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LEITURA E PRODUÇÃO

DE SENTIDOS EM
ARTES VISUAIS

Autor: Amauri Carboni Bitencourt

UNIASSELVI-PÓS
Programa de Pós-Graduação EAD
CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI
Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito
Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC
Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090

Reitor: Prof. Dr. Malcon Tafner

Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol

Coordenador da Pós-Graduação EAD: Prof. Norberto Siegel

Equipe Multidisciplinar da
Pós-Graduação EAD: Profa. Hiandra B. Götzinger Montibeller
Profa. Izilene Conceição Amaro Ewald
Profa. Jociane Stolf

Revisão de Conteúdo: Profa. Tatiana dos Santos Silveira

Revisão Gramatical: Profa. Marcilda Cunha da Rosa

Diagramação e Capa:
Carlinho Odorizzi

Copyright © Editora Grupo UNIASSELVI 2011


Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri
UNIASSELVI – Indaial.

700
B624l Bitencourt, Amauri Carboni
Leitura e produção de sentidos em artes visuais / Amauri
Carboni Bitencourt. Indaial : Uniasselvi, 2011. 117 p. : il.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7830-484-3

1. Artes - comunicação
I. Centro Universitário Leonardo da Vinci
Amauri Carboni Bitencourt

Doutorando em Filosofia da Arte e mestre


em Filosofia (ambos pela Universidade Federal
de Santa Catarina); especialista em Artes Visuais e
em Metodologia do Ensino de Filosofia e Sociologia;
bacharel em Filosofia, também pela Universidade
Federal de Santa Catarina. Professor universitário de
desenho artístico, desenho de observação e desenho de
moda. Pintor desde 1989, possui um acervo que gira em
torno de 950 obras. Entre elas, algumas estão em coleções
particulares em diversos países, como Japão, Espanha,
Itália, Inglaterra, Uruguai e Brasil. Realizou algumas
exposições de pinturas e recebeu, em 2007, a medalha
de Honra ao Mérito Artístico Cultural da União Nacional
dos Artistas Plásticos (UNAP). Possui algumas obras
catalogadas (nacional e internacional). É autor de dois
cadernos de ensino a distância do curso de Artes
Visuais, a saber: Técnicas de Pintura e Desenho
da Figura Humana, desenvolvidos para o Centro
Universitário Leonardo da Vinci. Também é autor
de alguns artigos que versam sobre arte e
filosofia.
Sumário

APRESENTAÇÃO���������������������������������������������������������������������������� 7

CAPÍTULO 1
Sistema de Signos ������������������������������������������������������������������������ 9

CAPÍTULO 2
Linguagem Verbal e Não-Verbal����������������������������������������������� 29

CAPÍTULO 3
Introdução à Leitura da Imagem������������������������������������������������ 45

CAPÍTULO 4
Compreender e Refletir a Arte nas
Diferentes Linguagens�������������������������������������������������������������� 65

CAPÍTULO 5
Leitura de Obra de Arte pela Psicanálise������������������������������� 83

CAPÍTULO 6
Arte e Filosofia ������������������������������������������������������������������������ 101
APRESENTAÇÃO
Caro(a) pós-graduando(a):

Imagine que você já comprou as passagens aéreas e, daqui a alguns dias,


visitará um país distante e entrará em contato com uma cultura diferente da sua.
Você verá monumentos, casas e igrejas que não está acostumado a ver no dia a
dia, com simbolismos que desconhece, bem como não saberá a história daquele
país. Isso se você não se preparou, ao menos um pouco, munindo-se de um
conhecimento mínimo prévio para que a sua visita tenha mais significância.

Nesse sentido, quanto mais você se preparar para a sua viagem, mais estará
apto a partilhar emoções e valores e, dessa forma, aprender sobre a cultura de
outro país e usufruí-la. Cenas e detalhes que lhe passariam despercebidos terão
mais a sua atenção se você estiver preparado para a viagem.

De forma semelhante a uma viagem, é nossa inserção no mundo das


obras de arte. Você não acha que ver uma pintura de alguns séculos terá mais
significados após ter aprendido algo do contexto em que ela foi criada? Não
acha que alguém que estuda a história da arte tenha mais condições de ler uma
obra do que um leigo? Claro que o olhar de um espectador leigo experimentará
sensações e emoções diversas e que todo aquele que se propõe a olhar uma
obra deverá ter esse tipo de experiência. O que difere é que, para o estudante, a
sua investigação continua, enquanto que o leigo geralmente para, ficando apenas
na sensação visual e no padrão de gosto.

De toda sorte, quanto mais você tiver aprendido sobre os métodos de criação
artística, bem como sobre maneiras de olhar e ver uma obra, e também quanto
maior for a sua cultura acerca da história da arte, mais condições terá de analisar
uma obra com êxito. Por isso, é importante a visita aos museus e o contato com
livros e catálogos de arte. Lembre-se: o treino do olhar é muito importante para um
estudante de arte! Claro que ler uma obra com profundidade depende de outros
conhecimentos fundamentais.

Foi nesse contexto que criamos este material de estudos. Ele servirá como
um guia inicial para que você tenha condições de adentrar este universo das artes
visuais com mais profundidade, deixando, por conseguinte, os seus sentidos
produzirem significações diversas no contato com as obras. Como todo aprendizado,
o sucesso ou não destes estudos dependerá muito mais de você do que do material
aqui proposto. Ao longo dos capítulos, apresentamos algumas sugestões de sites e
livros. Esperamos que você os consulte para aprofundar seus conhecimentos.
Didaticamente, este caderno foi dividido em seis partes: Capítulo 1 - Sistema
de signos; Capítulo 2 - Linguagens verbais e não-verbais; Capítulo 3 - Introdução
à leitura da imagem; Capítulo 4 - Compreender e refletir arte nas diferentes
linguagens; Capítulo 5- Leitura de obra de arte pela psicanálise; Capítulo 6 - Arte
e filosofia. Os dois primeiros capítulos tratarão da fundamentação teórica acerca
dos signos; os dois centrais entrarão nas linguagens da arte e da leitura de
algumas obras; e os dois últimos trarão alguns exemplos de produção de sentidos
em espectadores e ramos do conhecimento humano, mais especificamente,
psicanálise e filosofia.

É importante ressaltar que o material aqui elaborado traz apenas algumas


informações essenciais, bem como alguns exemplos de leituras e produção de
sentidos. Aprofundar e ampliar seus conhecimentos acerca deste tema dependerá
da sua dedicação e força de vontade. Por isso, não perca tempo: comece, agora
mesmo, a estudar este assunto tão fascinante e instigante da cultura humana!

O autor.
C APÍTULO 1
Sistema de Signos

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

99 Diferenciar as principais vertentes do estudo dos signos.

99 Conceituar a Semiótica e estabelecer relações entre as diversas abordagens


do termo, bem como seus representantes mais importantes.

99 Pontuar as principais trilogias conceituais acerca do signo elaboradas por


Peirce.
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

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Capítulo 1 Sistema de Signos

Contextualização

Desde as primeiras inscrições rupestres feitas nas paredes de cavernas, no
período Paleolítico Superior (provavelmente, há mais de 40 mil anos), o homem
tenta representar, de várias formas, o mundo em que vive. Nesse período, foram
criadas cerâmicas, armas e diversos utensílios trabalhados em pedra. Com o
surgimento do primeiro alfabeto sobre o qual temos conhecimento – pictográfico
–, aproximadamente no ano 4.000 a.C., a raça humana começou a se comunicar
e a se expressar por meio de desenhos simplificados chamados pictogramas.
Após esse período, passou por diversas etapas de evolução da escrita: a escrita
cuneiforme (3.250 e 1.950 a.C. por meio dos sumérios), a escrita hieroglífica
(tribos nômades egípcias), o sistema de escritos dos gregos, o alfabeto latino, os
primeiros escritos filosóficos dos pré-socráticos, o desenvolvimento da dramaturgia
e da poesia, as narrações de histórias literárias, o surgimento da imprensa e as
invenções de Gutemberg, as várias manifestações artísticas e, recentemente, todo
o aparato tecnológico virtual de imagens, símbolos, ícones e demais códigos que
permeiam a vida humana contemporânea. Tudo isso nos mostra que o homem vive
se expressando de várias maneiras e, por consequência, criando signos diversos.

Esse sistema de signos permite que tenhamos uma compreensão melhor


da vida que nos cerca. Isso, se soubermos decodificá-los, como, por exemplo,
aprendermos que aplausos, risadas e sorrisos mostram que o público está de
acordo e gostando de um espetáculo, ao passo que uma vaia quer mostrar o
desagrado de um grupo de ouvintes diante de um discurso político. Mediante
aprendizagem a priori, ao vermos um grande sinal de fumaça distante,
consideramos que, provavelmente, algo estará pegando fogo (casa, mato, carro,
etc.). Você percebe o quanto a nossa vida é cheia de signos como esse?

Diante disso, cabe-nos aprender um pouco sobre esse universo regido


pelos signos. Começaremos nossa jornada com o estudo dos filósofos acerca do
tema, ao longo dos milênios. Depois, veremos alguns conceitos de Semiótica e
Semiologia por diferentes autores e, finalmente, abordaremos as três principais
vertentes do estudo semiótico a partir do século XIX. Neste capítulo, de maneira
especial, aprofundaremos as teorias de Charles Sanders Peirce. Concentre-se,
pois será um capítulo bem teórico!

Origens do Estudo dos Signos


As investigações acerca da doutrina dos signos coincidem com a própria
história da filosofia. Obviamente que não era uma abordagem como a dos últimos
séculos. Platão e Aristóteles, dois filósofos gregos antigos, já falavam sobre esse

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Leitura e produção de sentidos em artes visuais

assunto. Platão (427-347 a.C.), no diálogo chamado Crátilo, sobre a


As investigações
justeza dos nomes, pesquisou a relação entre o nome, as ideias e as
acerca da doutrina
coisas. Investigou se a relação entre o nome, as ideias e as coisas
dos signos
acontecem de forma natural ou se é uma construção social e chegou
coincidem com a
a algumas conclusões:
própria história da
filosofia.
• Os signos verbais e naturais são apenas representações
incompletas da verdadeira natureza das coisas (segundo Platão, a
verdadeira natureza das coisas não está no mundo empírico).
Na concepção
de Platão, as
• A pesquisa das palavras nada desvenda acerca da verdadeira
palavras seriam
natureza das coisas. Isso porque o “lugar” das ideias não depende
um intermediário e,
das representações na forma de palavras.
consequentemente,
inferiores ao
• Cognições elaboradas por meio de signos são apreensões
conhecimento
indiretas e, portanto, inferiores às cognições diretas.
direto com as
coisas às quais se
Na concepção de Platão, as palavras seriam um intermediário e,
referem.
consequentemente, inferiores ao conhecimento direto com as coisas
às quais se referem. Assim, o conhecimento direto, sem o recurso de
signos, coloca-nos mais próximos da “verdade”.
Aristóteles (384-322
a.C.), por sua vez,
Aristóteles (384-322 a.C.), por sua vez, investigou a teoria dos
investigou a teoria
signos nos campos da retórica e da lógica. Traçou uma distinção
dos signos nos
entre signo certo – tekmérion – e signo incerto – semeîon – com o
campos da retórica
objetivo de mostrar que o signo pode ser uma proposição bem certa,
e da lógica.
ou necessária, ou também pode corresponder a uma opinião.

Outros filósofos também se acercaram deste tema, tais como: os estóicos


(Ca. 300 a.C. a 200 d.C.), os epicuristas (Ca. 300 d.C.), Santo Agostinho (354-430
d.C.), Tomás de Aquino (1225-1274) e John Locke (1632-1704).

Não nos aprofundaremos nas investigações sobre a teoria dos signos desses
filósofos, pois levaríamos demasiado tempo e esforço e por também se tratarem
de teorias difíceis e específicas. O que é importante ressaltar é que a Semiótica,
tal como entendemos e estudamos atualmente, teve seu início com os filósofos
John Locke (1632-1704) que, em 1690, no texto Ensaio acerca do entendimento
humano, postulou a “doutrina dos signos”, cujo nome era Semeiotiké, e Johann
H. Lambert (1728-1777), que escreveu, em 1764, um tratado intitulado Semiotik.

Para Locke, os signos são grandes instrumentos de conhecimento, divididos


em duas classes, a saber: as ideias e as palavras. As ideias são signos que estão
na mente do espectador (ou contemplador), e as palavras são signos das ideias

12
Capítulo 1 Sistema de Signos

da mente do emissor. As palavras, em todo caso, nada representam,


A Semiótica, tal
a não ser as ideias da pessoa que as usa. Esses conceitos foram
como entendemos
fortemente combatidos por pesquisadores do assunto, pois Locke não
e estudamos
admite que as palavras também sejam signos das ideias na mente
atualmente, teve
do contemplador (e, portanto, das outras pessoas, além do emissor),
seu início com
pessoas com as quais nos comunicamos. Apesar disso, as ideias de
os filósofos John
Locke foram importantes para o desenvolvimento da teoria dos signos.
Locke (1632-
1704) que, em
O filósofo Alemão Georg W. F. Hegel (1770-1831) foi, entre os
1690, no texto
fiósofos do século XIX, o que se destacou no estudo dos signos.
Ensaio acerca
Estabeleceu as fronteiras semióticas ao introduzir diferenças entre
do entendimento
signos e símbolos. Outros filósofos dessa época se destacaram na
humano, postulou
investigação sobre esse tema: J. G. Fichte (1762-1814), Wilhelm von
a “doutrina dos
Humboldt (1767-1835), Bernard Bolzano (1781-1848) e Lady V. Welby
signos”, cujo nome
(1837-1912).
era Semeiotiké, e
Johann H. Lambert
A Semiótica, tal como a teoria dos signos, desenvolveu-se através
(1728-1777), que
dos milênios até chegar ao ponto de se tornar uma disciplina ou ramo
escreveu, em
do conhecimento (ou mesmo ciência) estudada, principalmente, em
1764, um tratado
áreas da Linguística e em áreas ligadas às artes. Ao ler Santaella
intitulado Semiotik.
(2005, p. 15), encontramos:

A semiótica, a mais jovem ciência a despontar no horizonte das


chamadas ciências humanas, teve um peculiar nascimento,
assim como apresenta, na atual fase do seu desenvolvimento
histórico, uma aparência não menos singular. A primeira
peculiaridade reside no fato de ter tido, na realidade, três
origens ou sementes lançadas quase simultaneamente
no tempo, mas distintas no espaço e na paternidade: uma
nos EUA, outra na União Soviética e a terceira na Europa
Ocidental.

Dessa forma, temos três momentos do surgimento da Semiótica:

• EUA: Semiótica Peirceana, cujo precursor é Charles Sanders Peirce (1839-


1914);

• UNIÃO SOVIÉTICA: geralmente chamada de Semiótica Soviética, Russa ou


da Europa Oriental;

• EUROPA OCIDENTAL: Semiótica Saussureana. Nesta, também estão


vinculadas a Semiótica Visual e a Greimasiana ou Discursiva.

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Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Semiótica e Semiologia: Conceitos e


Polêmicas
Caro estudante, vimos que alguns pensadores refletiram sobre a questão
dos signos de diferentes maneiras. Vimos, também, que a Semiótica tornou-se,
recentemente, uma nova disciplina do conhecimento humano. Mas, afinal, o que,
de fato, é Semiótica?

Podemos iniciar dizendo que a palavra semiótica vem do grego


A palavra
sēmeiōtikos que, etimologicamente, quer dizer “a ótica dos sinais”. Em
semiótica
linhas gerais, falamos que é a ciência dos signos, embora saibamos
vem do grego
a implicância que há em classificar um conhecimento como sendo
sēmeiōtikos que,
ciência ou não. Contudo, são várias e diferentes as concepções dos
etimologicamente,
estudiosos do assunto acerca desse termo.
quer dizer “a ótica
dos sinais”.
O primeiro ao qual recorremos, com o objetivo de pensar sobre
este assunto, é Winfried Nöth, segundo o qual

Os estudiosos A semiótica como teoria geral dos signos teve várias


definem o termo denominações no decorrer da história da filosofia. A etimologia
conforme sua do termo nos remete ao grego semeîon, que significa ‘signo’,
e sêmea, que pode ser traduzido por ‘sinal’ ou também ‘signo’.
visão e de acordo (NÖTH, 1995, p. 21).
com o seu campo
de atuação Apesar de Nöth (1995) falar da origem etimológica da palavra e o
específico (artes que ela significa, ainda assim temos dúvida quanto a sua elaboração
visuais, linguística, conceitual. No Brasil, uma grande estudiosa desse assunto é Lúcia
design, etc.). Santaella, para quem

A semiótica é a ciência que tem por objeto de investigação


todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo
o exame dos modos de constituição de todo e qualquer
fenômeno como fenômeno de produção de significação e de
sentido. (SANTAELLA, 2005, p. 13).

Com a definição de Santaella (2005), cremos que ficou mais claro o que
se entende por Semiótica. A professora Sandra Regina Ramalho e Oliveira,
da Universidade Estadual de Santa Catarina, em seu livro Imagem também se
lê, afirma que os estudiosos definem o termo conforme sua visão e de acordo
com o seu campo de atuação específico (artes visuais, linguística, design, etc.).
(OLIVEIRA, 2009). Apesar de algumas dessas definições serem complexas,
podemos iniciar com concepções sucintas. A autora nos mostra algumas dessas
concepções:

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Capítulo 1 Sistema de Signos

Semiótica é a ciência geral dos signos; também pode ser


considerada a ciência da significação, ou a ciência que estuda
as linguagens [...]. Pode ser ainda definida como a ‘ciência
geral de todos os sistemas de signos por meio dos quais se
estabelece a comunicação entre os homens’, usando-se as
palavras de J. T. Coelho Netto; ou conforme Odin, inspirado
em Greimas: ‘teoria geral dos sistemas de comunicação,
capaz de possibilitar o estudo do conjunto dos processos de
produção de sentidos, seja intervindo nas linguagens verbais,
não verbais ou no mundo natural’. (OLIVEIRA, 2009, p. 38).

Apesar de parecidas, vemos que são definições que possuem Há os que


diferentes ramificações e, por ser um campo de estudo recente como acreditam que a
disciplina sistematizada, não há um consenso a respeito da definição. semiótica seja uma
ciência e deva ser
Outra discussão que encontramos entre os estudiosos do tratada como tal
assunto é se a Semiótica é um conhecimento científico ou não. Dela e há aqueles que
não conseguimos teorias que possam ser aplicadas em pesquisas asseguram que
das ditas ciências especiais ou especializadas, como a Química, a “os fundamentos
Biologia e a Física, pois não possui um objeto de estudo delimitado e semióticos estarão
definido. Esse objeto de estudo, segundo a autora, “poder-se-ia dizer associados a
as linguagens; mas como delimitar linguagens, quando hoje se fala da bases teóricas das
Ecossemiótica, da Sociossemiótica, da Biossemiótica e da Semiótica ciências da vida,
da cultura?” (OLIVERIA, 2009, p. 40). Logo, sendo diferentes objetos ou das ciências
de estudos, há, então, por conta disso, uma exigência correspondente sociais, ou da
de múltiplos instrumentos de investigação para dar conta desses física, da filosofia,
estudos. Tampouco podemos dizer que seja uma ciência especial. Em ou de uma ou mais
síntese, há os que acreditam que a semiótica seja uma ciência e deva subdivisões de
ser tratada como tal e há aqueles que asseguram que “os fundamentos algumas dessas
semióticos estarão associados a bases teóricas das ciências da vida, ciências [...]”
ou das ciências sociais, ou da física, da filosofia, ou de uma ou mais (OLIVERIA, 2009,
subdivisões de algumas dessas ciências [...]” (OLIVERIA, 2009, p. 40). p. 40).

Polêmicas à parte acerca de ser um conhecimento científico ou não, também


cabe, aqui, mostrar que há uma discussão em torno das terminologias Semiótica
e Semiologia. São palavras que querem dizer a mesma coisa ou se referem a
coisas distintas? Podemos usar ambas as palavras para falar do mesmo ramo do
conhecimento? Investiguemos a questão.

Nöth (1995, p. 23) nos mostra que

Alguns semioticistas [...] começaram a elaborar distinções


conceituais entre semiologia e semiótica: semiótica,
designando uma ciência mais geral dos signos, incluindo os
signos animais e da natureza, enquanto semiologia passou a
referir-se unicamente à teoria dos signos humanos, culturais e,
especialmente, textuais.

15
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Esta é, caro estudante, apenas uma das diferenças entre os termos. No


mesmo texto, Nöth (1995) escreve que a palavra Semiótica, postulada por Locke,
em 1690, era, geralmente, o termo preferido dos teóricos ligados à tradição da
teoria dos signos de Charles Sanders Peirce, enquando que o termo usado pelos
estudiosos ligados às teorias de Ferdinand de Saussure era Semiologia.

Muitos textos foram escritos para dar conta dessa diferenciação.


Em 1969, a
Porém, em 1969, a Associação Internacional de Semiótica passou a
Associação
adotar os termos Semiótica e Semiologia como sinônimos. O termo
Internacional de
oficial passou a ser Semiótica e abarcaria os conhecimentos tanto da
Semiótica passou
Semiologia quanto da Semiótica. O autor dessa proposta foi Roman
a adotar os
Jakobson.
termos Semiótica
e Semiologia
• Importante: Na medicina, desde a Antiguidade, há uma disciplina
como sinônimos.
chamada Semiologia, dedicada ao estudo da interpretação dos sinais
O termo oficial
(ou diagnóstico dos signos das doenças). Esses estudos começaram
passou a ser
com o médico grego Galeno (139-199), de Pérgamo.
Semiótica e
abarcaria os
Essa disciplina da medicina é diferente da nossa proposta de
conhecimentos
estudo. Portanto, por ser o termo oficial e para não confundir com a área
tanto da
médica, utilizaremos apenas o termo Semiótica (exceto quando for citação
Semiologia
de algum autor).
quanto da
Semiótica.
A seguir, apresentamos dois sites que você pode acessar e
aprofundar os seus conhecimentos de Semiótica.

Uma fonte recomendável e confiável para ler artigos científicos


sobre Semiótica é a revista Galáxia, que é uma publicação do
Programa de Estudos de Pós-Graduação em Comunicação e
Semiótica, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP). Eis o site da revista:

http://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/index

Acompanhe o grupo de estudos de Semiótica da Universidade


de São Paulo (USP), acessando o site: <http://www.fflch.usp.br/dl/
semiotica/public/public.html>. Nele, você encontra vários artigos
sobre o tema.

16
Capítulo 1 Sistema de Signos

Munidos desses conhecimentos históricos e conceituais, passemos ao estudo


da teoria dos signos em cada uma das três vertentes fundantes da Semiótica.

Atividade de Estudos:

1) Com o objetivo de fixar o conteúdo até aqui exposto, responda,


em linhas gerais, o que você entende por Semiótica e qual a
diferença entre Semiótica e Semiologia.
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Os Estudos de Charles Sanders


Peirce
Sendo filho de um importante matemático de Harvard, Peirce cresceu num
ambiente de acentuada proliferação intelectual. Sua grande paixão era a ciência,
mas também dedicava-se aos estudos de literatura, de linguística, de história, de
filologia, de psicologia, entre outros ramos do saber humano. Fez importantes e
originais contribuições na Matemática, na Química, na Física e na Filosofia. Ao
dedicar-se intensivamente à lógica das ciências, Peirce lutou pela consideração
de tornar a lógica uma ciência. Em meio a esses estudos foi que postulou a teoria
dos signos. Escutemos as palavras de Santaella (2005, p. 20):

17
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Desde o começo do despertar do seu interesse pela lógica,


Peirce a concebeu como nascendo, na sua completude,
dentro do campo de uma teoria geral dos signos ou Semiótica.
Primeiramente, ele concebeu a lógica propriamente dita
(aquilo que conhecemos como Lógica) como sendo um ramo
da Semiótica. Mais tarde ele adotou uma concepção muito
mais ampla da Lógica que era quase coextensiva a uma teoria
geral de todos os tipos possíveis de signos. Na última década
de sua vida, estava trabalhando num livro que se chamaria
Um sistema de Lógica, considerada como Semiótica.

Tendo interesse por lógica e, consequentemente por Semiótica, Peirce


elaborou, desde tenra idade, uma vasta teoria dos signos. Partindo dos estudos
fenomenológicos, fundamentou conceitualmente toda a sua filosofia com o objetivo
de “dar conta do ‘trabalho inteiro da razão humana’.” (SANTAELLA, 2005, p. 30).

Não aprofundaremos as bases filosóficas sobre fenomenologia,


porém cremos que seja importante uma definição do termo. Um
conceito que consideramos importante é exposto pelo filósofo
Maurice Merleau-Ponty:

A fenomenologia é o estudo das essências [...]. É a ambição de uma filosofia


que seja uma ‘ciência exata’, mas é também um relato do espaço, do tempo, do
mundo ‘vividos’. É a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal
como ela é [...] (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 1).

Em seus escritos sobre a doutrina dos signos, ou Semiótica, Peirce


Em seus escritos
queria configurar conceitos acerca dos signos tão gerais que pudessem
sobre a doutrina
servir de base para todas as ciências aplicadas. Desse modo, teria por
dos signos, ou
função descrever e classificar os diversos tipos de signos. Para isso,
Semiótica, Peirce
Peirce criou três categorias que constituem a base de suas teorias.
queria configurar
Essas três categorias enquadrariam todos os fenômenos da natureza
conceitos acerca
e da cultura. São elas: a primeiridade, a secundidade e a terceiridade.
dos signos
tão gerais que
Resumidamente, essa tricomia pode ser assim delineada:
pudessem servir
de base para
• Primeiridade: capacidade humana de contemplar, a visão
todas as ciências
espontânea, o simples ato de ver os fenômenos. Algo que não é
aplicadas.
analisável, impressão imediata, livre, original e que precede toda
síntese e diferenciação.

18
Capítulo 1 Sistema de Signos

• Secundidade: reação humana aos fatos concretos, capacidade de


Peirce elaborou
distinguir, de aceitar ou rejeitar as diversas experiências. Estar em
a trilogia
relação a algo ou a alguém. Compreensão do mundo.
fundamental de
sua teoria (que
• Terceiridade: capacidade de classificar as experiências em
pudesse dar
categorias. É nesse nível que ocorrem a mediação e o crescimento.
conta de todos
Inteligibilidade e interpretação do mundo.
os fenômenos
da natureza e da
Você consegue perceber onde se encaixa essa teoria de Peirce?
cultura), a saber:
Pois bem, primeiro, vimos que a Semiótica foi tratada por diferentes
primeiridade,
filósofos ao longo de dois milênios e meio; depois, que ela está
secundidade e
atrelada à ciência (questão polêmica) e à filosofia. Peirce elaborou a
terceiridade.
trilogia fundamental de sua teoria (que pudesse dar conta de todos os
fenômenos da natureza e da cultura), a saber: primeiridade, secundidade
e terceiridade. A sua investigação sobre Semiótica (doutrina dos signos)
possibilita o estudo dos signos nos diversos campos de linguagens:
artes visuais, teatro, cinema, fotografia, música, dança, literatura, etc.
Resumidamente, essa teoria está exposta no esquema a seguir.

Figura 1 – Organograma da Teoria de Peirce

Fonte: O autor.

Na tentativa de instaurar uma teoria de signos, com conceitos tão gerais que
pudessem servir de base para toda ciência aplicada, Peirce elaborou uma vasta
constelação de conceitos e os classificou em múltiplos de 3 (três).
19
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

As primeiras três categorias já vimos. Foi nesses pilares que Peirce


fundamentou a sua teoria. Outro conhecimento importante é o que ele entende
por signo, objeto e interpretante.

• Signo: é uma coisa que representa ou substitui outra coisa: seu objeto. Sendo
assim, o signo não é objeto, mas toma o lugar do objeto. Assim, representa e
está no lugar desse objeto de certo modo e numa determinada capacidade. É
aquilo que substitui alguma coisa. O desenho de um maçã, por exemplo, não
é a maçã em si, mas algo que representa a maçã. Logo, o desenho a substitui;
de um certo modo, dá-nos a ideia da maçã, mas o desenho não é a maçã.

Figura 2 - Exemplo de signo (representação/desenho de uma maçã)

Fonte: Disponível em: <http://engravedguitarparts.blogspot.com/2010/07/


desenho-lapis-maca.html>. Acesso em: 15 jul. 2011.

• Objeto: Corresponde ao referente, ou seja, à coisa. O objeto pode ser uma


coisa material do mundo ou uma entidade meramente mental ou imaginária.
Nöth (1995, p. 67) aponta para uma terceira possibilidade do “ser” do objeto:
“algo que é ‘inimaginável num certo sentido’”. Peirce reconhece dois tipos de
objetos: o objeto imediato e o objeto mediato (também chamado de real ou
dinâmico).

• Interpretante: é a significação ou efeito do signo. É algo que se cria (criado)


na mente interpretadora e, portanto, “não se refere ao intérprete do signo, mas
a um processo relacional que se cria na mente do intérprete.” (SANTAELLA,
2005, p. 58). Peirce reconhece três classes de interpretantes: o interpretante
imediato, o interpretante dinâmico e o interpretante final.

Graficamente, grosso modo, essa trilogia pode ser assim representada:

20
Capítulo 1 Sistema de Signos

Figura 3 - Tríade semiótica de Peirce

Fonte: Elaborada pelo autor com base em Peirce (2010).

Nas palavras de Peirce,

Um signo, ou representâmen, é aquilo que, sob certo aspecto


ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto
é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez
um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino
interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma
coisa, seu objeto. Representa este objeto não em todos os seus
aspectos, mas com referência a um tipo de ideia que eu, por
vezes, denominei fundamento do representâmen. ‘Ideia’ deve
aqui ser entendida num certo sentido platônico, muito comum
no falar cotidiano; refiro-me àquele sentido em que dizemos que
um homem pegou a ideia de um outro homem; em que, quando
um homem relembra o que estava pensando anteriormente,
relembra a mesma ideia, e em que, quando um homem continua
a pensar alguma coisa, digamos por um décimo de segundo,
na medida em que o pensamento continua conforme consigo
mesmo durante esse tempo, isto é, a ter um conteúdo similar,
é a mesma ideia e não, em cada instante desse intervalo, uma
nova ideia. (PEIRCE, 2010, p. 46. grifos do autor).

Atividade de Estudos:

1) Apresente, em linhas gerais, as diferenças entre signo, objeto e


interpretante.
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21
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

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Segundo Peirce (2010), em virtude de o signo estar ligado ao fundamento,


ao objeto e ao interpretante, a Semiótica está, então, dividida em três ramos:
grámatica especulativa, lógica propriamente dita e retórica pura.

• Gramática especulativa: ramo também chamado de gramática pura. Tem


por tarefa determinar o que deve ser verdadeiro quanto ao signo usado pelo
cientificismo com o objetivo de incorporar um significado qualquer.

• Lógica propriamente dita: ramo também chamado de lógica crítica. Investiga


os tipos de argumentos, inferências e raciocínios, a saber: deducão, indução e
abdução.

• Retórica pura: ramo também chamado de retórica especulativa ou


metodêutica. “Seu objetivo é determinar as leis pelas quais, em toda
inteligência científica, um signo dá origem a outro signo e, especialmente, um
pensamento acarreta outro.” (PEIRCE, 2010, p. 46).

Estando ciente dos fundamentos filosóficos da Semiótica, da inter-relação


signo-objeto-interpretante e dos ramos da lógica, estudaremos outra importante
tricotomia elaborada por Peirce: as noções de ícone, índice e símbolo.

• Ícone: quando a relação do signo com o objeto é de semelhança. Exemplos:


pinturas, desenhos, caricaturas, imagens do cinema, mapas e estátuas.

Figura 4 - Exemplo de ícone (pintura de um gato)

Fonte: O autor.
22
Capítulo 1 Sistema de Signos

• Índice: quando a relação do signo com o objeto é direta. Exemplos: espirro


(índice de resfriado), fumaça (índice de fogo) e impressão digital.

Figura 5 - Exemplo de índice de fogo (fumaça)

Fonte: Disponível em: <http://noticias.r7.com/cidades/noticias/


aviao-da-esquadrilha-da-fumaca-cai-durante-apresentacao-
em-sc-20100402.html> Acesso em: 5 jun. 2011.

• Símbolo: quando a relação do signo com o objeto é convencional, isto é,


imposta pela sociedade. Exemplos: H20 é símbolo da água, o buquê de flores
é símbolo de afeto ou admiração. Da mesma forma, o número 8, o nome
Paulo e a bandeira nacional são bímbolos.

Figura 6 - Exemplo de símbolo (símbolos religiosos)

Fonte: Disponível em: <http://3ipbcg.org.br/site/?p=2033>.Acesso em: 5 jun. 2011.


23
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Há, entrementes, caro estudante, alguns signos que possuem


Peirce não apenas
classificação dupla ou tripla. O traje de luto, por exemplo, é índice, pois
elaborou as teorias
morreu um ente querido da pessoa, e é símbolo, pois quem usa mostra
que vimos até
o pesar pela morte de alguém.
aqui. Ele fez uma
constelação dos
Peirce não apenas elaborou as teorias que vimos até aqui. Ele
tipos possíveis de
fez uma constelação dos tipos possíveis de signos (sempre triádicas,
signos (sempre
ou seja, numa combinação de três a três). Não nos aprofundaremos
triádicas, ou seja,
nesse assunto. Uma dessas classificações importantes (ícone,
numa combinação
índice e símbolo) já estudamos. Agora, à guisa de conhecimento,
de três a três).
apresentamos as três tricotomias do signo:

• Segundo a natureza material do signo: quali-signo, sin-signo e legi-signo.

• Relação do signo com seu objeto: ícone, índice e símbolo.

• Relação do signo com seu interpretante: rema, discente e argumento.

Os signos podem ser apresentados da seguinte maneira:

Signo Objeto Interpretante


Primeiridade Quali-signo Ícone Rema
Secundidade Sin-signo Índice Discente
Terceiridade Legi-signo Símbolo Argumento

Quando combinados, formam uma classe de 10 classes de signos, material


deveras extenso e complexo, sobre o qual não nos ateremos por momento.

Se você quiser se aprofundar nos estudos de Peirce sobre


Semiótica, um bom livro é: PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica.
São Paulo: Perspectiva, 2010. Mas se você não dispõe de muito
tempo para estudar, recomendamos a leitura do livro de Lúcia
Santaela: SANTAELLA, Lucia. O que é semiótica. São Paulo:
Brasiliense, 2005. (Coleção primeiros passos). Nesse pequeno
grande livro, você encontra um resumo e uma introdução singular
à leitura de Semiótica, especialmente a de Peirce.

24
Capítulo 1 Sistema de Signos

Atividade de Estudos:

1) Após este estudo teórico acerca da teoria Semiótica de Peirce,


estabeleça diferenças entre ícone, índice e símbolo.
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A Semiótica na União Soviética


Chamada de Semiótica Soviética, Russa ou da Europa
Chamada de
Oriental. Atualmente também chamada de Semiótica da Cultura.
Semiótica
Na segunda metade do século XIX, não havia uma disciplina ou
Soviética, Russa ou
teoria específica para estudar os signos. Já havia, porém, uma
da Europa Oriental.
consciência Semiótica entre alguns pensadores. Os primeiros, de
Atualmente
acordo com Santaella (2005), foram dois grandes filósofos: A. N.
também chamada
Viesse-lovski e A. A. Potiebniá.
de Semiótica da
Cultura.
Diz-nos Santaella (2005, p. 73-4, grifo da autora):

Começando pelos filósofos citados (Potiebniá e Viesse-lovski)


em cujas obras podem ser encontradas, já no século XIX,
algumas raízes das descobertas do estruturalismo linguístico
no século XX, chegamos ao lingüista N. I. Marr, que, no
começo deste nosso século, vinha desenvolvendo, segundo
nos informa B. Scheneiderman, ‘uma teoria estadial que ligava
intimamente a fase de desenvolvimento da língua com os
estádios de desenvolvimento da sociedade’.

Essa consciência semiótica, iniciada por esses dois autores, perdurou até
Stalin assumir o governo. O grupo que estudava esse assunto ficou conhecido
como Círculo Línguístico de Moscou. Oliveira (2009, p. 41) afirma que

25
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

O Círculo Linguístico de Moscou inspirou a criação do


Círculo Linguístico de Praga entre as décadas de 1920 e
1940. Em ambos, havia a predominância de estudos acerca
da linguagem verbal, com ênfase na análise sintática,
especilamente da poesia. Entretanto, já havia prenúncio da
possibilidade de estender os princípios da estruturação da
linguagem verbal para o estudo de outros códigos estéticos,
como a pintura, o teatro, o cinema e a arte popular.

Você percebe, caro estudante, que os estudos semióticos soviéticos


também adentraram as artes visuais, foco do nosso interesse? Pois bem, um dos
pensadores que se ocupou dessas pesquisas foi Roman Jakobson que, grosso
modo, falava de um “trânsito entre sistemas distintos, a partir de um modelo
comum, até então utilizado nos estudos das línguas naturais.” (OLIVEIRA, 2009,
p. 41).

Somente em 1950, foi fundado, em Moscou, o Instituto de


Somente em
Semiótica da URSS. Antes, o grupo de estudos ficou impossibilitado
1950, foi fundado,
de se reunir, pois o governo de Stalin desconfiava de cada grupo que
em Moscou,
se reunia. A partir de 1970, a entidade passou a ficar mais conhecida
o Instituto de
como o grupo que estuda a Semiótica da Cultura, pois tinha como
Semiótica da
objetivo “investigar os sistemas de signos sempre levando em conta
URSS.
seu respectivo contexto cultural.” (OLIVEIRA, 2009, p. 42).

A Semiótica da cultura está, atualmente, presente em


vários países. Se você quiser se aprofundar nos estudos da
Semiótica Soviética, leia o livro Semiótica russa, cuja referência
é: SCHNEIDERMANN, B. Semiótica russa. São Paulo:
Perspectiva, 1981.

A Concepção de Ferdinand de
Saussure
Outro pesquisador importante para os estudos semióticos é Ferdinand de
Saussure. De nacionalidade suíça e mais dedicado aos estudos da linguagem
verbal, esse pesquisador fez grandes contribuições à teoria dos signos. De uma
maneira geral, você verá que a abordagem de Saussure é bem diferente da
abordagem de Peirce.

26
Capítulo 1 Sistema de Signos

Dão-se vários nomes para as semióticas derivadas a partir deste


Por ser iniciada
autor. Por ser iniciada por Saussure, é conhecida como Semiótica
por Saussure,
Saussureana. Para diferenciá-la da Europa Oriental (Semiótica
é conhecida
Soviética), é chamada de Semiótica Ocidental; por ter vários estudiosos
como Semiótica
franceses, é dita Semiótica Francesa; também é conhecida como
Saussureana.
Semiótica Visual (por ter estudos “visuais” avançados na École
de Paris). Um dos seguidores dessa linha de pesquisa é Algirdas
J. Greimas, razão pela qual é chamada, também, de Semiótica
Greimasiana ou Discursiva.

Saussure tem suas bases teóricas na linguagem. Mesmo tendo


Para Saussure, a
estudado física e química nos primeiros anos de sua vida acadêmica,
linguagem é um
percebeu que seu caminho era outro. Assim, passou a dedicar-se ao
dos fundamentos
estudo da linguagem e criou a Linguística.
principais das
sociedades
Além de dedicar-se ao estudo de sinais, Saussure tinha a
humanas.
Linguística como a “matriz do comportamento e do pensamento dos
seres humanos, uma vez que considerava a linguagem a formatação
de atos, vontades, sentimentos, emoções e projetos [...]” (OLIVEIRA,
2009, p. 45). Em outras palavras, para Saussure, a linguagem é um dos
fundamentos principais das sociedades humanas.

Inicialmente chamada de Semiologia – estudo de todos os Inicialmente


sistemas de signos – a Semiótica Saussureana se baseia em dois chamada de
conceitos fundamentais: significante e significado. Esta teoria teve Semiologia –
vários seguidores que difundiram as ideias do criador, os quais também estudo de todos
fazeram algumas modificações, conforme seu interesse e ramo de os sistemas
atividade. de signos – a
Semiótica
Caro estudante, como o próximo capítulo tratará de linguagem Saussureana
verbal e não-verbal, será nele que centraremos os estudos da se baseia em
Semiótica de Saussure, bem como o aprofundamento dos conceitos de dois conceitos
significante e significado. Aqui, o objetivo era aprofundar os conceitos fundamentais:
de Peirce e mostrar, em linhas gerais, as outras duas correntes significante e
semióticas apontadas no início do capítulo. significado.

Algumas Considerações

Este capítulo, como havíamos mencionado no início, foi deveras teórico. Em
se tratando de um curso de arte e educação, talvez você tenha sentido falta de
mais imagens. Contudo, nos outros capítulos, esse recurso será mais utilizado.

27
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Resumidamente, vimos as origens filosóficas da teoria dos signos, os


conceitos de Semiótica e Semiologica, bem como as polêmicas que giraram em
torno de ambos os termos. Adentramos as teorias do filósofo Charles Sanders
Peirce e investigamos as três categorias que enquadram todos os fenômenos da
natureza e da cultura, a saber: a primeiridade, a secundidade e a terceiridade.
Estudamos, também, a inter-relação signo-objeto-interpretante. Finalmente,
ficamos sabendo que Peirce fez uma constelação de tipos possíveis de signos
(sempre triádicas, ou seja, numa combinação de três a três). Além disso,
sobrevoamos a Semiótica na União Soviética (também chamada de Semiótica
da Cultura) e, brevemente, iniciamos o estudo da concepção de Ferdinand de
Saussure.

Dessa forma, demos o ponta-pé inicial na leitura e na produção de sentidos


em artes visuais. No próximo capítulo, retomaremos as teorias de Saussure e
investigaremos as linguagens verbal e não-verbal.

Referências
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.

NÖTH, Winfried. Panorama da semiótica: de Platão a Peirce. São Paulo:


Annablume, 1995.

OLIVEIRA, Sandra Regina Ramalho e. Imagem também se lê. São Paulo:


Edições Rosari, 2009. (Coleção TextosDesign).

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2010.

SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2005. (Coleção


primeiros passos).

28
C APÍTULO 2
Linguagem Verbal e Não-Verbal

A partir da concepção do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

99 Conhecer aspectos da linguagem verbal e da não-verbal.

99 Estabelecer relações entre a linguagem verbal e a não-verbal.


Leitura e produção de sentidos em artes visuais

30
Capítulo 2 Linguagem Verbal e Não-Verbal

Contextualização
O ser humano, quando em convívio com outras pessoas, precisa se
comunicar. Ele desenvolveu, ao longo da história, uma variedade de formas de
comunicação, fazendo com que o entendimento entre os indivíduos acontecesse
de maneira mais fácil e rápida. A linguagem verbal foi uma delas. De fato, nos
comunicamos por meio da palavra, tanto da falada quanto da escrita. Estamos tão
envolvidos com esta maneira de nos expressarmos que se torna quase impossível
imaginar um mundo onde elas não existam.

Por outro lado, desenvolvemos, também, ao longo dos anos, signos não-
verbais. Em uma placa de trânsito, por exemplo, vemos um tipo de linguagem
que não utiliza palavras (com exceção de algumas). Você lida, caro estudante,
com tantos exemplos de comunicação não-verbal em sua vida, que, na maioria
das vezes, nem se dá conta disso. Passam-nos despercebidos. Você pega o
videogame e joga com seu irmão. Nesse ato, tão simples para algumas pessoas,
há a utilização da linguagem não-verbal (claro que se você falar com seu irmão
ou aparecer alguma palavra na tela do visor, você também estará empregando a
linguagem verbal). O jogo em si, porém, constitui um tipo de linguagem não-verbal.

No capítulo anterior, vimos que a Semiótica é a ciência que tem por finalidade
a investigação de todas as linguagens possíveis. Estudamos as teorias de Peirce
e o universo do sistema de signos.

Neste capítulo, investigaremos as teorias de Ferdinand de Saussure, que


desenvolveu a Linguística entre os séculos XIX e XX e que teve como objeto de
estudo a linguagem verbal humana. Em contraposição, veremos aspectos da
linguagem não-verbal tão presente em nossas vidas quanto o universo das palavras.

Entre a Linguagem Verbal e a Não-


Verbal
Você percebe, caro estudante, o quanto a nossa vida é regida pela linguagem?
É só observar que, para nós nos comunicarmos neste momento, utilizamos a
linguagem escrita. Quando você assiste à televisão ou participa de uma palestra,
escuta a palavra falada. Então, podemos dizer que uma das formas de linguagem
que utilizamos é a que emprega a palavra para que haja comunicação. Mas
está aí o limite da linguagem? Obviamente que não. Você já deve ter escutado
a expressão: “entendeu ou quer que eu desenhe?”. Nesse caso, verificamos que
o desenho também é uma forma de comunicarmos algo a alguém. O pintor, ao
pintar uma tela, também objetiva atingir o espectador e passar, com isso, uma

31
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

determinada mensagem. O músico, com suas composições e arranjos musicais,


emociona enamorados, intensifica o drama no cinema e aquieta um coração
despedaçado pela perda de um ente querido. Isto só para citar alguns exemplos
que encontramos no nosso cotidiano.

Adentremos, então, esse universo da linguagem. Grosso modo, podemos


dividir a linguagem em dois grandes grupos:

• linguagem verbal e
• linguagem não-verbal.

Aprofundaremos esses conceitos. Antes, porém, cumpre-nos distinguir


língua de linguagem. Saussure, que será mais estudado no decorrer deste
capítulo, ocupou-se do estudo da linguagem verbal. Um dos seus seguidores,
Roland Barthes, no livro Elementos de semiologia, afirma que “A língua é então,
praticamente, a linguagem menos a fala.” (BARTHES, 2006, p. 17). Contudo,
uma não existe sem a outra. Assim, língua e fala coexistem no processo de
comunicação. Outros elementos, neste processo, são os gestos e as imagens.

Ao falarmos da língua, estamos nos reportando à linguagem


Ao falarmos da
verbal. Este é o tipo de linguagem que podemos criar, modificar,
língua, estamos
transformar e reproduzir, para que possamos nos comunicar
nos reportando à
com os outros seres humanos. No ocidente, utilizamos o alfabeto
linguagem verbal. Este
para nos comunicar por meio da escrita. Esse código, criado e
é o tipo de linguagem
estabelecido a partir dos gregos, permite uma combinação extensa
que podemos criar,
de signos convencionais para a expressão de ideias humanas. São
modificar, transformar
exemplos de linguagem verbal: entrevistas, cartas, e-mail, texto
e reproduzir, para
narrativo, bilhetes, bate-papo na internet e jornal televisionado.
que possamos nos
Comunicamo-nos por meio da palavra escrita e pela fala, mas
comunicar com os
também por outros tipos de codificações como, por exemplo, os
outros seres humanos. ideogramas: linguagem utilizada pelos povos orientais.

Figura 7 - Exemplo de ideogramas chineses

Fonte: Disponível em:< http://oulunarkkitehtikilta.net/kalenteri/


32 ideogramas-chineses>. Acesso em: 1º jul. 2011.
Capítulo 2 Linguagem Verbal e Não-Verbal

Além da linguagem verbal, temos outro tipo que chamamos de linguagem


não-verbal. Santaella (2005, p. 12) explica que,

quando dizemos linguagem, queremos nos


referir a uma gama incrivelmente intrincada de
formas sociais de comunicação e de significação
que inclui a linguagem verbal articulada, mas
absorve também, inclusive a linguagem dos
surdos-mudos, o sistema codificado da moda, da Podemos dizer
culinária e tantos outros.
que a linguagem
não-verbal é
Aqui, Santaella (2005) aponta para a linguagem não-verbal.
aquela que
Grosso modo, podemos dizer que a linguagem não-verbal é aquela que
não emprega
não emprega palavras. Como exemplos, podemos citar: o desenho, as
palavras.
placas de trânsito, a pintura, a dança, a escultura e a cor.

Figura 8 - Exemplo de linguagem não-verbal: vestimenta

Fonte: Disponível em: <http://www.modanapassarela.


com.br/?p=5676>. Acesso em: 1º jul. 2011.

Você já deve ter assistido, em algum programa de televisão, a profissionais


dando dicas de como se vestir ou lido, em alguma revista de moda, a esse
respeito. Dizem, por exemplo, que usar roupas com listras horizontais faz com que
a pessoa fique mais “gorda”, ao passo que vestir roupas com listras no sentido
vertical faz com que emagreça. Não é (quase) unânime a afirmação de que usar
roupa preta deixa a pessoa mais “esbelta”? Pois bem, vemos que a cor comunica
a imagem de gordura ou magreza na moda.

33
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Figura 9 - Exemplo de linguagem não-verbal: dança

Fonte: Disponível em: <http://www.dicasdedanca.com.br/wp-content/


uploads/2010/09/dança-do-ventre-véu.jpg>. Acesso em: 1º jul. 2011.

Vemos a linguagem não-verbal em diversos setores do


Vemos a
conhecimento e de expressões humanas, como a moda e a dança.
linguagem
O semáforo também é um exemplo de linguagem não-verbal. Ao
não-verbal em
empregar esse tipo de sinal para a organização do trânsito, o homem
diversos setores
abre mão da palavra e utiliza outro meio de comunicação, no caso,
do conhecimento
as cores. Assim, aquele que teve um aprendizado sobre este sistema
e de expressões
de codificação saberá que, se o semáforo estiver com a luz acesa no
humanas, como a
vermelho, deverá parar o carro, se estiver verde, deverá avançar e, se
moda
estiver amarelo, deverá dirigir com atenção.
e a dança.
Essas observações permitem afirmar que o ser humano utiliza
dois tipos de linguagens: a verbal e a não-verbal. Para facilitar o
aprendizado, veja a figura a seguir.

34
Capítulo 2 Linguagem Verbal e Não-Verbal

Figura 10 - Organograma da ciência da linguagem (verbal x não-verbal)

Fonte: Elaborada pelo autor.

Compreendem a linguagem verbal: escrita, hieróglifos, pictogramas, fala,


ideogramas, logogramas e outros. Já, por outro lado, os desenhos, jogos,
músicas, pinturas, esculturas, danças, movimentos, cenografias, libras e cores
são exemplos de linguagem não-verbal.

Claro que não podemos fazer uma distinção tão separatista entre essas
duas linguagens. Isso porque há determinados signos que empregam as duas ao
mesmo tempo. Podemos chamar de linguagens mistas. Citamos, como exemplo,
a placa de trânsito, que emprega imagens e palavras ao mesmo tempo. Outro
exemplo é a pintura do artista pop Basquiat.

35
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Figura 11 - Exemplo de linguagem mista: placa de trânsito

Fonte: Disponível em: <http://turmadopedal.groupsite.com/discussion/topic/show/ 298989>.


Acesso em: 1º jul. 2011.

Figura 12 - Exemplo de linguagem mista: pintura

Fonte: Disponível em: <http://slamxhype.com/music/jean-


michel-basquiat/>. Acesso em: 1º jul. 2011.

A Linguística de Saussure
Após investigarmos a distinção entre linguagem verbal e não-verbal, a partir
de agora, aprofundaremos o estudo acerca do verbal. Um dos estudiosos que
mais mergulhou no universo deste tipo de linguagem foi Ferdinand de Saussure.

36
Capítulo 2 Linguagem Verbal e Não-Verbal

Leitura obrigatória para os estudantes e pesquisadores da linguística, sua


obra mais importante é Curso de lingüística geral, publicação póstuma, em 1916,
organizado por seus alunos Charles Bally e Albert Sechehaya a partir das aulas
do mestre. Essa obra traz elaborações teóricas que desenvolveram a linguística
como ciência e desencadearam, também, o surgimento do estruturalismo.

Ferdinand de Saussure estudou línguas europeias e publicou, aos vinte e


um anos de idade, a sua dissertação que tinha como tema o primitivo sistema
das vogais nas línguas indo-europeias. Após defender a tese sobre o uso do
caso genitivo em sânscrito, em Berlim, lecionou, em Paris, Sânscrito, Gótico,
Alto Alemão e também Filologia Indo-Europeia. De volta a Genebra, sua cidade
natal, lecionou Sânscrito e linguística histórica em geral. Em 1906, começou a
ensinar aquilo que o consagraria como o pai da linguística: realizou uma série de
conferências sobre linguística geral, cujo resultado culminou em modificar a visão
acerca do que hoje se entende por linguística.

Sânscrito é a língua na qual se encontram escritos os textos


de Vedanta. Pertence à grande família de línguas indo-europeias,
como o grego e o latim, de onde derivou a maior parte das línguas
ocidentais modernas. Possui uma estrutura bastante elaborada,
como indica seu próprio nome (sams - bem; krtam - feita) e baseia-se
num sistema de derivação no qual as palavras são formadas a partir
de um conjunto de cerca de 2.200 elementos básicos, chamados
raízes, seguindo regras muito bem estabelecidas.

FONTE: Disponível em: <http://www.vidyamandir.org.br/


sanscrito.htm> Acesso em: 1º jul. 2011).

Claro, caro estudante, que a linguística evoluiu muito durante os séculos XX e


XXI. Contudo, muito do que foi construído acerca dessa ciência partiu dos estudos
de Saussure, que já sabia dos limites de suas pesquisas. Entretanto, ainda hoje,
os estudiosos do assunto precisam recorrer continuamente aos conceitos e dicas
do mestre genebrino.

Linguística, segundo Saussure (2006, p. 7), é “a ciência que Linguística, segundo


se constitui em torno dos fatos da língua” e “passou por três fases Saussure (2006, p.
sucessivas antes de reconhecer qual é o seu verdadeiro e único 7), é “a ciência que
objeto”, a saber: Gramática, Filologia e Gramática Comparada. se constitui em torno
Sobre esta visão geral da história da linguística, não nos deteremos. dos fatos da língua”.

37
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

O importante é notar que, antes de a linguística se constituir como ciência, cujo


objeto é a língua, ela passou pelas três fases citadas anteriormente.

Importante: A Linguística é uma das partes da Semiótica ou


Semiologia. Lida essencialmente com a linguagem verbal.

No início deste capítulo, esboçamos um breve comentário em torno da língua.


Sendo um conceito muito importante nos estudos de Saussure, aprofundaremos
esta investigação.

RETOMANDO ROLAND BARTHES:

“A língua é então, praticamente, a linguagem menos a Fala: é,


ao mesmo tempo, uma instituição social e um sistema de valores.
Como instituição social, ela não é absolutamente um ato, escapa a
qualquer premeditação; é a parte social da linguagem; o indivíduo não
pode, sozinho, nem criá-la nem modificá-la. Trata-se essencialmente
de um contrato coletivo ao qual temos de submeter-nos em bloco se
quisermos comunicar; além disto, este produto social é autônomo, à
maneira de um jogo com as suas regras, pois só se pode manejá-lo
depois de uma aprendizagem. Como sistema de valores, a língua é
constituída por um pequeno número de elementos de que cada um é,
ao mesmo tempo, um vale-por e o termo de uma função mais ampla
onde se colocam, diferencialmente, outros valores correlativos; sob
o ponto de vista da língua, o signo é como uma moeda: esta vale
por certo bem que permite comprar, mas vale também com relação
a outras moedas, de valor mais forte ou mais fraco. O aspecto
institucional e o aspecto sistemático estão evidentemente ligados:
é porque a língua é um sistema de valores contratuais (em parte
arbitrários, ou, para ser mais exato, imotivados) que resiste às
modificações do indivíduo sozinho e que, consequentemente, é uma
instituição social.

Diante da língua, instituição e sistema, a Fala é essencialmente


um ato individual de seleção e atualização [...]. O aspecto
combinatório da Fala é evidentemente capital, pois implica que
a Fala se constitui pelo retorno de signos idênticos: é porque os

38
Capítulo 2 Linguagem Verbal e Não-Verbal

signos se repetem de um discurso a outro e num mesmo discurso


(embora combinados segundo a diversidade infinita das palavras)
que cada signo se torna um elemento da Língua; é porque a Fala
é essencialmente uma combinatória que corresponde a um ato
individual e não a uma criação pura.

[...] não há língua sem fala e não há fala fora da língua [...]. Só
podemos manejar uma fala quando a destacamos na língua; mas,
por outro lado, a língua só é possível a partir da fala: historicamente,
os fatos de fala precedem sempre os fatos de língua (é a fala que faz
a língua evoluir), e, geneticamente, a língua constitui-se no indivíduo
pela aprendizagem da fala que o envolve (não se ensina a gramática
e o vocabulário, isto é, a língua, de um modo geral, aos bebês). A
Língua é, em suma, o produto e o instrumento da Fala, ao mesmo
tempo: trata-se realmente, portanto, de uma verdadeira dialética”.

Fonte: BARTHES, Roland. Elementos de semiologia.


São Paulo: Cultrix, 2006.

Figura 13 - Exemplo de “língua”

Vimos que a
língua e a fala
Fonte: Disponível em: <http://martabolshaw.blogspot.com/2008/06/o-
coexistem e
incrvel-mundo-da-linguagem.html>. Acesso em: 1º jul. 2011.
que uma não
sobrevive sem a
Trouxe estas palavras de Barthes sobre a questão língua-fala,
outra. A língua se
pois é de fundamental importância nos estudos de Saussure. Vimos
aprende: ninguém
que a língua e a fala coexistem e que uma não sobrevive sem a outra.
consegue
A língua se aprende: ninguém consegue aprendê-la sem o auxílio do
aprendê-la sem o
outro. Neste processo de comunicação verbal, torna-se mister, então, a
auxílio do outro.
investigação acerca do signo em Saussure.

39
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

O signo linguístico não une uma coisa a uma palavra, mas uma coisa à
imagem acústica. Não é a imagem física do som, mas a impressão psíquica ou
imagem mental do som. Está confuso? Pois bem, vejamos isso melhor.

Para Saussure, signo é constituído de um significado e de um


O signo é
significante. Em outras palavras: o signo é composto por uma imagem
composto por
acústica (significante) e um conceito (significado). “O plano dos
uma imagem
significantes constitui o plano de expressão [forma] e o dos significados
acústica
o plano de conteúdo.” (BARTHES, 2006, p. 42).
(significante)
e um conceito
A imagem a seguir ajudará você a entender melhor estes
(significado).
conceitos.

Figura 14 - Significante versus significado

Fonte: Disponível em: <http://ideiabasica.blogspot.com/2010/09/


arbitrariedade-do-signo-dialogo-entre.html>. Acesso em: 1º jul. 2011.

Numa linguagem mais simplificada, imagem acústica ou significante é a


representação mental do som produzido pela fala. Assim, se dissermos “casa”, em
sua mente, formar-se-á uma imagem figurativa que fará com que você entenda o
que estamos falando.

Caro estudante, para um melhor aprofundamento na teoria


linguística de Saussure, recomendamos duas obras: SAUSSURE,
Ferdinand. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 2006
e BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. São Paulo:
Cultrix, 2006. Apear de Saussure ser a referência primeira deste
ramo do conhecimento, o livro de Barthes possui uma linguagem
mais fácil e rápida de entender.

40
Capítulo 2 Linguagem Verbal e Não-Verbal

Atividade de Estudos:

1) Explique, em linhas gerais, o que Saussure entende por signo.


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_____________________________________________________

A Linguagem Não-Verbal
Como seres humanos, não nos comunicamos somente por meio de palavras,
mas também por gestos, expressões faciais, expressões artísticas diversas e toda
crescente rede de signos não-verbais que continuamente invade nossas vidas.
A internet, com todo o aparato tecnológico computacional, lança signos a cada
instante. Não apenas isso: as distâncias estão sendo “encurtadas”, e a globalização
faz com que as distinções e singularidades fiquem cada vez menos acentuadas.

Rompem-se os cânones artísticos, e novas formas de “imagens” surgem


sucessivamente. A pintura, por exemplo, deixou de ser, com o advento da
fotografia, a representação do mundo. Após um período de desconstrução
da imagem, a pintura ultrapassou os limites da tela: surgiram, por exemplo, as
instalações e a pintura digital.

Você percebe, caro estudante, a grande variedade de signos não-


Estamos
verbais com que temos de lidar no dia a dia? Você liga o computador,
compartilhando
abre uma determinada página da internet e recebe uma avalanche de
linguagens
informações: gráficos, fotos, desenhos, jogos e imagens, com suas
quando sorrimos,
mais variadas cores e formas que invadem sua vida, sem, ao menos,
quando
ter tempo para aceitá-las ou não.
levantamos o
braço, quando
Corporalmente, sem recorrermos ao emprego de palavras,
levantamos o
estamos o tempo todo nos comunicando. Estamos compartilhando
dedo em sinal de
linguagens quando sorrimos, quando levantamos o braço, quando
positivo, quando
levantamos o dedo em sinal de positivo, quando abrimos os braços,
abrimos os
quando movimentamos os olhos, etc. Note que alguns dos gestos
braços, quando
que utilizamos no cotidiano têm diferentes significados conforme
movimentamos
o povo que os utilizam. Um desses exemplos é o “ok” norte-americano
os olhos, etc.
que, no Brasil, é empregado quando querendo “xingar” alguém.

41
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Figura 15 - Exemplo de linguagem não-verbal: gesto

Fonte: Disponível em: <http://www.contraovento.com.


br/?attachment_id=3857>. Acesso em: 1º jul. 2011.

Há livros específicos sobre o significado psicológico dos gestos humanos.


O psicólogo francês, que vive no Brasil desde 1948, Pierre Weil, por exemplo,
escreveu um livro chamado O corpo fala. Dessa forma, tornou-se uma referência
neste assunto. Em sua obra, analisa gestos, como o cruzar de braços e o
significado deste na comunicação entre as pessoas.

Para saber mais sobre a vida e a obra de Pierre Weil, visite o


site <http://www.pierreweil.pro.br/Brazil.htm>.

Uma das formas mais explícitas que comunicamos com o corpo é quando
movemos os músculos e pormenores do rosto. As expressões faciais constituem o
meio mais fácil de criarmos simpatia ou antipatia ao encontrarmos alguém.

Figura 16 - Exemplo de linguagem não-verbal: expressão facial/sorriso

Fonte: Disponível em: <http://eternamente-princesa.blogspot.


com/2010_04_01_archive.html> Acesso em: 1º jul. 2011.

Também comunicamos quando vestimos uma determinada roupa, com


uma estampa escolhida por nós, de cor vibrante ou neutra que selecionamos,

42
Capítulo 2 Linguagem Verbal e Não-Verbal

ou indicada por um consultor de moda, e acessórios mais discretos ou mais


marcantes conforme nossa disposição do momento.

Vemos, então, o quanto a maneira como somos, como agimos e como nos
vestimos diz algo a nosso respeito às outras pessoas.

Recentemente, no Brasil, os cursos universitários vêm implantando, em


suas grades curriculares, especialmente de licenciaturas, a disciplina de Língua
Brasileira de Sinais (LIBRAS), como forma de melhorar a comunicação entre
professores e alunos e inserir a comunidade surda no convívio social e escolar de
forma mais fácil e eficiente.

Figura 17 - Exemplo de linguagem não-verbal: LIBRAS

Fonte: Disponível em: <http://www.smarcos.net/noticias/282-lingua-


brasileira-de-sinais-libras-na-usm.html>. Acesso em: 1º jul. 2011.

Constantemente, utilizamos a linguagem verbal e a não-verbal em nosso


dia a dia. O estudo sobre a não-verbal, que brevemente vimos neste capítulo,
será aprofundado no capítulo seguinte, mais especificamente no que tange à
leitura de imagem.

Atividade de Estudos:

1) Comente, brevemente, o que você entende por linguagem não-


verbal.
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43
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

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Algumas Considerações

Neste capítulo, tivemos a oportunidade de estudar aspectos importantes
da linguagem verbal e da não-verbal. Por verbal, grosso modo, entendemos as
linguagens que fazem uso de palavras e, por não-verbal, as que não utilizam
palavras.

Aprofundamos nosso conhecimento acerca da linguagem verbal por meio da


linguística de Ferdinand de Saussure. Alguns conceitos são considerados centrais
em sua doutrina dos signos, como, por exemplo, o de língua e o de fala. Além
disso, o signo se constitui de duas partes essenciais: o significante e o significado,
ou seja, de acordo com Saussure, o signo é composto por uma imagem acústica
(significante) e um conceito (significado).

Vimos que não nos comunicamos somente por meio de palavras, mas
também por meio de gestos, de expressões faciais, da maneira como nos
vestimos e agimos, bem como dos acessórios com os quais nos enfeitamos ou
carregamos no dia a dia.

Diante disso, investigamos os universos verbais e não-verbais da linguagem.


Estes conhecimentos são a base para começarmos a pensar a leitura de imagens
e a produção de sentidos que as obras suscitam em nós.

Referências
BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 2006.

SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2005. (Coleção


primeiros passos).

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 2006.

44
C APÍTULO 3
Introdução à Leitura da Imagem

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

99 Compreender a maneira como a imagem comunica e transmite mensagens.

99 Fazer uma leitura consciente da imagem artística.

99 Refletir sobre as diferentes possibilidades de leitura de imagem em sala de


aula. (leitura formal, descritiva, interpretativa e contextualizada).
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

46
Capítulo 3 Introdução à Leitura da Imagem

Contextualização
Por vezes, em exposições de obras de arte contemporânea, vemos figuras
disformes, distorcidas, que ofuscam e embaralham nosso olhar. Causam-nos
incômodos. Como podemos apreciá-las se, ao olhar para elas, a sensação que
temos é de repulsa e de desagrado? O observador contemporâneo fica, quase
sempre, perdido quando a obra ultrapassa os limites cristalizados pela cultura
clássica. O que devemos fazer nesse caso? Quando não é a representação
de cenas tal como a fotografia o faz, parece que precisamos ler algum texto de
uma pessoa especializada no assunto, ou mesmo do próprio artista, para poder
entender a obra, ao menos em parte.

Quando contemplamos, por outro lado, uma obra de arte clássica


renascentista, por exemplo, ao visitar o museu do Louvre, na França, ficamos
extasiados e perplexos, tamanha a eficiência no manejo das técnicas utilizadas
pelos grandes mestres. Diante de tais obras, nosso olhar flui com naturalidade.

Vimos nascer, no final do século XIX, uma nova forma de fazer arte. O advento
da fotografia propiciou aos pintores uma mudança significativa na elaboração das
obras. Mas como ler tais obras? Como devemos nos comportar diante de uma arte
que não representa mais o visível? De fato, é preciso uma reeducação do olhar. É
preciso que aprendamos alguns elementos e técnicas básicas das manifestações
artísticas, especialmente das modernas e contemporâneas. NesSas, o nosso
olhar se modifica, se estranha, interage, participa.

É nesta perspectiva que este capítulo começará com a leitura de uma obra de
arte moderna, do pintor francês Henri Matisse. Depois, passamos pelo exemplo
de uma pintura brasileira de Cândido Portinari, também pela escultura Monumento
às Bandeiras, do artista paulista Vitor Brecheret, e, finalmente, culminamos com
uma análise semiótica, realizada, a partir de uma oficina de arte contemporânea,
com alguns alunos pela arte-educadora gaúcha Patriciane Born.

Matisse e o Vermelho Intenso


A professora e especialista em Semiótica Peirceana no Brasil, Lúcia
Santaella, em seu livro Semiótica aplicada, mostra alguns exemplos de como
algumas imagens podem ser analisadas a partir da Semiótica de Peirce. Uma
das obras analisadas, e retomada aqui para exemplificação, é Interior vermelho,
natureza-morta sobre mesa azul, do pintor fauvista Henri Matisse, de 1947.

47
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Figura 18 - Interior vermelho, natureza-morta sobre mesa azul, 1947, Henri Matisse

Fonte: Disponível em: <http://www.passeiweb.com/saiba_mais/


arte_cultura/galeria/open_art/1155>. Acesso em: 5 jul. 2011.

Em primeiro lugar, já caminhando na direção da teoria de Peirce, Santaella


(2002, p. 86) pede ao leitor que tenha uma experiência fenomenológica com a
obra, ou seja, devemos “abrir os olhos do espírito e olhar para a pintura” com
nenhum juízo de valor ou conceitos previamente formados.

De acordo com Santaella (2002), são três as fases dessa experiência:

• Disponibilidade contemplativa: devemos olhar a obra com singeleza e


candidez, deixando-nos impregnar pelas cores, linhas e formas, deixando os
nossos sentidos sentirem a obra.

• Observação atenta da comunicabilidade da pintura: estamos, aqui e agora,


diante de algo singular e único.

• Generalização do específico dentro da classe a que pertence: observar a


classe de pinturas à qual pertence a obra.

Depois dessa experiência, por mais provocativa e confusa que possa ser, é
que a análise deverá ser iniciada.

A pintura é um signo, pois “é algo que representa algo, sendo capaz de


produzir efeitos interpretativos em mentes reais ou potenciais.” (SANTAELLA,
2002, p. 88). Isso é evidente e já o sabemos.

O primeiro elemento da análise é a relação do signo consigo mesmo: aquilo


que Peirce chamou de quali-signo, sin-signo e legi-signo. Assim, para vermos

48
Capítulo 3 Introdução à Leitura da Imagem

o quali-signo (qualidade sígnica imediata) da obra de Matisse, devemos ficar


“no plano puramente sensório e sensível, como uma criança que ainda não é
capaz de reconhecer figuras.” (SANTAELLA, 2002, p. 88). Observamos, então,
um vermelho chapado, puro e intenso: vermelhos em destaque, mas também
amarelos, azuis e verde que se complementam. Linhas verticais, horizontais, em
ziguezague e círculos compõem a forma e dão magnitude à obra.

O sin-signo (caráter de existência) está no fato de que o quadro existe como


quadro. Aqui, Santaella (2002) nos adverte de que, geralmente, nesse caso
específico, também estamos diante de uma reprodução da obra, e não da obra
em si. Assim, em vez de estamos diante de uma pintura, estamos diante de uma
fotografia da pintura. Esse fato modifica, em parte, os elementos constitutivos
da obra. A tonalidade das cores, o tamanho do original versus o tamanho da
reprodução, textura e lugar que ocupa (geralmente museu), por exemplo.

O legi-signo (lei) nos diz que a obra de Matisse pertence à classe das
pinturas, mais especificamente das pinturas a óleo. Também pertence à classe
das pinturas modernas do gênero fauvista.

Fovismo ou fauvismo (do francês les fauves, “as feras”,


como foram chamados os pintores não seguidores do cânone
impressionista, vigente na época) é uma corrente artística do início
do século XX, que se desenvolveu, sobretudo, entre 1905 e 1907.
Associado à busca da máxima expressão pictórica, o estilo começou
em 1901, mas só foi denominado e reconhecido como um movimento
artístico em 1905. O fovismo tem como características [...] marcantes
a simplificação das formas de pelos, o primado das cores e uma
elevada redução do nível de graduação das cores utilizadas nas
obras. Os seus temas eram leves, retratando emoções e a alegria de
viver e não tendo intenção crítica.

A cor passou a ser utilizada para delimitar planos, criando a


perspectiva e modelando o volume. Tornou-se, também, totalmente
independente do real, já que não era importante a concordância
das cores com o objeto representado, e sendo responsável pela
expressividade das obras. (Fonte: Disponível em: <http://artn.
highforum.net/t532-fauvismo> Acesso em: 10 jul. 2011).

49
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Após apresentar esses elementos básicos da obra, Santaella


Apesar de o
(2002) entra na análise da obra propriamente dita. Atenta para o fato de
quadro trazer
que a pintura apresenta imagens ambíguas, como, por exemplo, a porta
uma reprodução
também poder ser uma janela, apenas acentuada pelo fato de as linhas
de um interior de
em ziguezague darem continuidade ao chão e do círculo amarelo, que
um ambiente, a
sinaliza, possivelmente, um quadro colocado à esquerda. Apesar de o
obra é retratada
quadro trazer uma reprodução de um interior de um ambiente, a obra é
de maneira
retratada de maneira moderna, cujos padrões pictóricos são realizados
moderna, cujos
singularmente, de acordo com o estilo de Matisse. Isso deve ser levado
padrões pictóricos
em conta, pois, quanto mais o interpretante souber da obra, do estilo de
são realizados
Matisse e, claro, dependendo “especialmente do repertório cultural que
singularmente,
o intérprete internalizou, alguns significados simbólicos se atualizarão,
de acordo com o
outros não.” (SANTAELLA, 2002, p. 93). Por consequência, a obra terá
estilo
mais significações para o interpretante que tiver mais conhecimento
de Matisse.
sobre o contexto da obra.

Da relação do signo com o seu objeto, a obra assim é composta:

• Ícone: um tema de interior com vaso pintado à maneira de Matisse e que


apresenta imagens ambíguas.

• Índice: referencialidade das imagens indicada por Matisse. Há, na obra, um


equilíbrio entre a ambiguidade da “referencialidade indicial” e da icônica.

• Simbólico: padrões de pintura moderna concernentes à arte moderna, em


específico, ao fauvismo.

Parece difícil entender isso, não?! De fato, é um pouco, mas não precisamos,
no momento, entender a fundo isso. Com o tempo e com estudos, você pode
entender esse assunto de forma mais direta e eficaz. Em seguida, a autora mostra
os efeitos interpretativos da obra. Nesse caso, apresenta os níveis do interpretante.

Sobre este aspecto, Santaella (2002) exprime que o primeiro


Em um
nível é o imediato, aquele em que a predominância é o sensório, pois
conhecimento
é a primeira impressão que ocorre no encontro com a obra. Assim,
sobre a arte
as cores fortes e os traços intensos provocam-lhe determinadas
moderna e sobre
reações e sensações. Em seguida, determinadas emoções são
detalhes da
acionadas: alegria, leveza, flutuação... Outros tipos de interpretantes
pintura fauvista,
são caracterizados, como o dinâmico energético, vontade de entrar
um interpretante
no ambiente; e o lógico, que depende dos conhecimentos culturais e
poderá ficar
históricos que possui. Sem um conhecimento sobre a arte moderna
apenas no nível
e sobre detalhes da pintura fauvista, um interpretante poderá ficar
emocional.
apenas no nível emocional. Por fim, Santaella (2002, p. 97), fala do

50
Capítulo 3 Introdução à Leitura da Imagem

interpretante final (em devir): “toda a admiração e gratificação ao olhar que essa
pintura ainda poderá despertar no futuro”.

Enterro na Rede
Enterro na rede é uma das obras da série Os retirantes, pintadas em 1944,
pelo artista brasileiro Cândido Portinari. A professora Sandra Regina Ramalho
e Oliveira, da Universidade Estadual de Santa Catarina, em seu livro Imagem
também se lê, faz uma análise dessa obra, que poderíamos aproximar de um
segmento de teoria semiótica que deriva daquela iniciada por Saussure.

Figura 19 - Enterro na rede, 1944, Cândido Portinari

Fonte: Disponível em: <http://www.casadeportinari.com.br/


cronologia/enterro.htm>. Acesso em: 5 jul. 2011.

Com o título da análise Enterro sem caixão, a autora começa por indagar
“o que você vê?”; depois, sugere: “observe-se, primeiramente, um eixo vertical;
e duas diagonais que lhe cortam em seguida, os elementos constitutivos.”
(OLIVEIRA, 2009, p. 69). Para mostrar como os elementos constitutivos estão
estruturados na obra, apresenta um esquema visual por meio de um croqui
contento os traços de contorno da obra. Diz a autora: “neste esquema são
destacados um a um os planos de profundidade propostos, diferenciação que é
feita por meio do uso de linhas e cores específicas para contornar e destacar a
estrutura de cada um deles.” (OLIVEIRA, 2009, p. 69).

51
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Figura 20 - Esquema visual da obra Enterro na rede

Fonte: Oliveira (2009, p. 116).

O esquema é uma maneira que podemos estabelecer na análise


Olhando a
de obras para facilitar nossa inserção no contexto estrutural em que ela
imagem, temos:
foi feita. Vemos, então, no centro da composição, uma mulher ajoelhada
no primeiro plano,
e de costas para o espectador. Atente para a posição dos pés, em
em destaque, os
tamanho destacado, acentuando a posição de oração e olhando para
pés da mulher
o centro da obra onde está o foco central da obra: o defunto. Observe
ajoelhada; no
que essa mulher, em combinação com o lençol usado na cena, forma
segundo, a
um grande triângulo central na pintura. Outros ângulos são vistos
própria mulher
quando percorremos nosso olhar pelas vestimentas e pela posição das
de joelhos; no
figuras. O que é importante ressaltar é que “o ângulo formado pelos
terceiro, dois
braços dessa mulher remete o olhar para seu vértice, no tronco do
“carregadores”
corpo dela mesma, o qual oculta o centro da rede, lugar onde está o
masculinos,
morto” (OLIVEIRA, 2009, p. 71).
formando um
quadrado ao
Olhando a imagem, temos: no primeiro plano, em destaque, os
redor da cena;
pés da mulher ajoelhada; no segundo, a própria mulher de joelhos;
no quarto, uma
no terceiro, dois “carregadores” masculinos, formando um quadrado
mulher agachada
ao redor da cena; no quarto, uma mulher agachada à direita; e, no
à direita; e, no
quinto, o fundo do quadro. Toda a obra é formada por diversas figuras
quinto, o fundo do
geométricas e ângulos em destaque, como o triângulo que se constrói
quadro.
com o andar dos dois carregadores e as linhas em ângulo acentuado no
braço do carregador da direita. Não apenas linhas angulosas compõem
a cena, mas também algumas linhas semicirculares e sinuosas.
O todo da obra
apresenta, em
Com relação aos valores cromáticos, a cena é construída, em sua
sua grande
maior parte, em tons acinzentados que remetem ao tema da obra: o
maioria, uma
enterro. Mesmo nos elementos pintados com outras cores (chão de
composição
um alaranjado opaco, por exemplo), o todo da obra apresenta, em sua
monocromática.
grande maioria, uma composição monocromática. O que se destaca é

52
Capítulo 3 Introdução à Leitura da Imagem

o contorno forte em preto. “Esse preto, especialmente nos músculos expostos e


nas dobras das roupas, funciona também para dar profundidade, pois é sombra, e
para compor a textura.” (OLIVEIRA, 2009, p. 73). As cores são usadas de forma a
caracterizar a cena triste do Nordeste, tão massacrada pela miséria.

A autora chama atenção para o elemento plástico-chave da obra: o ângulo.


Sobre isso, afirma:

O elemento plástico-chave da tela é o ângulo, que presentifica


uma cunha, objeto cortante, ou uma seta ou ponta de flecha. O
ângulo pode ser também considerado uma figura incompleta,
imperfeita, que pede o que falta, o que não há. O ângulo
também pode ser visto como uma presentificação de boca ou
receptáculo. (OLIVEIRA, 2009, p. 75).

Você considera essa forma de interpretação interessante? Pois bem, segundo


a autora, isso leva ao ponto central: “adotando-se esse modo de olhar, observa-
se a inter-relação entre expressão, no nível da manifestação, e significação,
no nível do conteúdo.” (OLIVEIRA, 2009, p. 75). Assim, outros elementos são
analisados dentro desse contexto: os pés descalços simbolizando a pobreza; a
posição de joelhos e de costas da mulher central indicando que ela possa ser a
mãe do defunto ou sua esposa; a mão-caveira construída de uma forma ambígua
de mão e de caveira do carregador da esquerda, trazendo à tona a questão da
mortalidade; a outra mão, estendida sobre o corpo na vertical, mostra a terra,
a realidade e destino dos retirantes; a rede que carrega o defunto, em formato
triangular, pode ser associada à cova ou buraco onde o corpo é enterrado.

A professora continua apontando elementos importantes na construção da


imagem, em seus mais diversos formatos, cujas significações se desdobram ante
a cena do enterro, sugerido pelo pano pendurado, que suporta um conteúdo.
“O conteúdo não se vê, mas se relacionarmos o título da obra à gestualidade
das mulheres presentes na cena (ambas de joelhos, uma chorando e a outra
com braços abertos, dirigidos ao alto), deduz-se que é um defunto.” (OLIVEIRA,
2009, p. 79).

Na cena, as mulheres ajoelhadas estão demonstrando Sendo hábito


sentimentos; os homens, por sua vez, de pé, não demonstram específico de uma
sentimentos, não parecem alegres nem tristes. região brasileira
castigada pela
Sendo hábito específico de uma região brasileira castigada pela miséria, a obra
miséria, a obra Enterro na rede só é, de fato, entendida após lermos Enterro na rede
o seu título. Ao sabermos do título, não nos restam dúvidas sobre o só é, de fato,
conteúdo sugerido no volume dentro do lençol. É nesse sentido que entendida após
vemos a relevância entre a expressão e o conteúdo. lermos o seu título.

53
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Para finalizar essa análise, escutemos as palavras de Oliveira (2009, p. 81):

Vale dizer que, embora esse texto pictórico traga todo um


conjunto de significados em si, passível de leitura em qualquer
contexto sociocultural, a apreciação cresce em densidade se
se dispuser a conhecer um pouco mais sobre o tema, o que,
neste caso, é favorecido pelo texto verbal que, sendo o título
da obra, com o texto pictórico interage.

Atividade de Estudos:

1) Explique, de maneira breve, a sua impressão sobre a obra


Enterro na rede, de Cândido Portinari, mesclando com alguns
apontamentos semióticos feitos por Sandra Ramalho e Oliveira.
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Escultura: Monumento às Bandeiras


Da leitura de pinturas, já vimos dois exemplos. Agora, veremos uma análise
(breve) da escultura Monumento às bandeiras, de Vitor Brecheret, inaugurada
em 1953, no parque Ibirapuera, em São Paulo. Conhecida popularmente como
Empurra-Empurra e Deixa-Que-Eu-Empurro, o monumento é analisado por
Antonio Vicente Pietroforte, no livro Semiótica visual, em contraposição com uma
escultura, souvenir chamado Retirantes, do artesão nordestino Vitalino Ferreira
dos Santos. Aqui, em específico, trataremos da obra de Brecheret, para não tornar
nossa análise demasiado longa.

54
Capítulo 3 Introdução à Leitura da Imagem

Figura 21 - Monumento às bandeiras, 1953, Vitor Brecheret

Fonte: Disponível em: <http://www.sampa.art.br/historia/


monumentoasbandeiras/>. Acesso em: 5 jul. 2011.

Pietroforte (2010), no capítulo O caminho dos homens, faz a análise vinculada


à teoria da significação proposta por Greimas. O objeto analisado: uma escultura
de 50 metros de comprimento, 16 metros de largura e 10 metros de altura, que
levou 33 anos para ser construída.

Mas você sabe qual o tema dessa escultura? Em linhas gerais,

O Monumento às Bandeiras trata de um processo de


expansão de território empregado no Brasil durante o
período colonial. Ao lado das Entradas, as Bandeiras eram
operações de reconhecimento de terras não exploradas
pela metrópole portuguesa. Buscando riquezas naturais,
como ouro e pedras preciosas, o bandeirante era também o
porta-voz da civilização européia dominando o novo mundo.
Entradas e Bandeiras fazem parte de um projeto que já
estava anunciado na carta de Pero Vaz de Caminha e que
diz respeito ao processo de exploração e aculturação das
colônias pelas metrópoles, praticado durante a idade média.
(PIETROFORTE, 2010, p. 125)

O autor da análise mostra que a cultura do Brasil era considerada em estado


selvagem e que a europeia representava a cultura civilizada; afinal, Portugal era
governada pela Monarquia e pela Igreja. Desse modo, ao elaborar o Monumento
às bandeiras, Brecheret tinha isso em mente. Em outras palavras: o colonizador
negava a natureza para afirmar e iniciar uma “cultura civilizada”.

De acordo com Pietroforte (2010, p. 125), estando colocados enfileirados,


numa determinada ordem, “os bandeirantes caminham da anterioridade para a
posteridade”, partindo da natureza, passando pela não-natureza e culminando
na cultura. É a partir disso que o autor declara: “Pode-se verificar, portanto, uma
relação semi-simbólica: a anterioridade coincide com a natureza e a posteridade,
com a cultura.” (PIETROFORTE, 2010, p. 125).

55
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Esse plano do conteúdo, alcançado através do tempo histórico


O monumento
e do espaço geográfico das Entradas e Bandeiras, não é próprio da
pretende, em
substância do plano da expressão. O monumento pretende, em seu
seu texto,
texto, homenagear as realizações das Entradas e Bandeiras. “Em
homenagear
princípio, o tamanho, como substância, está fora das considerações
as realizações
semióticas, restritas à forma da expressão. No entanto, quando o plano
das Entradas e
de expressão é manifestado em uma substância, seu tamanho pode
Bandeiras.
interferir na enunciação.” (PIETROFORTE, 2010, p. 127). Em outras
palavras, o volume físico da escultura pertence ao plano da expressão.
Logo, a escultura física representa o plano da expressão, enquanto que
os significados representam o plano do conteúdo.

Atividade de Estudos:

1) Na análise semiótica do Monumento às bandeiras, feita por


Pietroforte, qual é o plano de conteúdo da obra?
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Leitura de Imagens em Sala de Aula

Se você fez a disciplina de Arte e Ludicidade na Educação


Infantil você deve ter estudado as questões da análise de obras de
arte na sala de aula que abordam questões do brincar, nesta seção,
iremos um pouco além dessa concepção para compreender as obras
de arte de forma geral e como poderemos trabalhar isso em sala de

56
Capítulo 3 Introdução à Leitura da Imagem

aula, para instigar os alunos desde o início da formação acadêmica.


Vamos lá!!!

Cremos não ser muito dificil falar de leitura de imagens para pessoas que
viajam, que frequentam museus e leem constantemente livros de arte, tendo, com
isso, um aprendizado mínimo satisfatório para a análise de imagens. Pessoas que
já leram Vidas secas, de Graciliano Ramos, e que conhecem o Nordeste brasileiro,
dispõem de mais recursos culturais para uma boa leitura da obra Enterro na rede,
de Portinari, que vimos no decorrer deste capítulo, do que um leigo no assunto.

No entanto, se somos professores e lecionamos em escolas “carentes”, cujos


alunos não tiveram uma educação de base mínima e, portanto, não conhecem a
história da arte, sequer viram algumas obras famosas, de artistas conceituados,
como falaremos de leitura de imagem ou analisaremos determinadas obras? No
início, ficamos sem saber o que fazer e por onde começar. Contudo, é possível
fazer alguns avanços nesse sentido.

O primeiro ponto é que todos pertencem à raça humana, vivem em


determinada cultura, mesmo que não a dita “civilizada”, todos veem diversas
imagens diariamente. Outro fato é que todos possuem um corpo que responde
a estímulos e é possuidor de emoções. Esses são os primeiros pontos e os mais
importantes. A partir disso, tudo é “lucro”, como dizem por aí.

Não devemos, porém, nos contentar com isso. Nosso objetivo


Nosso objetivo é
é fazer um treino do olhar e aprender algumas técnicas e elementos
fazer um treino do
para levar nosso educando a saber fazer uma leitura emocional e
olhar e aprender
racional das obras de arte. Claro que esse é um aprendizado para toda
algumas técnicas
a vida: nunca encontraremos o cume desse conhecimento. Afinal, as
e elementos
significações que a obra de arte suscita em nós desdobram-se a cada
para levar nosso
nova retomada da obra.
educando a
saber fazer uma
As escolas e os professores de arte estão cada vez mais abrindo
leitura emocional
mão dos conceitos e formas utilizados pelos norte-americanos e pelos
e racional das
europeus e valorizando a cultura da região ou país. Está havendo um
obras de arte.
equilíbrio entre a arte como manifestação cultural e aquela encontrada
nos grandes livros de história da arte, apesar de esses trazerem, quase
em seu todo, imagens e alusão aos artistas estrangeiros ou alguns
ícones nacionais, como Portinari, Di Cavalcante e Tarsila do Amaral.
Trata-se de afirmar que essa mudança está acontecendo por meio dos
professores. Você não acha isso muito bom?

57
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Importante: A Lei de Diretrizes e Bases (LDB), Lei nº 9.394,


de 20 de dezembro de 1996, propõe que o ensino da arte, e em
especial em suas expressões regionais, obrigatoriamente, em sua
grade curricular nos vários níveis da educação básica, promovendo o
desenvolvimento cultural dos educandos. (BRASIL, 1996).

Uma pesquisadora de arte-educação que vem ganhando grande popularidade


no Brasil é Ana Mae Barbosa. Tendo editado várias obras sobre esse tema,
a autora fala da importância de ensinar os alunos a lerem imagens. Para ela,
“reconhecer que o conhecimento da imagem é de fundamental importância não só
para o desenvolvimento da subjetividade, mas também para o desenvolvimento
profissional.” (BARBOSA, 2008, p. 20).

Sobre isso, afirma Amsberg:

As tendências do ensino da arte na contemporaneidade


concentram-se no uso da imagem como fonte de análise e
produção de novos conhecimentos e leitura contextualizada da
realidade do aluno, para o aluno e com o aluno como agente e
não mais expectador apenas. (AMSBERG, 2010).

Assim, nos dias atuais, o aluno-espectador não olha uma pintura e, por meio
do seu sentimento, faz um juízo de valor dizendo que a obra é ou não bela. Ele
deve, além de ter uma experiência fenomenológica com a obra, aprender a fazer
uma leitura formal, descritiva, interpretativa e contextualizada. É por esse caminho
que seguiremos o restante do capítulo.

No livro A imagem do ensino da arte, Ana Mae Barbosa expõe um método de


análise de imagens. A proposta é baseada em outro autor. Vejamos que o ela nos
tem a dizer:

Para Feldman, aprender a linguagem da arte implica


desenvolver técnica, crítica e criação e, portanto, as dimensões
sociais, culturais, criativas, psicológicas, antropológicas e
históricas do homem. O desenvolvimento crítico para a arte
é o núcleo fundamental da sua teoria. Para ele, a capacidade
crítica se desenvolve através do ato de ver, associado a
princípios estéticos, éticos e históricos, ao longo de quatro
processos, distinguíveis, mas interligados: prestar atenção ao
que vê, descrição; observar o comportamento do que se vê,
análise; dar significado à obra de arte, interpretação; decidir
acerca do valor de um objeto de arte, julgamento. (BARBOSA,
1980, p. 45).

58
Capítulo 3 Introdução à Leitura da Imagem

Prossegue a autora lendo Feldman:

Demonstra o quanto se pode entender o mundo, entender uma


obra de arte do ponto de vista da relação entre os elementos
visuais como linha, forma, claro-escuro, cor, unidade,
repetição, equilíbrio, proporção, e do ponto de vista das
características de construção com predominâncias diversas
como agudeza, ordenação, emoção, fantasia, e também
tendo em vista comportamentos apreciativos como empatia,
distanciamento ou fusão com a obra de arte. (BARBOSA,
2008, p. 46).

Feldman propõe o método comparativo, que consiste em fazer uma leitura


da obra de arte, sempre colocando duas (ou mais) obras “em relação” para que o
aluno possa tirar conclusões sobre problemas ou situações visuais delas.

A partir desses elementos preliminares, Camila Göttems, para uma melhor


compreensão deste método, apresenta o esquema a seguir.

Figura 22 - Esquema do método comparativo de análise


de obras de artes segundo Feldman

Fonte: Disponível em: <http://provocandolhar.blogspot.com/2008/11/


metodo-comparativo-de-anlise-de-obras-de.html>. Acesso em: 1° jul. 2011.

59
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Caro aluno, olhando atentamente o esquema, você terá condições de


entender o método de Feldman. Por isso, creio não ser necessário elencar
elementos e conceitos a partir dele. Faça esse exercício você mesmo! Por meio
desse exercitar, sua aprendizagem pode ser maior.

Vale lembrar, antes de finalizar este capítulo, que os professores


“trabalham” com imagens de obras de arte em sala de aula. Isto, é
claro, ajuda na visualização do que está sendo estudado e permite,
também, ter acesso a uma história da arte. Contudo, frisamos que
é importante o contato direto com a obra por meio de visitas em
espaços de exposições, como museus e galerias de arte.

Para verificar exemplos de aplicabilidade desse método,


leia o livro: BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos. A imagem
no ensino da arte: anos 1980 e novos tempos. São Paulo:
Perspectiva, 2009.

Outro livro que apresenta a importância da leitura de


imagens em sala de aula e que traz diferentes possibilidades
de leitura e abordagem de análise de obras de arte é: BUORO,
Anamelia Bueno. Olhos que pintam: a leitura da imagem e o
ensino da arte. São Paulo: EDUC/FAPESP/Cortez, 2003.

O que pretendemos, agora, é mostrar um exemplo de aplicabilidade de leitura


de imagens e produção de sentidos em sala de aula. Para tal, alicerçamo-nos no
trabalho de Patriciane Born, que fez um estudo com adolescentes em uma escola
municipal da periferia de Sapucaia do Sul, RS. Essa pesquisa foi seu trabalho
de conclusão de curso de Especialização em Pedagogia da Arte, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (URGS).

Com o título Oficina de arte contemporânea: leitura e produção de sentidos


com adolescentes, seu trabalho consistiu em reunir um grupo de 12 adolescentes,
alunos que, por meio de entrevistas, anotações, exibição de documentários
e outras atividades ligadas à leitura de imagens e interação com a arte
contemporânea, puderam se expressar por meio de reflexões, cuja produção de

60
Capítulo 3 Introdução à Leitura da Imagem

sentidos foi sendo aguçada com o contato com as obras. No resumo do trabalho
Born (2008), encontramos:

As conclusões indicam que os efeitos de sentidos produzidos


e apreendidos foram mais significativos nas atividades de
leitura de imagens e através da interação com as obras
visitadas, sendo essa uma importante estratégia enunciativa na
construção da significação da arte contemporânea. A pesquisa
reforça ainda mais que a leitura e a visita a exposições artísticas
contemporâneas podem ser uma importante ferramente no
atual ensino de artes visuais. (BORN, 2008, p. 5).

Primeriamente, Born (2008) realizou algumas ações, a saber:

• Entrevista com os alunos: para saber do repertório cultural e visual que


percebiam em seu cotidiano.

• Dário de bordo: funcionou como um caderno de anotações ou de rascunho,


cujo objetivo era registrar o processo de criação e conhecimento dos alunos a
partir das oficinas realizadas.

• Leitura de obras contemporâneas: interação com os alunos sobre o que


significa arte contemporânea: de um lado, o que os alunos sabiam sobre o
tema e, de outro, mostra de imagens desse tipo de arte, bem como visualização
de um documentário, cujo título é Quem tem medo da arte contemporânea?,
produzido a partir de um livro de Fernando Cocchiarale, de 2006.

• Exibição de documentários: mostra de dois documentários de artistas


brasileiros: Uma instalação de Carmela Gross e As máquinas de Guto Lacaz,
ambos desenvolvidos pelo Instituto Arte na Escola.

• Momentos de criação: ação dos estudantes para a realização de duas


experiências artísticas: uma proposta era usar o espaço da escola, e outra era
usar materiais de uso cotidiano dos alunos.

• Saída de estudos: Visita à 5ª Bienal do MERCOSUL, em Porto alegre, pela


professora e 9 alunos.

Em suas considerações finais, a autora do projeto escreve:

Ao refletir sobre o projeto, a execuação da Oficina de arte contemporânea


e a posterior análise que realizei, percebo que a sequência de ações surtiram
pequenos efeitos e ampliação de conceitos pelos participantes, que pouco
haviam tido contato com a arte contemporânea, num ensino onde a presença
de professores especializados nem sempre é garantida aos estudantes,
compromentendo a abrangência de conteúdos trabalhados. (BORN, 2008, p. 37)

61
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

As peculiaridades da análise feita por Born, bem como as imagens dos


processos, você poderá ver em sua monografia, disponível no seguinte endereço
virtual: <http://hdl.handle.net/10183/15678>.

Atividade de Estudos:

1) Cite algumas maneiras de como podemos trabalhar (ensinar) arte


contemporânea com alunos do Ensino Fundamental.
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Algumas Considerações

Neste capítulo, verificamos alguns exemplos de leitura de imagens. A leitura
e a análise das obras Interior vermelho, natureza-morta sobre mesa azul, do pintor
fauvista Henri Matisse, e Enterro na rede, do artista brasileiro Cândido Portinari,
feitas, respectivamente, por Lúcia Santaella e Sandra Ramalho e Oliveira,
mostraram duas possibilidades de ler imagens: Santaella o fez apoiada na
Semiótica de Peirce e Ramalho e Oliveira, por sua vez, numa Semiótica derivada
de Saussure. Em seguida, vimos um exemplo de análise Semiótica Greimasiana
que Antonio Vicente Pietroforte fez da escultura Monumento às bandeiras, do
artista brasileiro Vitor Brecheret. Esses foram apenas alguns exemplos. Outros,
você poderá encontrar nas referências recomendadas.

Além disso, estudamos alguns aspectos da leitura de imagens em sala de


aula. Um dos métodos citados foi o de Feldman, mostrado pela arte-educadora
e escritora Ana Mae Barbosa. Dessa forma, você poderá ter em mente algumas
formas de leitura de imagens possíveis de fazer. Outras tantas existem. Ao final,
investigamos o trabalho monográfico desenvolvido pela professora Patriciane
Born, que fez um estudo com adolescentes em uma escola municipal da periferia
de Sapucaia do Sul, RS. Assim, msotramos que pequenas ações artísticas podem
ser realizadas em sala de aula. O que é necessário, inicialmente, são professores

62
Capítulo 3 Introdução à Leitura da Imagem

entusiasmados para dar início à contrução de uma cultura mais substanciosa no


que tange à leitura de imagens. Não nos é dito, frequentemente, que a revolução
começa na sala de aula?!

No próximo capítulo, continuaremos nosso percurso de leitura e produção de


sentidos em outras manifestações artísticas.

Referências
AMSBERG, Dagmar. O ensino da arte hoje: tendências e perspectivas.
Disponível em: <http://maniacolorida.blogspot.com/2010/07/o-ensino-da-arte-
hoje-tendencias-e.html>. Acesso em: 1° jul. 2011.

BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos. ______ (Org.). Inquietações e mudanças


no ensino da arte. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2008. p.28-39.

BORN, Patriciane. Oficina de arte: leitura e produção de sentidos com


adolescentes. (2008). Disponível em:< http://hdl.handle.net/10183/15678>.
Acesso em: 5 jul. 2011.

BRASIL. Lei n° 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e


bases da educação nacional. Disponível em: <portal.mec.gov.br>. Acesso em: 5
jul. 2011.

OLIVEIRA, Sandra Regina Ramalho e. Imagem também se lê. São Paulo:


Edições Rosari, 2009. (Coleção TextosDesign).

PIETROFORTE, Antonio Vicente. Semiótica visual: os percursos do olhar. São


Paulo: Contexto, 2010.

SANTAELLA, Lúcia. Semiótica aplicada. São Paulo: Cengage Learning, 2002.

63
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

64
C APÍTULO 4
Compreender e Refletir a Arte
nas Diferentes Linguagens

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

99 Conhecer a linguagem artística na esfera visual, teatral e musical.

99 Constatar que a linguagem artística se inscreve em diferentes modos de


expressão.
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

66
Compreender e Refletir a Arte
Capítulo 4 nas Diferentes Linguagens

Contextualização
A arte é uma das manifestações humanas mais antigas de que temos
conhecimento. De fato, muito do que hoje sabemos sobre as civilizações antigas
foi propiciado pela arte que, naquela época, eram expressões simples de pintura,
arquitetura e escultura. Há registros de pinturas em cavernas, como em Lascaux,
na França, que datam de, aproximadamente, 15.000 a.C., e de uma estatueta
feminina, a saber, a Vênus de Willendorf, que data de 25.000 a.C. Assim, vemos
que onde há homens, possivelmente há arte.

A pintura e a escultura são as formas mais comuns e mais conhecidas de arte e


estão contidas naquelas que denominamos artes visuais e que englobam, também,
outras linguagens que veremos no decorrer do capítulo. Igualmente existem outros
tipos de arte que não se enquadram nas visuais, como o teatro e a música.

No decorrer do capítulo, discutiremos e refletiremos a respeito deste universo


das artes, lendo, mesmo que brevemente, alguns aspectos, técnicas e elementos
básicos necessários para todo estudante desta área. Também investigaremos
alguns exemplos de leituras de artes visuais, do teatro e da música.

Lendo Obras de Artes Visuais


Grosso modo, entendemos por artes visuais as criações
Grosso modo,
artísticas que lidam com a visão. O desenho, a pintura, a escultura,
entendemos por
a fotografia, a gravura e o cinema são os principais exemplos. Além
artes visuais as
dessas, outras são consideradas expressões de artes visuais. Não
criações artísticas
é nosso objetivo traçar uma teoria acerca deste tema. Mas, já que
que lidam com a
estamos estudando a linguagem artística de obras, consideramos
visão. O desenho,
conveniente trazer isso à tona, para que você, caro estudante, fique
a pintura, a
mais familiarizado e contextualizado no que diz respeito a essa
escultura, a
área do conhecimento humano.
fotografia, a
gravura e o cinema
No capítulo anterior, vimos alguns exemplos de leitura de obras
são os principais
de artes visuais. Porém, além de estudarmos exemplos de outros
exemplos.
tipos, cremos ser necessário abordar alguns itens importantes para
que haja uma maior compreensão desse assunto. Assim, você terá
mais condições de ler uma obra de forma mais completa, levando em
conta seu contexto e outras informações relevantes. Desta maneira,
você fará esta tarefa de maneira mais eficiente e proveitosa.

67
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Um livro teórico que aborda os elementos essenciais para a criação


Não basta o
e produção artística é Arte e percepção visual, de Rudolf Arnheim.
contato visual
Apesar de o autor afirmar, por diversas vezes no texto, que a arte é
com a obra. É
muito mais para ser vista do que para ser falada, é necessário, tanto
preciso, também
para o espectador quanto para o criador, estudar alguns elementos
um mínimo de
básicos, pois não basta o contato visual com a obra. É preciso, também
conhecimento
um mínimo de conhecimento teórico sobre o assunto. Frente a essa
teórico sobre o
afirmação, Arnheim expõe os principais elementos de uma obra, a
assunto.
saber: equilíbrio, configuração, forma, desenvolvimento, espaço, luz,
cor, movimento, dinâmica e expressão.

Mesclando teoria e exemplos da história da arte, o autor discorre sobre


essas características, cujo resultado, após a leitura, é uma apreciação artística
mais fecunda e eficaz, pois o autor parte de uma constatação fundamental: a
capacidade humana de compreensão a partir da visão.

Um dos pontos relevantes do livro é uma subdivisão do capítulo Expressão.


No texto, Arnheim (2003) mostra alguns exemplos da simbologia encontrada na
obra de arte. Uma delas, A criação do homem, do artista italiano Michelângelo,
parte integrante da Capela Sistina, no Vaticano, é retomada pelo pesquisador
para analisar e ilustrar esse tipo de conhecimento.

Figura 23 - A criação do homem (detalhe), 1508-12, Michelângelo

Fonte: Cumming ( 2010, p. 31).

Segundo o Arnheim (2003), qualquer pessoa que tenha lido o livro Gênesis,
do Antigo Testamento, consegue entender o significado geral da obra. No entanto,
a história descrita no Gênesis sofreu certa modificação ao ser transportada para a
pintura, de forma a ficar mais compreensiva ao espectador.

Leiamos as palavras de Cumming ( 2010, p. 451-2):

68
Compreender e Refletir a Arte
Capítulo 4 nas Diferentes Linguagens

O criador, em vez de soprar uma alma viva ao corpo de argila –


um motivo difícil de se traduzir para a configuração expressiva
–, estende-se em direção ao braço de Adão, como se uma
centelha animadora, saltando da ponta de um dedo para a
ponta de outro, fosse transmitida do criador para a criatura.
A ponte do braço liga visualmente dois mundos separados:
a capacidade autocontida do manto que envolve Deus e
o movimento para a frente é dado pela diagonal do corpo;
e o pedaço incompleto e plano da terra, cuja passividade é
expressa no declive posterior do seu contorno. Há passividade
também na curva côncava sobre a qual o corpo de Adão é
moldado. Ele está deitado no chão e com possibilidade de
erguer-se parcialmente pelo poder atrativo do criador, que se
aproxima. O desejo e a capacidade potenciais para erguer-se
e andar são indicados como um tema secundário na perna
esquerda, que também serve de apoio para o braço de Adão,
impossibilitado de manter-se livremente como o braço de
Deus, carregado de energia.

Com essas palavras, Arnheim (2003) nos mostra a simbologia encontrada na


obra de Michelângelo. Mais do que mostrar a figura visual da criação do homem,
o artista contou a história por meio de alguns elementos que se tornam evidentes
somente ao espectador que os tenha estudado. Na figura a seguir, temos o
esquema da obra feito por Arnheim.

Figura 24 - Esquema de A criação do homem feito por Arnheim

Fonte: Arnheim (2000, p. 451).

Outro exemplo apontado pelo autor, para mostrar os elementos importantes


das obras, é a xilografia de Dürer em que o artista faz o desenho da cabeça de
Cristo coroado de espinhos. “Direção, curvatura, claridade e posição espacial”,
diz Arnheim (2003, p. 149-50), “são definidas de tal modo que cada elemento
perceptivo ajuda a comunicar aos olhos uma expressão precisa de angústia, que
se baseia em aspectos como a pesada pálpebra pendente sobre a pupila fixa”.
Assim, o autor apresenta a interação entre forma, conteúdo e expressão.

69
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Figura 25 – Detalhe de uma xilografia de Dürer

Fonte: Arnheim (2000, p.150).

Um livro de indispensável leitura e que todo estudante de artes deve ter é Arte
em detalhes, de Robert Cumming, editado pela Publifolha. O conteúdo integral da
obra também foi publicado pela Editora Ática, cujo título é “Para entender a arte”.
O livro mostra exemplos de vários quadros, desde o Renascimento (Adoração dos
magos, de Giotto) até o Modernismo (Guernica, de Picasso), interpretando-as por
meio dos seus significados, simbolismos, contextos e importâncias das mesmas
no importante cenário artístico dos últimos séculos.

Para exprimir o quão importantes são o contexto e as demais informações


nas quais a obra é pensada e criada, trazemos à tona um exemplo bastante
fecundo, a partir do livro de Cumming. A jangada do Medusa (também conhecida
como A balsa do Medusa), do pintor Théodore Géricault, de 1818-9, por exemplo,
permite uma leitura bastante fecunda a partir do momento em que entramos em
contato com as informações inscritas na obra e apresentados pela história da arte.

Figura 26 - A jangada do Medusa, 1818-9, Théodore Géricault

Fonte: Cumming (2010, p. 76-7).

Primeiramente, observe o contexto no qual a obra foi criada:

No verão de 1816, uma fragata francesa naufragou na costa


da África, carregada de soldados e colonos que iam para o

70
Compreender e Refletir a Arte
Capítulo 4 nas Diferentes Linguagens

Senegal. O incompetente capitão era um nobre que conseguira


essa posição por influência política. Quando o navio afundou,
ele estava em um dos poucos botes salva-vidas e deixou
as pessoas que via como inferiores sociais à própria sorte.
Os 149 homens (e uma mulher) construíram uma jangada
improvisada e ficaram à deriva por 13 dias. Somente 15
sobreviveram às horríveis circunstâncias, e foram reportados
casos de canibalismo e insanidade. Mais cinco morreram ao
chegar a terra. (CUMMING, 2010, p. 77).

Foi nesse contexto histórico que Géricault elaborou sua pintura. O evento,
Mais do que qualquer outro domínio, essa pintura mostra um protesto retratado pelo
político. Os sobreviventes, ancorados na balsa/jangada, são retratados pintor, foi
heroicamente, ao tentarem acenar para um navio distante na tentativa tomado como
de salvamento. O evento, retratado pelo pintor, foi tomado como uma uma metáfora
metáfora da corrupção que assolava a França após a queda de Napoleão. da corrupção
que assolava
Géricault utiliza vários recursos picturais para criar sua obra de a França após
forma a mostrar a realidade e a crueldade da cena que escandalizou a queda de
o povo francês da época. Pela busca de autenticidade do quadro, o Napoleão.
artista foi a um hospital para estudar doentes, agonizantes e mortos.
Mandou construir uma jangada em tamanho real e a instalou em seu
ateliê, dispondo figuras de cera sobre ela, para compor a obra de Essa cena mostra
forma mais realista. A pintura também apresenta a composição em o desespero
forma de pirâmide, cujo vértice é o homem moreno acenando com um humano, mas
pano, tendo na base as pessoas mortas, e, no centro, os doentes e também a
agonizantes. Assim, essa cena mostra o desespero humano, mas esperança do
também a esperança do resgate. resgate.

Figura 27 – Triângulo da esperança proposto por Robert Cumming

Fonte: Cumming (2010, p. 77).

Após ler alguns detalhes da composição e contexto, cremos que ficou mais
clara a nossa leitura da obra. Com forte razão, torna-se necessário, sempre que

71
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

quisermos conhecer uma obra melhor e mais profundamente, munirmo-nos de


material adequado. Ao longo dos textos, apresentamos alguns. Você também
poderá encontrar outros na internet, em catálogos e livros de arte. Lembre-se
de que quanto mais você souber sobre a obra, melhor será sua fala sobre ela.
Caso você seja professor de artes, esta tarefa não somente será importante, mas,
sobretudo, necessária.

No caderno de estudos Técnicas de pintura (BITENCOURT, 2009), do curso


Artes Visuais, da UNIASSELVI, encontramos algumas dicas de como devemos
olhar uma pintura, as quais foram adaptadas pelo autor com base em Cumming
(2000):

• Tema: com frequência, o tema é fácil de identificar; mas, em muitos casos e,


em especial, nas pinturas mais antigas, as obras retratavam histórias da Bíblia
ou a mitologia da Antiguidade, como a grega e a romana. Ao criarem as obras,
os artistas presumiam que o seu público estivessem familiarizado com essas
histórias.

• Técnica: cada pintura deve ser criada fisicamente, e a compreensão das


técnicas utilizadas, como o emprego da tinta a óleo ou o uso do afresco,
aumenta muito nossa apreciação da obra de arte.

• Simbolismo: muitas obras possuem extensamente uma linguagem de


simbolismo e alegoria que, na época, era compreendida tanto pelos artistas
como pelo público. Os objetos reconhecíveis, mesmo pintados em detalhes,
não representavam apenas eles mesmos, mas conceitos de significado mais
profundo ou mais abstrato.

• Espaço e luz: os artistas que buscam recriar uma representação convincente


do mundo na superfície plana de uma tela ou madeira precisam adquirir o
domínio da ilusão do espaço e da luz. É notável a variedade de meios pelos
quais essa ilusão pode ser criada.

• Estilo histórico: Cada período histórico desenvolve um estilo próprio, que se


pode perceber nas obras de seus artistas principais. Os estilos não existem
isoladamente, mas se refletem em todas as artes.

• Interpretação pessoal: cada pessoa tem o direito de levar para uma obra de
arte o que quiser levar por meio da sua visão e da sua experiência e guardar
o que decidir guardar, no nível pessoal. O conhecimento da história, das
habilidades técnicas, deve ampliar essa experiência pessoal.

72
Compreender e Refletir a Arte
Capítulo 4 nas Diferentes Linguagens

Atividade de Estudos:

1) A partir do que você leu até aqui, neste capítulo, cite alguns
elementos importantes no que tange à leitura de obras de artes
visuais.
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Vimos exemplos de leituras de obras de artes visuais de pintura e de escultura.


Outras possibilidades são as imagens publicitárias, as fotografias, as histórias em
quadrinhos e as charges. É desta última que segue nossa proposta de análise.

Partimos do texto Charge: humor e crítica, de Iara Rosa Farias,


De uma maneira
parte integrante do livro Semiótica: objetos e práticas, organizado
geral, a charge
pelos autores Ivã Carlos Lopes e Nilton Hernandes. De uma maneira
lida com uma
geral, a charge lida com uma crítica, geralmente subjacente, por meio
crítica, geralmente
do humor. Assim, ao vermos uma charge, entramos em contato com
subjacente, por
duas realidades: uma imagem humorística e uma mensagem indicada
meio do humor.
(implícita) como forma de crítica.

Figura 28 - Exemplo de charge

Fonte: Farias (2005, p.5).


73
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Cumpre-nos compreender que a autora segue uma abordagem semiótica.


Afirma Farias:

Em nossa análise, vamos nos deter mais especificamente


no nível discursivo e depois trataremos do nível profundo do
enunciado, isto é, partiremos das figuras do texto para chegar
às articulações fundamentais que as sustentam, observando
assim a construção do sentido. Figuras, no contexto semiótico,
são termos que fazerm remissão (e não referência direta) aos
elementos do mundo, deixando o texto mais concreto. É por
meio do uso das figuras, como veremos mais adiante, que o
enunciatário apreende o texto. (FARIAS, 2005, p. 247)

Nas charges, temos tanto a linguagem verbal (palavras escritas) quanto a não-
verbal (desenhos). No exemplo posto anteriormente, temos dois tipos de falas:

• Narrador: “CPI: com a palavra o depoente”.


• Depoente: “Bão... Tinha um ninho de mafagafos com sete mafagafinhos”.

Farias acentua que a primeira fala – do narrador – é uma debreagem


enunciativa, e a segunda – do depoente –, uma debreagem de segundo grau.
Entendemos por debreagem “a forma pela qual se constitui o enunciado.” (FARIAS,
2005, p. 248). A primeira constitui a charge, e a segunda instaura um diálogo.
O desenho da charge não é a realidade em si, mas apresenta uma situação do
cotidiano sociocultural do autor e, consequentemente, do leitor, veiculando uma
mensagem política, social, cultural, etc.

“O efeito de realidade” – nos diz Farias (2005, p. 249) – “ou seja, o que torna a
nossa charge passível de ser aceita como parte do nosso arcabouço sociocultural,
está ancorado nessa ‘mensagem forte’ da charge, que, no nosso caso, é o tema
de que ela trata: uma CPI.”

As figuras da charge deixam o texto mais concreto. Nele,


As figuras da encontramos objetos do mundo e dentro do contexto da representação
charge deixam feita (pessoas, cadeiras, etc.). São desenhos caricatos e estilizados que
o texto mais seguem a temática, no caso, uma CPI. Isto se chama de figurativização.
concreto. Outro recurso das charges é a ancoragem. “Pela ancoragem, o texto é
relacionado a espaços, datas e pessoas que o enunciatário reconhece
como existentes.” (FARIAS, 2005, p. 250). Na charge exemplificada,
vemos esse efeito por meio das palavras “CPI” e “depoente” e pela ação do
depoente falando ao microfone. Isso leva o leitor a perceber que se trata de uma
cena correlata e caricata de uma CPI no Congresso Nacional.

A Semiótica também lida com a veridicção, ou seja, o caráter de verdade da


charge. Nesse caso, cabe ao enunciador o fazer-crer (estabelecer um efeito de

74
Compreender e Refletir a Arte
Capítulo 4 nas Diferentes Linguagens

verdade no enunciatário) e, ao enunciatário, o crer (decifrar o discurso


A Semiótica
como verdadeiro ou falso). Dessa forma, um contrato de veridicção é
também lida com
estabelecido entre eles, de onde segue que “a charge é apresentada
a veridicção, ou
como um texto burlesco que realiza uma crítica aos trabalhos da
seja, o caráter
CPI mostrados pelos meios de comunicação.” (FARIAS, 2005, p.
de verdade da
252). Por consequência, o enunciador verificará se a charge condiz
charge.
com a verdade ou não por meio de conhecimentos que tem sobre o
assunto. É entendendo a charge que o enunciatário perceberá uma
ironia e um humor subsequente, considerando o texto engraçado ou A fala como
não. Somente desse modo é que o enunciador terá sucesso no seu brincadeira infantil
empreendimento criativo.
– o trava-língua –
é utilizada como
A fala como brincadeira infantil – o trava-língua – é utilizada como
recurso para
recurso para mostrar a pouca importância com que os políticos lidam
mostrar a pouca
com o assunto das CPIs. A palavra “mafagafo permite ao enunciatário
importância com
da charge associar a palavra aos semas do universo político, onde
que os políticos
se configura a cena, estabelecendo correspondências”. Mas o que o
lidam com o
autor quis dizer com isso? Pois bem, “mafagafo pode ser um político
assunto das CPIs.
corrupto se pensarmos que as CPIs averiguam atos dos parlamentares
suspeitos de condutas ilícitas.” (FARIAS, 2005, p. 257).

Em suma, o autor trata o assunto como brincadeira, especialmente no caso do


depoente, que representa alguém que sabe que não sofrerá ação punitiva.

A Linguagem do Teatro
Grosso modo, teatro é uma forma de arte em que um ator ou conjunto de
atores intrepretam uma história, um monólogo, uma peça teatral, um drama,
uma comédia ou qualquer outro tipo de atividade perante uma plateia. Nessa
modalidade artística, vemos tanto a linguagem verbal (palavra) quanto a não-
verbal (gestos, vestimentas, cenários, etc).

Figura 29 - Imagem de teatro

Fonte: Disponível em:<http://teatromagiaeacao.blogspot.com/2009/11/


teatro-como-sistema-modelizante.html> Acesso em: 1º jul. 2011. 75
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Em geral, o teatro lida com signos da fala e dos gestos. São esses que
geralmente constroem o espetáculo, causando significações diversas no
público. Sobre isso, o escritor e ator Vitor Santos, no texto Teatro como sistema
atemolizante, afirma que:

Gesto e voz tornam o teatro um texto da cultura. Para os


semioticistas russos da década de 60, a noção de teatro como
texto revela, igualmente, sua condição de sistema modelizante,
ou melhor, de sistema semiótico cujos códigos de base - gesto
e voz - se reportam a outros códigos como o espaço, o tempo
e o movimento. A partir desses códigos se expandem outros
sistemas sígnicos tais como o cenário, o movimento cênico
do ator, o vestuário, a iluminação e a música entre outros.
(SANTOS, 2009).

Sabemos, então, que o gesto e a voz constituem as duas principais


Sabemos, então,
formas de linguagem do teatro. A partir do texto de Santos (2009),
que o gesto e a
verificamos que também fazem parte dele: o cenário, o movimento
voz constituem as
cênico do ator, o vestuário, a iluminação e a música. Portanto,
duas principais
ao analisarmos esse tipo de arte, devemos levar em conta esses
formas de
elementos teatrais.
linguagem do
teatro. Além do que foi exposto anteriormente, outro fator é considerado
importante na construção do teatro: o texto. No livro Tópicos de
semiótica: modelos teóricos e aplicações, de Antonio Vicente Pietroforte,
há uma referência ao texto O mágico de Oz, do escritor Frank Baum.

A CONSTRUÇÃO DA REALIDADE

“Até a chegada de Dorothy e seus amigos na cidade de Oz, há


tensões constantes entre o ser e o parecer das coisas. O Espantalho,
que se julga tolo, é o mais sagaz, o Homem-de-Lata, que pensa
ter perdido suas emoções, é o mais sentimental; e o Leão, que se
considera covarde, age como verdadeiro herói. Os três vão a Oz
para pedir ao mágico, respectivamente, um cérebro, um coração e
muita coragem. Dorothy, por sua vez, quer voltar para casa, sem
saber se traz consigo, o tempo todo, os sapatos encantados capazes
de realizar seu desejo.

Inteligência, sentimento e coragem não são conceitos figurativos;


em termos semióticos, a inteligência é a manifestação de um saber, e o
sentimento e a coragem são paixões. Nessas dimensões conceituais,
não é dificil entender os três significados como formações de sentido
dentro dos domínios das culturas humanas; sem quaisquer referências

76
Compreender e Refletir a Arte
Capítulo 4 nas Diferentes Linguagens

a ‘coisas do mundo’, a inteligência, o sentimento e a coragem só


existem dentro das culturas que os formam.

Quando colocados em discurso, inteligência, sentimento e


coragem não são capazes de referencializar o mundo, mas de
justificar valores ideológicos; o inteligente, o sentimental e o corajoso
são papéis temáticos construídos pelo discurso.

Entretanto, a cidade de Oz, onde esses valores são doados pelo


mágico, é uma figura discursiva; seus caminhos, casas e paisagens
são produtos de referencializações. Se eles parecem existir é
porque, além da dimensão temática, há, no discurso, a dimensão
figurativa, que garante efeito de sentido de referencialização às
‘coisas do mundo’.

Pouco interessa saber se a cidade de Oz existe ou não, mas


como ela parece existir. Se ela existe, existe no teatro de F. Baum
e por meio da linguagem. Isso coloca outra questão: saber se o
mundo existe e a linguagem é um reflexo seu, ou, contrariamente,
se a linguagem forma o que existe no mundo. Como a cidade de Oz
existe, pelo menos no discurso que a forma, a segunda opção pode
ser examinada.

Oz, que se acredita um péssimo mágico, revela-se um grande


argumentador, o que faz dele um grande mágico. O drama de Oz é
não perceber que a grande mágica é também uma grande mentira,
assim como são suas argumentações.”

Fonte: PIETROFORTE, Antonio Vicente. Tópicos de semiótica: modelos


teóricos e aplicações. São Paulo: Annablume, 2008. p. 50-1.

Essa construção da realidade a partir de formas semióticas permite, por meio


da linguagem, orientar o sentido daquilo que é considerado real.

77
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Figura 30 - Elencos da peça teatral O mágico de Oz, do


grupo gincaneiro Aloprado’s, de Biguaçu, SC

Fonte: Disponível em: <http://www.reidageografia.


blogspot.com/>. Acesso em: 1º ago. 2011.

Para entrar na cidade de Oz, é necessário usar óculos de lentes verdes, os


quais são distribuidos nos portões de entrada. A cidade é comum, mas o mágico
utiliza esse truque para fazer com que os visitantes a vejam segundo um ponto de
vista, tal como uma esmeralda. De acordo com a peça de Baum, se as pessoas
não utilizassem óculos, ficariam cegas devido ao alto brilho das ruas e das casas.

Nesse contexto, qual seria, então, a diferença entre ficção e realidade? “Em
termos discursivos, talvez nenhuma,” – nos diz Pietroforte (2008, p. 59) – “uma
vez que o aparato formal da enunciação com o qual a língua funciona é o mesmo
em todos os seus usos sociais”.

De toda sorte, o teatro provoca no expectador inúmeras


De toda sorte, o
significações. Uma delas é a catarse. O filósofo grego Aristóteles já
teatro provoca
falava da arte dramática e da ideia de catarse em que o público se
no expectador
“purifica” assistindo às tragédias. Essa identificação com situações ou
inúmeras
personagens do teatro é recorrente em muitos espectadores. Quem
significações.
nunca se sentiu sem inteligência, mesmo sabendo que, muitas vezes,
Uma delas é a
mostrou que o é, de fato? Quem, em algum momento não se sentiu
catarse.
sem coração? Quem, em algum momento crucial da sua vida, não foi
assolado pela covardia? Se, por um lado, a arte imita a vida, de outro,
a vida imita a arte...

O conjunto de voz, gesto, cenário, movimento cênico do ator, vestuário,


iluminação e música levam ao público uma determinada linguagem artística,
transmitindo uma mensagem significativa, cuja expressividade provoca
emoções diversas.

78
Compreender e Refletir a Arte
Capítulo 4 nas Diferentes Linguagens

Arte e Expressão Musical


No site da Rede Interdisciplinar de Semiótica da Música, da
Que a música
PUC-SP, encontramos que “a semiótica da música é a ciência que
é uma forma
estuda o significado musical: das bases acústicas à composição,
de arte, todos
das obras à percepção; da estética à musicologia, etc. Na verdade,
sabemos. No
questões de significação são tão antigas como a própria música.”
entanto, analisá-
(MARTINEZ; VAZ, 2011).
la de maneira
Que a música é uma forma de arte, todos sabemos. No entanto, eficiente,
analisá-la de maneira eficiente, procurando pontuar seus inúmeros procurando
significados, já é outra questão e que requer alguns conhecimentos pontuar seus
básicos acerca deste tema. Você considera esta uma tarefa fácil? inúmeros
Escutar uma música e apreciá-la segundo o seu padrão de gosto, além significados, já é
de ser algo fácil, é muito prazeroso. Estudar a música de acordo com outra questão e
estudos semióticos de significantes versus significados, ou conforme as que requer alguns
trilogias de Pierce, exigirá muito do estudante. conhecimentos
básicos acerca
No que tange à análise significantes versus significados, Pietroforte
deste tema.
(2008, p. 123) assim afirma:

No que se refere ao conteúdo musical de modo específico,


fica difícil determinar, com precisão, suas formas semânticas.
Sem um programa ou título de obra – o que dá à manifestação
musical dimensões sincréticas, em que o musical é orientado
a partir de semióticas verbais – é quase impossível determinar
categorias semânticas manifestadas por meio da música
instrumental. Por isso, sem categorias de conteúdo, não
é possível homologar e, nem sequer, determinar formas
musicais que façam sentido semi-simbolicamente.

Segundo o autor, na música, não há sentido de conteúdo. Claro que


Pietroforte (2008) está se referindo às músicas instrumentais. Porém, as músicas
verbalizadas, para ele, têm plano de conteúdo. E de expressão, será que tem? De
uma ou de outra forma, as músicas contêm planos de expressão.

A tradição da teoria musical apresenta quatro propriedades do som:

• Altura: escala de notas entre graves e agudos.

• Intensidade: energia com que o som é alcançado – vai do pianíssimo ao


fortíssimo.

• Timbre: geralmente considerado como a “cor” do som.

• Duração: tempo de sustentação do som – vai do breve ao longa.

Essas quatro propriedades devem ser levadas em conta quando tivermos de


aprofundar nossa análise acerca da criação musical.
79
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Apresentamos um exemplo breve de análise semiótica da canção


Relampiano, de Lenine, feita por Renata Ciampone Mancini. Primeiramente,
vejamos a letra da música.

Relampiano

Composição: Paulinho Moska e Lenine

Tá relampiano Cadê Neném?


Tá relampiano Cadê Neném?
Tá vendendo drops no sinal pra alguém
Tá vendendo drops no sinal, ninguém
Todo dia é dia, Toda hora é hora
Neném não demora pra se levantar
Mãe lavando roupa, pai já foi embora
E o caçula chora, mas há de se acostumar
Com a vida lá de fora do barraco
“Hay que endurecer” um coração tão fraco
Para vencer o medo de trovão
Sua vida aponta a contramão
Tá relampiano Cadê Neném?
Tá relampiano Cadê Neném?
Tá vendendo drops no sinal pra alguém
Tá vendendo drops no sinal, ninguém
Tudo é tão normal, todo tal e qual
Neném não tem hora pra ir se deitar
Mãe passando roupa do pai de agora
De um outro caçula que ainda vai chegar
É mais uma boca dentro do barraco
Mais um quilo de farinha do mesmo saco
Para alimentar o novo João Ninguém
A cidade cresce junto com Neném

Fonte: Disponível em: <www.http://letras.terra.com.br/


lenine/88972/>. Acesso em: 10 out. 2011.

A canção fala do dia a dia de uma família que luta pela


A canção fala do
sobrevivência. Como a narrativa é feita na terceira pessoa, de forma
dia a dia de uma
distanciada, não há envolvimento afetivo direto. “Esse modo de
família que luta narrar os fatos como se fossem assuntos nos quais o narrador não
pela sobrevivência. tem participação direta, configura o que em semiótica chamamos de
debreagem actancial enunciativa.” (MANCINI, 2005, p. 31). Com estas
palavras, a autora inicia o processo de análise semiótica da canção de Lenine e
Paulinho Moska, seguindo a ótica de Greimás. Seguindo este caminho, Mancini
analisa frase por frase da música, conceituando e pontuando os significados.
80
Compreender e Refletir a Arte
Capítulo 4 nas Diferentes Linguagens

Afirma Mancini (2005, p. 37) que “A melodia de Relampiano conta


De forma
com base temática”. De forma semelhante à letra da canção, a autora
semelhante à
analisa a sua melodia que a divide em três modos de organização:
letra da canção,
tematização, passionalização e figurativização. Confessamos que é
a autora analisa
uma análise dificil, de várias páginas, na qual não nos aprofundaremos
a sua melodia
no momento. Se preferir e tiver interesse no assunto, pesquise o texto
que a divide em
da autora, cuja referência você encontra no final deste capítulo.
três modos de
organização:
tematização,
Atividade de Estudos: passionalização e
figurativização.
1) A partir do que você leu sobre a linguagem artística do teatro,
bem como da arte musical, quais elementos você considera
importantes para uma boa análise e leitura dos respectivos tipos
de arte?
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Algumas Considerações
Você deve ter percebido que compreender os diversos tipos de arte não
é uma tarefa fácil. Vimos alguns exemplos no decorrer do capítulo, feitos por
especialistas nos respectivos assuntos, de análises, em diferentes âmbitos, de
artes visuais, teatrais e musicais.

Você aprofundou seus conhecimentos acerca dos elementos essenciais de


artes visuais, tendo, com isso, mais condições de ler uma obra de forma mais
completa, levando em conta seu contexto e outras informações relevantes para
uma compreensão mais profunda, consciente e eficaz. Aprendeu que equilíbrio,
configuração, forma, desenvolvimento, espaço, luz, cor, movimento, dinâmica e
expressão fazem parte da estrutura de uma obra e que deve ter isso em mente
quando tiver de analisá-la.

81
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Verificamos que, além do gesto e da voz, que constituem as duas principais


formas de linguagem do teatro, fazem parte dele: o cenário, o movimento cênico
do ator, o vestuário, a iluminação e a música. Portanto, ao analisarmos esse
tipo de arte, devemos levar em conta esses elementos teatrais. O texto, é claro,
também é importante, e, neste capítulo, vimos alguns detalhes de O mágico de
Oz, do escritor Frank Baum.

Por fim, estudamos que a música possui quatro elementos fundamentais,


a saber: altura, intensidade, timbre e duração. Essas quatro propriedades são
importantes quando tivermos de aprofundar nossa análise acerca da criação
musical. Brevemente, investigamos alguns detalhes da música Relampiano, de
Lenine e Paulinho Moska.

O estudo e leitura de obras de artes é uma tarefa que requer muitos anos
de estudos e exige, do pesquisador, muito empenho e determinação. No ato de
entrar em contato com obras e artistas diversos, muitos espectadores se sentiram
“tocados” por elas. É sobre isso que trataremos nos dois próximos capítulos.

Referências
ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual. São Paulo, Pioneira/EDUSP, 2000.

BITENCOURT, Amauri Carboni. Técnicas de pintura. Indaial: Grupo


UNIASSELVI, 2009. (Caderno de estudos).

CUMMING, Robert. Arte em detalhes. São Paulo: Publifolha, 2010.

____. Para entender a arte. São Paulo: Ática, 2000.

FARIAS, Iara Rosa. Charge: humor e crítica. In: LOPES, Ivã Carlos;
HERNANDES, Nilton (Org.). Semiótica: objetos e práticas. São Paulo: Contexto,
2005. p. 25-39.

MANCINI, Renata Ciampone. Relampiano. In: LOPES, Ivã Carlos; HERNANDES,


Nilton (Org.). Semiótica: objetos e práticas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 35-49.

MARTINEZ, José Luiz; VAZ, Gil Nuno. O que é semiótica da música?


Disponível em: <http://www.pucsp.br/pos/cos/rism/oqesemus.htm> Acesso em: 1º
ago. 2011.

PIETROFORTE, Antonio Vicente. Tópicos de semiótica: modelos teóricos e


aplicações. São Paulo: Annablume, 2008.

SANTOS, Vitor. Teatro como sistema modelizante. 2009. Disponível


em: <http://teatromagiaeacao.blogspot.com/2009/11/teatro-como-sistema-
modelizante.html>. Acesso em: 2 jul. 2011.
82
C APÍTULO 5
Leitura de Obra de Arte
pela Psicanálise

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

99 Expressar algumas considerações sobre a leitura que a psicanálise faz da


obra de arte.

99 Articular arte e psicanálise, mostrando a maneira como Freud e Lacan leram


algumas obras de arte.
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

84
Capítulo 5 Leitura de Obra de Arte pela Psicanálise

Contextualização
A humanidade viu surgir uma área de estudos que se tornaria central no que
tange ao conhecimento a respeito do ser humano: psicanálise. Um médico que
começou a aprofundar sua pesquisa sobre a mente humana tornar-se-ia, nas
décadas seguintes, um referencial para diversas outras áreas. Uma delas foi a
arte. Os artistas, no ensejo de procurar um cânone estético que norteasse um
novo tipo de arte, encontraram, no início do século XX, nas teorias freudianas do
inconsciente, um alicerce para pensar e elaborar suas obras.

O entrelaçamento entre a arte e a psicanálise começou tão logo Freud


elaborou sua concepção acerca do inconsciente. Trata-se, aqui, de dizer que a
relação não foi bilateral. Os artistas contemporâneos a Freud encontraram “nele”
uma maneira de dialogar, mas o psicanalista não tinha a mesma visão. Era
apreciador de artes clássicas e procurava não emitir opiniões sobre a arte de seu
tempo.

No início do capítulo, veremos esse entrelaçamento entre psicanálise e


arte, mais especificamente, a pintura surrealista. Você terá uma noção do que
pensavam os artistas a respeito das teorias freudianas e do julgamento de Freud
sobre a arte moderna.

Em seguida, veremos dois exemplos de psicanalistas que dialogaram com


obras de artes e com artistas. O primeiro é Freud que, ao escrever o texto Leonardo
da Vinci e uma lembrança de infância, de 1910, faz uma análise psicológica do
pintor a partir de suas obras. O segundo foi Lacan que, primeiramente, conheceu
a arte antes da psicanálise e tem com ela um envolvimento diferente do de
Freud. Lacan olha a arte de outra forma: quer aprender com ela, interagir com
ela, dialogar com ela. O exemplo citado é a pintura do pintor Hans Holbein, Os
embaixadores, de 1533, que traz um objeto estranho na base inferior do quadro.
Você está curioso para saber o que é? Pois bem, no decorrer do capítulo, você
descobrirá. O que é importante ressaltar é que essa pintura serviu a Lacan para
pensar a questão do “olhar” (função escópica).

As obras de arte são tomadas por diferentes campos da ciência e do
conhecimento, produzindo inúmeras significações. Neste capítulo, mostraremos
um exemplo deveras fértil: a leitura que a psicanálise faz da obra de arte. Claro
que são apenas algumas considerações breves.

85
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Psicanálise e Arte
Sigmund Freud sempre foi um investigador da mente humana e procurou
estudá-la profundamente durante a sua vida. Sem dar-se conta, suas pesquisas
ajudaram a formatar uma das manifestações artísticas mais fecundas do início do
século XX. Mas, você sabia, caro estudante, que ele mesmo não gostava desse
tipo de arte? Para ele, a arte que merece ser elevada à categoria de obra de arte
é a clássica. Resulta daí o fato de Freud não se referir, praticamente, à arte feita
por seus contemporâneos, preferindo escrever e analisar alguns artistas cujas
obras foram feitas alguns séculos antes. Leonardo da Vinci foi um deles. Veremos
isso mais à frente.

Freud foi um colecionador de antiguidades e apreciador de obras


Freud foi um
clássicas. Com seus estudos, o mundo viu o homem descer de seu
colecionador de
“pedestal”, de ser o centro, de ser uno, para tornar-se fragmentado,
antiguidades e
perdendo a estabilidade e precisando de novos conceitos e novas
apreciador de
formas de representação. Sua descoberta do conceito de inconsciente
obras clássicas.
trouxe isso à tona. Essa revolução na maneira de ver e tratar o sujeito
serviu de alicerce para que um novo tipo de arte ganhasse bases
teóricas para se desenvolver.

Por algumas vezes, neste capítulo, você encontrará o termo


inconsciente. Freud o concebe de algumas diferentes formas,
conforme a evolução da sua teoria. Já o psicanalista Lacan tem
outra concepção, diferente das proposições de Freud. Grosso modo,
podemos dizer, para simplificar, que inconsciente é a “parte mais
profunda da estrutura mental humana, em que se dão processos
psíquicos, impulsos e desejos, que escapam à consciência, porque
estão censurados ou reprimidos. O inconsciente pode encerrar
impulsos e desejos que nunca foram conscientes, isto é, nunca
foram percebidos pela pessoa, ou então que, tendo chegado ao
nível consciente em algum momento, foram censurados e voltaram
ao inconsciente. Do conflito entre esses impulsos e a repressão que
a consciência exerce sobre eles é que nascem as neuroses e as
psicoses”. (Disponível em: <http://www.dicio.com.br/inconsciente/>
Acesso em: 05 jul. 2011).

O mundo estava em movimento e se transformando, principalmente a partir da


Primeira Guerra Mundial. Com o aparecimento da fotografia, com as descobertas
86
Capítulo 5 Leitura de Obra de Arte pela Psicanálise

do impressionismo, com a revolução cezanniana do espaço visual, que


Com o aparecimento
quebrou as leis da perspectiva, novas expressões artísticas surgiram.
da fotografia, com
Nesse sentido,
as descobertas do
em nome de um novo cânone estético, que impressionismo,
se afirma por uma negação virulenta de todos com a revolução
os parâmetros vigentes e pela busca de uma cezanniana do
expressão revolucionária que irromperia do
inconsciente, alguns artistas se aproximarão
espaço visual, que
das idéias de Freud. (RIVERA, 2005, p. 8). quebrou as leis
da perspectiva,
Assim, a arte surrealista não nasce da psicanálise, mas encontra novas expressões
nela um material teórico fértil para alçar voos mais altos. artísticas surgiram.

Nesse novo tipo de arte, há uma negação de tudo o que é


Essa noção de
racional e uma valorização do racional, do espontâneo e da livre
inconsciente
expressão. Alguns artistas anteriores já haviam já haviam se
faria oposição
desvencilhado da arte acadêmica europeia ou das grandes escolas
ao intencional,
de arte, como, por exemplo, Picasso, que se aproximou da arte
ao racional, “e
africana. Outros se aproximaram da arte dos loucos.
permitiria, portanto,
É nesta perspectiva que Rivera (2005, p. 11) escreve: “a busca
uma irradiação
de uma pureza artística, de se retomar a arte em suas origens –
de imagens
ingênuas, loucas ou primitivas – integra em seu ideal revolucionário a supostamente
noção de inconsciente [...]” Essa noção de inconsciente faria oposição livres das amarras
ao intencional, ao racional, “e permitiria, portanto, uma irradiação das convenções
de imagens supostamente livres das amarras das convenções e e exigências
exigências estéticas.” (RIVERA, 2005, p. 11). estéticas.”

Figura 31 - Constelação: acordar de manhã, 1941, Joan Miró

Fonte: Mink (2005, p. 70). 87


Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Vários foram os artistas que se inspiraram nas teorias freudianas. André


Breton, um dos grandes nomes da arte moderna, por exemplo, no texto Que é
surrealismo?, de 1934, fala do parentesco entre psicanálise e surrealismo:

[...] Baseada nessas descobertas [de Freud], desenha-se enfim


uma corrente de opinião a favor da qual o explorador da mente
humana poderá levar mais longe suas investigações, já que
estará autorizado a levar em conta não apenas as realidades
sumárias. A imaginação está talvez na iminência de retomar
os seus direitos. Se as profundezas do nosso espírito ocultam
forças estranhas, capazes de aumentar as da superfície ou de
lutar vitoriosamente contra elas, é de todo interesse captá-las,
captá-las primeiro, para em seguida submetê-las, se possível,
ao controle da nossa razão. Os próprios analistas só têm a
ganhar com isso. Mas é importante observar que nenhum
meio é designado a priori para a conduta dessa empresa;
que, até segunda ordem, ela pode passar por ser tanto do
domínio dos poetas como dos cientistas; e que seu sucesso
não depende dos caminhos mais ou menos caprichosos que
serão seguidos. (BRETON, 1999, p. 418-9).

O psicanalista
Contudo, Freud não aceitou as criações artísticas a partir
não acreditava
da psicanálise. Na verdade, Freud dizia que não compreendia a
haver
arte moderna. Nesse tocante, o psicanalista não acreditava haver
possibilidade de
possibilidade de uma conjunção entre o surrealismo e a psicanálise.
uma conjunção
Chegou a dizer, em frente à obra Metamorfose de Narciso, de Salvador
entre o
Dalí, que, na pintura clássica, procurava pelo inconsciente e, na
surrealismo e a
moderna, o consciente. Isso foi um grande choque para os pintores
psicanálise.
surrealistas.

Figura 32 - Metamorfose de Narciso, 1937, Salvador Dalí

Fonte: Disponível em: <http://aidobonsai.files.wordpress.com/2011/04/


metamorfose-de-narciso-de-salvador-dali.jpg> Acesso em: 5 jul. 2011.
88
Capítulo 5 Leitura de Obra de Arte pela Psicanálise

Isso nos permite dizer que a psicanálise significou muito mais para o
surrealismo do que as obras de arte surrealistas para a psicanálise, ao menos
para Freud. Isso já não aconteceu com Lacan que, primeiro, teve contato com a
pintura surrealista e, depois, com as teorias freudianas. Diz-nos Rivera (2005, p.
24) que o jovem Lacan,

[...] no início da década de 1920, cedo se interessou pelo


dadaísmo e reconhece a influência surrealista que sofreu sua
obra. Ele conheceu André Breton e o também poeta Philippe
Soupault antes de começar a ler Freud. Elisabeth Roudinesco,
a respeitada psicanalista e historiadora da psicanálise
francesa, chega a considerar a teoria lacaniana como uma
síntese, em partes iguais, de três grandes tendências: o
freudismo, a psiquiatria e o surrealismo.

Ao contrário de Freud, que se servia das obras de artistas clássicos para


aplicar sua hipótese psicanalista, Lacan nutria-se das concepções artísticas
para poder pensar sua teoria. Lacan, por exemplo, viu, na obra de Holbein (que
veremos mais adiante, neste capítulo), uma maneira de refletir a função escópica.

Para aprofundar seus conhecimentos sobre a relação entre


a arte e a psicanálise, recomendamos a leitura da obra: RIVERA,
Tania. Arte e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

Atividade de Estudos:

1) O que procuram os artistas no início do século XX? Por que a


psicanálise serviu de base para a arte surrealista?
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89
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Freud, Leitor de Leonardo da Vinci


Será que podemos analisar a vida de um artista a partir de sua obra? Você,
provavelmente, já escutou alguém dizer: “nossa, que cores fortes! Acho que
quem pintou este quadro estava em bom astral!” ou: “Que cores frias! O pintor
devia estar triste ao pintar esta tela com tons acinzentados!”. Sem dúvida,
muitos espectadores veem na obra traços do sentimento e caráter do artista.
Independente de emitir um juízo de valor de ser isso o mais correto a fazer ou
não, o nosso objetivo, aqui, é mostrar a retomada freudiana de obras de Leonardo
da Vinci e, por consequência, uma análise da sua vida.

Durante o mestrado que Amauri Carboni Bitencourt cursou,


na Universidade Federal de Santa Catarina, se ocupou de vários
temas, entre os quais a análise que Freud fez de Leonardo
da Vinci. Este texto é um resumo de um dos capítulos da sua
dissertação, intitulada Merleau-Ponty acerca da pintura. Se
quiser ler o texto sobre Freud na íntegra, acesse o site <http://
www.tede.ufsc.br/teses/PFIL0082-D.pdf>.

Entre os textos que escreveu, o que Freud considerou mais belo foi aquele
no qual interpretou a imagem Santa Ana, a virgem e a criança, de Leonardo da
Vinci, e apresentou um pintor perseguido por uma recordação da infância. Eis a
recordação:

Parece que já era meu destino preocupar-me tão


profundamente com abutres; pois guardo como uma das
minhas primeiras recordações que, estando em meu berço,
um abutre desceu sobre mim, abriu-me a boca com sua cauda
e com ela fustigou-me repetidas vezes os lábios. (FREUD,
1980, p. 76).

90
Capítulo 5 Leitura de Obra de Arte pela Psicanálise

Figura 33 - Santa Ana, a virgem e a criança, 1508, Leonardo da Vinci

Fonte: Merleau-Ponty (2004, p. 49).

Antes de entrar mais detalhadamente na análise freudiana, convidamos


você a conhecer um pouco mais da vida de um dos maiores artistas que a
humanidade já teve.

Da infância de Leonardo da Vinci, sabe-se muito pouco. Nasceu


Da infância de
em 1452, em Vinci – próximo a Florença, Itália. Seu pai, Piero, não o
Leonardo da
aceitou como filho e somente o reconheceu anos depois. Isso porque
Vinci, sabe-se
era filho ilegítimo. Sua mãe era uma camponesa chamada Caterina e
muito pouco.
havia indícios de que casara com outro homem após Leonardo ir morar
Nasceu em
com o pai. A esposa de Piero era a Dona Albieri, que não teve filhos.
1452, em Vinci
Por conta disso, Leonardo da Vinci teve uma boa educação. Viveu,
– próximo a
então, em companhia de sua mãe, nos anos iniciais. Já na juventude, e
Florença, Itália.
não se sabe em qual data precisamente, aprendeu com Verrochio, seu
grande mestre, todas as artes ligadas ao desenho.

Freud mostra, em seu texto, essa precariedade de informações sobre a


infância de Leonardo da Vinci, mas, mesmo assim fez sua análise psicanalista a
partir desses poucos dados:

91
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

[...] a culpa não está nos métodos falhos e inadequados da


psicanálise, mas na incerteza e na natureza fragmentária do
material com ele relacionado, e que a tradição nos legou.
Portanto, somente o autor deverá ser considerado responsável
pelo fracasso, por ter obrigado a psicanálise a exprimir sua
opinião abalizada, apoiando-se em material tão insuficiente.
(FREUD, 1980, p. 122).

Apesar disso, Rivera (2005, p.32), que leu o texto de Freud, tem o
entendimento de que, “na obra de Da Vinci deve haver, supõe o pai da psicanálise,
algo que dê testemunho de sua recordação infantil”. Sobre a recordação infantil,
Freud a associou com o sexo oral e, assim, a cauda do abutre tocando o lábio,
seria, por analogia, o pênis tocando a boca de Leonardo da Vinci. Sendo fantasia
ou descrição real do artista, essa recordação deu subsídios, mesmo que precários,
para o psicanalista analisar uma possível homossexualidade de um dos maiores
artistas de todos os tempos.

Figura 34 - Santa Ana, a virgem e a criança, [19--], adaptação de André Malraux

Fonte: Malraux ([19--], p. 177).

Observe a adaptação feita por Malraux que, tomando a imagem em preto e


branco, faz um contorno no manto sugerindo e acentuando a hipótese de Leonardo
ter elaborado, mesmo que, de forma inconsciente, um abutre. Malraux insiste que a
imagem deve ser olhada como que “de viés” para a identificação do animal, pois ele
está todo torcido na composição. A cabeça termina nas costas da Virgem.

Outro detalhe que Freud assinala é o fato de Santa Ana e a Virgem possuírem
quase a mesma idade na imagem. Isso foi associado às duas mães que Leonardo
da Vinci possuiu: a mãe verdadeira e a madrasta.

92
Capítulo 5 Leitura de Obra de Arte pela Psicanálise

De toda sorte, “A tentativa de Freud”, afirma Merleau-Ponty (2004, p. 139),


“de decifrar o enigma a partir do que se sabe sobre a significação do vôo das
aves, sobre os fantasmas de fellatio e sua relação com o período de aleitamento,
certamente levantará protestos”. Sem dúvida, a análise de Freud sobre Leonardo
da Vinci e sua recordação da infância não foram bem aceitas. Vejamos, porém, o
que Clark escreveu:

Suas conclusões foram rejeitadas com horror pela maioria dos


estudiosos de Leonardo, e não há dúvida de que os processos
de uma mente poderosa e complexa não podem ser deduzidos
de uma simples frase nem explicados por um único sistema de
psicologia. [...] No entanto, ele nos ajuda a conceber o caráter
de Leonardo com sua insistência sobre sua anormalidade.
Devemos ter isto em mente ao examinar superficialmente suas
primeiras obras. Depois, não esqueceremos isso facilmente.
(CLARK, 2003, p. 51)

Que sua Lembrança da infância possa ser uma fantasia em que o abutre
represente uma alusão à sua sexualidade e que a cauda do abutre tocando os
lábios seja a representação do órgão sexual masculino e, por conseguinte, um
possível desejo reprimido de Leonardo da Vinci ou o fato de o abutre representar
sua mãe, como mostram os hieróglifos do antigo Egito (segunda hipótese da
análise freudiana), parece-nos especulação partidária de alguém que se propõe a
analisar a arte apenas sob um único ponto de vista.

Leonardo da Vinci foi um dos maiores gênios que a humanidade


Leonardo da Vinci
já teve. De fato, até seus contemporâneos a ele atribuíam grande
foi um dos
talento e genialidade. Em um fragmento do Tratado da pintura, chegou
maiores
a dizer: “quero fazer milagres”. Considerado uns dos maiores homens
gênios que a
de todos os tempos, devido a sua superabundância de talentos, seus
humanidade já
historiadores dizem que ele era muito belo na aparência e no físico;
teve.
tinha uma voz magnífica e encantava a todos que o escutavam; tinha
um talento invejável para a Matemática; e uma mente extremamente
aguçada para a investigação científica. Evidentemente, sem contar
com seu talento para as artes e, sobretudo, para a pintura. A história
nos mostra que pintou poucos quadros – talvez pela multiplicidade de
talentos que possuía – e raramente dava por concluída uma obra.

Uma das obras mais intrigantes e de maior prestígio, entre todas as outras
pinturas do mundo ocidental, é, sem dúvida, a Monalisa. Presente no museu do
Louvre, já foi roubada por um operário que lá trabalhava e também já serviu de
adorno no quarto de Napoleão. Alguns especuladores dizem que é um autorretrato
de Leonardo da Vinci. Outros ainda consideram que era a tentativa de o pintor
resgatar ou imortalizar o sorriso de sua mãe. Muitos mistérios se acercam em
torno desse retrato.

93
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Figura 35 - Monalisa, 1503-6, Leonardo da Vinci

Fonte: Disponível em: <http://www.guarulhosonline.com/news/oficina-


infantil-de-arte-com-monalisa/>. Acesso em: 1º jul. 2011.

Freud (1980, p. 102) assim analisa o sorriso da Monalisa e o de outras


pinturas de Leonardo da Vinci:

[...] então as mulheres sorridentes nada mais seriam senão a


reprodução de sua mãe Caterina, e começamos a suspeitar
a possibilidade de que este misterioso sorriso era o de sua
mãe – sorriso que ele perdera e que muito o fascinou, quando
novamente o encontrou na dama florentina.
Talvez os
psicanalistas
Talvez os psicanalistas estejam certos em relação à infância de
estejam certos
Leonardo da Vinci. Talvez não. Nunca saberemos ao certo. O que
em relação
realmente conta é que foi um grande artista e muito acrescentou para
à infância de
o desenvolvimento da arte com suas técnicas renovadoras e suas
Leonardo da
pesquisas sobre a natureza para as ciências. Seus estudos despertam
Vinci. Talvez não.
a atenção e o interesse de vários estudiosos, de variadas áreas do
Nunca saberemos
conhecimento, produzindo significações que se desdobram a cada
ao certo.
momento, cada vez mais e mais... ad infinitunn.

Lacan Lendo Holbein


A arte, para Jacques Lacan, produz um sentido diferente daquele causado
em Freud. O pai da psicanálise procurou ver traços do artista na obra de arte e,
por exemplo, viu, no sorriso das mulheres pintadas por Leonardo da Vinci, uma

94
Capítulo 5 Leitura de Obra de Arte pela Psicanálise

representação do sorriso materno. Já, para Lacan, esse sorriso era algo estranho,
provocativo e, até, por que não considerar, perturbador. Essa é a produção de
sentidos que a obra causa em Lacan. Mais do que analisar as obras e os artistas,
Lacan queria aprender com elas.

Uma das obras tomadas pelo psicanalista foi Os embaixadores, do pintor


Hans Holbein, de 1533. A pintura mostra um objeto estranho que se impõe
obliquamente na parte inferior da tela e que a atravessa, como se fosse pintado
posteriormente, algo que parece não fazer parte da obra. As imagens da obra
são construídas à maneira clássica: “os dois personagens estão hirtos, duros,
dentro de seus ornamentos de ostentação. Entre eles, toda uma série de objetos
que figuram, na pintura da época, os símbolos da vanitas.” (LACAN, 2008, p.
87). Ao prestarmos mais atenção na obra – senão esse detalhe nos passaria
despercebido – vemos o rasgo obscuro que perpassa o plano inferior do quadro e
que rompe a plasticidade da obra.

Figura 36 - Os embaixadores, 1533, Hans Holbein

Fonte: Disponível em: <http://www.casthalia.com.br/a_mansao/


obras/holbein_embaixadores.htm>. Acesso em: 5 jul. 2011.

O pintor, para produzir tal efeito, fez uso da técnica da anamorfose (uso invertido
das leis da perspectiva). Assim, ao olharmos de viés para o quadro, veremos uma
caveira aterrorizante. Sobre esse detalhe, assinala Lacan (2008, p. 88):

[...] Holbein nos torna aqui visível algo que não é outra coisa
senão o sujeito como nadificado – nadificado numa forma que
é, falando propriamente, a encarnação imajada do menos-fi [(
- φ)] da castração, a qual centra para nós toda a organização
dos desejos através do quadro das pulsões fundamentais.

95
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Nessa análise, vemos alguns conceitos centrais na teoria lacaniana: pulsão,


castração e desejo. Em nosso texto, não nos aprofundaremos nesses conceitos
por serem demasiadamente extensos e complexos, o que nos tomaria muito
tempo e também por não serem relevantes nesse momento.

Para uma melhor compreensão desse assunto, sugerimos a


leitura do texto de Lacan. Você poderá encontrá-lo no livro: LACAN,
Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais
da psicanálise. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

Lacan (2008) assinala que Holbein nos instala num solo


O olhar deixa de ser
inseguro, que nos incomoda, que nos abala, que nos descentraliza e
uma mera atitude,
nos insere num lugar onde precisamos nos reelaborar e nos atualizar
um ponto de vista,
constantemente.
uma maneira de
ler a imagem, para
Sobre a obra, Lacan (2008, p. 91) afirma: “Esse quadro não
ser um objeto, algo
é nada mais do que é todo quadro, uma armadilha de olhar. Em
estranho e que é
qualquer quadro que seja, é precisamente ao procurar o olhar em
objeto da pulsão
cada um de seus pontos que vocês o verão desaparecer.” Assim,
escópica. Lacan
o que pertence ao olhar escapa do empreendimento daquilo que
(2008) desloca o
a visão ordinária vê. Essa vitória do olhar sobre o olho, pois ver é
olhar, que era do
função do olho e o olhar é tido como objeto da função escópica, “tem
lado do sujeito, e o
uma estrutura de reviravolta, além de ser considerado como um olhar
coloca do lado
fendido, rasurado e manchado em razão da esquize, da fenda entre
do objeto.
o olho e o olhar”; o olhar “como objeto [...] em lugar do Outro, que
é ponto da falta, da angústia e do estranhamento” (GUIMARÃES,
1995, p. 105). Desta forma, o olhar deixa de ser uma mera atitude,
Em nossa vida
um ponto de vista, uma maneira de ler a imagem, para ser um objeto,
cotidiana, há uma
algo estranho e que é objeto da pulsão escópica. Lacan (2008)
reversibilidade do
desloca o olhar, que era do lado do sujeito, e o coloca do lado do
olhar: ao mesmo
objeto. Assim, entre o sujeito e a imagem, há o olhar, há o quiasma,
tempo em que
há o que não se deixa capturar.
vemos, somos

vistos por aquilo que
O olho é o sujeito consciente, o cogito cartesiano, o sujeito
vemos (mesmo os
do conhecimento. O olhar, por sua vez, representa o sujeito do
objetos!) e, nessa
inconsciente e do desejo. Se há falta, então há desejo. “[...] de todos
relação, também
os objetos nos quais o sujeito pode reconhecer a dependência
percebemos que
em que está no registro do desejo, o olhar se especifica como
somos vistos.
inapreensível.” (LACAN, 2008, p. 86).

96
Capítulo 5 Leitura de Obra de Arte pela Psicanálise

Em nossa vida cotidiana, há uma reversibilidade do olhar: ao mesmo tempo


em que vemos, somos vistos por aquilo que vemos (mesmo os objetos!) e, nessa
relação, também percebemos que somos vistos. Ao postular tal teoria, a partir da
obra de Holbein e de um texto do filósofo Merleau-Ponty (O visível e o invisível),
Lacan (2008) nos chama a atenção para uma terceira forma de olhar: algo que
atravessa a reversibilidade do olhar/ser-olhado e que não sabemos direito o que
é. Ele chama isso de esquize do olhar: é algo que é estranho, que nos escapa,
que atravessa o ato de ver, que não se deixa apreender e que é vazio.

Parece difícil de entender isso? Pois bem, alguns pintores,


Tanto Lacan
como Paul Klee, constantemente comentaram, em seus textos, que
quanto Merleau-
percebiam que eram olhados pelas coisas. Klee falava que as árvores
Ponty consideram
ficavam olhando para ele. O fato de nós olharmos e alguém nos olhar
a reversibilidade
é simples. Todos conseguem entender. Porém, saber que um objeto
do olhar. Só que
nos olha parece ser algo mais complexo e estranho. Em todo caso,
ambos também
tanto Lacan quanto Merleau-Ponty consideram a reversibilidade do
certificam que
olhar. Só que ambos também certificam que há algo mais além dessa
há algo mais
reversibilidade: algo que foge, que escapa, que é estranho e que nos
além dessa
permite ver o vazio entre duas coisas.
reversibilidade:
algo que foge,
Correlativamente, podemos ver isso também na linguagem
que escapa, que é
verbal. Entre um signo e outro, entre uma palavra e outra, há um
estranho e que nos
vazio, um silêncio. Silêncio que permite haver um entrelaçamento
permite ver o vazio
entre as palavras e, por consequência, possibilita a comunicação
entre duas coisas.
entre as pessoas.

Holbein igualmente nos mostra algo parecido: entre o olhar que olha e que é
visto, algo existe e que não sabemos ao certo o que é. Nesse sentido, a obra de
arte contribuiu para Lacan pensar o mistério da visão.

Se você tiver muita dificuldade para entender a teoria de


Lacan e desejar aprofundar seus conhecimentos, leia o livro:
SAFATLE, Vladimir. Lacan. São Paulo: Publifolha, 2009.

97
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Atividade de Estudos:

1) A partir dos textos lidos anteriormente, responda: a maneira como


Freud lia as obras de arte era igual à de Lacan? Justifique sua
resposta.
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Algumas Considerações
Todo aquele que se propôs, alguma vez, a se expressar por meio da pintura,
da escultura, da escrita de um poema ou de outra atividade artística, sabe que
a obra ultrapassa os limites racionais da intenção do autor. Aquilo que escapa é
o que permite à obra não ter um sentido único e determinado, mas que a deixa
causar inúmeras significações cada vez que é retomada.

Se todas as significações estão na própria obra ou se estão na mente


do espectador não sabemos ao certo. Mas é fato que obras de arte causam
significações diversas e, por conta disso, ora causam um deleite, ora provocam o
espectador de forma perturbadora e enigmática.

Vimos que a psicanálise leu as obras de artes de algumas maneiras e as


continuará lendo. Inúmeros livros e textos foram produzidos a partir desse
entrelaçamento. Para Freud, foi de uma forma; para Lacan, foi de outra. Talvez o
que importa é não admitirmos que os sentidos delas se esgotem em determinada
teoria. Nesse contexto, a obra é aberta e precisa da retomada do espectador para
dar-lhe continuidade.

98
Capítulo 5 Leitura de Obra de Arte pela Psicanálise

Referências
BRETON, André. Que é surrealismo? In: CHIPP, H. B. (Org.). Teorias da arte
moderna. Trad. Antonio de Pádua Danesi e Mônica Stahel. São Paulo: Martins
Fontes, 1999. p. 21-36.

CLARK, Kenneth. Leonardo da Vinci. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

FREUD, Sigmund. Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância. Rio


de Janeiro: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud, 1980.

GUIMARÃES, Dinara Machado. O olhar é o avesso da consciência. In:


CESAROTTO, Oscar (Org.). Ideias de Lacan. São Paulo: Iluminuras, 1995. p.
43-57.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da


psicanálise. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

MALRAUX. André. As vozes do silêncio. Lisboa: Livros do Brasil, [19--]. v. 2.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify,


2004.

MINK, Janis. Miró. Book Description: Taschen, 2005.

RIVERA, Tania. Arte e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

SAFATLE, Vladimir. Lacan. São Paulo: Publifolha, 2009.

99
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

100
C APÍTULO 6
Arte e Filosofia

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

99 Investigar maneiras como a filosofia ajuda a “ler” a obra de arte e produzir


sentidos.

99 Constatar que a arte pode ser uma maneira de ensinar o filósofo a descobrir e
validar conhecimentos
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

102
Capítulo 6 Arte e Filosofia

Contextualização
Ao propor uma linha de raciocínio para o material de estudos sobre leitura e
produção de sentidos em artes visuais, veio-nos à mente o entrelaçamento entre
arte e filosofia. Inúmeros filósofos, ao longo dos milênios, falaram da arte em
diversos contextos e situações, às vezes desqualificando-a, noutras, acentuando
a criação e a expressão dela e por ela concebidas. Em sua maior parte, os
pensadores se apropriaram da arte para poderem dissertar acerca do belo.

Temos, por exemplo, em Platão (428-347 a.C.), os primeiros pensamentos


sobre arte. Segundo esse pensador, as imagens artísticas são “sombras das
sombras” e a beleza quase nunca coincide com as obras de arte, ou seja, já que
o mundo que vemos é sombra do mundo verdadeiro (mundo das ideias), a pintura
é a imagem dessa sombra. Logo, pintar é a representação de uma representação.
Aristóteles (384-322 a.C), por sua vez, apresenta a teoria mimética e a ideia de
catarse, segundo as quais os espectadores se “purificam” assistindo às tragédias.

Dando um grande salto no tempo, o filósofo David Hume (1711-1776) formula


uma estética subjetiva psicológica, isto é, para ele, o belo está na mente do
observador, e não no objeto de arte. Immanuel Kant (1724-1804), em oposição à
Hume, analisa as condições de percepção em que o objeto se apresenta como
belo. Em seu livro Crítica da faculdade de julgar, Kant propõe uma definição de belo,
apresenta uma teoria de “gênio” e faz uma classificação das belas artes. De acordo
com Kant, belos são, sobretudo, os seres naturais (as flores, os cristais, o canto dos
pássaros); belo é o útil e o que agrada universalmente sem conceito. Para Georg W.
F. Hegel (1770-1831), a arte representa a esfera do Espírito Absoluto. Um conceito
fundamental em Hegel é que o belo refere-se à aparição sensível da ideia. Isso só
para citar alguns nomes. Outros grandes pensadores se ocuparam em falar da arte,
como Schopenhauer (1788-1860), Nietzsche (1844-1900), Adorno (1903-1969),
Walter Benjamim (1892-1940) e, no século XX, Heidegger (1889-1976), Sartre
(1905-1980), Bergson (1859-1941) e Merleau-Ponty (1908-1961).

Se você quiser se aprofundar no assunto de Estética e


Filosofia da Arte, sugerimos a leitura do livro: LACOSTE, Jean.
A filosofia da arte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.

Você deve estar perplexo diante de tantas teorias e conceitos distintos.


Contudo, não é nosso objetivo, aqui, fazer uma investigação das teorias da
estética e da arte de acordo com a história da filosofia. Nosso ensejo consiste

103
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

em apresentar um filósofo que recorreu à arte e nela viu uma verdadeira filosofia.
Esse pensador nasceu na França e não possui, especificamente, uma teoria da
arte. É nessa perspectiva que o filósofo Maurice Merleau-Ponty, ao falar da arte
em seus textos, não objetivava fazer uma teoria estética, isto é, não queria tentar
falar dela como uma sistematização ou mesmo se utilizar dela para ilustrar suas
abordagens filosóficas, mas, ao contrário, almejava aprender com ela.

Em suma, a leitura de obras de arte produziu um sentido muito especial em


Merleau-Ponty e é isso que veremos neste capítulo.

Merleau-Ponty e a Pintura
Ao lermos os textos de Merleau-Ponty, verificamos que ele não está
interessado em explicar a arte a partir da filosofia, tampouco ilustrar seus escritos
com teorias artísticas. Então, qual é o estatuto da arte, mais especificamente
da pintura, para Merleau-Ponty? O que ela teria a ensinar-lhe? É sobre isto que
trataremos neste capítulo.

Caro estudante, conforme já mencionamos Amauri Carboni


Bitencourt, em sua pesquisa de mestrado, versou sobre esse tema.
O que você lerá aqui é uma compilação resumida da sua dissertação.
Para um melhor aprofundamento, leia a dissertação de Bitencourt
(2008), cujo título é Merleau-Ponty acerca da pintura, e que você
poderá encontrar acessando o site <http://www.tede.ufsc.br/teses/
PFIL0082-D.pdf>.

Em primeiro lugar, antes de adentrarmos o mundo da pintura seguindo o


filósofo, cabe-nos investigar a sua proposta de estudo. Você sabe, caro estudante,
a questão filosófica principal que move Merleau-Ponty?

A tradição filosófica construiu, ao longo dos milênios, sistemas que tentam


explicar as ações humanas, a história, a cultura, a linguagem e, até, o ato de
pensar. Para que a filosofia recupere o espanto original, que deveria ser o
centro gravitacional do questionar filosófico, é necessário que volte a assentar
seu pensamento num lugar onde as dicotomias ainda não foram consolidadas,
recuperando, assim, a radicalidade de interrogar-se e, por conseguinte,
interrogar o mundo.

104
Capítulo 6 Arte e Filosofia

Ao questionar os sistemas filosóficos e científicos de seu tempo, Merleau-


Ponty (2004) afirma que tanto a ciência quanto a filosofia deveriam voltar a
assentar suas pesquisas num território “pré-espacial”, num lugar onde as coisas
se apresentam de maneira confusa e quase indistinta. De acordo com Merleau-
Ponty (2004), os artistas já habitam esse lugar pré-reflexivo, bruto, não lapidado.
Eles mostram ao filósofo como olhar a natureza primordial. Olhando assim,
estaremos diante do mundo como que pela primeira vez, com os olhos sempre
renovados e, consequentemente, “espantados” com o misterioso mundo da vida
que se desdobra continuamente.

Vemos, diante de tal proposta, a singular referência elogiosa à arte atribuída


pelo filósofo. Frente a isso, a arte produziu uma especial significação na “visão” de
Merleau-Ponty. Aprofundemos esta ideia.

Merleau-Ponty (2003, p. 127) afirma que é preciso “instalar-


Não tendo mais
se num local em que estas [as coisas, os dualismos...] ainda não
a função de
se distinguem, em experiências que não foram ainda ‘trabalhadas’,
documentar ou
que nos ofereçam concomitantemente e confusamente o ‘sujeito’ e o
representar,
‘objeto’ [...]”. Dessa maneira, o filósofo propõe um terceiro caminho: o
a pintura de
caminho da não-dualidade.
Cézanne
pretende algo
Seguindo uma trilha semelhante à de Merleau-Ponty, Cézanne “em
mais: pintar
vez de aplicar à sua obra dicotomias, prefere estabelecer um caminho
não a sensação
ambíguo cujo terreno ainda não foi “humanizado” (MERLEAU-PONTY,
da natureza,
2004, p. 128), ou seja, “Cézanne retorna justamente à experiência
como faziam os
primordial de onde todas essas noções [alma x corpo, pensamento
impressionistas,
x visão] são tiradas e que nos são dadas inseparáveis.” (MERLEAU-
tampouco a
PONTY, 2004, p.131).
racionalidade
dos clássicos,
Não tendo mais a função de documentar ou representar, a pintura
mas uma pintura
de Cézanne pretende algo mais: pintar não a sensação da natureza,
tão sólida e
como faziam os impressionistas, tampouco a racionalidade dos
densa tal como
clássicos, mas uma pintura tão sólida e densa tal como a experiência
a experiência
“verdadeira” que temos do mundo. Para Cézanne, não há mais uma
“verdadeira” que
dualidade na pintura e no mundo, ou seja, não temos de escolher
temos do mundo.
entre a sensação e a inteligência, separar aquilo que vemos daquilo
que pensamos, mas uni-las organizando de uma determinada forma na
pintura, de maneira a mostrar a “matéria em via de ser formar, a ordem
nascendo por uma organização espontânea.” (MERLEAU-PONTY,
2004, p. 128).

105
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Figura 37 - Vista de Chatêau Noir, 1894-1896, Paul Cézanne

Fonte: Disponível em: <http://billsmusicblog.blogspot.com/2009/04/cezanne-


beyond-philadelphia-museum-of.html> Acesso em: 1° ago. 2011.

Caro estudante, essa maneira de pintar está de acordo com a


Em última
proposta filosófica de Merleau-Ponty. Em última instância, tanto
instância, tanto
Merleau-Ponty, na sua filosofia, quanto Cézanne, na sua pintura,
Merleau-Ponty,
buscam a natureza primordial, o solo comum de toda a significação.
na sua filosofia,
O filósofo queria fazer uma filosofia a partir do nosso modo de existir e
quanto Cézanne,
de ser no mundo, no próprio ato da experiência. No fundo, ele queria
na sua pintura,
resgatar o estado original, o mundo primordial, o silêncio, o lugar
buscam a natureza
anterior a toda elaboração reflexiva. Segundo as palavras do próprio
primordial, o solo
filósofo, é um mundo ambíguo semelhante a um “lençol de sentido
comum de toda a
bruto” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 15), que nos permite perceber
significação.
“a vibração das aparências que é o berço das coisas.” (MERLEAU-
PONTY, 2004, p. 133).

É em Cézanne que Merleau-Ponty encontra a crença no mundo


É em Cézanne da percepção, mundo onde há uma reversibilidade do visível e do
que Merleau-Ponty invisível, a partir da qual a pintura acontece. De modo geral, “em
encontra a crença vez da razão já constituída na qual se encerram os ‘homens cultos’
no mundo da [mundo já pensado], ele [Cézanne] invoca uma razão que abarcaria
percepção, mundo suas próprias origens”. De onde se segue que “ele se volta, em todo
onde há uma caso, para a idéia ou o projeto de um Logos infinito.” (MERLEAU-
reversibilidade PONTY, 2004, p. 135). Meditava durante horas diante da natureza e,
do visível e do ao encontrar o “olhar certo” – o seu “motivo” –brotava com a paisagem.
invisível, “A paisagem, ele dizia, pensa-se em mim e eu sou sua consciência.”
a partir da qual a (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 133). Desse modo, Cézanne mostrou
pintura acontece. a Merleau-Ponty como ver e expressar o mundo em sua origem: um

106
Capítulo 6 Arte e Filosofia

lugar ambíguo, reversível. Não foi isso que ele quis enfatizar ao dizer a Gasquet
que “o que estou a tentar explicar-te é mais misterioso; está ligado às profundas
raízes do ser, à intangível fonte de sensação”? (CÉZANNE, 1993, p. 56).

Criação e Expressão em Cézanne

Cézanne inicia um novo período na história da arte, rompendo


Cézanne conseguiu
com as técnicas erigidas pelos clássicos. Isto não quer dizer que
desenvolver
tenha desprezado os estudos referentes à pintura, tampouco as
técnicas e reflexões
técnicas desenvolvidas até então. Ao contrário, ia constantemente ao
renovadoras que
Louvre e estudava os grandes pintores, como Delacroix e Poussin.
auxiliaram os
Os impressionistas já haviam iniciado o caminho da “libertação”
pintores posteriores
da arte, tendo Manet como precursor. Porém, Cézanne conseguiu
a ele.
desenvolver técnicas e reflexões renovadoras que auxiliaram os
pintores posteriores a ele.

Consideramos importante, para um melhor aprofundamento


no assunto, ler o texto A dúvida de Cézanne, de Merleau-Ponty.
Você pode encontrá-lo em: MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho
e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

A inovação em Cézanne é que ele queria pintar de forma a não A inovação em


congelar a cena retratada; de maneira que, ao olharmos o quadro, Cézanne é que
tivéssemos a sensação de estarmos passeando por entre os objetos ele queria pintar
pintados. Tampouco queria imprimir, em suas telas, a sensação de forma a não
visual que os efeitos causados pela luz nos dão momentaneamente. congelar a cena
Para além de uma representação do mundo dominado e inventado retratada; de
classicamente ou uma representação fiel das sensações e maneira que,
impressões que o olho do pintor experimenta no instante – como ao olharmos o
faziam os impressionistas -, Cézanne queria “buscar a realidade sem quadro, tivéssemos
abandonar a sensação, sem tomar outro guia senão a natureza na a sensação
impressão imediata, sem delimitar os contornos, sem enquadrar a cor de estarmos
pelo desenho, sem compor a perspectiva nem o quadro.” (MERLEAU- passeando por
PONTY, 2004, p. 127). É dessa forma que sua pintura, como bem entre os objetos
observa Merleau-Ponty, sofre transformações, principalmente entre pintados.
1870 e 1890.

107
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Merleau-Ponty (2004, p. 127) apresenta dois exemplos de pinturas de


Cézanne, pontuando seu método:

as travessas ou as taças postas de perfil sobre uma mesa


deveriam ser elipses, mas as duas extremidades da elipse
são exageradas e dilatadas. A mesa de trabalho, no retrato de
Gustave Geffroy, dispõe-se na base do quadro contra as leis
da perspectiva.

Figura 38 - Cereja e pêssegos, 1883-1887, Paul Cézanne

Fonte: Becks-Malorny (2005, p. 68).

Essas características também são vistas, por exemplo, na obra Cereja e


pêssegos, em que os dois pratos pintados possuem “elipses” desiguais dando-nos
a impressão de terem sido vistos sob ângulos diferentes. O pote verde parece meio
torcido, não combinando, pela perspectiva tradicional, com a sua abertura superior.
O pano sobre a mesa se mostra endurecido tanto quanto uma folha de metal.

Na pintura de Cézanne, vemos que, por exemplo, o pêssego e


De maneira geral,
o pote habitam o espaço e o tempo e se entrelaçam com as outras
em sua pintura, não
coisas. A linha que os delimita não é fechada, única e acabada,
apenas nessa em
mas possui rupturas: há várias linhas que contornam os objetos, ao
específico, não há
mesmo tempo fazendo com que o olho perceba que há algo que
uma supremacia de
liga essas diferentes partes. O espectador percebe algo, mas não
quem é figura e de
consegue ver direito o que é. De maneira geral, em sua pintura, não
quem é fundo.
apenas nessa em específico, não há uma supremacia de quem é
figura e de quem é fundo.

Em nossa vida cotidiana, vemos objetos que disputam entre si nosso olhar,
pedem-nos que lhes demos atenção. Ao mirar nosso olhar no pêssego, por exemplo,
ele se torna figura para nós e o prato, fundo. Contudo, se fizermos o movimento
inverso, o prato se apresentará como figura e o pêssego, fundo.

108
Capítulo 6 Arte e Filosofia

A pintura do mestre de Aix apresenta os objetos ainda em formação, não


havendo, por isso, um objeto que se sobressaia ao nosso olhar: todos querem
se apresentar ao mesmo tempo para nós. Desse modo, Cézanne nos insere no
mundo primordial: no próprio movimento das coisas se desdobrando. Se assim
nos posicionamos, começaremos a perceber que o mundo dos homens – em
que já há uma reflexão definida – é monótono e sem novidades. A renovação
constante que ele nos apresenta é a própria renovação do mundo da vida. Não
apenas isso. As próprias cores do quadro, por sua vez, abrem uma passagem em
nosso corpo, habitam nossos poros num dado instante, invadem nossos sentidos
e provocam sensações novas.

Figura 39 - Retrato de Gustave Geffroy, 1895-1896, Paul Cézanne

Os motivos de
Fonte: Merleau-Ponty (2004, p. 53). Cézanne estão
impressos em
Outra “deformação coerente” mostrada na obra de Cézanne é seu estado
vista na mesa do Retrato de Gustave Geffroy, que parece cair à frente, primordial e, por
mais uma espécie de parede inclinada do que uma mesa. Os motivos isso, podemos
de Cézanne estão impressos em seu estado primordial e, por isso, notar, nas obras,
podemos notar, nas obras, a retomada da sua significação original, a retomada da
que, no mundo da vida, no próximo instante, se esvai na trivialidade sua significação
das ocorrências adquiridas. Em seu método, Cézanne faz uma rotação original, que,
no conceito de perspectiva: introduz a noção de perspectiva “vivida”. no mundo da
vida, no próximo
No mundo cotidiano, vemos a perspectiva vivida, que nossa instante, se esvai
percepção vê, diferentemente da perspectiva geométrica ou fotográfica. na trivialidade
Na perspectiva vivida, quando vemos os objetos, diferentemente da das ocorrências
fotografia, os próximos nos parecem ser menores e os distantes, por adquiridas.

109
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

sua vez, maiores. “[...] gênio de Cézanne”, diz-nos Merleau-Ponty


(2004, p. 129), “é fazer com que as deformações perspectivas, pelo
arranjo de conjunto do quadro, deixem de ser visíveis por elas mesmas
A busca de
quando é olhado globalmente”, contribuindo apenas como acontece na
Cézanne era
visão natural, “para dar a impressão de uma ordem nascente, de um
exprimir, em sua
objeto em via de aparecer, em via de aglomerar-se sob nossos olhos”.
obra, pelo arranjo
apropriado das
Em síntese, Cézanne quis pintar os objetos ainda em formação. A
cores, o contorno
busca de Cézanne era exprimir, em sua obra, pelo arranjo apropriado
e as formas do
das cores, o contorno e as formas do mundo tal qual eles emergem
mundo tal qual
na natureza. Assim, a sua preocupação era estabelecer uma forma
eles emergem na
de circunscrição dos objetos, obtendo, com isso, não sacrificar nem a
natureza.
profundidade nem a organização livre que percebia.

Figura 40 - Natureza morta com melão verde, 1902-1906, Paul Cézanne

Fonte: Disponível em: <http://f.i.uol.com.br/folha/ilustrada/


images/0712935.jpg>. Acesso em: 20 fev. 2008.

É nesse sentido que Merleau-Ponty (2004, p. 130) fala do contorno dos


objetos observado nos quadros de Cézanne:

[...] contorno dos objetos, concebido como uma linha que os


delimita, não pertence ao mundo visível, mas à geometria. Se
marcamos com um traço o contorno de uma maçã, fazemos
dela uma coisa, quando ele é o limite ideal em cuja direção os
lados da maçã fogem em profundidade. Não marcar nenhum
contorno seria retirar aos objetos sua identidade. Marcar um
só seria sacrificar a profundidade, isto é, a dimensão que nos
oferece a coisa, não como exposta diante de nós, mas como
cheia de reservas e como uma realidade inesgotável. Eis por
que Cézanne acompanhará, numa modulação de cores, a
intumescência do objeto e marcará com traços azuis vários
contornos.

110
Capítulo 6 Arte e Filosofia

Figura 41 - Natureza morta com melão verde [detalhe], 1902-1906, Paul Cézanne

Fonte: Disponível em: <http://f.i.uol.com.br/folha/ilustrada/


images/0712935.jpg>. Acesso em: 20 fev. 2008.

Nesses “emaranhados” do contorno, percebemos como ele


Cumpre
delimitava os objetos na representação. O contorno dos objetos na obra
compreender,
é o que os liga; é onde o olhar vaza, é uma passagem. Não percebemos
caro estudante,
as coisas como elas são; percebemos perfis delas.
que a pintura
moderna não
Cumpre compreender, caro estudante, que a pintura moderna
mais está
não mais está interessada em representar as três dimensões na
interessada em
tela. Os cubistas, por exemplo, seguiram a trilha de Cézanne quando
representar as
consideraram a forma externa e o envoltório das coisas como sendo
“segunda”, “derivada”. Isso porque essas características pictóricas,
três dimensões
esse limite corporal, que aprendemos outrora que os objetos têm, não é
na tela.
o que faz com que uma coisa tenha formato. Para isso, é preciso abrir
à força essa casca de espaço, quebrar o envoltório. Dessa forma, mais
A cor é outro
do que buscar o espaço ou o conteúdo isoladamente, o pintor deve
procurá-los juntos.
elemento
importante
O mundo não está mais diante do pintor por representação: “é na pintura
antes o pintor que nasce nas coisas como por concentração e vinda a de Cézanne.
si do visível [...] arrebentando a ‘pele das coisas’, para mostrar como as Para ele, que
coisas se fazem coisas e o mundo, mundo” (MERLEAU-PONTY, 2004, considerava o
p. 37). Eis em que sentido Cézanne “germinava com a paisagem”. desenho puro
Assim ele atacava por todos os lados o seu “motivo”. Ao fazer isso, como uma
o que surgia na tela não era mais uma figura construída numa abstração, dizia
sequência lógica, de forma linear, mas algo espontâneo, expressivo, que o desenho e
original. Ele está, a rigor, inserido na própria experiência da pintura, na a cor não devem
reversibilidade sua com o mundo. ser considerados
distintos e que
A cor é outro elemento importante na pintura de Cézanne. Para tudo na natureza
ele, que considerava o desenho puro como uma abstração, dizia que é colorido.
o desenho e a cor não devem ser considerados distintos e que tudo

111
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

na natureza é colorido. A espinha dorsal de sua técnica é que, ao


Cézanne chegou a
mesmo tempo em que pintamos, também desenhamos. A construção
duvidar do sucesso
da imagem, dessa maneira, é feita de forma integral no quadro:
do seu trabalho.
pintando e desenhando ao mesmo tempo, atacando o seu “motivo”
Contudo, conseguiu
por todos os lados.
mostrar como ver a
natureza primordial
Ao tratar do desenho e da cor como intercambiáveis, Cézanne
e como ela pode desencadeia uma “expressividade semelhante a que vivemos em
ser transformada nossa experiência perceptiva”, conforme nos apresenta Müller (2001,
em linguagem na p. 232) lendo Merleau-Ponty. Isso porque sua pintura simula “para
cultura. nós uma situação de natureza”. Em suma, “Cézanne faz de seus
quadros significações ainda em formação, faz das diversas imagens
pintadas objetos ainda não consumados. Por conseguinte, Cézanne
Quando o pintor motiva em nós a experiência expressiva que vivemos na natureza.”
de Aix busca a (MÜLLER, 2001, p. 234).
profundidade,
volta-se à realidade Sabe por que isso é importante para Merleau-Ponty? Afirma
da experiência o filósofo: “o que desejo fazer é reconstituir o mundo como sentido
humana, ao de ser absolutamente diferente do ‘representado’, a saber, como
tentar diariamente ser vertical que nenhuma das ‘representações’ esgota e que todas
apreendê-la e ‘atingem’, o Ser selvagem.” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 229). Era
expressá-la pela isso que o pintor fazia na prática. A sua tentativa era contínua, sem
arte. fim: todo dia recomeçava a sua pesquisa. Cézanne chegou a duvidar
do sucesso do seu trabalho. Contudo, conseguiu mostrar como ver a
natureza primordial e como ela pode ser transformada em linguagem
Esse espaço não na cultura. Não é por mero elogio que Gombrich (1999, p. 539)
pintado, essa falha, afirmou: “o verdadeiro motivo de espanto é que Cézanne conseguiu
sugere que Cézanne realizar em suas obras o que era aparentemente impossível”.
não conseguia
exprimir tudo o O que torna essa retomada merleaupontyana da obra de Cézanne
que via no mundo, realmente importante – para grande beneficio do pensamento moderno
mas também que – é que, quando o pintor de Aix busca a profundidade, volta-se à
não temos como realidade da experiência humana, ao tentar diariamente apreendê-la e
finalizar, de forma expressá-la pela arte. Tentativa sempre frustrada, pois não conseguia
integral e perfeita, atingi-la num todo. É por isso que o filósofo pôde citar a frase de
uma pintura. Giacometti: “penso que Cézanne buscou a profundidade durante toda
a sua vida.” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 35).

Nos últimos trabalhos, Cézanne entrega-se ao “jogo livre” das sensações e


deixa de pintar vários pontos da tela, deixando-os em branco. Nessa fase, Cézanne
já não se preocupa mais em preencher toda a extensão da tela com tintas.

Esses brancos que observamos em suas telas são assim deixados por que
ele não os terminava? Será por que ele interrompia o processo artístico? Na

112
Capítulo 6 Arte e Filosofia

verdade, quando observamos os brancos nas telas de Cézanne, percebemos


que existe ali algo, e não nada. A imagem que se apresenta ante nossos olhos
nos anuncia, de alguma forma, a figura daquele branco da tela que esconde uma
parte da paisagem, mas que se deixa transparecer, mesmo se ausentando. Esse
espaço não pintado, essa falha, sugere que Cézanne não conseguia exprimir tudo
o que via no mundo, mas também que não temos como finalizar, de forma integral
e perfeita, uma pintura. Ela está sempre “aberta”.

Observamos isso, por exemplo, na obra O Jardim de Lauves, de 1906.

Figura 42 - O jardim de Lauves, 1906, Paul Cézanne

Fonte: Disponível em: <http://carosamigos.terra.com.br/


imgs/cezanne7.gif>. Acesso em: 20 fev. 2008.

De modo geral, Cézanne dedicava-se seriamente à sua pesquisa. Estava


atento a todos os pontos da tela. Talvez esse depoimento de Vollard possa nos
apontar um caminho de como Cézanne se expressava:

Ao fim de cento e quinze sessões, Cézanne abandonou meu


retrato para voltar a Aix. ‘Não estou descontente com a frente
da camisa’, disse-me ao partir. [...] ‘Tente compreender, senhor
Vollard, o contorno foge-me’. É difícil imaginar – escreve ainda
Vollard – até que ponto, em certos dias, o seu trabalho era
longo e difícil. No meu retrato existem, na mão, dois pequenos
pontos em que a tela não está coberta. Fi-lo notar a Cézanne.
‘Se a minha sessão desta tarde no Louvre for boa – respondeu-
me -, talvez encontre amanhã o tom justo para tapar esses
espaços. Compreenda, senhor Vollard, se pusesse aí qualquer
coisa ao acaso, seria forçado a recomeçar todo o meu quadro
partindo desse ponto’. (ELGAR, 1987, p. 130).

Eis um bom texto sobre a vida e a obra de Cézanne:


ELGAR, Frank. Cézanne. Trad. Maria Luísa Silveira Botelho.
São Paulo: Editorial Verbo, 1987.

113
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

Frente ao relato apresentado, verificamos o quão sério era a


Seu olhar não
dedicação de Cézanne em pesquisar e criar; tão grande era a atenção
estava fixado
que dava a cada pincelada, a cada nova expressão. Seu olhar não
num ponto, mas
estava fixado num ponto, mas era aquele que abarca tudo num só
era aquele que
instante. É o olho que interroga todas as coisas como que pela primeira
abarca tudo num
vez; é um “nascimento continuado”. Não um olhar no sentido profano,
só instante. É o
reflexivo, clássico, mas aquele que “dá acesso a uma textura do Ser
olho que interroga
da qual as mensagens sensoriais discretas são apenas as pontuações
todas as coisas
ou as cesuras, textura que o olho habita como o homem sua casa.”
como que pela
(MERLEAU-PONTY, 2004, p. 20).
primeira vez; é
um “nascimento Figura 43 - Retrato de Ambroise Vollard, 1899, Paul Cézanne
continuado”.

Fonte: Elgar (1987, p. 133).



A montanha Sainte-Victoire sempre foi a grande paixão de Cézanne. Dizem
que ele a pintou 122 vezes. Sempre quando Cézanne interroga a montanha
Sainte-Victoire, o faz com seu olhar atual: é como se fosse pintá-la pela primeira
vez, como se todas as suas tentativas anteriores, de alguma forma, tivessem
fracassado; como se tudo o que disse a respeito dela fosse incompleto e ela
aparecesse ante seu olhar pedindo-lhe que a pintasse novamente. Não apenas
montanha como substância rochosa, mas também enquanto pintura que Cézanne
apresentou a nós e, após muito tempo, suas telas continuam a nos mostrar que a
montanha, por meio da retomada da obra, “se faz e se refaz de uma a outra ponta
do mundo, de outro modo, mas não mais energicamente que na rocha dura acima
de Aix.” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 23).

114
Capítulo 6 Arte e Filosofia

Figura 44 - A montanha Sainte-Victoire, 1885-1887, Paul Cézanne

Fonte: Cunha (1986, p. 224-225).

Conseguimos observar dois momentos da percepção de Cézanne ao pintar


a montanha. Na obra de 1885-1887, diferentemente das pinturas que Cézanne
realizou no período final da sua vida, fica evidente a atenção para o pinheiro que
está no primeiro plano. A montanha aparece lá distante. Nessa pintura, vemos
que ele ainda se “apoia” nas leis da perspectiva tradicional. Certamente que não a
segue fielmente; contudo, seu olhar ainda está “contaminado” pelos ensinamentos
aprendidos nas escolas de arte. Nas obras posteriores – como a de 1902-1906
– a montanha aparece soberana, como que se impusesse no espaço da tela.
Diferentemente da primeira (1885-1887), essa mostra que o pintor está muito
mais envolvido com o seu olhar atual. Ele está, por conseguinte, mais entrelaçado
com as coisas. Por isso, vemos, na tela, verdes que fazem parecer haver relva e
florestas no céu: o verde, que está no baixo do quadro, também aparece impresso
no alto, dando a entender que o conjunto está em movimento, em fluxo. O mato
passeia no céu tanto quanto o azul do céu passeia nas ramagens.

Figura 45 - A montanha Sainte-Victoire, 1902-1906, Paul Cézanne

Fonte: Becks-Malorny (2005, p. 77).

Recuperar o “espanto original” é a busca incessante de Merleau-Ponty.


Perguntar-nos: o que é um traço? O que é uma cor? é função da sua proposta

115
Leitura e produção de sentidos em artes visuais

filosófica. Perguntas que nunca terão uma resposta definitiva, pois a


Recuperar o
linguagem não dá conta em explicar o “Ser” das coisas. Não vemos traços
“espanto original”
e cores que vão para além daquilo que podemos colocar em palavras?
é a busca
Talvez, por isso, o escritor francês André Malraux tenha dito que “as
incessante de
vozes do silêncio” são a pintura. Como explicar, por exemplo, que uma
Merleau-Ponty.
simples pincelada faz aparecer (na tela) uma pedra? Ou que o simples
manejo de um ziguezaguear de nossa mão faz surgir uma estrada?

A pintura tenta dar conta de preencher os espaços vazios causados pela


vida. Esses espaços estão situados nos intervalos formados no fluxo continuado
dos fenômenos. É um lugar abismal, do não-dito, do não-discurso. Para melhor
elucidar isso, escutemos Clarisse Lispector, por meio de um de seus personagens:
“Estou consciente de que tudo o que sei não posso dizer, só sei pintando ou
pronunciando sílabas cegas de sentido.” (LISPECTOR, 1998, p. 11).

Atividade de Estudos:

1) Diante do que foi exposto neste capítulo, qual é a importância da


arte de Cézanne para Merleau-Ponty?
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Algumas Considerações
Poderíamos, caro estudante, ficar discutindo e olhando como a arte
produz significações na filosofia. Muitos pensadores, ao longo da história
da filosofia, a utilizaram para ilustrar suas teses ou elaborar teorias acerca do

116
Capítulo 6 Arte e Filosofia

belo. Contudo, foi em Maurice Merleau-Ponty que ela conseguiu produzir uma
significação promissora e fértil. Dessa forma, vimos que, a partir do contato com
a arte, especialmente com a pintura de Cézanne, ele conseguiu pensar melhor
filosoficamente, ou seja, Merleau-Ponty encontrava na arte um “ambiente fecundo”
para pensar e elaborar suas teorias.

Vimos, neste capítulo, que a pesquisa de Cézanne foi ao encontro


da teoria de Merleau-Ponty. Ambos seguiam o mesmo caminho, porém com
expressões diferentes: o filósofo pintava com palavras, enquanto o pintor pensava
com tintas, de onde se segue que Merleau-Ponty queria fazer uma filosofia tal
como uma pintura.

De uma ou de outra maneira, o importante a ressaltar é que ambos estavam


interessados em exprimir a “verdade” do mundo: o mundo em formação, aquilo
que é primordial.

Referências
BECKS-MALORNY, Ulrike. Paul Cézanne. Trad. Fernando Tomaz. Korea.
Paisagem, 2005

CÉZANNE, Paul. Cartas e citações. In: BARNES, Rachel (Org.) Os artistas


falam de si próprios: Cézanne. Trad. Maria Celeste Guerra Nogueira. Lisboa:
Dinalivro. 1993.

CUNHA, Eliel. Os grandes artistas: Cézanne. São Paulo: Nova Cultural, 1986.

ELGAR, Frank. Cézanne. Trad. Maria Luísa Silveira Botelho. São Paulo: Editorial
Verbo, 1987.

GOMBRICH, Ernst H. A história da arte. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:


LTC, 1999.

LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

____. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2003.

MÜLLER, Marcos José. Merleau-Ponty acerca da expressão. Porto Alegre:


EDIPUCRS, 2001.

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