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O milagre pentecostal
Embora o protestantismo esteja intimamente associado ao desenvolvimento da
mentalidade capitalista desde seu surgimento e faça parte das práticas cotidianas e das
instituições oficiais e públicas dos grandes países anglófonos, especialmente dos
Estados Unidos, a implantação e o crescimento de sua vertente pentecostal no Brasil é
surpreendente pela rapidez e extensão, tanto geográfica como social.
Logo a novidade chegou ao Brasil, por volta de 1910. Mas sem muita aceitação: as
primeiras seitas eram muito estritas e distantes da nossa forte tradição católica, que as
Assembléias de Deus, por exemplo, combatiam acerbamente. Uma segunda “onda”,
nos anos 50, trouxe uma primeira vaga de pastores audiovisuais: o uso do rádio
acelerou a difusão das múltiplas seitas. Essas divisões são características, aliás, do
pentecostalismo, ligadas à informalidade e maior proximidade – real e midiática - dos
templos e congregações, e à possibilidade de enriquecimento autônomo de cada igreja
(e de cada líder). A terceira onda seria a dos grandes grupos fundados por pastores
brasileiros. São exemplos as igrejas Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça
de Deus, Mundial do Poder de Deus, Renascer em Cristo, entre muitas outras, tantas
que algumas são até mesmo formadas por um único templo e pastor, nos cantos mais
remotos do Brasil. Entre suas características principais, além das que percorrem toda a
tradição evangélica, estão a chamada Teologia da Prosperidade – uma espécie de
versão contemporânea das expectativas milenaristas, a promessa do reino de deus
nesta Terra agora traduzida em esperança financeira – e o uso intenso da televisão. Se
no início do século 20 os católicos correspondiam a 98% da população, os pentescostais
chegaram a ser 13% em 1990 e, 30 anos depois, já são mais de 30% dos brasileiros:
um crescimento em torno de 10% ao ano.
O cinema começou com uma platéia de curiosos em festas populares e revistas teatrais,
crescendo depois, exponencialmente, quando se implantaram suas salas exclusivas
(seus templos?), junto a um enorme público proletário que, pela primeira vez, incluía
também mulheres e crianças, para depois se expandir ainda mais, juntando outros
segmentos sociais e formando finalmente um público universal. Numa certa analogia, o
pentecostalismo brasileiro começou a se implantar nos ambientes mais miseráveis e
necessitados, se expandindo para segmentos populares cada vez mais amplos e
buscando, finalmente, nos dias de hoje, um alcance generalizado na sociedade. A
expansão do cinema, contudo, foi muito mais impressionante.
Distribuir empregos aos próximos e, a partir deles, formular programas de cima para
baixo – repetindo a tradição sempiterna do patrimonialismo brasileiro – significa
igualmente impedir a participação da sociedade organizada, substituindo-a por uma
forma “renovada” de notórios especialistas, agora ligados, simpáticos ou simplesmente
obedientes ao governo e ao partido. Com isso a sociedade civil recuou enormemente
em relação a suas conquistas na luta de resistência contra a ditadura. Desarticularam-
se formas de mobilização organizada, trocando-as por gestores reconhecidos pelo
poder, especialistas na administração de entidades, no trato de programas e políticas
governamentais – e não realmente públicas – que, paradoxalmente, atingiam um
número muito maior de segmentos da sociedade, de regiões do País. A contradição é
que, pelo vício inerente, tais políticas apenas ampliaram a desarticulação de uma parte
importante da sociedade civil.
Grande parte das bases sociais das organizações da sociedade civil foram cooptadas,
minadas; lideranças políticas progressistas, igualmente assimiladas ou marginalizadas,
neutralizadas. O sistema se organizou – ilusoriamente, como verificamos – sobre a
perspectiva de eternização eleitoral. Falsa hegemonia arranjada, negociada, ao invés de
construída e garantida pelos trabalhadores.
E os cineclubes?
Pois é, tudo isso está errado. Ou incompleto, misturado, confuso, mas essencialmente
errado. Introduzo, então, o assunto com uns esclarecimentos ultrarrápidos. Os
cineclubes nasceram e evoluíram junto com o cinema, desde o início: fim do século 19.
Como o cinema também, têm antecedentes bem anteriores, pelo menos até o século
17, por causa dos usos das lanternas mágicas, uma espécie de projetor de imagens
fixas, que logo foi empregado para fins educativos e também políticos. Os cineclubes
surgiram como práticas educativas de organizações populares e de ações equivalentes
da Igreja católica - e, especialmente nos EUA, de algumas denominações protestantes.
À medida que o cinema se consolidava como linguagem e narrativa, e como indústria –
produção, distribuição, exibição –, uma parte do público, não se sentindo contemplado
ou representado nesse cinema, composta novamente pelos setores organizados de
trabalhadores, resolveu criar seus próprios filmes e também os espaços para vê-los. Os
primeiros cineclubes constituídos com a forma que vem até hoje datam do começo dos
anos 10 do século passado. Eram organizações, como já disse, voltadas para a
produção de filmes, exibição e discussão, ligadas a uma perspectiva de organização de
classe: os primeiros cineclubes chamavam-se, por exemplo, Cinema dos Trabalhadores
(1911, EUA), Cinema do Povo (1913, França), Clube da Periferia (1916, França). Seus
membros e dirigentes eram militantes socialistas, comunistas, anarquistas, feministas.
Tal como o cinema era um fenômeno mundial, havia cineclubes em muitos países, pelo
menos nos mais desenvolvidos, onde a classe trabalhadora era mais organizada. No
Brasil tentou-se fazer um Cinema do Povo em 1914, mas não há uma comprovação
definitiva de que isso tenha prosperado.
Com o fim da 1ª. Guerra Mundial, os intelectuais que frequentavam esses cineclubes –
ou conheciam a experiência (que ainda não tinha esse nome, embora o termo existisse,
pelo menos, desde 1907) - começaram a organizar um outro tipo de cineclube.
Ricciotto Canudo e Louis Delluc fundaram dois deles quase ao mesmo tempo: o
primeiro – o Clube dos Amigos da Sétima Arte - consistia fundamentalmente na
promoção de jantares (suntuosos) onde se discutia a importância do cinema (coisa
ainda não firmemente estabelecida); o de Delluc eram projeções organizadas para
fidelizar uma revista, o Jornal do Cineclube, que logo mudou de nome. Mas o termo
pegou e se difundiu muito. Esses cineclubes eram um pouco diferentes dos anteriores –
e de outros, seus contemporâneos – mas como eram identificados com algum
intelectual ou artista importante, “institucionalizaram-se”, isto é, passaram a ser
reconhecidos nos principais meios – artísticos, intelectuais – e pelas instituições mais
importantes, como a Imprensa, a Academia e os próprios governos. Ao contrário dos
cineclubes identificados e enraizados nos meios populares, que combatiam o cinema -
que os alienava, controlava, explorava - e propunham um outro cinema, que mostrasse
“a vida real dos trabalhadores” e correspondesse a seus interesses, estes novos
cineclubes elitistas agora defendiam o cinema, clamavam pelo sua valorização como
arte, independentemente das questões sociais.
O público, agora audiovisual, praticamente universal – todo mundo tem pelo menos
uma tela para chamar de sua (e um algoritmo que o chama de seu) – já não é mais o
público do cinema. Este se tornou apenas uma etapa da circulação do produto
audiovisual: não é nem a plataforma mais acessada nem a de maior peso econômico.
De fato, nem o filme é preponderante – embora seja sempre o paradigma narrativo
básico – superado pelos jogos, os videogames.
Hoje, os cineclubes não vão aonde o público está. Herdeiros dessa influência elitista
nem sempre consciente, fixaram-se exclusivamente na postura da exibição “clássica”,
de meados do século passado, e não assimilaram, não se apropriaram de todos os
recursos e oportunidades tecnológicas que atualmente, de fato, compõem uma
realidade diferente. Todas as formas de organização comunitária – no sentido mais
amplo dessa palavra – em torno dos meios audiovisuais, que surgem renovadas,
atualizadas, se desenvolvem praticamente sem ligação com o cineclubismo: coletivos de
hackers, saites, blogues e canais na internet, entre muitas outras. Essa separação,
aliás, também as enfraquece, ao desconhecerem a tradição associativa do cineclubismo
e, frequentemente, a importância do presencial. Mas são os cineclubes que ficaram
parados essencialmente numa postura cinéfila dos anos 50 ou 60: eles são
possivelmente o segmento mais atrasado dentre as novas formas de organização
criadas pelo público para se apropriar do audiovisual. Isto é, dentre as formas de
organização que hoje correspondem às das origens dos cineclubes e à sua finalidade
mais essencial: criar um novo cinema, agora um novo audiovisual. Por outro lado, os
cineclubes têm características, e uma história, uma experiência que lhes são exclusivas.
O que estes traços comunitários têm, por sua vez, em comum, é que acesso,
conhecimento, desfrute, identificação e partilha com outros representam formas de
apropriação do cinema e/ou do audiovisual. Apropriação: tomar posse, ter
integralmente, isto é, poder usar em benefício próprio. Apropriar-se do cinema era o
objetivo que deu origem aos cineclubes: tomá-lo das mãos do capital, do comércio,
para que atendesse a suas necessidades, interesses, e principalmente para que
pudessem se expresssar através do cinema. Lembro o lema do mais que centenário
Cinema do Povo: “Divertir, instruir, emancipar”. Divertir sem alienar; instruir com
informação e cultura, conhecimento construído e compartilhado e não “depositado” na
conta vazia do espectador, como diria Paulo Freire. E, sobretudo, emancipar. E o que
significa emancipar? Emacipação é atingir a maturidade, poder ser autônomo. Ter plena
consciência de sua condição no mundo, como pessoa mas também como grupo, como
comunidade e, num sentido mais amplo como classe social. E, sobre essa consciência,
poder atuar de forma independente, ser sujeito da vida e da história, e não apenas
objeto, consumidor, espectador.
Nesse sentido, algumas práticas e alguns espaços podem ser identificados como esferas
de pertencimento: espaços onde acontece, se constrói, até se sente essa identidade,
essa consciência subjetiva quase palpável. São as comemorações, as festas, os saraus,
alguns sindicatos e outras associações comunitárias, até mesmo certos bares. E
certamente muitos cineclubes. O cinema, a sala de cinema, nunca ou quase nunca
constituiu um desses espaços de convívio realmente integrados à comunidade. As
pessoas vão ao cinema pelos filmes – e esses produzem outro efeito semelhante, a
identificação, de caráter sobretudo individual (e que não vou estender aqui) -, as salas
importam pouco, exceto quanto ao conforto, recursos técnicos e pela pipoca. Alguns
cinemas de arte tinham um pouco essa característica: os famosos templos de cinefilia,
como o Cine Paissandú, no Rio de Janeiro, o Coral ou o Bijou em São Paulo, entre
outros. As pessoas criavam um vínculo com esses espaços, sentiam-se um pouco “em
casa” neless, alguns tinham até seus lugares na terceira fileira...
Hoje, mais que nunca, o cineclube tem condição de exercer esse papel – ainda que
tenha um bom caminho a percorrer. Tem essa possibilidade porque, para começar,
representa embrionariamente a superação da divisão de trabalho – e consequente
alienação - criada pelo sistema comercial. A superação da divisão entre produção e
consumo, entre criação e recepção ou entre autor e espectador estão ao alcance com a
revolução digital e a universalização da rede de comunicação autônoma. Podem-se
unificar no cineclube todas as ações separadas pelas formas que priorizam o lucro
privado sobre o valor social real. Hoje, mais do que nunca, é possível visualizar a
integração entre criação, produção, difusão, recepção e preservação num mesmo
espaço - real e virtual - dirigido e controlado pelo público.