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Débora Butruce
Or ganizadora do Cachaça Cinema Clube,
técnica em preservação e restauração de filmes e mestranda
em Comunicação, Imagem e Informação da Universidade Federal Fluminense.

Cineclubismo no Brasil
Esboço de uma história

Este ano a atividade fundadores era composto


cineclubista no Brasil com- por Plínio Sussekind Rocha,
pleta 75 anos, a partir do Otávio de Faria, Almir Castro
marco definido pela criação e Cláudio Mello, personalida-
do Chaplin Club, em junho de 1928, no des de grande prestígio no meio cultural
Rio de Janeiro. Já na década anterior, carioca da época, fazendo com que o
em 1917, também no Rio de Janeiro, cineclube alcançasse forte repercussão.
Adhemar Gonzaga, Pedro Lima, Paulo Em agosto, lançam a revista O Fan , ór-
Vanderley e outros organizavam um gru- gão oficial do cineclube, que será
po que freqüentava os cinemas Íris e publicada durante dois anos, com cerca
Pátria, com discussões após as exibições de nove edições. Em 1931, o Chaplin
na casa do colecionador de filmes Álva- lança o filme brasileiro mais importante
ro Rocha. Apesar de se utilizarem de do período: Limite , de Mário Peixoto. A
métodos consagrados pelo cineclubismo, sessão aconteceu no majestoso
será com a fundação do Chaplin Club que Capitólio, de Francisco Serrador.
se caracterizará, efetivamente, o início
da atividade no Brasil, pois só então ha- Será somente em 1940 que Paulo Emílio
verá um movimento sistemático de exi- Salles Gomes, Décio de Almeida Prado e
bição e discussão de filmes. O grupo de Lourival Gomes Machado fundarão o Clu-

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be de Cinema de São Paulo. A iniciativa seu de Arte Moderna (MAM), transfor man-
partirá do meio acadêmico, da Faculda- do-se em Filmoteca do MAM, embrião da
de de Filosofia da Universidade de São futura Cinemateca Brasileira. No ano de
Paulo, e está intimamente ligada a um 1952, a FMAM organiza em São Paulo a
momento de grande agitação cultural na “Primeira Retrospectiva do Cinema Bra-
capital paulista. Momento este que ante- sileiro”, em colaboração com os centros
cederá em alguns anos a primeira tenta- de estudos cinematográficos do Rio e São
tiva de uma indústria cinematográfica no Paulo. Pela primeira vez no país, realiza-
país: a Vera Cruz. va-se uma mostra retrospectiva de filmes
brasileiros de forma didática, com pales-
Essa primeira fase do cineclubismo no
tras após as sessões, trazendo para no-
Brasil terá um caráter um tanto restrito,
vas gerações filmes de difícil acesso.
já que as discussões aconteciam entre um
pequeno grupo de intelectuais dotados de Curiosamente, outro componente funda-
uma expressiva cultura cinematográfica. mental para a ampliação do movimento
Mas, ao mesmo tempo, a iniciativa suge- será a Igreja. Desde 1936, criado pela
re uma nova forma de se relacionar com Ação Católica Brasileira, funcionava o
o cinema, o início de uma reflexão críti- Serviço de Informações Cinematográfi-
ca e coletiva. Nesse aspecto, será um cas, de onde eram divulgados boletins
avanço fundamental, pois demonstrará a com as cotações morais dos filmes exi-
insatisfação com o que era oferecido pela bidos no Brasil. Além desse aspecto, a
rede comercial, propondo uma nova for- Igreja estabeleceu uma verdadeira polí-
ma de exibição e apreciação de cinema. tica para a atividade cineclubista, mobi-

Mas toda essa agitação cultural não foi lizando pessoas e recursos e tornando-

considerada tão interessante por certos se a maior ‘tendência’ no cineclubismo

setores da época. O Departamento de Im- brasileiro até o início dos anos de 1960.

prensa e Propaganda (DIP) fechou o Clu- Estima-se em quase cem o número de

be de Cinema após pouco mais de dez cineclubes que chegaram a existir sob a

exibições públicas, e as projeções só pros- administração da Igreja. Ela pode ser

seguiram durante pouco tempo, clandes- considerada uma das únicas vertentes de

tinamente, na casa de Paulo Emílio. perfil claramente ideológico que conse-


guiu pôr em prática uma articulada pro-
Passados alguns anos, com o fim do Es-
posta para a atividade cineclubista, pu-
tado Novo, em 1946, o Clube de Cinema
blicando livros, apostilas, promovendo
retoma suas atividades, juntamente com
cursos e formando equipes para difun-
uma série de cineclubes que surgem por
dir seu modo de organização.
todo o país, caracterizando-se então, de
fato, um movimento. Em 1949, o Clube Apesar de todo esse empreendimento, a
de Cinema de São Paulo une-se ao Mu- postura extremamente conservadora da

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Ação Católica Brasileira não possibilitou Em outubro de 1956 é criado o Centro


nenhum tipo de discussão mais consis- dos Cineclubes de São Paulo, na sede da
tente em tor no da atividade cultural no Cinemateca Brasileira, que passa a ser
país, limitando o enfoque à difusão de uma entidade independente. Até meados
sua ideologia. da década de 1970 ela será um impor-
tante suporte para a atividade
Passada a fase de expansão geográfi-
cineclubista, auxiliando na distribuição
ca e quantitativa do movimento, inicia-
de filmes, organizando mostras e promo-
se um período considerado de or gani-
vendo cursos específicos para a área.
zação, quando começam a sur gir as
primeiras entidades. Em 1958 será a vez do Rio de Janeiro

Fachada do cinema Odeon em dia de sessão do Cachaça Cinema Clube. Foto de Mauro Kury, 2003.

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fundar sua Federação de Cineclubes; em de caminhava na direção não apenas de


1960 surgirá a Federação de Minas; se- um movimento, mas de um movimento or-
guida pela do Nordeste, a gaúcha e a do ganizado. Essa situação foi possível gra-
Centro-Oeste. ças ao amadurecimento do cineclubismo,
que propiciou uma melhora na qualidade
A criação de todas essas federações
e organização. Mesmo com a burocracia
anuncia uma nova postura perante o
que a criação de tais organizações instau-
movimento cineclubista. A existência já
ra, é importante ressaltar que esses meca-
bastante numerosa de cineclubes pres-
nismos fazem parte de um amplo projeto
cindia de órgãos centralizadores que sis-
de diálogo mais consistente com o resto
tematizassem suas atividades. O movi-
da sociedade, sintetizado por uma entida-
mento ocupava um lugar de destaque,
de de base nacional.
mesmo se posicionando de maneira pou-
co contundente em relação ao circuito Época de renovação do teatro, de
de exibição comercial, já que possibili- surgimento de importantes inovações na
tava a circulação de títulos que perma- música popular, de criação do grupo do
neceriam fora deste mercado. Cinema Novo, basicamente constituído
Com a criação do Conselho Nacional de por toda uma geração de cineclubistas:
Cineclubes, em 1962, entidade que deve- Leon Hirszman, Glauber Rocha, Jean-
ria aglutinar todas as federações do país, Claude Bernadet, João Batista de
há a demonstração clara de que a ativida- Andrade, nomes que revolucionaram o

Sessão do Cachaça Cinema Clube no cinema Odeon. Foto de Mauro Kury, 2003.

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panorama do cinema brasileiro. Diante mercado, demonstrando uma atitude


de toda essa ebulição por que passava a cada vez menos cultural.
sociedade brasileira na década de 1960,
No início da década de 1970, mesmo
em especial a juventude, o desenvolvi-
com o esfacelamento cultural, o movi-
mento dos cineclubes ocorre principal-
mento cineclubista começa a retomar
mente em universidades e escolas. Em
suas atividades. Esse ressurgimento se
virtude do caráter ainda ambíguo da as-
dará em um novo contexto, já que a aber-
sociação do movimento a uma feição
tura desses espaços também tentará
e f e t i v a m e n t e p o p u l a r, a a t i v i d a d e
abranger uma discussão mais ampla so-
cineclubista acabou por acompanhar o
bre a sociedade brasileira.
ritmo de algumas manifestações culturais
do período, como o Centro Popular de Em meado daquela década, pela primei-

Cultura (CPC), organizado pela União ra vez na história, os cineastas começam


a se organizar sindicalmente, sendo cri-
Nacional dos Estudantes. Esse
ada a Associação Brasileira de
direcionamento à área universitária levou
Documentaristas e Curtas-Metragistas,
o movimento a assumir um caráter polí-
em 1973. Os realizadores passam de
tico tipicamente estudantil: “o de levar
artistas a profissionais de cinema, traba-
cultura para o povo”.
lhadores que precisam se organizar e
Com o recrudescimento da ditadura, toda lutar por seus direitos.
e qualquer manifestação cultural com a
Percebe-se nesse período uma tentativa
mínima vocação democrática foi extin-
de renovação da linguagem e da temática
ta. O cineclubismo, representado nesse
por parte de alguns antigos cineclubistas
momento por uma juventude bastante
do Cinema Novo, além do propósito de
ativa, também sofreu as conseqüências
aproximação com uma maior parcela do
desse recrudescimento, tendo sido suas
público. Em um mercado totalmente do-
entidades fechadas ou proibidas de atu-
minado pelas pornochanchadas e outros
ar. Esse desmantelamento atingirá subs-
títulos apelativos, começam a despontar
tancialmente a relação dos cineclubes
algumas produções de peso, que se tor-
com outros setores da atividade cinema-
nam cada vez mais presentes ao longo
tográfica no Brasil. O movimento que
da década. O cineclubismo também par-
apontava para a lenta superação de seu
ticipará desse momento, privilegiando a
elitismo rompe bruscamente seu conta-
exibição de filmes brasileiros em suas
to com o cinema. Estando ambos quase
programações.
destruídos e desor ganizados, partem
para direções supostamente antagônicas, Como emblema dessa decisão, as enti-
um se volta essencialmente para a rela- dades reunidas na 8ª Jornada Nacional
ção com o público, e o outro para o de Cineclubes, em Curitiba, redigem um

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documento em que afirmam seu compro- ca, a instrumentalização que muitos par-
metimento com o cinema brasileiro e sua tidos e outras organizações faziam des-
defesa, conhecido como “Carta de sa atividade não se mostrou mais neces-
Curitiba”, e exprimem uma postura poli- sária. A partir deste ponto, efetivou-se
ticamente engajada, típica desse perío- uma nova fase por parte daqueles que
do. A Carta também previa a criação de estavam interessados em um trabalho
uma distribuidora alternativa de filmes, verdadeiramente cultural. Com a escas-
com o objetivo de fornecer opções às sez de películas em 16 mm, muitos
exíguas fontes de abastecimento de pe- cineclubes se direcionaram para a
lículas, principalmente em 16 mm, con- profissionalização, optando por montar
siderada a bitola cineclubista. Mas tal salas com equipamentos em 35 mm. Es-
ação será concretizada somente em ses cineclubes obtinham respaldo na
1976, quando o Conselho Nacional de bem-sucedida empreitada do Cineclube
Cineclubes cria um departamento exclu- Bexiga, em São Paulo, um dos mais im-
sivo para a distribuição de filmes – a Dis- portantes dessa época. A idéia agradou
tribuidora Nacional de Filmes em cheio ao público cinéfilo, sendo copi-
(Dinafilme). A Distribuidora teve seu fun- ada posterior mente por diversos
cionamento bastante prejudicado em cineclubes, como o Estação Botafogo, no
razão das constantes invasões e apreen- Rio de Janeiro, Oscarito e Elétrico, em
sões de filmes feitas pela ditadura mili- São Paulo, e Savassi, em Belo Horizonte.
tar, além de nunca ter se mostrado viá-
vel do ponto de vista econômico e Com a quase extinção da produção cine-
organizacional, apesar dos esforços nes- matográfica no Brasil no início dos anos
sa direção. de 1990, muitos cineclubes e suas enti-
dades representativas praticamente de-
Essa nova fase da atividade no Brasil será
saparecem, salvo raras exceções. Uma
marcada pela ampla presença de
delas é o cineclube Incinerasta, que ini-
cineclubes em quase todos os estados e
cia suas atividades em meado da déca-
nas principais capitais, indo além de esco-
da, no Rio de Janeiro. Ligado ao meio
las e universidades. Nesse momento, o
universitário, era composto por realiza-
cineclubismo se desenvolveu sobretudo em
dores dos mais diferentes for matos
sindicatos e associações, o que lhe garantiu
(super-8, 16 mm, vídeo), em sua maio-
uma feição extremamente popular.
ria curtas-metragistas que buscavam uma
O advento da Nova República, em 1985, alter nativa para a circulação de suas
fez com que muitos cineclubes caracte- obras. Nessa época nota-se também a
rizados essencialmente por uma atitude criação de diversos centros culturais, que
político-cultural perdessem sua função. privilegiam produções dirigidas a um
Com a volta da normalidade democráti- público mais restrito.

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Nos primeiros anos de 2000, o cada vez maior de salas de exibição, esse
cineclubismo no Brasil começará a ga- número ainda se mostra inexpressivo. O
nhar novo fôlego, com iniciativas espa- investimento na consolidação de um atu-
lhadas por quase todo o país. O desta- ante movimento cineclubista, especial-
que será para o Rio de Janeiro, já que mente com as condições do circuito
de 2002 para cá houve o surgimento de exibidor, e com a situação de quase im-
quase dez cineclubes na cidade, como o possibilidade de um filme brasileiro se
Cachaça Cinema Clube, or ganizado por pagar em nosso mercado, passa a ser de
estudantes de cinema da Universidade extrema importância para a formação de
Federal Fluminense; o Cineclube Digital, novas platéias. Com o alto custo dos pre-
sob o comando do cineasta Walter Lima ços dos ingressos na rede de exibição
Jr.; a Sessão Cineclube, or ganizada pela comercial, os cineclubes também cum-
revista eletrônica de cinema prem a função de popularizar a ativida-
Contracampo ; o Tela Brasilis, também de cinematográfica, revelando-se uma
iniciativa de uma revista eletrônica, a opção mais acessível para uma grande
Cinestesia ; e o cineclube da ABD. parcela da população. E no que concerne

E
à produção cinematográfica de curtas-
ssa rearticulação da atividade
metragens, já que não é possível se pen-
cineclubista demonstra que al-
sar em retorno financeiro, os cineclubes
gumas velhas questões per ma- são, por excelência, o canal de comuni-
necem em pauta, já que ainda é uma pe- cação de que dispõe este tipo de filme
quena parcela da população brasileira para chegar ao público. São o canal de
que tem acesso ao cinema. Diante da escoamento de toda essa produção, a pos-
lógica tão invisível quanto determinante sibilidade de colocar em circulação obras
do mercado, as opções de atividades que geralmente ficam restritas a um cir-
culturais se mostram cada vez mais res- cuito de mostras e festivais específicos.
tritas, pois ficam condicionadas a uma
ótica monopolista que acaba por esma- Neste aspecto, é imprescindível a
gar qualquer particularidade. É vital a cri- profissionalização da atividade
ação de espaços que possibilitem o con- cineclubista, com a formação de novos
tato com um outro tipo de manifestação quadros, propiciando tanto a geração de
cultural, um pouco mais livre dessa pres- empregos quanto benefícios sociais e
são mercadológica. Os cineclubes se culturais em curto prazo. Os cineclubes
mostram como o lugar propício para essa devem se tornar uma alter nativa real ao
prática, difundindo obras cinematográfi- circuito de exibição comercial, consoli-
cas que não têm lugar na rede de exibi- dando-se como um espaço que incenti-
ção comercial. Mesmo que o cinema bra- ve a pluralidade da atividade cinemato-
sileiro venha ocupando uma quantidade gráfica e garantindo sua difusão.

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A C E

R E S U M O
Este artigo faz um breve histórico de alguns dos momentos mais importantes do movimento
cineclubista no Brasil e propõe uma reflexão sobre o modo como o cineclubismo se inseriu no
contexto político-cultural de cada época e seu papel nos dias atuais.

A B S T R A C T
This article presents a brief historical from some important moments of the movies clubs activities
in Brazil, and suggests a reflection on how this movement has introduced itself in the political
and cultural context in every period of time and its role at present-day.

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