Você está na página 1de 12

FILMES EM PRIMEIRA PESSOA

ALGUMAS PROPOSIÇÕES SOBRE A AUTOINSCRIÇÃO

Michael Renov *
tradução de Gabriel Tonelo

A maioria dos autores teóricos e mesmo dos


espectadores casuais concordaria que se trata de
uma época empolgante para o documentário
– medido em termos de atenção popular,
legitimidade institucional ou produção acadêmica
– e para aqueles de nós interessados no projeto
do documentário. Por “projeto do documentário”
reiro-me aqui não à ortodoxia decidida, formal ou
retórica, como a associada aos griersonianos dos
anos 1930 ou aos devotos do Cinema Direto dos
anos 1960, mas à ampla e maleável comunidade
mundial de interesse que apoia e sustenta a cultura
do documentário.
Agora, cultura, de acordo com o falecido
Raymond Williams, é uma das duas ou três
palavras mais complicadas do idioma inglês (1983:
87). Desenvolvendo-se a partir de seus usos mais
antigos como um substantivo de processo (cuidar
de algo, colheitas ou animais), a palavra começou

* Agradecemos a Michael Renov a cessão do presente texto, publicado


originalmente em Rethinking Documentary. New Perspectives, New
Practices, organizado por homas Austin e Wilma de Jong (Maidenhead:
Open University Press, 2008).
31
a referir-se, no meio do século XIX, a processos mais abstratos, muito diretos (muito simplistas e insuicientemente irônicos)
eventualmente implicando tanto a produção material quanto ou, o que talvez seja mais condenatório para os pesquisadores
práticas signiicantes. Williams escreve sobre as ricas fontes do documentário, não diretos o suiciente (muito divergentes
etimológicas da palavra, como do substantivo em latim culter das profundas alegações sobre a verdade e dos ativismos do
– a relha do arado, aquela que cultiva a terra e prepara o documentário engajado).
caminho para o semeado – e assim se refere a uma espécie
de agricultura, como também do verbo colere e seus vários Duvido que essa última expectativa (não serem
signiicados – cultivar, proteger e honrar com adoração. A suicientemente sérios ou políticos) aplica-se aos correlatos
discussão de Williams apoia meu próprio senso expandido literários desses ilmes, que parecem não portar tal “fardo da
de cultura do documentário no momento atual, referindo-se representação” e, além disso, fazem parte de uma genealogia
a uma série de práticas tanto materiais quanto simbólicas e que se estende desde Santo Agostinho, no inal do século V.
também a um conjunto de personagens cujo cultivo, proteção Seria necessária uma longa digressão para que se justiique o
e honraria ao projeto documentário facilitou sua reinvenção. peso dessa expectativa por seriedade política, ou os caminhos
pelos quais o documentário tornou-se herdeiro do “discurso
Mas minha preocupação, aqui, é com a autobiograia, sóbrio” (tal digressão visaria discursar sobre o papel do
um domínio que produziu e sustentou uma cultura própria apoio do Estado – na União Soviética, Grã-Bretanha e em
com raízes na literatura, na pintura e na performance. outros lugares – nas primeiras décadas da emergência do
A autobiograia fílmica permanece pouco discutida até documentário, ou sua centralidade em relação a movimentos
o momento na academia, apesar de que a situação está políticos de oposição na Europa e nos EUA nos anos 1930
começando a se modiicar.1 Minha própria fascinação de vinte como também na América Latina nos anos 1960). Desejarei
anos pela autobiograia pode ter algo a ver com os paradoxos voltar a essa questão – a acusação de que obras autobiográicas
e contradições que surgem quando os mundos (de fato, as evitam ou elidem a política – porque acho que respondendo a
culturas) do ilme documentário e da autobiograia literária essa acusação descobriremos alguns dos fundamentos do vigor
colidem. Deixem-me explicar. Quando falei sobre as ideias e da contemporaneidade do cinema em primeira pessoa.
contidas em meu livro, he Subject of Documentary (2004),
volta e meia era desaiado por aqueles que achavam que os ilmes Por enquanto, gostaria de oferecer minha primeira
sobre os quais eu escrevia eram autoabsortos, excessivamente proposição sobre a autoinscrição fílmica, pois ela tem a ver
emocionalizados e repletos das platitudes da política identitária com as relações mais amplas entre as práticas autobiográicas,
dos anos 1990. Os ilmes costumavam ser considerados ou como discutido na bibliograia analítica, e o projeto do
documentário. Ela pode ajudar a explicar por que ao menos
alguns pesquisadores do documentário têm sido lentos para
aceitar o impulso autobiográico dentro da tradição da não
1 Aqui, estou pensando na série de conferências e exibições intitulada “First icção. Eu colocaria desta forma: a própria ideia de autobiograia
Person Film”, organizada por Alisa Lebow, Tony Dowmunt e outros na
Grã-Bretanha nos últimos anos. O excelente livro de Catherine Russell desaia a PRÓPRIA IDEIA de documentário. Os estudos do
Experimental Ethnography conclui com uma fértil investigação sobre a documentário são animados (ou, talvez, importunados) por
“autoetnograia”, intitulada por ela como “jornadas do ser” (1999: 275-
314). Finalmente, um número crescente de sessões nas conferências do debates a respeito do potencial do cinema – através do recurso
Society for Cinema and Media Studies e do Visible Evidence foram aos “fatos” e da disposição lógica de argumentos – em produzir
dedicadas, nos últimos anos, à investigação de obras autobiográicas.
32 33
algo como um “conhecimento veriicável”. Alguns veem isso ele soubesse e entendesse melhor do que eu entendo o assunto
como a glória epistemológica do discurso do documentário. de que me encarreguei... nele, sou o homem mais culto que
O cinema de não icção, entendido dessa forma (como uma existe” [1948: 611]). Mesmo assim, ele airma a contingência e
organização de fatos e argumentos na forma fílmica), pode a mutabilidade da verdade produzida no relato de si:
tornar-se um suporte institucional aos padrões da reportagem
jornalística, disputa legal ou historiograia. O documentário é, Não retrato o ser: retrato a passagem... Minha
portanto, julgado capaz de “cumprir o seu papel”, fornecendo história necessita se ajustar ao momento. Em pouco
“evidência visível” e produzindo conhecimento – sendo que tempo posso mudar, não apenas pela fortuna,
essa aptidão é levada a sério. mas também por intenção. Este é um registro de
acontecimentos diversos e mutáveis e de ideias
Aqueles que estudam autobiograia – e aqui é mais provável irresolutas e, se acontecer, contraditórias: ou porque eu
que encontremos pesquisadores de literatura em vez de ilósofos seja um eu diferente, ou porque capte meus assuntos
ou historiadores – parecem menos ligados ao factual, tendo em diferentes circunstâncias e aspectos. Seja como
notado há muito tempo o caráter construído e incompleto de for, talvez volta e meia me contradiga; mas a verdade,
toda autorrepresentação. A maioria dos teóricos da literatura como disse Dêmades, esta não contradigo (1948: 611).
levaram a sério as visões do ensaísta do inal do século
XVI, Michel de Montaigne, que adotou a arbitrariedade e a Dados tais preceitos montaigneanos, seria justo dizer que
indeterminação na escrita de seu Livro do Eu. Apesar de sua as fontes e os alicerces ilosóicos da cultura da autobiograia
dedicação por muitos anos e de três volumes com tópicos que são bastante divergentes daqueles do documentarismo
vão desde a amizade ao canibalismo ou até mesmo aos versos dominante que caracterizei (em um capítulo de he Subject
de Virgílio, os objetivos mais consistentes de Montaigne eram of Documentary intitulado “Documentary disavowals and the
testar sua concepção de si próprio e analisar uma vida vivida. digital”) como sendo agressivamente modernista, dedicado à
Montaigne manteve-se cético sobre ver o conhecimento como persuasão e à convicção segura.
um objetivo totalizante:
Uma compreensão das relações entre o cinema documentário
e a cultura da autobiograia requer dedicar um olhar
Pego o primeiro assunto que a sorte me oferece.
aprofundado a tópicos históricos e tecnológicos. Pois, no que
Eles me são igualmente bons. E nunca planejo
desenvolvê-los completamente. Pois não vejo o todo diz respeito à autobiograia, grandes mudanças ocorrem depois
de coisa alguma, tampouco o veem aqueles que nos do advento da fotograia. A indicialidade das artes da câmera
prometem mostrá-lo... Cada partícula, cada ocupação traz consigo uma maior airmação do real se comparado a um
de um homem porta-o em si própria e o revela assim ensaio de Montaigne ou um autorretrato de Rembrandt. Se,
como qualquer outra (1948: 219-220). como escreveu Jerome Bruner (1993: 55), a “autobiograia é a
construção da vida através da construção do ‘texto’”, os blocos
Apesar de profundamente resistente às epistemologias ediicantes de uma construção fílmica de vida não poderiam
globalizantes do tipo das que serão desenvolvidas por René ser palavras (ricas em conotação) ou pinceladas de tinta, mas,
Descartes no século seguinte, Montaigne nunca negou o signos indiciais portadores da marca do real. A tradição do
autoconhecimento (“Nenhum homem tratou um assunto que documentário fornece há muito tempo essa riqueza do real,

34 35
usando-a para construir e sustentar argumentos ou induzir documentário, existe aí um valor teórico e pedagógico que
ideologia. Mas a autobiograia, mesmo quando construída emerge desse atrito.
através de componentes indiciais, permanece como agnóstica
no templo da convicção. Como exemplo, considere-se My Universe Inside Out (EUA,
1996), da animadora Faith Hubley. Trata-se de um relato
Faria sentido, portanto, pensar na autobiograia como caprichoso e bastante elíptico dos 72 anos da artista que provém
(ou em relação à) não icção? A resposta, para mim, é um poucos fatos, mas realiza uma rica evocação da memória da
ressoante “sim”, apesar de que o caráter desse relacionamento infância, da experiência sensória e dos prazeres cotidianos da
é complexo. Um de meus primeiros esforços em que falei vida em família. É uma obra autobiográica que ativa ambos os
publicamente sobre autobiograia foi intitulado “Fictions of sentidos do corpus – o corpo da artista (ainda que apresentado
the self in the non-iction ilm”, um título que almejei que abstratamente), assim como o corpo do trabalho – pelo fato de
capturasse o paradoxo fundamental do assunto. Em minha que o ilme de Hubley é repleto de excertos das trilhas musicais
docência, descobri que a autobiograia oferece uma visão dos ilmes compostos por ela, sozinha ou em cooperação com
sobre a condição epistemológica geral do documentário. Que seu falecido marido, John Hubley. Não há dúvida de que o
esperança temos em produzir relatos factuais ou veriicáveis ilme é uma obra autobiográica, julgando-se por seu caráter
se os ilmes construídos sobre assuntos dos quais o cineasta retrospectivo, pelo uso insistente da primeira pessoa do
possui um conhecimento especial ou mesmo exclusivo – singular, pelo desencadeamento de imagens privadas que são
isto é, o eu – são codiicados pela evasão e pela dubiedade? exibidas ao longo do comentário narrado pela artista e pela
Colocando de outra forma, as “verdades” que a autobiograia revelação nos letreiros inais que creditam à artista a narração,
oferece são frequentemente aquelas relativas ao interior muito a escrita, os desenhos e até mesmo a execução do violoncelo na
mais do que ao exterior. Estou tentado em chamá-las de trilha musical – um tour de force da autoinscrição.
verdades psicológicas, mas isso apenas revela uma preferência
por um tipo de psicologia (o modelo psicanalítico) em despeito O próprio título, My Universe Inside Out (Meu Universo
de outro (o modelo behaviorista, em ascensão nos anos 1950, de Dentro para Fora, em tradução livre), reitera o paradoxo
no qual o Cinema Direto baseia sua busca pela verdade.) que a autobiograia assume frente às alegações sobre a verdade
do documentário. Enquanto oferece mostrar-nos o universo,
De qualquer forma, me parece que as obras autobiográicas Hubley poderia parecer alinhar-se com a ciência ou com o
podem gerar uma espécie de ceticismo saudável no que diz documentário ativista cujo objetivo é similar: “mostrar-nos a
respeito a todas as alegações sobre a verdade do documentário. vida”.2 Mas com o quê o universo se parece visto de dentro e o
Especialmente a partir dos anos 1970, os ilmes documentários que signiica qualiicar o universo através do pronome pessoal
dependeram de entrevistas para avançar seus argumentos e possessivo “meu”? É um universo único – interiorizado,
fortalecer suas armaduras históricas. Mas o caráter parcial ambíguo e fragmentado – que nos é fornecido e, nisso, a obra
e contingente do autoconhecimento, tão frequentemente e de Hubley é prototipicamente autobiográica. Mas de que
tão autoconscientemente expostos em obras autobiográicas, maneira o ilme é, também, um documentário? Hubley joga
apenas sabotam nossa coniança em estórias que as pessoas
contam sobre si próprias. Portanto, do meu ponto de vista,
se a própria ideia da autobiograia desaia a própria ideia do 2 Faz-se referência, aqui, à importante antologia de homas Waugh “Show
us Life”.
36 37
muito livremente com os “fatos”, tantalizando o público mais de Stan Brakhage, a propriedade da cronologia assim como a
do que o ensinando, oferecendo correlatos visuais para estados condição ontológica da imagem são recorrentemente colocadas
interiores elusivos em vez de exibir provas demonstrativas. em questão através de maneiras especíicas do meio. O cinema
Se o tratamento criativo da atualidade (a concisa deinição tem o poder de parar ou mesmo retroceder a inexorável
griersoniana) tinha como propósito o rearranjo dos elementos passagem do tempo, fornecendo uma poderosa ferramenta
do mundo oferecidos aos nossos olhos – isto é, se a “atualidade” para a obsessiva investigação do passado – o ponto forte da
é entendida como equivalente à “exterioridade” – então autobiograia.
este ilme e a maioria das obras autobiográicas reprovam
na avaliação. Mas isso também signiicaria que muitas das Em nostalgia, um ilme visto por Sitney como “autobiograia
conquistas mais desaiadoras do documentário nas últimas performativa par excellence”, uma série de imagens fotográicas
duas décadas – as obras pessoais e performáticas desde Tongues presumidamente feitas por Frampton são mostradas para nossa
Untied (EUA, 1989), de Marlon Riggs, que muito animaram visualização. O ilme ativa uma igura de estilo autobiográico
familiar, a descoberta da vocação do artista, pelo fato de que
a cultura do documentário – estariam fora do páreo. Verdades
o métier de Frampton, antes do cinema, era a fotograia. O
privadas e realidades internas vieram a se tornar o negócio do
que testemunhamos é a exaustão e a literal combustão de
documentário tanto quanto proclamações públicas. Faz mais
uma antiga forma de arte em favorecimento de uma nova.
sentido reescrever esta primeira proposição: a PRÓPRIA IDEIA
Quando cada imagem começa a queimar, tornando-se cinzas,
de autobiograia reinventa a PRÓPRIA IDEIA de documentário. e o que vemos é uma bandeja quente colocada a centímetros
A segunda proposição é um ponto histórico. Autobiograia da lente da câmera, somos tirados de nossa zona de conforto
fílmica não é nenhuma novidade. As pessoas vêm fazendo espectatorial. Essas imagens fotográicas são exibidas ocupando
autorretratos em ilme e vídeo já por algum tempo. Mas, um plano pictórico bidimensional ao invés de um espaço
novamente, devo reintroduzir algumas noções dos limites ilusionista tridimensional familiar à maioria das experiências
cinematográicas. O desconforto aumenta quando percebemos
designados à cultura do documentário para fazer uma
que o comentário em voz over que acompanha cada imagem está
constatação precisa. Isto porque a autobiograia é uma forma
literalmente dessincronizado com ela: aquilo que escutamos
muito mais experimentada e consistente no universo do
está descrevendo a imagem seguinte em vez de descrever a
avant garde do que no do ilme de não icção. Em seu ensaio
imagem que vemos no momento. Agora, essa “sincronicidade
clássico “Autobiography in avant-garde ilm”, P. Adams disjuntiva”, como Sitney a chama, é bastante conveniente ao
Sitney argumenta que “o que faz a autobiograia um dos empreendimento autobiográico devido à sua predileção em
desenvolvimentos mais importantes no cinema do inal dos deslocar o tempo a serviço de um intenso autoexame. Mas, no
anos 1960 e no começo dos anos 1970 é o fato de que a própria cinema, tais aventuras metacríticas são raramente encontradas
feitura de uma autobiograia constitui-se numa relexão acerca fora dos recintos do avant garde. Poucos teóricos, se houver
da natureza do cinema” (1978: 202). Os cineastas sobre os algum, da tradição do cinema documentário nos anos 1970
quais Sitney escreve são algumas das iguras-chave do avant pensou em classiicar nostalgia ou outros ilmes autobiográicos
garde norte americano – Hollis Frampton, Jerome Hill, Stan do tipo como não icção, em parte devido ao fato de o ilme
Brakhage e James Broughton. Em ilmes tão distintos entre problematizar, bastante ruidosamente, a capacidade do cinema
si como nostalgia (1971), de Frampton; Film Portrait (1973), de transmitir o passado como uma narrativa de continuidade e
de Jerome Hill e Scenes from Under Childhood (1967-1970), de entendimento histórico.
38 39
Um avanço paralelo no domínio da videoarte, também Claramente, portanto, as realizações audiovisuais
nesse contexto, merece menção. Ao longo dos anos 1970, autobiográicas não são nenhuma novidade, mas, até os anos
artistas conceituais, pintores e escultores como Nam June Paik, 1990, essas práticas tendiam a ser enquadradas fora dos limites
Bruce Nauman, Vito Acconci, Richard Serra, Lynda Benglis consensuais do documentário. As distinções outrora traçadas
e Peter Campus começaram a experimentar com o aparato entre cineastas avant garde, videoartistas e documentaristas
de vídeo, que ainda era novo, vendo-o como uma maneira de parecem cada vez menos signiicativas atualmente. Talvez
mover preocupações artísticas de longa data a novas direções. isso tenha a ver com a “convergência” nas artes e na indústria
Uma de tais preocupações, vinda do mundo da arte dos anos midiática, de que tanto escutamos, ou talvez simplesmente
1960, era com o próprio corpo do artista (pense nas “artes signiique que o vanguardismo fílmico e a videoarte tenham
corporais”, no happening, no he Living heater). Em 1976, a sido tão completamente absorvidos pela cultura comercial
crítica de arte Rosalind Krauss chegou a opinar que “a maioria (ou anexados pelo mundo da Arte) que pouco da relva ainda
das obras produzidas no curto período de tempo da existência permanece. Após os anos 1990, a cultura do documentário,
da videoarte utilizou o corpo humano como seu instrumento até certo ponto, herdou e foi transformada pelas duas outras
central” (1976, 1986: 179-180). Uma das crenças de Krauss era tradições.
a de que o narcisismo poderia ser generalizado como a condição
principal de todo o conjunto dos videoartistas. Essa posição Proposição de número três: a autobiograia fílmica existe
deve ter feito sentido ao público ciente dos vários experimentos de várias formas. Com isso quero sugerir, como acho que já
de vídeo dessa primeira geração de artistas, experimentos que está claro, que a autobiograia (na literatura e na pintura assim
se utilizavam das ferramentas do vídeo (a câmera, o mixer, a como no cinema e no vídeo) é uma forma prótea, de várias
reprodução em loop) como complementos do sistema sensório cabeças, sujeita à variação. Em meus escritos tenho descrito
humano. Marshall McLuhan expressou hiperbolicamente que uma série de modalidades autobiográicas, diversas abordagens
a televisão era uma extensão do sistema nervoso central, mas à escrita de si através do som e da imagem. Tratando-se de
foram os videoartistas que demonstraram as capacidades do modalidades, é a dimensão grafológica que vem à tona, as
meio em escrever através do corpo, em escrever como o corpo. maneiras em que a autoinscrição é constituída através de
Como eu propus no capítulo “he Electronic Essay” de he suas concretas e distintivas práticas signiicantes. Aqui, tenho
Subject of Documentary: em mente o ensaio fílmico, o ensaio eletrônico, o diário
fílmico, a vídeo conissão, o modo epistolário, a etnograia
Durável, leve, portátil e capaz de produzir doméstica, a web page pessoal e os blogs. Em cada caso, surgem
resultados instantâneos, o aparato videográico diferentes possibilidades para a expressão da subjetividade e a
fornece uma dupla capacidade adequada ao projeto narração de histórias de vida. Essas variações dependem, em
(autobiográico): ele é tanto tela quanto espelho, alguma medida, do meio escolhido e também das condições
fornecendo o alicerce tecnológico para a vigilância do discursivas predominantes. Em he Subject of Documentary eu
mundo palpável e sendo uma superfície reletiva para discuto, por exemplo, a especiicidade do modo confessional –
que se possa registrar o eu. É um instrumento através
certamente um tipo autobiográico –, mas que se revela dentro
do qual os eixos gêmeos da prática ensaística (o olhar
para fora e o olhar para dentro, a “medida da visão”
de uma relação de poder na qual um interlocutor impositivo
e a “medida das coisas” montaigneanos) encontram exige e julga, pune e reconcilia o ato discursivo. Sustento que o
uma expressão adequada (2004: 186). vídeo ocupou um lugar privilegiado na construção da cultura
40 41
confessional do inal do século XX. Já falei sobre o legado Em Tarnation, Caouette tece uma complexa narrativa de
ensaístico de Montaigne. Como discurso, o ensaio envolve disfunção familiar e patologia compartilhada. Tendo crescido
o sujeito na História; a autoenunciação e o objeto referencial no Texas ora dentro, ora fora de lares de adoção, abusado
estão igualmente em questão. Um eu é ativado conforme mede intermitentemente e sem uma igura paterna, tendo uma jovem
a si próprio dentro e defronte o mundo que está examinando. mãe, Renee Leblanc, outrora vencedora de concursos de beleza
Mas permitam-me tecer alguns comentários especiais sobre e depois daniicada por terapias de eletrochoque e pesadas
uma modalidade autobiográica de menor cunhagem familiar, doses de lítio, o diretor Caouette, agora com trinta e poucos
a etnograia doméstica. anos, mostra-se um compulsivo e assíduo documentarista de
si próprio. Inicialmente montando a obra no iMovie a partir
A etnograia doméstica é um modo de prática autobiográica de incontáveis horas de vídeos caseiros, fotograias de família,
que une o autoquestionamento à preocupação da etnograia seus próprios curtas-metragens e fotos de cabines fotográicas,
em documentar a vida dos outros, em particular, membros Caouette está determinadamente procurando a si próprio
da família que servem como espelho ou contraste para o eu. nos sons e nas imagens de seu passado. Apesar disso, seu
Devido aos laços de parentesco, sujeito e objeto estão atados autorretrato gira em torno da igura de sua mãe, o outro em
um ao outro. O resultado é um autorretrato refratado através seu relacionamento mais profundo, inescrutável e decisivo.
de um outro familiar. Como eu sustento no livro:
Em um momento de epifania no tempo-presente, quase ao
A noção de etnograia doméstica tornou-se um inal do ilme, Jonathan fala diretamente com sua câmera de
termo classiicatório cada vez mais útil para um tipo vídeo. É um solilóquio vívido e angustiante, metade conissão
de ilme documentário que tem proliferado. Em e metade etnograia doméstica, em que o cineasta luta para
uma era de grande curiosidade genealógica como a entender seu vínculo com uma mulher que agora é tão avariada
que vivemos, o DNA compartilhado se torna uma e dependente. Não consigo pensar em nenhuma outra obra que
poderosa incitação para a prática documentária. expresse tão claramente a necessidade do gesto da etnograia
Festivais e exibições universitárias enchem-se de ilmes doméstica. Por que Caouette – bem iniciado na reinvenção
sobre o envelhecimento ou sobre membros excêntricos de si próprio como um jovem artista nova-iorquino prestes a
da família cujas vidas fornecem maior entendimento,
lorescer, que mora com seu namorado e com seu cachorro
ao menos implicitamente, sobre a própria psique do
– não consegue deixar de lado sua atenção obsessiva por sua
cineasta ou seu ser corpóreo (2004: 216).
mãe? Enfurnado no banheiro de sua casa e itando sua câmera
à queima-roupa, Jonathan fala que sua mãe está “sempre
Mas dizer que esse modo autobiográico é cada vez mais comigo... ela está em meu cabelo e atrás de meus olhos”. A
comum não faz com que sua importância ou seu apelo escolha de Renee como assunto é (literalmente) inevitável.
sejam diminuídos. As etnograias domésticas tendem a ser
investigações carregadas, repletas de uma curiosa espécie de Em Tarnation, assim como em outras instâncias da
epistemoilia, uma pitada de afeto, ressentimento e até aversão etnograia doméstica, a família é mostrada como sendo o
a si próprio. Tarnation (2003), de Jonathan Caouette, que está cadinho mais fundamental da identidade psicossexual. A
entre os ilmes mais intrigantes – e inquietantes – que vi nos etnograia doméstica reconhece que o autor e o seu objeto
últimos anos, é um desses casos. estão presos em uma união familiar. O tom da obra, como
em Tarnation, pode variar descontroladamente do cômico
42 43
ao gótico ou ao elegíaco, dada a reciprocidade ou mesmo As noções de Adorno do meio da experiência “de maneira
a consubstancialidade entre sujeito e objeto, sendo que a nenhuma uniformemente transparente” fortalece minha
volatilidade emerge como uma característica da construção própria observação de que a perspicaz abordagem fílmica do
sempre ambivalente do autoconhecimento promulgado. autobiógrafo a uma vida vivida é, frequentemente, opaca,
tortuosa, em pedaços. Pense em uma obra como Sink or Swim
É importante entender essa proposição – a de que a (EUA, 1990), de Su Friedrich, na qual a reconstrução que
autobiograia existe de várias formas – como uma airmação a cineasta faz de seu relacionamento com seu pai desafeto é
a respeito tanto das variações formais ou estruturais quanto oferecida através de uma sucessão de fragmentos, cada um dos
da pluralidade das modalidades autobiográicas (o modo quais iniciando com um letreiro de uma palavra escrito sobre
confessional, a etnograia doméstica, o ensaístico, etc.). A fundo negro, sendo vinte e seis deles – um para cada letra do
autobiograia é tipicamente retratada como a narração de alfabeto, exibidos em ordem reversa, começando com o “z” de
uma vida e, como tal, pode parecer uma forma narrativa “zigoto” e a concepção da artista. A coerência textual do ilme
previsivelmente vinculada à irreversibilidade do nascimento é irregular apesar do fato de que sua continuidade narrativa
e do envelhecimento em relação à morte. Sendo assim, uma (isto é, a consistência da estória autobiográica contada)
estabilidade narrativa desse tipo é rara, exceto no caso de permanece geralmente intacta, sendo que a concatenação de
obras diarísticas vinculadas ao luxo da vida cotidiana. A diversos registros semióticos é responsável por isso. Enquanto o
digressão, a epifania e o lashback são menos excepcionais primeiro capítulo, do “zigoto”, inicia propriamente a trajetória
do que emblemáticos em relação à temporalidade encorajada autobiográica do ilme e os fragmentos seguintes narram
pelo trabalho da memória. Muitas obras cinematográicas uma cronologia seletiva, mas contínua, da vida da artista,
autobiográicas oferecem uma relexão ou meditação sobre o senso de linearidade é minado pelas descontinuidades
uma vida vivida e, portanto, abordam seus assuntos através temáticas entre os capítulos e seus títulos (indo de “tentação”
de uma sucessão de surtidas (como Montaigne caracterizou e “sedução” a “pedagogia” e “parentesco”) e também pelo
esses movimentos textuais), fornecendo ideias múltiplas e até caráter frequentemente oblíquo das relações entre som e
conlitantes a respeito do eu. imagem. Algo de uma lógica onírica prevalece. Mesmo assim,
Isto também tem sido verdadeiro para a autobiograia apesar das fantasias e da relativa opacidade (ou talvez por
literária. Em Minima Moralia: Relexões sobre uma vida lesada, causa delas), Sink or Swim impõe seu caráter autobiográico.
um livro que une autoexame a discurso ilosóico, heodor Há a sensação de que uma estória, muito pessoal e formadora
Adorno sustenta que: de identidade, de relações familiares foi tecida através de uma
forma que evoca uma teia emaranhada de relacionamentos e
O valor do pensamento é medido pela sua valências emocionais conlitantes.3
distância da continuidade daquilo que é familiar... o
Voltando-se para um exemplo mais recente de
conhecimento chega a nós a partir de uma rede de
preconceitos, opiniões, inervações, autocorreções, excentricidade formal ou estrutural no ilme autobiográico,
pressuposições e exageros; em resumo, através do meio pode valer a pena relembrar os debates acerca da narratividade
da experiência que é espesso e irmemente assentado,
mas que de maneira nenhuma é uniformemente 3 Para mais discussão sobre Sink or Swim de Su Friedrich, ver Renov (2004:
transparente (1978: 80). 219-22).
44 45
dos ilmes documentários em geral. Enquanto os ilmes não Phantom Limb é uma meditação do cineasta Rosenblatt sobre a
iccionais tendem a reter um caráter fortemente narrativo – morte de seu irmão mais novo, quatro décadas antes, e sobre a
isto é, frequentemente eles dependem de uma cronologia para culpa e o sofrimento que assombrou os membros de sua família
impor o suspense, como na “estrutura de crise” inventada pelos desde então. Como uma obra de luto, o ilme é produzido
praticantes do Cinema Direto ou mesmo para fundamentar décadas depois do ocorrido, uma indicação da temporalidade
uma argumentação (lembre-se das controvérsias criadas pelo deferida ou deslocada que a morte e o luto podem engendrar.
desvio de uma cronologia estrita como concebeu Michael Utilizando-se de texto – frases declarativas curtas que
Moore em Roger e Eu (EUA, 1989) que fez com que seus fornecem uma moldura de eventos passados – intercalado com
críticos alegassem uma contestação injusta a Ronald Reagan) ilmes caseiros e material de arquivo, o ilme navega por um
– esse não é sempre o caso. Brian Winston sugeriu que, para caminho entre o depoimento pessoal e a descrição clínica.
o documentário, a não narratividade “funciona melhor na Os títulos, ou passos, dos doze capítulos (separação, colapso,
cabeça do que na tela” (1995: 113-119); ainda assim, Song of tristeza, negação, confusão, choque, raiva, recomendação,
Ceylon (Reino Unido, 1934), de Basil Wright, um dos ilmes saudade, depressão, comunicação, retorno) narram antes um
mais esteticamente satisfatório produzido por Grierson, processo hipotético do que uma estória; pode-se apenas inferir
assume uma estrutura serial, suas quatro partes exibindo até que ponto esse processo relete a experiência de luto ou
ritmos e temas disjuntivos entre suas partes. O Homem com de recuperação do próprio cineasta. A forma serial descreve
uma Câmera (URSS, 1929), de Dziga Vertov, certamente um aquilo que pode ser considerado como um arco narrativo
dos mais ambiciosos e inluentes documentários da História, recursivo, que volta para trás (como retrocesso), oferecendo
exibe enorme complexidade formal e estrutural.4 Como tem menos resolução do que absolvição. A absolvição, se alcançada,
sido discutido em livros recentes de Paul Arthur e Jefrey resulta da função do ilme como sendo uma obra mais ou
Skoller, diversos tipos de experimentalismos mantiveram uma menos efetiva de luto, familiar à literatura psicanalítica. Como
força consistente na imaginação documentária. Recordar a um veículo meditativo (do tipo descrito por Stephen Tyler em
descrição geral de Bruner a respeito do projeto autobiográico sua discussão a respeito da “etnograia pós-moderna”), pode
(“a construção da vida através da construção do texto”) ajuda- também funcionar como evocação de luto e absolvição para os
nos a explicar a atenção especial dada à forma ou à estruturação outros (1986: 122-140).
da autobiograia fílmica como sendo um subconjunto do
discurso documentário. Minha proposição inal é: o autobiográico engloba e é
inlexionado pelo político. Com isso, não quero dizer que
Em Phantom Limb (EUA, 2005), de Jay Rosenblatt, um autobiograia e política estão sempre ou inevitavelmente
caso de autobiograia fílmica como também de uma obra de ligadas. Mas me oponho à alegação de que a autobiograia
luto, uma estrutura anômala demonstra ser intrínseca à lógica é, por deinição, autoabsorta e solipsista, fora da conjuntura,
do ilme. Meu breve relato do ilme aqui será insuiciente incapaz de englobar ou elucidar o campo social. A declaração
perante sua profundidade e sua complexidade. Organizado de Montaigne sobre o eixo duplo do ensaísta – a medida da
em doze capítulos com títulos, mimetizando os programas visão (como alguém vê) sempre em cooperação com a medida
de recuperação em doze passos endêmicos à nossa cultura, das coisas (o que alguém vê) – coloca-nos no caminho correto.
Somente com muito esforço a autoconstrução pode manter-se
4 Em relação a isso, ver Petric (1987). fora das relações sociais; assim como está repleto de política o
46 47
lugar de nossas identidades móveis, múltiplas e frequentemente principalmente às análises histórica e ideológica (antes que
conlitantes. à política identitária) podem, da mesma forma, exibir uma
dimensão autobiográica substancial. Pense-se, por exemplo,
No começo dos anos 1980, Michel Foucault escreveu que, nas obras ensaísticas de Michael Moore, o homem cujos
frente à violência institucional e estatal e de enormes pressões ilmes produziram a maior bilheteria entre todos os outros
ideológicas, a questão central de nosso tempo permaneceu documentários juntos. Os ilmes de Moore Roger e Eu, Tiros
“Quem somos nós?” (1984: 420). Foucault alegou que, em em Columbine (EUA, 2002) e Fahrenheit 11 de Setembro
épocas anteriores, a luta contra a dominação e a exploração (EUA, 2004) não são nada senão os campos de teste da
tinha tomado o centro do palco. Agora, para um número subjetividade do cineasta e de seu julgamento político. A
crescente de pessoas, a luta era contra a subordinação, contra reação profundamente polarizada em relação a esses ilmes,
a resignação à subjetividade. De acordo com Foucault, essa especialmente nos Estados Unidos, é realmente uma reação
circunstância pedia uma rigorosa e historicizante interrogação ao homem – as duas coisas são indissociáveis. Esse é o legado
de como o poder era exercido e experienciado. A subjetividade do ensaísmo. “Caminhamos de mãos dadas no mesmo passo,
– essa construção multicamada da individualidade imaginada, meu livro e eu”, escreveu Montaigne. “Em outros casos pode-
representada e atribuída – foi alegada como sendo o campo de se elogiar ou acusar a obra à parte do autor: já aqui, não, aquele
luta que mais importava no momento. A asserção de “quem que toca um deles também toca o outro” (1948: 611-612). Não
nós somos”, particularmente em relação a uma população é apenas o retorno insistente de Moore a Flint e às suas raízes
enormemente separada das máquinas da representação – as de classe trabalhadora ou a ubiquidade do próprio Moore
propagandas, notícias e indústria do entretenimento – é uma no quadro que são responsáveis pelo sabor autobiográico
expressão vital de autoridade. Nós não somos apenas o que da obra. Seu cinema é, acima de tudo, um cinema de “voz
fazemos em um mundo de imagens, somos também o que pessoal”, uma abordagem ao fazer cinematográico através
mostramos que somos. Portanto, eu sustento que as batalhas do qual os mais distintos materiais podem ser ligados e
de Jonathan Caouette pela sua autodeinição, sua organização estabilizados através da escrita e da narração de seu criador.
em identidades, entre as quais a de sulista, gay, ilho prodígio, Nesse sentido, aqueles que criticaram e ridicularizaram Moore
sobrevivente de abusos, criança dada à adoção e ilho protegido não entenderam o ponto, implicando que a visita de Reagan a
pela mãe é, antes, um ato de sobrevivência que uma escolha Flint haveria ocorrido antes da eleição, e não depois da eleição,
estética. Tarnation, como tantos outros trabalhos dessa em Roger e Eu. Em um ilme de Michael Moore, as imagens
mesma natureza, promulga uma política do corpo (a raça, as são sempre usadas para sustentar a polêmica que é, por sua
entranhas, as bolas) mais do que da mente. Mas é, no entanto, vez, uma extensão da experiência e da visão política de Moore.
uma política vital. Ele é um ensaísta, um ensaísta político, em uma cultura
Mas esse é o caso geral que pode ser visto em relação à nacional que espera jornalismo político e de uma forma bem
eicácia política das obras autobiográicas. É uma constatação particular (ex.: orientado ao recolhimento de informações,
a respeito de uma “política identitária” cada vez mais reportagens guiadas pelas imagens e cobertura balanceada).
prevalecente nas décadas desde a dissolução da luta política Não surpreende que os momentos mais fortes em um ilme de
baseada em movimentos ou em classes. Porém é verdadeiro, Michael Moore dependam mais do som do que da imagem:
também, o fato de que obras documentárias que são dedicadas pense apenas em sua representação da queda das torres gêmeas

48 49
em Fahrenheit 11 de Setembro. O ilme se transforma em rádio. Em vias de concluir, vou reprisar minhas proposições: (1)
A memória e a associação correm para preencher as lacunas a própria ideia de autobiograia reinventa a própria ideia de
deixadas pela tela preta. Como sempre, é a voz – a agente documentário; (2) a autobiograia fílmica não é nenhuma
primária da subjetividade de Moore – que sobrevém e restaura novidade; (3) a autobiograia fílmica existe de várias formas;
a ordem. e (4) a autobiograia engloba e é inlexionada pelo político.
Postulei esses pontos com o espírito de explorar o que ainda é
Algo similar poderia ser dito a respeito do trabalho do pouco conhecido e procurei sustentá-los recorrendo a exemplos
cineasta camaronês Jean-Marie Teno. Desde o começo dos tirados de fontes bastante distintas – animação, ilmes recentes
anos 1980, Teno produziu uma série de ilmes que examinam a do circuito de arte, grandes bilheterias e do Terceiro Cinema.
experiência pós-colonial africana e, em especial, a camaronesa; E, ainda assim, apenas arranhei a superfície de um fenômeno
os sonhos e decepções, as ironias e idiossincrasias, mas sempre que resiste a análises totalizantes e taxionômicas. Se preferi por
iltrados através de uma lente pessoal, uma voz pessoal. vezes falar sobre o “autobiográico” em vez da “autobiograia”,
Novamente, é a escrita e a voz que deinem o tom. No início do é porque a utilização adjetiva é mais condizente com a
ilme mais ambicioso de Teno até hoje, Afrique: Je te plumerai confusão e a instabilidade endêmicas ao assunto. Estou
(1992), a capital de Camarões, Yaoude, é mostrada para nós. E, convencido que nosso tópico é um daqueles cuja importância
enquanto somos introduzidos às complexidades e aos desaios apenas será aprimorada com o passar do tempo. Como digo no
de viver em um território removido da égide francesa, mas inal do capítulo introdutório de he Subject of Documentary:
que ainda não é livre, também descobrimos algumas coisas “A hora certamente chegou... para uma reavaliação, para o
sobre a própria juventude de Teno e sua experiência; são-nos reconhecimento público de que o sujeito do documentário
oferecidas anedotas que tornam concreto o geral. O ilme tornou-se, em um grau surpreendente, o assunto do
mistura elementos satíricos, cômicos e musicais, emprega documentário” (2004: xxiv).5
reconstruções, entrevistas e material de arquivo para produzir
um relato historicamente ciente, matizado mas também
didático, da vida camaronesa. É, novamente, a voz que se
envereda ao longo do ilme, a voz do cineasta, que sublinha as BIBLIOGRAFIA (compilada pelo tradutor):
maneiras que a subjetividade, o eu da escrita de si próprio, pode
guiar o caminho, personalizar o objeto fílmico e sensibilizar ADORNO, heodor. Minima Moralia: Relections from
o público para uma maior receptividade. Os motivos alegados Damaged Life. Londres: Verso, 1978.
por Teno para a feitura do ilme são indiscutivelmente BRUNER, Jerome. “he autobiographical process” in
políticos: “Eu busquei a relação de causa e efeito entre o passado FOLKENFLIK, Robert (org). he Culture of Autobiography:
insuportável, com sua violência colonial, e o presente. Busquei Constructions of Self-Representation. Stanford, CA: Stanford
o motivo pelo qual um país com sociedades tradicionais bem- University Press, 1993.
estruturadas transformou-se em um Estado incompetente”.
Mas é a dimensão pessoal e autorrelexiva de Afrique: Je te
5 Aqui, o autor estabelece um jogo de palavras com o duplo sentido da palavra
plumerai que focaliza e contextualiza esses objetivos políticos subject. No original: “he time has certainly arrived... for a reassessment,
em uma moldura empírica universalizante. for the open acknowledgement that the subject in documentary has,
to a surprising degree, become the subject of documentary”. (Nota do
tradutor)
50 51
FOUCAULT, Michel. “he subject and power” in WALLIS,
Brian (org). Art After Modernism: Rethinking Representation.
Nova York: New Museum of Contemporary Art, 1984.
KRAUSS, Rosalind. “Video: the aesthetics of narcissism”
in October, volume 1 (Primavera, 1976); reeditado em
HANHARDT, John (org). Video Culture. Rochester, NY:
Visual Studies Workshop and Peregrine/Smith Books, 1986.
MONTAIGNE, Michel de. he Complete Works of
Montaigne. Stanford, CA: Stanford University Press, 1948.
PETRIC, Vlada. Constructivism in Film: he Man with the
Movie Camera – A Cinematic Analysis. Cambridge: Cambridge
University Press, 1987.
RENOV, Michael. he Subject of Documentary.
Minneapolis: University of Minnesota Press, 2004.
RUSSELL, Catherine. Experimental Ethnography. Durham,
NC: Duke University Press, 1999.
SITNEY, P. Adams. “Autobiography in avant-garde ilm”
in SITNEY, P. Adams (org). he Avant-Garde Film: A Reader
of heory and Criticism. Nova York: New York University
Press, 1978.
TYLER, Stephen. “Post-Modern Ethnography: From
Document of the Occult to Occult Document” in CLIFFORD,
James e MARCUS, George (orgs). Writing Culture: he Poetics
and Politics of Ethnography. Berkeley, CA: University of
California Press, 1986.
WAUGH, homas (org). “Show Us Life”: Toward a History
and Aesthetics of the Committed Documentary. Metuchen, NJ:
he Scarecrow Press Inc., 1984.
WILLIAMS, Raymond. Keywords: A Vocabulary of Culture
and Society. Londres: Flamingo, 1983.
WINSTON, Brian. Claiming the Real: he Documentary
Film Revisited. Londres: British Film Institute, 1995.

52 53

Você também pode gostar