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O conceito de cineclube: passado, presente e futuro dos cineclubismos

Felipe Macedo1

Este artigo foi preparado para discussão dentro do grupo de estudos Ponto de
Encontro Cineclubista, que reúne cineclubistas e pesquisadores de cinema voltados
para o tema. O próprio título do texto foi dado pela reunião que me atribuiu a tarefa.
Está pensado para o contexto do grupo. Assim, é um tanto provocativo, pensando nas
questões que penso poder suscitar, apesar da relativa brevidade do texto, um debate
interessante entre os membros do grupo; também traz várias indicações bibliográficas,
mas menos no sentido de justificar as afirmações feitas – como soem ser as
referências mais acadêmicas – e sim para fornecer informação para outras pesquisas
que tenham a ver com os trabalhos dos companheiros. O roteiro – não um resumo ou
abstract – do trabalho, as questões e a ordem com que são abordadas foi
aproximadamente esta: 1.

Sentido (ideologia) das palavras; 2.


Abordagem – empirismo versus compreensão do processo; 3.
Categorias do público (do espetáculo, da comunidade, público moderno e
contemporâneo); 4.
Formas de organização do público do século 18 (primórdios) até o cineclube e
depois; 5.
Uma definição em três partes; 6.
Falência do modelo hegemônico de cineclube e 7. e
Perspectivas do cineclubismo.

Heteroglossia

Falar sobre conceito de cineclube remete à necessidade de esclarecer,


inicialmente, o próprio termo. Palavras, como indicou Bakhtin (Ano? Qual trabalho?),

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Ciurriculo resumido. Colocar a instituição que está filiado ou estava, no caso, fazendo doutorado.

1
são os signos principais da comunicação humana, no sentido de que, não sendo os
únicos, são os mais gerais e ubíquos: retornamos sempre às palavras para tratar,
mesmo na reflexão subjetiva, de toda a realidade, inclusive dos outros signos e
sistemas de signos que utilizamos. Mais que isso, o pensador russo mostrou que os
signos, ligados à transformação da realidade – o trabalho – e produzidos socialmente,
isto é, no terreno da interação social, da intersubjetividade, são sempre, por definição,
ideológicos. Cada palavra – ou melhor, ato de palavra – tem um sentido exclusivo a
cada enunciação. E a este corresponde outro sentido específico, dado por cada
ouvinte. Bakhtin chama esse sentido particular de tema do enunciado, e de significação
o sentido que adquire uma maior permanência, adotado num conjunto social mais
amplo: de grupos, comunidades, até classes sociais e, eventualmente, numa posição
hegemônica mais ou menos estável na própria sociedade. Os dicionários, de fato,
organizam a variação, a polissemia da maioria de seus verbetes, segundo uma ordem
derivada do uso, ou seja, segundo o uso, a estabilidade dos sentidos das palavras.
Para Bakhtin essa polissemia, no limite presente em cada enunciação particular,
constitui uma heteroglossia: uma circulação permanente de sentidos diferentes, vozes
diversas que interagem dialeticamente no campo social. O enunciado, veículo
ideológico de interação social, é sempre parte de um diálogo, dialético. Assim, é
também um espaço de luta de classes.

Palavras como cinema, filme ou cineclube revestem-se de diferentes sentidos e


de conteúdos ideológicos muitas vezes contraditórios. Cinema, por exemplo, vai da
mais óbvia identificação com a sala mesma, e/ou com a atividade de lazer ir ao cinema,
até a indicação de diferentes dispositivos: a indústria do cinema, o campo cultural do
cinema, a arte do cinema, sua linguagem. . E mesmo a linguagem do cinema. E, como
na fala (ou qualquer outra linguagem adotada pela sociedade humana), os sentidos dos
enunciados da linguagem cinematográfica são igualmente estabelecidos – adotados
socialmente com maior ou menor estabilidade – pelos diferentes níveis do tecido social
e, no limite, pela compreensão individual subjetiva de cada espectador. Que é, por sua
vez, determinada pela sua inserção na intersubjetividade social. Um dos elementos da
variação de sentidos da palavra cinema é a sua repercussão em diferentes contextos

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idiomáticos. Em francês – e português –, cinema está mais associado à primazia dos
Lumière e de seu aparato, o cinematógrafo; em inglês prevalece Edison e seu produto,
as imagens em movimento (moving pictures, depois simplesmente movies). Daí
podemos passar para a palavra filme, também sinônimo de cinema para os anglófonos,
que se consolidou mais como o produto mesmo, a película que era sua base, e depois
assumiu o sentido de produto artístico, veículo da linguagem cinema e, portanto, para a
maioria, consolidado o dispositivo social do cinema, como narrativa. Mas o
filme/película não é necessariamente narrativo – nem nasceu assim, mas como
“simples” ou mecânica reprodução da realidade. Como a grande maioria dos
estudiosos do cinema admitem, a narratividade só se consolidou como sentido
hegemônico no período chamado de institucionalização do cinema, pelo menos mais
de uma década depois das experiências de Émile Reynaud, de Edison, dos irmãos
Skladanowsky ou Lumière. A concepção de filme como narração é claramente
ideológica, e vai mais além: consolida o modelo comercial de entretenimento, baseado
na transposição de códigos literários consagrados. Hoje, parte dos cultores cinéfilos da
aura do cinema gosta de louvar as “transgressões” ou invenções que fogem aos
dogmas narrativos, esquecendo que a narrativa linear é ela mesma uma imposição do
sistema industrial de produção do cinema.

Cineclube: panorâma histórico

O mesmo se dá com o termo cineclube, evidentemente. O conceito de cineclube


tem, antes que tudo, um emprego que Gramsci situaria no plano do senso comum, isto
é, da repetição automática e acrítica de uma ideia mais ou menos vaga, e que não se
aplica concretamente aos fenômenos reais. Em outras palavras, até mesmo os
dicionários reproduzem uma mera descrição empírica e superficial de cineclube: uma
reunião de aficionados pelo cinema. Mesmo essa ideia vaga, no entanto, tem uma
origem histórica e ideológica muito clara: os anos 20 do século passado – cerca de 30
anos depois do surgimento do cinema – quando as elites intelectuais se apropriaram de
experiências populares contemporâneas do próprio cinema, tornando-as mais
palatáveis ao dispositivo socioeconômico dominante.

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Já escrevi, inclusive, sobre as vicissitudes etimológicas e históricas do termo
cineclube, mais recentemente em dois artigos: O primeiro cineclube? Periodização do
cineclubismo – epistemologia e ideologia e Ainda a epistemologia do cineclubismo, que
estão disponíveis em meu blogue: https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/. Esses
textos discorrem mais amplamente sobre a origem do vocábulo cineclube e podem ser
de interesse para complementar os argumentos que uso aqui.
Mas descrever empiricamente o objeto: “cineclube é uma reunião de gente que
se interessa pelo cinema”, elude a compreensão do processo que resulta na
significação do fenômeno. Num cineclube as pessoas se reúnem em torno de um filme,
sem dúvida. Mas como? Para quê? Que tipo de pessoas? Em que contextos?
As pessoas, em geral, gostam de cinema (ou de seus muitos “derivados”, em
múltiplos suportes ou mídias). Existe uma cinefilia geral, ou comum, ao lado daquele
sentido tão claramente ideológico que identifica o gosto pelo cinema como apanágio de
especialistas, de conhecedores. Mas as pessoas também gostam de leitura, de pintura,
de fotografia, de histórias em quadrinhos e muitas outras formas de expressão, outras
linguagens. Não é só o cinema que tem seus devotos e suas instituições, no nosso
caso os cineclubes. No final do século 18, principalmente, com um aumento importante
na alfabetização, na urbanização e na expansão do proletariado, houve uma “febre de
leitura” que atingiu alguns setores dessa nova classe social. E eles se organizaram, em
clubes de leitura e bibliotecas populares (Cavallo & e Chartier, 1997), por exemplo.
Mas, ainda que hoje existam alguns clubes desse tipo, certamente estão em estado
avançado de extinção – em boa parte por causa de uma mídia que, um século depois,
superou em grande parte o que e como os livros podiam oferecer: o cinema. Bem
antes, as artes visuais tiveram suas próprias organizações, os salões, depois galerias
de arte, que existem até hoje, mas sempre foram e são instituições de e para
privilegiados.
Outros salões – os que Habermas (2014) estudou como esferas públicas –
também cultivavam a leitura, talvez mais a imprensa, e o debate, e foram muito
importantes para a formação de uma opinião pública burguesa indispensável ao
ascenso da nova classe dominante. E assim por diante: diferentes públicos, eu diria,
dão origem a diferentes formas de organização – e, mais ou menos paralelamente,

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iniciativas particulares dão origem a empreendimentos de tipo capitalistas, ou se
apropriam de outras, transformadas em iniciativas comerciais. São reflexos não
simétricos, na superestrutura, das mudanças nas relações de produção.
O que esse parágrafo procura mostrar é que elas – organizações e instituições –
vivem ciclos históricos precisos, mais ou menos extensos (como até os modos de
produção, pelo menos nesta pré-história em que vivemos), determinados, sem
mecanicismos (Williams, 2011, p. 56-58: “culturas residuais e emergentes”) pela sua
adequação ao processo produtivo e às relações sociais. Praticamente todas elas, neste
momento, ou foram totalmente integradas ao mercado capitalista – como se dá com as
instituições de artes visuais – ou, sem conseguir ligar-se organicamente à outra classe
fundamental, tornaram-se praticamente irrelevantes social e culturalmente, vegetando
sem muita perspectiva em ambientes pequeno-burgueses. Esse é também o caso dos
cineclubes, mas ainda é cedo para entramos nesse tema específico.

O público

Antes de propor uma definição mais abrangente para cineclube é necessário


examinar o conceito de público. Esquenazi (2006), em seu repertório de estudos do
público, encontra uma proposição básica comum: público é sempre, e se define por
ser, público de alguma coisa. Ele vê quase sempre esse público como uma sociação,
termo empregado por Pierre Sorlin (1992, p. 86-102), emprestado originalmente de
George Simmel para descrever uma reunião mais ou menos efêmera em torno de um
evento comum. Alguns autores, que reconhecem maior protagonismo dessas
audiências, compreendem que seus vínculos possam ser mais extensos do que a
ocasião que os reuniu, o público constituindo-se como algum tipo de comunidade. Mas
não conheço nenhum que trabalhe com o conceito de público como uma categoria
social mais abrangente – à exceção talvez de Kracauer (2009, e Hansen 2004), que
fala do público cosmopolita do cinema, justamente após a institucionalização deste
último.
A meu ver, podemos trabalhar epistemologicamente com o público em três
instâncias: o público imediato, audiência e sujeito de um evento; o público comunitário,

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compreendido no âmbito de uma comunidade, como o de uma biblioteca ou mesmo, de
forma mais ampla, o público leitor, o público feminino, o público brasileiro, etc. e,
finalmente, o público moderno, fundado pelas particularidades inéditas do cinema no
contexto do que chamam de segunda revolução industrial ou simplesmente de
modernidade (Singer, 2001, Staiger 2005, Albera, 2012), determinando,
paradigmaticamente, a disposição do público das chamadas indústrias culturais
(Adorno & Horkheimer, ano?). E que, enquanto categoria, abrange a quase totalidade
da população. Corolário deste último, devemos pensar também em um público
contemporâneo, conceito que assinala a passagem para a mídias audiovisuais.
Definem-se os públicos por sua relação com alguma forma ou meio de comunicação,
do evento particular até praticamente o conjunto da população nos dias de hoje.
Com o cinema, o público atingiu proporções inéditas, tornando-se categoria
central no processo de transformação social. Com a ampliação ainda maior atingida
com a televisão e, atualmente, também com as novas mídias audiovisuais e o mercado
audiovisual planetário, o público praticamente se confunde com o totalidade da
população, com o conjunto de segmentos que constituem um proletariado
contemporâneo, constituído pelas classes que não têm acesso aos meios de sua
própria produção simbólica que, hoje, incluem e se confundem com os meios de
comunicação audiovisuais. Marx (2010) já indicava a tendência de aglutinação da
sociedade em duas classes fundamentais e antagônicas. Esse conceito de público, em
minha perspectiva, vai ao encontro de outras formulações, especialmente as dos
cineclubistas italianos Fabio Masala (1986) e Filippo de Sanctis (1970), autores
originais da Carta de Tabor dos Direitos do Público, da ideia de oprimidos para Paulo
Freire (2013), de povo para Martín-Barbero (2013) ou mesmo da cidadania segundo
Canclini (2007).
É o público, em todas essas três instâncias, que dá sentido ao cinema: enquanto
linguagem e, ao mesmo tempo, como mercadoria, ao reproduzir, no papel de
consumidor, as condições da sua produção. O cinema só existe por causa da
existência do público, e este, reversamente, se constitui como público do cinema.
Consequentemente, o mesmo se aplica ao conjunto das mídias que constituem o
dispositivo audiovisual contemporâneo.

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Tal como na relação homóloga capital-trabalho operando dentro do sistema
capitalista, o público, a grande maioria da população que não tem acesso aos meios de
produção também de seu universo simbólico, constitui o polo oposto ao do “cinema” no
sentido de capital do cinema, indústria do cinema, cinema comercial (que existe em
função do lucro). Os dois polos opostos geram instituições que disputam a hegemonia
social nesse plano. Toda a organização do sistema produtivo do cinema, sua divisão
em aparatos de produção, distribuição e exibição, assim como os formatos da
linguagem (narrativa linear, literária) e do produto (duração dos programas, longa-
metragem, ficção, documentário, etc.) e gêneros, entre outras, são instituições geradas
pelo capital.
Outras instituições, como os cineclubes, as cinematecas, o uso do cinema na
educação, a experimentação, o cinema amador e até mesmo, no limite, os cinemas
nacionais lá onde não existe uma indústria do cinema, têm sua origem no público .
Estas dependem, em boa medida, de sua tolerância pelo capital; aquelas, igualmente,
mantêm-se apenas na medida em que o público as reproduz. Ou seja, todas essas
instituições estão em conflito permanente e oscilam ou se modificam conforme a maior
ou menor influência específica de cada polo. Qualquer discurso ou narrativa
cinematográfica é, como qualquer conjunto de enunciados, um espaço de heteroglossia
e luta de classes, segundo o contexto social, momento histórico, etc. O mesmo
acontece com as outras instituições do cinema.
O cineclube pode ser visto, numa perspectiva mais limitada, como a do modelo
elitista, como um espaço opositor ao cinema. Mas essa é apenas a perspectiva
redutora, pequeno-burguesa, de grande parte da intelectualidade: como na suposta
oposição cinema de autor/cinema comercial, ou da defesa da diversidade geográfica,
étnica ou de gênero como opositora à produção hegemônica. A oposição é, na
verdade, mais ampla que essas, mais profunda, estrutural: o cineclube é um paradigma
opositor ao cinema capitalista, é o embrião, a base da superação dessa forma de
dispositivo cultural, justamente por se constituir como organização do público.

O paradigma do cineclube como organização do público

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O cinema, enquanto dispositivo social, econômico, cultural, ideológico se
constitui no processo de desenvolvimento da reprodução das imagens em movimento e
sua adequação ao sistema das mercadorias. Em outras palavras, desde a luta pela
supremacia de um processo – o cinematógrafo –, até a consolidação do cinema como
mercadoria, seu processo de produção, circulação, consumo, que envolve a linguagem
e outros aspectos. Desde a mítica exibição de 28 de dezembro de 1895 até os
nickelodeons; destes até Intolerância, passando pelo processo de transição ou de
institucionalização, que culmina com a consolidação de todas as mais importantes
instituições do cinema.
Homologamente, o público que se espantava com a novidade das imagens em
movimento, em seguida se divertia com a cinematografia de atrações de feiras e
mafuás, depois vaudevilles, teatros de revista e outros, também encontra uma forma
mais sólida a partir dos nickelodeons e sua audiência mais ampla: a do proletariado,
que também estava ainda em fase final de formação. Mas é apenas no final daquele
período, atingindo o que Kracauer chamou de público cosmopolita (weltstadt publikum),
constituído por um leque social ainda mais amplo, que o cinema constitui, assimila e
domestica seu público. Esse é, então, o público moderno. Cinema e público se
formaram como opostos dialéticos do mesmo processo.
Evidentemente, esse percurso, dos primeiros kinetoscópios e cinematógrafos até
a projeção de longas-metragens nos palácios de cinema, com a audiência enquadrada
por lanterninhas, não foi linear, sem muitos conflitos. Já falei bastante sobre isso, em
artigos esparsos (disponíveis em meu blogue) ou em conversas virtuais, como as da
série Passado e Futuro do Cineclubismo, no canal YouTube do Cineclube Ó Lhó Lhó.
O cineclube, como outras instituições importantes do par conceitual cinema-público, se
forma desde o início desse processo – e, de fato, suas origens o precedem, tal como
esse processo também não surge do nada em 1895. Práticas educativas, de
proselitismo político ou religioso começaram a empregar cinematógrafos desde a sua
aparição. Logo tornaram-se atividades mais frequentes, muitas itinerantes, em
campanhas contra o alcoolismo, por exemplo, ou para divulgação dos sindicatos. Nos
nickelodeons – e outras salas populares – a manifestação de formas de
descontentamento do público era bastante comum, levando progressivamente à

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organização de sessões independentes, em organizações populares, e em salas mais
estruturadas – além da produção de filmes e noticiários – resultando em novas formas
de organização desses públicos. É, então, em torno dos anos 10 do século passado,
entre 1908 e 1913 que surge uma forma institucional definida: o que hoje chamamos de
cineclube. O Cinema do Povo2 é o exemplo mais acabado dessa nova forma de
organização.
O cineclube não era uma “reunião de amantes do cinema”, mas claramente uma
forma de organização independente (em oposição às salas comerciais), anticapitalista,
que, na tradição da classe trabalhadora (Williams, Thompson (ano?), se constituía de
forma coletiva e democrática para ter acesso, e mesmo criar, um cinema “que
mostrasse a vida real dos trabalhadores” – como disse um dos organizadores do
Cinema dos Trabalhadores (Workmen’s Film Theatre, 1911, Los Angeles) a jornais da
época (Ross, 1999). Daí a minha formulação das três características essenciais que
definem a instituição cineclube: o caráter associativo e democrático; a ausência de
finalidade lucrativa e o objetivo de se apropriar do cinema – no limite, de criar um novo
cinema, objetivo ligado intrinsecamente ao estabelecimento de uma nova sociedade.
Essas três características não se aplicam apenas aos cineclubes que surgiram
no final da primeira década do século passado. Elas são paradigmáticas para todas as
formas de cineclube subsequentes, até os dias de hoje. E mais, elas não apenas
definem cineclube, mas constituem o paradigma que se aplica ou pelo menos influencia
decisivamente, todas as formas de organização do público no campo do cinema e,
ainda, das mídias audiovisuais.
O processo de apropriação e descaracterização das instituições do público, que
prossegue sempre, atuou fortemente sobre o paradigma criado no início do século. De
uma proposta de subversão radical e totalizante do cinema comercial, as práticas se
dividiram, se desorganizaram em alguma medida, atenuaram seus objetivos. A criação,
identificada com a produção/realização, foi afastada da organização da recepção, e
individualizada na figura do autor/realizador. A ficção tornou-se o elemento
preponderante; corolário disso, a documentação da vida – da identidade e memória do
público – e sua preservação, também se tornaram, nos anos seguintes, função

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Ver https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2010/03/cinema-do-povo-o-primeiro-cineclube.html

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especializada, isto é, as cinematecas. O aspecto pedagógico e político da formação do
público também foi afastado, especializado, criando outra linhagem, a do cinema
educativo, reduzido inicialmente ao chamado filme “científico”, e nunca “legitimado”
pelo cineclubismo hegemônico (nos anos 50, dos cerca de 10.000 cineclubes
existentes na França, 8.000 eram de uma federação de “cinemas educativos”, a
UFOLEIS - União Francesa das Obras Laicas pela Imagem e Som, fundada em 1933).
Todas as práticas e organizações ligadas a essas “ramificações” da organização
paradigmática do público apresentam, no entanto, em algum grau, os elementos de
associativismo, ausência de finalidade lucrativa e objetivo de apropriação do cinema. O
mesmo já se observa, também, em muitas das novas práticas de comunicação que
chamo de audiovisuais: as rádios e tevês comunitárias ou piratas, e blogues, vlogues e
outros canais de comunicação pela internet, em que pese o incentivo geral às
iniciativas de caráter pessoal (característica da classe dominante), o controle da
chamada propriedade intelectual e a forma de assalariamento modificada (em
contraposição ao financiamento coletivo) que busca ou efetivamente controla grande
parte das iniciativas de maior repercussão – além dos mecanismos de policiamento de
conteúdo exercidos pelas grandes corporações que controlam esses espaços e por
diferentes agências policiais governamentais.

Falência do modelo
Os anos 20 e parte dos 30 estão marcados por esse processo de apropriação,
descaracterização e enfraquecimento das organizações do público – dialeticamente
articulado com a sua difusão internacional. O modelo de certa forma “atenuado” do
cineclubismo transformador, revolucionário, que o antecedeu, tornou-se dominante e,
aceito institucionalmente – com muitas querelas com a censura – e, mais ou menos
tolerado pelo comércio do cinema, espalhou-se pelo mundo inteiro. Esta última
observação deve, no entanto, ser um pouco relativizada: a região que mais estimulou
organizações do público trabalhador, a União Soviética, foi ostracizada, ignorada em
todos os aspectos pela cultura dita ocidental. A tal ponto que pouco se conhece dos
clubes operários de cinema que, no entanto, formaram a base inicial de todo o cinema
dos países da URSS. Nos Estados Unidos, a outra potência cinematográfica que

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justamente se consolida definitivamente (até agora) nessa época, a presença
acachapante da indústria hollywoodiana também obscurece o papel dos cineclubes
mais ou menos efêmeros (com notáveis exceções), também presentes sobretudo nos
ambientes proletários e universitários.
A nova Guerra Mundial também teve um papel nesse processo de expansão,
mas praticamente interrompendo-o; ele foi, contudo, retomado de forma quase
explosiva logo após o encerramento do conflito. No final dos anos 40 e início dos 50 o
número de cineclubes aumenta exponencialmente na Europa, principalmente, e
também tem um notável crescimento em toda a América Latina. É a “idade do ouro”
dos cineclubes, a retomada criativa da cinefilia elitista, que vai alimentar uma geração
de “novos cinemas” em todo o mundo – inclusive o Cinema Novo brasileiro. Essa
movimentação cultural é também muito influenciada pelas novas tecnologias de
portabilidade e de reprodução do som – num paralelo, talvez, com o papel que tiveram
os “pequenos formatos” de captação e exibição de imagens nos anos 20.
O ápice desse processo é interrompido com a disseminação da televisão. Sua
difusão muda bastante o cenário do cinema comercial, induzindo uma reorganização
geral – isto é, a partir do centro que monopoliza o cinema mundial. Com exceção dos
países centrais – Europa e América do Norte anglófona – o cinema se torna um
produto de consumo limitado às regiões e camadas sociais mais ricas. Com outras
formas de consumo audiovisual, que não param de surgir, o processo de
individualização do acesso se acentua, o que ajuda a abalar ainda mais as práticas
cineclubistas elitistas. É o próprio modelo de “adaptação crítica” ao cinema comercial,
de cinefilia de autor, que torna esses cineclubes mais vulneráveis à expansão
econômica e tecnológica do capitalismo. A cinefilia vai para o terreno do consumo
privado. O cineclubismo sofre um impacto importante, diminuindo muito em número nos
países centrais (anos 70) e quase desaparecendo nos países de médio e baixo
desenvolvimento econômico e social. O fato de muitos países da África e do Sudeste
da Ásia alcançarem a independência mais ou menos na mesma época – nos anos 60 -,
de maneira pouco organizada, não apenas dificultou ou mesmo impediu a consolidação
de um movimento cineclubista próprio, mas na verdade praticamente incapacitou esses
países a desenvolverem um cinema nacional.

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Nos países centrais, hegemônicos, o cineclubismo mantém as mesmas
características de sua idade do ouro, mas sem o mesmo impacto social ou cultural.
Tornou-se parte do grande cenário do cinema comercial, uma forma de cultura residual
perfeitamente integrada: fornece um pouco da diversidade que o cinema comercial não
oferece, sem realmente contestá-lo, isto é, concorrer, de qualquer maneira que seja,
com ele. Sob formatos inspirados nesse modelo, a maioria dos cineclubes de países
mais ou menos periféricos mimetizam esse processo. Mas sem as mesmas estruturas
sociais, oferecem uma espécie de pastiche do cineclube de país desenvolvido: o
cinema de autor praticamente se confunde com o cinema nacional (conceito também
indiscutido) – que não existe como indústria cultural – e a busca pela originalidade,
diversidade e afirmação contracultural se encontra nas produções amadoras,
frequentemente produzidas pelos próprios mentores desses cineclubes, eles mesmos
buscando alguma identificação com a figura mítica do autor. Aproveitando e adaptando
um pouco minha exposição dentro do 1º. Seminário de Cineclubismos Latino-
americanos, de julho deste ano:
“No Brasil, especialmente, já não se encontram praticamente cineclubes
organizados como associações. Disso decorre um virtual rompimento da ligação com
as comunidades em que atuam, pois elas não estão representadas, para além do
desejo ideal dos animadores dessas atividades, nos ditos cineclubes. Afirmar que não
têm fins lucrativos também perdeu parte do sentido, já que a maioria depende da
sustentação do Estado – paradoxalmente muito pouco presente – ou de algumas
poucas instituições de ensino que, por sua vez, frequentemente determinam uma parte
do seu trabalho, retirando-lhes parte da autonomia. Os cineclubes mantêm a diretriz de
passar filmes relevantes, é verdade, e de realizar debates, geralmente centralizados
numa figura de autoridade: alguém da produção do filme exibido ou um especialista
acadêmico. A relevância do que é exibido é determinada pelo gosto institucional dessa
classe média: o tal do cinema de autor e um compromisso com o cinema nacional.”

Perspectivas
Aproveitando, ainda, a mesma apresentação:

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“Não é mais possível usar a palavra cineclube com um significado unívoco: seu
sentido se diluiu, perdeu aquela precisão paradigmática – que apenas ronda, como um
fantasma residual, as diferentes práticas que encontramos.
E não existe ainda uma concepção unitária de como organizar o público, as
comunidades em que vive, para um mundo em que as mídias – que quase por
definição, hoje, são audiovisuais – estão omnipresentes e constituem o principal
elemento e ambiente de mediação das relações sociais no plano simbólico.
Os cineclubes, e o público, têm diante de si o desafio de se apropriar das mídias
que hoje ocupam o papel que o cinema teve no século passado.”

A falência do modelo cinéfilo e elitista não significa, em absoluto, o fracasso da


instituição cineclube, mas apenas a crise da concepção pequeno-burguesa e, num
certo sentido, “reformista” de cineclube. Os cineclubes não surgiram, e não se
confundem, com lugares de culto à aura (Benjamin, 1935) cinematográfica e de
educação bancária (Freire, 2013) “do olhar”. Com o dispositivo do cinema como
referência, essas primeiras organizações do público tinham como objetivo propiciar sua
expressão através da então relativamente nova mídia, apropriando-se dela em todos os
aspectos: produção, circulação, recepção, assim como sua aplicação como elemento
de preservação da memória, de promoção da identidade e da autoconsciência histórica
(educação) das classes dominadas sob o jugo capitalista.

Mas o cinema, na verdade, constituiu apenas o processo inicial do


estabelecimento de um dispositivo mais amplo, das mídias audiovisuais (Elsaesser,
2018); o cineclube contemporâneo tem, portanto, como objetivo, a organização do
público para que este se aproprie do dispositivo midiático. Diante da crise generalizada:
do modelo elitista, da fragmentação e dispersão de outras iniciativas do público, da
falta de compreensão e direção unitárias diante da situação, além das crises
complementares que afetam outras formas de organização popular, em outros campos
– sindical, partidário, etc. –, o grande desafio do cineclubismo é encontrar as formas de
superação dialética da situação presente. Sob pena de permanecer numa condição de
irrelevância política, social, cultural e de adiar, de forma importante, a construção de

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uma sociedade justa, igualitária e livre: objetivo do qual se origina e que constitui sua
maior finalidade.
Procurando resumir o que na verdade é matéria para muita discussão, o
cineclube contemporâneo deve construir a adequação de sua tradição popular, do
paradigma cineclubista, aos meios de comunicação da atualidade, às mídias
audiovisuais. E essa não é uma questão técnica, mas uma tarefa política que envolve a
rearticulação do próprio cineclube, da sua organização, e de suas formas de integração
e representatividade em relação às comunidades em que se instituiu – além, é claro, do
domínio das técnicas e da capacidade de criar novas formas de expressão e de
comunicação através delas.
Atualizar – no sentido mais profundo, fazer essa adequação histórica – o
cineclube implica na ressignificação das suas características “tradicionais”. Assim, o
caráter associativo e democrático precisa ser retomado com seriedade, através de
formas de participação e integração permanentes e abertas, e de práticas inclusivas,
que permitam a sistemática incorporação de um público ativo, consciente e
participante. A questão da finalidade não lucrativa deve ser melhor compreendida, e
superado o “gratuitismo” que contamina os cineclubes, mantendo-os em situação de
dependência externa à comunidade, sem condições de sustentabilidade real e sem os
vínculos que deve estabelecer com seu público. Incontáveis novas formas de
sustentação e crescimento podem ser descobertas e desenvolvidas com os novos
meios – além daquelas tradicionais. E a apropriação, claro, deve incluir a teledifusão,
os novos formatos (aplicativos, videogames, canais web, blogues, vlogues, lives, etc.) e
“suportes” propiciados pela rede internacional de dispositivos cibernéticos (televisores,
computadores, celulares, etc.). A noção ideológica de filme, que comentei mais atrás,
também deve ser superada: a reprodutibilidade técnica e simbólica da realidade
através dos meios audiovisuais inclui, para além do filme de ficção ou documentário, a
reportagem, a entrevista, a captação e difusão de todos os eventos e espetáculos
esportivos e culturais (apresentações musicais, de dança, bailes, feiras e outras
manifestações) da comunidade e de interesse do público do cineclube. A experiência
presencial é intrínseca e indispensável ao cineclube. Mas, além das exibições
retangulares em salas especiais às escuras, a acessibilidade quase universal aos

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conteúdos (sem as limitações da aceitação e reprodução do controle da propriedade
intelectual) permite a organização de outras “salas” e públicos, em outras disposições,
quantidades, sistematicidades e finalidades. Em minha exposição na série Passado e
Futuro do Cineclubismo, no terceiro encontro, justamente, O Futuro do Cineclube3,
apresento logo no início uma brincadeira com a história do Cineclube Revolição, que
busca exemplificar mais concretamente como se podem dar essas mudanças e
ressignificações.
Montreal, outubro de 2021, ano II da Pandemia.
Felipe Macedo

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