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Cinema do Povo, o primeiro cineclube 

Contestando uma história que ainda não existe


É impossível reconstituir o passado. O historiador é condenado a recompor, a partir
de dados mais ou menos esparsos e quase sempre discutíveis, uma visão sua sobre o
passou, uma reconstrução que é já uma interpretação, com os olhos e as idéias da
sua contemporaneidade. A observação interfere e modifica o observado. Tal como
acontece em todas as historiografias, isso também ocorre com o cineclubismo,
embora nossa marginalidade seja tão extrema que dificilmente se pode falar,
atualmente, de uma História dos cineclubes. No plano acadêmico aparecemos mais
por tabela, nos rodapés das histórias mais oficiais, onde os cineclubes, quase sempre
na origem dos mais diversos fenômenos cinematográficos, simplesmente não podem
deixar de ser citados. Mais por inércia que por determinação, meio que aceitamos,
então, uma “história” feita de breves referências, que teria começado em 1920 com
o Ciné-club de Louis Delluc. Muitas evidências aparentes levam à adoção dessa
“pedra fundamental”: o nome, que “pegou” e mais ou menos se generalizou ao
longo dos anos 20 na França e outros países, ou o fato de que às projeções do
cinema La Pepinière seguiram-se tantas outras iniciativas que se pode começar a
falar de um movimento cineclubista. Mas serão essas evidências reais, mais que uma
visão meio teleológica que imputa características de outros tempos àquele? Na
verdade, Delluc lançou em janeiro de 1920 o Journal du ciné-club, que promoveu
exibições, meses depois, dentro dos objetivos de mobilização do grande cineasta (1)
francês e também de fidelização dos leitores. Um ano depois, Delluc substituiu a
publicação pela revista Cinéa, mas o primeiro nome, como sabemos, ficou
designando os clubes de discussão e projeção que, entretanto, já existiam antes. De
fato, o termo cineclube é um tanto mais antigo, tendo sido provavelmente usado
pela primeira vez em 1907, por iniciativa de Edmond Benoît-Lévy, empresário
associado à companhia Pathé, diretor da revista Phono-Ciné-Gazette e da primeira
sala fixa de cinema de Paris – o Omnia Pathé – envolvido ainda na criação da Société
du Film d’Art e da SCAGL, no ano seguinte, como me disse Michel Marie num recente
seminário em Montreal sobre a História da França no século 20 através do cinema.
Se esse “cineclube” de fato existiu, o que não está totalmente comprovado, se
trataria mais de uma associação de tipo profissional, voltada para a valorização e
institucionalização do cinema, sobretudo com fins comerciais, nessa fase ainda de
afirmação da nova linguagem e indústria. Gabriel Rodríguez Álvarez também
documenta um Cinematógrafo Cine-club na cidade do México, em 1909, igualmente
ligado à exploração comercial e que também introduziu inovações importantes na
exibição naquele país (Álvarez, 2002). Já os clubes - me explicou o companheiro e
professor Giovanni Rodrigues em uma divertida “oficina de formação cineclubista”
realizada em 2008 em São Paulo - têm sua origem em iniciativas da burguesia para
emular e reproduzir a vida da corte, reservada aos aristocratas (2). Ao mesmo tempo
que se institucionalizavam, os clubes iam sendo mimetizados e adotados mais
amplamente. Na virada para o século passado muitas associações populares,
principalmente as voltadas para a ajuda mútua, a educação e o entretenimento,
adotavam o nome de clubes. Por isso me parece que o nome apenas não basta para
definirmos uma data original para a fundação e início da periodização do nosso
movimento. Por outro lado, não podemos descartar a importância do termo
cineclube: depois de muitas reações e discussões (3) – que se repetem ciclicamente
ao longo dos anos e nos mais diversos países – a palavra cineclube e a idéia do
cineclubismo se consolidaram, a ponto de terem uma compreensão genérica
praticamente universal. A proliferação de clubes de cinema nos anos 20 também me
parece justificar um pouco artificialmente o Ciné Club como ponto de origem. Tal
como é característico ao movimento dos cineclubes, as diversas iniciativas que
davam de alguma forma importância ou centralidade ao público apresentavam
formatos, objetivos, denominações muito variadas. Como bem documentou
Christophe Gauthier (1999), os anos 20 do século passado apontaram para a
constituição do que ele denomina protocolo cinéfilo, reunindo uma série de
características que definiam um espaço diferenciado da corrente hegemônica do
cinema: o entretenimento pago. Nesse universo minoritário (mas considerável)
encontram-se e misturam-se as associações, clubes, círculos e tribunas de
espectadores; as revistas de cinema; os movimentos de opinião; as atividades
corporativas da classe cinematográfica, as vanguardas estéticas, as salas
especializadas (comerciais) e iniciativas classistas ou partidárias. A meu ver, o
importante e erudito trabalho de Gauthier comprova sobretudo a importância do
público na formação do - assim como na resistência ao – cinema- instituição, o
cinema hegemônico, dominante ou outro nome com que se queira fazer referência à
predominância da indústria estadunidense e da narrativa ”clássica”, literária e linear
no cinema, que vai dominar o século 20 a partir de sua segunda década e sobretudo
a partir do cinema sonoro. Os cineclubes são para Gauthier apenas uma parte desse
movimento mais amplo e, observados sob a lente da cinefilia, pouco ou nada se
distinguem de outras iniciativas, como as salas especializadas (mais tarde conhecidas
como de “arte e ensaio”) ou as sessões promovidas por publicações de cinema. Não
creio, no entanto, que uma paixão pelo cinema (4) seja a base real para explicar a
origem dos cineclubes – ou a ampla movimentação do público naquele período. A
atração específica pelo cinema pode ter explicações como as sugeridas pela
aplicação dos princípios da psicanálise à fruição dos filmes, os enfoques mais
recentes do cognitivismo, etc. Esses tipos de abordagem podem ajudar a
compreender a ligação dos espectadores em geral com o cinema, e até a
necessidade de organização de um sistema de produção e distribuição dessa fonte
de prazer, informação, conhecimento. Mas, se essa paixão pode ilustrar uma
motivação geral, não basta para explicar porque o sistema de circulação de filmes se
estrutura numa base capitalista, em que o espectador é um apenas um instrumento
de realização de lucros, ou através de relações colaborativas, quando o público se
organiza para gerir essa fruição. O próprio Gauthier termina seu artigo assim: “se as
salas especializadas souberam construir um espaço próprio no ambiente do
comércio cinematográfico, esse não é o caso dos cineclubes até o fim dessa
década...” (Gauthier, 1999, p. 198). Os cineclubes, ao contrário, eram mal vistos e
desde sempre foram repudiados pela “indústria” por seu caráter contestatário e
ambientes conturbados (5) - além da concorrência que representam, mais em
termos de proposta quanto ao público do que propriamente como ameaça aos
rendimentos do negócio. 
Modo de Reprodução, público e cineclubes 
A necessidade de organizar o acesso dos espectadores aos filmes, ou a distribuição
destes àqueles, deu origem (no campo da exibição) fundamentalmente a duas
instituições: a sala de cinema comercial e o ambiente do cineclube. E tal adaptação,
ajustamento, é da essência do processo econômico e social: “a humanidade não se
propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a
análise, ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando as
condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir” (Marx,
1859). Como é bem sabido, a “invenção” do cinema é das mais exemplares desse
processo de desenvolvimento e adaptacão de novas forças produtivas (o cinema
como paradigma inicial da indústria cultural em geral) ao desenvolvimento do
capitalismo. Adaptação esta que se dá sobretudo como conflito no campo da
sociedade civil (bürgerliche Gesellschaft), como desenvolveu Gramsci: as classes
sociais competem entre si pela hegemonia na sociedade civil. No processo de
adaptação, de adequação ao uso e consumo dos inúmeros desenvolvimentos
técnicos na produção e consumo das imagens sonoras e em movimento; em última
instância, no processo de institucionalização do cinema (tal como tratado por Burch,
Gaudreault, Gunning e outros) duas perspectivas sempre estiveram presentes, ainda
que a do capital, evidentemente, tenha sido sempre preponderante. O “cinema”
desenvolveu-se nas fábricas e laboratórios de empresários como Edison ou os
Lumière (e tantos outros), sendo testado imediatamente no mercado, nos
kinetoscópios ou em projeções pagas (6). O cinema como meio de reprodução das
relações de produção capitalistas, o cinema com fins de lucro. Mas, desde logo – e
desde uma tradição que lhe é anterior: a das lanternas mágicas – e simultaneamente
a esta busca de adequação do novo produto ao consumo, o cinema, as projeções
também procuravam outros usos, com outros fins. Uma sólida tradição se estrutura
nos meios populares, principalmente religiosos ou classistas, em que as imagens em
movimento são empregadas como elemento complementar à catequese, ao ensino,
à propaganda, à agitação (7). Estas exibições tinham um caráter ideológico preciso, e
se davam principalmente nos ambientes sociais de igrejas e seitas religiosas, assim
como dos meios sindicais e anarquistas. Em julho de 1898, a Liga Democrática das
Escolas, e em setembro do mesmo ano, o Partido de Ação Revolucionária Comunista
organizavam conferências e manifestações sobre o caso Dreyfus, ilustradas com
projeções, como exemplifica Laurent Mannoni (1993, p. 101-102). Segundo Georges-
Michel Coissac (8) (citado por Gauthier, p.34), a primeira sessão de “cinema
educativo” teria ocorrido em Paris, em março de 1899, por iniciativa da “Obra
francesa de conferências populares”. Essa prática se generalizou sempre e cada vez
mais, concomitantemente com o processo de formação do público em geral, no
sentido moderno que esse conceito assumiria principalmente a partir da
consolidação do público cinematográfico (9). Inicialmente tendo o cinema como
complemento de outras atividades, paulatinamente (o que acompanha a própria
evolução da linguagem cinematográfica) essa centralidade se inverte, tornando-se o
filme o acontecimento principal, precedido de apresentações, seguido de debate e,
frequentemente, entremeado de manifestações e participações durante a projeção.
O papel da oralidade no cinema, que Germain Lacasse (2000) demonstrou ter uma
importância muito maior do que se pensava até recentemente, representa outra
perspectiva de abordagem que ilustra a evolução contraditória desse processo de
institucionalização do cinema na sua relação com o público. Nos primeiros anos do
século 20, as ligas, clubes e outras formas populares de associação – entre as quais
se incluem as instituições ligadas a igrejas (10) - cada vez mais adotam as projeções
cinematográficas como instrumentos de educação, de proselitismo e de diversão,
com o filme se tornando, cada vez mais, o centro, a razão dessa atividade. É mais
para o fim da segunda década do século que vamos encontrar também os
integrantes do meio cinematográfico propriamente dito (11) cada vez mais
envolvidos com essas práticas. Talvez as referências documentais mais antigas sejam
as palestras e debates, com a presença de profissionais, realizados no Club du
Faubourg, em Paris, a partir de 1916 (12) (Lemercier, 1995). Parece-me que este
caminho demonstra e situa melhor a origem do cineclubismo que a diluição do
conceito em atividades de caráter genérico e variável, muitas vezes ritualísticas,
fundamentadas num sentimento subjetivo. Ou, como adotado sobretudo em obras
de referência e “dicionários de cinema”, numa descrição funcional e/ou “protocolar”
(no sentido de constituir um protocolo, elencando características e comportamentos,
também muito genéricos e frequentemente subjetivos). Não, o cineclubismo
corresponde a uma necessidade concreta de acesso e de
participação; espectatura com participação e criação (13), por parte do público. Que
a história parece demonstrar. 
Periodização 
Se o cineclubismo surge e resulta dessa trajetória histórica de formação e
organização do público, qual seria, então, o momento e o fato histórico que
poderíamos adotar como base para uma periodização? Em que altura poderíamos –
se é que é possível - estabelecer que as atividades de projeção e o cinema
propriamente dito se tornam centrais, conscientes e institucionalmente mesmo
podem ser definidas como cineclubes (14)? É evidente que a aceitação dos
argumentos aqui desenvolvidos aponta para uma pesquisa muito mais ampla e
profunda sobre esse processo, em todo o mundo. Como todos sabemos, nem o
público nem muito menos os cineclubes, têm sido objeto de grandes investigações, a
não ser mais recentemente e com uma absoluta preponderância (no caso do
público) de estudos e pesquisas nos países que “tradicionalmente” servem para
ilustrar o cinema, sua história e sua teoria. Ou seja, França, Estados Unidos e, em
menor escala, alguns outros países europeus. Mas a falta de estudos – e sobretudo
de divulgação - não significa ausência de História, e a realização de pesquisas sobre a
formação do público, as organizações populares no campo da cultura e os chamados
primeiros tempos do cinema, pode vir a revelar ricas experiências concretas em
países e/ou períodos de que não temos informação, assim como podem melhorar e
aprofundar as idéias aqui alinhavadas. E propor outros pontos de referência. Porque
o público, como o cineclubismo, é mundial. 
O primeiro cineclube 
No entanto, ainda que presas às mesmas condicionantes referidas no parágrafo
acima, acredito que temos a descrição e documentação de um primeiro cineclube
que, não apenas antecede significativamente as iniciativas de Delluc e Canudo, de
1920 (e mesmo as do Club du Faubourg, de Léo Poldès, de 1916), como representa
de maneira muito mais completa, precisa e extensa, a conceituação de cineclube
como forma de organização do público. Trata-se, enfim, do Cinéma du Peuple,
organização criada em 1913 por iniciativa dos meios operários anarquistas
comunistas (15), em Paris. Laurent Mannoni, em artigo publicado no número
especial da revista 1895, de outubro de 1993, trata e documenta especificamente
essa experiência (16). Experiência curta, como significativamente foram tantos
cineclubes em nossa história (17), mas que estabelece plena e claramente (e melhor
que os exemplos posteriores) os grandes traços, características e finalidades que
definem o cineclube como forma de organização do público. Como resistência e
reação a um cinema de dominação e alienação, e como base para a elaboração e
produção de uma visão do mundo própria. Um cinema do público, um cinema do
povo. Como expresso no próprio nome da organização. Depois de um período de
desconfiança e até preconceito em relação ao cinema, os meios anarquistas
assumem, progressivamente, uma posição crítica. Émile Guichard, velho militante,
escreve no jornal anarquista Le Libertaire (18): “Assim que lançam uma invenção, ela
se volta contra a classe operária”. E, mais adiante, conclama: “Camaradas, vamos
boicotar os cinemas que sabotam nossas idéias, vamos obrigá-los, por todos os
meios, a mudar o tipo de espetáculos que apresentam; como o teatro, o
cinematógrafo deve educar, não embrutecer” (19). Em 1912, Guichard e Henri
Antoine criam o Teatro do Povo, para promover a “educação artística do povo”.
Mannoni indica, sempre no mesmo artigo, que este último podia estar ligado à
origem de uma Liga do Cinematógrafo para a Infância (da qual pouco se sabe), que
produziu um filme em maio de 1912, Pourquoi la guerre, considerado uma
“eloqüente resposta aos filmes militaristas” (20). Baseados na idéia do Teatro do
Povo, cerca de 20 anarquistas “de longa data” (21) decidiram criar o Cinema do
Povo. O programa é publicado no Libertaire de 13 de setembro de 1913. Em 28 de
outubro do mesmo ano, Yves Bidamant et Robert Guérard (compositor de um hino
anarquista famoso na época: Revolution) registram em cartório a ata de fundação e
estatutos do Cinema do Povo, organizado como uma sociedade cooperativa por
subscrição, aberta à participação, com sede na Rue Pouchet, 67, em Paris. As
finalidades principais são: “1. A produção, reprodução, venda, locação de filmes
cinematográficos, assim como todos os aparelhos e acessórios (22); 2 A propaganda
e educação através de apresentações artísticas e teatrais, conferências, etc. (...) A
Sociedade se esforçará para elevar a intelectualidade do povo. Manter-se-á
constantemente em comunhão de idéias com os agrupamentos livres do
Proletariado, baseados na luta de classes e que têm por objetivo a supressão do
assalariamento através de uma transformação social econômica.(23)” Além de
estabelecer um programa político e cultural que representa estritamente a intenção
de constituir-se como organização do público – divulgado publicamente e submetido
à aprovação de assembléia -, o Cinema do Povo desenvolve uma prática
absolutamente cineclubista, atendendo até, com antecedência, às principais
características do protocolo cinéfilo que Gauthier vai identificar e localizar nos anos
20: projeções periódicas, debates, conferências. E indo além, já que estas atividades
estavam diretamente ligadas à produção de um cinema próprio, proletário, do povo,
do público. O artigo de Mannini recupera muito bem essas atividades: “No começo
de 1914 a cooperativa pode apresentar seu primeiro título: Les Misères de
l’aiguille (As Misérias da Agulha), grande drama social.(24)” Uma grande festa é
organizada, com números musicais e esquetes ao vivo. “O escritor Lucien
Descaves(...) faz uma palestra sobre a utilidade do Cinema do Povo. (...) A sala está
lotada, cheia de anarquistas e intelectuais do Quartier Latin. Depois de ‘vistas
cômicas e instrutivas’ (realizadas pela cooperativa? Não se sabe.), Charles Marck, da
CGT, comenta as imagens das Misérias da Agulha enquanto o filme é projetado na
tela.(25)” A obra “engrandece a solidariedade operária, denuncia a exploração
odiosa das mulheres nas casas de costura. O epílogo do drama convida os
trabalhadores a reunirem-se mais fortemente nas organizações de defesa e de
ataque contra o capitalismo. Na tela aparece a bela divisa d’A Internacional:
Operários de todos os países, uni-vos!” (26). O filme será reapresentado várias vezes.
A primeira sessão do Cinema do Povo teve outra característica muito comum aos
cineclubes: com problemas de corrente elétrica, a projeção ficou bastante
prejudicada em vários momentos. Mas, assim mesmo, do ponto de vista do público,
foi um sucesso. Sucesso que cercou a atividade do cineclube até seu fechamento.
Como relata Mannoni: "De 28 de outubro de 1913 a 30 de maio de a914, o Cinema
do Povo editou 4.895 metros de filmes. Eis os títulos: Les Misères de
l’aiguille (projeção : 18 de janeiro de 1914). Les Obsèques du citoyen Francis de
Pressencé (Funerais do cidadão Francis de Pressencé)( projeção : 31 de janeiro de
1914). Victime des exploiteurs (Vítima dos Exploradores) (projeção : 28 de março de
1914). Estudo sobre o trabalho domiciliar. L’Hiver! Plaisir de riches! Souffrances des
pauvres ! (O Inverno ! Prazeres dos Ricos! Sofrimentos dos pobres!)(projeção: 31 de
janeiro de 1914). “Os prazeres da patinação. Gerardmer (27) e as belezas do inverno,
as belas senhoras bem vestidas que se divertem com os ricos desocupados. Como
contraste, vê-se o muro do Père Lachaise (28). Longas filas de infelizesque esperam
há horas, tremendo, por uma magra sopa. Pessoas enfraquecidas, esqueléticas. É a
miséria em toda a sua fealdade (29). La Commune! Du 18 au 28 mars 1871 (A
Comuna ! Do 18 ao 28 de Março de 1871) (projeção: 28 de março de 1914 . Os
episódios mais marcantes da Comuna, a semana sangrenta. Le Vieux docker (O
Velho Estivador)(projeção: 28 de março de 1914). “Drama social de grande
intensidade e poderoso realismo. Uma página da vida de um trabalhador que se
desdobra sobre a tela.” Mannoni menciona ainda vários projetos, cuja realização não
é comprovada, inclusive de Atualidades Operárias, noticiário mostrando “a
verdadeira face das nossas lutas: greves, manifestações contra a guerra, etc. Vamos
conseguir!” (30). Mas não foi dessa vez. Em junho de 1914 é fechado o jornal Le
Libertaire. Em agosto é a mobilização geral; quase todo o cinema francês pára por
alguns anos – mudando, inclusive, o quadro da exploração comercial do cinema em
todo o planeta e permitindo um enorme avanço para o cinema estadunidense que,
cada vez mais, seria dominante. 
Conclusão 
Mas, ainda que breve, a experiência do Cinema do Povo me parece essencial e básica
para o desenvolvimento das formas de organização do público em relação ao
cinema. Mesmo a historiografia tradicional – que vê o cinema apenas como
fenômeno de produção ou linguagem, e no espectador um objeto da psicanálise e da
fisiologia – reconhece o papel fundador do Cinema do Povo na trajetória do
documentário engajado, do cinema político. Creio que é muito mais que isso: é a
primeira clara formulação de um objetivo de organização do público, que
compreende o enfrentamento da questão central da apropriação do imaginário pelo
cinema comercial, com vistas à dominação, a alienação e a reprodução desse modo
de produção e de compreensão do mundo. É a primeira experiência – e consciente –
de produção coletiva, do público como autor, com vistas à superação desse estado
de coisas. É o primeiro cineclube (documentado), com um projeto claro, uma
estrutura democrática e uma atividade expressiva e altamente significativa. Para a
sua época e para a história do cineclubismo.
Montreal, março de 2010. Felipe Macedo 
Notas: 
1. Delluc é o criador do termo cineasta, adotado a partir de então. Mas, para ele, o
conceito não de referia tão somente à idéia de realizador, mas do espectador crítico,
engajado e criador.
2. Os pomposos clubes britânicos de cavalheiros, inicialmente voltados
principalmente para o consumo de bebidas (só permitido em ambientes fechados,
para associados), surgem no século 18 e, progressivamente, vão se popularizando
entre as classes médias, até se tornarem uma verdadeira onda nos anos 80 do século
19, quando só em Londres havia mais de 400 gentlemen’s clubs.
3. Em diferentes países ou momentos históricos, sempre se tentou reinventar a roda,
adotando novas nomenclaturas para valorizar e renovar as próprias iniciativas, numa
pretensa “superação’ de conteúdos identificados com uma geração anterior, uma
orientação partidária diferente ou um outro país. Círculo de cinema, clube de
amigos, sociedade de cinema, núcleo, coletivo, são alguns dos inúmeros nomes que
se atribuíram e se usam até hoje para se referir a e se distinguir de um conceito que,
entretanto, é o único que permanece e se reconhece em qualquer lugar e em
qualquer língua, com pequenas variações de grafia: o vocábulo global cineclube.
4. La passion du cinéma é o título principal do livro de Gauthier.
5. Quanto mais populares os cineclubes, mais os debates sobre os filmes e temas
tratados eram acirrados. Há mesmo um histórico de discussões mais acaloradas que,
vez ou outra, terminavam em pancadaria. Na tradição da organização do público, no
começo do século 20, além de ações de boicote a filmes e salas, também foram
comuns manifestações nos cinemas (as siffleries, “apitaços”), expontâneas ou
preparadas por grupos partidários, artísticos, etc, além de pesquisas populares de
opinião e abaixo-assinados.
6. A data escolhida para marcar o “nascimento” do cinema é a da primeira projeção
pública paga (PPPP), sabidamente precedida de inúmeras outras experiências.
7. Bem antes do próprio desenvolvimento da narração cinematográfica.
8. Militante e “cineclubista” católico, diretor da Bonne Presse, autor da provável
primeira História do cinema, em 1925.
9. O processo de formação público é um tema extenso, que não cabe tratar aqui em
detalhe. Mas esse processo constitui, justamente, o quadro histórico em que se pode
compreender e situar o surgimento e evolução do cineclubismo.
10. Ainda que estas sejam submissas a uma orientação “externa”, no sentido de que
não nascem, geralmente, da experiência ou tradição popular, mas da iniciativa
central de autoridade e instituição eclesial.
11. Preferi aqui uma referência ao “meio profissional”, algo como nossa idéia atual
de “classe cinematográfica”, porque não se havia firmado totalmente ainda a noção
e a identidade do autor e/ou realizador no processo cinematográfico (ver nota 1).
12. Em 1925 o Club se torna a Tribune Libre du Cinéma, apontado por Gauthier como
a primeira organização a realizar sessões com periodicidade definida, seguidas de
debates.
13. Esta concepção de cineclube – como forma de organização do público - e da
centralidade do público no processo cinematográfico, contudo, só se tornou mais ou
menos corrente (sobretudo dentro do movimento cineclubista) depois dos estudos e
manifestações de Filippo Maria de Sanctis, Fabio Masala e Felipe Macedo, nos anos
70 e 80, aos quais se junta posteriormente o trabalho fundamental de Gabriel
Rodriguez Álvarez. E pela contribuição praticamente anônima de militantes
cineclubistas principalmente da Itália, do Brasil e da América Latina em geral. Mas,
como a maioria dessas reflexões foram feitas dentro do ambiente cineclubista,
através de intervenções em encontros ou textos publicados de forma “alternativa”
ou quase, frequentemente marginalizadas institucionalmente ou mesmo reprimidas,
tiveram pouca ou nenhuma repercussão fora do meio cineclubista e, num certo
sentido, mesmo dentro dele. A “redescoberta” e valorização da Carta de Tabor dos
Direitos do Público (inspirada por De Sanctis e Masala) na 1ª. Conferencia Mundial de
Cineclubismo, no México, em 2008, no quadro de uma retomada do cineclubismo
mundial e seguida de campanhas pela valorização do público e do cineclubismo em
várias partes do mundo, recoloca as questões aqui tratadas e permite esta reflexão.
14. Cineclubes como forma de organização do público, estruturados
democraticamente e sem fins lucrativos, tal como veio a prevalecer com a
organização do cineclubismo como movimento internacional, e nas legislações dos
países que os reconhecem.
15. Muito esquematicamente, pode-se distinguir os anarquistas comunistas dos
anarquistas individualistas, que os precederam. Depois de uma fase legendária e
heróica do anarquismo da iniciativa individual, dos atentados, ele vai sendo
substituído pela corrente “comunista”, mais ligada ao sindicalismo e à organização
das massas.
16. Parte da produção do Cinema do Povo foi apresentada pela historiadora Isabelle
Marinone (Sorbonne 3) na III Jornada Brasileira de Cinema Silencioso, na Cinemateca
Brasileira (São Paulo), em 2009.
17. Parece ser uma inquietante constante na história do cineclubismo que muitas
experiências marcantes, fundadoras, tenham tido curta duração. E, desse período
inicial, podemos citar as sessões do Ciné-club e do Clube dos Amigos da Sétima Arte
(CASA), mas também Os Amigos de Spartacus, em 1928 (os dois primeiros em parte
pela morte de seus principais animadores, Delluc e Canudo, e o último motivado pela
repressão policial e econômica).
18. Le Libertaire no. 31, 27 de maio de 1911, citado por Mannoni, op. cit. Tradução
minha.
19. Idem.
20. Le Libertaire no. 31, 1o. de junho de 1912, citado por Mannoni, op. cit.
21. Entre os quais: Sébastien Faure, Jean Grave, André Girard, Marcel Martinet,
Pierre Martin (chamado de Corcunda), Émile Rousset, Camille Laisant, Yves Bidamant
e Gustave Cauvin. Op. cit.
22. Embora o artigo de Mannoni não mencione explicitamente, o texto de
apresentação da mostra anarquista na Cinemateca (nota 14, acima) explica que
“seus objetivos eram ‘desinteressados’, e os lucros deveriam ser empregados
essencialmente no ’fortalecimento da obra’ e dedicados às vítimas da
repressão”: http://www.cinemateca.gov.br/jornada/filmes_anarquismo_1.php 
23. Op. cit.
24. Op.cit.
25. Op.cit.
26. Le Libertaire, no. 18, 28 de fevereiro de 1914. Citação de Mannoni, op. cit.
27. Estação invernal francesa.
28. Famoso cemitério parisiense.
29. Le Libertaire, no. 18, 28 de fevereiro de 1914.
30. Idem. 

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MARX, Karl. (1859) 1977. “Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política”.
Em Karl Marx e Friedrich Engels – Textos 3. São Paulo: Edições Sociais
MASALA, Fabio. 1985. « La Lotta ideologica tra ‘tempo libero’ e ‘mezzi di
communicazione di massa’ » Em Il Diritto alla risposta. Educazione degli adulti e
mezzi audiovisivi di communicazione di massa. Cagliari : CUEC Editrice.

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