaduras com as
de uma nova ordem comandada pelos interesses de cada presente) e, suas práticas de repressão através da tortura e do “desaparecimen-
por outro lado, inspirado no trabalho do catador (que se volta para to”? Desde meados do século XX e dando continuidade ao percurso
o esquecido e considerado inútil) ainda hoje pode ser comparado a de autores que produziram até esse limiar e que por ele foram traga-
um pólen que guarda uma assombrosa força de germinação. Para dos, como o próprio Walter Benjamin e Maurice Halbwachs, está-se
entender esta concepção benjaminiana da coleção e do historiador construindo uma nova ética e estética da memória e da historiografia.
como catador, analisemos melhor sua nova ética da memória. As novas formas de “representação” do passado foram modeladas a
Pensar uma reflexão ética derivada da obra de Walter Benjamin partir dos grandes cortes históricos, como a Primeira e a Segunda
implica uma abordagem detida de vários estratos de seus trabalhos. Guerra Mundial. Esta nova ética, tal como a lemos em Benjamin,
Sem ser um filósofo da ética no sentido tradicional desse termo, nasce sob o signo da nova desconfiança diante das categorias uni-
muito menos, um filósofo da moral, Benjamin pensou, em diversos versais. Podemos dizer que Auschwitz desfez as últimas certezas
momentos de sua vida e obra, em questões que estão no coração quanto à existência de tais universais eternos. Em contrapartida,
da ética. Esse compromisso com a ética deve ser pensado, antes de observou-se, mais e mais, a ascensão do registro da memória — que
mais nada, como um modo de tentar denunciar, nas representações é fragmentário, calcado na experiência individual e da comunida-
culturais, a violência que está na origem da cultura. Benjamin foi de, no apego a locais simbólicos e não tem como meta a tradução
um profundo teórico da memória e sua prática de historiador e de integral do passado. De resto, as guerras e demais conflitos radicais
crítico literário apresentam um modo de lidar com o seu objeto que (incluindo aí os graves conflitos sociais e políticos que marcaram
podemos classificar como ético. O modo de trabalhar de Benjamin, esse século) acarretaram o abalo de uma concepção linear do de-
sua ética da representação e da memória, seu compromisso com os correr histórico. Nessa época, ocorreu também uma valorização dos
excluídos da história, tudo isso aponta para o fato de que a sua obra lieux de mémoire, um movimento presente de modo muito evidente
ainda tem muito a contribuir para o século XXI. Talvez possamos em Benjamin, assim como em Halbwachs e, após a Segunda Guerra,
494 Márcio Seligmann-Silva Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica 495

em Pierre Nora e em uma série de historiadores contemporâneos. O como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que,
historiador se identifica agora tanto com a figura do arqueólogo — entre as maxilas da deusa indústria, vai adotar a forma de objetos
que também desempenha um papel forte enquanto uma metáfora úteis ou agradáveis.12
do trabalho do psicanalista, como lemos em “Mal-estar na cultura”
de Freud — como esse novo historiador também assume o papel de O próprio Benjamin não apenas foi um teórico da coleção e do
cartógrafo que deve (re)traçar a “topografia do terror” (parafrase- colecionismo (lembremos de seu mencionado ensaio sobre Eduard
ando o nome da exposição-memorial que se localiza em Berlim nas Fuchs, um dos maiores colecionadores de ilustrações eróticas e de
ruínas do antigo quartel-general da Gestapo). caricaturas da modernidade), mas ele mesmo colecionou livros in-
Benjamin pensou essa nova prática de escritura do passado a fantis e de “doentes mentais”, bem como brinquedos, como lemos
partir das ruínas de seu presente. Não por acaso, sua obra sobre o nos seus Diários de Moscou. Seu texto de 1931, “Desempacotando
drama barroco alemão, escrita durante a República de Weimar, em minha biblioteca: Um discurso sobre o colecionar”, reúne muitas de
uma Alemanha marcada pela destruição da guerra que perdera, vai suas reflexões sobre essa prática. Ele vê no ato de colecionar livros
ter as ruínas e uma concepção trágica da história como história de antigos — marcado pela pulsão “infantil” do colecionar que renova
um acúmulo de catástrofes. A própria natureza aparece aí — como o mundo via uma pequena intervenção nos objetos — uma espécie
já acontecera em outros textos de juventude de Benjamin — como de renascimento das obras. Já no seu livro Rua de mão única, ele
uma paisagem arruinada que iniciaria a se lamentar se lhe fosse dada fizera a seguinte anotação:
uma voz. Nos anos 1930, no contexto de seu projeto sobre o século
XIX, ele encontrou em Baudelaire um personagem paradigmático CRIANÇA DESORDEIRA. Cada pedra que ela encontra, cada
que encarnaria seu novo modo de lidar com o passado. Ao invés da flor colhida e cada borboleta capturada já é para ela princípio
figura (aristocrática) do historiador que trabalha no gabinete ou se de uma coleção única. Nela esta paixão mostra a sua verdadeira
fecha em arquivos oficiais, ele compara seu trabalho de escrita do sé- face, o rigoroso olhar índio, que, nos antiquários, pesquisadores,
culo XIX com o de um catador. Benjamin, no seu “Paris do Segundo bibliômanos, só continua ainda a arder turvado maníaco. Mal
Império em Baudelaire”, citou este poeta, autor não só do poema “O entra na vida, ela é caçador. Caça os espíritos cujo rastro fareja
vinho dos trapeiros”, mas também de uma descrição do trapeiro que nas coisas; entre espíritos e coisas, ela gasta anos, nos quais seu
aproxima essa figura urbana moderna do trabalho do próprio poeta: campo de visão permanece livre de seres humanos.13

Aqui temos um homem — ele tem de recolher na capital o lixo do Uma das ideias seminais de Benjamin sobre a prática da coleção
dia que passou. Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que pode ser lida no seu texto “Elogio da boneca”, que trata justamente de
ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu, é reunido um ponto vital do gesto do colecionador: a relação entre o indivíduo
e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum
12 (Apud BENJAMIN 1989:78)
da escória; separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede
13 (BENJAMIN 1987:39)
496 Márcio Seligmann-Silva Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica 497

(que seleciona, arranca do contexto e coleciona) e o mundo objetivo trata de uma passagem de mão única; antes, Benjamin nos ensina a
das “coisas”. Aqui percebemos em que medida a sua ética da memó- oscilar entre o verbal (o que ele denominou de sprachlich, lingual,
ria implica um duplo ato: por um lado, a destruição da falsa ordem referindo-se a Friedrich Schlegel) e o imagético.
das coisas e, por outro, a construção de um novo espaço mnemônico Benjamin era destes filósofos que pensavam a partir dos extre-
— que, ao mesmo tempo, salva a individualidade do objeto e é mais mos. Nele a escala temporal é ou cósmica ou micrológica. Nesses
condizente com as demandas do presente: “O verdadeiro feito, nor- extremos o movimento estanca. Desde seu livro sobre o barroco,
malmente desprezado, do colecionador é sempre anarquista, des- podemos observar essa tendência para a paralisação do tempo. Seu
trutivo. Pois esta é a sua dialética: ele conecta à fidelidade para com olhar de Medusa congela o movimento do real para revelar novas
as coisas, para com o único, por ele assegurado, o protesto teimoso e facetas, até então insuspeitas, exatamente como a fotografia e o filme
subversivo contra o típico e classificável” (III 216). Esta quebra dos (com seu close-up e a câmara lenta) o possibilitaram. A teoria da
sistemas de classificação — que são reproduzidos em enciclopédias, alegoria e da melancolia, do livro sobre o barroco, já desdobrava
compêndios, listas canônicas — permite uma refundação de nossos uma dialética tensa entre o verbal e o visual. A teoria barroca da lin-
hábitos de relacionamento com nossos objetos de pesquisa e traba- guagem tendia para uma teoria da arquiescritura14. Além dessa cir-
lho. Benjamin, com sua teoria e prática do colecionismo, desfere um culação entre o fonético e o imagético, Benjamin também realizou,
vigoroso ataque contra a compulsão à identidade. Essa nova práxis no seu ensaio sobre o barroco, um quiasma temporal ao ver cada
do saber é orientada por um olhar político e atento para as astúcias dado cultural ao mesmo tempo como uma espécie de fóssil (uma
do poder e de seus modos de reprodução. “história natural da destruição”) e como um documento digno de
Detenhamo-nos com mais vagar na concepção do trabalho in- ser atualizado. No trabalho das passagens, esse modelo epistemoló-
telectual que Benjamin desenvolveu no seu Passagens, que permite gico e de teoria da história foi aperfeiçoado: o momento de atuali-
vislumbrar uma nova ética dessa atividade. Seu projeto e seu método zação passou a ser visto como correlato de uma intervenção política
de trabalho, ao invés de se contentarem com a “virada linguística do
14 Benjamin, na sua empreitada de inversão da tradição fonocêntrica, lançou mão do
saber”, executam ainda uma “virada visual do saber”. Em Benjamin, barroco, de Baader, F. Schlegel, Novalis, da teoria mística da arquiescritura formu-
a teoria retoma seu sentido etimológico, em grego, de theorein, “con- lada pelo romântico Johann Wilhelm Ritter (II 387-89) — para quem “‘nós escre-
vemos quando falamos’” (I 387; cf. SELIGMANN-SILVA 1999:108s.) — e das teorias
templar, ver”. Não se trata com isso, evidentemente, de um retorno renascentistas do hieróglifo. Sua teoria da alegoria (assim como a da melancolia),
por outro lado, é também a teoria do funcionamento escritural da cultura, da cultu-
ao positivismo e nem ao primado da “presença” de cunho platônico ra como memória: afinal a alegoria é caracterizada por ser um traço, uma escritura
(tão criticado pelo próprio Benjamin e, mais tarde, por Derrida). cifrada na qual não apenas lemos testemunhos das gerações passadas, mas com a
qual tentamos montar nosso presente. Ela é mais do que uma simples escritura, ela
Benjamin está na origem de um novo regime escópico, ou seja, de é, nos termos de Derrida (1980 apud WEIGEL 1996), écrypture — escritura críptica,

um novo modo de se ver o mundo e, por tabela, de se conceber o traço que conserva e retém algo passado, morto, que é testemunhado por outros
presentes — a saber, em termos benjaminianos: uma escritura que encapsula um
saber e seus métodos. Sua intuição intelectual seria, nesse sentido, a determinado agora (tempo-do-agora, Jetztzeit) que pode brotar em outro agora
(agora da cognoscibilidade, Jetzt der Erkennbarkeit) que lhe é análogo e que sou-
realização da passagem do regime verbal para o visual. Mas não se be devolver a sua mirada no “momento correto”.
498 Márcio Seligmann-Silva Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica 499

no decorrer histórico. O historiador-catador, que, para Benjamin, texto espacial, como o seu Un coup de dés, é importante para se
salva os “detritos” da história, visa à interrupção do seu curso, a que entender este livro de Benjamin. As passagens aí (textuais, assim
chamamos de progresso, mas que, na realidade, ele nos ensinou, é como a forma arquitetônica) são vistas como estrelas que compõem
apenas o avanço da destruição. Em suma, a historiografia em ruínas constelações, campos de força. São também, além disso, passagens
que vemos nas Passagens, um livro que contém milhares de notas móveis, que ora se aglutinam em uma “nebulosa”, ora em uma “ga-
com citações e comentários fragmentados, é correlata do modelo do láxia”, ora fazem as vezes de “buracos negros” e sugam para si as
histórico como um acumular de ruínas. demais imagens. Benjamin ficou impressionado com a ilustração
“Escrever a história significa [...] citar a história. Ora, no con- de Grandville Le pont des planètes, de 1844, que está descrita em
ceito de citação, está implícito que o objeto histórico em questão um dos fragmentos mais antigos do projeto das passagens. Nessa
seja arrancado do seu contexto”15, lemos em um dos fragmentos das imagem, pontes de ferro servem de passagem entre os planetas. Um
Passagens. O gesto do colecionador de arrancar as coisas de seu con- tal universo cósmico é a marca também de seu próprio livro depois
texto, assim como o gesto do catador que “reencanta” o que fora des- do livro, ou seja, das suas Passagens. A cidade é captada como um
cartado pela sociedade de consumo, é paralelo ao gesto do “materia- universo “gramatológico”, onde as ruas seriam as linhas e os prédios
lista histórico” que, com sua historiografia-montagem, visa romper as letras.
com o continuum da dominação. Essa libertação, para Benjamin, é O modelo do Passagens é escritural em um sentido literal, pois
tanto dos homens como do próprio passado. Para Benjamin, apenas Benjamin copia trechos do século XIX para construir a sua grande
em uma sociedade libertada caberia uma memória total do passa- obra. Como lemos em uma passagem exemplar desse entrecruza-
do: trata-se aqui da utopia psicanalítica da passagem do Id ao Ego. mento entre reflexão topográfica e gramatológica do seu Rua de mão
Trata-se de um juízo universal que salvaria a tudo e a todos: apoca- única: “A força [Kraft] da estrada do campo é uma se alguém anda
tastasis, como escreve Benjamin, citando Orígenes (V 573 e I 458). por ela, outra se a sobrevoa de aeroplano. Assim é também a força do
Trata-se também da utopia lingual de uma plena comunicação, de texto, uma se alguém o lê, outra se o transcreve”18. Ou seja, Benjamin
uma língua “angélica” universal. De uma libertação da “língua pura” une o plano geográfico ao micrológico da escritura-cópia. Suas có-
que, para Benjamin, dormita na nossa língua “decaída”16. pias, por sua vez, deveriam ser juntadas segundo o princípio da mon-
As Passagens são um microcosmo desta utopia realizada, na tagem: “Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada
medida em que procede à “arte de citar sem usar aspas” . Essa 17
a dizer. Somente a mostrar”19, lemos em um fundamental fragmento
obra é também a realização do sonho do livro mallarmaico, com das Passagens. É importante lembrar também o que ele quer mostrar:
suas páginas intercambiáveis ao infinito. O crítico só o é enquanto “os farrapos, os resíduos”20. Como o alegorista-colecionador barroco,
criador e artista. Também a ideia de Mallarmé de se construir um ele se volta para o pequeno e aparentemente sem importância para
15 (BENJAMIN 2006:518; V 595) 18 (BENJAMIN 1987:16)
16 (Cf. SELIGMANN-SILVA 1999:79-90) 19 (BENJAMIN 2006:502; V 574)
17 (BENJAMIN (2006:500; V 572) 20 (BENJAMIN 2006:502; V 574)
500 Márcio Seligmann-Silva Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica 501

construir seu painel móvel do século XIX. Esse é o cerne da ética da Mnemosyne), também Benjamin visava construir painéis-mon-
apresentação haurida por Benjamin. Quem sai vencido deste trabalho tagem da história. Ambos compartilhavam também esse mesmo
é o modelo tradicional da narrativa historiográfica: “O materialismo gosto pelo detalhe, pelos fenômenos sutis. Os dois operavam a sua
histórico precisa renunciar ao elemento épico da história” . Passagens 21
leitura do histórico por meio de saltos e valorizavam a categoria das
como essas, recorrentes nos anos 1930 na pena de Benjamin, devem semelhanças na análise do seu material.
ser lidas e relidas. Assim poderemos evitar também as interpretações As Passagens (ao lado do Mnemosyne de Warburg) é uma das
conservadoras de Benjamin (frequentes também no Brasil, como primeiras obras a enfrentar o desafio de se reestruturar o pensa-
mencionado) que projetam nele um nostálgico da antiga narrativa. mento e a historiografia da cultura a partir do princípio do arquivo.
Antes, Benjamin estava engajado no seu presente e apresentou um Essa enorme atualidade dessa obra deve-se também ao fato de ela
projeto, com suas Passagens, que visava remodelar o fazer e o pensar carregar as marcas do século XX. Benjamin construiu uma obra
históricos, para além tanto da noção de “progresso” como da de “épo- que ainda hoje é tão atual justamente porque ele penetrou nas en-
ca de decadência”. Se a história é um palco de catástrofes e violência, tranhas do século XX. A fragmentação desse trabalho e o fato de
não tem sentido se falar em “eras de decadência”. ele ter permanecido “em aberto” devem ser considerados, a um só
Essa remodelagem passava fundamentalmente por uma reva- tempo, como fruto das catástrofes do século XX e como o resultado
lorização da visualidade. Ele anotou: do caminho do pensamento de Benjamin. Evidentemente, se não
fosse também uma das pessoas que melhor compreenderam as re-
Um problema central do materialismo histórico a ser finalmente voluções pelas quais passavam as mídias neste período, tampouco
considerado: será que a compreensão marxista da história tem ele teria construído as suas Passagens.
que ser necessariamente adquirida ao preço da visibilidade Para Benjamin haveria algo como um “agora da conhecibili-
[Anschaulichkeit] da história? A primeira etapa desse caminho dade” (ou da cognoscibilidade) que determina a leitura de um certo
será aplicar à história o princípio da montagem. Isto é: erguer ocorrido, que “olha” para esse momento atual. Esse encontro entre
grandes construções a partir de elementos minúsculos, recorta- dois momentos tem para ele a forma de uma imagem a saber de
dos com clareza e precisão. E, mesmo, descobrir na análise do uma constelação. Com esta concepção, a narrativa cede lugar para a
pequeno momento individual o cristal do acontecimento total. leitura e comentário das imagens:
Portanto, romper com o naturalismo histórico vulgar. 22

A imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lam-


Como no historiador da arte Aby Warburg (lembremos pejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem
de seu último projeto, também inconcluso, o Atlas de imagens é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente
com o passado é puramente temporal, a do ocorrido com o agora
21 (BENJAMIN 2006:516; V 592)
22 (BENJAMIN 2006:503; V 575)
é dialética – não de natureza temporal, mas imagética. [...] A
502 Márcio Seligmann-Silva Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica 503

imagem lida, quer dizer, a imagem no agora da cognoscibilidade, explode-se não apenas com o positivismo e o historicismo, mas
carrega no mais alto grau a marca do momento crítico, perigoso, também com as visões idealistas (hegelianas) e metafísicas (de di-
subjacente a toda leitura.23 reita e de esquerda) da história. Contra a visão de progresso (que
marca tanto a historiografia burguesa como a marxista), ele também
O perigo é o de cair no esquecimento, assim como o de se defende uma noção forte de atualização:
manter não lida e encoberta pela narrativa tradicional — épica,
linear — que apresenta apenas o triunfo dos vencedores. Em suma, Pode-se considerar um dos objetivos metodológicos deste traba-
ao construir uma obra-móbile, obra-constelação, obra-trabalho, lho demonstrar um materialismo histórico que aniquilou em si
Benjamin estava performaticamente realizando este trabalho de a ideia de progresso. Precisamente aqui o materialismo histórico
leitura crítica, de salvamento do ocorrido que, sob sua lupa, decan- tem todos os motivos para se diferenciar rigorosamente dos há-
tava-se em imagens dialéticas. bitos de pensamento burgueses. Seu conceito fundamental não é
A ideia de “ler o livro do mundo”, que guia as Passagens, ex- o progresso, e sim a atualização.26
plicita-se em fórmulas nas quais Benjamin afirma querer “ler o real
como um texto”24. Essa leitura realiza paralelamente o comentário Arquivos
crítico das passagens citadas. Existe nesta obra uma busca de su-
Mas detenhamo-nos mais no trabalho já mencionado de colecio-
peração da submissão à qual a epistemologia tradicional relegava o
nador/catador que Benjamin aproxima ao do historiador materia-
objeto, ou seja, a um papel de “escravo” do sujeito do conhecimento.
lista. Devido a esse procedimento de colecionar citações, o volume
O materialismo benjaminiano passa por este apego escritural, literal
Passagens assume a qualidade de um gigantesco e potente arquivo.
ao seu objeto. Mas se ele escreve que queria apenas “mostrar” e nada
Não por acaso, ele nasceu em grande parte de dentro da Bibliothèque
dizer, não é menos verdade que boa parte dos fragmentos são co-
Nationale: um paradigmático arquivo do século XIX. Novamente
mentários críticos seus. Benjamin coloca-se não apenas na posição
estamos em um campo que se tornou a verdadeira pedra de toque
do copista, mas também na do comentarista e do crítico. Sem contar
dos nossos atuais debates intelectuais. A história como arquivo é um
que, como grande teórico do colecionismo que era, ele sabia que o
tema fundamental na nossa era, que já foi denominada de pós-mo-
colecionador, ao selecionar o que vai para sua coleção, já está, de
derna e pós-histórica, mas que, na verdade, é simplesmente uma era
certo modo, dando uma forma sua ao mundo. Se para Benjamin
dos arquivos e das querelas em torno deles.
“escrever a história significa dar às datas a sua fisionomia”25, não é
“Aquilo de que se sabe que logo não mais se terá diante de si,
menos verdade que, nesta fisionomia, misturam-se traços do ocor-
torna-se imagem”27, afirmou Benjamin no seu “A Paris do segundo
rido com o agora. No gesto de historiador da cultura de Benjamin,
23 (BENJAMIN 2006:505; V 578) 26 (BENJAMIN 2006:502; V 574)
24 (BENJAMIN 2006:506; V 580) 27 “Das, wovon man weiß, daß man es bald nicht mehr vor sich haben wird, das wird
25 (BENJAMIN 2006:518; V 595) Bild” (I 590)
504 Márcio Seligmann-Silva Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica 505

Império em Baudelaire”: como nas fotografias das ruas de Paris não é gratuita. Benjamin era um grande leitor de Freud e sabemos
de Atget, no verso das quais o fotógrafo anotava: “Va disparaître” da importância do conceito freudiano de trauma para a sua teoria
(“Vai desaparecer”). Nossa contemporaneidade, não por último, do choque e do fim da experiência como Erfahrung, ou seja, como
graças às duas grandes guerras, aos contínuos abalos gerados por capacidade de articulação do presente com a tradição.
tantos outros conflitos bélicos e genocidas, mas também devido à Além disso, nas Passagens, Benjamin retoma a noção psicana-
onipresença dos computadores, que (para o bem e para o mal) nos lítica de interpretação dos sonhos para descrever o que ele queria
reensinam a pensar, é uma sociedade que sofre daquilo que Derrida realizar com o século XIX. Aqui o conceito fundamental é o de des-
denominou de “mal de arquivo” . Sofremos, ao mesmo tempo, de
28
pertar. Como ele anotou: “O agora da cognoscibilidade é o momen-
memória demais (hipermnésia): graças às “infinitas” possibilidades to do despertar”29. Apesar das profundas influências e afinidades
de arquivamento que as novas mídias nos abriram, assim como de- com os surrealistas, Benjamin se distancia deles no que toca ao culto
vido aos “fatos terríveis” que clamam por narração; e de memória do sonho. Numa carta de agosto de 1935 a Scholem, ele descreveu
de menos (hipomnésia): graças ao anti-historicismo típico de nosso esse trabalho com as seguintes palavras: “O trabalho expõe tanto a
“capitalismo tardio”, ao pragmatismo onipresente, aos inúmeros valorização filosófica do Surrealismo — e, desse modo, a sua supe-
traumas do século XX que geraram cemitérios de cadáveres e de ração —, como também a tentativa de agarrar a imagem [Bild] da
memórias. história nas fixações não aparentes da existência, como que nos seus
detritos [Abfällen]”30. Ele valorizou o momento do despertar, como
Despertar do mito e do sonho um limiar, uma soleira, na qual os dois campos, o do onírico e o da
vigília, se interpenetram: apenas neste local de passagem pode-se
A ideia de arquivo, por outro lado, possui profundos desdobramen-
ainda ter acesso às imagens do sonho e interpretá-las, sem também,
tos dentro da teoria psicanalítica. Freud esboçou várias compara-
por outro lado, se entregar aos mecanismos de censura da vigília.
ções de nossa estrutura psíquica com outras estruturas complexas
No seu livro sobre as passagens de Paris, tratava-se de ler e interpre-
que se aproximam da noção de arquivo, como ao compará-la a
tar estas imagens, para permitir um despertar dos mitos e sonhos
uma câmara fotográfica (com a sua capacidade de registrar em uma
do século XIX. O mito mais potente daquele século era justamente
escritura luminosa um instantâneo), ao bloco mágico (com suas
o mito do progresso. Daí a importância de se levar em conta, na re-
partes do mecanismo de inscrição que corresponderiam a Eu, Isso e
cepção desta obra, sua forma revolucionária (e não reduzi-la apenas
Supereu) e a um campo geológico (com suas diversas camadas, que
às terríveis contingências históricas pelas quais Benjamin teve que
realizam uma espacialização do tempo e no qual podemos surpre-
passar — e nelas sucumbiu). O gestus de construir, mas também
ender, lado a lado, fragmentos cujas origens distam de séculos). Essa
de interromper e de fragmentar, é parte essencial da historiografia
proximidade de conceitos benjaminianos com outros da psicanálise
29 (BENJAMIN; SCHOLEM 1985:202)
28 (DERRIDA 1995) 30 (BENJAMIN 2006:516; V 592)
506 Márcio Seligmann-Silva Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica 507

como “terapia de choque” desenvolvida por Benjamin. Esse gestus a sua figura, assim como uma constelação constitui-se apenas
deve ajudar a romper as forças negativas do mito. através dos seus pontos luminosos. Também aqui um arco deve
ser estendido, uma dialética dominada: aquela entre a imagem e
A imagem dialética o despertar. (B 688).

Em “Paris, capital do século XIX”, o projeto da sua obra não concluída


sobre as passagens, a categoria de imagem dialética está claramente É justamente na direção do desdobramento deste programa de
conectada ao trabalho do pesquisador, descrito no prefácio do livro “dominar” essa dialética entre a imagem e o despertar que Benjamin
sobre o drama barroco, de busca dos fenômenos originários: “É no desenvolve o seu conceito de imagem dialética.
que os fenômenos possuem de mais singular e de mais excêntrico, nas Assim, nas ditas teses (“Sobre o conceito de História”), tal
tentativas impotentes e acanhadas, assim como nas aparições dema- categoria surge para caracterizar o procedimento da historiografia
siado maduras das épocas tardias, que a descoberta pode trazê-lo à materialista. Ou seja: ela é vinculada àquele mesmo procedimento
luz do dia” (I 227). Por outro lado, no texto de 1935, lemos que a ima- tratadístico descrito no prefácio epistemológico do livro sobre o
gem dialética é uma “imagem-onírica” (“Traumbild”, V 55), ou uma barroco, ao desvio (“Umweg”, I 208), ou ao “salto” (IV 425). Com
“imagem-desejo” (“Wunschbild”, V 47), na qual o moderno cita a sua efeito, a tese sobre o conceito de história de número XVII afirma:
proto-história: “ou seja, uma sociedade sem classes” (“dass heißt einer “Ao pensamento pertence não apenas o movimento dos pensamen-
klassenlosen Gesellschaft”, V 47). Esta conformação que sobrepõe o
tos, mas também a sua paralisação” (“Zum Denken gehört nicht
novo e o utópico deixa o seu rastro, para Benjamin, “em milhares de
nur die Bewegung der Gedanken sondern ebenso ihre Stillstellung”,
configurações da vida, desde os prédios mais duradouros até as mo-
I 702). E, em seguida, reencontramos o trabalho com os extremos,
das mais efêmeras” (“in tausend Konfigurationen des Lebens, von den
que, no livro sobre o barroco, caracterizava o procedimento do tra-
dauernden Bauten bis zu den flüchtigen Moden”, V 55). A “dialética
balho do conceito: “Onde o pensamento se detém repentinamente
paralisada”, “Dialektik im Stillstand” (V 55), é marcada pela ambigui-
numa constelação saturada de tensões, aí ele lhe dá um choque com
dade, ela revela, por exemplo, a prostituta como sendo, a uma só vez,
o qual cristaliza-se como mônada.” Ressaltando o tema da môna-
a vendedora e a mercadoria (V 55). Defendendo essa sua concepção
da, o texto afirma: “o materialista histórico aproxima-se do objeto
de imagem dialética, da crítica formulada por Adorno no sentido de
que ele teria deturpado a noção marxista de fetichismo tomando este histórico única e exclusivamente onde ele se lhe depara como uma
fenômeno como “fato da consciência” (“Tatsache des Bewußtseins”, B mônada” (I 703). Nesse sentido, deve-se lembrar que essas teses fo-
672), Benjamin afirmou: ram escritas no contexto das reflexões epistemológicas e de filosofia
da história desenvolvidas em torno do seu trabalho sobre as passa-
A imagem dialética não copia o sonho – nunca intentei susten- gens de Paris. Benjamin afirma que “no Trabalho das Passagens, eu
tá-lo. Na verdade, ela parece conter as instâncias, os locais de também tenho a ver com uma indagação sobre a origem” (V 577).
rompimento do despertar e até constituir a partir destes locais Portanto, assim como no livro sobre o drama barroco alemão as
508 Márcio Seligmann-Silva Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica 509

Ideias eram vistas como mônadas e deveriam ser apreendidas na isto explica por que a imagem dialética é encontrada justamente na
sua condição de fenômenos originários, aqui também: mônada, fe- linguagem: “Para o dialético trata-se de apanhar o vento da história
nômeno originário e imagem dialética constituem uma constelação mundial [Weltgeschichte] nas velas. Para ele pensar quer dizer: pôr
de categorias. as velas. Como elas são postas é importante. Palavras são a sua vela.
Retomando a concepção epistemológica expressada por Goethe Como elas são colocadas, isto faz delas conceitos” (V 591; cf. I 674).
que está, como epígrafe, na soleira da sua tese de livre-docência, O trabalho do conceito consiste justamente, segundo esta metáfora
Benjamin reafirma no Passagen-Werk novamente a necessidade de náutica, em abarcar o “vento do absoluto” (“Wind des Absoluten”,
se manter o trabalho analítico sempre como base para uma síntese: V 591) que enche as velas do pensamento e permite a “salvação”
“A imagem dialética é aquela forma do objeto histórico que satisfaz (“Rettung”) (I 214; V 591) dos fenômenos: arrancá-los da falsa con-
a exigência que Goethe põe para o objeto de uma análise: demons- tinuidade cronológica e da cadeia de causas e efeitos, para inseri-los
trar uma autêntica síntese. Este é o protofenômeno da história” (V dentro de uma nova ordem que conecta diferentes agoras e revela,
592). — Isso tudo mostra, na verdade, apenas algumas das conexões ao mesmo tempo, a interpretação objetiva desses fenômenos.
— subterrâneas ou explícitas — possíveis de serem levantadas entre Existe também uma relação de segundo grau entre esta con-
o prefácio do livro sobre o drama barroco e o Passagen-Werk. cepção do trabalho do “dialético”, ou do historiador, com a filosofia
A “dialética” em Benjamin não possui nada em comum com da linguagem de Benjamin. Esse momento “ao modo de um salto”,
a dialética hegeliana; ela não tem o todo como ponto de partida, e “sprunghaft”, ou “relampejante”, “blitzhaft”, no qual o ocorrido for-
ela recusa-se a dar o passo na direção da positividade de uma “su- ma uma constelação com o agora, e o fenômeno é salvo, possui a
peração”, “Aufhebung”, permanecendo no espaço do suspenso, da mesma característica “relampejante” com que a semelhança nasce
imagem que expõe. Benjamin descreveu com as seguintes palavras o (como na rima romântica entre o Witz e o Blitz, raio). No “Doutrina
seu conceito de imagem dialética: das semelhanças”, lê-se: “o momento do nascimento, que é decisivo,
é apenas um instante. Isso evoca outra particularidade na esfera do
Ela é a cesura no movimento do pensamento [Es ist die Zäsur in semelhante. Sua percepção, em todos os casos, dá-se num relampejar.
der Denkbewegung]. Naturalmente o seu local não é arbitrário. Ela Ela perpassa, veloz, e, embora talvez possa ser recuperada, não pode
deve ser procurada, com uma palavra, onde a tensão entre os opos- ser fixada, ao contrário de outras percepções. Ela se oferece ao olhar
tos dialéticos encontra-se no máximo. Assim, a imagem dialética de modo tão efêmero e transitório como uma constelação de astros.
é o objeto mesmo construído na exposição histórica materialista. A percepção das semelhanças, portanto, parece estar vinculada a
Ela é idêntica ao objeto histórico; ela justifica o seu arrancar para uma dimensão temporal”31. Esta estrutura temporal é idêntica à
fora do continuum do decurso da história. (V 595; grifo meu). do reconhecimento do fenômeno de origem. O próprio Benjamin
destacou este fato nas suas notas para “Doutrina das semelhanças”
O pesquisador descrito no trabalho das passagens também é ao afirmar proustianamente: “O relampejar da semelhança possui
guiado pela tarefa de cruzar a história com o trabalho do conceito; 31 (BENJAMIN 1985:110; II 206s)
510 Márcio Seligmann-Silva Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica 511

historicamente o caráter de uma anamnesis, que se apodera de uma reuniam em si uma série de questões e “fantasmagorias”, como a
semelhança perdida, que estava livre da tendência de volatização” teoria da mercadoria, a questão da nova interioridade burguesa, as
(VII 795).32 transformações arquitetônicas e técnicas.
Impossível deter-me aqui nas milhares de passagens dignas de
O virtual barroco e o da imagem eletrônica destaque do trabalho das passagens e repletas de ideias tão brilhantes
quanto assustadoras. Lembremos de algumas frases para dar uma
As pastas-arquivos da obra sobre as passagens não mencionadas
ideia do que quero dizer: “a moda nunca foi outra coisa senão a paró-
aqui tratam ainda do tédio, do eterno retorno, da haussmannização,
dia do cadáver colorido, provocação da morte pela mulher, amargo
das lutas de barricada, das construções de ferro, das exposições, dos
diálogo sussurrado com a putrefação entre gargalhadas estridentes
reclames, de Grandville, do colecionador, do intérieur, do rastro,
e falsas”33. Quanto esta intuição não ilumina as pernas raquíticas
da cidade de sonho, de sonhos do futuro, do museu, do flâneur, da
de nossas grandes modelos atuais? Toda a teoria benjaminiana da
prostituição, do jogo, dos panoramas, dos espelhos, das pinturas, do
moda e do sex appeal do inorgânico é absolutamente urgente de ser
Jugendstil, da novidade, dos tipos de iluminação, de Saint-Simon, de
reestudada. Na pasta “Baudelaire” (a maior e uma das mais impres-
Marx, Fourier, da fotografia, da conspiração, de Daumier, da bone-
sionantes deste livro-arquivo), Benjamin transpõe a teoria da moda
ca, do autômato, da bolsa de valores, das técnicas de reprodução, da
para a análise marxista do fetichismo da mercadoria — e soma a
litogravura, do Sena, da Paris mais antiga, do ócio, do materialismo
isto tudo uma reflexão sobre a linguagem e os valores semânticos:
antropológico e da École Polytechnique, entre outros temas. É de se
“As modas dos significados mudam quase tão rapidamente quanto
notar não só a semelhança desta enumeração dos títulos das pas-
o preço das mercadorias”34. Já entre as inúmeras ideias seminais da
tas-arquivos com o efeito de estranhamento provocado pela leitura
“pasta” “Teoria do Conhecimento, Teoria do Progresso”, lemos uma
dos verbetes da famosa enciclopédia fantástica chinesa mencionada
frase que resume a dialética do esclarecimento: “A barbárie está
por Borges, mas, sobretudo, a quantidade de referências a sistemas
inserida no próprio conceito de cultura”35.
escópicos (refiro-me aqui tanto às técnicas de representação, do pa-
O livro sobre as passagens é uma “obra” sui generis, já que
norama, passando pela fotografia, até a litogravura, mas também a
ela, no limite, “não existe”. Existe apenas um projeto. Um enorme
figuras escópicas como o flâneur, o espelho, as exposições e também
e fabuloso projeto. Uma obra virtual — termo que não por acaso
a detalhes da cena urbana, como as iluminações e as novas artes
remete tanto ao Barroco com seus tromp l’oeil, como à virtuali-
em ferro). Benjamin desdobra não apenas o século XIX a partir das
dade aberta pelas imagens eletrônicas. Cabe a cada leitor executar
passagens parisienses, mas cria um modelo de leitura/reescritura
esta obra-partitura. Aprender a ler, desmontar para remontar as
cultural que pode servir para muitas outras épocas. As passagens
Passagens. Essa obra de Benjamin já nasceu como fadada a ser este
32 E Benjamin, continuando este mesmo fragmento, enfatiza a relação deste seu
texto de 1933 com o ensaio sobre a linguagem de 1916: “Essa semelhança perdi- 33 (BENJAMIN 2006:102; V 111)
da que resiste no tempo reina no espírito linguístico adamítico. O canto mantém- 34 (BENJAMIN 2006:414; V 466)
se atado a uma cópia de tal passado” (VII 795). 35 (BENJAMIN 2006:509; V 584)
512 Márcio Seligmann-Silva Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica 513

tal projeto, uma tal obra em movimento. Ela é processo, passagem SCHOLEM, Gershom. 1981. Histoire d’une amitié. Trad. P. Kessler, Paris: Calmann-
Lévy.
constante. Trata-se de uma obra líquida: maleável. Sua abertura
SELIGMANN-SILVA, M. 1999. Ler o Livro do Mundo: Walter Benjamin:
deve indicar também a acessibilidade da obra de Benjamin em
romantismo e crítica poética. São Paulo: Iluminuras/FAPESP.
nosso agora. ______. 2005. O local da diferença: Ensaios sobre memória, arte, literatura e
tradução. São Paulo: Editora 34.

Referências e chave das abreviações utilizadas

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(B) _______. Briefe. 1978. Org. por G. Scholem; T. W. Adorno. Frankfurt a.M.:
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KRACAUER, Siegfried. 2009. O ornamento da massa. Trad. Carlos Eduardo J.
Machado; Marlene Holhausen. São Paulo: CosacNaify.
Capítulo 14

Uma literatura
pensante:
as desconstruções e o
pensamento de Derrida
Evando Nascimento
Universidade Federal de Juiz de Fora

Quatro bilhões de pessoas nesta Terra,


e minha imaginação é como era.
Não se dá bem com grandes números.
Continua a movê-la o singular.
Esvoaça no escuro como a luz da lanterna,
iluminando alguns rostos ao acaso,
enquanto o resto se perde nas trevas
na deslembrança, no desconsolo.
Mas nem Dante captaria mais.
Que dirá quando não se é.
Nem mesmo com a ajuda de todas as musas.
Wislawa Szymborska. In:
“Um grande número”
1. Uma literatura, escritura ou escrita pensante

Diante do convite hospitaleiro do organizador desta coletânea para


escrever um capítulo sobre as possíveis relações entre o pensamento
de Jacques Derrida e a teoria da literatura, ou a Teoria simplesmente,
dei-me conta de que já faz pelo menos vinte anos que estou envol-
vido com questões de desconstrução. Embora esse não seja nem de
longe o único assunto que tenha pesquisado nos últimos anos, sem
dúvida alguma, venho publicando uma série de textos e livros que,
de certo modo, se referem a esse tipo de estudos.
Todavia, antes de abordar com novos olhares a relação propos-
ta no título, gostaria de fazer alguns esclarecimentos. O primeiro e
talvez mais importante para um volume dessa natureza é que nunca
entendi a assim chamada “desconstrução” ou as “desconstruções” (é
sempre mais de uma, e por isso o plural é mais adequado) como uma
escola, uma doutrina, nem mesmo como uma corrente específica.
Motivo pelo qual jamais consideraria Derrida como o fundador de
uma nova corrente teórico-crítica, ou algo no gênero. Igualmente,
não me sinto um seguidor de doutrina alguma, nem mesmo um
fiel representante, discípulo ou equivalente da obra derridiana. No
máximo, um leitor especial: aquele que entretém uma leitura atenta
dos textos e contextos relativos às desconstruções.
Diferentemente, proporia considerar o termo “desconstrução”
como um signo do que, sobretudo a partir dos anos 1960, se deu
518 Evando Nascimento Capítulo 14 . Uma literatura pensante 519

como forma de descentramento de certo privilégio da dita metafí- desenvolvo no livro e alhures, espero estar claro que não pode haver
sica ocidental. Tal privilégio teria sido posto em questão de forma um conceito homogêneo e definitivo de literatura pensante, com ou
primacial, mas não exclusiva, por Nietzsche, Freud e Heidegger. sem Derrida. Cada abordagem que realizo dessa categoria propõe,
Nesse sentido, os primeiros textos de Derrida visaram a sublinhar explícita ou implicitamente, uma reflexão diferenciada, de acordo
a operação inovadora desses “destruidores”, a fim de levar adiante com os contextos, as obras, os autores e os temas envolvidos. Uma
algumas das trilhas ou trilhamentos por eles abertos. É bastante nova formulação dessa problemática se deu amplamente, por exem-
esclarecedora do que estava em jogo no lance inicial da textualidade plo, em Clarice Lispector: uma literatura pensante3. Algumas confe-
derridiana, a se desdobrar nas décadas seguintes, a famosa confe- rências também procuraram dar conta do valor sem conceito essen-
rência pronunciada na Universidade de Johns Hopkins “A estrutura, cialista de literatura na contemporaneidade e poderão ser reunidas
o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”1. Nesse ensaio sob a rubrica de A invenção literária4. Em suma, sobretudo mais
que marcou época, Derrida rende as justas homenagens a um dos do que um conceito tradicional ou um rótulo classificatório, uma
líderes do movimento estruturalista, Claude Lévi-Strauss, e ao literatura pensante é uma categoria de pensamento, que se oferece
mesmo tempo aponta algumas de suas limitações conceituações, singularmente, a cada vez, como acontecimento textual, em articu-
as quais, a despeito de todo avanço da etnologia, ainda prestavam lação com determinados textos e contextos, porém indo mais além.
tributo a certa tradição metafísica, de matriz ontoteológica, como Todos esses termos referidos até aqui, “contexto”, “textos”, “obras”,
sinalizado por Heidegger. “autores” e “temas” podem ser reunidos na noção que desenvolverei
Entretanto, aqui não proporei uma releitura da história desses adiante como contextura.
textos e eventos marcantes das quatro décadas que até hoje informa-
ram a aventura, mas também a desventura, do termo desconstrução. 2. Literatura, escritura e culpa
Já fiz isso em certa medida em livros anteriores . O propósito atual
2
Para Derrida, a literatura, em princípio e por princípio, tal como a
é desenvolver outros pontos de uma categoria reflexiva que venho
democracia, é ou significa o direito de dizer tudo (tout dire), mas
elaborando durante esses anos e que pode sempre dar uma contri-
isso implica ao menos duas coisas: dizer tudo o que se pensa, com
buição aos estudos literários: uma literatura pensante.
toda liberdade, e falar inesgotavelmente sobre um assunto. Todavia,
Todo o Derrida e a literatura teve como móvel principal
desdobrar a noção ou o valor de uma literatura, uma escritura ou 3 (NASCIMETO 2012). Esse livro é o exemplo mais amplo não só de uma leitura
uma escrita pensante. Por definição fundamental e por tudo o que em termos de significação, mas, sobretudo, em termos de performance textual,
ou seja, de nova realização estética por meio do ensaio. Não estou certo de ter
atingido o objetivo, porém tal foi o desejo que moveu a escrita do texto.
1 DERRIDA (1967: 409-428) 4 A última delas foi “Retrato do autor como leitor”, realizada na Universidade
2 (Cf. NASCIMENTO 1990 [2ª. ed. 2001]; 2000; 2004; 2005; 2013 [no prelo]). Parte Federal do Espírito Santo, na Universidade Federal da Bahia e na Universidade
do atual ensaio foi lida na conferência de abertura da III Jornada Jacques Derrida, do Estado do Rio de Janeiro, em 2011. Atualmente, uma versão em inglês se
organizada em 10 de dezembro de 2012, por Roberto Said e Luiz Fernando Sá, na encontra no prelo da Portuguese Literary & Cultural Studies, n. 26, Lusofonia and
Faculdade de Letras da UFMG. its Futures, sob coordenação de João Cezar de Castro Rocha.
520 Evando Nascimento Capítulo 14 . Uma literatura pensante 521

correlativamente a esse direito elementar, existe o direito ao silêncio, também transpor [franchir] os interditos. É libertar-se [s’affranchir]

a ficar calado também como verdadeira responsabilidade. Perante a — e em todos os campos onde a lei se impõe como lei. A lei da

exigência inquisitorial, o direito a nada dizer deve ser tão garantido literatura tende, em princípio, a desafiar ou suspender a lei, dando,

quanto o de dizer tudo. Pois a literatura na modernidade e na con- portanto, a pensar a essência da lei na experiência do “tudo por

temporaneidade oscila entre esses direitos elementares: dizer tudo dizer”. É uma instituição que tende a ultrapassar a instituição.7

sobre os temas que aborda e silenciar sobre diversos aspectos. Entre


tagarelice e mutismo, o segredo da literatura pensante se revela in- O ultrapasse do conceito e do fundamento de instituição faz
determinado. É isso também o que quer dizer o famoso “O resto é com que a literatura repense o instituir-se de toda instituição e sua
silêncio” , como se sabe, as últimas palavras do agonizante Príncipe
5 relação com a lei, tornando-se, portanto, “essa instituição sem ins-
Hamlet. Tudo o que ficou de não dito no dito, tudo o que resta a tituição”8. Toda instituição se constrói de modo restritivo, segundo
dizer. Silenciar é o que resta, depois de tantas falas e ações, falas determinadas regras, que delimitam o que pode ou não ser dito em
que também significam ações, e até mesmo ação no sentido teatral. seu recinto. O dizer tudo do literário nas sociedades democráticas
Im Anfang war die Tat, diz Fausto retraduzindo a Bíblia de Lutero desborda esses limites, apontando a origem limitadora e restritiva,
e o Evangelho de São João: “No princípio, era a ação!”6. E o resto em outros termos, legal e jurídica, do próprio valor institucional.
constitui a reserva de sentido para continuar falando, noutro tempo Daí a estranheza de uma instituição chamada literatura que põe
e noutro espaço, num novo texto por vir. É essa reserva silenciosa em questão e suspende performativamente os limites de toda e
e hospitaleira que garante o porvir da literatura pensante: o convite qualquer instituição. Como logo veremos, isso só é possível tanto
aberto a novas leituras, a novos acessos ao arquivo luminosamente a partir da escrita pensante quanto, e talvez sobretudo, da leitura
secreto da ficção, da poesia, do ensaio e do teatro, por exemplo. pensante. Sem o efeito suspensivo do institucional na recepção do
Eis como Derrida sintetiza o direito à literatura como fun- texto literário, não pode haver estranheza como resultado correla-
damento dessa “Estranha instituição chamada literatura”, título de to da liberdade do dizer tudo da escritura literária. A categoria de
uma importante entrevista concedida a Derek Attridge: uma literatura pensante ajudará justamente a repensar os limites
institucionais, a liberdade democrática do dizer tudo e os efeitos
[...] O espaço da literatura não é apenas o de uma ficção instituída, advindos do contato com o texto literário. Em suma, a experiência
mas também o de uma instituição fictícia, que em princípio per- literária se faz por um trânsito entre as instâncias da invenção, re-
mite dizer tudo. Dizer tudo é certamente reunir, traduzindo todas cepção e reinvenção da experiência originária, convertida em letra.
as figuras uma na outra, totalizar, formalizando, mas dizer tudo é
7 (DERRIDA 2009:256). A primeira versão desta entrevista foi publicada em inglês
5 “The rest is silence” (SHAKESPEARE s.d:1111). Salvo indicação contrária, as tradu- com o título de “This Strange Institution Called Literature”. 1992. In: Attridge
ções de citação são minhas. Derek (Org.). Jacques Derrida: Acts of Literature. Nova York, Londres: Routledge,
6 (GOETHE 2006:130-131). Na verdade, os tradutores optaram por “Era no início a p. 33-75.
Ação!”. 8 (DERRIDA 2009:262)
522 Evando Nascimento Capítulo 14 . Uma literatura pensante 523

O pensamento — eis minha hipótese — seria a resultante da relação torna, se não mais difícil, pelo menos bem mais em conta naquilo
de forças implicada na invenção e na recepção literárias, dentro da que lhe diz respeito. Em primeiro lugar, rejeita qualquer culpa e
perspectiva do instituir-se político de toda instituição colocado em responsabilidade da sua parte e nisso, portanto, nosso comporta-
perspectiva. Lembrando que política é antes de tudo uma questão mento é o mesmo [...].9
de pólis, de limites de cidadania e das experiências possíveis, que
estão no coração dessa problemática ficcional. Isso faz com que a Desse modo, numa cena abissal, numa autêntica mise en abyme,
literatura, a escritura e a leitura devam ser pensadas como evento, o pai ficcional acusa o filho de irresponsabilidade diante de seu pró-
no limite de uma impossibilidade, já que o real se faz justamente por prio caso, de autoisenção inconsequente perante a dívida ou a culpa
delimitações institucionais, com as quais os inventores e os leitores (Schuld) em relação à instância paterna. Trata-se de um gesto sime-
se defrontam todo o tempo. tricamente especular ao do filho, que acusa o pai de ser culpado pelo
É justamente o meteoro (o termo é de Derrida) literário que se medo que o paralisa. De pai para filho, e vice-versa, o espelho devolve
manifesta, por exemplo, nesse pedaço de literatura que é a Carta ao a culpa de uma dívida ancestral que somente a figura intempestiva do
pai, de Kafka, um texto-manifesto, que traz a marca da culpa filial infinitamente outro pode interromper. E quem faz o processo de des-
diante da figura onipotente do patriarca. Trata-se de um testemunho culpabilização da literatura e da cultura em geral, traçando a genea-
sobre a impossibilidade de se fazer literatura senão por meio da inter- logia judaico-cristão-ocidental da dívida ancestral outro não é senão
rupção da paternidade e da filiação, quer dizer, por meio do celibato. o pensador do mais-que-humano (Übermensch), citado literalmente
Celibatário e parasita em relação à fortuna paterna, é como o pequeno pelo ensaio Donner la mort10, de Jacques Derrida. Reproduzo a seguir
Franz se apresenta perante a força gigantesca e esmagadora do pai. uma citação de Nietzsche, no parágrafo 6, da “Segunda Dissertação”
Curiosamente, esse diálogo virtual, em que transparece um segredo da Genealogia da moral, e não a do parágrafo 10, feita por Derrida, a
compartilhado entre pai e filho, se conclui com uma réplica (resposta fim de esclarecer as relações genealógicas entre culpa, dívida e crença,
e imitação ou simulacro) ficcional do pai. Kafka finge, em seu próprio na tradução brasileira de Paulo Cezar Souza:
libelo antipatriarcal, receber a resposta da boca do pai, sem, todavia,
jamais ter tido sequer a coragem de enviar a missiva ao destinatário... Nesta esfera, a das obrigações legais, está o foco de origem desse
A carta, portanto, não fica sem correspondência, pois o pai responde mundo de conceitos morais: “culpa”, “consciência”, “dever”, “sa-
pela boca, ou pela mão, do próprio e amedrontado filho. cralidade do dever” — o seu início, como o início de tudo grande
Replica, assim, o pai, pela mão culpada do filho, na tradução na Terra, foi largamente banhado de sangue. E não poderíamos
de Modesto Carone: acrescentar que no fundo esse mundo jamais perdeu inteiramente
um certo odor de sangue e tortura? (Nem mesmo no velho Kant:
Você afirma que eu simplifico a meu favor quando explico minha
relação com você apenas através da sua culpa [Schuld: culpa e 9 (KAFKA 1986:68). [Brief an den Vater. Posfácio de Hans-Ulrich Treichel. Frankfurt
am Main, 2003.] Grifos meus.
dívida]; mas acredito que, apesar do esforço aparente, você a 10 (DERRIDA 1999)
524 Evando Nascimento Capítulo 14 . Uma literatura pensante 525

o imperativo categórico cheira a crueldade...). Foi igualmente aí A culpa e a dívida estabelecem os limites do contrato legal,
que pela primeira vez se efetuou este sinistro, talvez indissolúvel segundo as instâncias jurídicas tradicionais, limites, todavia, agra-
entrelaçamento de ideias, “culpa e sofrimento”. Pergunta-se mais vados pelo código religioso com a noção de pecado. Em Derrida,
uma vez: em que medida pode o sofrimento ser compensação para a hiperética do perdão, longe de significar a requisição de um con-
a “dívida”? Na medida em que fazer sofrer era altamente gratifican- trato entre credor e devedor, se torna a possibilidade histórica não
te, na medida em que o prejudicado trocava o dano, e o desprazer da salvação messiânica, que resgataria um pecado dito original,
pelo dano, por um extraordinário contraprazer: causar o sofrer — mas da ruptura de todo contrato, em que um demandante tenta
uma verdadeira festa, algo, como disse, que era tanto mais valioso corresponder à imposição do mandatário, Deus, acima de todas as
quanto mais contradizia o posto e a posição social do credor.11 coisas. Tal perdão se assemelha a um dom, num jogo de palavras
que o francês permite e que parcialmente se perde em português:
Nesse sentido, podemos pensar, com Nietzsche e mais além pardon (perdão) se torna par-don (por dom), em Donner la mort,
dele, que Deus tornou-se, nas religiões monoteístas, o credor maior com referência ao encontro entre o poeta Celan e o filósofo alemão
e, por isso mesmo, capaz de cobrar uma taxa máxima de sofrimen- Heidegger, coparticipante do nazismo: “O perdão seria, então, o
to em função da dívida de existir no pecado convertida em culpa. poema, o dom do poema. Não tem que ser pedido. Contrariamente
A culpa é o débito sem remissão possível, pois foi contraído pelos ao que se ouve muitas vezes dizer, ele deve, essencialmente, não
ancestrais, tornando a humanidade perpetuamente devedora de um responder a um pedido”13. Como um verdadeiro evento, o perdão
tirânico credor, convertido por sua vez em divino cobrador. Deus, deve se dar de graça, sem pedir nada em troca e sem mesmo cor-
nesse caso, seria o nome para uma cobrança sem fim, onipotente e responder a uma demanda, formal ou informal. Mas como perdoar
equanimemente convertida numa crença cheia de culpas, cujo saldo não significa esquecer, somente o perdão pode suspender a culpa
negativo só será solvido, se for, no Juízo Final, de acordo com a fé e, ao mesmo tempo, abrir o processo da efetiva responsabilidade
cristã da ressurreição. histórica: por exemplo, a coparticipação do filósofo do Dasein no
O que vale no plano divino vale igualmente nas relações terre- regime nazista14.
nas, entre humanos, como diz ainda Nietzsche: A graça de tal perdão, o acontecimento de seu dom e sua ver-
dadeira dádiva consistiriam, portanto, na supressão da dívida ances-
O sentimento de culpa, da obrigação pessoal, para retomar o fio tral, abrindo a perspectiva de tempos tão mais responsáveis porque
de nossa investigação, teve origem, como vimos, na mais antiga tão menos culpados15. Só pode haver verdadeira responsabilidade
e primordial relação pessoal, na relação entre comprador e deve- democrática na ausência de culpa, em nome do sem-nome, do
dor: foi então que pela primeira vez defrontou-se, mediu-se, uma inominável de Samuel Beckett e do infinitamente outro de Clarice
pessoa com a outra.12
13 (DERRIDA 1999:192)
11 (NIETZSCHE 1987:67) 14 Sobre o tema do perdão e correlatos, cf. NASCIMENTO (2005:9-41).
12 (NIETZSCHE 1987:72-73) 15 Esse tema da culpa e da dívida em Derrida será desenvolvido num ensaio por vir.
526 Evando Nascimento Capítulo 14 . Uma literatura pensante 527

Lispector. Todo outro (tout autre) é, mais além do simples fato e do Eu sei — o sei — que aquele a quem os alemães já visavam, es-

direito, todo outro, quase transcendental. Como o segredo da lite- perando apenas a ordem final, experimentou um sentimento de

ratura, de pai para filho, e muito além. É nesse sentido apenas que a leveza extraordinária, uma espécie de beatitude (contudo, nada

literatura porta e paradoxalmente se desfaz de um dos segredos de feliz) — júbilo soberano? O encontro da morte e da morte?17

sua fundação, o do testamento abraâmico, tornando-se, assim, per-


jura: “Ela renega essa filiação. Ela a trai no duplo sentido da palavra: Tem-se uma experiência-limite por excelência, em que a quase
é-lhe infiel, rompendo com ela no momento mesmo de manifestar morte se desdobra em duas mortes, a verdadeira e a quase expe-
sua ‘verdade’ e de revelar seu segredo. A saber, sua própria filiação: rimentada por quem foi salvo incidentalmente no último minuto.
possível impossível” . Derrida tira proveito da ambivalência do
16 Derrida demonstra como essa particularidade de um quase aconte-
verbo trair: ser infiel e revelar sua vinculação (trair-se). cimento se torna a experiência de qualquer um. O instante de “mi-
É por essa dupla traição que a literatura, a um só tempo, pede nha” morte reverte no instante de toda morte possível, no limite da
e concede perdão, mas sem culpas, por simples dom. A demanda impossibilidade, visto que a morte, para o vivente, é o único evento
da literatura se torna, assim, em vez de dívida, a verdadeira dádiva, que ele nunca poderá vivenciar e acerca do qual, portanto, jamais
aquela que significa, mais do que sua sobrevida, sua supervivência, poderá testemunhar integralmente. Só a ficção permite reencenar
nos limites de uma impossibilidade. Eis aí é o começo de toda e a quase morte do jovem Maurice como a morte de cada um, como
qualquer ficção, como demanda do outro, muito além das imaginá- experiência-limite dessa impossibilidade para a vida que é morrer.
rias fronteiras entre Ocidente e Oriente. Para a vida, sem dúvida, a morte é o mais arrematado impossível, ali
onde todo sentido para sempre se desfaz e toda ontofenomenologia
3. O testemunho literário acaba. Perante a morte, todo testemunho fracassa, e aqueles que
dizem testemunhar a respeito da experiência de uma morte real,
E é também o caráter testemunhal do literário que Derrida
da qual depois retornaram, nada mais estão fazendo do que relatar
identifica na pequena história L’Instant de ma mort (O instante de
uma morte factícia, bem longe da vivência concreta, “no duro”, da
minha morte), de Maurice Blanchot. Trata-se de relato em terceira
verdadeira morte, aquela que justamente nunca se pode vivenciar,
pessoa, que testemunha a respeito de um quase fuzilamento durante
nem da qual se pode falar...
a Segunda Guerra Mundial. A máscara da terceira pessoa, contudo,
É o que Derrida sinaliza sobre esse instante fatal, porém
mal oculta a autoficção dessa novela, que nos narra um fato real,
fictício, propriamente inventado a partir de um fato real pelo escritor
qual seja, o momento em que o jovem Maurice escapou de ser assas-
Maurice Blanchot: “um singular instante de minha morte em geral.
sinado pelos nazistas. Conta, portanto, o narrador acerca de quando
Singular em geral”18. A experiência mais particular, privada, reverte
“ele” se livrou por pouco do instante de sua própria morte:
17 (BLANCHOT 2004 :10)
16 (DERRIDA 1999:208) 18 (DERRIDA 1996 :65)
528 Evando Nascimento Capítulo 14 . Uma literatura pensante 529

em seu contrário. Diria mesmo que, estruturalmente, a universali- apenas a julgamos legível, caso seja, na medida em que um leitor

dade da literatura depende dos instantes singulares que ela põe em puder compreendê-la, ainda que algo dessa natureza jamais lhe

cena e não de uma generalidade artificiosa, a qual nada mais faz do tenha ocorrido “realmente”. Podemos falar e ler isso porque essa

que repetir os gêneros da tradição sem nada acrescentar de seu. É experiência, na singularidade de seu segredo, como “experiência

disso que também fala o belíssimo texto “Um grande número”, da do improvado” [inéprouvé], mais além da distinção entre o real

poeta polonesa Wislawa Szymborska, colocado como epígrafe deste e o fantasmático, permanece [demeure] universal e exemplar.

ensaio19. [...] Compreende-se, cada um aqui compreende esse relato a

Porém, tal universalidade singular só pode ser legitimamente sua maneira; há tantas leituras quantos leitores e leitoras, e, no

pensada como efeito de leitura: é preciso que o leitor receba essa entanto, permanece [demeure] certo modo de compreender o

particularidade do outro como também singularmente sua e que, no texto, caso se fale sua língua, contanto que sejam preenchidas

caso da história de Blanchot, ele se veja na morte virtual do outro, determinadas condições. E nisso reside a exemplaridade teste-

enquanto cena da morte em geral, a morte de todos e de cada um. munhal. Esse texto presta testemunho acerca de uma singulari-

Morte a cada vez única, como fim do mundo, de um mundo parti- dade universalizável.21

cular dentro do mundo que é o de todos20. Comenta ainda Derrida


em “Demeure” [Morada, mas também Demora]: Por ser universalizável é que essa singularidade deu vez a um
texto como a narrativa de Blanchot, a qual provém desse aconteci-
É com essa condição que compreendemos algo acerca desse mento relatado, um quase fuzilamento. E por isso sua obra é legível
relato, na medida em que nele compreendemos o que quer que e mesmo traduzível em diversas línguas, como é o caso agora do
seja. Esse relato testemunha acerca do que aconteceu [arrivé] português, pois a Rocco tem publicado sistematicamente novas tra-
uma única vez, datado, sobrevindo, ocorrido [arrivé], muito duções desse crítico e escritor francês, decisivo para compreender o
embora seja o não ocorrer [fût-ce de ne pas arriver], numa data e pensamento de Derrida, de Foucault, de Barthes e de muitos outros
num lugar insubstituíveis, e a alguém que é, em resumo, o único dessa e da geração seguinte.
a poder testemunhar a esse respeito, mesmo se ele inscreve seu Tal é a paixão da literatura que se quer pensante: seu tornar-se
atestado numa rede de fatos amplamente senão de todo prová- letra a partir de uma experiência estritamente singular, única, que
veis, públicos, acessíveis à prova. Porém, essa atestação a um só sobreveio a certo indivíduo em tais ou quais circunstâncias, mas
tempo secreta e pública, fictícia e real, literária e não literária, que, por ter se convertido de fato em letra, quer dizer, marca legível
por todos e qualquer um, pode ser compreendida por um qualquer
19 (SZYMBORSKA 2011:52-53) que deseje compartilhar tal segredo22. Algo de muito secreto se
20 Esse é o tema de Chaque fois unique, la fin du monde [Cada vez única, o fim do
mundo], livro que reúne diversos textos de Derrida sobre amigos mortos, como
Barthes, Deleuze e o próprio Blanchot, entre outros. Trata-se, como dizem os 21 (DERRIDA 1996 :66-67)
organizadores, de uma verdadeira “política do luto” (Cf. DERRIDA 2003:15-56). 22 A questão da singularidade literária foi também desenvolvida por DEREK (2004)
530 Evando Nascimento Capítulo 14 . Uma literatura pensante 531

passa entre um escritor ou uma escritora e seu leitor ou sua leitora, pura atividade, algo indecidível entre as duas, como acolhida do infi-
um segredo, por assim dizer, em aberto, aberto ao que está por vir, nitamente outro, agora, aqui. Ler o texto do outro e da outra, citá-lo,
ao vindouro, como o porvir mesmo dessa antiquíssima e estranha traduzindo-o em nossa própria língua pode também ser um dom de
instituição chamada literatura. O segredo literário só se revela, com hospitalidade, tão vital quanto o da inscrição primeira, ou seja, da
efeito, na e pela leitura, de outro modo seu arquivo permanece para primeira assinatura, que então se contra-assina. Mas quem assina
sempre oculto, inacessível, silenciado. mesmo, a favor ou contra, é o pensamento, que assim se escreve com
Não diria jamais que a mímesis literária “desafia o pensamento”, o leitor. E a verdadeira escritura, se há, é uma literatura pensante.
mas, sim, que, quando não reduzida à imitação ou à representação Gostaria que, nessa expressão uma literatura pensante, o uma
clássicas, ela configura o espacitempo para o advento do pensamen- tivesse tanto ou maior peso do que os outros componentes do sin-
to. Quando liberta dos entraves das interpretações que reduziram tagma. É a unicidade insubstituível e rigorosamente singular de
sua potência inventiva, quer dizer, pelo menos desde Platão, a mí- certos textos e autores que importa e não a generalidade de uma
mesis pode ser, com efeito, pensante, desde que um ativo leitor ou categoria (mais uma) da filosofia, da teoria ou da crítica literária.
leitora lhe tenha acesso. Porém, uma unicidade que nada tem de ideal, pois é posta à prova
pelo que de concreto e real da singularidade experiencial ela com-
4. Hospitalidade literária porta. Não existe a literatura pensante em si, mas alguns textos de
A hospitalidade, eis minha hipótese, é a responsabilidade máxima determinados autores e autoras se tornam altamente pensantes para
que assumimos em face do estranho e do estrangeiro, e é isso o que certos leitores, em tais ou quais circunstâncias. E o que se chama de
o sintagma “uma literatura pensante” — se de direito e de fato quer pensar (Heidegger)23 acontece de fato no ato de leitura, como efeito
dizer algo — de algum modo expressa. Acrescentaria: é a responsa- interpretativo, desdobrando-se num novo texto, o qual, por sua vez,
bilidade máxima que um vivente assume como resposta ao dom da se dirige a outros contextos, articulando uma vasta contextura.
vida, em nome de um justo direito de preservação e continuidade. Nem literatura nem pensamento são essências previamente de-
Pois a vida, mais do que Deus, mais do que qualquer divindade, é finidas, mas potencialidades, no limite de uma impossibilidade. É por
o Outro absoluto, que habita em nós, que somos nós, a imanência serem quase impossíveis que uma literatura, uma escritura ou uma
da total transcendência: toda outra, totalmente diferente, mortal. escrita se tornam, com efeito, pensantes. Isso ocorre por meio de um
Caberia, na zona de negociação entre a particularidade histórica, so- acontecimento que é tanto textual (a partir desse ou daquele texto)
cial, cultural e a universalidade sem limites, acolher o outro enquan- quanto extratextual (dirigindo-se a outros contextos e engendrando
to outro, por amor à pura diferença. A paixão da diferença, como o novos textos). Uma literatura pensante é um processo singular, que
termo latino passionis expressa, se dá por meio de uma passividade pode sempre não ocorrer. Sem esse fracasso estrutural, não há evento,
essencial, que se autodesconstrói no momento mesmo em que ativa- mas programa garantido de antemão. A garantia prévia do sucesso
mente se afirma por um eventual dom. Nem pura passividade, nem 23 (HEIDEGGER 1992)
532 Evando Nascimento Capítulo 14 . Uma literatura pensante 533

foi o que desejou grande parte das vanguardas do século passado, chegada (em que se farão novas inscrições, novos textos escritos e
pois acreditavam que bastava ter uma plataforma bem definida, por falados). Diria mesmo que a experiência pensante, se ocorre, faz-se
assim dizer, um “plano piloto”, como defendeu a Poesia Concreta entre esses textos e contextos, de uns a outros, sem redução simples
brasileira, para que o êxito se desse. Tratava-se, pois, de um autêntico ao solo do mesmo, mas também passando por aí. É isto o que a linda
imanentismo criativo, teórico e crítico, já que, como se sabe, os van- e pouco usual palavra contextura designa: a generalização do mais
guardistas de uma forma geral se desdobravam nas três atividades. estritamente singular. Universalizável por ser singular, e não por ser
Ignorava-se desse modo a eventualidade do evento, que pode sempre a priori universal ou geral.
se dar tanto quanto não se dar, como um dom ou contradom. Tudo Devo, no entanto, sinalizar que a experiência mais singular
depende dos fatores interatuantes em circunstâncias específicas, de pode ser reconvertida ao já-sabido. Isso se deu, por exemplo, com
acordo com as subjetividades e objetividades aí envolvidas, as forças a “questão antropofágica”, fundamental para o redimensionamento
concorrentes, os valores em exercício e os valores por vir. Motivo da cultura brasileira e de outros países ditos periféricos no século
pelo qual a verdadeira literatura e, sobretudo, a verdadeira leitura é XX. Todavia, convertida em verdadeiro fetiche cultural, totemi-
hospitalidade, no mínimo sob forma de citação. Isso foi o que intuiu zada até a náusea, a antropofagia perdeu grande parte do valor
Barthes, num texto tão referido quanto mal compreendido, “A Morte pensante, que se manifestou com intensidade até os anos 1960,
do autor”. Se o nascimento do leitor deverá ser pago com a morte com a Tropicália de Caetano, Gil, Gal, Mutantes, Tom Zé, Rogério
encenada, fictícia e factícia, do autor , é porque todo autor é antes de
24
Duprat, Rogério Duarte, Capinam, Torquato Neto e outros, em
mais nada leitor, copista (numa plena convergência com a proposta diálogo com os poetas concretos. Por isso, a Antropofagia carece
borgiana), recitador, cuja tarefa é receber, recopiar e, portanto, trans- hoje de novos olhares, para longe dos efeitos clicherizados que
mitir os textos e experiências alheios. involuntariamente gerou. Pois, entre experiência de devoração e
Ler, em sentido intensivo, é responder à provocação, à incita- hospitalidade desconstrutora, resta muito a pensar. Pensar é, com
ção, ou melhor, à injunção do outro e da outra, cujos textos nos che- efeito, o que sempre resta25.
gam de tempos remotos (Grécia antiga ou moderna, Roma, Oriente
Médio, mas também Arábia, China, África, nossa América), bem 5. Ficção e ética: questões políticas
como de tempos modernos ou “pós-modernos”. Tal é a responsa- A pergunta que também resta ou permanece (demeure), no que diz
bilidade da leitura como escritura e como contra-assinatura. Pois o respeito à ficção é: qual tipo de narrador cabe ainda hoje, depois de
evento pensante da leitura é essa ressignificação escritural, em que um século de modernidade vanguardista? Como não repetir Joyce,
emerge o dado singular, imprevisível no contexto de partida (em Woolf, Kafka e Clarice, ao tempo em que se empostam também essas
que se deu a inscrição primeira, o texto do outro) e nos contextos de
24 Cito literalmente: “o nascimento do leitor deverá se pagar com a morte do 25 Desenvolvi essa temática no artigo-conferência “A desconstrução ‘no Brasil’:
Autor” [la naissance du lecteur devra se payer de la mort de l’Auteur]. (BARTHES uma questão antropofágica?” (NASCIMENTO 2006:144-179). Com o título de “A
1994:491-495) antropofagia em questão”, outra versão saiu em NASCIMENTO (2011:331-361)
534 Evando Nascimento Capítulo 14 . Uma literatura pensante 535

vozes, sem temor nem tremor, menos ainda sem culpa criativa, mas ao radicalmente secreto, ao intangível interior. Mas como preservar
também sem se deixar esmagar genealogicamente por essas mães e o “lar” o “em casa”, sem incorrer em autoimunidade? Como preser-
esses pais literários? Decerto uma das respostas seria multiplicar as var a vida e seus recônditos segredos sem mumificá-la? A questão
filiações, assumindo diversas paternidades e maternidades. O mes- não seria mais de que ou para que serve viver, mas, sim: como viver,
mo acontece no caso do antigo sujeito poético, pois não há como como continuar, quando os sistemas falham, o horizonte se fecha,
retroceder ao criador duplo de demiurgo, que extrai sua matéria do as crises mundiais se repetem do Oriente ao Ocidente, e vice-versa,
nada. Por definição, é poeta quem dialoga com a tradição poética, muitas vezes com o pretexto de velhíssimas “guerras de religião” ou
não simplesmente para “trazê-la nos ossos”, como defendia T. S. novas cruzadas? Apostar e empenhar-se em outras políticas da vida,
Eliot, em Tradition and individual talent , mas por uma interlocu-
26
sem cair no idealismo vitalista nem no autoritarismo biopolítico,
ção que converge com os dados biográficos do poeta, se possível seria uma possibilidade.
misturando gêneros. Poesia mais ensaio, mais autobiografia, mais Somente com a abertura do horizonte é que o aconteci-
narrativa, mais drama etc. Os gêneros sem dúvida implicam modos mento pode advir, mudando quem sabe os rumos da história:
distintos de compartilhar o segredo literário: narradores e persona- “Paradoxalmente, a ausência de horizonte condiciona o próprio
gens se mostram como poderosos disfarces da singularidade de um porvir. A insurgência do acontecimento deve furar todo horizonte de
eu que pode jamais se enunciar de modo altissonante, ao contrário expectativa”28. Valorizar a vida, preferi-la, sempre que possível, à
do poema, em que quase sempre um eu ao menos se anuncia, enun- destruição explícita ou disfarçada, constituiria uma das tarefas sem
ciando-se também com frequência. fim das desconstruções, no limite de uma impossibilidade29. E como
Nesse sentido, o Unheimliche, o infamiliar ou o insólito literá- se pode fazer isso, na prática? Escrevendo livros, realizando pales-
rio nos leva a indagar não o sentimento da vida (Lebensgefühl) ou da tras, publicando artigos, dialogando sem trégua, lendo, ouvindo,
existência, como Thomas Mann faz um de seus personagens ques- eis um começo de intervenção, palavra que tem um duplo sentido
tionar , pois que sabemos nós a esse respeito? Mas sim os sentidos
27
policialesco e político. Optemos pelo segundo sema, o político ou
mutantes do existir humano e vivente em geral, a contrapelo do que o hiperpolítico, a que uma literatura pensante nos convida, agora,
sempre combateu Sócrates contra a propensão heraclitiana de sofis- aqui, incondicionalmente. Trata-se antes de tudo de uma reflexão
tas e poetas, em diálogos como Crátilo e O Sofista. Não é que nada sobre as relações na pólis.
seja fixo no mundo, mas o que se perdeu foi a fantasia da estabilidade E só assim desconstruir pode se dar em ato, como promessa
absoluta, que só o mundo das Ideias realmente fixas pôde conceber de justiça:
e que Machado de Assis tão bem questionou. O fundamental seria
associar essa estranheza dos deslocamentos semânticos ao segredo, 28 (DERRIDA 1994 :15)
29 “Préférez toujours la vie et affirmez sans cesse la survie...” (Prefiram sempre
26 (ELIOT 1950) a vida e afirmem incessantemente a sobrevida), são as palavras que Derrida
27 “Es gab doch etwas, was man Lebensgefühl nenne” [Então existe algo que se deixou para serem lidas por seu filho Pierre, no momento de suas exéquias. (Cf.
chama de sentimento da vida]. (MANN 2008:157) PEETERS 2010 :660)
536 Evando Nascimento Capítulo 14 . Uma literatura pensante 537

“Talvez”, é preciso sempre dizer talvez para a justiça. Há um ligada às modernas democracias, com o poder praticamente infinito
porvir para a justiça e só há justiça na medida em que o aconteci- de dizer tudo, consiste em encenar esse desejo de justiça, ali mesmo
mento é possível, excedendo, enquanto acontecimento, o cálculo, onde até o simples direito falta, como ficcionaliza o até hoje válido Os
as regras, os programas, as antecipações etc. Como experiência miseráveis, de Victor Hugo, a despeito justamente do “miserabilismo”
da alteridade absoluta, a justiça é inapresentável, mas essa é a de que é muitas vezes acusado. Um poder literário que configura mais
chance do acontecimento e a condição da história. Uma história um despoder, o poder de dizer o não dito, em reserva, de trazer à
decerto irreconhecível, é claro, para os que creem saber de que discussão temas pouco ou maltratados pela imprensa, pela história
falam quando usam essa palavra, quer se trate de história social, e por outras ciências humanas. O empenho literário, verdadeiro pe-
ideológica, política, jurídica etc.
30
nhor para poder dizer tudo e, paradoxalmente, também poder silen-
ciar, se separa do engajamento proposto por Sartre32, embora com ele
Os temas da impossibilidade e o da incondicionalidade pode- dialogue. Menos do que um comprometimento político em sentido
riam sugerir uma utopia desconstrutora, mas isso não acontece por- estrito, o que levaria decerto a uma reprodução de ideologias, importa
que, como enfatiza Derrida, a incondicionalidade só passa a existir, esse investimento formal que reinventa os jogos do real via lingua-
com efeito, dentro de determinadas circunstâncias. O absoluto incon- gem. Sem a mediação lúdica da linguagem, nenhuma obra literária
dicional da justiça significa uma promessa de aperfeiçoamento sem sustenta seu poder mobilizador e questionador, reduzindo-se a um
fim do direito, das leis e da legalidade em geral, inclusive dos direitos dogmatismo fútil e raivoso, porém cheio de boas intenções.
humanos. Sem essa efetividade, a justiça incondicional se reduziria Como pensamento, a literatura só pode responder de forma
a mera abstração. A especificidade do direito garante a força geral singular, a cada vez, ao advento do outro como outro, particular e
da justiça, em nome de uma lei que nenhuma democracia particular geral. Isso quer dizer que um texto literário não deveria, em princí-
conseguirá, por si só, pôr em prática, restando uma tarefa comum a pio e por princípio, responder diante de autoridades legais, embora
todas as democracias do planeta, a tarefa de se manifestarem como isso tenha ocorrido inúmeras vezes. Um autor, sim, pode ser res-
fiadoras do justo absoluto. Sem esse empenho em nome de uma de- ponsabilizado pelo conteúdo de sua obra e ter o direito ou mesmo o
mocracia por vir, vindoura, “vindo” (o sintagma à venir tem todas dever de resposta, como Flaubert, Baudelaire e, noutra perspectiva,
essas conotações), nada de democracia real, nada de política ampla- Rushdie.
mente democrática. A potência da literatura , enquanto instituição
31
Por outro lado, a obra mais conservadora pode produzir efei-
tos imponderáveis. Ou mesmo: a obra que se reveste de conteúdo
30 (DERRIDA 1994:61)
31 (Cf. FINKIELKRAUT 2006). Trata-se de uma série de diálogos com especialistas, pornográfico e supostamente antiético pode ter como uma de suas
que procuram dar conta do poder da literatura na sociedade atual. A partir do
intencionalidades (são sempre mais de uma) pôr em questão a
programa “Répliques”, da Rádio France Culture, Alain Frinkielkraut tenta relan-
çar o debate em torno do literário, indo além da obrigação do engajamento polí- moralidade habitual do leitor.
tico de Sartre. Participam da coletânea, entre outros, Jacques Roubaud, Philippe
Sollers e Antoine Compagnon. 32 (Cf. SARTRE 1996)
538 Evando Nascimento Capítulo 14 . Uma literatura pensante 539

Esse é o caso de O Caderno Rosa de Lori Lamby, de Hilda Hilst33, sentido tradicional. Como sintetiza na entrevista já citada “Essa es-
um livro que, se fosse publicado hoje pela primeira vez, decerto seria tranha instituição chamada literatura”, concedida a Derek Attridge:
acusado de pedofilia, por supostamente encenar a narrativa de uma
garotinha em suas relações libidinosas com homens adultos. Por [...] Este dever de irresponsabilidade, de se recusar a responder
esse motivo, a autora foi acusada de ser louca e irresponsável, além com seu pensamento ou sua escrita diante dos poderes consti-
de decrépita, mas não sofreu nenhum processo porque ainda não tuídos, talvez seja a mais alta forma de responsabilidade. Diante
estava em pauta toda uma série de escândalos ligados a redes de por- de quem e do quê? É toda a questão do porvir — ou do aconteci-
nografia e abuso contra crianças, bem como aos crimes cometidos mento prometido por ou numa nova experiência, o que há pouco
pelos padres católicos. Trata-se de uma obra que cita ironicamente chamei de democracia por vir. Não a democracia de amanhã, não
Georges Bataille (travestido de Jorge Batalha), para encenar toda a uma democracia futura, que amanhã estará presente, mas aquela
duplicidade da transgressão literária e sua relação com as normas cujo conceito se liga ao porvir, à experiência de uma promessa
sociais. É um poderoso dispositivo ficcional inventado por Hilst a empenhada, quer dizer, sempre de uma promessa infinita.34
fim de suscitar no leitor e na leitora uma reflexão sobre os limites
entre moral e imoralidade, indo além do horizonte ético-moral e Nessa perspectiva, a raiz latina da palavra responsabilidade, es-
atingindo as paragens de uma responsabilidade ética além da moral. pos-, resume toda a gama de sentidos, que vai do estritamente legal,
Muitas das censuras literárias sobrevêm pela necessidade de impedir obrigatório, ao empenho ou compromisso e à verdadeira respon-
esses efeitos de leitura, que são bem mais do que transgressores, pois sabilidade ética. Como comenta o Houaiss, no verbete etimológico
engendram uma forma de pensamento que questiona radicalmente espos-, que vale a pena citar ao menos em parte, dada a sua densa
os limites da moralidade, pondo em causa o regime opositivo entre poeticidade:
transgressão e norma.
Como as desconstruções são, antes de mais nada, um pensa- [...] antepositivo, de uma raiz indo-europeia *spend- ‘fazer uma
mento do limite e do ilimitado, a literatura pensante de Hilst nos libação’, representada em gr. pelo v. spéndō ‘fazer uma libação;
ajuda a abrir o horizonte reflexivo, levando em conta, para deslocar, firmar um tratado’ (donde spondḗ ‘libação’, spondeîos (poûs) ‘es-
o erotismo, as normas sociais, as diferenças entre infância e idade pondeu, pé de duas sílabas longas, de ritmo lento, utilizado orign.
adulta, a sexualidade infantil e a responsabilidade ficcional. Tal nos cantos de libação’, spondeiakós,ḗ,ón ‘espondíaco, espondaico’)
como, com outros instrumentos e alcance diverso, tem realizado e em lat. pelo v. spondĕo,es, spopondi, sponsum, spondēre ‘assu-
a psicanálise, desde os trabalhos inaugurais de Freud. Isso é o que mir um compromisso ou uma obrigação solene; responder por
Derrida chama de dever de irresponsabilidade, o dever que o texto alguém, ficar por fiador, obrigar-se a; prometer em casamento:
ficcional tem de não se render à divida moral, à responsabilidade em prometer, assegurar’ (der. latinos: sponsa,ae ‘esposa’, sponsus,i

33 (HILST 2005 [1990]) 34 (DERRIDA 2009:258)


540 Evando Nascimento Capítulo 14 . Uma literatura pensante 541

‘prometido em casamento; esposo’, o v. sponso,as ‘prometer; pro- performativa de preservar o segredo, passando-o de geração em
meter casamento; empenhar, penhorar’ [...] responsor,ōris ‘o que geração, de modo não retilíneo e homogêneo, mas, sim, oblíquo e
pode responder; consultar; o que canta um responso’, lat.tar. res- intempestivo. Com isso, podem-se engendrar outros modos de pen-
ponsīvus,a,um ‘que serve para responder’, lat.tar. responsorĭum,ĭi sar a própria genealogia, sem que se recaia na tradição de pai para
‘responsório, responso’, o v. respōnso,as ‘responder; replicar, filho, tradição eminentemente falogocêntrica, como inúmeras vezes
resmungar; ressoar, retumbar, retinir; resistir a, lutar contra’, Derrida apontou. Pois a mãe e a irmã37 aguardam ansiosas para par-
responsum,i ‘resposta; resposta de vocábulo, predição; resposta ticipar do banquete filosófico e literário, no qual, em vez de devorar
de consultor, conselho, solução, decisão’; a cognação vern. é rica, o outro, dá-se de comer para poder comer junto e, igualmente, junto
vulg. e culta, desenvolvendo-se desde as orig. do idioma [...].35 viver. Talvez seja essa a mais alta e de fato ética responsabilidade da
literatura e da filosofia como força de pensamento. Talvez.
6. Desconstruções: entre literatura e filosofia O próprio Derrida observa a sincronia do comparecimento
Em Donner la mort e em Glas, Derrida trata da “economia do sa- na cena ocidental da crítica feminista, sobretudo a francesa, com
crifício”36. Essa expressão é de enorme ambiguidade, reservando Simone de Beauvoir, e da chamada desconstrução. A despeito das
um fundo imenso para futuras interpretações. Tomo-a, todavia, em diferenças de estratégia, a coincidência nada tem de casual, ex-
seu sentido mais literal: cabe economizar o sacrifício de Isaac por plicitando as relações complexas entre desconstrução e contexto
Abraão, eliminando-o de cena como um segredo demasiado arcaico cultural, e mostrando como, de fato, as desconstruções não podem
e, hoje, sem função outra a não ser fomentar fanatismos. Pois é em nem devem ser pensadas como o ato voluntário de um só autor, mas
nome de uma relação absoluta com Deus, Alá e outras onipotências como aquilo que é igualmente bem mais do que um fenômeno de
que muitos sacrifícios humanos todos os dias são praticados em época: “Aparecer ao mesmo tempo que o tema da desconstrução,
diversas partes do mundo, numa versão hipermidiática das guerras como desconstrução do falogocentrismo, não quer dizer necessa-
de religião. Importa, desse modo, sacrificar o sacrifício, economi- riamente, nem sempre, depender disso, mas ao menos pertencer à
zando-o e nos poupando, em nome de novos valores e ações, com mesma configuração e participar do mesmo movimento, da mesma
renovado empenho. motivação”38.
O segredo ostentado (secret affiché) do arquivo literário, como É a isso que nos convida, desde sempre, essa igualmente
bem explica Gêneses, genealogias, gêneros e o gênero, depende dessa estranha instituição da alteridade que um dia foi nomeada como
capacidade infinita de regenerar o contrato antigo e moderno da desconstruções. É nesse sentido que desconstrução e literatura têm
instituição literária. Contudo, trata-se de um contrato em aberto, 37 No capítulo intitulado “Liberté, égalité, fraternité ou comment ne pas deviser”
(Liberdade, igualdade, fraternidade ou como não conversar) de um de seus
sem outras cláusulas obrigatórias senão a capacidade constativa e livros mais políticos, Voyous: deux essais sur la raison (Vadios: dois ensaios so-
bre a razão) (DERRIDA 2003:85-93), Derrida retoma a discussão da política da
35 Cf. http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=espos- . amizade como sendo tradicionalmente fraterna, em detrimento da irmã (soror).
36 (Cf. DERRIDA 1999:130). A nota desta página remete a várias referências em Tal tema já fora amplamente desenvolvido em (DERRIDA 1994)
DERRIDA (1974) 38 (DERRIDA 1994:276)
542 Evando Nascimento Capítulo 14 . Uma literatura pensante 543

uma relação estreita e intensiva. Derrida faz questão de ligar o mostrar, até mesmo demonstrar não significa necessariamente
gozo (enjoyment, em inglês; jouissance, em francês) à desconstru- revelar tudo, pois sempre uma camada de sentido pode se ocultar
ção, numa frase que nada tem de hedonismo gratuito: “A cada vez naquilo mesmo que se expõe à luz, aos olhos públicos, à curiosidade
em que há ‘gozo’ (mas o ‘há’ desse acontecimento é em si mesmo alheia. A força dos arquivos literários guardados por uma Biblioteca
bastante enigmático), há ‘desconstrução’. Desconstrução eficaz. A é que seu segredo
desconstrução talvez tenha como efeito, senão como missão, liberar
o gozo interdito. É em relação a isso que se deve tomar partido”39. [...] não se deve apenas ao fato de nem mesmo a ela ser acessível
Percebe-se o sentido ético-político dessa sequência de enunciados, ou de tal ou qual conteúdo lhe ser dissimulado, criptado, para
em que as desconstruções aparecem como uma forma de liberação sempre hermético, mas também ao fato de a forma de escrita, a
do interdito, do sentido restritivo da lei. Logo em seguida, a pró- literatura a ela confiada, ter uma estrutura cujo segredo é tanto
pria literatura vai ser até certo ponto caracterizada por essa mesma mais lacrado e indecidível quanto não consiste, finalmente, num
possibilidade, derivada de sua capacidade de dizer tudo. Depois conteúdo oculto, mas sim numa estrutura bífida, a qual pode
de marcar que as coisas nunca são simples quando se trata de pra- guardar em reserva indecidível aquilo mesmo que ela jamais
zer, de princípio de prazer e de mais além do princípio de prazer, acaba de declarar, mostrar, manifestar, exibir, expor.41
Derrida volta a enfatizar o vínculo entre a desconstrução eficiente e
o “maior prazer possível”, para logo em seguida reapresentar a litera- Paradoxalmente, a obra literária ou artística em geral nasce
tura como essa possibilidade de suspender o recalque: “A literatura também de certa inoperância, de uma ruptura com o contrato bur-
suspenderia o recalque: ao menos em certa medida e a seu modo, guês, o rendimento de capital e o regime de trocas que o funda. Sem
nunca totalmente, de acordo com roteiros regulados, mas sempre certo ócio, nada de obra em desconstrução, apenas monumento
modificando as regras no que se chama de história da literatura” .40
construído. Nesse sentido, o trabalho do luto, que Derrida assu-
É dentro dessa perspectiva que o citado Gêneses, genealogias, me como o trabalho por excelência, funciona nessa relação tensa
gêneros e o gênero associa segredo e arquivo ao signo Biblioteca, a entre vida e morte, a vida que lamenta a morte iminente, mas que
partir de uma reflexão sobre a obra e parte dos arquivos de Hélène celebra igualmente sua sobrevivência, quiçá sua supervivência. É o
Cixous entregues à Biblioteca Nacional da França. A questão será que comparece na abertura de um texto-homenagem a seu amigo e
sempre a de saber o que significa guardar arquivos e seus segredos: colega, então recém-falecido, Louis Marin:
até que ponto a guarda oculta ou manifesta de algum modo o que
se guarda? E, uma vez expostos, será que os documentos e, sobre- O trabalho: o que faz obra, decerto o que obra — e abre, o que
tudo, os textos literários perderam todos os seus segredos? Expor, opera e o que desobstrui: o trabalho da obra enquanto engendra,
produz e traz à luz, mas o trabalho também como o sofrimento, o
39 (DERRIDA 1994:274)
40 (DERRIDA 1994:275) 41 (DERRIDA 2003:43)
544 Evando Nascimento Capítulo 14 . Uma literatura pensante 545

suportar a força e o mal de quem dá. De quem dá a luz e dá a ver, provocado, convocado, pela “questão da literatura”) nos ensina
dá poder, dá força de saber e de poder ver, e esses são poderes da mais, e mesmo o “essencial”, sobre a escritura em geral, sobre os
imagem, o mal do que se dá e de quem se dá o mal de dar a ver, limites históricos ou científicos (linguísticos, por exemplo) da
a ler, a pensar. interpretação da escritura.43

[...] Todo trabalho em geral trabalha no luto. De si próprio. Nesse sentido, o pensar de uma literatura pensante se volta
Mesmo quando tem o poder de dar nascimento, mesmo e so- para seus próprios fundamentos institucionais, quer dizer, escri-
bretudo quando premedita dar a luz e dar a ver. O trabalho do turais. No sintagma “uma literatura pensante”, o adjetivo pensante
luto não é uma espécie entre outras possíveis, uma atividade do não é um atributo inerente a alguns tipos de obras. Isso seria recair
gênero “trabalho”; não é de forma alguma uma figura particular no imanentismo teórico-crítico, que se acreditaria capaz de falar de
da produção em geral.42 uma essência da literatura, o que os formalistas russos nomeavam
como literariedade. Todavia, por ser mais uma categoria da leitura
O trabalho ou a operação literária de Clarice, Joyce e Beckett, do que da produção, uma literatura pensante é aquela que emerge,
por exemplo, consiste também em tornar inoperantes mecanismos como efeito, para determinado leitor, em determinado contexto,
institucionais rígidos, em nome de uma abertura ao outro e à outra informando uma complexa contextura, que se tece entre obras,
como alteridade radical. É esse o direito incoercível à literatura, ativos leitores e contextos. A contextura é o próprio processar-se
diretamente vinculado a instituições democráticas. Todos os regi- da leitura, que, como dito, só ela dá vez a uma literatura, escrita
mes que ignoram parcial ou completamente a democracia tendem ou escritura pensante. Por isso, foi importante também renomear
a perseguir seus escritores e artistas, como é o caso da China, do Irã como uma leitura pensante, pois quem pensa de fato é o leitor,
e da Rússia. O que faz da literatura uma instituição especial, embora inventando um novo texto, a partir da contra-assinatura de uma
por isso mesmo desprovida de uma essência ideal, de uma “litera- obra prévia. Tal como Derrida lendo o já referido L’Instant de ma
riedade” plena, como se dizia outrora, é não ser simplesmente mais mort, de Blanchot, dando vez em ato, performativamente, a uma
uma região ou domínio da textualidade em geral: literatura pensante.

[...] O que a literatura “faz” com a língua detém um poder re- [...] é uma instituição que consiste em transgredir e em trans-
velador, que decerto não é único e que ela pode até certo ponto formar, portanto em produzir sua lei constitucional; melhor
compartilhar com o direito, com a linguagem jurídica, por dizendo, em produzir formas discursivas, “obras” e “aconteci-
exemplo, mas que, em determinada situação histórica (a nossa, mentos” nos quais a possibilidade mesma de uma constituição
justamente, e eis uma razão a mais para se sentir concernido, fundamental é, ao menos por “ficção”, contestada, ameaçada,

42 (DERRIDA 2003:177-178) 43 (DERRIDA 1992:289)


546 Evando Nascimento Capítulo 14 . Uma literatura pensante 547

desconstruída, apresentada em sua precariedade mesma. Sendo instituição”, Samuel Beckett foi o autor em cujas obras ele quase
assim, se a literatura compartilha certo poder e certo destino com nada encontrou para desconstruir, tanto o trabalho da linguagem
a “jurisdição”, com a produção jurídico-política dos fundamentos e a força desconstrutora do escritor irlandês estavam próximos do
institucionais, da constituição dos Estados, da legislação funda- seu. Para a elaboração de uma lista mais extensa, seria necessário
mental, e mesmo dos performativos teológico-jurídicos, que se realizar pesquisas na biblioteca do pensador, bem como consultar
encontram na origem da lei, em certo ponto ela pode também todos os seminários inéditos em que se referiu a obras literárias e
excedê-los, interrogá-los, “ficcionalizá-los”: com vistas a nada, é todos os artigos e conferências igualmente ainda inéditos na França.
claro, ou a quase nada, e produzindo eventos cuja “realidade” ou Um belo trabalho para os pesquisadores vindouros.
duração nunca é assegurada, mas que, por isso mesmo, dão tanto Já existe hoje uma tendência a repetir, de modo mecânico, al-
mais a “pensar”, se isso ainda quer dizer algo.
44
guns dos temas desenvolvidos por Derrida nos últimos anos de sua
vida. Tal como em relação aos textos iniciais se destacaram noções
O fato de lidar predominantemente com autores canônicos como phármakon, escritura/escrita, jogo, texto, rastro etc., tende-se
não reduz em nada a força pensante dos textos de Derrida no di- agora a enfatizar termos como hospitalidade e perdão incondicio-
álogo contínuo com a literatura. O motivo principal seria que ele nais, ética como amizade, messianicidade sem messianismo, fide-
vai buscar nesses autores, sobretudo, temas e formas que ajudam lidade na traição etc. Até certo ponto, é inevitável que os afainados
a abrir o horizonte histórico-cultural, possibilitando, assim, que leitores de primeira, segunda, terceira ou última hora propendam
outros leitores e leitoras possam fazer suas próprias leituras de auto- a repetir o que o próprio pensador enfatiza. Há um desejo bastante
res e autoras canônicos ou não canônicos. Seria impossível realizar legítimo de constituição ou de restituição de um saber. No entanto,
uma lista exaustiva dos autores cujos textos serviram de ponto de a estabilidade num campo de saber (filosofia, literatura, teoria da
partida para algumas das estratégias desconstrutoras, mas podem- literatura, crítica literária, Teoria, Humanidades em geral etc.) cons-
-se apontar alguns que são referências recorrentes na pena ou no tituiu sempre um dos aspectos mais visados por textos e contextos
teclado derridiano. Numa lista provisória, teríamos, pois: James de desconstrução. Como, então, seria possível inventar dispositivos
Joyce, Edgar Allan Poe, Hélène Cixous, Philippe Sollers, Daniel que desarmem a mecanicidade da leitura exegética e excessivamente
Defoe, Jean-Paul Sartre, Gustave Flaubert, Antonin Artaud, Jean fiel à letra do texto do outro, mas sem traí-la de todo? A resposta,
Genet, Francis Ponge, Stéphane Mallarmé, Paul Celan, Sófocles, parece-me, seria não dar um tratamento conceitualmente idealizan-
Maurice Blanchot, Jorge Luis Borges, Jean de La Fontaine, Edmond te, mas simplesmente reescrever os textos assinados J.D.
Jabès, Michel Leiris, William Shakespeare, Wolfgang Von Goethe, Reescrever, em sentido forte, implica encontrar sua própria
Paul Valéry, Hermann Melville, André Gide, Georges Bataille e escrita a partir da escritura do outro, enxertando-a com outros
Charles Baudelaire. Como ele diz na entrevista sobre “Essa estranha autores e temas, que ele, por razões essenciais, não tratou ou tratou
44 (DERRIDA 1992:290)
de outros modos. Em suma: cabe acrescentar algo de seu, gerando
548 Evando Nascimento Capítulo 14 . Uma literatura pensante 549

uma nova textualidade, em diálogo com os textos de partida. É o identificação do que ele torna possível e que, portanto, delimita-
que tenho procurado fazer desde que concluí Derrida e a literatura ria e des-estabilizaria o estado ou o estabelecimento aos quais dá
(livro por si só já movido por um desejo interpretativo singular): lugar”45. É nesse não lugar estável que aparecem “efeitos de des-
ler diversos autores a minha maneira, muitas vezes em companhia construção”, irredutíveis a qualquer teoria ou corrente crítica. Em
de Derrida, outras somente a partir dele, muitas outras sem ele. A outras palavras, aquilo que torna possível a existência de “teorias”
lista seria longa e só citaria de passagem alguns, a título de referên- não é teorizável de maneira simples, pois não tem uma identidade
cia parcial: Walter Benjamin, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, e, portanto, põe em xeque a identidade das correntes, ou jetées,
Guimarães Rosa, Carlos Drummond, Waly Salomão, Haroldo de historicamente constituídas. E é por isso que as correntes se apro-
Campos, Silviano Santiago, Ana Cristina Cesar, Bispo do Rosário, priam de algumas das características e pressupostos de suas ditas
Hélio Oiticica, Charles Baudelaire, Hans Ulrich Gumbrecht, concorrentes para se autoafirmar, dentro de um processo geral
Antonio Cicero, Cecília Meireles, entre muitos outros. Esses en- de enxertos e parasitismos. Daí decorre que não há teoria pura:
saios procuram sempre evitar a pura teoria (filosófica ou não) e psicanálise, marxismo, estruturalismo, new criticism, pós-estru-
a pura crítica (literária ou não). Pois, em matéria de texto, ide- turalismo, pós-colonialismo, cultural studies intertrocam mais de
al mesmo é acumular impurezas no branco da tela e da página, um interesse, mais de um elemento, no momento mesmo em que
muitas vezes com um direcionamento poético-ficcional. É nesse parecem se opor radicalmente. Razão pela qual não pode haver
sentido que desenvolvo nesse momento todo um projeto ficcional corrente “desconstrutivista”, a não ser para aqueles que, de boa
de escrita. ou má fé, acreditam ser as desconstruções mais uma teoria e não
No texto de uma conferência dos anos 1980, realizada na a possibilidade histórica de se pensar o conjunto em aberto dos
Universidade da Califórnia, em Irvine, Derrida fala da impossi- sistemas teóricos em suas limitações e em seus avanços.
bilidade de se falar da “teoria” no singular e sem aspas, e de como Por isso também uma literatura pensante só pode ser enten-
essa impossibilidade poderia ser interpretada de dois modos dida como um conceito em aberto, em processo, sem perspectiva
distintos. A primeira interpretação, mais clássica, remeteria à de conclusão. Um conceito sem definição simples, portanto, que
disputa entre as correntes ou o que ele chama de “jetées” (palavra apenas pode se dar como efeito de contra-assinatura, na perspectiva
que indica o “quebra-mar”, mas que mantém relação etimológica do texto do outro, como verdadeira responsabilidade. Tal é o com-
com o “jet”, o jato ou o “jeto” de projeto, de sujeito e de objeto) promisso de uma leitura-literatura pensante, assinar
teóricas. Cada teoria seria movida por um princípio de razão ou
por uma vontade de potência, que lhe dá um tipo de configuração. com outra assinatura — pois a contra-assinatura assina, confir-
A segunda interpretação remete para uma cláusula ou uma lei dis- mando a assinatura do outro — mas também assinando de modo
seminante que torna impossível a estabilidade no campo de forças absolutamente novo e inaugural, os dois de uma só vez, como
teórico: “um recurso de alteridade ou de alteração disseminativas, cada vez em que confirmo minha própria assinatura, assinando
tornando impossível simultaneamente a pura identidade, a pura 45 (DERRIDA 2009:231)
550 Evando Nascimento Capítulo 14 . Uma literatura pensante 551

de novo: a cada vez do mesmo modo e diferentemente, uma nova ponto de partida para uma experiência que ultrapassa a limitação
vez, uma outra vez, numa outra data.
46
dos campos.
Tal é o caso exemplar da filosofia, embora o que esteja em jogo
Sinalizo, ainda, que a expressão “uma literatura pensante” vá mais além da limitação ao “exemplo”. Como expus em diversos
não se encontra em nenhum texto publicado por Derrida e que a momentos de Derrida e a literatura, não se trata de reduzir o texto
inventei a partir de elementos desconstrutores. Trata-se, portanto, literário a teses filosóficas, nem de utilizá-lo para sustentar qualquer
de uma interpretação e de um desdobramento da obra do outro, doutrina disciplinar. O pensamento do literário é singular, inde-
configurando o que chamei alhures de desdobra. pende da filosofia para existir e produzir efeitos. Diria mesmo, ao
contrário, que a literatura abre o horizonte das questões tradicionais
7. Perspectivas, associações, singularidades
da filosofia, promovendo o advento do “infinitamente outro”. Essa
é, como também visto, a expressão utilizada por Clarice Lispector e
Em literatura, pensamento é o que se produz de forma singular, muito
que tem tudo a ver com o tout autre (todo outro, inteiramente outro,
além da generalidade dos gêneros (poesia, drama, romance, conto,
totalmente diferente) agenciado por Derrida a partir do pensamen-
ensaio etc.), e por isso mesmo, como visto, pode se tornar universal.
to de Lévinas. Clarice não precisou de Derrida nem de Lévinas para
Universais e singulares são a literatura e a leitura pensante: leitura
realizar uma ficção altamente performática, que põe em causa, por
como testemunho de contato com a escrito do outro/da outra que
exemplo, as relações entre o humano e a animalidade, relações estas
nos precede e a quem respondemos com a dupla liberdade do tudo interpretadas na tradição metafísica como duas categorias opositi-
dizer e do nada dizer, do expor e, ao mesmo tempo, guardar um vas e irredutíveis uma à outra. Irredutíveis elas até são, mas isso não
segredo. Segredo este em seguida compartilhado com outros leito- implica superioridade nem, sobretudo, uma identidade absoluta
res. Foi o que tentei de algum modo fazer, dando aqui um pequeno de um dos polos em confronto antagônico com o outro, exigindo a
testemunho do que têm sido minhas leituras em desconstrução. necessidade de entendê-las como sendo intercomunicantes. Isso é o
Sublinho também que uma literatura pensante não é sinônima que a ficção clariciana performa, em ato, em textos estranhamente
de uma “literatura filosófica”, pois a filosofia ainda é um campo dis- familiares como “Macacos”, “A legião estrangeira”, A paixão segun-
ciplinar e o pensamento opera com o indelimitado. Pensar literaria- do G.H., “A menor mulher do mundo” e “O ovo e a galinha”, entre
mente seria não ficar preso nem ao campo estrito da própria crítica inúmeros outros47. Uma literatura pensante dá vez e lugar a pensar
ou da teoria literária, nem tampouco de qualquer outro saber his- o impensado e mesmo o impensável para a tradição filosófica, em
tórico: filosofia, sociologia, economia, história, geografia, zoologia, grande parte devedora do falogocentrismo, a despeito e por cau-
religião etc. Uma literatura pensante, bem como seu duplo, a leitura sa de sua imensa riqueza conceitual. Na literatura ou na escritura
pensante, é necessariamente transdisciplinar, não porque ignore as pensante de Clarice, não há conceitos nem teses, mas situações
disciplinas historicamente constituídas, mas porque as toma como
47 Aqui só posso me permitir reenviar a leitora e o leitor ao já citado Clarice
46 (DERRIDA 2009:285) Lispector: uma literatura pensante (NASCIMENTO 2012).
552 Evando Nascimento Capítulo 14 . Uma literatura pensante 553

infamiliares, inovações de linguagem, tangenciamentos da morte, alguma. Mas uma coletividade feita de singularidades e, por isso
inflexões de pensamento: em suma, visões do esplendor e da miséria mesmo, sem cargos de direção, nem hierarquias predeterminadas.
humana, animal, coisal etc. Noutras palavras, uma Associação descentrada, mas não anárquica.
Se não existe literatura em si mesma, autoidentificada e essen- Pois ela teria ainda uma ordem ou, no mínimo, uma ordenação;
cial, tal como a referida literariedade dos formalistas russos supunha, todavia esta não se faria a partir de cargos de poder, mas, sim, pelo
há, contudo, um conjunto em aberto de textos que, sobretudo a partir diálogo permanente entre seus membros. Isto é, uma Associação
de uma tradição moderna, se inscreveram sob o signo do dizer tudo, que pensasse a si mesma em todas as suas instâncias e, desde seu
do livre compartilhamento democrático. Por isso mesmo, obras ato fundador, não constituindo nem criação nem propriedade de
anteriores ao próprio surgimento da palavra literatura em sentido ninguém.
especializado a partir do século XVIII, acabam também por com- Por mais difícil e desafiador que fosse pensar essa estranha e
partilhar essa liberdade inerente à instituição literária, fazendo com inovadora instituição, a Associação exigiria de si mesma, antes de
que a literatura enquanto instituição possa ser duplamente abordada: tudo, não ser mais uma Sociedade Anônima, nem muito menos
primeiro, como historicamente referida ao que acontece na moderni- Limitada (Limited inc.), porém fundada numa coletividade real-
dade recente e contemporânea; segundo, como fator supratemporal mente plural, aberta ao diálogo, ao compartilhamento e ao advento
e até mesmo supraespacial, que leva a reler textos poéticos, narrati- do infinitamente outro, o diferente, que nenhuma instância de
vos e ensaísticos da tradição ocidental e não ocidental anteriores à poder conseguiria controlar. Uma Associação, que como a litera-
modernidade como também dotados de força pensante. Trata-se de tura, reinventasse o instituir-se da própria instituição, evitando os
uma abordagem tanto mais fascinante desse conceito ampliado do jogos de submissão e de coerção, que normal e normativamente as
literário porque conduz necessariamente a estudos de aproximação Associações em geral impõem.
entre escrita e oralidade, muito além dos regimes de oposição. Nesse Isso seria possível ou constitui apenas mais uma utopia? A
sentido, cabe sempre ressaltar que a categoria derridiana da escrita/ existência concreta de literaturas e de leitores pensantes faz ver que
escritura (écriture) jamais implicou uma oposição entre escrita e ora- esse sonho é de todo viável e se encontra, por enquanto, em aberto,
lidade, mas, sim, a necessidade de se refletir acerca de uma origem como aposta efetiva no porvir.
comum, o que em certo momento foi nomeado como arquiescrita ou
arquiescritura (archiécriture), ou seja, um conjunto de rastros nem Referências
presentes nem ausentes, mas indecidíveis.
Para concluir, porém sem encerrar a demanda infinitamente ATTRIDGE, Derek. 2004. The Singularity of Literature. Londres; Nova York:
outra da literatura, perguntaria se é possível pensar uma Associação Routledge.
Nacional ou Internacional de Estudos de Desconstrução. Diria mes- BARTHES, Roland. 1994. La Mort de l’Auteur. In: —. Oeuvres completes — II. Paris:
mo que esse é todo meu sonho: não uma Associação de discípulos Seuil, p. 491-495.

de Derrida, pois, como disse desde o início, ele não fundou escola BLANCHOT, Maurice. 2004. L’Instant de ma mort. Paris: Fata Morgana.
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Capítulo 15

A literatura e o pensar:
notas sobre a trajetória
intelectual de Jonathan Culler
Sueli Cavendish
Universidade Federal de Pernambuco
Apresentar o nosso entrevistado Jonathan Culler em sua trajetória
no mundo acadêmico e intelectual é tarefa de múltiplas nuances.
De tal forma essa trajetória se confunde com o caudaloso fluxo
de produções teórico-críticas que frutificaram nos anos do es-
truturalismo e do pós-estruturalismo, a partir das mais variadas
perspectivas e enquadramentos, que algumas das vertentes desse
pensamento nortearão este texto. A todas as questões ele tratou de
dar uma visada lúcida, articulada e, sobretudo, eficaz, sem nada
perder das complexidades das formulações originais. É necessário
afirmar de início que Jonathan Culler se dedica primordialmente
à disseminação de determinados corpos de conhecimento, no-
tadamente o estruturalismo e a desconstrução. Com respeito à
Desconstrução, essa disseminação jamais tomou o rumo de uma
crítica ao pensamento e às reflexões de Jacques Derrida, o que não
desmerece o seu trabalho, uma vez que ele foi fiel justamente ao
que considerava a enorme contribuição de Derrida para o pensa-
mento acadêmico nos Estados Unidos, vendo nesse pensamento
uma perspectiva concreta para o florescimento dos estudos literá-
rios em seu país.
O público acadêmico brasileiro o conhece através dos li-
vros Teoria literária: uma introdução (Trad. Sandra Vasconcelos.
São Paulo: Beca, 1999) e Sobre a desconstrução (Trad. Patrícia
560 Sueli Cavendish Capítulo 15 . A literatura e o pensar 561

Burrowes. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997). Eu logo salientaria, com respeito a este mesmo livro, o pro-
Outros livros como The Pursuit of Signs, no qual se aventura no grama de desenhar a cartografia de um projeto também ambicioso,
terreno da semiótica, com excelentes resultados, e Flaubert: The uma semiótica da literatura, cujos problemas ele investiga e apare-
Uses of Uncertainty  (sua tese de doutoramento, de 1974) jamais cem abundantemente no debate teórico em andamento. Em geral,
foram traduzidos no Brasil, assim como Structuralist Poetics, a Semiótica defende a ideia de que o estudo da literatura deve ser,
vencedor do prêmio de 1976 da Modern Language Association, antes de tudo, uma investigação focada nos meios e nos modos da
MLA, o Lowell Prize. Ferdinand de Saussure  (1976),  The Pursuit significação literária, propugnando a descrição completa do siste-
of Signs: Semiotics, Literature, Deconstruction  (1981) são livros ma de significação. Uma obra não pode ser interpretada sem “uma
que até o momento não foram traduzidos para o português, as- compreensão completa da natureza e convenções da narrativa, das
sim como Roland Barthes (1983), Framing the Sign: Criticism and relações entre história e discurso, e das possibilidades da estrutura
Its Institutions (1988), Literary Theory: A Very Short Introduction temática”, mas esse é um pensamento que informa quase que exclu-
(1997) e o seu livro mais recente, The Literary in Theory (2006). sivamente a crítica e a teoria anglo-americana.
Por conseguinte, são de fato escassos os elementos através dos Conforme queremos assinalar, Culler ressalta que, mesmo no
quais tentaremos extrair o valor da sua obra, transmitindo-o para o veio da semiótica que viceja nos países anglo-saxões, a Inglaterra e
nosso público, a fim de estabelecer os necessários nexos entre esta os Estados Unidos, onde predomina a língua inglesa, e onde também
obra e o vasto território do conhecimento a partir do qual o autor predomina o projeto de ampliar cada vez mais o leque dos aportes
teoriza e reflete. que darão sustentação ao ato interpretativo, há discordâncias nu-
A minha escolha não poderia deixar de recair em tópicos re- merosas e importantes sobre o que seja o estudo da literatura: há os
lativos aos livros que tenho em mãos. Em The Pursuit of Signs, ele que se preocupam com os procedimentos adotados, mas não com a
define a crítica como uma: episteme que os informa e há os que discordam dessa concepção de
que são numerosas e quase infinitas as perspectivas pelas quais um
caça aos signos, na qual os críticos, não importa a crença, são texto pode ser enquadrado (framed), porque isso põe em questão a
estimulados pelo prospecto de alcançar, compreender, capturar, possibilidade de que qualquer obra possa vir a ser escrutinada e, em
em sua prosa, estruturas de significação evasivas, fugidias. A crí- seguida, interpretada de modo tão completo. Ou seja, a interpreta-
tica existe porque os signos da literatura nunca são simplesmente ção total é um projeto destinado ao fracasso, simplesmente porque
dados como tais, mas devem ser perseguidos como se persegue são inesgotáveis os sentidos e significações que produzem as obras
uma caça, adentrando os variados caminhos de um denso cipoal. literárias. Enfim, a pletora de discordâncias gerada por proposições
Os diversos modos da crítica podem ser distinguidos pelos rela- tão generalistas é infindável e diz respeito, entre outros aspectos,
tos que cada uma delas fornece dessa perseguição. 1
aos modos de procedimento, e à possibilidade de se levar a termo
1 (CULLER 1981:vii)
um projeto tão amplo. A cada interpretação de um texto literário, a
562 Sueli Cavendish Capítulo 15 . A literatura e o pensar 563

questão que inevitavelmente surge é a de determinar se a elaboração e completo; na verdade, nenhum sistema, por mais compreensivo, é
que dela resulta torna possível a produção de novas interpretações capaz de realizar tal proeza. E isso não ocorre por falha do sistema,
de obras literárias. Este é o pressuposto fundamental da crítica an- mas pela inversão, reversão, desconstrução, da própria indagação,
glo-americana, que tem, como já foi realçado, um impacto decisivo agora enquadrada pelo que nos dizem os textos sobre a significação;
em toda a crítica posterior. ou seja, aquilo que se buscava nos textos, o seu significado, é o seu
Retornando ao já assinalado: The Pursuit of Signs se concentra conteúdo. Os textos se dedicam a compreender o que é a significa-
nos dois temas: (1) o que são e o que podem os estudos literários ção. E ao se indagarem sobre a significação, eles são reflexivos, por-
e (2) os nexos entre a semiótica e a desconstrução. O livro, em sua que põem a si mesmos como o objeto central daquilo sobre o que
primeira parte, oferece dois panoramas, focalizando tanto a crítica refletem. Ao invés de abrigarem um conteúdo e um significado que
recente quanto a semiótica, delineando duas questões fundamentais o leitor/intérprete buscará conhecer, eles devolvem tal pergunta ao
que serão tratadas nas seções posteriores: o papel e o status da inter- leitor. E assim se desfaz a lógica pela qual essas indagações dirigidas
pretação, questão que sobremaneira está presente nas preocupações aos textos anteriormente se conduziam.
de Culler, desde que ele discorda com certa veemência que a reflexão Culler, então, passa ao exame detalhado da semiótica literá-
crítica ou teórica deva render vassalagem à interpretação de obras ria, elaborando e desenvolvendo os seus argumentos com respeito
literárias. Se assim for, essa reflexão retira e suprime dos estudos às várias formas de avaliação de determinados conceitos, quando
literários a autonomia do pensar, ou seja, a metateoria, importante tratam da abordagem da significação, entre eles, o “horizonte de ex-
prerrogativa desses estudos, deixa de ter um espaço nos estudos pectativas” e a “intertextualidade”. O foco sobre o leitor, quaisquer
literários. Mas aqui o tema ainda é tratado de forma débil. Somente que sejam os enquadramentos e as perspectivas, é um tema que,
mais tarde, como veremos na entrevista, Culler põe em questão a pelas inúmeras questões que propõe, sobretudo, as relacionadas aos
centralidade da interpretação na constituição e construção de uma efeitos do texto sobre o leitor, é também sobremaneira explorado e
crítica e uma teoria literária na Inglaterra e nos Estados Unidos, que central às suas preocupações.
entrará em oposição ao seu projeto de libertar os estudos literários Culler considera o modo como a experiência de leitura leva
do objetivo de interpretar pura e simplesmente um texto literário, o leitor a completar o significado da obra, preenchendo lacunas e
projeto que ao subtrair da teoria literária a capacidade e a vocação dialogando de variadas formas com o texto, de tal forma que ele,
para o pensar em geral, também lhe subtrai o valor. o leitor, por assim dizer, finaliza e completa o significado da obra.
A segunda proposição que norteia The Pursuit of Signs, seguin- É o que conhecemos como o reader-response criticism, que recebe
do a configuração labiríntica do seu livro, a relação da semiótica com atenção especial neste livro. Entretanto o autor adverte que, na sua
a desconstrução, emerge de uma reflexão sobre os signos, mas enve- perspectiva, o que é mais importante nessas vertentes de interpre-
reda por novas direções. Aqui não há otimismo quanto à possibili- tação de textos é a sua relação com a poética e a semiótica, concebi-
dade de dar conta do significado a partir de um sistema abrangente das como teorias de leitura. É aqui que defenderá a distinção entre
564 Sueli Cavendish Capítulo 15 . A literatura e o pensar 565

a crítica interpretativa e a poética, que a seu ver evitaria a nebulosa nos anos recentes, tem obnubilado o campo da crítica, e a limpeza e
que envolve o divisor de águas entre estruturalismo e semiótica o clareamento de um terreno que ameaça fazer submergir qualquer
literária. poder de reflexão, são os móveis do seu projeto. Uma parte impor-
Em seguida, os esforços Culler se ocupam da renovação de tante deste projeto é estabelecer a distinção entre o estruturalismo
uma teoria literária estruturalista, com a proposição da noção de e o pós-estruturalismo. Há um apagamento dos limites entre um e
“competência literária”, que tem Chomsky como ponto de partida, outro campo que ameaça a reflexão, tamanha a variedade de cri-
mas cuja ênfase recai no conhecimento linguístico que tem o leitor, térios sob os quais são julgados e classificados os críticos e os seus
conhecimento sistematizado e predeterminado pela convenção. Ao produtos no arco deste amplo debate: Diz Culler, a certa altura:
invés de buscar o “significado secreto” de um texto, a leitura crítica
deve centrar-se nas operações que vão do texto à representação da Ciência ou irracionalismo, rigidez ou permissividade, destrui-
compreensão do texto; e na investigação do aparato linguístico do ção ou ênfase da crítica — a possibilidade de tão contraditórias
leitor, enquanto conjunto codificado e sistematizado. Culler vê a acusações (ao estruturalismo) poderia sugerir que a qualidade
literatura como um signo institucional, que dá ao ser humano uma fundamental do “estruturalismo” é a de uma força radical inde-
razão para crer que o resultado do seu esforço de leitura será recom- terminada: ele é visto como extremo, como violador de hipóteses
pensado. E a competência literária como a aquisição do sistema que anteriores sobre literatura e crítica, embora haja desacordo a
é institucionalizado pela academia. respeito de como o faça. Mas essas contraditórias acusações tam-
Foi, porém, com os produtos da segunda direção tomada pelo bém indicam que os oponentes do estruturalismo têm trabalhos
seu trabalho em teoria literária — as relações entre a semiótica e diferentes em mente e que, para esclarecer essas questões, deve-
a desconstrução — que veio a notabilizar-se. Em 1975, publicou mos deslocar-nos para um outro nível de especificidade.2
Structuralist Poetics: Structuralism, Linguistics, and the Study of
Literature, uma versão revisada da tese de doutorado, com a qual Enfim, Culler assume a tarefa de deslindar o emaranhado de
conquistou o prêmio James Russell Lowell de melhor livro do ano vertentes em que se transformou o debate crítico em torno da lite-
em crítica literária, concedido pela Modern Language Association ratura. Enfrentava assim o caos dos inúmeros desvios, dos mal-en-
of America. E em 1982, On Deconstruction: Theory and Criticism tendidos, das incompatibilidades, das incongruências que marcam
after Structuralism, com o qual introduziu o pensamento de Jacques o seu encontro naquele que deveria constituir um terreno comum
Derrida nos países de língua inglesa e consolidou a sua marca de para a reflexão, uma mistura a impedir até mesmo a listagem das
um dos pensadores mais eminentes sobre as questões extremamente partes constituintes deste todo babélico. Uma das fontes iniciais
complexas do campo teórico da Desconstrução — Culler é hoje o 5º deste mosaico de partes que não se encaixam é a instabilidade dos
mais citado entre os teóricos vivos. termos. Tomando a palavra “estruturalismo” como exemplaridade,
Em “Sobre a Desconstrução”, o reconhecimento do caos que, 2 (CULLER 1997)
566 Sueli Cavendish Capítulo 15 . A literatura e o pensar 567

Culler examina como cada uso diverso do termo leva a resultados constituir em exemplaridade da reorientação crítica que não se su-
que mantêm e reforçam a ambiguidade, e assim a insegurança e bordina a buscar o sentido de um texto. Porém se o New Criticism,
a estupefação daqueles que fazem da teoria literária o seu foco de a vertente mais comumente identificada como a sua opositora, não
estudos. Tomemos aqui um exemplo radical daquilo para o que o pode ser caracterizado como “não teórico”, pelos exemplos que nos
autor aponta: são deixados por René Wellek e Austin Warren, é o desenvolvimen-
to e o desdobramento das categorias teóricas do estruturalismo
Le même et l’autre, de Vincent Descombes, um vigoroso relato da aquilo que ameaça o programa tradicional de elucidar o sentido de
filosofia francesa entre 1933 e 1978, explora meticulosamente as um objeto estético.
distinções, até fazer de Michel Serres o único estruturalista ver- Enfim, aqui o que nos parece é que o autor se deixa capturar
dadeiro. Para outros comentadores, o estruturalismo inclui não pelo sem sentido e pela controvérsia mesma do fenômeno que exa-
só o recente pensamento francês, mas toda a crítica de inclinação mina, em que é impossível distinguir causas de efeitos, produzindo
teórica: William Phillips, em uma discussão da crítica contempo- argumentos que se dobram sobre si mesmos e que não conseguem
rânea organizada para a publicação na Partisan Review, designa libertar-se do círculo vicioso ao qual a tentativa de lhes dar combate
pelo termo estruturalismo a panóplia dos recentes escritos críti- — ou seja, a tentativa de combater a orientação crítica e teórica cuja
cos e teóricos que se recusam a aderir ao tradicional projeto de ênfase é posta na busca e na descoberta do verdadeiro sentido dos
elucidar a mensagem de um autor e avaliar seu êxito. 3
textos — os induzia.
Mas é justo nessa falha argumentativa, ou nesse mover-se
Nesse caso, todas as críticas de orientação teórica recebem o repetitivamente dentro de um circuito fechado e paradoxal, que
selo de teoria ou crítica estruturalista. O estruturalismo é aquele podemos identificar a contribuição mais significativa de Jonathan
campo do saber que usa conceitos de outras disciplinas, com o Culler. Revelando-se na diferença criada no movimento de repeti-
objetivo de “dominar” a literatura, por “renunciar à tentativa de des- ção do argumento — ou seja, de uma reflexão continuada, de um
pensar sustentado do mesmo pensamento até atingir becos sem
cobrir o verdadeiro sentido de uma obra e por considerar todas as
saída e configurações paradoxais — chega até nós em linguagem
interpretações igualmente válidas”. O estruturalismo sofre então as
clara a formulação, livre de ambiguidade, a enunciação de um
acusações de, primeiro, usar conceitos de outras disciplinas — lin-
domínio ainda não nomeado, em que o pensamento articula tex-
guística, filosofia, psicanálise, marxismo — para colonizar a litera-
tos de campos distintos, não diretamente ligados à literatura, não
tura; em seguida de, mediante o estabelecimento de uma orientação
nomeados, mas geralmente chamados de “teoria”, numa estranha,
teórica, negligenciar a busca do verdadeiro sentido das obras. O porém compreensível, semelhança ao gesto romântico ou primeiro
estruturalismo ora é acusado de formalismo, ora de empreendedor romântico de chamar a reflexividade de “teoria”. Culler denomina-o
de uma leitura tendenciosa e apropriadora dos textos, vindo a se de “novo gênero”, o que nos leva a refletir sobre quantas pontas soltas
3 (CULLER 1982:18) da teoria produzida ao longo de alguns séculos — a dos Primeiros
568 Sueli Cavendish Capítulo 15 . A literatura e o pensar 569

Românticos, eu lembraria — vêm sendo abandonadas ao longo um julgamento estético de obras literárias, nem à história, nem
do caminho. Vejamos, então, que as linhas mestras, os elementos à filosofia ou epistemologia, mas a todas, enredadas num mesmo
constituintes do que seria essa “teoria” recém-fundada, já estão con- gênero, que seria necessário contrastar à noção de gênero intro-
tidos, na teoria romântica, no conceito romântico de “conexões”, de duzida pelo romantismo, a fim de estabelecer ou não os nexos.
“reflexividade”, de “meio de reflexão”, este se referindo ao conjunto De todo modo, é importante enfatizar que esta nova tendência da
de forças interativas que agem na ambiência em que se produz a crítica, também chamada de “teoria”, resiste à noção de sistema,
arte e a literatura, e no próprio entendimento da “crítica”, não como como resistira o romantismo, mesmo que nela não se manifeste o
algo situado fora das obras, mas no interior delas mesmas, de onde valor do aforismo e do fragmento. O novo gênero, como Culler ex-
se expande, se desdobra e de onde completa o seu significado. Eis o plica, é heterogêneo, com cada uma de suas produções articulada
que diz Jonathan Culler: a diversificados discursos: uma linha específica da filosofia alemã,
como a de Gadamer, a sociologia empírica de Ervin Goffman,
Quaisquer que sejam seus efeitos sobre a interpretação, os traba- Lacan e a psicanálise, todos enquadrados por matrizes distintas
lhos de teoria literária estão íntima e vitalmente relacionados a daquelas oriundas da matriz disciplinar, extrapolando fronteiras,
outros textos [...]. Esse domínio não é a teoria literária, uma vez reescrevendo achados, redesenhando “conexões”:
que muitos dos seus mais interessantes trabalhos não se dirigem
explicitamente à literatura. Não é “filosofia”, no sentido comum do Os trabalhos a que aludimos como “teoria” são aqueles que tive-
termo, uma vez que inclui Saussure, Marx, Freud, Erving Goffman ram o poder de tornar estranho o familiar e de fazer os leitores
e Jacques Lacan, assim como Hegel, Nietzsche e Hans-Georg perceberem seus próprios pensamentos, comportamentos e ins-
Gadamer. Poderia ser chamado “teoria do texto”, se texto for en- tituições sob novos ângulos. Embora se baseiem em conhecidas
tendido como “qualquer coisa articulada pela linguagem”, porém a técnicas de demonstração e argumentação, sua força vem — e
4
mais conveniente denominação é simplesmente o apelido “teoria”. isto é o que os coloca no gênero que estou identificando — não
dos métodos aceitos por uma disciplina específica, mas da persu-
E era justamente “teoria” como os românticos denominavam asiva novidade de suas redescrições.5
os resultados dos seus esforços, do refletir e filosofar, da práti-
ca do seu pensar reflexivo, e da formação de conexões no meio É como se estivesse em curso uma substituição da filosofia
de reflexão, mas infelizmente Culler não fará tais articulações. pela crítica e pela teoria literária, uma reivindicação do pensar
Preferirá, talvez por desconhecimento ou talvez pela difusão inci- teórico por tal crítica, justificada pela resposta romântica à pro-
piente da teoria romântica, recorrer a Richard Rorty, que invocará blemática estética pós-kantiana e pela associação dos românticos a
Macaulay, Carlyle, Emerson e Goethe (este último com acerto), Fichte, fenômeno que, embora tratado por Culler, não alcança em
que desenvolvem um tipo de escrita que não se dedica nem a seu texto as consequências radicais que assume em autores como
4 (CULLER 1982:15) 5 (CULLER 1982:15)
570 Sueli Cavendish Capítulo 15 . A literatura e o pensar 571

Lacoue-Labarthe e Nancy. Por exemplo, eis como descreve Rorty de teorizar sobre eles: “A abrangência da literatura possibilita que
o novo fenômeno da “teoria” ou da “teoria crítica”, como também é qualquer teoria extraordinária ou coerciva seja levada para a teoria
denominada, em nossos tempos: literária”8.
Entretanto, o segundo argumento para a substituição do pen-
Eu acho que na Inglaterra e na América a filosofia já foi subs- sar filosófico pelo pensar literário é o de que a literatura expande os
tituída pela crítica literária em sua principal função cultural — limites da inteligibilidade e do entendimento, provocando:
como uma fonte de autodescrição da juventude em sua diferença
em relação ao passado... Isso, grosso modo, se deve à tendência Discussões teóricas que absorvem ou abordam as questões mais
kantiana e anti-historicista da filosofia anglo-saxã. A função gerais da racionalidade, da autorreflexão e da significação. O teó-
cultural de professores de filosofia em países onde Hegel não foi rico social e político Alvin Gouldner define a racionalidade como
esquecido é inteiramente diferente e mais próxima da posição a capacidade de tornar problemático o que até então havia sido
dos críticos literários na América.6 tratado como dado, de trazer à reflexão o que antes tinha sido
apenas usado, de transformar recurso em tópico, de examinar cri-
O pragmatismo desconcertante revelado por Rorty e Culler ticamente a vida que levamos. Essa visão da racionalidade a situa
com respeito a esta questão — é preciso dar aos jovens a alternati- na capacidade de pensar sobre nosso pensamento. A racionalida-
va de pensar de novo o já pensado, sem o instrumental necessário de como reflexividade sobre nossos fundamentos pressupõe uma
para fazê-lo, como se estivessem seguindo a máxima poundiana capacidade de falar sobre nossa fala e sobre os fatores que a funda-
do “make it new”— deixa claro que o reconhecimento da vocação mentam. A racionalidade é assim situada na metacomunicação.9
teórica e abrangente da literatura não é uma necessidade intrínseca
ou interior ao campo da nova “teoria crítica” de que Culler faz apo- Aqui Culler recorre à questão da reflexividade, suporte da au-
logia, mas algo que se impõe de fora, por força da necessidade de se todeterminação primeiro romântica, assimilando-a à racionalidade,
legitimar modos de pensar distintos e alternativos vindos das novas o que não seria adequado ou mesmo inteiramente correto fazer, sem
gerações, enquanto os românticos a compreendiam como necessi- considerar que a reflexividade foi antes pensada pela filosofia e pela
dade interna à qual é conduzida pelo imperativo da reflexividade: “E literatura como uma exigência para pensar o infinito, ou um pensar
é essa determinação reflexiva da literatura, sentido extraordinário infinito, em direção ao qual apontam as obras de arte, a que Culler
que esta assume e ao qual nos conduzirá o texto de Benjamin, que a chamará de mise en abyme, sem que lhe dedique entretanto pensa-
constitui como um absoluto literário”7. mento de maior fôlego. Ou seja, a reflexividade, embora contivesse
A literatura estende o seu manto sobre amplos e vastos campos a promessa de um pensar crescentemente abstrato, não foi pensada
dos fenômenos ditos humanos, daí poder reivindicar para si a tarefa como racionalismo.

6 (RORTY apud CULLER 1982:16) 8 (CULLER 1982:17)


7 (LABARTHE-LACOUE; NANCY; BARNARD; LESTER 1998) 9 (GOULDNER apud CULLER 1982:18)
572 Sueli Cavendish Capítulo 15 . A literatura e o pensar 573

Em seguida, sua argumentação em favor da teoria literária como dizer que a Literatura se distingue justo por essa busca da identidade:
“teoria tout court” é, na mais branda hipótese, bastante inusitada e “o questionamento do literário se torna, assim, a marca do literá-
“curiosa”, ao considerar que os teóricos da literatura não são limitados rio”10. Deixemos, porém, que o próprio autor nos fale desses novos e
pelo comprometimento disciplinar específico dos que se dedicam a desbravadores caminhos de cuja abertura ele participa, nos estudos
esses campos, sugerindo que um relaxamento do rigor é uma vanta- literários dos Estados Unidos e da Inglaterra, de forma tão intensa.
gem, porque permite o desafio de hipóteses cristalizadas pela psico- É importante lembrar que, depois de graduar-se com distinção
logia, antropologia, psicanálise, filosofia, sociologia ou historiografia, em Harvard, em História e Literatura, Culler completou os seus
fazendo da teoria literária “uma arena de animado debate”. estudos graduados em Oxford, na Inglaterra, com o auxílio de uma
A negligência apontada pelos dois teóricos franceses, Phillipe bolsa de estudos Rhodes, na área de Línguas Modernas. Foi pro-
Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, no que diz respeito ao reco- fessor visitante na Universidade de Yale e, desde 1974, ensina na
nhecimento do legado romântico, evidencia-se no fato de que o Universidade de Cornell, tendo assumido a cátedra Class of 1916
romantismo chega até nós apenas indiretamente através da tradição Professor of English and Comparative Literature, antes ocupada por
inglesa, desde Coleridge, que procedeu a um verdadeiro escrutínio M. H. Abrams. Atualmente é Diretor do Departamento de Literatura
dos primeiros românticos, até Joyce, por um caminho também Comparada desta mesma universidade. Ao final desta entrevista,
trilhado por Schopenhauer, assim como por Hegel e Mallarmé uma listagem completa das publicações do autor.
(todo o simbolismo também, acrescentamos). Mas sempre que o
que é fundamental na teoria romântica não é distorcido, ele passa “O Estado da Crítica: Entrevista com Jonathan Culler”
despercebido, como se o primeiro romantismo fosse “o reprimido” Sueli Cavendish, New Haven, USA, setembro de 2007.

do sistema literário. E, quando emerge, é repetido sem que haja


Pergunta: William Blake, certa vez, afirmou que o homem que não
uma compreensão adequada do que está em jogo. A teoria literária
cria o seu próprio sistema corre o risco de tornar-se presa de um
torna-se, então, um campo de abrangência ilimitada e de conceitos
sistema alheio. Se há verdade nessa afirmação, quero dizer que de
lassos e na sua flexibilidade rompe todo e qualquer parâmetro. Para
modo algum ela se aplica ao seu caso. Colocando-se em um lugar
que seja minimamente operacional em termos de reflexão teórica é
de onde articula diversas correntes de crítica e teoria literária, o
necessário que nela se implante um centro dinâmico, o que Culler
realiza ao tomar a desconstrução como foco, uma vez que na “recen- senhor desempenha um papel extremamente importante ao expor

te teoria” a desconstrução é a principal fonte de energia e inovação. os pressupostos epistemológicos e as fundações filosóficas dessas
Entretanto, se considerarmos que o “Absoluto Literário” do correntes e ao torná-las disponíveis para muitos. Como avalia
título de Lacoue-Labarthe e Nancy resulta do entendimento da sua própria trajetória em teoria e o que vê como o produto mais
Literatura como a questão da busca eternamente repetida e recria- importante de seu empreendimento na área?
da do que exatamente é o literário, ou do que é Literatura, podemos 10 (CULLER 1982:182)
574 Sueli Cavendish Capítulo 15 . A literatura e o pensar 575

Resposta: Suponho que o produto mais importante, assim como Pergunta: Em “Teoria Literária: Uma Introdução”, o senhor re-
o efeito mais contundente do meu trabalho em teoria literária gistra que a teoria é um corpo de pensamento cujos limites são
tenha sido, e seja ainda, o de familiarizar uma ampla variedade extremamente difíceis de precisar. Concebida, como tem sido tam-
de leitores — tanto aqueles que se profissionalizaram na espe- bém a ficção, como uma “criação de mundos”, a teoria se aproxi-
cialidade dos Estudos Literários quanto os que se situam fora maria da própria ficção? Nesse caso, a teoria literária poderia ser
considerada um gênero entre outros do campo literário, poderia
do domínio dos Estudos Literários — com diversas correntes
alcançar o estatuto da arte?
do pensamento moderno que considero extremamente impor-
tantes. Avalio a minha contribuição como sendo a de tornar
Resposta: Bem, esta é uma pergunta muito ampla sobre a natu-
acessíveis certos tipos de crítica, a de promover certas correntes
reza da teoria literária e dos seus efeitos e a forma como efetiva-
de pensamento e a de preparar profissionais para a prática da
mente nos posicionamos depende da definição do outro termo.
crítica de um modo determinado, a de induzi-los a perseguirem Em geral, tenho sido extremamente reticente em afirmar que a
certas linhas de investigação literária, sejam estas rotuladas de teoria literária ou a crítica literária devam buscar para si mes-
estruturalistas ou desconstrucionistas. Certamente as pessoas mas o estatuto de arte. Houve de fato, nos anos 80, uma vertente
leem os meus trabalhos com o objetivo de conhecer uma esco- da crítica que assim o fez. Geoffrey Hartman escreveu sobre a
la de pensamento ou uma determinada prática crítica com as crítica como uma forma de arte — defendia a noção da crítica
quais têm o interesse de se envolver. A disseminação desse tipo enquanto criação, como uma forma artística — propugnava a
de conhecimento, creio, é a minha maior realização. prática da crítica, enfim, como uma forma de autoexpressão. Na
verdade, uma das razões pelas quais venho resistindo a aderir a
Pergunta: O senhor considera que ficou afastado de questões tal identificação é a de que muito frequentemente a tentativa de
fazer da crítica uma forma de arte envolve uma concepção de
polêmicas? Não parece haver registro do seu envolvimento nas
crítica como autoexpressão, como a expressão das idiossincra-
querelas que são comuns ao campo...
sias da individualidade do próprio crítico. Parecia-me e parece-
Resposta: Não tenho dúvidas de que me vejo como alguém que
-me, ainda, que não é aí que se encontra o valor, a despeito da
promove determinados tipos de abordagem e que desencoraja,
importância das formas criativas na escrita crítica.
ao não promovê-los, outros tipos; assim certamente não me vejo
Entretanto penso, de fato, que a teoria literária, na medida
como alguém que tenha ficado afastado de questões polêmicas.
Além disso, dirigi acirradas críticas à instituição acadêmica, por em que é uma criação do espírito humano, uma tentativa de
seu fracasso em constituir uma crítica da religião, juntamente compreender o mundo e especialmente de buscar a significân-
com a crítica ao sexismo e ao racismo, que são os seus alvos mais cia dos produtos humanos no interior desse mundo, pode cer-
frequentes. tamente ser encarada como análoga à literatura, que é um outro
576 Sueli Cavendish Capítulo 15 . A literatura e o pensar 577

empreendimento da mesma natureza; ou seja, a teoria literária é Unidos, uma “ciência da literatura” parece mais um oximoro,
uma tentativa de encontrar o sentido da experiência humana, da uma combinação de termos contraditórios. Em suma, a propor-
invenção humana de variadas espécies. Ficaria, por conseguinte, ção em que a teoria literária e a crítica literária se aproximam
feliz de poder, num nível bastante abrangente, situá-las uma ao da condição de ciência depende basicamente da concepção de
lado da outra. Mas, naturalmente, nesse nível tão amplo como ciência com a qual estamos operando.
o que aqui discutimos, também a ciência entra no quadro como
uma espécie semelhante de empreendimento; com diferentes Pergunta: Em “Para Além da Interpretação” (Beyond
Interpretation), primeiro capítulo de “Em Busca dos Signos” (The
protocolos e visões distintas do que conta como sendo válido,
Pursuit of Signs), o senhor parece qualificar a interpretação como
talvez, mas, ainda assim, muito semelhante. Aquilo a que tenho
algo que é um obstáculo ao pensamento teórico. Nos Estados
resistido consistentemente é à ideia de que a teoria literária exis-
Unidos, essa tendência à interpretação de obras literárias, o se-
te apenas para servir aos interesses da interpretação literária e de
nhor afirma, é um legado da Nova Crítica. E aponta, como uma
que a finalidade única da teoria literária é a de tornar possíveis
razão para o sucesso da desconstrução nos Estados Unidos, a sua
novas interpretações de obras literárias. Creio no valor da teoria
característica de poder tornar-se facilmente um método de inter-
literária em si mesma, como uma tentativa de compreender as-
pretação. O que pensa a respeito desta questão nesse momento?
pectos essenciais da atividade humana, não apenas no campo da
Não seria a falta de uma tradição filosófica nos Estados Unidos,
literatura, mas dos diversos usos da linguagem, a habilidade de
além da tradição do pragmatismo, o fator responsável pela debili-
dar sentido à experiência, enfim. A extensa gama das operações
dade do pensamento teórico?
semióticas da experiência humana pode ser vista como o objeto
da teoria literária concebida em seu sentido lato. Resposta: Bem, essa debilidade é por certo um fator a ser con-
Creio que a teoria é um empreendimento maior, e, quer siderado, mas eu estava interessado, por exemplo, em contrastar
se decida chamá-lo de científico ou de artístico, depende par- os destinos do estruturalismo e da desconstrução nos Estados
cialmente da noção que se cultiva a respeito da ciência. Direi Unidos, onde a desconstrução foi muito mais rapidamente as-
apenas, em acréscimo, que, nos Estados Unidos, a ciência é ge- similada e teve uma disseminação bem mais ampla, enquanto
ralmente concebida como uma atividade empírica que necessita o pensamento estruturalista, visto inicialmente como algo novo
ser testável, ao passo que, na maior parte das línguas europeias, a e instigante, cedo encontrou também uma maior resistência. E
ciência, ou wissenschaft, por exemplo, é compreendida como um com o advento da crítica desconstrucionista de alguns textos es-
pensamento sistemático ao invés de um pensamento empírico e truturalistas, teóricos e críticos mostraram-se muito inclinados a
é nesse caso muito mais fácil de se conceber uma literaturwis- lançar mão da noção de um pós-estruturalismo, como uma forma
senschaft, uma ciência da literatura, ao passo que, nos Estados de ultrapassar o estruturalismo, como uma maneira de não terem
578 Sueli Cavendish Capítulo 15 . A literatura e o pensar 579

que se defrontar com as ambições sistemáticas das teorias estru- porque, nos meios acadêmicos americanos, as novidades são
turalistas de várias espécies. Isso me levou a considerar a sedução sempre premiadas: há um desejo de cunhar novos termos para
esmagadora exercida pela interpretação nos estudos literários, nomear novos movimentos; as pessoas desejam verem-se a si
especialmente nos Estados Unidos, como responsável em parte mesmas como participantes de uma vanguarda crítica; como
pelos destinos da desconstrução. Há outras tradições filosóficas você mencionou anteriormente, a falta de uma tradição filosófica
nos estudos literários que não tiveram tanta aceitação nos Estados nativa, especialmente de uma tradição que responda às grandes
Unidos, mas a obra filosófica de Derrida toma a forma de uma obras da filosofia continental, pode tornar necessário criar um
leitura de textos filosóficos; não consiste na construção de uma novo nome para algo como a obra de Derrida.
teoria desde as fundações, uma vez que é sempre uma leitura de
Platão, uma leitura de Rousseau, uma leitura de Heidegger. Pergunta: Publicado nos anos 90, “Teoria Literária: Uma
Introdução” (Literary Theory: a very short introduction) alinha
Pergunta: A identificação da Desconstrução com a América, a o formalismo russo, a nova crítica, o estruturalismo, as teorias
noção de que a desconstrução é um produto americano, parece feministas, a fenomenologia, entre outros, entre algumas das esco-
ser uma opinião corrente. Gostaria de ouvi-lo sobre essa questão. las teóricas do cenário de então. O que muda neste quadro desde
aquele momento? O senhor poderia mapear o presente estado dos
Resposta: Suponho que se deva parcialmente ao fato de que a for- Estudos Literários nos Estados Unidos, articulando as diversas
tuna do termo tenha sido singularmente produzida na América. correntes às suas fundações filosóficas?
Na França, a ideia da desconstrução como um movimento é algo
que se origina na América, que retorna da América, no sentido Resposta: Um dos principais problemas que identifico na atu-
de que é devolvida pelo que aqui se vem produzindo. Há filóso- alidade é que as pessoas que trabalham no campo dos estudos
fos como Derrida, Jean-Luc Nancy, Philippe Lacoue-Labarthe e literários nos Estados Unidos têm assumido uma posição de-
Sarah Kaufman, cujo trabalho se desenvolve numa tradição eu- fensiva; essas pessoas não se sentem mais como líderes de novos
ropeia, na esteira de Heidegger, elaborando os seus projetos den- movimentos, nem na crista da onda ou na vanguarda dos altos
tro dos marcos de uma tradição continental. Suas obras vieram estudos nas humanidades, de tal forma que profissionais em ou-
a ser identificadas como algo específico a que se vem chamando tros campos não têm mais que se familiarizar com o que eles es-
de desconstrução por causa do sucesso da desconstrução na tão fazendo para também se tornarem atualizados e vanguardis-
América, por causa do seu sucesso no domínio dos estudos lite- tas. Essa posição defensiva envolve certo grau de consolidação
rários em particular. Esses filósofos começaram a ser chamados, do pensamento que tomou várias direções durante os anos 80,
então, de “desconstrucionistas”. La Déconstrution veio a existir por exemplo; é uma consolidação no sentido de que os críticos
na França em razão da América. Isso ocorreu provavelmente, não se mostram mais tão inclinados a se identificarem com uma
580 Sueli Cavendish Capítulo 15 . A literatura e o pensar 581

única escola crítica, ou a serem vistos como seus defensores. sentido de que todos esses jovens acadêmicos esperam encon-
Os críticos da atualidade se mostram muito menos inclinados trar algum tipo de transformação que as suas interpretações de
a se denominarem de críticos marxistas, ou como praticantes de obras literárias contribuam para rastrear. O foco pode estar em
uma crítica fenomenológica, de uma crítica mítica, ou mesmo uma única obra, mas pressupõe-se que a realidade fundamental
a se chamarem desconstrucionistas. Naturalmente há ainda que eles estão investigando não é uma questão acerca de gêneros
alguns que se caracterizariam como novos historicistas; e o literários ou de estilo, mas um conjunto de categorias culturais
historicismo, como fenômeno crítico mais amplo, tem conquis- subjacentes. Avalio esse tipo de estudo como uma crítica, no
tado um peso considerável em anos recentes. Como resultado geral, foucaultiana, mesmo que os métodos sejam bastante di-
desse ganho de força, tem havido uma diversificação da crítica ferentes: variados tipos de métodos formais podem ser usados,
historicista, de tal forma que não há mais um único novo his- a estilística, a interpretação de figuras, o foco na linguagem, a
toricismo, mas muitas abordagens distintas. Há críticos que se abordagem de obras literárias através de metodologias que o
interessam particularmente pela cultura material e pela história próprio Foucault certamente não utilizaria. Mas de fato parece
do livro ou, ainda, pela história das práticas da impressão e da que em muitos dos projetos de crítica nos dias atuais o objetivo
disseminação. Indagam-se a respeito das formas pelas quais os subjacente é foucaultiano: de uma forma ou de outra é o de tra-
meios materiais de produção podem ser envolvidos na reflexão çar ou empreender uma espécie de arqueologia do presente ou
sobre os textos literários em seus contextos. Há outros interessa- uma arqueologia do passado.
dos na história das ideias em um sentido foucaultiano, partindo Suponho que a coisa mais fácil de se identificar na cena
do pressuposto de que a exploração da história, em sua acepção crítica atual é o relativo declínio de várias escolas críticas e de
mais ampla de mentalité, deve ser vista como o empreendimen- vários métodos críticos que anteriormente pareciam bastante
to mais fundamental da crítica. Diria que, se é possível afirmar diferenciados e que agora parecem mais propensos a se fundi-
a existência de um modo dominante de crítica nas escolas de rem, a não ser facilmente identificáveis. Assim, a psicanálise,
pós-graduação americanas, esse modo seria foucaultiano. Os por exemplo, que durante certo tempo foi uma escola crítica ou
alunos dos programas de pós-graduação em Cornell tendem uma modalidade crítica bastante agressiva, na qual os críticos
a produzir dissertações que analisam uma variedade de obras utilizavam um jargão completamente distinto da linguagem
literárias tomadas como exemplares com relação a alguma geral, ou a crítica feminista, que já foi bastante idiossincrática,
mudança cultural profunda, a uma mudança de atitudes com vem perdendo seus contornos mais agudos, suas arestas mais
relação a algo, algum conceito ou categoria — alguma mudança afiadas e estão cada vez mais se fundindo às outras, de tal forma
no pensamento sobre a sexualidade, alguma transformação na que é possível haver uma dissertação na qual o escritor se utiliza
concepção, por exemplo, do que seja o ciúme. Eu identifico esse de Freud e, entretanto, se envolve numa espécie de tentativa
tipo de crítica como sendo, em termos gerais, historicista, no foucaultiana de identificar categorias culturais fundamentais
582 Sueli Cavendish Capítulo 15 . A literatura e o pensar 583

como as que citei anteriormente e, mais ainda, tomando essas culturais em geral. Creio que um desenvolvimento importan-
categorias de empréstimo a Derrida, por exemplo. Estamos te em anos recentes tem sido o enfraquecimento desse traço
diante de uma cena crítica na qual de algumas maneiras é difícil agressivo dos estudos culturais. Com certeza, eles se encontram
identificar vetores particulares; é muito mais fácil identificar firmemente estabelecidos nos departamentos de literatura. Os
influências e múltiplas espécies de fontes e fundamentações estudos culturais são uma abordagem alternativa, mas não uma
teóricas e filosóficas. Eu não diria exatamente que é uma síntese; abordagem que se tenha permitido tornar-se hegemônica. Creio
não é que tenhamos alcançado uma síntese feliz na qual todos os ter havido uma reviravolta, no sentido de que a ênfase tem sido
movimentos críticos do passado tivessem se articulado dentro crescentemente deslocada para a importância do envolvimento
de uma única corrente, mas, sim, que as divisões entre as nossas com a linguagem do texto literário. Percebo também a existên-
tendências críticas atuais, entre as nossas escolas críticas moder- cia de um retorno crucial ao interesse pela estética, que durante
nas, não são mais tão vigorosas e interessantes quanto já foram. certo tempo, sobretudo nos anos 90, era considerada quase que
Incidentalmente, esse fato tem tornado os departamentos de uma palavra obscena; o “esteticismo” era um pecado do qual se
literatura bem mais harmoniosos; as pessoas não se confron- poderia ser acusado. No ano passado, em Cornell, houve um
tam mais sobre as maneiras mais adequadas de proceder. E fica curso de pós-graduação sobre a história da estética, oferecido
também mais difícil conceder entrevistas interessantes sobre o por um jovem professor do departamento de alemão, Peter
estado da crítica, assim como escrever artigos sobre a crítica, Gilgen, que de repente tornou-se um curso que todos os alu-
isso é inegável. Naturalmente o que pode estar ocorrendo é que nos dos departamentos de literatura queriam frequentar. Esse
eu, por ser bem mais velho agora, tenha mais dificuldade de professor atraiu 40 alunos de pós-graduação para o seu curso,
identificar novas correntes da crítica que alguém mais jovem alunos que queriam ler Kant, Hegel e Adorno — a história do
fosse capaz de abordar. pensamento estético moderno tornou-se, surpreendentemente,
um assunto de interesse fundamental. A estética deixou de ser
Pergunta: Qual o traço mais fundamental ao opor os estudos cul- algo passível de ser etiquetado como descartável. Creio que tem
turais e os estudos literários, tomados estes últimos em seu sentido havido também um considerável retorno do interesse em con-
clássico? Em que ponto se tornam eles radicalmente incompatíveis? ceitos como o do Belo, que, durante certo tempo, chegou a ser
também um tema expurgado do discurso crítico. Elaine Scarry
Resposta: Houve certamente um momento em que os estudos publicou recentemente um livro chamado “Sobre a Beleza”, por
culturais se mostraram bastante agressivos, um momento em exemplo. Acredito haver em geral uma retomada do interesse
que afirmavam que deveriam ser a rubrica geral sob a qual a sobre questões da estética e sobre as características distintivas
literatura deveria ser estudada. E em que afirmavam que o estu- da linguagem literária; por conseguinte, a questão em torno
do da literatura era simplesmente um caso especial dos estudos da qual os estudos culturais e os estudos literários poderiam
584 Sueli Cavendish Capítulo 15 . A literatura e o pensar 585

ser considerados incompatíveis vem a ser de fato a questão da não consideram os estudos literários e os estudos culturais como
linguagem. Deve a linguagem das obras literárias ser vista sin- opções mutuamente exclusivas. Não se veem na obrigação de
tomaticamente, como fazem os estudos culturais, como sintoma decidir sobre se irão trabalhar com temas dos estudos literários
de algo mais, de alguma formação social, ou deve ser vista como ou dos estudos culturais, embora, como afirmei anteriormente,
uma coisa importante em si mesma, por sua engenhosidade, eles sejam incompatíveis com respeito a certas questões. Cada
sua eficácia, seus efeitos, devo dizer. Aqui se encontra um di- vez mais, determinadas abordagens dos estudos culturais são
visor de águas. A visão de que tal linguagem deva ser lida em aceitas sem discussão, embora o interesse na forma literária e no
si mesma não é de modo algum majoritária, como mencionei que foi estigmatizado como alta cultura tenha aumentado. Por
anteriormente quando falava sobre o que considero abordagens conseguinte, os estudos culturais estabeleceram a sua legitimi-
muito comuns entre nossos próprios alunos de pós-graduação. dade, mas não conseguiram eclipsar ou marginalizar o estudo
Eles demonstram certo nível de desejo de interpretar essas obras literário de obras literárias, que tem retornado e permanece
como reflexos de uma mudança social fundamental e nesse como um projeto mais importante nos estudos literários neste
sentido talvez haja um substrato dos estudos culturais em ope- momento.
ração, mesmo nos projetos que focalizam obras literárias e não
apenas, por exemplo, o estudo do filme ou da cultura popular. Pergunta: Mas qual é o seu ponto de vista pessoal a respeito das
Mas tem havido uma retomada importante das questões que contribuições mais importantes dos estudos culturais?
os estudos culturais tendem a pôr de lado. Entre nossos alunos
de pós-graduação, por exemplo, os teóricos mais populares no Resposta: Bem, eu tenho uma visão muito pouco ortodoxa dos
momento são Giorgio Agamben, um filósofo quasi desconstru- estudos culturais, que certamente não é compartilhada pelos
cionista, que escreve sobre a forma literária, sobre o nascimento praticantes americanos dos estudos culturais, na medida em
da linguagem literária e sobre a história da literatura italiana em que os concebo essencialmente como um prolongamento, sob
seus primórdios. E Alain Badiou, filósofo francês que escreve um novo nome, dos projetos inacabados do estruturalismo e
aforismos sobre estética. Além de Derrida são esses os filósofos da semiótica, que, afinal de contas, verdadeiramente se dispu-
continentais mais populares entre os estudantes de pós-gradu- seram a compreender não apenas a literatura, mas a mecânica
ação, o que atesta o retorno do interesse em questões estéticas. do significado e o funcionamento das formas culturais de modo
Devo acrescentar que os estudos culturais de fato alcançaram a geral. Os estudos culturais frequentemente se guiaram pelos
sua completa legitimidade nos dias atuais; deixaram de ser obje- mesmos objetivos, enquanto tentavam concomitantemente
to de contestação; na verdade, asseguraram um lugar respeitável resistir à abordagem filosófica ou ao interesse na semiótica,
na maior parte dos departamentos de literatura e decerto na enquanto tentavam identificar-se com o popular, ao passo que
maioria dos catálogos das editoras. Evidentemente os estudantes o estruturalismo nunca se concebeu como algo que tivesse que
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se identificar com as formas culturais populares que tomava por teorias do desejo cinemático no contexto dos estudos culturais
objeto de estudo. Quando Roland Barthes escreveu Mythologies, têm que passar por transformações, agora que a expectação den-
ele certamente não se arvorou em defensor das formas popu- tro de um cinema não é mais a norma. É um tipo de experiência
lares que estudava, embora estivesse tentando expor a maneira bem diversa que necessita ser teorizada pelos estudos culturais.
pela qual a burguesia impõe as suas próprias normas culturais
como naturais; entretanto, com frequência, os estudos culturais, Pergunta: O que mudou no cenário institucional americano desde
na esteira da tradição britânica, têm se alinhado com a cultura o advento da desconstrução? Houve uma evolução em direção ao
popular contra a cultura de elite. Na tradição estruturalista e que o próprio Derrida considerava essencial ao projeto descons-
semiótica, essas práticas culturais eram investigadas sem que trucionista? Por exemplo, as normas e premissas fundamentais
necessariamente se tentasse promovê-las ou defendê-las. Vejo dos discursos dominantes, a estrutura das instituições acadêmicas
de fato os estudos culturais como uma disciplina importante, ao e a pesquisa que as acompanha sofreram alguma transformação
dar sequência aos projetos do estruturalismo e da semiótica. É expressiva, como Derrida afirmou que elas sofreriam, por influên-
certamente uma abordagem legítima, na medida em que todas cia da desconstrução?
as espécies de práticas culturais devem ser estudadas.
Em particular, creio que o estudo do filme e do vídeo é um Resposta: Há decerto, nos Estados Unidos, tentativas de repen-
empreendimento importante. Esse estudo parece haver caído no sar a instituição, e não apenas nos estudos literários. O exemplo
domínio dos estudos culturais e é, portanto, uma manifestação mais impactante talvez seja o livro de Bill Readings intitulado
das conquistas dos estudos culturais que deve ser celebrada. De The University in Ruins (A Universidade em Ruína), mas este foi
fato, creio, embora não seja de modo algum um especialista no um título dado pelos editores, depois de sua morte, ao manuscri-
assunto, que a teoria do filme tem estado demasiado fundamen- to que ele vinha chamando de “The University Beyond Culture”
tada em antigos modelos. E que necessita ser repensada, agora (A Universidade para Além da Cultura). Ele refletia acerca
que a experiência primária do filme deixou de ser a de estarmos das transformações na universidade e como, especialmente, a
sentados num auditório, em meio a uma grande multidão, assis- mudança daquilo a que chamava de “a universidade da cultu-
tindo às imagens numa tela ampla e distanciada, para tornar-se ra”, que havia sido concebida para produzir sujeitos nacionais,
cada vez mais a de consumirmos o filme em nossa própria tela, cidadãos culturais que herdariam o patrimônio cultural de uma
em casa, com um vídeo ou um DVD alugado, num tipo bastante nação, para o que chamou de “a universidade da excelência”,
diverso de espaço cultural. Muitas das teorias da recepção do “excelência” tendo se tornado uma palavra vazia para promover
filme tomaram as antigas condições de expectação como norma o controle burocrático; eles não se importam com o que você
para uma teoria crítica do filme; por conseguinte, alguma re- ensine, contanto que você o faça com excelência, assim como
consideração do olhar cinemático se faz necessária. Creio que as determinam várias espécies de mensurações — sejam estas
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avaliações dos seus colegas, grau de satisfação dos estudantes, de estrutura geral da qual algo como o testemunho seria um
número de diplomas obtidos e assim por diante. O conteúdo da caso particular. Mais uma vez é uma questão de pontos de vista,
educação universitária deixa de ser importante e cada vez mais o creio: se a ficção é concebida em oposição a algo mais — então
sucesso de um departamento ou de um programa ou mesmo da teríamos um tipo de resposta sobre a sua função — ou se é con-
universidade é avaliado em termos de várias escalas quantitati- cebida como uma estrutura geral da qual oposições emergem,
vas (avaliação dos colegas, reação dos estudantes, contribuições teríamos algo diverso. Neste último caso, a ficção seria uma
para a instituição, número de publicações e assim por diante). categoria tão ampla que abrangeria tudo; isso evitaria que algo
Essa é uma concepção bem distinta de instituição e o livro de se opusesse à ficção. Assim a não ficção seria apenas um caso es-
Bill Readings é uma tentativa de repensá-la. Naturalmente o pecial de uma ficcionalidade geral. E a ficção transforma-se em
próprio Derrida escreveu bastante sobre a instituição e eu tenho outro nome para um tipo de espacialização ou temporalização
alguns artigos sobre o assunto, mas não encontrei nenhuma que é a condição do significado em geral.
resposta para as questões que coloco. Suponho, por conseguinte, que uma das mais importantes
contribuições do trabalho de Derrida tenha sido o de um tipo
Pergunta: Mesmo Derrida tendo afirmado que “não há um fora do de reestruturação que se torna mais perceptível para nós em
texto”, as relações entre a literatura e a cultura não são uma ques- outras áreas: tal como a desconstrução da oposição entre a fala
tão resolvida. Assim como também não é uma questão resolvida o e a escrita, e o argumento de que a fala é um caso especial de
conhecimento sobre a natureza da ficção e sobre a sua função na uma arquiescrita generalizada, uma archi-écriture. Argumentos
sociedade. Que correntes de pensamento oferecem contribuições semelhantes podem ser desenvolvidos em outros casos, tais
mais substanciais ao equacionamento desses problemas? como o que diz respeito à distinção entre o sério e o não sério, o
não sério como uma condição ou uma possibilidade para o sé-
Resposta: Produzimos ficções a fim de fazer sentido da expe- rio. Penso efetivamente que a obra de Derrida sobre a oposição
riência. Precisamos ser capazes de imaginar alternativas. A entre o ficcional e o não ficcional é extremamente importante.
concepção das possibilidades do pensamento utópico natural- Há certamente outras linhas teóricas de investigação que são
mente requer que existam ficções; tanto o pensamento utópico importantes. Tenho especial interesse nos trabalhos de Walter
quanto o distópico são sempre acionados pela ficção. Uma das Benjamin e Theodor Adorno. Acredito que são pensadores
linhas de argumentação de Derrida se encontra em um livro fundamentais do século XX e que as suas respectivas obras são
chamado “Demeure: Fiction and Testimony”, (Morada: Ficção e extremamente importantes para a teoria literária americana,
Testemunho) sobre Maurice Blanchot. Nele Derrida argumenta Benjamin mais importante ainda que Adorno, por razões que
que mesmo formas como o testemunho dependem, em última talvez não me pareçam inteiramente válidas; mas que se deva
instância, da ficção; a estrutura da ficção se torna uma espécie talvez ao fato de Benjamin ser tão enigmático e escrever ensaios
590 Sueli Cavendish Capítulo 15 . A literatura e o pensar 591

curtos, fragmentários, ao passo que há um volume tão grande toda reflexão nas ciências humanas, então é fundamental que
de Adorno para ler que lidar com ele se torna uma empreitada se considere a tradição filosófica que nos precede não como um
bem mais difícil. Não obstante, penso que estes são dois teóricos conjunto de instrumentos a serem aplicados, mas como recursos
que continuaremos a ler e sobre cuja obra continuaremos a re- que nos tornam capazes de também nos envolvermos com ques-
fletir nas décadas vindouras. tões filosóficas. O que se desdobra da leitura feita por Derrida
de obras literárias não é uma nova interpretação de Blanchot,
Pergunta: Quando lemos ensaios filosóficos ou psicanalíticos — os ou daquilo de que Ponge realmente trata, ou qualquer outro
de Derrida, os de Lacan, os de Deleuze —, ficamos com a impres- resultado similar, mas uma reflexão sobre problemas filosóficos
são de que eles se ajustam bem demais às questões postas pela fic- tais como a representação, o problema da assinatura do nome
ção literária. A ficção vem primeiro, e o pensamento por conceitos próprio, ou questões da ficção e da representação como em
se desenvolve sobre a base do que põe a literatura? “Demeure”. Embora pudéssemos pensar a respeito deste livro
como uma interpretação da obra de Blanchot, ele, na verdade,
Resposta: Certamente há esse ajuste perfeito, como você diz, reflete muito mais um compromisso com as questões filosóficas;
mas eu também acho — como mencionei anteriormente — que consequentemente me parece um bom modelo a ser seguido,
Derrida pratica a filosofia empreendendo leituras de textos filo- embora seja, obviamente, uma maneira complexa de proceder.
sóficos — que há casos em que a leitura de textos literários pode
ser encarada como uma forma de trabalho filosófico. Isso me Pergunta: Se os leitores são “jogados” pelos textos, no sentido de
parece de fato fundamental e eu tento efetivamente convencer que os textos literários prefiguram todas as possíveis interpre-
os meus alunos a pensarem na leitura de obras literárias como tações até o ponto da contradição, no sentido de que os textos
uma modalidade de análise filosófica, ao invés de imaginarem sempre retornam ao seu próprio emaranhamento, a tarefa da
que devem simplesmente abordar a obra literária com um con- interpretação ou do trabalho filosófico com textos literários não
junto de conceitos e categorias filosóficas que eles, então, apli- levaria necessariamente a aporias e paradoxos? Os textos não po-
cam à obra. No modelo sob o qual operávamos anteriormente, sicionam os leitores numa plataforma oscilante onde eles encenam
o objetivo era visto como sendo o de produzir interpretações infinitamente os pontos cegos que os constituem? Há um caminho
literárias: tomávamos os conceitos de empréstimo à psicanáli- para fora do texto?
se, ou à filosofia ou a qualquer outro corpo de conhecimento e Resposta: Em um certo sentido não, estamos sempre dentro
aplicávamos esses conceitos à obra literária a fim de gerar uma de um texto. Não há um caminho para fora de um texto; nós
interpretação particular. Mas se deixamos de conceber a inter- simplesmente exploramos vertentes de pensamento facilitadas
pretação literária como o objetivo dos estudos literários generi- pelos textos e as exploramos com um certo grau de autoconsci-
camente, e deixamos de concebê-la também como o objetivo de ência quanto às maneiras pelas quais podemos nos enredar nos
592 Sueli Cavendish Capítulo 15 . A literatura e o pensar 593

processos do texto. Creio que a sua pergunta é muito boa, na produzir uma espécie de mapa do texto, explorando o tema de
medida em que enfatiza a complexidade da relação entre o leitor cada aforismo e a maneira como se relacionavam uns aos outros.
e o texto, que muito frequentemente tendemos a simplificar; por Era preciso que ele demonstrasse algum tipo de organização —
exemplo, pensamos no texto como um objeto e pensamos em nós não necessitava provar que estava bem organizado —, mas, ao
mesmos como sujeitos, projetando nossa subjetividade no texto, menos, ele tinha que mapear sistematicamente a organização do
enquanto que qualquer leitura digna desse nome é aquela na qual texto. Isso pode parecer um exercício mecânico, mas foi de fato
o texto executa certas operações sobre o leitor a fim de torná-lo bastante produtivo, porque não lhe era permitido simplesmente
capaz de fazer coisas que não conseguiria fazer antes de seu focalizar o que quer que lhe parecesse mais importante, como por
envolvimento com aquele texto particular. Esperamos que boas exemplo, uma visão geral do tema do texto; ele tinha que desco-
interpretações sejam produzidas à medida que são modificadas brir como esse texto de fato operava. Esse tipo de estratégia, que
pela performance do texto, mas os alunos podem também estar requer uma espécie de close reading, dá ao texto a oportunidade
tão absorvidos com eles mesmos que não observem aquilo que de nos fazer descobrir como responder a ele. Creio que esta é uma
o texto lhes pede para fazer. Sou favorável a induzir os alunos a exigência para uma leitura válida, ou para uma leitura interessan-
realizarem operações com os textos que envolvam um certo grau te de um texto, colocando-nos na posição de sentir ou de perceber
de sistematicidade, em parte, como uma estratégia de estranha- sua estranheza e de permitir que essa estranheza opere sobre nós.
mento. Se pedirmos que escrevam o que eles acham sobre o tema
do texto, começarão com as ideias que lhes vem à cabeça. Mas se Pergunta: Derrida não faz a desconstrução voltar-se contra ele
pedirmos que escrevam alguma coisa sobre uma única sentença mesmo quando repete os erros que acusa de cometer Lacan na
de um texto breve, sem que lhes seja permitido ignorar quaisquer análise de A Carta Roubada, de Edgar Allan Poe? Não seria essa
dos termos, devendo registrar tudo em minúcias, certamente repetição um efeito mesmo da Carta, tencionado por Poe? Então,
podem ser forçados a sair de seu próprio quadro de referência e em que medida, a própria desconstrução seria um efeito dos tex-
impelidos a observar elementos específicos do texto. Na verdade, tos literários?
uma das virtudes da abordagem de Barthes em S/Z é o fato de ele
se haver obrigado a comentar cada frase, a tornar explícito o que Resposta: Esta é uma boa pergunta, difícil de responder.
geralmente permanece inarticulado — o que lhe permitiu alcan- Naturalmente Barbara Johnson escreve muito bem sobre essa
çar novas reflexões e todo tipo de releituras. Tive recentemente relação em sua análise da leitura de Derrida da leitura lacaniana
um aluno que trabalhava com um texto de Derrida chamado de Poe (“The Frame of Reference”). Pode-se observar de que for-
“Aphorism Counter Time”, “Aphorisme Contretemps,” que é sobre ma discordâncias interpretativas que ocorrem em torno de um
Romeu e Julieta e consiste em trinta e nove seções, trinta e nove texto são prefiguradas no próprio texto de uma forma ou de ou-
aforismos de um tipo ou de outro. Esse aluno se propôs a tentar tra, são de alguma maneira tematizadas no texto. Essa questão
594 Sueli Cavendish Capítulo 15 . A literatura e o pensar 595

talvez envolva uma leitura um tanto quanto alegórica do próprio vocês perseguem os seus próprios interesses e estabelecem os
texto e de suas interpretações. Mas tudo isso não significa que, seus próprios compromissos. Eu não posso avaliar a proporção
ao ler um texto, alguém possa visualizar antecipadamente qual em que a herança portuguesa é crucial para o Brasil, em que me-
será a história das interpretações subsequentes; somente quando dida a linguagem transporta a bagagem cultural da tradição de
já se tem essa história, pode-se com frequência retornar a ela e pensamento europeu. Pergunto-me qual deve ser a experiência
observar como as leituras tradicionais já haviam sido encenadas, de ter uma relação diferente com a tradição europeia e se o fato
já haviam sido prefiguradas no jogo do texto. Certamente a lei- de vocês falarem português num continente em que o espanhol
tura de Bárbara Johnson de Derrida e Lacan é muito engenhosa. é predominante tem como consequência uma relação especial
Acho que, em muitos casos, ela interpreta Lacan como se ele com a tradição europeia.
já afirmasse o que ela própria absorveu de Derrida, encontran- Creio que devo mencionar, à guisa de conclusão, que te-
do, assim, no texto de Lacan, implicações que o próprio Lacan nho um livro sendo publicado no outono (2006) pela Stanford
provavelmente rejeitaria, e que Barbara Johnson não seria capaz University Press chamado “O Literário em Teoria”. É uma coleção
de alcançar sem Derrida. Mas dado o encontro entre Derrida e de ensaios que venho publicando em anos recentes e que aborda
Lacan, da forma como Derrida o encena, é certamente tentador justamente as questões de que vimos tratando nesta entrevista: em
dar um passo a mais e reverter a relação entre eles. E por certo que medida, a noção do literário e da literatura — que durante um
outros leitores que vêm em seguida a Barbara Johnson podem tempo foi contestada e esteve sob o ataque dos Estudos Culturais
tentar demonstrar como os seus movimentos já haviam sido — agora retorna? Quando me iniciei nesta profissão, meu interes-
antecipados nos textos de Poe ou de Derrida. se maior era o estruturalismo e, em certa medida, o formalismo
russo, onde a questão do literário era vista como crucial ao em-
Pergunta: Deixo aqui o espaço para quaisquer observações de sua preendimento teórico, a questão da natureza da “literariedade”
própria escolha... era central tanto ao formalismo quanto ao estruturalismo. Tenho
interesse em indagar sobre a evolução desse processo e sobre qual
Resposta: Foi um prazer discutir com você essas questões. Penso tem sido o papel do literário na teoria em anos recentes. A minha
que as perspectivas sobre esses desenvolvimentos teóricos euro- suposição é a de que, depois de um período em que foi contestado
peus e americanos, que adquirimos dos povos de outros países, (pelos estudos culturais e pelos vários historicismos), esse papel
são, com frequência, extremamente interessantes, porque são tem sido agora nitidamente revigorado e continuará sendo extre-
independentes dos investimentos particulares desses países, mamente importante. Parece-me, de fato, que, cada vez mais, as
onde as leituras e as interpretações dos textos da tradição podem tendências filosóficas de interesse para aqueles que trabalham nas
ser levadas a cabo através de um olhar distinto, com certa dis- humanidades de um modo geral são aquelas que levaram a sério a
tância, de uma perspectiva diversa. Naturalmente, no seu país, noção do literário, sejam as de Derrida, as de Giorgio Agamben ou
596 Sueli Cavendish Capítulo 15 . A literatura e o pensar 597

de Alain Badiou. Mesmo que o estado atual dos estudos literários “Routledge Classics,” Routledge, 2001, Cornell University Press, 2002.
Japanese translation.
nos Estados Unidos não pareça muito promissor — mesmo que
5. On Deconstruction: Theory and Criticism after Structuralism. Ithaca: Cornell
os estudos literários pareçam estar numa posição defensiva —, a
University Press, 1982; London: Routledge, 1983. Japanese, Spanish, Italian,
mim me parece ainda que a fortuna do literário nas humanidades German, Portuguese, Serbian, Chinese, Polish, Korean, Hungarian, and Czech
é bastante auspiciosa e destinada a permanecer muito importante. translations.
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Oxford University Press, 1983. Japanese, Portuguese, and Chinese translations.
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Livros Publicados por Jonathan Culler

Artigos publicados
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Capítulo 16

Multitransintercultura:
literatura, teoria pós-colonial e
ecocrítica

Roland Walter
Universidade Federal de Pernambuco

[...] theory is now written [...] from a place of


hybridity and betweenness in our global Borderlands
composed of historically connected postcolonial spaces
David Saldivar (1995)

Liberal Multiculturalism is determined by the


demands of contemporary transnational capitalism
Gayatri Ch. Spivak (1999)

Na narrativa reencenada do pós-colonial, a


colonização assume o lugar e a importância de
um amplo evento de ruptura histórico-mundial
Stuart Hall (2003)

Cultural globality is figured in the in-between


spaces of double frames Homi Bhabha (1994)
A cultura e suas formas estéticas derivam
da experiência histórica [...] o vínculo
entre cultura e política imperial é assom-
brosamente direto Edward Said (1995)
A mistake was made somewhere [...] I’m confused
Ralph Ellison (1952)
Desde os anos 80 do século passado, a virada culturalista na área da
teoria literária está suplementando (ao incorporar) a virada linguís-
tica das décadas anteriores. A desconstrução das grandes narrativas
em petits recits que se iniciou na primeira fase do pós-modernismo e
continua sendo praticada desde então nas subsequentes fases e tipos
pós-modernos está baseada, entre outros, numa perspectiva etnoló-
gica que significa para a teoria literária uma abertura para culturas
alheias, diversas formas de “outridade” e consequentemente, para uma
autorreflexão crítica. Neste processo, o enfoque da crítica cultural é as
posições etnocêntricas responsáveis pela marginalização/subalterni-
zação de sujeitos, grupos, comunidades, tribos, regiões, nações e seus
discursos e atitudes. Trata-se de revelar e problematizar estas posições
por meio de uma análise das representações das diferenças culturais
no nível temático e discursivo dos textos narrativos.
Cultura, neste sentido, não abrange somente a esfera educacio-
nal, mas todo o complexo processo social com suas diversas dimen-
sões, a maneira de viver e se relacionar e as diversas percepções me-
diante as quais os indivíduos concebem e constroem seu Dasein. Com
base na semiótica, os estudos culturais desenvolveram a concepção
da cultura como texto e iniciaram a virada antropológica da teoria li-
terária: cultura é uma prática/rede de significação1 na qual as pessoas
1 (GEERTZ 1973)
610 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 611

constantemente traduzem os seus atos em signos. Textos literários a episteme cultural. Este mundo de referências (re)constitui a iden-
são especialmente elucidativos para este tipo de análise, porque de- tidade individual e coletiva num processo histórico. Neste sentido,
monstram como os símbolos são entrelaçados com ações, situações a literatura recria o etos e a cosmovisão cultural e revela o que a
e atitudes caracterizadas por conflitos entre diferentes interesses. As historiografia oficial via ideologia distorce e/ou esconde. Esta mesma
refrações literárias fornecem um valioso contraponto subjetivo às imprevisibilidade permite-nos a exploração dos sistemas de crença
empíricas configurações culturais dos cientistas sociais. Enquanto as de uma cultura e da sua tradução para o agir humano. A natureza
ciências sociais examinam os fenômenos contemporâneos num nível (in)direta da escrita, liberando a significação da prisão redutiva da
abstrato, os escritores e os seus personagens, como agentes e sujeitos ordem e abrindo suas possibilidades intrínsecas, move entre o dito
de transformação, introduzem a emoção e o sentimento nos dados e o não dito, articulando as ambivalências da episteme cultural e seu
científicos. Criando imagens de sentimento mediante a revelação de efeito no processo da produção da subjetividade e identidade indivi-
experiências íntimas, a arte literária traduz o sentimento para o pen- dual e coletiva. Além disso, a ficção é considerada uma epistemologia
samento, transmitindo neste processo a profundidade da experiência experimental que permite ao leitor passar limites existentes, explorar
humana, do ser-estar no mundo de mulheres e homens. A escrita, outros mundos e imaginar outras identidades. Neste sentido, a lite-
com seus tropos, alegorias e seu discurso retórico, delimita o espaço ratura por meio da imaginação traduz o saber da/para a vida num
social como terreno no qual os seres humanos atuam. A realidade processo histórico e simultaneamente, como diriam Wolfgang Iser
é constantemente recriada por um processo cíclico de articulação, (1978) e Gaston Bachelard (1969), provoca a ideação do leitor, a con-
desarticulação e rearticulação. Esta recriação literária representa cepção de novas possibilidades e alternativas às experiências vividas.
processos de simbolização cultural baseados na história e no agir Neste processo, através do que Wolfgang Iser (1974) chama de “leitor
humano por meio da narrativização de práticas fundamentais que implícito” do texto, a narrativa instala um afeto que tem um efeito
tornam os aspectos da vida diária (tradição, sistemas de crença, ima- no leitor. Em outras palavras, o efeito ético da literatura reside na sua
gens de identidade/alteridade, etos e cosmovisão, etc.) disponíveis capacidade de provocar ideações de (outras) identidades e (outros)
e compreensíveis. Em outras palavras, a força da literatura reside mundos; ideações estas que abrem o pensamento racional para seus
na sua retórica e metaforicidade. É mediante a indecisão dos tro- horizontes emocionais, constituindo encruzilhadas imaginativas
pos poéticos e discursos retóricos — a ambiguidade perturbadora, onde é possível avaliar as nossas escolhas. É assim que a semiótica
transgressiva e transformativa do processo significante — que somos cultural mediante a análise da diferença cultural entre os grupos so-
capazes de explorar a memória e, neste processo, preencher a lacu- ciais multiétnicos e suas formas de expressão e vivência ganhou sua
na entre a realidade (imaginada) e o real (recalcado). O poder da maior força sociopolítica, teórico-literária e, por meio dos estudos
literatura reside, entre outros, no entrelaçamento de palavra e me- pós-coloniais, histórica.
mória: é a palavra, mediante a memória, que recupera um mundo O novo paradigma de conceber e problematizar esta diferen-
de referências, tornando o imaginário capaz de idear e compreender ça cultural é profundamente ligado com seu processo histórico e,
612 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 613

como problematizarei em seguida, o que Anibal Quijano chama de peruano mapeia, em linhas gerais, alguns dos principais assuntos
colonialidad del poder. Para Walter Mignolo (2003), a literatura e a que caracterizam os dois tipos de violência que, como efeito da
crítica pós-colonial se distinguem por basicamente três caracterís- colonialidade do poder, imbuem a paisagem da pós-colonialidade
ticas principais: a) um discurso crítico que revela a colonialidad del contemporânea: a violência física e a violência epistêmica. Segundo
poder que rege o moderno sistema mundial; b) um discurso que Quijano, “hace falta estudiar y establecer de modo sistemático [...] las
problematiza a relação entre lugares/histórias locais e fluxos globais implicaciones de la colonialidad del poder en el mundo”3.
em termos de episteme cultural e produção de saber; c) formas e Se, segundo Said (1978, 1994), Bhabha (1994), Young (1995),
práticas subalternas de agir que desconstroem o paradigma da Lionnet (1995) e Shohat (2000), o pós-colonialismo como crítica da
razão moderna. Anibal Quijano (1997), cujas ideias constituem História/Civilização Europeia, do Ocidente, deve examinar a influ-
uma das fontes principais dos argumentos de Mignolo, proble- ência do passado colonial no presente pós-/neocolonial e se, segun-
matiza o que ele chama de colonialidad del poder como império do Spivak, “um dos aspectos mais fascinantes da pós-colonialidade
político-econômico e sociocultural do Ocidente sobre o resto do numa ex-colônia é o palimpsesto da continuidade pré-colonial e
mundo. Em contraposição a Michael Hardt e Antonio Negri , para 2
pós-colonial fraturada pela imposição imperfeita da episteme ilu-
os quais o império é constituído por redes elusivas, “flexíveis e hí- minista”4, então o entendimento dos efeitos do passado no presente
bridas” de “produção de capital”, para Quijano a colonialidade do se produz não somente por meio de um enfoque analítico sobre a
poder abrange: a) o conflito de epistemes culturais e estruturas de relação colonizador-colonizado (ou qualquer outro tipo de relação
poder dentro de um processo histórico; b) a experiência (e noção) dominador-dominado), mas também por um exame das relações
da diferença cultural como condição de subalternidade que oscila intragrupais em termos de assimilação, internalização de valores,
entre alienação e potencialização; c) a categorização hierárquica das mímica, cooptação e resistência na interface de identidade e alte-
regiões e populações mundiais pela hegemonia ocidental; d) o papel ridade. Em seguida, gostaria de elaborar a ambiguidade e ambiva-
da mídia, ideologia, sistema educacional e do Estado no estabele- lência desta interface por meio de uma suplementação (no sentido
cimento desta hierarquia dentro de cada nação e entre nações; e) a derridiano) do termo “multicultura” por “transcultural”.
(re)invenção/(re)apropriação de lugares e espaços no mapeamento O discurso multicultural (neo)liberal utiliza a pluralidade de
(trans)nacional; f) os fluxos erráticos de capital e de seres humanos identidades das diversas culturas mundiais para justapô-las num
entre os mercados ‘livres’ que compõem o sistema capitalista nas mosaico intercultural onde todos os elementos teriam os mesmos
diversas fases de sua globalização. O enfoque analítico de Quijano é direitos e deveres. A nação, assim o argumento, é uma construção
as relações de poder e suas práticas e formas de controle de diversos cuja harmonia é constituída por suas diferenças. Segundo Patrick
âmbitos da existência social, como o trabalho, a natureza, as maté- Imbert, por exemplo, o que caracteriza a particularidade da
rias-primas, o sexo, o saber e a autoridade. Neste processo, o crítico
3 (QUIJANO 1997:374)
2 (HARDT; NEGRI 2003:171) 4 (SPIVAK 1999:239-240). As traduções neste ensaio são de minha autoria.
614 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 615

sociedade canadense é o modelo cultural do “desacordo consensu- diferença, mas seu oposto. A diferença opera como formação iden-
al”, sua “capacidade de misturar as diferenças culturais nas relações titária ao conferir identidade a aquilo que (/quem) é diferenciado;
sociais do dia a dia”. Por meio desta fusão de diferenças, o país diversidade promove divergência ao desconstruir identidades idên-
“sabe como compartilhar seu conhecimento com os outros” . Deste5
ticas e, neste processo, revela pluralidade identitária tanto interna
modo, o Canadá é capaz de “prosperar com as contradições não quanto externa. O discurso multicultural (neo)liberal proclama
resolvidas [...] de ligar [...] tendências opostas numa tensão eficiente uma retórica de diversidade como relação, mas significa diferença
que permite uma maneira original de promover expansão cultural, como separação e/ou assimilação e assim reforça o mito da união
social e econômica” . Em outra ocasião, demonstrei, por meio da
6
nacional.
análise de diversos textos narrativos de escritores afro-canadenses, A virada culturalista em discursos pedagógicos e teóricos nos
que é exatamente esta união em diferença com o outro que os nar- sensibiliza a respeito da natureza construída dos mitos nacionais
radores/personagens não encontram já que a sociedade canadense e da performatividade das identidades culturais individuais e co-
em sua maioria aceita somente a diferença assimilável . Será que o
7
letivas9. O movimento gerado por este insight parte das essências
que Imbert chama de desacordo consensual ou dissensão convergente ontológicas em direção ao funcionamento epistêmico dos diversos
faz justiça à vivência multiétnica do Canadá? Não é que o racismo, processos: de como são as coisas e culturas para que funcionam e
sexismo e outras formas de violência que impedem a reconstrução com que objetivos baseados em que interesses em termos de lugares
identitária minam este consenso? Se, segundo “a canadanidade ver-
8
de saber e regimes de verdade; uma virada, portanto, de um discur-
dadeira é inacessível, algo que fica além de adquirir cultura, pagar so de consenso para uma retórica do culturalmente não consensual,
impostos e obter cidadania”, então o que existe é uma “ansiedade dos fluxos, espaços fronteiriços e lugares intersticiais onde os ele-
de pertencer a um lugar de maneira hifenizada”, caracterizada por mentos culturais se encontram e hibridizam.
uma diferença cultural (rotas) ancorada em raízes estáveis. Para que Esta virada aconteceu e continua acontecendo dentro do
o pertencimento como Dasein transnacional/transcultural dentre contexto, segundo James Clifford, de uma “nova ordem mundial
e entre lugares/culturas/epistemes torne-se uma realidade vivida, é de mobilidade, de histórias sem raízes”10. Para Arjun Appadurai11,
necessário transformar a diferença-separação em diversidade-re- esta nova ordem é constituída por crescentes fluxos de objetos,
lação: uma ca-na-da-ni-da-de com espaços hifenizados suficientes ideias, ideologias, mensagens, imagens e produtos — fluxos estes
para facilitar a todos dançar de rosto colado sem abdicar de suas constituindo e constituídos por uma complexa rede de relações
diferenças. Diferença, portanto, significa seres/espécies não assimi- disjuntivas, rede essa que ele vê como sendo composta de cinco
láveis e categorias incomensuráveis; diversidade não é sinônimo de panoramas, a saber: etnopanorama (“ethnoscape”), tecnopanorama

5 (IMBERT 2005:36) 9 No sentido da crítica feminista Judith Butler (1990), que chama de “performati-
6 (IMBERT 2005:10 e 7) vidade” a forma como os discursos produzem o que nomeiam.
7 (WALTER 2009) 10 (CLIFFORD 1997:1)
8 (KUMSA 2005:186 e 196) 11 (APPADURAI 1996:33-36 e 43)
616 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 617

(“technoscape”), ideopanorama (“ideoscape”), finançopanorama entre fronteiras permeáveis. Neste sentido, Néstor García Canclini
(“finanscape”) e midiapanorama (“mediascape”). Este estado trans- (1990) escreve sobre “culturas híbridas”, Édouard Glissant (1992;
nacional do mundo, caracterizado por migração, estadias efêmeras, 1997; 2005; 2006; 2009) sobre “créolisation” e “poétique de la relation”,
exílio e diáspora — comunidades imaginadas além de origens co- Wilson Harris (1983) sobre “cross-culturality”, Ulf Hannerz (1996)
muns, tradições locais e fronteiras geográficas e linguísticas —, cria sobre “transnational connections”, François Laplatine e Alexis Nouss
novas “formas culturais moldadas de maneira fractal”, que minam (2001) como também Rodriguez (2003) sobre “amalgamation”12.
noções fixas da nação e do sujeito autossuficiente. As recentes mi- Acho, porém, que podemos melhor problematizar estas formas e
grações, portanto, criam novos fluxos desterritorializantes, novas práticas fractais (sua natureza ambígua e multidimensional, seu cro-
diásporas que deslocam fronteiras fixas e abrem novos espaços notopo heterotópico) mediante a análise da dinâmica transcultural
fronteiriços entre pessoas, povos, culturas e civilizações. O conceito em lugares caracterizados por múltiplos e complexos processos de
da diáspora, portanto, oferece uma crítica dos discursos de origens troca. Enquanto trans da natureza transitória da identidade cultural,
fixas enquanto leva em conta diversas formas de mobilidade trans- o processo de “transculturação” designa a tradução dinâmica das
nacional. Esta mobilidade entre lugares e culturas, escolhida ou confluências culturais que atravessa e constitui a encruzilhada da
imposta, está imbuída de ambiguidade e ambivalência epistêmica formação identitária entre lugares e epistemes diferentes. Assim, este
no sentido de que a passagem entre a origem e a chegada parece, processo transcultural traduz a lógica cultural que informa e estru-
muitas vezes, não ter fim: entre a raiz da origem fragmentada e a tura os cruzamentos culturais. Em seguida, definirei o que entendo
raiz da chegada desejada — e muitas vezes diferida — surge a rota por transculturação.
enquanto estado contínuo. Ao contrário de Antonio Cornejo Polar13, que sugere o uso do
Mudanças nas práticas materiais, nos meios de comunicação, termo “heterogeneidade” como alternativa ao conceito de “trans-
bem como um aumento significativo de migração e outras formas culturação”, porque o processo transcultural abrange formas e
de mobilidade entre regiões, nações, continentes e culturas provo- práticas socioculturais cuja heterogeneidade impede qualquer tipo
cam transformações na consciência e no imaginário de pessoas e de síntese ou simbiose, e em contraposição a Alberto Moreiras14,
povos no mundo inteiro. Em consequência disto, o discurso crítico que considera a síntese conciliadora subjacente aos processos
— inspirado pela forma “nômade” de pensar que Gilles Deleuze e transculturais como uma prática ideológica em cumplicidade com
Félix Guattari (1972) propuseram para substituir raízes por rizomas a metafísica ocidental, argumento que deveríamos manter o con-
— redescobriu a lógica diferencial das zonas de contato, rizomas, ceito de transculturação como paradigma crítico para a exploração
espaços fronteiriços, limen, entrelugar, sincretismo, hibridismo,
mestiçagem, créolisation e transculturação, entre outros, para expli- 12 Esta lista é somente uma pequena e arbitrária seleção de autores que escreve-
ram sobre o assunto. Para uma problematização de alguns destes conceitos e
car os fluxos conjuntivos e disjuntivos das transferências culturais e sua aplicação na crítica literária, ver ZIPFEL (2008).
13 (POLAR 2000:194)
seus resultados: novas formas e práticas culturais fractais dentre e 14 (MOREIRAS 2001:234)
618 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 619

dos espaços intersticiais ambivalentes que resultam do contato Este processo é caracterizado por intercâmbios culturais nos quais
intercultural. “[n]ingún elemento se sobrepone a otro”, mas “uno se torna otro hasta
Cunhado por Fernando Ortiz nos anos 40 do século XX e rein- convertirse en un tercero”. O resultado, como no caso de Cuba, é
terpretado por, entre outros, Nancy Morejón (1982), Angel Rama “una nación homogénea en su heterogeneidad”. Este uso de trans-
(1982) e Antonio Benítez-Rojo (1996), o termo transculturação culturação como uma confluência de etnicidades heterogêneas, que
marca a relação intra/intercultural entre nações, regiões, raças, implica a igualdade das partes que constituem, de maneira tensiva, a
etnicidades, gêneros, classes e linguagens, na interface ambígua de nova e homogênea nação cubana — um choque violento que resulta
tempos pré-modernos, modernos e pós-modernos. Ortiz descreve num casamento feliz —, sugere uma solução antes sintética do que
o processo transcultural da seguinte forma: simbiótica da estrutura de poder colonial/étnico-racial hierárquica
subjacente aos intercâmbios transculturais.
Entendemos que o vocábulo transculturação expressa melhor as Gostaria de destacar dois pontos do argumento morejoniano
diversas fases do processo de transição de uma cultura a outra, que são de importância para a minha discussão. Primeiro, acho que
porque este não consiste somente em adquirir uma cultura dife- ela faz uma leitura errada do contraponto ortiziano, interpretando-
rente, como indica o termo anglo-americano aculturação, mas o -o como uma relação igual entre diferentes elementos. O contra-
processo implica também necessariamente a perda ou o desarrai- ponto em Ortiz entre tabaco e açúcar e ritmos europeus e africanos
gamento de uma cultura precedente, o que poderia ser chamado descreve uma relação tensiva, na qual a participação das diferentes
de uma parcial desculturação, e, ademais, significa a consequente partes é de igual importância, mas na qual tanto o trabalho manual
criação de novos fenômenos culturais que poderiam ser deno- e mecânico, o pequeno cultivo das famílias e o agrobusiness de
minados de neoculturação. [...] No conjunto, o processo é uma plantação, quanto diferentes instrumentos e ritmos escrevem textos
transculturação e este vocábulo compreende todas as fases da sua e subtextos na mesma página, mas em diferentes linhas determi-
parábola. 15
nadas por prestígio e poder e com diferentes efeitos em diferentes
lugares. Em outras palavras, Ortiz estava bem consciente do fato de
Segundo Nancy Morejón, seguindo Ortiz, é impossível pensar que as relações transculturais são inscritas nas estruturas geopolí-
e compreender as nações caribenhas sem tomar em consideração o ticas e econômicas e que os seus elementos são ligados, separados
processo que as criou, a saber: a transculturação. Para Morejón , 16
e justapostos de maneira contraditória e complementar mediante
que como Ortiz analisa a transculturação de uma perspectiva cuba- fronteiras inclusivas e exclusivas. Segundo, em consequência dos
na, a transculturação significa uma mistura entre dois ou mais ele- elementos heterogêneos serem implicados num processo contínuo
mentos conduzindo à formação de novas configurações culturais. de mudança, o objetivo neocultural é constantemente diferido. Isso
significa que a transculturação em Ortiz não designa uma fusão
15 (ORTIZ 1947:102-103)
16 (MOREJÓN 1982:19-20)
sintética e dialética dos elementos culturais heterogêneos. O que
620 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 621

forma o Estado-nação, a identidade e a cultura nacional em Ortiz é culturais — uma dinâmica intercultural que envolve a perda parcial
uma conceituação transcultural caracterizada por uma tensão entre e a assimilação de elementos culturais no processo da recriação
síntese e simbiose, fusão e coexistência antagônica, uma interação cultural — sufoca o desenvolvimento da heterogeneidade cultural
cujos estágios não se podem traçar (e compreender) inteiramente . 17
mediante a escrita do universal sobre o particular. A unificação de
O que liga Ortiz com críticos mais recentes, tais como Morejón diferentes raças, grupos étnicos, regiões, línguas e literaturas em
e Rama, é a diferenciação entre texto e subtexto: o texto homogê- volta de uma identidade cultural e nacional comum congela as ne-
neo da nação é constituído pelo subtexto heterogêneo da diferença gociações e lutas contínuas inerentes a sua constituição fluida. Neste
cultural, mas a heterogeneidade é aufgehoben como elemento na
18
contexto, o movimento da parte para o todo, na medida em que re-
formação do Estado e da identidade nacional. Seja a transculturação conhece a diferença cultural como um agente subtextualizado, acer-
situada dentro da dinâmica contrapontística social, econômica e ca-se perigosamente de uma legitimação daquilo que inicialmente
cultural de mercadorias e ritmos (tabaco, açúcar e tambores) como queria desconstruir, isto é, o discurso do hibridismo como síntese
em Ortiz, ou problematizada como uma forma cultural da escrita promovendo assimilação — a unidade em semelhança —, discurso
que mistura técnicas europeias vanguardistas, como a fragmentação este que funciona como a base epistêmica e motor para o desen-
narrativa, o monólogo interior e o fluxo de consciência, com formas volvimento dos Estados e identidades nacionais modernos. Este
orais e estruturas narrativas latino-americanas como em Rama19, discurso transcultural, portanto, por oscilar de maneira ambígua
ela é uma metáfora de inclusão, da integração conciliadora dos entre a diferença e a semelhança, entre a consideração de cultura,
elementos de culturas diferentes . Esta incorporação de elementos
20
identidade e nação como um processo de significação e como signos
inertes, põe entre parênteses o excesso incomensurável produzido
17 Embora Ortiz use de vez em quando os adjetivos “sintético” e “sincrético” para
descrever a natureza transcultural “das diversas economias e culturas [...] em na zona do seu encontro.
Cuba” (ORTIZ 1947:99) e da música cubana (ORTIZ 1991:199), o seu significa-
Antonio Benítez-Rojo (1996) contestou este fechamento da en-
do é minado pelos múltiplos contrastes econômicos, sociais e históricos não
resolvidos que sustentam o conceito de “transculturação” ortiziano. A citação trezona transcultural. Mediante uma reelaboração do contraponto
seguinte demonstra que o significado destes adjetivos reside na tensão dos seus
contrários complementares, isto é, a fusão e a disjunção: “A evolução histórica ortiziano entre tabaco e açúcar dentro de um contexto pós-moderno
dos fenômenos econômicos e sociais é extremamente complexa e a variedade neocolonial, no qual os discursos científicos e as grandes narrativas
de fatores que os determina provoca que variem imensamente durante o seu
desenvolvimento: às vezes há semelhanças que fazem com que apareçam idên- da modernidade ocidental se chocam com os ritmos orais pré-mo-
ticos, às vezes as diferenças fazem com que apareçam completamente opostos”
(ORTIZ 1947:97).
dernos do Caribe, Benítez-Rojo traduz a transculturação como in-
18 No sentido da Aufhebung hegeliana: um procedimento de eliminação e clusão e totalidade sintética para a transculturação como desordem
preservação.
19 Para um estudo da transculturação narrativa na obra crítica de Angel Rama, ver
CUNHA (2007). que a vanguarda modernista brasileira se comportasse como canibal e devoras-
20 Isto também é aplicável ao paradigma antropofágico de Oswald de Andrade se as influências alheias (desculturação), as digerisse e transformasse em algo
que pode ser visto como precursor da transculturação ortiziana. O paradigma de novo (neoculturação), evacuando os detritos. Em contraposição aos paradigmas
Andrade, porém, difere daquele de Ortiz em um aspecto crucial. Em resposta à de Ortiz e Rama, a antropofagia cultural unidirecional de Andrade é destituída
assunção europeia de que os brasileiros são selvagens canibais, Andrade exigiu de reconciliação.
622 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 623

heterotópica e “supersincrética” caracterizada por barulho, falta, narrativos. Mediante o uso do termo é possível problematizar o
fragmentação, oscilação, caos e entrelugares. Para Benítez-Rojo, papel da diferença e das contradições na construção da identidade,
as relações transculturais são caracterizadas por uma coexistência já que qualquer processo transcultural reconhece que a identidade
de diferentes dinâmicas culturais, a qual rompe a naturalização é construída por meio de uma negociação de diferenças e que a
sintética dos elementos culturais. Em vez disso, estas relações são presença de fissuras, lacunas e contradições é uma parte necessária
marcadas pelo que ele chama “as insolúveis equações diferenciais”21. deste processo. A transculturação, afirmo, deve ser compreendida
Estes processos transculturais, portanto, não superam (no sentido como modo polivalente que abrange um diálogo incômodo entre
hegeliano de aufheben), mas ressaltam a tensão antagônica e com- a síntese e a simbiose, a continuidade e a ruptura, a coerência e a
plementar entre os diversos elementos culturais porque contribuem fragmentação, a utopia e a distopia, o consenso e o dissenso, a des-
para a continuação do jogo das diferenças. Desta perspectiva, as for- construção e a reconstrução. Um diálogo desconfortável, em outras
mações culturais não desaparecem em outras (aculturação e descul- palavras, entre forças e práticas hegemônicas e contra-hegemônicas,
turação), mas se entrelaçam, criando novas formações culturais por entre gestos, atos e estratégias de coerção, expropriação e (re)apro-
intermédio de malabarismos determinados pelos indivíduos e pelas priação, que discrimina entre diversas categorias: a assimilação in-
comunidades. A implícita mudança da utopia para a heterotopia, da tencional e imposta, o autodesprezo internalizado e diversas formas
síntese para a simbiose e da condensação para a fragmentação, na de resistência como, por exemplo, a mímica e o signifyin’23.
definição da transculturação, é de suma importância, porque reins- Desta forma, o processo de transculturação abre e constitui
creve a heterogeneidade cultural como excesso incomensurável no um espaço dialógico entre diversos elementos culturais no qual o
contato transcultural e, neste processo, abre um processo histórico e agenciamento sociocultural da alteridade é inscrito. Alteridade,
teórico fechado pela absorção conciliadora22. portanto, não é uma imagem, uma cópia fixa dentro de uma epis-
Ao evocar diferentes valores e significados, estes enfoques, teme (etos/cosmovisão), mas existe (e, portanto deve ser analisada)
definições e visões da transculturação demonstram que o termo numa zona de contato; zona esta caracterizada por uma negociação
abrange fenômenos culturais, sociais, políticos, econômicos e durante a qual o novo emerge das múltiplas tensões a ela inerentes.
Ou seja, num processo de transculturação, as diferenças culturais
21 (BENÍTEZ-ROJO 1996:26)
22 Em Benítez-Rojo, portanto, a diferenciação entre o texto (o todo universal) permanecem insuperáveis. Isto significa que aqui não existe um sig-
e o subtexto (a parte heterogênea) desaparece porque este explode aquele.
Qualquer termo, símbolo e/ou signo nacional que reduza os seus elementos
nificado fixo, estável. O que, sim, existe, neste processo transcultural
constitutivos, as suas raízes e significações heterogêneas a um todo homogê- de culturas e idiomas, é um redemoinho que rompe com a fixidez de
neo é fragmentado. Em termos da padroeira cubana La Virgen de la Caridad
del Cobre, o “supersincretismo” significa que ela cessa de ser somente cubana, estruturas e funções sistêmicas.
porque este termo esconde a heterogeneidade intercultural que coloca o sig-
Como tal, a transculturação é uma força crítica que permite
nificado da Virgem em três culturas: na cultura ameríndia, europeia e africana
(BENÍTEZ-ROJO 1996:12-15). Neste sentido, o supersincretismo de Benítez-Rojo traçar os fluxos de transmissão entre culturas, regiões e nações,
deveria ser entendido como um processo transcultural em que a diversidade
heterogênea desconstrói a homogeneidade cultural. 23 Para uma análise das formas e práticas retóricas do signifyin’, ver GATES (1989).
624 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 625

particularmente entre aquelas caracterizadas por relações de poder dispersão e hibridismo dentro de uma cultura global de certa maneira
desiguais enraizadas em formas e práticas de coerção e dominação. sem raízes e contextos fixos. Esta disseminação global da economia
Além disso, e talvez o mais importante, enquanto negociadora da e cultura baseada num paradigma liberal, porém, tem que ser vista
zona intersticial de disjunções e conjunções inter e intraculturais em relação com as raízes culturais locais baseadas num paradigma
— zona esta, onde diversas histórias, costumes, valores, crenças e tradicional. Em outras palavras, a globalização alimenta-se da tensão
sistemas cognitivos, cujas diferentes representações não se diluem entre coesão e dispersão, raízes fixas e únicas e rotas rizomáticas,
umas nas outras, são contestados e entrelaçados —, a transcultura- homogeneização e heterogeneização, fronteiras abertas para seus
ção organiza o entrelaçamento dos elementos locais e globais, bem espaços fronteiriços e fronteiras mais fechadas. Em termos culturais,
como a interação da diferença e da semelhança. Neste processo, portanto, pode-se considerar a globalização/mundialização como
ela possibilita o exame daquilo/daqueles que se movem e agem no encruzilhada mediada pela transculturação: as diversas maneiras de
entrelugar, assim como dos interesses e das relações de poder que elementos culturais se encontrarem e se renovarem no espaço glocal
efetuam estas práticas. Assim, ela constitui a base de uma herme- (local e global). Neste contexto é pertinente perguntar: que tipo de
nêutica transfronteiriça que entende a escrita, fala e compreensão identidade e cidadania surge nesta encruzilhada transcultural?
na sua multivoicedness, ou, no termo memorável de M. Bakhtin, sua Em sociedades multiétnicas, a questão da identidade traduz a
heteroglossia24. forma como diversos fatores socialmente determinados e atribuídos
A transcultura e os diversos processos de transculturação nela interagem para definir a episteme cultural (etos e cosmovisão) de
implícitos determinam a globalização e mundialização. Estas, sejam um povo, ou seja, a ordem do saber que constitui a base de como
elas definidas como “a intensificação das relações sociais mundiais uma comunidade se vê a si mesma e o mundo. Isto inclui a posição
que ligam locais distantes de tal maneira que acontecimentos locais do sujeito dentro da sociedade num dado tempo e lugar. Portanto,
são moldados por eventos que ocorrem a muitas milhas de distância podem-se destacar as seguintes identificações identitárias significa-
e vice-versa” , como “processos econômicos e tecnológicos” e pro-
25
tivas: raça, etnicidade, gênero, idade, classe e sexualidade. Em nossos
cessos culturais, respectivamente26, ou como a conglomeração de tempos de mobilidade diaspórica, estas identificações constituem
forças e práticas em luta contra “o aumento de controle corporativo uma identidade em processo entre diversos lugares e culturas. O que
sobre educação, água, pesquisa científica” – as políticas neoliberais
27
significa isto em termos de cidadania?
do dumping social –, introduzem as noções de desterritorialização, Segundo Gibbins, Youngman e Stewart-Toth28, a cidadania é
o conjunto de deveres e direitos que caracterizam a posição de um
24 Para Bakhtin (1981), vale lembrar, a compreensão resulta do encontro entre a
própria fala e a fala alheia: um diálogo de múltiplas vozes nos dois lados e entre indivíduo em suas relações com outros numa sociedade determina-
estes. Para uma valiosa coletânea de ensaios sobre “a transculturalidade” e “a
da. “Enquanto construção legal e formal” que garante “a liberdade
transculturação”, ver BENESSAIEH (2010).
25 (GIDDENS 1990:64) e a igualdade” dos cidadãos, ela implica que “os cidadãos desfrutam
26 (ORTIZ 1996:29)
27 (KLEIN 2002:126) 28 (GIBBINS; YOUNGMAN; STEWART-TOTH 1996:271)
626 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 627

de direitos e têm obrigações dentro dos limites territoriais do seu enfatizam a importância e necessidade de metodologias comparati-
Estado-nação”. A construção formal da cidadania desenvolveu-se — vas e interdisciplinares para qualquer análise no campo dos estudos
e pode ser conferida hoje em dia — com base no lugar de nascimen- interculturais. “Trans-cultura”, portanto, significa a dança perfor-
to ou tempo de residência do sujeito. O reconhecimento formal, mativa sobre o hífen multiétnico que separa e une as identidades
porém, não garante a aceitação social do cidadão na comunidade. étnicas que constituem a pluralidade cultural de uma sociedade/
A discrepância entre cidadania formal e cidadania informal tem im- nação; uma dança em processo contínuo que imbui a multicultura
plicações significativas para a construção de identidade e a aceitação de mobilidade, revelando as fissuras da fusão multicultural e, neste
pela comunidade. Ou seja, nas palavras de Hall e Held , a política
29
processo, difere sua materialização fixa e estática. Neste sentido,
da cidadania começa com a questão “quem pertence e quem não portanto, o paradigma crítico da transculturação como mediador
pertence”. Então, cabe perguntar: como e em que circunstâncias se dos processos constitutivos da transcultura é um apropriado instru-
estabelece a cidadania numa era em que migrações locais e globais mento da renegociação dos sistemas de significação que surgem na
criam identidades hifenizadas e/ou diaspóricas, ancoradas entre co- encruzilhada glocal (local e global) no sentido de minar os limites
munidades, lugares, regiões, nações, continentes e culturas? O que e fronteiras rígidas e abrir espaços fronteiriços e neste processo
significa, de fato, uma cidadania transnacional/transcultural/dias- revelar os mecanismos da colonialidad del poder de processos socio-
pórica em sociedades ditas democráticas, nas quais alguns grupos culturais, discursivos e narrativos32.
são hifenizados e outros não, e onde a distância entre a democracia Em seguida, gostaria de focalizar um eixo desta colonialidad
real e a democracia formal está crescendo enquanto que a liberdade del poder até agora negligenciado, a saber: a relação entre a geografia
política do indivíduo está diminuindo30? Se fronteiras como lugares (paisagem/natureza/lugar/espaço/terra) e a episteme cultural (etos/
de passagem e transformação são necessárias para se relacionar31, cosmovisão/identidade). O que se tem negligenciado é o mapea-
então resta saber: como podemos tornar fácil e justa a passagem mento da poética mnemônica de textos literários problematizando
pelas fronteiras e pelos limites? Como conciliar diversas formas e tanto o corpo e a mente dos personagens como lugares de luta sobre
dimensões de pertencer e ser-estar entre lugares e mares, rotas e o espaço social heterotópico quanto a complexa relação entre os
raízes, partidas e chegadas? O que significa identidade e cidadania sujeitos e seu ambiente no processo histórico.
num mundo onde os crescentes fluxos locais e globais se embatem O termo “lugar” pode ser definido de maneira geográfica, am-
contra muros cada vez mais altos – mundo este caracterizado por biental, fenomenológica (ao ligar “corpo” e “lugar”) e genealógica
diásporas interligadas e zonas rurais e urbanas marginalizadas onde (ao ligar “ancestralidade” com “território”), em termos de expansão
reinam muralhas de medo e violência? Estas perguntas, a meu ver,
32 Este tipo de fazer crítico com base no paradigma da transculturação, portanto,
29 (HALL; HELD 1989:175) dialoga com o “multiculturalismo crítico e de resistência” delineado por Peter
30 Sobre este assunto, ver ISIN; WOOD (1999), KYMLICKA (1995), LAGUERREe McLaren (1997:52 e 50), no sentido de “interrogar, perturbar, desmistificar, des-
(1998), ONG (1999, 2006) e JOSEPH (1999). centrar criticamente os sistemas de inteligibilidade […] na luta anticapitalista,
31 (GLISSANT 2006) antirracista, antissexista, anti-homófoba e anticolonialista”.
628 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 629

de império, urbanização e diminuição da natureza virgem, entre Ao enfatizar a produção da história no processo (pós-/neo)
outros. Se, segundo Henri Lefebvre (1974), os espaços são percebi- colonial do remapeamento mundial, os estudos pós-coloniais têm
dos, concebidos e vividos, ou seja, tanto reais quanto imaginados, utilizado o conceito de “lugar” para problematizar narrativas tem-
e, segundo Claude Raffestin (1980), a territorialidade é um tipo porais de progresso impostas por poderes coloniais. Neste sentido,
específico de espaço delimitado pela atitude dos personagens, en- o lugar codifica o tempo sugerindo que as histórias encravadas na
tão, alego que a demarcação do espaço (com seus lugares) resulta terra e no mar sempre têm providenciado metodologias vitais e di-
tanto de medições e mapeamentos cartográficos quanto do sistema nâmicas para a compreensão do impacto transformativo do império
semiótico de linguagem e suas imagens articuladas. Para Ashcroft, e as epistemologias anticoloniais que este tenta negar e suprimir. A
“o lugar é um resultado de habitação, uma consequência dos modos historização tem sido um dos meios primários dos estudos pós-colo-
como as pessoas vivem num espaço”33. Por outro lado, a maneira niais e como Edward Said e Frantz Fanon, entre outros, enfatizaram
como pessoas habitam um lugar — seu imaginário, episteme cul- nas suas obras, ela é crucial para o nosso entendimento do espaço.
tural, língua, gestos, maneira de falar e vestir, etc. — é determinada Assim, ao utilizar um modelo histórico de ecologia e uma epistemo-
por este lugar: o que é verdade/realidade num lugar e para um de- logia de espaço e tempo na análise literária, é necessário engajar um
terminado grupo necessariamente não o é para outro. As formas de dialogo com a paisagem/natureza. Este diálogo histórico é necessá-
espaço constituem tanto o meio como o modo de nossa conscien- rio, porque o processo de desvincular a natureza da história ajudou
tização, ou seja, o espaço torna-se, simultaneamente, a forma das a mistificar as histórias coloniais de migração forçada, sofrimento e
experiências vividas e a imagem de seus conteúdos. Isso significa violência humana. Como é amplamente documentado nas criações
que pertencer a um lugar é determinado menos pelo que se possui literárias, a terra e o mar são participantes neste processo histórico,
em termos de propriedade (terreno, casa, etc.) do que pela relação em vez de simples circunstantes/espectadores34, e os escritores nos
entre a memória fragmentada e seletiva e a experiência vivida. fazem lembrar que o tempo acumula (e não passa) através de uma
Com base neste duplo sentido de lugar como entidade geográfica biota relacional, cujos elementos integrantes se constituem por um
e produção sociocultural, argumento que qualquer análise espacial valor interior (e não um atribuído exteriormente). O passado con-
deve examinar seu significado intrínseco e extrínseco, ou seja, seus tinua existindo no presente não porque é posto no papel — isto sig-
próprios vetores como também as ramificações socioculturais e nificaria sua ausência na presença das letras —, mas por ser inscrito
político-econômicas nas quais “raça”, “etnia”, “gênero”, “sexualidade”, nas mentes e nos corpos dos diversos elementos da biota. Neste sen-
“idade” e “classe”, entre outros vetores sociais, contribuem para a tido, deveria se focalizar o que Edward Soja35 chama de “geografia
constituição da experiência ambiental – como, em outras palavras,
as histórias “naturais” são profundamente enraizadas em si mesmas 34 O poeta cubano Nicolas Guillén inclui o céu, ao lado da terra e do mar, como par-
ticipante testemunhal: “Hay que aprender a recordar/ lo que las nubes no pueden
e ao mesmo tempo no processo glocal das histórias mundiais. olvidar [...] ¡ Duro recuerdo recordar/ lo que las nubes no/ pueden olvidar/por el
camino de la mar!” (GUILLÉN 1980).
33 (ASHCROFT 2001:156) 35 (SOJA 1989:7)
630 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 631

afetiva”, ou seja, “a concretização das relações sociais embutidas na e voltamos. Somos, portanto ligados à terra e às outras formas de
espacialidade” com o objetivo de problematizar o que o mesmo es- vida na terra. Tratar estas outras formas sem respeito resulta da não
tudioso descreveu com o termo “geografias injustas” (2009): como a compreensão desta relação. Seguindo Walter Benjamin (1992), que
natureza e a cultura em suas relações complexamente entrelaçadas define a alegoria barroca em termos de uma relação dialética em que
são embutidas em desenvolvimentos geograficamente desiguais. A uma linha, em vez de ser paralela, é o traço de outra, considero a
geografia, portanto, tem que ser reconceituada como socialmente relação entre a história/experiência humana e a natureza um dos me-
produzida mediante relações de dependência e domínio (relações lhores exemplos desta dialética alegórica, ou seja, a natureza como
de poder); relações estabelecidas de maneira social e hierárquica registro da história, experiência e decadência humana.
entre o aqui e o lá, o local e o global. Fredric Jameson37, com base no argumento de Northrop Frye
São os processos de memorização e rememoração, tanto indivi- de que a literatura é uma forma mais fraca do mito ou estágio pos-
duais quanto coletivos, que tecem as histórias enquanto espaço que terior do ritual, alegou que “toda literatura deve ser permeada por
liga os lugares. Neste processo, deveria se analisar a relação entre a aquilo a que chamamos de inconsciente político, que toda literatura
episteme cultural e sua determinação pela rede de múltiplas relações, tem que ser lida como uma meditação simbólica sobre o destino da
práticas e formas de poder existentes nos lugares e espaços nos quais comunidade”. Neste sentido, e ligado com este inconsciente político,
a trama se desenvolve. O meio ambiente não é mais limitado ao palco cuja base é radicada nas relações humanas caracterizadas por domí-
sobre o qual a trama se desenvolve; tampouco as atitudes do autor nio, subalternização e resistência, argumento que se pode falar de
e dos personagens sobre o meio ambiente são limitadas ao desen- um inconsciente ecológico que imbui a relação entre seres humanos
volvimento narrativo. São vistas como característica fundamental do e seu ambiente. Se para Jameson o inconsciente político é ausente
horizonte ideológico da obra literária. “As paisagens”, alega Simon e ao mesmo tempo presente, porque a desejada revolução cultural
Schama em Landscape and Memory , “que supomos livres de nossa
36
transformaria a hegemonia injusta do sistema político em democra-
cultura, podem tornar-se, depois de um processo analítico [...] seu cia justa, defino o inconsciente ecológico como ausente e ao mesmo
produto”. A opinião que a cultura enquanto produto humano deve tempo presente, porque a desejada revolução ecológica constituiria
ser separada da natureza evita o fato de que a cultura humana reside uma mudança de visão em relação à biota.
no mundo natural e que a nossa existência depende dos processos Uma mudança de visão e das nossas atitudes em relação ao
deste. As pessoas e a terra são enredadas num ser unificado e mu- mundo vegetal e animal — uma ética biótica — é necessariamente
tuamente recíproco; o ser e a história da terra são inseparáveis do baseada numa mudança de imaginação cultural38, num “compromis-
ser e da história das pessoas e vice versa. De onde vem a palavra so de reabitação”, escreve Lawrence Buell39, que “implica a extensão
“humano”? Da palavra-raiz “humus”. Isto significa que a palavra “hu- 37 (JAMESON 1992:64)
38 Especialmente dos sistemas internalizados, conjuntos de disposições que geram
mano” carrega literalmente dentro de si o húmus de onde surgimos práticas específicas, o que Pierre Bourdieu (1977), no processo da analisar o
habitus, chamou de “inconsciente cultural”.
36 (SCHAMA 1996:9) 39 (BUELL 2001:170)
632 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 633

de uma posição moral e, de vez em quando, até mesmo legal ao mun- literal com o que o poeta caribenho Wilson Harris44 chama de “o
do não humano”. Esta mudança de visão, cujo objetivo é uma mu- fóssil vivo de culturas enterradas”. Alego como hipótese que esta
dança de se relacionar e viver, portanto, segundo o poeta, romancista dupla brutalização dos seres humanos e da geografia é interligada
e filosofo martiniquense Édouard Glissant, implica em substituir a e constitui de diversas maneiras o inconsciente sociocultural e
episteme corrosiva e destrutiva do “humanismo (a noção do ser hu- ecológico da experiência pan-americana — o fantasma destes holo-
mano privilegiado)”40 por uma “consciência planetária” igualitária41, caustos recalcados que voltam em resposta à Verleugnung (negação)
que inclui “a linguagem da paisagem”42. Se não entendemos o que o fazendo sentir sua presença tanto no nível da enunciação quanto no
indígena Hin-ma-too-yah-lat-kekht (Chief Joseph) quis dizer quan- da experiência vivida.
do, durante um conselho entre os Nez Perce e o governo dos Estados “A cultura” como “forma de comunicação do indivíduo e do
Unidos em maio de 1877, falou que the earth and myself are of one grupo com o universo”, argumenta Milton Santos45, “é uma herança,
mind — a terra e eu somos da mesma mente — é porque para nós a mas também um reaprendizado das relações profundas entre o
terra não tem mente. Para nós, dando muita importância à razão e à homem e o seu ambiente, um resultado obtido por intermédio do
superioridade mental humana, minerais, plantas, árvores e animais próprio processo de viver”. Em cada cultura, a geografia tem um
— toda a biota, salvo os seres humanos — não pensam. papel fundamental na constituição do imaginário cultural de um
Nas Américas, a brutalização das pessoas é ligada à brutaliza- povo: ela é tanto natural quanto cultural; uma entidade material e
ção do espaço e estas brutalizações são enraizadas no passado: o uma visão mítica que participa na definição identitária. Édouard
genocídio de tribos indígenas, a escravidão e o sistema de plantação Glissant46, entre outros, argumenta que na literatura pan-americana,
e as várias formas de exploração da natureza, entre outros, caracte- a geografia não é somente um elemento “decorativo com uma função
rizaram as diferentes fases e processos de colonização e ainda conti- de apoio”, mas “emerge como plena personagem”. Ela surge enquanto
nuam ter um impacto sobre o pensamento e o agir das pessoas, não espaço mnemônico de sensações e visões enraizadas em histórias
somente em termos de como as pessoas se relacionam e tratam os individuais e coletivas, espaço este que situa o indivíduo dentro de
diversos outros (penso, por exemplo, no racismo e no sexismo em uma comunidade num processo histórico. Nas Américas, segundo
suas formas tanto ideológicas quanto instintuais), mas como as ima- Glissant, este processo histórico não tem sido linear desde os tempos
gens destes eventos traumáticos perseguem os pensamentos e atitu- da colonização. A história dos afrodescendentes caribenhos, por
des. A representação do espaço é simbolizada por uma natureza
43
exemplo, é uma “não história” esquizofrênica, caracterizada por
nutrida pelos corpos violados da história colonial, um engajamento
40 (GLISSANT 1992:74) rupturas [...] que começaram com um deslocamento brutal,
41 (GLISSANT 1997a:164)
a escravatura. A nossa consciência de história não podia ser
42 (GLISSANT 1992:146)
43 Espaço nacional que, segundo o critico Antonio Cornejo Polar (2000:147), é 44 (HARRIS 1981:90)
caracterizado por uma “heterogeneidade conflituosa”. Para ele, as nações lati- 45 (SANTOS 2007:81-82)
no-americanas são “traumaticamente desmembradas e cindidas”. 46 (GLISSANT 1992:105)
634 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 635

depositada contínua e gradualmente como sedimento [...], mas num lugar heimlich; um lugar-lar onde a equação mundo/imagem
se formou no contexto de choque, contradição, negação dolorosa do self (rompida e distorcida pelo processo colonizador) é reestru-
e forças explosivas. Este deslocamento do continuum e a incapa- turada com base no próprio etos e cosmovisão. O lugar-lar e sua
cidade da consciência coletiva de absorver tudo isso caracteriza o construção na língua, portanto, é um dos meios pós-coloniais cru-
47
que chamo uma não história. ciais para lembrar (e assim juntar) os fragmentos de uma cultura/
história/identidade estilhaçada e parcialmente perdida nos traços
Ao falar da perspectiva afrodescendente, Glissant conota o nômades entre mares e (não) lugares, bem como entre os muitos
cerne do problema identitário que diz respeito também a outros ditos e não ditos de diversos discursos.
grupos étnicos pan-americanos: a relação com a origem num es- Em seguida, gostaria de voltar à imagem da não história esqui-
paço onde diversos efeitos da colonialidade continuam a ter um zofrênica dos afrodescendentes que, segundo Glissant, é caracteri-
efeito sobre as relações intersubjetivas. Ter uma identidade significa zada por rupturas e deslocamentos. Ao elaborar esta ideia e alegar
ter uma história inscrita na terra. Ter uma história imposta contra que, devido aos processos de colonização, encontramos diversas e
a vontade, sem poder inscrevê-la na terra enquanto sujeito livre, diferentes não histórias em todas as partes das Américas, formulo
como no caso dos afrodescendentes pan-americanos, significa ter a hipótese de que alguns dos principais símbolos desta experiência
uma não identidade. Ter uma história enraizada na terra roubada podem ser a fronteira, o limite, o entrelugar, a encruzilhada que
durante um processo colonial, como no caso das primeiras nações separam e ligam línguas, culturas, epistemes, histórias, pessoas e
indígenas pan-americanas, significa ter uma não identidade. Ter povos. Nas Américas, a fronteira enquanto limen significa mais do
uma história enraizada na terra roubada durante um processo colo- que uma linha geográfica e política. Era e continua a ser uma zona
nial, como no caso dos colonizadores e seus descendentes, significa de contato físico e psicológico que separa e mescla a natureza e suas
ter uma não identidade nutrida pelo remorso recalcado. Refletida diversas culturas e a “civilização”, ou seja, aqueles que chegam a um
nestas não identidades — identidades fragmentadas e/ou alienadas lugar para tomar posse de maneira selvagem daquilo e daqueles
por diversas formas e práticas de violência — está a importância que se encontram neste lugar e o fluxo contrário, aqueles do lugar
da geografia e da memória como elementos para se colocar como “colonizado” que vão à metrópole em busca de bem-estar, educa-
sujeito. Sem lugar, a consciência e subjetividade do ser humano ção, trabalho, etc. Neste processo, a fronteira transforma-se numa
são inconcebíveis. Este lugar pode ser de natureza geográfica e/ou encruzilhada onde a transculturação funciona como mediador dos
linguística, religiosa, cultural — um lugar epistêmico. Para os povos elementos em fluxo: pessoas, objetos, ideias, costumes, etc.
colonizados e os grupos marginalizados, o processo de descoloniza- Enquanto linhas divisórias da diferenciação espacial, temporal
ção significa que o lugar unheimlich — o lugar (e a correspondente e cultural, fronteiras distanciam a identidade interna da alteridade
episteme cultural) da subalternização — tem que ser transformado externa e, como espaços intersticiais, ligam-nas. Estabelecem hierar-
47 (GLISSANT 1992:61-62)
quias entre o interior e o exterior, assim como dentro destes. Deste
636 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 637

modo, ao transformar os sujeitos em estrangeiros e/ou ilegais (peri- Neste sentido, por exemplo, pode-se distinguir entre o frontier
gosos), elas contêm as diversas formas de diferença fora do real inte- spirit norte-americano e a garrison mentality canadense. O historia-
ligível, normal e/ou humano. Simultaneamente, as fronteiras e seus dor estadunidense Frederick Jackson Turner, em seu texto seminal
espaços fronteiriços são reproduzidos e reimaginados no processo The Significance of the Frontier in American History (1893), definiu
da resistência à subalternização e marginalização. As fronteiras e os a fronteira como o lugar geográfico da democratização norte-ame-
espaços fronteiriços, portanto, constituem o terreno (e seus limites) ricana onde os europeus se transformam em americanos. Ao adotar
onde as identidades são vividas e imaginadas, numa interação tensiva a crença puritana da fronteira como posto avançado do divino que
de estase cultural (diferença como separação) e transgressão cultural separa os filhos de Deus daqueles do diabo, Turner transformou a
(diversidade como relação). Fronteiras conotam estase cultural ao fronteira num mito enquanto pseudociência que preservou a cons-
canalizar a identidade cultural para epistemes nacionalmente iden- ciência de missão como experiência de fundação democrática. Em
tificadas, enquanto a transgressão destas fronteiras revela espaços termos políticos e étnico-culturais, portanto, a fronteira era o meio
intersticiais onde as diferenças culturais são traduzidas para relações mais efetivo da americanização. Definido como espaço de liberdade
interculturais de pluralidade simbiótica e/ou sintética. Neste sentido, individual e coletiva na narrativa de Turner — uma contradição não
fronteiras e espaços fronteiriços são entidades materiais e símbolos resolvida, como demonstra uma grande parte da literatura norte-a-
que constituem lugares de poder do Estado repressivo e norma- mericana —, a fronteira transforma-se num espaço fronteiriço para
lizador por um lado, e lugares de transgressivas funções e práticas a construção nacional. Até hoje em dia, este espírito de fronteira é
transnacionais e transculturais por outro. A fronteira e seus espaços continuamente reimaginado enquanto vontade individual/coletiva
fronteiriços, portanto, são conceituados tanto como construções para a inovação que acompanha e legitima a expansão político-eco-
político-econômicas, socioculturais, geográficas, psíquicas e metafó- nômica dos Estados Unidos.
ricas, quanto como categorias analíticas e posições epistemológicas. Já no Canadá, o processo de colonização era muito menos uma
Assim, para poder mapear os fluxos culturais disjuntivos e conjun- questão de colonos individuais que buscam um destino melhor no
tivos que passam por e/ou se embatem nas fronteiras geográficas, Oeste do que uma extensão da esfera de autoridade da coroa in-
psicológicas, físicas e culturais — zonas instáveis de significações glesa sobre um território considerado vazio. Em contraposição aos
fluidas caracterizadas por processos de apropriação e reapropriação 48
Estados Unidos, no Canadá, os novos territórios colonizados eram
—, o crítico também deve se colocar acima das fronteiras, não traba- vistos como postos avançados da civilização europeia, sempre amea-
lhando de maneira homogênea dentro, mas de maneira heterogênea çados pelos terrores de uma natureza selvagem. Em vez de dominar
desde uma variedade de fronteiras interdisciplinares. esta natureza e subsequentemente civilizá-la, os canadenses, desde
o início, tentaram se defender dela e consequentemente desenvol-
48 Para os críticos LAMAR e THOMPSON (1981:7-8), três elementos são de impor-
tância analítica numa situação fronteiriça: “território”, “povos distintos”, “e o pro- veram o que Northrop Frye49 definiu como “mentalidade de guar-
cesso pelo qual as relações entre os povos no território começam, desenvolvem
e eventualmente se cristalizam”. 49 (FRYE 1995:227)
638 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 639

nição” que permeia o imaginário sociocultural: uma mentalidade da literatura enquanto espaço mnemônico que escritores multiét-
caracterizada por “um grande respeito pela lei e ordem” e uma nicos das Américas recriam os mitos necessários para se enraizar
mistura de admiração, medo e interesse econômico pelos territórios como sujeitos autóctones. A reapropriação do espaço via memória
naturais, este “enorme, impensável, ameaçador e tremendo ambien- possibilita a colocação do sujeito na sua própria história. A re-
te físico” no norte do país. nomeação do seu lugar e da sua história significa reconstruir sua
O que liga estes imaginários em sua diferença é que a frontei- identidade, tomar posse de sua cultura; significa, em última análise,
ra (com seus espaços intersticiais) tinha e tem uma função (e um resistir a uma violência epistêmica que, nas suas diversas formas e
efeito) cultural crucial no processo de encontro intercultural que práticas, continua até o presente. Desta forma, a literatura molda
caracteriza as Américas e o mundo. Se para Darcy Ribeiro o Brasil
50
crenças e ideais e contribui para a constituição da episteme cultural
é uma nação caracterizada por um contínuo processo transcultural coletiva. Ao analisar de maneira comparativa e interdisciplinar as
de “desfazimento, refazimento e multiplicação” — processo este que semelhanças e diferenças que caracterizam a interface geografia/
produz “um povo síntese [...] uma civilização nova” onde “heran- episteme cultural nas diferentes partes do continente, ganham-se
ças culturais” se fundem —, já para Patrick Chamoiseau e Raphaël insights dos diversos tipos de identidade cultural que constituem
Confiant51, o Caribe (e, por extensão, as Américas, aliás, todo o as Américas. Gostaria de traçar quatro tipos de insight: a) Insights
mundo) constitui “l’espace d’un mosaïque mouvante” (o espaço de sobre assunções antropocêntricas: a relação entre o senso de lugar
um mosaico móvel), onde as culturas, línguas, costumes e povos e a consciência ética (reflexão ética); b) Insights sobre mimese e
não se fundem em síntese, mas se mesclam de maneira conflituosa e referência com respeito ao lugar habitado (reflexão hermenêuti-
caótica de tal modo que os laços que ligam as partes num todo fluido ca); c) Insights sobre a episteme cultural/experiência humana num
de “frontières vaporeuses” (fronteiras vaporosas)52 são parcialmente dado lugar e processo histórico (reflexão ontológica/identitária); d)
abertos e compreensíveis e parcialmente fechados e opacos. Insights sobre a relação entre a escrita, a vida e práticas pedagógicas
Qual é o papel da literatura neste processo? Qual é a contribui- (reflexão ideológica).
ção da literatura, dos estudos literários e da ecocrítica pós-colonial Perante o fato de que um dos problemas principais a serem
para a compreensão do mundo e da realidade? A literatura é um resolvidos no século XXI é a coexistência de culturas radicalmente
dos privilegiados meios de construção mitológica coletiva. Sendo diferentes e de que a literatura revela e problematiza os paradoxos
uma encruzilhada onde discursos e visões em conflito e competi- e aporias da vida mediante as suas representações, argumento que
ção se encontram e entram num equilíbrio muitas vezes precário a essência ética da teoria literária é de constituir, junto com o seu
e contraditório, a literatura constitui um lugar onde diferentes objeto de estudo, a literatura, uma ciência da/para a vida, ou, como
valores, mitos, histórias e traduções são negociados. É por meio diria Édouard Glissant, uma ciência da/para le tout-monde, le chaos-
50 (RIBEIRO 1995:13) -monde, ou ainda, la totalité monde. Em seguida, abordarei estas
51 (CHAMOISEAU; CONFIANT 1999:71)
52 (CHAMOISEAU; CONFIANT 1999:64)
ideias-chave de Glissant.
640 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 641

O critico Leo Spitzer definiu os estudos literários como “a ciên- contribuindo para o desenvolvimento do que chamo de “transescri-
cia que tem como objetivo compreender o ser humano na sua ex- ta” (transwriting), em Afro-América: Diálogos Literários na Diáspora
pressão em palavras e criações linguísticas”53. Para Erich Auerbach, Negra das Américas (2009), trabalho o que chamo de “inconsciente
falando sobre a filologia que Goethe tinha cunhado Weltliteratur, a ecológico” desta teoria. Gostaria, em seguida, de juntar e elaborar os
ciência literária deve “designar o lugar do ser humano no univer- dois aspectos dentro da relação teórica entre o pós-colonialismo e
so”54. Já para Glissant, o objetivo da teoria da literatura comparada a ecocrítica.
deve ser a reativação da “estética da terra”. Em Poétique de la re- Enquanto crítica ao império da história e cultura europeia e, por
lation, Glissant argumenta que este fazer poético pode nos ajudar extensão, do Ocidente, a teoria pós-colonial revela e problematiza:
a mudar o “pesadelo” em que atualmente estamos vivendo . Mas 55
a) a durabilidade do poder colonial desde o passado ao presente; b)
como conseguir restabelecer esta “conexão estética da terra”, per- como surgem, neste processo, novas formas e práticas de domínio e
gunta ele, num contexto cultural de produção e consumo material subalternização. Com o enfoque nas relações de poder, nas posições
desenfreado com seu efeito de fragmentação, alienação, miséria e e atitudes do sujeito, nas diásporas e nos deslocamentos criados por
violência humana? E responde: por meio de uma “estética de inter- meio do colonialismo, do imperialismo e da globalização, a teoria
rupção, ruptura e conexão” que envolve a imaginação. Em Traité du pós-colonial negligenciou questões com respeito à interface cultura/
tout-monde, Glissant afirma que, ao contrário da ciência, “a escritura natureza58.
nos leva às intuições imprevisíveis, nos faz descobrir os constantes A ecocrítica, dentro dos estudos literários, tem se desenvolvido
escondidos do mundo” . É mediante o imaginário, o seu prolonga-
56
em três direções fundamentais: a) no sentido de uma metodologia
mento “por uma explosão infinita”57, que se podem descobrir novas sociológica interdisciplinar que examina a relação entre persona-
possibilidades e vencer os obstáculos que impedem o ser humano gens e a natureza, enfocando a consciência ecológica destes com
de se realizar de maneira digna e justa. relação a questões ecológicas locais e globais; b) no sentido de uma
A “estética da terra” como “estética de interrupção, ruptura e metodologia cultural-antropológica interdisciplinar que problema-
conexão”: a teoria de crioulização glissantiana que tem influenciado tiza a alienação e a reificação do ser humano como resultado da do-
as minhas reflexões sobre as literaturas do continente americano minação da natureza dentro do projeto civilizatório moderno; c) no
desde a publicação do meu livro Narrative Identities: (Inter)Cultural sentido de uma metodologia ética interdisciplinar cujo objetivo é a
In-Betweenness in the Americas (2003). Enquanto que, neste li- revisão do sistema de valores culturais antropocêntricos em favor de
vro, o aspecto culturalista da teoria glissantiana é preponderante, uma coexistência planetária inter-relacionada, harmoniosa e justa.
58 O termo pós-colonial é ambíguo e muito questionado. Para um excelente en-
53 (SPITZER 1993:179) saio que problematiza o termo, ver SHOHAT (2000). Sobre o pós-colonialismo
54 (AUERBACH 1969:17) e a pós-colonialidade, ver, entre outros, ASHCROFT, et.al. (1989), BHABHA
55 (GLISSANT 1997:150-151) (1994), YOUNG (1995; 2003), LIONNET (1995), CHILDS (1997), GHANDI (1998),
56 (GLISSANT 1997:119) LOOMBA (1998), MOURA (1999), SPIVAK (1999), BRYDON (2000), BONNICI
57 (GLISSANT 1997b:18) (2000), PRYSTON (2002), MIGNOLO (2003) e SANTOS (2005).
642 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 643

O que liga estas três abordagens é a compreensão da natureza como diferença cultural como processo transcultural de compartilhamento
entidade físico-material e social ativamente envolvida na dinâmica implica na confluência de diferenças sem a sublimação dos seus
das construções culturais59. diversos elementos num todo coerente: um reconhecimento da
É preciso aprofundar o diálogo entre os estudos pós-coloniais sobreposição e/ou justaposição dos diversos outros constituindo
e ecológicos, já que a separação entre a história do império e os o self. Neste sentido, a identidade e a cultura envolvem diferenças
pensamentos ecológicos contribui para a constituição de um mutuamente refratadas e muitas vezes deslocadas na dança esquizo-
discurso de orientalismo verde que ofusca um dos pilares básicos do frênica da cultura e do imperialismo. A meu ver, isto é a base a partir
colonialismo, a saber: a exploração da natureza. Gostaria de delinear da qual se deve pensar a alteridade/diferença cultural entre o local e
brevemente três áreas de contato entre os estudos pós-coloniais e o global num contexto pós-colonial ecologista.
ecológicos: a) Uma abordagem pós-colonial ecológica é de suma Neste contexto, surge a pergunta de como pensar ecologi-
importância para compreender como a geografia foi e continua sen- camente em tempos de fluxos diaspóricos que fazem com que os
do alterada de maneira radical pelo neocolonialismo do capitalismo limites entre o local e o global tornem-se tênues? Como conceber
tardio. Neste processo, poderiam-se explorar as mudanças entre uma cidadania ambiental no hífen do “trans-nacional”? Lawrence
epistemologias de espaço (pré-)coloniais e pós-coloniais e como Buell alega que “pensar ecologicamente requer pensar contra ou
estas sobrevivem e foram traduzidas por meio de práticas narrativas; além da nação e da nacionalidade”. Para ele “o ecoglobalismo” é
b) A interrogação ecológica do antropocentrismo e o enfoque do “uma maneira de pensar e sentir com respeito à ambientalidade que
pós-colonialismo a cerca das relações de poder hierárquicas inter-re- abrange toda a terra”61. Neste sentido, a ecocrítica não tem somente
lacionadas, já que estes assuntos afetam as diversas espécies da biota; o mandato, como também a capacidade de examinar e compreen-
c) Questões do agir e da representação do sujeito subalterno, além de der construções humanas transnacionais e diaspóricas de lar e lugar
revelar como formas e práticas de domínio e resistência implicam em já que, em geral, questões ecológicas são relacionadas às questões
diversos aspectos da episteme cultural e seus efeitos no processo da políticas, econômicas, sociais e culturais. Segundo Pablo Mukherjee
produção da subjetividade e identidade individual e coletiva. Neste
processo, uma análise pós-colonial ecologista elevaria ao primeiro significantes materiais que constituem subjetividades — entendidas como
posições de inteligibilidade, ou seja, os modos de saber necessários pela re-
plano os modos como a narrativa no seu nível discursivo e temático produção de disposições e ordens sociais existentes (por exemplo, a divisão
patriarcal do real em termos de gênero; os modos de produção/consumo no
traduz (e assim produz) alteridade e diferença cultural60. A noção da sistema capitalista; a necessidade/justificação de processos colonizadores) — e
produzem as relações vividas mediante as quais os indivíduos são ligados — de
59 Sobre a relação entre literatura, pós-colonialismo e ecocrítica, ver entre outros, maneira hegemônica ou contra-hegemônica — às relações de produção e distri-
GLOTFELTY (1996), BUELL (1995; 2001; 2005; 2007), PLUMWOOD (2001; 2003), buição de poder (e às relações de exploração daí resultantes) numa formação
PHILIPS (2003), HUGGAN (2004; 2010), LOOMBA (2005), CURTIN (2005), social específica num dado momento histórico. Sobre questões de ideologia,
FRENCH (2005), GARRARD (2006), CILANO e DELOUGHREY (2007), MARZEC ver MANNHEIM (1936), ALTHUSSER (1971), GEERTZ (1973), BOURDIEU (1977),
(2007), VITAL e ERNEY (2007), WALTER e FERREIRA (2010), WRIGHT (2010), ŽIZEK (1989; 1996), LARRAIN (1994), LEVINE (1994), RICOEUR (1997), DECKER
DELOUGHREY e HANDLEY (2011). (2004) e THOMPSON (2009).
60 O cerne deste enfoque é a questão da ideologia: a organização de práticas 61 (BUELL 2007:227)
644 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 645

qualquer campo teorizando as condições globais do colonialismo tempo da conquista imperial até o capitalismo neoliberal de hoje.
e imperialismo (os estudos pós-coloniais) devem considerar as Em outras palavras, dever-se-ia problematizar o que o filósofo
inter-relações complexas de categorias ambientais como, por Deane Curtin chama de “racismo ambiental”, isto é “a conexão, em
exemplo, a água, a terra, a energia, o habitat e a migração com teoria e prática, entre raça e ambiente de forma que a opressão de
categorias políticas ou culturais como, por exemplo, o Estado, um é ligada e sustenta a opressão de outro”63. O racismo ambiental
a sociedade, a literatura, o teatro, as artes visuais. Igualmente, é um fenômeno sociológico exemplificado no tratamento ecologi-
qualquer campo dando importância interpretativa à natureza camente discriminatório de povos socialmente marginalizados ou
(os estudos ecológicos) deve ser capaz de traçar as coordenadas economicamente discriminados. É uma forma extrema do que Val
sociais, históricas e materiais de categorias como a floresta, o rio, Plumwood chama de “centrismo hegemônico”64: formas de domí-
as regiões e as espécies.62 nio entrelaçadas que foram e continuam sendo convocadas com
o objetivo de explorar a natureza e, ao mesmo tempo, minimizar
Com base na objetificação, fragmentação e degradação inte- pretensões não humanas a uma natureza compartilhada. Neste
lectual do ser humano como resultado da ideologia consumista do processo, não se deve esquecer, como Plumwood65 assinala, que
sistema capitalista vigente, um processo analítico descolonizador a definição ocidental da humanidade sempre dependeu e conti-
deveria problematizar a relação dos diversos níveis de degradação nua a depender da presença do não humano como incivilizado e
baseada no insaciável desejo de consumir e apropriar a outridade animalesco. A justificação de processos de invasão, colonização e
em nome do benefício material e do poder social: uma análise dominação procedeu desta base antropomórfica e racista que nega
emancipadora, na qual, em vez da redução de todas as coisas ao va- e cancela o self independente da natureza.
lor econômico de mercado, as necessidades humanas e ambientais Se um dos temas cruciais das literaturas pan-americanas é a
ficariam no centro do enfoque. conquista e o domínio da natureza/terra baseados na e simulta-
A transformação ecológica é baseada numa transformação neamente destruindo a visão do paraíso, ou seja, a imaginação da
das relações humanas com as espécies não humanas. Ao recuperar natureza como santuário imaculado que oferece um refúgio da
a conexão com a natureza, podemos explorar possibilidades de civilização caída e do remorso profundo resultante do implícito
renovação social, cultural e psicológica. A reimaginação e reconfi- genocídio ameríndio e escravização de outros povos, então o le-
guração do lugar humano na natureza implicam numa interroga- gado histórico deste holocausto persegue tanto os corpos e mentes
ção da categoria do humano e como a construção de uma relação das pessoas quanto a geografia do continente americano. Ou seja,
dicotômica entre os seres humanos e a natureza — com a hierar- a relação com a terra torna-se uma questão-chave num ambiente
quização das formas de vida que esta construção implica — foi e caracterizado por falta de raízes locais, de origens. Ela surge como
continua sendo implícita na exploração capitalista e racista desde o 63 (CURTIN 2005:145)
64 (PLUMWOOD 2001:4)
62 (MUKHERJEE 2010:144) 65 (PLUMWOOD 2003:53)
646 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 647

espaço mnemônico de sensações e visões enraizadas em histórias concepção do mundo e suas relações. Segundo Glissant, deveríamos
individuais e coletivas, espaço este que situa o indivíduo dentro de suplementar o pensamento-raiz com um pensamento-rizoma ou ar-
uma comunidade biótica que inclui os vegetais e os animais. Neste quipélago: “En el encuentro de culturas del mundo, debe asistirnos
sentido, o espaço reapropriado de uma não história é tanto material, el poder imaginario para concebir todas las culturas como factores
político como cultural e o ato em si é uma resistência cultural que que tienden, al mismo tiempo, a la unidad y la diversidad libertado-
constitui o que Glissant chama ou de tout-monde ou totalité-monde, ra”68. Entender o mundo enquanto “chaos-monde” ou “tout-monde”
ou ainda chaos-monde: as inter-relações nos lugares e entre diver- constituído por fluxos erráticos entre dobras fractais69 significa, em
sos lugares do mundo; relações estas constituídas por processos de última análise, não poder compreendê-lo totalmente.
crioulização. Tanto os lugares quanto as relações “transformam-se O raciocínio glissantiano levanta um ponto raramente tocado
uns nos outros sem fim”66. por críticos: a incomensurabilidade das relações interculturais que
Para Glissant, a abertura de fronteiras para espaços fronteiri- reside no seu caráter transcultural (Glissant diria “crioulizado”).
ços e raízes para rotas/rizomas/fluxos nas críticas e pensamentos Glissant, neste sentido, fala de “opacité”. A opacidade das relações
pós-modernos é uma mudança de transcendência para transversa- interculturais é o sedimento que se acumula no processo da inter-
lidade: a visão da realidade como uma série de dobras67. Poder-se-ia -relação cultural. Como tal contribui para a imprevisibilidade e
dizer que, desde o início de sua produção na década 50 até a sua não linearidade (o caos) destas relações70. Este sedimento é a base
morte em fevereiro de 2011, a noção das dobras fornece a unidade insondável e fértil da experiência intersubjetiva/intercultural que
fenomenológica de sua obra: seguindo a realidade nas suas mais pe- pode ser somente sentida em vez de racionalmente compreendida.
quenas dobras internas, suas variedades, viradas, mudanças, curvas, A opacidade também pode ser utilizada como desvio deliberado
espelhamentos, deslocações, desvios e reversões. Para Glissant, in- na luta da resistência cultural. Como tal, estabelece um padrão de
fluenciado por Mallarmé e Faulkner, dobras significam um padrão
de linhas entre a realidade e a consciência que não estabiliza a reali- 68 (GLISSANT 2002:71-72)
69 Fractal no sentido de cada dobra, identidade ou fragmento cultural ser pensado
dade objetiva, mas simplesmente estabelece uma série de encontros em relação aos seus múltiplos outros.
e relações nos quais o significado é continuamente feito, desfeito e 70 Em Glissant, portanto, o conceito de caos não significa desordem, mas é basea-
do na ciência do caos mediante a qual se problematizam estruturas profundas
refeito num jogo de ausência e presença. Neste sentido, o mundo é na física e natureza. Visando o encontro e a mescla de (fragmentos de) culturas,
Glissant menciona uma das noções principais da ciência do caos, o “sistema
feito de dobras, de zonas de contato, como diria Mary Louise Pratt, determinista errático” e afirma ter tirado duas ideias deste sistema: seu funciona-
ou encruzilhadas intersticiais, como enfatizo nos meus trabalhos. mento segundo mecanismos com regras precisas, mas com modificações impre-
visíveis de seus elementos (especialmente, mas não exclusivamente temporais)
Durante a vida criativa de Glissant, a água de maré baixa e alta e e sua “sensibilidad a las condiciones iniciales. Una sensibilidad que hace que en

suas correntes submarinas tornaram-se o principal exemplo desta algún momento un error de sobreestimación o minoración de las condiciones
iniciales pueda multiplicarse hasta el infinito y de manera errática en el seno
66 (GLISSANT 1996:275) del propio sistema” (GLISSANT 2002:84, 86). No caos-mundo, portanto, nem a
67 Glissant usa o termo transversalidade para se referir ao sistema sincrônico das ordem nem a desordem dominam, mas o sinuoso desdobramento de linhas das
forças convergentes que constituem a identidade antilhana. forças interativas.
648 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 649

camuflagem, distorção, deslocamento e subterfúgio no processo de apagadas e suplementadas por outras. Portanto, a viagem, a errân-
significação. A crioulização cultural, segundo Glissant, visa substi- cia, a mobilidade são elementos sumamente importantes para a (re)
tuir a dominação hierarquizante por uma convivência em processo criação da identidade cultural, como também são a imobilidade, as
para que a diferença-separação possa ceder à diversidade-relação raízes culturais, o lar. A arte da vida e sobrevivência é juntar esses
dinâmica. Para Glissant, “a multienergia das crioulizações [...] rea- elementos, mesclá-los de forma equilibrada sem preferir nenhum
tiva esta dilatação vertiginosa onde se desfazem não as diferenças, deles em detrimento dos outros.
mas os sofrimentos antigos nascidos da diferença”71. O caos-mun- Para Glissant, a análise cultural deve examinar aquilo que
do glissantiano é o mundo real: um mundo em processo onde a “gera as nossas culturas, o dinamismo dos seus conteúdos inter-
imaginação suplementa a razão, o opaco encanta o claro, o errante relacionados”. Gostaria de concluir, alegando que la poétique de la
ilumina o sedentário, o ser humano se redescobre no mundo dos relation glissantiana focaliza este dinamismo transcultural através
animais e das plantas; um mundo, enfim, onde o amor e o respeito de uma escritura em busca de respostas à questão da outridade/
vencem qualquer tipo de agressão e violência. O papel da literatura, outrização e da dupla maldição que constitui a base da fundação
portanto, é fundamental no sentido de “contribuir, pelos poderes da das sociedades nas Américas: a brutalização do ser humano relacio-
imaginação, a fazer levantar a rede, o rizoma das identidades abertas nada à brutalização do ambiente desde o passado ao presente. Neste
que falam e escutam entre si”72 e neste processo revelar a natureza sentido, a “estética da terra” glissantiana, ao enfatizar que a terra e
não sincrônica, não linear, acidental e indeterminada da realidade; o habitante da terra são saturados por traumas de conquista, liga
realidade esta onde o processo de relacionamento é mantido instá- o indivíduo, a comunidade e a terra no processo de criar história
vel e dinâmico pela opacidade. da não historia pós-colonial. Neste processo, Glissant espera que a
O cerne da problemática visada por Glissant é o pensamento literatura possa ensinar a força política da ecologia, ou seja, que a
binário da modernidade, esta forma de pensar baseada em diferen- literatura possa traduzir a articulação radical da ecologia “da inter-
ça como separação e exclusão. Diferente das teorias pós-modernas dependência de todas as terras, do mundo inteiro”73. Para escritores
e sua desconstrução dos binarismos, a teoria da crioulização é que vivem diversos tipos de colonização, portanto, é de suma impor-
baseada nos fluxos híbridos e transculturais vivenciados na realida- tância trabalhar a relação entre o indivíduo e a paisagem: quem tem
de; fluxos que explodem fronteiras fixas e nações homogêneas em sua história destruída, distorcida ou camuflada, busca esta história
seus espaços fronteiriços, transformando-as em archipels regidos nos lugares do espaço onde seus antepassados viveram, ou seja, nos
por dispersão. Em relação à questão moi-l’autre, Glissant enfatiza rios, bosques, nas montanhas, savanas, etc. O objetivo da liberta-
que uma identidade em processo é uma identidade composta por ção do futuro (esquecido) do passado no presente, aquela parte do
identificações que se estabelecem de maneira transitória para serem passado que, segundo Walter Benjamin, ainda não se concretizou
e, portanto, deve ser resgatada e problematizada, é descobrir nas
71 (GLISSANT 1997b:239)
72 (GLISSANT 1997b:248) 73 (GLISSANT 1997a:147)
650 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 651

ruínas do passado as causas dos desastres e tanto a responsabilidade como formas, forças e práticas totalizantes repressivas, bem como
quanto a promessa de um presente e futuro melhores. libertadoras expressivas. A abordagem teórica deveria enfocar os
Nos pensamentos de Glissant, traduzidos e poeticamente diversos tipos de negociação no fluxo aleatório dos fragmentos cul-
elaborados na sua ficção e poesia, a força imaginária da literatura turais de diferentes contextos que constituem o mapa intercultural
não somente revela o que a história, segundo Carlos Fuentes (2005), das Américas. Assim, ao examinar a dinâmica das formas culturais
esconde. Ela oferece formas e práticas tanto do que Clifford Geertz moldadas de maneira fractal, ou seja, sua natureza transcultural,
(1985) chama de “saber local” como o que se poderia chamar de pode-se problematizar a diferença cultural como processo de domi-
saber global. Este saber glocal revela formas e práticas de relaciona- nação e libertação nas zonas intersticiais.
mento entre diversas formas de vida num dado ambiente e tempo. Visto que as histórias não existem de maneira isolada, mas sem-
Cabe à crítica literária situar/problematizar estas formas e práticas pre se cruzam e se entrelaçam, constituindo círculos dentro de cír-
em termos de cultura, sociedade e história e assim contribuir para culos sem um centro74, propõe-se a interdisciplinaridade enquanto
solucionar um dos mais urgentes problemas e desafios do nosso negociação teórica: combinar uma variedade de posições teóricas e
tempo: a busca de paradigmas para uma coexistência pacífica, ba- trabalhar de maneira heterogênea desde as suas fronteiras parece-me
seada em mútuo respeito entre os seres humanos e entre estes e o ser a mais adequada forma de mapear as múltiplas conjunturas e dis-
resto da biota. junturas (as negociações destas) que caracterizam o mosaico inter-
A palavra-chave da análise deste tipo de saber é “negociação”: cultural das Américas. Esta abordagem conjuntural, portanto, é uma
a negociação de fragmentos culturais, discursivos, identitários e intervenção estratégica que situa textos nas suas localidades culturais
ideológicos dentro da rede dinâmica de múltiplas relações de poder. específicas enquanto os relaciona aos seus contextos globais.
Para poder examinar estes processos de negociação que constituem “Um erro foi cometido em algum lugar”, diz o narrador sem
a diversidade cultural e o encontro de seus elementos, devem-se nome no clássico mundial Homem Invisível (Invisible Man) de Ralph
mapear os espaços, lugares e esferas de sua existência: entrelugares, Ellison. A trama do romance desenvolve diversos aspectos do efeito
passagens, fronteiras geográficas, psicológicas, corporais, sexuais e deste erro, situando as raízes da violência do presente (o racismo
de gênero e seus espaços fronteiriços, movimentos transregionais, na sociedade norte-americana nos anos cinquenta do século XX)
transnacionais e diaspóricos. É mediante o exame da dinâmica no sistema escravista do passado. A revelação e problematização
transcultural/transnacional nas encruzilhadas diaspóricas de tro- dos tipos de erro cometidos no passado e no presente, onde, por
ca, lugares caracterizados por um espaço-tempo heterotópico e quem e como, e os seus efeitos num processo histórico com enfoque
múltiplos processos de continuidade e ruptura, síntese e simbiose, específico na violência (pós-/neo)colonial deveriam ser, alego, um
coerência e fragmentação, utopia e distopia, consenso e incomen- dos principais objetivos desta abordagem conjuntural. Margaret
surabilidade, que podemos começar a entender, mapear e avaliar a
74 Semelhante à Faixa de Möbius, cuja imagem indica a sequência sem começo e
ambiguidade inerente à tradução da diferença e diversidade cultural fim e sem relações hierárquicas.
652 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 653

Atwood, Yves Thériault, Dionne Brand, Thomas King, Tomson em termos de conclusão, gostaria de levantar as seguintes questões:
Highway, Marlene Nourbese Philip, William Faulkner, Toni como a geografia (paisagem/natureza/lugar/espaço/terra) é condi-
Morrison, Leslie Marmon Silko, Linda Hogan, N. Scott Momaday, cionada pelos processos globais de transformação? Se a reabitação,
Miguel Méndez, Rolando Romero, Alejo Carpentier, Édouard como atitude descolonizadora, significa, em primeira instância, um
Glissant, Maryse Condé, Gisèle Pineau, Raphaël Confiant, Patrick processo de conscientização que supera a separação entre nós e o
Chamoiseau, Derek Walcott, Nicolás Guillen, Wilson Harris, Juan resto da biota, então o compromisso de reabitação é a capacidade
Rulfo, Carlos Fuentes, B. Traven, Miguel Astúrias, Gabriel Garcia de se situar lado a lado com os outros elementos da biota; de ver
Márquez, José María Arguedas, Mário Vargas Llosa, Pablo Neruda, o outro como igual; de reconhecer comunicação e inteligência em
Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Joao Ubaldo Ribeiro, Milton todas as formas, não obstante a diferença entre nós, seres humanos,
Hatoum, Conceição Evaristo, Graça Graúna, Daniel Munduruku, de que forma, portanto, a narração traduz este compromisso de
Eliane Potiguara e Antonio Torres, entre muitos outros, em épocas reabitação? Neste sentido, qual é a ligação entre o “inconsciente
diferentes e de maneiras distintas, utilizaram a memória para, nas político” (Jameson), o “inconsciente cultural” (Bourdieu) e o “in-
palavras memoráveis de Toni Morrison, “desenhar um mapa [...] consciente ecológico” (Walter) que aponta para uma possível atitude
de uma geografia crítica”75. Neste processo, problematizaram, entre descolonizadora do texto? Como é que as práticas literárias articu-
outras coisas, a violação da terra e das mentes e corpos das pessoas lam conceitos da natureza? Quais os valores atribuídos à natureza e
pela propriedade roubada, vendida e comprada. Esta dessacraliza- formas de vida não humana e por quê? Qual é a relação entre seres
ção da terra e a implícita alienação e fragmentação do ser humano humanos e a natureza num processo histórico? Como é que percep-
minam o equilíbrio da ordem natural entre os seres humanos e seu ções da natureza moldam os tropos e gêneros literários? Como estas
ambiente. Para Morrison (2008), em consequência deste desequi- figuras literárias contribuem para formar atitudes sociais e culturais
líbrio, o interior das pessoas murchou e o lado selvagem surgiu, perante o ambiente? Como é que a percepção espacial do território
tornando-as escravas das suas próprias alienações: “desprendidos estrutura textos ideologicamente? Como é que o tempo figura nesta
da alma da terra, eles insistiram na compra do solo dela, e, como percepção? A relação entre a espacialização do tempo e a tempora-
órfãos, eram insaciáveis. Seu destino era devorar o mundo e cuspir lização do espaço se resume no binarismo natureza: tempo mítico/
um terror que destruiria todos os povos primários” . Neste cenário,
76
cidade: tempo artificial? Como é que a memória traduz a história?
a geografia, como em Faulkner, figura como registro alegórico da Se a geografia é uma forma de viver, uma memória incorporada e
história e da decadência humanas ou, como em Chamoiseau, como simbolizada, como a memória traduz a geografia? Se estas tradu-
fonte mágico-realista (neorromântica?) de reconstrução não so- ções mnemônicas indicam um tipo específico de verdade cultural,
mente imaginativa como também física/identitária. Neste sentido, e quais as características desta verdade? E, por fim, a pergunta-chave
implícita nas acima mencionadas: como a identidade (individual/
75 (MORRISON 1992:3)
76 (MORRISON 2008:54)
coletiva) é ligada à geografia? A meu ver, estas perguntas conotam
654 Roland Walter Capítulo 16 . Multitransintercultura 655

e denotam assuntos-chave em circunstâncias de experiências viven- BRYDON, Diana. 2000. Postcolonialism: Critical Concepts in Literary and Cultural
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Capítulo 17

Vozes autóctones das


Américas:
o discurso contracanônico da
crítica indígena
Eloína Prati dos Santos
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Com poucas exceções, os romancistas indígenas —


exemplos de índios que repudiaram seus enredos
designados — em sua ficção, rejeitam o gótico ameri-
cano com sua selva assombrada e carregada de culpa
e o autóctone condenado, enfaticamente fazendo do
índio o herói de outros destinos, outros enredos.*
Louis Owens
A epígrafe, oriunda da introdução do livro de Owens, Outros desti-
nos (1992), norteia o trabalho de mapear a voz critica indígena nos
Estados Unidos e no Canadá, de que forma ela cria um vocabulário
que permite ler a literatura indígena sob o ponto de vista das pró-
prias culturas autóctones e oferece ao leitor euro-americano uma
visão não canônica de obras de ficção nelas enraizadas. Leitura essa
que é possível estender a exemplos recentes da literatura indígena
brasileira.
Nos Estados Unidos, a literatura indígena escrita em inglês co-
meça a ser escrita no século XVIII e no século XX, ultrapassados os
relatos a antropólogos, o memorialismo, a mitologia, se insere nos
gêneros euro-americanos consagrados, que têm um marco signifi-
cativo na atribuição do Prêmio Pulitzer, em 1969, a Scott Momaday,
pelo romance autobiográfico House made of dawn (1968). Na se-
gunda metade do século XX, consolida-se a produção de romances,
poemas, peças de teatro, filmes, músicas, da mesma qualidade da-
quela produzida por qualquer outra etnia, inclusive a hegemônica,
um corpus hoje conhecido como Native Literary Renaissance.
nota inicial
Consolida-se também a presença de ameríndios nas univer-
* “With few exceptions, American Indian novelists — examples of Indians who
sidades, inclusive como professores, e desenvolve-se uma corrente
have repudiated their assigned plots — are in their fiction rejecting the American
gothic with is haunted, guilt-burdened wilderness and doomed Native and em- crítica — denominada de “crítica vermelha” por Craig Womack –
phatically making the Indian the hero of other destinies, other plots” (OWENS
1992:18).
que produz reflexões sobre os principais temas e estratégias críticas
666 Eloína Prati dos Santos Capítulo 17 . Vozes autóctones das Américas 667

dos escritores indígenas contemporâneos, com mais de duas déca- tema literário e, principalmente, para assumir que a vida tribal vai
das de publicações ainda pouco difundidas nos círculos literários e continuar a existir no futuro”5. Para Womack a literatura norte-ame-
acadêmicos. Vermelha é a palavra escolhida justamente para evitar o ricana e a literatura indígena formam dois cânones separados e “as
equivocado e homogeneizador “índio” e por carregar a marca da re- literaturas tribais não são um ramo do tronco principal, mas como
sistência à representação autóctone na literatura euro-americana. O as literaturas mais antigas das Américas, elas são o cânone”6.
acadêmico creek-cherokee Womack é um dos críticos mais radicais O escritor canadense cherokee-grego, Thomas King, declara o
e seu livro Red on red (1999) conclama a uma “autodeterminação termo pós-colonial inaceitável em relação às literaturas indígenas.
literária” por parte dos indígenas estadunidenses , uma vez que “é
1
Ele chama o triunvirato — pré-colonial, colonial e pós-colonial
possível ministrar cursos sobre literatura e crítica com textos de au- — de “etnocentrismo não disfarçado” e “desconsideração bem-in-
toria exclusivamente indígena”2. Este chamamento já fora feito pela tencionada”. King coloca o problema do termo em seu “inescapável
escritora sioux-escocesa Paula Gunn Allen, em um livro de ensaios nacionalismo” e na “perigosa crença de que o ponto de partida de
críticos e ementas de cursos acadêmicos sobre literatura indígena, qualquer discussão é a chegada dos europeus à América do Norte”.
Studies in American Indian literature (1983). Em um dos ensaios, Ele completa, acusando os estudos pós-coloniais de organizarem a
Allen analisa as dificuldades de lecionar literaturas não ocidentais a literatura progressivamente, “com a implicação de progresso e de-
uma audiência familiarizada com os termos “primitivo”, “selvagem”, senvolvimento”, e de assumir que “o catalizador para a literatura in-
“pagão” e “folclórico” . 3
dígena é a luta entre opressor e oprimido”. Segundo King, a literatura
Womack se rebela contra os tipos de “inclusão colonial” das pré-colonial não tem qualquer relação com a literatura colonial, não
literaturas indígenas nos programas acadêmicos sob denominações fazem parte de um ciclo natural ou biológico, nem uma antecipa a
como “étnica”, em cursos de largo espectro comparativo, desconsi- outra. Assim, as literaturas indígenas contemporâneas não podem
derando suas especificidades tribais. Ou “multicultural”, onde um ser classificadas como pós-coloniais “pelo fato óbvio de que não há
autor indígena pode ser lido ao lado de Amy Tam e Ralph Ellison, um ‘pós’ ao status colonial dos indígenas norte-americanos”.7
todos alinhados sob “as mesmas malditas citações de Bakhtin [...], Womack destaca o papel cada vez mais importante que as tri-
reduzindo os estudos literários a pouco mais do que uma versão bos e seus membros devem ter na avaliação das literaturas tribais.
acadêmica do melting pot” . Para ele, “o nativo e o não nativo es-
4
Um dos temas mais importantes dentro da literatura indígena é jus-
tão sempre desconstruindo um ao outro” e por isso a literatura tamente esta afiliação tribal, daí o destaque para a nação de origem
indígena faz muito “para legitimar a experiência tribal como um dos críticos e escritores aqui citados, prática adotada por todos os
escritores indígenas. O choctaw-cherokee-irlandês Louis Owens,
1
2
(WOMACK 1999:1)
(WOMACK 1999:3) Como as obras mencionadas não têm tradução para
acadêmico fluente nos discursos ocidentais do pós-modernismo
o português, optei por parafrasear ao invés de traduzir, destacando entre
parênteses expressões e definições relevantes ao assunto deste texto. 5 (WOMACK 1999:3)
3 (ALLEN 1983:3) 6 (WOMACK 1999:7)
4 (WOMACK 1999:8) 7 (KING 1997:242)
668 Eloína Prati dos Santos Capítulo 17 . Vozes autóctones das Américas 669

e do pós-colonialismo, reconhece que essa “rearticulação” de uma “cosmopolitas, híbridos, ou mesmo exóticos com impunidade”13.
identidade é “uma tarefa enorme” e central à ficção indígena, devido Cook-Lynn indica o romance Almanac of the dead (1991), da es-
a obstáculos que ele chama de “invenções” do índio americano na critora laguna-pueblo Leslie Marmon Silko, como um exemplo de
imaginação coletiva e a noção de que esta figura desapareceu há “pantribalismo nacionalista ficcional” por retratar de forma asserti-
muito tempo e foi substituída pelo autóctone atual e sua experiência va a luta pela posse de terras retiradas das tribos durante o período
contemporânea. Desse “descompasso entre mito e realidade”, surge colonial e por difundir a ideia “de que a imaginação tem um papel
a maior parte da arte indígena8. funcional na vida política e social, uma ideia que a maioria dos tra-
Para Owens, a questão do gênero literário também é impor- dicionalistas indígenas que conheço abraçam”14.
tante, pois um poeta indígena ainda consegue ver-se como parte Allen acrescenta que o objetivo da literatura indígena não é pu-
de uma antiga tradição oral de contadores de história, enquanto ramente a autoexpressão, mas através dos cantos, lendas e histórias
o romancista autóctone trabalha sem protótipos indígenas, com a sagradas, incorporar, articular e compartilhar realidades, “sentir
consequente “desacralização” do material tradicional e sua “descon- dentro de si o conhecimento comunitário da tribo”15.
textualização” dentro do mundo da arte ou da literatura9. Segundo Cook-Lynn, como Allen e muitas outras escritoras, defen-
Owens, o romancista autóctone precisa superar traços de uma dem o papel central da mulher indígena nas culturas tribais. Para
“etnostalgia rousseauista” comum ao tratamento do indígena em Allen, “as raízes do feminismo branco tem raízes vermelhas”16. Não
romances euro-americanos. O resultado positivo desta estratégia reconhecer sua mãe, segundo ela, é a incapacidade de lembrar seu
é a colocação subversiva do leitor indígena em uma posição privi- significado, sua realidade, sua relação correta com a terra e a socie-
legiada, enquanto o leitor não indígena passa a ser o “outro”10. Ao dade. “É a mesma coisa que estar perdida — isolada, abandonada,
apropriar-se da “outra língua”, o escritor indígena está “entrando em estranha e alienada de sua própria vida”17. Ela vai além e declara
diálogo com o próprio idioma do colonizador”11. que se as tradições autóctones tivessem sido seguidas, “o lugar da
A escritora crow, creek, sioux Elizabeth Cook-Lynn reforça a mulher na sociedade seria central, a distribuição de riqueza e do
importância da filiação tribal, pois ela vê como tarefa do escritor poder seriam igualitárias, os idosos seriam respeitados, homena-
indígena mitificar a sua relação com o espaço e lutar contra um geados e protegidos como uma fonte social e cultural primária, os
cânone onde “a morte e o enterro de sua presença é tão explícita” e ideais de beleza física seriam consideravelmente mais amplos [...]
encontrar formas de “fazer a reconciliação necessária com a conti- a destruição do bioma, a esfera de vida e os recursos naturais do
nuidade e a historiografia primordial”12. Ela considera um erro de planeta seriam poupados e a natureza espiritual da vida humana e
certos escritores indígenas pensarem que é possível se tornarem não humana se tornariam o princípio organizacional da sociedade
8 (OWENS 1992:5) 13 (COOK-LYNN 1996:84)
9 (OWENS 1992:11) 14 (COOK-LYNN 1996:89)
10 (OWENS 1992:14) 15 (ALLEN 1983:4)
11 (OWENS 1992:15) 16 (ALLEN 1988:13)
12 (COOK-LYNN 1996:33) 17 (ALLEN 1988:14)
670 Eloína Prati dos Santos Capítulo 17 . Vozes autóctones das Américas 671

humana”18. Para ela, os norte-americanos resistem ao conceito de continuam amarrados a narrativas de dominação que os trocam por
“indianização”, mas ela aconteceu e está na raiz dos valores pessoais, “índios”. No lugar desse significante genérico, ele sugere que os po-
familiares, sociais e políticos19. Um dos exemplos de indianização vos sejam referidos pelo nome de suas tribos e, sempre que possível,
mais citados é a consagrada democracia estadunidense, que segun- colocados em seu contexto tribal específico. Para discutir estudos
do especialistas, seria modelada na Confederação Iroquesa. indígenas mais gerais, Vizenor propõe o termo pós-índio, que dá
Como Owens e Allen, Gerald Vizenor também descende de uma ideia da heterogeneidade das culturas tribais. Para descrever
índio e euro-americano e seu trabalho explora o que isso significa a experiência dos pós-índios, ele introduz a expressão survivance,
no mundo contemporâneo, definindo-os como sujeitos crossblood. uma combinação de sobrevivência com resistência, por carregar a
Para este membro da tribo chippewa de Minnesota, o termo “não implicação de um processo em andamento ao invés de simples con-
possui validação social ou científica (como mulato ou mestiço) tinuação e aponta para a natureza política da literatura indígena.
porque não é uma medida de consciência, cultura ou experiência Os personagens de Vizenor acreditam em mediação, segundo
humana”, mas define aqueles que, como ele, “mergulham em cantos as culturas tribais, onde há uma busca por equilíbrio do homem
urbanos desconhecidos, na escuridão racial das cidades, para criar entre outros homens e na natureza. Para o escritor, o objetivo cristão
uma nova consciência de coexistência”20. de livrar o ser, a alma, a comunidade de todo o mal é tão enraizado
Duas de suas obras não ficcionais, Crossbloods (1990) e Manifest na consciência norte-americana que é expresso no discurso — guer-
Manners (1999), criticam tanto o nacionalismo autóctone quanto ra contra pobreza, guerra contra a ignorância e a selvageria — e o
as atitudes coloniais dos euro-americanos. Como bom leitor de objetivo é destruir o inimigo completamente. A isso Vizenor deno-
Derrida, Vizenor revisita a discussão sobre “índio” ser um termo in- mina terminal creed (crença terminal), ou seja a crença de que o fim
ventado pelos “invasores europeus”: antes do primeiro desembarque de um conflito se dá com o triunfo definitivo de um absoluto.
de Colombo não havia “índios”, mas povos de várias tribos, como Estas crenças Vizenor se dispõe a desconstruir com humor,
os Anishiinabe ou Dakota. A expressão manifest manners refere-se ironia e uma linguagem que se recusa a enunciar significados ab-
ao legado do Manifest Destiny21, ou à forma como os autóctones solutos. Assim sendo, sua arte tem como fonte o humor indígena

18 (ALLEN 1988:15)
e a figura do trickster22, dois dos traços mais difundidos a unificar
19
20
(ALLEN 1988:23)
(VIZENOR 1981:IX)
as culturas tribais norte-americanas. Seus tricksters pós-índios re-
21 A filosofia do Destino Manifesto viajou com Colombo para a América e
desembarcou com os pilgrims em Plymouth. A expressão, popularizada por
presentam estranhos atos de desconstrução do discurso literário
John Louis O’Sullivan em 1845, afirma a visão republicana dos estadunidenses,
valoriza a expressão individual e legitima desejos expansionistas imperiais que
estadunidense e são uma metáfora perfeita para as contradições
vêm justificando guerras há vários séculos. Suas intenções se consagram na
importância da fronteira oeste, onde o contato com a natureza permite uma
existentes entre as duas cosmogonias.
representação dos indivíduos como recompensados por Deus se bem-sucedidos
economicamente, o que lhes permite a eliminação da barbárie, tanto a dos
autóctones quanto a da aristocracia europeia, ambos vistos como avessos 22 A descrição do trickster em português aparece como “malandro”, “embusteiro”,
ao trabalho. Ironicamente, o Destino Manifesto está relacionado tanto à luta “malicioso”, “velhaco”, “atraente”, “arteiro”, termos que descrevem apenas um
contra a escravidão sulista quanto à vasta e cruel diáspora interna a que foram aspecto dessa figura, deixando de lado seu importante aspecto místico dentro
submetidas os autóctones durante a expansão do país até o Pacífico. das culturas autóctones, portanto, optei por usar o termo em inglês.
672 Eloína Prati dos Santos Capítulo 17 . Vozes autóctones das Américas 673

O trickster Anishiinabe, oriundo dos mitos de criação, é com- uma avó tola, armada de uma colher de chá, determinada a remover
passivo, “aquele que cuida de equilibrar o mundo entre crenças ter- as três montanhas do caminho da liberação: a montanha do racismo,
minais e humor com maneiras incomuns e estratégias entusiastas”. E a montanha do sexismo e a montanha da opressão nacional”.27 Uma
também fala uma nova linguagem, uma vez que “suas experiências das formas de fazer isso, para ela, é a autoficção, que lhe permite
e sonhos são metáforas” . A linguagem que usa pode parecer tão
23
examinar as condições de vida da mulher indígena desde “um lugar
incomum que se desmancha, mas é só uma ilusão de desintegra- profundamente pessoal”28, explícito em I am woman (1996), onde
ção “porque não leva ao silêncio”24. “Nas metáforas, certas palavras a alternância entre poesia e prosa nos aproxima da oralidade das
tomam sentidos novos, ou ampliados”. Os tricksters métis são eles narrativas indígenas.
próprios “as novas metáforas entre as culturas tribais comunitárias Tomson Highway funda em 1996 um Comitê para o
e culturas que se opõem a conexões tradicionais, as culturas que se Restabelecimento do Trickster, juntamente com Lenore Keeshing-
apossariam e comercializariam a terra”25. Acima de tudo, os perso- Tobias e Daniel David Moses. Em suas peças de teatro Dry lips
nagens de Vizenor são mediadores, nunca vítimas. oughta move to Kapusaking (1989) e Rose (2003), Highway nos apre-
O coiote nas histórias de Thomas King também é um persona- senta uma trickster configurada a partir das culturas cree e ojibway,
gem que toma várias formas humanas e animais, e por vezes pode ser onde o uso da língua cree cria um diferencial que obriga ao leitor a
fêmea, prega muitas peças e mostra inapelável bom humor. Como o usar as traduções para o inglês no rodapé dos livros, mas expõe os
trickster de Vizenor, ele age como um mediador entre a cultura in- espectadores das montagens a um esforço maior de compreensão
dígena e a ocidental, entre índios imersos em suas culturas e índios destas outras línguas e culturas. Como fez Arguedas, no Peru, com
aculturados e através de sonhos, danças, peidos, ele tenta “endireitar” seu romance El zorro de arriba y el zorro de abajo (1971), eivado
o mundo, ou partes dele. Outra figura recorrente das “coyote stories” de quéchua, que altera o castelhano de forma substancial, em um
de King é Primeira Mulher, memorável por “reencenar” a criação do exercício de apropriação da forma escrita e ao mesmo tempo de
mundo do ponto de vista nativo. “Primeira Mulher trata todos os resistência, através do que Alberto Moreiras chama de “implosão
homens, Deus, Adão ou Noé, como meninos, que por serem lentos, do significado” (2001). As duas obras denunciam a opressão e a
birrentos ou assanhados, precisam de condescendência26. violência contra as mulheres indígenas, a de Highway encenando,
A escritora Salish-cree Lee Maracle é uma das mais prolífi- inclusive, uma violenta cena de estupro.
cas escritoras canadenses, ativista do Red Power Movement e do A questão da mestiçagem e a história de opressão contra as
Liberation Support Movement e crê que “a acumulação de pesares” mulheres indígenas é examinada ainda pela sakimay-canadense
dos povos indígenas vem de longo tempo. “Às vezes me sinto como Janice Acoose, que, como Owens e Vizenor, ostenta com orgulho o
23 (VIZENOR 1981:XII)
termo mestiça, baseada no famoso romance autobiográfico de Maria
24 (VIZENOR 1981:XVII)
25 (VIZENOR 1981:XVII)
26 (SANTOS 2007:204) Sobre o trickster, indico a leitura de KRUPAT (2003:15-40); 27 (MARACLE 1996:X)
e de CUNHA (2005) 28 (MARACLE 1996:XI)
674 Eloína Prati dos Santos Capítulo 17 . Vozes autóctones das Américas 675

Campbell, Halfbreed (1973), um livro sobre ser métis, audacioso para sobre a possibilidade de se ministrar um curso exclusivamente so-
a época. Acoose analisa a “elevação” de mulheres que mantiveram bre autobiografia e mulher indígena no Canadá, assim como nos
relações com cristãos brancos, Dona Marina, a Asteca que teve uma Estados Unidos, ao mesmo tempo em que afirma a validade de usar
ligação com Hernando Cortez; Pocahontas, que salvou John Smith a língua inglesa para representar suas experiências, renomear e re-
e seus homens da morte ao guiá-los por terras indígenas; e também definir seus povos originais33.
oferece várias ilustrações do Novo Mundo representando “mulheres Na academia brasileira, as literaturas indígenas aparecem es-
com aspecto real” e “mulheres majestosas com arco e flecha” e pouca cassamente, incluídas em cursos como Literaturas de Língua Inglesa
roupa. Depois do período colonial, elas passaram a squaws, ou mu- ou Literatura Pós-Colonial, analisadas de forma fragmentária e sob
lheres indígenas de má reputação, para justificar o expansionismo uma visão insistentemente pós-colonial. Os autores indígenas bra-
imperial e as agendas missionárias, bem como para satisfazer o sileiros raramente escapam da classificação de literatura infanto-ju-
apetite sexual de comerciantes de peles e exploradores. Acoose cita venil, mas legislação recente oferece a oportunidade de introduzi-la
documentação abundante da história e da literatura euro-canadense nas escolas de forma mais consistente.
sobre a sobrevivência desse estereótipo até nossos dias . Segundo
29
A partir do final da década de 1980, os indígenas brasileiros
ela, isso contribui para “perpetuar a violência sexual, física, verbal começam a obter reconhecimento através de obras sobre suas cul-
e psicológica” contra as mulheres indígenas. Até hoje, elas precisam turas e mitos e podemos reconhecer pelo menos trinta autores in-
lutar contra uma combinação de racismo e sexismo, legal e politi- dígenas com trabalhos relevantes publicados. Como aponta Daniel
camente, enquanto reivindicam seu papel central como guardiãs da Munduruku, “é importante dizer que estamos conquistando espaço
cultura e autonomia sobre seus corpos30. não porque somos ‘exóticos’, mas porque escrevemos bem”.34
Como prova da injustiça da permanência desse estigma, Acoose Munduruku, com cerca de 40 obras publicadas, é considerado
percorre uma lista de autoficções de mulheres indígenas canadenses um dos mais influentes escritores da atual literatura indígena no
que a precederam: Emma LaRoque, Beatrice Culleton, Jeanette Brasil. Formado em filosofia, com licenciatura em história e psico-
Armstrong, Lee Maracle, Ruby Slipperjack, Marie Anneharte Baker, logia, foi um dos primeiros índios a obter um doutorado no país.
Beth Cuthand, Louise Halfe31, Patricia Monture-Okanee, Monica Doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP), ele
Goulet, Marylyn Dumont, Mary Sky Blue, uma lista de “mulheres não hesita em afirmar que a escola brasileira ainda reproduz uma
que sobreviveram para contar suas histórias e encontram solida- visão meticulosamente construída pelos colonizadores no século
riedade e conforto entre suas irmãs”32. Elas compõem, com vários XVI, responsável pelo preconceito contra os índios, o que justifica o
outros nomes, uma lista que corrobora a visão de Womack e Allen engajamento político da literatura indígena no Brasil.35
33 (ACOOSE 1995:58)
29 (ACOOSE 1995:44-45) 34 www.almanaquebrasil.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id
30 (ACOOSE 1995:58) =10634:daniel-munduruku&catid=12956:cultura&Itemid=168-54k. Acessado em
31 (ACOOSE 1995:39) 22/02/2012.
32 (ACOOSE 1995:104) 35 www.almanaquebrasil.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id
676 Eloína Prati dos Santos Capítulo 17 . Vozes autóctones das Américas 677

Em O Banquete dos Deuses: Conversa sobre a origem e a cultura só depois de cumprir as tarefas que lhe são propostas é que ele sai
brasileira (2000), Munduruku examina a problemática do precon- vencedor”36.
ceito em sala de aula, investiga as origens da visão deturpada que os O empresário Carlos, não muito feliz com sua vida, embora
professores fazem a respeito dos povos indígenas e aponta caminhos financeiramente bem-sucedido, voa de São Paulo ao Mato Grosso
para uma educação humanista no Brasil. para o enterro da mãe, mas seu avião cai na selva, onde é resgatado
Suas Histórias de índio (1996) trazem pela primeira vez — en- e tratado por um pajé. O homem forte, pintado de vermelho e preto,
tre o conto mítico “O menino que não sabia sonhar” e informações que fala português “com algum sotaque”, enfrenta o desconheci-
sobre os povos indígenas do Brasil, sua diversidade e problemas mento de Carlos com fina ironia e sua opinião dos brancos não é das
contemporâneos — retratos da vida do índio urbano. As histórias melhores: não sabem o que é generosidade, são sempre arrogantes,
abordam os vários encontros entre paulistas de todas as idades opiniões reforçadas pelas repetidas ofertas de Carlos de pagar pelo
com esse estranho desconhecido que é o índio brasileiro, revelando seu salvamento e retorno “à civilização”37.
um cotidiano de desconhecimento, indiferença e preconceito, que Aos poucos, Carlos vai aprendendo com o pajé sobre as frutas,
os animais, a sabedoria da selva, bem como a visão de um mundo
Munduruku combate com ironia, bom humor e didatismo.
de trocas, de lealdade, mas precisa passar pelos rituais que ensinam
O índio urbano está presente em 80% dos municípios brasi-
os saberes ancestrais ao mesmo tempo em que resgata recordações
leiros e Munduruku oferece uma contribuição importante para
comoventes de sua infância. Carlos vai ficando com muita saudade
subverter os resquícios de romantismo sobre os povos nativos que
de casa, mas uma saudade diferente, de se reencontrar com o seu
ainda prevalecem em nossa cultura e demonstram o quão colonial
melhor lado, menos materialista, mais voltado à comunidade e à fa-
ainda é nossa visão da inter-racialidade brasileira, segundo a qual,
mília, que nunca antes havia pensado em iniciar. O que ele aprende,
para a maioria dos brasileiros, índio é aquele que ainda vive na selva
afinal, é que nenhum império vale a renúncia aos valores humanos,
uma vida pré-cabralina.
da ética, da lealdade. Afinal, “todas as coisas são pequenas”38, e isso
Em Todas as coisas são pequenas (2007), Munduruku faz a
dá ao cotidiano uma dimensão inteiramente nova.
primeira tentativa de um índio brasileiro de inserir-se formalmente
De volta à “civilização”, Carlos age de forma totalmente diversa:
no gênero romanesco ocidental. Em sua análise da obra, Eurídice
enamora-se de sua enfermeira manauara e a leva para São Paulo,
Figueiredo salienta duas características: “uma visão polarizada, em deixa as empresas e cria uma universidade para pessoas de baixa
que as pessoas do mundo civilizado têm objetivos excessivamente renda, onde tenta ensinar “práticas alternativas de convivência entre
materialistas enquanto o mundo indígena está integrado com as o homem e a natureza” e as festas em sua casa são “para celebrar a
forças da natureza” e sua filiação “à longa tradição do romance de vida que nos foi dada com muita alegria”39.
provação, pois o personagem deve passar por uma série de provas;
36 (MUNDURUKU 2010:132)
37 (MUNDURUKU 2010:49)
=10634:daniel-munduruku&catid=12956:cultura&Itemid=168-54k. Acessado em 38 (MUNDURUKU 2010:129)
22/02/2012. 39 (MUNDURUKU 2010:157)
678 Eloína Prati dos Santos Capítulo 17 . Vozes autóctones das Américas 679

Munduruku opõe dois homens, o índio e o branco, subver- sobre o qual, no entanto, paira a imagem de seres distantes, desco-
tendo a lógica romântica do envolvimento afetivo-sexual entre as nhecidos e temidos.
duas raças e as preocupações com a mestiçagem. Nenhum dos dois Entre os personagens de Karaíba, há uma preocupação com a
morre ou subjuga o outro e ambos retomam suas vidas, o branco descendência, com a captura de esposas em outras tribos, evitando
mais modificado pelo encontro do que o índio. Essa “relativização” a consanguinidade, com a preservação da tribo, preparação para
das duas culturas humaniza os personagens indígenas e reverte o a guerra com as outras tribos ou grupos, em ouvir os mais velhos
encontro de culturas em que o homem branco possui uma cultura e sábios, interpretar as previsões místicas e sonhos que retratam
valorizada e a dos índios é ignorada ou combatida. Neste encontro, costumes ancestrais. Também há sinais de uma inescapável con-
quem tem a ensinar é o índio, sua filosofia de respeito à natureza, temporaneidade em suas figuras centrais: Perna Solta é poupado da
de vida comunitária, de desapego aos bens materiais e inessenciais morte por seu defeito físico, enquanto o pai de Potyra permite que
à felicidade. ela torne-se uma guerreira, flexibilidades que poderiam significar
No entanto, a inversão das relações entre brancos e índios, um fim trágico nas comunidades na época. Essa humanização do
civilização e selva, ao preservar a dicotomia entre as cosmogonias, índio na sua flexibilidade, responsabilidade social e afeição a seus
soa didática demais e a transformação radical de Carlos desenha familiares demonstra um cuidado em não mostrar os índios como
uma utopia um tanto fora de lugar no século XXI, principalmente “selvagens” antes da chegada dos europeus.
se tomarmos em conta a vida dos grupos indígenas na maior metró- A história narra a missão de Perna Solta, que se torna um men-
pole brasileira e as dificuldades por que passam aqueles que ainda sageiro porque suas pernas fracas não lhe permitem tornar-se um
tentam preservar seu estilo de vida em áreas mais remotas do país. guerreiro. Encarregado de descobrir as intenções de outros grupos
O que não se pode deixar de ressaltar é o valor da obra ao inserir rivais, ele também percebe estranhos sinais de um perigo maior,
a voz indígena neste gênero que nasceu com a literatura brasileira, ainda desconhecido. Ele sonha que em uma grande planície as ár-
em Basílio da Gama e Alencar, e cresceu sob o ponto de vista do vores falam entre si em uma linguagem que ele não entende bem,
brasileiro branco e urbano. mas ouve, “Eles estão vindo. Estão vindo. Estão...”41. E de Potyra,
No segundo romance, O Karaíba: uma história do pré-Brasil que se torna uma líder guerreira, atribuição tipicamente masculina
(2010), Munduruku retrocede a antes do encontro entre europeus nas culturas indígenas, lembrando as mulheres da tribo da lenda
e ameríndios e narra um universo de histórias ancestrais que pre- das Icamiabas, que lembra muito a das Amazonas. Ela terá a missão
tendem recriar a ignorada era pré-cabralina. Como diz o Karaíba, de casar com um inimigo para unir seus povos e ter um filho que
“é preciso conhecer o passado para entender o presente e sonhar preparará para esta outra guerra.
o futuro” . O livro mergulha na vida de três grupos indígenas que
40
No entanto, os três grupos rivais determinados a lutar uns
vivem segundo suas crenças, costumes e rivalidades em um Brasil contra os outros, acabam convergindo para uma clareira por terem
40 Orelha da obra, redigida por Munduruku. 41 (MUNDURUKU 2010:22)
680 Eloína Prati dos Santos Capítulo 17 . Vozes autóctones das Américas 681

interpretado de forma equivocada a mesma profecia do Karaíba, brasileiros como “selvagens, atrasados, desorganizados, canibais e
o sábio e profeta respeitado por todos. O motivo da reunião dos preguiçosos”45. Essas afirmações a obra rebate ao mostrar os indíge-
líderes é a de anunciar a eles “tempos difíceis”. nas como leais, corajosos, organizados em comunidades que viviam
Com essa previsão, os três grupos comemoraram em conjunto em harmonia com a natureza circundante, respeitadores de seus lí-
a união para lutar contras “os caçadores de almas” e voltaram para deres e de suas tradições, seres humanos que guerreavam, amavam,
suas aldeias para comemorar os casamentos que lhe garantiriam odiavam, tinham inveja, ciúme, compaixão.
este novo futuro. Perna solta e Maraí têm dois casais de filhos, um Percebe-se neste livro novamente uma inversão muito linear da
deles escolhido pelo sábio para ser um Karaíba. Potyra casa com visão popular do indígena, mas o mais notável é a presença constante
Periãntã, e dá à luz seis meninos e duas meninas e a todos ensina a do “fantasma” do europeu na narrativa. Por um lado, explica-se pelo
arte da guerra. O primeiro de todos foi seu escolhido e o nomeou colapso temporal típico da oralidade tribal, em que passado, presen-
Cunhambembe, o garoto que um dia avistou um ponto branco que te e futuro coexistem e se contaminam. Por outro, revela esse índio
surfava sobre a água salgada e gritou, em pânico, “os fantasmas es- contemporâneo, que tenta inserir sua voz na cultura hegemônica
tão chegando, os fantasmas estão chegando” . Cunhambembe foi
42
recriando um tempo anterior ao contato com o europeu e ao mesmo
o líder dos Tupinambás mais temido pelos portugueses e por eles tempo reafirmando a violência do processo colonial, sua irreversibili-
descrito como o mais sanguinário canibal, enquanto sua tribo o via dade e a perpetuação dos equívocos nascidos dos primeiros contatos
como o mais bravo de seus guerreiros . 43
e profundamente disseminados na cultura brasileira contemporânea
A filosofia indígena de cooperação, descrita em Karaíba como o e muitas das reflexões pós-coloniais sobre o assunto.
encontro final dos três grupos na clareira nos remete à Confederação Além do mais, essa tentativa de recriar tempos pré-coloniais
dos Tamoios (1556-1567), por exemplo, liderada pelos Tupinambás me parece rara, se não inédita, na literatura indígena das Américas,
e por um período pelo próprio Cunhambembe, e por certo é uma e embora escrita e em português, busca combinar a narrativa
crítica à exterminação dos povos indígenas. Os portugueses se ins- contemporânea com a mítica das culturas indígenas. A obra de
creveram na história das “crenças terminais” que Vizenor descreve. Munduruku, ao mesmo tempo em que reafirma todo o pesadelo
Em seu breve posfácio, Munduruku deixa a seus leitores a ta- do processo colonial para os indígenas, deixa claro o sonho de
refa de completar a história que “termina quando começa o relato reconhecimento de sua resistência inabalável e de sua significativa
por parte dos invasores” , aqueles que descreveram os indígenas
44
contribuição para uma cultura que os desconhece, a não ser como
figura mítica, tornando invisíveis suas demandas por integração
42 (MUNDURUKU 2010:94)
43 Alguns romances indianistas recentes fazem uma boa revisão dos conceitos
completa ao Brasil contemporâneo.
coloniais enraizados na cultura brasileira. Antonio Torres escreveu uma obra
em que se ocupa de revisar os documentos históricos sobre o líder indígena,
Eliane Potiguara é escritora, poeta, e ativista pelos direitos in-
apropriadamente intitulada Meu querido canibal (2000). Mesmo que Munduruku
não tenha lido o livro, a escolha do nome do filho de Potyra é muito significativa
dígenas há 30 anos, uma das poucas mulheres indígenas com uma
para passar despercebida.
44 (MUNDURUKU 2010:95) 45 (MUNDURUKU 2010:95)
682 Eloína Prati dos Santos Capítulo 17 . Vozes autóctones das Américas 683

educação de nível superior no Brasil e toda sua rica vivência encon- proponha uma utopia em um mundo tão conturbado. A visão
tra-se elaborada em Metade cara, metade máscara (2004), sob várias utópica faz parte da visão poética do mundo, inerente às culturas
formas narrativas — testemunho, poesia, autobiografia, ficção — que ameríndias. Se o resgate de suas culturas já não pode ser feito de
se entrelaçam para recuperar errâncias físicas e intelectuais, a luta forma real, ele nunca deixou de existir nas narrativas tradicionais.
por autoestima e pela manutenção de sua tradição cultural, e pela Sua história pessoal se funde com a biografia de sua avó e
recuperação da identidade e da dignidade da mulher indígena, na também se alonga para cobrir quinhentos anos de impacto coloni-
mesma linha seguida pela maioria das escritoras norte-americanas zador sob a forma de uma narrativa de ficção. O casal Jurupiranga
e canadenses aqui mencionadas. O livro de Potiguara se assemelha e Cunhataí é separado pela chegada dos primeiros colonizadores e
em estrutura a I am woman, de Lee Maracle, por exemplo . 46
vaga separadamente por quinhentos anos, sofrendo e registrando a
As vozes e as experiências que o livro de Potiguara reúne são perda das tradições e o desespero dos povos indígenas.
da tradição oral do seu próprio povo, transmitidas pelas histórias Cunhataí encarna a consciência das mulheres indígenas separa-
de sua avó e através de visitas à sua Paraíba natal. Mas também de das de seus companheiros, escravizados, mortos ou foragidos, deixa-
Kaiapós e de Charruas uruguaios, que ela conheceu através de seu das para trás na pobreza. Jurupiranga escapa de ser escravizado e inicia
esposo, o cantor popular de origem Charrua, Taiguara. uma peregrinação pelo país e pelas Américas, onde ele vê centenas de
O livro é curto, tem 138 páginas, mas cobre quinhentos anos de homens cabisbaixos, trabalhando nos campos de algodão, café, milho,
desastroso contato entre índios e brancos no Brasil. Começa por re- arroz, muitos morrendo. Ele vê as colonizações do estanho e do co-
cuperar a história das primeiras invasões de território indígena em bre, da cana-de-açúcar, da madeira e do látex. Ele vê centenas caírem
tempos modernos, as neocolonizações da mineração, da abertura ante as armas dos “neoamericanos”, ingleses, franceses, espanhóis,
de estradas, das queimadas para pastagens, a consequente migração portugueses e brasileiros. Ele cruza o deserto do Arizona e sucumbe,
indígena, a separação das famílias, a violência, o racismo, a intole- esquece os sons de sua flauta e os ritmos de seu tambor. Ele viaja pelo
rância com as mulheres como as maiores vítimas. A avó de Eliane, passado, pelo presente e pelo futuro. Ele passa fome e cai doente com
conforme ela nos relata, foi uma dessas vítimas e, separada do pai os piores males invasores: a tuberculose, o tifo, a malária, a escarlati-
de seus filhos, vendeu bananas nas ruas da cidade para sustentá-los. na, a loucura, o HIV, a hepatite e também o vírus da insegurança, do
Eliane foi a primeira mulher da família a ser educada e a emergir desespero, da falta de esperança. Ele vê a água do planeta ser contami-
da pobreza, tornando-se uma professora primária apaixonada pelos nada e desperdiçada, a biodiversidade destruída.
conceitos de educação popular de Paulo Freire. Um dia, deitado embaixo de uma árvore e enfraquecido com
Chama a atenção que o “mundo possível” de Potiguara também seus problemas, ele sonha. Ele vê documentos sendo redigidos e
46 Come on, Sister, de minha autoria (47-62), e Writers and storytellers, Lee Maracle
mesas cobertas de mapas. Os homens brancos de roupas escuras
and the consolidation of Indigenous Literatures in Canada and Brazil (p. 63-82),
de Rubelise da Cunha, são artigos que comparam a obra de Potiguara à das
tinham que aceitar as decisões dos índios, porque agora havia tra-
escritoras canadenses Acoose e Maracle. Interfaces Brasil/Canadá. Vol 15, UFF e
Centro Universitário La Salle, 2012.
tados internacionais e itens na constituição trabalhados por séculos
684 Eloína Prati dos Santos Capítulo 17 . Vozes autóctones das Américas 685

pelos povos indígenas. Num piscar de olhos, ele vê a Universidade narrativa ameríndia, onde as histórias dos ancestrais são sagradas
Indígena e muitos jornalistas, antropólogos, historiadores e advoga- e constituem a memória e a identidade do povo que as transmite
dos indígenas contando sua própria história. Ele vê bibliotecas intei- de geração em geração e onde a história individual e a coletiva se
ras cheias de escritos dos índios. Mulheres indígenas são respeitadas fundem no ato de narrar.
quando vão às compras ou quando precisavam de atenção médica, O livro de Potiguara, como de Acoose e outras autoficções
educacional ou legal. Os velhos são venerados por todos. Advogados de mulheres indígenas, desafia classificações: não é um romance,
indígenas haviam conquistado o direito de serem reconhecidos em embora encerre a história de Jurupiranga e Cunhataí; não é auto-
sua ancestralidade e de serem reintegrados ao seu povo. Ele percebe biografia, embora relate leituras, errâncias, aprendizados, ideias,
novas tecnologias sendo usadas por índios jovens que dialogavam memórias da autora que se confundem com os de sua avó e de seu
com os mais velhos sobre suas tradições. alter ego, Cunhataí; não é um livro de poemas, mas há vários de-
Os sonhos são equivalentes a visões sagradas e transformados les entrecortando uma narrativa também poética. Não é um livro
em narrativa tanto por Jurupiranga, em seu relato a Cunhataí, quan- panfletário, mas faz uma defesa intransigente dos direitos indígenas
to por Eliane, em seu relato ficcional. A peregrinação e os sonhos de neste país, das mulheres em especial e dos oprimidos do mundo em
Jurupiranga transformados em narrativa permitem a reinserção da geral, e conclama a mudanças radicais.
história dos conflitos coloniais, pós-coloniais e neocoloniais entre O texto de Potiguara amplia o panorama da situação socio-
ameríndios e euro-americanos, mas também resgatam as partes política dos índios no Brasil para uma dimensão literária onde ele
perdidas ou silenciadas dessas culturas ao listá-las em um livro pu- pode ser resolvido, como em sua proposta das “aldeias de amor”.
blicado na maior cidade brasileira no início de século XXI. Metade cara, metade máscara é ainda pós-canônico, pois insere a
O didatismo e o ativismo, explícitos em alguns trechos do re- voz ameríndia na literatura indianista nacional e desnuda um ponto
lato ficcional também funcionam como uma conexão com as partes de vista alternativo ao dos escritores não indígenas sobre o encontro
autobiográficas do livro, que termina com um belo poema de amor colonial e pós-colonial entre as etnias fundadoras da cultura brasi-
composto por Cunhataí para Jurupiranga. leira, inclusive por seu alinhamento com os movimentos negros. A
Essa parte mais ficcional do livro reflete bem a tradição oral inserção desse tipo de texto em nossos cursos de literatura brasileira
ameríndia em que o tempo é sempre presente e tanto os aconte- amplia o conceito de literatura brasileira e o próprio conceito de
cimentos passados quanto aqueles por vir se fundem em uma só “romance”, bem como a percepção nossa herança cultural.
realidade. O mesmo se dá com a imensa peregrinação geográfica de Como destaca Eurídice Figueiredo, em um capítulo que reúne
Jurupiranga. Vagar por quinhentos anos por todo o território das Potiguara e Conceição Evaristo, “Em vez de uma nação homogênea,
Américas é perfeitamente possível dentro da tradição oral, onde criada pelos intérpretes do Brasil, que excluía negros e indígenas ao
não há barreiras físicas e temporais, e tudo é construído a partir da diluí-los no amálgama chamado ‘Brasil mestiço’, o que vemos agora
própria narração. A qualidade poética do texto também é típica da é a eclosão de vozes que narrativizam outras históras, outras versões
686 Eloína Prati dos Santos Capítulo 17 . Vozes autóctones das Américas 687

sobre a nação”. E acrescenta, “Por conseguinte, aflora um contin- ALLEN, Paula Gunn. 1988. Who is your mother? Red roots of white feminism. In:
Multicultural literacy. Rick Simonson, Scout Walter, Eds. Saint Paul: Greywolf
gente de escritores que reinvidica um pertencimento marcado pela
Press.
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Os escritores indígenas nos oferecem uma oportunidade de re- traditions. Boston: Beacon Press.
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no mundo contemporâneo e o fazem nos termos das ideias e pontos autoficção. Rio de Janeiro: Eduerj.

de vista indígenas conforme eles evoluíram até a atualidade. Este HIGHWAY, Tomson. 1989. Dry lips oughta move to Kapusaking. Calgary: Fifth
House.
ponto de vista deveria ser uma novidade reanimadora para o leitor
______. 2003. Rose. Vancouver: Talon Books.
não indígena, a reintrodução de uma mitologia milenar ignorada
KING, Thomas. 1997. Godzilla vs post-colonial. In: New concepts of Canadian
nos estudos americanos, dominados pelo conhecimento da mito- criticism. Ajay Heble, Palmateer, Donna Pennee, and J.R. Struthers, Orgs.
logia greco-romana e europeia. Em tempos de preocupação com o Ontario: Broodview Press.

futuro do planeta, de preservação do meio ambiente, as literaturas MARACLE, Lee. 1996. I am woman: a Native perspective on sociology and
feminism, Vancoucer: Press Gang.
indígenas são muito atuais por mostrarem preocupações holísticas
MOREIRAS, Alberto. 2001. A exaustão da diferença. A política dos estudos
e ecológicas de convivência entre a humanidade e os demais ele- culturais latino-americanos. Trad. de Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia
mentos, em situação de igualdade de valores essenciais e respon- Renate Gonçalves. Belo Horizonte: EDUFMG.
sabilidade pelo mundo que habitamos. Essa visão, desmantelada e MUNDURUKU, Daniel. 2008. Todas as coisas são pequenas. São Paulo: ARX.
eclipsada pelo processo colonial, ainda circula no continente, viva e ______. 1996; 2009. Histórias de índio. São Paulo: Companhia das Letrinhas; Rio
de Janeiro: Record.
preservada e é sem dúvida enriquecedor trazê-la para competir com
______. 2010. O Karaíba. Uma história do pré-Brasil. Barueri, SP, Manole.
o cânone euro-americano.
MURRAY, Laura. 2003. Review of looking at the words of our people, by Jeannette
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47 (FIGUEIREDO 2013:152)
688 Eloína Prati dos Santos

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da literatura
André Monteiro
Universidade Federal de Juiz de Fora
1

Não se trata de falar do futuro, mas de deixar falar um futuro. Deixar


um futuro ser. Criar dispositivos, não para prendê-lo, prevê-lo em
seus possíveis já pensados. De outro modo, entregar um futuro à
graça e ao mistério de seu próprio futurar. Preparar-se para saber
ouvir os rumores e os rubores de seus gestos únicos que, inces-
santemente, invadem portas, janelas e paredes de todos os nossos
cômodos. Inútil brigar com um futuro que passa, está passando, vai
passar. Rearticulando Rimbaud, um futuro é um outro. Futuros uns.
Útil — à vida, não ao utilitarismo do viver — é criar uma arte, uma
engenharia de conceitos e práticas capazes de, cuidadosamente, aco-
lher futuros, sem a tentação de querer reduzir seus perigos ao mofo
reacionário dos que nunca nasceram, dos que, para muito viverem
na linha do cronos, pouco, ou nada, vivem. Entregar-se ao futuro,
tal como Roberto Corrêa dos Santos revisitando, em sua “arte de
ceder”, o projeto do super-homem de Nietzsche:

o super-homem será
não o mais forte
não o mais duro
não o mais livre
692 André Monteiro Capítulo 18 . Futuros (im)possíveis da (in)disciplina teoria da literatura 693

será final”, o “fim dos tempos”, a “morte da mudança”. Assim, se o cris-


apenas tianismo cria um tempo linear e irreversível, esse tempo apresenta
o extremamente entregue 1
também uma perspectiva messiânica de finitude. Na modernidade
europeia dominante, de outro modo, cria-se um tempo que herda
2 do tempo cristão sua linearidade e sua irreversibilidade, mas não sua
finitude. Movido pela fé no homem, pela fé na emancipação racional
Há muitos modos de inventar futuros. O modo dominante no das subjetividades, pela fé no progresso e na revolução, pela fé, de
Ocidente moderno é aquele que, como nos ensinou Octavio Paz, direita e/ou de esquerda, na possibilidade de se prever e “colonizar
em Os filhos do Barro, se inscreve e se escreve na temporalidade o futuro”, o tempo, na modernidade, não é mais comandado por
paradoxal de uma “tradição da ruptura”. A complexidade temporal uma natureza divina, mas pela dita consciência histórica do homem
de tal tradição, segundo Paz, se distingue do que ele entende por e sua suposta razão crítica, sua suposta subjetividade autônoma.
“tempo cristão” e por “tempo primitivo”. O arquétipo temporal O homem moderno aposta na possibilidade de ser, infinitamente,
das chamadas “sociedades primitivas”, seu modelo de presente e senhor de seu destino, o que Nietzsche chamaria de crença no “livre
de futuro, reside em um passado imemorial. A vida social dessas arbítrio”, crença na relação causa (sujeito) e efeito (atuação de um
sociedades não se sustenta em uma “consciência histórica”, relati- sujeito). Pensar, logo existir. O que ocorre é uma ilusão gerada nas
va a um tempo subordinado a mudanças sucessivas, mas em uma órbitas da ficção gramatical (a lógica “sujeito — verbo — predica-
concepção ritualística do tempo, capaz de fazer, no presente, uma do”), já que, em última instância, “...não existe um tal substrato, não
“repetição rítmica” do passado intemporal. Passado e presente se existe um ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir; o ‘agente’ é uma
conjugam em um tempo circular: “o passado arquetípico escapa ao ficção acrescentada à ação — a ação é tudo. [...] O sujeito (ou, falan-
acidente e à contingência; embora seja tempo, é também a negação do de modo mais popular, a alma) foi até o momento o mais sólido
do tempo: dissolve as contradições entre o que se passou ontem e o artifício de fé sobre a terra...”3 O tempo da subjetividade moderna
que se passa agora...”2 No cristianismo, essa circularidade temporal é é essencialmente negativo. Seus projetos estéticos, políticos e cien-
quebrada. Ocorre uma cisão entre presente, passado e futuro. Cristo tíficos vanguardistas, e/ou vanguardeiros, para “melhorar” o futuro,
veio à Terra apenas uma vez. A partir do imaginário cristão, estabe- se fundam na ideia de que o futuro pode ser previsto e melhorado
lece-se um corte entre um antes, um agora e um depois. O tempo a partir de uma constante superação de um passado imediato: “O
se submete a mudanças sucessivas. Tempo irreversível e linear que novo nos seduz não pela novidade, mas sim por ser diferente; e o
aponta sua seta para o futuro. Mas no tempo cristão ainda há uma diferente é a negação, a faca que divide o tempo em dois: antes e
esperança de se retornar a um “eterno presente”. Trata-se do “juízo agora”4. O tempo moderno é um tempo marcado por sucessivas

1 (Apud PUCHEU 2012:4) 3 (NIETZSCHE 2001:36-37)


2 (PAZ 1984:26) 4 (PAZ 1984:20)
694 André Monteiro Capítulo 18 . Futuros (im)possíveis da (in)disciplina teoria da literatura 695

rupturas, inaugurando então uma paradoxal tradição: uma “tradi- garante boas férias na Indonésia. Pode aparecer por lá, de um modo
ção da ruptura”. A modernidade não empreende apenas uma crítica sutil ou explícito, o tempo de um tsunami. Como surfá-lo?
do passado não moderno, mas também uma crítica de si mesma.
Para ser moderno, é preciso, constantemente, romper com o mo- 4
derno. Críticas à modernidade não são menos modernas do que os
entusiasmos em relação a ela. Ser a favor do “progresso” é ser a favor Grande parte da literatura moderna criou modos de resistência ao
da ruptura, mas ser contra o progresso também o é. Ser contra a tempo teleológico da modernidade dominante. “A literatura mo-
modernidade é também ser moderno. A paixão crítica, em muitas derna é moderna? Sua modernidade é ambígua...”5 Por um lado, os
perspectivas e direções, é, para Octavio Paz, o elemento fundante da escritores modernos aderem, de um modo entusiasta (vale dizer,
tradição da ruptura. O tempo moderno é, sim, um tempo sempre vanguardista), à modernidade, seja em relação ao seu potencial crí-
outro. Mas um pseudo-outro, um outro já calculável, de antemão, tico e revolucionário, seja em relação a suas invenções técnicas. Por
como resultado de uma negação prévia. O tempo teleológico da re- outro lado, em disputa com o racionalismo moderno, desqualificam
volução industrial, traduzido na ideia de que a produção industrial a ontologia de um sujeito pleno, capaz de se planejar e se cumprir
de amanhã irá negar e superar a indústria de ontem, não é menos previamente na linha do tempo. A famosa formulação de Rimbaud,
teleológico do que o tempo da “revolução etapista” desenhada nos “Eu é um outro”6, é de certa forma o nervo que movimenta o ethos
contornos do marxismo ortodoxo e seus determinismos históricos. estético-comportamental da arte moderna. Do ponto de vista mais
específico da linguagem, desde Mallarmé, passando por Rimbaud,
3 Pound até a poesia concreta brasileira, foram produzidas fraturas
na estrutura temporal da sintaxe ordinária das línguas ocidentais.
O problema de se pensar no futuro como algo calculável, como uma Explorando a “verbivocovisualidade” da palavra e suas possibilida-
aventura planejada e teleológica de um novo que se afirma nega- des de mise en page, tais poéticas desconstruíram o tempo analítico
tivamente e se situa em uma confortável linha reta e evolutiva, é e diacrônico da leitura (tempo demandado pela hipotaxe) em prol
que o tempo, em sua intensidade, não é assim: dialeticamente do- de um tempo analógico e suas (im)possíveis sincronias e dessincro-
mesticável. Nas dobras do tempo mensurável, há um tempo outro: nias... Já as ditas teorias da literatura produzidas na modernidade
um outro não esperável, inverossímil. Parafraseando aquele famoso caíram, quase sempre, nas garras de um tempo teleológico de leitura
grafite de maio de 68, o que o tempo intensivo de nós exige, para à medida em que tentavam criar “definições referenciais” para o texto
além do bem e do mal, é que vivamos, não os já possíveis de seus literário. Indo de encontro às críticas intencionalistas do século XIX,
possíveis, mas os impossíveis (os ainda não pensáveis) de seus pos- entre as quais a crítica biográfica de Sainte-Beuve, com seus “retratos
síveis, seus (im)possíveis. Pode-se planejar ganhar muito dinheiro 5 (PAZ 1984:52)
6 RIMBAUD (http://www. scielo. br/scielo. php?pid=S1517-
em Wall Street para obter boas férias na Indonésia. Mas nada disso 106X2006000100011&script=sci_arttext. Consultado em 15/12/2012)
696 André Monteiro Capítulo 18 . Futuros (im)possíveis da (in)disciplina teoria da literatura 697

de artistas”, e a crítica positivista de Taine, os estudos de literatura — e não ao mundo do belo sublime, ou de um estranhamento for-
dominantes no século XX nos ensinaram a ler e conceber a literatura mal/estrutural puramente extraordinário — e que, portanto, ela se
através de dois eixos, muitas vezes, tidos como antagônicos: um pre- faz com e pela política. Por outro lado, nos legou a pobre tentação
ocupado em estabelecer seus “traços distintivos”, tal como se deu nos de relativizar todo e qualquer valor estético e cultural, o que, nem
textualismos do formalismo russo, do new criticism, da estilística e, sempre, mas muitas vezes, tem gerado uma banalização da cultura
em certa medida, do estruturalismo, e um outro interessado em de- e o apagamento de suas diferenças. Nesse caso, “indiferenciar” a
fini-la a partir de suas determinações extrínsecas, como é o caso das literatura não seria um modo de, mais uma vez, impedir os (im)pos-
diversas críticas sociologicamente orientadas. Em ambos os casos, síveis de seus futuros, de condená-la à mesmice de seus possíveis?
guardadas as brilhantes e devidas exceções, submetia-se as singula- E, assim, condenar, também, à mesmice, ou seja, à morte, a própria
ridades dos textos a paradigmas prévios de operadores teóricos. Os teoria da literatura?
futuros (im)possíveis dos textos se tornavam anulados por futuros
meramente possíveis: didatizados a priori. 6

5 Entregar a teoria da literatura a seus futuros (im)possíveis é torná-la


capaz de surfar os (im)possíveis da própria literatura e seus tsuna-
A partir das últimas décadas do século XX, as tendências teórico- mis. Não se trata de fazer da teoria algo que venha a reboque da
-críticas surgidas no campo dos estudos da literatura começaram, literatura, algo que acompanhe a literatura, ou fale sobre a literatura,
progressivamente, a abandonar e atacar as definições referenciais e mas que saiba viver com a literatura. Vivê-la, não mais para defini-la
objetivas da literatura em prol de posturas pragmáticas. A pergunta a priori, mas para problematizar, infinitamente, seus devires, seus
“o que é um texto literário?” passou a ser substituída por uma in- perigos. Vivê-la para pensar a singularidade conceitual e existencial
dagação de natureza mais ampla: “O que é considerado um texto que ela pode e poderá assumir no texto de uma cultura...
literário, quando, em que circunstâncias, por quem e por quê?” 7

De alguma forma, tal indagação dialoga, politicamente, com várias 7


vertentes da estética da recepção, do reader-response criticism, dos
estudos culturais e de vertentes dos chamados pós-modernismos. É necessário, vitalmente necessário, encarar a singularidade da
A dessacralização contemporânea da autonomia de alguns valores literatura como uma ética — um ambiente em movimento com-
literários construídos na alta modernidade (tanto na sua vertente posto por forças em trânsito e em transe, menos propensas a re-
classicizante, como na sua vertente de ruptura) nos despertou, de presentações e descrições visíveis e mais abertas aos afetos da vida,
modo saudável, para o fato de que a literatura pertence a este mundo invisíveis e irrepresentáveis, mas reais, porque nos provocam, como
7 (Ver OLINTO 1993:7-40)
quer Suely Rolnik, o “desassossego” da diferença, gerando “em nós
698 André Monteiro Capítulo 18 . Futuros (im)possíveis da (in)disciplina teoria da literatura 699

estados inéditos, inteiramente estranhos em relação àquilo de que a seu limite, ou seja, a seu desaparecimento”10. Tal preservação, no
é feita a consistência subjetiva de nossa figura”8. A ética nos exige entanto, não constitui a conservação de um lugar estático, mas “um
sempre a alteridade: olhar o fora, pois fora é a vida, com suas velo- lugar de acontecimento na fronteira da linguagem, lugar em que a
cidades e intensidades diversas, não apenas humanas, mas também linguagem, levada a seu limite ‘assintático’, ‘agramatical’, comunica-
microcorpóreas, inclassificáveis, incomensuráveis. A ética exige que -se com seu próprio fora”11. Estar dentro da literatura seria, então,
nos tornemos (que nos deixemos tornar) outros no movimento da paradoxalmente, estar também fora dela, o que é pensado não
vida. Movimento que é sempre um outro. Se a moral é um “sistema apenas para o “ato de escrever” (língua/linguagem), mas também
de julgamento” (valores transcendentes e fixos), a ética é a sua de- como uma política que deseja ultrapassar a própria “identidade
sarticulação. A oposição dos valores (Bem/Mal) é substituída, na especializada” do escritor:
ética, pela diferença qualitativa dos modos de existência. A ética
seria então a afirmação de um “campo de afecções”, para lembrar Para escrever, talvez seja preciso que a língua materna seja odio-
Espinosa/Deleuze, dentro do qual posso deixar agir o meu “poder sa, mas de tal maneira que uma criação sintática nela trace uma
de ser afetado” . A literatura, quando presa no imaginário de seus
9
espécie de língua estrangeira e que a linguagem inteira revele
próprios contornos, constitui o desenho de um vício moral, o vício seu fora, para além de toda sintaxe. Acontece de felicitarem um
da autorrepresentação disciplinar. Vício das ordens fechadas, típico escritor, mas ele bem sabe que está longe de ter atingido o limite
dos enunciados científicos quando situados em um conforto preté- que se propôs e que não para de furtar-se, longe de ter conclu-
rito e nunca lançados ao perigo de seus futuros (im)possíveis. ído seu devir. Escrever é também tornar-se outra coisa que não
escritor.12
8
9
Penso que um modo potente para a literatura encontrar seus futuros
(im)possíveis meios de vida, alimentar sua singularidade e resistir Deleuze não nos propõe um sistema literário, um cânone literário,
às ameaças de morte que lhe são imputadas por alguns fantasmas uma história literária. Muito menos um método investigativo na
contemporâneos, é se entregando à violência do mundo, reexistindo acepção tradicional do termo. Ele nos incita a ler com afeto. Ler,
com ele e não contra ele. É o que parece ser a proposição/provoca- não um tipo especial de texto, mas um modo especial do próprio
ção de Deleuze em seus ensaios, escritos a partir dos anos 70, ao acontecimento da leitura. Se o escritor, do invisível que viu e ouviu
preservar, como observou Lucia Castello Branco, o “nome sagrado da vida, é aquele que “regressa com os olhos vermelhos, com os
da literatura no momento mesmo em que ela é arrastada em direção
10 (BRANCO 2001:148)
8 (ROLNIK 1993:242) 11 (BRANCO 2001:148)
9 (DELEUZE 2002:33) 12 (DELEUZE 1997:14)
700 André Monteiro Capítulo 18 . Futuros (im)possíveis da (in)disciplina teoria da literatura 701

tímpanos perfurados”13, ler deve ser perceber a vida que a fragili- Até que ponto eu havia com isso encontrado a concepção do

dade da linguagem deixou vazar. Assim como “escrever é também “trágico”, o conhecimento definitivo sobre o que é a psicologia da

tornar-se outra coisa que não escritor”, ler-teorizar a literatura tam- tragédia, eu o expressei ainda no Crepúsculo dos Ídolos. “O dizer

bém seria se tornar outra coisa que não um leitor-teórico. O rigor de Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos;

Deleuze — assim como o e Nietzsche — não é o rigor da erudição a vontade de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no

(quantidade de livros supostamente lidos, catalogados, fichados e sacrifício de seus mais elevados tipos — a isto chamei dionisíaco,

fetichizados), mas o rigor da escuta da vida. Ler-escrever-pensar isto entendi como a ponte para a psicologia do poeta trágico. Não

com os pés, podemos afirmar parafraseando Nietzsche em seu para livrar-se do pavor e da compaixão, não para purificar-se de

júbilo de escrita dançante-musical. Ler-escrever-pensar para além um perigoso afeto mediante uma veemente descarga — assim

do livro. Ler-escrever-pensar com o corpo todo, fisiologicamente. o entendeu mal Aristóteles — , mas para, além do pavor e da

Ler-escrever-pensar contra a obesidade espiritual e em atenção à compaixão, ser em si mesmo o eterno prazer do vir a ser — esse

preservação de uma “barriga jovial”14. Ler-escrever-pensar como prazer que traz em si prazer no destruir...” Neste sentido tenho o

quem se deixa habitar pela música, não confundida com seu senti- direito de considerar-me o primeiro filósofo trágico — ou seja,

do exclusivamente especializado, disciplinar, protocolar (a música o mais extremo oposto e antípoda de um filósofo pessimista.16

como gênero artístico passível de classificações históricas, estilísti-


cas, a música dos ditos músicos e/ou críticos musicais). Música, não 10

de um som audível, mas daquilo que faz vibrar a vida sem, no entan-
to, explicá-la, representá-la, torná-la entendível. Trata-se, de outro Deleuze trabalha com muitos exemplos de escritores (Céline,
modo, da música compreendida como uma experiência de trágica Artaud, Lawrence, Kafka, Le Clézio, Lewis Carroll, entre muitos
“beatitude”, para lembrar um termo usado por Henri Birault reto- outros), mas eles nunca são chamados para fechar o movimento de
mado por Clément Rosset em sua leitura da filosofia nietzschiana . 15 suas ideias. Não são exemplos moralizadores. Por isso, não é preciso
Beatitude distinta de uma fé em um outro mundo que, de antemão, ler tudo o que Deleuze diz ter lido para se aproximar da sensibilida-
pensa-se representável, esperável, mas beatitude como afirmação e de de seu pensamento. O que está em jogo aqui não é o objeto lite-
entrega ao infinito movimento das forças instáveis (de construção ratura (ou o objeto da disciplina teoria da literatura), mas um modo
e destruição) que compõem infinitamente a vontade primordial da de ler e agenciar o acontecimento de seu corpo vivo. Muitas leituras
vida. Nietzsche, em Ecce Homo, revendo sua concepção do “trágico” contemporâneas da literatura brasileira têm sido feitas em diálogo
a partir de uma ponte entre O nascimento da tragédia e o Crepúsculo frutífero com os livros de Deleuze. Leituras de Clarice Lispector,
dos ídolos, afirmava: Guimarães Rosa, Waly Salomão, mas Deleuze, provavelmente, nun-
13 (DELEUZE 1997:14) ca leu esses escritores. O que seu pensamento nos incita é libertar
14 (NIETZSCHE 1986:60)
15 (Ver ROSSET 2000) 16 (NIETZSCHE 1986:95)
702 André Monteiro Capítulo 18 . Futuros (im)possíveis da (in)disciplina teoria da literatura 703

referências, territórios, sem, no entanto, banalizar, indiferenciar o 12

movimento dos nossos desejos.


Raduan Nassar, a exemplo, em uma entrevista dada à edição número
11 2 dos Cadernos de Literatura, quando perguntado a respeito do peso
da leitura em suas obras, nos diz: “...a leitura que mais eu procurava
Em “Literatura e difusão secreta”, Roberto Correa dos Santos es- fazer era a do livrão que todos temos diante dos olhos, quero dizer,
creveu: “Pois não se trata do livro quando pensamos a Literatura. a vida acontecendo fora dos livros”19. Não se trata aqui de ser contra
O livro é tão apenas meio, mídia. Nenhum aparelho midiático é os livros, ou outros suportes midiáticos, mas de viver a literatura e
ainda capaz de falar dela, a Literatura. Máquinas midiáticas não a ao mesmo tempo saná-la de sua gordura referencial, sua boca cheia
transmitem, não a entendem, não a incorporam...”17 Está se falando de nomes bonitos (próprios ou impróprios) para vender na livraria,
aí, evidentemente, não de toda e qualquer chamada literatura, mas na sala de aula, na internet, ou em roda de amigos pretensamente
daquela que, traçada no corpo-pensamento-letra, produz energia sábios que ficam brincando de saber quem leu mais que quem.
rara, forma rara e intraduzível. Não a forma positiva, descritível,
analisável, mas uma forma a ser vivida. Viver a forma de uma 13

literatura compreendida como “...arena de ferozes intensidades,


acolhimento de extremos, audácia e sapiência nos modos de re- Viver a literatura seria, então, paradoxalmente, esquecê-la. Esquecer
conhecer, assinalar e construir as quase todas afecções do espírito, o seu lugar comum para recordar o seu futuro inesperado, como no
com suas pulsões altivas, os movimentos abissais da existência a projeto do bom esquecimento de Nietzsche. Esquecer: viver a litera-
indagar-se, sem cessar, em torções de uma corporeidade atingi- tura para além da história da literatura, para além de um conjunto
da...”18 Percebe-se aí a literatura como um ambiente, uma ecologia, de obras respeitáveis, ou conjunto de obras possivelmente marginais
uma vida (lugar de encontro de intensidades). E uma vida não se e supostamente antitéticas a um determinado cânone ocidental.
vende. Os livros são vendáveis, mas a literatura não. E nem todos Esquecer a literatura para fazer de sua história um acontecimento.
os livros são escritos “com literatura”. Pensar assim é fazer política. Esquecê-la justamente para torná-la presente no mundo e prometê-
Uma política não mais para representar a literatura, mas para fazer -la ao risco do impossível, ou seja, fazer viver sua música, os silên-
dela um modo de vida forte, capaz de resistir — desviando-se — à cios ruidosos e consistentes de suas terceiras margens. Suportar tais
mídia capitalista, utilitarista, sempre apta a transformar livros (li- silêncios diante das tentações confortantes de encolhimento e reco-
vros com, ou sem, literatura) em contabilidade, gordura, acúmulo nhecimento provincianos, próprios das camisas de força teóricas e
de capital simbólico. dos rótulos do mercado literário. Ouvir o “rumor da língua”20, como

17 (SANTOS 2002:190) 19 Cadernos de literatura, n. 2. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1996, p. 2.
18 (SANTOS 2002:190) 20 (Ver BARTHES 1988)
704 André Monteiro Capítulo 18 . Futuros (im)possíveis da (in)disciplina teoria da literatura 705

queria Barthes, a “gagueira”21, como queria Deleuze, o “caos tene- lembrando Primo Levi: “A vergonha de ser um homem: haverá
broso no interior da semântica”22, como certamente ouviu Torquato melhor razão para escrever?”23. A literatura é uma sensibilidade
Neto quando dançou e fez dançar as ciladas guardadas nas palavras insuportável para um corpo fechado, seja esse corpo um livro, um
e a poluição de seus imprevisíveis significados. E tudo isso, longe homem, uma sala de aula. Como disse Suely Rolnik, “escrever é
de um ser fetiche de mera rebeldia, é mergulho na profunda tontu- fazer letra para a música do tempo”24. A música é, sempre, o futuro
ra da imanência. Vida na linguagem que constitui o seu fora. Mas (im)possível da literatura e suas (im)possíveis teorias, seu futuro
não um fora visível e representável em uma suposta oposição a um como (in)disciplina: disciplina e, a um só tempo, indisciplina. Lugar
puro dentro. Se há vida dentro da literatura, esse dentro nada mais de encontro, lugar de perdição...
é senão “passagens de vida” que não cessam de acontecer no corpo
aberto do texto. Dentro-fora, fora-dentro: suplementos, passagens... 15

14 Uma disciplina, seja ela qual for, entendida simultaneamente como


ideia e como prática, só é favorável à vida quando percebida em sua
Não há modelo para se entregar aos devires e escapar da represen- singularidade, e não em sua suposta identidade. Percebida como
tação. Assim como não pode haver exemplo para se construir um diferença. Mas uma diferença impura, plural, porosa, prosaica.
viver. Por isso, escrever com vida não é escrever de modo autoral, Ninguém duvida, por exemplo, que escrever um poema é diferente
pessoal, familiar. Ao contrário, é atingir um lugar para além de pai e de tourear. Há, obviamente, entre essas duas atividades disciplina-
mãe, para além da segurança de uma origem, de um rosto já sabido. res, nítidas diferenças relativas a seus suportes, seus materiais, suas
Trata-se de uma perdição identitária, uma linha de fuga, aberta por táticas e estratégias de treino, suas metodologias de aprendizado, etc.
um delírio que não se confunde com doença, mas com uma saúde Mas o que pode acontecer a alguém que, propondo-se a escrever um
em movimento, capaz de tratar a vida com vida. No fundo, tratar poema, e no curso mesmo de sua escrita, de algum modo, é tocado
de uma grande doença chamada homem. O homem ocidental e sua pelo ambiente de uma tourada (algo que, como é sabido, já se pas-
sou com alguns poetas espanhóis que se deixaram contaminar pelas
moral genealogizada por Nietzsche: aquela que trocou o devir do
“corridas de toro”)? Nesse caso, não se estaria, de muitos modos,
cosmos, a imanência corpórea, pelo “bem” de seu SER supostamente
toureando a pena? A pena de um poeta toureiro a lutar, bailar com
inalterável, seja esse ser a sua ideia, o seu Deus, ou, modernamente
a ginga de palavras-touro? Não se poderia, nesse caso, inclusive,
falando, o seu EU. Para Deleuze, o ser homem seria o interruptor
estudar a poesia da palavra com a poesia da tourada? João Cabral,
dos devires. Mas escrever, com literatura, seria desbloquear e tornar
poeta, estudante de poesia, amante de tourada, amante de poesia,
fluidos os devires que no homem estão se ressentindo. Diz Deleuze,
estudante de tourada, escrevia, de Barcelona, a Manuel Bandeira,
21 (Ver DELEUZE 1997) 23 (DELEUZE 1997:11)
22 (Ver NETO 1982) 24 (ROLNIK 1993:242)
706 André Monteiro Capítulo 18 . Futuros (im)possíveis da (in)disciplina teoria da literatura 707

em 1947, ocasião da morte de Manolete, lendário toureiro morto poesia é tudo: jogo, raiva, geometria, assombro, maldição e pesade-
em ofício por um touro miúra: “...era [Manolete] um camarada fa- lo, mas nunca cartola, diploma e beca”26. Digo que a provocação de
buloso: vi-o algumas vezes aqui em Barcelona e imaginei que era Oswald é velha, e ainda nova, porque, para além e aquém de qual-
Paul Valéry toureando...”25 O que passa entre a economia dos gestos quer chamada, de modo apropriado ou não, “geração de 45”, sempre
de Manolete, o olhar aguçado de Cabral e a poética de Valéry? O houve, sempre há, entre nós, poetas, ou ditos poetas, que, em termos
que passa, o que pode passar entre a disciplina de um poeta e a dis- oswaldianos, confundem “sisudez com profundidade”. Me poupo ao
ciplina de um toureiro, de um geógrafo, de um jogador de futebol, trabalho de citar nomes. Dar nome aos bois é, quase sempre, dar
de um pipoqueiro, de um guerrilheiro urbano, de um cozinheiro, de corda, muita corda, aos bois. Prefiro, assim, evocar apenas os sinto-
um engenheiro...? Haveria alguma possibilidade de se fazer poesia mas. Lembrar que, na década de 90, nos soava, e ainda hoje nos soa,
sem se deixar contaminar por qualquer outra prática de saber que muito viva a “Novelha cozinha poética” de Waly Salomão, poema
não a de uma suposta prática estritamente poética? Tudo não quer criado em diálogo humorado com a verve antropofágica e, ao mes-
passar pela poesia? Toda vida viva não quer passar pela vida? Toda mo tempo, com a disciplina gastronômica, resultando em irônica e
vida viva não quer sofrer vida? Conviver (“Co-viver”) com vida, ácida receita poético-culinária:
viver junto? E a vida não é sempre outra? O poeta que compreende
sua disciplina poética, não como uma diferença aberta à passagem Pegue uma fatia de Theodor Adorno
de outros corpos, de outras singularidades disciplinares, mas como Adicione uma posta de Paul Celan
uma diferença identitária, ensimesmada nos contornos estojados de Limpe antes os laivos de forno crematório
suas especiarias e perfumarias e mais valias, pode querer outra coisa Até torná-la magra-enigmática
senão se esconder do correr da vida? Mas poetas que se escondem Cozinhe em banho-maria
da vida podem mesmo evitá-la? Ou podem apenas ressenti-la, cul- Fogo bem baixo
pá-la de sua abundância, quando ela nos convida, e ela sempre nos E depois leve ao Departamento de Letras
convida, a viver sua irredutível multiplicidade? Ou podem apenas, Para o Douto professor Dourar27
quando a vida vem, e ela sempre vem, trancar a própria pena, en-
vergonhá-la no cofre mofado de suas referências analgésicas? Poetas 16
que se escondem da vida se escondem apenas de vidas inusitadas
que podem ocorrer ao correr da pena? Ou se escondem, também, Não desejo, aqui, em diálogo com Oswald e Waly, estabelecer uma
da própria poesia? Ou seja, da própria disciplina poética, em seu dicotomia sectária e purista entre uma disciplina poética viva e
sentido mais forte, se concordamos com a velha e, ainda nova, todo e qualquer departamento de letras, toda e qualquer beca, todo
provocação de Oswald de Andrade dirigida à “solenidade de última e qualquer diploma, todo e qualquer douto professor, de letras ou
instância” de alguns poetas da década de 40: “E parecem ignorar que
26 (ANDRADE 2011:174)
25 (MELO NETO 2001:84) 27 (SALOMÃO 2000:21)
708 André Monteiro Capítulo 18 . Futuros (im)possíveis da (in)disciplina teoria da literatura 709

não, todo e qualquer Adorno, todo e qualquer Paul Celan... Muito necessariamente uma inter (ou trans) disciplina? Há mais de 40
menos, extrair da poesia sua dimensão enigmática. Impotente não é anos que o globo acadêmico sustenta, com euforia e mil teorias, a
o enigma. A vida é um enigma. Impotente é o enigma pelo enigma bandeira da interdisciplinaridade. Nesse caso, vale, também, inda-
(o enigma sem enigma). Como, também, não são, necessariamente, gar de que modo a interdisciplinaridade é útil à vida e de que modo
impotentes a beca, o diploma, a referência teórica. Impotente é a ela não é. Alguém que se especializa em matemática, física, filosofia,
beca pela beca, o diploma pelo diploma, a referência pela referência, antropologia, literatura, geografia e biologia pode ser apenas um
etc. Impotente é uma “poesia” feita em fogo baixo, cozinhada sem multiplicador de disciplinas, em seu sentido mais fraco. Pode ser
perigo, fabricada sob encomenda para atender a uma disciplina apenas um multiplicador de sua própria escravidão, um multiplica-
poética já pensada, já poetizada, já teorizada. Uma “poesia”, para dor ensimesmado de corcundas, já que, como diria Nietzsche, “todo
ficarmos de novo com Oswald, “...oculta nos cipós maliciosos da especialista tem sua corcunda”30. Pode-se ter muitas especialidades
sabedoria. Nas lianas da saudade universitária”28. O que Montaigne disciplinares sem que nada se crie com elas, a não ser uma brutal in-
dizia no século XVI (algo que, posteriormente, e de muitos modos, digestão alimentar. Roland Barthes, no início dos anos 70, colocava
será retomado por Nietzsche no século XIX) ainda nos é muito
seu brilhante dedo na ferida da moda interdisciplinar:
contemporâneo:

O interdisciplinar, de que tanto se fala, não está em confrontar


Indagamos sempre se o indivíduo sabe grego e latim, se escreve
disciplinas já constituídas das quais, na realidade, nenhuma con-
em verso ou prosa, mas perguntar se se tornou melhor e se seu
sente em abandonar-se. Para se fazer interdisciplinaridade, não
espírito se desenvolveu — o que de fato importa — não nos pas-
basta tomar um ‘assunto’ (um tema) e convocar em torno duas ou
sa pela mente. Cumpre, entretanto, indagar quem sabe melhor
três ciências. A interdisciplinaridade consiste em criar um objeto
e não quem sabe mais. [...] Cuidamos das opiniões e do saber
novo que não pertença a ninguém. O texto é, creio eu, um desses
alheios e pronto; é preciso torná-los nossos. Que adianta ter a
objetos.31
barriga cheia de comida se não a digerimos?” 29

18
17

O texto, como se sabe, se difere radicalmente, para Barthes, da noção


Creio que um discípulo potente de uma disciplina, de qualquer
de obra. Esta se deixa mensurar, classificar, compreender a partir de
disciplina, persegue e se deixa perseguir e habitar pelo motor de
uma possível origem, de uma possível identidade, de um possível telos.
suas margens, de suas fronteiras ínfimas e infinitas, por seus futuros
A obra se inscreve e se escreve, portanto, na lógica do produto. A lógica
(im)possíveis... Toda disciplina potente, assim desenhada, não seria
28 (ANDRADE 1995:45) 30 (NIETZSCHE 2001:268)
29 (MONTAIGNE 2000:140) 31 (BARTHES 1988:99)
710 André Monteiro Capítulo 18 . Futuros (im)possíveis da (in)disciplina teoria da literatura 711

metodológica e epistemológica do texto consiste em tratar modos de necessariamente e paradoxalmente, se faz indisciplina. Chamo
pesquisar-ler-escrever-aprender-ensinar-pensar como puros proces- indisciplina a capacidade que uma disciplina possui de se livrar da
sos, puras travessias. O texto é um objeto sem objetividade, sem identi- própria corcunda, tornando-se, conosco, dançarina. Tornando-se
dade. É um quase-objeto. Ele se produz em seu próprio inacabamento, uma disciplina que nos convida a fazer dela nosso dever de casa
nas fissuras crescentes de seu autoabandono. Ele nos convida a ouvir e (nosso treino diário com ela, nosso saber habitá-la) e, simultanea-
fazer ouvir o desejo. E o desejo, nesse caso, é sempre um desejo demo- mente, nosso devir de casa (nossa necessidade de abrir suas janelas,
níaco pelo outro, no outro, com o outro, infinito-outro que nunca se para que por elas possam entrar todos os possíveis e impossíveis
curva ao esperável de um mesmo, já que, em seu plural — um plural, insetos, como diria o cancioneiro popular). Tornando-se, a um só
diz Barthes, “irredutível (e não apenas aceitável)” — o texto é sempre
32
tempo, disciplina-indisciplina: corpo-singularidade, corpo-plura-
legião: intertexto, entretexto, transtexto. O texto é, simultaneamente, lidade. Só não vale, nesse caso, confundir indisciplina com falta
dentro e fora de si mesmo. Negativo e afirmativo, ele se abandona, se de rigor, com desleixo, com descuido suicida. O aluno suicida que
esvazia, justamente para ganhar vida, conectando e multiplicando, in- bota fogo na escola, e dela é expulso, é tão impotente quanto o
cessantemente, novas singularidades, novas disciplinaridades, interen- aluno CDF, puramente obediente às leis institucionais. Ambos
tretransdisciplinaridades. Por isso, o texto é, para Barthes, paradoxal. impedem a entrada da vida na disciplina escolar. O primeiro por-
Sua força política consiste em criar um desvio da doxa (uma para-doxa que, como bode expiatório do autoritarismo, está fora de órbita. O
na doxa), um modo de arejar os vícios e os estereótipos aprisionadores segundo, porque está dentro demais, corcunda e pesado demais. A
de vidas. Um modo potente de atravessar e abandonar uma moral dis- questão, falava Deleuze em uma entrevista, “...é justamente como
ciplinar, seu constante exercício de vigiar e punir (a lei do pai, a lei da fazer o movimento, como perfurar a parede para não dar mais ca-
propriedade, a lei da finalidade). O texto, em sua condição paradoxal, beçadas”33. Transgredir a estrutura por dentro dela mesma. Criar
libera, em nós, tudo aquilo que, conosco, quer criar vida. Um encontro um agenciamento vivo capaz de fazer falar o dentro no fora e o
interdisciplinar potente, em termos barthesianos, é aquele que faz do fora no dentro. A relação forte entre disciplina e indisciplina se
poeta mesmo um poeta outro, do toureiro mesmo um toureiro outro. concretiza em pegadas jazzísticas: uma base rítmica, harmônica e
Um outro que não pertence a nenhum termo, pois se constitui como melódica bem estruturada e bem estudada, provisoriamente inva-
passagem desejante... riável, excitando, suportando e atualizando, ao invés de impedir, a
variação erótica e selvagem do improviso, do “instante-já”, como
19 diria Clarice Lispector34, ou do instante-jazz, se quisermos fazer
jazz com as palavras. A indisciplina é o inusitado e saudável futuro
Se toda disciplina potente — vale lembrar, favorável à vida jazzístico de toda disciplina.
— entra em um “textual” jogo interdisciplinar, ela, também,
33 (DELEUZE 1992:172)
32 (BARTHES 1988:74) 34 (LISPECTOR 1998:9)
712 André Monteiro Capítulo 18 . Futuros (im)possíveis da (in)disciplina teoria da literatura 713

20 demanda revelação. Tudo o que não tem palavra pede a palavra.


As máscaras formadas nunca encontram seu fim. A profundidade
Os futuros (im)possíveis da (in)disciplina chamada teoria da das forças, produtoras incansáveis de puras diferenças, não as dei-
literatura serão aqueles capazes de aprender as singularidades xa dormir em paz. Estão a todo tempo possibilitando (formando/
de literaturas fortes. Isto, é, de literaturas singularmente (in) deformando) novas usinas de máscaras, tal como se percebe na
disciplinadas. Literaturas fortes estão propensas a desidiotizar trágica concepção nietzscheana de “inspiração” associada por ele
o verbo, torná-lo frágil à tragédia musical da desrazão diabólica à experiência da “revelação”:
do viver. Rearticulando dois conceitos de Deleuze e Guattari , 35

pode-se dizer que as literaturas fortes, tal como aqui entendidas, A noção de revelação, no sentido de que subitamente, com
sempre tratam de favorecer, de muitos modos, a comunhão do inefável certeza e sutileza, algo se torna visível, audível, algo que
“plano de imanência” (ou plano de intensidade) da vida com o comove e transtorna no mais fundo, descreve o estado [de inspi-
“plano de organização” da linguagem. Plano de imanência: plano ração] de fato. [...] Parece realmente, pra lembrar uma palavra de
escuro e pré-filosófico, pré-conceitual, plano pleno de substân- Zaratustra, como se as coisas mesmas se acercassem e se ofere-
cias não formadas, plano invisível, molecular, corte do caos que cessem como símbolos (— “aqui todas as coisas vêm afagantes ao
se realiza a partir de encontros e desencontros de fluxos e ondas encontro da tua palavra, e te lisonjeiam: pois querem cavalgar no
de partículas a produzir movimentos e repousos, velocidades e teu dorso. Em cada símbolo cavalgas aqui até cada verdade. Aqui
lentidões, acontecimentos destituídos de contorno, potência de se abrem para ti as palavras e arcas de palavras de todo o ser; todo
um Uno-Todo como um deserto movente e infinito. O plano de ser quer vir a ser palavra, todo o vir a ser quer contigo aprender a
organização, de outro modo, é o plano das rostidades, dos contor- falar” — ). Esta é a minha experiência da inspiração.36
nos das coisas e dos homens, lugar das máscaras, do que é visível,
ouvível, codificável, lugar das produções das subjetividades, das 21
individuações corpóreas, das classificações de gênero, das consti-
tuições identitárias, das segmentações disciplinares, das criações O que quer, o que pode uma literatura forte? Ela deseja guardar,
conceituais, das estruturas e das formas linguísticas. Esses dois no plano de organização das palavras, o plano de imanência sem
planos (plano de organização e plano de imanência) não existem palavras. Ela deseja poder guardar a vida quanto mais vida, quando
em mundos separados. São, inevitavelmente, suplementares. O mais vida, onde mais vida... “Guardar”, como parece querer o poema
corpo profundo, líquido e informe da imanência infinita está homônimo assinado por Antonio Cicero, não como sinônimo de
a todo tempo pedindo passagem nos contornos das finitudes trancar ou esconder, mas como capacidade de abrigar a vida em sua
organizadas. Toda força necessita de forma. Tudo que é escuro passagem e passar com ela:
35 Ver, por exemplo, DELEUZE; GUATTARI (1997) 36 (NIETZSCHE 1986:126)
714 André Monteiro Capítulo 18 . Futuros (im)possíveis da (in)disciplina teoria da literatura 715

Por isso melhor se guarda um voo de um pássaro intelectuais da polis, sempre prontos a opinar sobre tudo e todos. Mas
Do que um pássaro sem voos. há também, do outro lado da mesma moeda, os que escrevem para a
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, incompreensão prévia. Formalismos à mão cheia, recusam-se a falar
por isso se declara e declama um poema: com a vida e tratam a palavra como uma jogatina de signos vazios,
Para guardá-lo: feita para um rebanho de mal iniciados: escritores e teóricos viciados
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda: no tedioso recreio da tecnocracia intelectual...
Guarde o que quer que guarde um poema:
Por isso o lance do poema: 23
Por guardar-se o que se quer guardar. 37

Uma teoria da literatura, quando acolhe as singularidades de lite-


22 raturas fortes, promove, também, o fortalecimento do futuro (im)
possível de sua própria singularidade. Acolher não é seguir, nem en-
Há escritores que teimam em não reconhecer que a vida, na palavra, tender, escrituras fortes. É criar com elas um modo de pensamento,
é também (e a todo instante) escura. São eles os escritores fracos. um modo de sensibilidade através da qual se produza uma saudável
Escritores fracos não assumem a vida, só reclamam dela, como pre- e intensiva “indiscernibilidade”38, como quer Alberto Pucheu, entre
tensos deuses romanticamente incompreendidos, e tentam explicá-la o teórico e o poético. Com Deleuze e Guattari, aprendemos que
sem ouvir os “toques do diabo”... Escritores fracos querem programar a arte pensa e que a filosofia produz e é produzida por sensações,
um texto tal como turistas novos ricos programam, cartesianamen- afecções. Claro, não estamos falando de toda e qualquer arte e fi-
te, seu roteiro de férias. Aí ocorre uma alteração no pacote e eles losofia, tão somente assim batizadas. Mas daquelas que se abrem
balançam suas joias cansadas e tristes nos aeroportos. Não foram para a violência produtiva do que, em nós, se vive e se pensa. Os
educados para serem dignos dos acontecimentos. Escritores fracos conceitos não são inimigos do corpo. Como se lê naquela passagem
não transam com a vida, embora a vida penetre, de qualquer ma- famosa dos Diálogos, “os conceitos são exatamente como sons, cores
neira, em seus corpos anestesiados. Transam com a palavra como se ou imagens, são intensidades que lhes convêm ou não, que passam
ela fosse uma boneca inflável. Há muitos tipos de escritores fracos. ou não passam. Pop filosofia”39. Nada de banalizações, mas uma tá-
Há, por exemplo, os que escrevem para serem estudados. Estes são tica política para desarticular os discursos disciplinares duros. Um
os escritores que gozam com a receita de divindades alheias. Gozam toque político para afirmar que um conceito nunca está pronto. Um
com a “Novelha cozinha poética”, diria Waly Salomão. Ou seja, go- conceito sempre requer novas intervenções, afecções, explicações,
zam sem gozar, mas sempre sabem falar sobre o que escrevem e o que novas sensações e até novos conceitos. Não exegeses exaustivas que
escreverão. São ótimos entrevistadores, ótimos entrevistados, ótimos
38 (PUCHEU 2007:11-26)
37 (CICERO 2012:11) 39 (DELEUZE; PARNET 1998:12)
716 André Monteiro Capítulo 18 . Futuros (im)possíveis da (in)disciplina teoria da literatura 717

os representem. Filosofia para não filósofos. Teoria para não teóri- nosso contemporâneo. Muitos dos ditos antigos gregos são e serão
cos. Pop teoria. Teoria prática. nossos contemporâneos...

24 25

Os futuros (im)possíveis e (in)disciplinados das literaturas e da É preciso aprender a fazer com que os futuros (im)possíveis do vi-
teorias da literatura serão sempre os mais contemporâneos de uma ver não se envergonhem em nós, não desistam de nós, não morram
época. Os mais contemporâneos de uma época são justamente os em nós. Ou, ainda, nos façam sucumbir de vez, virar farrapo, virar
mais extemporâneos de toda e qualquer época. Não porque fogem molécula diante da enorme onda de sua grandeza. A vida nos exige
à época, mas porque dela incorporam e assumem o que qualquer uma (in)disciplina de guerra. Não a guerra do ressentimento, mas a
“retrato de época”, ou pensável “estilo de época”, seria incapaz de guerra do esquecimento. Não adianta brigar com a vida. É preciso
revelar. Escritos e pensamentos do século X a. C., ou do século ir com ela e esquecê-la. Esquecer para lembrar o que ainda não é.
XXI d. C., não possuem, em suas datas explícitas ou mensuráveis, Esquecer como a criança que surfa esquece o caldo da última onda
nenhuma garantia de validade vital. Nenhuma contemporaneidade
para pegar uma onda nova. Esquecer para não esquecer, como não
lhes pode ser assegurada de antemão. Pensamentos e escritos de
esquecia Nietzsche, do lema de Píndaro que ele tanto amava: “torna-
2013 podem apenas traduzir a morte mais morta de uma possível
-te aquilo que és”. E o que és, o que é, o que somos senão o próprio
época do hoje, a morte do que nunca viveu, nunca viverá. Podem
“tornar”? Ou melhor: um próprio e sempre único tornar-se povo-
apenas compor um bom papel (um papel atualizado, não contem-
ado pelo eterno tornar-se da vida. O que distingue uma disciplina
porâneo) na fatura de uma estante de época já dita, já ditada: uma
forte de outra disciplina forte (assim como uma pessoa de outra
narrativa de época, com seus nomes, seus rótulos, suas espécies e
pessoa, uma música de outra música, uma teoria de outra teoria,
subespécies de modos ditos contemporâneos. Escritos e pensamen-
uma literatura de outra literatura...) é a singularidade de seu próprio
tos que hoje nos são extemporâneos, de qualquer tempo, língua,
e necessário tornar-se...
corpo, ou lugar, são os únicos que valem a pena e a vida: valem
o que se tornam e, necessariamente, se tornam: nossos intensos e
imensos contemporâneos, porque resistem (“re-existem”) a todos Referências
os sonhos de uma razão disciplinar autoritária, apta a estancar a
vida, explicitá-la a qualquer preço, a qualquer tempo, a qualquer ANDRADE, Oswald de. 1995. Estética e política. São Paulo: Globo.
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Título Repensando a Teoria Literária Contemporânea
Organizador Prof. João Sedycias
Capa e projeto gráfico Diogo Cesar Fernandes
Revisão Flávio Emmanuel Pereira Gonzalez
Padronização de citações e referências Prof. Anco Márcio Tenório Vieira

formato 16,0 x 23,0 cm


fontes Minion Pro, Gotham Family
papel Pólen Soft 80 g/m2 (miolo)
Triplex 250 g/m2 (capa)
tiragem 300 exemplares — agosto 2015
Impressão e Acabamento Oficina Gráfica da UFPE

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