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Recife
2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO
Recife
2016
Catalogação na fonte
Bibliotecário Jonas Lucas Vieira, CRB4-1204
BANCA EXAMINADORA
____________________________________
Prof. Dr. Rodrigo Octávio D’Azevedo Carreiro
Universidade Federal de Pernambuco
___________________________________
Profa. Dra. Ângela Freire Prysthon
Universidade Federal de Pernambuco
____________________________________
Profa. Dra. Georgia da Cruz Pereira
Universidade Federal do Ceará
AGRADECIMENTOS
E alguém me gritava
Com voz de profeta
Que o caminho se faz
Entre o alvo e a seta.
Pedro Abrunhosa
RESUMO
Esta pesquisa propõe uma análise do processo de criação do filme Viajo porque preciso,
volto porque te amo (2009), de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz. A partir de uma indagação
inicial sobre como ocorreu a construção de um filme de ficção originado de registros
documentais, refizemos o trajeto das ações e ideias que deram origem ao filme, desde a viagem
exploratória dos diretores pelo sertão nordestino até a efetiva execução do longa, com o objetivo
de compreender a tessitura do movimento criativo que dá à obra forma. Para isso, em um
primeiro momento, apresentamos um diálogo entre os estudos do processo criativo de Cecília
Almeida Salles (2008), Fayga Ostrower (1987) e Michael Baxandall (2006), base de nossas
análises. Em seguida, acompanhamos o percurso que aponta para o filme: a experiência
antropológica e afetiva da viagem de captação das imagens, a mediação do sensível na
formulação do curta “Sertão de Acrílico Azul Piscina” e a rede de criação que se estabelece
entre os projetos individuais em relação à Viajo porque preciso. Por último, discutimos a
composição narrativa do filme e como sua construção poética retoma todo o seu processo
criativo e sensível.
This research proposes an analysis of the movie creation process Viajo porque preciso,
volto porque te amo (2009) by Marcelo Gomes and Karim Aïnouz. Based on an initial inquiry
about how the construction of a fiction movie based on documentary records happens, the path
of actions and ideas was retaken. From the directors’ exploratory trip through the Brazilian
northeastern outback to the effective doing of the feature-length film, we aimed to understand
the compostion of the creative movement that gives form to that work. Thus, we present at first
a dialogue between the creative process studies of Cecilia Almeida Salles (2008), Fayga
Ostrower (1987) and Michael Baxandall (2006), base of our analysis. Then we follow the route
that points to the film: the anthropological and affective experience of trip for capturing the
images, the mediation of the sensitive in formulating the short film “Sertão de Acrílico Azul
Piscina” and the network creation that is established between individual projects in relation to
Viajo porque preciso. Finally, we discuss the narrative composition of the film and how its
poetic construction resumes its all creative and sensitive process.
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 10
INTRODUÇÃO
Eu estava na sessão de estreia de Viajo porque preciso, volto porque te amo em Recife.
Era outubro de 2009 e eu tinha sido selecionado pelo festival Janela Internacional de Filmes do
Recife para escrever sobre a 2ª edição. O filme foi exibido na primeira noite do festival e, depois
da exibição, o diretor Marcelo Gomes e o ator Irandhir Santos, que dava voz ao protagonista,
conversaram com a plateia. “É um filme de amor e de estrada...”, lembro de Marcelo descrever,
com simplicidade. Não me parecia tão simples.
Apesar de entender na descrição do diretor um convite à entrega desarmada ao filme, a
diversidade de imagens, a colagem de fotos, as músicas bregas e a voz de um personagem que
se revelava tão intimamente, mas do qual não conhecíamos sequer o rosto, me intrigavam: como
eles conseguiram que todos aqueles elementos tão diferentes juntos fizessem sentido? Mesmo
sem saber que um dia iria me empenhar a entender melhor isso, já ensaiava no texto que escrevi
uma percepção sobre o filme como processo de criação:
O curioso de saber que esse filme começou há mais de dez anos é perceber duas coisas.
A primeira, o olhar apurado e o talento [de Marcelo e Karim], desde antes de terem
quaisquer ou poucos recursos como realizadores. Segundo, que seu cinema "sincero e
sem concessões" não pode ser reconhecido aqui: essas características na verdade
nasceram a partir dele, e foram desenvolvidas nas obras que já conhecemos. Ou seja:
a viagem foi deles também, em um filme orgânico, que precisava ser finalizado.
(CINTRA, 2009)
Os anos me permitem ver com distância crítica e fazer ressalvas ao texto. Porém, existe
já nele uma observação que reconhece o traço autoral conector entre as obras dos diretores e
sugere que seus outros filmes formam com este um elo que os une numa construção em rede.
Devo pedir desculpas pela imaturidade do texto, mas defendo sua presença aqui como um
documento de processo: o processo que deu origem a essa pesquisa.
Apenas em 2012, em um mostra, conheci Sertão de Acrílico Azul Piscina. O curta,
lançado em 2004, era fruto da primeira montagem do material de que também era formado
Viajo porque preciso: um documentário-devaneio, sem fio-condutor, narração ou definição de
uma história, revelando principalmente paisagens e costumes marcados pelo convívio entre o
primitivo e o novo. São filmes diferentes, mas reconhecíveis um no outro – o que me levou de
volta às questões daquela sessão de estreia: como havia acontecido a passagem desse curta para
o longa? De que maneira foi possível a construção de um filme de ficção coeso, realizado a
partir de um diversificado material documental sem aparente ligação? Estas perguntas
formaram a indagação inicial para essa pesquisa.
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Porém, antes do longa, antes do curta, antes, aconteceu uma viagem. Em setembro de
1999, durante quarenta dias, Marcelo Gomes e Karim Aïnouz percorreram com uma pequena
equipe várias cidades do sertão nordestino: do Ceará à Paraíba, da Paraíba a Pernambuco, de
Pernambuco a Alagoas, de Alagoas até a Bahia eles gravaram mais de 30 horas de entrevistas;
tiraram fotos, fizeram imagens em Super8 e em 16mm. Filmavam tudo o que os emocionasse,
dizem. Abandonaram a ideia inicial que era apenas uma pesquisa sobre feiras e se lançaram a
realmente filmar, sem roteiro definido, numa experiência à flor da pele – apenas sentir o lugar,
descobrir o lugar, se perder, de deixar levar. Eram, como diz Marcelo, “colecionadores de
imagens e emoções” (CINTRA, 2015).
“Não existia um projeto claro de que filme era este. Teríamos um arquivo de material e
depois veríamos se haveria filme a partir dali”, diz Marcelo sobre o momento da viagem
(BERNARDET, 2010). E dois filmes se originaram dessa experiência desde então. Sertão de
Acrílico é um olho-câmera que se desloca, acompanha caminhos e estradas, observa pessoas,
mas sem parecer realmente procurar ou querer chegar em algum lugar. Viajo porque preciso
ganha uma persona: José Renato, um geólogo, dono das imagens, que viaja a trabalho e cruza
o sertão nordestino colhendo dados, encontrando pessoas, fazendo estudos para a viabilidade
da construção de um canal hídrico na região.
Facilmente se pode traçar um paralelo entre os dois filmes. Não apenas pela presença
das mesmas imagens que os constituem, mas entre cada uma das concepções em vista da
experiência in loco dos cineastas. “Ali foi a grande escola de cinema pra mim e pro Karim”. E
dessa experiência não comungam apenas estas duas obras. Cinema Aspirinas e Urubus, de
Marcelo Gomes, e O céu de Suely, de Karim Aïnouz, também se relacionam formando uma
rede interinfluenciada na qual têm o sertão como cenário, o documental como estética, o
naturalismo como opção de mise en scène e a solidão e o deslocamento como tema. Para além
disso, uma força sensível perpassa por todas essas obras – e que talvez possa ser resgatada na
experiência afetiva que constituiu o procedimento de trabalho na viagem pelo sertão.
Nossa pesquisa, dessa forma, se propõe a refazer o percurso que começou com a viagem
dos dois cineastas, passou pelo curta até chegar a Viajo porque preciso. Propomos um recorte
temporal de dez anos, entre 1999, quando ocorreu a viagem, até 2009, ano de lançamento do
longa. Sobre esse período, para nossa análise, fizemos um levantamento de materiais e arquivos
disponíveis de modo a seguir os rastros das obras em curso, como quem segue pegadas deixadas
pelo caminho, para observação de diferentes momentos da criação, tendo por base estudos sobre
processo de criação. Esses materiais, chamados de “documentos de processo” (SALLES, 2008),
formam a concretização do pensamento criativo do artista na feitura da obra.
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1
As entrevistas estão disponíveis no site: https://www.youtube.com/watch?v=5xns7am1cDw&feature=youtu.be
2
COCCIA (2010) utiliza o termo sensível e argumenta sobre a construção de sentido através de processos não
submetidos à racionalidade do pensamento, posição que vamos investigar mais à frente.
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explicitado nos capítulos anteriores. Como o processo que constituiu o filme se manifesta na
sua trama, nas suas escolhas narrativas e estéticas?
Embora uma obra não necessite de uma contextualização processual para ter
reconhecido seu mérito artístico, um tipo de estudo que busca entender as demandas dos autores
durante o seu período de criação pode contribuir para compreender essa obra em outro nível.
Longe de querer legitimar seu valor enquanto arte, nosso interesse em estudar um filme tão
singular como Viajo porque preciso é mapear e entender seus caminhos físicos, intelectuais e
afetivos – o que significa construir uma narrativa de constituição do filme e que enxerga nele
as nuances do processo que o formou.
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Há, desde muito tempo, uma mitificação na relação entre obra de arte e artista. Palavras
como inspiração e musa, por exemplo, são termos que rondam o imaginário coletivo em
referência às criações artísticas, transformando artista e obra em algo sobre-humano, tratamento
este intensificado quando se conta com um distanciamento temporal. Entre ter uma ideia e
entregar algo para o público, entretanto, há um caminho percorrido que muitas vezes é ignorado
em nome de uma visão romântica de que a obra acabada é a materialização isolada de uma
genialidade, daquele momento único de iluminação e criatividade de seu autor.
Antes mesmo de pensar a respeito de procedimentos criativos dos artistas, a escritora e
artista plástica Fayga Ostrower (2001) já parte de questionar o fato da criatividade ser
considerada apenas um privilégio da arte. Para a autora, que se volta a pensar a respeito da
natureza do ato criador, a criatividade é um potencial inerente ao homem e “só pode ser visto
num sentido global, como um agir integrado ao viver humano” (OSTROWER, 2001, p.5).
“Mais do que o ‘homo faber’, ser fazedor, o homem é um ser formador” (OSTROWER, 2001,
p.5), diz a autora ao estabelecer que qualquer atividade, mesmo alguma corriqueira como
atravessar a rua, é impregnado de formas de ação e requer estabelecer relacionamentos entre os
diferentes eventos e experiências que ocorrem ao redor e dentro do homem.
Criar é basicamente formar. A autora é direta ao afirmar que o ato criador não está
dissociado de uma atividade ordenada e direcionada, que toma uma ideia inicial de modo a
estrutura-la, transformando-a em algo concreto, a obra. "A atividade criativa consiste em
transpor certas possibilidades latentes para o real", diz a autora, que defende a criação como
uma percepção consciente, movida pela intenção do que ela chama de "ser consciente-sensível-
cultural" (OSTROWER, 2001, p.5).
Fayga considera que o contexto cultural, os valores, a realidade social do homem,
somando-se à potencialidade única que carrega cada indivíduo, incluindo aqui a sua
sensibilidade, a excitabilidade sensorial (OSTROWER, 2001, 12), formam a ação criativa. "Nas
perguntas que o homem faz ou nas soluções que encontra, ao agir, ao imaginar, ao sonhar,
sempre o homem relaciona e forma” (OSTROWER, 2001, p.5). A criação é assumida aqui
15
como uma “percepção consciente” (OSTROWER, 2001, p.6) do homem, cujo potencial criativo
abrange a capacidade de “compreender, relacionar, ordenar, configurar, significar”
(OSTROWER, 2001, p.9).
O homem enquanto ser consciente-sensível-cultural opera a criação no âmbito da
intuição, na dimensão sensível do artista. Fayga, entretanto, aponta que esses processos
intuitivos “se tornam conscientes na medida em que são expressos, isto é, na medida em que
lhes damos uma forma” (OSTROWER, 2001, p.10). Nesse momento, o homem percebe as
transformações e também se percebe nelas: reflete sobre suas ações criativas e questiona as
necessidades da obra. Essa mobilização interior, que é orientada para uma determinada
finalidade é o que leva a autora a falar da ‘intencionalidade’ da ação humana, uma “mobilização
latente seletiva”, “interligando-se na imaginação e propondo a solução para um problema
concebido” (OSTROWER, 2001, p.10).
Deleuze (1999) parece concordar com este sentido de ordenação a que se refere Fayga
quando, também ao falar sobre o ato de criação, afirma que “os conceitos não existem prontos
e acabados numa espécie de céu em que aguardariam que uma filosofia os apanhasse”: “os
conceitos, é preciso fabricá-los” (1999, p.2). Deleuze fala do ato de criação através da formação
das ideias, referindo-se aos diferentes campos de pensamento, mas especificamente à filosofia
e ao cinema. O autor nos aponta que, mesmo na arte, ter uma ideia é algo nem sempre
relacionado a um momento de “inspiração”, mas de busca, de percurso: “É claro que os
conceitos não se fabricam assim, num piscar de olhos” (DELEUZE, 1999, p.2).
No texto, Deleuze afirma que ter uma ideia não é algo genérico, mas com potenciais já
empenhados em algum modo de expressão. “Não temos uma ideia em geral. Uma ideia, assim
como aquele que tem a ideia, já está destinada a este ou àquele domínio. Trata-se ou de uma
ideia em pintura, ou de uma ideia em romance, ou de uma ideia em filosofia, ou de uma ideia
em ciência” (DELEUZE, 1999, p.2). O surgimento da ideia e da criação, para o autor, acontece
em blocos. As ideias em filosofia, que trabalha com conceitos, se construiriam em blocos de
conceitos. A alçada do cinema não seriam conceitos, mas ideias formadas em blocos de
movimento/ duração, assim como na pintura seriam outros tipos de blocos, de linhas/ cores
(DELEUZE, 1999, p.3-4). Ou seja: o engenho e o processo da criação têm necessidades
específicas e seguem caminhos específicos, adequados a diferentes linguagens e formas de
expressão.
Cecília Almeida Salles (2008b) quando define a criação artística através de “redes de
criação” mostra que esta não tem começo nem fim: é um processo de eterna construção, que
põe em evidência o modo como o artista se envolve com a cultura e os diálogos que ele
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estabelece como na formação dessa trama de referências. “Ele [o artista] tudo olha. Recolhe o
que possa parecer de interesse, acolhe, rejeita, faz montagens, organiza. Ideias se associam,
formas alternativas proliferam e pesquisas integram a obra em construção. Enfim, um turbilhão
de possibilidades interativas” (SALLES, 2008b, p.34). Não há limite para esta espécie de coleta
sensível3, nem mesmo em relação à mídia através da qual ele se manifesta, de modo que a
importância está em como essas escolhas passam a integrar a obra.
Salles tem um importante trabalho em um grupo de pesquisa na PUC de São Paulo sobre
processo de criação, e o estudo desse caminho que percorre o artista, da produção até a entrega
da obra, encabeça seu trabalho. A autora observa o artista no processo de criação como um ser
inserido na cultura e parte do princípio deste processo ser já um ato comunicativo, uma vez que
considera as múltiplas vozes e influências trazidas pelo artista para a obra durante o processo –
formando redes culturais. Nesse sentido, ela entra em diálogo com Edgar Morin (apud
SALLES, 2008b, p.33) quando este reflete como o ser humano interage e relaciona-se com as
ideias e com a cultura e a sociedade do seu tempo e como, a partir desta relação,
produz/reproduz seu acervo cultural do qual fazem parte seus conhecimentos.
3
Termo utilizado por Salles (2007, p.97) a partir de um depoimento do artista plástico João Carlos Goldberg. Diz
respeito ao “tempo de captação sensível de tudo que está em torno”. Falaremos mais sobre o termo e seu conceito
mais à frente.
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caminhos? Refletir sobre estas duas perguntas é adentrar no mundo de quem produz, em um
momento determinado, com ferramentas determinadas.
Buscar esse momento, essas ferramentas é o que fazem os estudos de processo de
criação. Em “Gesto Inacabado” (2007), Cecília Almeida Salles denomina o pesquisador que se
lança no trajeto da obra como crítico de processo, apontando que este acompanha o ir e vir da
mão do criador, de modo a perceber o percurso intelectual e sensível da criação artística:
relações são estabelecidas e, desse modo, faz-se um acompanhamento crítico-interpretativo do
percurso das obras, do movimento do artista. “O interesse não está em cada forma, mas na
transformação de uma forma em outra” (SALLES, 2007, p.19).
Tanto Deleuze (1999) como Fayga (2001) apontam o caráter de ordem e direção da
atividade criadora, que, no entanto, fica submersa quando da ascensão da obra dita acabada.
Tirar a obra de seu patamar inalcançável e o artista de sua ação criativa amorfa é pensar sobre
o caminho entre a ideia e a obra, agrupar os índices que apontam neste percurso para o seu final,
entender as mobilizações sensíveis e intelectuais empregadas nesta construção. Isto não
significa, porém, desfazer de algum status de sua genialidade, uma vez que a ênfase dada ao
processo não ocorre em detrimento da obra. Cecília Salles fala exatamente sobre isso quando
afirma que a crítica de processo “não é uma interpretação do produto considerado final pelo
artista, mas do processo responsável pela geração da obra” (SALLES, 2007, p.13). Afinal, só
há o estudo do processo porque a obra existe.
Desse modo, o pesquisador vai atrás das pegadas deixadas pelo artista. Buscar rastros,
vasculhar arquivos, coletar anotações, checar históricos, esboços, ensaios de partituras, ver
maquetes, tudo que configure a ideia de registro – o que Salles chama de documentos de
processo (2007, p.16). Viver os meandros da criação, entrando em contato com a materialidade
do processo como forma de melhor compreendê-lo.
O olhar genético vai além da mera observação curiosa que esses documentos [de
processo] podem aguçar: um voyeur que entra no espaço privado da criação. O crítico
genético narra as histórias das criações. Os vestígios deixados pelos artistas oferecem
meios para captar fragmentos do funcionamento do pensamento criativo. Uma
sequência de gestos da mão criadora e experienciados, de forma concreta, pelo crítico.
Gestos se repetem e deixam aflorar as teorias sobre o fazer. (SALLES, 2007, p.19)
Assim como Fayga entende que “as intenções se estruturam junto com a memória”
(OSTROWER, 2001, p.18), Cecília nos aponta para uma memória criadora da obra como
processo dinâmico que se modifica com o tempo em que se produz e pelo tempo no qual o
artista vive. “O tempo e o espaço do objeto em criação são únicos e singulares e surgem de
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características que o artista vai lhes oferecendo, porém se alimentam do tempo e espaço que
envolvem sua produção” (SALLES, 2007, p.38). A autora alerta que não se trata apenas de
constatar a influência do contexto no processo, mas como esse tempo e espaço em que o artista
está imerso passam a pertencer à obra.
Tempo, espaço, características são recuperados nessa imersão pelo processo, de modo
a encontrar os fios condutores não só da obra de forma singular, mas possivelmente de todo o
projeto pessoal único do artista, o seu projeto estético, no qual gostos e crenças regem seus
modos de ação. Cecília Salles vai além de capitanear valores estéticos no estudo de processo,
mas enxerga também um construto através de princípios éticos: o artista e seu plano de valores
e sua forma de representar o mundo, o que ela chama de projeto poético (SALLES, 2007, 38).
O grande projeto vai se mostrando, desse modo, como princípios éticos e estéticos, de
caráter geral, que direcionam o fazer do artista: princípios gerais que norteiam o
momento singular que cada obra representa. Trata-se da teoria que se manifesta no
“conteúdo‟ das ações do artista: em suas escolhas, seleções e combinações. Cada obra
representa uma possível concretização de seu grande projeto. (SALLES, 2007, p.39)
O projeto poético funcionaria, então, como um propósito do artista, uma direção para a
criação artística. Contudo, apesar de direcionador, esse elemento é apenas uma tendência
poética, um rumo não fixo, móvel e aberto a influências no caminho trilhado durante o processo.
“O percurso criador mostra-se como um itinerário recursivo de tentativas, sob o comando de
um projeto de natureza estética e ética, também inserido na cadeia da continuidade e, portanto,
sempre inacabado” (SALLES, 2007, p.27). E nesse tempo contínuo de construção da obra,
refeito pela pesquisa de processo, as tomadas de decisão e as dúvidas permitem ao pesquisador
compreender os princípios direcionadores que incidem nas leis internas de criação que se
tornam parte da obra.
Em outras palavras, o que se busca na problematização da criação é uma reflexão sobre
a “conduta criativa”, termo usado por Passeron (2004, p.10). O autor, que parte dos estudos
sobre a poética e a estética de Paul Valéry4, tenta compreender e elucidar o fenômeno da criação
com o que ele chama de “poiética”, um pensamento possível da criação em rebelião contra a
estética “como discurso proteiforme, que se pretendia o único a falar de arte” (PASSERON,
2004, p.10). Passeron esclarece que a estética considera a obra e tece considerações sobre o
sentir. “A estética tem um coração, tem cabeça, mas não tem mão” (PASSERON, 1997, p.104).
E essa metáfora deixa claro que o que se considera aqui não são os significados da obra
4
VALÉRY, Paul. Teoría Poética y Estética. Madrid: Visor Distribuciones, 1990.
19
concluída, mas as ações que conduzem a ela: “no fluxo da obra, o objeto da poiética está acima
da obra, o objeto da estética, abaixo” (PASSERON, 2004, 10).
“A estética está situada do lado das ramificações do arco nervoso, ao passo que a
poiética se encontra do lado dos circuitos motores” (PASSERON, 1997, 104). As condutas
poiéticas, apesar de concentrar referências ação, no movimento de criação, devem ser distintas
de uma produção – e o autor deixa claro.
A crítica genética se configura como uma arqueologia dos estudos do processo criativo.
É ela que se volta ao percurso da obra de forma a coletar, catalogar e examinar os artefatos, os
vestígios que ficaram pelo caminho percorrido pelo artista. Cecília Almeida Salles (2008a), no
livro “Crítica Genética – Fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação
artística”, fala que o propósito da crítica genética é oferecer uma nova abordagem da obra de
arte, uma perspectiva de processo e indagar essa obra a partir de sua criação. A obra é resultado
de um trabalho complexo de ajustes, esboços, pesquisas, planos, rastros que caracterizam sua
metamorfose, sua transformação progressiva.
Segundo a autora (SALLES, 2008a, p.7), a crítica genética nasce na literatura, com
pesquisas tendo como objeto rascunhos e manuscritos de escritores. Na França, em 1968, foi
criada uma equipe para catalogação e investigação de manuscritos do poeta alemão Heinrich
Heine, pelo Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Essa experiência, apesar de
enfrentar problemas metodológicos, fez com que mais pesquisadores se interessassem pelo
estudo de manuscritos de outros autores. No Brasil, estes estudos começaram a ser
20
desenvolvidos nos anos 1980 e durante os anos seguintes, e até o início dos anos 1990,
centraram-se exatamente na literatura. “Eram pesquisadores envolvidos nas tentativas de
decifração dos segredos guardados pelas palavras rasuradas a lápis, a tinta ou a máquina. (...)
O crítico, acompanhando o ritmo da mão do escritor, ordenava, classificava e interpretava todo
esse material” (SALLES, 2007, p.14).
Entretanto, com a intensificação dos estudos genéticos5, percebeu-se a necessidade de
transpor a palavra como única forma de acompanhar as pegadas do escritor. Mesmo se ficarmos
no campo literário, as novas possibilidades de trabalho e armazenamento de dados (como
gravadores de voz, por exemplo, ou referências imagéticas, como fotos e desenhos à mão)
mostram que as pegadas do artista vão além do meio através do qual ele se manifesta – e a
crítica genética deveria, então, romper a barreira da palavra (SALLES, 2007, p.20).
Como exemplo, a figura 1 foi coletada por Cecília Salles a partir do estudo de processo
do livro “Não Verás País Nenhum”, de Ignácio de Loyola Brandão. Salles teve acesso aos
diários de Loyola de quando trabalhava no livro e aponta que no material há muitos exemplos
da utilização visual como forma de registro do seu percurso em direção ao livro.
5
O Centro de Estudos de Crítica Genética da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo teve um papel
importante nessa expansão dos limites dos estudos genéticos. Trata-se de um grupo de estudos ligado ao Programa
de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica que recebe alunos de formações e interesses diversificados.
Assim, em pouco tempo, já havia pesquisadores lidando com manuscritos de cinema, arquitetura, artes plásticas,
teatro e dança. (SALLES, 2007; p.14)
21
Ela acrescenta que muito do cenário que é visto na imagem é abandonado no decorrer
do processo, cuja forma verbalizada no livro ficaria:
"Olho pela janela, há um homem que me observa. Penso que está olhando para mim".
Ele interrompe o trabalho e se encosta no vidro. Me olha e devo pensar: "Vejo aquele
homem há tanto tempo, que vou sentir sua falta, se um dia ele sair dali. Acostumei
com ele. Meu deus, delírio. Bela novidade!" (SALLES apud Brandão, 1982, p.85)
Termo usado por Cecília Salles, a crítica genética em expansão (2008a, p.20) referia-se
a essa ampliação de abordagens e objetos, não mais chamados de manuscritos, mas de
documentos de processo. O crítico do processo de criação lidava agora com uma infinita gama
de “registros materiais do processo criador”, em diversas mídias, de modo que os estudos
ganhavam certa transversalidade na busca e consideração por índices do percurso criativo. Uma
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pesquisa em cinema, por exemplo, em vista da multiplicidade das áreas que convergem para a
realização de uma peça artística (o filme), se configura como um celeiro para estes documentos.
Roteiro (e seus tratamentos6), desenhos de figurino, ordens do dia, imagens descartadas na sala
de edição e muitas outras indicam não haver dificuldade em se obter material para observar os
percursos de feitura da obra; mas, por outro lado, a dificuldade do “acompanhamento crítico-
interpretativo dos registros” (SALLES, 2008, p.35) passaria a ser eleger quais desses materiais
seriam fundamentais para uma pesquisa em particular, de modo que esses elementos pudessem
oferecer uma perspectiva de processo, o “retrato temporal de uma gênese” (SALLES, 2008,
p.20).
O olhar genético vai além da mera observação curiosa que esses documentos possam
aguçar: um voyeur que entra no espaço privado da criação. O crítico genético não só
narra a história das criações. Os vestígios deixados por artistas oferecem meios para
captar fragmentos do funcionamento do pensamento criativo; oferecem uma
sequência de gestos advindos da mão criadora e experienciados, de forma concreta,
pelo crítico. Gestos que se repetem e deixam aflorar teorias sobre o ato criador.
(SALLES, 2008a; p.35)
Quando a autora fala em “aflorar” teorias, ela se refere ao fato de crítica genética (ou
crítica de processo de criação) ser um possível método para estudo das obras artísticas que se
vale de um acompanhamento dos índices de criação, de modo que apenas a partir da
determinação da natureza do objeto artístico e da natureza dos documentos de processo que
alguma teoria poderá ser formada. “A pergunta que nos guia é: o que esse material me oferece
sobre o processo criativo do artista estudado? Que aspectos de seu processo criativo estão aqui
evidenciados?” (SALLES, 2008a; p.34). Cada obra exige uma abordagem que possa abarcar
tanto seu meio de expressão, quanto os tipos de rastros deixados, de modo que se possa chegar
a uma sistematização desses registros que funcione como norteador do processo de criação. Ou
seja: é um acompanhamento crítico-teórico desse caminho de feitura da obra por meio de uma
abordagem fenomenológica, cuja observação dos documentos propicia estabelecer relações
entre as informações oferecidas pelos documentos de processo e entre esses documentos e a
obra entregue ao público (SALLES, 2008a; p.28). Os próprios documentos servem de guia
controlador para as interpretações que serão feitas.
É importante colocar que para a crítica genética não existe uma obra finalizada, mas
uma obra “entregue ao público”. As obras que conhecemos seriam, para a crítica genética, uma
versão das que o artista trabalhou até finalmente mostrar ao público. “O interesse não está em
6
Tratamento, em vias gerais, trata-se de diferentes versões de um roteiro, realizadas a partir de revisões antes de
serem iniciadas as filmagens.
23
cada forma, mas no modo como se dá a transformação de uma forma em outra” (SALLES,
2008a, p.35). Essa perspectiva é um modo de integrar de maneira mais contundente a obra ao
seu processo. E esse também é um modo de estabelecer que a crítica de processos não se vale
dos produtos, mas dos movimentos de criação que resultaram na obra.
A criação da obra para o crítico é um sistema complexo cujos rastros deixados pelo
caminho não são um amontoado de dados isolados, mas possibilidades de refazer e
compreender o pensamento do artista integrado à obra “final” – e seu trabalho é estabelecer
relações, nexos para que significados sejam construídos. Pensar em “processo” e não em
“gênese” (no sentido de origem) evidencia mais profundamente o interesse no movimento ao
invés do produto, o que faz Cecília Salles abordar o pensamento do artista nessa construção
como o conceito de redes de criação.
Um ponto fundamental pelo qual podemos começar a pensar as redes de criação é que
as interações, as conexões de que fala Salles (2008b) referem-se tanto ao movimento de
produção da obra quanto ao pensamento em processo do artista. Um objeto artístico não pode
ser avaliado isoladamente, uma vez que ele possui referências as mais diversas no trajeto
percorrido pelo seu autor. Diferentes suportes de registros pressupõem interferências
diversificadas e o objeto existe a partir de uma rede interinfluenciada que o compôs por meio
do artista que catalisa conceitos plurais para a produção da obra.
Enquanto a crítica genética foca-se nos manuscritos (ou documentos de processo) como
base material e lugar de memória, a crítica de processos estabelece laços e ata nós na leitura
para o movimento de construção da obra, cujas descobertas aparecem de dentro dessas ações
registradas, através de “características marcantes e repetidas dos processos de criação, tais
como: simultaneidade de ações, ausência de hierarquia, não linearidade e intenso
estabelecimento de nexos” (SALLES, 2008b, p.10). “O crítico, ao estabelecer nexos a partir do
material estudado, procura refazer e compreender a rede do pensamento do artista” (SALLES,
2008b, p.22).
A obra de arte é, para a autora, um construto não linear, formada por uma ação ligada a
outra, numa ideia de que o pensamento passa por associações que provocam as transformações.
Há uma ideia de fluxo em convívio com relações menos fixas e sistemática como causa e efeito
que um desenvolvimento linear poderiam supor. Existem oscilações, pausas, desvios, dúvidas
e erros, reorganização – em suma, mecanismos que desestabilizam o fluxo contínuo e
evidenciam um caráter dinâmico das interações através das quais são formados tanto a obra no
trajeto, quanto o pensamento do artista neste processo. “Os atos de rejeitar, adequar ou
reaproveitar são permeados por critérios, que nos interessam conhecer, e refletem modos de
24
A criação do artista está permeada de valores individuais e seu contexto cultural, suas
percepções acerca do seu tempo, e das formas de realização das obras. A cultura em
que o artista está imerso vai interferir e colaborar para a sua formação como indivíduo,
a sua experiência em sociedade, a construção de seus afetos e elaboração de seu
“padrão referencial básico”. É a partir da elaboração desse referencial que o indivíduo
se coloca no mundo, vivencia e interfere na cultura e sua obra carrega esse valor
político, mesmo que inconsciente, de se relacionar com as formas culturais em torno
de si. (CRUZ, 2014, p.23)
(MORIN, 2001, p.37-38). Ou seja: a maneira como o artista mobiliza o conhecimento prévio e
se coloca enquanto ser reflexivo sobre as ideias que defende, os conceitos que mobiliza e os
materiais que ressignifica para sua utilização específica.
Uma outra abordagem para observar o processo de construção das obras de arte é
proposta por Michael Baxandall, no seu livro “Padrões de Intenção – A Explicação Histórica
dos Quadros” (2006), centrado na análise de pinturas, com intuito de conciliar a polarização
entre crítica e história da arte. O autor parte não de registros de construção, mas da obra
concluída para investigar o modo como ela se configurou a partir das circunstâncias em que ela
foi produzida. Para o autor, a concepção de um quadro e a sua produção são momentos em que
o artista se pôs a solucionar questões inerentes a esta realização, determinada historicamente
por situações e contextos específicos.
A partir desse mote, o autor propõe uma metodologia para analisar o processo de criação
que considera não apenas o contexto histórico em que foi produzido, mas a história do objeto
em si como essenciais à compreensão do motivo pelo qual determinadas escolhas foram feitas
na construção desse objeto. Tanto o artista, em seu contexto histórico, quanto o objeto, guardada
sua historicidade, têm um intento, um propósito, uma “qualidade intencional”, o que ele chama
de “padrões de intenção”.
O autor, dessa forma, põe como determinante o cuidado com a própria linguagem
empregada na descrição, propondo, inclusive, uma lista de vocábulos para análise da estética
visual (BAXANDALL, 2006, p.102). “A descrição é menos uma representação do quadro, do
que uma representação daquilo que pensamos ter visto nele” (BAXANDALL, 2006, p.44).
Somado à linguagem e à descrição, o outro fator é o distanciamento do pensamento do autor
que confere à crítica um olhar sempre de estranhamento sobre a obra por se tratar de um objeto
do passado num espaço contemporâneo – e um esforço em situar-se junto à obra neste passado,
no momento em que se faz uma explicação descritiva, uma vez que a história também serve de
orientação da crítica para a descrição e interpretação a respeito da intenção do artista e as formas
que a obra tomou.
28
[...] a reconstrução não refaz a experiência interna do autor; ela será sempre uma
simplificação limitada ao que é conceitualizável, mesmo que opere numa estreita
relação com o quadro em si, o que nos proporciona, entre outras coisas, modos de
perceber e de sentir. Nossa atividade será sempre relacional - tratamos das relações
entre um problema e sua solução, da relação entre o problema e a solução com o
contexto que os cerca, da relação entre nossas interpretações e a descrição de um
quadro, da relação entre uma descrição e um quadro. (BAXANDALL, 2006, p.48)
E, assim, voltamos ao ponto chave para o autor: quais os objetivos do artista em seu
processo de criação? Ou melhor: como determinar estes objetivos? E, por fim: como contexto,
história e cultura incidiram no que o artista escolheu e aplicou na composição da obra? Deparar-
se com os objetivos do artista ao realizar uma obra em determinado contexto histórico constitui-
se numa forma de inferir questões intrínsecas de sua composição, uma vez que a obra foi
produzida tanto em contexto histórico determinado quanto responde a demandas e necessidades
do artista para atingir determinado fim. É por esses aspectos que Baxandall, como meio de
sistematizar os elementos envolvidos na construção da obra, desenvolve os conceitos de
encargo e diretriz.
O encargo seria o problema central que o artista se propõe a resolver. Antes de analisar
as pinturas, o Baxandall faz um estudo sobre a construção de uma ponte sobre o Rio Forth, na
Escócia. O encargo, neste caso, por se tratar de ter o objeto, uma ponte, uma função tão
específica, seria mais fácil de ser definido: ligar uma margem a outra do rio para passagem de
trens. Talvez o autor tenha começado por uma obra “funcional” exatamente para evidenciar que
o seu método pode ser aplicado a qualquer objeto, não apenas obras de arte, mas que serve
principalmente para fundamentar o raciocínio sobre a origem da obra e sedimentar a
argumentação da crítica a que ele se propõe. Porém, qual seria o encargo ao se formular um
quadro – ou um filme? Por que determinada obra foi feita? Qual o problema central que o artista
se propôs a resolver?
Vamos usar como exemplo o filme que motiva esta pesquisa. No caso de “Viajo porque
preciso”, o diretor Marcelo Gomes deixa claro7 o encargo do filme: fazer um filme de ficção a
partir de registros documentais que potencializasse a experiência que tiveram e as emoções
que sentiram no momento da captação. É muito recorrente na fala dos dois diretores, em
entrevistas no lançamento do filme e para a realização dessa pesquisa, que eles buscavam aquilo
7
Em entrevista a Jean-Claude Bernardet, Marcelo Gomes diz: “Então, a gente decidiu fazer um filme com aquilo
[o material coletado na viagem de 1999]. Mas um documentário de longa seria uma repetição da experiência de
‘Sertão’, e o que a gente queria era potencializar aquelas emoções que nós particularmente sentimos na viagem...
E assim decidimos fazer uma ficção, com um personagem que seria eu e seria Karim para potencializar o que nós
vivenciamos...”
29
que os emocionasse e é essa emoção que eles se lançam a imprimir no longa – e que não fica
evidente em “Sertão”, o curta documental, dada a sua construção “experimental”. E como fazer
isso? Esse é o problema central, o encargo no qual se lança autor em busca de uma solução.
Diferentemente de Baxandall, que se propõe inferir o encargo das obras, é um privilégio no
nosso caso ter acesso aos autores do filme e depreendermos o encargo, explicitado direta e
objetivamente por eles.
“O Encargo em si não tem forma; as formas começam a surgir das Diretrizes”
(BAXANDALL, 2006, p.84). O que Baxandall chama de diretriz diz respeito a aspectos mais
específicos do encargo: levando em consideração o contexto histórico e a cultura da época,
quais os materiais e as técnicas de que dispunha o autor? Quais as necessidades da obra? E as
restrições? Por exemplo, o autor aponta como algumas diretrizes para a construção da ponte
“resolver o problema dos fortes ventos laterais, do fundo argiloso do rio e da necessidade de se
desimpedir a circulação de navios” (BAXANDALL, 2006, p.82). Investigar estes pontos, as
diretrizes da obra, nos fazem enxergar como estas específicas necessidades ou restrições (de
materiais, de tecnologias etc.) podem ter sido determinantes para decisões sobre a execução das
obras, de modo a podermos reconstruí-las o universo no qual foi planejada e executada.
Para os estudos de Baxandall, o esforço para investigar e fazer inferências sobre as
diretrizes das obras pauta-se fortemente na distância histórica das obras e o não acesso aos
autores. Ao analisar um dos quadros no seu livro, Retrato de Kahnwiler, de Pablo Picasso, o
autor define como conceitos (diretrizes) com os quais o pintor trabalhou sendo “tensão entre o
plano da tela e a tridimensionalidade do objeto; tensão entre forma e cor; tensão entre ficção da
instantaneidade e uma relação prolongada do pintor com o objeto” (BAXANDALL, 2006,
p.86). Baxandall formula estes pontos a partir de discussão anterior de viés histórico sobre a
evolução da pintura posta em evidência no final do século XIX e começo do século XX (o
quadro é de 1910), principalmente nas questões que o Impressionismo havia lançado no que
concerne às formas de representação a partir deste período.
Voltando ao objeto desta pesquisa, no nosso caso, contamos com entrevistas e
dialogamos com os diretores, qual a necessidade de investigar tais diretrizes? A princípio,
apesar do acesso aos autores, há uma diferença entre executar uma obra e refletir sobre ela – e
este é o nosso papel. Acreditamos que seja imprescindível pensar e se debruçar sobre as
diretrizes neste caso pelo fato de a construção do filme ter tido condições específicas de
realização, especialmente restritas, e que a própria execução e escolhas (e restrições também)
implicaram decisivamente em aspectos narrativos e dramatúrgicos do que a obra se configurou.
30
Nosso modo de proceder na análise dos Padrões de Intenção parece indicar que vemos
em X (o agente ou artista) um misto de racionalidade, cultura e caráter essencial. Isso
significa, entre outras coisas, que só poderemos aplicar o esquema analítico que vai
do problema à solução se tivermos a solução diante de nós, porque a quantidade de
informações que temos sobre X é insuficiente para levar a cabo o modelo; em vez
disso usamos a solução como um dado ao qual nos referimos constantemente.
(BAXANDALL, 2006, p.73-74)
O c seria a descrição do objeto. Baxandall (2008, p.74) diz que o seu triângulo não é
uma narrativa do processo de criação, mas uma “representação da atividade de reflexão ou da
racionalidade intencional referida às circunstâncias”, cujo sentido acontece no “confronto
ostensivo” com a obra em si. O autor, referindo-se ao seu estudo sobre a ponte do Rio Forth, ao
modo como ela foi finalizada, diz que se há uma “explicação” para a sua forma, e “só é possível
entende-la mostrando que ela é um modo racional de atingir um fim inferido” [grifo do autor].
Do mesmo modo, no estudo sobre a construção de uma obra artística podemos entender os
meandros do encargo e diretriz em vista da obra final.
Apenas para fechar o exemplo do filme para o qual nos lançamos aqui, no caso de “Viajo
porque preciso”, teríamos como diretriz fazer um filme que remontasse as emoções da viagem
dos cineastas ao Sertão; e como encargo(s) todo tipo de questões que envolve realizar uma
ficção a partir de elementos documentais, sob a ótica de um personagem-síntese das emoções
dos cineastas que ressignificasse aqueles registros – elementos exploratórios para, então, passar
31
a uma descrição crítica do filme pela várias nuances que implicam as respostas que o método
de Baxandall procuram, que é a obra pronta.
Antes de mais nada, é preciso esclarecer que não existe um método ou um manual de
como proceder nas pesquisas sobre criação. A maioria desses estudos vem desde o início
partindo de estudos de casos e, dada a especificidade das obras e seus materiais constitutivos,
assim como o tipo de suporte em que os índices, os documentos de processo, se encontram,
pode-se inferir também uma variedade de formas de trabalho e de abordagens.
Apesar disso, Salles (2007) aponta que, por necessidade científica, os pesquisadores
vêm avançando na definição de uma generalização sobre o processo de criação “que leve a
princípios que norteiem uma possível morfologia da criação” (SALLES, 2007, p.21). Dossiês
de cientistas e artistas são observados como forma de partir do específico para o geral, de modo
a haver alguma caracterização comum sobre o ato criador.
A autora fala que não se trata de modelos fixos ou rígidos, mas instrumentos que
permitam acessar a complexidade que se mostra estudar o processo. Uma descrição do processo
não é suficiente; busca-se a ligação entre os materiais de modo a dar ao processo explicações
guardadas nos documentos. “Cada índice, se for observado de modo isolado, perde seu poder
heurístico: deixa de apontar para descobertas sobre criações em processo. É necessário seguir a
coreografia das mãos do artista, tentar compreender os passos e recoloca-los em seu ritmo
original” (SALLES, 2007, p.19).
Desse modo, a pesquisa tem implícita uma a missão dupla: dar unidade a um objeto
aparentemente fragmentário e estabelecer uma dinamicidade no processo, colocando-o no
prisma do movimento e da ação revelando o “tempo contínuo e não linear da criação”
(SALLES, 2007, p.20). Apesar de anteriormente já haver alguns exemplos dos procedimentos
da crítica genética e crítica de processos, a seguir iremos relatar alguns estudos de processo de
modo a ilustrar o funcionamento das pesquisas de criação.
32
É um sótão com objetos pessoais” (...) “restos de memória, de cultura – que vieram parar na
minha praia-sótão”; “Sudário e memória não são dois temas, mas dois pólos que estabelecem
uma relação da pintura (plástica, portanto física) com uma questão humana (e memória)”
(SALLES, 2007, p.24).
Junto a isso, há também imagens de processo de enferrujamento de pregos (figura 5)
que iriam compor algumas de suas obras:
E segue a observação, mesmo que ligeira, da autora sobre o estudo desse processo:
Para a autora, as interatividades das ações do artista são reativadas pelo crítico ao
analisar os documentos de processo. No entanto, destacamos apenas uma parte do trabalho a
título de ilustração, uma vez que há outros âmbitos a serem observados no percurso da criação
artística que podem ser reunidos pelo crítico para uma visão mais completa do processo.
Como último exemplo, um caso particular, não de busca do caminho de uma obra já
entregue, mas o acompanhamento da obra em curso. O pesquisador Marcos Santos, em sua
dissertação de mestrado “Tatuagem: de dentro para fora, um estudo do processo de criação a
partir do roteiro do filme” (2014), traz o relato de dentro da produção do filme. O pesquisador
esteve presente em várias fases da produção: teve acesso a diferentes versões do roteiro, esteve
presente durante as filmagens; e esteve com o diretor e com o editor no processo de montagem,
de modo que viu cortes mais estendidos do filme do que sua versão final. Ou seja: ele estava
completamente imerso em todo o processo de produção do filme, testemunha ocular, com um
34
8
Entre 1973 e 1983, foram realizados mais de 200 filmes que contavam com as mais variadas propostas estéticas.
No entanto, essa produção era dividida em filmes experimentais, que tinham como eixo narrativo temas
existenciais urbanos e de crítica da cultura, filmes ficcionais, que tinham bastante influências de filmes clássicos,
apesar de todas as limitações técnicas da bitola e da falta de recursos, e documentários que abordavam a cultura
nordestina. (SANTOS apud FIGUEIRÔA, 2000)
35
Essas referências iniciam-se com imagens feitas por uma bolex, uma câmera do início
da década de 40 do século passado, que filma em 16mm. Para as filmagens foram
utilizados filmes com o prazo de validade vencidos, para que se alcançasse uma
textura próxima às imagens feitas por uma câmera de super8. Não seria exagero de
nossa parte dizer que o filme de Hilton não só faz referência ao uso da bitola, através
de uma verdadeira metalinguagem tendo em vista que existe um filme - o ficção e
filosofia - que está sendo realizado dentro da narrativa do Tatuagem, sendo o
personagem que o realiza, o professor Joubert Mauritz.
Essa é mais que uma homenagem que o realizador faz àquele que é não só um dos
grandes nomes da cena cultural pernambucana mas da produção superoitista de
Pernambuco [...]. Dizemos que é mais do que uma homenagem porque, na realidade,
é uma referência, tendo em vista a estreita relação de amizade e de parceria que existia
entre Jomard e os componentes do Vivencial, a qual é transpassada dentro do filme
para o professor Joubert e o Chão de Estrelas. (SANTOS, 2014, p.71)
Marcos Santos compara estas duas imagens para mostrar a correspondência entre um
filme realizado por Jomard Muniz, chamado Vivencial I (figura 6), em Super 8, e o seu eco no
filme de Hilton Lacerda (figura 7). As referências de enquadramento e mise en scène são
evidentes, assim como o figurino religioso e a dublagem de um poema, recurso usado nos dois
filmes.
Um outro ponto diz respeito ao diretor atentar para o grupo Vivencial por incentivo do
amigo Trevisan. As redes de criação são estabelecidas também em diálogos externos que trazem
para dentro da obra estas influências. “As conversas com amigos, que podem tomar várias
formas como cartas, e-mails ou registros em anotações ou diários, parecem cumprir um papel
importante como espaço de articulação e troca de ideias com contemporâneos” (SALLES,
2008b; 45). O trabalho de Marcos Santos se aprofunda inclusive em pensar o cinema
pernambucano como cadeia de amizade, troca de saberes e experiências e contribuição mútua,
como uma rede de criação particular na produção do país.
36
Neste tópico, iremos apresentar uma metodologia de análise e trabalho para a pesquisa
em cinema a que nos propomos. Mesmo que as considerações anteriores sobre estudos de
processo criativo já serem diretos em apontar que não está no cerne da questão “uma
interpretação do produto considerado final pelo artista, mas sim o processo responsável pela
geração da obra” (SALLES, 2007, p.13), o ponto principal aqui é deixar claro que não queremos
fazer um estudo conceitual ou interpretativo sobre estética fílmica, mas um estudo de conteúdo
e forma a partir do seu processo de criação: examinar como o particular trajeto e a intrincada
rede de criação geradores do filme “Viajo porque preciso, volto porque te amo” foram
responsáveis diretos pela construção da sua poética.
Cecília Salles, ao pensar em uma “morfologia da criação” (2007), tem ciência e aponta
para a diversidade de pesquisas e análises possíveis para os estudos de processo. Por esse viés,
podemos pensar o estudo de uma obra como um processo em rede, fruto de se estabelecer
também uma rede de pensamentos, de diferentes teorias e pesquisas que se articulem, por sua
vez, também em rede. “Os pesquisadores que se interessam pela compreensão dos processos de
criação falam de uma rede que se constrói e necessitam, portanto, de uma abordagem que esteja
também nesse paradigma relacional, para dar conta de seu objeto de pesquisa, pois o modo de
apreensão de um pensamento em rede só pode se dar também em rede” (SALLES, 2007, p.45).
De dentro do emaranhado de ações que constitui o percurso temporal de produção da
obra (e que é reconstruído pelo pesquisador), as repetições significativas e as aparentes
redundâncias “podem estabelecer generalizações sobre o fazer criativo, a caminho de uma
teorização” (SALLES, 2007, pag. 21). E essa teorização em rede é também, segundo definição
de Musso (2004, p.31), uma estrutura de interconexão instável, composta de elementos em
interação, e cuja variabilidade obedece a alguma regra de funcionamento”. É essa “regra de
funcionamento” que procuramos nas obras e que definem o norte dessas pesquisas.
Propomos exatamente isso: uma rede de teorias que permitam refazer a trajetória de
produção do filme “Viajo porque preciso” em consonância com as suas particularidades de
produção e a pluralidade de caminhos pelos quais a obra passou.
Quando Cecília Salles considera que as obras partem de um projeto poético do artista –
“princípios éticos e estéticos, de caráter geral, que direcionam o fazer do artista” (2007, p.39)
–, a autora se refere de modo geral a qualquer obra artística. De modo a especificar o fazer
cinematográfico nesta pesquisa, lançaremos mão da definição de Bordwell (2006, p.17) do que
seria uma poética fílmica, cujo foco divide-se em três pontos: a temática, a construção narrativa
37
em larga escala e a composição estilística. A pergunta que nos move é: como o filme (a obra)
chegou à forma como foi finalizado?
Para responder a esta pergunta, iremos refazer a trajetória da construção do filme
considerando o recorte de espaço-tempo de dez anos (1999-2009), período que separa a
captação das imagens em uma viagem exploratória dos dois cineastas (antes mesmo de haver
qualquer proposta de transformar o material em um filme) até sua finalização, o produto a que
o público teve acesso. Desse modo, pretendemos mapear e conectar, nos seus recursos
narrativos e estilísticos, as motivações originadas das relações processuais de cada uma dessas
etapas. Se pensarmos em cada uma das vertentes indicadas por Bordwell para a poética deste
filme, todas elas terão origem não a partir de ideias abstratas e decisões criativas, mas
diretamente relacionadas ao percurso concreto da experiência sensível dos diretores na captação
do material, na tentativa de arranjo orgânico que se configurou em “Sertão de Acrílico” e na
maturação criativa dos filmes “do meio”.
Vejamos alguns exemplos. Em relação à temática, temos um personagem que viaja pelo
sertão pela primeira vez, a trabalho, descobrindo o lugar e cujos sentimentos se embrenham na
paisagem e nas pessoas que encontra – uma síntese da experiência vivida pelos dois cineastas;
nos encontros entre o protagonista e as pessoas/personagens, sua fala (narração off) é uma
composição entre o que foi ouvido de verdade e o que se ficcionalizou em adequação à trama
criada.
No que diz respeito à narrativa em larga escala, uma estrutura de eventos fragmentados
é construída, aparentemente sem conexão direta, assim como a estrutura de “Sertão de
Acrílico”, do qual o longa também mantem tanto os blocos temáticos (dos quais falaremos no
capítulo 3), quanto a seleção de imagens.
Quanto à composição estilística, a afirmação estética documental servindo à ficção, com
suportes imagéticos variados (vídeo, Super 8, fotografias etc.), uma câmera sempre subjetiva (a
frisar, esses dois aspectos também obedecidos nas filmagens adicionais especialmente para o
longa), som predominantemente diegético, especialmente a narração em off do protagonista,
menos “limpa” para soar como realizada através de um gravador de voz comum.
Nossa pesquisa, ao tentar refazer o percurso criativo do filme, seguirá o curso de ordem
cronológica, passeando pelos capítulos de modo a trazer a dinamicidade do próprio processo.
A pesquisa inicial do projeto, realizada a partir da captação das imagens e da exploração da
região, tornaram-se uma espécie de pesquisa etnográfica, não com objetivo científico, mas
enviesada pelos sentimentos despertados nos cineastas ao se lançarem naquela experiência.
Dessa forma, mesmo que se trate de um capítulo contextual e histórico, no capítulo 2 propomos
38
a observação das circunstâncias de trabalho e das escolhas na captação das imagens como uma
experiência mediada pelo sensível e pelo afeto – uma espécie de “coleta sensorial”, como fala
Salles (2007, apud GOLDBERG, 1994) –, uma maneira a enxergar como esta experiência foi
decisiva na forma como o longa foi construído diegeticamente.
No capítulo 3, começaremos falando da construção de “Sertão de Acrílico”, de forma a
observar a materialização do afeto sobre a experiência de filmagem, a descoberta das imagens
três anos depois de terem sido captadas, de modo a rever o filme a partir de uma estética do
esboço (BERNARDET, 2009), em cujas obras “elementos são justapostos sem que se
estabeleçam entre eles inter-relações fixas e precisas”, de modo a permitir ao espectador
construir conexões que não dizem respeito a um trabalho de decifração, mas pode proporcionar
certa emoção estética. A partir deste viés, retomaremos Cecília Salles (2008) para pensar o curta
como um documento de processo para o que iria mais à frente se tornar “Viajo porque preciso”.
Na metodologia propomos uma divisão temática do curta em capítulos, com descrição e
exposição de imagens que evidenciem tais temas, para observar a recorrência e a utilização
dessa divisão temática e das imagens no longa-metragem, como forma de estabelecer não
apenas o vínculo (e o distanciamento), mas o movimento de processo/procedimentos de uma
obra a outra. Salles, por meio de seus estudos de redes de criação, também servirá para
examinarmos o que chamamos de “filmes do meio”, os filmes dos cineastas concebidos entre a
captação das imagens em 1999 e a estreia de “Viajo porque preciso”, em 2009. Neste ponto,
iremos observar como estes trabalhos trazem na sua diegese e escolhas estéticas e dramatúrgicas
elementos oriundos de “Sertão de Acrílico” e da experiência de filmagem, e presentes em
“Viajo porque preciso”. Para tanto, faremos um paralelo estético e temático entre estes filmes
e “Viajo”, também observando a recorrência e utilização desses elementos: enredo, fotografia,
recursos narrativos, montagem etc.
O capítulo 4 irá se concentrar em analisar como toda a trajetória anterior à produção do
filme motivou a maneira como foi realizado. BAXANDALL (2006) em seus estudos parte do
exame da obra finalizada e considera-a uma solução para um problema, uma questão para ser
resolvida, à qual se propõe o realizador. Por meio dele, iremos explorar quais as questões a
serem “solucionadas” para que todo o material de que dispunham os diretores fossem
empregados para o intento que pretendiam; questões que vão desde o momento histórico da
captação e produção da obra até a disponibilidade de tecnologias interferiram nestes processos.
Em seguida, diferente dos capítulos anteriores, vamos observar não o processo que aponta para
o filme, mas o filme apontando para o processo: o modo como funciona sua construção poética
internamente, mas trazendo a interseção do processo que o formou. O diálogo com
39
BRANIGAM (1992) servirá para enxergar as vozes dos diretores no narrador (e na narrativa
em escala maior), e como os materiais disponíveis foram organizados e implicaram nas escolhas
de cenas, planos, trilha sonora (canções), diálogos, atuação, som, montagem, dando coesão a
atos, sequências e determinando a natureza das filmagens extras. Por fim, o que resulta do
diálogo (ou da tensão) entre os campos de ficção e documentário: a passagem do “fluxo”
documental (que marcou a captação das imagens e a construção do curta) para a formulação de
uma mise en scène que potencializa as emoções e cria a simulação desta experiência do sensível.
40
2. A VIAGEM DE VIAJO
Neste capítulo trataremos de jornadas. Uma jornada física, uma emocional e uma
profissional. Refazer o percurso criativo de “Viajo porque preciso, volto porque te amo” é
refazer a viagem que deu origem ao filme e a viagem temporal que serviu de encubação para
que ele viesse a acontecer. Tais apreciações passam por conhecer um pouco da história dos dois
diretores e do contexto que os encaminhou para a realização deste projeto, uma vez que
acreditamos haver dados decisivos para refletir a formulação dos projetos a partir de elementos
presentes nessas jornadas.
Na jornada de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz pelo sertão é que ganha forma a maior
parte das referências estéticas, narrativas e afetivas que vieram a originar não apenas o curta
“Sertão de Acrílico” e “Viajo porque preciso”, mas também parte das ideias dos projetos
consolidados pelos dois diretores no período entre desses dois filmes. “Ali foi a nossa
verdadeira escola de cinema”, afirma Marcelo Gomes (CINTRA, 2015). O encontro com as
pessoas, as descobertas dos lugares, a desconstrução de clichês... o primeiro road movie foi essa
aventura, lançar-se de forma inteira nessa pesquisa/ filmagem.
A segunda jornada foi a viagem interna: uma emoção e um afeto que se cresciam e
aprofundavam na mesma medida em eles se embrenhavam pelo sertão. A viagem ultrapassa o
limite de uma pesquisa de campo e se externaliza em liberdades assumidas, linguagens testadas,
sem receio de se expor enquanto pessoa e de se expressar como artista. Era uma descoberta e
aprendizagem pessoal, concomitante ao encontro com as pessoas e com os lugares.
Por último, a jornada profissional: como encontrar uma forma de mostrar o que foi feito?
Como traduzir essa experiência em termos estéticos e narrativos? Buscar um fio condutor, rever
o que foi feito, encontra-se de novo com o sertão. Era preciso voltar.
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O ano era 1994. Marcelo Gomes tinha 31 anos. Nos dois anos anteriores tinha ido morar
na Inglaterra, onde formou-se em Cinema pela Universidade de Bristol. Karim Aïnouz tinha
28. Morava ainda nos Estados Unidos, onde concluiu mestrado em Teoria e História do Cinema
pela New York University e lá também fez seus primeiros filmes de curta-metragem. Um de
Pernambuco, outro do Ceará. Conheceram-se no carnaval de Recife, tinham amigos em comum.
Logo ficaram amigos.
Nessa época, Marcelo já escrevia o argumento do que seria seu primeiro longa-
metragem, “Cinema Aspirinas e Urubus”. Karin pensava em fazer “Madame Satã”, mas ainda
morava fora do Brasil. No mesmo período, Marcelo dirige um curta, “Maracatu, maracatus”
(1995), documentário muito bem recebido em festivais, e se prepara para dirigir o segundo,
“Clandestina Felicidade” (1998), uma ficção. Karim já havia feito “O Preso” (1992), “Seams”
(1993) e “Paixão Nacional” (1994), passeando entre a ficção, o documentário e o experimental.
A amizade foi fortalecida pelos anos, pela partilha de ideias e a turma de amigos. Um lia o que
o outro escrevia, discutiam, dividiam opiniões, reescreviam. Interesses comuns, parceria
formada, logo procuravam realizar algum filme juntos. Até 1997, no entanto, não haviam
conseguido ir a lugar nenhum com os seus projetos de longa-metragem, apenas escrevendo e
reescrevendo, com uma certa frustração e “uma fome de fazer filmes” (BERNARDET, 2010).
Neste mesmo ano foi lançada a primeira edição do Programa Rumos, do Itaú Cultural,
que consistia em uma plataforma de apoio financeiro a projetos selecionados de várias áreas,
ligados principalmente à produção artística e à reflexão sobre cultura. Marcelo e Karin já tinham
uma ideia de documentar feiras, principalmente as do sertão nordestino, e explorar a relação
que elas teriam com feiras de outros lugares no mundo, no sentido de constituírem um espaço
onde as temporalidades se cruzam. Sendo assim, aproveitaram o edital e formataram o projeto
como pesquisa de campo, que serviria para conhecer a região e coletar referências para montar
mais concretamente um projeto de longa-metragem. Submeteram, erraram o orçamento,
pediram mais do que podiam. Mas conseguiram.
1999. Marcelo Gomes tinha 36 anos. Karin Aïnouz tinha 33. Marcelo estava finalizando
sua participação em um projeto de documentários para a TV. Meses se passaram como
planejamento e aguardando a liberação dos recursos do edital. Foi quando decidiram que não
podiam deixar de viajar exatamente naquele ano: queriam fazer a travessia pela região no último
ano do século, no ano em que haveria a passagem do milênio – viver essa “efeméride”, como
coloca Marcelo (CINTRA, 2015), aludindo à importância simbólica daquela data.
42
Na programação, a equipe iria passar por Pernambuco, Ceará, Paraíba, Bahia e Alagoas,
numa viagem de 40 dias percorrendo as feiras no sertão desses estados. João Jr., produtor do
filme, diz que dividiram a viagem em seis etapas (figura 8), que fazia com que a equipe passasse
por três feiras importantes: uma em Juazeiro do Norte, no Ceará; outra em Campina Grande, na
Paraíba; em seguida, Pernambuco, a feira da Sulanca, em Caruaru (CINTRA, 2016). Depois
disso, iriam para Paulo Afonso, cidade banhada pelo Rio São Francisco para que a culminância
da viagem fosse a chegada ao rio. Apesar dessas feiras pilares, eles poderiam passar por cidades
menores no trajeto, mas não era uma prioridade.
Era apenas uma pesquisa e se concentraria em visitar esses lugares, conhecer pessoas,
tirar fotos para servir de base para um documentário a ser realizado. A “fome de filmar”, porém,
era maior.
(...) Pensamos ‘vamos fazer pra valer, pode ser que dê certo, não vamos só levantar
material de pesquisa, vamos filmar’. Tínhamos uns slides, uma Super-8, duas câmeras
16mm, uma Bolex e uma câmera tcheca, “Minockner”, e também uma mini-DV
VX1000 da Sony, hoje em dia nem se fabrica mais. (BERNARDET, 2010)
piscina, o “navio” que ia desbravar o sertão, e que virou pouco o tema e primeiro nome do
projeto, “Carranca de Acrílico Azul-Piscina”.
Marcelo Gomes diz que a ideia de percorrer feiras aconteceu pela vontade de entender
as temporalidades e territorialidades presentes nesses espaços; porém, a grande intenção deles
era, na verdade, viajar pelo sertão. Os dois vinham de lugares geográfica e afetivamente
parecidos, e as famílias de ambos vinham do sertão nordestino, lugar visitado mais (ou apenas)
através das memórias dos parentes. Havia um misticismo, uma idealização e uma ligação
afetiva com a região, uma curiosidade e uma fascinação por esse lugar. “Nascemos e fomos
criados no litoral do nordeste do Brasil. Para nós dois o sertão sempre foi um lugar imaginado,
recorrente nas conversas de família. Era o lugar onde nasceram nossos avós. (...) Um lugar que
conhecíamos muito bem, mas para o qual nunca havíamos ido.” (REC PRODUTORES, 2009).
A equipe partiu de Recife para o Juazeiro do Norte. Uma amiga que conhecia a cidade
mapeou certos lugares e personalidades para guia-los; artistas locais, que poderiam ser
entrevistados. Karim, que foi de avião de Fortaleza e encontrou o restante da equipe lá, relata o
impacto que teve ao ver a cidade tomada por fiéis, os romeiros, por causa de uma festa religiosa,
uma romaria. “Era como se eu tive chegado no Taj Mahal, num lugar do mundo muito fulcral
(...)”. O diretor fala que eles começaram a filmar as feiras, mas tudo o que acontecia ao redor
parecia muito maior:
“A feira foi para o segundo plano, porque era uma coisa impressionante. A gente foi
filmar uma feira e caiu num caldeirão... naquele caldeirão também tinha uma feira
(...). Não tinha como não filmar aquele negócio acontecendo na frente da gente”.
(CINTRA, 2016)
O diretor fala que eles não podiam ignorar aquela situação, não pensaram muito e
continuaram disparando9 em direção a tudo o que viam. “Há algo que se passa na minha frente,
seria uma loucura não filmar, meu coração estava dizendo que eu tinha que filmar, fomos
filmando...”, fala Karim sobre o seu impulso na época. Logo no segundo dia, então, tomaram
uma resolução: não iriam filmar apenas o que fosse relativo às feiras, mas tudo aquilo que os
emocionasse. “Não existia um roteiro. Só um desejo de se perder através de emoções”
(BERNARDET, 2010). Marcelo conta que chegaram a ir embora do Juazeiro e no meio do
caminho, ainda impressionados com o lugar, decidiram voltar e ficar lá mais dias. Até que no
terceiro dia, uma mudança crucial: não iriam mais cumprir o plano de filmar feiras, de acordo
9
Termo usado em referência ao manejo de câmeras de 16mm, em que se “dispara” quando começa a filmar.
44
com o cronograma e ideia original; se alguma coisa os emocionasse, parariam tudo e iriam
registrar, passariam o dia, ou dias.
Queríamos filmar, mas não existia um projeto claro de que filme era este. Teríamos
um arquivo de material e depois veríamos se haveria filme a partir dali. Era um desejo
de se perder naquele lugar, de pegar pedaços daquele lugar. Esse foi o primeiro passo,
mas não se tinha o desejo de se chegar a algum lugar lá na frente [...] (BERNARDET,
2010).
Drifting away. Karim Aïnouz usa esta expressão em inglês para pensar sobre o estado
de espírito da equipe no momento da viagem. O termo, que pode ser entendido tanto como “ir
embora sem direção”, quanto “perder contato pessoal com o tempo”, confere a eles um
posicionamento, para usar um outro termo estrangeiro, quase de flâneurs do sertão, navegando
pelo lugar, descobrindo o lugar, sem se atentarem a compromissos, querendo experimentar o
lugar. “Não tínhamos plano de filmagem, estávamos de fato fazendo uma viagem de descoberta,
podíamos observar as coisas com um outro tempo, não tinha objetivo concreto”
(BERNARDET, 2010).
A princípio, deve-se pensar que a experiência dos 40 dias em que a equipe esteve na
estrada foi ao mesmo tempo uma pesquisa, uma filmagem documental e uma viagem pessoal,
turística inclusive, e sem hierarquia, completamente definida nessa perspectiva plural. Karim
diz que havia uma vontade um tanto glutona de passar por todos os estados do Nordeste, uma
vontade que ele sempre teve, Marcelo também. Conscientemente, desse modo, havia o caráter
de aproveitar a viagem de forma pessoal além de profissional. (Inclusive, o diretor cearense
mantém em sua casa em Fortaleza parte dos “souvenires” que adquiriu durante a viagem.)
Paralelo a isso, o olho que mediava a escolha e a captação não passava pela condução
de uma ideia fixa, de um roteiro encaminhado, de uma postura acadêmica ou profissional
45
Para Coccia (2010), as imagens são o sensível. Dessa maneira, podemos entender o
cinema também como um ambiente de afetação, onde as verdades (embebidas de
subjetividade) se constroem, em última instância, em uma fronteira, um ambiente
transitório e maleável em que imagens trafegam em ambos os sentidos, em diversos
sentidos. (CUNHA, 2014, p.96. Grifos do autor.)
46
O regime estético das artes é aquele que propriamente identifica a arte no singular e
desobriga essa arte de toda e qualquer regra específica, de toda e qualquer hierarquia
de temas, gêneros e artes. Mas, ao fazê-lo, ele implode a barreira mimética que
distinguia as maneiras de fazer arte das outras maneiras de fazer e separava suas regras
da ordem das ocupações sociais. (...) O estado estético é pura suspensão, momento em
que a forma é experimental por si mesma. O momento de formação de uma
humanidade específica. (...). Pode-se dizer que o regime estético das artes é o
verdadeiro nome daquilo designado pela denominação confusa de modernidade.
(RANCIÈRE, 2005, p.33-34)
Para o autor, é esta última denominação da arte que faz com que o espectador tenha a
possibilidade de estar menos preso ao jogo montado para encaminhar nossos processos de
compreensão, e não mais se ater ao que foi tracejado antecipadamente – ou seja, desvencilhar-
se do que ele chama de “pedagogia do autor”. É a possibilidade da emancipação do espectador.
10
Na verdade, são três regimes apontados por Rancière. O outro seria o regime ético, que, por não identificar a
arte enquanto campo autônomo, mas ligado ao modo de vida dos indivíduos e da sociedade, não iremos considerar
para este estudo.
47
Existia uma grande liberdade quando fazíamos aquelas imagens. Uma liberdade que
sabíamos que não teríamos quando fôssemos realizar nossos longas. Ali foi a grande
escola de cinema pra mim e pro Karim. Foi ali que aprendemos a imaginar dentro de
um cenário de filmagem, a colocar a imaginação diante de qualquer plano de
filmagem, de qualquer roteiro e lembrar que existe espaço para a invenção na hora em
que você está desenvolvendo um filme. (BERNARDET, 2010)
11
Termo usado para designar a relativização da realidade concreta por parte do leitor/ espectador, aceitando as
premissas de uma obra de ficção (cinema, teatro, literatura), mesmo as mais fantasiosas, como verdadeiras para
que haja apreciação completa da obra.
48
“A gente estava numa aventura e a única coisa que teria quebrado essa aventura seria
ter visto o mar. (...) A gente nunca ia passar por Recife, por exemplo. A sensação que
eu tinha era que se a gente chegasse perto do mar, aquilo deixava de ser encantado”
(CINTRA, 2016).
A vida não conhece histórias. Não conhece ações orientadas para fins, mas somente
situações abertas em todas as direções. Ela não conhece progressões dramáticas, mas
um movimento longo, contínuo, feito de uma infinidade de micromovimentos
(RANCIÈRE, 2013, p. 8).
A proposta ideológica dos diretores é seguir o fluxo da vida que se apresentava naquela
viagem sem os artifícios representativos que surgem como obstáculo da imersão (CUNHA,
2014, p.101). As imagens eram formadas (captadas) pela experiência tátil de ver, ouvir, sentir
e saborear o mundo que nos circunda. É isso vai ao encontro do que nos propõe COCCIA
(2010), pensar o sensível como imagens.
(...) a vida sensível em todas as suas formas – pode ser definida como uma faculdade
particular de se relacionar com as imagens: ela é a vida que as próprias imagens
esculpiram e tornaram possível. (COCCIA, 2010, p.10)
A gente estava num lugar, acho que era Sertânia... que tem aquela família que a filha
lê ‘Dom Casmurro’. Aquilo era... assim... a gente falava ‘não, vamos parar, desce todo
mundo!’. Descia todo mundo e ia filmar, enfim... Tinha essa coisa que foi o modus
operandi (...) que era você estar sempre alerta e sempre à flor da pele para tudo o que
aparecesse na tua frente. Isso não tava no começo do projeto não... Isso é muito bonito,
muito bacana e o filme [Viajo porque preciso] é todo contaminado por essa energia.
(CINTRA, 2016)
Figura 9: Família em Sertânia. Figura 10: Filha que lê e relê "Dom Casmurro".
(Frame do filme “Viajo porque preciso”) (Frame do filme “Viajo porque preciso”)
Uma das figuras mais marcantes de “Viajo porque preciso” foi a prostituta Pati. Marcelo
e Karim a conheceram numa feira em Campina Grande, na Paraíba. Entrevistaram-na no
50
próprio local, e seu desejo por uma “vida lazer”, seu modo de se expressar e encarar a vida os
fez passarem dois dias sendo guiados pela cidade com ela. Atentos ao mundo de Pati, deixaram-
se conduzir e foram levados por ela à fábrica de colchões e para bordel onde trabalhava, onde
filmaram a cena da dança – todas sequências mantidas nos dois filmes realizados mais à frente.
Todo esse material, a partir da presença de Pati, relaciona-se bem com o percurso de realização
que se desenrolava: da feira (ideia original) onde a encontraram para os espaços físicos e
sensíveis do seu mundo – o colchão e a dança.
Figura 11: Pati na fábrica de colchões. Figura 12: Pati no bordel onde trabalhava.
(Frame do filme “Viajo porque preciso”) (Frame do filme “Viajo porque preciso”)
Ideia, pesquisa, projeto. Com poucas variações, este é o mais básico circuito de
preparação para um filme, especialmente um documentário. A ideia é sobre o que vai se falar;
a pesquisa encaminha a ideia para o como vai-se realizar, o que se transforma no projeto – e
eventualmente em um roteiro que sirva de abordagem visual e temática. A diversidade de
abordagens no documentário, entretanto, pode levar a outros caminhos. Para o documentarista
Eduardo Coutinho, “o crucial em um projeto de documentário é a criação de um dispositivo12,
e não o tema do filme ou a elaboração de um roteiro – o que, aliás, ele se recusa terminantemente
a fazer” (LINS, 2004, p.101).
Apesar de defender a não-roteirização, e sim a criação de uma forma de filmar na
concepção de um filme documentário, Coutinho não negava a pesquisa nesse processo, por
exemplo, utilizando em “Edifício Master” uma “pesquisa filmada”, uma maneira de conhecer
e definir os personagens e como estes serão abordados – trocando em miúdos, uma certa
roteirização visual. Ou seja: é na pesquisa que se encontra o roteiro, a estratégia de filmagem
ou mesmo o dispositivo.
Apesar de sua importância, a pesquisa não é o filme, é um documento do que virá a ser
o filme. É um movimento transitório, em que a ideia é posta em prática e muitas vezes em
prova. Se nos encaminharmos para nosso objeto, inicialmente era isso o que estava planejado
para a viagem de exploração de Marcelo e Karim: a ideia era encontrar feiras e pesquisar sobre
elas de modo que isso servisse de base para a abordagem sobre o assunto, para o produto a ser
entregue para o edital, o roteiro – e um futuro filme. Duas quebras nesse “acordo” de feitura do
projeto, entretanto, ressignificaram todo o processo.
Logo de início, havia a decisão de filmar “para valer”, o que estabelecia uma mudança
no que seria apenas uma pesquisa para o projeto – mesmo que continuasse essencialmente uma
pesquisa filmada, abria-se a possibilidade de se utilizar esse material para um fim não
transitório. E havia o mote das feiras, que funcionou nos primeiros dias, mas não foi seguido
no resto da viagem. “Queríamos filmar, mas não existia um projeto claro de que filme era este.
Teríamos um arquivo de material e depois veríamos se haveria filme a partir dali”
12
Migliorin (2005) conceitua o dispositivo como uma como “estratégia narrativa capaz de produzir acontecimento
na imagem e no mundo”. O diretor/artista propõe condições para realização de uma obra, algo não presente ou
pré-existente no mundo, e ao mesmo tempo dispara um movimento com regras ou recortes rígidos, cuja resposta,
por outro lado, será um acontecimento não dominado pelo artista.
52
(BERNARDET, 2010). Levando em conta essa nova perspectiva para a produção do material,
como podemos pensar, a partir da experiência vivida pelos diretores, a natureza das imagens
captadas durante a viagem?
A princípio, para pensar a produção desse material é necessário descolá-lo das obras que
o material viria a dar origem posteriormente. Não havia direcionamento definido, no momento
da captação, visando o que deles se extraiu. Mesmo assim, um caminho possível, uma vez que
se estava efetivamente realizando uma filmagem, seria encarar a experiência como a feitura de
um filme: ou seja, refletir sobre estes procedimentos de forma a aproximá-los de ações comuns
a filmagens de documentários. Mais uma vez, porém, deve-se ter em vista que a maioria dos
estudos que se lançam neste tipo de abordagem parte do pressuposto de que os procedimentos
em estudo estão essencialmente amparados por um roteiro, por uma ideia definida (ou a ser
testada), ou mirando um resultado efetivo – o que não se enquadra no nosso caso. Como foi
dito, não havia roteiro, não havia um projeto definido, não se sabia se haveria um filme, ou
mesmo algo relevante enquanto pesquisa.
Não se pode ignorar, por outro lado, que há semelhança nos procedimentos de captação
de que tratamos aqui com o que se faz em uma pesquisa de antropologia fílmica e nos
procedimentos de filmes etnográficos, por exemplo. Peixoto (1999), em texto em que faz um
apanhado bibliográfico de viés histórico sobre a antropologia e o filme etnográfico, aponta uma
experiência multidisciplinar, no final do século XIX, comandada Alfred Cort Haddon, que era
zoólogo da Universidade de Cambridge, sobre a população da Austrália e Nova Guiné. Haddon
lançava mãos registros com notas descritivas, desenhos, fotografias e filmes feitos ainda com a
câmera dos Lumière, cuja “intenção era a de recolher todo tipo de informação sobre a população
local – da organização social à religião, da vida cotidiana à cultura material e tecnologia”
(Chiozzi, 1989 apud Peixoto). Há um olhar observacional, é certo, nas ações de Marcelo e
Karim, e há a captação de um cotidiano estranho aos autores – para não mencionar que a
descrição das intenções de Haddon eram praticamente as mesmas que na experiência de que
tratamos.
Um olhar mais incisivo, no entanto, faz notar que, apesar da intenção ser a mesma, as
situações se concretizaram de formas distintas. Primeiro, não houve uma filmagem objetiva –
mais uma vez – no sentido de ter uma finalidade definida para o material colhido ou com intuito
de ser usado cientificamente. Da mesma forma, não podemos falar em objetividade na forma
como os autores se colocaram em relação ao que registravam, uma vez que não se eximiram de
interferir ou mesmo dar uma perspectiva subjetiva no que estavam documentando. Regnault,
considerado por muitos como fundador do filme etnográfico, é citado por Peixoto (1999) em
53
uma observação elogiosa aos registros fílmicos por serem fruto de uma observação objetiva,
em oposição aos relatos e descrições usadas até então, segundo ele de valor subjetivo e relativo.
É compreensível o ponto de vista de Regnault, uma vez que os registros eram feitos com o
quadro aberto, de modo que se tinha uma visão geral das cenas captadas, até por questões
técnicas da época.
13
Fonte: https://antropologiavisiva.wordpress.com/tag/felix-regnault/
54
Não se sabia se haveria um filme, não havia pressão para que houvesse um. Mesmo pelo
fato de haver filmagens, as imagens ainda eram ainda uma pesquisa filmada, fruto do
transitório, do passageiro, do encontro, do acaso. Apesar de essencialmente o filme
documentário contar na sua realização também com o fator da casualidade, sua produção em
campo é baseada em algo mais concreto (roteiro, dispositivo etc.) do que se deu nesta
experiência.
Mesmo com a liberdade dos realizadores ao permitir que suas emoções à flor da pele se
tornassem agentes naquela experiência, havia o desejo de compreender o que se passava, e de
entender e tentar sanar algumas de suas demandas intelectuais. Em entrevista a Bernardet
(2010), eles falam que o projeto inicial foi estruturado em cima do antropólogo argentino Néstor
García Canclini, cujo trabalho centra-se na globalização e nas mudanças culturais na américa
latina. Interessava a eles questões mais teóricas sobre temporalidade, isolamento, culturas
híbridas, de que maneira aquele lugar negociou com a ausência de industrialização. Apesar de
terem de certo modo abandonado a ideia inicial das feiras as quais deram origem a essas
questões, tais pontos não foram deixados de lado durante a pesquisa/filmagem.
Pelo contrário, o alargamento do campo de observação pelos diretores dava mais
subsídios a observações de fenômenos que dialogavam com os estudos do autor argentino. O
sertão brasileiro do final dos anos de 1990 (período em que aconteceu a viagem) se configurava
no cenário pré popularização da internet e da comunicação via telefonia celular; entretanto,
acompanhando o resto da américa latina, já era resultado de aculturação, ocidentalização,
globalização e hibridismo que carrega consigo uma industrialização sem políticas de
desenvolvimento integrado, a até mesmo o choque entre a tradição autóctone e as negociações
simbólicas, muitas vezes violentas, que remontam inclusive ao período de conquistas em
determinadas regiões. “Os países latino-americanos são atualmente resultado da sedimentação,
55
Marcelo conta que o que mais fascinava a ele a Karim eram essas contradições,
identificar o que eles chamaram de “encruzilhadas culturais”:
Era ver uma mulher rezando para um santinho holográfico; ir a um loja [cheia de
produtos] Made in Taiwan no meio do nada; para numa cidade no meio do nada e tem
um homem fazendo sapato de couro e começando a cantar músicas românticas uma
atrás da outra, e depois você ver uma banda punk rock... essas encruzilhadas culturais
era o que mais interessava pra gente (CINTRA, 2015).
Figura 15: Encruzilhadas culturais: na casa da família Figura 16: Encruzilhadas culturais: Teletubbies Made
de Sertânia, não há luz, mas há um quadro do filme in Taiwan são vendidos na feira. (Frame de "Sertão de
"Rambo". (Frame de "Viajo por preciso") Acrílico")
Fato relevante, Karim morava há mais de quinze anos fora do Brasil. Segundo ele, havia
um ponto de vista também de estrangeiro em seu olhar para tudo aquilo: “Eu não era gringo,
mas eu estava gringo...” (CINTRA, 2016), diz como uma forma de não negar, mas de assumir,
afirmar essa perspectiva na época – de não pertencimento, de forasteiro, de se encantar também
a partir desse olhar. O diretor lembra também que Heloísa Passos, fotógrafa da equipe, era de
Curitiba, e tinha junto com ele esse olhar “de fora” em relação àquela realidade.
56
Nos primeiros dias, em Juazeiro, Karim conta que uma das pessoas com quem
encontraram, e que chamou sua atenção, foi um artista plástico chamado Fidel Castro.
Homossexual e filho de “comunista”, ele era uma espécie de “carnavalesco de romarias”,
porque fazia adereços para as festas cristãs, procissões. Este encontro, que não consta em
nenhum dos dois filmes, parece indicar esse “olhar gringo” de que fala Karim, no sentido de se
encantar com o exótico, não no sentido de “local versus estrangeiro”, mas no embate cultural e
ideológico entre alta cultura e baixa cultura. “É a imagem de um santo de acrílico com glitter
dentro... isso pra mim era muito glam, glam rock... glam cristian rock!” (CINTRA, 2016).
Ainda em Juazeiro, Marcelo destaca outra experiência, quando eles foram ao encontro
de Seu Nino e Dona Perpétua, que aparecem em “Viajo porque preciso”. O diretor diz que o
encontro foi ao mesmo tempo lindo e frustrante. Estavam naquela época muito velhinhos e
doentes. Já era noite quando chegaram à casa dos dois. Por causa do problema de saúde, Seu
Nino não queria falar, não queriam que filmassem, nem dar entrevista. “Aí a gente pediu apenas
para filmá-los de mãos dadas, como eles ficaram a vida inteira. E aquilo ali foi lindo.”
(CINTRA, 2015). Ou seja: apesar da liberdade de explorar uma emoção aflorada nos encontros,
havia a preparação de uma micronarrativa, a exploração de algo final – e a importância da
entrevista dentro daquela experiência.
Outro fato relevante, Marcelo há pouco tempo havia dirigido alguns episódios de uma
série de documentários para a TV chamada “Expresso Brasil”14. Série itinerante, gravada em
diferentes estados brasileiros, o programa pretendia revelar novos aspectos do país sob a ótica
de alguma personalidade (escritor, cineasta, artista plástico etc.) que falava da relação que
possuía com o seu estado: “O Rio de Janeiro de Carla Camurati” e “O Pernambuco de Antônio
Carlos Nóbrega” foram episódios dirigidos por Marcelo Gomes, dentre outros. O formato do
programa era composto por entrevistas diretas das personalidades, em um ambiente preparado
e em locações, e imagens da região. Não se pode ignorar que a experiência da participação do
diretor neste projeto reverbera na produção do material durante a viagem – a familiaridade com
a entrevista para documentário, o procedimento e a expectativa de se extrair algo relevante
através da pesquisa oral. Existem, na verdade, horas de entrevistas realizadas durante a viagem
que nunca foram utilizadas. “A gente foi fazendo as entrevistas, mas quando acabou, a gente se
deu conta de que elas eram irrelevantes (...) porque elas não tinham a potência sinestésica que
as outras imagens, que não eram entrevistas, tinham...”, diz Karim (CINTRA, 2016).
14
Todos os episódios da série estão disponíveis no site < http://tal.tv/serie/expresso-brasil/>, acesso em 20 de
março de 2016.
57
Havia um sentimento de encontro com aqueles lugares e pessoas. Não encontro como
resultado de uma busca, de uma procura objetiva. Mas sim o encontro que só fazia sentido no
momento em que acontecia, que era o momento da descoberta. “(...) As entrevistas tinham duas
ou três horas, com pessoas que a gente encontrava, com artesãos, com gente da rua, um
caminhoneiro...”, diz Marcelo Gomes (BERNARDET, 2010).
À parte de terem deixado de lado esse material (as entrevistas) na confecção dos dois
filmes posteriores, esse procedimento em campo é pertinente para se entender a natureza das
ações durante a captação. E, neste sentido, havia embates ideológicos entre Karim e Marcelo.
“Ele dizia ‘ah, mas isso é coisa de gringo...’, e eu falava ‘mas eu sou gringo, eu estou gringo
(...) deixa eu me deliciar com o que eu estou vendo...’”, Karim conta (CINTRA, 2016). Ao
mesmo tempo, o diretor diz que não se sentia à vontade para fazer as entrevistas do modo como
Marcelo conduzia, de maneira espontânea para ele – mesmo conversas triviais com as pessoas.
Essa tensão perpassou aquele momento, imbricou-se nos procedimentos e no que foi coletado:
um era o “local”, e o outro o estrangeiro; um se interessava por um mix cultural e observação,
o outro pela investigação da história, da apropriação daquele lugar e pela vida daquelas pessoas.
Não eram ainda cenas de um filme, e não era mais apenas uma pesquisa. Era a constante
negociação entre os limites e o modus operandi dos dois campos de atuação. Enquanto pesquisa,
a antropologia fílmica poderia ser o campo a dialogar com os procedimentos adotados pelos
cineastas a fim de responder a demanda intelectual para a qual se lançavam. RAMOS e
SERAFIM (2008), em artigo sobre os procedimentos metodológicos na pesquisa em
antropologia fílmica e diversidade cultural, falam sobre “a importância do filme para desvendar
aspectos da sociedade por vezes à margem, difusos ou ostensivos a fim de trazê-los para o
campo do visível e partilha-los (..)”. Os cineastas se lançaram em uma viagem de coleta de
pessoas, culturas e comportamentos, e esperavam reter informações a partir de questões que os
moviam. No início, quando o foco era centrado nas feiras, o objetivo seria pensar como estes
espaços estão imersos numa certa industrialização excêntrica, porém naturalizada, que faz com
que, por exemplo, uma rapadura seja vendida ao lado de santinhos holográficos importados do
Paraguai, ao mesmo tempo, no mesmo banco de feira. Havia um recorte com uma expectativa,
por mais abrangente que uma pesquisa possa estar em termos de abertura ao acaso.
Quando o foco se abre da feira para o que está ao redor dela, eles começam a olhar para
o nordeste de modo a pensar o “sertão mítico x sertão real” – sem buscar um espaço “sagrado”,
intocável, mas investigar a cultura popular, sem o cânone tradicional ligado à arte, e sim no que
tange à cultura pop, às temporalidades que se imbricam e os hibridismos culturais etc. Ou seja,
havia definida uma situação de pesquisa para compreensão da cultura e atividades humanas.
58
Uma pesquisa nesse sentido implica uma fase inicial em que o pesquisador se insere no
contexto, no ambiente no qual quer trabalhar. É nesse momento em que se obtém a autorização
dos participantes e se estabelecem relações de confiança e aceitação entre pesquisador e os
participantes. Apenas depois desse contato o cineasta passa à observação “instrumentalizada”,
com uso de câmera e uma “reconversão do olhar” (RAMOS; SERAFIM, 2008), ou seja, uma
adequação que se processa através “da variação de postos de observação, enquadramentos,
ângulos de visão, distâncias focais, planos fixos e em movimento, em função das atividades,
relações e gestualidades que se pretendam observar e destacar” (RAMOS; SERAFIM, 2008).
Se voltarmos à pesquisa de Marcelo e Karim, facilmente podemos observar que não
existem fases como descritas acima. A própria pesquisa já se configura na filmagem
instrumentalizada. Não houve contato anterior com as pessoas e os lugares por parte dos
realizadores; não houve nenhum produtor que mediou a relação de forma antecipada. Como já
foi visto, tudo acontecia na hora: chegava-se no lugar, sondava-se e imediatamente se faziam
registros, sejam em vídeo ou fotografias. Pesquisa, observação e filmagem aconteciam no calor
do encontro, tudo ao mesmo tempo. Apesar disso, Karim reflete sobre a natureza das imagens
observacionais e das entrevistas:
A gente nunca fez uma pesquisa etnográfica, mas ao mesmo tempo a gente não estava
fazendo um filme. De um lado existia um veio que era de pesquisa antropológica. (...)
Só que esse veio, quando a gente pensou que aquilo poderia virar um filme, é como
se aquilo [as entrevistas] a gente tivesse feito antes de fazer a viagem.... (CINTRA,
2016)
significância imagética. Karim fala mais de uma vez o quão deslumbrado ele estava com tudo
o que via, com a exploração dos produtos comercializados nas feira e com a cultura local, de
modo que muito do que ele filmou com um “encantamento e um desbundamento” no olhar que
foi jogado fora – diferentemente, segundo ele, do olhar de Marcelo que era mais equilibrado e
poético (CINTRA, 2016).
A terceira natureza das imagens são as entrevistas. Elas não foram usadas nos filmes,
mas serviram para entender aquele ambiente e aquelas pessoas – imprescindível posteriormente
para a construção cultural e humana dos caminhos a serem percorridos pelo protagonista de
“Viajo porque preciso”. Ou seja, funcionavam, dessa forma, com o viés da pesquisa. Para
melhor entendimento e ilustração destes caminhos nas filmagens, podemos pensar sobre os
procedimentos de adequação do olhar para as duas situações com a mesma “personagem”. Pati,
a prostituta da vida lazer, tem sua força exatamente por ser a única entrevista que “sobreviveu”
à seleção do material. A entrevista com Pati é realizada de forma direta, câmera na diagonal e
responde a perguntas feitas originalmente por Marcelo Gomes (Figura 17).
Em outro momento, não mais uma entrevista, mas uma imagem de observação, Pati
aparece posando para a filmagem (figura 18).
60
15
Profilmia: “Maneira mais ou menos consciente com que as pessoas filmadas se colocam em cena, elas próprias
e o seu meio, para o cineasta ou em razão da presença da câmera. Ficção inerente a qualquer filme documentário
que adquire formas mais ou menos agudas e identificáveis. Noção cunhada por Etienne Souriau (1953) mas que,
estendida ao filme documentário, diz respeito não somente os elementos do ambiente intencionalmente escolhidos
e arranjados pelo realizador com vistas ao filme, mas também a qualquer forma espontânea de comportamento ou
de auto-mise en scène suscitada, nas pessoas filmadas, pela presença da câmera” (France, 1998, apud Serafim,
2007).
61
Figura 20: Pati, amigas e o dono da fábrica de colchões posam para a câmera.
(Frame de “Viajo porque preciso)
Figura 21: Senhora encara a câmera até se sentir constrangida, rir e baixar a
cabeça. (Frame de “Viajo porque preciso)
Voltando ao encontro em Juazeiro com Seu Nino e Dona Perpétua, o pedido para que
posassem de mãos dadas, mais do que interferir nas ações, é compor uma imagem, construir
62
uma micronarrativa. Havia demandas intelectuais e procedimentos que estariam mais ligados a
uma pesquisa antropológica fílmica, mas a natureza das imagens é tão diversificada quanto os
procedimentos empregados na sua captura, que variam da entrevista à observação objetiva até
intervenções dos realizadores cujo resultado fica no limite ou no ensaio de uma construção
dramatúrgica.
A todo instante as diferenças, embates e tensões de que falávamos vinham à tona durante
a viagem que reverberavam nos procedimentos de filmagem e na natureza do material coletado.
“A curiosidade de revelar narrativas nos aproxima, traçando um caminho que é um meio termo
entre o documentário, a ficção e as artes plásticas”, conta Marcelo (REC PRODUTORES,
2009). Karim complementa: “Raramente estamos de acordo no primeiro momento, ou seja, é
uma colaboração dinâmica, sempre com muita fricção, mas partindo do lugar que é o do
carinho” (REC PRODUTORES, 2009).
No roteiro final da viagem passaram por todos os estados que pretendiam, menos
Sergipe, por causa dos dias não programados que ficaram em outros lugares. Das cidades com
feiras, eles foram parando em várias outras. Passaram por feiras grandes e importantes, e por
feiras em cidades menores. De Juazeiro foram para a cidade vizinha, Crato; depois, partiram
para Campina Grande, Patos e Cajazeiras, na Paraíba; em seguida, Pernambuco, para a feira da
Sulanca, em Caruaru, passando por Sertânia e Cabrobó; por fim, foram até Paulo Afonso, Bahia,
para terminar em Piranhas, Alagoas, cidades banhadas pelo Rio São Francisco. Ou seja, as três
feiras grandes continuaram sendo pilares da viagem, culminando com o programado, a chegada
ao rio.
63
Na última cidade, Piranhas, estavam no começo do São Francisco. Marcelo conta que
havia uma simbologia em terminar a viagem no início de algo, porque aquela também era uma
viagem iniciática, tanto para um filme, quanto para um novo momento na vida dos dois. Uma
escadaria na cidade levava ao topo de uma montanha, de onde dava para ter uma grande visão
da região. Marcelo conta da surpresa que tiveram quando subiram e puderam ver o monumento
que ali estava. “Quando a gente chega naquela montanha e que tem aquele monumento do
século XX em homenagem ao século XXI, que era exatamente o que a gente estava fazendo, a
passagem [do milênio], a gente falou que o filme tinha que terminar aqui” (CINTRA, 2015). E
assim terminam os dois filmes.
Após o término da viagem, a equipe voltou a Recife, com exceção de Karim que foi
para Fortaleza e a fotógrafa Heloísa Passos, que era de Curitiba. Mesmo com a captação de tudo
64
o que foi coletado, não havia obrigação de entregar algo pronto ou editado, ou mesmo o material
bruto – apenas o resultado da pesquisa, um roteiro. Apresentaram ao edital um roteiro que,
segundo Karim, não tinha uma organização narrativa nem episódica, era organizado por temas,
que ele preferia pensar como uma instalação com várias telas, uma maneira randômica, “um ir
para frente ou para trás sem nenhuma organização linear” (BERNARDET, 2010).
Junto a isso, também foi entregue uma espécie de livro, feito de acrílico, com fotos,
recortes, partes de tecidos, uma amostra de tudo o que colheram. Duas peças, construídas a
partir de pedaços, fragmentos de tudo que os emocionava. A viagem havia terminado, as
imagens foram guardadas. Karim e Marcelo partiram para outros projetos. Não havia nenhuma
ideia do que fazer com o material ou mesmo se iriam voltar a ele naquele momento.
Marcelo Gomes, que iria se envolver na edição em um segundo momento, para deixar claro que
não iria se preocupar com narrativa, com arco, nada nesse âmbito. Queria experimentar a
liberdade de construção de algo assim como tiveram liberdade de colher aquilo tudo.
E eu ficava nessa minha casa com a Isabela, todo dia a gente colocava isso. A gente
via o material inteiro e a gente dizia “eu gosto disso, eu gosto daquilo”; ela dizia assim
“por quê?” e eu dizia assim “não sei e não quero saber”. Essa imagem, depois aquela.
(...) Vamos ver onde a gente chega depois de duas semanas vendo isso (CINTRA,
2016).
seguia a ordem geográfica das cidades visitadas. A partir disso, começava uma associação que
envolvia relações as mais diversas, que podiam passar por cores (ou ausência delas, ou
oposição), formas, presença de elementos, oposições em geral (cheio/ vazio, deserto/ multidão,
antigo/ novo) etc.
Como exemplo, a seguir colocamos três sequências de imagens em que se operam essas
relações de unidades. Na primeira, as imagens são associadas através da presença de uma
pessoa, no caso, a prostituta Pati. Na segunda, que segue no filme imediatamente a primeira, a
unidade é formada pela presença de um elemento comum, o colchão com forro de flores. Na
última, o vazio, o deserto, logo após as feiras, cheias de gente e movimento.
Esta ordem obedece à edição final de “Sertão de Acrílico”, uma vez que não tivemos
acesso a montagens preliminares do filme, apenas podendo identificar essas unidades
associativas com base no filme pronto e nos depoimentos dos diretores.
Porém, qual o critério para a permanência ou não de uma sequência após a outra? Karim
responde: “Não sei”. Para o diretor, não fazia parte dessas unidades ou da organização dessas
sequências uma relação de causa e consequência ou que gerasse expectativa na audiência – o
que, segundo o diretor, caracterizaria uma narrativa cinematográfica. Era um filme
absolutamente intuitivo.
Mello (2012), em artigo sobre processos criativos em artes visuais, resultado de sua tese
de doutorado sobre o tema, faz um diálogo com o psicólogo húngaro Mihaly Csikszentmihalyi,
sobre estudo dos aspectos facilitadores e das barreiras da criatividade. Segundo a autora,
Csikszentmihalyi elabora o conceito de flow, o fluir de ideias correntes, momento na ação do
artista em que pensamentos, intenções, sentimentos e todos os sentidos enfocam o mesmo
objetivo geral.
“No campo da arte, entendemos o fluir de ideias artísticas como a trama que vai sendo
minuciosamente tecida entre as motivações do artista e sua criação, incorporando
envolvimentos afetivos e percepções ao processo criativo, ampliando-o para além dos
momentos de materialização da obra de arte” (MELLO, 2012, p.71).
Mello cita o autor húngaro sobre, no que concerne ao fazer artístico, mesmo no caso de
não haver metas ou objetivos completamente definidos desde o início da obra, ainda assim a
pessoa desenvolver um significado pessoal daquilo que deseja fazer. Ele chama isso de “guia
interno” (Csikszentmihalyi, 1998, p. 92 apud Mello, 2012), que seria um critério interiorizado
para determinar o que funciona ou não, o que permanece ou não na obra – julgamentos
realizados durante o período de execução – que permite “direcionar o processo criativo,
organizando e conduzindo o fluir” (MELLO, 2012).
Mesmo afirmando não saber o que exatamente estava buscando na formulação de
“Sertão de Acrílico”, Karim estabelece um critério afetivo para escolha do material (gostar/ não
gostar) e relações sensoriais para de unidades de montagem. Assim como os artistas
entrevistados para o estudo de Mello (2012), aqui também as intenções, pensamentos e
sentimentos seguem uma dinâmica transformadora, fluida que acontece no tempo, como um
fluxo contínuo de trabalho que acompanha a transformação da obra.
Somado a isso, a falta de interesse numa narrativa linear nos faz pensar, primeiro, que
talvez o processo criativo (de seleção e montagem) deste filme esteja muito mais relacionado à
68
16
Contamos aqui que o diretor se refira à narrativa clássica do cinema, ordenada, com trama ou temática definidas,
e eventos que encaminhem o filme para um fim determinado, mesmo que em aberto.
17
O termo “cinema de fluxo” começou a ser delineado a partir de três artigos publicados na revista Cahiers du
Cinéma pelos críticos franceses Stéphane Bouquet (Plan contre flux, número 566 de março de 2002), Jean-Marc
Lalanne (C’est quoi ce plan?, número 569, junho de 2002 ) e Olivier Joyard (C’est quoi ce plan? (La suite), na
edição número 580 em junho de 2003)
69
necessidade de tradução do mundo real numa narrativa sólida, nestes filmes o real é apenas
capturado como parece se apresentar: ambíguo, misterioso, calcado nas pequenas ações do
cotidiano, com encadeamento livre o suficiente para não se pensar em sentidos de uma trama
com causas e consequências. Não existe aqui um conflito ou um drama concreto, no caso de
ficções, ou uma temática completamente enviesada que conduza o espectador, no caso de
documentários; brechas para o acaso são deixadas e os fatos acontecem procurando ainda se
encaixar.
Voltando a “Sertão de Acrílico”, vimos que o flow das intenções para a construção do
filme parece ser semelhante ao mesmo fluxo sensível mediador dos trabalhos de filmagem. Isso
nos leva a um segundo ponto: o processo alimenta-se desse mecanismo de tal maneira que ele
acaba por ser a forma como se materializa e se apresenta a obra – um fluir, um fluxo. E o filme
acaba sendo ele próprio o processo.
70
Neste capítulo iremos falar sobre conexões e percursos. A criação como uma rede inter-
relacionada em processo. Um processo dinâmico que carrega referências no trajeto percorrido
pelo artista e, por isso, sem começo ou mesmo um fim. Cecília Salles (2008b, p.8) defende essa
abordagem e propõe, ao examinar uma obra, não a ver de forma isolada, mas considerar sua
composição através de diferentes interferências, lançando mão também de conceitos diversos
para acompanhar o percurso de criação.
Observar a obra de um artista na perspectiva do tempo pode revelar um percurso
contínuo de um mesmo processo. “Em toda prática criadora há fios condutores relacionados à
produção de uma obra específica que, por sua vez, atam a obra daquele criador, como um todo”
(SALLES, 2007, p.37). É o que ela chama de projeto poético, que também é um projeto estético.
Em cada trabalho é possível observar o “grande projeto” que direciona o artista. “Se a questão
da continuidade for levada às últimas consequências, pode-se ver cada obra como um rascunho
ou concretização parcial desse grande projeto”. (SALLES, 2007, p.37)
Não existe aqui a ambição de pensar no “grande projeto poético” de Karim Aïnouz e
Marcelo Gomes – o que seria provavelmente inviável, visto suas aspirações individuais e
distinção de obras. Entretanto, uma estrada cruzada literalmente lado a lado, que resulta em um
filme da singularidade de “Viajo porque preciso”, nos motiva a fazer interseções de espaço e
tempo entre seus trabalhos individuais e em conjunto, não como forma de encontrar evidentes
pontos em comum, mas para compreender, através do recorte temporal entre 1999 e 2009,
respectivamente o ano da viagem pelo sertão até o da conclusão do filme que começou ali, a
complexa rede interinfluenciada que compõe a constituição do filme e possibilita olhar nesse
processo a obra em movimento.
71
Logo após a viagem de 40 dias pelo sertão, Karim e Marcelo seguiram para outros
projetos. No ano seguinte, em 2000, Karim foi trabalhar no filme “Abril Despedaçado” (2001),
de Walter Salles, assinando com Daniela Thomas e Sergio Machado o roteiro. Marcelo, ao
mesmo tempo em que se empenhava no roteiro de “Cinema Aspirinas e Urubus”, trabalhava
em projetos de curtas metragens como roteirista. A parceria entre os dois continuou primeiro
com o roteiro de “Madame Satã”, dividido também com Sérgio Machado. O primeiro longa de
Karim sai do papel no final de 2001, estreando em 2002. Finalmente, em 2003, Marcelo Gomes,
conclui o roteiro e consegue recursos para filmar “Cinema Aspirinas e Urubus”, que estreia no
festival de Cannes, em 2005.
No meio dos seus filmes de longa-metragem acontece “Sertão de Acrílico Azul Piscina”,
a primeira visitação ao material. “Lembro do prazer que eu tive quando ‘desencaixotamos’ esse
material. A gente gostava e não sabia o porquê”, diz Karim (BERNARDET, 2010). O curta foi
finalizado com pouco mais de 26 minutos, percorrendo mostras e festivais na época, ano de
2004. Apesar da realização do filme, os dois não ficaram plenamente satisfeitos com o
resultado, pois viam que existia um maior potencial que poderia ser retirado daquelas imagens.
O mesmo roteiro que entregaram ao Itaú foi também aplicado em um concurso realizado pela
Petrobrás para buscar recursos que pudessem viabilizar um longa-metragem a partir do
material.
Em 2005, Karim volta ao sertão para realizar seu segundo longa de ficção, “O céu de
Suely”, filmado em Iguatu, no Ceará. Karim conta que desde o fim da viagem pensava num
projeto que o fizesse voltar à região. Durante o período de preparação para as filmagens, o
diretor fotografava muito a região – fotos que depois também seriam usadas na composição de
“Viajo porque preciso”.
Em 2006 os diretores conseguiram aprovação para trabalhar no projeto do longa com o
material da viagem, mas compromissos profissionais fizeram com que adiassem até o início de
2008. Karim:
Eu passei dois anos fazendo uma série de televisão entre 2006 e 2008. Já não
aguentava mais. Foi ótimo, mas eu queria fazer alguma coisa que não tivesse que
prestar contas a ninguém. Então lembrei da possibilidade de revisitar esse material.
[...] Pensamos ou é agora ou não é. (BERNARDET, 2010)
72
Conhecíamos aquele material de trás pra frente. São imagens com que tivemos uma
relação afetiva por dez anos. Tínhamos uma memória muito forte daquele tempo. A
gente tava muito à flor da pele quando viajamos nesses 40 dias. Foi aí que decidimos
construir esse personagem ficcional. (BERNARDET, 2010)
O fato de esses elementos não estarem fechados numa narrativa homogênea, coesa e
unívoca impede que a linguagem seja instrumentalizada, quer dizer, seja colocada a
serviço de outra coisa, tal como um enredo ou uma exposição sobre este ou aquele
assunto. O fato de que o discurso não se fecha deixa a linguagem constantemente
presente, porque constantemente ela tem que ser observada, interrogada, trabalhada.
(BERNARDET, 2003)
À parte de “Sertão de Acrílico” ser uma obra autônoma, produto de seu próprio processo
único constituinte e com méritos próprios enquanto expressão cinematográfica, no momento
em que “Viajo porque preciso” é realizado torna-se inevitável a vinculação entre os dois filmes.
São constituídos essencialmente do mesmo material, foram resultado da mesma viagem – e,
apesar de serem independentes um do outro, ainda assim mantêm entre si uma conexão.
Partimos de um ponto essencial: investigar de que maneira o curta pode ser visto como
uma matriz, uma base para a concepção do longa. De um lado, existe uma não completa
satisfação com o que “Sertão” resultou, uma vez que os dois diretores viam maiores
73
possibilidades de trabalhar com o material que possuíam arquivado. A própria natureza estética
e de concepção “como esboço” aponta para o filme como um porto de passagem, um
inacabamento, a construção de conexões sensíveis, mas sem apontar para uma certeza ou um
fim. “Fizemos o ‘Sertão de Acrílico Azul-Piscina’ com o desejo de entender o que esse material
queria dizer pra nós” (BERNARDET, 2010). A fala de Marcelo Gomes corrobora com a
natureza do curta: não é um filme de síntese ou resultado, mas sim de descoberta e de busca.
Por outro lado, existe a evidente natureza heterodoxa da formulação de “Viajo porque
preciso” que nos leva também a um caminho pouco convencional numa crítica de seu processo
criativo. Vejamos. Uma vez que o filme foi construído com imagens que não foram produzidas
diretamente para ele, sua constituição foi feita quase inteiramente na montagem. Em todo o
tempo de montagem do filme não havia um roteiro fechado, mas uma ideia, decerto avançada,
com um personagem bem definido, sua gênese e sua motivação, para a narrativa, mas o roteiro
era a cada hora buscado, ou seja, deveria ser “achado” através das imagens já existentes.
“Montamos [o filme] de outubro a dezembro, com pausa em janeiro, mas em fevereiro voltamos
mais umas duas semanas e [o roteiro] continuou sendo reescrito o tempo inteiro”, diz Karim
(BERNARDET, 2010).
Dessa forma, o que poderíamos ter como documento de processo seria as outras imagens
que não entraram nos filmes. Entretanto, diferentemente de sequências que ficam de fora no
corte final de um filme de ficção convencional (ou seja, cuja produção partiu do roteiro para as
filmagens, e cujas cenas cortadas seriam de certa forma uma expansão do universo retratado no
filme), as imagens que ficaram na sala de edição no caso de “Viajo porque preciso...” não
servem de referência direta a caminhos que o filme poderia tomar, mas são antes de tudo, neste
caso, uma negação de caminhos. O próprio Marcelo Gomes evidencia isso ao falar sobre a volta
ao material bruto na construção da narrativa em função da história e do personagem: “(...)
existia uma tentativa de construir um arco dramático. Depois fomos revendo e pensando o
material filmado em função daquele personagem. Como o material ia se adequar a ele. O que
não fosse adequado não interessava” (BERNARDET, 2010). Os documentos de processo do
filme, assim, praticamente não existem. Mesmo o roteiro final a que tivemos acesso foi escrito
após o filme pronto, apenas como registro, e não como um dos tratamentos, como em produções
convencionais.
A organização do material no longa segue os indicativos de uma história base que os
diretores criaram, que funciona à parte da dinâmica daquele material e que corresponde também
à relação afetiva com o momento que viveram na filmagem, que eles procuram presentificar.
Percorrer o material bruto que resultou no filme poderia ser de pouca utilidade ou
74
18
Talvez a observação do referido material bruto fosse mais proveitoso para investigação detalhada das motivações
de “Sertão de Acrílico” do qual tratamos no capítulo anterior, mas cujo esmiuçar não cabe ao objetivo dessa
pesquisa.
75
Parecem [as obras iniciais] conter células germinais daquilo que sustenta sua busca
maior; têm, portanto, forte potencial gerador, isto é, têm desdobramentos que seriam
as expansões de embriões. Uma obra, neste caso, guarda um potencial, ainda não
conhecido, de possibilidades a serem exploradas no desenrolar do processo.
(SALLES, 2008b, p.131)
câmera subjetiva; assim como o tratamento de som da narração de todo o filme, não tão “limpa”
aos moldes de uma narração documental, mas como se realmente registrada por um gravador
de voz comum. O tom da narração, entretanto, ressignifica os registros do documental para o
subjetivo e uma dimensão afetiva, como veremos a seguir.
a) Viagem
Chamamos o primeiro segmento de Viagem por concentrarem nele imagens de estradas
e do universo com que o tema se relaciona: carros, postos de gasolina e estabelecimentos
comerciais de estradas, caminhoneiros dormindo, o cotiano (figuras 34 a 37). Portos de
passagem, que apontam para o início da viagem, uma marcação evidente do deslocamento
físico. É uma visão observacional do ambiente, com planos abertos e médios, sem close ups. O
som faz uso de elementos daquele universo cultural, com a trilha sonora incidental que lembra,
a princípio, o som de carroça de boi (mesmo que este não apareça), que acaba mesclado com
uma gaita, passando a elementos indefinidos. A sonoplastia traz ao mesmo tempo elementos
que complementam a imagem: sons de carros, de vento, de porcos, quando estes aparecem (ou
seja, sons diegéticos), mas também lançam mão de elementos sonoros daquele universo (como
chocalhos que animais usam), mesmo que não estejam em cena. Acontece de 0’-5’25”.
Figura 34 Figura 35
Figura 36 Figura 37
77
Figura 38 Figura 39
Figura 40 Figura 41
b) Fé
O segundo bloco, Fé, inicia-se com imagens de romarias ao Juazeiro do Norte, Ceará
(figura 42). Enquanto havia um distanciamento nas imagens anteriormente, aqui parece haver
uma imersão e deslocamento metafísico: aliadas a imagens de observação, com planos abertos
e médios, agora há plano mais fechados, um movimento de câmera que acompanha a
movimentação do lugar. Enquanto no bloco anterior a paisagem preenche a tela, aqui as pessoas
são evidenciadas, com destaque para uma senhora que encara a câmera, um desafio entre o
78
retratado e o retratador (figura 43). O som não é sincronizado; falas aleatórias exaltam a romaria
(“Viva os romeiros de alagoas!”, “Viva o Pe. Cícero!”), rezas, etc. formam ao mesmo tempo
uma ambiência e uma paisagem sonora em concordância com as imagens. Existe uma música
incidental com instrumento de cordas, com inspiração indiana seguida de uma canção de
romaria em coro, ilustrando as imagens. Há muitas imagens de fotos na sala dos milagres (figura
44), com falas de fundo sobre graças alcançadas: depoimentos são trechos e se misturam,
narrativas que dão dimensão daquela prática de fé. Acontece de 5’26”- 10’02”.
Figura 42 Figura 43
Figura 44 Figura 45
As imagens sobre fé são usadas logo depois do primeiro ponto de virada nas emoções –
e no trajeto – do protagonista, em 17’32”. Nessa sequência, as mesmas imagens do curta,
passadas no Juazeiro do Norte, Ceará, são utilizadas: caminhões com romeiros, pessoas
posando para fotos e a sala dos milagres (figuras 46 e 47). Entretanto, enquanto em “Sertão” o
ponto-chave era um deslocamento metafísico, o estranhamento e o contanto com “típico”,
folclórico, em “Viajo” a fala do protagonista (“Saí da rota... precisava ver gente”), evidencia o
desconforto em estar sozinho e em admitir estar sofrendo. Da mesma maneira que o curta,
pessoas aqui são o centro das imagens, não paisagens. Na sala dos milagres (figura 48), mais
uma vez a narração (“Por segurança vou deixar uma foto do casamento lá na sala dos milagres,
aquela que guardo na carteira. Vou pedir ao Padre Cícero pra proteger meu casamento...”)
ressignifica as imagens do curta para uma dimensão afetiva do protagonista, em consonância
79
Figura 46 Figura 47
Figura 48 Figura 49
c) Urbanidade
O terceiro bloco, inicia-se com imagens noturnas do que parece ser a entrada numa
cidade, com muitas placas e letreiros luminosos (figura 50). A câmera está numa perspectiva
subjetiva, de alguém dentro de um carro. Barulho de caminhões, buzinas, conversas
desencontradas. Aqui há a associação entre as unidades fica evidente pela relação entre
elementos de uma imagem para a outra. Numa sequência, uma mulher e um colchão
estabelecem o nexo (figuras 51 e 52): a partir de um forró que insurge com imagens em um
clube, no qual aparecem casais dançando, aparece a mulher. Ela está nas fotos seguintes, no
mesmo ambiente, depois na feira – em que se ouve o único depoimento “direto” do filme –, em
seguida em frente à fábrica de colchões. O colchão de chita agora estabelece a unidade e aparece
sendo feito e depois no sol, quando termina o bloco (figura 53). Acontece de 10’03”-16’40”.
80
Figura 50 Figura 51
Figura 52 Figura 53
Os elementos que aparecem no curta, mesmo diversos como foram descritos, são todos
usados em “Viajo porque preciso”. Porém, curiosamente em ordem inversa à de “Sertão”. A
imagem do colchão ao sol introduz a visita à produção de colchões, que leva à Paty e às outras
mulheres posando em frente à loja, que leva ao depoimento dela na feira, para em seguida ir ao
clube (figuras 54, 55 e 56). Apesar de manter as imagens, a fala do narrador dá nova dimensão
a elas. Sobre o colchão no sol ele diz estar “secando as manchas de uma noite de amor”; na
produção de colchões, ele continua com observações de teor sexual, comparando o movimento
de colocar a palha no colchão como um ato sexual. Em seguida, é apresentada Paty, com quem
ele diz ter passado a noite inteira, seguindo de uma entrevista com ela, a única no filme – assim
como existe apenas uma fala direta, dela, no curta. Ela diz trabalhar na boate (que será vista na
sequência a sua participação) e, se no curta a fala dela não acrescenta muito à narrativa, aqui,
suas observações sobre o desejo de ter um companheiro e uma boa vida (uma “vida lazer”), e
mais diretamente quando diz “é triste a pessoa gostar sem ser gostada”, vão ao encontro do que
está vivendo também o protagonista. A sequência da boate/clube (figura 57) aparece de modo
muito semelhante ao curta, inclusive com a música incidental sobrepondo-se ao forró, que é o
mesmo forró usado anteriormente, terminando com os letreiros e placas de uma cidade noturna.
Acontece em 42’30”.
81
Figura 54 Figura 55
Figura 56 Figura 57
d) Feira
Feira é o quarto bloco. Imagens noturnas dos bancos de feira sendo trazidos, filmagens
observacionais da feira, som ambiente da montagem, conversas desencontradas (figura 58).
Depois desse primeiro momento, são recorrentes imagens sobre tecnologia (figura 59):
televisões portáteis, brinquedos eletrônicos, fitas VHS etc. Aqui há reiteração do projeto
original: mostrar o convívio entre o novo e o antigo, a tradição e o moderno. A trilha abstrata
se mistura com todo tipo de som que esses objetos eletrônicos produzem. No final, o amanhecer
do dia na feira, que segue com o despertar e a agitação do comércio formal da cidade (figuras
60 e 61). Acontece de 16’40”-21’06”.
Figura 58 Figura 59
82
Figura 60 Figura 61
A sequência em que aparece a feira, no longa, vem depois do narrador admitir estar
sofrendo pela desilusão amorosa e marca o segundo desvio da rota de trabalho. Enquanto no
curta as imagens serviam a uma contraposição entre o moderno e o tradicional, a montagem
dos bancos e o caos da feira aqui servem a um estado de ebulição de emoções de José Renato,
desde a descrição de um sonho em que a Galega é arrancada aos pedaços da cabeça dele até a
vontade de largar tudo e “se perder num labirinto sem saída” (figuras 62 e 63). As últimas
imagens desta sequência, uma bailarina dançando na caixinha de joias com música e flores
artificiais à venda e sendo cortadas por uma senhora, não aparecem no curta. Talvez não
servissem à contradição original do antigo e do novo, mas aqui ganham uma conotação de
romantismo piegas que se identifica com qualquer símbolo de amor (figuras 64 e 65). Acontece
em 29’14”.
Figura 62 Figura 63
Figura 64 Figura 65
83
e) Vazão
Chamamos último segmento de Vazão por ele não se tratar de um desfecho, mas de uma
afirmação de um fluxo que segue, mesmo sendo o fim do filme. Começa também pela feira,
porém com os bancos sem ninguém: apenas um conjunto de cabras invade o lugar (figura 66).
Imagens de cidade do interior vazia (figura 67), sons de conversa, uma música, que parece
captada durante as filmagens, diz “essa cidade é uma selva sem você/ e eu sozinho como vou
sobreviver...”. Corta para imagem de uma escadaria que acaba em um monumento com os
dizeres “Homenagem do povo do século XIX ao povo do século XX” (figura 68). Após isso,
começa uma narração, gravação de algum CD popular em que fala sobre previsões para os
próximos anos, uma narrativa em tom apocalíptico, quase folclórico, como uma poesia em
cordel falada. Com a narração, começam imagens de dentro do Rio São Francisco, um plano
aberto, onde se vê a terra se afastando (figura 69) – e o filme acaba com o som da água. Acontece
de 21’06”-26’.
Figura 66 Figura 67
Figura 68 Figura 69
Em “Viajo”, José Renato finalmente chega à garganta do Rio das Almas, onde o canal
para o qual a pesquisa dele serve terá início. Aparecem também aqui imagens da cidade vazia
(figuras 70 e 71), mas a narração justifica que será o lugar em que as águas da transposição do
84
rio irão inundar primeiro e as pessoas já foram embora. As escadarias que levam ao monumento
também aparecem, mas com novas imagens, de perspectiva subjetiva, que evidenciam o
movimento de subida do personagem (figura 72). Sua fala aqui é uma reflexão sobre a
fragilidade da condição humana frente a uma desilusão amorosa, apesar de ele ter conseguido
sobreviver a tudo – o que pode ser lido como uma metáfora visual dessa superação, caminhar
para cima, sair do fundo do poço. O monumento ao povo do século XX aparece, mas não as
imagens de dentro do rio que finalizam o curta. Mesmo assim, o elemento final do longa
também é a água: depois de uma panorâmica da cidade, a sequência final agora é o mergulho
dos clavadistas de Acapulco19 (figura 73), assim como José Renato diz estar pronto para
mergulhar na vida. Acontece em 59’34”.
Figura 70 Figura 71
Figura 72 Figura 73
19
Clavadistas são mergulhadores da cidade mexicana de Acapulco, que saltam de um precipício de 45 metros de
altura, chamado “La Quebrada”.
85
cineastas, “Viajo” é uma reconstrução ficcionalizada dessa mesma jornada, mediada pelo
personagem-síntese dos dois.
Este quadro comparativo, então, serve para evidenciar a raiz da narrativa de “Viajo
porque preciso” a partir de “Sertão de Acrílico”, mesmo pertencendo a campos
cinematográficos diferentes, mesmo obedecendo a diferentes formas de condução e diretrizes
internas. A saída ou permanência de imagens e sequências diz respeito não apenas à diretriz de
composição do longa, mas passa também por uma relação de afetividade dos diretores. Como
exemplo, na sequência final do longa, a imagem do monumento é mantida e evidenciada,
entretanto, perde a “carga profética” que acompanha a narrativa apocalíptica do final do curta
“Sertão de Acrílico”. “Quando a gente chega naquela montanha e que tem aquele monumento
do século XX em homenagem ao século XXI, que era exatamente o que a gente estava fazendo,
a passagem [do milênio], a gente falou que o filme tinha que terminar aqui”, diz Marcelo Gomes
(CINTRA, 2015). Apesar de indicar, no longa, um “olhar para frente”, atende muito mais uma
marca afetiva dos diretores com o material do que diz respeito mesmo com a ficcionalização a
que são submetidos na concepção do longa.
Mesmo para o espectador que chegar a assistir aos dois filmes, muitos dos pontos
evidenciados nesta comparação irão passar desapercebidos. Entretanto, como diz Salles (2008a,
p.14), “ao mergulhar no universo do processo criador, as camadas superpostas de uma mente
em criação vão sendo lentamente reveladas e surpreendentemente compreendidas”. E esse
“passar desapercebido” é o mérito para o trabalho de concepção dos dois filmes que, por
emergirem de propostas tão distantes entre si, apenas um olhar mais observador, como de um
pesquisador, refaz o caminho com rastros quase apagados durante o percurso.
No tópico anterior, falamos de como uma obra poderia guardar um potencial não
conhecido de possibilidades a serem exploradas no processo de construção do projeto poético
de um artista. Cecília Salles usa a expressão “embriões ampliados” (2008b, p.131) para falar
sobre como essas potencialidades são desenvolvidas na obra ou, em maior escala, em diferentes
obras de um mesmo artista. Na diversidade de caminhos que possibilita um ou outro caso, as
relações vão sendo estabelecidas de forma a rede de criação definir seu próprio processo de
expansão (SALLES, 2008b, p.26).
86
“Para nosso interesse específico, muito nos atrai a associação de rede a um modo de
pensamento”, diz Salles quando dialoga com Pierre Musso (2008b, p. 17-18). Uma definição
de rede pelo autor ressalta pontos como “elementos de interação, interconexão instável no
tempo e variabilidade de acordo com regras de funcionamento” (SALLES, 2008b, p.17). Mais
à frente, a autora traz Morin (SALLES, 2008b, p.18) ao falar que estes elementos de interação
seriam “nós na rede, ligados entre si” (...). Os estudos sobre processo, por sua vez, têm no cerne
de seu de trabalho como metodologia o estabelecimento de relações.
Um desenho, se visto de modo isolado, perde seu valor heurístico, deixa de apontar
para descobertas sobre o ato criador. Todo documento, de modo geral, está
inevitavelmente relacionado a outro e tem significado somente quando nexos são
estabelecidos. (...) O importante é compreender os movimentos do artista que o levam
à obra. (SALLES, 2008b, p.120-121)
20
Bordwell estabelece essa divisão através de estudo sobre o mapeamento do uso cada vez mais vasto, a partir dos
anos 1960, de recursos narrativos e estilísticos por determinados diretores de cinema, o que o fez cunhar o conceito
de continuidade intensificada, com tais recursos cada vez mais aparentes, em contraposição à continuidade
clássica.
87
psicológicos, arquétipos, diálogos etc. De outro modo, a construção narrativa em larga escala
responde ao questionamento “como a trama vai funcionar?”; faz uma ponte entre a temática e
a composição estilística, e, a partir da primeira, opera no sentido de construir como as partes de
um filme (como cenas, sequências) vão se relacionar entre si em função de um significado
maior para se fazer entender e se configurar estilisticamente. Por último, a composição
estilística diz respeito aos recursos de composição imagética, como tipos de planos e
enquadramentos, iluminação, composição da arte, uso de falas ou ausência de diálogos, trilha
musical e sonoplastia, figurinos, entre outros.
Pois bem: é a partir da observação e descrição de “Viajo porque preciso...”, explorando
os meios utilizados para a construção de sua narrativa, que pretendemos realizar um panorama
que evidencia como estes elementos (estilísticos e narrativos) se relacionam com outros
trabalhos anteriores de seus realizadores – especialmente, “O céu de Suely” (2006), de Karim
Aïnouz; e “Cinema Aspirinas e urubus” (2005), de Marcelo Gomes, mas também passando por
“Madame Satã” (2002), também de Karim –, formando uma rede de referências que se
retroalimenta.
Neste período de dez anos referido, efetivamente não há “rascunhos” de
desenvolvimento para “Viajo porque preciso”, uma vez que cada um dos diretores cuidava de
seus projetos individuais. Entretanto, pensar a experiência de filmagem e concepção do
documentário “Sertão de Acrílico”, de 2004, e a gestação ao longo dos anos até a finalização
de “Viajo porque preciso...”, lançado apenas em 2009, é mapear as relações que marcaram os
investimentos individuais dos dois diretores, os filmes “do meio”, de forma a estabelecer uma
rede de criações entre estes projetos. “Na verdade, o ‘Viajo’, que foi meu segundo filme e o
terceiro filme do Karim, foi o primeiro filme da gente, o primeiro filme que a gente rodou...”
(CINTRA, 2014). Não apenas para fim deste estudo, mas considerado desde antes pelos
realizadores, os três longas lançados antes de “Viajo...” funcionam como forças que se
comunicam no processo de criação de todos os filmes: a experiência da viagem e o embrião em
“Sertão” servem como “base” para os outros; e a concepção desses outros incide no que “Viajo”
resultou.
Jean-Claude Bernardert, na entrevista que reproduzimos algumas vezes aqui, já faz uma
observação conceitual sobre os filmes e como se ligariam:
88
Não apenas o conceito apontando por Bernardet pode fazer parte de uma leitura sobre
como os três filmes se relacionam e se completam, mas inúmeros outros pontos podem ser
apontados como que comungando de uma mesma fonte ou universo – ou uma rede de processos
e temas que os una, como veremos a partir da segmentação da poética proposta por Bordwell.
Se pensarmos sobre o protagonista de “Viajo”, Marcelo Gomes fala que a primeira
questão que surgiu foi construir um personagem ficcional que abrangesse todos os elementos
sobre os quais ele e Karim refletiram nos 40 dias de viagem e que as imagens refletem.
“Um personagem ficcional à flor da pele, viajando pelo sertão, que não entende direito
o que é aquele sertão e está vivendo um drama interior e ao mesmo tempo vê aquela
paisagem solitária. Ele vira reflexo da paisagem e a paisagem vira reflexo dele” (REC
PRODUTORES, 2009).
Aspectos sobre a narrativa em larga escala talvez sejam o ponto de menos convergência
entre os filmes. Apesar disso, ficaram explicitados já no tópico anterior, como a perspectiva a
partir de “Sertão de Acrílico” direciona algumas semelhanças estruturais no que virá a ser
concebido em “Viajo porque preciso”, mais precisamente a composição fragmentada do curta,
sem aparente conexão direta, mesmo sendo pontos ressignificados no longa. Diegeticamente as
imagens documentais funcionam no longa como produzidas pelo protagonista, como uma
espécie de diário audiovisual de registros tanto documentais como afetivos – o que dá sentido
a manter a estrutura do curta.
Karim conta que sempre teve um problema na concepção narrativa dos filmes. Achava
que isso era uma camisa de força e fugia a qualquer custo disso, de forma que quando começou
a montar “Sertão de Acrílico” ele fala que pouco importava se ia contar uma história ou não.
“Eu falei para o Marcelo que ia colocar nessa sacola de selects (...) o que eu gostar... aí depois
a gente vê que história a gente faz com isso” (CINTRA, 2016). Isso evidencia o caráter intuitivo
da montagem do curta de que falamos no tópico anterior. Essa “aversão” à narrativa clássica
talvez ganhe eco em “Madame Satã”. Desde a apresentação do personagem, em que ele aparece
olhando diretamente para a câmera e com uma voz em off lendo os crimes que é acusado, texto
que é realmente registro policial da época, existe um diálogo com o campo documental que
resulta em um filme no qual não há intenção de construir uma biografia, mas se configura em
um recorte da vida desse personagem histórico não direcionado por uma divisão de cenas que
obedeça a uma jornada do herói clássica, falando de forma mais abrangente, ou a um vetor de
causa-consequência entre as cenas, de forma mais pontual, mas sim a partir de um
encadeamento quase episódico.
Diferente disso, entretanto, “O céu de Suely” e “Cinema Aspirinas e Urubus” contam
com uma estrutura dramática com todos os elementos da narrativa clássica – divisão em três
atos, pontos de virada etc. –, porém, de forma menos rígida, mas com uma construção dramática
em que pesa a progressão e a causalidade. Quando partem para montar a estrutura de “Viajo
porque preciso” eles têm o problema de “domar as imagens”, de modo que havia a urgência em
criar essa expectativa que a narrativa cinematográfica tem, que ancora o espectador e o faz
permanecer na experiência de ver o filme – diferentemente do espectador da pintura, da
fotografia ou da instalação, deixado um tanto à deriva, como foi o caso de “Sertão de Acrílico”.
À parte da estrutura de “Madame Satã”, os outros três filmes têm a composição clássica
da jornada do herói: a saída do mundo comum, os acasos para resolver o problema a que o
protagonista se lançou e a resolução do problema com a carga de aprendizagem que a jornada
proporcionou.
90
É óbvio que esse quadro-resumo não é suficiente para abranger todos os aspectos que
uma análise sobre a estrutura em larga escala dos filmes poderia revelar. Nossa intenção é
apenas indicar a constância de uma composição geral que progrediu de uma negação da
narrativa convencional até se valer ao uso dela em diversos momentos, o que denota uma
progressão de metodologia. Porém, podemos apontar algo mais específico que é recorrente nos
três longas.
Se pegarmos a apresentação dos personagens, nos três filmes acontece na mesma
maneira: estão em viagem, dentro de um carro em movimento, e uma música popular é usada
como elemento sonoro da cena (figuras 74 a 76). Porém, nos três casos, as canções vão além de
91
uma ilustração, pois há uma função narrativa em favor do enredo: introduzir o conflito pessoal
dos personagens que mais à frente será explicitado.
Figura 74 Figura 75
(Frame de “O céu de Suely”) (Frame de “Cinema Aspirinas e Urubus”)
Figura 76
(Frame de “Viajo porque preciso”)
Em “Suely”, depois uma fala da protagonista sobre como engravidou e alguns fatos que
expõem ações e promessas de amor do seu namorado, começa a música “Tudo Que Eu Tenho”,
da cantora Diana, que fala sobre como a pessoa trouxe o amor para a vida, mas que
incisivamente acaba nos versos “Volte logo, meu amor”, narração e letra da música como
antecipação do conflito da personagem principal: seu amor pelo namorado, que está longe e
cuja volta não vai acontecer. “Cinema Aspirinas e Urubus” traz “Serra da Boa Esperança”, de
Silvio Caldas, que fala sobre os sentimentos e a saudade por um lugar de alguém que está
partindo – uma possível alusão à condição de viajante do protagonista, longe de sua terra por
ter que fugir da guerra.
Por fim, em “Viajo porque preciso”, a música “Sonhos”, de Peninha, fala da entrega
completa de alguém para um amor (“Vi a minha força amarrada no seu passo / Vi que sem você
não tem caminho, eu não me acho”) que, por fim, o abandona. É exatamente o momento pelo
qual passa o protagonista, a desilusão amorosa e o abandono por sua companheira, que só vai
ficar claro para o espectador minutos à frente.
92
Além de servir de recurso narrativo aos três filmes, é importante lembrar que ambas as
canções pertencem ao mesmo universo de “canções populares românticas”, com as quais os
cineastas tiveram contato na viagem – confirmada pela sequência em que o sapateiro canta
“Último desejo”, de Noel Rosa. “A música ‘Morango do Nordeste’ tocava em todo lugar
quando nós estávamos viajando por aquela região. Não tinha como fazer o filme e não
colocar...” (REC PRODUTORES, 2009).
Quanto à composição estilística, é aqui que reside a maior incidência de diálogos e
referências entre os filmes. As escolhas técnicas, em especial relativas à fotografia e à
composição de imagem, evocam a todo momento um realismo muito mais próximo da
experiência documental de “Sertão de Acrílico”, em contraposição ao aspecto “cosmético”21 do
Sertão visto em tantos outros filmes nacionais, principalmente nos anos de 1990, que se passam
no Nordeste brasileiro, de cujos filmes de Karim e Marcelo iriam se distanciar. Uso de câmeras
na mão (não steady cams), registros documentais de natureza diversa (vídeo, super 8, filme em
16mm, fotografias, slides), não uso de filtros de cores, luz estourada formam as imagens que
compõem o curta, o que imprime um tom de improviso e ajuste em curso adotados nos outros
filmes de longa-metragem.
Apenas um parêntese. Ausência de técnica (imagens sem foco, tremidas, mal
enquadradas) e narrativa não linear são características também de filmagens amadoras, como
filmes caseiros. Roger Odin (2010, p.41-42 apud Santos, 2015), aponta que os filmes
domésticos não possuem uma narrativa com início e fim especificados, são inacabados, como
se fossem partes de um texto, fragmentos de ações. Esses filmes são realizados como registros
de memória e a falta de elaboração técnica e narrativa ficam minimizadas nas exibições
particulares em que os espectadores participam e ressignificam as imagens. Lila Foster (2010),
fala que a exibição é o momento mais importa, pois “o filme de família serve para reapresentar
esses momentos a essas pessoas” (FOSTER, 2010, p.30). O que queremos pensar é o caso dessa
estética da “falta de técnica” não apenas como um recurso estilístico que imprime certo realismo
aos filmes, mas também uma dose de afeição que a associação com esses registros amadores
traria para os filmes.
Em “Cinema Aspirinas e Urubus” a composição da fotografia é feita a partir de
superexposição à luz, que deixa o filme um tanto “esbranquiçado”, com a imagem mais próxima
21
A referência aqui é ao famoso artigo de Ivana Bentes, “Sertões e favelas no cinema brasileiro contemporâneo:
estética e cosmética da fome”, no qual ela analisa um discurso imagético em filmes brasileiros que valoriza o
“belo” e a “qualidade” da imagem que romantiza e glamouriza o nordeste brasileiro, postura diferente dos filmes
cinemanovistas cuja estética imprimia um realismo mais cru aos filmes.
93
da experiência do sol escaldante do sertão. “Viajo porque preciso”, de forma mais evidente, é
composto de registros documentais de natureza diversa, uma colagem justificada e
ressignificada pela ótica subjetiva do protagonista. “O Céu de Sueli” é todo filmado em 16mm,
porém, na abertura, uma espécie de prólogo foi filmado em textura que remete a Super 8,
suporte tornado popular nos anos 1970 e que hoje guarda, pelo registros familiares que foram
abundantes no período de sua popularização, uma relação tanto com o documental quanto com
um caráter afetivo. Todas estas escolhas técnicas incidem na dramaturgia no sentido de trazer
um realismo à trama.
Seguindo a mesmo raciocínio no que diz respeito aos enquadramentos, as imagens que
formam “Sertão de Acrílico” e “Viajo porque preciso” são retomados como referência tanto em
“O céu de Suely” quanto “Cinema Aspirinas e Urubus” formando quadros pictóricos muito
semelhantes, como vistos nas imagens a seguir.
Figura 77
(Frame de “Sertão de Acrílico”)
Figura 78 Figura 79
(Frame de “Viajo porque preciso”) (Frame de “Cinema Aspirinas e Urubus”)
Figura 80 Figura 81
Pela expressão “não exclusivamente” usada pelo autor podemos vislumbrar estas
técnicas utilizadas no cinema de ficção na busca de um diálogo entre estes campos
cinematográficos. Isso significa dar espaço ao acaso, ao improviso, nos procedimentos de
filmagem de uma ficção, não apenas no que concerne ao trabalho do ator com sua construção
de personagem, mas deste com elementos externos, como aproveitar contextos de rua ou de
contribuição espontânea de não atores, o que força o improviso também do trabalho do diretor
naquele instante, tendo que perseguir a cena e readequar enquadramentos, luz e foco, dando
margem ao limite entre o improviso cênico e a intervenção da vida que se embrenha na ficção.
As imagens abaixo ilustram momentos nos filmes em que os elementos acima ficam
aparentes por um olhar mais acurado. A primeira imagem (figura 82) é uma cena em que
Hermila/Suely chega em um grupo de homens para oferecer uma rifa de whisky. Alguns olham
em direção da câmera. A atriz se dirige a um senhor e faz uma pergunta, a qual ele não ouve e
ela tem que repetir, ficando claro o improviso, aproveitado em nome de um desejado tom
realista. Na outra imagem (figura 83), Hans e Ranulpho param para comer e o senhor que os
95
serve, um figurante, entra na conversa da cena dos dois atores, que incorporam suas
considerações à cena, incentivando o senhor a falar espontaneamente.
Nenhuma destas cenas poderiam acontecer sem que os diretores não tivessem no
procedimento de filmagem certo grau de permissividade do improviso, porém, mais do que
isso, estar, como na época das gravações na viagem, à flor da pele para captar a emoção ao
redor e fazer com que isso seja impregnado nas obras. Um último exemplo é a cena em que
Hermila/ Suely, depois de pedir desculpas à avó, sai de casa chorando. A cena deveria acabar
na discussão com a avó, mas a atriz, tomada pela emoção sai da casa. Karim, então, manda o
fotógrafo ir atrás dela, que ainda reluta por causa da falta de iluminação, mas vai (figura 84). A
cena, take único, foi mantida no filme.
recorte, o filme precede o curta “Sertão de Acrílico” e seu roteiro já estava em tratamentos
avançados no momento da viagem. Sua temática urbana e de época (o filme se passa nos anos
de 1950 no Rio de Janeiro), tem menos diálogo com a experiência afetiva da viagem do diretor
do que em “O céu de Suely”, quando ele retorna ao sertão. Mesmo assim, há um tom
documental na introdução e no desfecho do filme, quando do uso de texto de documentos
originais na narração da sentença do protagonista, um recurso estilístico narrativo e
dramatúrgico que se aproxima de um tom de realismo documental que se possa atribuir ao filme
– acertado também na estrutura dramática, como já apontado. Do mesmo modo, é saliente a
fotografia de Walter Carvalho que não se rende em glamourizar uma figura da mitologia urbana
carioca, e trava relações com a natureza das imagens de que falamos há pouco: faz uso de
câmera na mão e assume desfoques e o improviso de quem busca a ação que se desenrola na
frente das lentes, no que Fernão Ramos (2001) chama, em artigo sobre procedimentos do
documentário, de circunstância da tomada: “o conjunto de ações ou situações que cercam e
dão forma ao momento que a câmera capta o que lhe é exterior, ou, em outras palavras, que o
mundo deixa sua marca, seu índice, no suporte da câmera ajustado para tal”. É essa
circunstância da realização que todos estes exemplos têm em comum.
A propósito, ainda sobre “Madame Satã”, é na fala da personagem de Fátima, um
travesti amiga do protagonista (interpretada por Flávio Bauraqui), que a viagem de “Viajo
porque preciso” se confirma: perguntada sobre o que ela deseja para o futuro, Fátima responde
que quer comprar uma máquina Singer, para costurar a farda do marido e viver “vida lazer”.
Pati, a prostituta da entrevista na feira, já existia ali.
Por fim, cabe-nos pensar como o conceito apresentado por Salles (2008b) de projeto
poético, ou seja, os fios condutores de uma obra que se entrançam com o trabalho de um artista
como um todo, entra em diálogo com o se concebe como autoria. Os conceitos de processo de
criação em rede compreendem questões relativas à memória, percepção, procedimentos
artísticos e relações de como o ambiente que envolve as criações. Um dos pontos que mais são
relevantes nos processos de criação em rede é a interatividade, que mantem a rede em contínua
expansão e é responsável pela geração de novas ideias ou possibilidades de obras. “Os diálogos
com a cultura, as trocas entre sujeitos e os intercâmbios de ideias nos colocam diante do mais
amplo campo de interações” (SALLES, 2008b, p.157).
Esse cenário não encontra espaço na noção romântica de autoria como autor único e
individual da obra de arte, com autonomia absoluta na criação artística. Na pesquisa pelos
processos criativos, o que interessa ao crítico é especialmente a interatividade, descobrir as
relações e a natureza dos vínculos que reverberam nas obras. Ainda que pensemos em uma
97
identidade poética (ética e estética) que distingam um artista ou uma obra de outros, o que nos
interessa é “observar os processos de criação como espaço de constituição da subjetividade”
(SALLES, 2008b, 161).
Marcelo fala que tanto ele quanto Karim tem, em seus cinemas, o desejo similar de
tentar “buscar caminhos novos vasculhar, para bagunçar a linguagem cinematográfica”. Isso
pode ser lido em relação aos limites entre campos de documentário e ficção com “Viajo porque
preciso”, mas estão presentes desde os primeiros curtas dos dois cineastas: “Perna Cabeluda”
(1996), de Marcelo Gomes um falso documentário, bem humorado, sobre uma lenda urbana,
que já conta com diversas imagens de arquivo incorporadas à trama; e “Seams” (1993), de
Karim Ainouz, um documentário poético e afetivo, que já conta com vários elementos dos que
compõem “Viajo” – especialmente por ser formado por imagens que trazem um registro
familiar do diretor, com imagens de arquivo pinçadas num acervo público nos Estados Unidos,
ressignificados pela narração em off para fazer as vezes do passado dos parentes do diretor. Um
procedimento de execução de natureza muito semelhante ao que temos em “Viajo”.
Marcelo Gomes voltou a filmar no interior do Nordeste. Desde 2014 exibido no Museu
do Cais do Sertão, em Recife, o curta “Um dia no Sertão” pinça ações cotidianas de moradores
do sertão de Pernambuco e as organiza de modo a trazer para a exibição a experiência de, como
fala o título, viver um dia na região. Apesar do cuidado técnico com imagens com melhor
definição, assim como “Viajo” e “Cinema Aspirinas e Urubus” há nelas ainda uma preocupação
realística que não se dobra a filtros que transformam a região num lugar idílico e romântico. Do
mesmo modo, a composição de alguns quadros muito se assemelha ao visto em “Viajo” (figuras
85 e 86), assim como alguns temas ainda fazem parte do interesse do diretor, especialmente a
presença simultânea do novo e do tradicional (figuras 87 e 88).
98
Em nossa entrevista com Karim Ainouz, ele pôde falar sobre o seu novo projeto
cinematográfico, chamado “Argelino por acidente”, um documentário sobre a sua primeira
visita à Argélia, terra de seu pai. Numa carta para apresentação do projeto, cedida gentilmente
pelo cineasta, ele faz um paralelo de sua obra na perspectiva desse novo filme:
25 anos atrás, eu dirigi meu primeiro filme, Seams, um documentário sobre minha
avó. Foi inicialmente uma ação pessoal, na primeira pessoa, concebida de maneira
tradicional. O que deveria ter sido um registro íntimo tomou a forma de um
documentário sobre a situação das mulheres no Brasil num contexto patriarcal
dominante. Querendo saber sobre o passado da minha avó, questionando a origem dos
seus sofrimentos, acabei explorando todos os aspectos da sociedade brasileira e fiz
uma pintura de costumes através do prisma de uma história pessoal. A passagem entre
o íntimo e o universal se operou. E foi assim que meu desejo de cinema nasceu.
Processo e obra são indissociáveis. A obra é um dos caminhos, uma das versões de um
trabalho em fluxo contínuo, a qual satisfaz no momento o artista ou que simplesmente ele
abandona. Uma vez entregue ao público ela se sustenta sem ser necessário voltar ao seu
caminho, porém, este sempre pode ser visto na composição dela.
Até o momento temos voltado os olhos para o caminho. Entretanto, neste capítulo,
vamos trazer a perspectiva inversa: observar não o processo que aponta para o filme, mas o
filme inebriado pelo processo – ou seja, enxergar o modo como funciona sua construção poética
internamente, trazendo nesta poética a interseção do processo que o formou.
Cada um dos tópicos a seguir oferece uma perspectiva sobre como se configura “Viajo
porque preciso”. No primeiro, o filme é visto pela ótica de Baxandall, que observa a obra
inscrita historicamente, de modo pensar no que se propunha o artista quando da execução e
como ele fez para atingir seu propósito. Depois, vamos investigar como uma mise en scène foi
construída para o filme de forma a refazer o fluxo e os sentimentos da viagem que deu origem
ao projeto. Em seguida, as camadas narrativas que formam o filme são dissecadas através da
voz do personagem e das vozes dos diretores presentes nos elementos diegéticos e
extradiegético presentes. Por último, vamos buscar nos elementos que compõem o filme a
definição da função de cada um deles, em vista do projeto poético que o filme buscava atingir.
“Ali foi a grande escola... tanto para o ‘Céu de Suely’, quanto para ‘Cinema Aspirinas
e Urubus’” (CINTRA, 2014). A frase de Marcelo Gomes é uma sentença, é definitiva. Nos
anos seguintes à viagem que fizeram, em maior ou menor grau, essa experiência foi
determinante para consolidação da sensibilidade audiovisual dos dois cineastas em seus
projetos individuais, evidente no que tange à dramaturgia e à narratividade com que construíram
100
seus filmes, como vimos anteriormente. Entretanto, uma vez que a experiência da viagem e as
imagens resultantes dela tiveram para eles um certo caráter formativo, por que, então, voltar
depois de anos ao material? Ou, um desafio maior: como dizer algo novo com aquelas imagens
que não tenha sido evidenciado em seus filmes posteriores ou no curta original?
Podemos imaginar que as questões colocadas acima passaram pela cabeça dos dois
cineastas ao decidirem voltar ao material da viagem. Dar um salto dessas questões iniciais para
o filme acabado evidencia dois pontos: primeiro, sim, havia algo ainda a ser dito – e o filme
funciona para o público independente da sua história pregressa; segundo, e o que nos interessa
mais nesse momento, é uma outra questão: por que foi dito como foi dito? Ou seja: o que
motivou as escolhas dos cineastas para que fosse construído o filme da maneira como fizeram?
Questões de natureza semelhante a esta última são levantadas por Michael Baxandall,
no livro “Padrões de Intenção – A Explicação Histórica dos Quadros” (2006): quais foram os
padrões de intenção do artista para realizar a obra da maneira como foi realizada? Por intenção,
o autor entende “uma relação entre o objeto e suas circunstâncias”, o que leva em consideração
a historicidade do objeto em si, “a peculiaridade que as coisas têm de se inclinar para o futuro”
(BAXANDALL, 2006, p.81), o que se relaciona com uma possível linha de pensamento do
artista no seu processo de construção da obra.
Nos capítulos anteriores, um apanhado histórico e contextual de “Viajo porque preciso”
foi necessário para que pudéssemos construir uma crítica de processos sobre sua produção:
mapear e refazer o percurso da criação, o caminho das ideias de como o filme se tornou o que
é hoje. Esta é uma crítica dedutiva, baseada nos vestígios da obra, ao longo do tempo de sua
feitura, caminhos pelos quais percorremos. Se antes olhávamos o processo até chegar à obra,
agora queremos encontrar na obra o processo. É isso que propõe Michel Baxandall: realizar
uma análise da obra de arte em si, em busca de como esta se configurou.
Na metodologia desenvolvida por Baxandall, na qual considera as relações entre a obra
e o autor com o contexto, acreditamos que será possível traçar considerações sobre as intenções,
os encargos e as diretrizes sobre “Viajo porque preciso”, tomando como base as referências, os
antecedentes e o contexto sobre os quais falamos nos capítulos anteriores, e levando em
consideração a contínua mediação do afeto que insurgiu na captação, na gestação da obra e na
sua execução direta. Se a crítica dedutiva do autor não nos leva às respostas que encontrávamos
a partir da investigação de documentos e criação em rede propostas por Salles, seu método
poderá nos fornecer base para uma análise das decisões tomadas pelos diretores na execução
do filme a partir de indagações que passam pelo contexto técnico, cultural e social vividos por
eles, e que se configuram efetivamente na peça audiovisual que resultou.
101
“Cada vez que voltávamos ao material nos emocionávamos muito... Então, a gente
decidiu fazer um filme com aquilo. Mas um documentário de longa seria uma
repetição da experiência de ‘Sertão’, e o que a gente queria era potencializar aquelas
emoções que nós particularmente sentimos na viagem... E assim decidimos fazer uma
ficção, com um personagem que seria eu e seria Karim para potencializar o que nós
vivenciamos...” (BERNARDET, 2010)
“Viajo porque preciso” contava com condições muito específicas para ser realizado. Era
um filme que surgia de três vertentes: a viagem dos cineastas; a primeira volta ao material, o
curta documental “Sertão de Acrílico”; e a experiência acumulada por Marcelo e Karim nos
anos entre a captação e realização do filme. Cada um desses pontos, mais que exercer influência
na construção do longa-metragem de algum modo, se configuram como diretrizes para a
realização do filme. O mais relevante é o fato das imagens já estarem captadas e, por isso, o
que quer que fosse feito teria que adaptar ao material que possuíam – e, ao contrário de um
roteiro que se transforma em filme, aqui a palavra se rendia à imagem.
A palavra, no caso, seria a narração que costuraria as imagens. Como fazer com que
imagens tão diversas, documentais, em um filme de ficção fizessem sentido? A solução se
encaminhava para a construção um personagem ficcional que fosse dono das imagens. Marcelo
conta que foi um longo processo para imaginar que personagem era esse que caberia naquele
diamante bruto que eles tinham, que era todo o material captado. “Tinha que ser um personagem
que estava viajando a trabalho. Porque só quem viaja a trabalho encontra com a variedade tão
grande de pessoas como aquela. Só quem viaja a trabalho é obrigado a se envolver com a
região” (CINTRA, 2015). João Jr., produtor do filme, fala que a princípio se pensou em esse
personagem ser um fotógrafo, o que justificaria alguém que captasse todas aquelas imagens
102
(CINTRA, 2016). Entretanto, Marcelo rejeitava a ideia de um personagem que tivesse um senso
estético apurado, um artista. Eles queriam alguém que não olhasse a região com
condescendência, e sim com extremo realismo. Alguém cujo olhar não despertasse emoções
por contemplar ou associar o lugar através do seu acesso à arte: “a emoção dele teria que vir de
algo interior que ele estava sentindo... e não existe nada pior do que você viver um drama
interior profundo no meio do nada, no meio do silêncio geográfico” (CINTRA, 2015).
Essa questão, relativa ao estado emocional do personagem, era essencial para o filme
acontecer, uma vez que partia do desejo de trazer de volta os sentimentos os quais os cineastas
viveram nos 40 dias de filmagem viajando pelo Sertão para o longa. “Por que não trazer o
sentimento que tivemos (...), de viver à flor da pele, de se emocionar com as coisas e ao mesmo
tempo de perguntar o que essas pessoas estão fazendo aqui no meio do sertão?”, questiona
Gomes (BERNARDET, 2010). A decisão de fazer o filme sob o ponto de vista de um
personagem vivendo um drama interior, à flor da pele, foi a maneira como encontraram para
potencializar a relação deste com as imagens e dar ao público a dimensão emotiva que
desejavam – e que não haviam conseguido fazer com “Sertão de Acrílico”.
Dessa forma, de um fotógrafo que fosse autor das imagens, eles chegaram na figura de
um geólogo, José Renato. E por que um geólogo? Porque, assim como aconteceu com Marcelo
e Karim, o personagem tinha necessariamente, em função da natureza de seu trabalho, de se
envolver com a região e com as pessoas, de modo que as imagens seriam registro dessa viagem
cortando o sertão através da estrada. É um jogo de concepção para os cineastas: apropriar-se
das imagens pela ótica do personagem para construir uma história que tornasse coerente a
diversidade de registros e que fizesse funcionar para o filme de forma orgânica.
Sobre as necessidades do personagem em função da narrativa, numa palestra 22 sobre a
concepção do livro “Não verás país nenhum”, Inácio de Loyola Brandão conta que para o
personagem principal do livro, Souza, ele necessitava de alguém que pudesse andar pela cidade
de São Paulo e refletisse como a cidade havia se transformado com o tempo. Daí o personagem
22
Mesa de debates do evento Redes da Criação, que contou com a curadoria de Cecília de Almeida Salles, em
junho de 2008, no Itaú Cultural, em São Paulo/SP. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=6PBvvfHdkFM.
103
ser um professor de história – alguém cuja vida e ofício tinham sido dedicados a refletir sobre
o tempo e as transformações sociais. Do mesmo modo, existiam necessidades narrativas para o
personagem de “Viajo porque preciso”: a) justificar a diversidade de registros; b) justificar o
“amadorismo” das imagens; c) dar conta das emoções dos autores.
Havia mais de 40 horas de material audiovisual bruto de onde o filme deveria surgir. A
partir da diretriz inicial (refazer a viagem pela ótica de um personagem-síntese das emoções
vividas pelos dois), eles constroem uma gênese e um percurso.
“Ele saiu de Fortaleza, passou dois dias num posto de saúde depois ele foi trabalhar
numa pesquisa de campo, é quando ele conhece as primeiras pessoas, vive o primeiro
momento solitário e depois não aguenta mais aquela solidão e vai pras putas... existia
uma tentativa de construir um arco dramático” (BERNARDET, 2010).
Marcelo Gomes afirma que passou dois meses estudando Geologia, entrevistando
geólogos, lendo seus cadernos de viagem, para só então ir rever todo o material e ler as
transcrições das entrevistas de modo a selecionar não apenas em função do personagem, mas a
partir da ótica dele. “Eu não revi as imagens... quem fez a revisão das imagens foi José Renato”
(CINTRA, 2015). “O que nos emocionava era o que emocionava o José Renato porque agora
não era mais a gente. Isso foi uma loucura porque não era eu, nem o Karim, nem o
documentário. É o Zé Renato que dizia pra gente pra onde ele ia” (BERNARDET, 2010). Ou
seja: a condição de trabalho (ou a diretriz) foi se apropriar das imagens em função da gênese
do personagem.
Tome-se como exemplo a construção do texto da narração. Tratando-se de um geólogo
que está a trabalho, os autores se apropriam da linguagem dos diários de campo desses
profissionais e constroem um texto objetivo, com verbos no presente, descrição precisa e
economia na adjetivação, que conta também com a influência do modo como escreve Euclides
da Cunha em “Os sertões”, principalmente relacioando-se com a primeira parte da obra, A
Terra, também uma espécie de relato de viagem. Compare-se os dois textos:
Vê-se, do fato, que três formações geognósticas díspares, de idades mal determinadas,
aí se substituem, ou se entrelaçam, em estratificações discordantes, formando o
predomínio exclusivo de umas, ou a combinação de todas, os traços variáveis da
fisionomia da terra. (CUNHA, 1984)
Dessa forma, podemos inferir (e interpretar) que cada elemento selecionado para o filme
tenha vindo em consideração a essa diretriz, que não age sob o espectador, no sentido de
modificar experiência em apreciação do filme, mas é determinante para a compreensão das
escolhas dos cineastas e o contorno que ganhou a obra.
O fato de as imagens “pertencerem” ao personagem criado guia, num outro exemplo do
funcionamento da diretriz, as escolhas narrativas e estéticas das filmagens extras para o filme.
Depois de definirem o personagem, sua curva dramática e submeterem o material a essa leitura
– a partir dos olhos dele –, eles elencaram o que faltava para complementar “buracos na
narrativa”, da história que inventaram para o longa. Marcelo Gomes indica que foram elementos
pontuais, correspondentes 10% do que aparece no filme: imagens de estradas noturnas,
fotografias de quartos de motel, a sequência da dança de uma das meninas com quem José
Renato passou a noite (figuras 89 a 92). Para a história era necessário que o personagem
dirigisse durante a noite e mostrasse o interior dos motéis que se uniam às fotografias das
garotas de programa que eles já tinham da primeira viagem, com quem o protagonista no enredo
se envolveria. “Era roteiro, montagem e filmagem sendo feitos ao mesmo tempo”, diz o diretor
(CINTRA, 2015), evidenciando a impossibilidade de desvinculação narrativa e estética entre o
já filmado e o que se estava captando.
Desse modo, as imagens adicionais obedecem à mesma gramática das outras imagens:
registros subjetivos, câmera na mão, imagens captadas ou tratadas para obedecer a uma estética
de filmagem amadora e sem grande resolução.
Figura 89 Figura 90
(Frame de “Viajo porque preciso”) (Frame de “Viajo porque preciso”)
105
Figura 91 Figura 92
(Frame de “Viajo porque preciso”) (Frame de “Viajo porque preciso”)
PRODUTORES, 2009). O trabalho deles passava, então, por trazer as imagens de dez anos atrás
e atualiza-las em vista desse contexto atual.
Pegando carona neste aspecto, é importante falar de outra diretriz na construção do
filme: um processo de “transgeneridade”, a migração de registros documentais readequados
para uma realidade ficcional. Apesar de haverem criado um protagonista dono das imagens, a
origem documental do material não é negada, mas afirmada como construção narrativa do
personagem. José Renato está viajando a trabalho, mas também está sofrendo por amor. A
constante crise entre esses dois aspectos do personagem, o racional e tecnicista, e o emocional,
afetivo, tensiona também os limites entre os campos documental e de ficção que reverbera na
escolha de imagens e na forma como se apresenta a narração, como veremos mais à frente.
Apesar da origem comum, “Viajo porque preciso” e “Sertão de Acrílico” guardam entre
si distância enquanto produto final. “Sertão” é fruto de direto de uma experiência afetiva, e
construído com intensa liberdade sensorial, de forma a dar ao espectador a oportunidade de
imersão subjetiva naquele universo, naquela atmosfera. “Viajo” é o retorno àquela primeira
experiência (da viagem), com a intenção de reconstruí-la e, por isso mesmo, lança mão de
procedimentos narrativos e estéticos que utilizam o afeto como tema, mas estão a serviço de
uma dramaturgia.
No tocante à tensão entre os campos do documental e ficcional, que faz parte da
composição de “Viajo porque preciso”, partimos do pensamento de que as questões que
relacionam os dois filmes na verdade se relacionam por meio da discussão a respeito de um
cinema calcado no fluxo versus um cinema de mise en scène. Em “Sertão”, as imagens, mesmo
passando pelo crivo de uma subjetividade de seus realizadores, relacionam-se entre si de modo
não causal, perdendo-se em um “presente”, detendo-se apenas em tempo e sensações; em
“Viajo”, parte das mesmas imagens são ressignificadas por um narrador “dono” delas,
obedecendo a uma encenação.
No livro “A mise en scène no cinema – do clássico ao cinema de fluxo”, José Carlos
Oliveira Jr. apresenta um panorama histórico sobre a encenação no cinema. Partindo de um
cinema clássico cunhado na narrativa bem determinada e na encenação, o autor mostra que este
cinema desejava controlar o universo fílmico que construía, de “ordenar o real, de emprestar
uma forma ao que é originalmente caótico.” (OLIVEIRA JR., 2013, p.9). Uma revolução
tecnológica que começa nos anos 70 e 80, com aparelhos domésticos de gravação e reprodução
107
de vídeo, vem influenciar a maneira de se ver cinema em todo o mundo, e também com se fazer,
com diferentes expressões, mas colocando em evidência filmes cuja realização centrava-se
menos na encenação e no controle.
Instaura-se, então, uma crise da mise en scène. E essa crise não se limita a um dilema
conceitual forjado pela crítica: a ideia de que a mise en scène em algum momento se
tornou uma arte “impossível” repercute de maneira evidente nos filmes (…).
Basicamente, portanto, aquela crise da mise en scène na passagem clássico-moderno
engendrou duas tendências opostas: a de uma ultracomplexificação das técnicas de
mise en scène (Ruiz, De Palma, Fassbinder, Syberberg, Wenders) e a de uma busca
pelas formas de encenação mais brutas e imediatas (Garrel, Pialat, Eustache,
Cassavetes). (OLIVEIRA JR., 2013, p.89-90)
Esta desdramatização fazia com que a ideia de reprodução do mundo desse espaço maior
à experiência do sensível e o estreitamento com a realidade. O esmero com a formulação do
plano, com a interpretação do ator etc., havia chegado ao esgotamento com a dificuldade de se
fazer algo realmente novo, algo ainda não visto. Para Oliveira Jr., isto teve duas consequências:
desembocou no surgimento de um cinema maneirista23, de desconstrução do já visto e
repetições do modelo, em um primeiro momento; e permitiu que surgisse um cinema que
acreditasse menos na composição do quadro e na montagem e desse mais vazão à captação do
mundo como se apresentava, às imagens como fluxo.
Diferentemente do cinema baseado na mise en scène, Cunha (2014), em sua pesquisa
sobre cinema de fluxo24 em filmes brasileiros, identifica que este novo tipo de construção
fílmica havia sido apontado pelos críticos como “um avançar de sons e imagens menos
articulado pelos artifícios tradicionais de construção de sentindo e sensações, mas capaz de
produzir um real constituído de subjetividade, pertencente à ordem do sensível” (CUNHA,
2014, p.4).
Não havia, na visão dos críticos que cunharam o termo uma necessidade de organizar o
mundo abstrato em prol de uma narrativa que conduzisse o espectador por uma trama que lhe
entregasse ações encadeadas com significados determinados – ou mesmo sugeridos –, como no
cinema clássico solidificado na encenação. Se antes havia a necessidade de tradução do mundo
real numa narrativa sólida, nestes filmes o real era apenas capturado como parecia se apresentar:
ambíguo, misterioso, calcado nas pequenas ações do cotidiano, com encadeamento livre o
23
“(...) analogamente ao que ocorrera nas artes plásticas com o fim do Renascimento, o cinema vivia um momento
maneirista.” (OLIVEIRA JR., 2013, p. 122).
24
O termo “cinema de fluxo” começou a ser delineado a partir de três artigos publicados na revista Cahiers du
Cinéma pelos críticos franceses Stéphane Bouquet, Jean-Marc Lalanne e Olivier Joyard: Plan contre flux, por
Stéphane Bouquet, número 566 de março de 2002; C’est quoi ce plan?, de Jean- Marc Lalanne, número 569, junho
de 2002; e C’est quoi ce plan? (La suite), por Olivier Joyard, na edição número 580 em junho de 2003.
108
suficiente para não se pensar em sentidos de uma trama com causas e consequências. Não existe
aqui um conflito ou um drama concreto, e os fatos acontecem procurando ainda se encaixar.
O autor nesta fala contempla cinemas praticados por cineastas como Hou Hsiao-Hsien,
Gus Van Sant, Lucrécia Martel, Apichapong Weerasethakul, Claire Denis, Philippe
Grandrieux, entre outros, citados por ele no livro. Nos filmes destes realizadores há cada vez
mais a diluição da mise en scène, característica evidente em muitas obras, apesar de se
originarem de diferentes lugares e tratando de diferentes temas.
CUNHA (2014, pg.30), por sua vez, investiga o conceito de cinema de fluxo tentando
reunir escolhas estilísticas que ecoam em diferentes filmes, de forma a conectar pontos em
comum. Para tanto, o autor formula um quadro geral com as características colhidas a partir da
análise dos artigos da Cahiers du Cinéma, de outros textos que falam sobre estes filmes e da
observação das próprias obras. De forma resumida, os tópicos com as características são
divididos em:
a) O plano ressignificado: economia no uso de planos; planos gerais, sem recortes de quadros;
planos estendidos ao máximo;
b) Montagem fluída: cortes sem um encadeamento lógico; prolongamento de uma atmosfera
tátil; menos contraposição de planos.
c) Cinema de atmosfera: diminuição de diálogos e ações de causa-efeito; apreensão de
atmosfera sensorial; estado de contemplação; sensível mais forte que a lógica.
d) Conflitos mínimos: temas do cotidiano, banalidades; conflitos internos, particulares;
silêncios, longas pausas; procura-se lidar com situações, mas não as resolver.
e) Escapismo: filmes em ambientes afastados, longe da “civilização”; protagonista em
isolamento, fuga, em trânsito; bucolismo, paisagens naturais que se tornam personagem.
“Sertão Acrílico” foi apresentado em sua sinopse como um “devaneio que revelava
principalmente paisagens e costumes marcados pelo convívio do primitivo e do novo”. Desde
sua concepção, quando os diretores abandonaram o roteiro e passaram a filmar tudo o que lhes
109
25
Alexandre Figueirôa, revista O Grito (2010) fala a princípio em road movie, mas afirma que “estamos diante de
um trabalho bem mais aberto e para o qual a designação prévia de um rótulo pode impedir a apreensão de seus
artifícios mais instigantes (...)”; Inácio Araujo, da Folha de São Paulo, (2010) o chama de “Estranho, lindo filme.”
Jeannette Catsoulis, NY Times, classifica o filme como uma "provocativa ficção experimental" (2011).
110
estando o curta e o longa centrados nas imagens, há uma grande diferença na relação que se
estabelece entre elas, que reverbera na apreensão por parte do espectador.
CUNHA, no início de seu estudo, lança uma série de perguntas a partir das quais
começaria a tentar adentrar no cinema de fluxo:
Essas perguntas parecem encontrar eco nas imagens do curta “Sertão Acrílico”, mas não
no que apresenta estas mesmas imagens em “Viajo porque preciso”. No curta não há
significações diretas, mas sensações despertadas; de uma orientação contemplativa, passamos,
no longa, para imagens hipersignificadas pela narração do protagonista.
O narrador-protagonista é sempre diegético. Há momentos em que sua fala pode variar
do consciente para o inconsciente, para o documental, para fluxo da memória... mas é sempre
integrado à história. O que varia, entretanto, é a influência do narrador extradiegético26 que está
por trás da construção do personagem (suas motivações foram motivações de seus criadores) e
que integraliza os campos fílmicos em função da narrativa e da dramaturgia criada para este
personagem.
Neste ponto, ao se olhar para o curta e para o longa, apesar e utilizarem muitas das
mesmas imagens, formam entre si concepções de cinema muito distintas, em que o primeiro
está mais ligado ao que podemos entender como uma estética de fluxo, enquanto o segundo
define com nitidez um sentido narrativo estreitamente condicionado pela composição da trama
e pela experiência (pessoal e profissional) de seus autores.
(...) segundo o conceito de cinema de fluxo colhido nos artigos da Cahiers (...), para
que este seja estabelecido, é necessário que os elementos estejam diluídos no todo. E,
quando nos referimos a elementos, pensamos nos componentes fílmicos que o
constituem: os cenários, os objetos, os atores, a dramaturgia, os diálogos, o som, os
movimentos de câmera, etc. É preciso que tudo esteja em um registro tão sutil que
qualquer saliência é capaz de interromper o curso do filme. (CUNHA, 2014, p.24)
26
Cardoso (2003) fala de um modelo proposto por Genette, Stam/ Burgoyne/ Flitterman-Lewis, o que ele chama
de narrador extradiegético, “narrador externo, que regula registos visuais e sonoros e se manifesta através de
códigos cinematográficos e distintos canais de expressão e não através de um discurso verbal”.
111
O filme, na verdade, parece ter uma falsa diluição da mise en scène, uma vez que a
composição cênica não é fugidia, mas completamente controlada por cortes certeiros que mais
imprimem significado às sequências – principalmente em “justificar”, endossar, a dor e o
devaneio do protagonista em vista de uma causa – do que animam o espectador a fazer sua
própria rota naquele devaneio27. Mesmo quando o plano é estendido e sem cortes, a narração
em off o segmenta e o ressignifica, para este propósito.
Um bom exemplo é a cena, logo no início do filme, em que o José Renato vai à casa de
um casal de idosos, os quais serão deslocados com a construção do canal para o qual ele faz
estudo. A imagem apresentada é plano estático, o casal de idosos de pé, em frente a uma parede
cheia de imagens de santos. O texto do narrador diz:
Seu Nino e Dona Perpétua serão os primeiros a serem desapropriados. Eles estão
casados há mais de cinquenta anos. Nunca tiveram outra casa, nunca tiveram uma
briga.... nunca dormiram uma noite longe um do outro. Seu Nino saiu para desligar o
rádio e eu pedi pra ele voltar. Não quis filmá-los separados. (VIAJO, 2009)
27
Não queremos com esta observação negar as possibilidades de interpretação e interação que “Viajo porque
preciso”, como qualquer obra de arte, possa despertar no espectador. Apenas é intenção pontuar a natureza e o
grau dessa permissividade, que serve distintamente ao curta e ao longa em questão.
112
Dois pontos importam nesta sequência. Primeiro, sendo ela um registro documental, a
narração, baseada nas experiências dos diretores, é fiel a quem realmente são aquelas pessoas?
São mesmo Seu Nino e Dona Perpétua? Eles realmente nunca brigaram? Por que motivo o
senhor saiu de quadro na hora da filmagem? Realmente foi desligar o rádio? Apesar de não
fazer grande diferença tais questionamentos para uma plateia que desconhece a origem do
longa, pesa ainda a mão (as mãos) do narrador extradiegético manipulando imagem e texto,
incluindo música e ambiência sonora, em prol de uma dramaturgia contada pelo protagonista –
e uma possível aproximação com a história que realmente ouviram destas pessoas.
Depois, a maioria destas perguntas, se a sequência fosse apresentada em “Sertão”, não
necessariamente seriam feitas pelo espectador, inebriado apenas pela sequência de imagens,
sem preocupação com um significado. Porém, como é apresentada neste caso, esta sequência
retira a vez do espectador de aguçar o tato através das imagens, com a proposta de inseri-las em
uma ação ou introduzindo um significado para a trama.
Em “Viajo porque preciso”, o grande fluxo é o do pensamento do protagonista.
Entretanto, a subjetivação de sua narrativa impregna as imagens de significados objetivos (para
a “trama”), direcionando o olhar a cada corte. O fluxo que impregnou a experiência de filmagem
e a concepção de “Sertão de Acrílico” não é aqui procedimento, mas tema.
Há, claro, espaço ainda para planos que não tem relação direta com o drama pelo qual
passa o narrador. A cena de um homem a fazer cócegas em um menino, ou a mulher e a menina
(esta sentada em uma mesa de sinuca) a olhar a estrada, nada adiantam a história contada. São
visões do protagonista ou respiros para o espectador pensar sobre a trajetória apresentada sem
a condução direta do narrador.
113
Figura 94 Figura 95
(Frame de “Viajo porque preciso”) (Frame de “Viajo porque preciso”)
São nestes respiros, nestas inserções que podemos remeter à origem do longa no curta,
e encontrar mais aproximação com a ideia de fluxo, de diminuição de diálogos e ações de causa-
efeito em prol de um estado de contemplação que permite que “Viajo porque preciso” seja
contaminado pela concepção que “Sertão de Acrílico” carrega.
A decisão de fazer o longa de ficção a partir das mesmas imagens captadas de forma
documental passa por questões mais profundas do que os limites entre esses dois campos. No
caso de “Viajo porque preciso”, a construção do protagonista, o desenvolvimento de um enredo,
o acréscimo de filmagens roteirizadas (produzidas unicamente para o longa) e a influência na
trama em vista da migração de gêneros entre os registros têm nas suas escolhas narrativas
camadas que se sobrepõem e se entrelaçam de forma sistematizada.
No Capítulo 4 do livro “Narrative Comprehension and Film” (1992), Edward Branigan
dedica-se a fazer uma detalhada classificação sobre “Níveis de Narração”. Neste capítulo ele
escreve sobre como o espectador percebe os filmes, dizendo que o que a audiência apreende
vai depender das condições em que chega a ela.
28
No original: “The basic organization of events into a narrative pattern is directed by a narrative schema.
However, as the focus of inquiry shifts from "what happens" to the "how and when" of our knowing what happens,
a deeper narrational schema will be found setting the conditions for, and directing, the operation of a narrative
schema.”
114
Ele defende a divisão em níveis de texto, maneira pela qual podemos explicar como
os dados são “sistematicamente reformulados pelo espectador de um contexto de percepção
para outro”. Ao ver um filme, aquilo que é lembrado e o que é esquecido por um espectador é
sistemático, e não acidental.
O autor fala em “texto” referindo-se ao filme e define como um conjunto de descrições
de um artefato, o qual deve materializar um sistema de símbolos, e as descrições sobre ele
devem ser reconhecidas e admitidas pela sociedade. “Assim, um ‘texto’ é mais do que o
material de um produto manufaturado e mais do que os símbolos materializados; um texto é
sempre sujeito a alterações de acordo com um consenso social sobre a natureza dos símbolos
que foram materializadas”29 (BRANIGAN, 1992, p.88).
O esquema de Branigan é sistematizado na figura abaixo. Ela especifica, ao invés de
posições alternativas, mais separadas, um continuum de entendimento sobre os níveis
hierárquicos de narração, cada um definindo um contexto epistemológico interno para
descrever os dados: são oito níveis, com três colunas, em que a primeira coluna diz respeito ao
produtor do texto, a segunda como seu discurso é representado no filme e a terceira como a
audiência entende.
29
“Thus a "text" is more than the material of an artifact and more than the symbols materialized; a text is always
subject to change according to a social consensus about the nature of the symbols that have been materialized.”
115
De acordo com este esquema, um texto pode definir diferentes níveis de entendimento
narrativo: a dinâmica interna de um personagem; as condições de construção deste texto; a
relação com a figura de quem o construiu; todos estes pontos estariam sujeitos à revisão com
este esquema.
Como exemplo do que ele chama de autor histórico, o autor analisa a figura de Alfred
Hitchcock. Branigan fala em autor histórico levando em consideração fatores psicológicos e
sociais. Quanto ao psicológico, ele diz que este autor não é apenas uma pessoa biográfica que
criou algo, mas é também uma figura criada pelo seu trabalho. Hitchcock não se resume apenas
a sua biografia e sua personalidade; para um “público histórico” (não só o da época do autor,
mas o que conhece a história), o cineasta é também uma “lenda cultural”.
O autor fala que todos os textos têm uma dimensão não-ficcional, que deve ser levada
em conta, mesmo havendo uma interpretação ficcional sobre aquele mundo fictício. “(...) um
nível extra-ficcional no texto é necessário a fim de falar sobre objetos como ficcional sobre um
nível ‘inferior’ do texto. Ficção surge de não-ficção”31. O autor mais uma vez remete a
Hitchcock para ilustrar seu pensamento, referindo-se à sequência extra-ficcional de “O homem
errado” (1956), antes dos créditos iniciais do filme, quando o próprio diretor aparece para
“apresentar” o filme, segundo ele, diferente dos que já fez por ser “uma história real” (figura
97). Esta sequência, mesmo que não interfira em nada na história que será contada, na verdade
induz a audiência a um suspense antecipado, pondo em xeque a crença na verdade de ser uma
história real ou já a aparição de Hitchcock ser uma encenação. Para as duas hipóteses (a
reputação do diretor e o uso de um discurso não ficcional na ficção), Branigan diz se tratar de
dois níveis narrativos operando no mesmo instante – o da figura histórica e o do extra-ficcional.
30
“Hitchcock's public persona (which he alertly helped to author) is composed of his famous profile, a bit of theme
music, television monologues, interviews, publicity, cameo appearances in his films, and so on. As a result his
name has become a brand name guaranteeing a certain kind of experience: "Alfred Hitchcock's" Vertigo promises
suspense, obsession, deceit, ambivalence, mordant wit, violence, and sexual malaise.”
31
No original: (...) an extra-fictional level in the text is required in order to talk about objects as fictional on a
'1ower" level of the text. Fiction arises out of nonfiction.” (BRANIGAN, 1992, p.88)
116
O autor, ao longo do capítulo, deixa claro que para além da narrativa na superfície de
um texto, outras narrativas são bastante implícitas, menos evidentes e sujeitas a interpretações
de, usando este caminho, o que está ausente, o que não é dito. Por exemplo, a mão de Hitchcock
como o “grande narrador” (no sentido de organizador dos recursos fílmicos) é implícito; na
maioria do tempo não é perceptível ao espectador, a menos que ele deixe pistas, como na
sequência de “O homem errado” em que a saída do protagonista do clube, enquadrado no meio
de dois policiais (figura 98), evidencia o que virá pela frente e é uma escolha do diretor, mesmo
não percebida imediatamente como uma “prévia” da história, como analisa Branigan,
classificando como autor-implícito.
Para nosso caso, os níveis com os quais Branigan interpreta obras fílmicas são
importantes, principalmente na sua definição do conceito de autor-implícito, para o qual cita
Cristian Metz:
117
Um filme como “Viajo porque preciso, volto porque te amo”, cuja existência depende
exatamente da teia de narrativas que compõem dimensões como a ficção e o documental, da
ficcionalização de registros para documentário, e da permanente negociação entre a narrativa
diegética, explícita do protagonista, e a narrativa implícita de seus autores, enxergar níveis
narrativos é, além de descobrir de certa forma o processo de criação deste filme, desvendar
manobras sofisticadas de narrativa cinematográfica.
A origem do longa já evidencia um emaranhado de níveis de narrativa: um curta
documentário, sem condução narrativa evidente, recriado como um longa de ficção. A
quantidade de diferenças e amarradas, porém, mais serviu para dar coerência ao produto final.
O ponto de vista documental não é negado, mas somado à narrativa da ficção, dando nova
dimensão dramática à história.
O protagonista, José Renato, em nenhum momento aparece fisicamente, apenas as
imagens da região e das pessoas com quem encontra. Ele se faz presente apenas pela fala em
off durante todo o longa, como se fosse um registro em um diário de bordo. Já sobre este aspecto,
sobre o que é falado pelo personagem, podemos considerar duas dimensões: a do narrador do
filme e a dos narradores que construíram o filme, os diretores, que co-operam a condução da
diegese.
Segundo Cardoso (2003),
32
No original: “The spectator [of a narrative film] perceives images which have obviously been selected (they
could have been other images) and arranged (their order could have been different). In a sense, he is leafing through
an album of predetermined pictures, and it is not he who is turning the pages but some “master of ceremonies”,
some “grand image-maker” who (before being recognized as the author, if it is an auteur film, or, if not, in the
absence of an author) is first and foremost the film itself as a linguistic object... or more precisely a sort of “potential
linguistic focus” situated somewhere behind the film, and representing the basis that makes the film possible.”
118
Este é o nível de narração, em que há a presença sonora do narrador que trilha aquele
caminho, mostra as imagens, relata os fatos, remonta suas histórias etc. A problemática de
“Viajo porque preciso”, entretanto, passa pela “interferência” entre o processo criativo e a
história que foi contada e pelas escolhas narrativas abordadas. Ainda Cardoso (2003) fala de
um modelo proposto por Genette, Stam/ Burgoyne/ Flitterman-Lewis, o que ele chama de
narrador extradiegético, “narrador externo, que regula registos visuais e sonoros e se manifesta
através de códigos cinematográficos e distintos canais de expressão e não através de um
discurso verbal”. Mais à frente, o autor remonta a Gaudreault e Jost, na obra “A narrativa
cinematográfica”, em que os autores usam o termo “narrador fundamental”, responsável pela e
organizador da comunicação fílmica, cujas “responsabilidades narrativas de ‘enunciador
fílmico’ incluiriam, segundo Gardies, as dimensões icônica, verbal e musical” (CARDOSO,
2003). Reservando para os diretores este papel enunciativo (eles dirigiram, escreveram o
roteiro, selecionaram fotos, filmagens e escolheram as músicas), consideramos a experiência
que estes tiveram enquanto cineastas desbravando o sertão, durante 40 dias, dez anos antes,
determinante para o processo de preparação do filme e para a construção do protagonista sem
rosto, que também desdobra o sertão, e precisa documentar o que vê, e deixa transbordar seus
sentimentos através de seu relato.
Como vimos nos capítulos anteriores, informações da biografia do filme indicam que
muito do que deu vida ao personagem narrador, na verdade fez parte da trajetória original vivida
por seus realizadores. Quando Karim e Marcelo afirmam querer trazer para o longa a
experiência que viveram durante a viagem de captação das imagens, significa também trazer o
que ouviram e não apenas o que filmaram. “Imaginamos um filme que pudesse produzir a
sensação de estarmos ali, que pudesse retratar o encantamento e, ao mesmo tempo, o
estranhamento de mergulhar naquele lugar” (REC PRODUTORES, 2009).
Esta última afirmação indica não apenas a presentificação de suas experiências
pessoais no filme de forma mais direta, mas também põe em evidência as escolhas de contar a
história como um diário virtual, cujos registros audiovisuais (fotos, sons etc.) parecessem uma
espécie de colagem, um tanto improvisada, com a dimensão pessoal reafirmada por uma
narração em off em primeira pessoa, ao modo de diários – ou de uma carta escrita ao longo do
caminho.
O filme tenciona os campos fílmicos de ficção e documentário durante todo o trajeto
do protagonista. Em uma mesma cena, há descrições e explicações objetivas sobre o seu
trabalho (lista de materiais, definição de aspectos geográficos da região etc.) e considerações
119
sobre a vida pessoal dele (cansaço da viagem, saudade de casa e de sua galega etc.). Considere-
se as primeiras falas do filme:
33
Uma referência para a construção do texto como cartas vem do filme “Notícias de casa” (1977), da cineasta
belga Chantal Akerman, O filme é construído com imagens da cidade de Nova York, onde a diretora morou certo
tempo, e cuja narração se trata de leitura de cartas trocadas com a mãe, que morava na Bélgica, durante esse
período.
120
espectador é pego de surpresa com a revelação de que a saudade da sua mulher que ficou em
Fortaleza, na verdade é o lamento pelo fim da relação:
A única coisa que me faz feliz nesta viagem são as lembranças que tenho de ti. Não...
não, Galega, isso é mentira. Não sei escrever carta de amor. Não aguento a ideia de
ficar só. Sabia que a única coisa que me deixa triste nessa viagem são as lembranças
que tenho de ti? (VIAJO, 2009)
“Estou na BR-432, quilômetro 45, altitude 450 metros. O clima da região é árido, o
terreno terciário, argilas de calcário compostas por arenitos, siltitos e conglomerados
ferruginosos de forte coloração vermelho-arroxeado de idade cambriana. A região se
chama Varzinha... apesar disso, não vejo nenhuma várzea.” (VIAJO, 2009)
Toda esta fala acontece com um plano estático em uma paisagem sertaneja, solo seco
e uma casa, duas mulheres andam junto uma cerca, uma terceira cruza o plano (figura 99).
121
Figura 99
(Frame de “Viajo porque preciso”)
Em entrevista com Marcelo Gomes sobre essa cena, ele nos fala que realmente seus
nomes são Seu Nino e Dona Perpétua, que estiveram a vida toda casados, assim como há no
texto. Entretanto, a afirmação de nunca haverem brigado ou passado uma noite separados é
puro recurso dramatúrgico para a narração, assim como a afirmação dele ter saído de cena para
desligar o rádio – a mão de um narrador extra-diegético manipulando imagem e texto. Outro
exemplo: a família isolada em que uma das filhas lê e relê “Dom Casmurro”, de Machado de
Assis. Karim Aïnouz conta que todo texto do narrador nesta passagem condiz com o que
ouviram dessas pessoas, são histórias reais – nesse caso, uma narrativa extra-ficcional, servindo
à ficção.
Fica evidente, então, a partir dessas informações, a constante negociação entre os
níveis de narração que reverbera por todo filme. O narrador-protagonista é sempre diegético.
Há momentos em que sua fala pode variar do consciente para o inconsciente, para o documental,
para fluxo da memória... mas é sempre integrado à história. O que varia, entretanto, é a
influência do narrador universal que está por trás da construção do personagem (suas
motivações foram motivações de seus criadores) e que integraliza os campos fílmicos em
função da narrativa e da dramaturgia criada para este personagem.
Uma cena emblemática também a ser considerada seria um encontro mais direto entre
o extra-diegético e o diegético. Na metade do filme, o protagonista encontra com Pati, dançarina
que também faz programa, com a qual ele diz ter encontrado ao acaso e passado o dia inteiro.
Em determinada hora, ele começa a fazer uma espécie de entrevista com ela (figura 102). Existe
um jogo cênico entre o que o protagonista-narrador diz e o que realmente foi perguntado – o
que não deve ser muito distinto, levando-se em consideração quão diretas e objetivas são as
respostas, principalmente as primeiras de informações mais básicas (nome, trabalho etc.).
Porém, o que importa nestas respostas são o grau de compromisso de seu conteúdo com a
história que está sendo contada. De um plano médio a princípio, num segundo momento há um
close up, quando Pati passa a falar mais sobre sua vida sentimental (figura 103).
34
No original: “Whether we are an "author" or a "reader" is no longer pertinent: the central activity of narration is
the redescription of data under epistemological constraint.” (BRANIGAN, 1992, p.112. Grifos do autor.)
124
do material de que dispunham e para dar voz à experiência que os diretores tiveram, construindo
uma narrativa fílmica coerente. Neste tópico, iremos investigar mais profundamente as outras
duas vertentes concebidas pelo autor: a construção narrativa em larga escala e a composição
estilística.
Apesar da divisão proposta por Bordwell, é quase impossível tratar completamente cada
parte de forma isolada, de modo que uma vertente sempre irá encontrar amparo e interferir no
campo da outra. Não há, por exemplo, como pensar no uso de ruídos e música em um filme
sem ligar isso a sua temática ou estrutura narrativa. São partes essencialmente integradas. Dessa
forma, partiremos aqui da estrutura maior do filme para partes específicas, mas sempre em vista
das relações que existem entre elas e o todo.
Karim fala da experiência de fazer “Sertão de Acrílico” como sendo um trabalho
intuitivo, sem amarras narrativas – o que ele achava aprisionador. Porém, desde o momento em
que decidiram não repetir a experiência de fazer um documentário, viram que teriam de vincular
tudo em uma trama que prendesse o espectador. “A gente entendeu que se não organizasse
aquilo narrativamente a gente não teria filme, a gente teria meia instalação ou qualquer coisa
por ali. (...) Se você não gera expectativa, você desliga o espectador do processo.” (CINTRA,
2016).
O diretor, nesses termos, dialoga com Bordwell (2005, p.280) uma vez que este entende
o movimento de causa e efeito como princípio unificador da construção clássica de uma trama.
Para o autor, narrativa pode ser entendida de três maneira: a) como representação, pois confere
significado a um mundo ou um conjunto de ideias – que seria a “semântica” da narrativa; b)
como estrutura, ou seja, o modo como os elementos se ajustam para formar um produto final –
que seria a “sintaxe” da narrativa; e c) como ato, que é o processo dinâmico na apresentação da
história. Esses aspectos da narrativa clássica seriam responsáveis, por exemplo, por cada cena
do filme estar ancorada numa dinâmica de causa e consequência, em que um gancho é deixado
como origem da próxima cena, retomando o que não foi resolvido na cena anterior. Esse é o
princípio de gerar expectativa na audiência de que falava o diretor.
Apesar de ficar mais claro enxergar estas relações a partir de cenas que formam uma
trama, todos os elementos que estão presentes num filme podem convergir para uma
expectativa, uma construção causal. São esses elementos que circundam o mundo dos
personagens e que, combinados à motivação da cena, auxiliam o andamento da história, ao
passo que adiantam essas relações para o espectador. Kristin Thompson (2001) fala um pouco
sobre essas relações ao analisar a narrativa clássica:
125
35
No original: “The techniques of continuity editing, set design, and lighting that were developed during this era
were designed not only to provide attractive images but also to guide audience attention to salient narrative events
from moment to moment.”
36
Bordewell (2005, 297) fala em schematas, que seriam pistas e quadros de hipóteses que oferecem ao espectador
“expectativas predeterminadas que são balizadas a partir de pistas concretas veiculadas pelo filme”.
126
misturam um tom descritivo (mais próximo do seu trabalho) e especulativo (opiniões pessoais
sobre elas).
A segunda fase, perturbação, é marcada por uma revelação, a admissão de uma mentira:
o principal motivo da viagem não é o trabalho, mas fugir e se isolar para esquecer um amor. É
o plot point, ou ponto de virada. A partir daí a perspectiva do protagonista começa a mudar. Da
solidão da estrada ele vai atrás dos lugares com mais gente; passa por uma multidão em uma
romaria no Juazeiro do Norte-CE, perde-se em pensamentos numa feira de rua. Existe uma
tentativa de continuar seu trabalho, mas seu estado emocional cada vez mais emerge e toma
conta da situação. Os diretores tornam isso evidente com a variação maior entre registros
formais e pessoais, misturado as descrições objetivas de geólogo com as considerações pessoais
sobre as pessoas e menções à ex-companheira, a Galega. Ele sonha com ela, ele a vê nas outras
pessoas, nas cenas do coditiano.
O próximo ponto, luta, é onde vive o momento de clímax. José Renato não aguenta mais
ruminar as lembranças de amor e saudades da sua Galega. Ele toma agora uma atitude para
esquecer a ex: se entrega para outras mulheres, outras experiências sexuais com prostitutas. Vai
de uma para outra; a partir delas ele esquece o trabalho e a paisagem e passa a descrever e
estudar as pessoas: “Shirley, 28 anos. Tatuagem de coração com asas na virilha. Pinta o cabelo
de loiro todo mês”. Ainda há descrições do trabalho, mas em poucos momentos. Uma das
garotas, Pati, conta sobre sua vontade ter um companheiro e uma “vida lazer”. A fala dela
reverbera no estado emocional de José Renato, fazendo viver um momento de introspecção e
devaneio. O encontro com as histórias de amor de outras pessoas agora o tiram do isolamento
do próprio sofrimento. As coisas começam a se acalmar.
A última fase, a eliminação do elemento perturbador, é o desfecho, o fim da viagem. O
elemento perturbador, o sentimento que o consumia durante todo o trajeto, é aqui expurgado.
O equilíbrio é recuperado, e isso é evidenciado pela volta de descrições objetivas sobre a
viagem, sobre o trabalho. Problema resolvido, ele se mostra agora livre e pronto para mergulhar
no mundo e encarar uma nova vida.
Mesmo com essa divisão, entretanto, o filme não é estritamente constituído de um
protagonista como agente causal da trama. Existe uma atitude de contemplação, proporcionada
pela ausência física do personagem, e uma economia de conflitos (como a falta de uma
subtrama) que aproximam o filme de, como falam LORENA e ALVARENGA (2009), uma
matriz realista de linguagem cinematográfica. “Tais histórias tendem a se concentrar menos nas
ações dos personagens do que no modo como um personagem reage ao que faz ou ao que
acontece ao seu redor”, falam os autores.
127
37
NEALE (2011), diz que “a definição e a discussão de gênero e gêneros no cinema tendeu a focar nos filmes
mainstream, comerciais, em geral, e nos filmes de Hollywood, em particular”. A razão disso seria a exploração
comercial de fórmulas de filmes, algumas vezes em ciclos, que teriam ajudado a estabelecer o cinema como
indústria nos Estados Unidos.
128
A partir disso, podemos pensar no road movie como um gênero cujas convenções
visuais são compostas por elementos como paisagens, postos de gasolina, bares de estrada,
automóveis etc. Enquanto narrativa, passeiam por histórias que problematizam uma crise do
sujeito que percorrem a estrada como metáfora para a travessia da própria experiência de vida,
um caminho errante em cuja viagem há o encontro com “afetos diferentes, sensações estranhas,
inimagináveis até aquele instante” (MONTE, 2014).
Conceber “Viajo porque preciso” como um filme de estrada não parecia passar por uma
escolha diferente, haja vista o desejo dos diretores de refazer a própria experiência de andarilhos
pela estrada. De qualquer forma, os elementos que compõem sua narrativa visual, notadamente
as tomadas de dentro do carro, foram na sua maioria realizadas especialmente para o longa,
principalmente as imagens noturnas. Em “Sertão de Acrílico” a estrada se constituía como um
dos temas, mas limitava-se ao primeiro bloco, não acompanhava o filme por inteiro. Aqui, a
narrativa exige um deslocamento, que acaba servindo de passagem entre as cenas ou mesmo
constituindo parte da ação – como o último deslocamento de carro, pouco antes do final, único
momento de “corrida” do protagonista, uma pressa súbita de sair daquela condição estática.
Nosso último ponto diz respeito à composição estética. É muito marcante a definição de
um tipo de imagem ou padrão de edição e de uso do som, para citar três pontos, que são
estabelecidos na construção da “gramática” do filme e no registro da fala do personagem. Cada
plano, tipo de montagem e seleção de som tem aqui um objetivo, relacionado ao andamento da
trama. Analisar e categorizar esses aspectos do filme (como faremos a seguir) é observar que
as escolhas se tornam a “gramática” do filme, cujo objetivo pode ser reorientar o espectador,
em meio à diversidade de suportes para as imagens, para reiteração de procedimentos dentro
do filme.
Pensamos que cada elemento do filme é integrado à narrativa de modo a fazer avançar
a história, a trama – procedimento apontado por Bordwell como “motivação composicional”
(2005, p.278). O termo é originado de estudos de narrativa literária do formalismo russo e diz
respeito a como os elementos são dispostos e/ou apresentados numa obra de maneira funcional,
ou seja, na qual se concebe que cada elemento inserido no texto (filme) está lá obedecendo uma
função.
Como exemplo dessas relações estabelecidas, podemos analisar a sequência inicial do
filme. Ainda nos créditos, ouvimos um ruído de rádio sendo sintonizado e um barulho de carro
na estrada. Para-se à seleção de uma música. O volume do som é aumentado. A música é
“Sonhos”, de Peninha. A princípio o espectador poderia apenas pensar ser uma música
qualquer, de um personagem entediado, tentando passar o tempo; no refrão, a música é
129
interrompida, o filme segue. Entretanto, aos 17 minutos de exibição, o protagonista revela que
está sofrendo desde o início pela dor de um amor; o espectador, então, recupera a música com
maior sentido: era uma antecipação do estado emocional do personagem. Apesar disso, naquele
primeiro momento, a canção já funcionava como gancho para a audiência apresentando o
universo do personagem: a música (popular, brega) representa o tipo de cultura que ele consome
ou o universo no qual está inserido. Por último, no momento em que se sabe o verdadeiro motivo
da viagem, o espectador é capaz de reaver um fato anterior ao início do filme – o abandono do
protagonista pela companheira, talvez o verdadeiro incidente iniciante38 de toda a história.
A partir da história criada, as imagens existem para o registro formal e objetivo do
trabalho de campo do geólogo. A primeira parte do filme, quando há a apresentação do mundo
comum do personagem, é majoritariamente calcada nesse padrão. Dessa forma, obedece mais
ao que se esperaria de um documentário: fala objetiva, informativa, reiterada pelas imagens.
“Estou na BR-432, quilômetro 45, altitude 450 metros. O clima da região é árido, o
terreno terciário, argilas de calcário compostas por arenitos, siltitos e conglomerados
ferruginosos de forte coloração vermelho-arroxeado de idade cambriana. A região se
chama Varzinha.” (VIAJO, 2009)
38
Segundo Robert Mckee (2012), o incidente iniciante é a causa primária na narrativa, responsável por tudo o que
vem depois. Pode ser um problema iminente, um dilema ou uma circunstância que vai criar a tensão principal da
história, pois desarranja radicalmente o equilíbrio de forças na vida do protagonista. Nosso ponto com o comentário
é pensar que a viagem foi motivada pelo término do relacionamento com a Galega, um fato extra filme que é
recuperado e desconserta a sua jornada profissional.
130
Galega, bom dia! Bom dia, meu amor... hoje é dia 28 de outubro, dia do funcionário
público. Em Fortaleza ninguém trabalha na repartição e eu aqui nesse torrão seco
dando um duro danado. Faltam 27 dias e 12 horas para acabar a viagem. Parece uma
eternidade. (VIAJO, 2009)
Para estes momentos, são imagens com movimento de câmera, tremidas, em busca de
foco; há closes em pessoas e planos detalhe de alguma ação. Enquanto as imagens anteriores
davam conta de um registro mais objetivo, e reafirmavam o que era visto, aqui elas se
aproximam de registros caseiros, filmes domésticos, sem preocupação informativa, mas sim
ressignificando o que é visto em face de uma narração subjetiva, o que reforça o potencial
afetivo. É interessante lembrar FOSTER (2010, p.30), que diz que há na falta de objetividade
dos filmes domésticos a chance de ser ressignificados quando da sua exibição em reuniões de
131
Larissa, 19 anos. Foi a São Paulo duas vezes a trabalho. Tem duas pintas no rosto que
me lembram uma atriz de cinema. E um piercing no umbigo, que foi presente do
namorado.
Passei a noite no motel com Larissa. O quarto custou quinze reais porque tava em
promoção. O café da manhã era grátis e incluía cuscuz, café com leite e suco de poupa
de goiaba. (VIAJO, 2009)
Nas demais sequências de cunho não objetivo, o que inclui as imagens de estradas, a
feira, a fábrica de colchões etc., o som cria um ambiente completamente diegético, atento em
ratificar o que é mostrado.
Deve-se destacar as sequências subjetivas, em que há momentos de delírio ou reflexão
por parte do personagem. Quando sua jornada o leva a uma luta interna contra o sentimento que
o consome, o som lança mão de diferentes recursos, entre eles a trilha sonora do grupo
Chambaril, composta, segundo Karim, para traduzir as sensações dele. “Parece música espacial,
composta em Marte”, diz o diretor (CINTRA, 2016), em referência ao tom abstrato que pode
134
ser confirmado na sequência em que homens carregam bancos de feira, por exemplo. Mesmo
como a edição trazendo referências sonoras ainda diegéticas, condizentes com o ambiente, há
uma acentuação de sons exteriores à cena, que implica numa polifonia de vozes, de barulho de
eletrônicos etc., e contrasta com o silêncio da estrada e das outras passagens objetivas; nessa
sequência, é a trilha abstrata que introduz o momento de reflexão sobre um sonho do
personagem com a companheira. O mesmo recurso, a acentuação por vezes caóticas de
referências sonoras, mas pertencentes àquele ambiente é utilizada em um momento anterior, na
passagem por Juazeiro do Norte-CE: buzinas de carros, falas, músicas religiosas, somadas à
trilha abstrata são responsáveis pelo momento de delírio do protagonista logo depois de
confessar o sofrimento pelo amor da Galega.
Há ainda espaço para dois momentos de liberdade poética do som, o que Machado
(2001) chama de som meta diegético, “sonoridades subjetivas; sonoridade que traduz o
imaginário de uma personagem normalmente com o seu estado de espírito alterado ou em
alucinação”. O primeiro momento, quando é mostrado um por do sol e José Renato diz lembrar
do último por do sol juntos, na praia do Futuro, em Fortaleza. Durante a narração, muito
sutilmente pode-se ouvir o barulho do vento e das ondas do mar – uma referência afetiva meta
diegética do personagem. O segundo momento, no final da sequência das romarias em Juazeiro,
é a inclusão, durante a execução de uma canção religiosa possivelmente captada no lugar, de
um canto que se assemelha a um típico de alguma religião ou cultura do oriente médio, como a
muçulmana – uma referência que nos parece dizer mais respeito aos narradores extra-diegéticos
do que ao repertório cultural do protagonista39.
Por fim, é necessário atentar para a seleção musical de “Viajo porque preciso”. Não
apenas a música da abertura do filme, “Sonhos”, de Peninha, mas todas as outras tem
eminentemente uma função narrativa para o filme. À exceção da música que fecha o filme, de
Eugenia Leon (“Échame a mi la culpa”), todas as outras canções são diegéticas. Quando
ouvimos “Morango do Nordeste”, de Lairton dos Teclados, é o protagonista quem ouve a
música, fazendo o ajuste no rádio, mixadas com barulho de vento e do carro. A sua escolha,
dessa forma, é uma leitura significativa de dados importantes para determinar seu gosto pessoal,
a cultura em que está inserido e uma possível identificação temática.
39
“É como se eu tivesse chegado no Taj-Mahal”, diz Karim sobre a primeira impressão que teve ao chegar no
Juazeiro do Norte-CE, durante uma romaria. (CINTRA, 2016)
135
As músicas que o protagonista ouve, ditas “bregas”40, tem nas letras um forte apelo
romântico ou de sofrimento por amor, temas que servem de retomada do tema central do filme.
“É somente ela que me satifaz...” diz o verso da música imediatamente antes de José Renato
“falar” com a sua Galega: “Fico com o rádio ligado, pensando em você e só...” diz ele, num
momento em que a audiência ainda não sabe de sua separação. “Chega me canso de tanto pensar
em ti”, diz ele, enquanto vemos um zoom sendo dado em um “por do sol romântico” – a
reafirmação de romantismo clichê que presumimos fazer parte do repertório audiovisual do
protagonista.
Canções ditas bregas têm um público cativo, principalmente nas camadas mais
populares. As músicas acompanham o protagonista por onde ele passa: no rádio, postos, feiras,
etc. Logo após a entrevista com Pati, da “vida lazer”, ouve-se uma canção vindo de algum
aparelho de som na rua, portanto diegético, que diz “Se eu não achar um jeito, uma saída/ Serei
escravo dessa solidão”, uma referência ao diálogo anterior com Pati, mas ainda assim uma
indicação sobre o ultimato sentimental em que se encontrava o protagonista. O curioso é
perceber que outras músicas no filme seguem o mesmo padrão estético: parece ficar claro a
intenção em não apenas imprimir ao personagem principal a dimensão de romance/ drama de
que falam as músicas, mas também determinar o seu gosto musical e dimensionar a paisagem
musical de daquela região, situando-a culturalmente.
Por isso é tão significativa a última canção que aparece no filme, cantada por Seu Severino
Grilo, em meio ao trabalho de sapateiro.
40
Por “brega” aqui se entenda uma classificação estética e não de categoria; hoje, popularizam-se bandas nos
centros urbanos em todo o país, mais visivelmente no Nordeste, que trazem letras de um sentimento romântico
exagerados, mas com um cunho sexual que eram menos evidentes em canções das décadas de 70, 80 e 90, quando
ainda não havia se convencionado uma “categoria”.
136
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como o filme foi construído? Essa era a pergunta central durante toda a nossa pesquisa.
Ir ao encontro da história, dos rastros, das narrativas que constituem a realização de “Viajo
porque preciso” parecia um caminho óbvio para obtermos uma resposta, mas não plenamente
satisfatória. Observar esses dados em vista dos estudos de criação, em especial pensar a criação
como uma complexa rede de conhecimentos, procedimentos e influências, proporcionou não
meramente um olhar retrospectivo, mas uma abordagem processual – ou seja, colocar o
processo de criação em movimento.
Nossa discussão, longe de encerrar as considerações sobre o processo de criação do
filme, incorpora reflexões que passam pelo seu movimento construtivo, uma vez que é visto
por nós como um objeto móvel. Nossa busca pelos procedimentos que tornaram o filme possível
foi se moldando e se adequando em vista dos próprios objetos de análise deste percurso – ou
seja, tudo o que pareceu necessário aos artistas durante a concepção do longa. Dessa forma,
seus filmes anteriores e a viagem antes de todos os filmes foram incorporados como artigos
fundamentais para realizar um painel mais completo sobre a concepção dele.
Muito embora para os estudos de criação, em vista aos interesses comunicativos que
constituem o trabalho de um artista, seja vã a tentativa de determinar a origem de uma obra (e
seu ponto final), é inegável pensar na experiência da viagem dos dois cineastas como marco
não apenas histórico/contextual, mas um exercício profissional formador e uma experiência
afetiva acentuada.
A decisão de se desvincularem de um projeto pré-concebido em prol de uma liberdade
de procedimentos fez com que eles exercessem durante a viagem uma instância também
criativa, que é a intuição. Fayga Ostrower (2001, p.56) diz que a intuição pode ser um reflexo,
uma reação da personalidade humana; mas, antes de tudo, é sempre uma ação, uma forma
comunicativa pessoal e ao mesmo tempo referida à cultura. Dessa forma, a vazão dada à
intuição que se constituiu em um método de trabalho nas filmagens só encontra sua completude
(e complexidade) quando vista como parte da criação em processo, não uma execução
puramente, no sentido de algo mecânico, separada do todo, mas uma ação determinante e
constituinte da obra. Ou, no caso, das obras.
De fato, a liberdade que tiveram durante a viagem, que eles sabiam que não teriam em
nenhum outro projeto de filme, permitiu a eles “[...]colocar a imaginação diante de qualquer
plano de filmagem, de qualquer roteiro” (REC PRODUTORES, 2009). Era o exercício de
diferentes olhares – de curiosidade, de pesquisador e de contemplação –, olhares intuitivos
138
como é próprio do procedimento artístico que faz testes, levanta hipóteses, corrige e enfrenta
os erros. Mesmo sem objetivar uma obra, sua ação criativa se confirmaria nos filmes que
surgiriam mais à frente, a partir dessa experiência.
Durante quarenta dias eles se tornaram colecionadores de imagens e emoções. Se diziam
à flor da pele, com uma força que comandava escolhas – uma relação que passava pela mediação
do sensível, estabelecendo um diálogo entre a capacidade de produzir imagens e de ser afetados
por elas. A arte não é desvinculada da vida. Não à toa, Coccia fala que “para que a vida exista
e se dê como experiência e sonho, ‘é necessário que exista o sensível’” (2010, p.11).
Essa força, essa experiência, como vimos, são revisitadas nos trabalhos seguintes.
“Sertão de Acrílico” é a mais evidente busca de uma mediação sensível, de execução intuitiva
e associação pautada na imagem e não em conceitos. Os outros filmes trazem parte desses
procedimentos, ou tematizam de alguma forma a experiência da viagem. Mas é somente em
“Viajo porque preciso” que se consegue trazer ao corpo do filme a potencialização de emoções
vividas naqueles dias.
Todo o processo de criação do filme, no qual incidem a ação do tempo decorrido e os
acontecimentos nesse percurso, contribuiu para a formação de uma narrativa e uma dramaturgia
impregnadas do próprio processo. O resultado não simplesmente se distancia do que os registros
originais significam enquanto documento, mas também de sua primeira organização, o curta
“Sertão de Acrílico”, enquanto campo cinematográfico (documentário), mas numa dimensão
cuja concepção dramatúrgica ressignifica o material antes produzido, (re)presentifica a
experimentação do sensível do momento da produção do material e recria, na mise en scène e
na dramaturgia do longa, a experiência do fluxo dos cineastas e o conceito de “cinema de fluxo”
a que o curta pode ser associado.
Rever a experiência dos cineastas e as obras do meio foram decisivas para entender a
importância da viagem na sua formação e da sua obra enquanto projeto poético. Por isso, “Viajo
porque preciso” não é apenas um objeto móvel, mas de certa forma inacabado – se pensarmos
no trabalho de uma vida do artista. É a isso que chamamos de projeto poético, a grande obra
cuja incompletude traz consigo o valor dinâmico: o objeto dito acabado pertence, portanto, a
um processo inacabado (SALLES, 2008b, p.14).
Sobre este aspecto, resta uma questão: de que forma os processos criativos dos artistas
são responsáveis pela sua postura ética e estética, isto é, pelas questões que guiam seu projeto
poético? Talvez caiba pensar aqui na formação de uma possível autoria, que se configuraria não
apenas numa assinatura do artista, mas também no modo como ele realiza suas obras. Conhecer
e investigar os procedimentos de criação – que envolvem da relação do artista com a cultura até
139
como ele procede sua coleta sensível – é, no mínimo, uma forma de se aproximar do modo
como as transformações acontecem e de observar, mesmo nos diálogos com o outro, a distinção
que corresponde ao espaço da subjetividade onde as autorias acabam se constituindo.
140
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FILMOGRAFIA
Sertão de Acrílico Azul Piscina. Direção: Marcelo Gomes/ Karim Aïnouz. Brasil, 2004.
Viajo porque preciso, volto porque te amo. Direção: Marcelo Gomes/ Karim Aïnouz. Brasil,
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