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"Práticas documentárias": modo de


endereçamento, método de
descoberta e paradigmas cognitivos

Assim como a filosofia e as ciências políticas, induzidas por uma "teoria standard"
centenária, empregam uma sinédoque para falar dos fenômenos do aliquid pro
aliquo ("este por aquele) das relações de poder e força nos coletivos humanos,
também as teorias do cinema e da comunicação social usam "documentário" no
lugar de "cinema documentário". E, assim com as teorias políticas, as teorias
culturais arriscam-se a deixar que esta sinédoque tenha efeitos perversos,
dirigindo as expectativas dos estudiosos, interessados em um fenômeno
abrangente, para uma região restrita do mundo: assim como as representações
políticas são muito mais pervasivas e dinâmicas do que aquelas que foram
cristalizadas nos modelos de democracia liberal da moderniade, também
"documentário" é um evento semiótico de ocorrência muito mais vasta do que a sua
corporificação no cinema industrial massivo, dito "clássico". Efetivamente, hoje há
práticas de teatro, rádio, quadrinhos, performance (e, com destaque,
videoperformance) que podem tranquilamente ser classificadas como
"documentárias".

Para deixar isso mais claro, nesta seção, vamos começar falando do que se pode
entender como "documentário" em sentido amplo e concluir mostrando o quanto as
"práticas documentárias" são decisivas para que inúmeras práticas expressivas
envolvidas no funcionamento das esferas públicas atuais tornem-se capazes de
lidar com seus próprios limites e desafios. Em síntese, nossa argumentação aqui é
que as práticas documentárias são aquelas que emprestam às enunciações a
reflexividade discursiva típica do modo público de endereçar-se ("public mode of
address")

Embora o uso mais corrente de "documentário" ocorra na sinédoque (no lugar do


mais preciso "cinema narrativo documentário"), do uso do termo na famigerada
definição de Grierson, de cinema documentário como "tratamento criativo das
atualidades"), ela não é absolutamente original. Grierson, no momento em que o
cinema se consolidava como indústria, visava instaurar uma nova prática de
produção e apreciação das imagens a partir das quais se pretendia ensinar as
massas (os trabalhadores industriais, migrantes recentes das áreas rurais) o que as
tornaria bons cidadãos (do Imperio Britânico ou da America), catalizadores da
construção de "novos homens" (soviéticos, nacional-socialistas, fascistas,
republicanos, liberais et alii). As imagens do mundo não eram mais tomadas e
exibidas apenas por suas qualidades próprias enquanto imagens cronofotográficas,
não só por causa da sua raridade ou da maravilha da transposição das formas em
movimento do mundo para uma tela. A relevância desse olhar sobre o mundo passa
a provir do que elas podem propiciar em termos de um aprendizado compartilhado
através da percepção. O cinema documentário é, históricamente, constituído como
uma ferramenta de doc-encina para a multidão/turba, que permite o design de
corpos coletivos, uma prática docente para a educação das massas, fazelas doc-eis
conforme os propósitos ideológicos em voga em cada época e lugar.

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Mas... porque o cinema (e não o teatro, o rádio, as artes gráficas) se tornou o


substrato desta sinédoque? Neste caso, precisamos deslocar nossa observação da
tela para a sala e da sala para a cidade. Lembrando-nos das lição suprematista
sobre as 6 dimensões da pintura e das "novos sistemas da arte" (Málievitch:
largura, altura, profundidade, tempo, economia e cosmologia), devemos observar o
que está pressuposto à apreciação das imagens em movimento do "cinemão": a
profundidade obscura da sala, a sonorização envolvente, o conforto narcótico da
poltrona, a supressão do contato e olfato entre os corpos, a temperatura quase-
frigorífica, a inserção da sala de exibição na malha urbana (ou, mais recentemente,
nos labirintos de espelhos dos shopping-centres), a fila ansiogênica, a catraca e o
bilheteiro catárticos, a poltrona ansiolítica, o controle reciproco dos ruídos e
movimentos durante as exibições. Da mesma maneira, devemos observar como a
cenografia e a dramaturgia da apreciação cinematográfica foi transtornada pela
imagem eletrônica: sem cidade, sem silêncio, sem escuro, sem surround, sem
atenção concentrada, com um monte de gente junta, sem nenhuma garantia de
conforto, de originalidade ou de legalidade do ato de apreciação. As implicações de
que nenhuma destas características seja nova para o cinema (são apenas
discrepantes do arranjo "classico"), veremos mais adiante.

Com um grão de sal (de prata?), devemos nos recordar das lições de J. -L. Baudry,
sobre o "dispositivo de base" do cinema, a sala teatral escura: seu efeito imersivo,
causado pela aproximação com os automatismos do olhar humano (desde a
aplicação do código da perspectiva cônica, até a sedentarização de eixos de
continuidade de tempo, personagens, ação, espaço), o apassivamento dos
movimentos e a supressão das sensações corporais, a homogeneização das
sensações para a massa. Tudo, no arranjo "clássico", é orientado para instaurar
uma relação entre o público e as imagens em que aquele se faça espectador. Isso,
não apenas pelas percepções a que ele é conduzido, mas também - quiçã
principalmente - pela suposição (proveniente de informações colaterais dos
paratextos jornalísticos, publicitários, urbanísticos) de que as imagens provém de
centros de difusão autorizados, cuja produção é compartilhada igualmente por
receptores-como-eu. A ácida argumentação de Baudry, que coloca sérias
dificuldades para um uso efetivamente político do cinema, ecoa as hipóteses de
uma dominação pervasiva e constitutiva prevalecente através de outros
"dispositivos", o da dominação política do corpo (Foucault) e o da dominação
política da linguagem (nos aparelhos ideológicos de Estado, de Althusser e mesmo
em Barthes - que dizia que o fascismo da linguagem não reside naquilo que ela nos
impede de dizer, mas naquilo que ela nos leva a dizer).

No entanto, há uma interpretação igualmente assentada - desde os textos de


Brecht e Benjamin sobre um possível rádio bidirecional, até o movimento do
software livre, atual - que não há um caráter necessáriamente hegemonista para a
instituição dos sistemas de representação, o que poderíamos traduzir em termos
crítico-reconstrutivos (habermasianos) como a afirmação de coexistência de tipos
ideais de arranjos artefactuais: comunicativos e estratégicos. Na "instituição
imaginária da sociedade" (Castoriadis) há a possibilidade ilimitada de casos
híbridos, nos quais "camadas" retóricas distintas podem se configurar estratégica
ou comunicativamente.

Em todo caso, para configurarmos o documentário como uma classe natural da


retórica pública, ou seja, uma meta-forma de proferimento de representações
dotadas de pretensões representativas dirigidas à esfera pública, devemos

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identificar o seu telos mais geral, aquele foco ou causa final para o qual todos os
traços atuais, passados e futuros das enunciações documentárias se dirigem. Um
primeiro traço, o da docência, já foi mencionado acima. Documentária é aquela
retórica que pretende nos ensinar algo - ou, numa chave mais democrática, uma
retórica que pretende nos levar a aprender algo, juntos, uns com os outros. Ao nos
endereçar como públicos, as enunciações documentárias nos fazem participar de
um público com características determinadas tanto pelos traços textuais quanto
pelos propiciamentos paratextuais. A retórica documentária é sempre
agorapoiésica, instauradora de relações de pertencimento a um publico cujos
membros são capazes de agir de modo articulado segundo as razões que eles
mesmos acham convincentes para cada um (neste sentido, a agorapoiese é um
traço fundamental da democracia, enquanto capacidade de ação).

Seguindo Warner, diríamos que o documentário, como proferimento público, (a)


instaura uma relação de pertencimento com nada além do ato comunicativo, (b)
uma relação entre estranhos em que (c) somos abordados ao mesmo tempo pessoal
e impessoalmente (d) apenas por darmos atenção a este ato. É (e) na medida em
queessa atenção se torna habitual, por causa da recorrência dos atos
comunicativos semelhantes, cria-se um espaço simbólico, ou seja, uma expectativa,
gerada pela habitualização da ocorrência de atos semelhantes, que se torna
reflexivamente tema de atos comunicativos semelhantes. A reflexividade simbólica
dos atos concatena uma série de eventos, projetando (f) uma historicidade própria,
em interseção com a historicidade de outros fenômenos recorrentes, tornando (g) o
endereçar-se publicamente uma poiese de mundos sociais (Lebenswelten)

Além de enunciações ou proferimentos enderçados ao publico (implicitametne


instauradores ou transformadores de publicos), as enunciações documentárioas são
arranjos de excertos, em que o arranjo de artefatos retóricos operam transposições
(no sentido da tradução intersemiótica) de fenômenos de um contexto para
hipoícones (imagens, diagramas e metáforas) em um outro contexto espaço-
temporalmente destacado. No cerne da representação documentária jaz a
pretensão de gerar aprendizado a partir do rearranjo de imagens selecionadas para
o propósito de instalar crenças que organizem condutas. Essa é uma pretensão é
política na exata medida em se manifesta por um endereçamento publico. Em
outras situações, fazemos uso de "práticas documentárias" para nossos próprios
fins.

A referência mais ampla às práticas documentárias é aquela, deliberadamente


cética com relação às totalizações das ciências sociais, proveniente da
etnometodologia. O "método documentário de interpretação" constitui o cerne do
que se pode identificar como a causa final das retóricas documentárias -- não sem
observar que este é um telos evolutivo, ou seja, que o propósito dessas práticas
expressivas irá se redefinir na deriva histórica dos seus fins últimos como
representação política (na uberdade na consolidação de vontades coletivas e na
pregnância na projeção de bens comuns).

Uma terceira linha de definição da retórica documentária - além da "logica docens"


agorapoiésica e da seleção interpretativa para a auto-compreensão da vida social -
reside nas qualidades específicas o alinhamento dos recursos retóricos indiciais,
que Latour identificou na retórica científica, da produção de "alinhamento" de
"referências circulantes", e que, de modo mais abrangente, Carlo Ginzburg chama
de "paradigma indiciário". Para formular uma síntese provisória do que seria a
causa final das retóricas documentárias, seguindo essas linhas de argumentação

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(do public mode of adress, da seleção interpretativa dos fatos sociais, do


alinhamento de índices): a interpretação de fragmentos de fenômenos para o
aprendizado coletivo de formas de pertencimento público capazes de
instaurar mundos-da-vida.

Arranjos/artefatos audiovisuais e
cibertextuais como propiciadores do
exercício de métodos documentários;

«O Endereçar-se do Olho» («The


Address of the Eye»), de Vivian S.
Sobchack: A fenomenologia da
"imagem tomada": perceptio-cum-

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expressio - a desprivatização da
percepção, o olho enmundado pelo
olhar corporificado >> as imagens-
de-corpo coletivas da partilha dos
juízos perceptuais

Três caixas-pretas em deriva: a


trajetória histórica dos arranjos
artefactuais do cinema -- um "retorno
às origens"? (Kluge, Hansen: das três
caixas-pretas do cinema à
transformação da esfera publica, pela
imagem eletrônica).

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